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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DOUTORADO EM EDUCAÇÃO

Ivany Souza Ávila

“Memórias de professoras: O Instituto de Educação de Porto Alegre e

as pedagogias de reciprocidade cidade/escola”

Porto Alegre, Novembro de 2005 Ivany Souza Ávila

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“Memórias de professoras: O Instituto de Educação de Porto Alegre e

as pedagogias de reciprocidade cidade/escola”

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para obtenção do título de Doutora em Educação.

Doutoranda: Ivany Souza Ávila Orientadora: Dra. Jaqueline Moll

Porto Alegre, Novembro de 2005

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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO-NA-PUBLICAÇÃO (CIP) A958m Ávila, Ivany Souza Memórias de professoras : o Instituto de Educação de Porto Alegre e as pedagogias de reciprocidade cidade/escola / Ivany Souza Ávila. – Porto Alegre : UFRGS, 2005. f. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, 2005, Porto Alegre, BR-RS. Orientadora : Jaqueline Moll.

1. Professor – Formação – Porto Alegre – História. 2. Mulher – Magistério – Porto Alegre – Memória. 3. Cidade educadora. 4. Tendências pedagógicas. I. Instituto de Educação – Escola Normal. II. Moll, Jaqueline. III. Título. CDU – 371.13(816.51)(091) Bibliotecária Maria Amazilia Penna de Moraes Ferlini – CRB 10/449

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Aos meus afetos maiores

À minha mãe Dilecta e ao meu pai Fortunato (in memorian) por tudo. Tu-

do é tudo. Mereceriam muitas teses.

À Marta e ao Fernando que me impulsionam constante e renovadamente

para a vida.

À Camila, nesse processo prospectivo da vida: um novo olhar se abrindo

para o universo, mais uma inspiração para nossas vidas...

À Carolina. Ah! Carol! Esta tua paixão pelo saber, pelas coisas da escola,

pelos livros, pela pesquisa do universo, pelos hinos e rituais... Certamente, tudo

nasceu com a tua história, que está na contramão dos não-saberes, das não-

aprendências que, mesmo se legitimando nos discursos escolares, se produzem nos

territórios da própria vida.

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ESPECIALMENTE...

Dedico este trabalho ao Instituto de Educação que dispensa comentá-

rios. Minha homenagem maior: esta tese. Que se restaure seu “corpo” e sua “al-

ma” e, assim, restaurados sejam “corpo” e “alma” da escola pública.

Dedico também às professoras e aos professores de todos os espaços e

tempos e a todos os alunos e todas as alunas, crianças e adultos, que foram me

possibilitando ser professora.

Dedico, de modo especial, às crianças que, entre aprendências e não-

aprendências, continuam circulando pelos espaços escolares, lutando por um lu-

gar de direito.

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Homenagens... agradecimentos

Este é o espaço da leveza, tempo de homenagear, agradecer, brincar com as

emoções...

Ao concluir esta tese, encharcada de minha própria vida, quero prestar ho-

menagem de carinho e gratidão para algumas pessoas especiais que compõem mi-

nha vida e minhas memórias.

À Ina e à Estela, minhas irmãs, que, ao se recusarem a usar os “tamanqui-

nhos”, abandonaram a escola, se inseriram no mercado de trabalho e, assim, de al-

guma maneira, contribuíram financeiramente para minha formação. Especialmente,

a Ina, que, além de comprar livros, pagar inscrições, bordava meus vestidos, feitos

em casa por minha mãe. O projeto de ascensão social, através da escola, colocado

por meus pais “nesta filha caçula”, acabou envolvendo a família.

À “Lurdinha”, minha irmã “postiça”, mas tão verdadeiramente irmã e amiga,

que faz parte do que fui, do que sou. Entrou na minha casa com quinze dias de vida

e foi um pouco minha filha, sujeito de minhas pesquisas na Escola Normal. Ajudou-

me a entender de “criança” no quotidiano do vivido.

À Marta, filha dedicada, amorosa que, mesmo à distância, participou deste

trabalho com suas palavras sábias que me impeliam a prosseguir.

Ao Fernando, filho tão solidário, compreensivo, cujas palavras de estimulo

sempre significaram um acalanto. Obrigada, Fer, por este ‘instrumento de trabalho”

com que me presenteaste – sem esta cooperação, as coisas teriam sido mais difí-

ceis.

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Agora, os muitos agradecimentos que, de fato, são apenas alguns.

À Universidade Federal do Rio Grande do Sul, à Faculdade de Educação e

ao Departamento de Ensino e Currículo pelas possibilidades de afastamento das ati-

vidades docentes para produzir este trabalho.

À Equipe de Prática de Ensino, às colegas da área de Língua Materna, pelas

oportunidades de estudo, convívio e por terem facilitado esse meu “recolhimento

acadêmico”.

À Heloísa, do DEC, muito especialmente, pela atenção, cuidado com as

questões funcionais em todos os momentos.

Ao Programa de Pós-Graduação, particularmente à Mary e “ao grupo do

pós”.

Ao grupo de colegas de orientação, em especial à Carla Meinerz pelas su-

gestões e pelos empréstimos de livros.

À Banca Examinadora da Proposta, cujas considerações foram decisivas pa-

ra continuação deste trabalho: Jaume Martinez Bonafé, Rute Vivian Ângelo Baquero,

Maria Conceição Pillon Christofoli, Merion Campos Bordas, Maria Luisa Merino de

Freitas Xavier.

À Banca Examinadora da tese, pela leitura cuidadosa, pelo carinho da aco-

lhida, pelas análises e sugestões que vêm do lugar de quem compartilha saberes:

Maria Conceição Pillon Christofoli, Merion Campos Bordas, Balduino Andreola, Jau-

me Martinez Bonafé.

À Associação de Ex-Alunos do IE, de modo particular à Valdeci Bezerra que,

gentilmente, me ofereceu revistas e documentos que muito me auxiliaram.

Às amigas de escuta sensível de todos os momentos: Bela, tuas dicas são

sempre preciosas, tua acolhida um acalanto; Bernadette, tua presteza e agilidade no

companheirismo são de incalculável valia; Gladis, Ah! Essa parceria o tempo todo

entre os prazeres e desprazeres, tanto da vida, quanto da produção da tese - “um

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dia vamos rir disso tudo” e “tudo passa”; Maria Luisa, tua solidariedade, Malu, teu jei-

to bem humorado de encarar o que mais difícil possa estar ocorrendo e o teu célebre

dizer: “vai escrevendo umas frases!”; ”Heloisa-Lolô”, pela cumplicidade, pelas pala-

vras certas em cada momento. Silvana, que de aluna e orientanda de pesquisa, às

vezes, se torna parceira nos intercâmbios teóricos e metodológicos; Arlette, pela so-

lidariedade e parceria em “tempos de tempestade ou de bonança”.

E a todas aquelas amigas também de escuta sensível e convívio solidário – e

elas sabem quem são – presentes, mesmo na ausência do registro.

À Josele, à Carla, e antes delas, à Luciana, à Daniela, minhas ex-alunas,

bolsistas e amigas.

Ao Rafael que, para além do seu competente trabalho de digitação, diagra-

mação, editoração e composição do design, foi se tornando interlocutor atento, ob-

servador, constituindo uma parceria no olhar ao texto e na busca de informações.

Ao doutor Alberto Stein que, problematizando os enredos do meu viver, aju-

da-me nesta busca do entendimento de mim mesma.

E agora de um modo muito “privilegiado” às minhas colegas e professoras

contemporâneas do Instituto de Educação que participaram desta pesquisa: Arlette

Mabilde, Liba Juta Knijnik, Maria Helena Schaan, Maria Luisa Mascarenhas e Neusa

Junqueira Armellini. Interlocutoras sensíveis e apaixonadas, que dedicaram parte de

suas vidas para esse compartilhamento de memórias, além de seus “guardados”

“inestimáveis”.

À Carmen Célia pelo “precioso” acervo de fotos.

À minha orientadora, Jaqueline Moll, de maneira “especialíssima”, pela com-

petência, seriedade, segurança e, sobretudo, pelo modo acolhedor e afetivo, com

que se fez presente neste trabalho (cada palavra tua, Jaque, representava uma

imensidão de conceitos, (re) direcionamentos, impulsionando-me a prosseguir).

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E, por fim mesmo, e com mais leveza ainda...

À vida, à música, à dança, ao vinho, ao espumante, ao “pôr-do-sol do Guaí-

ba”, às caminhadas reflexivas com a ”Hildair-Dadá” no Gasômetro, aspirando os

aromas, encharcando o olhar de tudo quanto de belo esses espaços da cidade vão

nos oferecendo, apesar das contradições que encontramos no caminho, pelo “me-

nos belo” que o social vai mostrando. (Obrigada, Dadá, pela parceria, pelas trocas

teóricas, obrigada pelo Bauman, pelo Jung, pelo Freud...)

Ao João Carlos, meu grande amigo, que me ensinou a olhar mais atentamen-

te para a cidade, a compreendê-la nas suas rotas educativas, tornando-se um pouco

responsável por meu interesse em tomar a cidade como objeto de estudo.

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Viajar? Para viajar basta existir. Vou de dia para dia,

como de estação para estação, no comboio do meu corpo

ou do meu destino, debruçado sobre as ruas e as praças,

sobre os gestos e os rostos, sempre iguais e sempre diferentes,

como afinal as paisagens são. A vida é o que fazemos dela, as viagens são os viajantes.

O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos

Fernando Pessoa

(Livro do Desassossego)

A vida não é o que a gente viveu, E, sim, o que a gente recorda,

como recorda, para contá-la.

Gabriel Garcia Marques

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RESUMO Esta tese debruça-se sobre as memórias de alunas e de professoras da Escola Normal do Instituto de Educação de Porto Alegre (IE) no período de 1950 a 1970 e toma essa instituição como campo, sujeito e objeto da pesquisa. Este estudo se vem constituindo ao longo de minha vida escolar e profissional e sua importância se justi-fica pelos entremeios da minha própria história, pelos estudos teóricos que foram ba-lizando minhas ações pedagógicas e meus constantes questionamentos. A construção deste objeto de pesquisa orientou-se por questões relacionadas ao IE, como escola formadora de professoras, ao que a instituiu no contexto histórico e os sentidos que, daí, se produziram e que estão registrados no vivido que emerge das memórias. Trata-se, pois, de um estudo que investigou o Instituto de Educação e o processo de formação de professoras, para melhor compreendê-lo, no período ali desencadeado, interligando com as pedagogias da cidade e cotejando-o com o pro-cesso, por mim denominado, de Pedagogias de Reciprocidade Cidade/Escola. Os estudos sobre história, memórias, formação do professores, pedagogias da cidade, cidade educadora, tendências pedagógicas, dentre outros, foram compondo este trabalho. A análise valeu-se dos aportes etnográficos, dos chamados estudos da memória, da história oral e das pedagogias da cidade. Esta é, pois, uma tese que não se pretende parâmetro para a educação, no tempo presente, mas posso dizer que alguns elementos foram marcantes no processo de constituição de professorali-dades. Assim, o currículo, o corpo docente, o lugar de destaque desta escola no ce-nário educacional, a construção de laços identitários e de pertencimento foram significativos nesse processo. É possível também defender a idéia de que as profes-soralidades, humanidades se produziram nos atravessamentos com pedagogias ur-banas. PALAVRAS-CHAVE: Memória, Pedagogias, Cidade, Escola, Formação, Professo-res, Professoralidades.

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ABSTRACT

This thesis focuses on the memories of some of the students and teachers of

the Escola Normal of the Instituto de Educação de Porto Alegre (IE), from 1950 to

1970, promoting this institution as a research field, subject and object. The study

herein has been composed throughout my school and professional life, its impor-

tance is justified by my own life history, by the theories that have marked my peda-

gogic efforts and by my constant inquiries. The construction of this research object

was based on issues related to the IE, as a teacher forming school, setting it in both

the meaningful and historical contexts, from which such memories were produced

and are now registered in the life experiences that surface from the subjects. This

study investigated the IE and the teachers’ development process, to better under-

stand it during the period of its existence, interlinking it with the pedagogies of the city

and comparing it to what I have called Pedagogias de Reciprocidade Cidade/Escola

(pedagogies of reciprocities city/school). The studies on history, memories, teacher

development, city pedagogies, educating city, pedagogic tendencies, among other

issues, have composed this work. The analysis has been supported by the ethno-

graphic content, by the so called memory studies, by oral history and by the pedago-

gies of the city. This thesis, consequently, doesn’t intend to offer parameters for the

current education, but I can state that some elements were noteworthy in the process

of shaping the professoralidades (teacheralities). In this way, the curriculum, the fa-

culty, the recognition of this school in the education community, the construction of

the identity bonds and of belonging were significant in this process. It is possible to

also defend the idea that the professoralidades, humanities were produced by cross-

referencing with urban pedagogies.

KEYWORDS: Memories, Pedagogies, City, School, Development Process, Teach-ers, Teacheralities.

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LISTA DE IMAGENS

Fig. 1: Instituto de Educação General Flores da Cunha, década de 60, p. 96

Fig. 2: Jornal Correio do Povo, 05 de abril de 1972, p. 99.

Fig. 3: Foto das colunas do Instituto de Educação, p. 107.

Fig. 4: Vista aérea do Instituto de Educação e do Parque Farroupilha na década de

30, p. 109.

Fig. 5: Templo da deusa Ártemis, em Éfeso, na Ásia Menor, a quarta maravilha!

P. 110.

Fig. 6: Ginasianas em frente ao IE: o uniforme, laço azul marinho. Da esq.para dir. e,

em pé, Terezinha Reginatto, Ivany, Glória, Sentadas, da esq. para direita, Carmen

Célia, Marilene, Lorecy, p. 116.

Fig. 7: Leitura do código por Neusa Armellini, em seu ingresso no Curso Normal,

p. 118.

Fig. 8: Foto do Código de Honra, p. 119.

Fig. 9: Logotipo do Instituto de Educação, p. 122.

Fig. 10: Uniforme do Curso Normal (foto de Carmen Célia), p. 145.

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Fig. 11: Orfeão Artístico com a maestrina Dináh Nery no centenário do IE, p. 156.

Fig. 12: Foto das formandas de agosto de 60 com o paraninfo Leonel de Moura

Brizola e com a diretora Mary Acauan Titoff, p. 167.

Fig. 13: Mapa do complexo de ilhas do Delta do Jacuí, onde se encontra a “Ilha da

Pintada”, p.180.

Fig. 14: Conjunto de 99 Palmeiras-da-California intercaladas com Jacarandás na

Avenida Osvaldo Aranha. Ao fundo, à direita, o IE, p. 202.

Fig. 15: Vista aérea do final do bairro Bonfim e o centro de Porto Alegre. À esquerda,

abaixo, o IE na década de 60, p. 204.

Fig. 16: A barca do Estaleiro Mabilde, - “a Mabilde” das travessias feitas por Arlette,

p. 209.

Fig. 17:- Apresentação de uma peça pelo TIPIE no auditório, p. 217.

Fig. 18: Neusa Armellini com Nair Marques Pereira no encerramento da “Semana da

Juventude”, p. 225.

Fig. 19: Ata de encerramento da “Semana da Juventude”, p. 226.

Fig. 20: Ata de um dos “encontros” das formandas de 60, p. 238-239.

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SUMÁRIO

1- Solidões e compartilhamentos de jornada – da gestação desta tese ............ 18 2- Dos trajetos do desejo ou de como se foram constituindo as intenções de pesquisa ................................................................................................................... 24 2.1- Um começo de história .................................................................................... 24

2.2- Pelos caminhos do público e do privado: as alternâncias de rotas ............ 28

2.3- Das inquietações com as “aprendências e não-aprendências” .................. 30

2.4- Dos ditos sobre os "não saberes" ou da persistência das questões.......... 36

2.5- Na arena dos confrontos teóricos - das Teorizações Críticas aos “pregões

da Pós-Modernidade” ............................................................................................. 43

2.6- Das trajetórias e aproximações teóricas à pesquisa .................................... 50

3- Dos desenhos dos postos movediços ou dos caminhos da pesquisa .......... 54 3.1- Alguns apontamentos sobre memória ........................................................... 54

3.2- Da construção do objeto e dos trânsitos investigativos .............................. 65

4- Aproximações teóricas – entretecimento de temas ......................................... 70 4.1- Alguns estudos próximos ou inspiradores ................................................... 70

4.3- De professores e de professoras – história e processos de formação ....... 77

4.3- As tendências pedagógicas na urdidura do vivido ....................................... 83

5- Recontando histórias e a história: o IE produzindo os cenários, constituindo as vidas .................................................................................................................... 96 5.1- Um pouco de história: com a palavra Dona Mary ......................................... 97

5.2- Algumas palavras sobre uma escola para mulheres .................................. 100

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5.3- Laço no peito, prega na saia: uma instituição imponente .......................... 104

5.4- Um salto para o sonho: a Escola Normal. .................................................... 131

5.5- Uma das primeiras turmas da reforma de 55 – o ingresso, a vivência do

currículo ................................................................................................................. 145

5.6- Pelos avanços e recuos da memória: algumas “imortais” ........................ 151

5.7- “Por trás dos bastidores”: com a palavra nossas professoras ................. 158

5.8- Do estágio supervisionado: tempo de muitas aprendizagens ................... 162

5.9- A Escola Primária do IE: um processo de formação continuada .............. 168

6- De reminiscências, de acontecimentos: cidade educadora, pedagogias da cidade, pedagogias de reciprocidade ................................................................. 173 6.1- Do nascimento das cidades às utopias ....................................................... 173

6.2- Em busca do tempo perdido: a cidade dos sonhos de Tonucci os

caminhos e as vozes de nossas infâncias. ......................................................... 178

6.3- Da persistência das utopias: cidades educadoras e a Porto Alegre das

memórias. .............................................................................................................. 191

6.4- Nas redes do tempo: de pedagogias da cidade para as pedagogias de

reciprocidade cidade/escola ................................................................................ 214

6.5 - Das “verdades” da memória ou da semeadura das contradições............ 229

7- Dos vínculos- nossos (re)encontros ............................................................... 236 8- Do arremate das múltiplas tessituras ............................................................. 240 9- Referências ........................................................................................................ 253 9.1- Imagens .......................................................................................................... 262

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1- Solidões e compartilhamentos de jornada – da gestação desta tese

Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam fa-íscas e lascas como aços espelhados.

Clarice Lispector

Tudo está na palavra... Uma idéia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar, ou porque outra se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que lhe obedeceu... Têm som-bra, transparência, peso, plumas, pêlos, têm tudo o que se lhes foi agregando de tanto vagar pelo rio, de tanto transmigrar de pátria, de tanto ser raízes...

Pablo Neruda

O processo de construção de uma tese é solitário e dolorido. Tornamo-nos,

no ato da produção, prisioneiros de nossas próprias palavras, dos nossos medos, de

nossas incertezas, raivas, angústias, prazeres. Há que aprisionar-se no fundo de si

mesmo e, ao mesmo tempo, dilacerar-se na ânsia de encontro com o ato criador e

seus limites próprios, além daqueles impostos pelos modelos acadêmicos.

O ato da produção, da criação é solitário. No entanto, contradizendo a si

mesmo, esse ato se organiza como teia, como rede, de muitos fios, é então, um ato

compartilhado com as memórias, com as ousadias, com as prospecções que são, a

um só e ao tempo, a própria vida que vai e volta, rebobina-se, pára numa cena, num

ato, novamente anda, para frente, para trás, subindo e descendo o pano dos tantos

palcos constituidores dos instantes vividos.

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Acompanham, essa jornada, os sonhos, os desejos, as ambições, os projetos,

as crenças e as (des)crenças, mas também se fazem acompanhantes o compromis-

so, o rigor, a exigência, as obrigações com a palavra empenhada. São companhei-

ras, ainda, todas as nossas fantasias do passado, do presente e do futuro. É uma

trilha de solidões e de alquimias de afetos, amores, dores, gentes visíveis, palpáveis,

invisíveis – vivas ou mortas. Alguns afetos e amores são ressuscitados, enquanto a

memória se rasga e se recompõe.

Então, enquanto escrevia, Maria Pereira me acompanhava com seu “sorriso

de Monalisa”1, embalando suavemente seu corpo, pela sala de aula, na desenvoltura

de uma dança grega. Dináh Néry, com sua mão de maestrina, insubstituível, gritou,

exigiu e o “coral,” no seu mais austero modo de portar-se, fez ecoar suas vozes pela

sala e foi seguindo pela imensidão do espaço cósmico, para além do visível, do per-

ceptível.

As frases, os parágrafos sumiam teimosos, brincavam comigo de “esconde-

esconde”, mas em compensação, eu subia aos palcos orientada pela quase imortal,

Olga Reverbel, me encontrava com o “grupo das seis”2 ensaiando peças, preparan-

do cenários e improvisando figurinos.

Entreguei a Nadir Saldanha da Rocha, para avaliação, a Caixa de Matemática

com todo o material didático que me acompanharia por muitos anos na Escola Pri-

mária – os palitos de picolé cuidadosamente tingidos – material de contagem e de

fundamentação do sistema de numeração decimal, junto com as famosas tampinhas

de garrafa e outros tantos materiais protegidos na caixa forrada com esmero (as

chamadas coisas de normalistas). Também, enquanto tentava capturar idéias fugidi-

1Essa é uma expressão usada por Arlette, uma das entrevistadas, ao se referir a nossa professora Maria Pereira. 2 Grupo de teatro da nossa turma: Carmem Célia, Ana Maria Bohrer, Maria Josefina Becker, Sandra Acauan, Ma-ria Helena Schneider e Ivany (era como Olga Reverbel nos chamava)

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as, me encontrava com o “dossiê de linguagem” construído nas aulas da Mariana

em letras cursiva e “script” muito bem desenhadas.

Às vezes, na fuga do texto, minhas memórias me levavam à Escola Santa

Flora, Anexa ao IE, onde realizei o estágio supervisionado. Com os modelos das

mestras da Escola Normal ou da Escola de Aplicação do IE, eu andava pela sala, no

primeiro dia de aula, tomada por aquele misto de medo e de alegria.

O Vitorino entrou, sem pedir licença, nos entremeios das minhas tentativas de

escrever, dizendo – Professora, o Paulinho me deu um soco “na minha costa” e,

com ele, a Renata: - professora, quando batê, eu tenho que saí correndo, senão eu

apanho da minha mãe! (a mãe era lavadeira e ela ajudava a passar a roupa.)

Vitorino, temido, anunciado já de véspera, para mim, como o terror da aula,

depois meu grande amigo. O Paulinho, com seus olhos vivos e sorriso meigo, pe-

queno para seus oito anos, sentado à frente de minha casa, para acenar quando eu

passasse. Tinha fama de “bagunceiro” na escola, no entanto, se fez presente, na

minha memória, como participativo, sempre do meu lado, pronto para auxiliar nas

atividades da sala de aula e, agora, participando deste trabalho. Essas crianças fo-

ram me ensinando as primeiras lições do “ser professora” e andaram comigo pela

tese, tanto quanto andam pelas “escolas de estágio em que faço visitas a minhas

orientandas.

Terezinha Oliveira, minha orientadora de estágio, entrou na minha sala, olhou,

olhou, escreveu, escreveu. Competente, me orientava didaticamente, profissional-

mente. Muitos sentimentos se confundiam quando ela chegava - o temor, a angústia

do ser avaliada e, ao mesmo tempo, a alegria da valorização do que ela ali encon-

trava.

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E todas as pessoas, os espaços, os tempos se juntaram povoando a solidão.

Tanta gente, tantas vidas entrando, escrevendo comigo.

Outros companheiros de jornada foram os livros, as músicas e todas as per-

sonagens de muitas histórias lidas e vividas.

Entretanto, foi preciso muito mais do que isso para produzir uma tese e fui

evocando, chamando os que me ajudariam a produzir, não uma obra literária, um

romance de memórias, mas um trabalho acadêmico – os teóricos, os que produzi-

ram suas tese, seus livros, seus textos.

Guacira Louro, como ex-aluna e ex-professora do IE, andou comigo o tempo

inteiro desde a proposta, com sua obra “Prendas e anti-prendas” que também toma

o IE como objeto de estudos para investigar questões de gênero.

Outros estudos sobre instituições e memórias também foram parceiros de jor-

nada.

Os estudos sobre história, memórias, formação do professores, pedagogias

da cidade, cidade educadora, tendências pedagógicas, dentre outros, foram com-

pondo este trabalho. Kraemer Neto, Franco Cambi, James Fentress, Jaume Bonafé,

Magda Soares, Jaume Trilla, Edgar Morin, Zygmunt Bauman, Analia Brarda,

Guilhermo Rios, Jaqueline Moll, Agustín Escolano Benito, José María Hernández

Díaz, foram alguns dentre os teóricos que me ajudaram a produzir esta tese. Além

disso, constituíram parceria e momentos de alegre convívio, as pessoas entrevista-

das: Liba, Maria Luisa, Arlette, Maria Helena e Neusa.

Por esses processos de produção, entre solidões e compartilhamentos, se

produz esta tese, que se tece pelas memórias e reveste-se de um caráter autobio-

gráfico, biográfico, memorialista.

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A idéia desta investigação nasce na minha própria história de vida, é fruto das

minhas inquietações sobre aprendizagem, sucesso e insucesso escolares e está nos

interstícios de tudo quanto foi me constituindo como a professora que sou.

Grande parte da minha vida escolar e profissional está fortemente enraizada

no Instituto de Educação de Porto Alegre.

É assim, através das reflexões sobre minha própria história, que decido tomar

o Instituto de Educação como objeto de estudo. Focalizo o IE, sua história, tentando

entender os processos de formação de professoras que se dão na Escola Normal,

na década de 50, avançando um pouco mais para a década de 60, período em que

fui professora dessa mesma escola.

Como acredito que um processo de formação não se constitui apenas nos

espaços escolares, busco a relação com a cidade com as pedagogias urbanas na

tentativa de entender como vão se produzindo as professoralidades nos atravessa-

mentos com esses espaços educativos.

Desenvolvi este estudo, procurando a relação entre como se produz, se ins-

taura essa escola e o que ela produz e que está registrado no vivido que emerge

nas memórias.

O estudo do IE nasce do desejo de narrar a mim mesma, para entender-me,

nessa professoralidade que me constitui, mas minhas lembranças, meus “guarda-

dos”, não me pareceram suficientes para os entendimentos que procurava e fui ao

encontro de outras memórias.

Para encontrar-me com essas memórias, realizo esse estudo através de en-

trevistas informais com pessoas que viveram o IE como professoras da Escola Nor-

mal ou como alunas que, posteriormente, tornaram-se professoras da Escola

Primária dessa instituição.

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As pessoas que participaram desta pesquisa são mais do que entrevistadas:

são interlocutoras, personagens e também personalidades que viveram a escola e

que tiveram seu lugar de destaque, não só nos espaços intra-escolares, como em

outros espaços e tempos educativos da cidade, do estado e do país e, por esta ra-

zão, estão aqui identificadas3. São pessoas que compartilharam comigo suas vidas

de alunas e de professoras. São mulheres, pois era uma escola povoada pelas mu-

lheres.

Organizei este texto, agrupando as temáticas que assim ficaram configuradas:

o processo de constituições das questões, os caminhos investigativos, estudos pró-

ximos ou relacionados a este, a formação de professores, as tendências pedagógi-

cas, os estudos sobre o IE, focalizando os processos de formação, concentrando aí,

de forma mais intensa, a análise das entrevistas, os estudos sobre cidade educado-

ra e pedagogias da cidade. Ao final, promovo as inter-relações, para apontar os sen-

tidos produzidos neste estudo, desde um olhar que entrelaça cidade e escola para

compreender a formação de professoras.

3 As entrevistadas foram informadas acerca do conteúdo e metodologia da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, autorizando serem nomeadas neste trabalho.

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2- Dos trajetos do desejo ou de como se foram constituindo as intenções de

pesquisa

Sou o intervalo entre meu desejo e aquilo que os desejos dos outros fizeram de mim.

Fernando Pessoa

2.1- Um começo de história

Há um processo que rumina, amarga, viceja - aquele que vai do desejo do

não sei bem quê, meio bruma, meio luz, até os indícios daquilo que talvez se queira,

do objeto do desejo. Tantas são as perguntas, tantos são os olhares e tão múltiplos

e diversos os postos, que se faz difícil selecionar um foco, configurar um objeto e de-

le tomar um distanciamento para melhor observá-lo e decidir que este, e, não outro,

será nosso objeto de pesquisa. Mas há que escolher, o que significa, parafraseando

Geraldi (1993), dizer que, escolhido o posto, este é sempre movediço, logo é preciso

desenhá-lo. É nos embates da vida, no vivê-la, no experimentá-la, pelos saberes,

que os postos vão se desenhando. É desta riqueza da vida e do trajeto do desejo

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que se inscreve e se configura na memória que quero começar falando, na tentativa

de relatar como foi se construindo o presente estudo.

Este estudo se vem constituindo ao longo de minha história escolar e profis-

sional e sua importância se justifica pelos entremeios da minha própria história, pe-

los estudos teóricos que foram orientando minhas ações pedagógicas e meus

constantes questionamentos.

É assim, através desses questionamentos que decido tomar o IE como objeto

de estudo e, ao mesmo tempo, campo de investigação. É nessa escola que se dá

grande parte da minha formação e da constituição da pessoa e da profissional que

sou.

Como esse objeto de pesquisa se constrói intimamente relacionado a minha

própria história e aos estudos teóricos que originaram interrogações e encaminha-

mentos de idéias, a seguir, apresento uma visão geral dessa história.

Sou uma professora. Parece que nasci assim, pela história constrangida, dela

produto e produtora. Fui me constituindo pelas tramas dos discursos, dos espaços

sociais, dos projetos de vida traçados para mim, depositária das esperanças de

meus pais, que não veriam nada melhor para uma menina do que tornar-se uma mu-

lher professora4. Professoras foram meus modelos - do seu lugar de poder-saber

fascinavam-me, com seu porte, seu visual. Fui uma criança-professora, não só por-

que desempenhasse esse papel nos jogos simbólicos, mas porque, aos dez anos de

idade, alfabetizei ou acreditei ter alfabetizado meninos agricultores da vizinhança.

Segundo contam as lendas familiares, dava aulas de joelhos numa cadeira, usando

4 Em uma de suas obras que localizam a condição feminina no Magistério, Louro (1997) analisa historicamente a inserção da mulher no mercado de trabalho, em que o magistério seria uma atividade permitida. Esta seria uma profissão mais próxima de atributos femininos como amor, sensibilidade.

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para isto minha velha cartilha “Queres Ler?”5, com a qual teria me alfabetizado. Tal-

vez o trajeto do desejo que rumina, amarga e viceja tivesse começado aí e continu-

ado através dos tempos.

É por isso, que, ao narrar a mim mesma, fui evocando cenas de vida escolar

e profissional, que, como diz Adélia Prado6, “de tempo e de traça me guardam” e

que, nos embates do quotidiano, se vivificam, desde meu primeiro contato alunar

com a escola até as discussões teóricas, as lutas políticas, as práticas pedagógicas

das escolas públicas, onde se deu e se dá grande parte do meu fazer pedagógico

até, enfim, toda essa rede-vida que se tece com permanentes reticências e pontos

de interrogação.

Inspiro-me em Paulo Freire para falar de minha entrada na escola, mais pre-

cisamente, inspiro-me nas memórias de alfabetização desse pensador-educador

brasileiro de cujas obras me aproximei mais durante o Mestrado.

Na obra “A importância do Ato de Ler”, Paulo Freire relata, de forma poética e

impregnada de emoção, o modo como aprendeu a ler no quintal de sua casa, escre-

vendo na terra com um graveto e de como foi vivendo a escola, com grande admira-

ção por sua professora de Português e por outros mestres e outras mestras.

Não aprendi a ler no quintal de minha casa, embora aí talvez se tenha iniciado

um processo, mas na escola.

Com seis anos de idade, meus pais me levavam pela mão ao “Grupo Escolar

Paula Soares” com a esperança de que eu fosse uma brilhante aluna de primeira sé-

rie. Minha mãe, que não conhecia os segredos do código escrito de sua língua ma-

5 Primeiro Livro, lições e exercícios normais de leitura-escrita corrente e ortografia nacional, adaptação à língua portuguesa do primeiro livro de leitura-escrita corrente do eminente professor uruguaio José Henriques Figueira, obra essa fundada na ciência mental e no estudo da criança e composta de acordo com os princípios de espon-taneidade, de autonomia e correção natural das matérias (ASSOCIAÇÃO SINÉRGICA) e dos métodos intuitivos e analíticos sintético fônico de palavras e frases fundamentais, por Olga Acauan Gayer e Branca Diva Pereira de Souza, 1924. 6 Extraído do poema de Adélia Prado “O vestido”.

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terna, e meu pai, que contava com orgulho ter sido alfabetizado pela “Seleta em

Prosa e Verso”7, faziam-me depositária de suas esperanças e assim me conduziram

ao início de minha vida escolar.

Desse tempo, o da minha entrada na escola, lembro bem das meias azuis da

Lili e dos sapatos pretos: o cartaz grande colorido, com a Lili de fazer inveja de tão

bonita. Estamos em tempo de Escola Nova e de alfabetização pelo método analítico

ou global de contos8. Esse método tem sua origem vinculada a Ovide Decroly, cuja

matriz teórica está na Psicologia da Gestalt, trabalha baseado nos princípios do sin-

cretismo infantil, partindo das totalidades para os elementos menores que as com-

põem. Instaura-se no movimento da Escola Nova, tema de que tratarei mais adiante,

cujo ideário emana dos aportes teóricos da Biologia e da Psicologia sem estar des-

vinculado das necessidades sociais, políticas e econômicas da época.

Convivi pouco com a Lili e seu gosto por doces. Logo minha mãe é chamada

à escola:

- Ela é ainda muito pequena, é uma gracinha, mas dorme o tempo todo.

Qual seria o significado de tanto sono: a incompreensão do que acontecia na-

quele espaço, ou teriam sido anteriormente escassas as possibilidades de letramen-

to? Eu não saberia dizer, sei apenas que lembro do colorido dos cartazes, das

imagens e nada recordo das marcas escritas que acompanhavam tais imagens. O-

lhando para trás, penso que talvez essa tenha sido a minha primeira experiência de

"fracasso escolar”.

7 Seleta em prosa e verso do professor Clemente Pinto muito usada nas escolas desde a década de 20, citada por Kraemer Neto, 1969. 8 Cartilha da Lili, que atende as orientações do Método Global de Contos, rica de ilustrações coloridas e acom-panhada de material didático que permite, às crianças, manuseio, recorte e colagem. Os cartazes grandes com ilustrações coloridas reproduzem as páginas da cartilha.

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Meu insucesso como aluna do Paula Soares vai me conduzir, mais tarde, pa-

ra uma instituição particular, o colégio das freiras – Sagrado Coração de Jesus – em

que vou estudar no sistema de internato.

2.2- Pelos caminhos do público e do privado: as alternâncias de rotas

Esta minha incursão pelos espaços de uma instituição total, no sentido atribu-

ído por Goffman (1964)9, o colégio das freiras, em que o trânsito entre submissão e

rebeldia que resultou na vitória do cálculo de risco10 foram decisivos para tessitura

dos fios das tramas da minha vida, incluindo-se as ações sociais, políticas, profissio-

nais, atravessadas também por longos anos de terapias.

Apesar de tudo é ai que me alfabetizo com a irmã Manoela usando a cartilha

“Queres Ler” meu objeto de muito carinho.

As queixas constantes das freiras sobre meu comportamento, as ameaças de

“expulsão”, e a “careza” do colégio me levaram de volta ao ar livre da escola pública,

o que me custou refazer a “segunda série”, pois o “ensino das freiras era fraco”.

Segue-se uma peregrinação por escolas: a multisseriada do professor Emeté-

rio, (particular) cujo proprietário e diretor era ex-seminarista – um retorno aos casti-

gos em que o joelho no grão de milho vai substituir o quarto escuro das freiras,

juntamente com o “não devo...” escrito muitas vezes como castigo diariamente.

9 Goffman caracteriza como instituições totais aquelas que, em seu aspecto central, rompem com as barreiras que comumente separam as três esferas da vida: dormir, brincar, trabalhar. Todos os aspectos da vida se reali-zam num único lugar e sob o olhar de uma autoridade. 10Kamii, com base nos estudos de Jean Piaget, sobre o julgamento moral das crianças, trabalha com as reações da criança ao autoritarismo do adulto: submissão, rebeldia ou cálculo de risco – a criança arrisca-se no teste, porque vale mais o sabor da transgressão do que o peso da sanção.

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É de alternâncias que se faz o meu percurso escolar. Depois vem a escolinha

de fundo de quintal da Dona Elisa, onde conheci a pequena lousa em que podíamos

escrever com giz. Nada de cadernos, nem de castigos. Dona Elisa, bonita, elegante,

sorrindo, espalhando afeto, com quem me encontro anos mais tarde numa sala de

estofados de veludo - da escolinha de fundo de quintal a uma grande instituição de

Ensino Superior – a escola São Judas Tadeu.

A volta à escola pública vai ser na “Classe Preparatória ao Exame de Admis-

são ao Ginásio”, no mesmo “Grupo Escolar” Paula Soares em que não consegui

desvendar os mistérios da escrita, adormecendo ao som das lições da Lili que agora

são substituídas por problemas de matemática, tratando de torneiras que pingam,

carros que nunca se encontram, e que se resolvem memorizando modelos e por

muita análise sintática, morfológica, mas também muita redação. Escrever, para

mim, era a parte mais bonita.

Ao lembrar essas alternâncias de rotas entre o público e o privado e a grande

diferença com relação aos princípios educativos, encontro na leitura de Paulo

Ghiraldelli Jr. (1990), alguns excertos que enfocam o cenário em que se desenvolve-

ram as disputas entre escolas públicas e privadas. Segundo o autor, a rede pública

de ensino cresceu muito nos anos 40 e 50, tornando-se um patrimônio que os seto-

res sociais mais democráticos defendiam enfaticamente.

Por outro lado, os empresários do ensino, os donos das escolas particulares,

na falta de um bandeira para lutarem pelo ensino privatizado, utilizavam-se da Igreja

Católica que os beneficiava, argumentando em favor da liberdade de ensino e do

direito da família na educação dos filhos.

A filosofia pragmatista de Dewey que embasava o escolanovismo de Anísio

Teixeira era confundida, pelos defensores das escolas privadas, especialmente as

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católicas, com as correntes filosóficas filiadas ao marxismo e assim consideradas

perigosamente comunistas.

Eis aí algumas raízes das grandes diferenças tanto de princípios orientadores

quanto de ações metodológicas entre as escolas públicas e privadas pelas quais fui

transitando naquela época. Sabemos que a situação, hoje, é bem diferente e tais

princípios do passado não são os mesmos para uma análise que focalize a relação

entre instituições públicas e privadas.

Finalmente, concluído o Curso Primário, encontro-me com a escola que tan-

tos sentidos produziria em minha vida – o Instituto de Educação. Nessa escola, entro

como ginasiana, freqüento a Escola Normal e me torno professora.

2.3- Das inquietações com as “aprendências e não-aprendências”

Mais tarde, alfabetizadora de crianças, já então autorizada pela formação pro-

fissional, começo a indagar-me sobre o "não aprender" de algumas crianças e sobre

o que delas se diz e que hoje interpreto como o mito das "desaprendizagens", das

"dificuldades das crianças", mitos esses que se originam e se legitimam nos ritos

escolares e nos contextos sociais que os produzem. Ao interrogar-me sobre as

crianças e suas aprendências ou desaprendências, estou indagando sobre professo-

ras e professores, seus sucessos, insucessos, suas próprias aprendências ou seus

saberes docentes, logo me interrogo também sobre os processos de formação, o

que me remete a minha própria formação, e vai me conduzir a minha velha Escola

Normal, nesta pesquisa.

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Após ter concluído o Curso Normal, começo, oficialmente, a minha vida pro-

fissional no Grupo Escolar Vila Niterói em Canoas, assumindo uma classe de alfabe-

tização. Ao entregar-me a turma de crianças, a diretora disse-me que se tratava do

grupo das "médias" - cujo teste de ABC11 situava-se entre 7 e 14 pontos e que eu

deveria me preocupar com as "fortes", porque as "fraquinhas" não se alfabetizariam

mesmo.

Lutei contra a profecia, mas ela acabou se cumprindo. Hoje acredito que a

maior parte das crianças poderia ter se alfabetizado.

Tanto material didático, tanto empenho - estamos ainda nos tempos do “Mé-

todo Global”, teatrinho, dramatização. Recorro à Orientação de Estágio do Instituto

de Educação: algumas descobertas e cresce meu interesse pela área da alfabetiza-

ção. Minha inquietação – por que algumas crianças não aprendem?

Os estudos de Emília Ferreiro e Ana Teberosky12, sobre a Psicogênese da

Língua Escrita, representaram uma revolução conceitual porquanto vieram demons-

trar que as crianças constroem hipóteses sobre a língua escrita, interagindo com es-

te objeto de conhecimento, com os falantes de sua língua materna e com pessoas

capazes de informá-las, desafiá-las no seu processo de construção do conhecimen-

to. A noção de "erro construtivo" na teoria piagetiana é identificada por essas pes-

quisadoras como as hipóteses sobre a escrita e a leitura que as crianças vão

construindo e reconstruindo e isto vai fazer toda a diferença - significa olhar as cons-

11 O teste ABC do professor Lourenço Filho, compunha-se de uma série de questões referentes à memória audi-tiva, visual e coordenação motora. Os resultados variavam de 0 a 20 pontos. Esse teste foi usado por longos a-nos, pelas escolas, para diagnosticar a situação inicial das crianças e suas possibilidades de alfabetizar-se e a constituição das turmas embasava-se nestes resultados: 0-7 - fracos (poucas possibilidades de aprender), de 7 a 14 - médios (alguns com mais possibilidades), de 14 a 20 pontos - os fortes (estes sim, deveriam aprender). 12 Psicólogas argentinas da escola piagetiana que centralizaram suas investigações, valendo-se dos estudos de Epistemologia Genética e de Lingüística Estruturalista de Noam Chomsky, e num terreno ainda não investigado por Jean Piaget-: o da leitura e da escrita.

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truções de escrita como avanços, possibilidades, tratando-se de encorajá-las a pros-

seguir, dentro dos princípios das "construções convergentes com avanços”13.

Com esse referencial teórico e possibilidades metodológicas dele decorren-

tes, talvez eu não tivesse permitido que a "profecia" se cumprisse.

Algum tempo depois, me tornei professora do Instituto de Educação, onde vivi

grande parte de minha vida profissional – professora de crianças durante dez anos,

orientadora de estágio, coordenadora das séries iniciais, professora do Curso de

Magistério.

Como professora primária dessa escola, encontro-me com crianças que não

só aprendem, mas para as quais há exigência de professoras que, de fato, ensinem,

pois essas crianças, segundo as falas institucionais, “têm condições para aprender".

São filhos e filhas, em geral, de uma classe média bem situada economicamente e

de uma elite intelectual que sabe das exigências a fazer na educação de seus filhos

e de suas filhas. Entretanto, mesmo assim, algumas não aprendem tão facilmente e

é, nessas circunstâncias, que passo a conviver com o mito da professora "bem su-

cedida" - aquela com quem qualquer criança aprende.

Nessa trajetória entre mitos e ritos, passo a interrogar-me, então, não só so-

bre crianças que não aprendem o que se espera que aprendam nos tempos e espa-

ços escolares, como sobre as professoras com as quais, mesmo aquelas que têm

"muitas dificuldades" aprendem, ou seja, as bem sucedidas. Essas inquietações

conduziram-me ao Mestrado e a um Projeto de Pesquisa, cujas questões orienta-

vam-se para a busca dos fatores de sucesso na alfabetização, localizando e conhe-

cendo ações e concepções de alfabetizadoras “bem sucedidas”.

13 Este é um princípio da Epistemologia Genética de Jean Piaget.

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Na tentativa de responder às questões, realizei entrevistas com professoras

alfabetizadoras de escolas públicas estaduais e municipais apontadas como “bem

sucedidas” e um estudo de caso com uma dessas alfabetizadoras, através de

observações sistemáticas, em sala de aula, acompanhadas de entrevistas. A análise

dos dados apontou para a hipótese de que o sucesso somente pode ser definido

dentro de um universo relacional de significados.

O estudo de caso possibilitou o entendimento de “sucesso em alfabetização”,

desde o ponto de vista de uma professora que conceitua leitura como busca de sig-

nificado na sua dimensão social e política e cuja prática pedagógica apresenta coe-

rência interna entre as concepções teóricas que a embasam e o processo das

crianças como sujeitos do conhecimento.

Aprendi muito com essa pesquisa, especialmente por ter acompanhado,

durante um ano letivo, uma turma de crianças em processo de alfabetização e ter

dialogado, constantemente, nesse tempo, com a professora, participando das ações

pedagógicas que se desenrolavam dentro ou fora da sala de aula. Também foram

importantes as entrevistas com as crianças, quando me foi possível compreender

melhor o processo de construção da leitura e da escrita14. Ainda assim, olhando para

trás, posso dizer que se desfez um dos mitos: fatores de sucesso não parecem ser

tão facilmente generalizáveis.

Dos tempos do Mestrado para cá, novas pesquisas, novos olhares, outras

tendências - já não se trata, talvez, de buscar causas dos insucessos ou sucessos

das alfabetizadoras ou das professoras, em geral, temas largamente explorados,

focalizados com múltiplas e variadas lentes. Entretanto, não perco de vista as ques-

tões que me inquietam, vou me embrenhando em estudos sobre alfabetização -

14 Algumas reflexões resultantes dessa pesquisa encontram-se no artigo A produção da escrita no início da esco-laridade: em busca da compreensão do processo de tornar-se escritor-produtor de significados, elaborado em parceria com Jaqueline Moll e publicado na revista Em Aberto (1992).

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tema que vem me acompanhando, razão pela qual, eu o abordo, mesmo quando

não se trata do objeto específico dessa pesquisa, mas de alguma forma, me condu-

ziu a ela, pois compõe minha história.

As discussões sobre alfabetização têm ocupado muito tempo e muito espaço

seja nas produções acadêmicas, seja nos discursos políticos ou na mídia e o foco e

ponto de partida dessas discussões tem sido o insucesso e o analfabetismo. Grande

parte da literatura ocupou-se da polêmica dos métodos – sintéticos, analíticos ou

mistos - responsabilizados, ora um, ora outro, pelos insucessos escolares das crian-

ças.

No espaço de tempo que vai da polêmica dos métodos às tendências constru-

tivistas, outros estudos buscaram explicar as causas dos insucessos escolares.

Maria Helena Souza Patto (1985) faz uma análise das tendências que explica-

ram esses insucessos: via das carências alimentares ou de desnutrição, afetivas,

sócio-culturais, tendo-se considerado um grande avanço colocar, em contraposição

a essas explicações, a tese de que essas crianças que não aprendem na escola não

seriam nem carentes, nem deficientes, mas diferentes. A autora, criticando essas

tendências, afirma que as crianças não são, nem mesmo, diferentes, mas sim, mal

trabalhadas. Neste caso, a responsabilidade passaria, então, à instituição escolar,

incluindo-se aí professoras e professores, tendência essa parcialmente superada ho-

je, ou pelo menos, questionada.

É importante esclarecer que, nesta breve retrospectiva, trabalho com a idéia

de coisas do "passado", mas todas essas explicações para os insucessos escolares

fazem parte ainda dos discursos pedagógicos não acadêmicos e os métodos sintéti-

cos ou analíticos, nos seus diferentes processos, são ainda bastante usados nas es-

colas.

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Já os princípios teóricos que sustentam as pesquisas de Ferreiro e Teberosky

(1985) vão focalizar a questão não pela via da denúncia, pois não se trata de culpa-

bilizar alguém ou algo, de denunciar, mas de entender o processo pelo qual as cri-

anças vão estabelecendo relações com a língua escrita e, uma vez entendendo-se

esse processo, buscar-se práticas pedagógicas que se orientem em coerência com

esse entendimento.

A abordagem psicolingüística, por seu lado, entende que a criança é constitu-

ída com as habilidades de que necessita para aprender a ler e a escrever e o que

ela precisa é descobrir as regras que se aplicam a essa aprendizagem. De acordo

com essa concepção, o modo como a língua escrita é compreendida não é diferente

do modo como a linguagem oral é compreendida: leitura é uma interação entre o

pensamento e a linguagem e o ato de ler é um processo de busca de significados. A

compreensão normalmente precede a identificação de letras e palavras, ou seja, a

decodificação.

Já a abordagem sócio-psico-linguística avança no sentido de postular que o

processo de aquisição da língua escrita é o mesmo para toda e qualquer criança - o

que difere é a utilização de estratégias em diferentes ambientes culturais.

Um outro enfoque dessa mesma temática das não-aprendências é o de

Erickson (1987), que atribui a responsabilidade sobre o fracasso e a evasão, aos es-

tilos de comunicação divergente entre professor e aluno. Decorre daí que se o pro-

fessor consegue a “privatização da instrução”, ou seja, a criação de contextos de

interação diádica com cada um dos alunos, a aprendizagem acontece. De acordo

com essa idéia seriam as formas culturalmente determinadas da organização da fa-

la, em grande parte, responsáveis pelas falhas ou insucessos na comunicação e,

conseqüentemente, na aprendizagem.

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Ângela Kleiman (1998) tratando, também, das diferenças culturais que se

manifestam no terreno da lingüística sugere que seria possível reduzir os pontos de

conflitos, com relação à alfabetização, através do desempenho de professores sen-

síveis a tais diferenças, capazes de fazer a leitura e a interpretação do discurso do

aluno e de elaborar suportes necessários à compensação mútua. Isso seria para a

autora um fator indispensável para a aprendizagem15.

Seria esse um outro caminho investigativo para as questões das não-

aprendizagens, especialmente, com relação à leitura e à escrita e que são largamen-

te estudadas e desde diferentes matrizes teóricas pelo Grupo de Trabalho sobre Le-

tramento, Alfabetização e Desenvolvimento da Escrita coordenado por Roxane

Rojo16.

2.4- Dos ditos sobre os "não saberes" ou da persistência das questões

De menina professora à professora de meninos e meninas, passo à docente

da Faculdade de Educação e os meus questionamentos são persistentes, pois que,

trabalho nas Práticas de Ensino e em Cursos de Extensão com professoras, e vou

me reencontrando reiteradamente com os velhos, mas sempre atuais, discursos

pedagógicos sobre as não aprendizagens dos alunos e das alunas.

No convívio com as alunas-estagiárias, com as professoras das escolas de

estágio ou nos cursos de extensão, deparo-me com a recorrência dos discursos 15 Essas questões trazem a versão da Lingüística Aplicada, a partir da pesquisa sobre letramento e escolariza-ção, apoiada em vertentes teóricas como as do sociolinguismo interacional, sociocontrutivismo, embasadas nos conceitos de aquisição de linguagem de Vygotsky, dentre outros. (Rojo, 1998). 16 Programa de Estudos Pós-Graduação em Lingüística Aplicada do Ensino de Línguas (LAEL). O grupo tem por objetivo debater e sintetizar as principais produções do Centro de Estudos da Alfabetização e Leitura da UFMG cujos estudos foram pioneiros na década de 80. Mesma fonte supracitada.

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sobre as "dificuldades", "impossibilidades", problemas de aprendizagem das crian-

ças ou mesmo dos adultos: "eles têm muita dificuldade", não sabem nem pegar no

lápis, "não sabem", esse discurso pode referir-se a toda a turma, com no caso das

"dificuldades de leitura17 ou de alfabetização, ou referem-se a pequenos grupos.

As profecias das impossibilidades de aprendizagem atribuídas às crianças,

com base nos resultados do teste do ABC, perpetuam-se nas constatações feitas

em sala de aula, já no início do semestre, ou mesmo no uso dos estudos de Emília

Ferreiro, tomando categorizações que a autora constrói para situar as hipóteses de

leitura e escrita das crianças: "pré-silábicos, silábicos, silábicos-alfabéticos ou alfa-

béticos, como formas de classificação das crianças. Os "pré-silábicos" passam a ser

os não-alfabetizáveis, e "as profecias" continuam a cumprir-se.

Reafirmando o que já foi mencionado, neste texto, digo que os estudos de

base construtivista e sócio-interacionista nos possibilitaram melhor compreender os

processos de construção de conhecimento de crianças e também de adultos (embo-

ra os estudos não se refiram aos adultos), e planejar ações pedagógicas coerentes

com as interpretações que fazemos desse processo. Nesse sentido, do ponto de vis-

ta da alfabetização, a teoria da psicogênese da leitura e da escrita, para além dos

níveis, lança um olhar e uma escuta mais atenta para o que dizem, pensam e fazem

alunos e alunas e crianças em geral, quando em seus processos de produção de

conhecimento sobre a Língua Escrita.

Também os trabalhos Vygotskyanos, na sua visão sócio-interacionista, podem

compor o quadro de olhares para os processos do conhecer. O conceito de "zona de

desenvolvimento proximal" de Vygotsky (1987), entendido como a distância entre o

17 Trato deste tema no artigo Leitura na Escola: alguns olhares, apresentado para banca examinadora do con-curso para progressão funcional da classe de Professor Assistente para Professor Adjunto e publicado, posteri-ormente, em Ávila, Ivany Souza (Org.) Escola e Sala de Aula: Mitos e Ritos – um olhar pelo avesso do avesso Ed. UFRGS.

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nível de desenvolvimento real que se configura como o da solução independente de

problemas e o nível de desenvolvimento potencial que se determina pela solução de

problemas sob a orientação de adultos ou em parceria com companheiros "mais ca-

pazes". Esse conceito contrapõe-se a uma visão de conhecimento como aquilo que

está consolidado ou que é reproduzido segundo um padrão de respostas ou ações

consideradas certas - logo trabalha com o conceito de aprendizagem como voltada

para o vir-a-ser, para o futuro da aprendizagem, que incorpora o novo, o emergente

constituidor de novas possibilidades, sem que as respostas sejam entendidas como

erros ou acertos - todo suposto erro é resultante de uma construção de conheci-

mento que contém "saberes" e "não-saberes", passíveis de serem explorados para

ampliação do conhecimento.

