livro sobre verdades egipcias

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NEA – Núcleo de Estudos da Antiguidade www.nea.uerj.br 66 LIVRO DOS MORTOS, UMA DISCUSSÃO ACERCA DO CAPÍTULO 30 Marina Buffa César - Museu Nacional/UFRJ O presente trabalho tem como objetivo mostrar as funções e diferenças entre as traduções do Capítulo XXX do Livro dos Mortos. Esse se refere à pesagem do coração do morto no Tribunal de Osíris e era recitado pedindo que o coração não se levante contra seu dono ao longo da cerimônia. O Livro dos Mortos foi extensamente usado no Egito durante o Novo Império, época essa em que são encontradas as melhores cópias do mesmo. Nos primeiros reinados ele era escrito nas paredes das tumbas. Com o passar das dinastias ele começa a ser escrito em papiros, tanto em hieróglifos, hierático ou demótico, dependendo do período em que era copiado. O papiro era colocado dentro do caixão com o morto, possuía o intuito de ser recitado ao longo do caminho que o levava ao Mundo Inferior. Caso o morto, que já obtivera o conhecimento dessas fórmulas (ou capítulos), esquecesse uma parte do mesmo, tinha o papiro como auxílio. Antes mesmo de ser escrito ele era recitado, como fórmulas. Por possuir essa tradição oral, a datação de sua origem fica extremamente complicada. Isso gera uma discussão e incongruência entre os autores que escrevem sobre ele. Neste trabalho serão usados datações e traduções de Paul Barguet (BARGUET,?) e sir. E. A. Wallis Budge (BUDGE,2002). Há autores que sugerem que esse é um desenvolvimento do Texto das Pirâmides. Outros, como Budge, reportam o surgimento desse como anterior ao período dinástico, por ser derivado de uma tradição oral e por possuir vários trechos que remontam ao período pré-dinástico (BUDGE, 2002;13). O que se tem como datação aparentemente certa sobre o Livro dos Mortos são as recensões. Elas são três: a Heliopolitana, Tebana e Saíta. A Recensão Heliopolitana, usada na 5 a e na 6 a dinastias, era escrita em hieróglifos na parede das tumbas de Saqqara. Posteriormente, na 11 a e 12 a dinastias, ele já era escrito em hieróglifos cursivos em esquifes. A Recensão

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Tudo sobre o Egito

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    LIVRO DOS MORTOS, UMA DISCUSSO ACERCA DO CAPTULO 30 Marina Buffa Csar - Museu Nacional/UFRJ

    O presente trabalho tem como objetivo mostrar as funes e diferenas entre as tradues do Captulo XXX do Livro dos Mortos. Esse se refere pesagem do corao do morto no Tribunal de Osris e era recitado pedindo que o corao no se levante contra seu dono ao longo da cerimnia. O Livro dos Mortos foi extensamente usado no Egito durante o Novo Imprio, poca essa em que so encontradas as melhores cpias do mesmo. Nos primeiros reinados ele era escrito nas paredes das tumbas. Com o passar das dinastias ele comea a ser escrito em papiros, tanto em hierglifos, hiertico ou demtico, dependendo do perodo em que era copiado. O papiro era colocado dentro do caixo com o morto, possua o intuito de ser recitado ao longo do caminho que o levava ao Mundo Inferior. Caso o morto, que j obtivera o conhecimento dessas frmulas (ou captulos), esquecesse uma parte do mesmo, tinha o papiro como auxlio. Antes mesmo de ser escrito ele era recitado, como frmulas. Por possuir essa tradio oral, a datao de sua origem fica extremamente complicada. Isso gera uma discusso e incongruncia entre os autores que escrevem sobre ele. Neste trabalho sero usados dataes e tradues de Paul Barguet (BARGUET,?) e sir. E. A. Wallis Budge (BUDGE,2002). H autores que sugerem que esse um desenvolvimento do Texto das Pirmides. Outros, como Budge, reportam o surgimento desse como anterior ao perodo dinstico, por ser derivado de uma tradio oral e por possuir vrios trechos que remontam ao perodo pr-dinstico (BUDGE, 2002;13). O que se tem como datao aparentemente certa sobre o Livro dos Mortos so as recenses. Elas so trs: a Heliopolitana, Tebana e Sata. A Recenso Heliopolitana, usada na 5a e na 6a dinastias, era escrita em hierglifos na parede das tumbas de Saqqara. Posteriormente, na 11a e 12a dinastias, ele j era escrito em hierglifos cursivos em esquifes. A Recenso

