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Semântica Florianópolis - 2009 Renato Miguel Basso Luisandro Mendes de Souza Roberta Pires de Oliveira Ronald Taveira Período

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Semantica

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Page 1: [livro UFSC] Semantica

Semântica

Florianópolis - 2009

Renato Miguel BassoLuisandro Mendes de SouzaRoberta Pires de OliveiraRonald Taveira

4ºPeríodo

Page 2: [livro UFSC] Semantica
Page 3: [livro UFSC] Semantica

Governo FederalPresidente da República: Luiz Inácio Lula da SilvaMinistro de Educação: Fernando HaddadSecretário de Ensino a Distância: Carlos Eduardo BielschowkyCoordenador Nacional da Universidade Aberta do Brasil: Celso Costa

Universidade Federal de Santa CatarinaReitor: Alvaro Toubes PrataVice-Reitor: Carlos Alberto Justo da SilvaSecretário de Educação a Distância: Cícero BarbosaPró-Reitora de Ensino de Graduação: Yara Maria Rauh MüllerPró-Reitora de Pesquisa e Extensão: Débora Peres MenezesPró-Reitor de Pós-Graduação: Maria Lúcia de Barros CamargoPró-Reitor de Desenvolvimento Humano e Social: Luiz Henrique Vieira da SilvaPró-Reitor de Infra-Estrutura: João Batista FurtuosoPró-Reitor de Assuntos Estudantis: Cláudio José AmanteCentro de Ciências da Educação: Wilson Schmidt

Curso de Licenciatura Letras-Português na Modalidade a DistânciaDiretor Unidade de Ensino: Felício Wessling MarguttiChefe do Departamento: Zilma Gesser NunesCoordenadoras de Curso: Roberta Pires de Oliveira e Zilma Gesser NunesCoordenador de Tutoria: Josias Ricardo HackCoordenação Pedagógica: LANTEC/CEDCoordenação de Ambiente Virtual de Ensino e Aprendizagem: Hiperlab/CCE

Comissão EditorialTânia Regina Oliveira RamosIzete Lehmkuhl CoelhoMary Elizabeth Cerutti Rizzati

Page 4: [livro UFSC] Semantica

Equipe de Desenvolvimento de Materiais

Laboratório de Novas Tecnologias - LANTEC/CEDCoordenação Geral: Andrea LapaCoordenação Pedagógica: Roseli Zen Cerny

Produção Gráfica e HipermídiaDesign Gráfico e Editorial: Ana Clara Miranda Gern; Kelly Cristine SuzukiResponsável: Thiago Rocha Oliveira, Laura Martins RodriguesAdaptação do Projeto Gráfico: Laura Martins Rodrigues, Thiago Rocha OliveiraDiagramação: Gabriel Nietsche, Maiara O. Ariño, Thiago F. Victorino, Valéria ExaltaFiguras: Cristiane Amaral, Valéria Exalta, Ângelo BortoliniTratamento de Imagem: Ângelo BortoliniIlustração de Capa: Ângelo BortoliniRevisão gramatical: Tony Roberson de Mello Rodrigues

Design InstrucionalResponsável: Isabella Benfica BarbosaDesigner Instrucional: Verônica Ribas Cúrcio

Copyright © 2009, Universidade Federal de Santa Catarina/LLV/CCE/UFSCNenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Coordena-ção Acadêmica do Curso de Licenciatura em Letras-Português na Modalidade a Distância.

Ficha Catalográfica

Catalogação na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitária da

Universidade Federal de Santa Catarina.

S471 Semântica / Renato Miguel Basso...[et al.]. – Florianópolis : LLV/CCE/UFSC, 2009.151p. : 28cm

ISBN 978-85-61482-17-6

1. Semântica – Estudo e ensino. 2. Gramática comparada e geral.3. Ensino a distância. I. Basso, Renato Miguel. II. Título.

CDU: 801

Page 5: [livro UFSC] Semantica

Sumário

Unidade A ..........................................................................................11Semântica e pragmática: delimitando os campos1 ...........................13

1.1 O vasto domínio do significado ..................................................................13

1.2 O Significado linguístico ...............................................................................15

1.3 A noção de significado ..................................................................................20

1.4 Considerações finais ........................................................................................24

Conhecimento semântico e os nexos semânticos: 2

acarretamento, contradição e sinonímia ............................................25

2.1 Conhecimento semântico implícito ...........................................................25

2.2. Composicionalidade .......................................................................................30

2.3 Trama semântica ..............................................................................................33

2.4 Condições de verdade ...................................................................................36

2.5 Considerações finais ........................................................................................39

Metalinguagem3 ............................................................................................41

3.1 Teorema-T ............................................................................................................41

3.2 Analisando uma língua ..................................................................................42

3.3 Considerações finais ........................................................................................54

Pressuposição4 ................................................................................................55

4.1 Caracterizando a pressuposição ..................................................................55

4.2 Os gatilhos ...........................................................................................................58

4.3 Acomodando pressuposições ......................................................................61

4.4 Considerações finais ........................................................................................63

Unidade B ...........................................................................................65As descrições definidas5 ..............................................................................67

5.1 O papel semântico das DDs:o começo do debate ................................68

5.2 Como capturar a reação das DDs aos contextos A, B e C semanticamente? .............................................................................................69

5.3 Falsas nos contextos A e B .............................................................................69

5.4 Nem falsas nem verdadeirasnos contextos A e B ..................................73

5.5 A função textual das DDs ...............................................................................76

5.6 Considerações finais ........................................................................................79

Page 6: [livro UFSC] Semantica

Negação6 ...........................................................................................................81

6.1 As várias maneiras de negar .........................................................................81

6.2 O ‘não’ ....................................................................................................................83

6.3 Escopo ...................................................................................................................86

6.4 Negações escalares ..........................................................................................88

6.5 Os itens de polaridade negativa ..................................................................89

6.6 Negação metalinguística ...............................................................................91

6.7 Considerações finais ........................................................................................92

Quantificação7 ................................................................................................93

7.1 Introdução ...........................................................................................................93

7.2 A quantificação nominal ................................................................................95

7.3 Interação de quantificadores:as relações de escopo ...........................99

7.4 Considerações finais ......................................................................................102

Comparação (ou a semântica das sentenças comparativas)8 .....103

8.1 A gramática da comparação .......................................................................104

8.2 Interpretando as orações comparativas .................................................109

8.3 Considerações finais ......................................................................................114

Unidade C ........................................................................................ 117Progressão temporal9 ................................................................................119

9.1 Referência temporal e progressão temporal ........................................121

9.2 Mecanismos de progressão temporal .....................................................123

9.3 Regras-padrão e outras .................................................................................126

9.4 Considerações finais ......................................................................................128

Modalidade – os auxiliares modais10 ..................................................129

10.1 Introdução ......................................................................................................129

10.2 Auxiliares modais .........................................................................................131

10.3 A semântica dos modais ............................................................................133

10.4 O tempo e a modalidade ...........................................................................137

10.5 Considerações finais ....................................................................................139

Coda .................................................................................................. 141

Referências ...................................................................................... 145

Glossário .......................................................................................... 147

Page 7: [livro UFSC] Semantica

Apresentação

Este Livro-texto introduz uma série de tópicos em Semântica, uma

disciplina que ainda não teve chance de entrar nos ensinos médio e

fundamental e que só muito recentemente aparece em currículos de

cursos de Letras (mas não em todos!). O máximo que vemos de semântica

na escola diz respeito aos conteúdos referentes a antônimos e sinônimos. E

mesmo as versões mais modernas de ensino de português, que têm se basea-

do no texto (a Linguística Textual), pouco utilizam os conceitos da Semântica

que, no entanto, são absolutamente fundamentais. Por exemplo, o conceito de

anáfora, tão essencial na construção de um texto, vem da Semântica. Curioso

é que já contamos, desde 2001, com pelo menos uma publicação que traz pro-

postas de ensinar semântica na sala de aula, trata-se de Introdução à semântica,

brincando com a gramática (2001), de Rodolfo Ilari. Mas, talvez a ausência

da Semântica na sala de aula possa antes ser explicada por uma certa “fobia”

da gramática: nos últimos anos, as pedagogias do ensino de língua materna

tomaram como objetivo único das aulas de português o ensino da leitura e da

produção textual. Não há dúvida alguma que é parte da nossa tarefa de edu-

cadores ensinar a ler e a escrever, mas certamente estamos perdendo muito se

essa for a nossa única tarefa. Trata-se, na verdade, do mesmo problema que

atingiu o ensino da gramática normativa: ensina-se não somente uma coisa,

mas se ensina a repeti-la – não há questionamentos, e perde-se a dimensão de

se aprender algo sobre a língua, criando assim a imagem de que não há nada

para aprender sobre a língua. Ora, ensinar sobre a língua não é apenas ensinar

regras do bem escrever, e o interesse de estudo de uma língua não se encerra

(e nem se inicia) no texto.

As línguas humanas são um objeto muito interessante, extremamente

complexo e ao mesmo tempo facilmente acessível: afinal, todos falamos. É por

isso que o estudo das línguas humanas tem sido adotado, em várias univer-

sidades no mundo (dentre elas o famoso MIT), em cursos introdutórios de

metodologia científica para todas as áreas. É muito fácil aprender como cons-

truir hipóteses e refutá-las usando as línguas naturais – e, como hoje sabemos,

lidar com hipóteses, construí-las, submetê-las ao crivo da empiria e refutá-las

é parte fundamental do fazer científico. Mas, esse movimento exige que obser-

Massachusetts Institute of Technology

Page 8: [livro UFSC] Semantica

vemos a língua em si sem nos preocuparmos com o fato de que ela é o veículo

para apreendermos o pensamento dos outros (via leitura ou via escuta) e para

veicularmos o nosso pensamento (ou ainda para dissimular o que pensamos,

para enganar, via oralidade ou via escrita).

Mas, olhar a língua, sua estrutura, sua gramática, ficou quase que proi-

bido depois que se decretou o fim do estudo da gramática – joga-se fora o

bebê com a água do banho. É claro que não estamos propondo um retorno ao

velho esquema de ensinar gramática normativa, ainda mais a gramática que

é praticada nas escolas, uma gramática que nem é da nossa língua. Ninguém

no Brasil, com talvez exceção de uns poucos imortais, fala: “Eu lho trouxe”.

Isso é português europeu! A semântica que você vai encontrar neste Livro-

texto pretende ser uma análise da estrutura do português brasileiro atual – da

língua que vocês, que nós de fato falamos - como você vai ver, uma das vídeo-

aulas é sobre expressões do tipo “pra caralho” e “puta”, que são modificadores

de grau. A disciplina de Semântica busca construir um modelo para explicar

como é possível que nós, seres finitos, num tempo tão curto, em poucos anos,

sejamos capazes de atribuir significado a qualquer sentença da nossa língua,

mesmo àquelas absolutamente novas, àquelas que nunca ouvimos antes. Essa

não é uma capacidade trivial, embora ela esteja sempre conosco. Um filósofo

da linguagem muito famoso, chamado Ludwig Wittgenstein, afirmava que nós

somos tanto a linguagem, ela nos constitui de tal forma, que temos dificuldade

de nos distanciarmos dela para olhá-la. É esse, porém, o movimento fundador

do cientista: distanciar-se do objeto para poder entendê-lo.

Essa semântica não descende da linguística estruturalista saussureana –

Saussure, feliz ou infelizmente, não é o pai de todos os linguistas –, mas da

tradição da lógica e da filosofia da linguagem, de cunho analítico. Até a década

de 70, a Semântica era praticada quase que exclusivamente por filósofos que,

de uma maneira ou de outra, estavam respondendo a questões colocadas por

Gottlob Frege (1848-1925) sobre lógica, linguagem e matemática, e entre es-

ses filósofos podemos citar Bertrand Russell (1872-1970), Donald Davidson

(1917-2003), Richard Montague (1930-1971), dentre muitos outros. Na déca-

da de 70, Barbara Partee, uma linguista que estudou com Noam Chomsky e

Richard Montague, transpôs essa tradição para a linguística, que desde então

só floresce, e não apenas internacionalmente. Embora muito recente, há tam-

bém um grupo de semanticistas de relevo no Brasil: Rodolfo Ilari, Ana Lúcia

Müller, José Borges Neto, Roberta Pires de Oliveira, dentre outros.

Se você se interessar, procure na internete, por exemplo, os trabalhos de

Angelika Kratzer, Gennaro Chierchia, Kai von Fintel,

Irene Heim, Manfred Krif-ka, para alguns expoentes

atuais.

Ou, numa terminologia mais próxima da gramá-

tica, seriam “advérbios de intensidade”.

Page 9: [livro UFSC] Semantica

O que caracteriza essa semântica, chamada de formal, não é, como pensam

alguns equivocadamente, sua relação com a sintaxe gerativa, aquela praticada

pelos chomskianos. A semântica se baseia na sintaxe, mas pode escolher sua

sintaxe (é muito comum encontrar semanticistas formais que se filiam a uma

gramática chamada de categorial, iniciada por Montague e distante em pon-

tos fundamentais da gramática gerativa). Uma das características principais da

semântica é ser uma teoria científica e, como tal, amparar-se numa linguagem

formal, num cálculo lógico. É exatamente o que os físicos fazem ao empregar a

matemática para entender as leis da natureza. Porém, atenção, os físicos usam

a linguagem matemática para expressar as leis da natureza, mas isso não signifi-

ca que eles acreditem que a natureza é matemática. Obviamente, alguns têm tal

crença, entre eles o mais famoso é Galileu. O mesmo se dá com o semanticista:

a lógica que ele usa é apenas veículo de expressão das regras formuladas, de

suas hipóteses – nenhum semanticista reduz a língua natural a um sistema

lógico. Se você ouviu tal crítica, certamente foi de alguém que não conhece o

trabalho dos semanticistas.

Alfred Tarski, um lógico e filósofo muito importante em várias áreas -

porque elaborou, dentre outros, o conceito de metalinguagem -, mostrou que

as línguas naturais são fundamentalmente inconsistentes, elas geram parado-

xos. Com isso, ele concluiu que não era possível dar a elas um tratamento for-

mal. Posteriormente, um outro filósofo, Richard Montague, demonstrou que

podemos descrever formalmente “fragmentos” das línguas naturais. Essas são

questões muito complexas e talvez seja preciso investigar mais para podermos

saber se as línguas naturais são ou não, em parte, um cálculo. Como você deve

saber a teoria da relatividade coloca a luz como algo paradoxal, que é e não

é matéria, e não há uma teoria lógica óbvia que dê conta dessa situação. Não

há dúvida, contudo, de que, como metalinguagem, a lógica é uma ferramenta

muito importante para o semanticista.

Essa maneira de ver as línguas naturais é certamente muito estranha, por-

que historicamente fomos levados a acreditar que o português e as línguas são

o oposto de ciências exatas, o oposto da matemática, dos sistemas formais.

Mas, não é a toa que a matemática é uma linguagem, e talvez seja um equívo-

co opô-las. Ao longo deste Livro-texto você vai se deparar várias vezes com

conceitos da teoria de conjuntos da Matemática. Esperamos que esteja aí um

convite para que os professores de Português desenvolvam juntamente com

Newton da Costa, um ló-gico brasileiro com pouco reconhecimento nacional, propôs uma lógica in-consistente que pode dar subsídio a tal teoria sobre a natureza da luz.

Você teve contato com a Sintaxe Gerativa na disciplina do professor Carlos Mioto! Veja mais em: MIOTO, C. Sintaxe do Português. Florianópolis: LLV/CCE/UFSC, 2009.

Page 10: [livro UFSC] Semantica

os professores de Matemática projetos em comum que não sejam apenas para

ensinar os alunos a decifrar os problemas de matemática.

Usamos conceitos dessa teoria para entender o significado nas línguas

naturais (os semanticistas também utilizam comumente funções, mas não fa-

remos isso aqui) sem, no entanto, nos comprometermos em afirmar que há

uma identidade entre elas. As línguas naturais se caracterizam por serem con-

textuais, por carregarem elementos dêiticos, aqueles que só ganham sentido

na situação de fala, que estão totalmente ausentes das linguagens formais. Isso,

porém, não significa que não podemos usar uma linguagem formal, arregi-

mentada, como se costuma dizer, para descrever esses fenômenos.

Ao longo deste Livro-texto, exporemos as questões com as quais lidam

os semanticistas, e os métodos por eles empregados. Veremos isso nos quatro

primeiros tópicos do capítulo Conceitos Básicos. O capítulo seguinte, Opera-

ções Semânticas, que traz os próximos quatro tópicos, lidará com problemas

semânticos específicos e com algumas soluções encontradas na literatura. Por

fim, os dois últimos tópicos do capítulo Intencionalidade lidará com proble-

mas que têm a ver com tempo e mundos possíveis.

Por ser um assunto novo ao graduando de Letras, que provavelmente não

viu nada de semântica no ensino médio, e também por ser um assunto relati-

vamente complexo, que envolve rigor nos raciocínios e na resolução das ati-

vidades – afinal, a semântica usa a lógica para se expressar –, é necessário que

você leia com atenção todo o conteúdo aqui proposto e se dedique à resolução

dos exercícios. É quase como aprender matemática ou física: só sabemos mes-

mo quando fazemos os exercícios.

Esperamos que ao final você saiba como trabalham os semanticistas, quais

questões lhes interessam e como eles procuram resolvê-las. Tudo o que está ex-

posto no que segue foi feito em termos de questionamento, com a intuição de

mostrar como a língua pode ser investigada de um ponto de vista científico e

com uma metalinguagem estabelecida. Esperamos que você goste!

Os autores

Page 11: [livro UFSC] Semantica

Unidade AConceitos Básicos

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Capítulo 01Semântica e pragmática: delimitando os campos

13

1 Semântica e pragmática: delimitando os campos

Neste Capítulo, você vai conhecer o domínio do campo de investigação da

Semântica, opondo-o a outros, principalmente ao da Pragmática.

1.1 O vasto domínio do significado

O termo significado tem uma acepção muito mais ampla nas nos-sas conversas cotidianas do que tem na Linguística, e ele é ainda mais restrito quando estamos pesquisando em Semântica. É por isso que pre-cisamos, inicialmente, ter clareza sobre o que se entende por esse termo quando estudamos semântica. Por exemplo, no dia-a-dia, conversamos sobre o significado da vida. Essa não é, no entanto, uma questão se-mântica, porque ela pergunta sobre o significado de algo que ocorre no mundo: enquanto um fenômeno no mundo, a vida pode receber dife-rentes explicações, nenhuma delas semântica: a resposta dada pela bio-logia, pela bioquímica, pelas religiões, pelo senso-comum. A semântica, no entanto, nada pode dizer sobre o significado da vida enquanto tal ou de qualquer outra “coisa” no mundo, porque ela explica apenas um tipo muito específico de fenômeno: o significado que atribuímos às sentenças e expressões de uma língua natural, uma língua que aprendemos no ber-ço, sem aprendizagem formal.

O máximo que a semântica pode dizer é o significado da palavra “vida”, algo que aparece nos dicionários. Há uma notação específica que podemos usar para indicar quando se trata de semântica e quando se trata do fenômeno no mundo, as aspas simples, como abaixo:

(1) Qual o significado da vida?

(2) Qual o significado de ‘vida’?

Na sentença em (1), o que está em causa é o próprio ato de viver, em que condições esse ato faz algum sentido. Em (2), temos uma questão sobre o significado da própria palavra ‘vida’, talvez algo próximo do que aparece nos dicionários.

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Semântica

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Considere outro exemplo. É comum especularmos sobre o significa-do de um ato. Suponha que o João é o chefe da Maria e ele saiu apressado da sala dele em direção à sala do presidente da empresa. A Maria pode se perguntar o que significa essa saída brusca de João, o que será que houve para ele sair dessa maneira, algo tão incomum. Porém, mais uma vez, essa especulação não é semântica, porque a pergunta não é sobre o significado de uma fala ou de uma expressão linguística, mas de um ato realizado por João. Contraste com a seguinte situação: João está expondo as metas da empresa para o próximo ano, e ele diz: O leiaute da nossa empresa precisa ser reformulado. E a Maria se pergunta: O que será que ‘leiaute’ signifi-ca? Neste caso, sim, estamos diante de uma indagação semântica, porque Maria se pergunta sobre o significado de uma palavra, a palavra ‘leiaute’, e a resposta deve ser um esclarecimento sobre o significado dessa palavra usando outras palavras: leiaute é o projeto do desenho gráfico de uma empresa. Maria aprendeu algo sobre a língua (e não sobre o mundo).

Assim, uma primeira distinção a ser traçada, no vasto domínio do termo significado, separa o significado linguístico, que é aquele veicula-do pelas línguas naturais, e o significado não-linguístico, que compre-ende o significado que atribuímos a objetos (ou fatos) no mundo e a símbolos que não são parte das línguas naturais.

Vejamos um exemplo desse último caso. Imagine a seguinte situa-ção: numa aula para arquitetos de interior, um instrutor explica o signi-ficado de símbolos que devem constar num projeto arquitetônico para prédios, como o que apresentamos ao lado:

– Esse símbolo - ele diz apontando para o slide na tela - significa que há acesso para cadeira de rodas. Tal uso do termo ‘significa’ deve fazer parte da linguística? Se você respondeu negativamente, acertou. De fato, esse uso do termo não se refere ao significado linguístico, embora na si-tuação o falante esteja dando o significado de um símbolo. O problema é que o símbolo em questão não é parte de uma língua natural. Ele é um símbolo não-linguístico, embora convencional.

Considere agora outra situação. A polícia está procurando um ca-sal que se perdeu numa floresta. De repente, os policiais veem fumaça no céu e um deles diz:

Page 15: [livro UFSC] Semantica

Capítulo 01Semântica e pragmática: delimitando os campos

15

– Essa fumaça significa que alguém fez uma fogueira.

Mais uma vez, esse uso do significado não é linguístico, porque se está atribuindo significado a um fenômeno no mundo. É o que ocorre quando, ao notarmos que uma criança está com febre, dizemos: signi-fica que ela está doente. Veja que não se está esclarecendo o significado da palavra ‘febre’, mas o que ter febre no mundo pode estar indicando. A febre é um sinal de doença, mas não significa, linguisticamente falan-do, doença. Em nenhum dos casos questiona-se sobre o significado de expressões linguísticas, por isso eles não fazem parte do campo da se-mântica, cujo estudo se restringe ao significado linguístico, isto é, àquele veiculado pelas línguas naturais.

Chegamos, então, a um primeiro quadro, separando o significa-do linguístico do significado não-linguístico, para nos concentrarmos adiante no significado linguístico, isto é, aquele que ocorre nas línguas naturais, e que é objeto de estudo da Semântica.

Significado Linguístico(vínculo através de uma língua natural)

Significado Não-Linguístico

Convencionais Não Convencionais(Natural)

Febre = Doença

x

x

PARE

1.2 O Significado linguístico

Uma primeira constatação é a de que não basta separar o significa-do linguístico do significado não-linguístico para delimitar o campo da Semântica, porque o estudo do significado linguístico transborda as mar-gens do que fazem os semanticistas, as margens da semântica, ocupando também a pauta das ciências cognitivas e, em particular, da Pragmática. Para desde já entendermos um pouco melhor as diferenças e relações entre semântica e pragmática, consideraremos a seguinte situação: a Ma-

Qual é a relação entre signi-ficados linguísticos e o que acontece no nosso cérebro?

Page 16: [livro UFSC] Semantica

Semântica

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ria é a empregada de Joana. Ambas sabem que a roupa está estendida no varal. De repente, Joana profere (3):

(3) Tá chovendo.

A Maria mais que depressa sai correndo para tirar a roupa do varal, dizendo:

(4) Já tô indo tirar a roupa do varal.

Veja que os atos de Maria, inclusive o ato linguístico (seu proferi-mento), não respondem ou se relacionam diretamente à sentença que Joana proferiu, mas decorrem dela. Se atentarmos apenas para o signi-ficado da sentença, notaremos que a Joana afirma que, no momento em que ela profere a sentença, é o caso de que está chovendo e nada mais. Ela não pede explicitamente para que a Maria recolha a roupa do varal, mas é possível “deduzir” que foi isso que a Joana quis dizer se contex-tualizarmos a fala de Joana, isto é, se atentarmos para outros elementos dados pela situação de fala e que constituem o proferimento linguístico: Joana e Maria sabem que a roupa está no varal, que Maria é a empre-gada - ela é quem deve cuidar dos afazeres da casa - que chuva molha a roupa, que o que a Joana disse é verdade (a Joana não está brincando) etc. Todas essas informações (e outras) constituem o fundo conversa-cional no qual o proferimento de Maria se realiza, e esse fundo permite um raciocínio inferencial de Maria, como: dada a situação, se a Joana disse que está chovendo é porque ela quer que eu tire a roupa do varal. Tanto a resposta quanto os atos de Maria mostram que ela entendeu o pedido indireto de Joana. Esse significado é também linguístico, porque ele depende do que foi dito na situação, mas ele não é propriamente semântico, porque ele depende de um cálculo inferencial (da esfera da pragmática) que envolve elementos contextuais a partir do significado da sentença, este sim objeto da semântica.

Vejamos outra situação:

Cláudia é a mãe de Pedro, e ele está se preparando para sair para a escola. Ela nota que ele não está levando nem capa de chuva, nem guarda-chuva, e ela sabe que está chovendo. Então, ela profere:

(5) Tá chovendo.

Page 17: [livro UFSC] Semantica

Capítulo 01Semântica e pragmática: delimitando os campos

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A fala de sua mãe leva Pedro a pegar o guarda-chuva antes de sair. A sentença (5) diz exatamente o mesmo que a sentença (3): no momento em que o falante profere a sentença é o caso de que está chovendo – a semân-tica das duas sentenças é a mesma. Mas, as inferências mudaram, porque mudou o fundo conversacional em que se dá a interação linguística. Nesse caso, os elementos na situação levam a outro raciocínio: se minha mãe disse que está chovendo é porque ela quer que eu leve o guarda-chuva, para que eu não me molhe.

Assim, mesmo restringindo a noção de significado para a de sig-nificado linguístico podemos ainda subdividir esta em dois níveis de significado: um que está atrelado ao significado da sentença, a uma composição estrita do significado das palavras, e outro, que depende do significado da sentença mais informações sobre a situação em que a sentença é proferida pelo falante. Essa é a distinção entre o significado da sentença e o significado do falante, respectivamente.

Podemos, grosso modo, dizer que à Semântica cabe o estudo do

significado da sentença, enquanto cabe à Pragmática o estudo do

significado do falante.

Não é difícil encontrar na literatura a distinção entre significado da sentença e significado do falante sendo estabelecida através da ausência ou presença do contexto para o cálculo do significado – algo como: a se-mântica estuda o significado fora do contexto (“fora de uso”). No entan-to, é preciso tomar cuidado com essa definição porque a interpretação do sentido da sentença muitas vezes leva em consideração o contexto, a situação de fala. Por exemplo, o significado da sentença (3) e (5) é: no momento em que a sentença é proferida, é o caso de que está chovendo. Assim, essa sentença é verdadeira somente se, quando o falante a profere, é o caso de que está chovendo, não importa se no contexto de (3) ou de (5). Note, contudo, que incorporamos o contexto nessa descrição porque é necessário saber quando e onde o falante fala (3) ou (5): ora, a verdade da sentença depende de estar ou não chovendo quando e onde a sentença é pronunciada, e o quando e onde (data, hora, local) não são linguísticos.

Vejamos outro exemplo. A sentença

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Semântica

18

(6) Eu estou com fome.

Significa que o falante, no momento em que profere a sentença, está num estado de fome. Num mesmo momento, ela pode ser verdadeira para um falante e falsa para outro. Ou ela pode ser verdadeira para um falante num momento e falsa para o mesmo falante em outro momento. Sem levarmos em consideração o contexto, não há como estabelecer plenamente o significado dessa sentença (e da maior parte das sentenças nas línguas naturais).

Uma maneira mais segura de separar a semântica da pragmática é através da noção de intenção do falante: a pragmática busca recons-truir o que o falante quis dizer ao proferir uma sentença, qual era a sua intenção comunicativa; é importante notar que se trata de intenção co-municativa, isto é, o falante quer que o ouvinte perceba sua intenção ao proferir uma dada sentença, o que o levou a dizer o que disse. Há, evidentemente, outras intenções para além da comunicativa, mas essas não pertencem ao domínio da linguística.

Por sua vez, a semântica tem como objetivo reconstruir o sentido da sentença, porque a composição de palavras fornece significado à sentença. Ambas remetem ao contexto, mas o fazem com finalidades distintas.

Como você pode ter notado, as relações entre semântica e prag-mática são bastante estreitas e as questões levantadas pela pragmática requerem um estudo à parte (que não será alvo direto desta Disciplina). Nosso interesse é apenas separar o domínio da semântica. A discussão acima deve ter permitido entender os seguintes quadros:

Semântica Pragmática

Significado da Sentença (SS).O que a sentença diz.

Significado do falante (SF).O que o faltante quer dizer com a sentença que ele profere.

Observe outro exemplo, com base nesses quadros: Suponha que Ma-ria responda à pergunta ‘Quem quer namorar um semanticista?’ usando a seguinte sentença: ‘Teresa quer namorar um semanticista’. Com esse profe-rimento, é possível salientar duas interpretações semânticas (a e b a seguir) se o proferimento é feito fora de algum contexto específico, e no mínimo quatro interpretações pragmáticas (c, d, e, f) podem ser tomadas, somente depois que escolhermos entre (a) ou (b):

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Capítulo 01Semântica e pragmática: delimitando os campos

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Teresa quer namorar um determinado indivíduo X, que é a) semanticista.

Teresa quer namorar alguém, desde que seja um semanticista.b)

Teresa quer namorar um determinado indivíduo, semanticista: c) ela sabe quem é, mas não Maria, porque Teresa não lhe revelou o seu nome.

Teresa quer namorar um determinado indivíduo X, semanticista: d) também disse a Maria como se chama e o apresentou a ela, mas Maria, por precaução, não julga oportuno entrar em particulares.

Teresa está interessada por X e deseja namorá-lo, disse a Maria e) quem é; ocorre que Maria sabe que é um semanticista. Neste ponto não é relevante decidir se Teresa sabe disso, se ignora ou se Maria já tenha lhe dito. O fato é que Maria julga que, como Teresa está defendendo uma tese em Sintaxe, os dois não poderão nunca se entender e aquele namoro não vai acontecer (suponha que sintaticistas e semanticistas não se combinam ou são rivais). Ou seja, Maria exprime aos interlocutores (que co-nhecem muito bem as ideias de Teresa) a sua perplexidade.

Teresa quer namorar X, que é semanticista; Teresa terminou f) com um namorado que estuda sintaxe, assim como ela estu-da sintaxe. Mas, neste ponto, Teresa quer fazer ciúmes ao ex-namorado, namorando um semanticista. Todos sabem que o ex-namorado de Teresa odeia semanticistas e isto seria muito penoso para ele.

No exemplo acima, a sentença traz duas interpretações semânti-cas, visíveis em (a) e em (b): se você observar bem, a sentença ‘Tereza quer namorar um semanticista’ é ambígua; a sentença pode ainda car-regar outras interpretações pragmáticas (de (c) a (f)). Percebe-se que na pragmática outras informações são necessárias, como, por exemplo, as intenções de Tereza presente na interpretação pragmática (f): ela quer fazer ciúmes ao ex-namorado, que o ex-namorado odeia semanticistas etc. Mais uma vez, na pragmática, o falante precisa de outras informa-ções além daquelas oriundas de sentença – o significado da sentença –, como, por exemplo, o contexto, as intenções, o uso etc. A ideia é que a

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Semântica

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pragmática precisa do significado da sentença, aliado às intenções do falante no momento de proferimento da sentença.

1.3 A noção de significado

Esta Unidade começou com a explicação da noção de significado nos limites da Semântica. Para a Semântica, significado se restringe ao significado que as sentenças de uma língua têm, sem levar em consi-deração a intenção do falante. Mas, mesmo essa noção restrita precisa ainda ser melhor compreendida.

Essa foi uma das muitas contribuições de Gottlob Frege para a se-mântica das línguas naturais. Frege, no famoso artigo Sobre o Sentido e a Referência (1892, Über Sinn und Bedeutung), mostra que é preciso distinguir facetas no conceito de significado, pois se não separamos es-ses aspectos não entendemos as razões das sentenças (7) e (8) serem semanticamente distintas, tendo em vista que em ambas se estabelece uma identidade entre dois nomes próprios:

(7) A Estrela da Manhã é a Estrela da Manhã.

(8) A Estrela da Manhã é a Estrela da Tarde.

Gottlob Frege foi um matemático e filósofo alemão que viveu entre 1848

e 1925, e é reconhecido como o pai da semântica formal. Suas pesquisas

influenciaram áreas da lógica, da filosofia e dos estudos do significado.