Existem aproximações entre esses conceitos vygotskyanos e o de erro cons-

trutivo da teoria piagetiana, também trabalhado com insistência por Emília Ferreiro 18

que tem afirmado serem as crianças facilmente alfabetizáveis e que a escola muitas

vezes dificulta esse processo. Sobre esta mesma teoria, Esteban (1996) refere um

outro conceito de zona de desenvolvimento proximal, a que Palácios (1987)19 chama

de "percebido", por tratar-se de outro aspecto presente nas relações de professores

e professoras com seus alunos e alunas, além do cognitivo, o que poderia caracte-

rizar-se como uma distância entre as capacidades das crianças, percebidas pelos

adultos, e as expectativas que esses têm sobre tais capacidades, a curto prazo, o

que permite formular a hipótese de que quanto mais otimistas forem as expectativas

sobre as crianças, mais provável será que interações ou condições que se ofereçam

possam favorecê-las em seu avanço.

18 Sobre isto tem afirmado Emília Ferreiro (1985): "[...] quando uma criança se engana sempre da mesma manei-ra, chamar isto de "erro" é cobrir com uma única palavra o vazio da nossa ignorância”. 19 A obra referenciada por Esteban, Maria Teresa: Palácios, J. Reflexiones entorno a las implicaciones educati-vas de la obra de Levy Vygotsky. In: SIGUAN, M (org.) Actualidad de Lev Vygotsky. Barcelona, Arthropas, 1987.

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Essas afirmações de Palácios, referindo-se a implicações educativas da obra

de Vygotsky, parecem-me muito importantes para explicar episódios das "profecias

de não aprendizagem” – ou “profecias auto-realizaveis”, posto que relacionam o ní-

vel de expectativa dos adultos em relação às aprendizagens das crianças às condi-

ções que se criam para que elas, então, aprendam.

Sobre as possibilidades de alfabetização, Cagliari (1998) trabalha com a idéia

de que as crianças aprendem facilmente o nosso sistema de escrita, bastando que

se dê a elas alguma ajuda e que, de resto, são capazes de aprender seja lá o que

for - argumentando com os pressupostos de que o "homem" é um ser desafiado a

descobrir o mundo, um eterno descobridor, e que as crianças, não só, querem

aprender, como gostam de aprender e, aprenderão, desde que se dê chance a e-

las20.

Os discursos, recorrentes, na escola, sobre as "desaprendizagens" parecem

correr à margem dos discursos que se constituem nas produções acadêmicas, ou

das construções teóricas que vão nascer nas problematizações das práticas discur-

sivas ou mesmo do vivido-sentido nas tramas do mundo do ensinar e do aprender.

Ainda assim, há que embrenhar-se nas buscas pelas múltiplas vias de interpreta-

ções que cercam os mesmos problemas.

Os estudos sobre letramento também vêm desempenhando um papel impor-

tante nestas buscas. O conceito de letramento é complexo pela variedade de estu-

dos que se enquadram neste domínio.

Segundo Kleiman (1995) esse conceito começou a ser usado nos EUA bus-

cando diferenciar os estudos de letramento de outros, cujas conotações escolares

destacam as competências individuais no uso e na prática da escrita. Excluem-se,

20 Essas conceitualizações de Cagliari estão muito próximas também das de Ferreiro quando afirma que as cri-anças são facilmente alfabetizáveis.

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dessas conotações, os sentidos que Paulo Freire atribuiu à alfabetização, entenden-

do-a como capaz de levar o analfabeto a organizar reflexivamente seu pensamento,

desenvolver consciência crítica e introduzi-lo num processo real de democratização

da cultura e da libertação.

Para a autora, em questão, letramento não se limita aos eventos e práticas

mediados pelo texto escrito, isto é, as práticas que envolvem, de fato, ler e escrever,

mas está presente também na oralidade, uma vez que, em sociedades tecnológicas

como a nossa, o impacto da escrita é de longo alcance: uma atividade que envolve

apenas a modalidade oral, como escutar notícias de rádio, pode ser um evento de

letramento, porquanto o texto ouvido tem marcas de planejamento e de lexicalização

típicas da modalidade escrita.

Ratto (1995) trata das funções e significados do letramento na sua relação

com o contexto.

O letramento adquire múltiplas funções e significados, depen-

dendo do contexto em que ele é desenvolvido, isto é, da agência de letramento por ele responsável. Sabemos hoje, por exemplo, que as instituições políticas são das mais efetivas agências de letramento, aproximando muito rapidamente a oralidade de sujeitos não alfabeti-zados da oralidade letrada, quanto às suas características argumen-tativas. Isto é, mesmo que não alfabetizado, o participante de grupos sindicais, por exemplo, traz, na sua argumentação, os traços caracte-rísticos da escrita, mostrando, na sua ação, a consciência da neces-sidade dessas formas de argumentação, para alcançar o que quer e influenciar os outros. (P.182)

Segundo, ainda, Kleiman, a família letrada seria uma instituição de letramento

eficiente para garantir o sucesso escolar, por serem as práticas e usos da escrita fa-

tos corriqueiros no seu cotidiano, possibilitando à criança conhecer usos e funções

da escrita, mesmo antes de conhecer sua forma.

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Leda Tfouni (1995), trata dessa temática afirmando que, apesar de estarem

intimamente ligados entre si, escrita, alfabetização e letramento, nem sempre têm

sido enfocados como um conjunto pelos estudiosos, apesar de a relação entre eles

ser aquela do produto e do processo, o que significa dizer que, enquanto os siste-

mas de escrita são um produto cultural, a alfabetização e o letramento são proces-

sos de aquisição de um sistema escrito. A alfabetização, desde essa ótica, estaria

na ordem da aquisição da escrita, como aprendizagem de habilidades para ler e es-

crever. A alfabetização pertenceria ao âmbito do individual.

O letramento, por outro lado, focaliza os aspectos sócio-históricos das aquisi-

ções da escrita. Em outros casos, procura descrever o que ocorre nas sociedades,

quando adotam um sistema de escrita de maneira restrita ou generalizada e procura

ainda saber quais práticas psicossociais substituem as práticas, ditas letradas, nas

sociedades ágrafas, nesse caso, objetiva investigar não somente quem é alfabetiza-

do, centralizando-se mais na investigação do social em detrimento do individual.

Magda Soares (1999) ressalta que o termo letramento surge na década de 80

no discurso de especialistas da Educação e das Ciências Lingüísticas. Aparece, pela

primeira vez, no livro de Mary Kato21.

A palavra não está dicionarizada e é uma versão para o Português da palavra

inglesa literacy, que vem do latim littera (letra) com o sufixo “cy” que denota qualida-

de, condição, estado, fato de ser. Ou seja: Literacy é o estado ou a condição que

assume aquele que aprende a ler e a escrever. Implícita, nesse conceito, está a i-

déia de que a escrita traz conseqüências sociais, culturais, políticas, econômicas,

cognitivas, quer para o grupo social em que seja introduzida, quer para o indivíduo

que aprenda a usá-la.

21 A obra de Mary Kato citada: No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingüística, Ática, 1986 (In Soares, 1999)

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Letramento é, pois, para Magda Soares, o resultado da ação de ensinar ou de

aprender a ler e a escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou

um indivíduo como conseqüência de ter se apropriado da escrita..

Segundo essa autora, alfabetização diferencia-se de letramento, pelo enfoque

das pesquisas – aquelas pesquisas, que se voltam para investigar o número de cri-

anças que a escola consegue levar à aprendizagem da leitura e da escrita, seriam

sobre alfabetização e as que procuram identificar os usos, as políticas sociais de lei-

tura e escrita, em determinado grupo social, seriam pesquisas sobre letramento.

Uma palavra, talvez mais vernácula, seria alfabetismo que significa o estado

ou qualidade de alfabetizado, que também não é muito usada, enquanto a que signi-

fica seu contrário, analfabetismo – estado ou condição de analfabeto, é bem familiar.

Muitos são os trabalhos e muitas são as polêmicas sobre letramento e alfabe-

tização.

Entretanto, tenho acrescentado às discussões, reflexões, meu particular modo

de percebê-las, salientando que é possível atribuir aos termos alfabetização, letra-

mento ou mesmo alfabetismo, como Magda Soares tem usado, sentidos similares. A

questão não é o termo, mas a concepção de um, de outro. Quem sabe podemos

pensar também alfabetização, do ponto de vista individual e do ponto de vista social,

do ponto de vista de práticas discursivas e de oralidades, no sentido de Paulo Freire,

como leitura do mundo que precede a leitura da palavra e a diferenciação com refe-

rência ao sentido de domínio do código escrito.

Além desses estudos teóricos mais vinculados às questões das aprendiza-

gens, outros foram tomando corpo na equipe da Prática de Ensino em Escolarização

Inicial na medida em que as tendências “pós-modernas” ou “pós-estruturalistas”

passaram a compor os debates na educação.

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2.5- Na arena dos confrontos teóricos - das Teorizações Críticas aos “pregões

da Pós-Modernidade”

Refletindo sobre as produções teóricas neste movimento de revisitar leituras

ou de aproximações com novas, com as quais estabeleço uma relação que pode ser

de acolhimento e, ao mesmo tempo, de desconfiança, percebo o quanto se publica,

o quanto se constroem teorias que têm, nos seus nascedouros, as mais variadas in-

terrogações visando também à educação, e inquieta-me pensar que - lá, na "ponta",

estão as escolas, estão os alunos e alunas, professoras e professores. O que acon-

tece lá na "ponta", que é que muda, que é que se transforma, o quão melhores estão

se fazendo as instituições escolares e quão melhores os seres humanos? Em que

medida, mudamos algumas coisas de lugar com nossas produções?

Ainda assim, continuo a me valer do que antes se disse ou do que agora se

diz e retomo os fios com uma incursão pelas teorizações educacionais críticas e os

aportes da pós-modernidade para fundamentar estudos que buscam respostas a

questões persistentes.

A Teoria Educacional Crítica, segundo Xavier (1998), tem suas raízes no sé-

culo XIX, e aparece como uma reação à Pedagogia do Liberalismo, reagindo às

condições de vida dos trabalhadores adultos e crianças na consolidação do capita-

lismo na Europa.

A “Pedagogia Socialista” entende a educação como intelectual, física e tecno-

lógica, preconizando a formação do homem total - o que quer dizer, desenvolvido

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por inteiro, nas suas potencialidades, defendendo a formação igualitária para todos,

independente da classe social e uma educação que supere a dicotomia entre traba-

lho intelectual e manual via formação politécnica. Essas idéias nortearam propostas

pedagógicas em países de regime socialista nesse século, mas não só, pois muitas

dessas idéias estão presentes em democracias ocidentais, traduzindo-se em pro-

postas alternativas de educação que têm a preocupação com projetos de democrati-

zação da sociedade e traduzidas como: Teorização Educacional Crítica, Pedagogia

Progressista, Pedagogia Radical ou Pedagogia Crítica.

Em linhas gerais, essas propostas pedagógicas foram tomando corpo no mo-

vimento pós-maio de 68 na França, vinculadas ao fracasso dos que acreditavam na

revolução social pela revolução cultural - o que acabou gerando as Teorias Crítico-

Reprodutivistas ligadas aos nomes de Althusser, Bourdieu, Passeron, Baudelot e

Establet. Basicamente, os principais textos das teorias crítico-reprodutivistas encon-

tram-se nas obras: A Reprodução, de Jean Claude Passeron e Pierre Bourdien;

L’ecole Capitaliste de France, de Roger Establet e Christian Baudelot; O livro Ideolo-

gia e Aparelhos Ideológicos do Estado, do filósofo Louis Althusser.

As teorias Crítico-Reprodutivistas, de maneira sistemática e organizada, for-

neceram, à intelectualidade, um instrumental capaz de desmistificar a idéia de que a

educação (ou a escola) teria um poder de intervenção nos temas sociais, capaz de

corrigir as injustiças e conseguir igualdade social.

Essas teorias foram muito bem aceitas pelos cientistas sociais e economistas

de esquerda que passaram a demonstrar o fenômeno educativo, a partir de seus

condicionamentos sociais.

De forma um tanto genérica, pode-se dizer que os reprodutivistas, em que

pese suas diferenças, concluíram que, à escola formal, restava o papel de reprodu-

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tora da sociedade de classes, reforçadora do modo de produção capitalista e, por is-

so mesmo, repressora, autoritária e inculcadora da ideologia dominante.

Louis Althusser chegou a afirmar que via, com olhos céticos, a possibilidade

de qualquer resultado, transformador significativo, advindo do trabalho de abnega-

dos professores inovadores22.

Pode se dizer, que as teorias críticas representam uma reação a essa visão

imobilista de escola, sem negar o seu papel reprodutor e apontam para as possibili-

dades de se fazer circular, dentro dessas instituições, as contra-ideologias que po-

dem contribuir para uma nova organização social, democrática.

Essas idéias defendidas por Snyders, na França, Giroux, Apple, e Mclaren

nos Estados Unidos, entre tantos, têm, no Brasil, seus principais representantes nos

autores filiados à tendência crítica nas suas principais abordagens, conhecidas, na

década de 80, como Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos e Educação Popular.

Como representantes do primeiro grupo devem ser citados Demerval Saviani, Carlos

Roberto Cury, José Carlos Libâneo, Guiomar Namo de Melo e, no segundo, junto

com o nome de Paulo Freire, aparecem também Carlos Rodrigues Brandão, Margot

Ott, Miguel Arroyo e Balduino Andreola, entre tantos.

As discussões atuais, de alguns grupos dentro dos espaços acadêmicos,

chamadas de pós-modernas ou pós-estruturalistas, contestam o pensamento estru-

turalista da modernidade. Esse movimento contestador anuncia o fim da modernida-

de com suas crenças: na racionalidade, no poder emancipatório da ciência, nas

explicações universais, nas metanarrativas, nas utopias.

Para Mclaren (1987), essas tendências põem em cheque postulados da teori-

zação educacional crítica que se referem à possibilidade de a escola interferir na es-

22 Essa síntese sobre teorias Crítico-Reprodutivistas encontra-se em Ghiraldelli Júnior(1996).

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trutura social, a partir da realidade dos alunos e das alunas, bem como a de consci-

entizar e instrumentalizar para uma ação política transformadora, pois que tais con-

ceitos, típicos da modernidade, são suspeitos para a pós-modernidade 23 , pelo

menos na versão que se tem difundido nos meios educacionais24.

Para Fernando Mires (1996), em “La revolucíon que nadie soñó, o la otra

posmodernidad”, não há disciplina do conhecimento que não se tenha revolucionado

e as revoluções dos diferentes campos, como microeletrônica, feminista, ecológica e

política são uma só revolução – aquela que ninguém sonhou.

Definindo seus termos, Mires menciona, pelo menos, dois conceitos de revo-

lução – o primeiro se refere a transformações inscritas em um plano histórico que

aponta para um objetivo final, o que não seria exatamente um conceito de revolução;

o segundo refere-se a transformações radicais em algumas esferas da vida e ele

trabalha com esse conceito, em sua obra, mais precisamente entendido como a

quebra com um determinado período que muitos autores chamam de modernidade.

Para Mires, a modernidade é marcada pelo cartesianismo. A ciência moderna

é cartesiana e, por isso, se entende, sobretudo, um método. O método cartesiano

reconhece dois aspectos principais, o primeiro é a dúvida metódica e o segundo é a

análise que se realiza dividindo o todo em partes. È difícil renunciar à dúvida metódi-

ca, se queremos continuar pensando racionalmente. Não duvidar é crer e esse é o

limite de toda a discussão e, portanto, de toda “ciência”.

Tecendo considerações sobre o conceito de pós-modernidade, ou outros,

como pós-comunismo, pós-industrialismo, refere-se à pós-modernidade como a

23 Hekman (1992), citado por Griin y Costa (1996) diz que não importa o termo que se use - antifuncionalismo, pós-estruturalismo ou pós-moderrnismo - eles designam, com algumas diferenciações, tendências de pensamen-to que se opõem aos cânones da modernidade. 24 Esta síntese, organizada por Maria Luísa M. Xavier e outros encontra-se no artigo Planejamento e Prática de Ensino em Séries Iniciais, no Cadernos de Educação Básica I. Essa produção surgiu da necessidade, naquela ocasião, de o grupo de professoras de Prática de Ensino em Séries Iniciais explicitar os referenciais teóricos que vinham sendo orientadores das práticas pedagógicas da equipe (equipe da qual faço parte e texto do qual tam-bém sou autora).

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substituição de um dado modo de entender o mundo, por outro que ainda não foi

pensado, sonhado e a isto ele chama de revolução paradigmática.

Há uma passagem em que Mires (op. cit.) assim expressa suas idéias:

Não deixa de ser divertido observar como em círculos acadêmicos se constroem, através da partícula “pós”, definições duras, cuja função é conservar, ilusoriamente, a validade de doutrinas de um tempo que se vai. O adjetivo ”pós-moderno”, por exemplo. Tendo surgido na ar-quitetura para referir-se a um determinado estilo de construção, o pós-moderno passou a ser, sobretudo, para autores de inspiração marxista, o novo satanás que seria preciso exorcizar. Pós-moderno é entendido, por muitos, como anti-moderno, como defesa do irracio-nal, como um postulado conformista. Dizer pós-modernidade é como dizer pós-medieval, pós-renascentista substituído por outro que não foi imaginado ou não foi sonhado. Essa é a quebra e é a isso que chamei revolução paradigmática. (p.152).

Após exposição detalhada de conceitos de modernidade, Mires sintetiza suas

idéias afirmando que o princípio da determinação causal, o naturalismo, o essencia-

lismo, o racionalismo, a lógica dicotômica, a idéia de transcendência, a crença em

uma ordem universal objetiva e a separação entre objetividade e subjetividade são

somente algumas das características dos paradigmas da modernidade. O importante

é que todos esses princípios, idéias, crenças, teses e lógicas estão sendo questio-

nados, graças ao surgimento de novos paradigmas.

Tais paradigmas da modernidade se impuseram, porque contaram com meios

necessários para que isso ocorresse. Da mesma maneira que muitos conceitos mo-

dernos foram vítimas de perseguições inquisicionais, a modernidade avançou, sufo-

cando, negando a sabedoria acumulada em tradições de muitos povos, excluindo

tudo que atrapalhasse seu caminho, como por exemplo, a metade da humanidade,

as mulheres e, não por último, a natureza, da qual pretendeu emancipar-se.

Não obstante, não podemos esquecer que, da modernidade, surgiram tradi-

ções libertárias e democráticas. A democracia, a liberdade de opinião e de crítica fo-

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ram também inventos modernos e não haveria razão para renunciar a tais conquis-

tas, posto que, depois de tudo, pós-modernidade também é modernidade.

Talvez não seja demais dizer-se que, em não havendo um futuro pré-

estabelecido, não nos resta mais alternativas do que sermos responsáveis pelo que

acontece e, quiçá, a era da pós-modernidade possa ser, ao final, a era da responsa-

bilidade. Esta seria uma outra pós-modernidade. (Mires, 1996)

Continuando nestas contraposições entre modernidade e pós-modernidade,

vou sintetizar aqui uma exposição feita por Veiga-Neto (1996), que me parece muito

elucidativa: o autor, valendo-se da metáfora do olhar, transita entre "olhares moder-

nos" e "outros olhares", demonstrando que o que se chamou razão, nas Ciências

Humanas, tem origens nas Ciências Naturais e se ramifica em epistemologias que

têm, em comum, a crença numa realidade exterior, a qual pode ser acessada pelo

uso da razão - quer pela via do rigor da observação neutra, quer pelo uso da dialéti-

ca pela tradição crítica, ambas opondo-se ao senso comum e desconfiando dos

olhares menos atentos para o mundo.

Essas epistemologias uniram-se, então, na crença de um sujeito transcen-

dental e totalizante, de uma consciência como estado a que se pode chegar pelo

uso da razão, de uma linguagem, como instrumento capaz de descrever o mundo e

representá-lo. Isto significaria dizer, segundo o autor, que ou se filtraria ou se espe-

lharia o que é o mundo. A tendência pós-moderna vai trabalhar com a idéia de que é

o olhar que colocamos sobre as coisas que as constitui e que ao falar sobre as coi-

sas nós as constituímos. Parecem situar bem o pensamento ou a condição pós-

moderna essas palavras de Veiga-Neto (op. cit.):

Assim, para o pensamento pós-moderno não há uma perspectiva pri-vilegiada a partir da qual possamos ver e entender melhor a nossa

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realidade social, cultural, econômica, educacional, etc. e, com tudo isso, fica sem sentido falarmos de ideologia como falsa consciência. Fica também sem sentido estatuirmos princípios universais e para sempre válidos. Bem ao contrário, para o pós-modernismo, o que in-teressa é problematizar todas as nossas certezas, todas as nossas declarações de princípios, em que vale tudo. Isso significa, sim, que tudo aquilo que pensamos sobre nossas ações e tudo aquilo que fa-zemos tem que ser contínua e permanentemente questionado. (p.30-31)

Trago para este texto, que se configura como uma tese, uma breve aborda-

gem das discussões da pós-modernidade nos seus contrapontos com a modernida-

de, incluindo-as neste percurso de fundamentações teóricas de que estou me

valendo para situar estudos que foram originando e conduzindo meus "olhares inda-

gativos". Foram se cruzando então estudos sobre a Epistemologia Genética, a Psi-

cogênese da Língua Escrita, o Sócio-Interacionismo de Vygotsky (considerados pela

pós-modernidade como metanarrativas) com os estudos sobre letramento entre ou-

tros.

As tendências pós-modernas incluem, nos olhares, as dúvidas, as desconfi-

anças. Entretanto, nas contradições minhas de cada dia, continuo crendo nas “me-

tanarrativas” que, para mim, são construções teóricas que, se não contêm, em si,

verdades absolutas ou não explicam o mundo na sua complexidade, vêm apontando

pistas de que nos temos valido, especialmente como orientadoras da Prática de En-

sino nos caminhos da educação.

Num olhar crítico para as discussões sobre pós-modernidade e modernidade,

Moll (2000) assim sintetiza seu pensamento:

[...] são, a meu ver, diferentes olhares que se articulam como faces de um mesmo hexágono, ou, recorrendo à metáfora da teia, como fi-os de uma mesma tessitura. (p. 19)

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Por entre esses trajetos de vida e estudos teóricos, a idéia desta pesquisa vai

se gestando. As teorizações até aqui apresentadas, dentre outras, fizeram e fazem

parte do meu processo de reflexão profissional e eu as incluo nesta parte introdutó-

ria, porque trato de minhas memórias e estou tentando demonstrar como cheguei a

este estudo. Tais questões teóricas não se relacionam, portanto, diretamente a esta

pesquisa e assim não são retomados ao longo do texto, embora eu tenha clareza de

que esta tese se produziu alicerçada nos múltiplos referenciais constituidores de mi-

nha profissionalidade.

2.6- Das trajetórias e aproximações teóricas à pesquisa

A preocupação com as não aprendizagens e com os discursos pedagógicos

sobre as "dificuldades" de alunos e alunas inicialmente me levaram a pensar numa

pesquisa pela análise desses discursos, o que ocupou boa parte do meu tempo,

destinado ao doutorado, em estudos teóricos e a realizar, inclusive, uma primeira in-

cursão em busca dessas práticas discursivas.

Nas disciplinas cursadas anteriormente ao ingresso no doutorado com a pro-

fessora Regina Mutti, vou me aproximar das teorias da “Análise do Discurso” na li-

nha de Pêcheux. Meu interesse era o de investigar os discursos sobre as

“dificuldades”, “não-aprendizagens” e apresento o projeto de pesquisa: “Alfabetiza-

ção, Discurso e Constituição de Subjetividades”.

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Entretanto, na medida em que aprofundava estudos, fui compreendendo que

essa não era a análise que eu buscava. Interessavam-me os discursos, nos contra-

pontos com as possibilidades do aprender.

Seguiu-se, a partir daí, um tempo de silêncio rico de incursões pelos “trajetos

do desejo” e do qual vai nascer a construção de um novo objeto de pesquisa.

Minha história de professoralidade, tão marcada pela escola, tem sido, ao

longo do tempo, produtora das interrogações sobre minha própria constituição de

professora – a que sou, a que fui. Estas, as “que sou”, estão impregnadas da aluna

normalista que habita em mim e do Instituto de Educação, escola onde se constituiu

grande parte do meu processo de formação, e com a qual estabeleci uma “verdadei-

ra história de amor”.

Havia um desejo guardado de realizar um estudo memorialista, tomando a

minha própria história de aluna do IE. Dar continuidade a esse desejo necessitava

de um “disparador”. Esse “disparador” vai se materializar nos encontros com a pro-

fessora Jaqueline Moll – em primeiro lugar, pela acolhida entusiasta da idéia, em se-

gundo, pelos estudos que realizo, com ela, nas disciplinas sobre Cidade Educadora

e Pedagogia das Cidades.

Essas disciplinas vão promover um feliz encontro com as leituras sobre cida-

de, escola, pedagogias urbanas. Vou-me encontrar com Francesco Tonucci na obra

“La Ciudad de Los Niño”, Jaume Trilla Bernet, Analia Brarda, Guilhermo Rios, Daniel

Filmus, dentre muitos outros, focalizando esta temática de crescente interesse no

mundo contemporâneo.

As concepções teóricas que vinculam cidade e educação apontam para uma

experiência educativa que se amplia para além da escola e que toma a cidade como

lócus, como objeto, como interlocutora. Tais concepções funcionaram como um de-

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sencadeador de minhas memórias. Conduziram-me de volta para a escola que me

inseriu na cidade, desde múltiplas perspectivas. Começa aí minha aproximação com

o objeto de pesquisa.

Foram, pois, os estudos sobre Cidade Educadora, Pedagogias da Cidade que

provocaram minhas memórias de aluna e de professora do IE e encaminharam a

proposição e desenvolvimento desta pesquisa, que toma como objeto o IE e, através

das memórias, como ferramenta de pesquisa, analisa a formação de professoras, a

constituição de subjetividades, humanidades, nos atravessamentos com as pedago-

gias da cidade, nas décadas de 50 e 60, período em que eu fui aluna e professora

dessa escola.

A construção deste objeto de pesquisa orientou-se por questões relacionadas

ao IE, como escola formadora de professoras, ao que a instituiu no contexto históri-

co e os sentidos que, daí, se produziram nas interações com as pedagogias urba-

nas.

Que escola era essa, como se produziu num contexto social, político e eco-

nômico? Que efeitos tem essa produção, ou seja, como as marcas do que a consti-

tuiu produziram sentidos nas vidas, nas humanidades, nas professoralidades? Que

relações estabelece com a cidade e que atravessamentos essas relações produzem

na formação das professoras? Que pessoas, que professoras são essas que se fo-

ram constituindo nos entremeios das infâncias, dos trajetos de vida, da formação

pedagógica, dos trânsitos pelas rotas educativas da cidade?

É pelas urdiduras da memória que se desenham ou se constituem na história

que o IE emerge como objeto e como lócus de investigação. Tento, pois, reconstituir

sua história pelas narrativas orais e escritas, através de entrevistas e pesquisa em

documentos históricos e “guardados pessoais”.

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Como é através de minhas próprias memórias e das memórias de outras pes-

soas e pela imersão na escola pelo tempo vivido que este estudo se produz, posso

dizer que tem caráter memorialista, com aproximações autobiográficas, biográficas e

etnográficas.

Assim, para tratar dos caminhos percorridos no desenvolvimento da pesquisa,

apresento os fundamentos teóricos que inspiraram tais caminhos. Como o trânsito

fundamental se fez pelas memórias, começo por estudos desse campo, procurando

as interligações com os outros suportes metodológicos que apontei.

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3- Dos desenhos dos postos movediços ou dos caminhos da pesquisa

Balanço e profecia, arquivo e imaginação, inércia e aventura, nostalgia e sonho orientam as interações entre a utopia e a recorda-ção.

Augustin Escolano Benito25

3.1- Alguns apontamentos sobre memória

Lembrança puxa lembrança e seria preciso um escutador infinito.

Ecléa Bosi26

Memória é sentimento, emoção, relação, lembrança e esquecimento no ema-

ranhado de sua complexidade. Voltar ao Instituto de Educação, tomada pela emo-

ção, revivê-lo, tomar nas mãos sua história, seu papel na educação no estado do

Rio Grande do Sul, poderia me tornar presa fácil de um olhar romantizado, mas

mesmo assim apostei, correndo o risco.

Na busca de proteger-me do risco que corria, é que fui tentando desmitificar a

idealização, buscando "proteção" nos referenciais, nos estudos históricos e nas me-

25 Augustin Escolano Benito, 2002, p. 20. 26 Ecléa Bosi, 1994, p. 39.

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mórias de outras pessoas. Foram as memórias de alunas normalistas e depois pro-

fessoras da Escola Primária do Instituto de Educação e de professoras formadoras

de professoras que produziram os sentidos, na reconstrução histórica da instituição,

dos processos de formação instaurados nas relações com a cidade.

Não sou uma historiadora, não sou nem mesmo uma estudiosa desse campo

de saber. Aventuro-me num caminho perigoso que me atemoriza e intimida, porque

não o domino, não conheço os segredos e as profundezas desse chão por onde an-

dei e andarei pisando.

Mesmo assim, fui me valendo da História e, em especial da História da Edu-

cação, na medida em que se fez necessário, para andar pelos terrenos das memó-

rias e metamemórias.

Em mais uma das leituras que realizo de Metamemórias-Memórias de Magda

Soares27, encontro um ponto de partida para tratar de memórias num porto mais ou

menos seguro, se é que isto é possível. Valho-me, inicialmente, da citação que (So-

ares, 1991, p.39) faz do que diz Adam Schaff, em História e Verdade, apontando o

confronto entre duas grandes concepções da Ciência da História: o positivismo e o

presentismo.

O positivismo atesta que o conhecimento histórico é possível como reflexo fiel e puro de todo fator subjetivo dos fatos do passado, o pre-sentismo nega que um tal conhecimento seja possível e considera a história como uma projeção do pensamento, dos interesses presen-tes sobre o passado. Conyas Read afirma que os positivistas conce-bem o passado como uma coisa acabada, completa, imutável. Os presentistas percebem-no como através de um vidro colorido, ao mesmo tempo transparente e refletor, de maneira que não se pode distinguir nitidamente a luz que atravessa o vidro e a luz refletida.

(Schaff, 1978, p. 104)

27 A autora escreve seu memorial para atender um requisito de inscrição no concurso de professor titular na Uni-versidade Federal de Minas Gerais, apontado por Eliane M. T. Lopes, na introdução, como gênero de história e como uma obra que faz uma maravilhosa mistura de literatura e teoria, publicação datada de 1991.

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Magda Soares, analisando essas concepções, refere-se também à imagem,

dizendo que esta parece reunir, numa síntese, o subjetivismo do presentismo e a ob-

jetividade do positivismo, pois a transparência do vidro permite a apreensão do pas-

sado, como uma realidade objetiva, e seu colorido joga sobre o passado as cores do

presente e, enquanto refletor, estabelece uma reciprocidade, uma interdependência

entre presente e passado.

Ainda, segundo Soares, Schaff trata o fato histórico como produto de intera-

ção específica do sujeito e do objeto, como em todos os outros casos da relação

cognitiva decorrente de tal afirmativa, diz, a autora, que tal interação é maior quando

o objeto trata, ao invés de fatos vividos por outros ou narrados por um sujeito-

historiador que deles não participou, de fatos vividos pelo próprio sujeito e por ele

mesmo narrados - sujeito-memorialista. Esse sujeito, vendo-se no passado, vê-se

também como, até certo ponto, outra pessoa, mas ainda como historiador que conta

o passado do ponto de vista do presente. E, sobre isto, afirma a autora: “vejo meu

passado não como foi, vejo-me não como fui, mas como o que sou mostra ter ele si-

do e ter eu sido.” (p.40)

Identifico-me com essa idéia e penso que é por aí que fui tratando de minhas

próprias memórias entrelaçadas às memórias de outros – como o que hoje somos

mostra ter sido nosso passado e assim me permito tomar de empréstimo, ainda, esta

afirmativa de Soares (1971): “Exatamente é assim que me sinto, com as mãos ata-

das pelo que hoje sou e condicionada pelo meu presente é que procuro narrar meu

passado que re-faço, re-construo, re-penso com as imagens e idéias de hoje". (p.40)

Segue a autora, aqui citada, dizendo estar longe de uma concepção de me-

mória como conservação total do passado e possibilidade de sua re-vivência pela

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lembrança, mas, ao contrário, mais próxima da concepção social de memória de

Halbwachs.

Maurice Halbwachs (1990) trabalha com a idéia de que lembrar não é reviver,

mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do

passado, salientando que a lembrança é, em grande parte, uma reconstrução do

passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e além disso, preparada

por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outro-

ra manifestou-se já bem alterada.

Ecléa Bosi (1994) desenvolve alguns conceitos de memória que, de certo

modo, são convergentes com os de Halbwachs. Diz essa autora que:

A lembrança é uma imagem construída pelo materiais que estão, a-gora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povo-am nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que expe-rimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nos-sos juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o pas-sado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista. (p. 55)

Franco Cambi (1999) diz que fazer história é olhar o que está por trás, e então

se pode falar de: Antigüidade, Idade Média, Modernidade e Contemporaneidade

como tempos por trás de outros tempos.

A idéia desta tese vai sendo gestada e desenvolve-se na contemporaneidade,

como tempo histórico, mas, às vezes, presente e às vezes passado, como tempo vi-

vido em que as questões, que são de pesquisa e que se colocaram para mim, longe

de serem lineares, são descontínuas, complexas e até tortuosas. De tempo histórico

e de tempo vivido é, pois, que se foram tecendo as interrogações, que mais que isto,

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são inquietações, perguntas sem respostas para as quais os caminhos da pesquisa

mostraram clareiras, projetaram hipóteses, alimentaram sonhos, buscaram conceitu-

alizações, mas não encontraram respostas definitivas.

Agora, trazer o tempo histórico para tecê-lo, com tênues fios, com o tempo vi-

vido, talvez tenha me ajudado a melhor compreender o que se veio colocando como

questões semeadas pelas angústias e pelos desejos dos possíveis ou daquilo que

Paulo Freire tão bem chamou "os inéditos viáveis" - estes podem estar, quem sabe,

no passado, mas podem ser projetados para o presente, para o futuro.

Voltando ao papel da memória, vamos buscar, então, o que Cambi (1999)

chamou traço de união fundamental entre o passado e o presente - as formas edu-

cativas que seriam o meio pelo qual o passado age no futuro através de sedimenta-

ções operadas sobre o presente.

As conceitualizações de Cambi colocam o entendimento de memória, que se

produz em suas concepções de história, como o exercício de compreender o pre-

sente para pensar e construir o futuro e também esse conceito ajuda-me no esforço

de tentar compreender melhor um dos caminhos metodológicos que fui seguindo,

buscando apontamentos significativos sobre formação de professoras num dado

tempo histórico.

Assim, de história e de memória e nos entreolhares com a constituição da es-

cola, com a vida que se vai tecendo nas incompletudes, nas descontinuidades, e

com aquilo que é da ordem do educativo, do pedagógico, dos enredos do tempo,

dos espaços, da construção do quotidiano e das sociabilidades é que se foram cons-

truindo as discussões, as reflexões deste estudo.

Cambi (1999), ao discorrer sobre a história, a história da história, os métodos

historiográficos, reconstruindo assim a história da Pedagogia, considera melhor fa-

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lar-se também de uma História da Educação e vai trazendo a memória na sua indis-

sociabilidade fundante do fazer histórico, como bem se confirma em sua afirmativa:

[...] A memória não é absolutamente o exercício de uma fuga do pre-sente nem uma justificação genealógica daquilo que é, e tampouco é o inventário mais ou menos sistemático dos monumentos de um pas-sado encerrado e definitivo que se pretende reativar por intermédio da nostalgia: não, é a imersão na fluidez do tempo e do traçado de seus múltiplos – e também interrompidos – itinerários, a recomposi-ção de um desenho que, retrospectivamente, atua sobre o hoje proje-tando-o para o futuro, através da indicação de um sentido, de uma ordem ou desordem, de uma execução possível ou não.

(Cambi, 1999, p. 35)

Apoiada nos conceitos de Cambi, posso continuar falando de memórias, co-

mo categoria importante no fazer histórico, carregada de lembranças, mas também

de perda de si mesma, presa a seus próprios condicionamentos, seus desvios e pe-

so da tradição.

Valer-se da memória, como fonte de estudo, significa trilhar caminhos não li-

neares, sempre colocados sob suspeita, sob julgamentos, sempre incompletos, mas

para os quais ela é assim mesmo indispensável. Exercer a memória, nos diz, o au-

tor, é fazê-lo criticamente, sem fechamentos preliminares ou condicionamentos cas-

tradores, significa embrenhar-se num trabalho do tipo hermenêutico, através de

instrumentos possíveis para que se possam ir mostrando percursos e desenhos.

Para Cambi, aplicar a memória ao passado histórico significa reconhecer e

apropriar-se de todas as formas de vida que incluem estruturas sociais, culturais,

vinculadas a mentalidades, tipologias do sujeito humano, seus saberes, suas lingua-

gens, seus sentimentos, suas identidades, suas condutas, suas contradições, tudo

isto objetivando repovoar aquele passado com muitas histórias entrelaçadas e, em

conflito, e restituir ao tempo histórico o seu pluralismo de imagem e sua dramatici-

dade.

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Com isto, toma-se distanciamento do presente e de sua rigidez para fazer de-

le uma releitura sobre o fundo do qual ele emerge e assim relativizá-lo. Sobre o que,

vale citar, na íntegra, o que diz Cambi:

Através do passado criticamente revisitado, o presente (também criti-camente) se abre para o futuro, que se vê carregado dos impulsos não realizados do passado, mesmo o mais distante ou o mais margi-nalizado e sufocado. Em suma, além da paixão pelas diversas for-mas de vida, pelo pluralismo do humano, podemos dizer que a memória está sempre carregada de escatologia; carga que torna o presente projetado para o possível, para o enriquecimento de sentido e para a finalização (mesmo que seja constantemente atualizada), is-to é, aberto sobre si mesmo, problemático e envolvido na sua trans-formação, na sua - sempre radical – construção/reconstrução.

(Cambi, 1999, p. 36)

Desde essa ótica, podemos dizer então que trabalhar com memória envolve

estar vivendo um permanente processo de construção e reconstrução que carrega,

consigo, todas as formas de vida e tudo que envolve sujeitos, estruturas sociais, lo-

go significa lidar com multiplicidade de marcas de produções de sentidos que podem

conectar-se, desmembrar-se, tecer-se em redes, considerando-se a pluralidade do

humano e daquilo que se tome como história.

Ainda sobre memórias, encontro, em James Fentress (1992) conceitualiza-

ções importantes. Afirma, esse teórico, que a memória representa o passado e o

presente ligados entre si e coerentes, nesse sentido, um com o outro. Esse tipo de

memória é continuamente testada na vida quotidiana e a nossa experiência do pre-

sente fica inscrita na nossa experiência passada. Essa inserção da memória na ex-

periência presente pode ser também a raiz de sua debilidade como ponto de

conhecimento do passado.

Falando sobre memória individual, social e coletiva, Fentress afirma:

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Em princípio, podemos ir olhando a memória social como expressão da experiência coletiva: a memória social identifica um grupo, confe-rindo sentido ao seu passado e definindo suas aspirações para o fu-turo. Por vezes, podemos confrontar estas exigências factuais (dos fatos) com fontes documentais; outras, não podemos. A memória so-cial é uma fonte de conhecimento. A memória social são memórias articuladas. A memória só é social se puder ser transmitida e para ser transmitida tem de ser articulada. (p. 41)

Diz o autor que as memórias individuais incluem experiência pessoal recorda-

da e que as memórias articuladas constituem a memória social.

É desse modo, com idéias individuais articuladas, que acredito ser possível

recompor memórias coletivas e assim ir construindo a memória social, na reconstitu-

ição de um tempo, que neste caso, é um tempo de uma escola e uma história de

formação de professoras, nesse tempo, na relação com os espaços urbanos.

Ainda em Fentress, encontramos informações significativas sobre recorda-

ções e perda de lembrança:

Os factos perdem-se sempre depressa nas fases primitivas da me-mória social. Para serem recordados e transmitidos, os factos têm que ser transformados em imagens, arrumados em histórias.(...). A-comodar os factos recordados em contextos internos preconcebidos pode exigir, no arranjo, um reordenamento radical da memória. A conceptualização que ocorre quando a memória se transforma numa história a ser transmitida é um movimento independente. Os factos perdidos nesse momento são perdidos não apenas em resultado do rápido desvanecimento do conteúdo factual da memória, mas tam-bém porque os factos que não estão em harmonia com as nossas predisposições tendem a ser filtrados na transmissão. (p. 95)

Nesse filtrar os fatos, na transmissão, ao trazer suas histórias, cada sujeito

pode contá-las, impregnando-as de suas fantasias, já que está trazendo seu olhar

do presente, enfeitando-as, modificando-as da maneira que desejar. As memórias

pessoais são particulares e fazem parte de cada um. Do ponto de vista da subjetivi-

dade, ao recordarmos conhecimentos, recordamos também sensações. Desse mo-

do, fato objetivo e interpretação subjetiva são contidos na própria memória.

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Assim, os sentimentos que vivem em nós equilibram objetividade e subjetivi-

dade, já que se faz difícil narrar com objetividade os fatos vividos onde se comparti-

lham sensações, sentimentos e emoções.

Com base nessas teorias da memória, aqui apresentadas, que, de certa for-

ma, contêm uma coerência conceitual interna, é que desenvolvo este trabalho e tra-

go, então, para a construção da narrativa os cenários, as pessoas, incluindo-me

entre elas. O Instituto de Educação de Porto Alegre se constitui, inicialmente como o

cenário, como o campo, onde se produzem minhas memórias de aluna e de profes-

sora e também de minhas professoras da Escola Normal e de colegas, minhas con-

temporâneas, tanto do período de formação quanto de atuação na, então, Escola

Primária do Instituto de Educação.

Digo que, inicialmente, o IE constituiu-se como campo, porque assim era a in-

tenção. Entretanto, no decorrer da investigação, a escola vai se transformando no

próprio objeto de pesquisa.

E mais que isso, sua amplitude vai se afirmando e, através das pessoas que

relatam suas memórias, vai se constituindo também como sujeito.

Essa escola é campo de pesquisa, porque nela encontro os dados, as infor-

mações para entender o vivido, para entender a história, é nela que se desenvolvem

as ações as tramas pedagógicas, é nela que as personagens se movem e que as

narrativas se produzem.

Ao mesmo tempo em que se constitui campo, o IE é também objeto de estu-

do, porque estudo sua história, sua vida, sua estrutura e os processos de formação

de professoras que nele se produzem, entrelaçados às pedagogias urbanas. É, por

tomá-lo como objeto de estudo, que consigo percebê-lo como conectado à cidade. É

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também sujeito, na medida em que, ele próprio, o IE, vira história a ser contada pe-

las memórias.

É possível esse entendimento, se considerarmos que essa é uma instituição

viva, que tem uma veia pulsante, dinâmica, não linear, inserida numa cidade tam-

bém viva e que me permitiu um estudo próximo ao do biográfico, através das narra-

tivas.

Estou dando corporeidade às memórias dessa escola, e essa corporeidade só

pôde materializar-se, através das falas das pessoas que viveram de alguma forma

essa Instituição.

Foi, pois, com trajetórias de algumas professoras que desenvolvi este estudo,

situando-o nos tempos e espaços históricos, na tentativa de melhor compreender a

escola e a formação de professoras, nos atravessamentos com a cidade e com as

pedagogias urbanas.

Assim, é com minhas memórias, de aluna e de professora, entrelaçadas a ou-

tras memórias, e com base em documentos históricos, que pretendi trazer à cena a

história da educação ou a educação nas cenas da história, voltando mais no tempo,

valendo-me dos conceitos da não linearidade da memória.

Esta pesquisa constitui-se pelas memórias, mas como afirmei, anteriormente,

tem, também, aproximações com aportes do campo etnográfico e com estudos liga-

dos a biografia e autobiografia. Por essa razão faço algumas incursões teóricas nes-

se terreno.

Posso dizer que tem aproximações com a etnografia, pelo mergulho que faço

na vida que pulsava na escola, numa imersão quase holística – não porque eu hoje

faça isso, mas por tê-la vivido, pó lá ter estado e, agora, tomar-me como submersa

no que se vivia no se interior e exterior, nas teias com os espaços educativos da

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cidade. Re-constituo a história pelo prédio, pelos objetos, pelos valores, pelos rituais,

pelos símbolos, pelas vozes, pelos “guardados das memórias”.

Encontro apoio, para essas argumentações, em José Maria Hernandez Diaz

(2002), em uma de suas abordagens sobre estudos etnográficos, quando afirma que

os edifícios escolares falam tanto quanto os pátios, os lugares de encontro, o entor-

no escolar. As coisas, os objetos físicos e materiais da escola nos falam mais, às

vezes, do que as palavras dos professores e alunos. Estabelece, esse autor, rela-

ções entre essa possibilidade de investigação e a etnografia, no explicitado a seguir.

A via etnográfica de construir ciência, aplicada ao âmbito específico da escola nos convida a investigar e a explicar o labirinto e o clima de relações comunicativas que oferecem os objetos da escola do passado [...] mas também a função simbólica dos edifícios, desde seus nomes, suas formas externas [...] (p. 227)

Essa é, pois, uma provável aproximação, porquanto mergulhei na instituição

de um tempo, para tentar compreendê-la e, mais que isso, para compreender a mim

mesma, como professora, através de um processo de formação que essa instituição

instaura, produz, e, sobretudo, um mergulho em minha história, desde aí, é também

uma investigação memorialista, com certo cunho biográfico e autobiográfico.

Antônio Viñao Frago (2002), entende que autobiografias, memórias, recorda-

ções, testemunhos, impressões e outras correlatas dizem respeito a todos aqueles

textos, no quais, professores narram suas vidas, podendo essa narração ou relato

revestir-se de um caráter mais ou menos pessoal, íntimo, profissional ou público.

Nesse conjunto, caberia, por sua amplitude, uma certa diversidade de tipologias tex-

tuais, incluindo-se, aí, memórias de infância, adolescência e de juventude, com es-

pecial atenção, em certos casos, à educação recebida.

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Esta é uma tese que se produz pelas minhas memórias e pelas memórias de

outras pessoas, que, comigo, vivenciaram a escola. As narrativas que brotam das

lembranças assumem, em alguns momentos, um cunho biográfico ou autobiográfico.

Ao nos remetermos às vivências escolares, aos trânsitos pela cidade, aos en-

trelaçamentos de reciprocidade que se dão pelas pedagogias urbanas, trazemos

nossas infâncias, nossas adolescências, nossas juventudes, nossas vivências pelos

bairros, pelos transportes coletivos.

Nossas recordações vão (re)produzindo nossas histórias escolares e não es-

colares, por isso entendo que alguns aportes se colocam nos interstícios das expli-

cações, quando tento situar os caminhos metodológicos.

Isto posto, parece-me que importa mesmo é a pesquisa, os modos como se

processou em que se constitui e é disso que passo a falar.

3.2- Da construção do objeto e dos trânsitos investigativos

Não, não tenho um caminho novo. O que tenho de novo é o jeito de caminhar [...]

Thiago de Mello

Thiago de Mello inspira-me a pensar que, talvez, o jeito novo de caminhar, pe-

lo menos para mim, tenha se dado tanto pela forma de aproximação com o objeto de

pesquisa, quanto pelo modo como foram acontecendo as descobertas, os encanta-

mentos e re-encantamentos que se produziram nas relações com as pessoas, com

suas memórias e com os documentos escritos, os “guardados antigos”.

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De longa data, como já bem mencionado no primeiro capítulo deste texto, se

vêm constituindo minhas questões e sempre que tentava circunscrevê-las para con-

figurar um objeto de pesquisa, voltava a uma indagação que vem desde a proposta

desta tese – que estranho objeto é esse a que chamam de pesquisa e do qual nos

"aproximamos" e no qual vamos nos constituindo à medida em que o constituímos,e

assim se constrói, se des-constrói e, ainda que construído, é preciso desenhá-lo, em

espaços cada vez mais circunscritos, exatamente para que dele não nos percamos,

na profusão de possibilidades que se nos vão apresentando.

Registro essas reflexões, porque delinear “o tal” objeto foi uma das coisas

mais difíceis deste trabalho.

Meu objeto não nasce uno, nasce múltiplo, desenquadrado, no seu nascedou-

ro dos múltiplos "que-saberes".

Dos que-saberes é mais fácil falar – eu queria saber de um tempo histórico,

de um tempo vivido na minha formação de professora. Esse é um tempo que está na

minha memória e nas memórias individuais, que são também memórias coletivas e

memória social.

A tentativa de (re)construção desse tempo histórico emerge do desejo de nar-

rar a mim mesma, para entender-me, nessa professoralidade que me constitui, mas

minhas lembranças, “meus guardados”, não me pareceram suficientes para os en-

tendimentos que procurava e fui ao encontro de outras memórias, pois tal como a-

firma Ecléa Bosi (op. cit.) "somos, de nossas recordações, apenas uma testemunha,

que às vezes não crê em seus próprios olhos e faz apelo constante ao outro para

que confirme a nossa visão”. (p. 407)

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Para encontrar-me com essas memórias, realizo este estudo, através de en-

trevistas informais, que, às vezes, são entrevistas-diálogo28. Meu papel nas entrevis-

tas foi o de provocadora das memórias. Procurei despertar as lembranças com al-

algumas frases, com algumas questões, deixando a fala correr solta, livre, tal como

ia se desenhando por esses caminhos não lineares da memória que se movem por

avanços e retrocessos.

Nossas recordações, as minhas e as das entrevistadas, às vezes se mistura-

vam, se encontravam, se desencontravam e as narrativas iam fluindo permeadas de

emoções, de risos, de reflexões.

Considero que as pessoas que participaram desta pesquisa não são sujeitos,

no sentido estrito do termo (sujeitos de pesquisa), posto que elas não são pesquisa-

das, mas através delas se faz a pesquisa. Ao mesmo tempo, elas são mais do que

entrevistadas: são interlocutoras, personagens e também personalidades que vive-

ram a escola e que tiveram seu lugar de destaque, não só nos espaços intra-

escolares, como em outros espaços e tempos educativos da cidade, do estado e do

país. São pessoas que compartilharam comigo suas vidas de alunas e de professo-

ras. São mulheres, pois era uma escola povoada pelas mulheres.

Essas interlocutoras não foram selecionadas. Nós nos aproximamos num mo-

vimento de mutualidade. Algumas ex-colegas, para as quais falei sobre as minhas

intenções de pesquisa, logo me ofereceram seus “guardados” – fotos29, álbuns, laci-

nhos de normalistas, históricos escolares, documentos, mostrando-se simpáticas à

idéia de participarem do estudo. Daí, incluem-se na pesquisa, então, as três partici-

pantes com as quais convivi, como aluna e como professora do IE: Arlette, Maria He-

28 Expressão tomada de empréstimo a Edgar Morin, que diz serem as entrevistas, em alguns casos felizes, en-trevistas-diálogo (in Moll, 2000) 29 Houve autorização para uso de fotos e outras imagens.

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lena e Neusa. Minha intenção era a de trabalhar com pessoas que tivessem sido,

lém de alunas, professoras da Escola Primária.

Procurei, ainda, aproximações com algumas ex-professoras da Escola Normal

e, pelo mesmo processo, convido duas professoras: Liba, por ter sido e continuar

sendo “minha mestra maior”, com quem aprendi, construí muito do que sou como

professora, como profissional. Maria Luisa, pelo quanto representou no IE como pro-

fessora e com seu trabalho de orientadora no estágio. Além disso, colocou à minha

disposição um vasto material de pesquisa sobre Escolas Normais. São, portanto,

cinco entrevistadas. Não há justificativa para o número, nem tampouco ele é mágico:

pareceu-me o possível e o desejável para o que me propunha.

Além das entrevistadas, foram valiosas as fontes documentais. Recorri à Se-

cretaria de Educação do Estado, à Biblioteca Pública, à Biblioteca do IE, à Associa-

ção das Ex-Alunas do IE, ao Museu Joaquim José Felizardo.

Na Secretaria de Educação fizemos30 uma longa pesquisa nos arquivos das

bibliotecas – lá “as caixas” guardavam segredos do CPOE – Centro de Pesquisa e

Orientação Educacional, da Revista de Ensino, das leis, dos atos governamentais,

dentre muitos outros documentos, que podem contar a historia da educação neste

estado e que estavam, na ocasião, sendo cuidadosamente organizados pela biblio-

tecária. Além disso, muitos matérias, e documentos históricos me vieram das entre-

vistadas, juntamente com muitas fotos31 - retomar esse processo de produção que é

calcado na memória, em suas múltiplas possibilidades, me levou a uma passagem

de Augustin Escolano Benito em “La memória y el deseo (2002), na qual nos diz que

os desejos possuem íntima vocação projetiva que também conduz a uma revisão re-

30 “Fizemos”, porque contei com o auxílio de Carla Andréia Kremer Vieira e José Rafael Hidalgo Madruga nas pesquisas nesses locais. 31 As fotos são dos arquivos de Arlette, Maria Helena, Carmen Célia e Neusa, além das de meus próprios arqui-vos.

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construtiva da memória e esta se prolonga, como discursividade e prática de uma

solidariedade virtual e real. As práticas narrativas prolongam, assim, a textualidade

das recordações da escola, o que só é possível, porque o nosso tempo voltou a

descobrir o valor da memória, perdida por um exacerbado racionalismo e sua pre-

tensão de modernidade universal - a desmemoria é a morte do homem como sujeito

(segundo denuncia a crítica da cultura de Nietzsche).

O fazer história pelas memórias tem sido um caminho vivido por muitos pes-

quisadores e pesquisadoras. É claro que não estou trabalhando com um caráter de

ineditismo, a não ser pelo que pode ter de inédito em meu olhar.

Nessa perspectiva, entrelaço outros temas e outros estudos que me permitem

aproximações teóricas.

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4- Aproximações teóricas – entretecimento de temas

4.1- Alguns estudos próximos ou inspiradores

Conta-me de ti, fala-me de teus caminhos epistemológicos, do modo como abres picadas e iluminas trilhas e, então, aprenderei contigo e, a partir de ti, a abrir novas picadas e a iluminar novas trilhas.32

Neste movimento de “garimpagem” que nos caracteriza como pesquisadoras,

fui em busca de trabalhos que se relacionassem a minha temática de pesquisa e

surpreendeu-me o grande número de estudos que focalizam instituições e memórias

e, dentre esses, muitos sobre os Institutos de Educação33. Dentre os trabalhos exa-

minados, selecionei alguns para explorar nesta tese.