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    Tebana era escrita em papiros em hierglifos, na poca da 18a at a 22a dinastias. E, em hiertico, num perodo compreendido entre a 21a e 22a dinastias. Por fim, a Recenso Sata era escrita em papiros, atades, etc. Os caracteres usados eram hierglifos, hierticos e demticos, compreendendo a 26a dinastia e as posteriores. Essa Recenso considerada como a ltima do Livro dos Mortos (BUDGE, 2002;29). Esse mesmo problema de datao ser apresentado agora, com relao ao Captulo XXX. importante recordar que na Histria do Egito Faranico extremamente complicado fixar uma data correta para cada poca, ou procedimento. Na maioria dos casos utilizada uma data aproximada. Esse captulo tido como um dos mais antigos do Livro dos Mortos. A respeito do surgimento deste tm-se duas verses. A primeira expe que ele foi encontrado sob os ps do deus Thot em uma esttua da 1a dinastia (2920-2770 a. C.), poca do reinado do fara Semti-Hesepti. A segunda, amplamente utilizada, atribui a descoberta ao prncipe Herutataf, na poca da 4a dinastia(2575-2465 a. C.). Ele o descobriu durante uma viagem de inspeo aos templos de sua propriedade, no templo da Majestade do Rei do Norte e do Sul Miquerinos, localizada em Khemenu (Hermpolis Magna), aos ps de uma esttua do deus Thot, escrito em uma laje de ferro (BUDGE,2002;62). As duas verses conferem a escrita do texto ao prprio deus, deificando o captulo, deixando-o mais importante. Carol Andrews (ANDREWS,1994) afirma que essa uma verso usada somente para mistificar o captulo. No seu livro, ela diz que no havia nenhuma necessidade desse ser usado antes do Primeiro Perodo Intermedirio. Contudo, ao ler o texto da autora, percebe-se que ela remete o surgimento do captulo ao amuleto do escaravelho-corao objeto que ser tratado posteriormente pois, como ela mesma apresenta, o mais antigo encontrado at hoje era pertencente 13a dinastia. Outro ponto que nos leva a entender o porqu da escolha dessa data por Andrews que a 9a dinastia foi formada por Hicsos, povos que invadiram o Egito e o governaram por cerca de 100 anos.

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    Foram eles que introduziram o amuleto do escaravelho, como comemorativo e no funerrio, ao longo do territrio egpcio. Sendo funerrio aquele que leva em sua parte posterior o Captulo estudado nesse trabalho. Por serem afirmaes muito subjetivas e que a autora no os baseia em fatos, preferi utilizar aqui como muitos autores o surgimento desse captulo na 4a dinastia. O Captulo XXX pode ser encontrado em todos os papiros no mutilados e em centenas de escaravelhos-corao. O Livro dos Mortos, dependendo do copista, dividido em partes, com conglomerados de captulos nos quais cada seo possui um significado. Ou seja, cada uma possui frmulas que remetem a uma inteno no Mundo inferior. Sero citadas aqui as divises de Sir E. A. Wallis Budge e Paul Barguet. Nas palavras de Budge, o captulo encontra-se em comunho com o 27, 28 e 29, formando, assim, a proteo ao corao do falecido, para que esse no seja roubado pelos ladres de corao no Mundo inferior. Para Paul Barguet, que faz uma diviso do Livro em 5 sees, o 30 est na seo nmero 2, entre o 17 e o 63, que so denominados captulos de sair ao dia, a regenerao. Assim, ele diz que esses compem o triunfo e a ecloso do morto ante a incapacidade de seus inimigos. Esse captulo possui uma ligao com a pesagem do corao do falecido no tribunal de Osris (Figura1)

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    Figura 1. Cena do Tribunal de Osris. Papiro de Hunefer foi um escriba real do final do reinado do fara Ramss I. Acena representada do Tribunal de Osris como

    aparece nas vinhetas.