Muitos dos conceitos que utilizamos em semântica formal são frutos do

seu trabalho, como o princípio da composicionalidade, a formalização

dos quantificadores, a distinção entre sentido e referência, e também

entre representação (que tem a ver com psicologia) e cor (que tem a ver

com atos de fala) dos enunciados etc. Com suas pesquisas, Frege prati-

camente lançou a agenda dos estudos em semântica, discutindo pro-

blemas como a pressuposição, atitudes proposicionais, intensão versus

extensão. A distinção entre sentido e referência, crucial em seu pensa-

mento, pode também ser pensada como o que significa exatamente o

sinal ‘=’ e o que ele relaciona. Se retornamos ao nosso par de exemplos

Gottlob Frege (1848-1925)

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Capítulo 01Semântica e pragmática: delimitando os campos

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7) A Estrela da Manhã é a Estrela da Manhã.

8) A Estrela da Manhã é a Estrela da Tarde.

podemos dizer que vemos relacionado em (7) e em (8) não referên-

cias, mas sim sentidos, em outras palavras, a igualdade não é uma

igualdade de objetos no mundo, mas sim de maneiras para chegar-

mos ou atingirmos com nossas palavras objetos no mundo. Por isso,

(8) é uma sentença interessante desse ponto de vista: ao informarmos

sentidos diferentes para um mesmo objeto, aprendemos coisas no-

vas. De resto, se fosse uma identidade de objeto, de referente, (8) seria

uma sentença falsa: ora, não há, de um ponto de vista lógico e estrito

da interpretação de ‘=’, dois objetos iguais no mundo. Contudo, (8)

não é falsa, logo, ela não relaciona referências, mas sim sentidos.

A sentença (7) é uma sentença analítica, isto é, ela é verdadeira sempre, independente de como o mundo é – ora, se uma sentença é sempre verdadeira, independentemente dos fatos, podemos dizer que ela não é informativa, ou seja, não aprendemos nada com ela.

Mais uma vez, proferir uma sentença analítica, que é obviamente verdadeira, provoca imediatamente uma implicatura. Se o falante está dizendo algo que é trivialmente verdadeiro, então é porque ele está que-rendo dizer outra coisa; afinal, por que diríamos algo que (todos sabem que) é sempre verdadeiro?

Podemos pensar o seguinte: no caso de alguém dizer ‘O João é o João’,

em que o ouvinte conhece o João e sabe que ele tem uma característi-

ca marcante (por exemplo, ser extremamente meticuloso), o significado

do falante ao proferir ‘O João é o João’ é justamente chamar a atenção

para essa característica do João (pense em casos como ‘Mãe é mãe’).

Voltando à sentença (7), vemos que ela estabelece uma identidade entre o mesmo nome, ‘A Estrela da Manhã’. Por sua vez, a sentença (8) estabelece uma identidade entre nomes diferentes; como em ‘O João é o João Paulo’.

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Semântica

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Nesse caso, temos uma sentença informativa: suponha que você sabe quem é o João, mas não sabe quem é o João Paulo; ao ouvir que ‘O João é o João Paulo’ você aprendeu algo novo, que o João tem dois nomes: ‘João’ e ‘João Paulo’. É claro que a verdade (ou a falsidade) da sentença (8) depende de como o mundo é. Não é necessário que o João tenha os nomes ‘João’ e ‘João Paulo’; podemos pensar em vários mundos parecidos com o nosso, em que João tem apenas um nome. O mesmo se aplica à sentença (8): que ‘Estrela da Manhã’ e ‘Estrela da Tarde’ sejam dois nomes para um mesmo objeto no mundo - o planeta Vênus - é algo contingente (e não necessário). Ao contrá-rio de sentenças como (7), sentenças como (8) são sintéticas, precisamente porque sua verdade ou falsidade depende de como o mundo é. No nosso mundo, a sentença (8) é verdadeira. Veja, novamente, que podíamos pensar em um mundo em que (8) seja falsa: basta que ‘A Estrela da Manhã’ e ‘A Es-trela da Tarde’ se refiram a objetos distintos.

A teoria clássica de significado, à qual Frege se contrapôs, entendia que o significado de uma expressão era o objeto no mundo. Assim, o significado de ‘Estrela da manhã’ seria o objeto no mundo, no caso o planeta Vênus. Mas, se fosse esse o caso, como é que diferenciaríamos (7) e (8)? Se ambas fossem verdadeiras, então elas se referenciariam ao mesmo “objeto”. Se este fosse o caso, como é que perceberíamos que elas são diferentes? Como é que saberíamos que ‘Estrela da Manhã’ e ‘Estrela da Tarde’ são dois nomes diferentes se o significado é objeto no mundo? Não haveria como. A solução proposta por Frege é distinguir aspectos do termo significado: quando sabemos o significado de uma sentença sabe-mos duas “coisas”: a que objeto ela se refere e o sentido da expressão, isto é, o pensamento que está associado àquela expressão. O que diferencia (7) e (8) é o fato de que seu sentido é diferente; o pensamento que elas veiculam não é o mesmo, embora elas se refiram ao mesmo objeto.

Frege mostrou, então, que a noção de significado comporta duas “face-tas”, ambas objetivas, porque de domínio público: o sentido e a referência.

A referência é o objeto no mundo, enquanto o sentido é o modo

de apresentação do objeto, como conhecemos esse objeto, o cami-

nho que nos leva até ele.

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Capítulo 01Semântica e pragmática: delimitando os campos

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Um mesmo objeto pode ser apresentado de diferentes maneiras, por caminhos diversos. Quando nos deparamos com um novo “cami-nho”, um novo sentido, aprendemos algo a mais sobre o objeto. Em (8) temos dois caminhos, ‘Estrela da Manhã’ e ‘Estrela da Tarde’, para uma única referência, o planeta Vênus, como mostra o desenho a seguir (ver lado direito), enquanto em (7) temos um único caminho, ‘Estrela da Manhã’, para a referência (ver lado esquerdo):

Estrela da Manhã Estrela da Manhã

Estrela da Tarde

Como dissemos, quanto mais sentidos temos para chegar a um objeto, mais sabemos sobre esse objeto; podemos abordá-lo através de mais entradas. Considere o seguinte exemplo. Suponha que o objeto do qual queremos falar é o indivíduo Hitler, e esse indivíduo é alcança-do pelo nome próprio ‘Adolf Hitler’. Mas, podemos alcançá-lo usando outras expressões que funcionam como um nome próprio, isto é, que permitem alcançar um e apenas um indivíduo. As descrições definidas cumprem essa função, por isso mesmo Frege também as denomina de nomes próprios. Eis algumas descrições definidas que alcançam Hitler, o indivíduo: ‘o marido de Eva Brown’, ‘o autor de Mein Kampf’, ‘o Führer’. Se, por exemplo, você não sabia que Hitler havia escrito Mein Kampf, ao interpretar a sentença ‘Hitler é o autor de Mein Kampf ’ você aprendeu algo a mais sobre Hitler; agora você tem mais um caminho para chegar até ele. Aprendemos sobre o mundo através de sentenças sintéticas.

Contudo, aqui é preciso fazer uma ressalva: não se deve confundir o caso de (8) com a sinonímia. Em (8), não temos um exemplo de si-nonímia, porque há dois sentidos que são identificados, i.e., há duas re-presentações para o mesmo objeto. Na sinonímia temos um único sen-tido (um único caminho) veiculado por expressões distintas, por isso sinonímias são sentenças analíticas; mais adiante, no próximo tópico, veremos detalhadamente a noção de sinonímia; por enquanto, nos basta apenas outro exemplo:

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(9) Maria é mulher de Pedro é o mesmo que Maria é esposa de Pedro.

O que caracteriza a sinonímia é que expressar o mesmo pensamen-to (o mesmo conceito), o mesmo sentido, através de expressões distintas: ‘ser esposa de’ e ‘ser mulher de’ veiculam o mesmo conceito através de palavras diferentes. Se é o caso de que a Maria é mulher do Pedro, tem que ser o caso, necessariamente, de que a Maria é esposa de Pedro. Não é possível imaginar um mundo em que seja verdadeiro que a Maria é a mulher do Pedro e outro em que é falso que ela é a esposa do Pedro. É diferente, é claro, usar ‘ser esposa de’ e ‘ser mulher de’, mas essa dife-rença não é semântica, não se dá no plano dos conceitos; essa diferença é sociolinguística: ‘esposa’ é uma palavra mais formal do que ‘mulher’, por exemplo. Nesse caso, trata-se de um único caminho para a mesma referência. Não há, portanto, acréscimo de informação sobre o mundo: se você já sabe que a Maria é mulher do Pedro, dizer que ela é esposa não acrescenta informação sobre o mundo. O que pode ocorrer é uma aprendizagem sobre a linguagem: aprende-se uma nova expressão, sem haver acréscimo de sentido.

1.4 Considerações finais

Ao fim deste Tópico, você já deve estar familiarizado com o campo de estudo da Semântica. Assim como para quaisquer campos de investi-gação científica, é imprescindível que separemos nosso objeto de estudo dos objetos das demais disciplinas – próximos ou distantes a ele. Para o caso do campo de estudo da Semântica, vimos inicialmente qual é o significado que a Semântica estuda; num segundo momento, isolamos esse significado do uso que fazemos dele, o qual é, por sua vez, o campo de estudo da Pragmática.

Começamos a ver também as primeiras ideias de Frege e o ferra-mental básico do semanticista, como os conceitos de sentido e de refe-rência. Nos tópicos a seguir, exploraremos cada vez mais essas ideias e conceitos.

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Capítulo 02Conhecimento semântico...

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2 Conhecimento semântico e os nexos semânticos: acarretamento, contradição e sinonímia

Você vai ver aqui algumas das operações semânticas básicas, como as de

acarretamento e sinonímia, e também conhecerá os nexos semânticos existen-

tes entre sentenças. Relacionaremos essas operações e nexos a conhecimentos

inatos dos falantes.

2.1 Conhecimento semântico implícito

Após a discussão sobre possíveis diferenças entre semântica e prag-mática, esclarecemos o objeto de estudo da Semântica: o significado lin-guístico das línguas naturais. Esse significado possibilita alguns nexos semânticos entre sentenças. Quando perguntamos o significado de algu-ma palavra, muitas vezes buscamos aquele modelo significativo presente nos dicionários. Porém, não há no dicionário maneiras pré-estabelecidas de como uma palavra pode se combinar com outra em busca da trama de significados, dos nexos que favorecem infinitas interpretações. Essas combinações são decorrentes do próprio uso da língua pelos seus falantes, mas não estão nem presentes nos dicionários nem tampouco alguém nos ensina: são conhecimentos implícitos. Uma área da linguística moderna defende que o nosso conhecimento semântico é um dote genético, por-tanto, os possíveis nexos semânticos são decorrentes de uma capacidade inata de combinação de palavras e sentenças, parte do conhecimento se-mântico implícito ou competência semântica. Observe um exemplo:

(1) Pedro é filho de João.

Quando alguém pronuncia a sentença acima, intuitivamente é possível afirmar que a sentença (2) a seguir é verdadeira: em todos os mundos que a sentença (1) é verdadeira, a sentença (2) também é verdadeira, ou seja, se é verdade que Pedro é filho de João, também é verdade a sentença (2), tratando-se, obviamente, dos mesmos Pedro e João:

(2) João é pai de Pedro.

Esses nexos, presentes nas línguas naturais, podem ser entendidos como relações provocadas pela trama de significados das sentenças.

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No nosso mundo folclórico sabemos que o Saci Pererê tem apenas uma das pernas. Então, as três sentenças a seguir são verdadeiras:

(3) O Saci não tem uma perna.

(4) O Saci tem perna.

(5) O Saci não tem as duas pernas.

Porém, a sentença a seguir é falsa:

(6) O Saci não tem perna.

Como sabemos que as sentenças (3), (4), (5) e (6) estão relaciona-das, e que somente (6) é falsa, dentro do nosso conhecimento de mundo? Sabemos porque temos essa capacidade inata de estabelecer relações en-tre sentenças e em que condições elas são verdadeiras. Como já mostra-mos que o campo da semântica é o significado linguístico da sentença, sua pergunta básica é: o que um falante (de uma língua natural) sabe quando sabe o sentido de uma sentença qualquer de sua língua? Res-ponder a essa pergunta é construir uma teoria sobre um tipo particular de conhecimento: o conhecimento que um falante tem do significado das sentenças (e palavras) de sua língua. Evidentemente, esse conhe-cimento é implícito, isto é, o falante tem esse conhecimento e o utiliza nas suas interações cotidianas, mas não sabe descrevê-lo, não o conhece conscientemente. Ele é como o conhecimento implícito que temos e que nos permite caminhar: sabemos caminhar, mas são poucos (se é que há alguém) os que sabem todos os passos que permitem que caminhemos: quais articulações se movem ou quais músculos e nervos sensoriais estão envolvidos, por exemplo. O mesmo ocorre com o conhecimento que te-mos do significado das sentenças: sabemos o que as sentenças da nossa língua significam, mas não sabemos descrever e explicar cientificamente esse conhecimento. Este é justamente o objetivo do semanticista: descre-ver e explicar esse conhecimento semântico que um falante tem.

Neste Tópico, vamos enfrentar, parcialmente, essa questão: o que um falante sabe quando sabe o significado de uma sentença qualquer de sua língua? Certamente, ele sabe em que condições uma sentença qual-quer de sua língua é verdadeira, e em que momentos ela é ou não verda-deiramente usada. Ele também sabe compor e interpretar sentenças que

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Capítulo 02Conhecimento semântico...

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nunca ouviu antes. Finalmente, ele sabe deduzir de uma sentença outras sentenças. Antes de lidar especificamente com cada um desses conheci-mentos, vamos exemplificá-los rapidamente.

Suponha que alguém peça para você dizer o que a sentença ‘Tá cho-vendo’ significa. Você certamente sabe a resposta e uma maneira muito frequente de explicar é dizer quando a sentença ‘Tá chovendo’ é verda-deira: a sentença ‘Tá chovendo’ significa que está chovendo quando o falante a profere. Esse seu conhecimento não se restringe, obviamente, a essa sentença, ele se aplica a qualquer outra; até mesmo a uma sentença que você nunca ouviu antes. Muito provavelmente, você nunca ouviu ou leu a sentença a seguir:

(7) Uma nuvem alaranjada tomou devagarzinho o quarto de Sara.

Você não tem qualquer problema em imaginar como o mundo deve ser para que ela seja verdadeira, certo? Como você sabe isso? Ora, você sabe o que as palavras em (7) significam e sabe combiná-las, por isso você pode interpretar um número infinito de sentenças. Veja que se você sabe que a sentença (7) é verdadeira, você sabe outras sentenças, como:

(8) Há um único quarto que é de Sara.

(9) O evento (a nuvem alaranjada tomar devagarzinho o quarto de Sara) ocorreu no passado.

Esse outro conhecimento é derivado do fato de que você entendeu a sentença (7). Assim, quando sabemos o significado de uma sentença, sabemos, inevitavelmente, o significado de muitas outras sentenças que estão “enredadas” nela.

Há outro conhecimento semântico que os falantes possuem: a paráfrase. Inicialmente, é preciso diferenciar entre uma paráfrase desen-cadeada pelo léxico daquela que a própria sentença opera. Um exemplo de paráfrase lexical é aquela que pode ser desenvolvida por substantivo, adjetivo, verbo ou preposição, como nos mostram as expressões a se-guir, respectivamente:

(10) João é vizinho de Pedro ≈ Pedro é vizinho de João.

(11) Maria é mais gorda que Joana ≈ Joana é mais magra que Maria.

Tradicionalmente, a pará-frase é entendida como alternativa de expressão que mantém o mesmo sentido.

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Semântica

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(12) Maria atravessou a Avenida Paulista ≈ Maria cruzou a avenida paulista.

(13) A casa de Maria fica atrás do Hospital ≈ O hospital fica na frente da casa de Maria.

Há ainda aquela paráfrase desencadeada pelas sentenças, que é a que nos interessa aqui. Algumas operações sintáticas permitem que algumas sentenças derivem o mesmo sentido. Certas operações fazem esse papel de conservar o mesmo sentido, como a nominalização, a substituição de formas verbais (finita x infinita) ou o alçamento de verbos, como nos mostram as sentenças a seguir, respectivamente:

(14) Os gafanhotos destruíram a cidade ≈ A destruição da cidade pelos gafanhotos.

(15) Nas férias, era comum eu estudar semântica ≈ Nas férias, era comum que eu estudasse semântica.

(16) Em época de eleições, foi preciso que a Polícia Federal inter-viesse em algumas cidades ≈ Em época de eleições, a Polícia Federal precisou intervir em algumas cidades.

Como esse conhecimento pode ser explicado? Como descrever esse conhecimento através de uma teoria do significado? A ideia é a de que, quando interpretamos qualquer sentença em nossa língua, de alguma for-ma, nós a avaliamos em mundo(s), para determinar se ela é verdadeira ou falsa; ou melhor, relacionamos sentenças a mundo(s), para avaliar se uma determinada sentença é verdadeira ou falsa. Observe um exemplo:

(17) Pedro surfa.

O que quer dizer “um falante conhece sua língua” ou “um falante sabe o significado das sentenças de sua língua”? A resposta é: ao saber o significa-do de sua língua, o falante conhece suas condições de verdade. Dessa forma, ao interpretar a sentença (17), nós dividimos os mundos a partir de dois aspectos: o verdadeiro ou o falso: mundos em que essa sentença é verda-deira, ou seja, mundos em que Pedro surfa, e mundos em que ela é falsa, ou seja, mundos em que Pedro não surfa. Como podemos observar, estamos falando de mundos, no plural, isto é, em mais de um mundo, os chamados mundos possíveis. Então, de agora em diante, não estranhe ao mencionar-

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mos mundo(s) no plural ou, simplesmente, mundos possíveis.

Suponha a existência de quatro mundos: w1, w2, w3, w4. Observe agora a sentença ‘Pedro surfa’ em um certo modelo:

w1 Vw2 Vw3 Vw4 F

Imagine agora que, além de Pedro, Joana também surfa, assim dis-criminados nos mundos: em w1, Pedro surfa e a Joana surfa. Em w2, Pedro surfa e Joana esquia. Em w3, tanto Pedro quanto Joana surfam. Em w4, Pedro joga futebol e Joana surfa. Em w1, w3 e w4, é verdadeiro que Joana surfa. Em w2, é falso. Já em w1, w2 e w3, é verdadeiro que Pedro surfa; em w4, é falso. Como se observa, avaliamos as sentenças relativizando-as a mundos possíveis (e também ao tempo, embora não estejamos levando em consideração esse aspecto por enquanto). Em ou-tros termos, a sentença ‘Pedro surfa’ é verdadeira em todos os mundos em que Pedro surfa (w1, w2 e w3) e a sentença ‘Joana surfa’ é verdadeira em todos os mundos em que Joana surfa (w1, w3, e w4).

Até agora falamos em mundos ou mundos possíveis, sem ao me-nos discriminá-los. Apesar de essa discussão aparecer em tópicos pos-teriores, por ora, basta-nos afirmar que mundos possíveis são mundos que podem ser diferentes do nosso, em um ou mais de um aspecto. Pode haver mundos em que não há água, nem humanos, nem prédios, nem bancos, nem uma determinada vizinha chata, ou aquela sogra insupor-tável... Quando queremos dar conta da semântica de sentenças como: Se eu fosse você, restringimos os mundos possíveis àqueles mundos que são próximos ao nosso, em que a única diferença é eu ser você. Mas essa é uma restrição linguística/cognitiva, para interpretarmos a sentença. Su-ponha um mundo igual a esse, mas a única diferença é que o homem não foi à lua, ou um mundo em que o Brasil não é campeão do mundo no futebol, ou um mundo em que não há sol, ou um mundo com sete luas.

A semântica que estudamos nesta Disciplina capta essa noção de mundo(s) ou mundos possíveis, ao afirmar que a interpretação de uma sentença depende da relação entre linguagem e mundo(s). Por esse mo-tivo, ela é denominada de semântica referencial ou semântica deno-

“Além dos fatos como as coisas realmente são, há fatos sobre como as coisas podem ser ou poderiam ter sido” (Stainton, 1996, p. 77).

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tacional, exatamente porque sentenças são avaliadas em mundo(s) ou mundos possíveis a fim de determinar suas condições de verdade. Isso é interessante porque, como foi visto, saber o significado de uma sentença é conhecer suas condições de verdade. E quanto mais aprendemos sobre o significado, ou, de um modo global, quanto mais aprendemos como a linguagem funciona, estaremos mais perto do conhecimento da mente e do cérebro.

De agora em diante, vamos nos ater mais detalhadamente a alguns desses conhecimentos semânticos dos falantes, como composicionalida-de, acarretamento, contradição, sinonímia e condições de verdade.

2.2. Composicionalidade

Uma propriedade que constitui o conhecimento semântico de um falante e que, portanto, deve ser apreendida por uma teoria do significa-do linguístico, é a composicionalidade. Quando um falante sabe o signi-ficado de uma sentença, ele sabe não apenas suas condições de verdade, ele sabe também “compô-la” e “decompô-la”. Se o falante entende a sen-tença ‘Tá chovendo’, ele sabe o significado de ‘estar’ e ‘chovendo’ e, na verdade, sabe que ‘chovendo’ se decompõe em ‘chov(e)-’ e ‘-ndo’. Sabe ainda que essas “unidades” mantêm o mesmo significado em infinitas sentenças nas quais elas podem ocorrer. Por exemplo, veja que ‘chov(e)-’ dá a mesma contribuição nos diferentes contextos em que aparece – de passagem, um falante também sabe que o significado de chover está re-lacionado com chuva, chuvisco, água, entre outros:

(18) a. Vai chover.

b. Choveu ontem.

c. Choveria, se não estivesse ventando.

O falante sabe ainda qual é a contribuição do progressivo, represen-tado em ‘Tá chovendo’ pela perífrase verbal ‘estar V+ndo’ (‘estou can-tando’, ‘está falando’). Ele sabe que no contexto em que ‘Tá chovendo’ é proferida, a perífrase indica progressividade, isto é, o evento descrito, o evento de chuva, está ocorrendo simultaneamente ao momento de fala, como aparece no esquema a seguir:

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Capítulo 02Conhecimento semântico...

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momento de fala

chove

Podemos entender que a composicionalidade expressa o fato de que um falante sabe compor o significado de uma sentença a partir do significado de partes mínimas, isto é, o significado de uma expressão mais complexa é o resultado de uma composição de suas partes. No caso de ‘Tá chovendo’, o falante “soma” o significado de ‘chov(e)-’ mais o significado da perífrase ‘estar + -ndo’.

A composicionalidade explica a criatividade, a capacidade de es-

tarmos a todo instante construindo e interpretando sentenças que

nunca ouvimos antes.

É muito provável que ninguém que esteja estudando esta disciplina de Semântica encontrou antes a sentença a seguir, mas nenhum de nós tem qualquer problema em interpretá-la, isto é, todos nós sabemos em que mundos ela é verdadeira:

(19) O gato azul está de ponta-cabeça.

Essa sentença é verdadeira em todos os mundos em que há um úni-co gato saliente no contexto e esse gato é azul e ele está de ponta-cabeça. Não temos problema algum para interpretá-la porque conhecemos o significado de cada um dos termos que a compõem.

Chomsky foi um dos primeiros, na linguística, a chamar a atenção para o fato de que os falantes são criativos, porque produzem e inter-pretam sentenças que nunca ouviram antes. Esse fato, aparentemente tão trivial, refutou tanto as teorias comportamentais da aprendizagem (que acreditam que as línguas humanas são aprendidas por estímulo e resposta) quanto as teorias estruturalistas sobre a linguagem humana (que entendiam, grosso modo, que a linguagem era um conjunto “fecha-do” de sentenças). Chomsky mostra que a linguagem é aberta, infinita, indeterminada, mas previsível no sentido de que podemos “calcular” o novo, porque sabemos “construir” sentenças a partir do significado de unidades mínimas (átomos) e regras de combinação, que são recursivas, isto é, se aplicam repetidamente, em diferentes situações.

Com a obra Syntactic Structures (1957)

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Semântica

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A recursividade é também uma competência semântica do falan-

te, ela é uma propriedade linguística que nos é fornecida genetica-

mente. Segundo Chomsky, Hauser e Fitch (2002), a recursividade é

a propriedade que distingue naturalmente a linguagem dos seres

humanos da linguagem dos demais animais. Somente na lingua-

gem dos seres humanos é possível “calcular” o novo. Se uma abelha

tem de comunicar a outras abelhas que o inimigo vem chegando,

ela se utiliza de um conjunto de fatores, a dança, a batida das asas, o

zumbido etc., que devem ser desempenhados de uma determinada

e única forma, senão as outras abelhas não vão entendê-la. Ou seja,

há um único caminho para se chegar ao objetivo: em outras pala-

vras, as abelhas não têm capacidade de fazer paráfrases. Já na lin-

guagem humana são possíveis infinitas maneiras de se alcançar tal

objetivo, ou, nos termos de Frege, diferentes sentidos para se chegar

a uma referência.

Na sentença ‘Tá chovendo’, combinamos o significado de ‘chov(e)-’ com o significado do progressivo, através de uma regra que permite combinar ra-dicais verbais com a perífrase progressiva, ‘estar –ndo’. Essa regra de combi-nação é a mesma que recorre em inúmeras outras sentenças da língua (como em ‘está nevando’, ‘está chuviscando’, ‘está amando’, ‘está falando’ etc.).

Evidentemente, um dos problemas que o semanticista enfrenta é de-terminar quais são as unidades mínimas e como elas são adquiridas pelo falante. A determinação das unidades mínimas para constituir o léxico de uma língua é uma tarefa bastante complexa e que se dá na interface com a morfologia. Considere, por exemplo, a sentença:

(20) O João saiu apressado.

Certamente, o léxico deve conter um item para “sair”, uma raiz como ‘sa(i)-’, que se combina com diferentes flexões, cada uma delas conglomerando significados: ‘-u’ indica terceira pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo. Compare com:

(21) O João saía apressado.

Recapitule algumas noções de Morfologia

em: MARGOTTI, Felício W. Morfologia do Portu-guês. Florianópolis: LLV/

CCE/USFC, 2008.

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Capítulo 02Conhecimento semântico...

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As sentenças (20) e (21) não têm o mesmo significado e a di-ferença, neste caso, está no aspecto: o primeiro é perfectivo; o segundo, imperfectivo.

Veja que no léxico estão o radical e os sufixos tempo-aspectuais. Já ‘apressado’ é mais complicado: vamos colocá-lo no léxico nessa forma? Ou será que no léxico deve aparecer apenas ‘pressa’ e ‘apressado’ deve ser gerado via uma regra de derivação morfológica que passa do adje-tivo ‘pressa’ para o verbo ‘apressar’ e, finalmente, a forma de particípio passado do verbo ou de adjetivo ‘apressado’? Esses são problemas de quem estuda morfologia.

2.3 Trama semântica

Outra propriedade que caracteriza o conhecimento semântico de um falante é sua capacidade de deduzir sentenças de outras sentenças. O falante não sabe apenas em que condições uma sentença é verdadeira e como (de)compô-la, ele sabe outras sentenças quando ele sabe uma sen-tença. Por exemplo, suponha que a sentença ‘Tá chovendo’ seja verdadei-ra (ou que ela seja considerada verdadeira). Nesse caso, o falante também sabe que a sentença (22) é falsa, e que a sentença (23) é verdadeira:

(22) Não tá chovendo.

(23) Tá caindo chuva.

Se ‘Tá chovendo’ for falsa, obtemos um resultado oposto e com-pletamente previsível: (22) é verdadeira e (23) é falsa. Sabemos isso simplesmente porque entendemos o que uma sentença significa e esse entendimento envolve conhecer outras sentenças que estão semantica-mente relacionadas à sentença conhecida.

O par ‘Tá chovendo’ e ‘Não tá chovendo’ exemplifica um caso de contradição: se a primeira é verdadeira, a segunda tem que ser (neces-sariamente) falsa e vice-versa. Em outros termos, suponha que A e B são sentenças quaisquer de uma língua, e que V e F estão por “verdadeiro” e “falso”, respectivamente; assim, uma contradição ocorre quando:

se A é V, B é F (e vice-versa)

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Semântica

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Sentenças contraditórias são sentenças que não podem ser simulta-neamente verdadeiras: se está chovendo não pode ser o caso de que não está chovendo (e vice-versa).

Alguém pode replicar o seguinte: mas às vezes a gente diz ‘tá e não tá chovendo’. É verdade, mas, em geral, esses são casos em que o falante está criando uma implicatura – raciocínios pragmáticos – ou casos de limites vagos para os quais não há certeza sobre o uso da sentença. Em geral, é muito estranho afirmar contradições como ‘João é e não é homem’ e, por isso mesmo, elas tendem a disparar implicaturas: o que o falante quer ao proferir uma sentença contraditória é implicar que algumas caracte-rísticas do predicado se aplicam, enquanto outras não se aplicam. Assim, ao proferir a contradição acima o falante está implicando que em alguns aspectos João é homem e em outros não. Mas, essa é uma maneira de resolver a (aparente) contradição.

A relação entre ‘Tá chovendo’ e ‘Tá caindo chuva’ é, ao mesmo tem-po, de acarretamento e de sinonímia, que nada mais é do que um duplo acarretamento (ou acarretamento em mão dupla).

Uma sentença A acarreta outra (B) se em todos os contextos em que

A é verdadeira B também é verdadeira, por isso dizemos que, se há

acarretamento, uma sentença se segue necessariamente da outra.

Por exemplo, se está chovendo, então é certo que está cain-do chuva, afinal não é possível imaginar uma situação em que es-teja chovendo sem que caia chuva do céu (deixe de lado os usos metafóricos envolvendo ‘chover’, como por exemplo ‘está choven-do pétalas de rosa’). Note ainda que a sentença ‘Tá caindo chuva’ acarreta a sentença ‘Tá chovendo’: se está caindo chuva, então está chovendo. Quando há duplo acarretamento, temos sinonímia. Acarretamento (de A para B): Se A é V, então B é necessariamente V.

Sinonímia: A acarreta B e B acarreta A.

Note que a relação de acarretamento supõe uma “direcionalidade”: se A é V, então B é necessariamente V. A sinonímia é o acarretamen-to de mão dupla porque ele vale nas duas direções. Mas, nem sempre

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Capítulo 02Conhecimento semântico...

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acontece termos o duplo acarretamento. Por exemplo, a sentença (24) acarreta a sentença (25), mas o contrário não é verdadeiro, logo não há sinonímia:

(24) João preparou o almoço.

(25) João fez algo.

É claro que os mundos em que João cozinhou o almoço são mun-dos em que ele fez algo (há, portanto, acarretamento de (24) para (25)), mas os mundos em que João fez algo incluem outros mundos além da-queles em que João preparou o almoço: por exemplo, mundos em que ele fez o jantar, mundos em que ele saiu de casa, em que ele se levantou etc. (portanto (25) não acarreta (24)). Veja o gráfico de acarretamento a seguir, no qual os balões indicam conjuntos de mundos: o conjunto de mundos em que a sentença em (24) é verdadeira está incluído no con-junto de mundos em que (25) é verdadeira:

Mundos em que João preparou o almoço.

Mundos em que João fez algo.

Considere, agora, a relação entre a sentença (24) e a sentença (26):

(26) João fez o almoço.

Suponha que ‘preparar o almoço’ significa ‘fazer o almoço’. Logo, se (24) é verdadeira, (26) também é e vice-versa. Nesse caso, o conjunto de mundos em que (24) é verdadeira coincide exatamente com o conjunto de mundos em que (26) é verdadeira. Temos, assim, um caso de sinonímia. A figura representando o conjunto de mundos é a seguinte:

Mundos em que João preparou o almoço

Mundos em que João fez o almoço

=

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Semântica

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Há outras relações entre as sentenças (muitas vezes chamadas de “ne-

xos” semânticos) que são objeto de estudos do semanticista, por exem-

plo, a pressuposição, a anáfora, a comparação, dentre outros. Vol-

taremos a elas ao longo desta Disciplina, por enquanto você deve ter

claro o conceito de contradição, acarretamento e o de sinonímia.

2.4 Condições de verdade

Como dissemos, um primeiro aspecto do conhecimento que um falante tem sobre o significado das sentenças que uma teoria semân-tica deve capturar é o fato de que ele sabe em que condições o mundo precisa estar para que uma sentença seja verdadeira. É por isso que na semântica se afirma que o significado de uma sentença são as suas con-dições de verdade. Sublinhe-se que se trata de condições de verdade, isto é, o falante pode não saber se a sentença é efetivamente verdadeira ou falsa; o que interessa é que ele com certeza sabe em que condições ela pode receber um ou outro valor de verdade: o verdadeiro ou o falso. Por exemplo, podemos dizer precisamente em que condições a sentença (27) pode ser verdadeira (suas condições de verdade) sem que possa-mos verificar se ela de fato é verdadeira:

(27) Tem 531 insetos no meu jardim neste momento.