Beatriz Fischer (1999), em sua tese: "Professoras: histórias e discursos de um

passado presente”, realiza um estudo selecionando algumas questões que buscam

saber como, e sob que condições, veio a se constituir "aquela professora primária

32 Epigrafe da autora desta tese. 33 Nas fontes consultadas, incluindo o Portal da Capes, foram encontrados, aproximadamente, quatrocentos tra-balhos sobre instituições e memórias e mais ou menos sessenta produções dedicadas aos Institutos de Educa-ção de diferentes partes do Brasil. As temáticas analisadas referiam-se a relações de poder, trabalho docente, tendências pedagógicas, gênero, dentre outras. Há abordagens vinculadas a diferentes matrizes teóricas e me-todológicas: análise do discurso, estudos biográficos, etnográficos, memorialistas. Selecionei para este estudo algumas que me parecem mais próximas.

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dos anos dourados, usando seu discurso como objeto de estudo”. Usa a autora co-

mo uma de suas questões - essa mulher professora, exaltada em prosa e verso, que

circunstâncias a produziram?

A autora define, então, seu campo central de pesquisa, selecionando um gru-

po de professoras que tivessem em comum o exercício do magistério nos anos 50 e

60, tendo atuado numa mesma escola - O Grupo Escolar Pedro II, localizado no mu-

nicípio de Novo Hamburgo (RS). São entrevistadas senhoras professoras, hoje entre

seus sessenta e oitenta anos, buscando assim compreender um processo no qual

elas mesmas se constituíram como mulher e professora e se valendo para isso, so-

bretudo, dos estudos foucaultianos.

Apoiada em Warde (1993) Fischer lembra que se constata certa indiferença

ou desconhecimento frente a experiências escolares historicamente acumuladas,

também carência de estudos históricos que, encaminhados com seriedade, poderi-

am auxiliar no entendimento mais objetivo e contextualizado dos problemas relativos

à educação.

Esse é, pois, um trabalho que trata de memórias pela via dos discursos e tem

relações com a pesquisa que estou aqui apresentando, embora por outros caminhos

metodológicos, com intencionalidades, ao mesmo tempo que semelhantes, diversas.

Tratando de temática semelhante, Arnaldo Nogaro (2002), na obra "Teoria e

Saberes Docentes - a formação de professores na Escola Normal e no Curso de

Pedagogia" relata sua pesquisa junto a Institutos Educacionais de nível Médio e Su-

perior, que atuam na formação de professores para a escolarização inicial ou, hoje,

anos iniciais do Ensino Fundamental.

A investigação, de caráter exploratório, tem como foco principal a análise das

racionalidades lógicas que têm presidido a formação de professores nas instituições

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envolvidas sem, contudo, haver perda da dimensão global mais ampla em que se

desenvolvem tais processos.

As evidências, recolhidas através de depoimentos dos professores e da aná-

lise de documentos legais e artigos jornalísticos, permitiram ao autor constatar o

predomínio da racionalidade técnico-instrumental tanto nas concepções de educa-

ção, escola, identidade do professor, organização curricular, quanto nas práticas de

ensino e condições de trabalho dos professores, assim como a forte presença de um

ideário "moralizante" quanto ao papel e aos comportamentos esperados das futuras

professoras.

Afirma, ainda, Nogaro que, apesar de inúmeras propostas inovadoras e de es-

tudos que se debruçam sobre a formação do educador, persistem a insatisfação e a

crítica dos docentes em relação à inadequação e à dissociação entre sua formação

e as exigências da prática cotidiana da sala de aula. Esse autor vai dizer, citando

Therrien (1997), que o trabalho pedagógico é sustentado por uma pluralidade de sa-

beres de natureza diversa. São eles que orientam a ação, fundamentando o ato de

julgar, de argumentar, de decidir em situações próprias que a interação lhes

propicia. Da professora alfabetizadora ou da que atua nas séries iniciais, espera-se

que assuma o compromisso de uma prática educativa que contribua para que as cri-

anças se apropriem de várias linguagens e que delas possam se valer para expres-

sar seu próprio discurso emancipatório, rompendo com uma história de submissão e

passividade. A formação inicial, desses agentes, ganha especial importância diante

da necessidade de fundamentar a prática a ser desenvolvida e a formação recebida

posteriormente (continuada). Os referenciais trazidos ou construídos durante esta

formação são os princípios "instrumentais" a partir dos quais vai se desenvolver ou

refletir a execução de seu trabalho.

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Os dados recolhidos por Nogaro mostraram que os professores, bem como os

estudantes, possuem uma imagem de profissional (ou um ideal de professor e pro-

fissão), adquirida em função das ações e posturas de seus professores anteriores ou

atuais, mas também identificada com a literatura sobre o assunto e pelo que pensam

sobre si mesmos.

As narrativas, trazidas por nossas lembranças, também apresentam identifi-

cações com as professoras que marcaram nossas vidas como “ideal de professora”.

Encontro relações entre o presente estudo e o de Nogaro, com a marcante

diferença de que tomo uma escola pública de formação de professoras - Instituto de

Educação General Flores da Cunha de Porto Alegre.

Outros trabalhos tratam também dessa temática, dentre os quais posso citar

Ana Lúcia Guedes Pinto (2002), que aborda as trajetórias de professoras alfabetiza-

doras, focalizando a leitura como constituidora de identidade e formação profissio-

nal. Tiago Adão Lara (1996), no livro: "A escola que não tive, o professor que não

fui” traz suas memórias de professor de filosofia.

Também Lourenço Filho (1967), realizou um estudo sobre o Instituto de Edu-

cação do Rio de Janeiro, mostrando a estruturação interna dessa escola, os serviços

que oferece, sua eficiência e seu alto conceito público.

Diz o autor que o ano de 1936 caracterizou-se pela consolidação dos proces-

sos administrativos e didáticos, inaugurados em 1932, quando a organização do Ins-

tituto a cada novo exercício, era melhorada. É assim que o ensino e os vários

serviços puderam atingir um alto grau de eficiência, malgrado algumas dificuldades

de administração.

Esse Instituto de Educação contava com múltiplos serviços como: serviço de

restaurante, serviço médico, serviço dentário, dentre outros.

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Eram realizadas demonstrações cívicas públicas e de ensino como: orfeôni-

cas, desenho e artes, música e canto. Do ponto de vista do desenvolvimento

técnico, havia investimentos em investigações e publicações, pois determinava a

legislação em vigor que esse Instituto funcionasse não só como estabelecimento de

ensino, mas ainda como centro de documentação e pesquisa.

O Instituto de Educação de Porto Alegre seguia a mesma organização estru-

tural, visto que se orientava pela mesma legislação. Outro estudo muito significativo,

tratando do Instituto de Educação é o de Guacira Louro (1987).

Essa autora, em sua tese de doutorado, realizou um estudo procurando reve-

lar como se comportou o Instituto de Educação de Porto Alegre enquanto escola

formadora de mulheres no Rio Grande do Sul nas décadas de 30 a 70.

A pesquisa foi realizada com base em documentos escritos, textos oficiais,

buscando desvendar algumas de suas faces menos aparentes, um pouco através

dos depoimentos de personagens e através de documentos da época ou cruzando e

interpretando os elementos encontrados.

O estudo propôs-se, ainda, a articular as várias determinações que configura-

vam essa realidade educacional para melhor explicá-la e investigar o possível cará-

ter de universalidade presente nessa realidade singular.

A questão básica que conduziu a pesquisa foi descobrir o que representou

para a condição feminina a passagem pela escola.

Dentre as conclusões que resultam de um trabalho de longa e profunda pes-

quisa, a autora aponta para o fato de o IE constituir-se numa combinação de escola

tradicional e moderna, marcadamente escolanovista, que exerce um papel de lide-

rança na educação escolar rio-grandense que se estendeu mais ou menos até a dé-

cada de 60, formando a elite do magistério gaúcho.

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Além disso, como uma escola para moças, a formação contribuía para refor-

çar o ideal de obediência, docilidade e respeito, aliado a outros fatores, como o perfil

feminino desejado pela instituição.

As conclusões apontam para o caráter de universalidade, posto que a forma-

ção nessa escola possa ser representativa do que se pretendia para a educação de

mulheres nesse tempo histórico.

As múltiplas leituras deste trabalho foram impulsionadoras da necessidade de

explicitar, para mim mesma, buscando crescente clareza, das minhas intencionali-

dades de pesquisa e em que se diferenciavam do já investigado. E isso não só já es-

tá explicitado, como vai aparecendo ao longo desta tese: não se trata de estudo de

gênero, embora muitas vezes tenha sido necessário abordar o tema, na medida em

que os dados assim iam impondo.

Minha atenção está centrada no que essa escola produz, na formação de pro-

fessoras, as subjetividades que se foram constituindo, sempre marcadas pelo atra-

vessamento com os espaços urbanos, com a ampliação de fronteiras, pelas rotas

educativas da cidade.

Outro estudo que destaco é a dissertação de mestrado de Ana Cristina Pires

Beiser (1996) em que a autora analisa a organização e as propostas do ensino no

Brasil e no Rio Grande do Sul, ao longo da Primeira República e do Estado Novo,

através de um estudo de caso que focaliza “a atuação de Florinda Tubino Sampaio,

professora e diretora de uma escola modelo em Porto Alegre: o Instituto de Educa-

ção General Flores da Cunha”.

A pesquisa buscava também entender o comportamento da mulher no exercí-

cio do magistério, em Porto Alegre, na época estudada. A análise circunscreve-se ao

Instituto de Educação de Porto Alegre.

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Essa dissertação, produzida por uma historiadora, enriquece o conjunto de in-

formações sobre Dona Florinda, além de fazer referências ao IE e a outras educado-

ras renomadas, como Olga Acauan Gayer.

O relato biográfico de Beiser (1996) traz dados sobre a vida e obra de Dona

Florinda que nos ajudam a entender o lugar de destaque dado a essa educadora em

nossas reminiscências.

Dona Florinda tornou-se professora na Escola Complementar em 1909 e foi

nomeada como professora no Ensino Primário da Escola Normal em 1911. Foi a

primeira mulher a dirigir a Escola Normal de Porto Alegre34 e Dona Olga Acauan Ga-

yer a primeira a exercer a direção da Instrução Pública no estado.

Na década em que o IE foi dirigido por Florinda Tubino Sampaio, foram intro-

duzidas inovações no ensino musical, nos cuidados com a saúde, na identificação

da escola e no nível de possibilidades de participação dos alunos.

Em Kraemer Neto (1969), no livro "Nos tempos da velha escola" vou encon-

trar muitos dados sobre o IE, focalizando sua história, documentos, legislação, per-

sonalidades que viveram a instituição e que a constituíram. Foram valiosas, para

mim, as informações contidas nessa obra.

Esses estudos que tratam de histórias, memórias de professores e institui-

ções, estão, de certa forma, colados à história e aos processos de formação de pro-

fessores e professoras e constituição da docência, o que me leva a tecer algumas

considerações mais específicas sobre o tema.

34 Da fundação do Instituto de Educação em 1869 até o momento em que a professora Florinda Tubino Sampaio assume a Direção da escola, todos os diretores da Instituição foram homens. Segundo a Revista do IE exerce-ram esta função Padre Joaquim Cacique de Barros (1869 a 1873 e 1876 a 1881), Adriano Nunes Ribeiro (1881 a 1885), Professor Alfredo Clemente Pinto (1885 a 1901 e 1906 a 1918), Dr. Alcides Flores Soares (1920 a 1927) e Dr. Emílio Kemp (1927 a 1935). (Beiser, 1996 p. 113)

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4.3- De professores e de professoras – história e processos de formação

De acordo com Nóvoa (1991), no início dos anos 20, emergiu em Portugal,

uma nova identidade de professor, conduzida por uma série de problemas daquela

época: a necessidade de modernizar a administração educativa, de reestruturar o

apoio à escolarização e de lidar com o problema do professor enquanto perigo soci-

al, envolvido na política trabalhista. Como o tecido social da Inglaterra estava sob

uma enorme pressão, o novo discurso social foi produzido, de forma aberta e consis-

tente, num período de conflito, tendo resolvido vários problemas ao mesmo tempo.

O novo modelo de administração foi importado do Ministério Colonial, um dos mais

poderosos ministérios do Estado, naquela época, tendo sido utilizado o método de

controle colonial dominante. Recorrendo à idéia crucial da "regra indirecta", o em-

blemático modelo de governação colonial inglesa, os professores foram tratados

como colonizados, sendo-lhes concedida uma moderada independência e geridos

através de um sistema de controles financeiros, poder limitado de um discurso que

sublinhava as idéias de responsabilidade, atividade apolítica e autodisciplina.

Esta nova identidade penetrou nos programas de formação, na nova impren-

sa popular sobre educação, nas declarações e publicações ministeriais e, ainda, nos

discursos sobre práticas de trabalho. Entrar nesta nova identidade profissional cons-

tituía um acontecimento, singular e simbólico, que se consumava com a fase final da

formação. Neste período, os indicadores de sucesso da "escola de massas" deveri-

am incluir a ausência de greves de professores, reuniões de consulta, indicação de

discreta liderança sindical e professores moderados eleitos para o Parlamento.

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Refere-se, o citado autor, ao contexto de seu país, mas pode-se falar de seu

caráter mundial e isto me leva a refletir sobre minhas vivências como professora do

IE em tempos já mais avançados, meados de 60, quando éramos desaconselhadas

a participar de greves e em que lutávamos contra um discurso sobre o caráter mis-

sionário e de neutralidade política da profissão de professora. Tínhamos, de certa

forma, também um poder limitado de discurso.

Continuando a discorrer sobre o tema, diz Nóvoa que nos anos 40 e 50, uma

nova identidade pós-guerra foi construída sobre o anterior modelo de identidade do

professor. As circunstâncias históricas diferentes produziram um projeto nacional,

uma nova versão da "comunidade imaginada" e uma modernização e reconstrução

do projeto educativo. A necessidade de gerir os professores de forma diferente não

afetou o modelo fundamental, produzido nos anos 20, mas a imagem e a identidade

do professor mudaram. Os professores tinham sido elogiados por terem, durante o

período da guerra, alargado o seu papel para a promoção do bem-estar social, e o

Estado do pós-guerra, usando a educação como um bem público num novo estado

de bem-estar social produziu um modelo de paternariado, profissionalismo e de re-

volução democrática.

Neste modelo, a identidade do professor foi alterada e surge uma nova cultura

do trabalho comum visando uma emergente e atingível sociedade igualitária. Este

poderoso discurso da responsabilidade profissional estava ainda dependente das

descrições das qualidades do professor, mas estas também foram modificadas. Uma

vez que o bem-estar social tinha emergido como característica significativa do siste-

ma nacional, o "elevado caráter social" do ensino foi promovido. Novas qualidades

essenciais, como maturidade, entusiasmo, experiências e personalidade, ajustadas

aos novos tipos de escolas, surgiram como componentes-chave da identidade. Esta

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identidade também mudou quanto ao gênero - do anterior ideal da elite de professor,

no masculino, para a mulher madura, refletindo o papel da pastoral e de bem-estar

do ensino no novo sistema.

Essa referência ao novo modelo, que contém ainda características do

anterior, se faz sentir nos tempos de minha formação e de professora, pelo otimismo

pedagógico e pela característica de isso se dar em uma escola só para mulheres.

Se por um lado, vivia-se e viveu-se, por um tempo, um exercício de docência,

de alguma forma, controlado, vigiado, em algumas situações, de forma explícita, em

outras, de forma mais velada e carregando, especialmente no caso do IE, o peso da

tradição, por outro, usufruíamos de um lugar de importância social, nos alimentáva-

mos do status de "ser professora".

Na parte inicial desta tese digo que "professoras do seu lugar de poder-saber

me fascinavam". Nas narrativas das entrevistadas existem falas similares.

As professoras eram de outra classe social – elas eram impecáveis. Eu vivi isto no Grupo Escolar. Eu me encantava com elas, eram como deusas na minha percepção infantil. Eram nossos modelos. Algumas ficaram como meus modelos profissionais como a professora Martha Rosa, do 3º ano. Eu percebia que eram de uma classe social privilegiada, eram pessoas muito requintadas, muito delicadas, cheirosas, bonitas, bem penteadas e quando eu cheguei no IE, eu encontrei as mesmas professoras, o que me deu um panorama de professora daquela época, que era de um outro padrão. (Neusa)

Do mesmo modo, nós nos constituíamos em modelos e exercíamos, prova-

velmente, esse fascínio sobre nossos alunos e alunas, mas gradativamente, a partir

da década de 70, o sistema educativo, dentro das mudanças mundiais, vai assumin-

do novas configurações e vai se transformando tanto o papel e o lugar do ser pro-

fessor, ser professora, quanto a situação de classe.

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Considerando-se os últimos vinte anos, passou-se de um ensino de elite, ba-

seado na seleção e competências, para um ensino de massas.

Do lugar de poder das aulas ministradas sobre um estrado, passando pelo es-

tatuto de competências e valorizações em tempos de modernidade e Escola Nova,

há uma longa distância para a contemporaneidade.

Também José M. Esteve (1991) refere-se às transformações que o sistema

educativo europeu sofreu nos últimos vinte anos em que se vai desgastando a ima-

gem social do ensino e dos professores. O autor chama a atenção para as reformas

que ocorreram em todos os países europeus, a partir da década de 70, dizendo que

elas surgem num momento de desencanto, sendo olhadas com grande ceticismo,

porquanto a sociedade parece que deixa de acreditar na educação como promessa

de um futuro melhor e os professores enfrentam sua profissão com uma atitude de

desilusão e de desânimo que se desenvolve paralelamente à degradação de sua

imagem social.

Essa é uma trajetória que pode configurar-se como o que se vem chamando

de mal-estar docente - para isto, ainda Esteve chama a atenção, lembrando que não

se deve confundir esse mal-estar docente, que cresce como efeito da mudança so-

cial, com um exercício de autocomplacência face aos males do ensino.

Refere, ainda, o autor, que o estudo do mal-estar docente deveria abordar pe-

lo menos, três questões importantes - a de auxiliar os professores a eliminar o desa-

justamento, a de se estudar a influência da mudança social sobre a função docente,

com vistas a compreender as dificuldades com que se debatem os docentes, e a de

trocar formas de intervenção que superem o domínio das sugestões, procurando a

melhoria das condições para esses profissionais desenvolverem seu trabalho.

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Quando me propus a estudar uma escola, considerada como de elite social e

intelectual, a formação docente nela produzida num dado momento histórico, pelas

memórias e trajetórias de professoras, estava, certamente, buscando reconstruir

também a memória de uma instituição e de um tempo histórico e, embora não pre-

tendesse estabelecer comparações, não posso trabalhar dissociada das transforma-

ções, dos movimentos da vida, do que constitui o presente - é por esse presente que

podemos olhar o passado, de acordo com os conceitos de memória com os quais

venho trabalhando.

Desse modo, se hoje convivemos com a desconsideração social dos profes-

sores e professoras, com a desvalorização salarial, com a pouca clareza do que seja

educação, com a crise de valores, com as críticas pejorativas, com uma nova confi-

guração da escola e da sala de aula, a partir de políticas de inclusão, com as cons-

tantes polêmicas sobre as instâncias formadoras de professoras, indaguei-me sobre

com o que convivíamos, para além do já tratado neste texto, nos tempos idos.

Até vinte anos atrás, professoras do ensino primário eram figuras sociais rele-

vantes, as professoras de magistério eram "catedráticas" e os valores sociais, mo-

rais, humanos constituíam consenso, mas será que haveria alguma espécie de mal-

estar docente?

Como narradora de minha própria história, posso dizer que não vivi esse mal-

estar-docente, do mesmo modo que isso não se registra nas narrativas das entrevis-

tadas, pelo contrário, como pode se constatar em alguns depoimentos.

O que aparece é um “bem-estar docente”, um apaixonamento pelo ser pro-

fessora, um encantamento. Esses sentimentos se alicerçam na e são alimentados

pela valorização social do magistério, embora isso não se expresse em termos sala-

riais. Esse apaixonamento está nas falas das depoentes.

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Foi um bem a escola para o momento em que nós a vivemos. Essa paixão eu vivi num momento áureo do IE. O IE foi o amor da minha vida! A gente trabalha-va, criava, realizava tudo, porque acreditava que aquilo era bom para os alunos. (Maria Luisa)

Eu acho que ser professora sem paixão não dá. Vejo a Neusa, minha filha, como dá aula, não é professora, como ela gosta de preparar aula. Eu acho que es-ta profissão envolve a pessoa se dar, não é uma opção neutra, porque tu trabalhas com gente; tu queres entusiasmá-los naquilo que tu queres que eles aprendam ou que ouçam, isso é um talento especial, quereres, olhares pro outro, tu quereres que eles aprendam, que se entusiasmem pelas coisas que tu estás ensinando, en-tusiasmada. (Liba)

Agora, é certo, que esse “bem-estar docente” está circunscrito, nesta tese, a

professoras de uma escola freqüentada por uma determinada camada da população

e num tempo em que apenas se iniciava o processo de democratização do ensino,

em que não tínhamos o acelerado crescimento demográfico da população do país e,

conseqüentemente, da cidade. Ainda não havia o acesso massivo da pobreza

à escola.

Os sentimentos das professoras que trabalhavam com as camadas mais

populares, nas vilas, não se inscrevem neste estudo, embora a valorização social se

estendesse à classe do magistério. Não considero generalizável o que estou

chamando de “bem-estar docente”, mas posso dizer que professores e professoras

ocupavam lugar de destaque no cenário educacional.

Esse lugar de destaque é vivido, num tempo dado e sob circunstâncias

sociais e políticas determinadas, em que, como professoras do IE, também trabalhá-

vamos sob inspirações escolanovistas e é disso que passo a falar.

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4.3- As tendências pedagógicas na urdidura do vivido

Vivemos o Instituto de Educação como alunas da Escola Normal e depois

como professoras da Escola Primária em tempos de Escola Nova.

Muito se tem tratado sobre esse movimento, seja trazendo suas raízes histó-

ricas e seus processos de implantação, apogeu e decadência, seja trazendo análi-

ses críticas. Parece-me necessário apresentar nesta tese, alguns dados deste

movimento, pelo menos por essas duas vias.

Cambi (1999), Ghiraldelli Júnior (1990), Louro (1987), dentre outros, tratam

deste tema, seja historicizando, seja fazendo a crítica. Neste momento vou tratar dos

dados da obra de Lourenço Filho (1967), “Introdução ao Estudo da Escola Nova”,

um dos pioneiros desse movimento, para quem a Escola Nova (e seus sinônimos)

não se refere a um só tipo de escola ou sistema didático determinado, mas a todo

um conjunto de princípios tendentes a rever as formas tradicionais do ensino.

Esses princípios se originam numa nova compreensão das necessidades da

infância, inspirados em estudos da biologia e da psicologia, mas também referindo-

se às funções da escola em face das mudanças de vida social.

Lourenço Filho, nesta obra, apresenta toda a proposta desde suas origens, fi-

nalidades, contraposições ao ensino tradicional, bases metodológicas, formas de

implantação. Lembra, esse pioneiro escolanovista, que as primeiras escolas haviam

sido criadas em sociedades simples, em que, até então, a ação da família, da Igreja,

da comunidade próxima era suficiente para a formação educadora. Eram essas insti-

tuições, e não a escola, que produziam os tipos necessários à manutenção da estru-

tura social. As atividades profissionais não exigiam aprendizagem escolar, tendo-se

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assim, a perpetuação das estruturas sociais existentes, diz ainda o autor que a soci-

edade industrial é que vai trazer a necessidade de formação escolar. Foi crescendo

o número de escolas no mundo pela extensão de idéias políticas e necessidades

econômicas, o que se observava e que nos "graus superiores" os alunos aprendiam

os rudimentos da leitura, escrita e aritmética e, nos demais, procedia-se a memori-

zação de lições, as quais não se tornavam nem ao menos compreensíveis aos estu-

dantes. De um modo geral, a disciplina nas classes era obtida sob o temor de

castigos, inclusive castigos físicos.

Como já citei, tive oportunidade de viver, como aluna, em escolas como o co-

légio de freiras e a escola do Prof. Emetério, a memorização e os castigos físicos,

depois de ter vivenciado, aos seis anos de idade, ainda que por pouco tempo, numa

escola pública, situações pedagógicas organizadas sob orientações escolanovistas.

Eram os anos 40 e as tendências pedagógicas coexistiam (tal como continuam hoje

a coexistir).

Nas raízes da Escola Nova está também o fato de a criança tornar-se objeto

de pesquisas mais sistemáticas - cresce o interesse em investigar o domínio do co-

nhecimento, condições de crescimento e adaptação social.

As primeiras instituições, orientadas pelas novas idéias, surgiram em âmbito

privado na Inglaterra, França, Suíça, Polônia e outros países depois de 1886. O mo-

vimento da Escola Nova vai se expandindo para outros países da Europa e também

nos Estados Unidos toma corpo.

No Brasil, citam-se duas tentativas: a do pedagogismo, no Rio de Janeiro, que

estabeleceu um laboratório de psicologia, em 1897, e a da Escola Normal de São

Paulo, que em 1914 inaugurava um laboratório de psicologia experimental.

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O movimento renovador da escola sofreu as influências da primeira e da se-

gunda guerra mundiais, do entre-guerras, e vai encontrar oposição no marxismo e

nos regimes totalitários.

Lourenço Filho explicita a idéia de que, ao término da segunda Grande Guer-

ra, a renovação educativa teve de abranger novos aspectos. Amplia-se a percepção

de que a escola teria influência poderosa no sentido de preservação da paz, promo-

vendo uma formação humana capaz de minorar as tensões internas de cada nação,

levando a melhor compreender as tensões internacionais.

Eram tempos de crença em uma escola redentora com o poder de transfor-

mação da sociedade, do mundo, considerando-se, assim, a educação em tudo fun-

damental. Em 1946, nasce a Organização Educativa Científica e Cultural das

Nações Unidas - UNESCO, com o apoio de 43 países, propondo-se a contribuir para

a manutenção da paz e da segurança entre os povos, estreitando, pela educação, a

ciência e a cultura, a colaboração entre as nações, a fim de assegurar o respeito u-

niversal pela justiça, a lei, os direitos do homem e as liberdades fundamentais de to-

dos, sem discriminação de raça, credo, língua, religião, o que a Carta das Nações

Unidas viria a reconhecer.

Esse movimento se perpetua até meados de 60, nas suas contradições, ilu-

sões e vai ter seu declínio com o advento do chamado tecnicismo educacional no

início de 70. As idéias escolanovistas, que vinham se opor “ao dar a lição”, “tomar a

lição” em que se resumia a didática tradicional, trazem, em seu cerne, a concepção

da aprendizagem como um processo de aquisição individual, segundo determinadas

condições, os alunos são levados a aprender observando, pesquisando, perguntan-

do, trabalhando, construindo, pensando e resolvendo situações-problema.

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Em “Pedagogías del Siglo XX – Cuadernos de Pedagogía” (2000) vamos en-

contrar as idéias de vários pensadores como Maria Montessori, Célestin Freinet,

Francesc Ferrer y Guàrdia, John Dewey, Alexander S. Neill, Antón Semiónovich

Makarenko, Jean Piaget, Paulo Freire. Dentre esses, alguns estão vinculados à es-

cola nova, propriamente dita; outros, como Freinet, por exemplo, que foi até um críti-

co desse movimento, estão de qualquer forma vinculados a tendências de

renovação do ensino. Sobre Dewey, elejo uma passagem:

Filosofia, política e educação estão sempre presentes na trajetória de Dewey. Uma educação que se nutre da experiência e que se projeta na comunidade. Dewey concebe a escola como um espaço de pro-dução e reflexão de experiências relevantes da vida social que per-mite o desenvolvimento da cidadania plena. Não entende a democracia como um regime de governo, mas como uma forma de vida e um processo permanente de libertação da inteligência. (p.47)

Dewey, com formação em filosofia, ligado à corrente pragmatista americana,

teve suas primeiras reflexões acerca da educação sob influências que vão de Hegel

a Darwin, incluindo o positivismo e o condutivismo. Como figura de destaque na re-

novação do ensino, concebendo a escola como agente de reforma social e não de

reprodução, vai propor sua radical reconstrução desde o espaço físico até sua distri-

buição. Considera que as crianças, ao entrarem na escola, devem encontrar um lu-

gar de vida e de trabalho em que não permaneçam sentadas, mas em atividades

variadas em diferentes espaços físicos e em que se mude também a distribuição do

tempo. A escola deve ser vivida como uma pequena comunidade na qual se vive de

modo simplificado o meio social.

Posso trabalhar com a idéia de que era um ideário altamente significativo, vi-

vido metodologicamente, em parte e por muitos, de forma acrítica e sem os funda-

mentos teóricos, as concepções epistemológicas dessa educação, mas que, no meu

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ponto de vista, está, de alguma forma, impregnado em nós e nos movimentos edu-

cacionais contemporâneos.

Numa visão mais crítica em relação às suas vivências de professora em tem-

pos de Escola Nova, Soares (1991) faz algumas considerações.

A proposta da Escola Nova – ideológica que era, como toda e qual-quer proposta pedagógica - apresentava-se a mim, e a quase todos os educadores, àquela época, como um conjunto lógico e coerente de idéias e valores, capaz não só de explicar a prática pedagógica como também, e sobretudo, de regulá-la, fornecendo regras e nor-mas para que ela se desenvolvesse de forma “científica” e “justa”. A teoria sociológica de Durkheim e a psicologia experimental é que da-vam "cientificidade" à proposta; ora, sendo ela "científica", só poderia ser "justa". De um lado, a teoria sociológica de Durkheim fundamen-tava a concepção da educação como socialização do indivíduo; de outro lado, a psicologia experimental conferia racionalidade e objeti-vidade à prática pedagógica.

(Soares, 1991, p. 55 e 56)

Mesmo compreendendo o que aqui está dito por Soares e por muitos outros

teóricos e com meu olhar de hoje, com outras apropriações teóricas e já mais distan-

te da ingenuidade de professora escolanovista, não posso me furtar de dizer que es-

ses modelos significados, transformados, feitos em novos sentidos, nesses novos

tempos, ainda hoje, orientam minhas ações de professora das práticas de ensino

que são movidas por muitos princípios e vivências que se originam na minha velha

escola normal, ancorados nas práticas oriundas da Escola Nova.

Não arranquei minhas raízes como quem se despe de velhas vestes - deslizo-

as para seus novos sentidos, com a diferença de que hoje tenho a pretensão de sa-

ber por que o faço - onde estão as origens dos princípios que me orientam - o que,

deles, me foi de valor e que efeitos vejo produzirem-se na prática de minhas alunas

em salas de aula, onde, às vezes, parece que "tudo está perdido"e que não será

possível encontrar o fio da meada para enrolar, desenrolar e tecer.

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Com certeza, tenho hoje uma visão diferente daquela de quando fui aluna do

magistério e professora primária e conhecia as metodologias, colocava-as em práti-

ca, mas não dominava, em profundidade, suas origens, sua historicidade, seu signi-

ficado, em suas complexas redes de relações sociais, políticas, econômicas. Embora

tenhamos estudado os princípios de Escola Nova no Curso Normal, tal como vai

aparecer nas memórias das entrevistadas, lembrando dos estudos de Dewey,

Lourenço Filho e Florestan Fernandes, os registros mais significativos foram os refe-

rentes aos conceitos, aos princípios, ao próprio fazer pedagógico.

Apesar disso, posso fazer, em parte, também minha, a afirmação de Magda

Soares (1991) "que sabia eu, então, de ideologia liberal, de pragmatismo, de escola

nova? Então, eu só sabia do meu fascínio e entusiasmo por aquela escola".

Guacira Louro (1986), tratando sobre a história da educação no Rio Grande

do Sul, aponta a Escola Normal do Instituto de Educação de Porto Alegre como um

dos principais focos inovadores da Escola Nova, mencionando que se falava de qua-

lidade de ensino e isto significava reformular currículos e métodos, qualificar profes-

sores e equipar a escola com recursos e laboratórios, trazendo os princípios dessa

tendência pedagógica; fazendo também uma avaliação crítica desse momento na

educação e na sociedade, diz:

Acentua-se que a educação deveria ser democrática – a isso se pro-põe a Escola Nova. Mas, como afirma Saviani, este foi um dos mo-mentos em que, contrariamente, a escola foi menos democrática. E Saviani demonstra esta tese ao lembrar que na fase anterior (da es-cola tradicional) havia uma preocupação em entender a escola como um instrumento de participação política (a escola para todos, a alfa-betização); agora não, a preocupação passa a ser a qualidade, os métodos, as técnicas, e isso, na prática, pelas condições objetivas existentes, acabou significando o aprimoramento do ensino das elites (que já traziam uma bagagem cultural para a escola, e podiam estu-dar em colégios melhor equipados) e um rebaixamento do ensino da maioria da população. Então, em uma nova sociedade em que se de-finiam mais as diferenças de classe, essa proposta educacional dita

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democrática acabava privilegiando os já dominantes. E essa era a tendência educacional do momento, que se expandiria ainda muito e que sob formas transformadas pode-se dizer que se mantém ainda hoje.

(Louro, 1986, p. 19)

Reflexões críticas como essas contribuíram e contribuem para que possa o-

lhar com menos ingenuidade para o vivido, incrustando-o naquilo que é da ordem do

político, do social, sem perder de vista o que se extraiu e ainda se pode extrair como

positividade para estudos sobre educação. Sobre isso encontro significativo apoio na

leitura que faço de Jaume Martinez Bonafé (1999), professor da Universidade de Va-

lência, Espanha. Em um capítulo de sua obra, intitulado ”Os esquecidos, memórias

de uma pedagogia divergente”, trata da importância de recuperar o passado para fa-

lar das ausências e dos silêncios do presente, inclusive para falar de nós mesmos e

de nossos esquecimentos intencionais. Sobre isto vale ressaltar textualmente o que

diz o autor:

Parto da hipótese de que em muitas ordens de nossa atual vida soci-al se está produzindo uma perda de memória histórica, uma espécie de enfermidade de Alzheimer que nos deixa socialmente imobiliza-dos para intervir ante as contradições do presente. E a escola como subsistema do sistema social não está alheia a esse processo de desmemorialização.

(Bonafé, 1999, p. 155)

Continuando suas reflexões questiona o autor: "Que se exclui e por que, a

quem interessa a perda de memória de um importante fragmento pedagógico?" (p.

156).

No desenvolvimento de seu texto, que se refere ao estado espanhol e seu

contexto social, político e econômico, Jaume Bonafé vai tratar da forma tardia como

lá chegaram as reformas educacionais e de como, num primeiro momento, se fize-

ram necessárias leituras clandestinas de textos como: A escola moderna de Ferrer y

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Guàrdia e Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire. E assim, gradativamente, os

profissionais foram se apropriando de publicações ligadas ao movimento da Escola

Nova - Dewey, Kilpatrik, dentre outros.

É pela década de 70, que se vai gestar o modelo escolar democrático que as

forças sociais progressistas queriam ver realizado, uma vez desaparecida a ditadura

franquista.

Recuperando, ao longo de sua exposição, o movimento escolanovista e colo-

cando-o dentre as idéias que vamos perdendo ao longo do caminho, o autor faz as

críticas que considera pertinentes e conclui dizendo:

Finalmente quero recordar que estas pedagogias forjaram ilusões de mudanças educacionais nos momentos de transição para a demo-cracia no estado espanhol. No entanto, não parece que as recentes reformas institucionais tenham recorrido à velha memória. Não é um problema de nostalgia; é simplesmente a denúncia de um processo de desmemorialização que esquece as raízes que vêm construindo grande parte da pedagogia inovadora de nosso tempo.

(Bonafé, 1999, p. 176)

As idéias de Jaume Bonafé, aqui expostas, são, para mim, duplamente esti-

muladoras - pelo fato de tratarem da perda das memórias e da necessidade de re-

cuperá-las e pela forma como trata do movimento escolanovista e de seus

representantes - trazendo a importância que o escolanovismo tem ainda hoje para a

educação. Já expus meu posicionamento sobre este tema e compartilho dessas

idéias.

Em tempos de professora de escola primária do Instituto de Educação, vivía-

mos sob orientações escolanovistas e tínhamos a prática constante de sessões de

estudos não necessariamente escolanovistas, mas importantes como sinalizadores

de mudanças na educação. Dentre outros, lembro-me de Freinet, leituras das obras

de Piaget que começou pelo livro “Seis Estudos de Psicologia”, além das aproxima-

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ções com a "Matemática Moderna". Estávamos impregnadas dos princípios da esco-

la ativa, das idéias de ensino globalizado, das crianças como centro do processo, da

motivação como mola mestra para despertar o interesse da criança e assim Unida-

des de Trabalho, Centros de Interesse, Metodologias de Projetos constituíram-se

como ações pedagógicas nas salas de aulas concebidas como laboratórios de práti-

ca das alunas do Curso Normal.

Maria Luisa, ao relembrar as vivências escolanovistas no IE, vai fazendo um

apanhado histórico desse movimento inovador, relacionando-o com as práticas da

escola.

A partir de 1936-1937 o movimento da Escola Nova começou a fundamen-tar a educação e novos valores como liberdade, estudos concretos, autonomia, a-tividades dos alunos (engajamento). Esse movimento introduz-se no Brasil, vindo dos EUA, através do pensador Dewey, além do Claparède (que era Francês), en-tre outros. Eram métodos de ensino que expressavam projetos, por exemplo, o de uma feira: daí, se visitava uma feira e, após, era organizada uma feira em sala de aula. Esse movimento vinha em contraposição à escola tradicional que era repres-siva, aplicava muitos castigos e o método de ensino era o de decorar, fazer có-pias. No Brasil, esse movimento foi introduzido por Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, Anísio Teixeira, que divulgavam (preconizavam) de norte a sul, i-niciando-se pelas diretoras das escolas. Houve estudos e preparação para imple-mentar esses ideais. A diretora Olga Acauan fez cursos no Uruguai (em Montevidéu) e em Minas Gerais (em Belo Horizonte), que foi um dos estados pio-neiros nesse movimento, para “aprender” os conceitos da Escola Nova. Houve es-tudos de psicologia com a Helena Antipof entre outras, isso na década de 40. Após a segunda Guerra Mundial, com a vitória dos EUA, esse movimento expan-diu-se nas escolas públicas, tornando-as muito valorizadas, a ponto de ser difícil conseguir uma vaga. Eu peguei esse início, como professora primária, de pôr em prática esses ideais em sala de aula, foi uma das primeiras turmas, e isso só pôde acontecer, porque havia o apoio total do governo, através do Ministério da Edu-cação, com verbas e materiais em abundância. Os professores tinham parte da carga horária reservada para que estudassem essas novas técnicas, para apren-dê-las e colocá-las em prática. Além desses estudos, fazíamos duas reuniões por semana durante toda a tarde, também para estudar esses teóricos, inclusive com a participação da diretora, a fim de alcançar a excelência. Muitos desses estudos

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eram feitos em inglês e para isso solicitava-se que estudássemos uma língua es-trangeira, em especial o inglês. Nessa época, para ser professora do IE, era pre-ciso se destacar, principalmente nesses novos ideais, pois os professores eram escolhidos por indicação.

Essa é uma importante contribuição de uma professora do IE que viveu as

transformações pedagógicas oriundas das tendências da Escola Nova e que tem re-

gistrado, em sua memória, o modo como as coisas se processavam tanto no interior

da escola, quanto para fora, no seu caráter mais abrangente.

Grandes transformações vão ocorrer nessas práticas, quando uma nova con-

cepção toma corpo no âmbito educacional - as concepções tecnicistas de educação.

A grande pedra de toque, conforme Niskier (1975), da mudança, é a Lei

5692/71 que sem ter tido a grande discussão de 15 anos da LDB anterior (Lei 4024),

mas fruto de uma série de consultas e reuniões promovidas pelo MEC, no contexto

do golpe militar de 1964, sob o comando do Ministro Jarbas Passarinho, vai sendo

aplicado gradativamente. Segundo a concepção do autor, a implementação dessa lei

estaria oferecendo à rede de escolas, uma chance de participação concreta no

grande projeto nacional de desenvolvimento e a escola, que antes não formava para

nada (na visão da lei), agora se vincularia aos objetivos mais imediatos do mercado

de trabalho.

Não me detive a analisar, aprofundar, neste momento, o que afirma Arnaldo

Niskier, nem o que dizem outros estudos sobre a chamada visão tecnicista de edu-

cação, mas apenas trago, pelas minhas memórias, como foi vivida esta mudança no

Instituto de Educação.

Por ocasião da entrada do tecnicismo, fomos chamadas a participar do que

era considerado um “grande processo de mudança”, começando, então, uma mara-

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tona por muitos cursos que eram chamados de reciclagem. Algumas colegas resisti-

ram – eram chamadas de retrógradas, reacionárias, tradicionais.

Consideramos, no contexto do IE, por algum tempo, uma renovação, um

avanço, até porque não questionávamos, não estudávamos a origem dos processos

discursivos, nem o próprio processo que trazia a chamada mudança. Trabalhávamos

com os efeitos de sentidos produzidos por outros e nos jogávamos no trabalho. Pre-

cisávamos ser modernas, atualizadas, éramos professoras do Instituto de Educação

e nos rendíamos a uma proposta de educação que nos vinha por processos de for-

mação das Universidades, ou mais precisamente, da Faculdade de Educação da

UFRGS que organizava e ministrava os cursos de reciclagem para professoras das

escolas estaduais em Porto Alegre.

Produzem-se outros múltiplos sentidos que não os esperados e, cada vez

mais acredito que não há tendência pedagógica que se instale de forma homogênea

nos diferentes espaços sociais, regionais, culturais ou mesmo no interior de uma ins-

tituição (lembro-me de colegas no próprio IE que se mantinham à margem das ten-

dências – escolanovista, tecnicista - e seguiam no seu modelo de “escola

tradicional”, apesar de mostrarem adereços de “modernas.” Levou algum tempo para

despertarmos do sonho da grande transformação.

Por esta época, cursei Letras na PUC e aprendi com maestria a formular obje-

tivos – os chamados operacionais, a amarrá-los no processo avaliativo – critérios de

avaliação e elaboração de provas. O processo de ensino e de aprendizagem, que

agora dava lugar aos multimeios, já não interessava. O ensino, individualizado,

atendendo ao ritmo, às diferenças individuais, constituía-se em palavras de ordem. A

recitação dos “mantras”: o “aluno deverá ser capaz de”, “será satisfatório se”; e a

pseudo garantia da aprendizagem pelas máquinas de ensinar, pelas fichas didáticas

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e estudo dirigido, dentre outros modos que se orientavam por propostas individuali-

zadoras do ensino, constituíam as novas propostas.

Nossas sessões de estudo que se realizavam aos sábados no IE, em que

organizávamos seminários, discutíamos leituras ou participávamos de palestras se

transformaram, por esses tempos, em aprender a planejar, empregando os verbos

corretos na formulação de objetivos e critérios de avaliação.

Durante alguns encontros, gastamos nosso tempo na leitura e discussão de

um manual que nos ensinava a usar o livro didático, sob as orientações de uma

coordenadora pedagógica que não emergira do grupo como era prática de outros

tempos. Começou aí uma desconfiança de que vivíamos um desmoronar de tudo

que havíamos construído naquela escola, desde o tempo em que tínhamos sido alu-

nas até todos os anos vividos como professoras.

Instalava-se o autoritarismo, a exigência de que cumpríssemos regras de enfi-

leirar os alunos várias vezes ao dia – entradas, saídas, merenda, pátio – coisas que

já havíamos superado, buscando outras formas de transitar com os alunos de ma-

neira tranqüila, organizando pequenos grupos, promovendo um andar pela escola

como se anda pela vida. Precisavam, as crianças, agora, esperar no pátio, enfileirar-

se à moda militar, tomar distância, às vezes, marchar, colocar os braços para trás,

olhar a nuca do companheiro a sua frente. É com a revolução de 1964 e mais forte-

mente com a implantação da Lei 5692/71 que começa a derrocada do IE e, conse-

quentemente, da Escola pública.

Por esse tempo, começam a chegar à escola novas professoras, não mais

convidadas, passando por provas, entrevistas, mas “indicadas”. Começa a descarac-

terizar-se o IE ou a Escola Primária do Instituto de Educação.

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Remetendo-me às transformações que foram ocorrendo no Instituto de Edu-

cação, pelas vias não lineares da memória, estou também andando pela história da

educação.

Paulo Ghiraldelli Júnior (1990) define história, tanto referindo-se aos proces-

sos de existência e vida dos homens no tempo, como ao estudo científico, à pesqui-

sa e ao relato estruturado desses processos humanos e dá ao termo historiografia o

sentido de discurso sobre a história. A história da educação, por sua vez, carrega o

duplo sentido da palavra história. Pode-se dizer também que a pedagogia – a teoria

da educação não se desliga da própria educação o que permite entender a mesma

como história da educação e da pedagogia.

Assim, desde essa visão, estou tratando da história da pedagogia, mas procu-

rando retirá-la do seu lugar implicado numa fria citação de fatos, para mesclá-la ao

modo como foi vivida em espaços escolares e os sentimentos que suscita transfor-

mando o que é apenas registro, em produção de sentido.

Por esses translados, chego, finalmente, ao Instituto de Educação, para olhá-lo mais

de perto e tratar do vivido.

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5- Recontando histórias e a história: o IE produzindo os cenários, constituindo

as vidas

Está lá, emoldurada pelas esguias palmeiras da avenida e pe-lo verde do parque em seus diversos matizes, a imponente constru-ção em arquitetura neo-clássica que guarda, em suas paredes centenárias, os sonhos iluministas - escola que por longo tempo foi referência na educação [...]

Hildair Câmera35

35 Hildair Câmera foi professora da Educação Infantil no IE, acompanhou de perto meu trabalho e, em algumas falas espontâneas, lembra o modo como se referira ao IE em um texto que já escreveu, mas que não está publi-cado.

1- Instituto de Educação General Flores da Cunha, década de 60

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5.1- Um pouco de história: com a palavra Dona Mary

Professora Mary Acauan Titoff escreveu por ocasião dos 103 anos do IE, no

Correio do Povo de 7 de abril de 1972, um texto em que o que realmente deseja é

situar o Instituto de Educação General Flores da Cunha, a que chama de “minha

escola”, na bela história do progresso e do desenvolvimento cultural de Porto Alegre.

O texto de Mary A. T. introduz este capítulo para contar um pouco da história

do IE. Dona Mary, como era chamada por nós, vai colocando no seu texto muitos

dos matizes que estão constituindo o presente estudo.

Vai aparecendo o encantamento com a escola, com a cidade, a fundação da

escola mescla-se na da cidade e vai falando do “monumento arquitetônico” em que

pulsa a vida da escola, e de nomes ilustres que por ela passaram.

Especialmente destaco algumas passagens:

[...] todas as escolas tiveram sua origem em sementes saídas do rico celeiro que é o IE. Figuras de professores e alunos que estão imortalizados em monumentos históricos, ou como patronos de ruas, de logradouros e de escoIas[...]

Após mencionar nomes ilustres, escreve:

Quantos mais poderiam com seus nomes, humildes ou ilustres, lembrar a história da Educação no capítulo de Porto Alegre. O pro-gresso da cidade, com sua projeção educacional, tem suas raízes no IE.

Escolhi este texto, eu o li tantas vezes e tantas que decidi usá-lo na íntegra,

porque, de certa forma, foi isso também que realizei – conto a história da educação,

no IE e a sua relação com a cidade.

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Não sei o que seriam nomes humildes – todos os citados podem ser ilustres e

humildes a um só tempo. São ilustres - por sua própria vida, por suas memórias, pe-

lo significado dessas vidas; humildes - pela disponibilidade de contá-la, de autonar-

rar-se, despojados de vestes de poder ou apenas constituindo-se como narradores

ou narradoras, colocando seu tempo e sua energia à disposição da produção de al-

gum saber.

Referindo-se aos 200 anos da fundação de Porto Alegre e aos 103 anos do

IE, entrelaça a cidade e a escola, lembrando que desenvolveu, com suas alunas do

3º ano do ginásio, um laborioso trabalho de pesquisa de Jerônimo de Ornelas a Lou-

reiro da Silva. Seu esforço e de suas alunas, nesse sentido, teria valido a pena, por-

quanto:

É um motivo de alegria imaginar que existe hoje um grupo de homens e mulheres maduros que, talvez, tenham aprendido comigo a conhecer e a amar sua cidade.

No mesmo texto, prossegue:

O que desejo, realmente, é situar o Instituto de Educação General Flores da Cunha - a minha Escola - na bela história do progresso e do desenvolvimento cultural de Porto Alegre.

Eis o texto que fala por si.

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2- Jornal Correio do Povo, 05 de abril de 1972.

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As palavras de Dona Mary nos possibilitam pensar numa “relação amorosa”

com a cidade, não no sentido de percorrê-la, de revivê-la no exterior da escola, mas

no sentido de pesquisar, investigar a cidade, estabelecendo já, aí, um aprender a ci-

dade e uma reciprocidade pela via do estudo e da pesquisa.

As informações podem ter vindo de multiplas fontes, mas isso se transforma

em conhecimento que pode ser devolvido à cidade, a outros alunos, a outras alunas

a outras gerações.

Essa escola, da qual nos aproximamos mais agora, para tratar de suas espe-

cificidades, caracteriza-se como uma instituição feminina.

5.2- Algumas palavras sobre uma escola para mulheres

A Escola Normal não nasce feminina. É uma escola mista pelo decreto de sua

criação. No entanto, segundo Kraemer (1969)36, já em 1878, a administração da

Província começa a manifestar-se, através de documentos escritos, pela necessida-

de de que homens e mulheres não estudem juntos na mesma escola. Aparecem ex-

pressões como “estão geralmente reconhecidas a superioridade da mulher para

ministrar a instrução elementar ao aluno de tenra idade”. No mesmo texto, aparecem

serias apreensões pelas desagregadoras conseqüências que se poderiam originar

da promiscuidade e constante contato de jovens de dois sexos nas aulas do estabe-

lecimento, onde seria impossível uma completa vigilância.

36 Kraemer Neto refere-se ao relatório do desembargador Francisco de Faria Lemos, passando a administração da Província ao Dr. João Chaves Campelo, segundo vice.

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Alguns excertos, na obra anteriormente referida, nos levam ao processo de

transição da escola mista para não-mista.

[...] uma das reformas mais imperiosas que exige a Escola Normal é a da proscrição do ensino misto. [...] as nossas condições físicas e morais não nos permitem permanecer nesse seleiro. (p. 213)

A experiência veio demonstrar aqui, como antes aconteceu noutras províncias

do Império, para cuja legislação fora também importada aquela peregrina prática,

que as nossas condições físicas e morais não nos permitem persistir nesse sistema,

que, aliás, depois de ter angariado grande proselitismo, começa de ser condenado

ainda nos países onde teve entusiástica voga e prometia magníficos resultados.

No sentido indicado, pediu providências a esta Presidência, o Diretor da Esco-

la Normal, manifestando sérias apreensões sobre desagradáveis conseqüências que

se podem originar da promiscuidade e constante contato de jovens de dois sexos

nas aulas do estabelecimento, onde é impossível exercer-se acurada vigilância.

A vigilância, o controle da sexualidade, que impõe separação entre meninos e

meninas, entre homens e mulheres está no cerne das proliferações da escola só pa-

ra mulheres. Assim, como, a idéia de vocação feminina para o magistério, que atribui

aos dotes da mulher, a sua capacidade de ser mãe de doar-se.

É nessa perspectiva, que se instala, desde o império e perdura no país, e pe-

los fragores da republica a Escola Normal feminina e o magistério como profissão de

mulheres.

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Ser aluna normalista do IE, nos tempos em que estudo essa escola, era ser

com certeza “mulher”. E uma escola para mulheres não estava ali por acaso. Ela se

produz numa proposta datada, já tendo sido mista e tendo deixado de sê-lo.37

Sendo assim, seu currículo não estava isento do preparar para o lar, para ser

mãe, o que era ligado ao ser professora. Como essa é uma temática largamente es-

tudado em outros trabalhos, em especial, nos de Guacira Louro sobre os quais já me

referi, estou apenas tangenciando a produção dessa subjetividade de “mulher-

professora”. Não é esta uma tese que trata das questões de gênero, sexualidade,

não está na vertente dos estudos culturais, mas as narrativas, os textos lidos me im-

põem que aborde de alguma maneira essas questões.

Tais questões de gênero relacionadas a esse ser “mulher-professora” estão

inscritas nas falas de Maria Helena, quando menciona sua história escolar e fala do

destino dado às filhas mulheres.

Iniciei meu curso Primário, como era chamado o Ensino de 1º Grau, na épo-ca, no Instituto Nossa Senhora Medianeira, “colégio de freiras”, religioso, só pa-ra meninas e que funcionava ao lado da Igreja São José. Do outro lado, funcionava o Colégio Roque Gonzalez, de “padres”, só para meninos e onde estu-davam os meus irmãos. [...] Meu pai era orgulhoso com os filhos que se destaca-vam, mas já tinha destino para as filhas mulheres: serem professoras como a mãe dele. Quando uma de minhas irmãs não quis entrar no Curso Normal, ele disse: então vai para a cozinha com tua mãe. Ela trabalhava em casa como doceira.

As atividades de economia doméstica que se traduziam em “educação para o

lar” estavam bem presentes no currículo do Curso Normal, como se comprova na fa-

la de Neusa.

37 Essa “escola para mulheres”, abriu-se para o “masculino” e um aluno, Odilon, fez parte da nossa turma, mes-mo assim, a escola continua sendo feminina.

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Me lembro que no currículo do Normal havia uma disciplina de educação doméstica e a professora nos deu receitas para gente fazer bolo. Na minha ex-periência de vida, foi a primeira vez que eu realmente fiz um bolo sozinha, foi uma glória fazer a tal de torta de maçã e a de banana, que a gente aprendeu, foi um sucesso na família e continua sendo até hoje. Eu até organizei meu primeiro caderno de receitas. Assim, já se via que, além da formação de profissional, havia outros conteúdos que se vinculavam ao padrão de formação da mulher da época, a questão da economia doméstica. (Neusa)

A vigilância com relação aos namoros está presente na fala de Neusa:

Eu acho que ... comecei em março de 57, foi o ano em que tive o meu pri-meiro namorado, primeiro e único, e vivi aquelas questões de o Cláudio vir me buscar na escola e não poder ficar na frente do IE me esperando aquela questão moral, aquela coisa de namoro, a questão da sexualidade [...]

Essa “questão da sexualidade”, a que se refere Neusa, acontecia de forma

velada, mas manifestava-se num movimento de manter, à distância, os namorados –

tanto à distância da escola, quanto da namorada. As alunas eram chamadas para

uma conversa na sala da direção caso fossem vistas, à frente da escola, com muita

“proximidade” de seus namorados.