    O tribunal era constitudo de uma sala onde se encontravam na parte superior 42 juzes que ajudavam Osris, que era o juiz supremo de toda a cerimnia. O falecido era trazido de mos dadas com Anbis (lado esquerdo da imagem) e, logo aps, seu corao era pesado juntamente com Maat, a Deusa da verdade e da justia que poderia ser representada por uma mulher sentada com um smbolo na cabea e, tambm como uma pena, maneira pela qual mais conhecida. Ainda na balana h a presena de uma deusa hbrida que possui cabea de crocodilo, corpo de leo e traseira de hipoptamo que aguardava a pesagem. Se o corao fosse rejeitado, ela o devorava. Um pouco adiante encontramos o deus Thot que anota todos os procedimentos. O corao da pessoa tinha que ser, ento, mais leve ou de um peso igual Maat. Caso esse fosse considerado mais pesado, ele era devorado pelo deus hbrido e a pessoa era esquecida para sempre. Se no fosse mais pesado, seria recompensado com a imortalidade. O morto recita as frmulas desse captulo pedindo que: ningum se oponha a ele no Julgamento diante dos Divinos feitores; que o seu corao no o deixe; que os deuses principais de Osris no faam seu nome cheirar mal;

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    que no prevaleam contra ele falsos testemunhos; e que o veredicto do virtuoso lhe seja conferido depois que seu corao tiver sido pesado. A partir desse ponto do trabalho ser discutido o captulo XXX, suas divises em XXX, XXXa e XXXb e suas verses. Sero apresentadas duas verses diferentes do XXXa e XXXb e somente o XXX aparecer com uma verso. Teremos ainda uma verso que a compilao de todos. Antes de cada diviso dessa frmula sero apresentadas suas vinhetas e suas rubricas com todas as explicaes e conceitos necessrios.

    Captulo XXX Na vinheta desse captulo encontramos o falecido em p, com as mos erguidas em adorao diante de um escaravelho colocado sobre um pedestal, (Figura 2).

    Figura 2. Vinheta do Captulo XXX. Papiro do primeiro sculo d.C., Dinastia ptolemaica. Texto escrito em demtico. Fonte: www.insecula.com

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    As rubricas desse captulo ordenam que ele seja recitado diante de um escaravelho (1) de basalto, encravado em um engaste de ouro e colocado no local do corao do morto para o qual se tenha realizado a cerimnia de abertura da boca. A nica verso que possuo desse de Sir E.A. Wallis Budge:

    Frmula de como no deixar o corao de um homem ser-lhe arrebatado no mundo inferior:

    Oh meu corao, minha me; Oh meu corao, minha me! Oh meu corao de minha existncia sobre a Terra. Nada se erga para opor-se a mim no julgamento; no haja oposio a mim diante dos prncipes soberanos; [nenhum mal] seja manipulado contra mim na presena dos deuses; no haja separao [entre ti] e mim perante o grande deus, senhor de Amentet. Homenagem a ti, corao de Osris-quent-Amentet! Homenagem a vs meus rins! Homenagem a vs deuses que habitais nas nuvens divinas e sois exaltados merc dos vossos cetros! Dizei palavras justas em favor do Osris Auf-anc, e fazei que ele prospere diante de Neebca. E embora eu esteja junto a terra, e na parte mais interna do cu, deixai-me permanecer na terra e no morrer em Amentet, e deixai-me ser l uma alma imortal para todo o sempre.(BUDGE,2002;215)

    Captulo XXXa Em muitos papiros, inclusive nos da recenso tebana, no so

    encontradas vinhetas; em alguns aparece um corao colocado em cima de um vaso; tambm encontrado o falecido adorando o prprio corao e, ainda, o falecido aparece em p diante de quatro deuses onde um est com a mo estendida oferecendo-lhe um corao.

    Esse captulo no possui rubrica. Esse captulo costuma aparecer em maior quantidade em amuletos do

    corao. A primeira verso de Sir E.A. Wallis Budge:

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    De como no deixar que o corao do intendente da casa do intendente do selo, Nu, triunfante, lhe seja arrebatado no mundo inferior:

