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O REINO PERDIDO

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Copyright © W Wil, 2011

EditorJoão Baptista Pinto

CapaHelena Nunes

Projeto Gráfico/DiagramaçãoFrancisco Macedo

RevisãoGisele Reinaldo e Cris Gouvea

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

Letra Capital EditoraTelefax: (21) 2224-7071 / 2215-3781

www.letracapital.com.br

W658r

Wil, W., 1975-O reino perdido: a versão subversiva dos fatos não publicados / W. Wil. -

Rio de Janeiro: Letra Capital, 2011. 150p.: 21 cm

Inclui índiceISBN 978-85-7785-100-3

1. Religião - Ficção. 2. Ficção brasileira. I. Título.

11-2549. CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3

09.05.11 09.05.11 026237

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W. WIL

O REINO PERDIDOA VERSÃO SUBVERSIVA

DOS FATOS NÃO PUBLICADOS

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“O tempo nos tira as certezas que temos na juventude e, ao perdê-las, vai com elas uma ousadia petulante

que é maravilhosa por ser ingênua. Essa é a maior das maldades do tempo,

ainda que as certezas fossem, todas elas, erradas”Musachi, samurai.

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Sumário

Capítulo Um

Capítulo Dois

Capítulo Três

Capítulo Quatro

Capítulo Cinco

Capítulo Seis

Capítulo Sete

Capítulo Oito

9

47

61

75

85

95

105

127

“O Reino de Deus está dentro de vocês” Lc 17:21

“O meu reino não é deste mundo” Jo 18:36

“Venha a nós o teu reino”Mt 6:10

“Importa entrar no Reino de Deus.”At 14:22

"Quem não nascer de novo não pode entrar no reino"Jo 3:3

“A que compararei o Reino de Deus?”Lc 13:20

“Tu, porém vai e anuncia o Reino de Deus”Lc 9:60

"Recebendo nós um reino inabalável"Hb 12:28

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O cara entra todo marrento. Parece até um oficial do BOPE invadindo uma favela pra matar bandido. Ombros jogados pra frente, sobrancelhas caídas com força em cima dos olhos e apertando o bico como se fosse um rapper fazendo pose.

“O que vocês estão fazendo aqui? Tão achando que isso é brincadeira, suas mocinhas? É melhor voltar pra casa da mãe de vocês. Tão aqui perdendo tempo. A obra não é um parquinho! Um bando de moleques achando que são homens de Deus. Olha só, pra começar, quem é menor de 18 anos aqui? Levanta a mão! Vaza, vaza, vaza! Só quero vocês aqui de volta com o certi-ficado de reservista nas mãos. Estão me fazendo perder tempo. Só fica quem é maior de idade. Sumam da minha frente!”.

Quase a metade dos ouvintes desceu correndo as escadas numa velocidade de deixar qualquer Ayrton Senna com inveja. Jaime ainda brincou, “... E se olhar pra atrás vira estátua de sal”. Eu ri de rolar. Mas a parada era séria. Um batalhão de menores ali já estava auxiliando em algum lugar. Todos trajando roupas sociais, sapatos lustrados e alguns de abotoaduras cafonas nos punhos. Meu amigo Jaime, antes

Capítulo“O Reino de Deus está dentro de vocês”

Lucas 17:21

UM

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de começar o festival de saraivada, portava uma bela gravata comprada em liquidação na C&A e um bigode ralo achando que isso dava um ar de respeito. Eu só tenho 17 anos e como a maioria ali, havia deixado a casa dos meus pais, estudos, namorada, dado um bico na nossa juventude pra servir como “homens de Deus”. O sujeito que entrou com aquela marra toda, era um bispinho – Assim que nós nos referíamos aos caras que não eram ‘O Bispo’ – que estava disposto a cortar a cabeça dos nossos sonhos. Só que o lance todo já estava enraizado. O tratamento de choque fazia parte de um tipo de treinamento que eles achavam que dava certo. Bate, xinga, maltrata, se o cara resistir é porque ele quer mesmo. Quando o bispinho Ronaldo entrou caminhando pelo longo salão como um boxeador pronto pra uma luta, Jaime tirou a gravata tão rápido que Mister M teria dificuldades em explicar aquela façanha. Foi hilário.

“É galera, agora já era. Todo mundo volta pra casa. O sonho acabou”. Eu disse isso com a minha ironia de costume, provocando, como sempre.

“E... tá amarrado, eu sou homem de Deus! Já estou auxi-liando lá na igreja a mais de um mês. Preciso me cadastrar pra ter salário. Tá feia a coisa, filho”. Disse o Jaime com tom de bebê chorão.

Depois de dar uma volta no shopping, perambulando por lojas de ternos e livrarias, almoçamos e fui direto para sede regional onde eu estava lotado.

Já falei minha idade e talvez tenha que dizer mais algumas coisas pra alguém entender porque estou nessa. Eu fiz o ensino médio, gosto de navegar na internet, tocar guitarra, ler livros, revistas e ir ao cinema. Já li mais de mil livros. Fissurado em saber tudo, cheguei a ficar quase uns dois anos trancafiado na biblioteca pública da cidade. Foi uma época que não estava

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trabalhando e andava meio duro. O melhor lugar pra ler jornais e revistas de graça era lá. Aproveitei e li os clássicos, policiais, filosofia, coisas maravilhosas do Rubem Fonseca e bobagens como os livros do presidente FHC e Fernanda Young. Tenho três livros de cabeceira: a Bíblia Sagrada, O Apanhador no Campo de Centeio e o outro, talvez eu revele depois. Ele está tão escondido, que parece até passaporte falso de agente secreto. Se alguém no meu meio souber que leio esse livro, putz, nem sei.

O lance é que depois de ler tanto, você acaba descobrindo que não há respostas. Miguel Sanches Neto escreveu que os livros acabam te aprisionando no conhecimento (Foi algo assim, naquele livro “Herdando uma Biblioteca”). Pois você acaba sabendo que tem que agir de certa forma, que várias coisas não funcionam mesmo e que a vida é um círculo vicioso de sistemas. Acho que ele não disse exatamente isso, mas é assim que me sinto. Então, li um monte, estou atualizado do que tá rolando e fiz umas tentativas. Gosto de uma revolução. Sério mesmo. Acho que todo adolescente curte isso: uma causa. Lembro daquele garoto de 13 anos, estudante de classe média que, em princípio, tinha tudo na vida, uma boa família, boa escola, boa alimentação e se vestia na moda. Largou tudo e fugiu de casa pra se juntar às FARC (Forças Revolucioná-rias da Colômbia). Sério. Dá um Google aí que você vai saber. Eu, por exemplo, já me amarrei em assistir intelectuais de esquerda cantando jingle do Lula na TV. Achava bonito essa parada de mudar o país e tal. Era bem legal a ideia. Então, com esses pensamentos já fui, por exemplo, presidente de grêmio estudantil. Minha plataforma de governo? Livros, esporte e prevenção sexual. Porque estudava em escola pública e tinha que ocupar a galera com alguma coisa. Mas os safados não estão nem aí. Só entram na biblioteca pra fazer um trabalho

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que não tem mesmo como copiar na internet. Transam sem camisinha, engravidando as meninas que acabam abando-nando o colégio. Criam uma população burra pacas. No final, eles só querem mesmo é jogar uma peladinha, achando que podem ser o novo Ronaldo e transar achando que isso aqui é Woodstok. Larguei tudo. Tentei ser voluntário em programas sociais. Mas distribuir cestas básicas, realmente não resolve a vida de ninguém. E aquela sopa na rua chega a ser depri-mente. Vi que não mudava nada. Então, tentei abraçar algo que realmente interferisse no mundo.

“Nós não pregamos uma religião, não pregamos uma filosofia de vida. A nossa mensagem é vida num Deus que é vivo”. Essas palavras soaram pra mim como um disparo a um velocista na linha de largada. Primeiro que não suporto reli-gião. Acho que é o maior câncer social que existe. Explora a massa, bitola as classes, se aproveita do capitalismo e compõe o sistema. Só que eu confio em Deus. De todo meu coração. Sério mesmo. Então saber que há como você viver os ensi-namentos de Cristo, sem ser numa vida de religiosidade, me animou muito. Pois, já que não posso mudar o mundo pela política, movimentos sociais ou com minha banda de rock, vou amar meu próximo, curar uns doentes, confortar quem está aflito e ensinar as pessoas que elas não nasceram pra ser massa de manobra. Diferente dos tempos de grêmio é o espí-rito contido no discurso. Isso me provocou.

Quando eu comecei a ler a história de Jesus Cristo, vi que ele era um sujeito muito “casca grossa”, punk mesmo. Revolu-cionário e subversivo. Pra começar, ele recebe o Espírito Santo e vai pro deserto jejuar pra ter uma santificação, expurgar o mundo de si, talvez deixar de ouvir os zumbidos de seus pais falarem o dia todo no ouvido. Encontrar um tempo livre das reclamações dos caras que encomendavam móveis a ele. Ou

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mesmo dá um tempo daquelas meninas que não sabendo direito de sua missão, achava que ele pudesse ser um bom partido, pois tinha como herdar a carpintaria do pai, que comandava na época.

Mas, lá no deserto, jejuando, ao invés dele ficar fraco, tipo aqueles indianos de frauda que você vê nas reportagens do Zeca Camargo, ele fica forte, poderoso. Aparece o diabo – aquele anjo caído que tem gente que ainda se amarra nele – e o tenta. Usa um monte de argumento que faria um presi-dente Lula da vida dizer: “Estou convencido que o diabo tá certo”. Mas Cristo usa as palavras que leu no Antigo Testa-mento, disparando direto, na ponta da língua. No final do confronto, ele, com mais autoridade que Capitão Nasci-mento, diz: “Sai, satanás! Você não faz parte das coisas de Deus”. Pronto, o ‘bicho ruim’ vai embora e aí, sim, vêm anjos dos céus para servi-lo.

Ele chega à cidade e manda: “O Reino de Deus chegou até vocês”. Aí no restante do Evangelho ele mostra o que é o reino. Isso me impressionou. Pensei: é isso o que eu quero fazer. Interferir na sociedade. Com a palavra certa, que atinja não só os homens, os governos, o povo, mas também os poderes espirituais.

A rotina aqui é sinistra. Embora, agora, atue como pastor auxiliar, e as pessoas (pasmem) me chamem de “senhor”, caras como eu, são mesmo o “faz-tudo” da igreja. Abro o templo às 6:30h, pois tem um culto às 7h. Antes do culto preciso estar todo engravatado e verificar se os preparativos estão prontos. Depois do culto atendo umas pessoas, ouço seus problemas, oro por elas. Às vezes elas trazem fotografias, roupas e pedidos de oração escritos em papel pra gente aben-

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çoar. Tomo um café rápido e vejo os preparativos pro culto das 10h. Depois deste, novamente, atendo, oro, converso. Às 12h faço uma oração no altar. Almoço e depois fico sentado no salão do templo, normalmente, lendo alguma coisa.

Agora estou lendo um livro sobre igrejas orgânicas, sem paredes. Mas faço isso na surdina, pois deram uma ordem que agora só podemos ler livros do Bispo. Então, eu fico com a Bíblia, o jornal da igreja e o livro camuflado no meio. Já li todos os livros do Bispo. Só dois tem um estilo mais histórico e analítico, os outros são mesmo pra passar a linguagem e a visão que usamos no dia-dia nos templos. Ler outras coisas significa “misturar os vinhos” numa gíria interna. O lance é que algum maluco pode começar a pensar diferente e acontecer como foi com aquele tal bispo do Brasil, que acabou saindo. Mas é outra história. O lance é que esse horário não é dos melhores pra ler. Seria, se o sono deixasse. Já fui pego mais de uma vez dormindo no altar. Uma vez tive a caraça de ser pego de olhos fechados, com a respiração profunda, talvez sonhando, mas quando percebi que alguém havia chegado eu franzi a testa e disse: “em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém!”. Mas com ênfase no “amém”. Era o pastor regional que me perguntou se agora eu orava sentado. Eu: “orai sem cessar pastor, a todo o momento”. Cara de pau.

À tarde, 15h, tem outro culto. Aquele mesmo esquema. Preparar, culto, atendimento, orações. Depois do café da tarde, oração das 18h. A gente costuma ligar o rádio pra acompanhar essa oração. O operador de áudio põe um fundo meio “Ave-maria” e o pastor começa com aquela voz pastosa: “Ponha um copo com água e vamos fazer a prece poderosa”. Isso é uma estratégia pra pegar aqueles católicos que lembram que há essa oração desde a época de Paulo Lopez até os dias do fanfarrão Pedro Augusto. Aí zapeando

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no dial, acabam ouvindo a trilha sonora, a voz melosa com ênfase no final das frases e acompanham a “prece poderosa”. Depois é só por uma música com um apelo que toque em sua ferida, tipo, Nelson Ned “Se as águas do mar da vida”, ela ainda está prestando atenção. Se não desligou o rádio, certamente vai ouvir em seguida o convite e comparecer a uma de nossas reuniões.

Depois dessa oração a gente já começa a atender o povo. Várias pessoas vêm chorar suas lamúrias durante o dia. À noite, mais ainda. Isso vai direto até o culto das 19h. Depois do culto é mais atendimento, oração, até supervisionar a arru-mação do templo, feito pelas obreiras; os obreiros cuidam do pátio, garagem e do banheiro dos homens. Mas tenho que subir pro escritório pra saber se o regional e o segundo pastor estão precisando de alguma coisa. Sempre estão. Pode ser a coisa mais ridícula, mas estão.

Uma vez eu estava tomando banho pra uma vigília que iria rolar e o regional vem e: “Eduaaaaaaaaaaaaaaaaardo! Eduaaaaaaaaaaaaaaaardo!”. Cara, nem deu pra me enxugar direito.

“Sim senhor pastor”. “Vai lá na cozinha e pega um copo pro meu filho!”.

Salivou a ordem em mim. Putz! Fala sério. O que me dava bronca era isso. Normal-

mente o topo da hierarquia trata o outro como capacho, empregadinho, e outras coisas que acho que nem Hitler conhecia. Penso que esses pastores pulam aquela parte do Evangelho que diz que Jesus lavou os pés dos discípulos e disse que era o exemplo pra que eles servissem e não ficassem interessados em serem servidos. Tudo bem que o regional mande o segundo pastor buscar a filha dele no colégio, embora o cara seja pastor e não motorista particular. Mas já

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vi coisas absurdas como o cara pedir ao segundo pastor pra cortar o melão em cubinhos e levar pra ele em sua sala. Pô, contrata uma empregada!

Eu estava conversando com uma senhora que está com o filho preso. O sujeito, burro, influenciado por um amigo, inventou de assaltar um coroa com uma faca de cozinha pra comprar drogas. Levou uma merreca. O coroa o denunciou na cabine de polícia, que deu o flagrante e pronto: assalto a mão armada. A mulher vem apelar pra Deus. Pô, tinha que ver a cara dela, estava desolada. O maluco parou de estudar pra ficar fumando maconha e bebendo. Agora tá preso. Aposto que ele andava com uma camiseta do Bob Marley e partici-pava da “marcha da maconha”. Agora tá vendo o sol nascer quadrado e sua mãe aqui, à espera de um milagre. Eu ainda orava pela mulher quando o pastor chega à janelinha lá de cima do escritório...