Havia também cuidados com os filmes a que não deveríamos assistir, mas

abordo melhor esse tema no capítulo sobre pedagogias urbanas.

Para continuar tratando das especificidades que marcaram esta escola,

vamos adentrá-la, por sua escadaria, passando por entre suas colunas imponentes.

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5.3- Laço no peito, prega na saia: uma instituição imponente

Trago o Chile tão dentro de mim que tenho a impressão de conhecê-lo pelo direito e pelo avesso; mas quando escrevo sobre qualquer ou-tro lugar, tenho de estudá-lo

Isabel Allende

Essa é uma passagem de “Meu país inventado” livro em que Isabel Allende

revive todos os seus sentimentos para recriar duas histórias entrelaçadas: a de seu

país e a sua, numa espécie de confissão autobiográfica.

Li essa obra, dentre outras, literárias, que tratavam de memórias, porque sen-

tia necessidade de me encontrar também com a ficção, para produzir este trabalho

teórico, acadêmico. Esse texto de Allende inspirou-me o sentimento de que também

eu, de alguma forma, trago o IE tão dentro de mim que tenho a impressão de conhe-

cê-lo pelo direito e pelo avesso, mas como estou produzindo uma tese, não poderia

dizer que não tenho de estudá-lo, isto é o que faço: estudo o IE de um tempo, tento

penetrar em sua vida pela minha própria e pelas vidas de outras pessoas sem pres-

cindir do apoio de documentos históricos.

É desse modo que conto a história do IE e, como é uma história, é recontada

de forma interessada, a partir das minhas memórias, parceiras de memórias outras.

Recontar é sempre uma descrição das ações humanas. A temporalidade não

é linear, está sujeita a assaltos, vazios, idas e vindas. Nossas memórias captam o

que nossas experiências afetivas nos permitem captar e aqui volto a Allende (2003)

quando diz que as lembranças não se organizam cronologicamente: são como fu-

maça, de tal modo, mutantes e efêmeras, que se não tratarmos de registrá-las, no

papel, desaparecerão no esquecimento.

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É, com certeza, o desejo de que o IE e a formação de professores que lá foi

vivida, em algum tempo, não desapareçam, que me moveu e me move na produção

deste estudo.

É, pois, para que as “lembranças mutantes e efêmeras” se registrem que con-

to ou reconto essa história de mãos dadas com outros recontares. Esses recontares

que vêm pelas narrativas orais ou escritas é que vão alimentando as buscas, os ras-

treamentos.

No IE, de hoje, me encontro com a “Associação de Ex-Alunos do Instituto de

Educação General Flores da Cunha”, de onde me vieram vozes, documentos que se

originam num trabalho exaustivo e apaixonado de um grupo que luta por preservar a

memória da escola ou, mais do que isso, mantê-la viva ou quem sabe, até “ressusci-

tá-la”. Esse grupo, além das reuniões sociais, ações de benemerência, produz revis-

tas, boletins informativos e possui um acervo com documentos que me foram

valiosos na recomposição histórica, visto que o arquivo do IE pouco pode me ofere-

cer.

De um feliz encontro com Valdeci Bezerra, coordenadora do Projeto Memó-

rias do IE, resultam leituras das revistas, dos boletins, além de livros, que me foram

emprestados. Em uma das revistas, “Subsídios da história Institucional”, Valdeci Be-

zerra, de um jeito afetivo, ao gosto, assim de contadora de histórias escreve o texto

introdutório da obra.38

Era uma vez uma escola de formação de educadores, criada em dis-tante Província ao sul de um reino incipiente, onde imperava Pedro II, que dizia, se não fosse Rei, queria ser professor. Pois essa escola instruiu, ensinou, educou, e formou milhares de alunos e alunas, ho-mens e mulheres em nível fundamental, em nível médio e pós-

38 Revista: subsídios da história institucional, n.º 3, junho de 2001. Publicação da Associação de Ex-Alunos do Instituto de Educação General Flores da Cunha de Porto Alegre – RS. Esse trabalho compõe o “Projeto Memó-ria” que vem, através de pesquisas de grupo, resgatando a memória da escola.

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segundo grau, desde então, contribuintes qualificados do desenvol-vimento sócio-educativo e cultural da então Província de São Pedro do Rio Grande do Sul contemporâneo.

(Bezerra, 2001, p.7)

É também, desse modo, não desprovido de um certo apaixonamento, que

tramo os fios das narrativas, amalgamando objetividades e subjetividades. As objeti-

vidades, busco-as nos documentos, do mesmo modo que o faz o grupo de ex- alu-

nas, posto que as narrativas, minhas e de outras pessoas, vão se colorindo nos

matizes subjetivos da memória, embora possam também matizar-se pelas cores das

objetividades.

Tão fascinante foi, para mim, registrar fatos de nossas memórias, quanto en-

contrar essas mesmas memórias em documentos escritos: livros, recortes que têm

jeito, cheiro de guardados históricos. Esses “guardados” que ressuscitam lembran-

ças ao olhar, ao tato, ao olfato, relatam e revivem comigo, parte da história do velho

IE, sem perder de vista as pegadas da história do ensino, da educação neste país,

neste estado, nesta cidade.

Este não perder de vista as pegadas da história pode significar um voltar no

tempo, caminhar para o que era antes, bem antes nesse IE tão cantado em prosa e

versos, hinos, tão vivido e revivido nos simbolismos. O tempo que ficou para trás, e

que é o hoje, o ontem, já que se presentifica no que foi produzindo, transformando.

Não há começos absolutos, totalmente datados, há que se eleger por onde começar

e, assim mesmo, como já mencionei outras vezes, andando para frente e para trás.

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Entre orgulhosa e atemorizada, me vejo

como ginasiana no Instituto de Educação - as

colunas são imponentes, o prédio é imponente.

Sobre a "imponência" dos prédios, encon-

tro em Trindade (2001) referência a essas cons-

truções. A autora, apoiada em fontes de

pesquisa, nos aponta que as escolas improvisa-

das seriam substituídas por outras criadas se-

gundo as diretrizes de uma nova combinação de

discursos: o político, o pedagógico, o higiênico e

o dos profissionais da construção, engenheiros e arquitetos. Os prédios construídos

para o funcionamento dessas escolas, atenderiam a princípios de higiene de modo a

proporcionar ambientes saudáveis a crianças e adolescentes. Além disso, a criação,

organização e distribuição dos espaços dar-se-ia, segundo as exigências da educa-

ção moderna, sendo imprescindíveis alguns compartimentos: salas de aula, tantas

quanto os professores da escola, salas de desenho, sala de trabalhos manuais, sala

de museu e biblioteca, vestiário, refeitório, gabinete do professor ou diretor da esco-

la, gabinete médico escolar, sanitário, devendo dispor ainda de um jardim e de um

pátio coberto.

Clarice Nunes (1992) também trata da arquitetura dos prédios referindo-se a

cidade do Rio de Janeiro:

Essas edificações escolares podem ser interpretadas como o gesto intencional que pretendeu criar novos comportamentos e sentimentos diante da escola, expandindo-se para fora e além dela. A arquitetura escolar era uma evidência da inventividade que se inscrevia no mo-vimento urbano. Na gestão de Anísio, essa arquitetura serviu como palco para a expansão regulada das atividades corporais, incorpo-rando à escola, além das salas de aula, os anfiteatros, a biblioteca,

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3- Foto das colunas do Instituto de Educação.

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as salas de leitura, o refeitório os jardins, as "áreas livres". Na leitura de quem freqüentou essas instalações escolares, particularmente crianças mais pobres, a existência desses locais funcionou não como um código de confinamentos, mas de reapropriação de espaços de sociabilidade crescentemente sonegados às classes trabalhadoras pelas reformas urbanas que lhes empurravam para os morros ou à periferia da cidade. (p. 173)

Também, para mim, estar dentro do IE não funcionou como código de confi-

namento, mas como de sociabilidade, de expansão de vida, de inserção num outro

universo simbólico, com outras formas de relação, com outros grupos sociais, com

os espaços urbanos, que me introduziram na relação com a cidade.

Cynthia Veiga (2000) refere-se à monumentalidade dos prédios afirmando

que essa representava a sua solidez e sobriedade e que eram, em geral, construí-

dos próximos às zonas centrais, destacando-se, ainda, a busca de racionalidade e

funcionalidade nas suas edificações para comungar com os padrões higiênicos. Em

várias cidades brasileiras, a construção de edifícios escolares foi um investimento

que, obviamente, atendia aos mesmos princípios das reformas urbanas na perspec-

tiva da concepção do espaço e do meio como agentes educadores e formadores de

um novo cidadão.

A combinação higiene, civilidade e estética apresenta-se como uma forma ex-

terior, permanente, mas também vigilante da educação das crianças. Sobre isso,

Veiga cita uma passagem de Fernando de Azevedo:

A educação estética do povo deve começar pelo próprio ambiente da escola em que, das linhas arquitetônicas à moldura dos jardins, da paisagem envolvente a decoração interior, tudo possa servir às su-gestões da ordem e da harmonia e contribuir assim para despertar e desenvolver, na idade mais acessível e plástica, o sentido da beleza e da arte (p.409)

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No entendimento desse autor, a arquitetura tradicional, basicamente o

ecletismo e o neoclassicismo que marcaram as edificações de fins do século XIX,

não se contradiz com os ideais da Escola Nova.

Do ponto de vista do interior da escola, as preocupações estéticas estavam

presentes.

Nesse aspecto a ornamentação interna é fundamental, quadros, mu-rais pintados com cores vivas, mobiliário, plantas em jarros, jardins, o cuidado com a disposição dos objetos, a arrumação das cadeiras em semicírculos, e as instalações internas da escola, como museus, bi-blioteca, pátios, auditórios são elementos para "educar esteticamen-te". Enfim, a educação para o belo exige uma atmosfera iluminada, somente num espaço que combine razão e sensibilidade é possível a consolidação das práticas pedagógicas destinadas à educação do gosto e formação do novo cidadão.

(Veiga, 2000, p. 411)

As alusões histórico-criticas aos

prédios, a sua arquitetura, sua impo-

nência, apontam para o que os produ-

ziu, já as memórias estão na urdidura

do vivido.

Assim, como demonstra a histó-

ria, era o prédio do IE, sua estrutura fí-

sica, suas instalações internas:

laboratórios, salas amplas, arejadas, gabinetes, espaço do Jardim de Infância, da

Creche, pátio aberto, pátio coberto, pavilhão de educação física, um suntuoso

tório, sala de dança, sala dos professores, das agremiações de alunas, dentre ou-

tras.

4- Vista aérea do Instituto de Educação e do Parque Farroupilha na década de 30.

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Obra do arquiteto Fernando Corona39, o prédio

foi construído em 364 dias, por iniciativa e com verba

do Governo de Flores da Cunha, inspirada no templo

da deusa grega Ártemis.

Em 1935, 100 anos após o termino da Revolu-

ção Farroupilha, foi inaugurado o suntuoso prédio em

estilo neoclássico. Essa monumentalidade, tanto do prédio, quanto do que se consti-

tuía seu interior, coloca a escola no mesmo nível de outras instituições como a igre-

ja, o teatro, o palácio do governo e as relações, que as pessoas estabelecem com a

cidade, se dão atravessadas por todo esse caráter de imponência.

Em sua inauguração, o prédio do IE abrigou uma exposição relativa ao cente-

nário da Revolução. É também, nessa ocasião, que o Parque da Redenção, área

onde está situado o IE, passou a chamar-se Parque Farroupilha40.

Essa instituição, assim construída e inaugurada, instaura-se como um espaço

que exala valores, tradição, com painéis de fotos das formaturas, que preservavam a

memória visual dos alunos e das alunas que se tornaram professores e professoras,

com esculturas, bustos em bronze, tornando, também presentes, aqueles ou aque-

las que foram o passado e que, de alguma forma, tiveram relação com a escola, seja

porque por ali passaram como visitantes ilustres, ou porque foram mestres, fundado-

res, figuras marcantes na educação, na cidade, no estado, no país.

Assim era o IE que conheci e vivi desde o primeiro momento, quando subi as

escadas e, por entre as colunas, pisei seu chão marcado por muitos pés de história,

39 Fernando Corona (1895-1979), arquiteto autodidata, escultor, professor da faculdade de arquitetura da UFRGS, escritor e um dos promotores do ensino de arquitetura no Estado. Além de ter projetado o prédio do IE, também tem participação direta nos projetos arquitetônicos do suntuoso Palácio da Justiça, inaugurado em 1968, do majestoso prédio de estilo neoclássico (e inspiração positivista), que foi sede, desde 1932, do Banco Nacional do Comércio, Sulbrasileiro, Meridional e, por fim, Santander (hoje um dos melhores espaços culturais de Porto Alegre), entre outros. Coincidentemente, ele era natural de Santander - Espanha. 40 Informações advindas da entrevista e da leitura de textos da Maria Luisa Mascarenhas professora da Escola Normal do IE e entrevistada nesta pesquisa.

5- Templo da deusa Ártemis, em Éfeso, na Ásia Menor, a quarta maravilha!

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para prestar por duas vezes o exame de admissão ao ginásio. Reprovada na primei-

ra vez e, por fim, aprovada na segunda tentativa, com a alegria, entusiasmo, e, ao

mesmo tempo, temor, receio, timidez que vinham com o peso da vitória de ser, afi-

nal, “aluna do IE”.

Pois é, desse modo, que o IE começa a constituir a minha vida e que se vai

fazendo minha história e que eu passo também a ter existência nessa história. O

que se registra na minha memória está também nos documentos históricos e nas

lembranças das entrevistadas.

Arlette refere-se ao que o IE representava como escola padrão e expressa

seus sentimentos sobre uma certa magnitude.

Entrar nessa escola, nesse prédio imponente significava submeter-se a uma

prova de seleção, diz ainda Arlette.

Uma escola-padrão. Todo mundo queria estar no IE. Estudar lá era o máxi-mo. Eu só ouvia falar sobre isso. Embora freqüentasse essa escola desde o jar-dim, só mais tarde, quando entrei no Curso Normal, entendi o que era ser padrão. Havia uma coisa de ordem interna da escola – laboratórios com equipamentos vin-dos da França, da Alemanha, balanças de precisão, hemisférios de Magdeburgo, máquinas pneumáticas, vasos comunicantes, materiais para estudo de magnetismo. Também o sentimento passava pela magnitude do prédio com suas colunas jônicas e por um auditório imponente onde se recebiam personalidades como Heitor Villa Lobos, Madalena Tagliaferro, Henriette Morineau e tantas outras pessoas mar-cantes.

Os laboratórios de Química, Física e História Natural, aos quais Arlette se

refere, de acordo com a pesquisa de Beiser (1996), foram inaugurados 41 na

adminstração de Florinda Tubino Sampaio, nos quais os professores aplicavam o

método experimental. Os professores responsáveis pelo laboratório, nessa época,

41 Na lembrança de Eivlys Mabilde Grant ocorreu um ato de inauguração solene, com a presença do Secretário de Educação, provavelmente no ano de 1941.

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eram Ivondina Formel Farias Guimarães, Israel Berlim, Lenir Barcelos e Eivlys

Mabilde Grant, que traz as seguintes recordações:

Até então, as aulas eram expositivas. Houve uma renovação. Dona Florinda era uma pessoa evoluída, que lia muito. Os professores apresentaram o projeto e ela aprovou. Permitiu dividir as turmas pela metade. Nas aulas dadas nos laboratórios se fazia pesquisa e se usava o microscópio. Nunca uma aluna foi reprovada pelo método experimental. Todas se encantavam. Para pôr em prática o método, era preciso instalar os laboratórios. Havia, no porão da escola, materiais da frança e da Alemanha, nunca usados. Os professores temiam. Ninguém se animava a usar devido à falta de conhecimentos. Eu estudei tudo e aproveitei o material existente. (Beiser, 1996, p. 126)

Maria Helena e Neusa também recordam a importância dessa escola, o sta-

tus, juntamente com o exame de admissão:

No IE a gente tinha um “ego”, um “status”, nós todas. O Instituto signifi-cou muito para mim. Lá me realizei, me encontrei, havia mais abertura. Vim de uma família rígida, muitos irmãos. Quando eu completei o terceiro ano, fiz teste para ingressar no IE, como era exigido para quem procedia de escola particular, rodei, só minha irmã Luisa passou. Isso porque, minha madrinha, que morava co-nosco e era Inspetora Federal do MEC, (inspecionava as escolas, verificava se cumpriam os regulamentos. Ela conhecia bem as escolas) insistia com o meu pai para que fôssemos estudar em escola pública, preferencialmente no IE. Então, fui fazer o teste no Grupo Escolar Argentina, onde também não consegui ser a-provada para freqüentar o quarto ano, tendo sido obrigada a repetir o terceiro. Ao final do ano seguinte, com apoio da minha madrinha, que pagou professora particular para mim, consegui ser aprovada no exame de admissão do IE, não ten-do assim cursado a quinta série. (Maria Helena)

Ao falar sobre seu ingresso no IE, como ginasial, Neusa enfatiza o quanto foi

significativo para ela.

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Entrar no ginásio foi uma experiência fundamental. Percebi as linhas de formação (não com a nitidez que tenho agora). A escola era reconhecida social-mente. Havia alguma coisa de valorização, pairando no ar quando eu dizia que iria para o IE: Oh! Vais estudar no IE? O IE era uma escola modelo, era muito procu-rada, todo mundo queria estudar lá, independente de classe social. A gente sentia a presença de vários níveis sociais. Uma escola com uma formação ética completa! Eu gostava muito de estudar, de ir à escola, porque estudar foi sempre uma meta na minha vida. Eu tinha muita gratificação com a questão do estudo e era muito estimulada pela minha família. Meus pais fizeram de tudo. Dona Rosina, uma pro-fessora de meu Grupo Escolar e amiga de minha família, me levou para fazer a prova do exame de admissão. Eu saí do Grupo Escolar e fiz o admissão e passei. O IE representou uma mudança na minha visão de mundo quando entrei no ginásio com 11 anos.

Quando pergunto a Neusa se ela fez curso preparatório ao admissão e ela

responde:

Eu nem sabia que existia. Existia? Tu vês Ivany, como o meu mundo era distanciado do resto.

As falas mesclam lembranças de uma imponência do prédio, de sua estrutura

física, do que constituía sua organização interna, da importância de estar naquela

escola, do esforço das famílias para que suas filhas pudessem freqüentar o IE e do

próprio esforço de cada uma para lá estar. É interessante como também são men-

cionados os Grupos Escolares que freqüentamos anteriormente ao IE.

Os Grupos Escolares ocupavam um lugar de destaque no, então, Ensino Pri-

mário. Os prédios, alguns deles também imponentes, mantinham as características

preconizadas para sua instalação.

O Grupo Escolar Paula Soares, que freqüentei, era também uma instituição

imponente e, em sua estrutura e organização interna, assemelhava-se ao IE.

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Sobre esse Grupos Escolares, suas origens, prédios, encontro em Veiga

(2000) referências históricas

A proliferação de Grupos Escolares, no Brasil, também chamados palácios-escolas, deveria marcar definitivamente o fim da prática de ministrar aulas em casas de professores, tão comum nos tempos im-periais. A intenção de elevar o espírito das crianças pelo "meio esté-tico" institui no próprio edifício-escola uma função pedagógica [...] os edifícios dos primeiros grupos escolares puderam sintetizar todo o projeto político atribuído à educação popular: convencer, educar, dar-se a ver! (p. 410)

O ensino nesses Grupos Escolares seguia os padrões de exigência que os

qualificavam como “escolas fortes” e isso vai aparecer nos relatos das depoentes e

na minha própria história.

A relação entre escola pública e privada, que menciono nas minhas memórias

de aluna no início deste trabalho, reaparece nas entrevistas, na fala de Maria Hele-

na, quando refere que sua madrinha, que era inspetora federal, dizia que o ensino

da escola publica era melhor.

Também eu quando prestei exame de admissão pela primeira vez e rodei,

havia concluído a quinta série na Escola São Luís, de confissão religiosa. Precisei

cursar a “Classe Preparatória ao Exame de Admissão ao Ginásio do Grupo Escolar

Paula Soares”, para, então, ser aprovada. Já, aquelas que freqüentaram os Grupos

Escolares não necessitaram de tal preparação.

Na história de vida de Maria Luisa, o exame de admissão se fez presente nas

lembranças. Reprovação. Necessidade de professor particular. Saiu de uma escola

particular – o Sévigné – e também não foi aprovada no Exame de Admissão.

Entrei em 1931 ou 1932 para o Jardim de Infância na escola onde hoje é o Sévigné até a 5ª série. Não passei no Admissão para o IE. Então fui para o Nossa

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Senhora do Anjos. Mais tarde, com professor particular, fiz prova para o Sévig-né.

Nos entrelaçamentos de suas narrativas, a entrevistada relaciona prova de

admissão ao Ginásio com o vestibular de hoje – a relevância, o cuidado marcado pe-

lo sigilo e as trajetórias possíveis depois do ginásio.

Depois da escola primária, que poderia durar quatro, cinco ou seis anos – no IE eram cinco, vinha o Admissão que era seletivo: tinha um certo número de va-gas e muita procura. Era uma prova de conhecimentos, não bastava o boletim. Prova com muito sigilo, que nem um vestibular hoje. Fiz quatro anos de ginásio no Sévigné. O 2º ciclo era o colegial: científico ou clássico se queria Medicina, Físi-ca, Química, ia para o científico. Letras, áreas de humanas ia para o clássico. En-trei no IE, no Curso de Formação de Professores Primários.

Liba tem, em sua história de vida, uma luta contra o Exame de Admissão e

suas palavras vão ao encontro das narrativas anteriores.

O IE era muito conceituado na sua rigidez e na sua preparação para o exa-me de admissão, que era como é o vestibular. Começava-se, já no primeiro ano, pensando-se no exame de admissão. No quinto ano, como se chamava, então, con-tratavam professor particular, porque era gente de classe média alta. Quando eu fui professora de prática de estágio no IE, as nossas professoras treinavam para o admissão. As crianças dos arredores também queriam fazer admissão, queriam entrar no ginásio.

As crianças dos arredores, as das vilas populares, as que freqüentavam as

“escolas de estágio” como chamávamos, segundo Liba, nem tentavam a seleção pa-

ra o IE, mas suas famílias sonhavam com essa escola ou com outras. Liba questio-

nava esse processo excludente. Ao mesmo tempo, tentava introduzir modificações

nas práticas pedagógicas da Escola Primária, no sentido de investir num trabalho

que não se concentrasse na tarefa de preparar para o dito Exame.

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Louro (1987) faz referências a esse processo seletivo, como um momento e-

xigente e temido e traz à tona a concessão do prêmio para o primeiro lugar:

Outra atividade marcante era a concessão do prêmio “Mirian Rosem-blat” à aluna classificada em primeiro lugar no exame de admissão ao ginásio. (O prêmio fora instituído pelos pais dessa menina que fa-lecera após o exame, antes de entrar na primeira série.) Nesta sole-nidade, além da entrega de um diploma, era colocada na sala da estudante uma fotografia de Mirian. Esta foto indicava a sala de aula onde estudava a aluna primeira colocada. (p.54)

Fica bem registrado o quanto era valorizado o processo de seleção, usando-

se, inclusive, o sistema de premiação. Era preciso ser “vencedora”.

O exame de admissão está indelevelmente marcado nas nossas histórias de

alunas. Para nós, as que tivemos o privilégio de superação desse obstáculo, o pra-

zer do sucesso apagava as ranhuras do sofrimento prévio.

Então, vencida a prova, vencidas as barreiras, vem o orgulho do pertencimen-

to, o viver os simbolismos, os rituais de passagem.

No meu caso, foi com o laço azul-marinho agi-

gantado no peito, com o peso da fidelidade ao ”Código

de Honra” do Instituto de Educação que me percebi

como ginasiana. Os simbolismos, os rituais compu-

nham o quadro da tradição, dos valores. Vejamos o

que contam as memórias.

A gente vivia o orgulho de ser do IE. Quando entrava no Ginásio, o “laço” vinha numa bandeja de prata, era simbólico. O simbolismo é o que distingue o homem - um ser simbólico. (Maria Helena)

6- Ginasianas em frente ao IE: O uniforme, laço azul marinho. Da esq.para dir. e, em pé, Tere-zinha Reginatto, Ivany, Glória.. Sentadas, da esq. Para direita, Carmen Célia, Marilene, Lorecy.

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Era uma vibração vestir o uniforme do IE, era um símbolo, o que ele repre-sentava. Eu curti isso durante todo o período de minha formação, era uma vivên-cia muito pessoal, que me gratificava, me dando prazer. (Neusa)

O laço azul-marinho, um símbolo do IE, carregava a idéia de vínculo, de com-

promisso, a saia azul-marinho pregueada, a blusa branca e o “laço”. O ato simbólico

do ritual de passagem, significado pelo laço, aparece nos estudos de Louro (1987):

Fazia parte do uniforme do ginásio, um laço de seda azul-marinho que as meninas deveriam conservar rigorosamente preso à gola das blusas brancas. Esse laço era retirado solenemente pelas estudantes na cerimônia de formatura e guardado pela escola. No início do ano letivo seguinte os mesmos laços eram entregues na recepção às no-vas ginasianas, sendo que a aluna que conquistava o primeiro lugar no exame de admissão o recebia das mãos da própria diretora. Sem dúvida havia neste ritual uma idéia de vínculo (laço) e de continuida-de entre as gerações de estudantes. O laço era também um indicati-vo de uma nova etapa – já que era a única mudança no uniforme do primário para o ginásio (saia azul-marinho pregueada e blusa bran-ca). (p. 55-56)

Esse símbolo marcava também as contradições deste “ser aluna do IE”: uma

glória ao entrar, ostentar o laço, mostrar-se como vitoriosa, com aquele traço distinti-

vo. Depois, este mesmo símbolo vai se tornando marca da rebeldia, da luta nega-

ção-aceitação, pertencimento sem submissão. Isto era representado pelo ato de

“tirar o laço” para andar na rua e abrir um pouco mais a blusa, expor mais o corpo

que, durante os dias de aula, escondia-se sob o uniforme. Não era permitida a en-

trada na escola “sem o laço”, então ele não poderia ser abandonado, só temporari-

amente ocultado, para ser recolocado à porta da escola.

O desrespeito às regras tanto poderia suscitar o exercício do poder, por parte

das funcionárias que “controlavam” as alunas, quanto os gestos de solidariedade.

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Em um livro didático42, tenho alegria de me reencontrar com Jurema, funcio-

nária do IE do meu tempo de aluna e de professora. Alegre, simpática, foi por algum

tempo “inspetora de alunos”: devia controlar entradas e saídas. Eis seu depoimento:

O Instituto de Educação General Flores da Cunha foi minha casa. Lembro das gurias que me davam presentes no dia das mães. Ah! O uniforme do colégio, com lacinho e saia pregueada[...] Eu ficava na porta, cuidando das meninas; para quem chegava sem os lacinhos, eu já tinha um pra colocar na camisa branca do ginásio e outro para as normalistas. [...]entrei no colégio no dia 09 de setembro de 1959 e hoje estou aposentada.

(Jurema Farias, ex-funcionária do Instituto de Educação.)

Essas lembranças de Jurema nos reportam ao rigor, ao controle e às formas

de burlar o controle e a vigilância. A própria funcionária, num gesto da cumplicidade,

resolvia o problema dos laços ou lacinhos.

O “Código de Honra do IE43 foi outro importante sinalizador dos rituais de passagem,

seu profundo significado simbólico nos compromete para todo

o sempre com princípios da ética e da moralidade. Era o peso

da responsabilidade de pertencer à modelar escola. Nunca

mais seríamos as mesmas, após a solene leitura do código,

vestido de tanto poder simbólico. Segundo as informações de

Maria Luisa Mascarenhas, esse conjunto de princípios foi cria-

do pelo Conselho de Alunas, presidido por Ana Teresinha e

sob influência da professora conselheira Maria Pereira.

42 ZIEGUER, Lílian Mary Martins. Minha Porto Alegre: história. S. Paulo, F.D.T., 2001. Esse livro me chegou às mãos por Josele Trapp, minha ex-aluna, que, sabedora desse estudo, gentilmente me ofereceu essas informa-ções. 43 A imagem 7 registra a leitura do código por Neusa, em seu ingresso no Curso Normal. Está colocada nesta parte do trabalho, por relacionar-se aos simbolismos, rituais de passagem, tema de que estou tratando aqui.

7- Leitura do código por Neusa Armellini, em seu ingresso no Curso Normal.

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Eis seu texto.

Código de Honra do Instituto de Educação Porto Alegre – Rio Grande do Sul Adere à verdade com todas as energias do teu ser livre. Valoriza teus menores gestos e tua palavra empenhada. Sê exata no tempo sem perder a liberdade de criar, indiferente a condições temporais. Não consintas que alguém te espere em vão. Não deslembres que tudo é moral, quando há compromisso. Sê consciente de tua condição de aluna. Harmoniza tua personalidade no acorde – alegria, responsabilidade, dom de ti. Age de tal modo que seja tua presença uma festa, para o nosso Insti-tuto. Faze de tua existência uma ascensão continuada para um mundo melhor. Sê uma escalada à vontade de Deus = uníssona ao bem, ao belo, á verdade.

As “leis” do código de

honra constituíram-se num

chamado à fidelidade, ao com-

promisso com a verdade e com

a palavra empenhada. O com-

prometimento amalgamado na

autonomia e na liberdade: “ade-

re à verdade com todas as e-

nergias do teu ser livre” insere-

se no contexto de modernidade

e seus ideais.

Aderir à verdade – não

significa aderir a “uma verda-

de”, mas a comprometer-se

com a verdade como oposição 8- Foto do Código de Honra.

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a não-verdade, à mentira: dizer a verdade, ser verdadeiro. É uma obrigação com a

verdade.

Há também, no código, um forte cunho religioso, uma força dos conceitos

cristãos apontando para uma disciplina espiritual herdada do cristianismo.

Em Nadja Hermann Prestes (1996) encontro alguns subsídios, para interpre-

tação do código, nos princípios da filosofia kantiana. A autora lembra que é com

Kant que surge um sujeito plenamente responsável por si mesmo – a essência hu-

mana, enquanto liberdade e responsabilidade, está nas mãos do sujeito, assim co-

mo, toda a ação racional está orientada pela vontade, do mesmo modo que o

conhecimento e a vida prática são inseparáveis da eticidade.

Kant, ainda citado por Prestes, afirma que pela educação o homem deve ser:

a) Disciplinado. Disciplinar é tratar de impedir que a animalidade se estenda à humanidade, tanto no homem individual, como no homem social. Assim, pois, a disciplina é meramente a submissão da barbá-rie. b) Cultivado. A cultura compreende a instrução e o ensino. Propor-ciona a habilidade, que é a possessão de uma faculdade pela qual se alcançam todos os fins propostos.(...) c) É preciso se atentar para que o homem seja prudente, que se a-dapte à sociedade humana (...) Aqui corresponde uma espécie de ensino que se chama civilidade. d) Deverá ter moralização. O homem não deve ser hábil para todos os fins, senão que deve ter também um critério, com relação ao qual escolha só os bons. Esses bons fins são os que necessariamente cada um aprova e que, ao mesmo tempo, possa ser fim para todos. (1983, p. 36-38)

Esse é apenas um olhar possível para o código de honra do IE. Muitas outras

possibilidades de análise se oferecem. Aqui, interessa-me, como me proponho neste

trabalho, os efeitos produzidos e esses já estão registrados: “nunca mais seríamos

as mesmas...”.

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Também o hino do IE é um outro elemento simbólico que tem um lugar bem

marcado em nossas vidas e na história dessa escola.

Segundo Beiser (1996), o hino do Instituto de Educação, escrito em 1940,

representa um significativo elemento de época, porque revela a relevância dada ao

nacionalismo da ditadura de Vargas. No hino, as alunas do Instituto de Educação

cantam pela glória da sua escola e, simultaneamente, pela grandeza do Brasil. O

Instituto de Educação propõe-se a engrandecer a Pátria que, por sua vez, deve

sentir orgulho da escola.

Eis a letra do hino:

Juntas cantemos a nossa marcha triunfal. Eia! Marchemos a escalada do ideal. Vibra nossa alma de entusiasmo juvenil, Pela glória do Instituto, pela glória do Instituto e a grandeza do Brasil! Não recuar... Sempre avante pra vencer. O Instituto quer a Pátria engrandecer. Este Brasil a quem todos prometemos, Que há de sempre se orgulhar De ver longe, cá no sul, O IE a rebrilhar44.

De acordo com os estudos de Beiser (op. cit.), o Hino do IE foi criado,

segundo relato de íria Sampaio Guerra (1984:45), filha de Florinda, em uma reunião

das alunas do ginásio, sob a coordenação de Florinda Tubino Sampaio, que as

convidou para compor a letra. Usando a técnica de "explosão cerebral", várias idéias

surgiram e as estudantes, juntamente com a diretora, escreveram o hino. A

professora Maria de Lourdes Rangel compôs a música ao piano.

A letra desse hino é elaborada, conforme explicitou Beiser, no contexto da

ditadura Vargas e pode estar enraizada nos ideais nacionalistas da época, mas 44 Revista do Centenário do IE, 1969, p.88.

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traduz-se também como um louvor ao IE. As expressões, “pela glória do instituto” e

“de ver longe, cá no sul, o IE a rebrilhar”, soam como orgulho da escola,

apaixonamento, sentimento ufanista.

O hino do IE é parte integrante de nossas vidas, tal como expressa Maria

Helena.

Até hoje cantamos o hino do IE. A gente ainda vive o orgulho de ter sido do IE.

Ainda em Beiser, encontramos mais referências aos simbolismos.

Observamos ainda a criação de símbolos para o Instituto de Educação como outra das iniciativas de Florinda Tubino Sampaio, já que a escola, fundada em 1869, não tinha ainda qualquer forma de representação que a identificasse e a diferenciasse. Além do hino composto, foi desenhado um emblema para representar a instituição. (p. 127)

O IE, no desenho do emblema, parece estar represen-

tado por uma chama, um fogo simbólico – e, então, nosso

imaginário pode nos levar a pensar em chama, como amor pe-

la escola, como incandescência no cenário educacional como

perpetuação de idéias, de irradiação de ideais. O fogo pode

simbolizar calor, acolhida que foram marcas dessa escola.

Laço e lacinhos, código, hino, emblema, foto da primeira

colocada na sala de aula são elementos simbólicos que constituem nossas subjetivi-

dades por processos identitários e de pertencimento.

Edgar Morin (1999) dedica-se a algumas reflexões sobre simbolismos, discor-

rendo sobre as relações entre pensamento empírico-racional e pensamento simbóli-

9- Logotipo do Instituto de Educação.

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co, mitológico, mágico. Essas relações se inscrevem nas transformações históricas

desde o desenvolvimento das grandes civilizações. Mito e símbolo se atraem.

Para Morin, os signos, os símbolos45 produzem o mundo que se projeta sobre

a realidade percebida, ressuscitada, nas e pelas memórias, a representação recons-

titui, mesmo na ausência, a presença concreta dos seres, das coisas, das situações

evocadas. O símbolo comporta uma relação de identidade com o que simboliza,

suscita o sentimento da presença do que é simbolizado, concentra uma constelação

de significados e de representações ligadas por analogia e por envolvimento. Símbo-

lo e mito se atraem e uma teoria do símbolo é também uma teoria do mito

O IE é, ao mesmo tempo, um símbolo e um mito. Símbolo, desde sua mate-

rialização que se expressa no prédio, até ser a evocação da própria educação na ci-

dade, no estado. É um mito, porque contém, em si, uma carga de representações,

que se aproxima de algo que é a da ordem do mítico-sagrado, doutrinal.

Simbolismos, mitos e rituais são também constituidores dessa escola-símbolo

e o importante é que mesmo o que possa parecer o mais banal, como o uniforme,

sendo do IE, está carregado de um mundo de significações. Isso me leva a estabe-

lecer uma relação com outro uniforme.

O “guarda-pó branco46, dos Grupos Escolares, instituía-se também como um

símbolo. Era uma marca da escola primária pública, e era uma forma de identifica-

ção com a instrução pública. Lembro-me de que usávamos, nesses aventais, em-

blemas, que nos identificavam com a escola freqüentada. Poderiam tanto ser

45 Morin aponta a distinção entre símbolo e signo. Signo comportaria a distinção forte entre sua própria realidade e a realidade designada, enquanto símbolo comportaria a relação forte entre sua própria realidade e realidade designada. Ressalvo que esses são conceitos abordados em sua obra que tratam de semiótica é nesse campo que se instauram, se produzem. A obra de Piaget: A formação do símbolo na criança trata do tema. Muitos semi-oticistas desenvolveram as teorias do símbolo como Benveniste (1991). 46 O uniforme adotado pelas escolas públicas do estado, os Grupos Escolares, foi por logos anos um “avental” chamado de “guarda-pó branco” e também, um laço azul-marinho, em algumas épocas. Nas escola particular o uniforme era outro: saia azul-marinho e blusa branca.

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bordados nos bolsos, quanto ser um chamado “distintivo”, criado pela escola, para

ser preso à roupa.

Entretanto, o avental branco dos Grupos Escolares não produzia o mesmo e-

feito simbólico do uniforme do Instituto de Educação. Vestir o uniforme do IE era as-

sumir a emoção do pertencimento e o “peso da responsabilidade” que esse mesmo

pertencimento trazia consigo.

Mais do que o uniforme, o “laço” era a representação do IE, não só na sua

ausência, mas dentro de cada uma. Uniforme e laço juntos eram a escola. Nossos

corpos, assim simbolizados, eram a instituição fazendo-se corporeidade, produzindo

nossos próprios corpos como educados, nossas mentes e nossas emoções, tudo

conectado nos simbolismos que em nós se tornavam o próprio viver.

Louro (1999) faz referências a produção de corpos educados que se produzi-

am nessa “escola padrão” que certamente pretendia também formar “alunas-

padrão”.

Lembro-me de ouvir sempre a mensagem de que vestidas com o uni-forme da escola “nós éramos a escola”! Isso implicava a obrigação de manter um comportamento “adequado”, respeitoso e apropriado [...] o olhar panóptico ia muito além das fronteiras do prédio escolar. (p. 19)

Ainda no terreno dos simbolismos, e transmutada por eles, a um só tempo,

peso e orgulho, é que fui disfarçando minha pobreza com a blusa branca engomada

e a saia pregueada muito bem passada e com muito estudo, muitas madrugadas de

teoremas, tradução de Latim, Inglês, Francês. Mesmo assim, com muito exame de

segunda época: oral e escrito.

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Disfarçar a pobreza pelo cuidado com a roupa e com muito estudo relaciona-

se às questões das classes sociais47 que se interpenetravam na escola. Era consi-

derada da elite, sim, pois que selecionava pela prova e pela possibilidade ou impos-

sibilidade de acesso – o chegar até ela com as implicações de despesas –

passagens, livros, uniforme. Então, muito estudo e o desejo de superar a condição

social pela escola, aliados ao sonho, quase utópico, de chegar ao IE, alimentado pe-

la família, permitiam o ingresso das menos aquinhoadas economicamente.

Como bem se pode constatar, as questões de classe social estão inscritas

nos recortes das falas: uma das mais marcantes é a de Neusa em que ela deixa en-

trever um pouco também de sua história de vida.

O IE representou uma mudança de visão de mundo. Eu vivia assim: num bairro operário de Porto Alegre e a minha visão da cidade era a de meu próprio bairro, uma visão muito restrita de mundo, porque eu vivia, restrita ao meu bair-ro, com uma vida familiar com as dificuldades de uma classe social pobre. De re-pente, eu me vi dentro de um outro mundo, que foi a vivência no IE, que ficava lá na Osvaldo Aranha. Eu tinha que me deslocar sozinha, vivi novamente a questão de autonomia, quer dizer, meu cordão umbilical se alongou, ou começou a ser cor-tado nesse sentido. [...] eu ficava muito surpreendida com certos avanços que eu mesma estava fazendo na minha formação, que não estava mais ligada ao mesmo “tamanquinho”, porque eu ia estudar de tamanquinho, quando estava no primeiro ano do Grupo Escolar O andar de bonde já era uma diferença. Andar pelo centro da cidade também, participar das reuniões dançantes na casa de minhas colegas.

Neusa, ao mesmo tempo em que lembra as questões de diferenças sociais,

estabelece relação com as novas vivências de aproximação com a cidade. Vir para a

escola significava sair do bairro, andar de bonde, trocar tamanquinhos por sapatos.

47 Bobbio (1986) referenciando Marx diz que o conceito de formação social, entendido como a presença contem-porânea de vários modos de produção, numa mesma sociedade, num determinado momento histórico, implica uma pluralidade de classes, na qual, o antagonismo dominante se articula em vários antagonismos particulares.

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Inicia-se um alargamento de horizontes, um processo de autonomia e os primeiros

trânsitos, percursos pelas possíveis rotas educativas da cidade.

As questões de classe social aparecem com força nas falas da Neusa, são

recorrentes essas lembranças.

Quando eu me inseria, me via diferente, não era diferente claro, era dife-rente na maneira de ver as coisas. E, vivendo e convivendo com pessoas jovens da minha época, adolescentes com outras perspectivas, até de classe social, então, eu comecei a perceber estas grandes diferenças de natureza social e econômica, até para me situar naquele processo [...] Mas por trás de tudo isso havia uma coi-sa muito forte minha: desde os meus sete anos eu queria ser professora. Justa-mente pela questão social da gente, meus pais colocaram isso como uma meta importante e fizeram tudo o que puderam para que eu conseguisse acessar os melhores meios e os mais adequados de formação. Era uma coisa muito presente na família, eu tinha 4 irmãs, era uma família grande, meu pai era policial, minha mãe trabalhava como bordadeira para ajudar no sustento. Esta questão de classe social, eu tinha muito claro. Eu vivi um tipo de experiência que aconteceu durante o ginásio. O meu pai era sócio- proprietário do Grêmio Náutico União, porque ele era nadador e ajudou a fundar o União mas a gente nunca conseguiu acompanhar a vida social do Clube, justamente porque era de um outro padrão. A gente tinha clareza sobre a classe social e não tinha maiores preocupações de ascensão. Aliás não se sabia que se poderia ascender. Parece que era uma coisa inculcada: “cada um no seu lugar” Quando eu cheguei no IE, esse foi o impacto: “isso aqui é outra coisa, são outras pessoas, pensam diferente, têm experiências diferentes”. Eu fui me dando conta disso, mas eu sei que eu vivi isso, assim, com muita clareza da situação: onde é que eu estou, quem sou, qual é a origem, o que é que isso dife-rencia, era uma diversidade.

Neusa relaciona seu modo de aceitação da pobreza a sua formação espírita,

então, ela se vê diferente, “entende seu lugar”, compreende as diferenças num mo-

vimento de aceitação.

Era claro dentro de mim: eu não sou deste lugar. Esta compreensão se re-lacionava também à proposta espírita que era também de minha família. Não me revoltava ser pobre, porque era marcante esta orientação, não como uma acomo-

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dação, mas como uma compreensão” eu estou aqui por alguma razão, porque pro-vavelmente escolhi e faz parte do progresso de minha caminhada. Tudo que se abriu em minha vida foi pela educação. Meu impacto, mais tarde, foi encontrar pessoas mais pobres do que eu, quando realizei meu estágio em uma escola anexa ao IE na Chácara das Pedras. A relação era a de um modelo salvador, assistencia-lista, não era de considerar o pobre com espaço legítimo. Parece que a pobreza era vista como vergonha.

Identifico-me com as lembranças – reflexões de Neusa. Eu vivi a pobreza co-

mo vergonha. Não tinha essa formação espiritualista, para me favorecer um convício

mais amigável e menos tenso com este “ser pobre" num meio em que a pobreza era

o estranhamento.

No meu caso, a diferença social pesava. Queria esconder a pobreza. Minha

família lutava muito para que eu estudasse, mas não conseguia manter as despe-

sas, por isso, a blusa branca engomada, a saia muito bem passada para “disfarçar a

pobreza”. A lembrança dessas vivências, das estratégias de superação da pobreza,

levou-me a Paulo Freire (2003) em “Cartas à Cristina” quando trata das questões de

classe social em sua história de vida.

[...] insisto em enfatizar minha origem e a nossa posição de classe por ser fundamental para explicar as próprias “manhas” que a família criou para superar a crise [...] (p. 47)

O auxílio da “Caixa Escolar”48 resolvia parte do problema de meus pais, não o

meu. Envergonhava-me de receber a merenda, o uniforme, os sapatos, a “japona”

de inverno. Revivo cenas em que a professora Cecília, responsável pela Caixa Es-

colar, abria a porta da sala de aula e falava:

48 A Caixa Escolar tem sua origem na Constituição de 1937. “O artigo 130 estabelece: o ensino-primário é obriga-tório e gratuito. A gratuidade, porém, não exclui o dever de solidariedade dos menos para com os mais necessi-tados; assim, por ocasião da matrícula, será exigida aos que não alegarem, ou notoriamente não puderem alegar, escassez de recursos, uma contribuição módica e mensal para a Caixa Escolar.” (Guiraldelli, 1990, p. 82)

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- As alunas da “Caixa” podem vir ao Gabinete Médico, chegaram as “japonas”

ou poderia ser “os livros”, “os sapatos”. Pronto! Nesse instante seria ir e revelar a in-

digência ou esconder-se e ficar sem os preciosos auxílios materiais. Geralmente, eu

encontrava uma forma de ir ao gabinete médico na hora do recreio,

disfarçadamente.

Os sapatos, numa época, não correspondiam ao modelo usado pelas meni-

nas, que podiam comprá-los, o chamado “Oxford”. O que recebíamos era o modelo

“colegial” amarradinho. Esse era um índice de diferenciação – a classe social ou

mais precisamente, a pobreza maior estava ali registrada – no sapato.

Por exigência de minha mãe, certa vez, peguei o tal sapato. Conservei-o nu-

ma caixa e fiz uma rifa. Com o dinheiro, daí advindo, pude comprar o modelo que,

além de satisfazer minha vaidade, me igualaria, pelo menos de forma icônica, às

meninas, a quem chamávamos, então, de “ricas”. Sei hoje, no convívio que ainda

mantemos, que nem tão ricas assim, mesmo as que aqui não aparecem como en-

trevistadas, relatam, informalmente, como viviam suas dificuldades financeiras, coisa

de que eu jamais desconfiaria naquela época.

O modelo salvador, assistencialista de que fala Neusa, traz consigo uma car-

ga de humilhação ao que é pretensamente “salvo” “assistido”. Há uma nítida exposi-

ção de quem é “assistido” e que, no caso, aqui apresentado. está bem indicado na

expressão “as da caixa”.

O ato de chamar diante do grupo “as da caixa” está revestido de um certo

grau de poder de quem está,naquele momento, investido da figura de quem assiste -

o representante do assistencialismo.

Mesmo diante de tais considerações, essas reminiscências de diferenças só-

cio-econômicas contribuem para que se rompa com o mito de uma escola de elite.

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Seria talvez melhor falar-se de “elites” – das que vinham de famílias economicamen-

te mais favorecidas ou intelectualmente mais privilegiadas ou ambas as situações,

ou ainda, as que eram a elite das “estudiosas” – essas, oriundas de famílias que,

mesmo não tendo as possibilidades econômicas, visavam à ascensão social de suas

filhas, pela via da escola.

Essa convivência heterogênea, de certa forma borrava as fronteiras de clas-

ses sociais, pelo encontro de alunas mais “abastadas” e “remediadas” debaixo do

mesmo teto. A superação vinha pelo estudo e pela conquista de alguns espaços de

liderança, como relata Neusa.

Dentro de minhas memórias, eu lembro de ter exercido uma certa lideran-ça na minha turma durante os 4 anos de ginásio [...]ocupei um espaço de liderança desde cedo, na escola e fui presidente do Conselho de Alunas no Normal.[...]

Menos que “remediada”, era ser pobre. Talvez nos inseríssemos na categoria

de pobres quase remediadas, e isso seria coerente com a fala da Neusa referindo-

se às crianças das escolas de estágio.

Meu impacto foi encontrar pessoas mais pobres do que eu.

Havia modos distintos de inserir-se nos grupos e de conviver com as diferen-

ças, havia, porém, clareza de tais diferenças, como era para Neusa, mais ou menos

como “cada um sabe o seu lugar”. O que não se constata é a discriminação no inte-

rior da escola, nem dificuldades de convívio, impostos pelo grupo ou pela escola,

mas as dificuldades de inserção estão nos mecanismos simbólicos e nos sentimen-

tos de cada uma desde uma instância de menos valia instaurada pela diferença de

classe social.

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Na verdade, eu nunca soube como minha mãe não alfabetizada, vivendo lá

no morro da Cavalhada, descobriu o IE, alias nem sei mesmo como ia me trocando

de escola nos tempos do primário, ora públicas, ora particulares, visto que as parti-

culares eram pagas.

Mas, pelos entremeios dos hibridismos sociais que constituíam nossas vidas

e habitavam nossa escola, sei que dos tempos do Ginásio, de tudo ficou um pouco.

Da minha professora de Português, Nair Marques Pereira de Almeida ficou

quase tudo – com ela desenvolvi minha paixão por escrever, paixão essa que ela

própria irradiava. Líamos textos nas Antologias, líamos nos originais, os clássicos, os

modernos – não era a hora e a vez do livro didático, nem das máquinas xerográfi-

cas. Também com ela aprendi o verdadeiro significado do respeito aos alunos e às

alunas. Não foi por acaso que me tornei professora de Língua Portuguesa, mesmo

tanto tempo depois do curso ginasial.

Neusa estabelece a relação entre fazer o ginásio e chegar à escola Normal.

Eu tinha na minha cabeça que eu iria ser professora, a sensação que eu te-nho é que eu nasci com isso, tenho quase certeza que eu nasci com essa proposta. Então, o vir para o ginásio no IE, estava vinculado à Escola Normal do IE e seria um meio, eu estaria já encaminhando a concretização de meu desejo de me for-mar professora.

Esse Instituto de Educação das nossas vivências de ginasiais, na sua totali-

dade, era um ícone, um símbolo, um destaque no cenário educacional, do estado e

do país. Concluído o ginásio, o próximo passo seria a Escola Normal.

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5.4- Um salto para o sonho: a Escola Normal.

Esse IE, ícone da educação do Rio Grande do Sul nasceu para ser Escola

Normal. Tal como escreveu Valdeci Bezerra, anteriormente citada.

Permitindo-me repetir minhas próprias palavras, neste texto, é essa escola

marcada por tantos pés e tantos trajetos de história, que, em 1957 nos acolhe como

normalistas. Seus processos de formação vão produzindo as pessoas, as profissio-

nais que somos, atravessadas pelas pedagogias urbanas e pelos humanismos, ufa-

nismos, otimismos.

Direcionando o foco para o tempo da Escola Normal, continuo com a ênfase

para aquilo que a produz e os efeitos dessa produção e, mais do que isso, como

essa escola é vivida, como esses efeitos vão produzindo as memórias, nos contra-

pontos com as concepções teóricas criticamente situadas.

Nosso ingresso se dá sob a égide da Reforma da Escola Normal.

Na “Revista do Ensino“ encontro matéria em que a técnica em educação

Yandir Martins presta alguns esclarecimentos sobre a organização curricular do En-

sino Normal, prevista na Reforma de 1955. A introdução ao texto, tanto na parte em

que a revista se auto-referencia, quanto na que menciona o CPOE, vale transcrição,

pelo representativo papel que essas duas instâncias tiveram na educação do Rio

Grande do Sul.

A REVISTA DO ENSINO, na constante preocupação de atender ca-da vez mais às necessidades do magistério, auxiliando-o a manter em bases de atualização sua cultura técnico-profissional, vem de cri-ar mais uma secção que, por certo, contribuirá para melhores solu-ções do problema educativo. A REVISTA, que atendeu até agora quase que exclusivamente às necessidades do professor de nível primário, passa a apresentar artigos referentes ao Ensino Normal.

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No texto introdutório ao tema, as referências ao CPOE.

Tendo sido o Rio Grande do Sul o primeiro Estado a experienciar, no Brasil, o Sistema Departamental nas Escolas de Formação de Pro-fessôres Primários, julgamos nosso dever comunicar aos professores as perspectivas abertas nesse importante campo educativo. Estando a direção técnico-pedagógica dessa experiência entregue ao Centro de Pesquisas e Orientação Educacionais, da Secretaria de Educação e Cultura, sentimo-nos responsáveis, em grande parte, pelos resulta-dos alcançados. Embora êsses resultados não tenham, ainda, atingi-do integralmente os objetivos a que a Reforma se propõe, são, entretanto, bastante significativos, o que justifica plenamente o pros-seguimento dessa experiência e a divulgação das diretrizes que a norteiam. Com a intenção de integrar os leitores no espírito da Re-forma, estabelecida pela Lei nº. 2588, de 25/1/55, que "Organiza e Fixa as Bases do Ensino Normal no Estado", publicado nos n.ºs 31 e 32 desta Revista, apresentamos algumas das finalidades que a mesma tem em vista:

Antes de comentar sobre a reforma, achei por bem tecer algumas considera-

ções sobre a Revista do Ensino e sobre o CPOE.

A Revista do Ensino, patrocinada e editada pela Secretaria de Educação, ini-

ciou sua publicação mensal em setembro de 1939. Funcionou por muitos anos, co-

mo um meio de divulgação de leis, tendências, acontecimentos, inovações,

educacionais e assumindo um caráter até de orientação para as escolas, com o ob-

jetivo de auxiliar o professor em seu trabalho docente. (Beiser, 1996)

O CPOE - Centro de Pesquisas e Orientações Educacionais e de Execução

Especializada – teve alta representatividade na educação no estado. Foi criado em

21 de janeiro de 1929, como Secção Técnica da Diretoria Geral da Instrução-

Pública, sendo que em 1942 assume esta denominação, tendo exercido, por longa

data, um papel muito relevante no cenário educacional de nosso estado. Especial-

mente em relação ao IE, esse órgão tinha muita influência, talvez pelo trânsito de

profissionais entre essas duas instituições. Convivemos com o CPOE, tanto como

alunas da Escola Normal, quanto como professoras.

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Um histórico, anexado ao relatório datado de Abril de 1971, ajuda-me na re-

construção da história do CPOE. O referido relatório é assinado por Itália Faraco,

então diretora desse órgão e também professora do IE.