A Semântica não lida com o uso da sentença, mas com a sentença em sua potencialidade de uso. As condições de verdade expressam o conhecimento mínimo que um falante tem quando ele sabe o que uma sentença significa: o potencial de uso dessa sentença. O mínimo que ele sabe, se ele entende uma sentença, é separar, através dela, o mundo em dois blocos: de um lado, as situações em que a sentença é verdadeira; de outro, aquelas em que ela é falsa. Ao ouvir a sentença ‘tá chovendo’, um falante do PB delimita dois “esboços” de mundo:

‘Tá chovendo’ é falsa ‘Tá chovendo’ é verdadeira

Leia-se Português Brasileiro.

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Capítulo 02Conhecimento semântico...

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O falante sabe que a sentença ‘Tá chovendo’ é falsa nos mundos à esquerda do quadro; e é verdadeira nos mundos à direita. É nesse sen-tido que uma sentença desenha um esboço de como o mundo deve ser para que ela seja verdadeira, o que significa que ela também desenha os mundos em que é falsa. Assim, uma sentença estabelece uma relação entre linguagem e estados de mundo (ou mundos), deixando espaço para muita vagueza e indeterminação, dois fenômenos semânticos bem interessantes.

O significado de uma sentença é sempre (e necessariamente) in-determinado, precisamente porque ele recobre inúmeras situações (no nosso exemplo, situações em que está uma chuva fraca, chuva com sol, chuva forte, chuvinha...) em que esse significado é verdadeiro. A inde-terminação deve ser distinguida da vagueza, o fato de que muitas vezes não temos certeza se a sentença é verdadeira ou não em uma dada si-tuação. Por exemplo, se no momento em que ‘Tá chovendo’ é proferida falante e ouvinte estão numa situação em que está uma chuvinha bem fininha poderia ser difícil de definir se está ou não chovendo, ou se eles estão numa forte maresia, por exemplo. Estamos, nessa situação, num caso limite em que tanto é possível afirmar que está chovendo, quanto que não está.

A indeterminação vem do fato de que uma mesma sentença é ver-dadeira em muitas situações diferentes, sem que o falante tenha dúvida sobre se a sentença se aplica ou não à situação. Por exemplo, estamos numa situação em que nenhum de nós tem dúvida sobre se está ou não chovendo; estamos de acordo que está chovendo. Mas, são inúmeras as situações em que isso ocorre: está chovendo e frio; está chovendo e ca-lor; está chovendo forte, muito forte, é uma tempestade, está chovendo na rua, não dentro de casa etc.

O significado de uma sentença estabelece, então, em que condições no mundo ela é verdadeira e, portanto, em que condições ela é falsa. Esse modelo permite entendermos como se dá a troca de informação através da linguagem. Suponha que um amigo seu telefone de São Paulo e pergunte:

(28) Como está o tempo aí?

Ver: Pires de Oliveira; Basso; Mendes e Souza (2007) para uma caracterização mais precisa da diferença entre vagueza e indeterminação.

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Semântica

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A palavra ‘aí’ é um dêitico, isto é, uma expressão linguística cujo sig-

nificado só é plenamente determinado (interpretado) se se levar em

consideração a situação de fala. Trata-se assim de um elemento variá-

vel cuja interpretação depende do contexto: se o ouvinte está em Sal-

vador, ‘aí’ significa Salvador; se ele está em Manaus, significa Manaus,

e assim por diante. Os exemplos claros de dêiticos são os pronomes

pessoais, como ‘eu’ e ‘você’: quando eu falo ‘eu’ refiro-me a mim, que

sou o falante, e o ‘você’ refere-se ao ouvinte, você; quando você fala,

‘você’ passa a ser eu e ‘eu’ passa a ser você. Confundiu? Então leia aten-

tamente prestando atenção na presença e ausência de aspas simples

que indicam a língua-objeto, isto é, a língua que estamos explicando.

Suponha que o ouvinte, a quem foi endereçada a pergunta (28), esteja em Florianópolis. Nesse caso, ‘aí’ significa Florianópolis, o lugar onde o ouvinte está. Logo, o falante pergunta sobre o tempo em Floria-nópolis, uma informação que o ouvinte tem, já que ele está em Florianó-polis. Se o falante não sabe como está o tempo em Florianópolis, então seu estado de conhecimento inclui mundos em que chove em Florianó-polis e mundos em que não chove em Florianópolis; é por isso mesmo que ele faz a pergunta sobre o tempo. Ao ouvir ‘Tá chovendo’ como resposta, há uma mudança no estado de conhecimento do falante: agora ele sabe sobre o tempo em Florianópolis, ou seja, ele consegue delimitar, ao interpretar a sentença, o conjunto de mundos em que é verdade que chove em Florianópolis no momento em que ele está.

Como vimos, o significado estabelece em que condições uma de-terminada sentença é verdadeira. Então, quando dizemos que o falante tem conhecimento semântico, queremos dizer que ele sabe em que con-dições uma sentença qualquer de uma língua pode ou não ser verdadei-ra. Um semanticista procura desvendar esse conhecimento, construindo uma teoria do significado. Para tal empreendimento, ele utiliza o que se denomina metalinguagem, que iremos discutir no próximo Capítulo.

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Capítulo 02Conhecimento semântico...

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2.5 Considerações finais

Neste Capítulo exploramos conceitos semânticos básicos, que esta-rão presentes em toda investigação semântica. Como você vai ver, mes-mo neste Livro-texto, que é uma apresentação dos vários temas de se-mântica, os conceitos de contradição, sinonímia, acarretamento, e outros que acabamos de ver, serão retomados diversas vezes.

De particular interesse são as ideias de composicionalidade e a de trama semântica. A primeira responde pelo fato de entendermos e po-dermos produzir sentenças que nunca antes tenhamos visto; a segunda, pelo fato de sabermos que as sentenças de uma língua estão sempre em relação com outras sentenças, ou seja, quando sabemos que ‘João che-gou’, automaticamente sabemos que ele tinha saído.

A ideia de condições de verdade, por sua vez, permite capturar nos-sas intuições quanto à composicionalidade e à trama semântica numa teoria formal sobre a linguagem. E é a essa teoria que nos voltamos no próximo Capítulo.

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Capítulo 03Metalinguagem

41

3 MetalinguagemVocê terá conhecimento sobre a ideia de condições de verdade e a ma-

neira como funciona uma semântica verifuncional. Apresentaremos também

exemplos a você, exemplos de derivação semântica, investigando o papel que

argumentos e predicados desempenham nessas derivações.

3.1 Teorema-T

A maneira mais usual na Semântica de descrever o fato de que o falante sabe em que condições uma sentença é verdadeira é utilizar o famoso Teorema-T:

A sentença ‘Tá chovendo’ é verdadeira em Português Brasileiro se e

somente se (abreviado sse) está chovendo no momento em que a

sentença é proferida.

Uma sentença-T pode parecer trivial, mas ela não é, e é preciso entender o que está por trás dela. Uma sentença-T expressa um conhe-cimento: o conhecimento sobre o significado da sentença. A impressão de trivialidade se explica porque tanto a língua-objeto, aquela que que-remos explicar (e que sempre aparece marcada formalmente, através das aspas simples), quanto a metalinguagem, a linguagem que utilizamos para explicar a língua-objeto, isto é, para estabelecer as condições em que o mundo deve estar para que a sentença seja verdadeira, são o por-tuguês. Mas, compare:

(1) A sentença ‘ich liebe dich’ é verdadeira em alemão se e somente se o falante ama o ouvinte no momento de fala.

Nesse caso, a sentença-T parece menos trivial, porque a língua-ob-jeto é o alemão, e damos sua condição de verdade usando o português como metalinguagem. As sentenças-T podem ser facilmente generali-zadas através do esquema-T, a seguir, em que ‘p’ está por uma sentença qualquer da língua-objeto e ‘q’ por uma sentença da metalinguagem:

(T de Tarski, 1944)

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Semântica

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Esquema-T: p é verdade na língua X sse q

A língua-objeto não está sendo efetivamente usada, mas apenas mencionada. Suponha, por exemplo, a sentença ‘eu te amo’. Se ela é efe-tivamente usada, o falante se compromete com o que ela diz, isto é, o falante está expressando o que sente com relação ao ouvinte. Mas, veja que, neste Livro-texto, não estamos usando essa sentença – feliz ou in-felizmente, não estamos expressando amor por ninguém quando a mo-bilizamos aqui. O que ocorre, neste Livro-texto, é que mencionamos a sentença, tratamos dela como um objeto teórico, “fora de uso”, para tentarmos entender o significado que ela tem em uso. Já as palavras e sentenças na metalinguagem estão sendo usadas, isto é, utilizamos o conhecimento implícito sobre seu significado para explicar a língua-objeto; a metalinguagem remete ao mundo ou a um modelo de mundo. Note a diferença entre ‘lua’ e lua nos exemplos a seguir. No primeiro caso, estamos falando sobre a palavra ‘lua’, porém no segundo estamos usando lua para nos referirmos ao objeto lua no mundo. A sentença (2) faz sentido, a sentença (3) não:

(2) ‘Lua’ tem três letras.

(3) Lua tem três letras.

É por isso que a sentença (4) expressa um conhecimento:

(4) ‘Lua’ em português significa lua.

3.2 Analisando uma língua

Antes de mais nada, é importante salientar que, grosso modo, todas as expressões de uma língua têm sentido e referência.

Na teoria semântica que adotamos, encontramos dois tipos de en-tidades no mundo: os objetos (ou indivíduos), que são particulares, e os valores de verdade, isto é, o verdadeiro e o falso. Este último é um objeto muito peculiar e é comum os alunos terem muita dificuldade em enten-der as razões de precisarmos desses objetos, mas isso se deve em parte a uma concepção muito “concretista” de objeto. Por exemplo, o número 2 refere-se a um objeto no mundo, mas esse objeto não é concreto. É co-mum encontrarmos a seguinte crítica aos modelos referenciais de semân-tica: a que objeto no mundo se refere a beleza? Mas, essa crítica mostra

Veja novamente, confor-me o Capítulo 1.

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Capítulo 03Metalinguagem

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apenas que o conceito de “objeto” foi mal compreendido, porque tem forte respaldo no conceito de objeto de senso comum, ou seja, de objeto con-creto. Porém, não é esse o caso. Os mundos do semanticista são modelos formais, constituídos por objetos entendidos matematicamente: valores para uma variável, como os números ou expressões que preenchem os ‘x’, ‘y’ e ‘z’ das equações. É apenas por questões didáticas que, em geral, esses modelos são apresentados através de exemplos concretos.

Assim, no modelo semântico, os elementos da língua se referem ou a indivíduos (e conjuntos de indivíduos e conjuntos de conjuntos de in-divíduos) ou a valores de verdade. Nessa proposta, cuja base é Frege, há dois tipos de expressões na língua: expressões saturadas (ou completas) e expressões insaturadas (ou incompletas).

As expressões saturadas caracterizam-se por se referirem a um único

objeto no mundo, um indivíduo ou um valor de verdade. Um nome

próprio, por exemplo, é uma expressão saturada, porque se refere a

um único indivíduo. Já um predicado, como ‘ser feliz’, é insaturado,

dado que ele não se refere a um indivíduo em particular, mas sim a

um conjunto de indivíduos: os indivíduos que são felizes.

É bastante intuitivo entender que os nomes próprios, como ‘João’, ‘Maria’, ‘Luís’ etc., se referem a um indivíduo em particular. Menos intuiti-vo é o fato de que, na Semântica, os nomes próprios têm sentido, porque o sentido é precisamente o que permite acessarmos um referente no mun-do. Quando alguém diz ‘Hitler’ imediatamente acionamos uma referên-cia, o indivíduo Hitler. Essa ponte da palavra para o mundo é o sentido. No caso das expressões saturadas, como os nomes próprios, essa ponte é entre uma expressão da linguagem e um único indivíduo no mundo.

Linguagem Sentido Referência (Mundo)

Hitler

Nomes Próprios

Estamos aqui trabalhan-do com um modelo bem simples, em que só há um indivíduo chamado ‘João’. E, de fato, na nossa vida é só aparentemente que há dois indivíduos chamados ‘João’, porque no fundo o nome próprio inclui o sobrenome.

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Semântica

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O sentido é, pois, uma função que associa a cada expressão da lín-gua uma única referência no mundo. A maneira usual de implementar-mos essa ideia na semântica é através de uma função de interpretação, normalmente representada por colchetes duplos [[ ]]. Assim, temos:

[[Hitler]]

Linguagem

Hitler

MUNDO

=

Entre os colchetes duplos temos linguagem, já do outro lado da equação temos um indivíduo. Note que estamos retornando à distinção entre língua-objeto e metalinguagem. O sinal de igual é precisamente a função de interpretação.

Assim como os nomes próprios, as descrições definidas (‘o menino de azul’, ‘o atual presidente do Brasil’ etc.) também são expressões satu-radas, porque se referem a um único indivíduo no mundo; por isso, para Frege, elas também são nomes próprios. Uma descrição definida é uma expressão complexa que se compõe de um artigo definido e um predica-do, e se refere a um e apenas um indivíduo no mundo. Na sentença

(5) Lula é o atual presidente do Brasil.

temos uma sentença de identidade entre um nome próprio, ‘Lula’, e uma descrição definida, ‘o atual presidente do Brasil’. Trata-se, obvia-mente, de uma sentença sintética, porque é um acaso histórico que o atual presidente do Brasil seja o Lula. Tanto o nome próprio quanto a descrição definida se referem ao mesmo indivíduo no mundo, mas o fazem através de sentidos distintos (de funções diferentes):

[[o atual presidente do Brasil]] = Lula

[[Lula]] = Lula

O último caso de expressão saturada são as sentenças, como ‘João estuda’, ‘Maria trabalha’, ‘Pedro ama João’ etc. Sentenças obviamente não se referem a um indivíduo em particular no mundo, mas a um valor de verdade. Sentenças são verdadeiras ou falsas. Uma sentença é uma

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Capítulo 03Metalinguagem

45

expressão saturada porque ela expressa um pensamento completo e permite alcançarmos um objeto em particular: ou a verdade ou o fal-so (enquanto objetos matemáticos!). Uma expressão como ‘O menino que está de azul’ não expressa um pensamento completo, mas serve para apontar um indivíduo em particular no mundo – trata-se, portanto, de uma descrição definida. Compare com ‘O menino que está de azul caiu da escada’. Nesse caso, temos uma sentença, porque há um pensamento completo e podemos, em confronto com um estado no mundo, afirmar se ela é verdadeira ou falsa. Como as descrições definidas, as sentenças são estruturas “complexas” e podem, portanto, ser decompostas em ele-mentos menores. Essa decomposição é também objeto de estudo deste Livro-texto. Por enquanto, basta entender que sentenças são estruturas complexas saturadas que têm como referência um objeto em particular: ou a verdade ou a falsidade.

3.2.1 Predicados e argumentos

A partir de agora, vamos decompor sentenças. Decompor uma sentença em suas unidades mínimas e mostrar as regras de composição é um trabalho árduo que tem sido realizado pelos semanticistas ao lon-go de gerações. Não é possível apresentar essas conquistas de uma única vez, porque há várias questões que são, muitas vezes, bastante comple-xas. É por isso que essa decomposição é feita por etapas. Vamos iniciar apresentando os conceitos básicos de argumento e de predicado, que são os paralelos na sintaxe dos conceitos de expressão saturada e insatu-rada, respectivamente. Considere a sentença em (6):

(6) João estuda.

Sua forma sintática pode ser grosseiramente representada por:

S

SN

N

SV

V

João estuda

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Semântica

46

A representação arbórea de uma sentença visa a mimetizar uma pro-

priedade fundamental das línguas naturais: o fato de que os elemen-

tos linguísticos se combinam hierarquicamente e não linearmente,

como poderíamos julgar se nos contentássemos com a nossa percep-

ção da linguagem em que, aparentemente, um elemento se segue a

outro. A ideia de hierarquia de constituinte, grosso modo, os elemen-

tos a partir do qual uma sentença é “montada” e no qual ela pode

ser reduzida, é fundamental para a sintaxe gerativa, conforme aquela

iniciada por Noam Chomsky (1928- ). A idéia, contudo, de que há hie-

rarquia na sintaxe e de usar representações arbóreas é mais antiga.

Intuitivamente, o significado da sentença (6) é função do significado de suas partes (composicionalidade): ‘João’ e ‘estuda’. Essas partes com-portam-se, no entanto, de modo muito diferente. ‘João’, como vimos, é um nome próprio e, como tal, se refere a um indivíduo específico no mundo, é por isso uma expressão saturada; em termos sintáticos, ‘João’ é o argu-mento do predicado ‘estuda’. Por sua vez, o predicado ‘estuda’ é uma ex-pressão insaturada porque ela não se refere a um objeto em particular no mundo (nem a um indivíduo, nem a um valor de verdade). Além disso, ela não é uma estrutura completa, porque não expressa um pensamento.

Sem maiores informações, por exemplo, sobre quem é que estamos falando, ‘estuda’ não expressa um pensamento e nem é possível ave-riguar se é verdadeiro ou falso. É por isso mes-mo que essa expressão é insaturada, ela precisa de um “complemento” para se saturar. Uma vez saturada, ela vira uma sentença que veicula um pensamento completo e pode se referir a um objeto em particular. A expressão ‘estuda’ tem uma posição aberta, que pode ser preenchi-da por diferentes argumentos, gerando, então, uma nova estrutura saturada:

A expressão ‘estuda’ é um predicado, isto é, uma expressão insa-turada que pede uma complementação, uma saturação. Uma expressão

João

Maria

O menino que está de azul

Pedro

O atual presidente do Brasil---

estuda

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Capítulo 03Metalinguagem

47

insaturada pode ser pensada como uma estrutura na qual há um lugar vazio (uma valência):

_______ estuda

Esse lugar pode ser preenchido por diferentes argumentos; cada ar-gumento satura o predicado diferentemente, gerando sentenças diferen-tes: ‘João estuda’, ‘Maria estuda’, ‘O menino que está de azul estuda’ etc.

O resultado de saturarmos uma expressão insaturada é formar uma

expressão saturada, uma sentença, que se refere a um objeto, o ver-

dadeiro ou o falso.

Dissemos que todas as expressões da língua têm sentido e referên-cia. A que ‘estuda’ se refere? ‘Estuda’ é um predicado de um lugar, isto é, com uma posição aberta e por isso é chamado de predicado monoar-gumental, ou seja, deve tomar um e apenas um argumento. Predicados de um lugar se referem a um conjunto de indivíduos; assim,‘estuda’ se refere ao conjunto dos indivíduos que têm a propriedade de estudar.

Quando usamos a palavra ‘conjunto’, o que temos em mente é a teoria

de conjuntos, da Matemática. Quando na Matemática se questiona

o conjunto dos números primos, o que se busca é a descrição de to-

dos os números que são números primos, ou seja, todos os números

primos pertencem a um conjunto, o conjunto dos números primos.

Na Semântica, o termo conjunto funciona semelhantemente. Ao

usarmos o termo ‘conjunto’, buscamos colocar no mesmo conjunto

aqueles elementos que têm a mesma propriedade, por exemplo, no

conjunto de ‘estudar’, temos todos os elementos que compartilham

a propriedade de estudar. Então, ao usarmos o termo ‘pertence ao

conjunto de’, queremos incluir no conjunto aqueles elementos ou

objetos que dele fazem parte. Como veremos, os nomes comuns,

como ‘médico’, e predicados de um argumento, como ‘correr’, deno-

tam conjuntos de indivíduos.

Page 48: [livro UFSC] Semantica

Semântica

48

No primeiro caso, temos o conjunto de indivíduos que têm a pro-

priedade de ser médico - em termos robustos, o conjunto de todas

as pessoas que são médicas; no segundo conjunto, temos os indiví-

duos que têm a propriedade de correr ou, simplesmente, o conjunto

daqueles que correm. Então, na sentença ‘Pedro corre’, o que que-

remos dizer é que Pedro pertence ao conjunto daqueles que têm a

propriedade de correr.

Vamos compor semanticamente a árvore citada anteriormente. Começamos pelos nós terminais, isto é, as unidades mínimas que, no caso da sentença (7), são ‘João’ e ‘estuda’.

‘João’ refere-se ao indivíduo

[[João]] =

Observe que ‘estuda’ refere-se a um conjunto de indivíduos (os que aparecem entre chaves):

[[estudar]] = { }

A sentença ‘João estuda’ tem então a forma ao lado; essa forma tam-bém é conhecida como derivação de uma sentença; no caso, da sentença ‘João estuda’.

Semanticamente, podemos parafrasear essa sentença por ‘João per-tence ao conjunto daqueles que estudam’. Mas, para chegar a tal pará-frase, precisamos de uma regra semântica que permita compor o SN (sintagma nominal) com o SV (sintagma verbal), para que a sentença (S) seja verdadeira sse o referente do SN pertencer ao conjunto denota-do pelo SV – para o nosso caso, ‘João estuda’ (S) é verdadeira sse João

S

SN

N

SV

V

João estuda

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Capítulo 03Metalinguagem

49

(SN) pertence ao conjunto dos que estudam (SV). Essa regra se chama Aplicação Funcional e vamos apresentá-la informalmente, porque uma definição formal requer conceitos que ainda não dominamos. No exem-plo anterior (e este será sempre o caso quando estivermos no nó S), a aplicação funcional aplica a função ‘estuda’ ao argumento ‘João’.

Há duas maneiras de representarmos um conjunto:

Apresentamos os elementos que compõem o conjunto, ou a)

Explicitamos a propriedade que os elementos têm. No exem-b) plo anterior, explicitamos os elementos do conjunto. Eis mais um exemplo: suponha que queremos explicitar o conjunto dos números naturais maiores que 1 e menores que 4. Podemos enumerar os elementos desse conjunto: {2, 3}; mas, podemos também dar a definição do conjunto: {x / x é maior que 1 e me-nor que 4}. No primeiro caso, damos a referência; no segundo, damos o sentido. Podemos fazer o mesmo com ‘estuda’:

[[estuda]] = {x / x estuda}

Em linguagem mais natural: o conjunto dos x tal que x estuda. A idéia da aplicação funcional é a seguinte: na extensão (referência) do SV temos o conjunto {x / x estuda}. Na extensão do SN temos João. A aplicação funcional permite substituir a variável (x) por João, obtendo a sentença ‘João estuda’, que é verdadeira se e somente se João estuda. Essa é uma instância da sentença-T. Mas, note que ela é o resultado de um cálculo, da soma das extensões (um outro nome para referência) de ‘João’ e ‘estuda’. Note ainda que chegamos às condições de verdade da sentença e não a um resultado, ao verdadeiro ou ao falso. O resultado depende de como o mundo é: se João tem mesmo a propriedade de es-tudar, a sentença é verdadeira; caso contrário, ela é falsa. Na situação (ou mundo) que desenhamos acima, a sentença é verdadeira porque João de fato tem a propriedade de estudar.

3.2.2 Predicados de mais de um argumento

Até agora olhamos para um tipo especial de predicado, aquele que é saturado por um único argumento. Mas há predicados de mais de um lugar. Há predicados de dois argumentos (ou dois lugares), como: ‘amar’,

Leia-se: x tal que x é maior que 1 e menor que 4.

Page 50: [livro UFSC] Semantica

Semântica

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‘odiar’, ‘brigar com’; predicados de três argumentos, como: ‘comprar’, ‘dar’. Em termos lógicos, podemos ter predicados de quantos argumentos qui-sermos ou precisarmos; isto é, podemos ter predicados de n-argumen-tos. Mas, não é esse o caso das línguas naturais, e há debate sobre o tema: Quantos argumentos, no máximo, pode ter um predicado de uma língua natural? Parece certo que há predicados de três lugares, como em:

(7) João comprou o bolo para a Maria.

Mas, e o predicado ‘traduzir’, teria ele 4 argumentos? É possível tratá-lo como um predicado de quatro argumentos, sublinhados na sentença (8):

(8) Pedro traduziu A Ilíada do grego para o português.

O ponto da discussão é o seguinte: argumentos devem ser essen-ciais para a saturação do predicado. Em outros termos, um predicado que não tem todos os seus argumentos não está saturado, não expressa um pensamento completo. Veja que este é o caso de (9), em que o aste-risco indica má-formação:

(9) * Maria brigou com

Temos, assim, certeza de que ‘brigar com’ requer dois argumentos para se saturar:

(10) Maria brigou com o Pedro.

É claro que podemos ter outras “coisas”, mas elas serão adjuntos, que se caracterizam por não serem essenciais para a saturação do predi-cado, por isso elas podem ser retiradas sem prejuízo:

(11) Maria brigou com o Pedro com uma faca.

Observe que ‘com uma faca’ é um adjunto, tanto que podemos su-primi-lo, e o predicado continua saturado, como aparece em (10).

Reconsidere, agora, o caso de ‘traduzir’. A pergunta é: ‘grego’ e ‘por-tuguês’ são essenciais? A sentença abaixo é completa? O predicado ‘tra-duzir’ está saturado?

(12) Pedro traduziu A Ilíada.

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Capítulo 03Metalinguagem

51

Essas não são questões triviais, porém vamos ignorá-las aqui, porque

esta é apenas uma disciplina de introdução à semântica.

Vamos agora olhar mais atentamente para predicados de dois luga-res. Considere a sentença:

(13) João ama Maria.

Veja que há dois elementos saturados, ‘João’ e ‘Maria’, que se refe-rem a indivíduos particulares no mundo. Assim, ‘ama’ é uma estrutura insaturada com dois lugares vazios:

_____ama _____

A que esse predicado se refere? Recorde que predicados de um lu-gar se referem a conjuntos de indivíduos. E predicados de dois lugares? Intuitivamente, um predicado como ‘ama’ se refere ao conjunto de in-divíduos tal que o primeiro está numa relação amorosa com o segundo. Assim, predicados de dois ou mais lugares estabelecem relações entre indivíduos. E relações são ordenadas, isto é, alterar a ordem dos indi-víduos numa relação pode alterar a verdade da relação. Por exemplo, suponha que a sentença (13) é verdadeira, isto é, João de fato ama Maria. Se alterarmos a ordem dos argumentos, obtemos:

(14) Maria ama João.

Ora, as condições de verdade dessa sentença são totalmente dife-rentes das condições de verdade da sentença (13), porque em (14) se afirma que a Maria é quem está numa relação de amor com o João. Pode muito bem ser o caso de que (14) seja falsa. Por isso, dizemos que rela-ções de dois lugares se referem a um conjunto de pares ordenados, em que o primeiro membro é o agente ou experienciador do predicado; no nosso caso, em (13) o João é o experienciador; já na sentença (14), Maria é a experenciadora do ato de amar. Pares ordenados são representados assim: <João, Maria>. Essa representação diz que João está numa certa relação com Maria. Já o par <Maria, João> diz que é a Maria que está numa certa relação com o João. Há, é claro, relações que são simétricas, por exemplo ‘ser casado com’: se A é casado com B, necessariamente B é casado com A. Nesse caso, a ordem dos argumentos não importa.

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Semântica

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Na gramática gerativa, o ‘João’ de (14) é chamado de argumento

externo, exatamente porque ele não está regido pelo verbo. O ter-

mo que é regido pelo verbo, como objetos diretos ou indiretos ou

simplesmente os complemento verbais, é chamado de argumento

interno, ou seja, interno ao domínio de complemento do verbo. Os

argumentos externos são externos porque não pertencem ao domí-

nio de complemento do verbo. Na sentença ‘João ama Maria’, o termo

‘João’ é argumento externo, enquanto o termo ‘Maria’, argumento in-

terno. Então, quando se responde à pergunta ‘Quem o João ama?’, a

resposta leva em causa o seu argumento interno, regido pelo verbo,

complemento do verbo; neste caso, o termo ‘Maria’. Já na sentença

‘Maria ama João’, ‘Maria’ é argumento externo, e ‘João’ o interno.

Essa maneira de descrever a denotação (extensão ou referência) de um predicado de dois lugares é encontrada nos vários sistemas lógicos (no cálculo de predicados, por exemplo). Ela é uma representação “pla-na”, no sentido de que os dois argumentos estão em igualdade, embora eles estejam ordenados; como se eles preenchessem o predicado ‘ama’ si-multaneamente e não houvesse diferença estrutural entre eles. Sabemos, no entanto, que o argumento interno é mais “ligado” ao predicado do que o argumento externo. Há vários indícios dessa assimetria entre os argumentos. Por exemplo, o argumento interno dispara extensões me-tafóricas do evento descrito pelo verbo, enquanto o argumento externo não pode dispará-las:

(15) a. Matar uma barata;

b. Matar uma conversa;

c. Matar uma tarde assistindo televisão;

d. Matar uma garrafa;

e. Matar uma audiência;

f. Matar uma aula.

Essa assimetria aparece claramente na representação sintática, a derivação de ‘João ama Maria’:

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Capítulo 03Metalinguagem

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S

SN

N V

SV

SN

N

João ama Maria

x ama Maria

João x ama y Maria

Note que o argumento ‘Maria’ (argumento interno) está mais pró-ximo do verbo ‘ama’; ele é interno ao verbo. O nó SV é a combinação de ‘ama’ com ‘Maria’, formando ‘ama Maria’; só depois, no nó S, é que o SV se combina com ‘João’. Esses passos de interpretação não aparecem cla-ramente quando afirmamos que a denotação de um predicado de dois lugares é um conjunto de pares ordenados.

Semanticamente, saímos da referência do nó terminal ‘ama’, um pre-dicado de dois lugares, isto é, um conjunto de pares ordenados, por exem-plo: {<João, Maria>, <Pedro, Maria>, <Joana, Maria>, <Maria, Joana>, <Carla, Pedro>}. Esse conjunto pode ser apreendido pela descrição:

{<x, y> / x ama y}

O conjunto de pares ordenados em que x ama y.

Realizamos a primeira operação semântica no nó SV, uma aplica-ção funcional, que preenche o argumento interno y, isto é, atribui um valor a este argumento; no caso, Maria. Assim, transforma-se o conjun-to de pares ordenados no conjunto de indivíduos que amam Maria. O resultado é que, no nó SV, temos um predicado de um lugar, o predicado ‘ama Maria’, cuja referência é o conjunto de indivíduos que têm a pro-priedade de amar Maria, ou:

{ x / x ama Maria}

O conjunto dos x tal que x ama Maria.

Em nosso exemplo, trata-se do conjunto {João, Pedro, Joana}.

Finalmente, realizamos novamente a aplicação funcional, que subs-titui o x por João e resulta em: A sentença ‘João ama Maria’ é verdadeira

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Semântica

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se e somente se João ama Maria. Mas, esse é o resultado de atribuirmos uma denotação para os nós terminais e de combinarmos esses elemen-tos da esquerda para a direita (ou seja, primeiro o argumento interno) através de duas aplicações funcionais.

Essa apresentação da interpretação semântica é informal. Você deve ter notado que nem mesmo definimos o que é aplicação funcional. Nosso objetivo é apenas dar uma ideia de como funciona o processo de interpretação. Uma abordagem mais formal, como dissemos, requer uma série de conceitos de que ainda não dispomos. Os próximos Capí-tulos têm por função apresentar alguns desses conceitos.

3.3 Considerações finais

A noção de metalinguagem pode parecer um pouco complicada à primeira vista, mas de fato fazemos uso dela em muitas situações corri-queiras, e topamos com ela diversas vezes na escola, ao usarmos a ma-temática para entender física ou química, ou mesmo para entendermos geometria – ou seja, usamos a matemática para descrever o espaço, fala-se do espaço pela matemática.

Neste Tópico também vimos o esquema-T, que é a maneira mais comumente empregada pelos semanticistas para exibir as condições de verdade das sentenças e separar a linguagem-objeto da metalinguagem. Ao voltarmos às noções de predicados e argumentos, agora munidos do esquema-T e da noção de metalinguagem, pudemos realizar a derivação de sentenças simples, explicitando a integração dos componentes sintá-ticos e semânticos.

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Capítulo 04Pressuposição

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4 PressuposiçãoNeste Tópico, iremos nos concentrar nos aspectos semânticos da pressupo-

sição, apresentando uma definição e testes para identificá-la com certa precisão.

Também veremos dois aspectos desse fenômeno: a projeção e a acomodação.

Semântica e Pragmática são dois domínios da linguagem extrema-mente inter-relacionados. Se o leitor procurar nos livros de introdução a essas disciplinas, descobrirá que elas têm em comum como objeto empírico o significado das expressões linguísticas nas línguas naturais. Entretanto, cada área vê o significado de uma forma diferente. O que no final das contas cria um objeto diferente.

Nos termos do filósofo Paul Grice, a Semântica se ocupa do signifi-cado literal (ou gramatical), da sentença, enquanto a Pragmática estuda o significado do falante. Há vários aspectos do significado em que a distin-ção entre o que é trabalho da Semântica e o que é trabalho da Pragmática não é simples de se delimitar, e a pressuposição é um desses aspectos.