“Eduaaaaaaaaaaardo!”. Putz me deixe em paz.“Vai dá tudo certo senhora, é só perseverar e o milagre

vai acontecer. Vou orar hoje meia noite por ele, Deus vai responder”.

“Amém, pastor”. Disse-me com lágrimas nos olhos, mas com o semblante um pouco mais animado.

Subi as escadas correndo, cheguei ainda meio ofegante. Sim, senhor pastor. “Pô, cara, que demora. Tem que vir na hora que eu chamar”.

“Eu estava atendendo uma senhora...”“Tá, tá, tá... Olha só, o homem quer tomar sorvete. Toma

aqui, trás chocolate pra ele e morango pra mim”. Disse ele com aquela cara de Deni Devito me dando uma nota de R$100. Peguei a nota, fiz uma cara de DeNiro.

“Sim, senhor pastor”. Eu estava descendo as escadas e ele grita:

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“É haagandãz! Num chega com nada vagabundo aqui não”. “Sim, senhor!”Aproveitei pra dar uma passada na praça. Toda organi-

zada com os canteiros em torno dos flamboyants, um enorme espaço onde as crianças ficam circulando de bicicleta e lá no fundo uma pista de skate. Fui pra lá. Uns moleques de uns quatorze anos davam umas manobras radicais ao som de Smashing Pumpunks tocando num adaptado MP4 a uma caixa de som. Muito legal. “Fala pastor, beleza?” Um garoto de calças caindo sobre o tênis, boné pra trás e uma camiseta imensa da banda gringa P.O.D. aperta minha mão. Respondo, mas não me lembro direito dele.

“Já fui num culto lá que você tava fazendo. Irado aquele som ‘Poderoso Ele é...”.

“Ah sim, também gosto”. “Vai dá um vôo também? Te empresto o meu”.“Hoje não. Melhor deixar pra outro dia, aí você me dá

umas aulas pra vê se aprendo. Vou nessa, Deus abençoe!”“Valeu pastor, é nóis!”Se fosse Jesus dava um tempo melhor por ali. Conversava

um pouco, resolveria alguns problemas, faria umas orações, talvez até arriscasse umas manobras na rampa. Não rejeitaria o fato de eles usarem piencing, tatoo, roupa muito louca e curtirem rock. Dane-se aparência Cristo muda os corações. Isso é fato. O grande lance é que as religiões se instituciona-lizam de tal forma, que querem que todos se vistam iguais a eles. Todos iguaizinhos, tipo aquelas crianças do clipe do Pink Floyd, “Another Brick in the Wall”, todo mundo robozinho. Padronização. Afinal, foi isso que levou a minha igreja o status de uma das maiores do mundo. Padronizou o discurso de modo que se você está em Buenos Aires, Portugal, EUA, ou São Paulo, vai ouvir a mesma coisa. As mesmas ênfases

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nas palavras. Os mesmos jargões sobre milagres, sementes, plantar, espíritos... Antes usavam umas roupas diferentes. Vi nas revistas antigas, cada um com sua gravata Hermes e sua calça tergal de cores absurdas. Aí padronizaram. Agora você vê não só obreiros – aquele pessoal que trabalha na igreja – de uniformes, mas os pastores também, com calça preta ou azul marinho e camisa branca ou azul claro. Todo mundo de abotoadoras, não interessa o calor sinistro da Zona Norte e o rádio na cintura. O jeito de falar. Todo mundo sabe, né? E aqueles gestos das mãos, copiados descaradamente do Bispo. Criou-se esse exército que você pode ver na TV nas madru-gadas, nas rádios AM e FM o dia todo e não importa qual seja o nome do dito cujo, você sabe quem somos. Mas eu estava ridículo ali naquela praça, falando com um skatista e usando essas roupas sociais. Cruzes. Cadê meu All Star?

“Num tem menor não?” A moça do caixa chiando por causa dos R$ 100,00.

“Poxa, na verdade só tenho essa nota aí”. Essa hora da noite, não trocar R$100, fecha as portas que tá dando prejuízo.

Às vezes eu leio as histórias de Cristo e vejo que ele era ácido, direto e não se perdia com as palavras. Mas também era muito amável. Dava mesmo atenção às pessoas. Sorria, chorava e mostrava que realmente elas eram importantes pra ele. Embora eu o ame e o tenha como exemplo, não tenho muita paciência. A gente aprende a ser muito pragmático e objetivo. Dizer que quem planta colhe, quem dá recebe, quem ora Deus responde, quem faz correntes os anjos trabalham, quem busca encontra. E pessoas separadas para o sacerdócio nos tempos modernos não param pra distribuir o Reino de Deus na fila do caixa da padaria. Infelizmente. Não param pra dizer: “minha filha, eu sei que você está estressada porque trabalhou o dia todo ouvindo clientes mal educados. Mas

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persevere, estude, ore a Deus, ele vai lhe confortar, lhe ajudar a passar por essa fase e tudo lhe irá bem”. É provável que ela se sentisse mais aliviada, incentivada. Mas o máximo que eu faço é dar um “obrigado” e sair com meus “haagandãz”.

Na verdade eu nem sirvo muito pra ficar nessa instituição. Não em cargos. Só assistindo aos cultos é até mais fácil. Você vai num domingo de manhã, não tem que assinar nada, não é obrigado a fazer parte de nada, só ouve a palavra, ora, dá seu dízimo e vai pra casa ler o jornal e passar o dia com a família. Pronto, pode ser cristão o resto da vida. Mas tem um momento em que você se conscientiza que tem um chamado, sabe. É fogo. Nem dá pra fugir. Você dá uma olhada pro mundo e vê tanta gente sofrendo, com seus lares destruídos, com os filhos jogados nas drogas, na miséria e esse amontoado de gente na periferia só conhece o que é sofrimento.

Você já tentou movimento social, já tentou um discurso engajado, já até votou e nada resolveu. Odeia aquilo. Odeia a injustiça social. Odeia as doenças que afligem o povo todos os dias. Odeia a violência contra a mulher e as crianças. E aprende que seu ódio ou seu amor pode ser sua missão. Eu amo muito. Amo falar do poder de Deus, do amor de Jesus por todo tipo de desajustado, perdido e cretino. Já que ele me aceitou, mesmo eu sendo desse jeito, pode abraçar muito mais pessoas. Muito mais pessoas podem sentir a presença que sinto todas as manhãs quando eu o busco. Pronto. Minha missão.

O problema da obra de Deus são os homens. Onde estou, as pessoas querem que você as bajule, puxe-saco, tenha sempre uma atitude servil. Talvez qualquer um diga: mas toda empresa é assim. Só que hipoteticamente eu não faço parte de uma empresa, faço parte de um grupo sacerdotal que tem a missão de levar o Evangelho de Cristo aos povos. Sabe? Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo?

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Então, só que com o passar do tempo, defender o nome da instituição, fazer parte da engrenagem do sistema, acaba se tornando prioridade, e, aquele abraço afetivo do começo, ‘aquele servir’ lá do início, quando foi chamado, deixa de fazer parte do trabalho diário. É fogo.

“Pô, cara, demorou pra caramba. Tava fazendo o sorvete?” “Não, senhor pastor”. Eu respondo dando aquela olhada

nos olhos, tipo capitão André Matias em Tropa de Elite2. Os caras ficam desconcertados.

“Tem que agilizar mais Eduardo, pô o homem já perguntou por você duas vezes, tá reclamando”.

“Sim, senhor pastor, vai ser melhor na próxima”. Fiz aquela cara de Marcelo Adinet, querendo rir, mas só fazendo isso com os olhos e um leve movimento com o canto da boca.

“Tá, tá, tá... Me dá o troco”. Tomou o troco da minha mão e saiu apressado.

Vou acabar saindo da sede. Sério. Sou muito sinistro pra ficar aqui. Fui pra cozinha dar uma olhada no livro que guardei lá. “Ele estava disposto a agir”. Li isso hoje nesse livro. O grande lance da missão é que Jesus realmente iria realizar aquilo para qual foi designado. Eu estava disposto a fazer o mesmo. Iria suportar líderes sem as mesmas características de Cristo, mal-educados, coléricos, que não demonstravam o amor de Deus. Iria suportar qualquer peso de instituição para estar junto das pessoas que chegavam ali pra pedir uma ajuda.

À noite, eu já estava exausto. Meio sem disposição pra ser o “salvador da pátria”, mas sabia que era essa confiança que me manteria vivo. Enquanto eu esperava a boa vontade do regional ir embora, pra eu poder finalmente relaxar e, talvez dormir até às 6h da manhã, ainda tinha o pensamento camba-leante. Acho que estava dormindo. Disposto a agir... Plac! O livro caiu no chão fazendo um estalo. Eu fiz força de quem

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levantava um trator com as pálpebras pra abrir os olhos. Dei umas piscadas como quem tivesse pimenta nos olhos.

“Eduaaaaaaaaaaaaaardo!”. “Si...sim senhor!”. Respondi um “sim, senhor” de João

Canabrava, sóbrio. “Fecha a porta lá, já estamos saindo”.“Pastor amanhã de manhã vou lá resolver o negócio do

alistamento”. “É amanhã, né? Você não conseguiu se registrar hoje

não, né?”. “Não, senhor. Vou ver se consigo um documento lá

dizendo que ninguém serve naquela cidade. Aí vai funcionar”. “Tá, tá, tá... Depois da reunião você vai”. “Sim, senhor!”

Fechei a porta e subi correndo. Fui direto ligar o com-putador. Se eu bobear gasto muito tempo no mundo virtual, então, sou rápido. Abro os emails, o Orkut, o Facebook, mas deixo o MSN off. Senão é muita conversa fiada, ou não. A con-versa fiada vem dos meus amigos que estão em outra cidade, estado e até país. Mas outro dia tive que fazer uma oração pra uma ex-obreira. Desviada, inventou de cair no mundo, beber todas e transar com todo mundo. Estava se sentindo o caco e não tinha forças pra se voltar pra Deus.

O estranho de quando você está acostumado a uma vida separada do extravasamento do mundo, é que quando você se entrega a isso, no primeiro momento é algo esfuziante, dopante e você solta os bichos. Só que esse efeito passa e seus dias começam a ficar letárgicos. Uma coisa que você chamava de fé parece que te abandona e você não consegue fazer mais nada. Aí, pensa que Deus é aquele carrasco, que te olha de

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cara feia, e toda vez que você põe o pé fora de casa, ele meneia a cabeça e diz “ts ts ts ts ts”. Nada disso. Aquela “parábola do filho pródigo” é real. Ele está mais ansioso que você volte do que você mesmo.

O “venha a mim todos os que estão cansados e sobrecar-regados e eu os aliviarei”, é real. Vi aquele baterista do Korn, aquela banda de rock gringa, citando essa passagem. Dizendo como ele estava tão chapado de drogas que só mesmo essa palavra foi capaz de ativar um “barato” muito mais forte na sua alma, ele foi capaz de falar com Deus e sentir seu amor. Violenta a parada.

Orei pela menina. Ela disse que no final de semana estava armando pra ir com as amigas a uma festa, que já sabia o que iria rolar, não estava afim, mas não tinha forças. Pedi a ela pra repetir a oração comigo: “Misericórdia Senhor, misericórdia. Vou me esconder debaixo de suas asas até que passe o perigo” do Salmo 57. Disse a ela que repetisse isso todos os dias, pra alcançar conforto.

Dou uma olha nos scraps que a galera me envia. Fiz amizade com um pessoal de uma comunidade chamada “Cris-tãos sem igreja”. Achei sensacional o fato de alguém desejar ser cristão mesmo sem a presença física de uma instituição. Na verdade, um tempão atrás, eu estava assistindo o filme “Blade Runner”, que tem uma cena rápida de uma igreja com uma cruz de neon. Pensei numa coisa, que no futuro as igrejas estarão tão loucas que muita gente vai desejar ter comunhão com Cristo de suas próprias casas. Vai ficar confuso o negócio, aí, na dúvida, é melhor falar direto com Deus.

Às vezes, recebo umas coisas chatíssimas, aquelas correntes do bem que você tem que enviar pra “não sei quantos” amigos pra receber sei lá o que. Que viagem! Nem leio, deleto logo. Tem também aquelas paradas do tipo “repita essa oração...”

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Pára. Mas, recebi dois hoje bem legais. Um vinha com as fotos do Bin Laden, Marlyn Mason, Amy Wanehouse e Inri Cristo, escrito “NÃO IMPORTA QUEM VOCÊ SEJA, DEUS AINDA TEM UM PLANO PARA SUA VIDA, BUSQUE-O”. Achei irado. Isso é uma parada legal porque antes havia um estere-ótipo de quem era a pessoa que se convertia e “virava crente”. Agora, a coisa está bem melhor, o Evangelho tem alcançado mais pessoas. É claro, tem os que torcem o nariz. Duvido que Bin Laden entre numa igreja cristã e seja bem recebido. Duvido mais ainda que Marlyn Mason entre numa igreja tradicional, as pessoas de terno e tal, assistindo ao culto, e aí entra o cara com aquele visual... Meu amigo, geral vai ficar se mordendo. Na verdade, se a gente pensar direitinho, as pessoas com quem Jesus andava, não seriam bem vindas nas igrejas de hoje.

No Evangelho diz que Jesus batia um papo com uma mulher samaritana que já tinha vivido com vários homens. Qualquer cristão, sacerdote que fosse pego sozinho num poço, batendo papo com uma mulher dessas, seria fotogra-fado, difamado. Mas não Jesus. E aquela vez que ele chega num cobrador de impostos? O cara que todo mundo odiava. Tipo um miliciano que cobra taxas abusivas na comunidade, vive como um rei e é um safado, odiado porque as pessoas são obrigadas a pagar o que ele cobra. Jesus chega e diz: “Zaqueu hoje vou jantar na sua casa”. Tudo bem que essa história ficou bem bonitinha sendo cantada na música do Régis Danese. Tocou nas igrejas, nos botecos, nos bailes funks e todo mundo achou bonito. Mas se Jesus tivesse na casa de um miliciano corrupto sem vergonha hoje, meu amigo, sairia foto dele em qualquer jornal barato, vídeo na internet, montagens de foto dizendo que Jesus era traficante e tudo.

Digo isso porque já vi o que falaram daquele pastor que entra nos presídios, nas favelas, conversa com o pessoal do

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tráfico. Já disseram que ele tem associação com o tráfico, que recebe dinheiro e tal. As pessoas não entendem que é pra esses que Jesus veio, para os marginalizados, para aqueles que a sociedade torce o nariz, rejeitam por suas ações, por que dão repugno, esses, Jesus ama, e os deseja. Então, acho legal essas iniciativas no mundo virtual. Vejo que há muita gente pescando o espírito da coisa. Prosseguindo com a ideia inicial do Evangelho revolucionário de Cristo, o propósito dele era realmente interferir, chocar, causar impacto com suas ações desconcertantes. O legal é que ele podia fazer isso na esquina e já era comentado na nação toda. Toda Israel sabia. Hoje a gente tem que usar a net, boca-boca, fazer cartazes, ficar nas praças, e, sei lá mais onde, se quiser mover alguma palha nessa sociedade sobrecarregada de informações.