Essa Secção Técnica tinha a preocupação em dotar as escolas, não só de

Programas para o roteiro do trabalho, como de oferecer, aos professores, oportuni-

dades para bem desempenhar a tarefa educativa; além disso, tinha, nas suas ori-

gens, algumas competências técnicas: inspeção da Escola Normal, Complementar e

Elementar; inspeção médica, dentária e de educação física. A publicação da “Revis-

ta Escolar” e as relações com a Comissão de Exame de Obras Pedagógicas tam-

bém estavam a cargo dessa secção.

Para que essas competências funcionassem, criou-se um quadro funcional

composto de um Inspetor do Ensino Normal e Complementar, um Inspetor de Edu-

cação Física, dez Inspetores Técnicos de Ensino Elementar, três Inspetores de Mé-

dicos, dos quais um era o chefe, cinco Inspetores Dentários e duas Enfermeiras

Escolares.

A idéia de inspeção, muito forte nesse período, vai se perpetuar por muitos

anos, não só no âmbito desse órgão de pesquisa e orientação, que vai se transfor-

mando, mas no âmbito estadual e federal. Quando aluna do ginásio do IE, tenho

bem presente a imagem da Inspetora Ana Íris do Amaral. Uma figura marcante.

Chegava nas salas de aula, na época dos exames, e rubricava as provas. Nós, as

alunas, a víamos como linda, simpática, modelo. Era um misto de temor e orgulho

tê-la, junto a nós, rubricando as provas. Maria Helena lembra de sua madrinha que

era inspetora.

Minha madrinha era Inspetora Federal, inspecionava as escolas, verificava se cumpriam os regulamentos. Ela conhecia bem as escolas.

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Assim nasceu a secção técnica que daria origem ao CPOE, com muitos “ins-

petores”. Ao longo do tempo vai se transformar, embora não perdendo, tão cedo,

essa função inspecional, caracteriza-se, sempre como um órgão que, além de orien-

tar as escolas, dedica-se à pesquisa.

Muitas reestruturações administrativas, funcionais vão ocorrendo via leis e

decretos, na Secretaria de Educação o que também acontece com o CPOE, que, em

suas diferentes fases, foi sempre dirigido por professores e técnicos em educação

de destacado valor, projetando seus trabalhos para além das fronteiras do estado.

Em 1958 cria-se o serviço de Cinema Educativo, 1959 o Serviço de Educação

Artística, e em 1967, a Divisão de Telecomunicações Administrativa.

Alguns nomes destacaram-se na direção desse centro, como Graciema Pa-

checo, Marieta da Cunha e Silva, Alda Cardoso Kremer, Sarah Azambuja Rola,

Eloah Brodt Ribeiro, muitos deles vinculados ao IE.

Esses dados originam-se de um documento que está repleto de leis e decre-

tos, são dados frios, estatutos, embora haja entusiasmo de seus relatores.

Agora, as memórias vêm dando ao CPOE, de um tempo lembrado, matizes

semelhantes aos dados ao IE.

As Escolas Normais, como de resto todo o ensino no estado do Rio Grande

do Sul, estavam vinculadas ao CPOE - Centro de Pesquisa e Orientação Educacio-

nais: tanto quanto o IE era o CPOE um marco na educação gaúcha. Isso vem à tona

na fala de Arlette.

O IE – escola–padrão, escola de aplicação, ocupava um lugar. Era ligado ao CPOE (Centro de Pesquisas e Orientação Educacional), uma entidade de valor no cenário educacional.

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Há um trânsito entre o IE e outros órgãos educacionais como o CPOE. As

professoras de IE trabalham no CPOE e vice-versa. Neusa tem essas lembranças

de como as pessoas iam se reencontrando.

Em 68, quando me formei, na Faculdade de Educação da UFRGS, fui traba-lhar no CPOE, com a Maria Lígia. Fui membro da Equipe de Prática do Ensino e Es-tágio que dava orientação técnica para as Escolas Normais do Estado.

A seguir destaco alguns itens da Reforma do Ensino Normal, sobre o

currículo49.

1) Organização de currículos em planos integrados, o que propiciará, aos alunos, transferência de aprendizagem e, conseqüentemente, mais claro e profundo conhecimento, favorecendo não só a informa-ção como a incorporação, à personalidade, de valores e ideais edu-cativos; 2) Possibilidade de o aluno realizar-se pela escolha pessoal de seu plano de curso; 3) Aproveitamento de tempo pela recuperação de unidades, o que resultará em estímulo para o normalista; 4) Continuação da autocultura, pelo aluno, o que lhe proporcionará maior eficiência no desempenho de sua futura missão; 5) Respeito à iniciativa pessoal dos corpos docente e discente; 6) Liberdade ao professor na realização de seu trabalho, pela elabo-ração do plano de curso, tornando-o, com isso, mais responsável, a-tivando' sua capacidade criadora e dando-lhe visão mais consciente e profunda dos objetivos a que se propõe; 7) Flexibilidade, profundidade e entrosamento essencial ao serem e-laborados os planos de estudos; 8) Julgamento mais objetivo da formação integral do aluno, encarada e valorizada pela equipe de professôres; 9) Maior cuidado com a formação da personalidade do aluno; 10) Preponderância da posição do educando; 11) Orientação religiosa vivenciada através de instituições especiais; 12) Conteúdos programáticos adaptados às condições regionais e às diferenças individuais; 13) Melhor oportunidade de integração da Escola na comunidade; 14) Serviço de Orientação Educacional organizado de forma a ofere-cer maior e melhor possibilidade de conhecimento do aluno, seu a-justamento ao trabalho escolar, ao futuro exercício do magistério e ao desabrochamento de uma personalidade harmônica; 15) Concessão do diploma de professor primário somente após está-gio probatório, o que assegura melhor formação profissional.

49 Foi mantida a ortografia original dos documentos.

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Algumas disposições da reforma sobre organização departamental merecem

ser citadas.

DEPARTAMENTO DE CULTURA GERAL

A) Divisão de Filosofia

B) Divisão de Línguas e Literatura

C) Divisão de Matemática e Ciências Físico-Naturais

D) Divisão de Ciências Sociais

E) Divisão de Artes

F) Divisão de Atividades Econômicas

G) Divisão de Educação Física, Recreação e Jogos

DEPARTAMENTO DE CULTURA PROFISSIONAL

A) Divisão de Fundamentos da Educação

B) Divisão de Direção da Aprendizagem

C) Divisão de Administração de Classes e Escolas

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO RELIGIOSA

A) Divisão de Cultura Religiosa

B) Divisão de Direção da Aprendizagem em Religião

Parece-me importante apresentar alguns tópicos para tecer comentários e

instaurar relações com as memórias.

Sobre a reforma, como bem está explicitado no texto, criam-se os departa-

mentos, dentro desses, as divisões e as divisões vão se organizar por unidades.

Dentre as divisões, destaco as diretrizes programáticas para a Divisão de Filosofia.

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DEPARTAMENTO DE CULTURA GERAL DIVISÃO DE FILOSOFIA I - DIRETRIZES BÁSICAS

Número de unidades exigidos pelo Decreto 6071, de 10/5/55. Sugestões

Unidades Obrigatórias

Para unidades

Para institu-ições

Obs.

eletivas facultativas Introdução à Filosofia e à Psicologia

Problemas filo-sóficos gerais

Filosofia e Cristianismo

Clube de Fi-losofia

Problemas atuais da Psicologia

A arte e a mo-ral

Filosofia grega e Filosofia con-temporânea

O herói, o sá-bio, o artista e o santo

Laboratório de Psicologia

História da Psi-cologia

Sendo a escola primária o fundamento da educação de qualquer país, e dela dependendo o seu destino cultural e histórico, os educa-dores encarregados da formação de professôres primários devem voltar sua atenção para a preservação da unidade do pensamento brasileiro em relação aos principais problemas que afligem nossa re-alidade atual em face da situação do Brasil, em nossos dias, torna-se necessário despertar o normalista para a fôrça e a direção das ten-dências sociais e econômicas no que se refere às suas conseqüên-cias partidárias, políticas e sociais. Além de treiná-los nesta percepção das possíveis direções do pensamento, positivas ou nega-tivas, que se procuram infiltrar no seio das nossas comunidades, ele-vando-as ou desintegrando-as, devem as escolas normais prepará-los para uma atuação pronta e adequada. Considerando-se a neces-sidade de todo estudante de Psicologia conhecer as principais cor-rentes filosóficas para, no estudo das escolas psicológicas, não cair num ecletismo inconsciente e perigoso, sentimos, bem de perto, a importância da Filosofia no currículo das escolas normais. Com res-peito ao valor moral, salientamos a motivação do aluno para as in-quisições não voltadas exclusivamente para fins práticos e contingentes. "A filosofia é moralidade essencial; é inquisição hones-ta, reta, sincera, humilde, desinteressada da verdade; dedicação e renúncia, por isso, é elevação e sublimação, purificação, ascesse e liberação".

E, por fim, os objetivos...

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I - Levar à compreensão da filosofia como ciência do universal, como unificadora do saber humano. II - Despertar a sensibilidade no sentido de captar a fôrça, a dire-ção e os possíveis cursos das tendências filosóficas no domínio da li-teratura, da arte em geral, no âmbito social e industrial, sob o ponto de vista político, etc. III - Levar a uma atitude de inquietação quanto ao "status quo" para que, liberando intuições criadoras venha a ter consciência do melhor, da necessidade de dirigir-se a alguma coisa mais satisfatória do que o comum, onde o homem médio vive satisfeito. IV - Desenvolver atitudes coerentes entre convicções, atitudes e ações. Não sómente estar de posse de verdades que ultrapassem o comum e o aceito, mas estar pronto a defendê-las no embate da inte-ração social de idéias.

Alguns excertos sobre a Divisão de Filosofia, os objetivos, os subsídios para o

Plano de Curso, parecem-me interessantes como expressão dos princípios filosófi-

cos para a formação de professores da reforma de 55.

(Item 5) Substituir a atual organização do sistema seriado de discipli-nas que integram os currículos por cursos que constituam problemas a resolver e a discutir, visando situações reais de vida e que formam unidades de estudo, tanto quanto possível, independentes. [...] Sen-do presente a imaturidade que, de maneira geral, ainda caracteriza os alunos recém-ingressos nos estabelecimentos de formação de professôres primários, julgamos que, se no contacto inicial dos nor-malistas com os problemas filosóficos e psicológicos forem os mes-mos apresentados em situação de vida e, portanto, em estreita e íntima relação, os estudos serão realizados em condições não só de maior facilidade como de maior fecundidade. Além do sentido cultural e técnico, teria indubitàvelmente real importância dado a sua indis-pensável contribuição à solução de problemas filosóficos da educa-ção que, pelo conteúdo e pelo grau de generalidade, não podem ser resolvidos unicamente através dos métodos científicos.

Vale salientar o lugar que ocupam a Filosofia e a Psicologia no currículo. São

disciplinas de força no curso. A Psicologia está incluída na Divisão de Filosofia e isto

é justificado pelo fato de os objetivos estarem inter-relacionados e as soluções da-

das aos problemas filosóficos da ontologia e da gnosiologia repercutirem dentro da

Filosofia. Pode-se dizer que há um primado da Filosofia. Há a proposição de um

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“Clube de Filosofia” e de um Laboratório de Psicologia – laboratório remete a algo da

ordem do cientificismo, enquanto clube – mais leve, idéia de humanismo, do viver,

de grupo de estudos.

Convivemos muito com o Laboratório de Psicologia tanto nos tempos de alu-

nas quanto de professoras. O Laboratório se fazia muito presente na escola. Não

lembro de um Clube de Filosofia.

Destaquei alguns princípios e objetivos para um olhar mais atento.

As memórias que se expressam nas narrativas não remetem para uma idéia

mais política da escola, para um envolvimento com social. As lembranças que temos

são de uma certa “neutralidade”, de uma isenção – isso vai aparecer,mais desenvol-

vido, no capítulo dedicado às relações da escola com a cidade.

No entanto, alguns princípios e objetivos da reforma remetem ao contexto po-

lítico, aos problemas do país, chegando à idéia de “treinar” as normalistas para per-

cepção de pensamentos, de ideais, tendências, que pudessem se “infiltrar” na

comunidade, havendo até uma chamada para uma atuação pronta das alunas,

quando o “status quo” fosse ameaçado.

O que seria esse “treinar” as alunas para uma “atuação pronta” contra alguma

“infiltração” que ameaçasse o “status quo”?

Certamente não havia uma isenção política, mesmo que, nas aulas, as dis-

cussões não abordassem diretamente questões sociais e políticas. Ainda assim, as

leituras e as próprias discussões provocavam um processo de reflexão de múltiplas

ordens, incluindo o social e o político.

O currículo organizava-se com disciplinas obrigatórias e facultativas e as alu-

nas poderiam fazer seu próprio plano de estudos, por semestre, elegendo facultati-

vas e distribuindo-as no tempo. As cadeiras de Teatro e de Literatura Infantil eram

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facultativas e, do meu ponto de vista, seriam fundamentais na formação de

professoras.

O ensino de Filosofia deveria ser não apenas histórico, mas pessoal e íntimo,

e nas aulas se deveria ensinar a filosofar. O método filosófico deveria ser aquele que

incitasse a raciocinar por conta própria.

As orientações, quanto ao material didático a ser usado nas aulas, incluíam

sugestões de quadros célebres, objetos de arte, uma discoteca selecionada, objetos

simbólicos em geral, biblioteca com obras filosóficas e literárias, museu didático, jor-

nais, revistas, filmes.

Examinar a proposta de Unidades de Filosofia me leva de volta a Maria Perei-

ra, a mestra, musa, figura idealizada, mas viva em nossas memórias – suas aulas

não se resumiam à história da filosofia, mas ao “pessoal e íntimo”, um “ensinar a fi-

losofar”.

Nos encontros com a Maria Pereira, as aulas se iniciavam com leitura de tex-

tos, livro-texto, como foi o caso do Pequeno Príncipe, já imortalizado, em comentá-

rios, críticos ou apologísticos, podendo incluir, também, música, dança, obras de

arte e discussões de filmes.

Mas era, sobretudo, a figura dessa mestra, seu saber, sua relação com esse

saber, sua sensibilidade, seu modo sereno, seguro e irreverente de conduzir as au-

las que marcaram nossas vidas, que as encharcaram de filosofia e, sobre isso, nos

relatam as entrevistadas.

Maria Pereira me abriu horizontes, trouxe a filosofia na perspectiva de questionamento pessoal e social, com reflexões sobre a realidade, como temática, sobre as coisas da vida. Essa regularidade entre os valores familiares e os da es-cola foram fundamentais, inspiradores na minha vida. (Neusa)

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Com a Maria Pereira, as aulas de Filosofia poderiam acontecer a partir da leitura de um livro ou de um filme como por exemplo, O Pequeno Príncipe, que en-charcou nossas vidas. A diferença entre Maria Pereira e outros de Filosofia é que ela fazia um trabalho diferenciado. (Arlette)

As professoras de Psicologia pareciam também seguir os ditames da reforma.

Entretanto, elas mesmas, Elmira Pellanda Cabral, Dalila Alvim, tal como Maria Perei-

ra, eram maiores que as leis, que os conteúdos, que as unidades, que as regras.

Muitos estudos de caso, muitas aulas dialogadas e discutidas e muitas leituras, tor-

naram-se marcas, como fala Arlette.

Também foram marcantes os estudos de Psicologia. Lembro de estudarmos Freud, Melanie Klein, Myra y Lopez . Estudávamos psicologia evolutiva.

Da bibliografia, sugerida pelo CPOE, lembro de algumas leituras que realiza-

mos: Helen Keller, Jacques Maritain, Charlotte Bühler, Afrânio Peixoto, Emilio Myra

Y Lopes, Ana Freud, Melanie Klein.

Certamente, essas diretrizes mereceriam uma análise muito mais aprofunda-

da, mas atenho-me apenas a alguns comentários, relacionando o proposto com o vi-

vido, relatado.

O currículo organiza-se em planos integrados e há a possibilidade de as alu-

nas formularem seus próprios planos de curso, jogando, no tempo, com matérias e-

letivas e fazendo sua escolha quanto às facultativas. Alguns dos princípios são os de

flexibilidade, profundidade e entrosamento nos planos, respeito à iniciativa das alu-

nas, formação integral, incorporação, à personalidade, de valores e ideais educati-

vos; preponderância da posição do educando com maior cuidado na formação da

personalidade do aluno.

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Está bem explicitada, no texto, a maior liberdade para o professor com a con-

seqüente responsabilidade na elaboração do seu plano e a integração com a comu-

nidade.

Há um departamento específico de Educação Religiosa o que denota o cará-

ter de religiosidade que se imprime à formação das normalistas, embora sejam lai-

cas, as escolas públicas. Eu, na verdade, não tenho lembrança desse departamento.

O conteúdo da reforma, como texto de lei, interessa como fonte de pesquisa

na medida em que favorece entender o vivido – e isto está registrado nas nossas

memórias, sendo que as entrevistadas vinculam as disciplinas dos departamentos

de Cultura Geral e de Cultura Profissional à qualidade da formação, como veremos

mais adiante.

Dentre os objetivos constantes do regulamento do Ensino Normal, ressalto al-

guns: formar professor primário regente de ensino para escolas urbanas, suburba-

nas e rurais; preparar administradores escolares, supervisores do ensino primário,

orientadores educacionais e professores especializados para o ensino primário, pro-

porcionar cursos de formação pedagógica a professores estaduais contratados que

não possuíssem diploma de Curso Normal, oferecer cursos de extensão cultural.

Para atender tais objetivos foram criadas: a Escola Normal Regional, que se

organizava em quatro anos (primeiro ciclo) e a Escola Normal em três anos, no mí-

nimo.

Para os Cursos Especializados do IE eram exigidas condições especiais dos

candidatos de acordo com o curso a que se destinassem.

Ficou estabelecido pela Reforma que as Escolas Primárias Anexas serviriam

de campo de prática, demonstração e experimentação pedagógica dos alunos do

Curso Normal.

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Saliento, também, dessa legislação, as exigências para ingresso no Curso

Normal:

Serão admitidos às Escolas Normais de 1º e 2º ciclos respectivamen-te os alunos que tenham concluído o curso primário e o curso ginasi-al ou equivalente, de acordo com a legislação em vigor desde que satisfeitas as condições abaixo: a) sanidade física e mental; b) ausência de defeitos físicos ou distúrbio funcional que contra-indique o exercício da função docente; c) bom comportamento moral e social; d) apresentação de registro de nascimento e de casamento, sendo casado o candidato; e) idade mínima de 13 anos completos para as escolas de 1º ciclo; f) realização de estudos básicos, previstos em lei, que habilitam ao concurso de ingresso nos Cursos Normais de 1º e 2º ciclos, respecti-vamente; g) habilitação nos exames de admissão.

Dessas exigências, destaco os itens “a” e “b” , anteriormente citados, para al-

gumas reflexões. Essas exigências aparecem, também em lei, nos primórdios da

criação de escolas no Brasil, quando, nelas, não era permitido o ingresso de índios,

negros, escravos, mesmo que libertos, ou portadores de algum tipo de deficiência.

Proibição perversa discriminatória.

Esses não admitidos tanto lá, ao tempo das primeiras escolas brasileiras,

quanto na década de 50 nas Escolas Normais, seriam os “outros”, “os estranhos”, de

que trata Zygmunt Bauman (2001), hoje presentes nas escolas e, muitas vezes, den-

tro delas excluídos.

A legislação de 55 não especifica o que seriam “defeitos físicos” ou “distúr-

bios”. E como isto seria avaliado? Quais distúrbios?

Quanto ao atestado de sanidade Física e Mental, bastaria buscar no “médico

de família” ou em algum posto médico de saúde pública. Qual seria o sentido de sa-

nidade e como poderia ser avaliado?

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No curso de Pedagogia, na Prática de Ensino, temos nos deparado com al-

guns casos, raros, em que se apresentam impossibilidades para o exercício do ma-

gistério, que não se relacionam ao conceito de deficiências físicas. Quando há

possibilidade de adequação a situações escolares específicas, temos conseguido

uma riqueza de experiências. Entretanto, já aconteceram casos em que há um de-

terminado grau ou tipo de “deficiência” que a própria pessoa não consegue transpor

e que se torna uma barreira para o exercício do trabalho em sala de aula.

Por que estabeleço esta relação? Porque, de um lado, continuo considerando

perversa a seleção que estabelece discriminação para ingresso no curso, por outro,

nos deparamos com casos que nos colocam em situações conflitivas que nos inci-

tam a perguntar se estariam todas as pessoas, em quaisquer circunstâncias, aptas a

exercer o magistério - onde estão, em jogo, relações humanas, em que as emoções,

se encontram em cenários complexos, jogos de cena que envolvem dimensões cor-

porais e emocionais.

Qualquer que seja a resposta a essa pergunta, a exclusão antecipada, a que

barra o ingresso, além de injusta e perversa, não teria como se instaurar. Não exis-

tem formas de avaliação capazes de pré-julgar a capacidade de cada pessoa. En-

tão, só nos resta tomar decisões no momento em que as situações se apresentam,

visando processos incluidores.

Venho produzindo este trabalho com registros de memórias orais e documen-

tos escritos. Esse é um entrelaçamento que se fez rico, como processo de estudo,

para compreender a relação entre o que institui um fato e o que é vivido.

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5.5- Uma das primeiras turmas da reforma de 55 – o ingresso, a vivência do

currículo

De um lado o vivido, o relatado, o que contam nossas memórias, de outro, o

que produziu as condições de possibilidade do vivido, e esse, nascido nas leis, nos

regulamentos, nas proposições, no escrito, documentado e selado, vai se transpon-

do para os espaços e tempos, sendo conduzido e orientado de acordo com esses

espaços e tempos e com aqueles e aquelas que por aí circulam como detentoras do

poder de administrar regras e torná-las vivência.

Nesse documento consta que o IE, em 1955, teria sido a primeira escola a se

organizar pelas novas regras.

Ingressamos em 1957, quando se modificou o unifor-

me: de saia azul-marinho e blusa branca para saia azul-

marinho pregueada, modelo “cadeirão” e blusa listrada de

vermelho e branco com novos “lacinhos” de fita, primeiro ano

azul; segundo ano vermelho; terceiro ano azul com vermelho.

Maria Helena faz referências a Reforma do Curso Nor-

mal.

Nossa turma no Curso Normal viveu a Reforma Curricular: mudou o unifor-me / inclusive a experiência de uma prova única, onde cada disciplina localizava seu tema.

Todas nós, as ex-alunas entrevistadas e eu, havíamos concluído o Ginásio no

próprio IE e, mesmo assim, prestamos o exame de seleção para o Ingresso no Cur-

so Normal. Não havia diferenciações quanto a isso. O processo seletivo está previs-

10-Uniforme do Curso Normal (foto de Carmen Célia)

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to na reforma. Os relatos trazem os sentimentos, novamente, do ser aprovada no

exame.

Entrar na escola significava submeter-se a uma prova como de vestibular tanto no Ginásio, quanto no Normal. Era o lugar que a escola ocupava, a grande procura. (Arlette)

Eu tenho lembranças da felicidade que senti quando eu consegui passar na-quela prova de seleção que havia para a Escola Normal. Eu fiquei na turma 112. Foi uma experiência muito marcante sob todos os pontos de vista: de relacionamento com as colegas, eu lembro das colegas que sentavam na minha frente e atrás de mim, dos grupos, aquela dinâmica interna de formação, da vivência social, afetiva que eu vivi com as minhas colegas, algumas eram mais velhas, casadas. Eu acho que eu comecei em março de 57, foi o ano em que tive o meu primeiro namorado, primeiro e único. (Neusa)

Vencido, mais uma vez, o obstáculo da prova, a alegria do ingresso, a mu-

dança de status de ginasiana para normalista.

E, nessa etapa de normalista do Instituto de Educação, que me encontro com

Isolda Paes, Florinda Tubino Sampaio, Elmira Pellanda, Mariana Mazaferro, Nadir

Saldanha da Rocha, Liba Juta Knijnik, Maria Luisa Mascarenhas, Teresinha Oliveira,

dentre tantas outras. Aí, vai se dar meu encontro com os estudos de Filosofia – Gus-

tavo Corsão, Tristão de Ataíde, e com as profundas discussões nas aulas da Maria

Pereira, que poderiam decorrer de leituras de textos, filmes ou peças de teatro. É

pelos entremeios dessas vivências, entre as aulas de teatro com Olga Reverbel, de

Literatura Infantil com Zahyra Petry, estudos de Psicologia, de Psicanálise, os se-

gredos das Metodologias e muito material didático, que me fui constituindo a profes-

sora que hoje sou. Assim foram se constituindo também as professoras que nos

contam sobre o que foi, para cada uma, a formação nessa escola normal. Reforça-

se a idéia de padrão, de privilegio.

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Na hora que chego ao curso normal enxergo o outro lado. Só escutava que era padrão, que era privilégio. Começo a ver os professores que trabalhavam na nossa educação. Aquela equipe de professores da Escola Normal mantinha víncu-los com outros centros – Europa – (França), tínhamos laboratórios. Havia uma preocupação “obstinada” com a “qualidade” do trabalho. (Arlette)

As lembranças de Arlette sobre a equipe de professores estão corroboradas

pelos relatos de Maria Luisa sobre sua formação profissional, cursos de atualização

no exterior.

Fui assistente de Dona Graciema, quando me formei na Pedagogia. No últi-

mo ano de Didática, fui coordenadora das classes experimentais e professora de Didática. Ganhei uma bolsa de estudos para a Europa. Fiquei um ano na Sourbone, estudava muito e tinha aulas com Piaget e seus assistentes. Ganhei, também, um curso na Bélgica, na Suíça, fui convidada para ficar, mas tive que voltar para a-tender à família. Depois do estágio na Europa, volto para ser professora de Didá-tica no IE.

Maria Marta de Carvalho (2000), na sua versão sobre a reforma Mendes

Campos, em São Paulo, chama a atenção para o que seriam elementos de sucesso

na educação, dizendo que esse deveria ser garantido por mestres formados no es-

trangeiro e, para alunos normalistas, a oferta de amplo material didático importado,

juntamente com prédio apropriado e criação de bons modelos de ensino.

As observações dessa autora dizem respeito a outro estado e a outros tem-

pos, mas essa busca da qualidade no IE passava, também, pela qualificação profis-

sional dos professores e das professoras.

É interessante ressaltar como se registra, nas memórias, a percepção dessa

“busca obstinada pela qualidade”. E isso está incrustado no vivido. O que é projeto

de educação passa para ordem do sensível, do percebido. Louro (1987) estabelece

a relação entre qualidade e escolanovismo.

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No escolanovismo o que se fala é da “qualidade” do ensino, ao invés da preocupação com a quantidade. A melhoria da qualidade signifi-cava reformar currículos e métodos de ensino, reforçar a qualificação técnica dos professores, equipar as escolas com novos recursos e laboratórios. Representava também trazer para a educação a contri-buição de outras ciências – da psicologia, principalmente, mas tam-bém da biologia, da higiene, etc. [...] Buscando observar esses novos métodos e processos de ensino, grupos de professores gaúchos vão em viagem de estudos para o Rio, São Paulo, Minas; e a Escola Normal de Porto Alegre passa realmente a ser um foco irradiador dessa nova tendência pedagógica. (p.15 -16)

Essa idéia de qualidade aparece reiteradamente nas falas das entrevistadas.

Há um tempo atrás comecei a pensar porque eu tinha uma formação dife-renciada. Pegando um boletim da escola, lembrei das disciplinas: Fundamentos so-ciológicos, biológicos, psicológicos, filosóficos de Educação compunham o Departamento de Cultura Geral – depois vinha o mais profissionalizante. Várias Didáticas - Educação Física, Música (funções da música, por que trabalhar música com as crianças), Recreação, Cultura, Literatura Infantil: com Zahyra Petry. Lía-mos os livros infantis e fazíamos análise e crítica, Zahyra era escritora, fazia vi-vências contando histórias, usando recursos. Lembro, no Normal, de ter lido livros em Inglês – livros de matemática, ciências, outros. As aulas de Literatura com Isolda Paes. O teatro. As aulas de Filosofia da Maria Pereira. E, no final do curso, várias professoras de Didática muito competentes: Mariana Mazaferro – (Didática das Ciências), muitas experimentações. Didática da Matemática: Nadir Saldanha da Rocha – quando fui entender o sistema de numeração com os palitos de picolé. Na nossa formação, primeiro era a fundamentação. O curso Normal fundamentava teoricamente, conhecíamos as bases, os princípios, depois as me-todologias. Lá pelas tantas da vida saquei: tivemos uma formação de três anos, em que íamos construindo os conceitos. (Maria Helena)

Tal como diz Maria Helena, íamos aos originais e isso acontecia dentro de um

contexto cultural que produz essa formação – éramos lançadas na obra do autor.

Hoje, há comentaristas de obras – isso pode ser um elemento facilitador, mas vamos

perdendo a autoridade. Também há autoridade, processo de autoria, ao ler e co-

mentar a obra no seu original. Era preciso exercitar inglês, francês, espanhol, pela

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necessidade de ler em língua estrangeira, quando não havia traduções. Não havia

produções acadêmicas em que se comentassem as obras para apresentá-las a no-

vos leitores. Também não havia máquinas xerográficas. Essas são as inevitáveis

encruzilhadas que se colocam entre as benesses do progresso e seus entraves.

Outros argumentos sobre formação diferenciada seguem na mesma linha, a

importância dos departamentos, o currículo.

No Departamento de Cultura Geral estudávamos Filosofia, Sociologia, His-tória, Português, Inglês, Francês. No Departamento de Estudos Especializados, Fundamentos Biológicos de Educação, Sociológicos, Psicologia, Puericultura com o Dr. Derly Kokot e com o Dr. Berlim. (Arlette)

Muitos professores da Escola Normal não tinham formação pedagógica, eram

profissionais de diferentes áreas que atuavam como professores, como era o caso

das aulas de Biologia, Puericultura, Higiene, que eram ministradas por médicos.

Alguns deles, o doutor Poli M. Espírito e o doutor Berlim, também atuaram no gabi-

nete médico da escola.

[...] então a vivência que eu tive na Escola Normal foi excelente sob todos os pontos de vista [...] Tenho lembrança do processo de formação: havia aquelas disciplinas básicas, algumas ligadas às ciências naturais. Uma área muito frágil na minha formação, sempre foi a matemática, as ciências. E a formação mais peda-gógica, que foi acontecendo mais ao final do curso. (Neusa)

Os relatos de Arlette aparecem como um exame de fundamentos teóricos, as

aulas mais práticas, o laboratório de matemática. As idéias vão brotando muito inter-

relacionadas, permeadas pela emoção, com idas e vindas e transcrevo-as assim.

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Na minha vida de professora continuei estudando Florestan Fernandes, Anysio Teixeira. Em alfabetização, trabalhei, no estágio, com método global de palavras progressivas, com a cartilha Marcelo, Vera e Faísca50. Depois de diplo-mada trabalhei com global de contos. Importante, foi o laboratório de matemáti-ca coordenado por Odila Barros Xavier. Havia, inclusive, um material para estudo do sistema de numeração decimal produzido por ela. Alguns materiais eram cria-dos no laboratório, outros eram importados. Trabalha-se com muito material con-creto. Eram ações casadas dos diferentes grupos: o grupo do laboratório, o grupo do estágio, a equipe de professores do curso, tudo muito interligado. Estudamos Sociologia, Filosofia: (Platão, Sócrates) Ovide Decroly - o sincretismo infantil, método global. Teste ABC de Lourenço Filho. Sobre as tendências teóricas, lem-bro que, em matemática, o que norteava o estudo era Bento de Jesus Caraça, Grosnickle. Florestan Fernandes, Anysio Teixeira (não lembro se foi no curso Normal ou paralelo) Importantes foram as Didáticas: de Linguagem com Mariana Mazaferro, de Matemática com Nadir S. da Rocha. Nas matérias facultativas, fiz disciplina de Literatura Infantil com Elida Druck, que era da Biblioteca Infantil do I.E. Ela contava, nesta época, histórias como a da “Bonequinha Preta” que li milhares de vezes na minha vida. Fiz cadeira com Zahyra Petry, professora de Li-teratura e escritora, que escrevia novelas para o rádio e livros como a Galinha Maricota. (Arlette)

As referências de Arlette ao Laboratório de Matemática e aos matérias didáti-

cos importados levam-me às explicações de Maria Luisa sobre o que Dona Odila re-

presentou no IE com seus estudos e investimentos educacionais.

Dona Odila criou o Laboratório de Matemática, foi investigadora da litera-tura estrangeira em busca de fundamentos para o ensino de Matemática, desde 1947, lendo Willian Brownell – “O papel da significação no Ensino de Matemática”; Catherine Stern – “Estruturas”; em 1949 estuda Piaget. Em 1954 foi bolsista do INEP – Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos e apresentou um trabalho so-bre: Linhas Mestras de um Programa de Matemática para Professores Primários. E os estudos foram avançando. Foi uma das criadoras do Estágio Supervisionado e da Escola Anexa51.

50 Marcelo, Vera e Faísca. Cartilha=Letra Script. Método global pelo processo de palavras progressivas. Edições Tabajara. Porto Alegre, 1967. 51 Informações retiradas de um texto assinado por Agar Baungarten do acervo de Maria Luisa Mascarenhas e de seus relatos orais.

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Como bem podemos observar, as narradoras ressaltam como importantes, na

sua formação, o currículo e o modo como se organizava em departamentos. O De-

partamento de Cultura Geral, com a parte de fundamentos teóricos e disciplinas re-

lacionadas a uma visão mais ampla de conhecimento é bastante destacado, com

ênfase significativa para as disciplinas de Filosofia, Psicologia e Literatura.

A parte relativa às metodologias do Departamento de Cultura Profissional

também é bastante lembrada, sendo principalmente as disciplinas de Didática da

Linguagem e Didática da Matemática que, na verdade se chamavam Direção de A-

prendizagem.

As disciplinas facultativas tiveram papel importante na nossa formação e isto

também se evidencia nas menções feitas à Literatura Infantil, ao Teatro e ao Orfeão

Artístico.

Diante disso, posso dizer que a organização curricular, proposta na Reforma

de 1955, foi importante e trouxe efeitos significativos na formação das professoras,

como bem registram os relatos das vivências.

As lembranças que dizem respeito ao processo de formação são recorrentes

e algumas estão ligadas a professoras que foram marcantes, para além do currículo

ou do modo como eram trabalhados os diferentes conteúdos.

5.6- Pelos avanços e recuos da memória: algumas “imortais”

Dona Florinda Tubino Sampaio, D. Vanda Guelzer, Nair Marques Pereira de

Almeida, Liba Knijnik, Elmira Pellanda Cabral, Dalila Alvim, Mariana Mazzaferro, Na-

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dir Saldanha da Rocha, Maria Lígia Borba dos Santos Chaves, Odila Barros Xavier,

Olga Reverbel, Dináh Néry, Gladis Agostinelli, Isolda Paes, Maria Pereira entre ou-

tras, muitas das quais já citadas aqui, aparecem em destaque. Mary Acauan Titoff e

Olga Acauan Gayer são destacadas como diretoras.

Algumas passagens narradas são representativas da formação não só do

Curso Normal, mas anteriores. Diz Arlette:

Há um sentimento com relação à escola que se vincula a nomes como o de Florinda Tubino Sampaio que teve repercussão para além das fronteiras da esco-la. Quando eu estava no primário e D. Florinda era diretora, aconteceu um fato que mobilizou muito a escola e a comunidade. Houve uma iniciativa do governo do estado de colocar o crucifixo em tamanho natural, no saguão da escola. D. Florin-da não concordou. A escola pública, no caso, deveria atender a todos os credos. Além disso, estava localizada num bairro da comunidade israelita. Ela não foi a-tendida e se afastou da direção. Houve um movimento de protesto da escola e da comunidade a favor da diretora. Foi criado um espaço reservado para a imagem que seria visitado por opção. Ela retornou à direção.

Essa discussão sobre laicidade da escola pública aparece desde longa data

na história da educação. O IE, como escola pública, era laica. No entanto, cultuava-

se a religião católica. Havia aula de religião ministrada por sacerdotes. Lembro-me

do padre Hélio, que nos dava aulas de religião e com quem eu discutia muito, pro-

blematizando suas “verdades”. Havia crucifixos nas salas e quando passei a fre-

qüentar a escola, o “Cristo”, como chamávamos, já estava numa capela à direita da

entrada principal. Havia saído do saguão. Só agora eu soube que isso se deve à luta

de Dona Florinda, figura talvez tão importante nos significados, quanto as colunas do

IE, naquilo que produziu em nossas vidas.

Ainda sobre essa mestra, Arlette vai (re)-vivendo seu valor.

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D. Florinda trabalhou, com as alunas no Departamento de Cultura Geral, a História da Mulher. Nesta época, ela estava se aposentando. Com essa mestra estudamos Cleópatra, Fúlvia, Madame Curie. Cada grupo tinha que escolher um li-vro biográfico para ler. O nosso grupo escolheu Madame Curie, mulher de Pierre Curie. Apaixonei-me por este livro. Acho que vou pegar e ler de novo. D. Florinda era portadora de deficiência física, usava uma bengala. Quando, no saguão da es-cola, se encostava na pilastra e começava a falar, empolgava um auditório. Fui a-luna dela no Ginásio e no Normal. Ela contava lendas gregas e outras que nós ouvíamos embevecidas. Era o jeito como ela contava, de um modo empolgante, te-atral. Lembro da lenda de Tisbe e Píramo que explicava por que as amoras eram vermelhas. Quero encontrar essa lenda para ler novamente. Que marcas desta mulher como educadora [...] Lembro quando eu era do Primário, nós formávamos as filas no saguão da escola para irmos para as salas de aula. Ouvíamos D. Florin-da e íamos para as salas ouvindo música.

Arlette contava as lendas inteiras, na medida em que as recordava.

A lenda das amoras é linda!

O estudo sobre a mulher também é evocado por Neusa.

A situação da mulher através da história foi um estudo que fizemos com Dona Florinda e me marcou muito.

Dona Florinda Tubino Sampaio é, certamente, uma das “imortais” presente

nas memórias das alunas, professoras e em alguns outros trabalhos.

Beiser (1996), já citada no início deste trabalho, diz que Dona Florinda dirigiu

o Instituto de Educação por dez anos – de 1936 a 1946, cargo que ocupou com “ab-

negação e brilho – quando voltou às funções catedráticas de História Geral e do

Brasil”52.

Eivlys Mabilde Grant, professora de ciências, citada por essa autora, descre-

veu Dona Florinda como diretora de vontade férrea, num corpo frágil com capacida-

52 Palavras da professora Leufrida Lima Bianchi em um artigo publicado em 1953 sobre Florinda Tubino Sampaio na coluna “retratando mestres” da Revista do Ensino (citada por Beiser (1996))

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de de trabalho inigualável e coragem de enfrentar desafios, afirmando que “ela er-

gueu o Instituto de Educação de modesta Escola Normal em escola padrão: orgulho

da cidade e do estado.” (p.115)

Mais referências a outras professoras aparecem:

Dona Vanda foi minha professora no jardim, depois de inglês, da 1ª e da 4ª série do ginásio. Nos acompanhou numa excursão ao Uruguai no Ginásio (ano de formatura). Foi ótima companhia! Ótima companheira! Era um tempo de muito ri-so, ria-se com ou sem motivo [...] (Arlette)

Outra pessoa que me marcou muito foi a professora Vanda Gaelzer, de in-glês. Como eu tinha muita facilidade, eu funcionava como uma monitora. (Neusa)

Tenho que falar da Isolda Paes, figura fundamental no Curso Normal, com ela estudamos Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Cassiano Ricardo, Camões. (Ar-lette)

Com Dona Isolda, estudei Camões, memorizei muitas estrofes de poemas de

Cecília Meireles, Cassiano Ricardo, Manuel Bandeira. Ela me chamava de “minha

Dinamene” dizendo que, para ela, eu era a imagem da musa de Camões.

Todas essas pessoas, aqui lembradas, compõem um conjunto de profissio-

nais que marcaram uma época.

O que se falava e o que se fazia no IE não era o que outros faziam. A gente

estava à frente, nós tínhamos professoras e orientadoras como a Maria Lígia. Com ela, na Escola Anexa, aprendi a pesquisa sobre o erro, o porquê dos erros, o que significa. Nossa cabeça era de pesquisadoras. (Maria Helena)

O que eu aprendi com a Maria Lígia! A convivência com ela sempre foi muito afetiva e ao mesmo tempo desafiadora, de novas aprendizagens (Neusa)

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Maria Pereira nos fez ver o filme Balão Vermelho, depois discutimos. Numa das festas de nossa formatura, em que ela não estava, mandou a Rute (uma aluna do Normal) toda de branco com balões vermelhos, para distribuir a cada aluna. Saímos em grupo desta festa e invadimos a casa dela, todas de balões na mão. Sua casa tinha vidros com desenhos do Pequeno Príncipe. Ela nos levou para a sala de música onde havia um piano de cauda e tocou entre outras, “Clair de Lune” de Claude Debussy. Uma cena muito marcante! Emocionou-se ao falar. Ela falava mais com gestos, com olhar e com seu sorriso de “Monalisa”. Essa música eu escu-to e até hoje me lembro dela. Esta é uma lembrança que ultrapassou os muros da escola. (Arlette)

Maria Pereira me abriu horizontes – trouxe a filosofia na perspectiva de questionamento pessoal e social, com reflexões sobre a realidade, como temática, sobre coisas da vida. Essa regularidade entre os valores familiares e os da escola foram fundamentais, inspiradores na minha vida. (Neusa)

Olga Reverbel está presente nas nossas memórias, tanto pelas vivências na

cadeira de teatro e pelas andanças no TIPIE - Teatro Infantil Permanente do Instituto

de Educação, quanto pelo valor, respeito e carinho creditados a essa educadora,

que fundou e liderou esse grupo de teatro por muitos anos.

O TIPIE foi criado em 1956 e, sob a orientação competente de Olga, era man-

tido pelas normalistas. Nós encenávamos e dirigíamos peças teatrais infantis, além

de prepararmos cenários, guarda-roupas, escrever peças. Acabou se constituindo

numa atividade sistemática, apresentando espetáculos semanais, muitas vezes fora

do IE, em praças, escolas da periferia e cidades do interior.

A criação desse grupo de teatro, segundo Louro (1987) causou polêmica,

quando de sua implantação, provocando a discordância de alguns que se mostra-

vam temerosos, diante da possibilidade de as alunas se transformarem em atrizes.

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No mesmo patamar de Olga, também é colocada Dináh Néry, com o Orfeão

Artístico ou Coral das Alunas,

mesmo por aquelas que não

pertenciam a nenhum desses

grupos. Criado no ano de

1937, o Orfeão teve como sua

primeira regente a professora

Aracy Godoy Gomes e, de-

pois dela, Dináh foi a grande

maestrina do IE, por muito

tempo.

O Orfeão Artístico sempre teve caráter de atividade opcional, mas pela quali-

dade do trabalho desenvolvido ganhou alto prestígio na comunidade, sendo solicita-

do para os eventos mais importantes, recepções que o governo gaúcho promovia e

festivais de música. O “Artístico”, era como nós o chamávamos para diferenciá-lo do

Orfeão Geral, que era obrigatório. As atividades desse magnífico coral se estendiam

para além das fronteiras da escola.53

O trabalho dessas professoras, com essas disciplinas, bem como as vivências

da banda e do Grupo de Dança de Gládis Agostinelle, pelo muito que possibilitaram

nos trânsitos entre a cidade e escola, recebem destaque no capítulo destinado a ci-

dade educadora e pedagogias urbanas.

Outros tantos nomes, além dos citados aqui, devem estar amalgamados às

vidas de alunas e de professoras do IE. Alguns afloram de pronto nas nossas lem-

branças. Muitas dessas figuras, entendidas como imortais pelo que representaram

53 As informações contidas neste texto emergem de minha memória que, neste caso, já é memória coletiva, mas algumas informações foram retiradas de Louro (1987).

11- Orfeão Artístico com a maestrina Dináh Nery no centenário do IE.

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de modelares, exemplares, pelo que significaram e pelas marcas que deixaram, são

mencionadas em outras obras, por outras entrevistadas, por outros estudiosos.

Essas pessoas “marcantes”, “modelares”, que povoam nossas memórias, tal-

vez tenham contribuído para constituir essa nossa “história de amor” com o IE. En-

tretanto, essa história se fez de encantamento, aprovação, submissão, mas também

rebeldia. Fui uma aluna apaixonada pela escola, mas também rebelde, mas também

contestadora. Uma escola só para meninas não garantia a disciplina nas aulas, ha-

via grandes mestras e mestres referenciados, respeitados, amados; aulas em que

reinava a ordem e, ao mesmo tempo, a participação, o diálogo, a discussão e aulas

(raras) em que brincávamos pela sala, escrevíamos disfarçadamente nossas peças

de teatro, estudávamos o texto da próxima peça e houve, numa certa época, até

mesmo a tricotação de blusões de lã para os namorados dentro do espaço de per-

missividade e desencantamento dessas aulas.

Arlette também evoca esses momentos de desencantos.

Não foi um mar de rosas nossa formação de ponta a ponta. Algumas vezes, aulas cansativas, algumas professoras não cativavam. No Curso Normal, havia uma professora que mandava caçar borboletas e colocar numa tábua de madeira ou papelão, presa com alfinetes. Eu dizia que nunca faria isso com meus alunos. Ima-gina! Caçar borboletas, ainda esticar numa tabua de madeira! Eu brigava com ela. O interessante, nesta disciplina, foram algumas visitas que realizamos com esta professora.

Essas diferentes formas de vivermos as aulas, as mudanças de atitude, com

relação a cada professor ou professora, foram talvez significativas já naquela época,

para minhas interrogações sobre as práticas de sala de aula e as respostas de alu-

nos e alunas.

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Hannah Arendt (1997) talvez pudesse nos auxiliar na compreensão dessas di-

ferenças, do porquê de algumas permanecerem como “imortais”, quando relaciona

qualificação e autoridade:

A autoridade do educador e as qualificações do professor não são a mesma coisa. Embora certa qualificação seja indispensável para a autoridade, a qualificação, por maior que seja, nunca engendra, por si, só, autoridade. A qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo. (p. 74)

As mestras, simbolizadas como “imortais” nas memórias, talvez tenham tido

as marcas da qualificação e da autoridade no sentido atribuído por Hannah Arendt.

Nossas professoras do Curso Normal, entrevistadas, têm histórias que falam

de suas vidas, das relações que se constituíam nos grupos de trabalho e elas pró-

prias são também pertencentes a esse universo de modelares, marcantes.

5.7- “Por trás dos bastidores”: com a palavra nossas professoras

Nós, as alunas, temos lembranças dos efeitos, de como se processava nossa

formação e as professoras falam do que se inscreve nas suas memórias de “forma-

doras de professoras”. Vou apresentá-las, aqui, apenas como narrativas que nos

mostram, seu modo de viver a escola, os programas, a organização curricular e um

pouco de suas histórias de vida. Não tecerei maiores comentários, pois esses rela-

tos falam por si.

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Nas entrevistas com Liba e Maria Luisa, pergunto a elas como era ser profes-

sora do Curso Normal, o que consideram como elemento marcante no processo de

formação das alunas e proponho que tragam suas memórias do IE. Daí, vão se de-

senvolvendo seus relatos ancorados nas lembranças.

Não era fácil. Nós queríamos fazer algo diferente com as normalistas. As adolescentes vinham com habito de copiar tudo. Levávamos textos de jornal e de livros. Não era fácil colocá-las naquela perspectiva que queríamos. A Liba usava muito a arte. Levava obras de arte, poesias. Nós nos propúnhamos a fazer um en-sino renovador. Se nós queríamos que as alunas vivessem isso com as crianças, e-las também deveriam viver isto. Estávamos começando conosco mesmas. Não tínhamos as coisas prontas. (Maria Luisa)

O IE apoiava-se em sua legislação que o instituía como experimental - as-sim que podíamos fazer experiências. Criar. Contratar professoras. (Liba)

“O IE era considerado o salão de festas do governo” – autoridades, como General Marshal, visitaram o IE. O governo pedia para a escola preparar a recep-ção. Era só o governo querer se exibir – mandava as autoridades para o IE. O primeiro Orfeão era de Araci Godoy. “Tudo era pra já”. Faziam pintura, reforma. Mostrávamos o que fazíamos. D. Florinda reunia toda a escola. Quando eu era do jardim cantávamos uma sinfonia de Bethoven, com letra criada pelos professores. Para ser professor do IE tinha que ser recomendado. Era “Escola Padrão” vinham verbas que eram gastas na educação. Recebíamos muitas visitas do interior, de outros estados, outros países. Vinham visitar, assistir nossas aulas. Tínhamos carta branca para preparar material, projetar – tudo que tínhamos tinha que ser excelente – todas tinham que ser boas professoras. (Maria Luisa)

Havia no IE um curso de formação de elite, nós fundamos a Escola Anexa o que influiu para atualizar o Curso de Formação de Professores. (Liba)

O Instituto era desejado pela comunidade, o governo mandava os melhores professores, mas, no início, não eram de Didática, eram das áreas: de Língua Por-tuguesa, de Matemática [...] O IE era Escola Padrão – uma em cada estado. A en-trada de diretores do IE era direto na sala do Secretário de Educação. As professoras de Didática procuravam trazer inovações. Isso gerou ciumeira – ser-

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víamos de modelo. Gerou descontentamento em outras Escolas Normais. Vivia-se no IE um “ufanismo”. (Maria Luisa)

O Curso Normal era um dos melhores cursos que existia, já era conceitua-do como tal, pelo menos é o que nós achávamos. Quem vai ser professora de Di-dática tem que ter “cheirado” criança. Para ser professora de didática deveria ser obrigatório ter sido professora primária. Tu és uma professora que foi pro-fessora primária! (referindo-se a mim). E o potencial que existe na criança é mais do que se pensa, se sabe, a criança é tão inteligente! Fiz minha dissertação de mestrado sobre criatividade na educação. (Liba)

Liba considera importante passar pela experiência de sala de aula para ser

professora de Didática. Maria Luisa também pensa assim e, em nossa conversa,

lembrou que muitas professoras do Curso Normal, como ela mesma, foram também

professoras primárias e cita algumas: Nair Marques Pereira, Maria Ligia, Olga Acau-

an Gayer, Dona Odila Barros Xavier, Mary Acauan Titoff, dentre muitas outras.

Através das lembranças de Maria Luisa, entendo porque havia no IE, quando

éramos professoras, uma idéia de que não deveríamos fazer faculdade. Dona Odila

acreditava que precisávamos amadurecer mais, ter mais experiência com crianças,

para depois fazermos um curso superior. Foi assim que fiquei por dez anos atuando

na escola primária.

No Curso Normal, nós tínhamos um grupo de estudos que era meio avança-

do. Houve uma época em que eu, com o meu entusiasmo e dedicação, era profes-sora das Didáticas: de Linguagem, de Matemática e de Estudos Sociais, até que um dia, com a Dona Odila a relação não era de igual para igual, tu sabes que de-pois entendi melhor, mas a gente era mocinha: um dia eu resolvi que não iria mais chorar. A gente amadurece aos poucos, não vou chorar mais! No meu tempo ela era coordenadora. Ela era uma pessoa importante para levar as coisas adiante. Um dia decidi que não ia mais trabalhar com todas aquelas didáticas, porque era assim: eu deitava as crianças e à noite, “toca” preparar aula. Preparava, eu não podia no mesmo dia: como eu me envolvo muito, preparar Didática da Linguagem, Didática da Matemática e Didática dos Estudos Sociais, então, cada noite eu preparava uma, sempre preparava aula, estudava, comprava livros, até que eu tive

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coragem de dizer a Dona Odila: A senhora pode escolher a Didática que a senho-ra quer que eu faça, mas as três não vou fazer mais. Fiquei com a Didática da Linguagem: fiquei um pouco com a Didática da Matemática também. Ela tinha as-cendência sobre nós, mas depois as relações foram se modificando. Ela foi muito importante. Era muito competente. Cresci muito, trabalhando com ela. (Liba)

Pergunto a Liba sobre esse “poder” da Dona Odila, ao que ela responde: não

posso entender essa dominação, mas era uma dominação.

Este lugar de poder imbrica-se no saber, num certo grau de autoridade – Do-

na Odila se dava um lugar de poder e a escola, as alunas e as professoras o ratifi-

cavam. Foucault nos ajuda a compreender que os poderes se exercem em níveis

variados e em pontos diferentes da rede social e que, neste complexo, os micro po-

deres existem interligados, ou não, ao Estado - parte desses ensinamentos estão

em “Microfísica do Poder”, ( 1999.).

Esta passagem da história de vida da Liba, como professora, demonstra o

grau de dedicação à escola – o apaixonamento de que ela fala. Era muito estudo e,

às vezes, até submissão.

A forma como Liba lembra o convite para ser professora da Escola Normal,

como a realização de um sonho, vem ao encontro das outras lembranças já trazidas,

para este texto, que falam da importância da escola e do seu lugar na educação.

Meu sonho era ser professora do Curso Normal. Como professora do pri-mário, eu tinha uma bolsa para fazer Pedagogia (havia tirado o primeiro lugar). Desisti da bolsa para ser professora do IE. Quando recebi o convite, o desejo de ser professora nesta escola era tanto, mas era tanto, que eu não caminhei até o IE, eu corri, pra dizer que aceitava, e na mesma hora desisti da bolsa, mesmo tendo três filhas. Eu trabalhava de manhã e ia pra faculdade à tarde. Não era fácil, mas foi o entusiasmo pela profissão. Lembro-me da preparação da minha

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primeira aula. Eu estreei com a Regina Helena54 sendo minha aluna. Ela fazia per-guntas! Que sofrimento! Precisavam de uma professora de Didática e eu assumi. (Liba)

Movida pela paixão e pelo entusiasmo, Liba fez sua escolha sem, nem mes-

mo, pensar sobre ela, abrindo mão de outras oportunidades que lhe eram ofereci-

das. Isso é coerente com o que diz Louro (1987) que o IE significava o “topo” da

carreira – e Liba estava apenas começando.

Esse relatar o outro lado, o das nossas professoras, vai funcionando como um

“elo” para falas como a de Arlette sobre “uma busca obstinada pela qualidade”, além

de reforçar a idéia do IE como Escola Padrão, irradiadora de mudanças, palco de

muitos encontros e de muitas realizações.

Essas são, então, as lembranças, as histórias de apenas duas professoras da

escola normal, também nossas orientadoras de estágio, mas acredito serem seus re-

latos representativos daquilo que se vivia no IE, ainda mais se aliarmos seus depoi-

mentos aos das alunas. Nossas professoras falam da Escola Anexa e isto me leva

aos tempos do estágio.