4.1 Caracterizando a pressuposição

Você deve ter visto no primeiro Tópico que a Semântica vê o signifi-cado das orações nas línguas naturais como um cálculo: o significado do todo é a soma do significado das partes. Entretanto, há vários aspectos do significado que estão diretamente atrelados ao contexto e dependem dele para que possamos avaliar se uma sentença é verdadeira ou falsa. Você viu no Capítulo 1 que, para determinar o conteúdo de diversas sentenças, é necessário computar informações do contexto, e muitas in-formações variam de um contexto a outro. A pressuposição é um fenô-meno similar, por ser também uma forma de ligar a determinação do valor de verdade de uma sentença a informações presentes no contexto. A essas informações contextuais chamaremos fundo conversacional.

Fundo conversacional: conjunto de informações, na forma de

sentenças, que são tomadas como verdadeiras pelo falante(s) e

ouvinte(s) num dado contexto.

Herbert Paul Grice (1913–1988) filósofo da lingua-gem.

Vimos essa distinção e de-mos alguns exemplos de seu papel no Capítulo 1; contudo, a distinção entre Semântica e Pragmática por vezes não é fácil de ser feita. Para uma discussão do que são os objetos teóricos da Semântica e da Pragmática, ver Pires de Oliveira e Basso (2007).

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Assumir que há um conjunto de verdades sendo compartilhadas pe-los falantes torna muito mais fácil entender o papel que o contexto exerce na atribuição de um valor de verdade para as sentenças da língua. A no-ção de contexto pode ser muito vaga e imprecisa. Podemos dizer que o contexto inclui os falantes, o local onde eles estão, as condições do tempo, o período do dia, os acontecimentos importantes da semana etc. Delimi-tar uma parte do contexto como fundo conversacional é uma forma de estreitar o que estamos considerando dentro desse contexto, o que conta como importante para avaliar a verdade ou falsidade de uma sentença.

Para algumas sentenças, tudo que precisamos saber é quais esta-dos de mundo tornam a sentença verdadeira:

(1) a. Tá chovendo

b. João ama Maria.

Tudo que precisamos saber para calcular o significado de (1a) é: no momento em que a sentença está sendo proferida, está (ou não) choven-do? E, para calcular o significado de (1b): João ama (ou não) Maria? Ou seja, elas serão falsas se não estiver chovendo e se for o caso de que João não ama Maria; e verdadeiras, caso contrário.

Contudo, para outras sentenças precisamos de mais informação, e essa informação nos é fornecida pelo fundo conversacional. Imagine o seguinte diálogo, adaptado do seriado Friends:

(2) Rachel: — Eu não durmo com homens no primeiro encontro.

Mônica: — Ede, Carl, John, Bill...

Rachel: — Não mais.

Claro, uma certa entonação na lista de homens que Mônica apre-senta, e na réplica de Rachel, é responsável pelo humor da situação. Va-mos considerar que a réplica de Rachel possa ser descrita como em (3):

(3) Rachel não dorme mais com homens no primeiro encontro.

Há algo no significado de (3) que permanece constante, e é con-dição para a sentença ser um proferimento adequado no contexto. Po-demos operar a sentença de algumas formas e tentar entender o que permanece:

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Capítulo 04Pressuposição

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(3) a. Rachel não dorme mais com homens no primeiro encontro?

b. Duvido que Rachel não dorme mais com homens no primei-ro encontro.

c. Se Rachel não dorme mais com homens no primeiro encon-tro, então ela virou uma mulher difícil.

Que parte do significado de (3) permanece constante quando: ques-tionamos (3a), duvidamos (3b) ou colocamos essa sentença dentro de um contexto hipotético, usando uma estrutura condicional (da forma ‘se A, então B’, como em (3c))? De todas as sentenças em (3) podemos inferir que:

(4) Rachel dormia com homens no primeiro encontro.

Dizemos que (4) é então tomada como pressuposto para a verdade das sentenças em (3), de outra forma não faria sentido dizer que “não é mais o caso que Rachel dorme com homens no primeiro encontro”. Ou seja, está presente no fundo conversacional dos falantes que ela havia ido pra cama com alguns homens no primeiro encontro antes, em momen-tos passados, por isso Mônica pode listá-los. Tanto faz a operação que fa-zemos sobre a sentença, a assunção compartilhada permanece constan-te. Nesse sentido, a pressuposição é uma condição de felicidade para o proferimento de (3). Essa sentença só é um proferimento, um uso feliz da língua, se o falante e o ouvinte tomam como certo que a pressuposição, (4), é verdadeira. E só a partir daí podemos avaliar se (3) é verdadeira.

Ao conjunto de estruturas em (3a-c) chamamos família pressu-posicional, ou P-família. Ela é um teste bastante seguro para detectar que tipo de informação está sendo pressuposta em uma sentença, quais afirmações são tomadas como verdadeiras num dado contexto, o nosso fundo conversacional. Uma forma de definir a pressuposição é através de uma regra usando a noção da P-família:

(P) a sentença A pressupõe a sentença B se e somente se A e os ou-

tros membros da P-família implicam B.

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Implicam, mas não necessariamente acarretam!

Toda vez que a sentença A for usada, a pressuposição que ela carre-ga deverá manter-se constante se ela for encaixada em um dos membros da P-família:

(5) P-família

Negação: Não é o caso que A.

Pergunta: A?

Dúvida: Duvido que A.

Condicional: Se A, então...

Exemplificamos a P-família apresentada em (5) com as sentenças em (3), como você pode verificar. A negação aparece em (3a), a dúvida em (3b) e a condicional em (3c).

Não devemos confundir pressuposição com acarretamento. Acar-retamento é uma inferência lógica, um raciocínio semântico: a partir da verdade de uma sentença A, concluímos que B é verdadeiro também, sempre que A for verdadeiro. Veja o caso a seguir:

(6) a. Brutus assassinou César com uma faca violentamente.

b. Brutus assassinou César com uma faca.

c. Brutus assassinou César.

Da verdade de (6a) podemos inferir (6b) e (6c), e de (6b) podemos inferir (6c). Sempre que a primeira for verdadeira, a verdade das duas últimas é acarretada, mas não o contrário.

Veremos agora dois aspectos particulares da pressuposição. Ela pa-rece estar sempre ligada, ou gerada, por certas expressões ou constru-ções sintáticas. E, por outro lado, mesmo quando a pressuposição não está no fundo conversacional, ela encontra uma forma de se acomodar, sem que o proferimento seja infeliz.

4.2 Os gatilhos

Há uma série de expressões na língua portuguesa cujo significado envolve o que chamamos de projeção da pressuposição. Essas expres-

Vimos a noção de acar-retamento no Capítulo 2;

caso seja necessário, volte a ela e reveja essa noção,

ou vá ao Glossário.

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Capítulo 04Pressuposição

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sões são como gatilhos: sempre que usadas, elas disparam uma pressu-posição, à medida que acessam o fundo conversacional para verificar se o proferimento da sentença é feliz no contexto em que é proferida a sentença que contém o gatilho.

Um conjunto dessas expressões são os chamados verbos e advérbios aspectuais. Eles são assim chamados porque interferem no modo como vemos uma dada situação descrita pelo verbo principal da oração. Esse conjunto inclui: ‘parou’, ‘ainda’, ‘continua’.

Suponha que João esteja sendo processado por uso de drogas e du-rante o julgamento o promotor pergunta:

(7) O senhor parou de fumar maconha?

Se João responder sim ele estará se incriminando: ora, se ele con-firma que parou de fumar maconha, é porque fumava antes, estará afir-mando que ele usava drogas; se responder não também se incrimina: ora, se ele não parou de fumar maconha, é porque ele ainda fuma, e se ele ainda fuma, então ele já fumou antes, ou seja, ele continua usando drogas. A única saída é negar a pressuposição, dizendo algo como:

(8) Como eu posso ter parado de fazer algo que nunca fiz?

Para mostrar que é esse o caso, que (7) pressupõe que João fumava maconha, vamos fazer o teste da P-família:

(9) a. João parou de fumar maconha.

b. Não é o caso que João parou de fumar maconha.

c. João parou de fumar maconha?

d. Duvido que João parou de fumar maconha.

e. Se João parou de fumar maconha, então ele tomou uma boa decisão.

f. João fumava maconha.

Note que as sentenças de (9a) a (9e) pressupõem (9f). Não temos como afirmar (9a) se não for pressuposto, tomado como certo que (9f) é verdadeira.

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Alguns verbos também introduzem pressuposições como seus complementos. Dois casos típicos são: ‘lamentar’ e ‘descobrir’.

(10) João lamenta ter traído sua mulher.

(11) Maria descobriu que seu marido estava tendo um caso.

Façamos o teste:

(10’) a. Não é o caso que João lamenta ter traído sua mulher.

b. João lamenta ter traído sua mulher?

c. Duvido que João lamenta ter traído sua mulher.

d. Se João lamenta ter traído sua mulher, então há espe rança de que ele se renegere.

e. João traiu sua mulher.

Novamente, a P-família nos ajuda a detectar a informação que per-manece constante: (10’e), ou seja, João traía sua mulher antes.

Vimos que os testes são uma forma segura de reconhecermos o que é pressuposto em uma sentença, e reconhecer as pressuposições é uma competência intuitiva que temos enquanto falantes (e leitores) de uma língua. Contudo, não é fácil ou simples determinar quando as pressupo-sições de certas construções são projetadas e quando elas não são. Veja-mos um caso: vimos anteriormente que a sentença ‘João parou de fumar maconha’ pressupõe que ele fumava. Agora, veja o caso a seguir:

(12) Carlos pediu para João parar de usar drogas.

Intuitivamente, percebemos que (12) não pressupõe que João usava drogas. Imagine o seguinte cenário: alguém mentiu para Carlos, dizen-do que o comportamento estranho de João era relacionado ao fato de que ele usava alguma substância ilícita, Carlos acreditou e pediu que João parasse. Diferentemente do cenário do julgamento, em que alguém queria incriminar João, aqui a sentença não pode pressupor algo que depende das crenças do falante. Veja outro caso:

(13) João está traindo sua esposa.

(14) Pedro acusa João de estar traindo sua esposa.

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Capítulo 04Pressuposição

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Aqui, (13) pressupõe que João tem uma esposa, mas (14) não, já que a acusação de Pedro pode ser falsa, e (13) também.

4.3 Acomodando pressuposições

De acordo com o que vimos na Seção anterior, a pressuposição de-pende de um conjunto prévio de proferimentos feitos, o que chama-mos de fundo conversacional. Dessa forma, um proferimento só é feliz se as pressuposições que ele projeta são confirmadas como verdadeiras em relação ao fundo conversacional. Entretanto, temos casos em que, mesmo quando não existe tal pressuposição, ela se cria, ou seja, ela é acomodada no fundo, sem que o proferimento seja infeliz, ou julgado como falso pelo ouvinte.

Suponha o seguinte cenário: João é seu novo colega de trabalho, você conhece pouco sobre ele. Vocês estão no horário do café, quando ele profere (15), que pressupõe que ele tenha um filho:

(15) Hoje vou sair mais cedo, tenho que levar meu filho ao dentista.

Não paramos a conversa. Simplesmente ela continua, com a infor-mação nova – João tem um filho – sendo adicionada ao fundo conversa-cional. Provavelmente, alguém poderia perguntar se o garoto tem algum problema de cárie ou se é visita de rotina; outro poderia perguntar qual a idade do menino. Basicamente, não temos como prever isso. O que nos interessa é que nesse caso (15) não é um proferimento infeliz. O fato de você, ou os outros ouvintes não saberem que João tinha um filho não torna a sentença falsa ou estranha.

Uma forma de capturar isso é através da seguinte regra:

Se no proferimento de A a pressuposição B não existe no fundo con-

versacional, então, para a sentença ser feliz, B passa a fazer parte do

que é compartilhado pelos falantes como pressuposto.

Ou seja, B passa a fazer parte do conjunto de sentenças tomadas como verdadeiras, nosso fundo conversacional. Conforme uma conversa progride, novas informações são adicionadas ao fundo conversacional,

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pressuposições podem ser canceladas, como vimos anteriormente, novas podem ser adicionadas rapidamente. Veja as duas sentenças a seguir:

(16) João tem filhos, e ele colocou seus filhos pra dormir.

(17) # João colocou seus filhos pra dormir, e João tem filhos.

O que faz com que (16) seja um proferimento feliz, enquanto (17) não? (17) soa redundante fora de contexto. Contudo, faz todo o sentido se você não sabe que João tem filhos, e ele some da festa. Se, procurando por ele, você pergunta “Cadê o João?”, quem lhe respondesse usando (16) estaria lhe dando uma informação relevante. Sabendo que você não sabe que João tem filhos, (16) é construída de forma a primeiro adicionar ao fundo conversacional a pressuposição ‘João tem filhos’, para depois fazer um proferimento verdadeiro a respeito dos filhos dele. (17) soa es-tranha, porque primeiro temos a sentença que precisa da pressuposição, e depois a segunda oração, que introduz a pressuposição. Ela soa redun-dante porque ‘João colocou seus filhos pra dormir’, caso a pressuposição ‘João tem filhos’ não faça parte do fundo conversacional, é criada ou acomodada pela sentença ‘João colocou seus filhos pra dormir’; ora, por que dizer novamente, dar mais uma vez a informação ‘João tem filhos’, se ela já foi acomodada? Daí a estranheza de (17).

Até aqui, consideramos que sentenças podem ser verdadeiras ou falsas (excluindo os casos vagos e indeterminados). Vimos neste Tópi-co que certas sentenças, para serem verdadeiras, precisam que certas informações sejam garantidas como verdadeiras no fundo conversacio-nal – trata-se das pressuposições que certas sentenças carregam. O que acontece, contudo, nos casos em que as pressuposições não são garanti-das e nem acomodadas? Em outras palavras, qual o valor de verdade de sentenças cujas pressuposições são falsas? Essa é uma questão extrema-mente complexa, e nossas intuições de falantes nem sempre são claras quando pensamos nas possíveis respostas.

Tomemos um exemplo: sabemos que João nunca reprovou em Ma-temática, e alguém diz:

(18) João reprovou em Matemática.

(19) João reprovou em Matemática de novo.

Daí o uso do símbolo # para representar anomalia

semântica.

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Capítulo 04Pressuposição

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A sentença (18) simplesmente nos dá uma informação: a de que João, pela primeira vez, por tudo o que sabemos, reprovou em Matemá-tica, e pode ser verdadeira se ele de fato reprovou, e falsa caso contrário. E quanto à sentença (19)? Ora, se João nunca reprovou em Matemática, é verdadeiro ou é falso que ele reprovou em Matemática de novo? Mes-mo supondo que ele de fato tenha reprovado pela primeira vez, estamos inclinados a dizer que (19) é falsa: afinal, ele não reprovou de novo.

Tomemos outro exemplo: João não é uma pessoa violenta e nunca agrediu sua mulher; nesse contexto, alguém diz:

(20) João parou de bater na mulher.

A sentença (20) é verdadeira ou falsa? A literatura em Semântica, Pragmática e Filosofia se divide quanto à melhor resposta. Neste Livro-tex-to, adotaremos a seguinte resposta: sentenças cuja pressuposição é falsa não têm valor de verdade. Alguns gostariam até de afirmar que sentenças nessas condições, com pressuposições não preenchidas, nem sequer fazem sentido, mas não precisamos ir tão longe. Basta indicar que esse é um tema controverso, cuja resolução ainda está por ser estabelecida.

4.4 Considerações finais

Neste Capítulo, estudamos um aspecto do significado das línguas naturais que está diretamente ligado ao contexto: a pressuposição. A se-manticista Irene Heim usa uma analogia para explicar a contribuição que a pressuposição faz ao significado. Para a autora, quando pressupo-sições são adicionadas ao fundo conversacional é como se estivéssemos alterando pastas de um grande arquivo (o nosso fundo compartilhado de verdades). Cada pressuposição adicionada, cancelada, acomodada é uma alteração que fazemos em uma pasta. Obviamente isso é uma hi-pótese de como funciona um aspecto da interação humana através da linguagem (e como toda hipótese científica, pode estar errada).

Nossos diálogos cotidianos não precisam começar (e não come-çam) do zero, há sempre algo já em nossos arquivos e pastas, pressu-posições são facilmente adicionadas ou canceladas. Muito do que cha-mamos “micos” são, na verdade, conhecimento de mundo que não se

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confirma, ou pressuposições que acreditamos serem verdadeiras e que acabam sendo falsas.

Leia mais!

PIRES DE OLIVEIRA, R. Semântica. In: MUSSALIM, Fernanda; BEN-TES, Anna Christina (Orgs.). Introdução. vol. 2. São Paulo: Cortez, 2001a. p. 17-46.

Você pode consultar este capítulo para uma comparação entre a semântica formal e outros tipos de semântica.

Estas duas indicações são também boas introduções aos objetivos e à estru-tura da semântica formal.

CHERCHIA, G. Semântica. Campinas: Editora da Unicamp; Londrina: Eduel. 2003.

No capítulo 4 você pode ler de maneira clara as restrições necessárias para a confecção de uma teoria semântica.

ILARI, R.; GERALDI, W. Semântica. São Paulo: Ática, 2002. [Série Princípios].

BORGES NETO, José. Semântica de Modelos. In: Müller, A.; Negrão, E. V.; Moltran, M. J. Semântica Formal. São Paulo: Contexto, 2003.

Por fim, você pode também consultar esse texto, no qual o autor não só desenvolve passo a passo uma pequena semântica formal, mas também a acopla a uma teoria sintática.

Veja o conceito de inten-sionalidade no glossário.

Page 65: [livro UFSC] Semantica

Unidade BOperações Semânticas

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Capítulo 05As descrições definidas

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5 As descrições definidasNeste Capítulo, você vai aprender alguns dos problemas envolvidos na

análise das descrições definidas. Exploraremos suas condições de uso do ponto

de vista quantificacional e pressuposicional, e também algumas das suas pro-

priedades textuais.

As descrições definidas (DDs) são tema de intenso debate nos li-mites da filosofia analítica da linguagem, da semântica e da pragmática. Basicamente, as DDs são sintagmas encabeçados por um artigo definido (‘o’, ‘a’, ‘os’, ‘as’) seguido por um substantivo, como ‘o gato’, ‘a cerveja’ etc. A estrutura básica de uma DD pode variar em complexidade. Os tre-chos em itálico nos exemplos a seguir são todos descrições:

(1) João comprou o carro.

(2) O animal mais perigoso do zoológico fugiu de novo.

(3) Pedro deu um pedaço de bolo para o menino de verde que não foi pra escola.

Esses exemplos mostram que a DD pode ocupar, respectivamen-te, as posições de objeto direto, sujeito e objeto indireto, além de outras posições numa sentença. Note também que trechos como ‘animal mais perigoso do zoológico’ desempenham nas DDs o mesmo que substanti-vos simples, como ‘carro’ em (1).

Neste Capítulo, veremos algumas das razões de uma estrutura apa-rentemente tão simples desencadear importantes debates e também as funções textuais das descrições definidas, contrastando-as com as des-crições indefinidas. Usaremos as DDs como um exercício de análise se-mântica, mostrando como se formula e se avalia uma hipótese nessa área do conhecimento.

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5.1 O papel semântico das DDs: o começo do debate

Tomemos a sentença:

(4) O menino é esperto.

Nessa sentença há a DD ‘o menino’ e o predicado ‘ser esperto’. In-teressa-nos aqui investigar a contribuição semântica das DDs, e, para tanto, é necessário saber quando uma DD pode ser usada. Tomemos os seguintes contextos:

Contexto A: não há nenhum menino por perto e nada se falou so-bre menino algum; de repente, alguém fala ‘O menino é esperto’;

Contexto B: há dois meninos brincando e alguém diz ‘O menino é esperto’, sem apontar para nenhum deles;

Contexto C: há um único menino e uma menina brincando; al-guém diz ‘O menino é esperto’.

O que a sua intuição diz sobre esses usos de (4)? Para o contexto A, a reação mais normal seria perguntar: mas de que menino você está fa-lando? Ora, não há nenhum menino por perto nem se falou de menino algum antes... como saber de quem se está falando? Para o contexto B, a reação mais imediata seria perguntar sobre qual dos meninos se está falando. Sem sabermos identificar o referente não conseguimos fazer sentido da sentença.

Os contextos A e B parecem não ser apropriados para o uso de (4). No contexto A, no qual não há nenhum menino, não podemos saber de quem se está falando – pode ser qualquer menino do mundo e, sem mais informações, não temos como saber de qual se trata; no contexto B, com dois meninos, simplesmente não sabemos de quem se está fa-lando – como diferenciar os dois meninos e saber de qual predicamos que seja esperto? Finalmente, no contexto C, a sentença (4) tem um uso adequado: conseguimos saber de quem se está falando.

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Capítulo 05As descrições definidas

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5.2 Como capturar a reação das DDs aos contextos A, B e C semanticamente?

Podemos dizer que o contexto A “peca pela falta”: a DD ‘o menino’ não pode ser usada no contexto A porque não há ninguém sobre o qual predicar ‘é esperto’; por sua vez, o contexto B “peca pelo excesso”: a DD não pode ser usada no contexto B porque há mais de um menino (há dois, de fato) sobre o qual se pode predicar ‘é esperto’ e não sabemos de qual se trata. Finalmente, no contexto C achamos as condições adequa-das para usar a DD ‘o menino’: há um e apenas um menino no contexto C sobre o qual podemos predicar ‘é esperto’.

Assim sendo, para que uma DD seja usada apropriadamente, há duas condições:

Deve haver pelo menos um referente capaz de satisfazer o pre-I) dicado que segue o artigo definido – o contexto A, portanto, está excluído.

Não pode haver mais que um referente capaz de satisfazer o II) predicado que segue o artigo definido – o contexto B, portanto, está excluído.

Em resumo, para usarmos uma DD:

Deve haver um e apenas um referente no contexto em que se III) usa uma DD que satisfaça o predicado que compõe a DD – como no contexto C.

Os itens de (I) a (III) são apenas uma descrição do comportamento semântico das DDs. Nas seções a seguir, veremos exemplos mais interes-santes e duas maneiras de encaixar essas descrições em quadros teóricos.

5.3 Falsas nos contextos A e B

Como já vimos em Tópicos anteriores, o semanticista se pergunta sempre: quais as condições de verdade de uma sentença? Se apontarmos para uma pessoa qualquer e dissermos:

(5) Ela leu Memórias Póstumas de Brás Cubas.

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Sabemos que (5) é verdadeira se ela de fato leu Memórias Póstumas de Brás Cubas, e sabemos que (5) é falsa se ela não leu Memórias Póstu-mas de Brás Cubas.

Do mesmo modo, vamos nos perguntar se a sentença (4), ‘O meni-no é esperto’, é verdadeira no contexto C. Ora, se o menino for esperto, (4) é verdadeira; se ele não for esperto, (4) é falsa. E o que nossa intuição nos diz sobre os contextos A e B? A sentença (4) é verdadeira ou falsa?

Uma das teorias sobre as DDs, que podemos chamar de teoria quantificacional – as razões para esse nome ficarão mais claras adiante –, nos responde à pergunta sobre a verdade ou falsidade de (4) nos con-textos A e B com um sonoro “falso”.

A intuição por trás da teoria quantificacional é a seguinte: uma DD qualquer diz, afirma, ou asserta duas coisas:

Há um referente que satisfaz o predicado que compõe a DD.a)

&

Não há mais de um referente que satisfaça o predicado que b) compõe a DD.

Observe que o símbolo que une as sentenças (a) e (b), ‘&’, é um ‘e’, uma conjunção que só é verdadeira se as duas coisas que ela une forem simultaneamente verdadeiras. Se dissermos ‘João e Maria vieram à festa’ quando na verdade só o João veio, então teremos dito algo falso; do mes-mo, se apenas Maria veio, também diremos algo falso – em resumo, a única maneira de ‘João e Maria vieram à festa’ ser verdadeira é se ambos de fato vieram à festa.

Voltando à sentença (4), podemos entendê-la da seguinte forma:

(4) O menino é esperto.

há um menino a)

&

não há mais do que um menino.b)

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Capítulo 05As descrições definidas

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Ora, agora é fácil entender por que, no contexto A, a previsão da teoria quantificacional é de que (4) seja falsa: não há menino algum, portanto a primeira sentença unida por ‘&’ é falsa, logo toda a sentença é falsa. O mesmo ocorre no contexto B, só que agora a sentença falsa é a segunda unida por ‘&’, ou seja, há mais do que um menino. O contexto C é o único no qual as sentenças (a) e (b) são verdadeiras. Resta saber então se o menino é realmente esperto para que (4) seja verdadeira.

Novamente, para a teoria quantificacional, a sentença (4) é falsa no contexto A porque não há menino algum e, no contexto B, porque há mais de um. Em relação ao contexto C, diremos que (4) será falsa nesse contexto apenas se o predicado ‘é esperto’ não se aplicar à DD ‘o menino’. Para capturar melhor todos esses passos, façamos uma pequena altera-ção nas condições de verdade de (4) e somemos a ela mais uma linha - assim, (4) será verdadeira se e somente se:

Há um referente que satisfaz o predicado que compõe a DD;a)

&

Não há mais do que um referente que satisfaça o predicado que b) compõe a DD;

&

O predicado da sentença se aplica ao referente da DD.c)

Temos outra ‘&’, portanto uma sentença que tem uma DD só será verdadeira se as linhas (a), (b) e (c) o forem simultaneamente. Voltemos, uma última vez, aos nossos contextos A, B e C e vejamos todas as possi-bilidades – na tabela a seguir, ‘V’ é verdadeiro e ‘F’ é falso:

Contextoa) Há um referente que satisfaz o predicado que compõe a DD.

b) Não há mais do que um referente que satisfaça o predicado que compõe a DD.

c) O predicado da sentença se aplica ao referente da DD.

Valor de verdade de (4)

1 A F V V F

2 A F V F F3 B V F V F4 B V F F F5 C V V V V

6 C V V F F

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Na tabela acima, expomos todas as configurações possíveis da sen-tença (4) nos contextos A, B e C. Note que o valor de verdade varia para cada contexto no item (c), no qual “o predicado da sentença se aplica ao referente da DD”. Veja que os contextos A e B serão sempre falsos – como já havíamos previsto. A última linha, que torna a sentença (4) verdadeira, é a 5, na qual os três itens a), b) e c) são simultaneamente verdadeiros – como também já havíamos previsto.

Agora faz mais sentido entendermos o termo “teoria quantifica-cional”: além de ela lançar mão da lógica, ela pode ser entendida como uma paráfrase do tipo: existe um e apenas um referente que satisfaça o substantivo que segue o artigo, e o predicado que segue a DD se aplica a ele. Tal paráfrase é facilmente traduzível em linguagens lógicas.

Nesse quadro, uma DD qualquer é, na verdade, uma forma resumi-da de se dizer (a), (b) e (c).

A teoria quantificacional é extremamente engenhosa, mas não é isenta de problemas, e eles aparecem assim que consideramos DDs mais interessantes. Vejamos:

(6) A atual presidenta do Brasil não gosta de andar de avião.

Não é difícil ver que a sentença (6), de acordo com a teoria quantifi-cacional, receberá como valor de verdade, pelo menos no nosso mundo, em 2009, o valor de falsa. Ela está justamente num contexto do tipo A, que torna falsa a condição (a), ou seja, “há um referente que satisfaz o subs-tantivo que segue a DD”: ora, não há presidenta do Brasil em 2009...

A pergunta que imediatamente fazem os críticos da teoria quan-tificacional é: dizer que (6) é falsa está mesmo de acordo com nossa intuição? Coloque-se na seguinte situação: você pega o jornal de manhã e vê escrito numa manchete:

(6) A atual presidenta do Brasil não gosta de andar de avião.

Qual é a sua reação? Para a teoria quantificacional, você deveria pensar algo como: o jornal está dizendo uma mentira, afinal, não há pre-sidenta do Brasil – Lula é o presidente do Brasil e ele é um homem. Por sua vez, os críticos da teoria quantificacional preveem que você pensaria algo como: Nossa! Eu não sabia que o Brasil tinha uma presidenta... Sempre achei que o presidente era o Lula.

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Capítulo 05As descrições definidas

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Pois bem... Qual resposta lhe parece mais adequada? Talvez alguns outros exemplos ilustrem melhor o ponto de vista dos críticos:

(7) O rei do Brasil é jovem.

(8) A primeira mulher a pousar em Marte é casada.

(9) O tigre voador está em extinção.

Se sua reação diante das sentenças de (7) a (9) não foi a de dizer que todas são falsas, que todas dizem algo que não é verdadeiro – como prevê a teoria quantificacional –, mas sim se sua reação foi algo como: eu não sabia que existia rei no Brasil; eu não sabia que uma mulher tinha pousado em Marte; eu não sabia que existiam tigres voadores – então, a teoria quantificacional não está de todo correta.

Mais do que isso: imagine que algum chato fique insistindo e obri-gue você a responder se você acha que alguma das sentenças de (6) a (9) são verdadeiras ou falsas. Muito provavelmente você responderá espon-taneamente com um redondo “Não sei!”. Essa sua inocente e espontânea resposta invalida a previsão da teoria quantificacional de que essas sen-tenças deveriam ser falsas. O que fazer então?

Ora, é preciso formular uma outra teoria – é a isso que nos voltare-mos na próxima Seção.

5.4 Nem falsas nem verdadeiras nos contextos A e B

Há um aspecto bastante interessante e problemático em responder “Não sei.” sobre o valor de verdade de uma sentença. A Semântica con-sidera que tudo o que precisamos saber sobre uma sentença são suas condições de verdade; mais do que isso, considera que as sentenças são ou verdadeiras ou falsas. Sentenças sem valor de verdade são, portanto, um problema...

Contudo, não é a primeira vez que nos deparamos com tal situação. Se você recapitular, verá que no Tópico sobre pressuposição nos depara-mos com uma situação na qual não sabíamos dar o valor de verdade das sentenças, que é justamente quando suas pressuposições não são preen-chidas. Um rápido exemplo pode ajudar a ilustrar esta situação:

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Um amigo diz para o outro:

(10) O João parou de fumar.

A sentença (10) carrega uma pressuposição, a de que João fumava antes, e diz ou asserta que ele não fuma mais: ele parou de fumar. Ima-gine essa mesma sentença dita num contexto em que todos (inclusive você) sabem que João nunca, jamais fumou. Nesse caso, a sentença (10) é verdadeira ou é falsa?

Se você teve dificuldade em responder a essa pergunta, tudo bem. Pense agora o seguinte: será que não acontece o mesmo com as senten-ças de (6) a (9) quando perguntamos se elas são verdadeiras ou falsas? A resposta, para quem defende a teoria que chamaremos (com muita criatividade!) de pressuposicional, é “Sim!”.

Essa teoria, em linhas bastante gerais, pode ser entendida como uma alteração da teoria quantificacional, mas uma alteração funda-mental. Lembramos que na teoria quantificacional há três condições, as quais são ditas ou assertadas por uma sentença que tenha uma DD, e devem ser simultaneamente preenchidas para que a sentença seja ver-dadeira. A teoria pressuposicional dirá que as duas primeiras linhas são pressuposições, são imposições feitas ao contexto e que apenas a terceira linha é de fato dita ou assertada. Comparemos as duas teorias:

Teoria quantificacional: uma sentença com DD diz:

Há um referente que satisfaz o predicado que compõe a DD;a)

&

Não há mais do que um referente que satisfaça o predicado que b) compõe a DD ;

&

O predicado da sentença se aplica ao referente da DD.c)

Teoria pressuposicional: uma sentença com DD pressupõe:

Há um referente que satisfaz o substantivo que segue a DD;a)

&

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Capítulo 05As descrições definidas

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Não há mais do que um referente que satisfaça o substantivo b) que segue a DD;

e diz:

O predicado da sentença se aplica ao referente da DD.c)

Se voltarmos para a sentença (4), que já analisamos exaustivamen-te, e aos contextos A, B e C à luz da teoria pressuposicional, obteremos resultados diferenciados. Agora, (4) não é mais falsa nem em A nem em B: ela simplesmente não pode receber valor de verdade nesses contex-tos porque as pressuposições de que há um referente (linha (a)) e que não há mais de um (linha (b)) não estão preenchidas nos contextos A e B, respectivamente. Para que a nova situação fique ainda mais clara, retomemos a tabela de verdade, que reapresentamos em seguida. Vamos indicar pelo símbolo ‘Ø’ as situações em que pressuposições não são sa-tisfeitas, e por ‘INDEF’ o valor de verdade indefinido ou a falta de valor de verdade, decorrente de pressuposições não satisfeitas.

Pressuposições Asserção

Contexto a) Há um referente que satisfaz o predicado que compõe a DD.

b) Não há mais do que um referente que satisfaça o predicado que compõe a DD.

c) O predicado da sentença se aplica ao referente da DD.