Roberta não me enviou email. Uma comunidade que me amarro é a “Sou roqueiro de

Cristo”. Muito maneira. Antigamente havia uma dificuldade dos roqueiros se converterem, pois chegavam às igrejas e ouviam aquelas músicas de missas, terríveis. Quando a gente começou a por rock nas igrejas alcançamos um público maior. Existe um papo furado de dizer que o rock é do diabo e tudo. Papo que me dá sono. Uma falta do que fazer dos sisudos de plantão. Aí aparecem os caras todos tatuados, de alargador, gritando “glória a Deus!” Alucinado. Muito irado.

Me enviaram um vídeo do Audio Adrenaline, que eu ouvia na Rádio Rock e nem sabia que era cristã. Fui visitar uma igreja de roqueiros uma vez. Aí, o som era tão pesado que faria Ozzy pedir pra baixar. Sério. A galera muito louca batendo cabeça, pulando, aí levantava a mão pro alto e davam “aleluia”.

Eu “tocava” numa banda. Mas minha banda era o supra--sumo do underground. Os caras que tocavam comigo não eram cristãos. Minhas letras eram metafóricas, cheias de

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parábolas. Eu queria levar o Reino de Deus pra quem não conhecia. Não queria tocar numa banda gospel, nada disso. Não estava a fim de tocar pra crente, sabe. Aí, fui conhecendo uns caras na net e montando a parada.

Eu era obreiro, fazia instituto bíblico, adorava a Deus aos domingos, expulsava uns demônios na sexta, mas sábado estava quebrando tudo com minha banda. Eu só falava com o pessoal do colégio, a turma da net, nem comentava com meus amigos da igreja. A galera é meio crente, sei lá. Talvez não entendessem minha investida. Mas o único resultado visível que vi, foi de um cara que me disse que começou a deixar as drogas quando ouviu uma música que a gente cantava que dizia “O que você quer que habite em você pra te dominar?” Ele disse que aquele lance de ficar sendo dominado por uma parada química não estava com nada. A gota d’água, segundo ele, foi quando caiu um pouco de cocaína no chão e ele meteu o nariz. Pensou: o que é isso? Virei um lixo dominado por essa droga. Pô, foi legal quando ele me disse isso. Eu estava numa espelunca, tocando pra uns gatos pingados, dei um abraço no cara e orei pela vida dele. Olhei no olho dele e disse: você é de Deus, cara!

Agora, estou fora da banda. Mandaram um e-mail dizendo que vai rolar um showzinho, que tem que ser essas músicas. Eu disse pros caras que terminei o “seminário”, agora sou pastor. Eles acham que não tem nada a ver, que ainda posso tocar com eles. Muito louca essa parada. Eu entro no MySpace pra ouvir as músicas que postamos lá, rolo de rir. Até que é bacaninha. Quando eu assumir uma igreja, eu trago os caras pra tocar comigo.

Nada da Roberta aparecer no MSN. “Alô! Eduardo, amanhã começa a reunião pra mim. Vou

ter que levar minha mulher lá no sítio. Os bispos vão fazer uma reunião, aí as esposas dos pastores têm que ir lá limpar

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o local. Caraca, cara. O regional acabou de tocar o rádio pra mim. Segura aí cara, só sai quando eu voltar. Copiou?”

“Sim, senhor pastor! Pode deixar”. “Olha só, é ordem. Liga o rádio aí pra ouvir o Bispo, é

pra ouvir a semana toda. O ‘omi’ vai perguntar. Essa palavra que ele vai falar hoje é que a gente vai dar a semana toda. É complemento da campanha. Entendeu?”

“Sim senhor, pastor. Já vou ligar o rádio”. Ele estava muito bolado. A direção achava que era dona da sua vida. Controlavam o que você fazia, pra onde ia, se dormia ou não. Quase conseguiam controlar o que a gente pensava. Não íamos a lugar algum sem que soubessem. Aliás, desde que havia entrado, não saí mais pra lugar nenhum. Mas mandavam e desmandavam não só nos pastores, mas também em suas mulheres, o que deixava os caras fulos da vida.

A gente já tinha o costume de ligar o rádio mesmo às 23h. Era hora que o Bispo falava ao vivo de onde estivesse. Mas havia uns amigos que burlavam essa parada. Era engra-çado. Alguns estavam no interior e não tinham muito acesso às comunicações, aí quando descolavam uma TV, ligavam num filme e ao mesmo tempo na rádio. Davam mais atenção a Bruce Willis do que ao Bispo. No outro dia quando seu pastor perguntava, “E aí, ligou a rádio ontem onze horas?”. Eles, “liguei sim pastor”. Hilário. Na teoria não estavam mentindo. Só tem figura.

Uns capetas rodopiando, gritando, fazendo maior estardalhaço na reunião. Eu tenho uma bronca disso. Sério mesmo. Tinha uma obreira tentando segurar um que sacudia cabeça pro lado e pro outro, de modo que o cabelo da mulher estava todo alvoroçado. O outro saiu correndo pelos bancos

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dizendo que era forte e que não iria sair. Quase ri. Mas real-mente fico aborrecido com isso. O lance é que sendo uma igreja igual a essa, o normal é que os pastores gostem desse tipo de coisa.

O Brasil é um país muito místico. As pessoas aqui põem espiritualidade em ferradura, imagens, gente que morreu, rezas costuradas em patuás, mancha na parede que pode lembrar o rosto de algum “santo”... E quando incorporava um espírito maligno no corpo de alguém, era uma festa pros pastores. Entrevistavam, perguntavam quem fez a macumba pro dito cujo estar ali, perguntavam ao povo: “sai ou não sai, pessoal?” Faziam um teatro danado. Dizem que isso desperta a fé do povo. Os espíritos eram reais. Faziam todo tipo de mazelas que não podem ser explicadas, nem por Freud.

Eu estava com um pouco de pressa, e nem gostava de fazer teatro com nada. Não tinha saco. Dei um grito: “Capeta, vem aqui!” Pode soltar obreira, ele vem andando sozinho. “Vem você também!” O outro que estava alvoroçando o cabelo da mulher. “Ponham as mãos para trás, os dois”. Eu estava pingando de suor. Transpiro com qualquer tipo de esforço que faça. Até falando forte.

“Estão vendo? Essas pessoas estão sofrendo, passando por problemas e não sabem exatamente o motivo. É um espírito maligno”. Normalmente usávamos “encosto”. Antes falávamos todos os nomes das entidades que recebiam “trabalho” para entrar na vida de alguém. Mas aí, alguns grupos religiosos processaram a igreja. Então, deixamos de falar o nome e substi-tuímos por “encosto”. Eu só falava ‘encosto’ quando era pra zoar.

“Quem acredita que isso aqui é um espírito imundo causando mal a essas senhoras?” As pessoas levantam as mãos, menos uma senhora. Que estava com os olhos arregalados. Ela me parecia familiar. Acho que a conheço.

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“Bom, vamos expulsar esses bichos logo e libertar essas pessoas”. A verdade é que se Jesus não tivesse expulsado como é narrado lá no capítulo cinco do Evangelho de Marcos, isso não entraria em nossos rituais. Qualquer problema difícil, inexpli-cável e opressor, aparentemente era um espírito maligno.

Os capetinhas saíram fácil. Eram baixo clero, como diria um amigo meu. Saem com um sopro. As pessoas que estavam incorporadas voltaram ao normal. Estavam com o semblante de alívio. Gosto quando isso acontece. Parece que todo peso do mundo sai das costas das pessoas. Saem daquela situação oprimida e passam a respirar melhor, com um semblante novo.

Quando terminou o culto. Lembrei quem era a mulher. Foi minha professora de literatura por uns dois anos. Tá dife-rente, parecendo bem mais velha. Me despedi de algumas pessoas e ela vinha em minha direção.

“Edu, tudo bem? Como vai? Quanto tempo que não te vejo. Menino, não sabia que você fazia parte daqui, dessa igreja e que era pastor”.

“É, enquanto estava no colégio, eu era obreiro e fazia o seminário de formação”. Ela estava acabada, com umas olheiras.

“Mas Edu, você sempre foi um menino tão inteligente, sempre leu tanto, acredita mesmo que esses “espíritos” existem?”.

“A senhora não viu?” Tentei fazer uma cara incrédula, levantando a sobrancelhas.

“Sim, sei, mas de onde isso tudo veio?”. Ela estava carre-gada, cheia de encosto. Por isso aquele semblante sombrio, oprimido.

“A senhora se refere às pessoas de hoje ou a pergunta é mais abrangente?”.

“Tudo! Qual é a origem disso?”

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Putz, e agora? Tenho que dar uma aula de “A Origem do Mal” e estou cheio de pressa. O pastor Silva não apareceu. Já era pra eu estar numa Zona Militar ou coisa parecida. Ainda tenho que ir a sede estadual hoje e essa mulher querendo aula de espiritualismo.

“A senhora tem religião?” Perguntei fazendo cara de pensativo.

“Bom, é... eu sou católica, fiz catecismo, às vezes vou à missa com minha mãe...”

Putz, lá esse pessoal não lê a Bíblia não? Ah, não, o pessoal recebe um programa na entrada da missa, já vi. Já tem um texto, normalmente com as partes frisadas em laranja ou algo assim. Umas rezas que não estão na Bíblia Sagrada e por aí vai. Como vai saber dessas coisas?

“Nunca leu sobre isso em nenhum livro de literatura?”. “Já assisti 'O Exorcista', é sobre isso?”. Fez aquela cara de

interrogação.Não era exatamente um bom exemplo, uma vez que no

Evangelho Jesus chega e decide a parada, manda os espíritos “meter o pé”. No filme, o exorcista era um medroso. Nem sabia o que fazer. Não agia com autoridade, ao contrário da gente. Fomos ensinados a ter autoridade extrema. Exagerá-vamos, às vezes.

“Serei breve. Antes de ser diabo, lúcifer vivia nos céus. Era querubim da guarda real. Tinha autoridade sobre os anjos e tal. O burro achou que poderia ter um trono acima do trono de Deus e se estrepou. Foi precipitado na Terra e, com ele, a terça parte dos anjos dos céus. Esses compraram a ideia dele, então, tomaram um pé na bunda junto. Nessa de virar anjo caído, eles se tornaram demônios. Ofício: fazer o mal, perturbar as pessoas com enfermidades, opressões, acidentes, desavenças, e várias outras coisas sinistras. Por isso, quando

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as pessoas estão sofrendo de algum mal e são vitimas de possessão, veem vultos, ouvem vozes, acontecem um monte de coisas sinistras sem explicação, elas vêm a um lugar como esse, onde nós oramos em nome de Jesus. Esse nome é cheio de poder. Quando a presença de Deus se manifesta na vida dessas pessoas, não há como o mal resistir, os espíritos vão sentir, vão gritar e vão ter que sair. Entendido?”.

“Mais ou menos”. Olhei nos olhos dela, ela estava muito mal. “Olha pra mim, a senhora tá sofrendo, não está?” Veio

um mar de lágrimas nos olhos dela. Ela segurou, mas rolou pelos lados.

“Ah Edu, eu estou com problemas. Tá tudo dando errado pra mim. Até meu filho, o Digo, lembra dele? Então, tá se metendo no caminho errado...” Ela falou do filho, das dores de cabeça, estava muito deprimida.

Putz, se eu fizesse uma oração ela iria incorporar um ‘encosto’. Ia demorar pacas. E nem iria adiantar muito naquele momento.

“Olha, até isso apareceu no meu corpo”. Ela estava usando uma saia meio neo-hippie longa, levantou na altura da coxa e mostrou um caroço enorme.

“Não precisa mostrar professora”. Fiquei meio sem graça.“É só coxa”. Não que eu fosse cheio de pudor, não sou,

mas não era exatamente o lugar pra ficar levantando a saia e mostrando alguma coisa. Nem eu a pessoa ideal. Um pastor com 18 anos incompletos. Mas foi minha deixa.

“Olha só, uma obreira vai ungir o local da enfermidade pra senhora e fazer uma oração, tenho certeza que já irá voltar pra casa hoje bem melhor. Mas volta amanhã pra gente conversar de novo”.

“Obrigado Edu, vou voltar sim. Gostei muito da sua reunião e de conversar contigo”. Me deu um abraço.

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“Obreira! Unge essa senhora e faz uma oração por ela”. “Sim senhor”. A obreira disse apressadamente. “Tchau professora”. Sumi. Subi correndo as escadas até o escritório. Pastor Silva me

ligou dizendo que já estava chegando. A reunião foi boa. O conceito de boa pra mim era quando eu olhava no semblante das pessoas e via que um peso havia saído delas. E nesse caso, isso havia acontecido. Isso muito me alegrava. Umas pessoas que sofriam de dores de cabeça constantes e outras “ziqui-ziras” haviam ficado curadas. Mas, no conceito de “reunião boa” dos meus líderes, também havia sido. Não sei exatamente quanto deu de oferta, mas só uma alma, havia dado um dízimo de R$3.500,00 reais. Dei uma olhada rápida na sacola. Nem adiantaria eu contar. Como auxiliar eu não anotava os valores dos cultos, de modo que o valor daquela reunião, com toda certeza seria registrado em outra que não fosse eu que tivesse feito. O “vale quanto pesa” sempre foi levado à risca aqui.

Joguei a sacola na mesa do escritório, corri pro meu quarto pra pegar os documentos. Que livro que vou levar? Acho que vou levar o meu terceiro livro de cabeceira. Tran-quei a porta, peguei um banco alto pra alcançar o forro, e lá estava ele, embrulhado num jornal em cima de uma placa de gesso. Celular, documentos, livro, dinheiro, caderninho de anotações. Só esperar o pastor chegar.

“E aí, como foi a reunião?” Estava com cara de sério pra variar.“Foi benção, pastor”. “Deu muita gente? Não estragou minha reunião não, né?”“Não, não, pastor, foi benção mesmo. Com milagres, as

pessoas sendo abençoadas e tudo”. “Sei, pára de papo furado. Espera aí”. Ele foi ao escritório,

pegou a sacola, deu uma olhada rápida, passou a mão no envelope e contou.

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“Caraca, quem foi que deu esse dízimo aqui?” “Sei não, pastor”. Fiz cara de surpresa.“Sabe que isso aqui te salvou, né? Fez um tom sarcástico,

meio marrento. Se não tivesse uma oferta alta, ele iria falar muito no

meu ouvido. Muito mesmo. Mas vi a cara dele de mafioso satisfeito quando pegou o ‘paco’ de dinheiro. Nem deu muita atenção às outras notas separadas. Mesmo que fossem de cem e cinquenta. Ele gostou mesmo foi do ‘paco’ juntinho.

“Num fica fazendo essas reuniões miseráveis não. Tem que passar fé pro povo”.

“Sim, senhor pastor”. “Já tá pronto? Vai lá então. Faz o que tem que fazer e volta

pra reunião da noite”. “Sim senhor. Vou mais rápido que puder. “Tá, tá, tá, vai lá”.

Meu terceiro livro de cabeceira é aquele que o Mário escreveu sobre bastidores da igreja. Gosto da narra-tiva, das referências culturais que ele adota. Ele sabe descrever as coisas. Sabe quando você conhece as pessoas e alguém as representa de forma inusitada? Aí você diz: pô, é exatamente isso! Então, é assim que ele escreve. É claro que temos coisas em comum. Fomos recrutados ainda adolescentes. Isso pra formar um exército neopentencostal que vai marcar total-mente a história do cristianismo. Haverá o antes e o depois. Quando olharem o que aconteceu com o cristianismo no Brasil, verão que é nessa época na qual nós estamos inseridos, que tudo mudou. Se isso é bom? Realmente, eu não sei.