5.8- Do estágio supervisionado: tempo de muitas aprendizagens

A prática de observação era uma tônica do Curso Normal. As salas de aula

que eu observei, como aluna, as professoras, suas práticas tornaram-se parte do

meu “ser-professora” de tal forma, que, ao entrar em uma sala de aula, me percebia

54 Regina Helena foi minha colega no IE como professora da Escola Primária – competente, muito questionadora desde os tempos de aluna na Escola Normal, por esta razão Liba refere-se ao que significava tê-la como aluna, no começo de sua carreira.

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habitada por aquelas que foram meus modelos – desde Nair Marques Pereira, no

Ginásio, até as professoras da Escola Primária, que abriam suas portas para as ob-

servações e mini-práticas das normalistas.

A importância das “observações” aparece nas entrevistas, tanto das colegas

quanto das professoras do Curso Normal.

Outra coisa forte no IE, tanto no Normal como na Escola Primária como professoras, foi o aprender a observar. Muita observação. Observava a aula da Ilma Marques na Escola Anexa55 – como ela conduzia todo o processo até a cons-trução do conceito. Cada Didática tinha seu foco. A professora planejava suas au-las, para as alunas do Curso Normal assistirem. Quem trabalhava numa escola experimental tinha obrigação de ajudar na formação das professoras. As nossas observações e práticas nas salas de aula eram muito bem planejadas com as pro-fessoras do Curso Normal. Desde estudarmos o que era observar, por que, o que, como observar. A definição do foco era fundamental. (Maria Helena)

Maria Helena ressalta que a ênfase na observação não se dava só em rela-

ção à sala de aula, mas no interior das disciplinas, jamais esqueceu, em metodolo-

gia das ciências, a técnica de observação.

Liba também considera elemento de força, na escola normal, a observação

como parte integrante do currículo, o que se complementa na fala de Maria Luisa

quando menciona que a Escola Anexa foi criada para campo de observações e prá-

ticas. A técnica de observação ocupa lugar de destaque nas lembranças. Era valori-

zada pela escola, compunha o currículo e influenciou a formação pessoal e

profissional.

As alunas observavam, depois analisávamos com elas essas observações, para só, depois, iniciarem a prática. (Liba) 55 Escola Anexa ao IE funcionava e funciona na Rua José Bonifácio, onde foi criada, mas hoje, em novo prédio, chama-se Escola Anexa Dináh Néry Pereira em homenagem à grande maestrina que regia o coral das alunas do IE.

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Quando eu era aluna da Escola Normal fazíamos observações, em sala de professores muito competentes, mas mais tradicionais. Ai vem a idéia do Anexo. O Secretário era José Mariano Beck. Criamos o Anexo para as normalistas, para que observassem os professores que agiam dentro das novas diretrizes. Mais tarde, depois de formada, eu dava aula na segunda série do Anexo. As professo-ras de Didática não queriam que as alunas assistissem às aulas tradicionais. Em 1951 criou-se o Anexo, quando D. Olga Acauan Gayer era diretora do IE. O de-creto saiu em 1954, mas nós funcionamos a partir de agosto de 1951. (Maria Luisa)

Encontro referências sobre observação em Carvalho (2000). Tratando da re-

forma da instrução pública em São Paulo, a autora demonstra como se instalou um

modelo moderno e modelar de ensino, logo após a proclamação da república sob a

insígnia do setor oligárquico modernizador. Assim, a escola paulista é estrategica-

mente ungida como signo do progresso e do moderno e passa a ter força exemplar

na remodelação escolar de outros estados.

Com a reforma Caetano de Campos cria-se uma escola modelo, anexa à Es-

cola Normal, que deveria ser representativa da escola paulista.

Nessa Escola Modelo, os futuros mestres, na interpretação da autora, em

questão, poderiam ver como as crianças eram manejadas e instruídas.

Desenvolvia-se a arte de ensinar a observar, nessa pedagogia como arte,

como saber fazer, a prática da observação modela a relação ensino-aprendizagem e

instaura o primado da visibilidade.

As práticas de observação, na Escola Anexa ou na Escola de Aplicação do IE,

não foram vividas, por nós, como um modo de “ver como as crianças eram maneja-

das,” mas como um olhar para as professoras, seu desempenho em aula, a metodo-

logia, a relação com as crianças. A idéia era a de aprendermos com elas. Sei que

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aprendi muito e Maria Helena, nos seus depoimentos, deixa bem claro o quanto era

importante essa prática na nossa formação.

Além de campo de observação e prática a Escola Anexa foi importante para

atualização do Curso Normal, como relata Liba.

A criação da Escola Anexa (EA) deu um outro nível à formação do profes-sor, porque as professoras eram escolhidas. Eu fui professora da Escola Anexa. Lá nós demos um passo à frente. Então, o que levou à atualização foi a criação da Escola Anexa, pela liberdade que nós tivemos de tentar fazer diferente, de ten-tar respeitar mais as crianças, de não sermos rígidos, (a D. Odila tinha uma as-cendência muito grande sobre nós) Ela criou a EA e conseguiu desenvolver um grupo, (não é fácil fazer um grupo) um grupo coeso. Até hoje a gente se reúne, de vez em quando.

As palavras de Liba remetem a um trabalho pensado, programado por um

grupo que tinha ideais, sonhos e buscava o melhor para a escola. Assim, tal como

esse grupo planejava, nós íamos vivendo cada momento.

No último semestre, o estágio – tempo de crescente apaixonamento pelas cri-

anças, barulhentas ou silenciosas, alegres ou tristes, a maioria delas filhas da po-

breza. As aprendizagens do curso, aliadas àquelas que se construíram nas reflexões

sobre a própria vida e no cotidiano da prática, resultaram num final feliz.

O estágio de um semestre ao final do curso está proposto na reforma de 55

bem como as possibilidades de criação de escolas anexas para práticas das alunas.

O IE foi pioneiro, no estado, na organização dessa modalidade de estágio. Foi

criado pela equipe de professoras orientadoras Liba Knijnik, Maria Ligia, Terezinha

Oliveira, Maria Luisa Mascarenhas, dentre outras coordenadas por Odila Barrros

Xavier.

Varias são as menções a esse período do curso que marcou nossas vidas.

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Eu acho que fizemos um aprendizado muito bom mesmo no estágio. Orien-tadoras ótimas. Nos encantávamos com tudo! Era uma equipe, elas estudavam muito. O grande aprendizado! Talvez tenha sido decisivo, na formação, refletir sobre a prática e isto aconteceu com a Liba. Tínhamos encontros regulares com a orientadora e os gerais em que a Liba coordenava. Questionava permanentemen-te, problematizando nossa prática. Sobre isto, a Madalena Freire vai falar mais tarde. Nas Unidades de Trabalho, planejávamos com os alunos. (Arlette)

O IE recebeu seis escolas. De março a julho foi a primeira turma. Fiz o es-tágio antecipado de setembro a abril. Dona Odila nos chamou “as dezoito do for-te”56. Voltamos para fazer a parte teórica e nós fomos trabalhar nas escolas (sem remuneração) o que deu origem a uma portaria de louvor. (Maria Helena)

Neusa foi diretora na Escola Santa Flora, onde realizei o estágio, pois ela fize-

ra estágio antecipado e trabalhou um semestre gratuitamente e vai lembrando disso.

Fomos chamadas “as Dezoito do Forte” – fizemos o estágio antecipado; é-ramos voluntárias. Depois do estágio voltamos para discutir as práticas e com-plementar o currículo previsto Pergunta da Neusa: Por que isto? Haveria falta de professoras nas escolas anexas? Seria uma experiência ? Não lembro o motivo. Mas o que tinha clareza é que chegara o momento de concretizar meu sonho de ser professora!.

Foi tão significativo para essas alunas, de então, que anteciparam seus está-

gios, serem chamadas de “as dezoito do forte” que tanto Maria Helena, quanto

Neusa têm esse fato bem forte em suas lembranças. A metáfora das “dezoito” rela-

ciona-se à força, coragem, luta, destemor e isso, certamente, provoca sentimentos

de perceberem-se reconhecidas, valorizadas. 56 Em 1922, o presidente Epitácio Pessoa nomeia um civil para o Ministério da Guerra, o que causa agitação nos quartéis do Rio. A jovem oficialidade contesta a vitória de Artur Bernardes, candidato oficial à Presidência da Re-pública. O governo manda fechar o Clube Militar e prender seu presidente, o marechal Hermes da Fonseca. Em 5 de julho, parte da guarnição do Forte de Copacabana rebela-se. O governo manda bombardear o forte e decre-ta estado de sítio. Após frustradas negociações, 17 militares e um civil deixam o quartel e enfrentam as forças legalistas na praia de Copacabana. Os revoltosos são mortos; só os tenentes Eduardo Gomes e Siqueira Cam-pos sobrevivem. Termina, assim, a epopéia conhecida como a dos “Dezoito do Forte” representada por um grupo de homens que se sacrifica por um ideal. (http://www.weblinguas.com.br/biblioteca.asp)

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Essa breve passagem, pelas recordações do estágio, talvez diga pouco, se

considerarmos o quanto foi importante em nossa formação. Para mim, especialmen-

te, foi tão significativo a ponto de eu trazer, para a introdução deste trabalho, minhas

orientadoras e algumas crianças da minha primeira experiência em sala de aula.

Após o estágio, por fim, a formatura, um fato recordado por todas.

O governador, Leonel

de Moura Brizola, foi o para-

ninfo da nossa turma. Todas

foram contratadas como pro-

fessoras – presente de forma-

tura do “dindo” e para

registrar o acontecimento, eis

uma foto em que as forman-

das aparecem com o paranin-

fo e nossa diretora Mary

Acauan Titoff.

Esse fato foi tão marcante que aparece nas lembranças de Neusa.

Quando me formei, o então governador Leonel Brizola foi o paraninfo, as-sinou o contrato para todas as suas “afilhadas” e eu fui para o Anexo, como “ce-dida”. Fui professora do Anexo durante seis anos.

As formandas, a partir daí, já então professoras, passaram a exercer o magis-

tério em diferentes escolas da cidade, sendo que algumas, tal como Neusa, devido a

um convite especial da escola, ficaram no Anexo ou no próprio IE e é dessas vivên-

cias nessa escola que passo a falar agora.

12- Foto das formandas de agosto de 60 com o paraninfo Leonel de Moura Brizola e com a diretora Mary Acauan Titofff.

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5.9- A Escola Primária do IE: um processo de formação continuada

Os relatos sobre as vivências como professoras da Escola Primária do IE re-

fletem, mais uma vez, a escola de um tempo, desse tempo que vivemos juntas. Re-

força-se a idéia de que, ter sido aluna do IE e lá continuar como professora, seria o

equivalente a um bom Curso de Pedagogia. Foi fundamental, para nossa profissio-

nalização, essa experiência.

Com Liba, aprendemos a mergulhar no texto e desenvolver a leitura e a pro-

dução textual, redimensionando o trabalho com gramática e ela me conta o quanto

foi difícil introduzir tais modificações na Escola Primária.

Havia também uma “gramatiquisse“ especial, a língua era ensinada como gramática, então nós fizemos um grupo de estudos com a professora de Língua Portuguesa, a D. Adelina Tocheto. Nós não éramos professoras de Português, es-tudamos com ela e começamos a trabalhar naquilo que se chamou “Gramática Fun-cional”, que era a gramática a que tu também tiveste acesso.

I – Ah! Sim, contigo! L – Onde começamos a aplicar a Gramática Funcional foi na Escola Anexa,

porque nós tínhamos liberdade. Quer dizer, gramática era o ensino da língua: com cópia, ensinar o artigo, isso era até pôr ordem e tal. Então, o primeiro passo de atualização foi a Gramática Funcional, que nós fazíamos na Escola Primária do IE e na Escola Anexa. Tentei pôr a gramática funcional, que eu achava que era o má-ximo, acreditava, tanto que saíram duas publicações (uma com as primeiras expe-riências). Era material original das professoras. Fui professora, coordenadora pedagógica da Escola Primária. Quase “apanhei” das professoras – peguei o tempo que preparavam para exame de admissão, os alunos eram treinados. Eu era contra esse exame. Todas as crianças devem ir adiante. Era tanta “gramatiquisse” que busquei uma forma de fazer gramática para o desenvolvimento lingüístico da cri-ança. Para fazer mudança é preciso luta, e em luta, não se fala doce. Que luta foi trabalhar com as professoras da Escola Primária, introduzir a Gramática Funcio-nal! Tive pecados – adaptava o texto original dos autores para facilitar o trabalho

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das professoras. Selecionei os textos, adaptei-os, para ver se trabalhavam com autores que escreviam bem. Colocava os textos picotados.57

Arlette lembra que os encontros de estudos na Escola Primária representaram

um tempo de muito aprendizado.

Entrei no IE como convidada mediante indicação da equipe de estágio. Al-fabetizei uma turma, substituindo uma professora experiente que estava se a-fastando por razões de saúde. A diretora do Primário encaminhou para a direção um relatório sobre meu desempenho em geral. Recebi do I.E., através da direto-ra, D. Mary Acauan Titoff, uma Portaria de Louvor. Fui convidada a permanecer na escola. No primário do IE trabalhávamos Unidades de Trabalho. A gente pla-nejava com os alunos. Trabalhávamos também com Unidades Literárias – isso a-prendemos com Liba. Tomava-se um determinado autor para desenvolver a Unidade Literária por capítulos, poesias ou tomava-se um tema e trabalhávamos com vários autores.

Arlette recita partes de Tibicuera de Érico Verríssimo, e textos de Álvaro Mo-

reira.

O fato de ficar trabalhando no IE foi a complementação da formação: nos-

sas sessões de estudo, os laboratórios, a avaliação do trabalho – era um processo continuado de formação. Fazia-se estudo biográfico dos autores. Tivemos uma formação na prática do IE (primário) e anterior a isto, o ginásio que foi impor-tante também.

Os textos de Érico Veríssimo e de Álvaro Moreira estão também na minha

memória, pois vivíamos intensamente a literatura com nossos alunos e nossas alu-

nas, a ponto de serem memorizados poemas e alguns textos.

Maria Helena lembra das vivências na Escola Anexa que se traduziam em

muito orgulho de pertencer àquela escola.

57 O obra de Liba Juta Knijnik em que se encontram os textos supracitados intitula-se “Artes da Linguagem As-pecto Gramatical”.

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Eu sempre me achava anos-luz à frente das professoras da família. O fato de ser diferente não me incomodava. No IE éramos diferenciadas. A gente se sentia superior e, era, relativamente a outras práticas. A gente estava querendo entender o que se passava com a criança. Era tão embasado, tão forte, porque se estudava, se fazia relatórios. O IE tinha uma postura diferenciada. No Anexo, a prova era mensal, tabulavam-se as provas e pesquisava-se o porquê dos erros, fa-zíamos apresentação para os pais e daí se planejava. A pesquisa do erro era im-portante. Nossa cabeça era de pesquisadoras. Hoje, quando trabalho com empresas, trago isto sobre avaliação, levanto hipóteses de que o problema não está no sujeito. Havia um trabalho integrado. O que me sedimentou.

Essa concepção de “erro”, o pesquisar, entender o “erro” está na base dos es-

tudos de Ferreiro e Teberosky, de Vygotsky, mencionados no primeiro capítulo desta

tese e compõem, hoje, muitos outros estudos sobre avaliação.

As referências ao modelo de supervisão vividas na escola são bastante enfa-

tizadas.

O curso e o modelo de Supervisão vividos no IE foram decisivos em nossa formação. Quando fui para Faculdade de Pedagogia, só fui fundamentar o que eu já sabia, tinha vivido com Maria Lígia, Terezinha Oliveira e outras professoras no Anexo. Havia sessões de estudo para as professoras – tínhamos no Anexo, todos os sábados - cada grupo estudava um tema - passava o mês estudando. Exemplo composição, solução de problemas. No dia-a-dia era atendimento individualizado ou por classes paralelas. Tínhamos, como professoras da escola primária, uma su-pervisão permanente – é o contexto de trabalho onde as condições são dadas, se a supervisão não tem horas para planejar, não dá certo. Nós tínhamos sessões de estudos. Cada vez sobre um tema, com leituras. Fora isto, duas horas de orienta-ção semanal por classe paralela. Tenho relatório do trabalho com Cuisenaire58. Esse material não é do tempo do Normal, mas da Escola Primária do IE, do tempo da Matemática Moderna. Trabalhávamos também com Blocos Lógicos, Cuisenaire, se começava a trabalhar com várias operações, fazer associações. Com isso o alu-no ganha agilidade mental nas substituições das barras. Mais tarde, vem Lauro de Oliveira Lima com os trabalhos em grupo, “nós já estávamos carecas de fazer is-

58 Material criado por Caleb Gategno foi trazido por Dona Odila,para o Laboratório de Matemática a partir de es-tudos sobre esse teórico. Consiste, esse material, de um conjunto de barras coloridas que fundamentam o siste-ma de numeração, em qualquer base, incluindo a decimal. Usando essas barrinhas, opera-se com relações cor/tamanho sendo essas barras num total de dez unidades que representam o nosso sistema de numeração.

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so”. Tenho fotos dos meus alunos trabalhando com material didático, escolhendo os materiais com os quais iriam trabalhar. (Maria Helena)

Neusa também fala do “ser diferente” tanto no IE, quanto no Anexo.

O IE e o Anexo funcionavam com a característica de inovação. O jeito de trabalhar sempre foi diferente. Havia uma busca de mudança, de transformação, dessa coisa do inovador, do diferente, da tentativa, do experimentar, com muito mais ênfase do que hoje. Isso sempre me atraiu. Eu era muito ligada à escola. Ti-nha um compromisso de manter o padrão. Está, por trás disso, o fato de a escola ser experimental. Isso deve estar nas origens do IE. As professoras ousavam o diferente.

As pessoas do IE vão se reencontrando nos processos de formação e profis-

sionalização. É uma teia que vai se configurando, como está expresso nas declara-

ções de Neusa e de Maria Helena.

A vivência, como professora, com a orientadora Maria Lígia Borba dos San-tos Chaves foi marcante e isto fecha com o curso de Pedagogia, onde encontro Neusa Armellini – “cria” do IE e da Maria Lígia. A convite dela, trabalho na Fa-culdade São Judas Tadeu. Neusa apresenta o modelo de supervisão integrado. Fui ter, na faculdade, a fundamentação do modelo de supervisão que eu tinha vivido no início da carreira. Neusa deve ter ido buscar a teoria que fundamentou sua prática. No curso de Pedagogia fui aluna de Dona Graciema Pacheco que havia si-do professora do IE. (Maria Helena)

Fui encontrando situações de vida, algumas buscadas por mim e outras que se colocaram e que eu usufrui e vivi. Fui encontrando pessoas que me influencia-ram, me inspiraram, me abriram novos espaços de aprendizagem como as profes-soras Maria Lígia Borba dos Santos Chaves, a Juracy Cunnegatto Marques, a Cládis Bassani Junqueira. Sempre vivi o magistério como uma parte fundamental de minha vida. O espaço do IE, minha formação como professora primária, tudo que vivenciei depois, foi construindo essa profissional que fui e que hoje ainda sou, mesmo aposentada. Eu tinha que ser professora e acabou a conversa! A mar-ca do IE foi muito forte, pelas muitas oportunidades de crescer e aprender sob todos os pontos de vista: valores, situações, pessoas, grupos. Continuei traba-lhando com muitas colegas do IE no Anexo, depois, com colegas do Normal na

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SEC. O convívio e o trabalho com pessoas na universidade foi dando continuidade à minha formação pessoal e profissional. Fui professora da Maria Helena Schaan na Faculdade, depois ela trabalhou comigo na São Judas Tadeu. (Neusa)

As referências ao “modelo de supervisão” são veementes, porque isso fazia a

diferença – reuniões semanais com todo o grupo, reuniões de pequenos grupos e

individuais com a orientadora. Tudo isso junto possibilitava estudar, discutir as práti-

cas vividas, encontrar apoio, incentivo para avançar.

Maria Helena faz relações com sua vida profissional e o modelo, vivido no IE,

vale hoje em seu trabalho.

Nossas sistemáticas de assessoramento às alunas da Prática de Ensino em

Escolarização Inicial do Curso de Pedagogia, assemelham-se às que vivemos no IE.

Tenho defendido a idéia de que as professoras e professores das escolas públicas,

hoje, poderiam, talvez, realizar um trabalho menos solitário, através de uma prática

que favorecesse a implementação de um modelo de orientação pedagógica, quem

sabe, próximo àquele de tempos tão distantes, mas ainda válidos.

O sentir-se “anos-luz à frente”, de Maria Helena, era também um sentimento

nosso que se fortalecia pelo modo como entendíamos e vivíamos o IE,- e esse viver

estendia-se, para além das fronteiras da escola, pelas aprendizagens que também

se produziam nos contextos da cidade, nas pedagogias urbanas e essa será a pró-

ximo abordagem deste trabalho.

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6- De reminiscências, de acontecimentos: cidade educadora, pedagogias da

cidade, pedagogias de reciprocidade

A cidade é uma história que se conta para nós na medida em que caminhamos por ela. Significa alguma coisa. Ela ecoa no passa-do.

James Ilman59

6.1- Do nascimento das cidades às utopias

Na realização deste estudo, evocando minhas memórias de aluna da Escola

Normal e de professora da Escola Primária do IE entremeando-as às memórias de

normalistas, de então, também minhas contemporâneas, como professoras, ajustei

minhas lentes do olhar de hoje para as relações entre a escola e a cidade, buscando

focalizar mais um fator que pudesse ter sido significativo no processo de formação

dessas professoras.

Os estudos sobre cidades e suas múltiplas relações com a educação, com a

escola, embora datem de tempos remotos60 singram nos mares do presente, são 59 Citado por João Francisco Duarte Júnior (2003), p. 82.

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marcadamente contemporâneos, mas me instigaram a buscar as possibilidades de

construir relações, investigando o que poderia ter existido mesmo antes de se torna-

rem objeto de atenção e de reflexão.

Ao colocar-me interrogações de pesquisa, indaguei-me sobre a possibilidade

de nossa formação de professoras normalistas se ter constituído atravessada pelos

espaços exteriores aos da escola. Poderia a cidade ter sido tomada como fonte de

conhecimentos pela escola? Poderia a escola ter se aberto em possibilidades para a

cidade? Poderia a escola ter simbolizado o enclausuramento, o afastamento da ci-

dade?

Em busca de respostas a essas questões, trabalhei com dados de memórias

relacionando com trajetórias de formação de professoras do IE, num dado tempo

histórico, com estudos sobre cidades educadoras e pedagogias da cidade. Para me

aproximar deste tema, busquei teorizações contemporâneas que pudessem me aju-

dar nesse trânsito entre um enfoque atual e esse tempo passado. A relação entre ci-

dades educadoras, pedagogias da cidade e instituições escolares tem sido

considerada como possível e muitos estudos têm tratado deste tema.

Para relacionar esses estudos com os dados da pesquisa, selecionei alguns

dentre os teóricos que foram objeto de minhas leituras e apontamentos resultantes

das análises de textos, discussões e contribuições da professora Dr.ª Jaqueline Moll,

no Seminário Avançado: Pedagogias Urbanas e Desafios da Educação Contempo-

rânea.

Em Freitag (2002) uma abordagem histórica sobre o surgimento da cidade pa-

rece-me pertinente, quando estamos tratando desse tema. 60 Tonucci (1998), refere-se à Levis Munford que em 1945, no número 1 da Revista Italiana Urbanística, lembra que a cidade se esqueceu dos cidadãos começando pelas crianças, mulheres, velhos, desvalidos, voltada ape-nas para a população produtiva. O autor inicia seu ensaio pela citação de Joseph K. Hert que, em 1925, susten-tava as mesmas idéias. Esses dois autores, portanto, citados por Tonucci propõem repensar as cidades, refletindo sobre as diferentes idades da vida e a garantia de um retorno às “humanidades”.

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A referida autora, inicialmente, busca em Mumford (1961) teses sobre a ori-

gem das cidades, desenvolvendo algumas, como a de que a cidade dos mortos (ne-

crópole) antecede a cidade dos vivos (polis). As verdadeiras fundadoras de cidades

e civilizações teriam sido as mulheres, que cultuavam seus mortos em lugares, aos

quais, mesmo em períodos de nomadismo, voltavam, com regularidade, erguendo

santuários para aqueles que haviam partido deste mundo. As mulheres procuravam

ainda lugares mais seguros e protegidos para dar à luz, lugares esses simbolizados

pelo círculo remetendo à cidade com muralhas. A cruz, a grade ou o tabuleiro repre-

sentariam, de forma mais imediata, as ruas da cidade e, metaforicamente, a

ousadia, o expansionismo dos homens, sua atitude conquistadora e guerreira. Daí

que se compreende porque os hieróglifos de mulher, casa e cidade se confundem.

Esse mesmo símbolo já foi encontrado em Nimrod, em escavações, na Me-

sopotâmia, sob a forma de um baixo relevo assírio, mostrando que as cidades do

Oriente próximo antecederam, em milênios, a existência das cidades ocidentais, in-

cluindo as da Antigüidade Clássica, como Atenas e Roma.

Ainda sobre esse conceito histórico, Richard Sennet (1990) retoma a idéia da

representação de cidade enquanto círculo que encerra uma cruz, e lembra a oposi-

ção entre o dentro e o fora, a tensão entre o expansionismo (comércio/guerra) e o

recolhimento, a oposição entre a guerra e a paz.

Para esse autor, desde sua fundação, a cidade e sua representação estariam

caracterizando duas tendências contrárias da civilização humana: a expansão para

além de suas fronteiras (cruz/grade) e a defesa com muralhas fortificadas (círcu-

lo/muros). A cidade expressaria, ao mesmo tempo, construção e expansão versus a

destruição e a delimitação, além de outras oposições que, em diferentes épocas da

história das cidades, foram hegemônicas, como entre cidade e natureza, entre cultu-

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ra e civilização, entre urbs e civitas. - urbs estaria se referindo ao aspecto material,

urbanístico de uma cidade, traçado urbano das ruas, suas casas, praças e palace-

tes; enquanto civitas representaria o aspecto sócio-político da organização dos mo-

radores da cidade como cidadãos.

Ao discutir a forma e estrutura da cidade da Antigüidade Clássica, ainda,

Mumford, citado pela mesma Freitag, lembra que a idéia da cidade ideal, da cidade

sonhada, da utopia urbana sempre acompanhou a concepção de cidade61.

No livro “As cidades sonhadas”, citado por Freitag, Patrice de Moncan (1998)

fala de utopias, como Atlântida, Utopia, o Falanstério e até mesmo Brasília, relacio-

nando-as ao isolamento, porquanto as cidades utópicas, em geral, localizavam-se

em ilhas distantes, desconhecidas, com níveis populacionais pré-estabelecidos, por

exemplo, o Falanstério de Charles Fourier62 teria até três mil habitantes, Brasília foi

planejada por Lúcio Costa para meio milhão de habitantes.

As concepções de cidade utópica carregam, em si, a busca de uma socieda-

de perfeita, harmônica, diferente dos modelos vividos pelos idealizadores. Para al-

cançar esse ideal, são propostas medidas pedagógicas para educar seus moradores

como cidadãos esclarecidos envolvidos com o trabalho e com a paz.

Os utopistas preconizavam, entre outras coisas, a separação entre vias de

pedestres e de carros, a distinção nos espaços para habitação, trabalho e lazer,

imaginaram a produção de habitações em série e lançaram a idéia de criação das

áreas verdes como “pulmões” das cidades.

61 Thomas Morus, em 1516, publica em Latim, seu livro Utopia (u-topos significa lugar nenhum) em que descreve uma ilha não existente usando modelo de uma cidade perfeita, inspirada na obra de Platão, em especial no mito de Atlântida e numa ilha Fenícia relatada em “A República”. Freitag (2002). 62 Charles Fourier (1772-1837), pensador francês; segundo ele, a sociedade ideal era a que aglomerasse um grupo de famílias com vários profissionais, oficinas, hospedaria etc. Todos trabalhariam em função do grupo, chamado falanstério; as refeições seriam em comum, para expressar esta unidade. Os produtos não seriam comprados e vendidos entre eles mas usados segundo as necessidades de cada um como se fosse uma grande família. As atividades comerciais seriam com outras comunidades; Esta sociedade viveria num sistema de justiça e igualdade.

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Segundo Mumford (1992), também citado por Freitag (op. cit) grande parte

das utopias urbanas tinha caráter autoritário, propondo trabalho com horário obriga-

tório para todos e até horário para a o sexo. Não é por acaso que as construções

idealizadas pelos utopistas assemelhavam-se ao Panóptico de Jeremy Bentham63

que inspirou a arquitetura das fábricas e prisões futuras.

As utopias se desmoronam com a queda do muro de Berlim e do bloco socia-

lista. A globalização da economia mundial ameaça o estado-nação e começam a

surgir as cidades globais. Isso encaminha para a discussão do futuro das cidades e

se retoma a possibilidade de sobrevivência das utopias urbanas.

Quando estamos tratando de cidades e de memórias, parece-me interessante

essa abordagem histórica e conceitual, na medida em que nos remete para o que

vem antes, bem antes, a origem, os sentidos atribuídos aos termos, ao que chama-

mos de cidade. Idéias de fronteiras, muralhas, destruição, delimitação, urbs e civitas,

cidade ideal. Essas idéias, de um certo modo, aparecem involucradas nos projetos

de cidades educadoras.

As utopias continuam a ter seu lugar na história, como caminhos que, pare-

cendo andar em busca de um tempo perdido, tentam encontrar seu lugar nas turbu-

lências desse “admirável mundo novo”64 e é, por ai, que um dos sonhos de cidade

63 O “Poder das Sociedades Disciplinares”, se baseou, segundo Foucault, no modelo do Panóptico de Jeremy Bentham (1748-1832), o filósofo utilitarista inglês que idealizou o sistema de prisão com disposição circular das celas individuais, dividas por paredes e com a parte frontal exposta à observação do Diretor por uma torre do al-to, no centro, de forma que o Diretor “veria sem ser visto”. Isto permitiria um acompanhamento minucioso da conduta do detento, aluno, militar, doente ou louco, pelo Diretor, mantendo os observados num ambiente de in-certeza sobre a presença concreta daquele. Essa incerteza resultaria em eficiência e economia no controle dos subalternos, pois tendo invadida a sua privacidade de modo alternado, furtivo, incerto, ele mesmo se vigiaria. Es-se sistema permitiria também um controle externo do funcionamento do Panóptico, pois uma simples observação a partir da torre, permitia a avaliação da qualidade da administração do Diretor, sendo ele também vigiado. 64 Expressão que tomo de empréstimo a Aldous Huxley (1969) em Admirável Mundo Novo, embora tendo cono-tação diferenciada. O mundo é retratado por esse visionário como uma terra de opulência e devassidão de a-bundância e saciedade com habitantes despreocupados e alegres, mas com o pressentimento de um mundo estritamente controlado, liberdades individuais reduzidas a nada; e de uma pequena elite que manejava os cor-dões.

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educadora, pensada, a partir de crianças toma corpo nos ideais de um avô chamado

Francesco Tonucci.

6.2- Em busca do tempo perdido: a cidade dos sonhos de Tonucci os cami-

nhos e as vozes de nossas infâncias.

Esse preâmbulo tratando das utopias levou-me à obra “La Ciudad de los

niños” de Francesco Tonucci (1998) que, estabelecendo relações entre presente e

passado, vai situando aspectos históricos que fundamentam e encaminham sua

proposta de uma “cidade das crianças”.

Vai lembrando o autor, que nos últimos 50 anos, a cidade que nascera como

lugar de encontro e de intercâmbio foi descobrindo o valor comercial do espaço e

transformando todos os conceitos de equilíbrio, de bem estar e de convivência, para

desenvolver programas mais produtivos. Até bem pouco tempo, pobres e ricos vivi-

am próximos uns aos outros. Suas casas poderiam ser diferentes, umas de pobres e

outras de ricos, mas conviviam nos mesmos bairros.

Aos poucos, os terrenos foram adquirindo valores diferentes, conforme sua

localização e, com isso, os pobres se foram transferindo ou foram transferidos para

a periferia.

Os centros históricos foram se transformando em escritórios, bancos, restau-

rantes de comida rápida, sedes de grandes companhias. Ao anoitecer, o centro da

cidade se esvazia e se torna perigoso, os lugares mais bonitos se tornam proibitivos

para as brincadeiras das crianças, para o passeio e recordações dos mais velhos.

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As periferias, por sua vez, foram nascendo sem praças, sem verdes, sem monumen-

tos.

Nessa análise crítica que vem fazendo da cidade, incluindo as instituições es-

colares, Tonucci diz que as crianças são prisioneiras em suas próprias casas, muitas

vezes são solitárias e as menos privilegiadas socialmente estão entregues às ruas.

A escola seria o espaço, por excelência, de acolhida a umas e outras, lugar do co-

nhecimento e do prazer.

Entretanto não é bem o que encontramos, pois a menos que a escola mude

radicalmente – nesta, hoje, têm êxito os que conseguem ficar imóveis por quatro ho-

ras ou mais e aprender coisas inúteis, outros são sempre perdedores e, quando já

não toleram mais a humilhação, reagem e surgem os conflitos insuperáveis. Quando

a escola os rechaça ou eles a escola, não importa – a escola fracassou e será res-

ponsável por um dano maior – devolvê-las às ruas onde, quase inevitavelmente, se-

rão resgatados por quem lhe oferecer melhores condições, colocando, em suas

mãos, armas e drogas.

Esse teórico italiano, tratando, assim, do modo como são projetadas, vividas e

sentidas as cidades e da relação com as crianças e as instituições escolares, aponta

como possibilidade um outro jeito de conceber o urbano, descrevendo análises de

um projeto de Cidade Educadora bastante arrojado.

Tonucci nos fala do pensar, planejar, construir, viver a cidade desde a ótica

das crianças – uma cidade projetada pelas crianças – com participação efetiva nos

projetos e não apenas como exercício de aprendizagem da cidadania, de pequenos

cidadãos e cidadãs.

Ao ler a obra de Tonucci, bem como todas as referências à cidade educadora

coloquei-me outras questões, além das já explicitadas no início deste capítulo.

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Não terão sido esses sonhos vividos nos tempos de nossa infância? Nos nos-

sos tempos de alunas e de professoras? Será que já não vivemos um pouco a “ci-

dade das crianças de Tonucci” – nos tempos de não globalização, do convívio nas

instâncias locais, quando a floresta era o perigo e não o urbano?

Quero retomar essas questões, pois os sonhos de hoje, sonhados a partir do

mundo, da vida ou dos múltiplos mundos, múltiplas vidas, já que em diferentes es-

paços há mundos diversos, diversidade de vida e tempos, os sonhos de Tonucci, em

alguma instância, talvez já realizados, poderiam ser entendidos como busca de uma

utopia, de um tempo perdido, do passado revisitado, reinaugurado com roupagens

adequadas a esses tempos e espaços por onde transitamos inquietos e intranqüilos,

buscando novas direções,novos caminhos, que nunca são totalmente novos, posto

que já transitados por outros, desenhados nas memórias e, então, re-encenados em

novos palcos, por novos atores, cenários inusitados – por suposto, tudo montado

com intermináveis retornos ao passado.

É isso que faço também neste trabalho: enredo, tramo fios do passado e, en-

tão, Tonucci me transporta para a cidade da minha infância,

que é também a das entrevistadas, vividas, é claro, peculi-

armente por cada uma. Em suas narrativas de vida, Arlette

remete-se à infância e à juventude vividas intensamente na

cidade, no seu lugar de origem – a Ilha da Pintada65, falando

de uma infância com muitas brincadeiras, travessias de bar-

co pelo Guaíba que aconteciam para ir à escola, ou para

passeios em Porto Alegre.

65 Localizada na região norte do Lago Guaíba, o arquipélago do Delta do Jacuí é uma importante área de preser-vação natural da província costeira do estado. A ocupação da Ilha da Pintada e de outras remonta ao início do século passado. Até os anos 50, a importância econômica do arquipélago residia nas atividades pesqueira, agrí-cola, industrial e comercial, que se destinam ao mercado consumidor da cidade.

13- Mapa do complexo de ilhas do Delta do Jacuí, onde se encontra a “Ilha da Pintada”.

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Minha infância foi com muito brinquedo, muitas alternativas de brincadei-ras. A gente brincava de casinha, subia em árvores. Havia uma árvore frondosa plantada por meu avô (Emílio Mabilde) onde cada um tinha um galho para brincar. Era chegar na forquilha e se atirar. Além dos irmãos e irmãs, também havia as amigas, as vizinhas que participavam das brincadeiras. Tínhamos a carpintaria em frente a nossa casa – era o nosso palco – a gente montava programas de canto e dança. Brincávamos de teatro: éramos atores e platéia. No trólei, uma alternativa para brincar de carro. Quando o Guaíba estava encrespado, a gente dizia que ti-nha “mar”. A enseada protegia as embarcações “deste mar”. O Guaíba era alta-mente piscoso – havia muitos jacarés. Víamos sempre tudo isso.

Entrávamos no bote para tomar banho de rio em outras ilhas. Às vezes, o banho era na Pintada mesmo. Íamos todos juntos, irmãs, irmãos, mãe e pai.

Num dos seus “guardados” da memória, Arlette vai trazendo passagens da in-

fância, rica de brincadeiras nas proximidades de sua casa ou do estaleiro (que era

do seu pai), da ida ao “tambo” para tomar “leite quentinho da vaca”, lembrando que o

caminho até lá era muito divertido.

À tardinha, cada um pegava um copo, colocava chocolate, canela e ia até o tambo para tomar o leite quentinho “da barriga da vaca”. A caminhada até o tam-bo era divertida. Tu vês como a gente tinha opções de diversão e brincadeiras. Havia as festas da ilha, também. Brincávamos de roda, cabra-cega, amarelinha, tinha balanço em árvores. As casas tinham estacas e a gente brincava embaixo das casas. Fazia comidinha com talo de aguapé. Em nossas brincadeiras, reprodu-zíamos o que vivíamos. Brincávamos de enchente66 na banheira: fazíamos casinha com gravetos, colocávamos sobre estacas, enchíamos com água até que a casa fosse invadida. Eu tinha o “meu barco”, eu o comandava de um piso mais alto da cozinha, era o cais do porto, tinha até guindaste. Nossas brincadeiras aconteciam dentro e fora de casa, pelos arredores. Nós nos sentíamos sempre protegidos. Não havia perigos, a não ser a água. Minha mãe tinha muito cuidado. Quando saí-amos de barco para ir à cidade, à escola ou para algum evento cultural, passeio no centro, aulas de música, minha mãe ficava observando de binóculos.

66 Em 1941, as águas do Guaíba subiram quase cinco metros e desabrigaram 40 mil pessoas na capital. Foram dez dias de chuva que causaram a maior enchente da sua história. (Telelistas 2005)

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Essas recordações com muitas brincadeiras, muito jogo simbólico me remete-

ram aos conceitos de infância, a importância do brinquedo, do jogo, abordados por

Tonucci, na sua introdução ao tema da “cidade das crianças”, projeto de uma cidade

que toma, como parâmetro, as crianças, os velhos, os portadores de alguma defici-

ência. Ao perguntar-se sobre o porquê de se tomar a criança como parâmetro, co-

meça, o autor, discorrendo acerca da compreensão do ser criança, da relação com o

jogo e com o brinquedo.

Para Tonucci, o desenvolvimento da criança é mais rápido nos primeiros dias,

primeiros meses, primeiros anos de vida, segundo resultados de pesquisas, a “ex-

plosão” se dá depois do nascimento e não em torno dos seis anos, com o início da

chamada idade da razão.

Antes que uma criança entre pela primeira vez na escola, já aconteceram a-

prendizagens mais importantes, sobre as quais deverá constituir-se todo o conheci-

mento sucessivo. Quando essas aprendizagens não foram realizadas nesse tempo,

dificilmente poderão ser recuperadas, daí a importância de os adultos deixarem as

crianças brincar, jogar – brincar é perder-se no tempo, encontrar-se com o mundo,

em uma relação cheia de mistério, de risco, de aventura. O motor é o mais poderoso

que se conhece: o prazer 67.

O jogo livre e espontâneo de uma criança se assemelha às experiências mais

elevadas dos adultos – investigação científica, exploração, arte, música.

É importante as crianças libertarem-se dos estereótipos, exercitar sua criativi-

dade, seu olhar curioso. Então, são necessários profissionais que possibilitem às

crianças olharem para dentro de si, para seus desejos.

67 Tonucci não explicita em que teoria do conhecimento se embasa para os conceitos aqui expressos. Em alguns momentos parecem-me de uma base piagetiana. No entanto, ao afirmar que aprendizagens não realizadas, na infância, dificilmente serão recuperadas, distancia-se dessa base teórica que defende ser sempre possível em qualquer tempo o desenvolvimento.

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Hoje, o tempo livre das crianças desapareceu. Quando olham as ruas, as flo-

res, os animais, brincam livremente? Há mães taxistas levando filhos para escola,

natação, dança, ou crianças se aborrecendo sozinhas em casa e criança aborrecida

é um perigo – a necessidade de descobrir é mais forte que a de segurança.

O controle da infância, a impossibilidade de as crianças correrem os riscos

nas brincadeiras talvez seja o que se vai converter mais tarde nos jogos suicidas dos

adolescentes.

As crianças preferem brincar com amigos a ver televisão, portanto o problema

não é a televisão, nem tampouco, a solução estaria nas proibições.

As crianças precisam sair de casa – a cidade precisa acolhê-las. Em tempos

passados, os vizinhos também cuidavam as crianças. As pessoas eram tão rápidas,

quanto o telefone hoje, que representa uma tecnologia à disposição, dentre outras,

importantes, sem dúvida, mas que não ocupa o lugar da solidariedade social que

vem se perdendo. (Tonucci, 1998)

Quando me remeto às infâncias minhas e de outras, à solidariedade, aos cui-

dados dos vizinhos no meu bairro e às comparações que Tonucci faz com décadas

passadas e a atualidade, preciso atentar para o fato de que a cidade não é um corpo

homogêneo. Existem os bairros, as favelas, os bairros se diferenciam uns dos outros

e há, portanto, diferentes formas de viver os espaços urbanos, suburbanos.

Frei Leonardo Boff, em uma entrevista no canal 768 no dia 22 de abril do cor-

rente ano, diz:

A maior desgraça da humanidade, hoje, é a falta de solidariedade. O sonho, a utopia é a busca da solidariedade, a sua vitória sobre o mercantilismo. Precisamos buscar convergências na diversidade, pa-ra chegar numa humanidade. A política precisa ser a da sedução – seduzir para a paz, para a humanidade, para a solidariedade. Nas

68 TVE – Televisão Educativa – Canal de Porto Alegre

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favelas, em meio à miserabilidade, à violência, há uma grande solida-riedade. Os vizinhos se acolhem, se socorrem, atendem as crianças.

Frei Leonardo Boff foi feliz ao lembrar da solidariedade nas favelas.

Então, a perda da solidariedade, de que fala Tonucci, não poderia ser exten-

siva a todas as instâncias da cidade do mundo contemporâneo e nem a todas as

camadas sociais

Continuando a sua argumentação sobre solidariedade, Tonucci enfatiza a im-

portância de formar novos aliados das crianças, pois hoje há um exército a serviço

dos carros e pouco, muito pouco a serviço das pessoas, e, em especial, das crian-

ças, dos velhos, dos desvalidos. Os policiais precisariam ser amigos das crianças e

os comerciantes poderiam constituir uma rede de segurança e acolhimento.

Com relação à segurança, Arlette afirma que “não havia perigos, o perigo era

a água”, também há referências sobre isso em Tonucci, quando, aludindo aos con-

tos de fada, diz que, o perigo, antes era o bosque69, hoje é a cidade. Lembra que,

antes, tínhamos medo do bosque, o bosque que era o lugar do lobo, do monstro, da

escuridão, era o lugar onde podíamos nos perder. Remetendo-se aos contos de fa-

das, vai nos falar desses temores.

Quando nossos avós nos contavam contos, o bosque era o lugar pre-ferido para ocultar “trampas”, inimigos, angústias. Quando o perso-nagem entrava no bosque, começávamos a ter medo, sabíamos que poderia ocorrer algo. A narrativa se fazia mais lenta, a voz mais gra-ve, nos aproximávamos uns dos outros e esperávamos o pior. O bosque atemorizava, com suas sombras, seus rumores sinistros[...] (p.19)

Estabelecendo um contraponto com o bosque que significava o temor das cri-

anças a partir dos próprios contos de fada, Tonucci destaca que já a segurança es-

69 Bosque para os espanhóis é sinônimo de floresta.

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tava nas casas, na cidade, entre os vizinhos. Eram estes os lugares onde as crian-

ças buscavam seus companheiros e se encontravam para brincar juntos, era nos

tios e nos arredores das casas que as crianças construíam seus jogos aproveitando

os recursos que o meio oferecia, os espaços das ruas eram seu mundo.

Entretanto, tudo mudou em poucas décadas, houve uma transformação tre-

menda, rápida, total, como nunca antes se vira em nossa sociedade, ao menos em

nenhum documento da história escrita.

Por um lado, a cidade perdeu suas características, e se tornou perigosa e

hostil, por outro lado surgiram os verdes, os ecologistas, os defensores dos animais,

reivindicando o verde e o bosque. O bosque se tornou belo, luminoso, objeto de so-

nhos e desejos; a cidade se tornou feia, cinzenta, agressiva, perigosa. A cidade se

converteu no bosque dos nossos contos.

Essas referências ao medo, a relação do bosque com a cidade, em diferentes

tempos, aguçaram também mais recantos de minhas próprias lembranças.

Na minha infância, vivi por algum tempo em uma chácara, no bairro Cavalha-

da, que, naquela época, tinha características bem diversas das de hoje, porque

guardava um pouco do rural, em meio ao urbano que se desenvolvia em ritmo lento.

Nossa chácara era margeada por um “mato de eucaliptos”. Para mim, criança,

o medo era, sim, do mato – seus ruídos, seus fantasmas que se agigantavam ao

anoitecer, tomados pela fantasias que vinham dos contos de fada, mas também, não

posso negar, o medo oriundo das recomendações dos pais – e medo de “gente”,

que ali pudesse esconder-se e, de repente, pudesse atacar como o lobo mau.

Esse medo de “lobo mau” ligava-se às recomendações da mãe, especialmen-

te para meninas. Era preciso ter cuidado com homens, meninos, o que se relaciona-

va a temores do sexo, do abuso, assuntos bem presentes na família.

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Também no IE, o medo relacionava-se ao Parque da Redenção, situado pró-

ximo à escola. Era preciso ter cuidado para atravessá-lo. Havia os exibicionistas que

se escondiam por entre as árvores ou se aproximavam da cerca da escola. Isso

despertava, nas alunas, uma mistura de medo, repulsa e curiosidade. Para isto, ha-

via também alguma proteção, representada por alguém que chamava o “guarda”.

Já a cidade, em si, parecia não amedrontar, embora parques fizessem parte

da cidade, ao contrário, inspirava segurança, o andar pelas ruas, andar entre as

pessoas. Era possível ir ao cinema, à noite, no centro, e circular tranqüilamente pela

Rua da Praia, Borges de Medeiros, fazendo uma parada para um café, depois tomar

o ônibus e retornar para casa num bairro da Zona Sul, ou para qualquer outro bairro.

No bairro, tal como mencionado por Tonucci, havia a proteção dos vizinhos,

dos proprietários das poucas casas de comércio: armazém, farmácia, açougue, pa-

daria, também dos motoristas dos ônibus ou da “lotação” do “Seu Machado”, única

que levava do bairro ao centro. “Seu Machado” sabia os horários dos escolares,

aguardava “na parada” e era atento a tudo que se passava no interior de sua “cami-

onete”.

Antes de ir à escola de ônibus com o “Seu Machado”, eu costumava ir a pé,

quando estudava no “Grupo Escolar Roque Gonzáles”, no bairro onde morava.

Quando, hoje, andando de carro, passo nas proximidades do local onde mo-

rei, impressiono-me ao perceber a distância que havia de minha casa até a escola.

Naquele tempo, percorria-se uma parte desse trecho, atravessando pelo ma-

to. Havia medo, sim, mas até avistar a casa mais próxima ou pessoas que poderiam

ser, ou não, conhecidas.

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Esses retornos aos tempos da infância, também acontecem com Norberto

Bobbio70 que, ao prefaciar a obra de Tonucci, trata das transformações das cidades

nas últimas décadas e relaciona com sua infância:

Também para mim, não apenas para as crianças, a cidade se tornou um inferno. Eu me pego saindo cada vez menos de casa. Minha vida pode transcorrer entre quatro paredes do meu estúdio, mas não es-queci minha vida de criança. Pelo contrário, aparece cada vez com maior nitidez na minha mente. As mais belas recordações da minha infância são as das férias no campo, quando brincávamos sem ne-nhum perigo ao ar livre e vagueávamos pelos campos, por onde pas-sava, de vez em quando, algum carro puxado por bois. (p. 13)

No comentário da obra, Norberto Bobbio continua a falar de sua infân-

cia, lembrando que a cidade também era completamente diferente, pois vivia em

Turín, num bairro novo, numa rua chamada Gasômetro, em que não havia perigo e

onde ele e seus amigos podiam brincar livremente. Lembra que iam à escola em

grupos de cinco ou seis crianças. As brincadeiras também aconteciam nos pátios

das casas.

Comparando a cidade de sua infância com a de hoje, inspirado na análise e

projetos de Tonucci, diz Bobbio que as brincadeiras desapareceram da cidade, os

pátios se reduziram e que, na verdade, as crianças desapareceram das cidades.

Aparecem nos parques, onde os brinquedos são os mesmos, balanços, escorrega-

dores. (Bobbio in Tonucci 1998 p. 13-14)

Essas relações entre passado, presente e futuro, que inspiram tais reflexões

apresentam-se em “La ciudad de los niños” no encaminhamento de um projeto de

cidade.

70 Um dos principais filósofos políticos do século XX, é o italiano Norberto Bobbio. Era professor emérito da cida-de de Turim, na Itália, onde nasceu, estudou Direito e Filosofia, foi professor universitário e jornalista. É conheci-do como filósofo que se aplicou ao estudo do Direito, da Política, e é ponto de referência para aqueles que amam a democracia.

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Tonucci propõe uma cidade pensada, a partir das crianças, em que os admi-

nistradores olhem para as crianças, pois assim enxergarão todas as pessoas – o

que é bom para as crianças, também o será para os adultos. Do mesmo modo, partir

da diversidade intrínseca das crianças pode levar à compreensão de todas as diver-

sidades, compreender o desejo e necessidade das crianças torna mais fácil compre-

ender as necessidades dos velhos, dos desvalidos, dos imigrantes.

A idéia norteadora da proposta não é a de dar mais atenção à infância, mas a

de tomar as crianças como medida para favorecer a maioria.

Esse projeto, que intenciona, como diz seu autor, devolver à cidade às crian-

ças, se desenvolveria em torno de duas organizações centrais: o “Laboratório” e o

Conselho das Crianças. O “laboratório” seria uma entidade municipal com a função

de estudar, planejar e experimentar diferentes ações sobre a cidade, naturalmente

tomando a criança, como parâmetro. O Conselho das Crianças seria a forma estável

de participação das crianças e o espaço de suas vozes. Desses dois grupos emana-

riam os projetos para as cidades.

É, em Fano, na Itália que o projeto de Tonucci começa a se viabilizar em

1991, com um laboratório que tem o nome de “La ciudad de los niños”. Entretanto,

não significa um sonho totalmente concretizado, tal como expressam as palavras do

próprio idealizador.

Fano não é a cidade das crianças. É, sem dúvida, uma cidade que aceitou esse desafio e impôs uma estrutura que denuncia a contradi-ção e propõe um caminho. Para honrar a verdade, Fano fez também algo que é cada vez mais evidente e que não pode deixar de ser mencionado: incluiu o Laboratório em seu plano orgânico como uni-dade organizativa dotada de modernas instalações e pessoal dedi-cado em tempo integral [...] A prefeitura de Fano reconhece e sustenta as diversas iniciativas do Laboratório [...] O Laboratório está em relação com movimentos e associações nacionais e internacio-nais como As cidades educadoras, Unicef, União Européia [...] O Conselho das Crianças funciona como órgão consultivo do Laborató-

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rio o que garante o ponto de vista das crianças, não só acerca de medidas de interesse infantil, mas também sobre todos os problemas da cidade.

(Tonucci, 1998 p. 118, 119, 120)

Além de Fano, são citadas, pelo autor, algumas outras experiências como a

dos serviços municipais para a infância de Reggio Emilia71.

Jaume Trilla Bernet (1999) tratando sobre cidade educadora faz uma breve

análise das propostas de Tonucci, da qual destaco uma passagem.

[...] essa proposta oferece uma percepção hipercrítica da ci-dade atual, propõe uma transformação muito ambiciosa, quase utó-pica e idílica, porém sua importância é que esta dupla visão da cidade se acompanha, por sua vez, de pequenas propostas muito coerentes com a idéia de fundo e que podem ser postas em prática com relativa facilidade. [...] penso que o projeto de “La ciudad de los niños” constitui o melhor exemplo de que dispomos neste momento [...] (p. 48) 

Escolhi as palavras de Jaume Bernet, porque as identifiquei como um pouco

também minhas, num momento em que me perguntava por que estaria eu tratando

deste tema, nesta tese, em que investigo o Instituto de Educação, num processo de

entender também a formação de professoras na relação com a cidade.

E eis que encontro essas expressões “utópica” e “idílica” e talvez sejam mes-

mo utópicas e idílicas as relações que venho construindo, viajando por infâncias,

produzindo enredos que envolvem vidas narradas, contracenando com produções

teóricas, mas, mesmo assim, insisto. Respondendo minhas próprias questões ante-

riormente colocadas sobre esse tema, posso dizer que vivemos, em nossas infân-

cias, um pouco dos sonhos de Tonucci, pelo quanto podíamos nos apropriar dos 71 Reggio Emilia, cidade no norte da Itália, adotou um sistema de educação que tem como princípio respeitar a maneira de cada um aprender e, para isso, é preciso atentar aos caminhos que eles mesmos propõem. A teoria que sustenta todo esse sistema, a Pedagogia da Escuta, foi sistematizada pelo educador italiano Loris Malag-guzzi, que buscou fundamentos nos estudos em educação e neurociências dos anos 1960 e 1970.