Valor de verdade de (4)

1 A Ø V V INDEF

2 A Ø V F INDEF

3 B V Ø V INDEF

4 B V Ø F INDEF

5 C V V V V

6 C V V F F

Como a tabela deixa transparecer, somente podemos atribuir valor de verdade a uma sentença quando suas pressuposições estão todas pre-enchidas – que é o caso apenas do contexto C. É pela falta de pressupo-sições preenchidas que respondemos “Não sei.” quando nos perguntam pelo valor de verdade de sentenças como ‘A atual rainha do Paraguai gosta de pular de paraquedas’.

O debate sobre o estatuto de asserção ou de pressuposição das li-nhas a seguir não está resolvido:

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Há um referente que satisfaz o predicado que compõe a DD;a)

&

Não há mais do que um referente que satisfaça o predicado que b) compõe a DD.

Além disso, são muitos os argumentos a favor de uma ou outra po-sição. Contudo, não seria errado dizer que, pelo menos nos últimos anos, a maioria dos pesquisadores em semântica está mais propenso a adotar a teoria pressuposicional. Bom, pode ser que isso mude nos próximos anos – afinal, a ciência não é algo estático e sempre é possível construirmos ar-gumentos melhores e mais refinados, que iluminem aspectos ainda não vislumbrados, e que ajudem na adoção de uma ou outra perspectiva.

Depois de explicitar a problemática por trás das DDs, nos voltare-mos, na última Seção deste Capítulo, a um aspecto bastante importante dessa construção: o seu papel textual.

5.5 A função textual das DDs

Tanto a teoria quantificacional quanto a pressuposicional conside-ram, para a semântica das DDs, que, ao empregar uma DD, o falante considera que o ouvinte, de alguma maneira, conseguirá identificar ine-quivocamente o referente sobre o qual se está falando. No caso da solução quantificacional, afirma-se que há apenas um referente do tipo em ques-tão, e, no caso da solução pressuposicional, pressupõe-se que no contexto haja apenas um referente do tipo em questão. Devido a essa característica, as DDs estão sempre associadas a informações já dadas e recuperáveis, desempenhando um interessante papel na tessitura dos textos.

Se contrapusermos às DDs as descrições indefinidas (DI) – que têm a mesma estrutura, porém são encabeçadas pelos artigos indefi-nidos –, veremos que as DIs são responsáveis por introduzir (novos) referentes num dado texto ou discurso, ao passo que as DDs são respon-sáveis por indicar que estamos falando de referentes já conhecidos (ve-lhos, informação dada). Quando começamos uma narrativa qualquer, ao introduzirmos uma personagem o fazemos, na imensa maioria das vezes, através de uma DI:

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Capítulo 05As descrições definidas

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(11) Era uma vez um rei muito bondoso.

(12) ? Era uma vez o rei muito bondoso.

Mas, se quisermos continuar a falar da personagem introduzida, teremos que usar uma DD e não uma DI:

(13) Era uma vez [um rei muito bondoso]1. Mas [o rei]1 tinha ini-migos.

(14) ? Era uma vez [um rei muito bondoso]1. Mas [um rei]1 tinha inimigos.

O índice 1 indica que se trata dos mesmos referentes, explicitando a relação anafórica que nos interessa.

Como muitos argumentam, as DDs são sempre anafóricas, ou seja, sempre falam de um referente recuperável no contexto e, portanto, já mencionado. Como num contexto ou discurso em geral há muitos refe-rentes sobre os quais se fala, a DD deve indicar de alguma maneira uma especificidade, ou uma característica distintiva através da qual captura-mos apenas um referente. Uma maneira de fazer isso é pensar que a DD indica que há uma restrição em operação, e que devemos procurar um referente exclusivo que cumpra tal restrição. Vejamos um exemplo:

Duas mães conversando sobre a escola dos filhos, e então uma co-menta:

(15) Coloquei meu filho numa escola que todos diziam ser boa. Depois de dois meses, meu filho quis mudar. Aí eu fui ver, e achei que a escola não era tão boa.

(16) ? Coloquei meu filho numa escola que todos diziam ser boa. Depois de dois meses, meu filho quis mudar. Aí eu fui ver, e achei que uma escola não era tão boa.

O exemplo (16) é ruim porque a DI ‘uma escola’ não funciona como termo anafórico, e só pode indicar que a mãe está falando de uma se-gunda escola: uma interpretação que torna incoerente o texto como um todo. Por sua vez, no exemplo (15), a DD cumpre seu papel anafórico: sabemos que quando a mãe diz ‘a escola’ ela está falando de uma escola já mencionada. Como sabemos isso? Aqui entra a ideia de que as DDs

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indicam que há uma restrição em operação, que nos faz buscar um re-ferente já mencionado. Para o caso de (15), sabemos que a mãe não está falando de uma escola qualquer, mas sim da escola em que ela colocou seu filho, que todos diziam ser boa e da qual o filho em questão quis se mudar dois meses depois de entrar.

É por desempenhar esse papel que as DDs são tão importantes nas amarras do texto, indicando que estamos falando de um mesmo refe-rente, apenas acrescentando mais informações sobre ele.

Outra função textual interessante das DDs, que se combina com a função anafórica, é aquela desempenhada pelo predicado que segue o artigo. Ora, um mesmo objeto pode ser referido por meio de diferentes descrições; tomemos, por exemplo, o referente ‘John Lennon’. Podemos nos referir a ele como:

o principal vocalista dos a) Beatles;

o marido de Yoko Ono;b)

o compositor de c) Imagine;

o pai de Sean Lennon; etc.d)

Apesar de essas quatro DDs referirem-se inequivocamente a John Lennon, elas obviamente desempenham papéis informacionais diferen-tes. Imagine, por exemplo, que alguém queira saber sobre a banda The Beatles e pergunta sobre a relação entre John Lennon e essa banda. Se alguém responder com algo como ‘Ora, John Lennon é o pai de Sean Lennon’, provavelmente não ajudará em nada quem fez a pergunta. É fácil imaginar outras situações em que DDs que se referem ao mesmo indivíduo não podem ser usadas intercambiavelmente.

Pense em alguém apaixonado pela música Imagine, mas que des-conhece seu compositor. De repente essa música toca no rádio, e uma outra pessoa diz para a primeira: ‘O marido de Yoko Ono é um gênio’ – esse proferimento não vai fazer muito sentido para a pessoa apaixonada pela música (e que desconhece quem é seu compositor).

Essa propriedade das DDs – ter conteúdos informacionais distin-tos – pode e é muito explorada na área da política. Uma coisa é dizer

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Capítulo 05As descrições definidas

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de Lula que ele é ‘o presidente que atingiu 80% de aprovação popular’, e outra coisa é dizer de Lula que ele é ‘o presidente que é um ex-sindica-lista, sem curso superior’. Apesar de ambas as descrições se referirem à mesma pessoa (Lula), a segunda carrega certa dose de preconceito e será preferencialmente usada pelos inimigos de Lula.

5.6 Considerações finais

Como procuramos mostrar neste Tópico, a descrição definida (DD) é o tema de um intenso debate em semântica. Esse debate, ao tentar es-clarecer a natureza semântica da descrição definida, aprofunda nosso entendimento de conceitos como pressuposição, condição de verdade, conjunção, e outros.

Porém, o interesse nas descrições definidas não se encerra no es-tabelecimento de sua natureza semântica: essa construção desempenha um importante papel textual, seja na manutenção do fluxo de informa-ção (a descrição definida responde por referentes já introduzidos no discurso), seja na qualificação dos referentes.

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Capítulo 06Negação

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6 NegaçãoVocê vai conhecer o conceito de operador e as principais características

da negação no Português Brasileiro (PB).

6.1 As várias maneiras de negar

Embora negar seja algo muito corriqueiro, estudar a negação en-volve questões bem espinhosas, algumas das quais veremos aqui, ao mostrarmos alguns aspectos mais gerais da negação.

A melhor maneira de iniciar tal investigação é se perguntar: quais mecanismos ou expressões dispomos para negar? Claro, a sua primei-ra resposta deve ter sido o advérbio ‘não’, nosso negador por excelên-cia. Porém, há muitas outras maneiras de negar, e elas nem sempre dão a mesma contribuição para o sentido da sentença em que aparecem. Compare, apenas a título de exemplo, as seguintes sentenças:

(1) O João não saiu hoje.

(2) O João nem saiu hoje.

Ambas são sentenças negativas; elas nos informam que, de todas as coisas que João pode ter feito, é certo que entre elas não está sair. Mas, veja que (2) tem um algo a mais, de certa forma diz mais do que (1).

Com (2) infere-se que sair é o mínimo que João poderia ter feito, se ele não fez esse mínimo, então ele não fez mais nada. Podemos pensar sobre o ‘nem’ da seguinte forma: imagine que há várias coisas que João pode ter feito: fazer um bolo, lavar roupa, ver um filme etc., e, entre elas, sair. Ora, se alguém diz (2) quer dizer também que, além de não sair, João não faz mais nada das coisas que ele podia ter feito.

Faça o teste: sabendo que João podia fazer as coisas que listamos, o que você acha da sentença ‘O João nem saiu hoje, mas ele lavou rou-pa’? Não é ligeiramente estranha? Compare com ‘O João não saiu hoje, mas ele lavou roupa’. O contraste entre essas sentenças pode ser explicado pela ideia de escalas. O ‘nem’ carrega uma escala e indica a posição mais baixa nessa escala; se negamos o mínimo, negamos o resto.

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Outro item de negação é ‘sem’, que, como ‘nem’, não tem a mesma distribuição de ‘não’, ou seja, não ocupa a mesma posição que o ‘não’ pode ocupar. Podemos dizer ‘sem juízo’, mas não ‘não juízo’:

(3) Ele é sem juízo.

(4) * Ele é não-juízo.

Ao mesmo tempo, em termos de significado, parece que ‘sem juízo’ é o mesmo que ‘não ter juízo’: ‘Ele não tem juízo’.

Além de itens lexicais negativos como ‘não’, ‘nem’ e ‘sem’, temos também uma morfologia para negação. Por exemplo, o prefixo ‘in-’, no seguinte exemplo:

(5) O João é infeliz.

Mas, a sentença em (5) não é sinônima da sentença em (6):

(6) O João não é feliz.

Em que elas diferem? Vamos desenvolver essa discussão mais adian-te, na Seção 6.3. Outro prefixo que indica negação é ‘des-’, em ‘desleal’; o mesmo vale para ‘a-’ em ‘amoral’. Mas, note que eles não têm exatamente o mesmo significado...

A expressão ‘deixar de’ é também uma maneira de negar, que sem-pre incide sobre um verbo:

(7) O João deixou de estudar.

Como você deve se lembrar, ‘deixar de’ carrega uma pressuposição que indica a existência de um estado anterior, em que o evento denotado pelo verbo no infinito se desenvolvia: só se deixa de fazer algo se já se fazia esse algo anteriormente. ‘Deixar de’ afirma que esse estado ante-rior cessou. Aliás ‘cessar de’ é outro verbo que carrega uma negação e uma pressuposição. Como já vimos, no Capítulo sobre pressuposição, a negação é um “buraco” pressuposicional, isto é, a negação deixa a pres-suposição passar, por isso comparar a sentença afirmativa à negativa é um teste para determinarmos a pressuposição.

Veja o Capítulo 4 sobre pressuposição.

Lembra-se do teste da P-família?

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Capítulo 06Negação

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Há ainda os chamados “indefinidos negativos” como ‘ninguém’, ‘nenhum’, ‘nada’. Eles têm uma propriedade curiosa: só ocorrem sob o escopo de uma negação (a não ser em posição de sujeito).

(8) a. João não viu ninguém.

b. * João viu ninguém.

(9) a. João não comprou nada.

b. * João comprou nada.

Não temos em (8) e (9) uma dupla negação, que equivaleria a uma sentença afirmativa: se não é verdade que João não veio, então ele veio. Há línguas, como o inglês, em que a tradução literal de (9a), ‘João didn’t buy nothing’, significa que ele comprou algo, porque há uma dupla nega-ção. Por isso, se vamos traduzir corretamente (9a), temos que dizer ‘João didn’t buy anything’. A presença de duas negações em (9a) no português não indica que ele comprou algo. Não se trata, portanto, de dupla negação. Alguns autores têm dito que no português temos concordância negativa.

É certo que cada um desses negadores pede um estudo à parte, que tenha como objetivo responder à pergunta: qual é o importe semântico que ele carrega? Em que ele difere dos outros itens de negação? Mas, não é possível tratar de todos num capítulo, por isso vamos, aqui, fazer uma apresentação das principais propriedades da negação.

6.2 O ‘não’

Vamos iniciar com uma pequena reflexão sobre o ‘não’.

Para começo de conversa: o que significa negar? Não há uma respos-ta imediata para essa pergunta, porque, como vimos, há várias maneiras de negar e nem sempre elas fazem o mesmo semanticamente. Logo, não é óbvio que haja uma resposta única para essa questão. Vamos, então, refletir sobre a negação chamada de sentencial, feita com o ‘não’ e exem-plificada a seguir. Pergunte-se: o que a sentença (10) significa?

(10) Agora não está chovendo.

Discutiremos mais sobre essa propriedade na Seção 6.5!

Page 84: [livro UFSC] Semantica

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Ela acarreta que está fazendo sol? Claro que não, pode não estar chovendo e não estar fazendo sol. Então, o que ela significa?

Vamos pensar do seguinte modo: uma sentença pode ser verda-deira ou falsa. Como vimos, uma sentença divide os mundos em duas partes, uma na qual ela é verdadeira e outra na qual ela é falsa. Isso fica mais claro quando pensamos em sentenças do tipo ‘está chovendo’; quando dizemos ‘está chovendo’, sabemos separar as situações no mun-do. Vamos ver? Separe as situações a seguir, tendo em vista que (11) é verdadeira e depois que (10) é verdadeira:

Quadro 1 Quadro 2

Quadro 3 Quadro 4

Você não deve ter tido qualquer problema: a sentença (10) é verda-deira no primeiro e no terceiro quadros, e falsa no segundo e no quarto, isto é, ela divide o mundo em dois: aquela parte em que a sentença é ver-dadeira e outra em que é falsa. A sentença em (11) nos dá exatamente o inverso: ela é falsa no primeiro e terceiro quadros e verdadeira no segun-do e quarto quadros. A sentença em (10), se for verdadeira, nos coloca

Como vimos, o acarreta-mento é uma relação de

consequência lógica, isto é, dada uma sentença A, ou-

tra segue necessariamente dela. Veja o Capítulo 2 ou o

Glossário.

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Capítulo 06Negação

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nas situações em que não chove. Note que há um “jogo” entre chover e não chover: se (10) é verdadeira, então (11) é falsa e vice-versa:

(10) Agora não está chovendo.

(11) Agora está chovendo.

Ou seja, se soubermos o que (11) significa, isto é, o seu valor de verdade, derivamos (10) mecanicamente e vice-versa. Podemos, então, deduzir composicionalmente o significado de ‘não’ a partir do significa-do da sentença afirmativa que compõe a sentença negativa mais com-plexa. A composicionalidade, já dissemos, é a propriedade das línguas naturais de formar unidades/constituintes mais complexos a partir de unidades/constituintes menores. Nesse sentido, podemos decompor a sentença (10) em:

(12) [S Não [S agora está chovendo] ].

Em termos estruturais, estamos afirmando que o ‘não’ atua sobre uma sentença e gera uma outra sentença, isto é, ele é um operador, em-bora em termos superficiais ele pareça incidir sobre o verbo conjugado.

O que dissemos nos baliza para fazermos uma tabela de verdade. Se a sentença constituinte - no caso de (10), é ‘agora está chovendo’ - for falsa, a sentença complexa com a negação é verdadeira e vice-versa. Vamos chamar a sentença constituinte de p. A literatura em semântica costuma representar a negação por ‘~’ ou por ‘¬’. Assim uma fórmula como ‘~p’ ou ‘¬p’ significa “não é o caso que p”. Temos apenas duas al-ternativas para p: ou ela é verdadeira (V) ou é falsa (F); chegamos assim ao seguinte quadro:

p V F

~p F V

Mas, você deve estar se dizendo: “Isso é apenas um tipo de função, uma maquininha de derivação, e eu quero saber algo mais denso: o que exatamente significa a negação?” Essa é uma questão metafísica, e não é trivial. Será que podemos afirmar que a sentença em (10) indica que houve um evento de não-chuva? Há eventos negativos? Em nossa com-preensão, não; só há eventos positivos. Significa que, ao proferir (10), o

Também em lógica, em ma-temática e em filosofia. Na literatura mais computacio-nal costuma-se representar o verdadeiro por 1 e o falso por 0.

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Semântica

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falante não diz que houve um evento de não chover, mas que houve um evento que pode ser caracterizado como de não chover, um evento de sol ou um evento de dia encoberto em que não está chovendo. Negar é dizer de um estado de coisas que ele não pode ser caracterizado daquela maneira, mas ficamos sem saber como é então esse evento. Ao dizermos que não está chovendo, deixamos em aberto se está fazendo sol, se está nublado, se está frio ou quente... Só sabemos que não chove.

6.3 Escopo

Na Seção anterior apresentamos uma visão bruta da negação, abri-mos uma primeira clareira na floresta do ‘não’; é tempo de adentrar na mata. Considere agora a seguinte sentença:

(13) O João não beijou a Maria.

De acordo com a visão mais bruta, (13) significa que o que quer que tenha ocorrido não foi um evento de beijo na Maria. Mas, note que, se acentuarmos prosodicamente ‘a Maria’, então (i) afirmamos que houve um evento de beijo, mas (ii) que esse beijo não foi na Maria, o que ne-gamos é, na verdade, o constituinte ‘a Maria’. Veja que a nossa descrição anterior não consegue captar essa relação entre a negação e um consti-tuinte menor do que a sentença, pois dissemos que o ‘não’ opera sobre sentenças.

Acentuar prosodicamente um constituinte é uma maneira de indicar onde a operação da negação está atuando, ou seja, qual é o constituinte que está sendo negado. Em literatura especializada, o lugar em que um operador atua é chamado de escopo. Na sentença (13), como a prosódia indica, a negação atua sobre ‘a Maria’. Considere a sentença a seguir:

(14) O João não terminou a tese por causa da sua mulher.

Ela é ambígua, isto é, ela tem duas interpretações bem distintas que são acompanhadas por duas curvas entoacionais bem diferentes. Você en-xerga as duas leituras? Em uma delas o João não terminou a tese e ele não ter feito isso se deve à sua esposa; a esposa foi a causa de ele não ter termi-nado a tese. Na outra, o João terminou a sua tese, mas isso não ocorreu por causa da sua esposa, ele terminou porque queria ou porque o pai mandou;

Leia em voz alta a sentença em (13) com o acento pro-

sódico em ‘a Maria’.

Esse é um contexto em que ‘a Maria’ é, em geral, a infor-mação já presente, já dada.

Como se a informação de que João beijou a Maria ti-

vesse sido dada e agora ela está sendo corrigida: não

foi a Maria que ele beijou, mas sim a Cláudia, ou ‘O João não beijou a Maria,

mas sim a Cláudia’.

Trata-se de uma ambigui-dade semântica porque

envolve o escopo do ope-rador.

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Capítulo 06Negação

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a causa de ele terminar não foi a sua esposa. Na primeira interpretação, o ‘não’ tem escopo sobre ‘terminou a tese’, negando esse constituinte. No segundo caso, o ‘não’ tem escopo sobre a causa veiculada por ‘por causa da sua mulher’, negando que essa seja a causa de ele ter terminado a tese. Se colocarmos o acento mais marcado no constituinte ‘a tese’, podemos ter a interpretação de que João não terminou ‘a tese’ por causa da mulher, dando origem a um contraste: nesse contexto, esperávamos que fosse algo diferente da tese aquilo que João não terminou por causa da mulher, por exemplo, um livro. Ao pronunciarmos (14) com o acento mais forte em ‘a tese’, corrigimos essas interpretações e indicamos que foi de fato ‘a tese’ que ficou inacabada por causa da mulher.

Operadores têm escopo porque eles atuam sobre certos consti-tuintes, incluindo toda a sentença. Quando há mais de um operador na sentença, em geral, temos ambiguidade, porque um operador pode ter escopo sobre o outro, é o que ocorre na sentença:

(15) A Maria não cursou semântica de novo.

Mais uma vez, cada uma das interpretações tem uma curva en-toacional particular. Tente ler a sentença (15) acentuando ‘de novo’ e isolando-o prosodicamente do resto da sentença; que interpretação foi gerada? Que ela mais uma vez não fez o curso de semântica, ou seja, o ‘de novo’ está fora do escopo da negação; é ele quem atua sobre a sen-tença negativa, indicando que ‘de novo’ não ocorreu algo. Agora leia a sentença incluindo o ‘de novo’ na mesma curva entoacional, com uma entonação quase de surpresa, de correção de uma fala anterior. Dessa vez a interpretação é que ela já cursou semântica, mas não fez o curso de novo. Nega-se o ‘de novo’.

A representação das duas leituras pode ser a seguinte:

Temos que ‘p’ está por ‘A Maria cursou semântica’, ‘DN’ por ‘de novo’, e ‘~’ pela negação. Assim:

DN (~p) = de novo não é o caso que Maria cursou semântica.

~(DN p) = não é o caso que de novo Maria cursou semântica.

Com essa representação, fica claro qual operador está sob o escopo do outro.

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Semântica

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6.4 Negações escalares

Dissemos, no início, que a sentença em (16) tem um significado diferente da sentença em (17), isto é, elas não são sinônimas:

(16) A Maria é infeliz.

(17) A Maria não é feliz.

Dizer que elas não são sinônimas é dizer que elas desenham condi-ções diferentes no mundo, que elas não são verdadeiras (ou falsas) nas mesmas situações. Você consegue ver em que elas diferem? Veja que entre ‘feliz’ e ‘infeliz’ há um continuum, estamos, mais uma vez, diante de uma escala, em que o topo é ser feliz e a base é a infelicidade; entre elas há inúmeros estados intermediários que podem ser indicados por advérbios como ‘muito’ ou ‘um pouco”.

Ao negarmos que a Maria é feliz, indicamos apenas que não é pos-sível colocá-la no topo da escala da felicidade, mas isso não significa que ela está lá embaixo; ela pode não ser nem feliz nem infeliz, como a sentença ‘Maria não é feliz e nem infeliz’ demonstra. Se afirmamos que ela é infeliz, colocamos a Maria na base da escala, na posição mais baixa. Assim (16) acarreta (17), mas não vice-versa, ou seja, mesmo que Maria não seja feliz, ela não é necessariamente infeliz. Mas, nem sempre o prefixo ‘in-’ pede um adjetivo escalar:

(18) Esse artigo é inconstitucional.

Ora, ou algo é inconstitucional ou não é; não há algo mais ou me-nos inconstitucional. Além disso, há adjetivos escalares que não combi-nam com o ‘in-’:

(19) * Ele é imbom.

A negação escalar não é, portanto, uma propriedade do prefixo ‘in-’, antes tem a ver com o tipo de adjetivo com o qual esse prefixo se combina: esse fenômeno ocorre quando ‘in-’ se combina com adjetivos escalares. Considere a seguinte sentença:

(20) O leite não está quente.

Será que ela acarreta que o leite está frio? Certamente não, e você

Para mais informações sobre os adjetivos escala-res, veja o Capítulo sobre

comparação.

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Capítulo 06Negação

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já deve ter entendido a razão: ‘quente’ é também um adjetivo escalar. Na escala de temperatura, quente está no intervalo superior e frio no inferior, mas há posições intermediárias, expressas, por exemplo, por ‘morno’. Veja que se o leite está frio, então ele não está quente, mas a recíproca não é verdadeira.

Como já notamos, o ‘nem’ é um tipo de negação escalar, que pode atuar em lugares que o ‘não’ não pode, como neste exemplo:

(21) Nem o João veio.

Veja que não podemos substituir o ‘nem’ por ‘não’. Além disso, (21) diz mais do que João não ter vindo. De alguma forma, (21) veicula que também outras pessoas não vieram. Como isso ocorre? ‘Nem’ parece ser especializado em atuar na parte inferior de uma escala que é dada contextualmente. Ao negar o ponto mínimo da escala, nega-se todo o resto. Assume-se, ao interpretarmos (21), que o João certamente viria à festa, porque o João vem a todas as festas; então, no mínimo, era ele o esperado. Mas, se o mínimo esperado não ocorreu, nada mais ocorreu. Trata-se evidentemente de um raciocínio inferencial. Veja também que o ‘nem’ é um item que pode tomar diferentes coisas como escopo: no caso de (21), seu escopo é ‘João’; no caso de (2), seu escopo é ‘sair’.

6.5 Os itens de polaridade negativa

Já mostramos que os indefinidos negativos, ‘nada’, ‘ninguém’, ‘ne-nhum’, quando não estão na posição de sujeito, exigem a presença da negação explícita:

(22) Ninguém viu o Pedro.

(23) a. * Pedro viu ninguém.

b. Pedro não viu ninguém.

Esse é um fenômeno curioso que não se restringe aos indefinidos negativos. Há na língua várias expressões que só podem ser usadas se es-tiverem sob o escopo de um item negativo, por isso elas são chamadas de itens de polaridade negativa. Veja que interessante o seguinte contraste:

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(24) a. Ela não vale um tostão furado.

b. ?? Ela vale um tostão furado.

(25) a. Ela não deu um pio na palestra.

b. # Ela deu um pio na palestra.

Você sente o contraste? O que ocorre nas sentenças afirmativas? Há inúmeras expressões que têm esse mesmo comportamento. Você conse-gue pensar em outras?

O que ocorre é que, na sentença negativa temos uma expressão idiomática, já a afirmação faz com que as palavras sejam interpretadas “literalmente”, assim (25b) só pode significar que ela deu literalmente um pio durante a palestra, por isso é uma sentença estranha. Já (25a) significa que ela não disse nada durante a palestra, não produziu nem o menor barulho e não que ela não deu um pio. Veja que, mais uma vez, estamos diante de uma escala, contextualmente produzida, em que ‘dar um pio’ indica o mínimo que se pode fazer. Se ela não fez o mínimo, não fez nada mais. Eis mais um exemplo:

(26) a. Ela não abriu a boca.

b. Ela abriu a boca.

Exatamente o mesmo raciocínio se aplica aqui. A sentença em (26b) só pode ter leitura literal, tecnicamente chamada de composicio-nal, significando que ela realizou o movimento de abrir a boca. Já (26a) pode ter tanto a leitura composicional, em que se nega que ela tenha feito o ato de abrir a boca, quanto a leitura não-composicional, em que ela não disse nada. É claro que abrir a boca é o mínimo que temos que fazer para falar; se ela não fez nem isso, não fez nada mais, não colocou a sua posição sobre o assunto, não discutiu o assunto.

Um enigma que cerca os itens de polaridade negativa é o fato de que eles podem ocorrer em contextos que não têm uma negação explícita:

(27) Estou surpresa de ele ter levantado um dedo para ajudar.

Veja que, embora não haja uma negação explícita, ‘levantar um dedo’ não tem o significado composicional de levantar um dedo, mas é

O símbolo # não indica agramaticalidade, mas a necessidade de um con-

texto especial para que a sentença seja interpretada.

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Capítulo 06Negação

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sinônimo de dar uma mão, de ajudar. Note, entretanto, que há algo de negativo em (27), a expectativa do falante era que ele não tivesse ajuda-do. O mesmo vale para a sentença abaixo:

(28) Se ele levantou um dedo para ajudar, eu sou um mico de circo.

6.6 Negação metalinguística

Um outro tipo de negação que recebeu muita atenção dos linguis-tas é aqui exemplificado:

(29) Ela não é bonita, é linda.

(30) Eu não gosto de você, te amo.

Por que essas sentenças são problemáticas, embora sejam muito corriqueiras? Veja que mais uma vez temos escalas, bonito está, na esca-la de beleza, abaixo de linda, mas acima de feia. Nos exemplos anterio-res, quando negávamos o ponto máximo, deixamos em aberto as várias possibilidades para baixo na escala, mas negando o que estava acima: se o café não está quente, ele não está pelando. Explicando de outro modo: se alguém é linda, necessariamente é bonita, porque linda é mais do que bonita e os dois estão no pólo positivo.

Você deve conseguir fazer o mesmo raciocínio para a sentença (30): na escala de amor, gostar é inferior a amar. Assim, se amamos alguém, necessariamente gostamos dessa pessoa (é evidente que o re-verso não é necessariamente verdadeiro, podemos gostar sem amar). Se é verdade que o falante não gosta do ouvinte, então, por necessida-de, ele não ama o ouvinte.

Mas, se for assim, as sentenças (29) e (30) deveriam ser espúrias, incoerentes, mas não são, e por que não? A ideia é que em (29) não esta-mos efetivamente negando que “ela” tenha a propriedade da beleza, mas estamos negando que a palavra ‘bonita’ seja apropriada para descrevê-la; de novo, algo como uma correção: Não é correto caracterizá-la pelo termo ‘bonita’ porque ela é mais do que bonita, ela é linda. Estamos afirmando que descrevê-la com o termo ‘bonita’ é inadequado, porque estamos dizendo menos do que devemos dizer, já que ela é linda.

Há aqui paralelos com a chamada comparação metalinguística, veja o Capítulo 8.

Mais sobre pólo positivo e negativo no Capítulo 8, sobre comparação.

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6.7 Considerações finais

Há várias maneiras de negarmos. Neste Capítulo, apresentamos a negação sentencial, que, no português brasileiro, ocorre geralmente com o ‘não’ antecedendo o verbo conjungado. Sua principal caracterís-tica é inverter o valor de verdade da sentença que a compõe. ‘João não saiu’ é verdadeira se e somente se ‘João saiu’ é falsa. Mostramos ainda a negação escalar – que é aquela que atua uma escala –, e também como a negação do prefixo ‘in-’ não é o mesmo que a negação sentencial: ‘João não é feliz’ não tem o mesmo significado que ‘João é infeliz’.

Apresentamos rapidamente os itens de polaridade negativa que são expressões que ocorrem preferencialmente sob o escopo da negação, como por exemplo ‘Ela não é flor que se cheire’. Finalmente, atentamos para a negação metalinguística, em que se nega a propriedade de utilizarmos um certo termo para descrever um objeto: ‘A Maria não é bonita, é linda’.

Como é possível notar, o domínio de estudos da negação é vasto e envolve questões muito interessantes sobre escalas e sobre inversão do valor de verdade das sentenças. Esperamos que você possa explorar mais a fundo tais questões.

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Capítulo 07Quantificação

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QuantificaçãoEste Capítulo visa apresentar os conceitos básicos para

entender a quantificação nas línguas naturais.

Nele vamos estudar mais a fundo a quantificação nominal.

7.1 Introdução

Considere o seguinte diálogo:

(1) Quantos livros (da lista de Semântica) o João comprou?

O João comprou todos os livros (da lista de Semântica).

Suponha que a informação entre parênteses seja dada pelo contex-to. A resposta expressa uma quantificação: não importa quantos livros estão na lista, sabemos que o João comprou todos eles, que ele esgotou os livros da lista.

As línguas naturais têm vários mecanismos para expressar quan-tificação. No exemplo em (1), trata-se de uma quantificação universal nominal, porque ela ocorre no sintagma nominal: ‘todos os livros’ que, no exemplo, está na posição de objeto (direto, diria a Gramática Norma-tiva, ou de argumento interno, diriam os linguistas). Mas, é evidente que o sintagma quantificado pode ocorrer na posição de sujeito e em outras posições, como mostram estes exemplos:

(2) Todos os livros (da lista de Semântica) são baratos.

(3) Em todos os livros (da lista de Semântica) há um erro.

Também deve estar claro que expressamos outras “quantidades” além da totalidade de elementos, que é a quantificação universal. Em (4), o falante informa que o João comprou livros da lista. Talvez ele te-nha comprado dois, três ou mesmo todos os livros, mas certamente ele comprou mais de um livro, dada a morfologia de plural ‘-s’. Na sentença em (5), o número de livros que o João comprou é explicitamente dado:

(4) O João comprou alguns livros (da lista de Semântica).

(5) O João comprou dois livros (um, três, quatro,...).

7

Quantificadores têm restri-ção contextual – no nosso caso, trata-se apenas dos livros da lista de Semântica.

Informalmente, podemos dizer que a quantificação expressa uma “quantidade”: todos, a metade, alguns, dois... Mas, essa maneira de ver, que é conhecida na lite-ratura como visão “quanti-ficaciosa”, leva a equívocos. É mais correto afirmar que a quantificação é uma rela-ção entre conjuntos, como veremos adiante.

Sintagma nominalA noção de sintagma, que aparece na disci-plina de Sintaxe, in-dica um constituinte. O sintagma nominal tem como núcleo um nome ou substantivo. No nosso exemplo, o nome ‘livros’.

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Semântica

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Podemos também afirmar que João comprou a metade dos livros da lista – mas é claro que, nesse caso, para sabermos exatamente quan-tos livros João comprou, precisamos saber quantos livros há na lista:

(6) O João comprou a metade dos livros.