Há uma série de coisas legais em ser chamado tão jovem, mas analisando o livro do Mário, a gente vê que a coisa desandou.

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Se der uma olhada na Bíblia, todo mundo vai perceber que muitos sacerdotes eram chamados ainda na infância. Depois Deus escolheu uma tribo inteira, os Levitas, que não teriam terra, não formariam cidades, se dedicariam ao sacerdócio por toda sua vida. Cresceriam seguindo os livros que Moisés deixou e tudo mais.

O problema não está em quando fomos chamados e, sim, em como fomos formados. Somos garotos que fomos catequi-zados na adolescência, aprendendo a desprezar a formação oficial de educação. Lemos a Bíblia e extraímos dela toda sua potencia de fé. Tudo o que se chama ação de crença é a nossa linha de raciocínio. Logo, viramos um exército disposto a imprimir na mente das massas que Deus quer que eles sejam curados, libertos, prósperos e independentes. Maravilha! Parece a revolução. De certo modo, até é.

Mas virou algo muito perigoso. O Bispo acha que só vamos mostrar Deus se tivermos um carro do ano, uma mansão e alguns milhões na conta. Ele já disse que se você for transformado interiormente, conseguir paz no lar, ou mesmo uma cura, não despertará tanta atenção do mundo quanto se o indivíduo que é empregado se tornar um patrão rico. Seria mais ou menos uma nova “bem-aventurança”: você é bem-aventurado se é rico, bonito, atlético, esperto, sagaz, bem vestido, poderoso, ganancioso e invejado por todo mundo. É o que o mundo ensina e nós acabamos adaptando o Evangelho a isso.

Então, o que aconteceu foi que esses garotos como o Mário e eu, crescemos não com o Evangelho do reino puro e genuíno, e sim, com o evangelho segundo o capitalismo. Ao invés de pregar a revolução espiritual, vendemos o “sonho americano”. Criamos um povo viciado em bênçãos. Sabe aquele pessoal que só seguia Jesus porque ele curava doenças e multiplicava pães?

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Então. É por aí. Essa é a maioria do nosso povo. Isso faz nossa estrutura muito frágil.

Achava legal o jeito que os caras, aqui no livro, eram enviados. Sabe? Como na época dos apóstolos. Revolucionar. Quando o apostolo Paulo chegou lá em Tessalônica, foi isso o que aconteceu, os religiosos e burgueses de lá disseram: “Esses que estão virando o mundo de cabeça para baixo chegaram também aqui”.

Esse tipo de coisa me fascinava. Não o capitalismo. Não dizer: compre, tenha, enriqueça. Até porque, se olharmos o Evangelho, um tempo novo foi pregado. João Batista pregava justiça social e integridade moral. Repartir, não roubar, os fins não justificam os meios. Jesus era radicalmente contra as elites e suas exclusões. Ele integrava, repartia, ajuntava. Por fim, o corpo cristão chamado de igreja, se formou em torno de grandes mesas comunitárias. Não de capital, não de ter, mas de comunhão, amor ao próximo e devoção a Deus.

Na lei do “quem pode mais chora menos”, nós demos as mãos ao mundo e passamos esse espírito pro nosso povo. Então, fidelidade, integridade, devoção, santidade, espiritua-lidade, amor, passou a ser só adereço pra enfeitar nossa gana pelo quinhão. Ao invés de “mostre seus inimigos o quanto você o ama”, ficou “mostre aos seus inimigos o que você já conquistou”. O mais interessante é que caminhávamos a passos largos a se tornar o “império a todo custo” que foi o catolicismo.

Repensando um pouco: João Batista vestido de pele de camelo pregando justiça social, Jesus descendo a lenha contra a elite burguesa religiosa. Os ricos que se convertessem e o quisessem segui-lo, teriam que aderir a multidão e gastar seu tesouro com isso também, como vemos lá em Lucas 8:2. Depois vem os apóstolos com suas mesas comunitárias. Porque

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a igreja católica mudou tudo com seus sacerdotes revestidos de ouro, enquanto o seu povo vivia na miséria? Porque recolher fortunas a todo custo, seja da miséria do povo, ou de barganhas e omissões com os governos, para criar impérios de poder, se o povo perece de fome? E nós, “os filhos da revolução” pente-costal, estávamos fazendo a mesma coisa.

O povo na miséria, pastores de Rolex, carro do ano e vivendo em cobertura. Tudo bem, a defesa era “Digno é o trabalhador do seu salário”. Espera aí, isso não é trabalho, é o chamado, somos sacerdotes, não capitalistas. E mesmo no meio de nós, a igreja neopentecostal do novo século, Mário denunciava: uns comiam ovo estrelado, outros caviar. Uns viajavam com as crianças para férias na Disney, outros lavavam a camisa à noite pra repetir no outro dia. O Bispo dizia que “a pior injustiça era a igualdade”. Fico pensando, o que Jesus diria disso tudo.

O reflexo do nosso ensinamento equivocado era claro. Os resultados também. Por mais que o Bispo achasse que o resultado material fosse prova de que Deus estivesse aben-çoando, o declínio espiritual da estrutura de igreja mostrava o contrário. Olha o Mário. Passou em igrejas grandes, pros-perou muito, sendo um menino de 19 anos, trouxe grandes quantias de dinheiro pra a igreja e arrastou multidões com seu jeito enérgico de pregar. Pegou o jeito. Mas em contra-partida, o que ele demonstra em suas próprias palavras, era a falta de um encontro espiritual genuíno com Deus. Não dá pra ser sacerdote e usar drogas, ter um caso homossexual durante anos e nutrir tanta mágoa no coração. Sei que se o cara mantém igrejas grandes em boa arrecadação, é mantido no cargo apesar de erros assim. Mas são erros. Nem vem.

Jesus é rei, seu reino possui leis. Fumar maconha ou qual-quer outro tipo de droga fere suas leis. Nosso corpo é templo

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do Espírito Santo. Se hoje o mundo vende essa coisa de espiri-tualidade com a natureza, meditação e alguns cuidados com o corpo e tal... Imagine sua vida sendo habitada pelo espírito do próprio Deus? Sei que o mundo tenta adaptar seus “achôme-tros” à busca e comunhão com Deus. Mas isso não funciona. Não mesmo.

Mas é claro, é um engodo pra que as pessoas conti-nuem buscando e não encontrando a elevação espiritual que o próprio Cristo disse que aconteceria lá em João 16:13, “Quando vier o Espírito da verdade, vos guiará à toda verdade”. Aí, tem um momento, descrito, também no Evangelho de João 20:21, que Jesus chega numa casa onde eles estão reunidos e diz: Recebei o Espírito Santo. Pronto. Quer melhor espiritua-lização do que essa? Lá no primeiro capítulo do Livro de Atos esse Espírito se manifesta em um número maior de pessoas. Recebem até um idioma diferente, algo falado nos Céus. Isso realmente é intrigante, maravilhoso e desejoso. Porém, uma coisa que sempre uso em minhas pregações, “dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar”. Mário, porque foi mal instruído, não corrigido, e suportado porque animava a festa, arrecadava, quebrava essa lei física que também é espiritual. O Espírito que é Santo, não pode ocupar o mesmo corpo que está lançado às drogas, e convive prazerosamente com esse tipo de coisa. Não há como ele viver dentro de um coração que pratica a traição. Sendo casado, o cara, sacerdote, prati-cava homossexualismo por anos. Nas leis do reino não dá pra sair ileso com essas práticas. O resultado é simples. E talvez vejamos isso em toda história e em nossas igrejas.

Se o Espírito do Rei não está nos corações dos seus súditos, não há como esse reino prevalecer. Vai ruir em algum momento. Aí as pessoas dizem: “essas igrejas são tudo farsa, tudo uma cambada de ladrão”. Concluímos que a igreja não

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tinha nada haver com isso. Que o Evangelho de Cristo, muito menos. O lance é: não dá pra conviver ações mundanas com a espiritualidade que é requerida pra se encontrar a Deus. E não estou falando de ser “santinho” não. Jesus estava com a galera, no meio do povo, nos banquetes. Mas qual era sua atitude, sua mensagem, seu interesse, seu posicionamento? Toda árvore se conhece pelo fruto. A vida do Mário, como também todo bastidor de sua igreja, estava em degradação profunda. Uma pena. Ele tinha uma disposição inicial que foi mal utilizada. Pela forma em que é escrito o livro, ele tem um talento enorme, que poderia ser usado pra construir o reino.

Nem posso mostrar o livro a ninguém. Poucas pessoas na verdade tem acesso a ele, hoje. Me disseram que a igreja do Mário, antes de ganhar na justiça o direito de proibir a publi-cação, mandou comprar todos os exemplares que já estavam nas lojas e deu um sumiço. Mas não mostro, não por conta de defender alguém ou achar que ele está certo ou errado. Mas é que discernimento é algo raro hoje em dia. Assim, um texto errado pode colaborar fortemente contra o Reino de Deus. E não quero contribuir pra isso.

Na junta militar não tinha jeito. Teria que me alistar e esperar. Mas o oficial que me atendeu explicou que já fazia uns quinze anos que ninguém servia ali. Só se alistavam e recebiam o certificado de reservista na data marcada. Pedi a ele pra por aquilo num documento, explicando tudo que havia me dito. Pronto. Já tinha argumento. Liguei pro regional, ele me mandou direto pra sede estadual me registrar como pastor.

Na sede estadual havia uma fila enorme de jovens se cadastrando. Todas as vezes que um indivíduo chegava numa igreja ou em qualquer empresa do grupo, eles pediam o código.

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Servia, não só pra identificar, mas também, pra mostrar quanto tempo você estava na casa. Na minha região, tinha um cara que era solteiro, auxiliar e tinha o código na casa dos quatrocentos. Número muito baixo. O meu já havia passado de mil. O cara era muito antigo. Isso dá uma moral pro sujeito. Pronto, agora já tinha um número de quadro dígitos que me identificava com pastor de uma das maiores igrejas do mundo.

Esse registro nos dava uma coisa que um garoto de 18 anos jamais teria em nenhum lugar do mundo: poder. Era absurdo o poder que aquele registro e uma gravata nos davam. Poderíamos passar por igrejas com o grande número de obreiros e membros, todos nos chamariam de “senhor”, mesmo não tendo nem barba na cara. A hierarquia ali era respeitada à risca. Pelo menos no trato e nas ordens. Como ficavam as pessoas em seus pensamentos, era outra história. Eu bem sabia disso.

Fiquei de obreiro quase uns cinco anos e ouvia a galera resmungar todos os dias sobre A e B ou C. Mas isso não importava muito pra direção. O que importa é que a engre-nagem está girando. A única coisa ruim pro Reino de Deus mesmo, era que rapazes tão jovens sendo agraciados por esse tipo de autoridade, sem preparo algum, não subsistiam em sua maioria. O número de desistência era também muito grande. Nesse ponto, a igreja agia como gafanhotos que vão comendo e defecando ao mesmo tempo. Eles pegam os rapazes sem nenhum preparo emocional com uma formação pífia e os lançam no mundo. Por que tão jovens? Porque são mais fáceis de manipular e dão mais o sangue, se entregam mesmo.

Os caras entravam achando que eram realmente uma versão higthtech do apóstolo Pedro, com autoridades no céu e na terra pra fazer o que bem entendessem. Queriam encher igrejas, arrecadar muito, subir de cargo, assumir a direção de

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uma região, estado ou país. Só que isso durava alguns anos. Logo, logo, começavam a se cansar do joguinho político, da pressão por crescimento financeiro, da falta de amor ao próximo que havia ali. Uma igreja que funcionava como qual-quer Wall Street, com pessoas se devorando nos bastidores. Isso chega uma hora que não dá pra aguentar muito.

Mas nesse momento eu não estava pesando muito nisso. Sei que o sistema da igreja já era um círculo vicioso. Era mais ou menos assim: quando Cristo começou seu ministério em Israel havia quatro grupos distintos: zelotes, essênios, sadu-ceus e fariseus. Creio que a igreja a qual pertenço começou como os dois primeiros.

Os zelotes pensavam que a razão de sua opressão era por sua passividade e covardia. Se eles se levantassem e decla-rassem guerra a Roma, Deus iria dar a vitória como fez com Davi que venceu vários reinos, protegendo Israel. Quando iniciamos, nós declaramos guerra total. Éramos nós contra o resto do mundo. O discurso era flamejante: “O governo não quer que você tenha uma vida próspera, quer que você continue dependendo de salário mínimo, morando num barraco, pegando cesta básica, na fila do INSS. Deus quer te dar vida e vida com a abundância!”

Declaramos guerra contra a religião oficial também. “A igreja católica quer que você seja coitadinho. Que você sofra aqui porque Jesus sofreu, mas depois, no purgatório, vai lavar seus pecados e terá um paraíso. Mentira! Isso é pensamento de quem manipula. Jesus veio pra de dar vida e vida em abun-dância aqui e agora!”

Esse discurso me fascinava. Eu nasci na periferia, via como as pessoas viviam, apesar de ser um país católico, com padroeira, que na minha opinião não “padreava” ninguém. O povo sofria muito e sempre com terços e medalhinhas no

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pescoço. E nada adiantava. Eu queria ver quem era esse Deus que morreu, mas que ressuscitou. Ele tinha que se manifestar. Inflamar o discurso era uma forma de ver o fogo cair.

Os essênios eram o grupo que se separava. Achavam-se os melhores, mais santos, mais corretos no seu modo de vida religioso. Foi o que nós fizemos também. Nos separamos. “Metíamos o pau” nos crentes. No início, como toda instituição religiosa que se preze, falamos mal das outras. Pelas roupas que usavam, pelo jeito que cantavam. Não adiantava nos chamar pra congressos interdenominacionais, não iríamos. Nos achávamos os melhores, não adiantava. Sempre era dito nos nossos templos “Não devemos misturar o vinho. Aqui você recebe um vinho novo. Não misture com o vinho velho dessas igrejas antigas”. Nosso líder, o Bispo, com o tempo cunhou um termo bíblico pra explicar esses sacerdotes de igrejas tradicionais. Chamava-os de “o profeta velho”. Ele faz isso direto quando alguém é contrário às suas ideias, que ele mesmo julga como “renovadas”, pra avançar com o reino. Depois nós viramos saduceus.

Os saduceus eram o grupo que achavam loucura se rebelar contra Roma. Começaram então a se aliarem, tirando o máximo de proveito da situação que o governo de Cezar lhes dava. Foi o que nós fizemos. Com a desculpa de invadir a terra com a mensagem de Deus, apoiamos políticos corruptos, com fichas sujas que fariam Fernandinho Beira-Mar parecer um escoteiro. O objetivo era abrir templos, comprar rádios e emissoras de TV. Mesmo que, pra isso, nos aliássemos ao próprio diabo pra conseguir as concessões.