    meu corao, minha me; meu corao, minha me! meu corao de minha existncia sobre a terra. Nada se erga em oposio a mim no julgamento perante os senhores do tribunal; no se diga de mim nem do que tenho feito, Ele praticou atos contra o justo e o verdadeiro; nada se volte contra mim na presena do grande deus, senhor de Amentet. Homenagem a ti, meu corao! Homenagem a ti, meu corao! Homenagem a vs, meus rins (vsceras)! Homenagem a vs, deuses que assisti nas divinas nuvens, e sois exaltados graas aos vossos cetros! Falai [por mim] coisas justas a R, e fazei que eu prospere diante de Neebca. E contemplai-me, ainda que eu esteja preso a terra nas suas partes mais ntimas, consenti que eu permanea sobre ela e no me deixeis morrer em Amentet, mas me torne uma Alma Imortal dentro dela.(BUDGE,2002;216) A segunda verso est no Livro de Paul Barguet: Frmula para impedir que o corao do N. (2) no se oponha a ele dentro do imprio do mortos: meu corao de minha me, meu corao de minha me, vscera de meu corao de minha existncia terrestre, no se levante contra mim em testemunho na presena dos Senhores dos bens! No diga sobre meu sujeito: Ele fez isso, em verdade! sobre a ateno de que eu fiz isso; no faa-se conhecido contra mim na presena do grande deus, senhor do Ocidente. Salvao ti meu corao! Salvao ti, vscera de meu corao! Salvao ti, meu seio! Salvao vocs, deuses preeminentes, que trazem as tranas misteriosas que se apiam sobre seus cetros! Me anuncie R, me recomende Nehebkaou quando ele se encontra ao Ocidente do cu. Que eu seja durvel sobre a terra, que eu no morra no Ocidente, que eu seja um bem-aventurado aqui!(BARGUET,?;75)

    Captulo XXXb

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    Em alguns papiros da recenso tebana, esse captulo aparece sem nenhuma vinheta. Talvez, pelo caso de aparecer junto com um dos textos que acompanham a cena do julgamento, onde forma a orao colocada na boca do falecido. A presente vinheta mostra o morto em p, junto balana, ao passo que seu corao pesado junto com Maat representada como uma deusa. O seu corao na imagem tambm pode aparecer como um escaravelho. O macaco que est em cima de um pedestal chamado de Senhor de Khenemu, o pesador justiceiro (Figura 3).

    Figura 3. Vinheta do captulo XXXb. Essa vinheta encontrada em um papiro da 21a dinastia. Pertencente a Imenemsaouf, chefe das portas do templo do deus Amon em

    Tanis. O papiro escrito em hiertico. Fonte: www.insecula.com

    Em alguns papiros encontramos a rubrica do Captulo 148 do Livro dos Mortos, onde diz: Ateno, faze um escaravelho de pedra verde, lava-o com ouro e coloca-o no corao do falecido, e o escaravelho executar para ele a cerimnia de abertura da boca, unta-o com ungento e recita o captulo XXX. Essa diviso do Captulo XXX costuma ser encontrado em centenas de amuletos do escaravelho-corao ao longo de toda a histria egpcia. Segue a verso de Budge:

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    De como no deixar que o corao de Osris, escriba das sagradas oferendas de todos os deuses Ani, triunfante seja afastado dele no mundo inferior:

    Meu corao, minha me; meu corao, minha me! Meu corao por meio do qual nasci! Nada surja para opor-se a mim no [meu] julgamento; no haja oposio a mim na presena dos prncipes soberanos; no haja separao entre ti e mim na presena do que guarda a balana! s o meu duplo (Ka), habitador do meu corpo; o deus Cnemu costurou e fortaleceu meus membros. Possas tu sair ao lugar de felicidade para onde vamos. No faam os shenit, que formam as condies das vidas dos homens, meu nome cheirar mal. [Seja ele satisfatrio para ns, e seja a sua escuta satisfatria para ns, e haja alegria de corao para ns na pesagem das palavras. No seja o que falso pronunciado contra mim diante do grande deus, senhor de Amentet. Grande sers, com efeito, quando te ergueres em triunfo].(BUDGE,2002;217)

    Por ltimo, a verso de Paul Barguet: Frmula para impedir que o corao de N. no se oponha a ele no

    imprio dos mortos: meu corao de minha me, meu corao de minha me, vscera

    de meu corao de minhas diferentes idades, no se levante contra mim em testemunho, no se oponha a mim diante do tribunal, no mostre hostilidade contra mim na presena do guardio da balana!

    Voc meu Ka que est no meu corpo, o Chnoum que torna prsperos os meus membros. Se levanta na direo do bem, que ns estamos preparados aqui! No tornes ftido meu nome perante os assessores que colocam os homens em seus (verdadeiros) caminhos! Isso ser bom para ns, isso ser bom para o juiz, isso ser agradvel quele que julga. No imagines mentiras contra mim perante o grande deus, Senhor do Ocidente!Veja: de sua nobreza depende a proclamao da justia.(BARGUET,?;75/76)

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    A prxima variante apresentada sobre o Captulo XXX basicamente uma compilao das trs partes, no caso a que mais deixa a desejar com relao ao contedo e uso do mesmo. Segue:

    Para que o corao do morto no seja rejeitado: Meu corao ib me vem de minha Me celeste. Meu Corao hati

    me vem de minha vida na Terra. Que no sejam levantados falsos testemunhos contra mim! Que os juzes divinos no me repudiem! Que sejam verdadeiros os testemunhos concernentes a minhas aes na Terra ante o Vigilante da Balana e o divino Senhor do Amenti. Salve oh! Meu Corao ib! Salve oh!meu corao hati! Salve oh! Entranhas minhas! Salve oh! Divindade majestosa de luminosos Cetros, Senhores da Sagrada Cabeleira.