Suponha que por ‘a maioria’ entendemos pelo menos metade mais um:

(7) O João comprou a maioria dos livros.

Em (8), o falante afirma que, da lista de livros, João não comprou nenhum:

(8) O João não comprou nenhum dos livros.

Todos esses exemplos são de quantificação nominal, mas as línguas têm também outros tipos de quantificação, em particular a quantifica-ção no domínio do verbal:

(9) Sempre que o João sai, a Maria chora.

Veja que ‘sempre’ é uma quantificação universal, já que indica que todos os eventos de saída do João são acompanhados por eventos de choro da Maria – para cada evento de saída do João (toda vez que João sai), há um evento de choro da Maria (Maria chora, ou seja, ‘Sempre que o João sai, a Maria chora’). Note como é diferente dizermos ‘Algu-mas vezes a Maria chora quando o João sai’, em que temos uma quan-tificação chamada de existencial.

Na sentença em (10), afirma-se que houve dois eventos de corrida:

(10) Maria correu duas vezes.

Neste Capítulo, vamos nos concentrar na quantificação nominal, mas o que dissermos sobre ela vale também para os outros tipos de quantificação que ocorrem em vários lugares das línguas naturais.

Como esperamos deixar claro ao longo deste Capítulo, a quantifica-ção é um lugar privilegiado para o professor de Português interagir com o professor de Matemática ou com o professor de Filosofia/Lógica, porque a intuição sobre como funciona a quantificação é a mesma nessas áreas do conhecimento. Por razões históricas, pensamos que as ciências humanas

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Capítulo 07Quantificação

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não têm nada a ver com as ciências exatas e menos ainda com a mate-mática, mas talvez esse seja mais um engano; afinal, a matemática é uma linguagem, assim como as várias linguagens lógicas (o cálculo de predica-dos, por exemplo). Nessa perspectiva, não é surpreendente que haja pon-tos de aproximação, e a quantificação é certamente um deles. Fica, então, o desafio de um trabalho em conjunto com o professor de Matemática!

Além disso, a quantificação está presente na descrição de vários fenômenos das línguas naturais. Além dos nominais, já vimos que ad-vérbios de tempo como ‘sempre’ podem ser traduzidos como quantifica-ção sobre o tempo; no tópico sobre modalidade, veremos que a ideia de quantificação também desempenha um papel bastante interessante.

7.2 A quantificação nominal

Vamos iniciar refletindo sobre esta sentença:

(11) Apenas uma criança está chorando.

Como já dissemos no Capítulo 3, predicados denotam conjuntos de indivíduos. Na sentença (11), temos dois predicados; logo, dois con-juntos de indivíduos: o predicado ‘criança’ denota o conjunto das crian-ças, e o predicado ‘chora’ denota o conjunto dos que choram.

A visão que será apresentada é chamada de Quantificação Genera-lizada e foi apresentada por Barwise e Cooper (1981). Essa visão procu-ra resolver a questão de como combinar os elementos em (11); a identi-ficação do problema e sua solução estão já em Frege.

A sentença em (11) coloca um problema de combinação se partir-mos do predicado ‘chora’. Como já vimos, ‘chora’ é um predicado com um lugar, com uma valência; logo, ele pede um argumento para se pre-encher, para se tornar uma estrutura estável. O problema é que o sintag-ma quantificado ‘apenas uma criança’ não se refere a um indivíduo em particular (o João, a Maria...).

É possível provar que, de fato, um sintagma quantificado qualquer nunca denota um indivíduo em particular, isso é constatável através de uma série de testes. Apresentamos dois que nos parecem mais intuitivos:

Predicado é uma estrutu-ra insaturada, com uma posição aberta para ser preenchida por um argu-mento: ‘chorar’ pede um argumento para se tornar uma sentença. Em ‘O João chora’ a valência de ‘chorar’ é preenchida pelo argu-mento ‘o João’.

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Teste da contradição: se ‘alguma criança’ denotasse um indivíduo em particular, esperaríamos que a sentença em (12) fosse contraditória, como ocorre com a sentença em (13), em que temos o sintagma ‘o João’, o qual sabemos com certeza que se refere a um indivíduo em particular:

(12) Apenas uma criança está chorando e apenas uma criança não está chorando.

É perfeitamente plausível imaginarmos uma situação em que ao mesmo tempo temos uma criança chorando e uma criança que não está chorando. Isso não ocorre em (13):

(13) O João está chorando e o João não está chorando.

Sem “deslizar” os sentidos e desconsiderando situações em que o João está fingindo chorar, não é possível uma situação em que ele esteja ao mes-mo tempo chorando e não chorando, por isso (13) é uma contradição.

Teste do acarretamento para baixo: para aplicar esse teste, vamos supor que o sintagma ‘apenas uma criança’ se refere a um indivíduo em particular. Se esse for o caso, a sentença em (14a) deve acarretar a sen-tença (14b). É isso que ocorre?

(14) a. Apenas uma criança chegou ontem de manhã.

b. Apenas uma criança chegou ontem.

Não! (14a) não acarreta (14b), porque podemos imaginar uma si-tuação em que apenas uma criança chegou de manhã, mas, à tarde, che-garam muitas outras crianças. Por contraste, (15a) acarreta (15b):

(15) a. O João chegou ontem de manhã.

b. O João chegou ontem.

Esses testes mostram que os sintagmas quantificados não denotam indivíduos em particular.

Retornando: se em (11) ‘apenas uma criança’ não denota um indivíduo em particular, deveríamos esperar que a sentença fosse agramatical, porque o predicado ‘chorar’ pede um argumento, isto é, um indivíduo em particular, mas ‘apenas uma criança’ não denota um indivíduo! O que fazer? O grande insight de Frege foi imaginar que a combinação é livre de direcionamento.

Como vimos no Capítulo 2, uma contradição é uma

sentença que nunca é verdadeira. Veja também o

Glossário.

Lembre-se: acarretamento é uma relação lógica entre as sentenças de forma que

uma decorre necessaria-mente da outra!

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Capítulo 07Quantificação

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No Capítulo 3, vimos que, numa sentença como ‘João estuda’, com-binamos o predicado ‘estuda’ com o argumento ‘João’, da direita para a es-querda. O que Frege fez foi considerar ‘apenas uma criança’ – a qual, como vimos, não denota um indivíduo - como um tipo de predicado, e efetu-ar uma combinação da esquerda para a direita, partindo de ‘apenas uma criança’ e procurando qual expressão serviria de argumento para ela.

Reflita: o que ela exige para se tornar uma sentença? As combina-ções abaixo são todas possíveis (e muitas outras que você deve conse-guir criar sem nenhum problema):

chora

Apenas uma criança fala

estuda

O que essas combinações têm em comum? Ora, já vimos que ‘estu-da’ é um predicado de um lugar, o mesmo se dá com ‘chora’ e com ‘fala’. Assim, o que há de comum nessas combinações é o fato de que ‘apenas uma criança’ se combina com um predicado! Por isso Frege afirmou que o sintagma quantificado é um predicado de segunda ordem: é um predicado que pede outro predicado para se completar.

Veja que ‘apenas uma criança’ não pode se combinar com argu-mentos – estruturas saturadas –, como em:

João

Apenas uma criança o presidente do Brasil

Maria

Se analisarmos ainda mais a fundo o sintagma quantificado ‘apenas uma criança’, veremos que ele pode ser decomposto em um quantifica-dor, ‘apenas uma’ e um predicado ‘criança’ – lembrando que predicados de um lugar, como ‘criança’, ‘chora’ etc., se referem a conjuntos de indi-víduos, ou seja, o conjunto das crianças, o conjunto dos que choram etc. Grosseiramente, temos a seguinte decomposição:

Apenas uma criança chora.

Apenas uma criança chora.

Apenas uma criança

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O quantificador ‘apenas uma’, como qualquer quantificador, indica uma relação entre conjuntos. A questão agora é: Como é que os con-juntos em (11) se relacionam? Pergunte-se: Em que condições o mundo deve estar para que a sentença seja verdadeira?

Ora, para que a sentença (11) seja verdadeira, é necessário que um único indivíduo, na situação de fala, tenha ao mesmo tempo a proprie-dade de ser criança e de chorar. Veja que pode haver outras crianças e pode também haver outros que estão chorando, o que se exige é que apenas um único indivíduo pertença à intersecção entre esses conjun-tos, como mostra o desenho a seguir:

A∩B

Conjunto dos que choram

Um e apenas um dos indivíduos que é criança e chora

Conjunto das crianças

É por isso que dissemos, no início, que um quantificador denota uma relação entre conjuntos.

Vamos, agora, “brincar” de visualizar o que alguns outros quantifica-dores denotam, tendo como fundo essa ideia de relação entre conjuntos. Faça a seguinte pergunta: O que ‘todo’ denota? Reflita sobre a sentença ‘toda criança chora’, depois se pergunte: Para que essa sentença seja verda-deira, o que é necessário? Pode haver outros indivíduos que choram? Ou essa sentença exige, para ser verdadeira, que apenas crianças chorem?

Você deve concordar que, para a nossa sentença ser verdadeira, pode haver outros indivíduos que chorem; o que precisamos garantir é que, se algo é criança, então ela chora. Se pensarmos em termos de con-junto, o que teremos? Teremos que o conjunto das crianças está contido no conjunto dos que choram.

Se você tem dúvidas bási-cas sobre teoria de con-

juntos, faça uma pequena recapitulação!

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Capítulo 07Quantificação

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Conjunto das crianças

Conjunto dos que choram

A relação de inclusão é representada por “⊂”: o conjunto das crian-ças “⊂” o conjunto dos que choram, ou seja, o conjunto das crianças está contido no conjunto dos que choram, ou ainda, se algo é uma crian-ça, então esse algo chora, ou seja, toda criança chora!

Um caso bem interessante de se pensar é a sentença:

(16) Nenhum homem é sozinho.

Temos, mais uma vez, dois predicados: ‘homem’ e ‘sozinho’, que denota o conjunto dos entes que são sozinhos. Pergunta-se: o que deno-ta ‘nenhum’, que tipo de relação ‘nenhum’ denota? Há várias maneiras de responder a essa pergunta, mas, se pensamos sempre em relações entre conjuntos, então temos de concluir que esses conjuntos não se relacionam, que não há intersecção entre eles.

Conjunto dos homens Conjunto dos sozinhos

7.3 Interação de quantificadores: as relações de escopo

Durante certo período na história dos estudos em sintaxe e semânti-ca, acreditava-se que as sentenças ativas e suas equivalentes passivas eram sinônimas, isto é, que ambas veiculavam exatamente o mesmo sentido.

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Num artigo famoso de 1970, Chomsky mostrou que nem sempre é esse o caso, a partir da análise de uma sentença parecida com (17) abaixo:

(17) Todos os alunos dessa sala falam duas línguas.

Nessa sentença temos dois sintagmas quantificados: ‘todos os alu-nos’ e ‘duas línguas’. Intuitivamente, em que condições essa sentença é verdadeira? Você deve ter pensado: ela é verdadeira se todos os alunos falarem duas línguas. Correto. Mas, será que é necessário que sejam as mesmas duas línguas? Suponha o seguinte cenário: Na sala em questão há três alunos: Berenice, Júlia e Ricardo. Berenice fala inglês e alemão; Júlia fala karitiana e irlandês; Ricardo fala grego e japonês. A sentença em (17) é verdadeira nesse cenário? Claro que sim! Ela também é ver-dadeira num cenário em que os três falam as mesmas duas línguas, por exemplo português e inglês. Compare, agora, com a sentença passiva:

(18) Duas línguas são faladas por todos os alunos dessa sala.

Uma das interpretações desapareceu. Qual delas? Você deve ter percebido que agora necessariamente são as mesmas duas línguas. O cenário em que cada um fala duas línguas distintas está excluído.

Apenas a sentença em (17) é ambígua. Que ela o seja é algo espe-rado, dado que quantificadores são um tipo particular de operador.

Os quantificadores efetuam uma operação entre conjuntos. Há, ba-sicamente, a operação de inclusão e a operação de intersecção. ‘Todo’ (e suas variantes, como ‘todos os [nome]’, ‘todas as [nome]’, ‘tudo’...) in-dica sempre inclusão de conjuntos, porque ele (e suas variantes) esgota todos os elementos de um dos conjuntos. Por isso, ‘todo’ é chamado de quantificador universal e é representado em textos de linguística, de lógica, de computação pelo símbolo ∀. Já o ‘um’ indica sempre inter-seção de conjuntos e é chamado de “quantificador existencial”, porque é parafraseado por ‘existe pelo menos um’; é comumente representado pelo símbolo ∃.

Voltando ao exemplo em (17), se um quantificador é um operador, então um pode ter escopo sobre o outro: ‘todos os alunos’ tem escopo sobre ‘duas línguas’, o que nos dá a seguinte paráfrase:

(19) Todos os alunos são tais que eles falam duas línguas.

O karitiana é uma das muitas (por volta de 150) línguas indígenas faladas

no Brasil.

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Capítulo 07Quantificação

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Graficamente, temos dois conjuntos em interação, só temos cer-teza de que o conjunto dos alunos deve ser esgotado de tal forma que cada um dos elementos se relacione com dois indivíduos do conjunto das línguas. O problema é que há várias maneiras de isso ocorrer, como exemplificado nas duas situações a seguir:

Situação 1:

Situação 2:

Berenice

JúliaInglês

Berenice

Júlia

InglêsAlemão

Karitiana

Irlandês

Ricardo

Ricardo GregoJaponês

Mas, por que isso não ocorre com (18)? Por que (18) só permite uma leitura? Porque em (18) o sintagma quantificado ‘duas línguas’ já se moveu para uma posição em que ele tem escopo sobre o sintagma quantificado ‘todos os alunos’. Logo, a sentença em (18) só pode ser pa-rafraseada por:

(20) Duas línguas são tais que todos os alunos falam elas.

Com isso, exclui-se o segundo cenário.

Considere agora a seguinte sentença:

(21) Todos os alunos da sala compraram um presente para o pro-fessor.

Você deve se lembrar que há movimento na sintaxe, certo?

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Você já deve estar preparado(a) para se deparar com uma ambigui-dade, certo? Claro que sim. Em (21) temos dois sintagmas quantifica-dos: ‘um presente’ e ‘todos os alunos da sala’; logo, temos dois operado-res, e um pode ter escopo sobre o outro. Que interpretações temos da sentença em (21)?

(22) Para todos os alunos é verdade que cada um deles comprou um presente para o professor.

(23) Um presente é tal que todos os alunos compraram ele para o professor.

Dizemos que em (22) temos uma leitura distributiva, porque dis-tribuímos entre os conjuntos. Em (23), temos a chamada leitura de es-copo invertido, precisamente ela ocorre porque houve uma inversão do escopo: ‘um presente’ passa a ter escopo sobre toda a sentença.

7.4 Considerações finais

A quantificação é um fenômeno pervasivo nas línguas naturais. Ela ocorre não apenas no sintagma nominal, mas também no verbal e, como veremos no Capítulo 10, na modalidade. Neste Capítulo, mostramos o seu funcionamento atentando para o sintagma nominal. Mostramos que um quantificador estabelece uma relação entre conjuntos dados pelos predicados que compõem uma sentença com quantificação. Em ‘Alguns alunos foram mal na prova’, ‘alguns’ é o quantificador que indica que a intersecção entre o conjunto dos ‘alunos’ e o dos que ‘foram mal na prova’, e deve ser maior do que ‘um’, ou seja, para que essa sentença seja verdadeira é preciso ter pelo menos dois indivíduos que são alunos e que foram mal na prova.

Também mostramos que os quantificadores interagem com outros operadores que estejam presentes na sentença, gerando ambiguidades. Para poder apresentar essas interações que geram ambiguidade, vol-tamos à noção de escopo, apresentado no Capítulo 6. Ainda sobre os quantificadores, esse é, em nosso entender, o capítulo que pode propor-cionar uma conversa com o professor de Matemática.

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Capítulo 08Comparação (ou as semânticas das sentenças comparativas)

103

Comparação (ou a semântica das sentenças comparativas)

Você vai conhecer a semântica das sentenças comparativas canônicas no

português brasileiro. Serão apresentadas as principais formas de se construir

sentenças comparativas.

Orações comparativas são estruturas amplamente presentes nas línguas naturais. Neste Capítulo, vamos aprender um pouco sobre a se-mântica de algumas delas. Adentrar em sua complexidade estrutural e semântica é um dos caminhos para entendermos como os falantes do português brasileiro constroem significados. Na tirinha vista anterior-mente, temos uma sentença comparativa: ‘garotas têm bumbum mais delicado’. Pense no seguinte problema: ela expressa uma proposição completa ou está faltando algo? Que estado de mundo torna essa frase verdadeira? Muito do que será discutido aqui e muito do trabalho do semanticista preocupado com o estudo das sentenças comparativas é determinar duas coisas: o que está elidido nessas sentenças e quais são as condições de verdade que podem ser atribuídas a elas.

Elisão: é um processo linguístico pelo qual são apagadas expres-

sões de uma oração complexa. Apesar de não pronunciadas, essas

expressões podem ser recuperadas dentro da estrutura sintática e

na interpretação semântica. Vejamos um exemplo. Em (ii) podemos

recuperar o que não foi pronunciado em (i):

8

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Semântica

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(i) João comprou um carro e Maria também.

(ii) João comprou um carro e Maria também (comprou um carro).

Assim, dizemos que o constituinte entre parênteses em (ii) foi elidi-

do ou apagado, mas está presente na interpretação.

Veremos que as nossas gramáticas escolares descreveram e enten-deram apenas alguns dos aspectos da comparação. Já de início desco-brimos que comparações, como a da tirinha, possuem muito conteúdo que não pronunciamos, que está elidido, mas que, em nível semântico, está presente.

Como você viu no Capítulo 2, a semântica entende que o signifi-cado das sentenças das línguas naturais é resultado do significado das partes e do modo como elas se combinam, o princípio de composicio-nalidade. Nesse modelo, predicados são funções (no sentido matemá-tico). Com isso em mente, vamos à pergunta fundamental que segue do princípio de composicionalidade: como calculamos o significado de uma sentença comparativa a partir do significado das partes? E, claro, quais são as suas partes?

A primeira parte deste Capítulo apresenta algumas formas de cons-truir sentenças comparativas e discute o que aprendemos sobre esse tipo de oração nas gramáticas escolares. Na segunda Seção, entraremos na discussão propriamente semântica, tentando entender e tornar explícito o conhecimento intuitivo que temos enquanto falantes do português. E, como você já deve ter aprendido, essa tarefa se faz tentando mostrar que situações no mundo fazem uma sentença comparativa ser verdadeira.

8.1 A gramática da comparação

Como início, recordemos três aspectos que as gramáticas nos ensi-nam sobre a comparação.

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Capítulo 08Comparação (ou as semânticas das sentenças comparativas)

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8.1.1 Os graus do adjetivo

A primeira característica apresentada pelas gramáticas é que um dos graus do adjetivo é o comparativo. Temos outros como o superlati-vo, o equativo e o positivo. Vejamos os exemplos respectivos:

(1) João é mais/menos alto do que Pedro. (comparativo)

(2) João é o mais alto dos seus irmãos. (superlativo)

(3) João é tão alto quanto seu pai. (equativo)

(4) João é alto. (positivo)

Grau: o grau na tradição gramatical e linguística é a propriedade

que certas palavras e expressões possuem de ser modificadas por

expressões do tipo ‘muito’, ‘pouco’, e por aparecerem em construções

comparativas e superlativas. Cognitivamente, é uma forma que as

línguas humanas têm de relativizar certas propriedades que podem

variar conforme o contexto.

Aqui não trataremos das sentenças superlativas. Outro tipo de comparação sobre a qual nada falaremos é a do tipo como esta em (5):

(5) João come como um porco.

Em certo sentido, ela é uma comparação, em sentido lato, mas de cunho metafórico. Seu estudo se insere dentro da metáfora e, portanto, estará fora do escopo deste Capítulo.

Nosso principal foco serão as comparativas, como em (1), as equa-tivas, como em (3), e a sua relação com a forma positiva, como em (4).

As gramáticas também nos ensinam que, para construir uma sen-tença comparativa em português, devemos antepor os elementos com-parativos (mais, menos, tão, tanto) ao adjetivo, e, depois do adjetivo, a expressão ‘do que’ para os dois primeiros, e ‘quanto’ para os dois últimos:

(6) NP é mais/menos Adjetivo do que NP. (comparativo)

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(7) NP é tão/tanto Adjetivo quanto NP. (equativo)

Acontece que o português não é tão bem comportado assim. Expe-rimente fazer uma busca na internete com o Google, digitando “mais”, “menos” ou “tão”. Você irá se deparar com um zilhão de dados. Para poupar o seu trabalho, escolhemos alguns casos de sentenças compara-tivas que fogem ao padrão acima:

(8) João correu mais rápido do que Carlos.

(9) Carlinhos comeu mais do que bebeu na festa.

(10) Mais professores do que alunos foram à festa.

O que estamos comparando nessas sentenças? No que elas diferem de uma comparação com adjetivos como o nosso exemplo em (1)? A conclusão a que você deve chegar é: além dos adjetivos, outras classes de palavras e constituintes sentenciais podem participar de comparações. Em (8) comparamos por meio de um advérbio, ‘rápido’, em (9) por meio de dois verbos, ‘comeu’ e ‘bebeu’, e em (10) por meio de dois sintagmas nominais, ‘professores’ e ‘alunos’.

A questão que um linguista deve se perguntar frente a esses dados é: a

comparação é a expressão do grau de verbos e nomes, da mesma forma

que é para os adjetivos e advérbios? Aposto que você não tinha pensa-

do nisso, certo? Afinal de contas, o que os gramáticos estavam intuindo

quando nos disseram que adjetivos e advérbios possuem graus? Uma

das nossas tarefas será tentar dar uma resposta a essa pergunta. Mas, an-

tes, vamos a outro aspecto da gramática das sentenças comparativas.

8.1.2 Os elementos comparativos são advérbios?

O segundo aspecto é se os elementos comparativos são advérbios.

Como podemos saber se certas palavras ou sintagmas pertencem à mesma classe? Que tipo de evidência ou argumentos podemos trazer para dizer que ‘mais’, ‘menos’ e ‘tão’ pertencem à classe dos advérbios?

O problema de responder a essa questão é definir o que são advérbios.

Veja melhor esse conceito em: MIOTO, C. Sintaxe do português. Florianópolis:

LLV/CCE/UFSC, 2009.

Como você deve se lem-brar, os advérbios modifi-

cam o verbo, o adjetivo e o próprio advérbio. Morfolo-

gicamente não apresentam concordância de número

ou gênero, e isso está cor-reto em certa medida, mas iremos olhar essa questão

com cuidado.

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Capítulo 08Comparação (ou as semânticas das sentenças comparativas)

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Essa classe engloba um conjunto muito distinto de expressões, cuja carac-terística essencial é modificar verbos, daí o nome ad (= junto) + verbo.

Apenas para citar dois trabalhos, os pesquisadores Rodolfo Ilari (ILARI et al., 1996) e Marcio Renato Guimarães (GUIMARÃES, 2007) coletaram a analisaram a ocorrência e distribuição de uma série de dados de fala e dados coletados em buscas na internete. O(a) leitor(a) interessado(a) vai se surpreender com a variedade de comportamen-tos que os diferentes advérbios possuem. Para Mario A. Perini (2004), a questão que começa seu Capítulo sobre advérbios da sua Gramática Descritiva é “existe uma classe de advérbios?”.

Deixando de lado a complexa discussão sobre os advérbios, vol-temos aos exemplos de sentenças comparativas, como (11), na qual os advérbios sublinhados modificam um verbo, ‘correr’:

(11) O João correu muito/bastante/mais/pra caramba.

Mas, também os mesmos advérbios, quando como em (12), podem modificar adjetivos:

(12) O carro está todo/completamente/mais sujo pra burro.

E substantivos:

(13) a. Muita/bastante gente estava na festa.

b. Gente pra burro foi naquela festa.

E mesmo outros advérbios:

(14) a. Muito mais gente veio na festa.

b. O João corre muito mais rápido do que você.

A conclusão é a de que elementos como ‘mais’ e ‘menos’ podem ser considerados advérbios porque são modificados por outros advérbios e aparecem em posições na oração que são típicas de advérbios. Entretan-to, eles são diferentes dos demais. Veja o seguinte contraste:

(15) a. *João é mais alto de Pedro.

b. * João é menos alto quanto Pedro.

c. * João é muito/bastante alto do que Pedro.

d. * João é tão alto do que Pedro.

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O que há de errado com (15)? Lembrar uma regra das gramáti-cas não vai ajudar. Pense: por que os falantes da língua portuguesa não produzem sentenças como essas? Os elementos comparativos são, na verdade, palavras de um tipo especial, não podem aparecer sozinhas:

(16) a. NP é mais/menos Adjetivo do que NP.

b. NP é tão/tanto Adjetivo quanto NP.

Nesse sentido, eles diferem, por exemplo, de “muito” e “bastante”, que podem aparecer sozinhos. O que nos leva para outra assunção feita pelas gramáticas.

8.1.3 As orações comparativas são um exemplo

de subordinação.

O terceiro aspecto é que o nexo sintático que temos em uma oração comparativa é a subordinação, ou seja, ‘Pedro’ está subordinado à ora-ção principal ‘João é mais alto do que Pedro’, e a expressão ‘mais do que’ é analisada como o elemento que relaciona as duas orações. Podemos representar isso da seguinte forma:

(17) [João é alto] [mais do que] [Pedro é alto].

Como estamos estudando semântica, não entraremos em questões sintáticas aqui. Claro, como você já deve ter aprendido, a interpretação semântica é feita a partir de uma estrutura sintática, de outra forma, não há o que ser interpretado.

Subordinação: é uma forma de se unir duas sentenças simples,

em que há uma relação de dependência (causa, consequência etc.)

entre elas. (i) e (ii) não são sentenças bem formadas no PB porque

precisam de um complemento, outra oração para então expressa-

rem uma oração completa.

(i) * João fugiu porque.

(ii) * Carlos duvida que.

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Capítulo 08Comparação (ou as semânticas das sentenças comparativas)

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Vamos resumir o que vimos até aqui:

Podemos comparar adjetivos, advérbios, substantivos (nomes), a) verbos e sintagmas preposicionados, e não é trivial dizer que a comparação é a expressão do grau dessas categorias;

Também não é tão simples dizer que as palavras que usamos b) para expressar comparação pertencem à classe dos advérbios; se são realmente advérbios, são diferentes dos demais;

Vamos entender que temos uma subordinação quando temos c) uma sentença comparativa. Nosso próximo passo será enten-der como essas características nos ajudam a interpretar esse tipo de oração.

8.2 Interpretando as orações comparativas

Como vimos, as orações comparativas são mais complexas do que as nossas gramáticas escolares nos apresentam. A maneira canônica de se estabelecer uma comparação na língua portuguesa pode ser exempli-ficada através de alguns dos exemplos que vimos anteriormente, pelos quais se comparam adjetivos, advérbios e verbos.

Vamos nos concentrar primeiro no caso mais simples, em (18), uma comparação adjetival de superioridade.

(18) João é mais alto do que Pedro.

Agora vamos imaginar o seguinte cenário. Suponha que nossa linha vertical seja uma régua. Vamos assumir que: Carlos tem 1,80cm; João, 1,75cm; e Pedro, 1,70cm. Nesse cenário (18) é verdadeira ou falsa?

Escala de altura

1,801,751,70

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Semântica

110

Interessantemente, (18) apresenta algumas propriedades curiosas. Será que podemos inferir de (18) que João e Pedro são altos?

(19) a. João é alto.

b. Pedro é alto.

Ou seja, podemos inferir da verdade de (18) pelo cenário anterior, que é verdadeira, que (19a) e (19b) são verdadeiras? Se você estava pen-sando que sim, vamos decepcioná-lo:

(20) João é mais alto do que Pedro, mas ambos são baixos.

O fato de (20) ser uma afirmação que não é estranha e nem contra-ditória é um argumento bastante convincente para dizer que: não! (18) não acarreta (19a) nem (19b). Por que isso acontece? Como podemos explicar que (20) não é uma contradição?

Há uma forma de explicar isso e ela depende essencialmente da semântica que atribuímos para os adjetivos. Acontece que o que conta como alto varia de um contexto para outro: 1,80cm pode ser uma altura normal para alguém ser considerado alto, mas não conta para um joga-dor de basquete ou vôlei. Assim, quando avaliamos a verdade de uma sentença envolvendo um predicado adjetival, levamos em consideração fatores contextuais: o que conta como alto ou baixo no contexto. Será que todos os adjetivos são assim? Veja os exemplos abaixo:

(21) a. Pedro é brasileiro.

b. Maria está grávida.

Como julgamos o valor de verdade dessas orações? Pedro pode ser mais, menos ou muito brasileiro? Maria pode estar mais, menos ou muito grávida? Aparentemente não.

Agora olhe os pares abaixo. Compare com o adjetivo pátrio “brasi-leiro” e o adjetivo “grávida”: será que eles têm um par?

(22) a. alto/baixo;

b. gordo/magro;

c. inteligente/estúpido.

Reveja no Capítulo 2 a no-ção de acarretamento!

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Capítulo 08Comparação (ou as semânticas das sentenças comparativas)

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(23) a. brasileiro/???

b. grávida/???

Se você pensou em “não brasileiro” ou “não grávida” verá que essas expressões não funcionam como pares por dois motivos: (1) são expres-sões, ou seja, não são palavras; (2) tentar dizer algo como (24a) ou (24b) é claramente contraditório:

(24) a. # João é mais brasileiro que Pedro, mas João não é bra sileiro.

b. # Maria está mais grávida do que Paula, mas não está grávida.

Problema que não ocorre com ‘alto’, como mostra (19).

Então: qual a diferença entre os predicados em (22) e (23)? O fato desses predicados terem pares nos diz o que sobre sua semântica?

Vamos retomar o exemplo em (18). Numa primeira aproximação, pode-se pensar que predicados adjetivais são conjuntos. Mas, se for as-sim, então temos que traduzir (19a) por ‘João pertence ao conjunto dos altos’ e essa tradução não permite explicarmos nem (20) nem o fato de que ‘alto’ é dado contextualmente. Mas, será que essa é uma forma viável para representar o que esses predicados significam nas sentenças com-parativas? Vamos tentar. Vamos representar (19a) como (25) a seguir, assumindo que ‘mais’ pode ser representado pelo símbolo ‘>’ (maior do que), isto é, seu significado é a relação matemática.

(25) João ∈ {indivíduos altos} > Pedro ∈ {indivíduos altos}.

Observe que (25) pode ser lida como: ‘João pertence ao conjunto dos indivíduos altos é maior do que Pedro pertence ao conjunto dos indivíduos altos’. Será que esse é o significado de (18)? Não parece plau-sível que seja. Assim, temos mais um problema com essa forma de re-presentação: ela não dá conta da semântica das comparativas.

Uma forma de interpretar sentenças com predicados adjetivais é dizer que (19a) significa:

(26) João possui um grau de altura (que conta como alto no contex-to de proferimento).

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A altura de João no nosso cenário em questão é 1,75cm. Isso pode contar como alto se temos em conta a altura de Pedro, ou a média da altura dos anões, mas não conta como alto se contamos a altura dos jogadores de vôlei. Precisamos explicar por que um indivíduo pode ser alto num contexto e baixo em outro (sem que sua altura mude! Afinal, não vivemos no País das Maravilhas).

Veja a escala a seguir. Ela representa uma escala de altura, mas ago-ra ela está na horizontal.

(27)

Altura

Pedro João Carlos

Vamos criar um contexto e estipular que, pelas alturas que estabele-cemos para os nossos personagens, só Carlos conta como alto a partir de agora. João e Pedro são baixos. Podemos representar isso graficamente como em (28), usando a mesma escala:

(28)

Altura

Pedro

baixo alto

João Carlos

Assim, de acordo com (28), é verdadeiro afirmar:

(29) João e Pedro são mais baixos do que Carlos.

(30) Carlos é mais alto do que João e Pedro.

Assim, perceba que (28) é uma forma de representar que: intuitiva-mente, quando estamos fazendo uma comparação usando predicados ad-jetivais, estamos operando sobre uma escala. Isso nos possibilita explicar por que (29) e (30) são sinônimas. Afinal, elas representam a mesma escala, mas expressa de formas distintas. Quando fazemos afirmações comparati-vas, o que temos é uma operação sobre uma escala. Em (28), foca-se sobre a parte da escala que inclui os indivíduos baixos. Podemos alterar o contex-to e dizer que Carlos agora também é baixo, como representado em (31):

(31)

Altura

Pedro

baixo

João Carlos

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Capítulo 08Comparação (ou as semânticas das sentenças comparativas)

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A conclusão que podemos tirar é: não importa o adjetivo que usa-mos: seja baixo ou seja alto, o real significado desse tipo de sentença é a parte que ficou fora dos parênteses em (26), retomada em (32):

(32) João possui um grau de altura.