A desculpa era “se fazer de tolo pra ganhar os tolos”. Como isso não funciona muito, acabamos nos perdendo mesmo. O que me indignava é que o império católico não descia na minha garganta. Pelo fato de ter se apropriado da igreja de Cristo e transformado num reino de ouro, prata

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e bronze, onde o que mais importava era adquirir templos, terras e governos. O Evangelho era só uma peça de alegoria nisso tudo. Mas o pior é que usavam o nome de Deus pra escravizar, matar, roubar e destruir. Faziam o trabalho do diabo usando o nome de Jesus pra isso. E a mente das pessoas estava tão cauterizada que não havia como abrir seus olhos.

Saímos de uma proposta revolucionária de libertar o povo da opressão em nome de Jesus. O objetivo agora era legitimar o nome das instituições adquirindo bens e meios de comunicação. O Bispo começou a travar uma guerra de poder com a emissora de TV mais poderosa que existe. Acho que ele devia ter a foto do presidente dessa organização em seu gabi-nete pessoal e todos os dias jogava um dardo na cara do dito cujo. Só pra se exercitar.

Orar pelos inimigos?Isso é detalhe. Essas coisas de amor ao próximo não se encaixa muito aqui. O problema é que o comprometimento financeiro nos afastava do nosso ofício que era o de ganhar almas. Não é que arrecadássemos pouco, não. Até tínhamos uma arrecadação considerável. O problema é que todos os dias os “cabeças” compravam uma rádio, um cinema, uma emissora de TV. Compravam, compravam, compravam. Isso nos obrigava a ter que dobrar o mês em valores financeiros. O que não é sempre possível. Então, o líder do país pressionava os estados, que pressionavam as regiões, que pressionavam os pastores, que pressionavam o povo.

Num primeiro momento até funcionava. Mas o povo não aguentava. Os obreiros também não. E uns pastores chegavam à conclusão que não foi pra isso que entraram pra essa igreja. Afinal, eles queriam fazer a obra de Deus e não arrancar dinheiro à força de ninguém. Então, “metiam o pé”. Isso explica o “efeito gafanhoto”. Se por um lado levávamos muita gente pra igreja através da rádio, televisão e dos milhares

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de jornais que iam pra rua, domingo, em evangelização em massa, perdíamos também, com a mesma velocidade. A burrice estava em perder gente que já recebeu a mensagem, se batizou, era dizimista fiel, só não suportava mais o fardo de petição. Outras igrejas ganhavam membros feitos por nós. Ou, a parte pior, o mundão com seus vícios e depravações às quais as pessoas que saíam, desiludidas, se entregavam com a gana de um faminto a um BigMac.

Diante disso, a maioria dos líderes da minha amada igreja acabava se tornando o último grupo de Israel, os fari-seus. Religiosos totais. Criaram uma aparência do que é ser cristão, com ações e costumes e o que fosse diferente daquilo era do ‘maligno’. Mas, por dentro, suas ações, traições, mani-pulações e interesses escusos os transformavam naquilo que Jesus falou: sepulcros caiados. Por construírem a aparência de homens de Deus, com suas gravatas de sedas e suas abotoa-doras douradas, mas por dentro não ligavam para o que saía por suas ações. Não ajudavam o próximo. Mesmo sendo o irmão ao seu lado, pelo contrário, um querendo ver a caveira do outro. Que dirá se preocupar com a opressão que fazem por dinheiro em cima do povo, destruído por completo. “Não entram e nem deixam os outros entrarem”. Muita gente expul-sava as ovelhas do rebanho.

Eu estava tentando uma coisa muito perigosa. Sabia que eu era considerado “rebelde”. Rebatia, interferia, protestava. Isso não era bom, porque já havia sido dito que ali não era democracia, era ditadura. Eu sabia disso. Antes de entrar para o instituto bíblico, eu havia confrontado meu pastor. Na ocasião, a respeito de uma situação política.

Havia uma grande manifestação contra o presidente da república. O pastor disse que isso era se levantar contra auto-ridade constituída e, pra variar, usou a Bíblia pra justificar sua

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defesa. Eu disse que a Bíblia também dizia para seguirmos a lei e a manifestação era direito democrático, logo, não estávamos desrespeitando a lei. Ele ficou furioso. E disse que no final das contas era jogada política. Eu sabia disso. A igreja havia com-prado uma emissora e não tinha a concessão dela. Dependia que o presidente agilizasse isso. Então, tínhamos que apoiá-lo. Só que deixei bem claro pra ele: o fato de ter me enviado pro instituto foi uma tentativa de se ver livre de mim. Tanto que quando eu terminei e passei a pastor auxiliar, fui enviado pra igreja dele e, é claro, não fui aceito e fiquei na sede.

Aproveitei que já estava registrado e fui ver Roberta. Pra variar, ela não estava em casa, havia mudado de horário no trabalho. Fui pra casa da minha mãe. Fazia um tempo que não via Julliete, minha guitarra. Estava afinzão de tocar.

Minha banda não entendeu nada quando saí. Por mais que minhas letras fossem, todas, carregadas de teor espiritual, eles gostavam de tocar comigo. Nossa página no MySpace estava começando a receber um número legal de visitas e nosso vídeo no YouTube bem acessado. Tocávamos nesses festivais estudantis ou abríamos alguns shows em inferni-nhos para rock. É verdade. Mas éramos muito anti-sucesso. Não porque não queríamos, mas é que não tínhamos muito a ver com um som que fosse popular. Eu tinha várias ideias, mas não dava pra me dedicar. Normalmente quem tem banda toma aquilo como uma empresa, como trabalho mesmo, é a dedicação da sua vida.

Embora eu goste de cantar, tocar e compor, creio piamente que tenho um chamado. Sabe, quando você é separado espi-ritualmente para fazer algo? Minhas canções imprimiam isso. Mas talvez eu possa alcançar mais gente pregando o Evan-

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gelho numa igreja que me dá acesso a rádios, TVs e grandes templos. Posso falar com muito mais pessoas. Até porque, meu último projeto não foi muito bem entendido. Estava com ideia de fazer um show chamado “Onde Deus está?”. A ideia era pegar músicas populares que descreviam a busca de Deus por seus compositores.

Acho interessante quando artistas não cristãos procuram por Deus. Mostram nitidamente sua necessidade de um encontro com essa pessoa tão especial, tão falada, mencionada no dia-dia, mas pouco conhecida. Então temos canções como “Se eu quiser falar com Deus” do Gilberto Gil, mostrando o homem tentando bater um papo com Deus, ele supondo o que precisava fazer pra ter essa conexão. “Horizonte Distante” do Los Hermanos, em que o cara pede “dá-me luz, oh Deus tempo... a gente quer ver o horizonte distante”. Há um clamor pela dissipação das trevas, de chegar além, conhecer mais do que só isso que a vida apresenta. Aliás, o Marcelo Camelo é um dos compositores, não cristãos, que mais cita o relacionamento do homem com Deus. Em “Liberdade” ele diz “É Deus, parece que vai ser nós dois até o final”. É como se você já tivesse se desiludido com tudo e sabe agora só pode contar com Deus mesmo. Mas a que é campeã no quesito relação homem x Deus é “De onde vem a calma”. Tem aquele trecho que diz “Eu não vou mudar não, eu vou ficar são, mesmo se for só, não vou ceder. Deus vai dar aval sim, o mal vai ter fim, e no final assim calado eu sei que vou ser coroado rei de mim”. Putz. Quando Deus põe um propósito no seu coração, pra você não se dobrar, às vezes, e na maioria das vezes, vai encontrar a solidão. Isso em grande escala. Mas é aquela palavra de Apocalipse, “ao que vencer eu darei a coroa da vida”. Quer coisa melhor que essa?

Mas, então, minha ideia era pegar umas dez canções assim e fazer um espetáculo que mostrasse a busca das pessoas por

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Deus. O ruim é que as pessoas evangélicas não sabem lidar com a música de nosso tempo, principalmente no Brasil. Nos EUA, não há essa divisão. A música gospel toca tranquilamente nas paradas de sucesso, os artistas falam abertamente sobre Deus, Espírito Santo, em suas canções populares. Aqui no Brasil é assim: você vê os artistas cantando sobre santos católicos, normal. Se alguém fala sobre Jesus é música religiosa. Se você canta uma música que fala de Deus que não é evangélica, os evangélicos torcem o nariz. O que eu acho engraçado nisso, é que penso numa coisa que não tem nada a ver com música. Eu penso em futebol. Normalmente os crentes são torcedores ferrenhos de futebol. Já vi vários xingarem, brigarem, ficarem com raiva por conta disso. Torcendo em excesso. E, na verdade, tudo que é sensualidade, segundo o Apóstolo Paulo, é desagra-dável. Sensualidade é despertamento ardente dos sentidos. Se há uma coisa que desperta loucamente os sentidos é o futebol. Aí se você ouve uma música não evangélica, as pessoas dizem: “Hum, ouvindo música do mundo”. Existe futebol, times e torcidas que sejam só evangélicas? É disso que estou falando. Eles “coam o mosquito e engolem o camelo”. Putz. Dá uma bronca danada esse tipo de comentário. Isso por causa de nossa tradição religiosa. Os religiosos já têm regras do que é aceito e não aceito. Enfim, é um papo que me cansa pacas.

Seja como for, cheguei a casa, dei um beijo na minha mãe e fui logo para o quarto onde estava minha Julliete. Linda e com um som sinistro.

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Dava pra ouvir mil vozes ao mesmo tempo. Pelos as-suntos e risadas não eram vozes celestiais. Estava mais pra Uru-guaiana, Centro do Rio. Todos os pastores, auxiliares e esposas estavam reunidos pra uma reunião na zona sul. Uma constela-ção reluzente de homens que comandavam a massa neopente-costal em todo estado. Essas pessoas só se viam normalmente uma vez por semana. Aproveitavam esses encontros para por assuntos em dia, estratégias de campanhas nos cultos, como convencer melhor usando um só versículo, ou rindo dos “pro-pósitos” loucos de pastores que distribuíam pedaço de gravata, galho de oliveiras vindas de Israel e essas crendices.

“Ele fez a reunião das 7h, aí deu uma olhada na reunião das 10h, viu que estava vazia, disse pra eu fazer. Fui lá e arre-bentei. Peguei a reunião dele e pus no bolso”. Um pastor au-xiliar se gabando de ter arrecadado mais que o titular da sua igreja. Percebi que isso era uma coisa muito comum entre eles. Ficavam disputando quem conseguia mais oferta. É claro que os chefes sempre ficavam contrariados. Era registrado especi-ficamente quem fez cada reunião e quanto arrecadou. Isso ser-via pra ver o “crescimento” do pastor e “abençoá-lo” com uma

Capítulo“O meu reino não é deste mundo”

João 18:36

DOIS

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igreja maior, em lugares em que o poder aquisitivo fosse mais forte. Logo ele saberia como conduzir uma boa arrecadação de dízimo e ofertas. Por isso o esforço descomunal de cada pastor. Além da cobrança de seus líderes, havia a intenção de mostrar serviço pra alcançar um status maior com isso.

“Beleza, quando ele olhou quanto deu, fez aquela cara e ficou quieto. À tarde, ele olhou pela janela do escritório quan-tas pessoas havia no salão da igreja e disse pra eu ir lá fazer. Aí, joguei lá pra cima. Usei aquela passagem da mesa. Cara, num deu outra. Falei com força mesmo. Disse que se fizessem isso essa semana aconteceria tudo o que estava empacado no último ano. Geral veio. Foi forte. Peguei a reunião dele das 7h e a minha das 10h e botei no bolso também. A noite ele ficou se matando pra tentar pegar, mas num deu pra ele não”.

O grupo explode numa gargalhada que se mistura no mar de vozes. Isso me aporrinhava. Eu estava ali há pouco tempo oficialmente e já ficava pensando o quanto eu iria su-portar daquele papo de dinheiro e disputa. Eu tinha outros objetivos. Essa igreja também, quando surgiu. Pelos menos era o que eu pensava. Mas a parada...

O silêncio se fez subitamente em segundos. Entra, pela porta lateral do altar de granito do templo, o homem de cami-sa pólo, calça italiana e sapatos de pelica. Tem um semblante severo. Sempre com um franzido no meio das sobrancelhas. Estende a mão para o tecladista que está no altar e ordena, “Me dá esse microfone aí!” Sem bom dia nem oi, o Bispo co-meça uma oração dizendo que estava ali pra tratar assuntos “concernentes a obra de Deus”, pois a ordem de Jesus era que fôssemos pelo mundo e conquistássemos tudo. Eu não falei nada. Nem orei. Só fiquei ouvindo e pensando no que Deus quer pra nossas vidas. Eu ainda estava no meio do pensamen-to quando ele disse: “Amém. Podem sentar”.

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“Nós fomos chamados para o serviço de Deus, para aquilo que Cristo iníciou há 2000 anos atrás. E, para isso, não adianta nós ficarmos aqui embebedados de rituais religiosos. O que temos que fazer é levar o projeto de Deus a todas as esferas da sociedade. Pois quem pensa que o propósito de Deus é só abrir igrejas está com a mente tacanha, tem pensamento retrógado. Não, isso não! Deus quer que entremos e, a passos largos, nos meios de comunicação, políticas e os poderes desse mundo”.

Eu estava sentado bem na primeira fileira. Dei uma olhada sutil para os lados. Todos estavam com uma atenção petrificada para o que ele dizia. Desviei os olhos por menos de um segundo, acho. Na verdade, nós nos pelávamos de medo do Bispo. O cara regia seu império com mão de ferro. Tínhamos o cuidado, por exemplo, em não ir às suas reuniões vestidos de terno. Pois uma vez um auxiliar estava assim e ele perguntou: e “Aí filhinho, vai tirar retrato?” Todos tinham, então, o cuidado de não ficar muito arrumado ou muito largado. Um meio termo. A tensão era total.

Nada de desviar o olhar, pois ele já havia mandado sair de sua reunião quem não tivesse dando total atenção a ele. Como ele tinha o costume de andar de um lado pro outro fazendo aqueles gestos inconfundíveis e copiados com as mãos, eu aproveitei um desses momentos para observar rapidamente a plateia. Essas características de pregação nós pegávamos logo. Lançávamos um texto bíblico no ar. O desfecho vinha com an-danças de um lado pro outro, olhares penetrantes e gestos con-dutores com as mãos. Tudo isso prendia a atenção do público. Junte isso à linguagem formada com tonalidades nas palavras e sílabas fortes. Pronto. Essa era a comunicação que nos leva-va a qualquer lugar do mundo e que todos podiam reconhecer quem éramos. Realmente algo que me fascinava.

Meu sonho era que a teoria funcionasse na prática. Foi formatado um tipo de discurso que aparentemente parecia

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ser libertador. “Se você depender de Deus, pondo sua fé nele, pode tudo. Não depende do governo, religião, nada! Somen-te do Espírito que ele te dá”. Pronto. Era só sair pelo mundo manifestando esse Espírito às pessoas. Isso poderia ser através dos templos, rádio, jornais, revistas, TVs, outdoor, internet e nos testemunho das pessoas.

O problema é que quando uma instituição cresce, aque-les valores de irmandade do grupo que iníciou, de partir o pão e a vida toda em amor, vai ficando pra trás. O que passa a ser importante é a manutenção do nome, a auto-afirmação na so-ciedade. Imagine se Jesus, sendo quem ele é e foi aqui na Ter-ra, tivesse que fazer grandes alianças políticas, montar uma rede de comunicação oficial, imprimir milhares de camisetas, e pedir que cada pessoa pusesse uma placa na porta “Aqui todo mundo é Jesus”, para auto-afirmar seu nome? Imagine. Nada. Marcou o mundo, fez história e nada mais foi como antes. A gente sempre acha que precisa do sistema. É, eu sei como é isso. Estou aqui agora.