    Que vossas Palavras de Potncia me protejam ante Ra! Fazei-me vigoroso ante Neheb-Kau! Em verdade, embora meu Corpo esteja preso Terra, no morrerei, pois serei santificado no Amenti...Oh tu, Esprito encarregado da Balana do Juzo, sabe: tu s meu Ka, pois habitas nos limites de meu Corpo! Tu, emanao do deus Khnum, tu ds a Forma e a vida a meus Membros. Vem, pois aos lugares da felicidade para os quais marchamos juntos. Que meu Nome no se corrompa nem se torne pestileno aos olhos dos Senhores todo-poderosos que modelam os Destinos dos homens! E que o Ouvido dos deuses se regozije e seus coraes se encham de alegria quando minhas Palavras forem pesadas na Balana do Juzo! Que no se digam mentiras diante do deus poderoso, Senhor de Amenti! Em verdade, grande serei no dia da Vitria.(NEGRAES,1996)

    Pela cpia de cada um dos captulos e de cada autor, consegue-se ver algumas diferenas entre eles. A ltima verso de NEGRAES a que passa menos contedo e deixa uma srie de lacunas entre as frases. Coloquei-a por ltimo para que se possa perceber que uma combinao de Budge e Barguet, com algumas modificaes que deixam o texto extremamente complicado. A verso de Barguet a mais completa.

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    Pode-se perceber tambm, ao longo da leitura dos captulos, que a escrita egpcia, e isso pode ser visto tanto nas frmulas religiosas como em contos, possui uma srie de repeties. O texto fica um pouco cansativo, porm especula-se que isto era feito para dar nfase parte repetida, que acontecia trs vezes, porque esse nmero formava o plural egpcio.

    Por ter sido primeiro oral e depois escrito, o contedo ficou o mesmo e, tanto na oralidade quanto na escrita, a repetio utilizada para marcar o tom e a importncia do texto.

    As rubricas e as vinhetas desse captulo citam um amuleto do escaravelho objeto o qual essas frmulas eram recitadas diante.

    O amuleto do escaravelho-corao era feito para ser usado somente no dia do enterro e sepultado com a mmia. Outros amuletos de escaravelho que eram usados em vida tambm eram enterrados com o falecido, mas, sem o mesmo significado mgico.

    Esse escaravelho era para ser feito de uma pedra verde e resistente e depois acomodado em uma placa de ouro, com um cordo tambm de ouro usado para ser envolto no pescoo da mmia. Na parte posterior da placa encontram-se sempre inscries em hierglifos e, na grande maioria, eram trechos do captulo XXXb. Alguns poucos so encontrados com o captulo VI referente aos shabits e com preces pedindo a proteo do corao a Osris (Figuras 4 e 5).

    Figura 4. Escaravelho-corao de Hatnofer. Hatnofer foi me de Senenmout, arquiteto do templo de Hatshepsut em Deir el- Bahri. O amuleto foi feito por volta de 1466

    a.C. na 18adinastia. Encontra-se no Metropolitan Museum. Fonte: www.insecula.com

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    Figura 5. Escaravelho-corao de Sobemsazaf. Sobemkazf foi fara da 17adinastia, por volta de 1590 a.C., o amuleto encontra-se no British Museum. Fonte:

    http://www.thebritishmuseum.ac.uk

    Os amuletos mostrados acima so feitos como manda o Livro dos Mortos e as rubricas do Captulo XXX. No entanto, nem todos eram feitos desse jeito. Alguns possuam uma placa de prata na parte de trs e outros no. O texto era incrustado na prpria pedra e eles poderiam ser dos seguintes materiais: xisto, amazonita, jaspe, serpentina, basalto, feldspato, obsidiana, alabastro e vidro. No perodo Ramessida eles eram feitos tambm para servir de peitorais, que simbolizavam o pilono de entrada dos templos. Na lateral do escaravelho encontram-se as deusas sis e Nftis adorando o amuleto, (Figura 6).