Conforme operamos sobre o contexto, ou melhor, sobre a escala de altura, dizemos que esse grau é o que conta como alto, ou o que conta como baixo. Tudo depende do modo como operamos sobre a escala. Se eu digo ‘João é baixo’ estou colocando, a partir de dados contextuais, João no trecho baixo da escala de altura – ver (33) -; se digo ‘João é alto’, estou colocando ele no trecho alto (34), também levando em considera-ção um padrão contextualmente dado:

(33)Altura

baixo alto

João

(34)Altura

baixo alto

João

Já que não podemos fazer como Alice no País das Maravilhas, não podemos mudar a altura de algo dizendo desse algo se ele é baixo ou alto, o que fazemos é mover o padrão contextual: o que se move na escala não é a altura, é onde começa e termina o que conta como baixo e o que conta como alto.

Se (32) expressa o significado das sentenças com predicados adje-tivais, então ela deverá acomodar a nossa interpretação das sentenças comparativas. Veja que é esse o caso em (35):

(35) a. João é mais alto do que Pedro.

b. [João possui um grau de altura] > [Pedro possui um grau de altura].

Assim, lemos (35b) como: o grau de altura que João possui é maior do que o grau de altura que Pedro possui. Agora temos uma explicação

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simples e elegante para as duas ocorrências dos predicados adjetivais que estudamos aqui: nas sentenças simples e nas sentenças compara-tivas. Além disso, explicamos porque (35) não acarreta que nem João nem Pedro são altos, e assim também explicamos a sentença em (20).

Você consegue imaginar uma generalização importante que pode ser tirada disso? Os outros adjetivos que formam pares (gordo/magro; caro/barato, longe/perto etc.) também possuem uma escala: peso, preço, dis-tância etc. E a semântica atribuída a ‘alto’ pode ser aplicada a todos eles.

Outra consequência é a de que, toda vez que interpretamos uma sentença comparativa, interpretamos também elementos que não pro-nunciamos, elementos elididos. A estrutura das sentenças comparativas sempre vai envolver elisão de algum elemento (aqui representado pelas expressões tachadas):

(36) a. João é mais alto do que Pedro é alto.

b. Carlos é mais gordo que sua mãe é gorda.

c. Maria é tão bonita quanto sua mãe é bonita.

Outra conclusão é a de que as sentenças positivas são na verdade sentenças comparativas, com o padrão de comparação apagado, dado apenas contextualmente.

Agora estamos em posição de responder a pergunta: o que é o grau dos adjetivos? Se o significado de ‘João é alto’ é ‘João tem um grau de altura’, podemos concluir que o grau é a altura de João. Se digo algo do tipo ‘João é muito alto’, estou modificando o grau da altura de João e dizendo que a altura dele é em um certo sentido muito, ou em outros termos, excede o que se considera como padrão de alto. Evidentemente temos escalas para as quais não é claro qual seja a representação desse grau: inteligência, beleza etc. Excluindo-se as escalas para as quais cons-truímos sistemas de medida (preço, peso, distância ou temperatura), to-das as outras envolvem sistemas abstratos de medida.

8.3 Considerações finais

Você provavelmente terá se surpreendido com a quantidade de in-formação que esse Capítulo trouxe. A semântica trata de compreender

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Capítulo 08Comparação (ou as semânticas das sentenças comparativas)

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como combinamos palavras e sintagmas em forma de orações, e como atribuímos significados para essas orações. Estudar a semântica das sen-tenças comparativas é tentar capturar o que permanece igual em todas as ocorrências de expressões como ‘mais’, ‘menos’, ‘tão’, ‘tanto’, ‘quanto’ etc., quando usadas comparativamente, além da contribuição que os ou-tros elementos dentro da oração trazem para o significado do todo.

Construções comparativas são altamente produtivas e presentes em nosso uso cotidiano da língua. A seguir, (37) e (38) exemplificam como elas podem ser usadas para criar sentidos humorísticos ou poéticos:

(37) “Se Chuck Norris tem dez reais, e você tem dez reais, Chuck Norris tem mais dinheiro do que você.”

(Piada recorrente na internet)

(38) “Caiu das mãos da criada descuidada.

Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!”

(Alvaro de Campos, Apontamento)

Veja que (37) e (38) não fazem sentido: se Chuck e você têm a mes-ma quantidade de dinheiro, como ele pode ter mais? Ou, como algo que se quebra pode se transformar em mais coisas, em mais matéria do que havia nessa coisa? Como diz o poeta, impossível? Sim, e justamente por quebrar a relação ‘maior do que’ é que essas sentenças produzem os efeitos que produzem.

Leia mais!

Se você tiver interesse em se aprofundar mais sobre a quantificação, suge-rimos que leia o capítulo 7 de Chierchia (2003), e também o capítulo 5 de Pires de Oliveira (2005). Para um aprofundamento sobre questões relativas aos sintagmas nominais, sugerimos os textos de Müller (2003) e Wachowicz (2003) em Müller et al. (2003).

Para uma exposição detalhada de como solucionar um problema em se-mântica, aconselhamos a você a leitura de Ilari e Basso (2004). Finalmente, o livro de Ilari (2001) apresenta uma grande quantidade de problemas semân-ticos de maneira clara, e traz também vários exercícios.

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Unidade CIntensionalidade

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Capítulo 09Progressão temporal

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9 Progressão temporalVocê vai conhecer alguns dos mecanismos de coesão e coerência textuais

que são mobilizados durante os estabelecimentos de relações temporais entre

eventos de um texto.

Há muitos anos, estudiosos das línguas têm se feito a seguinte per-gunta: o que faz de um punhado de sentenças um texto? Como é possí-vel saber que certas linhas escritas formam um texto e não simplesmen-te um amontoado de palavras concatenadas?

Vamos ilustrar a problemática por trás dessa questão com um exemplo:

Trecho A

1) Um homem chegou em casa cansado. 2) O dia de trabalho tinha sido muito estafante. 3) Para variar, o trânsito também não ajudava em nada. 4) Se não bastasse isso, quando chegou em casa, percebeu que ha-via esquecido a chave no serviço. 5) O jeito era esperar sua mulher che-gar, e ela só chegava bem mais tarde. 6) E, no meio de tudo isso, a fome apertando. 7) Lembrou que tinha uma chave escondida num vaso, na parte de trás da casa. 8) Agora, o problema era pular o muro. 9) Será que ele ainda conseguia? 10) Já não era mais tão jovem e nem tão seguro.

Trecho B

4) Se não bastasse isso, quando chegou em casa, percebeu que havia esquecido a chave no serviço. 9) Será que ele ainda conseguia? 1) Um homem chegou em casa cansado. 6) E, no meio de tudo isso, a fome apertando. 10) Já não era mais tão jovem e nem tão seguro. 7) Lembrou que tinha uma chave escondida num vaso, na parte de trás da casa. 2) O dia de trabalho tinha sido muito estafante. 3) Para variar, o trânsito tam-bém não ajudava em nada. 8) Agora, o problema era pular o muro. 5) O jeito era esperar sua mulher chegar, e ela só chegava bem mais tarde.

As sentenças que compõem o Trecho A e o Trecho B são exata-mente idênticas, como mostra a numeração; porém, só reconhecemos um texto – no caso, uma narrativa – no trecho A, e isso é mais uma propriedade das nossas capacidades linguísticas: somos extremamente

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Semântica

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hábeis em reconhecer um texto e em preencher lacunas propositais que ele traz, assim como inferências que ele permite fazer, como veremos mais adiante.

Para que sentenças constituam um texto, é necessário que haja cer-tas relações entre elas, conhecidas pelos termos coerência e coesão. Não é tarefa trivial definir precisamente coerência e coesão, mas as ideias que embasam essas noções são as seguintes:

A coesão textual diz respeito aos elementos gramaticais e lexi-

cais responsáveis por garantir unidade nas diversas sentenças; por

sua vez, a coerência textual diz respeito à concatenação de ideias

e argumentos veiculados pelas diversas sentenças, o que um texto

veicula deve ser minimamente coerente para que o reconheçamos

como tal.

Como exemplos de mecanismos de coesão, podemos pensar em anáfora e catáfora:

(1a) João comeu um sanduíche. Ele estava uma delícia.

(1b) João comeu um sanduíche. Ele estava morrendo de fome.

Na sequência (1a), sabemos que ‘um sanduíche’ e ‘ele’ se referem a uma mesma entidade: o sanduíche comido por João. Por sua vez, sa-bemos que ‘João’ e ‘ele’ se referem a uma mesma entidade na sequência (1b), qual seja, João. Ambas as sequências são exemplos de anáfora. Em uma anáfora há pelo menos dois elementos, o antecedente, que é a en-tidade introduzida no discursivo, e o termo anafórico, que recupera o antecedente. Em (1a), o antecedente é ‘um sanduíche’ e o termo anafó-rico é ‘ele’; em (1b), o antecedente é ‘João’ e o termo anafórico também é ‘ele’.

Em (1b), podíamos muito bem trocar ‘ele’ por ‘João’ no segundo trecho; porém, basta fazermos a troca e a sequência já nos parece um pouco estranha: ‘João comeu um sanduíche. João estava morrendo de fome.’ O mesmo se daria se, ao invés de João, estivéssemos falando de ‘O primeiro presidente eleito por voto popular no Brasil’:

Anáfora é, grosso modo, uma mecanismo através

do qual continuamos a falar de uma mesma

entidade ou referente sem precisar repetir o material

linguístico utilizado para introduzir tal referente no

discurso.

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Capítulo 09Progressão temporal

121

(1b’) O primeiro presidente eleito por voto popular no Brasil co-meu um sanduíche. O primeiro presidente eleito por voto popular no Brasil estava morrendo de fome.

A estranheza de sequência como (1b’) mostra que a anáfora, e os mecanismos de coesão em geral, não são apenas escolhas estilísticas, mas compõem ativamente o texto, desempenhando também um papel cognitivo/processual de grande importância.

A sequência (2) é um exemplo de catáfora. Em linhas bem gerais, catáfora é o contrário da anáfora: na catáfora, introduzimos um prono-me cujo referente só saberemos apenas mais adiante:

(2) Acontece que a donzela – e isso era segredo dela – também tinha seus caprichos.

(Chico Buarque – Geni e o Zeppelin).

Só sabemos a que ‘isso’ se refere depois de computarmos ‘também tinha seus caprichos’, e então sabemos que o que era segredo dela era ela ter seus caprichos... complicado? Pode até parecer, mas ao ler o trecho (2) não temos nenhuma dificuldade de compreensão: mais uma prova do papel cognitivo/processual dos mecanismos de coesão.

9.1 Referência temporal e progressão temporal

Tomemos os exemplos abaixo:

(3) João caiu de bicicleta (ontem);

(4) João vai viajar (amanhã);

(5) João está dançando (agora).

Sabemos que os eventos reportados por (3), (4) e (5) são, respecti-vamente, passado, futuro e presente. Porém, ser passado, presente ou fu-turo é algo relacional, ou seja, uma coisa não pode ser passado e pronto – tem que ser passado em relação a alguma coisa. Em teoria linguística, o termo relacional por excelência, em função do qual algo é passado, presente ou futuro, é o momento de fala . Vamos ilustrar com o exemplo

O momento de fala é quando a sentença é enunciada ou pronunciada.

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Semântica

122

(3): o evento de João cair de bicicleta é passado, mas passado em relação ao quê? Ora, pelo menos em relação ao momento em que falamos ou nos reportamos a esse evento: se digo (3), então, necessariamente, ele caiu antes de eu falar que ele caiu. Assim sendo, o evento de João cair de bicicleta, se passado, o é em relação ao momento de fala. Um raciocínio semelhante se dá em relação aos exemplos (4) e (5): em (4), a viagem de João ocorre depois de eu falar dela; e em (5) João dança enquanto eu falo que ele dança. É possível, pois, localizarmos esses eventos numa linha de tempo, tendo como ponto de ancoragem o momento de fala:

João caiu da bicicleta João está dançando João vai viajar

Para representar a referência temporal dos eventos, ou seja, se eles

acontecem antes, durante ou depois do momento de fala, os lin-

guistas usam a seguinte notação:

F = momento de fala;

E = momento do evento;

< = antes;

, = simultâneo.

As sentenças de (6) a (8) têm a seguinte representação:

(6) João caiu de bicicleta (ontem). → E < F

(7) João vai viajar (amanhã). → F < E

(8) João está dançando (agora). F, E

A progressão temporal lidará com um ou mais eventos e investiga-rá como se estabelece a ordem de acontecimento entre eles, com relação ao momento de fala. Como sempre, vejamos os exemplos:

(9) João caiu porque escorregou na casca de banana.

(10) João escorregou na casca de banana porque caiu.

Além de sabermos que os eventos em (9) são todos passados (an-teriores ao momento de fala), sabemos que eles estão relacionados tem-

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Capítulo 09Progressão temporal

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poralmente, ou seja, a ordem em que ocorrem é importante, e sabemos também qual ordem é essa: primeiro João escorregou na casca de banana e depois caiu. Assim, (9) exemplifica uma relação de coerência textual bastante comum, que é a relação de causa e efeito: João caiu porque es-corregou na casca de banana, a causa da queda de João foi ele ter escorre-gado na casca de banana, e é por isso que primeiro ele escorrega e depois ele cai. Essa relação é tão forte que o exemplo (10), na qual ela é invertida, apesar de relatar uma situação possível – aquela na qual João primeiro cai e depois escorrega na casca de banana –, é ligeiramente estranha.

Desta forma, (9) e (10) exemplificam fenômenos de progressão temporal, e é aos mecanismos de progressão temporal que nos voltare-mos agora.

9.2 Mecanismos de progressão temporal

No caso dos exemplos (9) e (10), podemos argumentar que é a conjunção ‘porque’ que dá ordenação temporal (o ‘um depois o outro’). Além das conjunções, o próprio tempo verbal (entendido como sua morfologia, ou seja, pretérito perfeito, imperfeito, mais-que-perfeito etc.) nos dá pistas sobre a progressão temporal, sobre a ordem de ocor-rência dos eventos:

(11) João chegou em casa, guardou o carro, trancou a porta e foi para o chuveiro.

(12) João chegava em casa, guardava o carro, trancava a porta e ia para o chuveiro.

Essas sentenças reportam os mesmos tipos de eventos, descritos na mesma ordem, a única diferença entre elas é que em (11) todos os verbos estão no pretérito perfeito, e em (12), no imperfeito.

A interpretação mais plausível que temos para (11) é aquela na qual os eventos ocorreram na mesma ordem em que são descritos. A essa situação – ordem de descrição dos eventos ser a mesma que a de ocor-rência – dá-se o nome de isomorfismo.

Por sua vez, a interpretação mais plausível a ser dada para o exem-plo (12) é aquela de hábito, de repetição de estados de coisas. Para (12),

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Semântica

124

pode até ser o caso que João faça as coisas sempre na ordem indicada, mas isso não é algo necessário. Com (12), mas não com (11), pode ser o caso que João às vezes vá para o chuveiro antes de guardar o carro.

Nossas intuições sobre o papel dos pretéritos perfeito e imperfeito na progressão temporal são bastante fortes, como mostra a combinação desses tempos:

(13) João chegou em casa1, foi direto pra sala2 e se atirou no sofá3. Estava vestindo o uniforme4 e calçando sapatos5 e desse jeito mesmo pegou no sono6.

Os eventos de 1 a 3 apresentam isomorfia. Porém, os eventos 4 e 5, na perífrase progressiva, não parecem acrescentar nada do ponto de vis-ta da progressão temporal. Aliás, perguntas como ‘Quando João vestia o uniforme? Antes de chegar em casa? Depois de se atirar no sofá? En-quanto ia direto para a sala?’ não terão respostas muito precisas, justa-mente porque com a perífrase progressiva ou com o pretérito imperfeito descrevemos o fundo do texto ou da narrativa, e não os acontecimentos. A rigor, João estava vestido e com sapatos o tempo todo e não faz senti-do nos perguntarmos quando isso aconteceu em meio aos eventos nar-rados. Por sua vez, o evento 6 claramente aconteceu depois do evento 3, ou seja, voltamos ao isomorfismo suspenso durante os eventos 4 e 5.

Desses poucos exemplos podemos tirar algumas conclusões. Pode-mos argumentar que pretéritos imperfeitos e perífrases progressivas não indicam progressão temporal, mas sim formam o fundo no qual ocor-rerá a progressão temporal levada a cabo pelo uso do pretérito perfeito. Vejamos o seguinte trecho, de Luis Fernando Veríssimo:

[Estavam na casa de campo, ele e a mulher. Iam todos os fins-de-semana.

Era uma casa grande, rústica, copiada de revista americana, e afastada

de tudo. Não tinha telefone. O telefone mais próximo ficava a sete quilô-

metros. O vizinho mais próximo ficava a cinco. Eles estavam sozinhos. A

mulher só ia para acompanhá-lo. Não gostava da casa de campo. Tinha

de cozinhar com lenha enquanto ele ficava mexendo no jardim, cortan-

do a grama, capinando, plantando.] {Foi da janela da cozinha que ela viu

ele ficar subitamente teso e largar a enxada, como se a enxada tivesse

lhe dado um choque. Ela correu para a porta da cozinha e gritou.} (VE-

RÍSSIMO, 1982, adaptado).

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Capítulo 09Progressão temporal

125

O trecho entre colchetes está todo no pretérito imperfeito, e com-põe o fundo no qual se desenrolará a narrativa, não tendo internamente nenhuma ordem. Prova disso é a reescritura do mesmo trecho como abaixo:

[Eles estavam sozinhos. A mulher só ia para acompanhá-lo. Não gostava

da casa de campo. Tinha de cozinhar com lenha enquanto ele ficava

mexendo no jardim, cortando a grama, capinando, plantando. Estavam

na casa de campo, ele e a mulher. Não tinha telefone. O telefone mais

próximo ficava a sete quilômetros. O vizinho mais próximo ficava a cinco.

Era uma casa grande, rústica, copiada de revista americana, e afastada

de tudo. Iam todos os fins-de-semana.] {Foi da janela da cozinha que ela

viu ele ficar subitamente teso e largar a enxada, como se a enxada tives-

se lhe dado um choque. Ela correu para a porta da cozinha e gritou.}

Variações estilísticas à parte, as duas versões do trecho entre col-chetes dão a mesma contribuição, e nada dizem do ponto de vista da progressão temporal. Por sua vez, o trecho entre chaves é isomórfico, e mudar sua ordem significa mudar a sequência de eventos na narrativa; senão vejamos:

Original = {Foi da janela da cozinha que ela viu ele ficar subita-mente teso e largar a enxada, como se a enxada tivesse lhe dado um choque. Ela correu para a porta da cozinha e gritou.}

Reescrito = {Ela correu para a porta da cozinha e gritou. Foi da janela da cozinha que ela viu ele ficar subitamente teso e largar a enxada, como se a enxada tivesse lhe dado um choque.}

Obviamente, conseguimos entender e dar sentido ao trecho rees-cristo. O que importa notar é que a ordem dos eventos em relação ao original é diferente.

Desse modo, podemos também argumentar que, assim como os pretéritos imperfeitos indicarão o fundo conversacional e a suspensão do desenvolvimento da narrativa, os pretéritos perfeitos sempre indica-rão isomorfismo. Contudo, isso não é verdade.

Voltando ao exemplo (9), que traz dois pretéritos perfeitos encade-ados, vemos claramente que não temos isomorfismo: o evento de cair é descrito antes do evento de escorregar na banana, mas, como sabemos

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Semântica

126

que João caiu porque escorregou, o evento de cair acontece depois do evento de escorregar, quebrando assim a isomorfia entre a ordem de descrição e de ocorrência. O exemplo (10) também não é isomórfico. A razão para tanto parece estar na conjunção ‘porque’. De fato, podemos argumentar que quando temos dois eventos relacionados por ‘porque’, sempre teremos uma quebra de isomorfismo, e o primeiro evento des-crito ocorre sempre depois do segundo evento descrito.

Isso nos leva imediatamente a um segundo mecanismo de progres-são temporal, que chamaremos genericamente de “conjunções”:

(14) João caiu e escorregou na casca de banana.

(15) João escorregou na casca de banana e caiu.

(16) João caiu, depois escorregou na casca de banana.

(17) João escorregou na casca de banana, depois caiu.

(18) João caiu, mas antes ele escorregou na casca de banana.

(19) João escorregou na casca de banana, mas antes ele caiu.

(20) João caiu quando escorregou na casca de banana.

(21) João escorregou na casca de banana quando caiu.

Se usarmos ED1 para nos referir ao primeiro evento descrito, ED2 para o segundo, EO1 para o primeiro evento que ocorre, e EO2 para o segundo, veremos que numa relação de isomorfismo ED1=EO1 e ED2=EO2; com essa mesma notação, podemos analisar o papel das conjunções.

Como vimos, a relação expressa por ‘porque’ é ED1=EO2 e ED2=EO1; por sua vez, a relação expressa por ‘e’ é ED1=EO1 e ED2=EO2.

9.3 Regras-padrão e outras

Vimos três mecanismos de progressão temporal: o tempo verbal, exemplificado pelos papéis dos pretéritos perfeito e imperfeito; o que chamamos de “conjunções”, representados por itens como ‘porque’, ‘de-

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Capítulo 09Progressão temporal

127

pois’, ‘e’ etc.; e nosso conhecimento de mundo, que pode estabelecer cer-tas relações entre eventos que impõem ordem à sua ocorrência.

A nossa habilidade de reconhecer textos em sentenças justapostas leva em conta que podemos estabelecer ordem de ocorrência entre os eventos reportados por essas. Eventos que não têm relação alguma, nem mesmo temporal, não podem compor um texto – mesmo que se trate de poesias, por exemplo, há sempre um fio que conduz o que está sendo des-crito. Assim sendo, diante de tal habilidade tão especializada e também tão geral, porque a aplicamos para qualquer amontoado de sentenças, podemos imaginar que, ainda que inconscientemente, sigamos certas re-gras ao estabelecer as relações entre os diversos eventos reportados.

Do ponto de vista da referência e progressão temporal, podemos pensar em regras-padrão e regras que entram em uso quando essas regras-padrão não funcionam. Se tomamos a morfologia do verbo (as forma dos pretéritos perfeito, imperfeito e a perífrase progressiva) como indicadores de relações de progressão temporal, podemos chegar às se-guintes regras-padrão:

Regra de Progressão (RP): dois pretéritos perfeitos apresentam

isomorfismo (ou seja, a ordem em que os eventos são descritos é a

mesma ordem em que ocorrem).

Regra da Narração (RN): pretéritos imperfeitos e progressivos

não apresentam progressão temporal, mas formam o fundo da pro-

gressão.

Contudo, quando usamos o que viemos chamando de “conjunções”, a regra-padrão não funciona e o que está valendo é a relação estabelecida pela “conjunção” em questão, que varia de uma para outra: lembramos que o ‘porque’ pode ser descrito pela relação ED1=EO2 e ED2=EO1 e o ‘e’ pela relação ED1=EO1 e ED2=EO2.

Além das “conjunções”, vimos que a isomorfia também pode ser quebrada pelo nosso conhecimento de mundo, através do qual estabe-

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Semântica

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lecemos relações que não são transparentes nem por conectivos nem pelos tempos verbais. Em geral, tais relações são de causa e efeito, mas também podem ser de explicação, consequência, dentre outros tipos. Por trás dessas relações estabelecidas pelo nosso conhecimento de mun-do, podemos identificar a atuação de alguma “conjunção” não pronun-ciada. Tomemos o exemplo abaixo:

(22) João entrou na faculdade1. Resolveu fazer botânica2.

Qual é a ordem dos eventos descritos em (22)? Há ou não isomor-fia? Não é claro: pode ser que João tenha entrado na universidade e en-tão tenha resolvido fazer botânica – e aqui temos uma interpretação isomórfica; ou pode ser que ele tenha, por um motivo qualquer, resol-vido fazer botânica, por isso entrou na universidade – interpretação não isomórfica. De uma forma ou de outra, sabemos que há uma ordenação nos eventos descritos em (22) e, a depender do contexto amplo, sabere-mos claramente se ela é ou não isomórfica.

9.4 Considerações finais

A progressão temporal, como vimos neste Capítulo, é um recurso extremamente importante para a confecção de textos, pois dá ordem ou encadeamento aos eventos veiculados por um texto. Sem a progressão temporal, não haveria narrativa, apenas eventos espalhados no tempo.

Além de sua importância textual, a progressão temporal também exemplifica de maneira particularmente clara como podemos capturar nossas intuições sobre os eventos de um texto através de regras explíci-tas que interagem entre si. Vem daí a ideia de regras-padrão e de regras que “tem mais força” que as regras-padrão. Pudemos ver também como as “conjunções” – que são, em geral, tomadas como termos que unem sentenças ou orações – desempenham um papel de relevo na progres-são temporal.

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Capítulo 10Modalidade – os auxiliares modais

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10 Modalidade – os auxiliares modaisVocê terá uma compreensão sobre a ideia de mundos possíveis e uma

breve análise dos auxiliares modais no PB.

10.1 Introdução

Em nossas interações diárias não falamos apenas sobre aquilo que nos é imediato (as coisas e pessoas que nos cercam, a situação em que efetivamente estamos, o momento e o lugar em que estamos etc.), nem mesmo apenas sobre o mundo em que estamos; falamos sobre tempos que ainda não vivemos, momentos que já se foram, sobre o que seria, sobre mundos que não são o nosso, mundos em que Papai Noel existe, mundos em que seríamos ricos, ou poderosos:

(1) Ah se eu ganhasse na loto...

(2) Eu bem que podia estar na praia...

(3) Talvez o João esteja em casa.

(4) “Estas histórias do psicanalista de Bagé são provavelmente apó-crifas (como diria o próprio analista de Bagé, história apócrifa é mentira bem educada)” (Luis Fernando Veríssimo, O Analis-ta de Bagé).

Todos nós já ouvimos falar do Analista de Bagé, sabemos que ele é de Bagé, é analista, e muito mais, mas ele de fato não existe ou só existe enquanto personagem de ficção.

Falamos sobre o que pode ser, sobre o que poderia ser o caso, mas não é; sobre o que deveria ser; sobre o que nunca poderia ser; sobre o que nunca deveria ser. Através da linguagem nos movimentamos em ou-tras dimensões (outros espaços, outros tempos, outros mundos). Neste Capítulo, vamos ver com mais detalhe um dos mecanismos linguísticos para nos deslocarmos na dimensão do possível, os auxiliares modais, exemplificados aqui:

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Semântica

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(5) Ele pode ser solteiro;

(6) Ele podia ser solteiro;

(7) Ele deve ser solteiro;

(8) Ele deveria ser solteiro;

(9) Ele não pode ser solteiro;

(10) Ele tem que ser solteiro.

Note que nesses vários exemplos nos deslocamos para além da si-tuação “real” em que o falante se encontra, para falarmos sobre possibi-lidades e necessidades. A modalidade trata das diferentes maneiras de falarmos sobre o possível e o necessário. Semanticamente, o possível e o necessário são operadores que, no PB, se manifestam nos chamados auxiliares modais, como ‘poder’ e ‘dever’, mas também em advérbios como ‘possivelmente’, ‘necessariamente’, em adjetivos como ‘possível’, em expressões do tipo ‘é necessário que’, ‘é preciso que’. Também alguns morfemas são modalizadores, por exemplo, ‘-vel’ em ‘lavável’, que signi-fica ser possível de se lavar. Cada um desses mecanismos demanda um estudo à parte, o que vai mais uma vez além dos nossos objetivos. Como já dissemos, neste Capítulo vamos nos concentrar nos auxiliares mo-dais. Antes, porém, um pequeno parêntese sobre sentenças condicio-nais, que são modalizadas por natureza, já que estabelecem hipóteses.

Embora possa parecer muito estranho, ao menos numa primeira

aproximação, as sentenças condicionais são consideradas modais –

afinal, elas tratam de situações hipotéticas. De fato, uma sentença

condicional apresenta uma possibilidade como em:

(i) Se João vier, eu não venho.

Note que em (i) não se está falando sobre uma situação real, mas so-

bre uma situação hipotética, sobre uma possibilidade de arranjo do

mundo. A sentença em (i) é um exemplo de condicional indicativo,

porque na sentença principal, ‘eu não venho’, o verbo está no indi-

cativo (no presente do indicativo), mas há também os condicionais

subordinados (ou contrafatuais) como em (ii):

(ii) Se João viesse, eu não teria vindo.

‘podia’ e ‘poderia’ parecem estar em variação socio-

linguística no PB, isto é, a diferença entre ‘Eu podia ser solteira’ e ‘Eu poderia

ser solteira’ parece não ser semântica, mas apenas de

grau de formalidade.

Também ‘deveria’ e ‘devia’ parecem estar em variação

sociolinguística.

Como você deve lembrar, um operador atua sobre

uma proposição (uma sentença) e gera uma nova

proposição, com outro significado, como é o caso

do ‘não’.

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Capítulo 10Modalidade – os auxiliares modais

131

Trata-se, nesse caso, de uma hipótese contra os fatos (contrafatual),

porque sabemos que, na situação real, o falante veio, e João não;

aliás, a vinda do falante ocorreu porque não houve a vinda de João

(tente imaginar alguém falando (ii) numa situação em que João veio

de fato, e verá como fica estranho). As sentenças condicionais foram

muito estudadas pelos filósofos, lógicos e, recentemente, pelos lin-

guistas. No entanto, a bibliografia sobre os condicionais no PB é ain-

da muito pobre. Pouco sabemos sobre essas sentenças que colocam

problemas extremamente intrigantes.

Se você se interessou, o trabalho de Pires de Oliveira e Mortari (no

prelo) poderá ser uma boa introdução!

10.2 Auxiliares modais

Qualquer manual de inglês tem uma seção sobre os auxiliares mo-dais como ‘can’, ‘could’, ‘must’ e outros, o que não é verdade para o por-tuguês. Se você procurar nas gramáticas tradicionais não vai encontrar um tópico sobre auxiliares modais, porque tradicionalmente modais foram associados às línguas germânicas (inglês, alemão...). Mas, não há dúvidas de que temos tais auxiliares. Vamos iniciar refletindo sobre a es-trutura sintática de uma sentença com auxiliar modal para depois pas-sarmos à sua semântica. É possível mostrar que ‘poder’, ‘dever’ e ‘ter que/de’ são verbos de alçamento, porque eles não selecionam o seu suposto argumento externo. Compare as sequências a seguir:

(11) a. O João deseja sair.

b. O cachorro deseja sair.

c. A casa deseja ser pintada.

d. A pedra deseja cair.

(12) a. O João pode sair.

b. O cachorro pode sair.

c. A casa pode ser pintada.

d. A pedra pode cair.

Atenção! Estamos con-siderando que o auxiliar modal é a expressão ‘ter que’, a qual, em alguns dialetos, se realiza como ‘ter de’. Essa já é uma hipó-tese sintático-semântica que precisaria ser de-monstrada, já que temos a presença do conectivo ‘que’ (o complementiza-dor) ou da preposição ‘de’, mas estamos entendendo que houve um processo de gramaticalização que fundiu o ‘ter’ com o ‘que’ ou o ‘de’.

Reveja alguns conceitos em: MIOTO, C. Sintaxe do Português. Florianópolis: LLV/CCE/UFSC, 2009.

Page 132: [livro UFSC] Semantica

Semântica

132

Você avalia diferentemente as sentenças que compõem cada uma dessas sequências?

Observe que (11c) e (11d) só podem ser interpretadas metaforica-mente, já que não é possível uma casa ou uma pedra desejar algo. Em outros termos, ‘desejar’ seleciona o seu argumento externo, aquele que está na posição de sujeito, porque exige que esse argumento tenha o traço + animado (e talvez + volitivo, nesse caso, mesmo (11b) tem um gosto de metáfora). Esse não é o caso das sentenças em (12): todas elas são “literalmente” aceitas, precisamente porque ‘poder’ não impõe ne-nhuma restrição quanto ao tipo de argumento que se pode ter.

Como você deve lembrar das aulas de Sintaxe, isso ocorre por-que ‘o João’ não é argumento externo de ‘poder’, que, na verda-de, seleciona uma proposição (ou uma sentença), o que pode ser melhor visualizado em:

(13) Pode ser que João saia.

Note que a sentença em (13) não veicula exatamente o mesmo que

a sentença em (12a), porque (12a) pode ser usada em situações em

que o uso de (13) está bloqueado: Só (12a) veicula uma permissão

(depois de ficar um tempo de castigo no quarto, o pai de João fala

‘O João pode sair’); já (13) veicula apenas uma probabilidade (o pai e

mãe de João não sabem se ele vai sair de noite ou não; como João não

saiu na semana passada, sua mãe fala ‘Pode ser que João saia’). Vere-

mos a questão da interpretação mais adiante, na próxima Seção.