“Para isso, nós temos avançado. Compramos a emisso-ra. Mas ainda é irrisório diante daquilo que Deus pode fazer. Nós queremos o primeiro lugar em audiência nesse país. E pra que isso? Para glorificar o nome do nosso Deus! Amém?!”. Mil améns ecoam pelo templo silencioso.

“Temos alguns representantes nossos na política. Verea-dores e deputados. Mas isso é pouco. As leis dos nossos ini-migos, daqueles que querem ver nossa ruína, são muitas. São muitos os que tramam contra nossa vida, impedindo o plano de Deus avançar. Entendem o que eu digo?”

Já sabia que viriam mais coisas. A introdução era apenas a preparação pro caminho de planos mirabolantes da cabeça do nosso líder. Aquela acentuação na voz. Aquele brilho no olhar. Aquele jeito de quem iria conquistar o mundo. Eu sa-

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bia disso, mas no fundo até achava interessante. “Então, o que Deus colocou no nosso coração esse ano? Além de aumen-tarmos, praticamente, em dobro o número de deputados, va-mos lançar o nosso primeiro senador. Que é o nosso primeiro projeto pra chegarmos a cargos maiores: governadores, e até a presidência da república. Amém pessoal?” Améeeeeeeeem!

“Eu preciso que se empenhem. Estou colocando toda mi-nha força nesse objetivo. Conseguimos fazer o acordo adequa-do com dois partidos, estou indo a vários lugares, conversando, estou me empenhando. Mas preciso que vocês façam o mesmo. Coloque toda sua força no bairro, na cidade onde você estiver. Nós vamos passar através dos regionais estratégias de ação para que todos busquem resultados. Quero todos num só propósito. Alguém aqui não concorda, não gostaria de fazer isso? Talvez você diga, “Bispo eu não me sinto à vontade, mudou muito, quero só pregar o Evangelho, não dá pra ficar falando de políti-ca na igreja”. Pode falar. Nós o transferimos para outro estado e você vai fazer seu trabalho em paz. Alguém?”

Um silêncio sepulcral tomou conta do lugar. Sei que mais da metade ali tinha vontade de levantar e dizer “Bispo, o se-nhor fica com seus joguinhos de poder e a gente é que tem que ser seus cabos-eleitorais. Eu não entrei pra isso não, entrei aqui pra pregar o Evangelho e, não, alimentar o sonho insano de um ditador qualquer...” Mas ninguém tinha coragem. Até porque, qualquer um que se manifestasse contrário e aprovei-tasse a primeira e inédita oportunidade de mudar de estado, iria ser severamente retalhado e talvez fosse parar em uma tri-bo no interior do Pará, tendo que pegar 3h de canoa pra che-gar a sua igreja. O infeliz não tava a fim de sair do Rio pra isso. Então, fingia que obedecia de todo coração e ia em frente.

Ele chamou o nosso candidato ao senado. Um velhinho que mais parecia nosso tataravô. Era um intelectual que ha-

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via sido seu professor há algum tempo atrás. Todo mundo torceu o bico na hora. Ele disse que o velho era como se fosse seu pai, que o considerava muito e confiava nele. Para nós, havia alguns agravantes. Além de o homem ser muito velho, não tinha simpatia, não tinha discurso nem era evangéli-co. Isso mesmo. Para colocarmos uma pessoa lá no senado, que precisava de tantos votos, era necessário, no mínimo, ser gente nossa. Mas, quem iria ter coragem de dizer isso ao Bispo. O velhinho subiu no altar, com um paletó que eu jura-va que pertenceu a Dom Pedro. Seu cabelo era mais branco que o do Cid Moreira e ele tinha aquele semblante sereno de “bom velhinho”.

O Bispo deu um meio sorriso para o velho e disse que a gente iria trabalhar pra ele. Reafirmou: “Eles são assim mes-mo, mas vão colocar o coração”. O velho não esboçou reação. O Bispo fitou o bispo Santos e perguntou se a outra pessoa já havia chegado. Santos fez o sinal de positivo e disse: ”Mas não é para você falar aquela outra coisa não”. Santos era o cara da política. Acho que só ele chamava o Bispo de “você”, ninguém mais. Sério. Ele coordenava todas as questões políticas que a igreja se envolvia. Estava junto com o Bispo desde a fundação do ministério. O velhinho desceu, sentou numa poltrona com aquela carinha da pessoa mais inofensiva que você possa ima-ginar. Estávamos perdidos. Não havia jeito de eleger aquela ovelha pra um covil de lobos.

Bispo Santos abre a enorme porta de madeira na lateral e chama uma pessoa. Entra uma figura bem conhecida. Terno cinza, camisa social azul clara, cabelos grisalhos e aquela boca de quem saboreava uma colher de mingau, apertando bem a aveia com a língua no céu da boca. O incrível foi que no mo-mento que ele subiu no altar bateram palmas pro cara. Deus do céu. Eu já conhecia o Marcio Gonçalves de algumas manchetes

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de jornais. Típico político de carreira que nunca fez nada que pudesse ser marco de diferença na atuação desses profissionais. Mesmo assim, ele estava lá pra receber nosso apoio.

O Bispo apertou a mão dele e disse: “Você está vendo esses homens? Cada um deles representa uma igreja aqui no estado. Cada um deles irá para uma igreja falar para centenas e milhares de pessoas o seu nome. É ou não é pessoal?”

Ouviam-se vários: “Tá ligado!”, “Amém!”. Os olhos do cara arregalaram na hora. Ele ficou abisma-

do com o que acabara de ver. E se empolgou. Pegou o micro-fone meio abobalhado, com a boca mole e as sobrancelhas grossas e começou a elogiar com voz trêmula. Falou que sa-bia que éramos fortes, mas não sabia que éramos tão fortes. Aplaudiram aquele aperitivo de demagogia e ele desceu.

Não consigo engolir esses caras. E não é porque sou re-belde sem causa. É porque estudei em escola pública. Sei o que eles nos oferecem. Sei o que é uma escola sem bibliote-ca, merenda horrível e professores a míngua. Sei o que é uma vida sem plano de saúde. Talvez o Bispo já tenha esquecido. Talvez meus amigos pastores estejam anestesiados nesse mo-mento, mas quando precisamos usar o hospital público é que a gente vê quem são esses caras aos quais estamos apoian-do. E na boa, não há liberação de prédio ou forcinha política que me faça esquecer como eles tratam os serviços públicos. Como do alto de seus palácios eles abandonam o Rio e o povo que atendemos todos os dias nas igrejas são jogados nas sar-jetas de bairros sem saneamento básico, escolas, ou mesmo ruas limpas. Tem que pegar um político desse e levá-lo a uma de nossas igrejas lá no favelão e dizer: “Tá vendo aí, nossas igrejas são assim, cheias de pessoas nesse inferno aqui que o senhor não conserta. Vai dar um jeito nisso? Vai?”. Aí sim, a gente pensa se vai votar num safado desses.

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Mas ‘neguinho’ só quer defender o seu patrimônio. O cole-tivo que se lasque. E no momento, eu e meus amigos com uma gravata no pescoço e um púlpito de madeira, fazemos parte da engrenagem que vai levar esse sem-vergonha ao poder mais uma vez. Culpa de quem? Bispo Santos. Já disseram que o Bispo Santos, com seus óculos redondos e seu cabelo liso, se parece com John Lennon. Eu acho que ele tá mais pra um Roberto Leal míope. Falando com aquela boca miúda, soa até inofensivo às vezes. Mas não se engane com as aparências. Em nosso nome, já apertou a mão de gente como Antônio Carlos Magalhães e José Sarney. Daí dá pra você perceber o tipo de pessoa sem escrúpu-los que ele é. Talvez alguém pense que isso seja normal. Duvido muito que um cristão em sã consciência bíblica faça acordos de apoio a caras como esses. Mas não é por isso que estou aqui.

O Bispo continuou sua explanação dos tópicos de to-mada do poder no Brasil. Desceu e ficou andando de um lado ao outro na frente do altar. E eu na primeira fileira, consegui ver o movimento de suas veias enquanto falava. Seu sapato brilhava muito. “Nós estamos lançando um material muito importante. Isso vai abrir os olhos de muita gente e desmas-carar a ação da igreja católica”. Um cara trouxe uma revista em quadrinhos sobre um ex-padre jesuíta.

“Essa revista é muito interessante. Conta a história desse ex-padre jesuíta que tinha como missão se infiltrar no meio evangélico pra minar as igrejas, destruindo totalmente as orga-nizações que eram contra o catolicismo. Produzimos milhares. Vocês vão levar para suas igrejas, de acordo com o número de membros. Custa só R$2, que é um valor simbólico, dado a quali-dade do material. Digam para as pessoas lerem isso. É uma arma poderosa contra nossos inimigos, as organizações de Roma”.

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“Segura isso aqui”. Praticamente jogou a revista na minha mão. Era bem legal, com os traços tipo “Marvel” e tinha na capa um cara de óculos com uma expressão de assustado. O subtítulo dizia que era a “verdade sobre o Vaticano”. Nunca achei que tivesse alguma verdade no Vaticano. Sinceramen-te. A começar por aquelas roupas dos sacerdotes. Quem disse que Jesus ou Pedro usava aquela frescurada toda? Não consta em nenhuma parte da Bíblia aquelas roupas pomposas sobre Cristo ou os apóstolos, muito menos o ouro todo que eles gas-tam em si mesmos. É uma afronta à população mundial. A maior responsável pela destruição da ideia do Reino de Deus aqui na Terra é a igreja católica.

O Evangelho anunciado por Jesus mostrava que o Reino de Deus estava dentro do homem, por isso era possível amar ao próximo como a si mesmo. Partia o pão de casa em casa, se reunia nas ruas, nos pátios, mostrava como era poderoso esse amor... E este mesmo Evangelho foi totalmente perverti-do por uma instituição que usou a força do Estado pra impor suas vontades. Que matou os que não concordavam com ela. Ganhou dinheiro e terras com acordos políticos e exploração do povo, ajudando os ricos a escravizar pessoas e lucrando muito com isso. Cobrando para “perdoar” pecados, vendendo através de indulgências, um lugar no paraíso. Queimava vivo, os que não seguiam suas doutrinas. Não dá pra conceber Jesus fazendo essas coisas.

Agora, pense nessas ações em séculos de destruição da humanidade. Como é que se retira da cabeça e dos costumes da população mundial, 18 séculos de perversão da verdade? Esse Deus terrível que precisa que você pague caro. Essa reli-gião sisuda, na qual o mais importante são os rituais que você segue. Não importando o quão crápula você seja, já que mais importante que o caráter são os ritos. Essa igreja que manipu-

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la, enriquece, escraviza e domina em nome de Deus. Como se livrar desses 18 séculos? Reforma? Nada. Nada disso salvou o Evangelho proposto por Cristo. Mesmo a igreja de Lutero, vem com heranças profundas do catolicismo. Melhorou. Mas se você prestar atenção, nas igrejas pentecostais, evangélicas e cristãs do nosso século, verá que, em várias esferas, elas carre-gam o sumo da religiosidade herdada da igreja católica.

O que a igreja romana fez com o Evangelho de Cristo é irreversível. A coisa é tão louca, tão absurda, que os sacer-dotes permitem que as pessoas paguem promessas compran-do coisas, como uma perna de cera, por exemplo, e levando aquilo de joelhos numa escadaria. Fico boquiaberto. Você está assistindo ao jornal da TV e o ‘âncora’ diz: “Fiés fizeram demonstração de fé carregando imagens, subindo escada de joelhos, agradecendo ao santo tal”. Cara... É muito absurdo.

A questão é que está escrito lá na Bíblia e cada padre tem uma. Quando estavam fazendo comércio, vendendo coisas pros rituais, Jesus chegou e derrubou tudo, pois a devoção ali já tinha virado rituais lucrativos. Outra, quando um padre lê na Bíblia Jesus mandando alguém pagar promessas de joe-lhos, fazendo procissão, ou seja lá o que for? No mínimo, eles tinham que parar tudo e dizer: “Não precisamos disso, vamos falar direto com Deus. Está escrito que nós temos acesso di-reto a ele, sem precisar de nada disso que inventamos”. Mas não adianta. As pessoas acham que a tradição é melhor que a verdade. Não importa o que a verdade diga, elas não querem abandonar um ritual que fazem a dez, vinte, trinta anos em nome da responsabilidade de levar um papo direto com Deus e ter a consciência de que Ele está contigo todos os dias.

É mais fácil jogar a responsabilidade pra alguém que você pague de alguma forma pra ele exorcizar as suas culpas. Segunda-feira você está novinho em folha pra errar nova-

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mente. A liberdade proposta por Cristo é maravilhosa e lhe dá uma responsabilidade com sua vida. O mais absurdo, é que antes de Lutero, a igreja católica não traduzia a Bíblia do latim pra língua dos países onde estava, para o povo não ler, não conhecer o que Cristo realmente ensinou. Como, me diga alguém, como acreditar numa instituição dessas? Tudo bem, foi traduzida e hoje é o livro que mais vende no mundo. Mas muita gente nem abre, nem sabe o que está escrito, preferem continuar acreditando que há uma religião oficial – embora Cristo não tenha inventado nenhuma, ele era Judeu – e que seus rituais e costumes esdrúxulos, valem mais do que toda palavra dita pelo Jesus que eles dizem seguir.

Na boa, tem coisas que nem gosto de ficar pensando, pois me deixam cada vez mais cansado. Parece que não há muito o que fazer contra tanta distorção. Sinceramente, não acho que uma revistinha surta algum efeito, mas todo esforço é bem--vindo. Pelo menos as imagens são legais. E o Bispo continua com seu plano de domínio de poder.

“Como vocês estão vendo, Deus está pondo a nossa dis-posição várias ferramentas para destronarmos os nossos ini-migos e avançarmos galgando posições mais altas para mudar esse mundo. Por isso nossa preocupação deve ser com a obra de Deus. Não perca seu tempo com as coisas dessa vida. Por exemplo, um rapaz lá na África. Ele vivia numa comunidade pobre, nós o pegamos, tratamos dele, o formamos e ele estava servindo como pastor. Não ganhava muito, ganhava o justo. Começou a comprar coisas eletrônicas que antes não pos-suía. Aí visita um e outro pastor, vê que possui coisas que ele não tem e já acha que precisa ganhar mais, obter mais coisas. Veio até a gente reclamando do seu soldo. E o tempo passou, ele resolveu sair. Você vê, antes não tinha nada, depois acha que o que tem é pouco. Está preocupado com o que? Com os

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prazeres dessa vida. E vocês foram chamados para servirem a Deus e não ficar com a cabeça em carros, aparelhos, não, nada disso.”

Mesma coisa é a moça. Tá lá de obreira e diz que quer entregar sua vida para obra. Depois se casa com um pastor, vê que outras mulheres têm filhos, e por um desejo da carne, quer também ter filhos, pois acha bonitinho... Quer ver, vou mostrar uma coisa pra vocês. Abram aí em Isaias 54”.