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    Figura 6. Peitoral do vizir Paser. Paser foi vizir do fara Ramsss II, na 19adinastia, entre 1290-1224 a.C., o amuleto encontra-se no Louvre Muse. Fonte:

    www.insecula.com

    Esse um belo exemplo de peitoral que passa a ser usado nessa poca. Entretanto, s o escaravelho-corao continua a ser usado, porque foi s uma modificao do mesmo. A funo do escaravelho-corao era de proteger o corao do falecido. A importncia desse amuleto se d porque o corao era o rgo mais importante do corpo para os egpcios. Diziam que nele se encontrava o esprito da pessoa. Por isso, o amuleto era colocado entre as bandagens da mmia no local exato, em cima de onde se localiza o corao. Quando esse era removido ou destrudo acidentalmente, o talism era assentado dentro do corpo como uma substituio ao rgo.(IKRAM&DODSON,1998;140) O amuleto do escaravelho simbolizava a ressurreio. E essa associao se d devido ao fato do escaravelho depositar a suas larvas dentro de uma bola de excremento e gir-la pelo deserto. Com o passar do tempo, os novos bichinhos nasciam da sujeira. Assim como o Sol, que todos os dias nasce da escurido, percorre todo o caminho no cu durante o dia e depois entra na escurido novamente para renascer no dia seguinte. Desse modo, so encontrados em vrios papiros e paredes de templos e tumbas o escaravelho desenhado segurando o disco solar. O escaravelho-corao simbolizava a ressurreio, mas, principalmente, a proteo do corao no Mundo Inferior,

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    para que esse nunca fosse roubado ou que no depusesse contra seu dono no Tribunal de Osris. A conceitualizao do que e para que servia o escaravelho-corao muito complicada porque h uma divergncia entre os autores. Cada um atribui uma funo ao amuleto. Entretanto, eles concordam em alguns pontos, como a funo de proteo que esse exercia; uma caracterstica desse amuleto o captulo XXXb do Livro dos Mortos e sua medida, de 3 a 10 cm. Contudo, percebe-se ao ler o Captulo XXX e ao observar o amuleto do escaravelho-corao, que um foi criado em funo do outro. Apesar do Captulo XXXb tambm ser encontrado em papiros juntamente com os captulos da pesagem do corao, na maioria das vezes ele encontra-se em um escaravelho. Alguns possuem uma maior verso e outros uma menor, dependendo somente de seu tamanho. O poder mgico dos dois incontestvel, pois eles so utilizados basicamente a partir da 12a dinastia, at o Perodo Romano, quando se tem o ltimo vestgio do Livro dos Mortos, comea a ser usado com mais freqncia o Livros das Respiraes. S que at hoje esse ar mstico que o objeto do escaravelho oferece continua extremamente forte, quase que como um smbolo da prpria religio dos antigos egpcios.

    Notas (1) A descrio e o uso desse escaravelho que aparecer em todas as verses ser dada no final da apresentao dos captulos. (2) Aqui no caso para ser substitudo pelo nome do falecido.

    Bibliografia ANDREWS, C.: Amulets of Ancient Egypt. London: British Museum Press,

    1994. BARGUET, P. Le Livre des Morts des anciens egyptiens. Paris: Les ditions

    du cerf, ?

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    BUDGE, E.A.W. sir. O Livro Egpcio dos Mortos. So Paulo: Editora Pensamento, 2002.

    IKRAM, S. & DODSON, A. The mummy in Ancient Egypt. Equipping the Dead for Eternity. London: Thames e Hudson, 1998.

    NEGRAES, E.de C. O Livro dos Mortos do Antigo Egito. O primeiro livro da humanidade. So Paulo: Hemus Editora Limitada, 1996.

    PETRIE W. F. Scarabs and cylinders with names. London: School Archaeology in Egypt University College, Gower Street, W.C., 1917.

    SHAFER, B. E. (org.). As religies no Egito Antigo. Deuses, mitos e rituais domsticos. So Paulo: Nova Alexandria, 2002.

    Fontes iconogrficas www.insecula.com (ltimo acesso em 15 de julho de 2005 s 23h). www.eternalegypt.com (ltimo acesso em 21 de julho de 2005 s 17h13min.) www.thebritishmuseum.ac.uk (ltimo acesso em 29 de junho de 2005 s

    20h)