Assim, a forma lógica da sentença em (12a) é:

(14) [SPode [SO João sair]]

Veja que ‘pode’ funciona exatamente como o ‘não’: ambos são opera-dores, porque tomam uma sentença e retornam uma outra sentença com um novo significado. Mas, diferentemente do ‘não’, os auxiliares modais parecem mais rígidos em termos de escopo. Como você interpreta (15)?

(15) O João não pode sair.

Page 133: [livro UFSC] Semantica

Capítulo 10Modalidade – os auxiliares modais

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Certamente, (15) significa que não é possível João sair. Veja que apenas o ‘não’ tem escopo sobre o ‘pode’; a interpretação em que ‘pode’ tem escopo sobre o ‘não’ só pode ser alcançada se invertermos a ordem:

(16) O João pode não sair.

O mesmo ocorre com ‘tem que/de’ e ‘deve’. Isso não significa que não haja ambiguidades com esses operadores. Há, mas elas parecem ter alguma restrição.

Mas, o que esse operador faz em termos de significado? Essa é uma questão bem complexa sobre a qual iremos nos debruçar na próxima Seção.

10.3 A semântica dos modais

A primeira característica dos modais é o fato de que um mesmo item lexical, por exemplo ‘pode’, veicula vários “sentidos”, a depender da situação em que ele é usado. Veja como a interpretação de ‘pode’ se modifica ligeiramente em cada uma das situações a seguir:

Situação 1:• Estamos numa competição de natação e os técnicos discutem quem tem capacidade para nadar os 3000 m da prova. Um dos técnicos diz: ‘O Pedro pode nadar’ (essa extensão).

Situação 2:• Estamos num acampamento e o chefe autoriza quem tem ou não permissão para nadar. Ele diz: ‘O Pedro pode nadar’.

Situação 3:• Dois amigos estão se perguntando sobre quem será o próximo a nadar e um deles diz: ‘O Pedro pode nadar’.

Na situação 1, ‘pode’ expressa capacidade física e é sinônimo de ‘conseguir’. Já na situação 2, ele expressa permissão. Esse uso é conheci-do como deôntico, porque diz respeito a leis e regras. Na terceira situa-ção, ‘pode’ exprime probabilidade: pode ser o João quem vai nadar.

O mesmo ocorre com os auxiliares ‘dever’ e ‘ter que/de’:

Situação 4:• Um pai enfurecido porque sua filha engravidou diz: ‘Ela tem que casar’.

Situação 5:• Pedro está pensando sobre como João conseguiu che-gar tão rápido até a universidade. Então ele diz: ‘Ele tem que ter vindo de carro’.

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Semântica

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Observe que ‘Ter que/de’, assim como ‘deve’, tem um uso bem parti-cular que a literatura denominou de teleológico, exemplificado a seguir:

(17) Para chegar à ilha, você tem que atravessar a ponte.

Para atingir certo objetivo, um telos (objetivo em grego), como se diz na literatura, é preciso que certas condições sejam cumpridas, no caso é preciso atravessar a ponte. Note que não estamos nem veiculan-do uma ordem, como na situação 4, nem o resultado de um raciocínio, como na situação 5. Teríamos, então, três ‘tem que/de’?

Essa é de fato a primeira questão que um semanticista se coloca: es-tamos diante de vários ‘pode’ (e vários ‘deve’ e vários ‘tem que/de’), isto é, estamos diante de uma ambiguidade lexical, ou há apenas um ‘pode’? E se há apenas um item lexical, como explicar essas diferenças de signi-ficado? Vamos assumir, juntamente com a maioria dos pesquisadores, que há apenas um item lexical e vamos derivar as diferentes modalida-des do contexto de fala.

Como vimos, a sentença ‘O João pode nadar’ tem sua interpretação atrelada à situação de fala: se estamos falando sobre regras, ela ganha interpretação de permissão; se estamos falando sobre o que achamos que vai ocorrer, uma interpretação de resultado de um raciocínio sobre pro-babilidades. A determinação da modalidade depende, pois, do contexto.

Entre as modalidades ou bases modais descritas na literatura temos: de capacidade, epistêmica, deôntica, teleológica, bulé-tica (ou de desejo), entre outras. Mas, as duas que têm recebi-do maior atenção são: a base deôntica, que, como vimos, trata das leis, e a base epistêmica, que diz respeito a processos de raciocínio amparados numa base de conhecimento (episteme é conhecimento).

Podemos entender base modal como aquilo que um falante leva em conta para então identificar o tipo de possibilidade ou necessidade da sentença que dirá. Alguém que se atém a uma base deôntica expressa modalidade, tendo como consideração certo conjunto de leis e regras.

A ambiguidade se ca-racteriza por serem dois

significados absolutamente desvinculados. É o caso

de ‘manga’, que pode ser a fruta ou uma peça de

vestuário.

Essa não é uma questão simples, e explicitá-la vai além dos objetivos deste

Capítulo. Se você se interes-sou, veja: Pires de Oliveira e

Mortari (no prelo).

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Capítulo 10Modalidade – os auxiliares modais

135

Esse é o chamado fundo conversacional. Se o falante está levando em conta as informações que ele tem sobre algo, como na situação 5, o fun-do conversacional é composto por esse conjunto de conhecimentos.

Na sentença a seguir, temos um exemplo de ‘pode’ epistêmico:

(18) Pode chover hoje à tarde.

Por tudo o que o falante sabe (por exemplo, ele observou o céu ou ele ouviu no rádio), ele afirma que há uma probabilidade de chover. Claramente a base para interpretar (18) não pode ser deôntica porque não se trata de permissão ou ordem; ela é epistêmica e o fundo conver-sacional inclui as informações que subsidiam a afirmação do falante de que há uma possibilidade de chuva.

Vamos, agora, nos deter na base deôntica e comparar as sentenças a seguir:

(19) João pode sair.

(20) João tem que sair.

(21) João deve sair.

Em que elas diferem? A sentença em (19) expressa uma permissão, enquanto que aparentemente (20) expressa uma ordem, e (21) se parece mais com um conselho ou uma ordem mais amena. Veja que das sen-tenças de (19) a (21) não podemos deduzir que João sai - afinal, alguém pode ter a permissão para sair e decidir ficar, ou ainda pode ter recebido a ordem de sair e resolver ficar.

Mas, o que exatamente significa permissão? A sentença em (19) veicula que a saída de João está permitida, isto é, que existe pelo menos uma alternativa de mundo em que ele sai. Vamos entender melhor essa ideia de alternativa de mundo ou mundos possíveis.

A modalidade exige que pensemos em alternativas de mundo ou ou-tros mundos além do mundo em que o falante está, o seu mundo real. Ao afirmarmos que João pode sair estamos dizendo que entre as configurações do mundo há uma em que ele sai (veja que nada garante que essa configu-ração é ou será a configuração do mundo real). Compare com a negação:

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(22) João não pode sair.

O falante está veiculando que, seguindo aquilo que foi estipulado, seguindo as leis ou regras, não há configuração no mundo em que João sai. Como já dissemos, nada obriga João a seguir as leis; o mundo real, numa boa parte das vezes, não é o mundo “ideal”, aquele em que todas as regras e leis são seguidas e cumpridas.

Ao usarmos a modalidade, colocamos em jogo possibilidades, al-ternativas, configurações de estados de coisas que podem ou não coinci-dir com o que ocorre, ocorreu ou ocorrerá no mundo real do falante.

A possibilidade indica a existência de pelo menos um mundo (uma alternativa de mundo) com a configuração dada pela sentença “preja-cente”, isto é, a sentença que está sob o escopo do auxiliar modal. For-malmente, auxiliares modais são quantificadores que atuam sobre uma nova entidade do modelo, os mundos. Nesse sentido, a modalidade é um modo de quantificação. Há muitas questões envolvidas aqui, in-cluindo discussões metafísicas sobre a existência de outros mundos, as quais não nos interessam neste momento. Para nós interessa apenas en-tender o mecanismo cognitivo que nos permite interpretar sentenças modalizadas. Nessa perspectiva formal podemos “traduzir” a sentença em (19) por:

(19’) Tendo em vista as regras, há pelo menos um mundo em que o João sai.

Observe que ‘Tendo em vista as regras’ indica a base modal, que se estrutura a partir de um fundo conversacional, em geral dado con-textualmente, constituído por um conjunto de regras. A possibilidade é a indicação de existência de pelo menos uma configuração como a apresentada pela sentença “prejacente”, ‘o João sai’. Trata-se, portanto, de uma quantificação existencial.

Imagine que você tem um dado de seis faces, cada uma delas com um número de 1 a 6 nas mãos, quantas possibilidades temos? Quantas confi-gurações de mundo? O dado pode dar um, ou dar dois, ou dar três... Cada configuração é uma possibilidade, a existência de pelo menos um mundo que tem aquele resultado (mais uma vez, nada sabemos sobre como será o mundo real, o número que de fato sairá no dado depois de o jogarmos).

O escopo, você deve se lembrar, indica onde a ope-

ração está atuando.

Se achar necessário, reveja o Capítulo sobre quantifi-

cação!

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Capítulo 10Modalidade – os auxiliares modais

137

Pergunte-se: se adotamos essa perspectiva, o que será que a senten-ça em (20) significa? O que ela veicula? Se dizemos que João tem que sair, dizemos que não há outra alternativa para ele, que todas as confi-gurações possíveis são idênticas: em todas elas, o João sai. Em outros termos, estamos quantificando universalmente:

(23) Em todos os mundos que estão de acordo com as regras, João sai.

Mais uma vez indicamos com ‘estão de acordo com as regras’ a base modal. Como já dissemos, o mundo real não precisa se conformar às regras, veja que dissemos, em (20), que João sai em todos os mundos que se conformam às regras, mas quem disse que o mundo real do fa-lante se conforma às regras?

Suponha agora um dado com seis faces, mas em todas elas está ins-crito o número um. Dado o que sabemos, quando jogarmos o dado, tem que dar um, não há outro resultado possível. Note que nesse exemplo a base modal é epistêmica, porque estamos lidando com o que sabemos sobre o mundo.

Embora os estudos sobre as diferenças semânticas entre ‘tem que’ e ‘deve’ sejam ainda poucos, aparentemente a sentença em (20) é mais forte em termos de ordem do que a sentença em (21), que se parece mais com um conselho. E o que significa ser um conselho? Uma maneira de entendermos um conselho é amenizarmos a força da quantificação universal. Ao dizermos que ‘João deve sair’, dizemos que em todos os mundos que são os melhores ou os mais apropriados ‘João sai’, mas dei-xamos em aberto a existência de mundos piores ou menos apropriados nos quais ‘João não sai’. Já ao usarmos ‘ter que’ indicamos que não há alternativas, que em todos os mundos tal e qual coisa irá ocorrer, por isso ele é mais forte.

10.4 O tempo e a modalidade

Uma outra propriedade dos modais é a maneira como os utiliza-mos para expressar a modalidade no passado, isto é, o modo como eles interagem com o tempo é um pouco diferente do que ocorre com outros verbos. Note que na sentença em (24) a seguir, embora o modal esteja no imperfeito do indicativo, que está associado ao tempo passado e tam-

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bém a contrafatualidade, a sentença indica uma possibilidade no futuro, marcada pelo advérbio ‘amanhã’:

(24) O João podia casar amanhã.

Mas, note que (24) tem também um gosto de expressão de dese-jo, ainda mais acentuado em casos como ‘Bem que o João podia casar amanhã!’. A expressão do desejo está completamente ausente do uso de ‘pode’, compare com ‘O João pode casar amanhã’.

O mesmo ocorre com os auxiliares ‘dever’ e ‘ter que’ no imperfeito: eles não indicam necessariamente tempo passado, e também parecem veicular algum tipo de desejo do falante ou, no caso de (25) e (26), con-selho:

(25) O João devia casar amanhã.

(26) O João tinha que casar amanhã.

É certo que ‘podia’ pode expressar também uma possibilidade no passado, como mostra a sentença em (27):

(27) Em 1963, o João podia casar.

O mesmo vale para ‘devia’ e ‘tinha que’. Assim, parece que a indi-cação do tempo não é dada pelo auxiliar modal (ou pelo morfema ‘-ia’), mas pelos advérbios ‘amanhã’, ‘em 1963’. Ou seja, o auxiliar no imper-feito parece ser neutro para tempo, enquanto que ‘pode’ indica sempre uma possibilidade presente, por isso a sentença em (28) é agramatical:

(28) * Ontem, o João pode casar.

Para expressar uma possibilidade no passado com o auxiliar ‘pode’ (ou ‘deve’ ou ‘tem que’), temos que usar o infinitivo pessoal composto:

(29) O João pode ter casado ontem.

Veja que, quando usamos o infinitivo pessoal composto com o au-xiliar no imperfeito do indicativo, como exemplificado em (30), a seguir, só podemos ter a interpretação de passado, o que indica que o passado está sendo veiculado pelo tempo composto e não pelo auxiliar:

(30) O João podia ter casado ontem.

Você se lembra da música “Agora eu era herói e meu

cavalo só falava inglês”? Como nas estórias da caro-chinha, usamos o imperfei-

to para falar sobre outros mundos.

Aparentemente, esse uso de ‘podia’ para expressar desejo ocorre apenas no

português brasileiro, mas não no português europeu.

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Capítulo 10Modalidade – os auxiliares modais

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Note ainda que (30) tem um gosto de contrafatualidade, isto é, o falante parece também indicar que o João não casou ontem, por isso é contrafatual (contra os fatos). Mas, essa sensação de contrafatualidade não pode ser semântica, porque é possível cancelá-la. Trata-se, portanto, de uma implicatura. Considere a seguinte sequência discursiva:

(31) O João podia ter casado ontem e fez isso mesmo, casou.

Ou seja, a combinação ‘podia’ mais ‘ter casado’ indica apenas uma possibilidade no passado, assim como ‘pode’ mais ‘ter casado’, a dife-rença parece estar no fato de que apenas a primeira veicula, pragmati-camente, contrafatualidade. Como ela faz isso? Essa é uma questão em aberto, mas podemos especular que a implicatura de contrafatualidade se deriva do fato de que ‘podia’ expressa uma possibilidade fraca. Assim, quando dizemos:

(32) Podia chover hoje.

Afirmamos que, por tudo o que sabemos, a possibilidade de cho-ver é bem pequena, logo é mais provável que não chova. Mas, por que expressar algo que sabemos que é pouco provável? Porque queremos expressar nosso desejo de que isso ocorra. Aparentemente, no Portu-guês Europeu, ‘podia’ expressa apenas uma possibilidade remota. O que parece ter acontecido no Português Brasileiro é uma gramaticalização da expressão de desejo: usamos ‘podia’ para expressar desejo e eventual-mente, muito eventualmente, para veicular possibilidade remota. Você viu só como há o que estudar?

Mais uma vez, como já vimos com a negação, a modalidade não aparece nas gramáticas tradicionais e muito menos nas salas de aula. Mas, há muito a ser dito sobre ela, como esperamos ter mostrado. E ape-nas arranhamos a modalidade, nada dissemos sobre ‘pôde’, sobre outros modais como ‘precisar’ e sobre outros modos de modalidade.

10.5 Considerações finais

Nas abordagens formais, a modalidade é entendida como a expres-são da possibilidade e da necessidade. Há várias maneiras de se expressar modalidade nas línguas naturais, entre elas os auxiliares modais como

Veja o Capítulo sobre a distinção semântica e prag-mática.

Quando isso ocorreu é uma questão ainda a ser pesqui-sada!

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‘poder’ e ‘dever’, mas também advérbios como ‘possivelmente’, perífrases como ‘dar de/para’, até mesmo sufixos como ‘-vel’.

A possibilidade e a necessidade são entendidas como quantifica-ção sobre mundos possíveis ou sobre estados de mundo. Quando dis-semos ‘pode chover’ estamos afirmando que há pelo menos um mundo possível ou um estado de mundo em que chove. Mostramos ainda que sentenças modais são altamente indeterminadas porque, sem o auxílio do contexto, não sabemos se se trata de uma modalidade epistêmica ou deôntica ou de capacidade.

Neste Capítulo, nossa análise centrou-se nos auxiliares modais ‘po-der’ e ‘dever’. Mostramos que eles são anômalos e que eles interagem de maneira distinta com o tempo e o aspecto. Assim, ‘podia’ não significa necessariamente uma possibilidade passada. Para expressarmos o pas-sado temos que utilizar o tempo composto: ‘Podia ter morrido’.

A pesquisa linguística sobre modalidade ainda é uma área com poucas pesquisas no Brasil, mas esperamos ter mostrado como há ques-tões interessantes a serem investigadas nesse domínio.

Leia mais!

Os livos de Ilari (1997) e Corôa (2005) são interessantes estudos da expressão do tempo e do sequenciamento de eventos em português, além de serem bas-tante didáticos. O estudo sobre modalidade em português brasileiro, na ver-tente formal, ainda é incipiente, mas há um excelente manual em preparação que você já pode consultar: trata-se de Pires de Oliveira e Mortari (no prelo).

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Coda

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CodaChegamos ao fim de nosso percurso pela semântica, e você deve

ter visto uma série de novos conceitos, de ideias e olhares sobre a lín-gua que, como dissemos na Introdução, provavelmente nunca viu antes. Também deve ter notado que há muito mais a ser dito não apenas sobre o que vimos, mas sobre o que nem mesmo pudemos mencionar, como por exemplo, a semântica de sentenças condicionais como ‘Se o Bra-sil tivesse sido descoberto pela Inglaterra, nós falaríamos inglês’ (ou na versão mais coloquial: ‘Se o Brasil tinha sido descoberto pelo Inglaterra, a gente ia estar falando português’.)

Há um óbvio interesse nisso tudo, é o de aprender mais sobre como o português brasileiro e as outras línguas do mundo funcionam. Porém, você deve estar se perguntando sobre o papel da semântica na sala de aula, na formação do aluno na aula de português. Esse rápido percurso pela semântica procurou sempre deixar claro que há muito a ser feito na sala de aula do ensino fundamental e médio; que a semântica pode ser um instrumento poderoso para melhorarmos não apenas a leitura e a escrita, mas para permitir a reflexão sobre a linguagem. No Brasil, a obra Semântica. Brincando com a gramática (2001), do professor Ro-dolfo Ilari, é o melhor exemplo de como é possível despertar no aluno o interesse pela semântica que pode efetivamente contribuir para que ele seja um leitor mais perspicaz e um autor menos ingênuo.

Refletir sobre o significado, como ele é construído, quais os proces-sos mentais envolvidos, isso retira o aluno do lugar de familiaridade que ele habita na linguagem, produz afastamento da sua língua, permitindo observá-la como um objeto do qual ele está desligado. Essa atitude de observar sem estar envolvido é fundamental para que ele possa ser um melhor avaliador de seu próprio texto.

Há muitas maneiras de colocarmos a semântica na sala de aula. Vamos apresentar dois relatos de experiências de professores que se pro-puseram a discutir aspectos do significado com seus alunos.

O primeiro caso foi com uma sala de aula de sétima série do ensino fundamental (antes da nova reforma ortográfica); alunos na faixa etária

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de 11 anos. A professora fez um projeto de pesquisa sobre propagandas, e os alunos deveriam trazer para a sala de aula aquelas em que eles iden-tificassem ambiguidades. A partir desse levantamento realizado pelos alunos, as propagandas foram discutidas em sala. Dessas, duas são ex-tremamente interessantes. A primeira é uma propaganda de um sorteio que tinha como lema:

Todos os ganhadores recebem uma moto.a)

A discussão gerou em torno da ambiguidade: uma moto para todos ou para cada um uma moto? Evidentemente a interpretação que parece ser a mais adequada é a segunda, mas quem garante que quem está pro-movendo o sorteio não tenha em mente a primeira? E se esse for o caso, o que aconteceria? O segundo caso é conhecido de todos nós, embora, quase com certeza, vocês nunca tenham tomado consciência dele:

Nescau: energia que dá gosto!b)

Essa sentença tem várias leituras e descrever sua ambiguidade re-quer mecanismos sofisticados: o Nescau é energia que dá gosto ao leite e o Nescau é a energia que dá gosto de ver. Depois de vários encontros em que se discutiu a ambiguidade de propagandas e que se notou um uso positivo – já que através delas é possível veicular mais sentidos com menos material linguístico –, os alunos foram convidados a construir suas próprias propagandas, que deveriam ser ambíguas. A fase final des-sa experiência foi a avaliação dos alunos de suas produções e a escolha da melhor propaganda.

Uma segunda experiência, muito produtiva para a escola, acabou resultando inclusive numa dissertação de mestrado. A autora se preo-cupou em analisar as questões de prova elaboradas pelos professores das diferentes disciplinas e verificar as respostas dos alunos. O que ela notou foi que havia questões ambíguas e que muitas vezes os alunos respondiam a pergunta na interpretação que o professor nem mesmo havia percebido. Claro que o aluno errava a resposta, porque ele esta-va respondendo a uma questão diferente daquela que o professor tinha formulado na sua cabeça. Havia uma diferença de interpretação. Veja o seguinte exemplo, retirado de uma prova de biologia:

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Coda

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Minhocas são anelídeos. Qual é a importância disso para a sua c) vida?

O problema aqui é o pronome ‘sua’, que pode receber pelo menos duas interpretações: se ele for um anafórico, então ele está recuperando ‘minhocas’ e a pergunta é qual é a importância de ser anelídeo para a vida das minhocas; se, no entanto, ele for um dêitico, ele será interpre-tado como referente ao leitor/ouvinte: qual a importância para a vida do ouvinte/leitor. Sem se dar conta da ambiguidade presente na sua per-gunta, o professor avalia como incorreta respostas que são norteadas pela interpretação que ele, professor, não viu. A contribuição maior des-sa experiência foi retornar os resultados para os professores e alertá-los para problemas advindos de interpretação, tornando-os mais sensíveis às respostas dos alunos, à medida que eles passaram a se colocar a ques-tão: por que o aluno me deu essa resposta? Seria ela motivada por uma interpretação da minha pergunta?

Esperamos que este pequeno manual de semântica seja uma inspi-ração para mais pesquisas, para uma prática em sala de aula mais enga-jada naquilo que de fato constitui a nossa língua, os modos como orga-nizamos em palavras o significado, sem preconceitos, capaz de mostrar que ‘puta’ e ‘caralho’, para além de serem predicados, são, na fala espon-tânea, modificadores de intensidade, com um comportamento sintáti-co e semântico bem comportado. Que você tenha a ousadia de refletir sobre a sua língua, mesmo que ela seja considerada “menor”, “pior”, por aqueles que pouco entendem sobre o humano.

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RefeRênCias

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Referências

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GlossáRio

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Glossário

Acarretamento:

Relação lógico-semântica entre duas sentenças, tal que se a primeira sen-tença é verdadeira, a segunda se segue dela, isto é, é necessariamente ver-dadeira. Por exemplo: se a sentença ‘João correu rápido’ é verdadeira, logo a sentença ‘João correu’ tem que ser verdadeira, ou seja, a segunda sentença é acarretada pela primeira. Note que a relação de acarretamento é orienta-da: mesmo tomando a sentença ‘João correu’ como verdadeira, não pode-mos dela concluir que ‘João correu rápido’ é verdadeira, porque ele pode ter corrido devagar.

Ambiguidade:

Ambiguidade ocorre quando uma mesma cadeia sonora pode receber mais de uma interpretação. A literatura costuma diferenciar quatro tipos de am-biguidade: 1. Ambiguidade lexical, que ocorre quando um termo tem dois ou mais sentidos independentes. Por exemplo: ‘manga’, peça de vestuário e a fruta; 2. Ambiguidade sintática, que ocorre porque pode haver mais de uma maneira de combinar os elementos da sentença. Por exemplo: ‘João bateu na velha com a bengala’. Sem mais informações não sabemos se era a velha que estava com a bengala ou se a bengala foi o instrumento que João usou para bater na velha; 3. Ambiguidade semântica, que se caracteriza por ser produzida pela presença de mais de um operador na sentença. Por exemplo, na sentença ‘Maria não brigou com a mãe de novo’ temos duas leituras: a Maria já brigou antes, mas dessa vez ela não brigou; mais uma vez ela não brigou com a mãe; 4. Ambiguidade pragmática, que ocorre porque uma sentença pode ser usada para expressar diferentes usos. O exemplo mais famoso é a ambiguidade entre uso atributivo e uso referencial da des-crição definida, como em ‘O assassino de Smith é louco’.

Argumento:

Argumento é uma expressão saturada, isto é, que tem como referência um único indivíduo em particular no mundo. O exemplo mais claro são os nomes próprios como ‘Clarice Lispector’, que é o nome da escritora Clarice Lispector. As descrições definidas como ‘o atual presidente do Brasil’ tam-bém são argumentos, porque referem-se a um indivíduo em particular. O caso menos intuitivo é o das sentenças. Sentenças são argumentos porque se referem a apenas um único indivíduo em particular, ou a verdade ou a falsidade.

Aspecto:

O aspecto apresenta a perspectiva que o falante quer imprimir à sua repre-sentação de um evento no tempo. Há duas maneiras principais de repre-sentar o evento: ou ele é representado sem duração interna, como estando

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“fechado”, de maneira que seu desenrolar não é apresentado, ou como se desenrolando no tempo, estando “em aberto”. No primeiro caso, o aspecto é perfectivo; no segundo, imperfectivo. É comum utilizarmos o pretérito perfeito para expressar o aspecto perfectivo, ‘João morreu’, e a perífrase do progressivo no imperfectivo para o aspecto imperfectivo, ‘João estava mor-rendo’. Note que com o imperfectivo não sabemos se ele morreu ou não. Esse é o famoso Paradoxo do Imperfectivo.

Contradição:

Duas sentenças são contraditórias se (e somente se) elas não podem ser verdadeiras no mesmo mundo. Por exemplo, as sentenças ‘João está vivo’ e ‘João está morto’ são contraditórias.

Dêiticos:

Os dêiticos são expressões cuja interpretação depende crucialmente de recuperarmos elementos do contexto de fala. Por exemplo, ‘eu’ indica o fa-lante, mas só podemos atribuir uma interpretação no momento que sabe-mos quem está falando. A interpretação dos dêiticos muda ao alterarmos o contexto de fala. Note como o ‘eu’ muda de interpretação (e também o ‘você’) no diálogo:

Rose: Eu quero ir ao cinema com você hoje.Carlos: Eu não. Eu quero ficar em casa sem você hoje.

Derivação:

A derivação indica os nexos sintático-semânticos que estruturam os ele-mentos em uma sentença. Assumimos, como é corrente na literatura con-temporânea, que esses nexos são binários. Assim, a sentença ‘O menino en-tristecido dormiu calmamente’ se bifurca primariamente em um sintagma nominal, ‘o menino entristecido’, e um sintagma verbal, ‘dormiu calmamen-te’. Mas, esses sintagmas também se bifurcam até a derivação chegar aos chamados nós terminais, quando não é mais possível “quebrar” a estrutura em pedaços menores.

o menino entristecido dormiu calmamente

o menino entristecido

menino entristecido

dormiu calmamente

o menino entristecido dormiu calmamente

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Escopo:

É o alcance da operação realizada por um operador. Muitas piadas se ba-seiam em escopo. Como na velha piada em que um homem diz para outro: ‘Estou com vontade de transar com a Luana Piovanni de novo’. ‘Nossa! Você já transou com ela?!’, pergunta o outro surpreso. ‘Não’, diz o primeiro, ‘mas já tive vontade antes.’ A brincadeira depende de atribuirmos diferentes esco-pos ao operador ‘de novo’. Quando ouvimos a primeira fala, tendemos a in-terpretar ‘de novo’ como atuando (ou tendo escopo sobre) ‘transar’. A última fala indica que o escopo de ‘de novo’ deve ser sobre ‘estar com vontade’.

Língua Natural:

Qualquer língua que um ser humano aprende como língua materna, de ma-neira natural, sem instrução formal. Por isso, vários cientistas afirmam que os chimpanzés não têm uma língua natural; mesmo aqueles que aprendem inglês não a transmitem para sua prole. Uma língua natural é mais do que um sistema de comunicação. Abelhas têm sistemas de comunicação alta-mente sofisticados, mas não têm uma língua natural. A principal caracterís-tica de uma língua natural é a sua criatividade, o fato de que interpretamos o novo, tanto o novo recursivo (‘João que é jornalista, que está doente, que mora comigo, saiu apressado’) quanto o analógico (por exemplo, quando uma criança generaliza as regras de concordância, dizendo “fazido” e “dizi-do”, por analogia a “comido”, “bebido”, “pedido” etc.).

Língua-objeto:

É a língua que o cientista está analisando, estudando. Nesse manual o por-tuguês brasileiro é a nossa língua-objeto.

Metalinguagem:

A linguagem arregimentada que utilizamos para descrever e explicar a lín-gua-objeto.

Modalidade:

Na abordagem formal, o termo modalidade é a expressão da possibilidade e da necessidade. Os casos mais prototípicos são os auxiliares modais como ‘poder’ e ‘dever’.

Operador:

Formalmente, operador é uma função que toma uma sentença e retorna uma outra sentença, com sentido diferente. Por exemplo, a negação é um operador, já que ela toma uma sentença, ‘João está dormindo’, e retorna a sua negação, ‘Não é o caso que João está dormindo’. Em termos de exten-são, a negação transforma uma verdade numa falsidade ou vice-versa.

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Pragmática:

Tradicionalmente, a pragmática é entendida como o estudo dos usos que realizamos quando falamos. Quando proferimos uma sentença como ‘Está chovendo’ podemos, ao proferi-la, realizar diferentes usos, entre eles infor-mar que é o caso de que está chovendo.

Predicado:

Os predicados são estruturas insaturadas, isto é, que têm pelo menos uma posição que está vazia e que será preenchida por argumentos. Nas línguas naturais, há predicados de um argumento (mono-argumentais), como ‘dor-mir’ (x dormir); de dois argumentos (bi-argumentais), como ‘amar’ (x amar y); e de três argumentos, como ‘apresentar’ (x apresentar y para z). Nesses exemplos, temos predicados que se completam com argumentos que são indivíduos, mas temos também predicados que se completam com sen-tenças, por exemplo: João disse que p, em que p representa uma sentença. Assim, podemos considerar ‘dizer’ como um predicado de dois lugares, o primeiro é aquele que diz e o segundo o dito (x dizer p).

Pressuposição:

Uma sentença A pressupõe uma outra sentença B se, para que A seja verda-deira ou falsa, isto é, para que A tenha um valor de verdade, é preciso que B seja verdadeira. Por exemplo, para que a sentença ‘João parou de bater na mulher’ seja verdadeira ou falsa é preciso que a sentença ‘João batia na mulher’ seja verdadeira.

Progressão Temporal:

A progressão temporal é a sequenciação temporal de eventos ou aconteci-mentos num dado texto. Em geral, é o aspecto perfectivo que “movimenta” a narrativa. Por exemplo, ‘João chegou, colocou a bolsa na mesa, tirou o sapato, deitou no sofá e ligou a TV.’

Quantificador:

Quantificadores são operadores que estabelecem relações entre conjun-tos. Há dois operadores básicos: o universal, ‘todos’, e o existencial ‘algum’. Mas, são muitos os quantificadores nas línguas naturais: ‘sempre’, ‘muitos’, ‘a maioria’ são alguns exemplos.

Referência:

A referência são os “objetos” que compõem o seu modelo de mundo. Em termos simplicados, referência é o que as palavras capturam no mundo. Por exemplo, a palavra ‘lua’ captura no mundo o objeto lua. Esses objetos podem também ser objetos abstratos, por exemplo, ‘2’ captura um objeto abstrato, o número dois.

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Referência temporal ou Tempo:

A referência temporal é a localização do evento numa linha ordenada de pontos no tempo. Em geral, distinguimos três tempos: o passado, em que o evento ocorre antes do tempo de fala; o presente, em que o evento é simultâneo ao tempo de fala; e o futuro, em que o evento ocorre depois do momento de fala.

Semântica:

A semântica é o estudo da capacidade que todos nós temos de interpretar qualquer sentença da nossa língua.

Sentido:

Sentido é a grande invenção de Frege para apreender a diferença entre sentenças sintéticas e sentenças analíticas: entre a linguagem e o mundo (a referência) há uma outra dimensão que relaciona essas duas: o sentido. Sentido é o caminho para a referência, aquilo que nos permite apreender os objetos. Por exemplo, o objeto lua pode ser apreendido por diferentes sentidos: lua, o único satélite natural da Terra, o lugar onde desceu a nave Apollo 1, o lugar onde Armstrong disse “um pequeno passo para um ho-mem, mas um grande passo para a humanidade”.

Sinonímia:

Duas sentenças são sinônimas se e somente se uma acarreta a outra e vice-versa. Por exemplo, a sentença ‘João beijou Maria’ acarreta a sentença ‘A Ma-ria foi beijada por João’ e essa, por sua vez, acarreta a primeira. Logo, elas são sinônimas, isto é, são verdadeiras exatamente nas mesmas situações (e falsas também exatamente nas mesmas situações).

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