Gosto desse barulho de várias páginas se movimentan-do. “Abriram? Leia aí”. Putz. Apontou o microfone perto da minha boca. Caraca, deu uma friaca na hora. Engoli a seco e li: “Canta, ó estéril que não deste a luz; exulta de prazer com alegre canto, e exclama, tu que nunca tivestes dores de parto, porque mais são os filhos da desolada, do que os da casada, diz o Senhor”. O mais engraçado, é que eu fazia a mesma ento-nação que a dele nas vírgulas e nas palavras destacáveis. “Ou-tra versão”, o Bispo pediu. Putz, eu usava a Bíblia Contempo-rânea e ele só usava a Atualizada. Ri muito com isso. Mas ele começou seu argumento sobre o versículo.

“O que Deus está falando aí? Que você será mais feliz se não tiver filho algum, por conta das dores do mundo. Qual é o melhor objetivo? Fazer filhos na fé. Esse é o nosso propósito. Ao invés de ficarmos ocupados trocando fraldas e etc. Vamos fazer filhos na fé pelo mundo afora”.

Muita gente pode achar um exagero essa posição. Mas a verdade é que filhos no trabalho que desenvolvíamos eram uma coisa bem pesada. Os pastores ficavam um ano em cada igreja que passavam. Quando chegavam a ficar mais de um ano, já se sentiam incomodados. Queriam mudanças. O povo estava habituado a isso e os pastores mais ainda. Logo, como fica a vida de uma criança que tem que mudar de cidade, es-tado, país, de quando em quando?

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A igreja já havia passado por muitos problemas com fi-lhos de pastores na África e em outros países, pois aqui no Brasil, pastores negros casavam-se com mulheres brancas e geravam filhos brancos. Em alguns países da África essas crianças penavam pelo preconceito. As crianças não criavam ciclos de amizades, identidade de sua infância. Acabavam vi-rando pequenos pastores infantis. O Bispo já havia sugerido que não tinha nada a ver com a posição da igreja católica, que não deixava seus padres se casarem e constituírem famí-lia por conta da grande riqueza que a igreja católica possuía. Imaginem ter que gerar herança pra mulher, filhos, cuidar de tanta gente? Isso iria gastar muito dinheiro acumulado em 20 séculos de exploração dos governos e das pessoas. Acho que pensam que é menos danoso que muitos caiam na ho-mossexualidade e pedofilia que constituírem uma família e, com seus direitos e necessidades, consumirem o “sagrado” dinheiro do Vaticano.

No nosso caso, até funcionou um pouco. Vários pasto-res da nossa igreja fizeram vasectomia. Depois compravam um poodle para a mulher. Sério. Era uma palhaçada só. Teve uma época que foi uma febre de poodle entre as mulheres de pastores. A conversa que antes era só sobre roupa e cabelo agora era sobre pet shop e essas bobagens. Eu evitava passar perto. Futilidade é uma coisa que contamina rápido. Eu fica-va sonhando com algum tempo vago pra ler livros, revistas, ouvir músicas, assistir filmes, conhecer alguns lugares e essas mulheres reclamavam que ficavam sozinhas. Putz. Futilidade é fogo. Tem gente que tá só fazendo peso na terra.

“... Então essa é a nossa fé. Vamos avançar com nossa emis-sora de TV. Agora já estamos vendo um satélite só nosso. É isso mesmo. Temos que pensar grande. Não dá pra lutar contra nos-sos inimigos de estilingue. Temos que possuir canhões pra isso.

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E o nosso Deus vai nos revestir de força para esse propósito. Amém?! Vamos orar. Busquem a presença de Deus”.

Como um som de cavalaria, várias poltronas estalaram ao mesmo tempo. Todos ficaram de pé e começaram a orar. Uma barulheira só. Quando abrimos os olhos o Bispo e sua comitiva já tinham saído pela tangente. E começamos a esva-ziar o grande templo da Zona Sul. Alguns começaram a me zoar. “Aí, joga essa Bíblia fora”. “Pegou a benção direta do ho-mem”. Eu queria almoçar, estava cheio de fome.

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“Uma coisa que a gente podia fazer é dominar o mun-do! Né, não Eduardo?” Bradou Léo, esfuziante. “A gente precisa mobilizar a massa, impregnar no coração de “geral” um espírito de fé. Só assim as coisas vão surtir resultados. Falaí, Edu, pô”.

Eu gostava do Léo porque tínhamos vários pensamentos faraônicos sobre mobilização do povo. Queríamos pôr em prática a manifestação do Evangelho do reino da mesma forma que Cristo, quando ele começou, mas, no nosso caso, numa dimensão mais publicitária. Queríamos fazer uma parada chamada “O Batizado”. Até aí, tudo bem, nada novo, mas o grande lance era pôr umas das primeiras frases do Evangelho em prática. Quando Jesus chegava numa cidade ele dizia para as pessoas “arrependei-vos, pois é chegado até vós o Reino de Deus”. Arrepender era mudar de rumo. Essa ideia já havia começado com João Batista preparando o caminho pra Jesus desenvolver seu trabalho.

João, lá no deserto, pregando o Evangelho do reino, foi indagado como era se arrepender e mandou essa: “não adian-ta você achar que tradicionalmente é filho de Abraão e têm direitos. Produza frutos de arrependimento. Se você tiver duas vestes, dê uma pra quem não tem. Se tiver comida, faça

Capítulo“Venha a nós o teu reino”

Mateus 6:10

TRÊS

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o mesmo. Você que cobra impostos, não cobre mais do que é devido. Se você é soldado, não maltrate as pessoas, não acuse falsamente e procure contentar-se com seu salário. Se você não produzir os frutos não serve pra ficar no reino”. Isso tá lá no Evangelho de Lucas, capitulo três.

Repare que João não estava preocupado com as tradições religiosas. O arrependimento era social. Era uma mudança de atitude que influenciaria toda a comunidade em que eles vi-viam. Isso em todas as esferas. Ou seja, a proposta não era para o indivíduo formatar-se aos costumes religiosos. Era pra não ignorar os meios tortos nos quais corria a forma de vida em sociedade, ao contrário, constrangê-los, subjugá-los, mudar os hábitos de fato. Não era pra se tornar um religioso, olhar pra sociedade em que vive e achar que tudo sempre foi e será assim, sem nem mesmo saber o motivo.

É claro que marcaríamos isso com o símbolo do arrepen-dimento, assim como João Batista, iríamos batizar todo mun-do. O problema é que o catolicismo fez do batismo um ritual religioso ridículo. Que não tem efeito espiritual algum. Uma vez que o batismo é pra arrependimento de pecados e um re-cém nascido não tem pecado algum, isso vira só um costume que a igreja católica cobra, pra ter mais uma taxazinha e iludir as pessoas aprisionadas a uma religião. Mas isso não tem na Bíblia. É só pensar. Jesus se batizou aos trinta anos. Qual é a parte que ninguém entendeu?

O grande lance era espalhar a ideia na mídia, rádio, TV, outdoor, jornais e promover um grande batismo em todas as orlas do estado. Tínhamos veículos e mão de obra pra isso. Agora era só querer. Já que o nosso objetivo original era al-cançar as almas.

“Então Eduardo, falaí pros caras... Todo mundo lá na praia, com uma roupa branca, querendo mudar de rumo, as

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emissoras de TV lá, cobrindo; vários vídeos na internet; todo mundo dizendo porque está fazendo aquilo... Pô, vai ser ma-ravilhoso”. Viajando o Léo.

Léo tinha essas ideias de parar o trânsito e outros lances. Ele conheceu nosso pastor regional numa outra época. Quando o camarada botava carro de som na rua, sacudia, enchia estádios por conta própria. O tempo vai passando e os caras vão virando burocratas. E a gente pensando em tomar o mundo. O arrepen-dimento é a chave para tomar posse de um mundo novo.

“Vocês tem que ir pra igreja de vocês orar, isso sim. Fi-cam com ideias mirabolantes aí e nem vão poder fazer. Vão pra igreja orar”, disse o Jaime, chatão.

Eu não perdi tempo também. “Pô Jaime, é isso que a reli-gião quer que você pense. Quer que você ache que Jesus veio só pra você ir lá no domingo comungar e viver tipo um extra-terrestre aqui na terra. Mas lá em Isaía 9 tá escrito o que? ”Um menino vos nasceu e o governo está sobre os seus ombros”. Pô, tá falando que Jesus veio pra trazer uma ideia nova de governo, pra mudar a Terra. Se a gente ficar só com esse pen-samentozinho de igrejinha, a gente não vai fazer aquilo que é o propósito do Evangelho, o “ide por todo mundo”, fazer as pessoas diferentes. A gente tem que ir pra rua”.

“Toma-lhe”, disse o Léo rindo muito. Mas o Jaime estava muito chato. “É, mais pra vocês faze-

rem qualquer coisa dessa natureza, têm que ser um bispo, al-guém grande e já tem gente pacas na frente de vocês. A gente tá no fim da fila ainda. Não dá pra ficar pensando assim não. Vamos ralar muito ainda”.

Eu sabia disso. Nesse momento éramos três números re-gistrados em uma grande instituição, sentados num restau-rante barato, comendo um rango correndo, porque não po-díamos nem nos dar o luxo dos nossos pastores titulares de

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só voltar à igreja no dia seguinte. Nós tínhamos que fazer a reunião da noite. Ou seja, três números que não mandavam na própria vida, achando que poderiam transmitir um novo governo sobre a terra.

Fui voando pra igreja. Tinha que fazer a reunião das 19h. Eu me sentia inspirado. Parecia que podia voar. O discurso de poder e dominação do Bispo tinha me en-tusiasmado muito. A verdade é que eu me inspirava com qualquer história. O cara não precisava ser o mocinho da história, sua ação sagaz já servia de ponto de partida pra uma resposta minha.

Lembro-me de quando li sobre PC Farias, aquele cara que recolhia dinheiro pra Fernando Collor. A história dele era interessante, o cara mexia com negociações de carros usados e outras coisinhas mais. Antes dos 20 anos de idade ele pôs na cabeça que iria ter seu primeiro milhão de dólares e teve. Era muito determinado. Pena que pro mal.

Um dos filmes que eu mais gosto é “Um Sonho de Liber-dade”. O cara tá na prisão, lavando dinheiro pro diretor do pre-sídio e lá dentro começou a fazer a diferença. Montou escola, biblioteca e traçou um plano pra ter uma vida diferente quando saísse dali. Muito bom. Esse tipo de coisa me faz pensar.

Tudo bem, a vida de Gandhi foi muito mais desafiadora para mim. Gandhi era de uma casta inferior na Índia, se tornou um dos maiores líderes mundiais. O irônico e gritante desse acontecimento é que ele achou a vida de Jesus Cristo fascinante. A mensagem do Evangelho era extremamente transformadora e revolucionária. Ele afirma isso naquela sua autobiografia. En-tão, o que ele faz? Tenta conhecer mais desse Cristo. Aproxima--se de igrejas protestantes inglesas. Mas, assim como no catoli-

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cismo, esses cristãos ingleses desconheciam o que era amar ao próximo, a menos que seu próximo fosse branco, loiro de olhos azuis. Gandhi era considerado negro, não podia sentar nos lu-gares dos ingleses brancos. Esses também eram coniventes com as ações preconceituosas do resto do mundo.

Quando enfim, conseguiu fazer amizade com um grupo de cristãos e passou a assistir seus sermões, achou tudo enfadonho, nada a ver com a vibração que Cristo apresentava no Evangelho. O Reino de Deus que mudaria o mundo, como leu nos Evangelhos de Matheus a Lucas, parecia uma coisa fria e incipiente, se apresentada pelos ingleses. E olha que era Gandhi, o cara cheio de regras e métodos de purificação que nenhum mortal comum, como eu e a maioria suportaria.

Gandhi se interessou por livros como “O Reino de Deus Está Dentro de Vós” de Tolstoy. Seguiu os ensinamentos de Cristo de mudar o mundo usando o amor ao próximo e o po-der da palavra, mas não se considerou cristão. Palmas para os religiosos! Como conseguiram afastar um dos maiores líderes do mundo de ser um mensageiro das verdades de Cristo?

A parada é que nesse dia eu estava com a corda toda. Cheguei já na hora da reunião da noite. Só deixei minha mo-chila no quarto, lavei o rosto da poeira de estrada e fui pro altar sem gravata, sem nada. Estava me sentindo “o cara”.

“Quem trouxe a Bíblia? Abra sua Bíblia em Gênesis ca-pítulo 1 versículo 26. Olha o que Deus diz pra sua vida nessa noite: ‘Então disse Deus, façamos o homem à nossa imagem, conforme a semelhança; domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastam sobre a terra’. Amém, igreja? Quem tá entendendo isso aqui? Você pode ser o que você quiser nessa terra. Você pode ser mé-dico, comerciante, desenhista, músico, advogado, pintor... O

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que você quiser. Mas uma coisa é certa, Deus o fez pra que domine sobre tudo. Há uma área na sua vida que você precisa dominar. Que você vai prosperar nela. Há uma área que é sua, que você nasceu pra isso, é o seu chamado, é sua missão, mire esse alvo, e vai em frente.

Deus está dizendo aqui que você é parecido com ele, as-sim como ele vence, assim como ele cria, você também vai conseguir vencer e criar. Não é isso que tá escrito?”

“Simmmmm!”. O sim da multidão ecoou no templo com uma grande marcha, contra os domínios da terra.

Eu acredito em tomar o domínio. Apesar de estar aqui, numa igreja como essa, que controla totalmente a minha vida. A minha posição sempre foi a de estar no controle da situação. Não deixar que nada me domine. Talvez por isso não seja tão bem visto nos meios da liderança. Mas acredito na verdade que transmito para as pessoas. Não adianta elas frequentarem a igreja e continuarem escravas do sistema. Sistema de vícios, desemprego, dependências do governo, de coisas mesquinhas dessa vida para se sentirem felizes. Elas podiam. Eu cria nisso. É a mensagem de Cristo. Tomar posse da sua fé. Não desper-diçá-la numa vela, num amuleto qualquer. Mas colocar essa fé em prática. Assegurando de que você faz as escolhas. O Rei da sua vida é poderoso, porque você vai viver medíocre? É por isso que estou nessa igreja. Porque posso falar isso para um número grande de pessoas. Se eu conseguir perseverar aqui, ter domínio sobre meus pensamentos, não deixar esses caras que são só repetidores de jargões e sabem como tirar dinheiro do povo me detonar, vou conseguir um cargo maior e transmitir a ideia pros meus liderados. Mudar o objetivo. Ou voltar ao objetivo original de Cristo.

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Inventei de ir a um Festival de Filmes Under-ground. Depois que o silêncio pairou sobre o templo, pus uma calça preta, All Star, casaco de moletom, um chapéu de pes-cador e óculos. Detalhe, eu não uso óculos. Não tenho grau algum. Mas, realmente virei outra pessoa com essas roupas. “Civil”, sem aquelas roupas de pastor, eu sou irreconhecível. Há uns cem motivos que me obrigam a sair assim. Há outros cem riscos. Se algum pastor der na telha de ir lá na sede agora, eu estou perdido. Tem dois obreiros dormindo no salão. Mas eu não estou por lá. Então, eu iria pra um lugar que nós chamamos de “paredosvisky”, ou “paredão” da sede estadual. Ficaria lá de molho até ser jogado em algum outro canto.