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espaços, andar livremente pelas ruas, ocupar o tempo livre com muitas brincadeiras,

com muito convívio com os amigos e também com os vizinhos.

A cidade não era pensada projetada para ou a partir das crianças, nem ao

menos, teríamos voz, já que crianças, não seriam convocadas a opinar por aqueles

tempos. No entanto, o espaço também nos pertencia: pertencimento e acolhida

permitiam a mobilidade e, talvez, o que hoje compõe uma memória de carinho pela

cidade e pelos diferentes bairros por onde vivi, vivemos.

Daí que os sonhos utópicos, idílicos buscam o passado, o tempo perdido da

infância para, quem sabe, tomá-lo nas mãos e transformá-lo para o presente, na ten-

tativa de viver e acompanhar o progresso e suas benesses, sem perder de vista as

humanidades.

Por essas andanças do pensamento, meus próximos horizontes de aborda-

gem são as idéias de cidades educadoras que, de alguma maneira, estão contidas

nos projetos de Tonucci.

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6.3- Da persistência das utopias: cidades educadoras e a Porto Alegre das

memórias.

As tendências, os encaminhamentos dos projetos de cidade educadora po-

dem encontrar sua nascente nessa busca utópica de que venho tratando até aqui.

No texto: “Argumentos y estratégias para a construção da cidade educadora”,

Analia Brarda e Guillermo Rios (s/d) nos trazem contribuições que envolvem os sig-

nificados do termo cidade educadora, os aspectos da globalização, a relação cidade

e escola e as redes educativas. Para os citados autores, a palavra cidade remete a

múltiplos sentidos, não se referindo apenas ao fenômeno físico ou a um modo de

apropriar-se do espaço, mas também ao lugar onde se produzem muitas interações

e experiências.

Diferentes conceitos, ao longo dos tempos, foram constituindo a teoria urba-

na. A cidade teria sido pensada, inicialmente, como o oposto ao rural, depois como o

lugar da localização estável e permanente dos indivíduos heterogêneos, também

como resultado do desenvolvimento industrial e concentração capitalista que inicia o

fenômeno da metrópole como um tipo de sistema social.

Em termos atuais, as cidades, segundo esses autores, podem ser entendidas

como redes, circuitos, interconexões e esses conceitos fazem referência a outra

forma de estruturação do espaço relacionada a uma noção de mobilidade e de tem-

po. As atividades econômicas, culturais, a vida cotidiana e os lugares construídos se

organizam segundo as novas leis de redes e fluxos. Ainda, o fenômeno da globali-

zação identifica um processo de intensificação dos fluxos de informação, circulação

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de mercadorias, de capitais, de pessoas portadoras de novas formas de pensar, de

produzir, de vincular-se ou de relacionar-se, e isso em diferentes espaços e tempos.

A redefinição dos parâmetros da cultura urbana tem modificado os modos de

ser, de habitar, de relacionar-se na cidade e com a cidade. Cada grupo de pessoas,

nestas modalidades contemporâneas do viver, recorre apenas a pequenos setores

das cidades quando desenvolvem suas tarefas habituais e, talvez, por aí, se perca a

experiência do urbano, debilitando-se os laços de solidariedade e a idéia de perten-

cimento. Nesse sentido, se faz crescente a dificuldade de as pessoas se identifica-

rem com o entorno em que vivem ou trabalham.

As atividades vitais das populações urbanas se desenvolvem em diferentes

espaços, desde a própria casa, a rua, o bairro, a mesma cidade ou outro bairro, ou-

tra cidade. Por esses caminhos que levam a uma mutabilidade dos valores, formas e

sentidos - permeados pela vivência de não pertencimento se vem produzindo a per-

da dos significados urbanos e logo uma incapacidade de sentir a cidade como um

bem coletivo ao qual se está vinculado por obrigação e a par dos direitos individuais.

Tal como já apontado por Tonucci, a crescente preocupação com os proble-

mas ligados às transformações do urbano, ao fenômeno da globalização e às novas

relações que se constituem tem conduzido à construção do projeto de Cidade Edu-

cadora. Esse projeto, entendido como um instrumento gerador de um processo de

participação cidadã, pretende possibilitar a criação de um consenso sobre priorida-

des educativas e responsabilidades coletivas em matéria de educação, já que se en-

tende a participação como base da convivência democrática.

No 1º Congresso Internacional de Cidades Educadoras, celebrado em Barce-

lona, em novembro de 1990, produziu-se a Carta (revisada em 1994) que definia os

princípios básicos para um modelo progressista de cidade e se deu início à constru-

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ção da Associação Internacional de Cidades Educadoras. Apenas como exemplo,

cito o que diz a Carta em seu primeiro artigo:

Todos os habitantes da cidade têm direito a desfrutar, em condições de liberdade e de igualdade, dos meios e oportunidades de forma-ção, entretenimento e desenvolvimento pessoal que a própria cidade oferece. Para que isto seja possível, se deverá levar em conta todas as categorias sociais com suas necessidades específicas. Será pro-movida a educação na diversidade, para a compreensão, a coopera-ção e a paz internacional. Uma educação que evite a exclusão por motivos de raça, sexo, cultura, idade, incapacidade, condição eco-nômica ou outras formas de discriminação. No planejamento e no governo da cidade, serão tomadas as medidas necessárias para su-perar todo o tipo de obstáculo, incluindo barreiras físicas que impe-çam o direito de igualdade. Será de responsabilidade tanto da administração municipal como de outras administrações que incidam na cidade; e estarão também comprometidos, nesta tarefa, os pró-prios habitantes, tanto no nível pessoal, como através das distintas formas de associações às quais pertençam.

Invariavelmente andamos para frente e para trás nas relações históricas e es-

sa carta nos remete a outra, a de Atenas, a que Freitag no texto, aqui já citado, faz

referência:

Le Corbusier (nome verdadeiro: Charles Edouard Jeanneret), tornou-se célebre por ter reunido num documento, hoje conhecido como “Carta de Atenas” (1943), o encontro programático dos Arquitetos e Urbanistas, em 1933, na Capital da Grécia. Trata-se de uma espécie de 10 Mandamentos do urbanismo moderno, que influenciou, sobre-maneira, a arquitetura da segunda metade do século XX, em particu-lar os arquitetos e urbanistas brasileiros Lucio Costa e Oscar Niemeyer.

(Freitag, 2002, p.183)

A Carta da Cidade hoje teria alguma inspiração lá na Carta de Atenas? Talvez

isso não interesse, o que importa é a permanência da busca da cidade ideal, da

transformação da vida e das relações dentro desse planeta e, nesse sentido, alguns

projetos vêm se desenvolvendo em diferentes espaços.

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Eulália Vintró (2003) tratando sobre o projeto educativo da cidade de Barcelo-

na destaca que dois aspectos básicos desse projeto seriam fundamentais: o concei-

to de cidade e a importância da articulação entre os diferentes agentes educativos.

Para essa autora, a concepção de cidade está relacionada ao conceito de

sustentabilidade, isto é, com a idéia de fomentar, por meio da educação, atitudes,

hábitos, e comportamentos de cidadania, para que os recursos sejam usados de

forma a não comprometer a capacidade das gerações vindouras de decidir sobre

seu futuro. No projeto educativo, quando se refere à sustentabilidade e educação,

alerta, a autora, que não se remete exclusivamente a essa questão, mas também ao

próprio desenho da cidade para que transmita alguns valores determinados e, ao

mesmo tempo, torne visível a diversidade social, cultural e lingüística.

Sobre isso, assim se expressa Eulália Vintró:

Exemplifico: um dos critérios de atuação, formulados no Projeto Edu-cativo da cidade de Barcelona em relação à sustentabilidade diz o seguinte: ”Favorecer a riqueza da vida da cidade fomentando a mis-tura de usos, funções e pessoas de diferentes condições em espaços comuns e próximos”. Porque esse critério?

(Vintró, 2003, p.48)

Respondendo sua própria questão, Vintró desenvolve uma análise da consti-

tuição das cidades, da qual apresento uma síntese.

A modernidade racional projetou uma cidade “especializada” com áreas de

recreação e de ócio, áreas residenciais, áreas culturais, áreas comerciais - um e-

xemplo disso é Brasília, projetada nos anos cinqüenta. Esse modelo supostamente

permitiria reduzir gastos, já que a cidade, desenhada a partir de espaços especiali-

zados, permitiria concentrar os recursos para cada atividade em uma área determi-

nada.

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No entanto, para que essa cidade funcionasse, seriam necessárias vias rápi-

das que a cruzassem de um ponto a outro, o que vai trazendo como conseqüência

um aumento do uso de transporte privado e o esbanjamento energético. O carro vai

se tornando imprescindível para ir às compras, ao cinema ou a um restaurante, por-

que, nessa concepção, a vida residencial é estabelecida em espaços delimitados,

distantes do núcleo urbano e da atividade comercial ou de trabalho, em áreas cujos

habitantes têm alguma homogeneidade social e econômica. No âmbito educativo,

essa concepção de cidade apresenta problemas não só de sustentabilidade, mas

sociais porquanto favorece a marginalização e exclusão.

Por isso, no Projeto Educativo para Barcelona, propõe-se a que a cidade seja

concebida de forma que, caminhando, as pessoas possam satisfazer as suas ne-

cessidades: comprar, ir ao cinema, a um bar, a um restaurante. Isto significa acabar

com áreas “especializadas” e substituí-las por espaços comuns em que se misturem

usos, funções e pessoas. Essa idéia de heterogeneidade social rompe preconceitos,

estereótipos, torna possível a existência de escolas que reflitam a realidade social, e

poupa recursos. Esses espaços, assim concebidos, partem do ponto de vista da di-

versidade da população, possibilitando que a infância, as pessoas com deficiências,

os velhos, as mulheres encontrem segurança, se relacionem, desfrutem do ócio e se

adaptem às necessidades umas das outras. (Vintró, 2003)

Essa referência à heterogeneidade, mencionada no texto, era uma realidade

em meus tempos de aluna, pois tínhamos, nessa época, uma escola que acolhia di-

ferentes classes sociais e isto se dava mais, nos, então, chamados de “Grupos Es-

colares”. Como diferentes classes sociais conviviam num mesmo bairro, também

este convívio poderia ocorrer na escola, embora, é claro, as diferenças aparecessem

nas moradias, no modo de vestir, na dificuldade para comprar o material escolar.

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A esse convívio de diferentes classes sociais também faz referência Tonucci

(1998) bem como aos encontros intergeracionais.

Voltando ao projeto da cidade de Barcelona, esse representa um, dentre os

que vêm sendo propostos, nessa conceitualização de cidades educadoras.

As capitais Porto Alegre (RS), Belo Horizonte (MG) e Cuiabá (MS), além dos

municípios de Caxias do Sul (RS, Pilar (PBE), Alvorada (RS) e Campo Novo do Pa-

recis (MT) representam o Brasil na Associação Internacional de cidades Educadoras

(AICE), cuja idéia máxima é a de que a educação não deve ser exclusividade das

escolas. As cerca de 250 localidades, de todo o mundo, que integram o grupo procu-

ram articular seus múltiplos espaços na tentativa de oferecer formação integral à po-

pulação. Morigi (2004)

Como integrante do conjunto de cidades educadoras, Porto Alegre já tem al-

gumas iniciativas importantes que podem justificar esse título, embora, não seja

possível pretender que todos os problemas sociais tenham sido resolvidos.

Alberto J. Vilar (2004) elenca algumas das atividades que Porto Alegre vem

realizando com o intuito de promover o crescimento de seus cidadãos.

São programas, projetos relacionados à educação do cidadão, lazer, cultura.

São mencionados, pelo autor, os detalhamentos de cada uma dessas ações, mas

apenas citarei seis títulos – que encerram em si, os conteúdos:

Gota D’água; Os Caminhos do Lixo; Arroio não é Valão; Guaíba Vive; Ações

de segurança e ação no trânsito, direitos humanos; Educação para o Trabalhador e

cidadania, saúde pública; ações de Inclusão Social e resgate de Cidadania; Esporte

e Lazer, Políticas Culturais.

Há ainda, o Projeto Galpão que se envolve com os problemas de coleta, reci-

clagem, com a dimensão incomensurável que tem isso para a vida, para a sobrevi-

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vência econômica, social e ambiental da cidade e do planeta, inclui, em suas ações,

um Projeto de Escolarização que visa à formação de recicladoras e educadoras.

Há também os projetos da SMED72 que, segundo Pacheco (2004) vem ten-

tando combater a exclusão social, buscando uma educação humanista preocupada

com a preservação da natureza, vinculada à solidariedade entre os povos. Tais pro-

jetos dizem respeito à ampliação do número de escolas que trabalham com meninos

e meninas em situação de risco, escolarização de trabalhadores de galpões de reci-

clagem, escolarização de funcionários dentre outros.

A experiência do orçamento participativo parece ser das mais marcantes, tal

como postula Magalhe Oliveira:

[...] através do Orçamento Participativo (OP), Porto Alegre deixa de ser apenas um cenário de ação educativa, convertendo-se em agen-te educador. A cidade que educa e é educada oferece, generosa-mente, todo o seu potencial a serviço da municipalidade. São inúmeras vozes fazendo brotar a palavra, protagonizando a constru-ção da história do seu tempo.

(Magalhe, 2004, p. 83-84)

Essas são menções incompletas a ações que explicitam alguns contornos

possíveis que podem ser definidores de Porto Alegre como uma cidade que se pro-

grama para ser educadora.

Esse movimento que vem se instaurando em tempos de pós-modernidade,

desde o que preocupa, incomoda na medida do avanço daquilo que Tonucci (1998)

chamou progresso, referindo-se ao crescimento econômico e populacional, à indus-

trialização, à tecnologia, não fazia sentido em décadas passadas, especialmente em

Porto Alegre. Nesse tempo, a cidade tinha um número bem menor de habitantes73, o

72 SMED – Secretaria Municipal de Educação e Desporto 73 Hoje, Porto Alegre tem 1.360.590 habitantes (Censo IBGE/2000), centro de uma região metropolitana de 3.000.000 de pessoas. Na década de 50 eram 394.151 habitantes.

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urbano, às vezes, se confundia com o rural e a vida em comum mais próxima, mais

comunitária era quase uma exigência a partir das necessidades.

Neste trabalho, as referências à cidade, das décadas em estudo, não têm os

mesmos sentidos a ela atribuídos nos conceitos contemporâneos.

Não se poderia falar de uma cidade educadora, na perspectiva de ser plane-

jada, pensada de acordo com um projeto vinculado ao que está proposto na Carta

das Cidades. Ainda mais se considerarmos a distinção entre cidade educadora e

educativa estabelecida por Daniel Filmus (S/d) inspirado em Pilar Figueras, conside-

rando que toda cidade é educativa, mas nem todas podem ser denominadas educa-

doras, posto que esse último termo faz referência a um projeto político explícito de

colocar a cidade em função de educar em determinados valores e conteúdos.

No entanto, decido, mesmo assim, significar como educadora a cidade dos

tempos de que trato nesta tese, pois que desse modo ela se desenha na minha

memória. Poderia ser chamada de educadora naquilo de que dispunha, no que se

abria, se mostrava, acolhia e no que se poderia daí usufruir, viver, especialmente se

levarmos em consideração o conceito de Brarda e Rios (s/d) de que a cidade con-

tém, em si mesma, recursos educativos que possibilitam aprender na cidade, a cida-

de e da cidade.

Ainda, Filmus, no texto “Escola e Cidade Educadora: uma relação a aprofun-

dar”, trata desses conceitos de aprendizagem na relação com a cidade explicitando-

os.

Para esse teórico, aprender da cidade significa analisá-la como um agente de

educação informal, compreendê-la como transmissora de informações e cultura, o

que, relacionado às concepções de cidade educadora, significaria poder valer-se de

um projeto político explícito de colocar a cidade em função de educar em determina-

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dos valores e conteúdos. Aprender da cidade implicaria aprender com os recursos

de que essa dispõe e uma tarefa importante seria a de elaborar-se o mapa educativo

da cidade, ou seja, um inventário dos recursos disponíveis e as possibilidades de

uso de tais recursos. E eu acrescentaria que aprender da cidade poderia ser, tam-

bém, aprender valendo-se dos recursos que estão nos nossos caminhos quotidia-

nos. Para isto, seria importante educar-se o olhar, desenvolver as competências

para estabelecer relações entre múltiplos olhares até independente de uma proposta

pedagógica oriunda da própria cidade. Aprende-se, de modo informal, andando pe-

las ruas, no simples ato de andar, olhar, interagir com espaços, tempos e outras

pessoas.

Aprender na cidade tem o sentido de levar em conta o contexto, no qual a es-

cola e o sistema educativo levam adiante sua tarefa, ou seja, como se fazem sentir,

na escola, os efeitos de uma cidade que se pretende educadora e que papel de-

sempenha a escola frente a esse processo.

Já, aprender a cidade teria o significado de aprender sobre a cidade – esta

como parte do currículo. A possibilidade de estudar a cidade, desde a escola, impli-

ca poder compreender os processos ocultos atrás das fotos, ir além de um olhar su-

perficial para as cenas urbanas. A escola pode, assim, também transformar-se em

um laboratório, onde se colocam os problemas e conflitos que se vivem no meio so-

cial e abordá-los, a partir do mecanismo democrático que a cidade teria para resol-

vê-los. Aprender a cidade seria tomá-la como objeto de conhecimento, estudando

não só seus aspectos físicos, sociais, culturais, econômicos, históricos, mas também

os processos de produção desses aspectos e o que está para além daquilo que se

vê.

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Tomando tais conceitos, posso estabelecer algumas relações com o modo

como vivíamos a cidade e as possíveis aprendizagens decorrentes desse viver.

Aprender a cidade, tomá-la como objeto de conhecimento, estudando seus

aspectos físico-culturais não tem registro nas minhas memórias de aluna, mas nas

de professora. Isso acontecia quando éramos professoras do curso primário, quando

trabalhávamos a cidade, seus monumentos, sua história. Desenvolvi, por exemplo,

com meus alunos da terceira série, pelos idos de sessenta, um projeto em que co-

meçamos por estudar os monumentos da cidade e saímos a conhecer, explorar es-

paços, como a Praça da Matriz, os Três Poderes, a Biblioteca Pública, o Parque

Farroupilha. Daí desencadeia-se a pesquisa sobre os diferentes recantos do parque,

o que vai conectar-se à Revolução Farroupilha.

Esse é um exemplo banal, talvez, nada inusitado, mas emblemático de uma

forma de trabalho orientada pelos princípios da Escola Nova e que significava tam-

bém um dado jeito de aprender a cidade. Além disso, não tenho encontrado nas es-

colas, por onde hoje transito, situações similares sendo vividas no cotidiano.

Como tratar de memórias pode nos levar para terrenos escorregadios e, como

diz Eduardo Galleano (2002) também de contradições, parecem ser contraditórias as

lembranças das entrevistadas quanto ao aprender a cidade tomando a escola como

referência.

Liba, tantas vezes citada neste trabalho, com quem eu aprendi muito do que

sei e com quem fui também aprendendo a ser professora, diz que a escola era fe-

chada em si mesma. Ao evocar suas lembranças,quando indago sobre a possibili-

dade de alguma relação do IE com a cidade, ela diz que daquilo que percebe a

escola era hermética.

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O que eu posso responder sobre isto é que a escola, inclusive a primária – ela era fechada. Abriu-se para a cidade, nas “classes-laboratório”74. Fazíamos projetos, saíamos da sala de aula. Visitamos o Porto Seco, fomos a teatro, expo-sições de Arte. Eu dizia para os alunos (isso em 1977) “hoje tem vacas pastando aqui. No futuro, vocês passarão por aqui e poderão dizer que estiveram aqui quando isto era parte suburbana”.

Na entrevista, falo de minhas vivências, como sua orientanda e das coisas

que fazíamos: estudo da cidade, de monumentos históricos, “viagem imaginária” pe-

la, então, BR-2, hoje BR 116, que se torna “real” porque viajamos com as crianças

para Caxias do Sul, estudando a imigração italiana, para São Leopoldo, quando tra-

balhamos a imigração alemã. Um dia inteiro de viagem, levando conosco algumas

mães.Liba vai lembrando disso, ao que digo:

-Tudo sob tua orientação, contigo aprendíamos tudo isso. - É mesmo..., diz ela.

Posso acreditar que sua memória a levava a um tempo anterior àquele em

que fui professora primária, ao tempo em que ela assumiu esse trabalho de coorde-

nação pedagógica e em que tudo “era muito difícil”, segundo sua narrativa, a luta era

muito grande para transformar o já posto, já instalado. Ou, ainda, que mesmo na mi-

nha época, este não era um trabalho desenvolvido por toda a escola primária, mas

apenas por algumas professoras.

Além disso, posso considerar suas lembranças, como vindas de uma outra

posição de sujeito, a de coordenadora pedagógica. Orientar um grupo de pessoas,

esperar respostas, ações, lutar por mudanças é diferente de viver a situação de sala

74 Projeto criado por Liba knijnik em 1977 para classes de quinta a oitava série do IE. Essa experiência está bem relatada na obra “Apostando no aluno” de autoria da própria criadora dessas classes (1984). Foi um trabalho de vanguarda e Liba fez muitas referências a ele nas entrevistas. Não trato desse tema nesta tese como gostaria, porque precisaria me valer de muito mais tempo e espaço. Penso que falar das classes laboratório poderia ser um tema para outros estudos, teses. Valeria a pena investir.

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de aula. Quando algumas pessoas desenvolvem projetos mais ambiciosos e o fa-

zem com paixão, isto pode ficar lavrado em ouro ou bronze em suas memórias, já

para quem viveu a expectativa da transformação do grupo talvez fiquem as marcas

da frustração, do não realizado.

Maria Helena fala de alguns trabalhos que posso entender como “aprender a

cidade”.

Quando estudei Malinowski75 na Pedagogia, foi muito fácil pois eu já tinha uma referência de uma prática anterior, e fiquei encantada de lembrar que tra-balhava isto com meus alunos nas unidades de trabalho, pois a minha prática se deu entre 60 e 70 e Malinowski fundou essa prática na década de 40 e, só em 72 ou 73, na Pedagogia, que eu vim a conhecer essa teoria, Fazíamos diversas “saídas de campo” a fim de conhecer as peculiaridades dos bairros, as formas de comér-cio, Malinowski trata sobre isso: como os grupos vivem, suas tribos e diferentes grupos sociais, a satisfação das suas necessidades, o vestuário, etc. Lembro que levei meus alunos no 12° andar de um prédio na frente do IE para olhar a cidade de cima, a fim de trabalhar o espaço, o mapa e suas perspectivas.

Maria Helena lembra também do Movimento de

uma professora da escola, com seus alunos, em defe-

sa das palmeiras da Avenida Osvaldo Aranha, que se

constituiu como um projeto de estudos. Esse movimen-

to poderia ser entendido como uma forma de participa-

ção nos problemas da cidade.76

Entretanto, apesar do trabalho, então renovador

e de algumas ações que poderiam ser entendidas co-

mo exercício da cidadania, o aprender a cidade, naque-

75 Malinowski, Bronislaw (1884 -1942) fundou o campo da antropologia social conhecido como Funcionalismo. 76 A Professora organizou este movimento com seus alunos aliando-se a um protesto que houve na cidade como reação a idéia de derrubada de algumas palmeiras da Avenida Osvaldo Aranha.

14- Conjunto de 99 palmeiras-da-California intercaladas com Jacarandás na Avenida Osvaldo Aranha. Ao fundo, à direita, o IE.

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la época, não tinha o caráter de uma abordagem dos problemas e dos conflitos do

meio social, como um projeto de escola. Mesmo assim, significava aprender para

lém dos espaços escolares, tomando a cidade como objeto de conhecimento, bus-

cando aproximações com esse objeto e com algumas ações que poderiam se

caracterizar como relação com o meio social.

Quanto aos conceitos de aprender na e da cidade talvez eu possa dizer que

aprendíamos da cidade, porque nela vivíamos, circulávamos.

Nos meus tempos vividos de criança, de adolescente, de aluna, mesmo ante-

riormente ao Instituto de Educação, vivíamos num espaço mais livre para pedestres,

transportes coletivos, poucos carros, quando não tínhamos o desenvolvimento da

indústria automobilista brasileira e os carros importados eram um privilégio de pou-

cos, conseqüentemente, dos muito mais favorecidos economicamente77.

Assim, aprendíamos desde muito cedo, desde crianças, e por necessidade, a

andar pelas ruas, tanto do bairro onde se vivesse, quanto da cidade. Fazia-se ne-

cessário mapear a cidade, aprendê-la, ou seja, aprender a cidade e dela também

aprender.

Quando a escola situava-se muito distante de casa, como era para mim, sair

do bairro Cavalhada e estudar no Colégio São Luis, em Teresópolis ou na “Classe

Preparatória” ao “Exame de Admissão” ao Ginásio no Paula Soares, no centro da ci-

dade, era preciso tanto andar a pé pela cidade, quanto fazer uso dos transportes co-

letivos. Essa era uma forma de aprender da cidade.

77 A indústria automobilística vai se desenvolver e cresce o número de carros na década de 60. A grande maioria dos automóveis que trafegavam em Porto Alegre era de origem norte-americana e fabricada entre os anos 40 e início dos 50, mas a indústria nacional estava operando a todo vapor. Em agosto de 1961, a produção brasileira alcançou a marca de 400 mil veículos, dobrando o número de carros existentes cinco anos antes, quando Jusce-lino Kubitscheck de Oliveira assumiu a presidência e alavancou a indústria automobilística nacional. (Guimara-ens, 2003)

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Andar de bonde

cava vivenciar, dentre outras

situações de aprendizagem a

de leitura, havia os “reclames“

como eram chamados o que

seriam hoje as propagandas

ou comerciais, como por e-

xemplo, esta:

Veja ilustre passageiro o belo tipo faceiro que o senhor tem a seu la-do. E, no entanto, acredite. Quase morreu de bronquite. Salvou-o Rum Creosotado78

Hoje temos os “Poemas nos Ônibus”79 o que se pode considerar um projeto

inserido numa proposta de “cidade educadora”, pelo modo como se organiza, se de-

senvolve. Não só podemos realizar significativas aprendizagens de leitura e das lei-

turas, como criar poemas e concorrer a um processo de seleção para tê-los

publicados.

Já os “reclames” não se organizavam em projetos da cidade, divulgavam um

produto, tinham caráter comercial, mas poderiam funcionar como pedagógicos pelo

simples fato de oferecerem uma oportunidade de leitura, e da reflexão que daí pu-

desse advir. Ali estava presente, muitas vezes, a rima, o ritmo de uma poesia. Nós

os memorizávamos, de tal forma que, tantos anos passados, muitos desses textos

78 Frase criada em 1918 por Bastos Tigre (1882-1957) Fonte: www.jgimanez.fot.br – Sobre Brasil: 50/60. 79“ Poemas no Ônibus” visa estimular e divulgar a produção poética contemporânea, bem como, facilitar o conta-to com a poesia de autores consagrados. Realiza-se, anualmente, concurso para seleção dos poemas veicula-dos através da frota de transporte coletivo de POA, e também, através dos "Poemas no Trem" (Trensurb).

15- Vista aérea do final do bairro Bonfim e o centro de Por-to Alegre. À esquerda, abaixo, o IE década de 60.

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estão na minha memória e foram marcantes, tanto que aqui estou eu a trazê-los pa-

ra este texto acadêmico.

Assim, aprendia-se com os recursos que a cidade oferecia, até porque pou-

cos eram os meios de comunicação. A televisão não existia nos meus tempos de

criança. Vivia-se a era do rádio e antes do rádio, ou mesmo simultâneo a ele, era da

galena - fones de ouvido movidos à bateria. Já nos tempos do Curso Normal temos

a televisão ainda incipiente80.

Segundo Jaume Colomer (1998), citado por Brarda e Rios (s/d) em pronunci-

amento no encontro realizado em 1998 na Argentina, o potencial educativo da cida-

de é um dos aspectos menos estudados da vida urbana e este é importante, posto

que a aglomeração e a densidade são fatores que constituem o urbano e esta con-

centração é fonte de interação. Esse processo interativo com os demais cidadãos e

com a paisagem é fonte de aprendizagem e de cultura.

Se aprender da cidade significa vivê-la como fonte permanente de informa-

ções e desvendar seu currículo oculto e isso se dá num processo interativo com as

demais pessoas e com a paisagem, aprendíamos da cidade, nas vivências pelos

teatros, cinemas, exposições, museus. Aprendia-se da cidade vivendo a “Rua da

Praia”, um espaço de lazer, encontro, flerte namoro, rapazes no meio da rua - hoje

calçadão - as meninas passeando na calçada. Aprendia-se da cidade também nas

nossas combinações como: “domingo no cinema Imperial” ponto de encontro de es-

tudantes - lá estariam alunas também de outras Escolas Normais encontrando-se

com EPPA81, Julinho82 e Rosário83.

80 O Censo de 1960 apresentava os seguintes dados: número de domicílios no Brasil 13.497.823, no Rio Grande do Sul, 1.020.195; número de canais no Brasil, 27 e no Rio Grande do Sul, 1; aparelhos de TV no Brasil, 621.919 e no Rio Grande do Sul, 14.302. A televisão na década de 60: era uma novidade. Em todo o país eram 622 mil aparelhos de TV sintonizadas em vinte e sete estações de acordo com Guimaraens, só uma dessas estações a TV Piratini estava em Porto Alegre. No início de 60, eram poucas as famílias que possuíam televisão o que gerou a famosa figura do “televizinho”. 81 EPPA - Escola Preparatória de Porto Alegre (hoje Colégio Militar)

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As vivências da cidade, as matinês do Imperial, estão também na memória de

Luis Fernando Verríssimo84:

As matinês no domingo no Imperial seguidas de um “ice cream” na confeitaria central. Nas matinês antes de começar o filme, os rapazes ficavam de pé nas fileiras, virados para trás para verem as meninas e serem vistos. De gravata, posto que era domingo e Gumex brilhando no cabelo. Chaveiro com correntinha... As piadas, depois que come-çava o filme. Beijos saudados com grito de “gol”. E o máximo do hu-mor sofisticado era espantar o pássaro de apresentação da Condor filmes. Algo mudou nas nossas almas, quando paramos de espantar o Condor. (p. 29)

Veríssimo fala das matinês no Imperial, como se pintasse um quadro do que

vivíamos. São marcas de um tempo, trazidas com um certo grau de saudosismo,

que também apontam para as transformações: “algo mudou nas nossas vidas,

quando paramos de espantar o condor”.

Nas memórias de Arlette estes encontros, o cinema se presentificam:

O centro da cidade era um espaço que se oferecia culturalmente, social-mente às pessoas em geral, e, em especial, à juventude. Era a juventude se en-contrando – os rapazes no meio da “Rua da Praia”, as moças passeando na calçada. Saíam do IE uniformizadas e passavam com orgulho do uniforme, porque eram do IE. Íamos à matinê. O cinema era o local de encontro de estudantes. Não havia um movimento da cidade educadora, mas nós vivíamos a cultura aproveitando o que existia na cidade. Era o teatro, o cinema, as festas populares, as festas dos Diretórios Acadêmicos, as reuniões dançantes, as apresentações de danças clás-sicas e folclóricas.

Esse garimpar permanente, esse movimento de busca quando se esta reali-

zando uma pesquisa trouxe-me uma entrevista com Luiz Carlos Maciel85 no jornal

82 Colégio Júlio de Castilhos 83 Colégio Nossa Senhora do Rosário 84 Excertos do livro “Traçando Porto Alegre” de Luis Fernando Veríssimo (1999), com Ilustração de Joaquim Fon-seca. 85 Luiz Carlos Maciel estava à frente da coluna undergtround, no Semanário Pasquim. Ganhou o apelido de “Gu-ru” da contracultura. A matéria do jornal divulga seu livro “As quatro estações”. Jornal Zero Hora: 27 de agosto de 2005.

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Zero Hora. Ele cita um trecho, de seu livro, em que diz ter um recorrente sonho com

a cidade de Porto Alegre. Assim escreve esse chamado “guru“ da contracultura.

Tenho um texto no livro “As quatro estações” que fala da vida a partir de um sonho recorrente que eu tinha com Porto Alegre. Foi a cidade de minha adolescência. Descobri o teatro, a literatura e a filosofia no fim dos 50. Fiz parte dos grupos Clube de Teatro e Teatro de Equipe [...] Caminhava então horas seguindo por ruas, esquinas, praças de Porto Alegre [...] Eram, porém, lugares diferentes que eu jamais ha-via visto, nem dormindo, nem acordado. Não correspondiam às mi-nhas memórias. Não era Porto Alegre. Esta, a verdadeira, sumiu e não está mais em lugar nenhum. Evaporou-se, simplesmente. Des-materializou-se sem deixar rastros; ou o próprio fantasma perdeu-se. [...] Chegara a pensar que a cidade revista me levaria de algum mo-do mágico de volta ao passado. Mas isso fora engano. O passado é só o que falamos dele. Além disso, é o vazio.

Eis uma forma nostálgica e com um certo gosto de amargura de referir-se à

cidade de Porto Alegre – aquela “busca do tempo perdido”, a busca das imagens,

das cenas, que constituíram, produziram as vidas e eis também um jeito de compre-

ender e conceituar o passado como – só o que falamos dele – o vazio.

Convivo, convivemos, as pessoas que participam de pesquisa e eu com um

passado que não é para nós, o vazio, porque foi repleto de vida e de vidas. Os de-

senhos nas memórias têm forma-vida, mas concordo com Luiz Carlos Maciel quanto

a ser aquilo que falamos dele – e então do que falamos, como falamos é que consti-

tui esse passado.

Em vão seria procurar a cidade, tal como a escola desse passado ou marcar

encontros com as relações de reciprocidade cidade/escola, vividas naquele tempo.

Agora, retecer essa cidade na memória, nos diálogos, nas imagens, configurando-a

com o olhar do presente, talvez não nos ajude a compreender a cidade de hoje, mas

a situar os processos históricos que a foram produzindo e a problematizar o conceito

de cidade educadora, como algo somente vivo, a partir de um projeto. Nós vivíamos

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a cidade como educadora. Já a contemporaneidade, com tudo que traz, consigo, de

avanços, vinculados ao que se convencionou chamar progresso, mostrou as urgên-

cias de programas que viessem trabalhar no sentido de buscar alternativas para as

mazelas que, paradoxalmente, acompanham as benesses do avanço progressista.

Pensar cidades educadoras, para Brarda e Rios (S/d), significa também pen-

sar pedagogias urbanas e estas pedagogias se relacionam às possibilidades de en-

sino e de aprendizagem que se produzem pelos espaços urbanos.

Temos convivido com a crença de que só nas instituições escolares se ensina

e se aprende. Esses são, sem dúvida, espaços cuja competência atrela-se, numa

primeira instância, ao educar, ao ensinar. Espera-se que aqueles e aquelas que fre-

qüentam tais espaços, no mínimo, realizem aprendizagens, a partir do que se pro-

põem a ensinar as escolas, as universidades. Logo, sem negar a importância da

instituição escolar, temos que reconhecer que as aprendizagens se realizam em

múltiplos contextos da vida e que isto se dá dentro das casas, nos grupos sociais,

nos espaços urbanos.

Aprendíamos, assim, da cidade simplesmente vivendo os espaços, inde-

pendentemente da escola. Isso acontecia desde a infância, pela necessidade de ir

descobrindo o local, o urbano, mas também pelas possibilidades, considerando-se

os distantes tempos de uma cidade pequena em que se aprendia pelos trajetos

percorridos ou pela vivência, para além dos bairros em que morávamos.

Sobre essas necessidades e também possibilidades de viver o urbano, recor-

da, Arlette, que desde muito cedo começou sua aproximação com a cidade.

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Duas vezes por semana eu vinha para a “cidade”, como se dizia, para as au-las de música no Instituto Musical de Porto Alegre. Costumava vir também para a festa de Nossa Senhora dos Navegantes. Vínhamos de barco. Também vínhamos à cidade para eventos culturais. Vimos a peça “Juca e Chico” no Teatro São Pedro, peça alemã, com um grupo teatral alemão. Lembro que na sétima travessura, os meninos morrem. Líamos o livro da his-tória, sabíamos de cor. As cenas da peça eram montadas conforme o livro. Ah! Havia, ainda, o carnaval. Vínhamos fan-tasiados, meus irmãos e eu com fantasi-as feitas pela minha mãe.

Além das vivências pela cidade,

Arlette lembra dos acontecimentos na Ilha

ou em outros municípios:

Saia de barco e ia para Festa dos Navegantes até São Jerônimo. Minha mãe preparava cesta de piquenique, fa-zíamos piquenique também na época de eleições, quando papai era mesário. Sér-gio e papai faziam espetos de taquara e deixavam no oco de uma árvore para o ano seguinte. Havia quermesse na igreja da Ilha. Tinha os “tridos” que eram três noites e três dias de reza, muitas festas que eram organizadas por um casal de festeiros. Teve vezes de ir circo na Ilha da Pintada. Tinha um palhaço, Janguta, com um sapato muito comprido, eu nunca tinha visto um sapato tão grande. Usufruíamos daquilo que tanto a ilha quanto a cidade ofereciam.

As aprendizagens aconteciam, também, pela convivência com o centro da ci-

dade – espaço de trabalho, lazer e encontro que, nos sábados e domingos, era vivi-

do nos cinemas, teatros e durante a semana o era pelo simples andar pelas ruas,

encontrar pessoas. O centro da cidade era, pois, vivido pela população.

16- A barca do Estaleiro Mabilde, - “a Mabilde” das travessias feitas por Arlette.

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Guimaraens (2003) também nos traz suas memórias do centro de Porto Ale-

gre:

O centro, espremido contra a cidade e o rio Guaíba, em um dos can-tos da cidade, atraía pelo menos dois terços da população economi-camente ativa – ali estavam os grandes bancos, os hotéis, as grandes seguradoras, escritórios de advocacia, de contabilidade e representação comercial, as imobiliárias, os consultórios médicos, as barbearias mais tradicionais, as lojas de eletrodomésticos, casa de moda e bijouterias, os grandes magazines, pequenas indústrias. Era quase impossível não viver o centro ou por não ele passar. Era ca-minho obrigatório para chegar a alguns locais. Alguns pontos estão imortalizados nas memórias dos que os viveram e têm registros em muitas páginas da literatura até hoje: o Mercado Público, a Doca das Frutas, a Livraria do Globo, ponto de encontro dos intelectuais, na Rua da Praia, o Club Cotillon, o “point” mais chique da cidade, na Salgado Filho, o Teatro de Equipe, as confeitarias Rocco na Doutor Flores, e Matheus na Rua da Praia. (p. 26)

Tratando sobre esse tema dos centros das cidades, a escritora argentina Bea-

triz Sarlo (1995), citada por Brarda e Rios, estabelece uma comparação entre os

centros das grandes cidades, hoje, e os da década de 30, lembrando que em muitas

cidades não existe um centro, isto é, um lugar geográfico preciso, marcado por mo-

numentos, cruzamentos de certas ruas e avenidas, teatros, cinemas, restaurantes,

lanchonetes, painéis luminosos banhando os prédios. Já nos anos 30, se podia dis-

cutir se o centro verdadeiramente terminava numa determinada rua ou pouco mais

adiante, mas ninguém discutia a existência de um só centro: imagens, ruídos, horá-

rios diferentes; se ia ao centro desde os bairros como uma atividade especial de

domingos ou feriados, como saída noturna, realização de compras ou simplesmente

para estar no centro.

Esse conceito de um único centro a que se refere a autora, reportando-se à

década de 30, na Argentina, era o que vivíamos em Porto Alegre nas décadas de 50

e 60.

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A cidade era o que era - não projetada, programada para ser "educadora",

mas podíamos vivê-la como educadora por nossas próprias demandas. A cidade o-

ferecia-se e nós a acolhíamos, nós a vivíamos por nossos próprios desejos, e pelo

que se produzia como significado da cultura do urbano. A família, o grupo social po-

deriam abrir espaços de circulação, de convívio, de trânsito, num processo de incor-

poração da cidade à vida e da vida à cidade.

Aprender na cidade, tal como aqui vem sendo conceituado, estaria em rela-

ção direta com instituições educacionais e, isto, no meu entender, articula-se não só

com as pedagogias das cidades, mas com um movimento de ir e vir, no trânsito pe-

los espaços educacionais da cidade e da escola numa relação de intercâmbio.

Entretanto, este é um longo e complicado processo, especialmente se nos

remetermos à história da educação e sua relação com a cidade tal como chama a-

tenção Daniel Filmus (1997), lembrando que, nossas escolas, filhas da modernida-

de, têm dado as costas às cidades em que estão situadas. A idéia de escola pública,

em seus primórdios, está intimamente vinculada à necessidade de fortalecimento e

desenvolvimento dos espaços nacionais, com suas origens na Revolução Francesa,

que vai outorgar ao estado moderno nascente o monopólio da educação que estava,

até então, nas mãos da igreja e dos poderes locais.

Foi se constituindo, desse modo, um crescente movimento no sentido de ar-

rasar os localismos. A idéia de construção de uma cidadania nacional foi a coluna

vertebral desse processo. Mais de cem anos depois, um fenômeno semelhante ocor-

re em países como Uruguai, Argentina, Paraguai e Brasil. A educação moderna ins-

taura-se com o objetivo de garantir que as pautas nacionais estejam presentes nos

currículos, desestruturando os processos educativos locais e regionais.

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Desde essa perspectiva, a concepção de que a cidade é um fenômeno anti-

natural e violento do qual temos que afastar as crianças constrói-se na própria ori-

gem da escola. Consolida-se, em diferentes momentos históricos, a idéia de criar

uma “redoma de vidro” para proteger as crianças dos aspectos negativos das cida-

des, se vai fortificando a idéia de escola como redentora em oposição ao meio, den-

tro das concepções idealistas, em que maior valor é atribuído ao saber científico em

detrimento do saber popular.

Segundo os princípios positivistas, fortifica-se a idéia de negar a realidade do

meio fora das escolas, por ser esse considerado perigoso especialmente pelos go-

vernos militares. Tal isolamento da escola trouxe também uma crescente auto-

referência dos conhecimentos e dos valores - assim grande parte do que se aprende

na escola só serve para a própria escola, ou seja, para constituírem as avaliações –

aprende-se na escola para responder de acordo com ela mesma e conseguir suas

aprovações. Essa questão tem sido largamente discutida e reafirmada como a des-

vinculação entre vida e escola e que crianças, jovens e adultos sabem exatamente

quais saberes são necessários para se dar bem na instituição escolar e quais são

importantes para sua própria vida.

Uma contraposição a este fenômeno, de uma escola auto-suficiente e das

formas de vivê-la vinculadas a essa auto-suficiência, seria a de conceber a institui-

ção escolar como um lugar com responsabilidade na produção de competências e

de conhecimentos necessários para que os estudantes entendam o meio urbano em

que vivem e reforcem seus compromissos como cidadãos em sua transformação

permanente.

Nessa perspectiva, ainda, o próprio Daniel Filmus propõe uma articulação in-

tegradora com as instituições escolares, ressaltando que, se por um lado, há o iso-

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lamento, por outro, a escola vem trabalhando para integrar aqueles setores sociais

que a cidade, de alguma maneira, tende a expulsar. Essa contradição constitui a a-

ção docente, - quando o mundo do trabalho, o mercado de consumo, instituições so-

ciais e políticas públicas operam no sentido de manter, à parte, um grande conjunto

de pessoas, as quais não vivem sua cidadania plena, o sistema educativo propõe-se

a trabalhar buscando a inclusão dessas pessoas, na tentativa de inserção no mer-

cado de trabalho e nas decisões políticas, na vida política. Mesmo assim, na própria

instituição escolar se dá a exclusão daqueles que não demonstram aprendizagens,

conhecimentos, competências coerentes com o que se pretendeu ensinar.

Desde esse ponto de vista, uma possibilidade é a de pensar-se a vinculação

entre cidade e escola por uma integração em duplo sentido. A articulação entre essas

duas instâncias sociais pode potencializar a capacidade da sociedade para uma cida-

dania democrática – o papel da escola seria o de formar as gerações para que rever-

tam as tendências de exclusão e violência social. A partir daí, o principal desafio seria

o de planejar e construir modelos de convivência urbana, nos quais predominem os

valores de igualdade, de integração, de solidariedade, de justiça e de paz.

Deduz-se daí que é possível pensarmos em projetos integrados entre cidade e

instituições escolares.

Tais projetos, assim integrados entre escola e sociedade, visando à inclusão

não me parecem tão vivos hoje, pelo menos no que consigo observar junto às esco-

las, como orientadora das Práticas de Ensino, apesar de Porto Alegre integrar o con-

junto de cidades educadoras e das urgências que vivemos no sentido de atender

demandas das já tão decantadas “exclusões sociais”. Entretanto, ao mesmo tempo

em que havia, por parte da escola, um certo fechamento, protecionismo, a redoma, foi

possível constatar, pelas mesmas memórias e documentos, uma vinculação entre

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escola e cidade, tanto na época da Escola Normal quanto anteriormente a ela, o que,

de certa forma, tem relação com o conceito de aprender na cidade dentro da aborda-

gem aqui já referida. É sobre essa forma de vinculação que trato a seguir.

6.4- Nas redes do tempo: de pedagogias da cidade para as pedagogias de reci-

procidade cidade/escola

Nas buscas que faço nesta pesquisa, o que encontro, no circuito entre escola

e cidade, os eventos, os marcos relacionais me levaram a criar um conceito acerca

do que se vivia, então, que chamei de pedagogias de reciprocidade cidade/escola, já

que a cidade só podia ser entendida como pedagogia ou as pedagogias só existiam

na medida em que aconteciam pelo viver, usufruir, transformar os espaços os even-

tos em situações de aprendizagem.

O trânsito pedagógico cidade/escola/cidade seria, no meu entender, um trân-

sito recíproco – daí elaboro um novo conceito: o de pedagogias de reciprocidade.

Particularmente, no meu caso, foi pela escola que me introduzi nos espaços

da arte, da cultura erudita e isso, anteriormente ao IE.

Foi como aluna do Grupo Escolar Paula Soares, na Classe Preparatória ao

Exame de Admissão ao Ginásio, que assisti pela primeira vez a um concerto, com

todo o trabalho prévio, que acontecia em aula, coordenado por nossa professora de

música, Beatriz Regina, que era também declamadora e artista de rádio. Com ela,

comecei a desenvolver o gosto pela música, pela poesia, pela arte de declamar.

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Nos dias que antecediam o evento, a professora nos preparava, inclusive so-

bre a aparência, o vestir-se, o comportar-se. Caprichei no visual, no perfume e, nu-

ma mistura de ansiedade e receio, emocionei-me com a música. Acredito que tudo

foi muito mágico, muito fascinante, para estar vivo na memória, especialmente pelo

que precedeu o evento, pela valorização, a importância.

E aqui me vem uma relação com o trabalho de algumas alunas estagiárias e

(re)vivo uma ex-aluna, com as crianças de uma 1ª série de uma escola municipal,

numa visita ao Memorial do Rio Grande do Sul - encontrei-me com o grupo lá. Crian-

ças de uma vila da periferia da cidade, muitas mostrando sua pobreza extrema – lá

estavam - na sua melhor roupa, talvez algumas emprestadas das vizinhas, empol-

gadas, com atitudes afáveis, receptivas. Foram muito elogiadas pelos guias do Me-

morial. Houve muita preparação, muita expectativa e também valorização do que

estariam vivendo neste processo.

Lá, nos tempos idos de 50, eu entrando no Teatro São Pedro, hoje alunos e

alunas de uma orientanda de Estágio, talvez, também com muita emoção, conhe-

cendo um espaço histórico e alguns, quem sabe, vindo ao centro da cidade pela

primeira vez.

Essa lembrança do Grupo Escolar Paula Soares e da professora de música é

pontual. Representa um movimento da escola para a cidade tal como, a situação vi-

vida pela professora estagiária com seu grupo de alunos.

Entretanto, nos tempos do Ginásio ou, ainda mais fortemente, da Escola

Normal do Instituto de Educação, não só aprendíamos da e na cidade, seja vivendo

suas pedagogias, transformando em pedagógicos os espaços que se ofereciam,

mas também a escola abria-se para a cidade em suas pedagogias, o que aparece

em um dos depoimentos.

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O movimento do IE para fora, para a cidade se traduzia através da aber-tura para a comunidade: tanto o TIPIE, como o Orfeão Artístico, além de se a-presentarem na cidade, viajavam pelo estado. Também havia as idas ao cinema com a Maria Pereira. Combinávamos de assistir filmes que eram comentados na aula. (Arlette)

Durante os eventos comemorativos da Semana da Pátria, o Orfeão, como era

chamado o coral das alunas, já citado muitas vezes neste trabalho, se apresentava

em grandes espaços como o, hoje extinto, Campo do Cruzeiro. Nesses espaços se

faziam presentes tanto o Orfeão Geral da escola, que compunha o currículo, como o

Orfeão Artístico. Também o Orfeão Artístico apresentava-se no Salão de Atos da

UFRGS, dentre outros espaços. Arlette também fala sobre isto:

No curso Normal, foi importante minha participação no Órfeão Artístico, em eventos em que nos apresentávamos, como no campo do Cruzeiro ou em cida-des do interior do estado. Íamos de trem Maria Fumaça. Recebíamos delegações de outros países cantando o Hino de cada país que se fazia representar. Também recepcionávamos povos latino-americanos com direito a namoro e tudo. A figura de Dináh Néry era altamente positiva. Muito exigente. Gritava, sapateava, mas marcante, importante. Era uma mulher pequena. Tornava-se imensa quando regia o coral. Através dela conhecemos Madalena Tagliafierro (pianista) que se apre-sentou no auditório do IE, onde também recebemos Heitor Villa Lobos.

A escola estabelecia uma relação com a cidade, levando o que se produzia

no seu interior, o que era do seu currículo regular, como o Orfeão Artístico, o TIPIE,

o Grupo de Dança ou a Banda das Tamboreiras da Escola.

Assim como o Orfeão Artístico apresentava-se em grandes eventos, tanto em

Porto Alegre como em outros municípios, para os quais viajavam as integrantes

desse coral com sua regente, também o TIPIE tinha um papel importante nestas re-

lações pedagógicas com as comunidades, com a cidade, com o estado.

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Todas as quartas-feiras à

tarde, o IE abria suas portas pa-

ra a cidade com os espetáculos

do TIPIE - alunos e alunas, pro-

fessoras e professores de esco-

las da periferia urbana

participavam no pavilhão do IE

de peças infantis renomadas ou

escritas pelas próprias "alunas do teatro" como eram conhecidas as integrantes do

grupo da mestra Olga. Em outras situações, locomovia-se o TIPIE até as escolas ou

outros espaços para onde fosse convidado.

Em minhas memórias de aluna normalista e, mais do que isto de "aluna do

teatro" está presente o momento em que pisei o palco do Teatro São Pedro, para in-

terpretar, na peça "A Boneca Maricota", a personagem título desta obra escrita pela

colega Maria Helena Schneider. No teatro, não só encenávamos, como produzíamos

e criávamos cenários, figurinos, dirigíamos peças sob a orientação segura de Olga

Reverbel, que apostava em nossas possibilidades, criava espaços de autonomia,

comprometimento aos quais correspondíamos com muito trabalho, muito entusiasmo

e paixão, tal como já mencionei em outro momento.

E era com entusiasmo, paixão e seriedade que nos mesclávamos aos espa-

ços urbanos como extensões de nossas aprendizagens, de nossa escola, inflama-

das pelo orgulho de pertencimento àquela Instituição.

Fazíamo-nos pedagogias para a cidade, porque a escola assim se fazia.

17- Apresentação de uma peça pelo TIPIE no auditório.

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O grupo de dança e a banda também se faziam presentes não só saindo dos

limites da escola, como se apresentando no seu interior para Instituições convida-

das.

Além das vivências espontâneas pela cidade, aprendíamos o que esta ofere-

cia conduzidas pela mão da escola. Pela mão da cadeira de Teatro, assistíamos às

peças que vinham a Porto Alegre. Nas minhas lembranças estão algumas como

Otello, Romeu e Julieta, dentre outras. A oportunidade de conversar com atores nos

camarins, após a peça, sempre acontecia, quando íamos acompanhadas de nossa

professora de teatro. Então, Paulo Autran, Tonia Carreiro, Adolfo Celi, Maria De La

Costa, Felipe Wagner, Cacilda Becker, iam se fazendo familiares.

As leituras e discussões precediam a ida ao teatro e, na volta, a análise e crí-

tica, as releituras.

Lembrando a relação com o teatro, diz Arlette:

As idas ao teatro foram muito importantes para consolidar posições políti-cas, como por exemplo, “Eles não usam blacktie”, “O beijo no asfalto” – peças ex-tremamente defensoras dos excluídos. Lembro ainda o Teatro de Arena. Também Sérgio Cardoso. No Teatro São Pedro também os espetáculos de dança, como o “Real Balle da Dinamarca”.

Com o "Jograis de São Paulo"86 descobrimos uma forma teatral que me en-

cantou e que se desdobrou, mais tarde, em encenações com as crianças, minhas

alunas. Hoje, na orientação das alunas na Prática do Ensino, faço essa proposta de

trabalho e o passado tão longínquo é o próprio presente. As fronteiras se fazem tê-

nues, quando assisto a algumas encenações de "coral falado" das crianças, por ins-

86 Em 1955, Ruy Affonso, um dos fundadores do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) em 1948, criou os Jograis de São Paulo, conjunto formado por quatro atores, pelo qual passaram, em suas diversas formações, nomes como Rubens de Falco, Armando Bogus, Raul Cortez, Ítalo Rossi, Carlos Vergueiro, Homero Kosac e Fúlvio Ste-fanini, apresentando poesia, seja através de coral ou solos encadeados. O grupo excursionou por todo Brasil, Portugal, Angola, Moçambique e México

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piração que se deu lá no “Grupo dos Quatro” - os então famosos Jograis de São

Paulo que conheci pelo modo como a escola trilhava a cidade na sua competência

em produzir essas relações de reciprocidade.

E se eram poucas as ofertas da cidade, muito era o que se vivia, sentia,

aprendia, produzia a partir daí.

Os cinemas, que se concentravam mais no centro da cidade, embora também

se expandissem para os bairros, abriam-se em oportunidades ímpares - significavam

quase tudo de que podíamos usufruir de forma mais sistemática, já que teatro, espe-

táculos de danças, exposições de arte eram mais raras na cidade. O cinema era

quase uma espécie de culto. Isto está também nas memórias de Guimaraens

(2003):

A cidade cultivava uma devoção quase religiosa ao cinema, desde que, em novembro de 1896, foram exibidas as primeiras “fitas” atra-vés de um “cinematógrapho” francês numa “pharmacia” da Rua da Praia. Ir ao cinema era um ato semelhante ao de ir à missa todos os domingos. Em abril de 1948, o Clube de Cinema87, vem alimentar o culto à sétima arte em nossa cidade, presidido pelo então jornalista do Correio do Povo. O clube, era um espaço de debate e análise de películas e dos rumos cinematográficos. As sessões que promovia, nas manhãs de domingo, com obras escolhidas a dedo, eram enri-quecidas com calorosos debates sobre os filmes projetados, em que, estilos de narração, linguagem eram discutidos, analisados. Sessões como as de Hiroshima Meu Amor, obra-prima de Alain Resnais, o Grande Ditador de Chaplin, contribuíram para imortalizar o clube de cinema, da década de 50 e 60. Em julho de 1960 houve em Porto A-legre, o primeiro Festival de Cinemas promovido pelo jornal “Última Hora” com a presença de estrelas como Odete Lara, Eva Wilma, Maria de La Costa e o comediante Oscarito que desfilaram em carro aberto pela cidadde. O governador Leonel Brizola fez uma “declara-ção de amor” ao cinema anunciando a criação de um pólo cinemato-gráfico em Porto Alegre. (p. 51)

87 O clube de cultura integrado por intelectuais de esquerda, também dedicava boa parte de suas atividades ao culto cinematográfico promovendo sessões aos domingos à noite. Por lá passaram filmes como o Sindicato de Ladrões, de Elia Kasan.

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Muitas de nós éramos sócias do clube e lá nos encontrávamos aos domingos,

mesmo após a conclusão da Escola Normal, pela década de 60.

Nas aulas de Filosofia, Psicologia ou Sociologia, mas mais especialmente,

nas de Filosofia com a Maria Pereira, combinávamos os filmes a que assistiríamos

no final de semana.

Posso dizer que essas minhas lembranças também compõem a memória das

participantes desta pesquisa, como bem expressa a fala de Maria Helena:

Tu lembras que a Maria Pereira nos mandava ao cinema? Pela primeira vez vi um filme proibido para 18 anos: “Hiroshima meu amor”. Tive que dizer que a professora havia mandado, porque se a professora mandava, meu pai permitia. O cinema na década de 60 estava florescendo.

As recordações de Maria Helena confirmam a importância desse meio cultural

nas nossas vidas, na vida da cidade, mas havia, sim, também, além dos filmes proi-

bidos pela família, os censurados pela escola.

Alguns foram marcantes, porque a velada proibição funcionava, para muitas

de nós, como um convite a "violação da lei". Assim, "Les Amants" ou os "Sete Peca-

dos Capitais" ficavam no silêncio - não nos revelávamos.

Eram muito "fortes" - cenas de sexo que seriam "água com açúcar" se compa-

radas às das novelas que, em vários horários, estão à disposição de todos os espa-

ços onde houver um aparelho de TV, mas sobre esses filmes não se cogitava nem

tecer comentários – ficavam no limbo, no disfarce.

Outros como "Chá e Simpatia" tornavam-se alvo de nossos debates pelo seu

conteúdo, tratava-se de um romance entre uma mulher madura e um rapaz muito

mais jovem, que tem aí sua iniciação sexual. O argumento desafiava os padrões da

época, ofendia a moralidade vigente, especialmente, porque poderia provocar com-

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portamentos indesejáveis das jovens normalistas. Até porque essas alunas eram

preparadas para serem "grandes mestras", mas também jovens castas, futuras es-

posas e mães dedicadas, íntegras. Além disso, deveriam respeitar, em suas esco-

lhas, o que se convencionava como "certo" homem mais velho, mais alto, mais

instruído, mais "muitas coisas" em relação à mulher88.

Essas alusões ao cinema às censuras ou proibições encontram-se também

em Vidal (1998) em seu estudo, sobre o Instituto de Educação do Rio de Janeiro, no

qual a autora lembra que a expansão do cinema provocava intensa polêmica,nos

anos 20. Era combatido por educadoras, pelas perversidades e pelos maus hábitos

que incutiam na juventude, pelas cenas de beijos que eram consideradas impróprias

para moças honestas e as normalistas eram desaconselhadas a assistir tais cenas.

No entanto, o cinema era acolhido pela sociedade que se deleitava com as imagens.

Está se tratando, nesse caso, da década de 20, mas há resquícios de proibi-

ções, nas décadas de 50, 60 embora não haja mais polêmica quanto ao cinema, pe-

lo contrário, como diz Maria Helena, essa arte florescia.

De qualquer forma, com ou sem censuras, o cinema marcou nossas vidas e a

escola teve um papel significativo em nossa inserção nesse elemento cultural.

Não raro, as aulas de segunda-feira, começavam pela discussão de um filme.

Presentifica-se, em minha memória, o dia em que nossa professora de Filoso-

fia entra em sala e sem dizer uma palavra, movimenta-se pelos espaços com a mú-

sica que tinha apenas dentro de si, dançando "Zorba - o Grego" – filme que estava

em cartaz nos cinemas locais. Isso suscitou nossa participação como resposta a

uma aula que começava pela linguagem do corpo, pela dança, pelo movimento e

nos provocava para reflexões sobre o filme.

88 Esse é um discurso do pensamento positivista do século XIX, que vê a mulher como de natureza complemen-tar ao homem. (extraído de Louro, 1987)

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Era a cidade pela via do cinema, do teatro, dos concertos, dos espetáculos de

dança que invadia a escola, transformava-se em conteúdo ou em elemento desen-

cadeador de estudos, logo vivifica-se no currículo ou constitui o próprio currículo pa-

ra além do que está circunscrito ao papel, ao planejamento, que poderia incluir, ou

não, essas vivências. Sobre isso fala Arlette

Também havia o movimento pedagógico no sentido inverso: a cidade se fa-zia representar dentro da escola. Recebemos Henriette Morineau (francesa na-turalizada, atriz de teatro), Margarida Lopes de Almeida (poetisa/ declamadora), Walmor Chagas, Pedro Bloch – “As mãos de Eurídice”. O IE se valia da hoje cha-mada Pedagogia da Cidade.

Além dessas, outras aprendizagens vinculadas à cidade aconteciam nas au-

las ao ar livre com a Maria Pereira, onde estudávamos, discutíamos filosofia vivendo

os espaços do Parque da Redenção, ouvindo os pássaros, caminhando por entre as

árvores ou sentando em círculo na grama. Era aprender o conteúdo vivendo o que a

cidade oferecia, era a escola vivendo a cidade. Como bem sabemos, aulas como

essas eram preconizadas por Dewey e Freinet, pois vivíamos em tempos de Reno-

vação do Ensino.

Essas lembranças também são de Arlette:

Lembro as aulas de Filosofia na Redenção, usando os recursos da cidade, com Maria Pereira. Sentávamos no chão para ter aulas [...]

Outros movimentos que poderiam evidenciar o que estou chamando de peda-

gogias de reciprocidade cidade/escola eram as "Semanas Acadêmicas" organizadas

em conjunto com as agremiações de alunas.

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Elegia-se uma temática e, durante aquela semana, toda a escola envolvia-se,

incluindo, em algumas ocasiões, a comunidade, outras escolas, pessoas especial-

mente convidadas.

As ações estudantis que se desencadeavam pelas agremiações de alunas,

ocorriam em parceria com a escola - ou por outro lado, iniciativas da escola, que po-

deriam ser de uma disciplina ou de um grupo de professores - vinham a constituir--

se como eventos sócio-culturais que promoviam relações com a comunidade, com a

cidade. Assim, ocorriam as "Semanas Acadêmicas" que eram temáticas.

Algumas foram mais marcantes, para mim, como a "Semana do Teatro". En-

cenávamos peças no IE, aí não necessariamente infantis. Era um momento em que

as diferentes disciplinas entravam em cooperação. As encenações se produziam re-

lacionadas a estudos de Literatura, de Filosofia, de História.

Em um desses eventos, produzimos encenações de textos que se originavam

na Mitologia Grega, ou em outras obras literárias.

Lembro-me de ter vivido "Clarissa", personagem de Érico Veríssimo na obra

Música ao Longe, naquele espaço imponente que era o "Auditório do IE – lotado,

com a presença do corpo docente e discente e mais convidados especiais.

A escola parava, suspendia as aulas para expor, mostrar seu trabalho ao

mesmo tempo abria-se para ouvir, aprender com outras pessoas, que tivessem algo

a dizer. Então, os convidados como Walmor Chagas, Paulo José, dentre outros vi-

nham como palestrantes ou entrevistados das alunas - integrantes do "Teatro de

Equipe"89 também se faziam presentes. A professora Olga Reverbel trazia atores

convidados para assistirem as apresentações das alunas, do mesmo modo que pos-

sibilitava, a elas, a freqüência ao teatro.

89 O Teatro de Equipe, criado em 1958 por quatro jovens – Paulo José, Milton Mathos, Mário de Almeida e Paulo César Peréio, tinha a proposta de mostrar peças combativas que refletissem a realidade nacional e a cultura po-pular. (Guimaraens, 2003)

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Encontro entre os documentos "garimpados," tomados de empréstimo, um

que me chama especial atenção. Trata-se de um relatório da "Semana de Exaltação

à Juventude", organizada pelo "Conselho de Alunas do IE então, presidido pela nor-

malista Neusa Junqueira90.

Essa "Semana de Estudos" tinha como objetivos gerais procurar compreen-

der, organizar e estabelecer diretrizes para a conduta da juventude atual, criando o

código da Juventude.

De forma solidária e afetiva, Neusa colocou em minhas mãos esse relatório,

prova documental que guarda o tempo, conservando suas marcas, apresentando to-

dos os detalhes das ações desenvolvidas desde o histórico até o seu encerramento

e o documento que daí resulta com o título de "Código da Juventude do Instituto de

Educação"

No seu desenvolvimento movimentou a comunidade escolar, as demais Esco-

las Normais da capital - logo incorporou a cidade ao evento e incorporou-se a ela,

porquanto, aparecem nos planejamentos, nas atas, o modo como as alunas organi-

zadas por grupos - buscaram os jornais, as rádios locais, para divulgação do evento,

o modo como envolveram as autoridades governamentais, eclesiásticas, militares,

educacionais e agremiações como UGES91, UMESPA92.

Em reuniões com a direção e coordenação de cursos, foi elaborado um proje-

to de estudos do qual participavam todas as disciplinas do curso.

Uma abertura, em sessão solene no salão de Atos da PUC, com presença de

todas as autoridades convidadas, marcou o início desse evento estudantil, e do

mesmo modo outra sessão solene, no mesmo espaço, marcou o encerramento que

culmina com a leitura do Código da Juventude.

90 Hoje, professora aposentada da Faculdade de Educação da UFRGS e entrevistada.. 91 UGES – União Gaúcha de Estudantes Secundarista 92 UMESPA – União Municipal de Estudantes Secundarista de Porto Alegre

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Participações significativas são mencionadas, como Ernani Maria Fiori, José

Severino, Lucia Castilhos, Alvaro Magalhães, Padre Hyloquintanilha e Profª Nair

Marques Pereira de Almeida, então superintendente do Ensino Normal.

A ata do encerramento das atividades da Semana de Exaltação à Juventude

bem demonstra o caráter tanto de solenidade de que se revestiu o evento, quanto de

espiritualidade e religiosidade, que se manifestavam nas palavras dos palestrantes.

Pelo valor histórico desta ata, permito-me apresentá-la, juntamente com a foto da

presidente do Conselho de Alunas com professora Nair Marques Pereira por ocasião

do término do evento.

18- Neusa Armellini com Nair Marques Pereira no encerramento da “Semana da Juventude”.

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19- Ata de encerramento da “Semana da Juventude”.

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Como entrevistada, nesta pesquisa, a própria coordenadora desse evento,

destacando como importante, em sua trajetória, a liderança que exerceu na escola,

relembra os acontecimentos:

Acho que ocupei um espaço de liderança na escola desde cedo, fui presi-dente do Conselho de Alunas, havia o Conselho e o Grêmio Estudantil que era mais ligado ao esporte. O Conselho de Alunas tinha representantes de todas as turmas e um relacionamento com a direção da escola. Foi desse modo, através do Conse-lho que se produziu a Semana da Exaltação à Juventude, projeto que transcendia ao IE, que reuniu os centros estudantis (1959 – 1960), As lideranças das Escolas Normais de Porto Alegre, públicas e particulares participaram. Em função da Semana de Exaltação à Juventude, houve uma aproximação com a UGES. O Con-selho de Alunas focalizava a dinâmica interna da escola. O Grêmio era filiado à UGES, D. Cruzaltina era a orientadora do Conselho. As Representantes de Turma levavam, ao Conselho, suas necessidades e propostas. A Lucy , presidente do Grêmio, se articulava com o Conselho e com a UGES. Fazia-se política interna no IE, mas não política externa. Havia a idéia de harmonizar, ouvir as alunas. Eu me vi fazendo uma certa iniciação, uma certa preparação política no Conselho. As lu-tas políticas vão chegar, mais tarde, na Faculdade, inclusive os estudos de Paulo Freire.

A fala de Neusa reporta para uma relação da escola com a cidade que não se

constitui desde o ponto de vista político e social. Entretanto, convém lembrar que os

movimentos estudantis das agremiações, dentro das possibilidades da época, de-

senvolviam, já um despertar para a responsabilidade política. Mais do que as agre-

miações estudantis exerciam esse papel as ações religiosas pelos grupos de JEC

(Juventude Estudantil Católica) e JUC (juventude Universitária Católica).A JEC, no

nosso tempo de alunas,era dirigida por Ana Maria Zardim.

Nestes grupos me iniciei em estudos de textos como os de Teilhard de Char-

din93 e começo a tomar contato com idéias marxistas e a despertar para uma outra

93 Pierre Teilhard de Chardin, autor de entre outras obras, “O Fenômeno Humano” em que desenvolve a teoria da evolução como se processando por etapas, organizando-se em leques, que produzem novos galhos para a Árvore da Vida.

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concepção de mundo, de sociedade, a perder um pouco da ingenuidade, ou do que

se chamava de “alienação”.

Também Louro (1987), faz referências a esses órgãos estudantis religiosos

como a JEC, que significava uma interferência não programada ou desejada pela

escola, mas que, segundo uma de suas depoentes, era uma instância em que as

alunas começavam a se dar conta de uma realidade social diferente da do IE e de

uma realidade política, porque a escola, no seu interior, parecia defender-se da dis-

cussão mais política dizendo que, embora a escola não se envolvesse em uma dis-

cussão social e política, essa acontecia na escola.

Ao acontecer na escola, com a permissão da escola, essas discussões pro-

porcionavam alargamento de horizontes políticos e significavam trânsitos pedagógi-

cos entre agremiações, outras escolas, o que seria também um movimento de

pedagogias de reciprocidade e, nessa perspectiva, faço minhas as palavras de

Louro:

A escola não era, pois, tão fechada, como se poderia pensar, ou até como alguns o desejassem, naturalmente, como qualquer prática so-cial, era plena de contradições.

(Louro 1987, p. 6)

Esses acontecimentos significavam mais uma forma de a escola, mesmo sem

um projeto específico, propiciar o viver a cidade, viver aquilo a que hoje se está

chamando pedagogias da cidade, ao mesmo tempo em que se abria para a cidade,

levando-se em pedagogias, o que categorizei como pedagogias de reciprocidade.

Impossível não se tratar das contradições, quando se pensa em histórias de

educar e especialmente quando estas nos vêm pelas memórias.

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6.5 - Das “verdades” da memória ou da semeadura das contradições

Trabalhar com memória é encarar a contradição, é encontrar-se com o que te contradiz e te espanta.

Eduardo Galleano

Minhas memórias aliadas às das entrevistadas e à leitura de alguns documen-

tos da época me permitiram, tal como eu me havia proposto, estabelecer relações

entre a Escola Normal do Instituto de Educação, num dado tempo histórico, a forma-

ção de professoras e os estudos contemporâneos sobre cidades educadoras e pe-

dagogias da cidade.

Foram os estudos sobre esse tema, hoje, que me conduziram a buscar esses

laços relacionais com o passado. Partindo das leituras sobre a cidade, cidade edu-

cadora, pedagogias urbanas, cheguei à construção de um conceito de pedagogia de

reciprocidades cidade/escola e isso me permitiu trabalhar com a idéia de que a for-

mação das professoras do IE se teria produzido atravessada por essas pedagogias,

pela relação com uma cidade educadora, numa escola que “se abria em pedagogi-

as” e que propiciou viver as pedagogias da cidade.

Entretanto, só me é possível mesmo levantar hipóteses, talvez frágeis, do

ponto de vista de uma generalização, mas defendo a tese de que minha formação

assim ocorreu, dado que este é o registro da minha memória.

É assim que me percebo: constituída por esses atravessamentos. Do mesmo

modo, estão tais atravessamentos registrados nas memórias das entrevistadas de

formas diversas, desde considerar as reciprocidades como marcantes na sua forma-

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ção, ou atribuir à escola pouca abertura para cidade, comunidade até entendê-la

com alguma abertura que vai se dar por vias distintas na vida de cada uma.

Encontramo-nos, mais uma vez, no terreno das contradições que não se tra-

duzem somente pelos desencontros das memórias, pois que essas refletem o modo

como cada uma viveu a escola e a cidade, desde as suas próprias circunstâncias e

desde os sentidos que foram produzidos para esse viver, mas, também, pelo modo

de entender-se o quanto essas memórias são a história da escola e das relações de

reciprocidade ou não. As contradições são constituidoras do viver, como bem desta-

cou Louro (1987).

[...] Contradição supõe um movimento dialético em que um elemento nega o outro, mas ambos dependem e se constituem mutuamente. E este é próprio movimento que fundamenta vida e cria a transforma-ção. (p. 76)

É alicerçada nas contradições como “movimentos” que fundamentam a vida,

que volto ao IE. Por um lado, uma escola fechada, a redoma, a proteção das alunas,

o bastar-se a si mesma, por outro, instâncias educacionais ou agremiações estudan-

tis, algumas criadas pela própria instituição, por iniciativa de uma ou mais professo-

ras ou pertencentes a um âmbito institucional mais amplo, de qualquer forma,

funcionando no interior da escola ou por ela autorizada, o que nos possibilitou o que

considerei como um forte trânsito de reciprocidade cidade/escola e uma possibilida-

de de viver a cidade como educadora, num processo de apropriação de suas ofer-

tas, de seus processos educativos.

Ainda assim, quanto às minhas próprias memórias sobre as relações com a

cidade e as “pedagogias de reciprocidade” cabem ainda algumas reflexões.

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A escola não explicitava uma preocupação com o social, com o político, em-

bora esses objetivos provavelmente estivessem no currículo, já que a Reforma de 55

faz menção a isso.

As pedagogias poderiam ser traduzidas como do âmbito da cultura erudita, da

arte, o que funcionava como elemento de força na educação das alunas. De qual-

quer forma, a abertura acontecia nos movimentos do viver-se, viver a escola, a cida-

de, incluir a cidade na escola e abrir-se para o social, para o político – e isto se dava,

com já vimos, pelas “brechas” que, a própria escola abria – a cidadania produz-se

por aí.

Assim como as pedagogias de reciprocidade, também as referências à cidade

estão tramadas nas contradições, visto que o que conceituo como educadora não

está em consonância com o conceito constituído a partir das exigências do mundo

de hoje. Esse conceito de educadora que atribuo à cidade do passado, tomada pe-

los estudos do presente, tem sentido num tempo em que o pouco era muito, pelo

quanto de significação produzia.

.A cidade, a que decidi chamar de educadora, assim o era pelo que está

constituída na minha memória, sentida, vivida, tal como a percebo hoje ao olhar para

trás, re-caminhar ruas, re-viver os espaços, pensando na pessoa que sou, nas a-

prendizagens que fiz, era educadora, também, desde o modo como interpreto as

narrativas das entrevistadas.

Minha educação, a produção das humanidades se fizeram pela escola, pela

família, pelo convívio com os arredores, com os vizinhos com a vida da cidade.

Nunes (1992) me levou a refletir mais sobre as relações entre escola e cida-

de, pois ao tratar desse tema, referindo-se ao Rio de Janeiro, na década de 30, na

gestão de Anísio Teixeira, diz que a escola, tal como a cidade, era algo mais do que

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um aglomerado de pessoas, conveniências sociais e equipamentos matérias: era um

estado de espírito. Para além da materialidade do espaço e do processo de sua utili-

zação, o que estava em jogo era a dimensão simbólica de representação do urbano.

Assim a escola, como espaço construído, fechado e, nesse momento, com elevado

grau de privatização, foi manipulada de várias formas para se abrir e interferir de

forma incisiva sobre a “vida comunitária”94 que a cercava.

“Ler a cidade” exigia da escola o seu crescente afastamento da casa e sua

aproximação tensa com as ruas. Dentro da dimensão simbólica da representação do

urbano, a presença da "multidão" nas festas escolares, especialmente nos bairros

mais pobres, inquietou mais do que a ocupação dos espaços urbanos pelos profes-

sores e alunos das escolas.

Essa pedagogia urbana que identificou a cidade como methodus foi elaborada

por educadores que arduamente lutaram pela profissionalização pedagógica. Sabe-

res e poderes foram acionados para construir uma política educativa desdobrada no

cotidiano da cidade.

O IE, aqui, em outro tempo, tanto quanto outras escolas configuravam e pro-

duziam também um outro urbano, tanto pela presença física dos prédios, da impo-

nência das construções, quanto pela participação viva e simbólica de jovens nas

ruas. Desde o quotidiano do ir e vir, de colorir a Rua da Praia, desde um jeito de

namorar, de se encontrar, nas saídas e entradas das escolas até as manifestações

culturais.

Produz-se um modo de encontrar-se, relacionar-se: as saias pregueadas das

ginasianas e normalistas atraem os jovens “rapazes” para as ruas; bem como o trân-

sito ou as rodinhas de conversas, desses, em determinados espaços das vias públi-

94 Grifo da autora.

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cas atraem as estudantes. Eis mais uma vez uma “pedagogia de reciprocidade” co-

mo a que produz os encontros, os afetos, os amores e também transfigura o urbano.

Os movimentos estudantis, as semanas acadêmicas, a participação nos festejos nas

datas comemorativas, as vivências exteriorizadas de religiosidade como as das pro-

cissões vão transformar o urbano – os espaços se oferecem e a escola vive e trans-

forma esses espaços, que, por sua vez, também simbolicamente transformam a

escola.

Clarice Nunes procura, em seu estudo, recuperar indícios de práticas peda-

gógicas, trabalhando a reforma da instrução pública no Rio de Janeiro, na gestão de

Anísio, década de 30, mais pelo eixo da problematização do espaço urbano do que

pela organização escolar.

Evidencia-se o forte cunho político explícito na relação da escola com a cida-

de em que, segundo a autora, a abertura das escolas para o mundo urbano tornou-

se palco de conflitos e confrontos, havendo, inclusive, na gestão de Anísio Teixeira,

acusações à escola de estar abrigando “infiltrações comunistas”.

Na década de 50, que focalizo neste estudo, em Porto Alegre, as manifesta-

ções culturais, que nomeio como pedagogias de reciprocidade cidade escola, têm

algumas semelhanças com as analisadas por Clarice Nunes. No entanto, desde as

interpretações das minhas memórias e as das entrevistadas, essas pedagogias, não

aparecem como um projeto político constituído por alguma forma de luta, num senti-

do transformador, explícito – mais se assimilam a um movimento humanista, de

grande ênfase na cultura erudita. Entretanto, tem suas raízes, suas origens, seus

fundamentos no movimento de Escola Nova, do mesmo Anísio Teixeira, mencionado

por Clarice Nunes, embora as vivências se dêem em momentos históricos distintos,

mas paradoxalmente, próximos.

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O “comunismo” era o inimigo comum. Anísio Teixeira e seus colaboradores

eram acusados de comunistas. Segundo a autora, em questão, material de propa-

ganda política, proveniente da Federação Vermelha dos Estudantes, passou a ser

distribuído e encontrado dentro das escolas. Isso se dava através de agremiações

em que estavam envolvidos os chamados “adolescentes rebeldes”.

Aqui também, em outro tempo histórico, pelas vias das entidades estudantis

religiosas, estudos de documentos que poderiam ser considerados “clandestinos”,

de esquerda, se davam no interior da escola, embora não promovidos pela escola,

mas mesmo que indiretamente acolhidos por ela – não existiam proibições nem

promoções, incentivos, tudo era mais ou menos velado. Entretanto, sem dúvida, ali

se instauraram, para muitas de nós, as discussões políticas, a inscrição numa nova

ordem simbólica que, mais tarde, na década de 60, vai se aprofundar em estudos

marxistas, até as lutas contra a ditadura militar.

Essa idéia de participação das alunas num processo social e político está ex-

pressa na reforma de 55. Embora não fique claro a que tipo de participação se refe-

re, há uma idéia de manutenção do “status-quo” – o perigo seria, quem sabe, o

comunismo.

Acredito que havia muito mais envolvimento político, numa luta por transfor-

mação, por parte de algumas de nós, na década de 60, do que passa acontecer, a

partir da década de 70, quando os documentos voltados para a educação, estão im-

pregnados de idéias de cidadania e transformação social.

Nunes, a autora em questão, entende que a construção de um estilo de vida

urbano moderno na sociedade brasileira, pela ótica da escola, ainda é uma história a

ser escrita a muitas cabeças e mãos que resgatem a peculiaridade das práticas ur-

banas e do papel da escola dentro delas.

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Neste trabalho, penso que começo a participar da escrita dessa história, ten-

tando resgatar tanto o papel das pedagogias urbanas modificando a escola, quanto

o papel da escola transformando o urbano e produzindo reciprocidades que podem

fazer também toda a diferença no processo de formação de professores e de pro-

fessoras.

Certamente, as colheitas da memória são mesmo traiçoeiras e serão sempre

aproximações e distanciamentos das semeaduras.

Bem-ditas as dúvidas, as incertezas provocadas pelas contradições, que nos

conduzem a levantar hipóteses nos entremeios de defender teses, porque nos le-

vam, neste caso, a aproximações com algo que é da ordem “das verdades,” mas

sempre, neste caso e, apenas, “verdades das memórias”, verdades das interpreta-

ções.

Essas “verdades das memórias,” que falam de uma formação que se fez pe-

las reciprocidades cidade/escola, pelos vínculos identitários, que promovem um ca-

ráter de permanência, na ausência, têm se traduzido em “verdades” de laços de

afetos que se materializam nos nossos (re)encontros de professoras e alunas do IE

que também ocorrem, às vezes, nos trânsitos pela cidade.

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7- Dos vínculos- nossos (re)encontros

Por tanto amor, por tanta emoção, a vida “nos” fez assim....95

No começo, as reuniões aconteciam em restaurantes. Os primeiros foram al-

moços. Havia até quem usasse “rolinhos” na cabeça, porque à noite haveria festa.

Mais tarde, jantares. Comentários. De amores. De desamores. Filhos. Nossas pro-

fessoras eram também convidadas – algumas compareceram por vários anos: Nadir,

Olga, Isolda, Mariana, mas hoje só contamos com a presença da Mariana. Em várias

ocasiões, havia a organização de um mural - lembranças, bilhetinhos, fotos. Depois,

os espaços dos restaurantes já não pareciam tão acolhedores e fomos migrando pa-

ra as nossas próprias casas

Os anos vão passando. Muda-se o cardápio, o espaço físico. Às vezes, algu-

mas chegam com uniforme do ginásio ou do Curso Normal. Determinadas coisas

não mudam – sempre se volta para o IE – os comentários saudosos, as lembranças

das professoras, dos professores. Aquele orgulho de sempre. Mas também muito ri-

so, canções com letras de música que, tradicionalmente, eram inventadas para sati-

rizar algum professor ou alguma professora ou fatos, situações.96

95 Com a licença de Milton Nascimento: uma paráfrase do “me” para o “nós”. 96 Louro (1987) também faz referências às modinhas que as alunas criavam.

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As aulas em que havia bagunça, as viagens, o desfile na Semana da Pátria, o

orfeão ou o teatro sempre vêm à tona.

O que não falta mesmo é o livro de atas. Cada vez uma é responsável por es-

crever a ata daquele dia. Uma dessas atas, escrita por Nadir, nossa professora de

Didática da Matemática, sobre uma viagem a Gramado mereceria uma publicação,

mas há muitas outras bastante significativas.

Após o jantar, o momento de maior alegria. Cantamos o hino do IE

Há 45 anos a festa se repete, e em geral comparecem mais ou menos 40

pessoas.

Há todo um trabalho prévio de preparação, o que significa alguns encontros

da comissão organizadora, motivo de diversão, alegria.

Nas entrevistas, os encontros são mencionados.

Foi tão forte nossa vivência no IE que até hoje nos encontramos. Através do reencontro anual, nosso vínculo continuou, se manteve. Há um significado nos rituais que fazemos: cantar o Hino do IE, fazer a Ata do encontro, alguém ves-tindo o uniforme [...] Idéia de permanência na impermanência. [...] (Neusa)

Sobre os nossos encontros (de colegas) até hoje, ao longo de um tempo e que se fortifica, fortalece os laços. Tem também uma liderança da Arlette. Até hoje cantamos o hino do IE. A gente ainda vive o orgulho de ter sido do IE. (Ma-ria Helena)

Neusa também faz referências à Arlette que é a organizadora, a mentora, e

também à equipe que, com ela, organiza cada novo encontro.

Arlette, de fato, tem sido a pessoa responsável pela criação e continuidade

desses encontros, empenha-se muito para promover a participação das pessoas e

guarda vários documentos, inclusive o livro de atas, todos com um grande valor his-

tórico.

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Uns encontros organizam outros...

Nos nossos festejos, anos mais tarde, vamos nos encontrar com Isolda, num sarau, que ela chamou de “Sarau de Poesia”. Ana Bohrer veio para o Brasil, autografar um livro – fomos para a sessão de autógrafos, em grupo, e depois fo-mos para a Isolda. Na festa de aniversário da Olga Reverbel, começamos a de-clamar para Isolda e ela ficou maravilhada e, então, resolveu promover a “Tarde da Poesia” na sua casa. A Ana foi e contou sobre a Guatemala (ela era embaixa-triz). (Arlette)

Permito-me registrar aqui a ata desse evento por seu valor histórico.

De alguma maneira permane-

cem as relações. Cantamos o Hino,

trazemos para os encontros fotos,

“guardados”. Já aconteceram ence-

nações de pequenas peças, com alu-

sões ao período em que fomos

adolescentes, referindo-se, não só no

IE, mas ao que se vivia, naquele

tempo, e como se vivia a cidade, a

cultura. Nessas peças retratam-se

também os costumes e os valores da

época.

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Diferentemente desse atual modus-vivendi que é de instabilidade, de fugaci-

dade, esta escola produziu idéia de permanência. Criou laços identitários e de per-

tencimento tais, que até hoje o grupo se une por esses laços.

Neste último capítulo, caberia retomar a idéia, anteriormente mencionada, de

que as “verdades” que, nesta tese, se registram, serão sempre “verdades das me-

mórias” e que essas são traiçoeiras.Mesmo, assim, têm certa força, posto que, de

individuais, elas vão se configurado como sociais e registram a história de um tempo

que, sendo passado, continua a reverberar no presente.

20- Ata de um dos “encontros” das formandas de 60.

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8- Do arremate das múltiplas tessituras

À maneira de um objeto fugidio, e em plena mutação, é preci-so pôr em ação um pensamento lábil, sinuoso que não tema repeti-ções.

Michel Meffesoli, (1995, p. 13)

As questões impulsionadoras deste estudo estão incrustadas na minha pró-

pria história de vida e emergem das minhas interrogações anteriores sobre apren-

dências e não-aprendências e me conduzem à formação de professoras. Continuo,

de certa forma, tentando compreender as professoras que, em suas práticas peda-

gógicas, suscitam respostas de êxito, de sucessos, que têm, como diz Liba, em sua

narrativa, a “paixão” pelo que fazem. De alguma forma, continuo tentando entender

a escola, as aprendizagens, as professoralidades, os sucessos e seus reversos.

Buscando minhas próprias raízes, faço um caminho de volta, o que me leva a

processos de escolarização e, fatalmente, ao Instituto de Educação, escola que, se

não foi onde tudo começou, foi onde quase tudo aconteceu.

É por esse caminho de volta, que tomo o Instituto de Educação de Porto Ale-

gre como campo – objeto – sujeito desta tese, com a intenção de reconstituir sua

história, seu papel na educação nesta cidade, neste estado. Procuro olhar “por den-

tro” essa escola, na tentativa de compreender a formação de professoras que nela

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se produz, fazendo isso através das minhas memórias de aluna e de professora e

das memórias de colegas e professoras, minhas contemporâneas, focalizando o vi-

vido.

Desde o início, colocava-se uma questão fundante – que escola era essa que

instituiu esse caráter de permanência em nossas vidas, que produziu vínculos tais, a

ponto de parecer parte de nós mesmas, que lugar tem, essa escola, nos processos

de subjetivação e nas ações que me tornaram a professora que sou e que me leva-

ram a uma inserção social diferente daquela da minha classe de origem, que me a-

proximou da cidade, das pedagogias urbanas, do mundo da cultura erudita, que

produziu “empoderamentos sociais”97.

Minhas memórias me contavam dessa escola, da cidade, da produção de re-

lações com as pedagogias urbanas, mas elas não bastavam para um registro de a-

proximações mais fidedignas. Foi preciso estudar essa instituição, através de outras

memórias, situá-la no contexto histórico em que ela se constituiu, para investigar o

que ela produz - os sentidos que se registram no vivido.

Foram os estudos sobre cidade educadora e pedagogias da cidade que ativa-

ram minhas memórias para investigar o papel da escola nessas relações, nos trânsi-

tos educativos pela cidade, de onde se produziu uma nova categoria que nomeei de

Pedagogias de Reciprocidade Cidade/Escola.

É nos interstícios que nos produzimos. As memórias, trazidas pelas narrati-

vas, me conduzem a Bosi já citada neste texto, quando enfatiza que essas represen-

tam a faculdade épica por excelência - não se pode perder, no deserto dos tempos,

uma só gota da água irisada que, nômades, passamos do côncavo de uma para ou-

tra mão, a história deve reproduzir-se de geração a geração, gerar muitas outras, cu-

97 Expressão tomada de empréstimo a Paulo Freire.

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jos fios se cruzem, prolongando o original, puxados por outros dedos. Isso me faz re-

fletir sobre essas “teias da vida”98.

A nossa formação de professoras, de pessoas, nossas trajetórias nossas hu-

manidades se constituem não só pela escola, daí que as infâncias contam, que a vi-

da em suas peregrinações, andanças, a relação com os espaços, com as outras

pessoas, com o mundo circundante também produzem seus sentidos.

A profissional que sou, a mulher, as múltiplas que sou e que somos, as narra-

doras e eu, fomos nos constituindo nos atravessamentos da escola com a cidade, na

vida pelos bairros, no convívio com as famílias, com os vizinhos, com os trânsitos

pelos espaços urbanos, com o ir e vir que se impunha para freqüentar a escola.

Essa concepção me levou a tratar, também, de nossas infâncias, desde os estudos

de Tonucci e sua cidade das crianças.

Foram as brincadeiras da infância, junto com as responsabilidades, a vida na

Ilha da Pintada, na chácara, nas “ruelas e becos empoeirados”99, nos bairros mais

sofisticados ou no centro da cidade, as travessias de barco, de bonde, de ônibus ou

a pé que nos foram tecendo, tramando nossas subjetividades.

Nos Grupos Escolares, com suas construções imponentes, com seu lugar de

importância no cenário educacional, instalados pelos ideais republicanos, fomos “a-

prendendo a ser alunas”100 e já nos tornando, aos poucos, professoras inspiradas

nos modelos tal como dizia Neusa.

As professoras eram como deusas, na minha percepção infantil. Eram nos-sos modelos. Algumas ficaram como meus modelos profissionais, como a profes-sora Martha da Rosa do 3º ano do Grupo Escolar. 98 Essa expressão se fez minha, nesse instante, mas incorporei-a da obra “A teia da vida” de Fritjof Capra (1996). 99 Expressão usada por uma entrevistada na pesquisa de Jaqueline Moll, descrita na obra “Histórias de vida, his-tórias de escola, 2001. 100 Maria Luisa Xavier vem tratando desse “aprender a ser aluno” e em sua tese de doutorado “Os incluídos na escola: disciplinamento nos processos emancipatórios”, (2003), esse tema está bem explicitado.

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Mas foi no IE que, definitivamente, nossas professoralidades se produziram

tomadas pelos humanismos, pelas moralidades, pelas eticidades - é como se tivés-

semos sido capturadas por aquele continente aglutinador de ideais orientados para

um dado projeto de formação.

Por entre os mitos, os ritos e os símbolos que se materializavam no uniforme,

nos laços e lacinhos, no código de honra, nos hinos foram se construindo os proces-

sos identitários e de pertencimento. Por esses laços, produziram-se formas de nos

comportarmos, de nos entendermos como mulheres, como profissionais, como cida-

dãs - isso pode ter significado peso, grilhões dos quais tenhamos andado nos des-

vencilhando ao longo da vida mas, para mim, tanto quanto para as entrevistadas

significou também um grau elevado de satisfação pessoal ligado, de alguma forma,

a tais laços identitários.

Defendo a idéia de que os simbolismos importam, de que os valores, as tradi-

ções, os vínculos também importam. Os simbolismos nos produzem tanto quanto

nós os produzimos. Os vínculos com a tradição que foram se perdendo, pelo menos

no IE de hoje, foram significativos nas vidas, aqui, narradas.

Bauman (2001) ajuda-me nesse processo argumentativo:

É difícil conceber uma cultura indiferente à eternidade e que evita a durabilidade. Também é difícil conceber a moralidade indife-rente às conseqüências das ações humanas e que evita a responsa-bilidade pelos efeitos que essa ações podem ter nos outros. [...] os homens e as mulheres do presente se distinguem dos seus pais, vi-vendo num presente que quer esquecer o passado e não parece mais acreditar no futuro. (p. 149)

Cultivar a tradição como uma possível forma de não esquecer o passado e

acreditar no futuro era o que acontecia no IE desde as representações que se repro-

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duziam no seu interior. Hildair Câmera, em depoimento espontâneo, fala de forma

emocionada sobre esses vínculos com o passado: “a tradição estava ali, entalhada

na madeira pesada que emoldurava os quadros e nos ecos do hino que se ouvia nos

corredores.”

Essa escola que promovia os vínculos com a tradição só pode ser compreen-

dida numa sociedade em que há um modus-vivendi de um tempo.

Não só os vínculos e os processos identitários foram constituidores dessa es-

cola, mas tudo que a engendrava – seu currículo, seu corpo docente e isso está la-

vrado nas narrativas.

Um olhar mais atento para as entrevistas permitiu delinear alguns elementos

marcantes na formação das professoras. Algumas marcas se referem à Escola Nor-

mal, outras dizem respeito à continuidade dessa formação no tempo em que foram

professoras da Escola Primária do IE ou da Escola de Aplicação, Anexa ao IE.

Quanto à Escola Normal, os destaques são dados: ao corpo docente, ao cur-

rículo, chamando a atenção para as disciplinas de fundamentos, disciplinas das di-

dáticas, vinculadas, respectivamente, ao Departamento de Cultura Geral e de

Cultura Profissional, às disciplinas de Música, Educação Física, Literatura, Literatura

Infantil, Artes Plásticas, Filosofia, Sociologia, Psicologia.

Grande destaque aparece para as disciplinas facultativas como o Teatro e o

Orfeão Artístico.

Algumas professoras, lembradas por mim, são também figuras proeminentes

nas recordações das entrevistadas: Maria Pereira, Isolda Paes, Nadir Saldanha da

Rocha, Mariana Mazzaferro, Liba Knijnik, Florinda Tubino Sampaio, além das direto-

ras Olga Acauan Gayer e Mary Acauan Tittoff; Dináh Néry Pereira e Olga Reverbel

por aquelas que vivenciaram o TIPIE ou o Orfeão Artístico.

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Várias mestras vão ainda sendo lembradas, ora por uma, ora por outra pes-

soa, como significativas em suas vidas: Zahyra Petry, Maria Ligia Borba dos Santos

Chaves, Ida Godinho, Odila Barros Xavier, Dalila Alvin, Elmira Pellanda Cabral,

Vanda Guelzer, Nair Marques Pereira de Almeida.

A idéia de paixão, mencionada por Liba e Maria Luisa, está presente nas falas

de todas, pelo entusiasmo com que se referem tanto ao seu tempo de alunas e de

professoras quanto ao que se relaciona às atividades que exercem atualmente.

A relação com a cidade, com o estado é acentuada nas referências ao Teatro,

ao Orfeão, aos centros estudantis ou religiosos. Nas relações com a cidade, as vi-

vências culturais que criam a intimidade com teatro, música, cinema, constituem–se

como elementos balizadores nos processos de formação.

Todas as entrevistadas (e isto também está na pesquisa de Guacira Louro)

registram a idéia de que a formação do Curso Normal, da época, era equivalente a

de um Curso de Pedagogia. Além disso, reforça-se essa idéia de equivalência para

aquelas pessoas que tiveram uma verdadeira formação continuada como professo-

ras da Escola Primária do IE.

Maria Helena faz referências ao Curso de Supervisão, na UFRGS, dizendo

que lá conheceu fundamentos teóricos, para o que viveu na prática da Escola Anexa

ao IE.

Como elementos de força na atuação, na Escola Primária, há destaque para a

orientação pedagógica ou supervisão, que se desenvolveu com sessões de estudos

de grande grupo, de reuniões por classes paralelas, assessoramentos individuais e

iniciação à pesquisa.

No Curso Normal, são fortes as referências às aprendizagens decorrentes do

estágio supervisionado e dos processos de observação.

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O Estágio Supervisionado do Curso de Pedagogia da Faculdade de Educa-

ção, hoje, assemelha-se ao modelo de estágio da Escola Normal do IE, organizado

na década de 50 e que consistia de um semestre de trabalho na escola em tempo

integral. O estágio do Curso de Pedagogia, atualmente, compõe-se de dois semes-

tres, ao final do curso, fruto de muitas lutas na década de 80.

Maria Helena faz menção especial tanto ao estágio quanto ao processo de

observação, destacando que essas aprendizagens estão presentes em seu trabalho,

como empresária, que presta assessoria pedagógica a empresas, assegurando que

as atividades, que hoje desenvolve como profissional, têm suas raízes lá no Curso

Normal e na Escola Primária do IE.

Em todas as entrevistas, aparecem essas referências às raízes das praticas,

de hoje, fortemente plantadas lá, no IE, quaisquer que sejam as profissões atuais,

embora essas não tenham se distanciado muito da área da educação.

Algumas narrativas demonstram que nem tudo era perfeito na escola, como

diz Arlette “Nem tudo foi um mar de rosas de ponta a ponta.” Algumas aulas eram

monótonas, o professor ou a professora falava o tempo todo sem entusiasmo. Havia

aulas em que as alunas faziam à chamada “bagunça”, brincavam e não respeitavam

a figura docente. Nesses casos são mencionadas incompetências quanto à forma de

conduzir a aula.

Não obstante, não ter sido tudo um mar de rosas, pela leitura que faço das

entrevistas, posso dizer que a nossa formação de alunas e de professoras do IE tem

produzido profissionais que seguem pela vida com certas marcas de paixão que,

neste trabalho, estão representadas por uma pequena amostra. No entanto, essa

amostra é significativa, porque essas pessoas compunham um grupo maior, de uma

escola, de um tempo, que parecia germinar essa paixão.

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Essa escola produziu profissionais de destaque no cenário educacional –

mesmo para além do magistério – pessoas que carregam marcas de paixão, pelo

que fazem, quer sejam ou não, professoras e, sobretudo, paixão pelo IE. Quando al-

guém diz, como Maria Luisa, que o “grande amor de sua vida” foi o IE é porque

construiu laços identitários, relações de pertencimento tal como as pessoas constro-

em esses laços com seus times de futebol, seus clubes seus partidos políticos.

A questão inicial, desta pesquisa, a que chamei de fundante, foi sendo res-

pondida de múltiplas formas, mas pareceu-me necessário fazer algumas “amarra-

ções textuais”, situando o IE “mais uma vez” na sua história.

É no contexto da modernidade, inspirada por princípios positivistas, direcio-

nada pelos ideais escolanovistas, que essa escola foi se firmando como modelar em

meio a muitas alternâncias em sua história - com avanços e recuos, vai se produzin-

do em meio a duas guerras e entre-guerras, revoluções. Vive a ditadura Vargas, di-

reciona-se pela Reforma Capanema de inspiração nazi-fascista, que perdura de

1942 a 1961. Atravessa diferentes regimes políticos, incluindo a ditadura militar de

1964. Na década de 70, passa por uma transformação e, pautada pelos ditames da

lei 5692/71, vai se descaracterizando.

Durante esses períodos, atendeu a interesses políticos, governamentais e foi

se comportando de acordo com aquilo que esses contextos impuseram e que se ma-

terializaram nas legislações, nos currículos, nas formas de inserção no social. Esses

seriam os cenários, os contextos que a produziram. Importou-me o que, desde esse

lugar, ela produziu. E, então, vale lembrar que, por entre todos os seus atravessa-

mentos, o Instituto de Educação com a imponência de sua construção, com sua pro-

posta pedagógica, seu currículo enciclopedista/humanista mais do que cientificista,

representou um alto grau de importância no cenário educacional estadual com re-

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percussão nacional. Foi, por longos anos, um marco na formação de professores,

com um desenho arquitetônico e cultural, inserido no urbano, que transformou a pai-

sagem, transformou a cidade pelas relações com os espaços.

Ao transformar a cidade, os espaços urbanos, a vida nesses espaços, essa

escola vai também se transformando pelas implicações desse mesmo urbano per-

meando seu interior daí que me permito defender a construção do conceito de pe-

dagogias de reciprocidade cidade/escola.

Reafirmo que nossa formação foi se fazendo pelas rotas educativas da cida-

de, pelos meandros das pedagogias urbanas e pela vivência da cidade como edu-

cadora – a cidade assim se constituía para nós, embora, na época, não

soubéssemos disso, visto que é o nosso olhar de hoje que mira esta cidade de ou-

trora. Nós a vivemos por nossas próprias andanças e pela mão da escola.

As relações da escola com a cidade produziram esse encantamento com o

mundo da arte – não seríamos as mesmas, se não tivéssemos vivido o teatro, com a

intensidade que vivemos, se não tivéssemos debatido os filmes, freqüentado o Clu-

be de Cinema, se a escola não tivesse aberto suas portas para a entrada de atores,

atrizes, músicos, artistas plásticos, intelectuais, grupos de dança e se esses grupos,

essas pessoas, que eram também constituidores da cidade, não tivessem se ofere-

cido à escola, fazendo-se em pedagogias, propiciando aprendizagens.

Estou falando de cultura erudita, de sensibilização para esta cultura – e isso

importa. Qualquer manifestação cultural importa, mas, neste momento, falo desta.

Essa escola que aproximava da cultura, que construía laços parece que ago-

niza. Na medida em que se proletariza, se massifica, vai perdendo seus próprios

laços identitários com a tradição, com ideais, com alguma espécie de utopia e,

então, esses laços não se constroem com as pessoas que a freqüentam.

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O IE das nossas histórias, das nossas memórias não existe mais, nem a sua

denominação. Chama-se hoje “Centro Estadual de Formação de Professores Gene-

ral Flores da Cunha”.

Nessa escola, que nem mesmo é mais o IE, temos o apagamento da tradição,

do simbólico – ou temos outros símbolos, outras marcas, como sinais dos tempos

contemporâneos.

Associa-se o processo de democratização ao de destruição, de demolição

que, no IE, está apenas simbolizado. As marcas da destruição estão no prédio, no

seu corpo físico. Olhando-se seu exterior, da imponência do passado, só restam

mesmo as colunas. No seu interior, os únicos registros que ainda podem contar

alguma história estão nas grandes telas deterioradas101, nas placas de bronze rele-

gadas ao descuido. Desapareceram os bustos de bronze, os quadros de formatura.

Resta, porém, quase intocável, a capela com o Cristo, a indicar que parece haver

um certo respeito ao sagrado, um espírito de religiosidade preservado. O espaço da

associação de ex-alunos, tal como a capela, numa espécie de “reserva ambiental” –

é um oásis no deserto do descuido, descaso.

Isto tudo pode simbolizar o abandono da escola pública, a negligência gover-

namental, a menos valia da população que freqüenta essa escola hoje, a menos va-

lia da educação e do magistério. Caberia ao estado o compromisso com a educação

e, abordar esse tema, é quase matéria vencida, obviedade. Entretanto, para além

disso, há algo que é da ordem da ausência do cuidado, do zelo, bem sinalizado num

crescente processo de destruição - aquilo que o tempo não conseguiu destruir, as

pessoas que transitam pela escola o conseguiram com muita competência.

101 São três as obras de arte pintadas a pedido de Borges de Medeiros: “A chegada dos Açorianos” (1923) de Augusto Luiz de Freitas (6,50m x 5,50m), “A tomada da ponte da Azenha” (1922) de Augusto Luiz de Freitas (3,95m x 6,20m) e “Garibaldi e a espada farroupilha” (1919) de Lucílio de Albuquerque (3,95m x 6,20m). Danifi-cadas pela ação do tempo, hoje pedindo socorro para sua restauração.

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Quando digo transitam é porque acredito que essas pessoas não vivem esses

espaços, passam por eles, e aí volto aos laços identitários, aos vínculos, aos simbo-

lismos que produzem o pertencimento - talvez a ausência do cuidado se ligue à au-

sência de vínculos.

Há uma forte argumentação, hoje, relacionando a decadência da escola ao

processo de democratização. Digo não a tais argumentos. Essa democratização que

promove o acesso, à escola, das camadas menos favorecidas econômica e social-

mente, não precisaria trazer consigo um descaso com a escola pública. No meu en-

tender, não se trata de uma relação de causa e efeito, mas do modo como se vem

tratando essa “tal democratização” da escola pública.

O acesso das camadas populares à educação não necessitaria implicar de-

gradação, pois isso representa um desacreditar nas condições, nas possibilidades,

nas competências, dessas pessoas, para o aprender, para o saber. Isto está, para

mim, na mesma relação fatalista que se estabelece entre pobreza, não-

aprendizagem e repetência.

Não poderiam estas pessoas, que hoje freqüentam o IE e, por extensão, as

que freqüentam escolas públicas, terem direito a um prédio com mais “dignidade” –

não poderiam os valores da cultura, também erudita, da tradição, do respeito esta-

rem presentes na educação? E os projetos que incluem Porto Alegre no conjunto

das cidades educadoras? Que pedagogias urbanas estão sendo vividas?E que dizer

dos valores relacionados ao espaço público - deixou de ser valor respeitar-se man-

ter-se o que é da ordem do público? E a pedagogia do cuidado? Cuidado com o ou-

tro, com a vida - a vida, o outro compõem o espaço público. E, então?

Vivemos, isto sim, em tempos mais individualistas – se não é meu, não impor-

ta. O espaço público é de ninguém – logo se é de ninguém fica à deriva, à mercê do

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lixo descartável e da destruição, porque também o público é descartável, neste tem-

po do efêmero, do fastfood, do consumo rápido, onde não cabe a história, a tradição,

o olhar para o passado. São descartáveis as pessoas, a vida corre no fio da navalha.

Como diz Bauman (op. cit.), na modernidade líquida, não há lugar para enrai-

zamentos ou como complementa Mafessoli (1997) citado pelo próprio Bauman, habi-

tamos hoje um território flutuante em que indivíduos frágeis encontram uma

realidade porosa – a esse território só se adaptam coisas ou pessoas fluidas, ambí-

guas, num estado de permanente transformar-se.

Penso que esta é uma tese sobre uma escola pública, sobre as possibilidades

dessa escola que forma professores, na perspectiva de uma visão ampliada do pro-

cesso educativo. Escola pública que forma professores de um tempo datado, na

construção desse lugar de cidadania, nas décadas de 50 e 60 pré-reforma tecnicista

e está no bojo da reforma de 46 que é de espírito humanista. Ela está num tempo

em que a escola apenas começa a se abrir para as camadas populares – ela não

está nem proletarizada, nem massificada102.

Para a escola pública atual, a sociedade não produziu estruturas sociais que

dessem conta da popularização e da massificação.

Esta é, pois, uma tese que não serve de parâmetro para o tempo presente.

Trata de um outro tempo que, no conceito “baumaniano”, seria o da modernidade

pesada, mas talvez possa se pensar sobre as possibilidades de as reflexões que

aqui se produziram poderem reverberar nesta modernidade da fluidez, da velocida-

de, dos apagamentos históricos.

Para ir me aproximando de uma finalização, poderia dizer que entre peso e

fluidez, há de haver um interstício, uma urdidura em que as incertezas instaurem no-

102 Essa escola, hoje com 136 anos, acolhe cerca de 3.000 alunos.

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vas perguntas e, no desassossego, entre conformidade e rebeldia, fuga e compro-

misso se instalem alguns resquícios de sonhos, utopias e que, sem perder de vista a

complexidade do tempo presente, se possa olhar, ainda, que de “soslaio”, o passado

e, com ele, criar alguns vínculos, e, então, alçar vôos prospectivos.

Quisera eu, ao concluir esta tese, não estar convivendo com a dor da perda

desta escola, deste IE, cuja história apagou-se do ar, do chão, das paredes, de to-

dos os espaços. Ainda assim, juntamente com Jaqueline Moll, “creio num tempo que

se dobra sobre si mesmo,”

Nesse tempo em trânsito, no qual vivemos transformações tão fun-damentais quanto as que deram origem à sociedade industrial e ur-bana, novas formas de viver e de organizar a vida podem ser gestadas através de fragmentos de um mundo da vida que gradual-mente se (re)compõem, constituindo nexos, estabelecendo escutas e recuperando sua própria humanidade.

(MOLL, 2000, p. 192)

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SPALDING, Walter. Porto Alegre. São Paulo: Habitat, 1953, p. 27;

IMAGENS cedidas pelo MUSEU JOAQUIM JOSÉ FELIZARDO da Fototeca Sioma Breitman: 1936f tirada pela equipe de fotógrafos Léo Guerreiro e Pedro Flores em 1965.

IMAGENS do acervo pessoal de Carmen Célia Guarita, Neusa Armellini, Arlette Ma-bilde e Ivany Souza Ávila.

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