Outra parada é: o festival acontece num antro sinistro. Normalmente é mais pra shows. O ambiente é o mais boê-mio possível. Todo mundo que você encontra lá, tá com uma lata de cerveja na mão, um cigarro ou um baseado. Então, o que um pastor está fazendo lá? Evangelizando? Só poderia ser. Mas não estou com ninguém, não há um folheto na minha mão e nem seria prudente sair sozinho pra ficar falando em nome da minha igreja à noite. Bobagem, muita gente pode pensar, mas não o pessoal lá da igreja.

O lance é que, embora eu ache legal o visual da gale-ra que perambula por esses lugares, não suporto o cheiro de bebida e maconha. É terrível. Então, é legal ver a galera de dread, tatoo, alargadores, estilo rocker ou hippie. Mas vício realmente me incomoda. E ficar fumando sem ser fumante é sinistro. O que me preocupa mesmo é se um jovem, ou sei lá, alguém que já foi na igreja me reconhecer, achar que to na gandaia também. Coisa que não estou. Aí, escandalizo essa pessoa. Faço ela me julgar, pecar e até pensar: “Pô, o pastor fala aquelas paradas todas, mas tá no mundão igual a mim. É tudo mentira”. Saca? Então é isso. Não quero que ninguém se

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perca por minha causa. Provavelmente vou perder umas três ou quatro horas de sono.

Gosto do ver os grafites. Ia muito ao centro da cidade ver alguns. Tenho vontade mesmo é de ir a Londres ver os do Banksy. O cara faz crônicas sociais e críticas políticas usan-do imagens espetaculares. O mais interessante é que ninguém sabe quem é o cara. As imagens vão tomando conta da cidade. Aparecem de assalto em lugares degradados, se apropriando da paisagem. Irado mesmo foi quando invadiu o Museu do Louvre com suas obras subversivas. Genial. É tipo aquela pa-rábola do “fermento do Reino de Deus”, que a mulher esconde no bolo e vai crescendo. Mas aí, o cara grafitou até naqueles muros de Israel que separam Gaza. E escreveu lá “O muro da segregação é uma vergonha... eu acho interessante a possibili-dade de transformar a estrutura mais invasiva e degradante do mundo em uma galeria mundial de liberdade de expressão e arte”. Sensacional. Taí, um lugar que eu gostaria de visitar.

Se eu dissesse isso pra um pastor, obreiro ou alguém da igreja, vão, no mínimo, dizer que sou maluco. Sério. A gale-ra tem uma tremenda adoração por Israel e tudo. Uma vez uma senhora foi e me trouxe uma garrafa d´água, um galho de oliveira e uma pedra. Os bispos traziam tudo pra aquelas campanhas mirabolantes. Mas nem estou a fim de pensar nis-so. É verdade. Pô, há reuniões que o povo tem que levar uma bolsa pra pegar tanta quinquilharia que esse pessoal distribui. Espada, cartões, papéis, chaves, trombetas, galhos, rosas... Dá nos nervos. Isso até foi legal num tempo. Pontos de contato e tal. Mas agora já encheu o saco.

Eles distribuem uma parada pra cada dia. O povo fica depositando a fé em coisas, ao invés de conhecer e crer a ver-dade da palavra de Deus. Isso é que transforma a vida das pessoas. Conhecer a história, a verdade, o contexto do que é

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pregado. E não um monte de “correntes” malucas, de quem está desesperado pra por gente nos seus cultos e arrecadar di-nheiro a todo custo. Putz.

Mas tá, já cheguei aos grafites. Passei por um muito legal, uma sequência de homens voltando a ser homem da caverna, com a frase “Nascemos originais e morremos cópias”, do Jung. Gosto da frase. Me deixa intrigado e feliz ao mesmo tempo. É chato quando a gente precisa de uns filósofos, uns psicanalis-tas, para reafirmar o óbvio contexto bíblico. Na ideia original de Deus, o homem foi criado para ser alguém livre que do-minasse a terra. Que reinasse num mundo sem desgraças e misérias dessa vida.

É até essa esperança que temos quando vemos a pureza de uma criança, que ela terá uma vida fantástica. Mas aí, o homem vai se aprisionando a cada dia que passa nos mecanismos ab-surdos da vida. Capitalismo, consumismo, vícios, degradações e superficialidades que nos são apresentadas e ficamos presos a um ciclo tão vicioso e teleguiado, que não há como fugir. Como descobrir o que realmente era pra vivermos quando tudo isso foi inventado lá no início? É aquela parada que eu estava falan-do para o povo na reunião. “Governe o homem...” Depois de tudo que foi perdido, vem Cristo e traz uma ideia nova. Ele diz que nos dá um Espírito novo, que nos guiará a toda verdade. É uma ideia nova, para um mundo novo.

Lembrei de Platão: “O mundo é das ideias”. Novamente eu chancelando os pensamentos com um filósofo desses. A única maneira de conhecer o que foi proposto originalmente pra nossa vida é fazendo aquilo que o Apóstolo Paulo escre-veu em Romanos 12: “Não se conforme com o mundo, mas transforme esse mundo renovando a mente”. Caraca! Tinha que anotar essas coisas. Renovar. “Re” é retornar aquilo que é novo. Putz. Fantástico. Aí, uns malucos saem grafitando

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ideias... mas as pessoas só olham. Só lêem. Às vezes, sabem até que existem essas coisas. Mas é aquilo, ter conhecimento de algo não quer dizer que se tenha consciência disso. Preciso criar uma ação com grafite pra espalhar as ideias do reino que estão rolando na minha cabeça.

Uma menina linda, branquela e loira estava com um tremendo dread na cabeça. Acho interessante as pessoas pro-testarem contra a sociedade formal. Quando a propaganda vende rostinhos limpos e cabelos de chapinhas você vai lá e põe seu cabelo todo zoado. Tipo, sou diferente mesmo. Mas aqui tem muita gente forçando a mão. Três meninas de boina, vestidas de jaquetas com botons que achei até que fosse um encontro de escoteiros camaradas. O número de pessoas aqui com All Star é bem maior do que em qualquer lugar da cida-de. Os caras desfilando com seus dreads mal feitos também. Tatoo então... Pode tá o frio que for o pessoal tenta andar com seus outdoors na pele à mostra. É efervescente o acúmulo de jovens. Pena que fazendo coisas tão inúteis como beber mui-to, fumar e usar drogas. Mas fui logo para a arena onde tá rolando o filme. Cheguei na hora boa.

No telão aparece “TAMBORO, para todos sem exceção” direção Sérgio Bernandes. A trilha sonora é densa. Desespe-radora. Abre com visões panorâmicas de grandes centros, fa-velas aos montes, até chegar à Floresta Amazônica. Quase não há diálogos. Há uma sucessão de imagens mostrando os vazios, as construções de povos, a invasão de homens na natureza des-truindo tudo. Uns cem homens pobres recebem uma motosser-ra e vinte reais pra destruir, para por uma floresta abaixo. Re-cebem a ordem do capataz: “destrua tudo e taquem fogo. Não quero ver nada de floresta de pé”. Detalhe, não é ficção. O filme é um documentário que me deixa tenso a todo o momento. O número de bichos que saem desesperados no meio do fogo.

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Todas as espécies possíveis: onças, tucanos, pacas, tartarugas. São tantos bichos morrendo ou capturados, que chega um mo-mento que o espectador pode chorar à vontade. É muito triste.

Creio que não foi esse o projeto de Deus quando desejou que o homem dominasse e governasse a terra. Duvido muito que se essas pessoas recebessem o Reino de Deus, com sua consciência de preservação ao próximo e ao que Deus criou, estariam fazendo isso. Você dá uma olhada lá nos Evangelhos e repara que as pessoas preferem morrer a transgredir o es-pírito do novo reino que recebeu. Elas não querem. Aquilo é mais precioso: “Não vou destruir meu próximo, não vou aca-bar com a natureza, não vou ser conivente com a ação do mal. Sou do Reino de Deus”.

Mais um tempo de filme e você percebe o porquê de tanto caos. As cenas de pobreza das massas e amontoado de gen-te por todos os cantos são indigestas. Mas lá no interior do interior, lá no fim do mundo, num Brasil que você acha que não existe, surgem as famílias numerosas e miseráveis. Famí-lias gigantescas com muitas crianças em barracos pobres. E em todos eles uma imagem católica. Daqui a pouco cenas de catarses, pessoas em procissões, carregando cruzes, santos de barros, com roupas e rituais estranhos, de repente, um padre, bem vestido, com vestes brancas e uma capa azul com deta-lhes, segura uma imagem de santa nas mãos e apresenta pra multidão, que eufórica, chora, bate palmas, chega num estado de êxtase tremendo. A câmera circula país afora, pegando to-dos os momentos de transe religioso. Algo abismador.

O que me aborrece nisso tudo, o que me deixa indigna-do, é essa colonização covarde que nos foi feita no Brasil. O catolicismo está nos mais profundos recantos do país. Assim como o bezerro de ouro levantado no deserto pelo povo de Israel, nesses documentários, você vê as pessoas acreditan-

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do em qualquer coisa, qualquer imagem, qualquer troço vira santo. Quem já viu aquele filme “A Festa da Menina Morta”, sabe o que eu estou falando. Esses professores de estudos so-ciais e “ólogos” da vida que aparecem na TV podem achar muito legal “manifestação cultural de fé”, ou sei lá o quê. Mas é burrice. Pô. “Festa pra menina morta” que agora virou santa? E você vê que sempre tem um padre no meio da comunidade, sendo conivente, não ajudando o povo em nada.

Essa colonização que tivemos com o braço forte do cato-licismo, não imprimiu no povo esclarecimento, pois o que as pessoas acreditam nem de longe está na Bíblia, que é o livro da formação cristã. O que os padres fazem a respeito? Nada. Parece que quanto mais ignorantes melhor. Pra serem domi-nados. Acho que a única coisa da Bíblia que a religião ensi-nou, e que está escrito lá no livro de Gênesis é “crescei e mul-tiplicai”. O detalhe que isso foi um mandamento de milhares de anos atrás, numa terra vazia e, hoje, católicos e evangélicos, não percebem o mal que estão fazendo criando uma massa de miseráveis no país.

Fiquei vendo aquela gente e me entristecendo. Por mais que a mensagem do Reino de Deus seja revolucionária e liber-tadora, nunca irá alcançar essa gente. Talvez o Evangelho de Cristo nunca será entendido como de fato é, originalmente. A religião cauteriza as mentes de uma forma que a capacidade da inteligência das pessoas fica zerada. Não vão compreender. Diga pra um fanático religioso que aquela loucura, aquelas práticas e rituais que ele segue não levam a nada. Não salvam ninguém. Tente dizer pra ele que esses rituais são só costu-mes e Cristo os aboliu antes mesmo deles existirem. Diga que você tem acesso direto a Deus sem precisar de nenhum santo inventado depois e de nenhum ritual. Que Jesus, no meio da rua, orava e falava direto com Deus e disse pra gente fazer o

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mesmo. Que podemos ter acesso direto, sem intermediários. Diga isso pra essas pessoas. Como dizer?

A frase de Platão está corretíssima. “O mundo é das ideias”. Só uma ideia nova pode fazer o mundo mudar. Veja os americanos. Querem vencer o terrorismo com grande poder bélico. Armas, aviões, mísseis. Nada. Esqueça isso. Nunca vão vencer. Por que o terrorismo é uma ideia impregnada na ca-beça de homens que acham que estão lutando contra os pode-res do mal. Creem que vão para o paraíso quando morrerem pela sua causa em nome de um profeta e um deus. Mas os americanos se dizem cristãos. Deveriam mostrar a agenda de Cristo contra os inimigos. “Amais uns aos outros”, “Orai pelos os te perseguem”, “Ande a duas léguas”. Mas eles, dizendo-se cristãos, conseguem ser mais perversos que os próprios terro-ristas. Nunca vão mudar essa situação.

Tem gente que olha esse papo meu e pensa “Putz, isso não é possível”. Claro que sim. É só fazer uma coisa que a igre-ja católica não ensina. Leia a Bíblia. Quantos soldados roma-nos, oficiais, foram transformados na época de Cristo? Uma galera. Por quê? Porque Cristo mostrava a que veio. O proble-ma é que, no século presente, nós dizemos pertencer a certa doutrina de vida e aderimos o mal. Praticamos o que achamos certo praticar e não aquilo que é a essência do que somos: cristãos, por exemplo. É fogo!

O cheiro de maconha já estava insuportável. O ruim de conviver pacificamente em certos lugares é isso. As pessoas acham que você tem que sentir o mesmo cheiro que elas. Não respeitam com seus cigarros. Ah, quer saber? Tô cansado. Vou embora. Fico aqui pensando em como seria bom mudar o mundo e tal. Que o problema é a religião. A gente pode fa-zer algo pra mudar. Na real, nem sei se minha igreja coopera muito pra que isso aconteça.

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Vou ver Roberta. Estamos há meses sem nos falar pes-soalmente. Todas as nossas tentativas de uma relação à distância foram frustradas. No início as mensagens de amor e esperança eram constantes. Os diálogos pela net são complicados. Pensa-mos muito. Viajamos demais na maionese com nossos conceitos filosóficos surrealistas. Isso é que dá namorar uma CDF que gosta de poesia. O problema é que ela tem 17 anos e fica procurando sentido pra vida. Isso não há, não vai encontrar. Então, se antes eu era um cara carinhoso, que escrevia poemas na sua agenda, man-dava cartões bonitinhos e tinha sempre um elogio pra dizer; ago-ra sou um cara distante. Literalmente. Não nos vemos mesmo. A princípio ela encarava isso como minha missão, meu chamado, agora age como se fosse uma mulher reclamando que o mari-do só pensa na carreira. Na verdade é quase isso. Normalmen-te estou pensando nas coisas relacionadas às minhas atividades eclesiásticas. Isso porque não considero um trabalho, mas minha vida. Então, não há muito pra onde fugir. E estando numa igreja grande, com “centenas” de responsabilidades, não há o que fazer senão ligar e dizer que não vai dar pra ir. Com o tempo deixei de ligar pra me desculpar. Achava que ela entenderia. Achei errado.

Capítulo“Importa entrar no Reino de Deus.”

Atos 14:22

QUATRO

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Esse “ninguém me entende” adolescente se estendeu para o nosso namoro. Aí o lance ficou sinistro mesmo. Se antes era uma rebelde sem causa, daquelas que atiram contra os pais e buscam refúgio em canções da Banda Catedral ou Evenescen-ce, agora tem um namorado que não é um marinheiro, mas que nunca aparece e, com isso, faz com que sua vida não seja normal. Embora ela seja da mesma igreja, obreira e tudo, seus amigos também da igreja ou do colégio, tem uma vida fora dos estudos e religião, por assim dizer. Saem pra uma pizza, cinema, pista de skate, ou uma praia. E o namorado dela? Fica de gravata o tempo todo correndo igual a um louco de reunião pra reunião. À noite, poderia dar um “rolezinho” com sua na-morada, mas quando não está tomando conta da igreja, está com algum pastor num programa de rádio anunciando a “cor-rente” do dia seguinte. Talvez seja demais pra uma adolescente.

Mas hoje vou tentar me redimir. Quem sabe em meus braços ela esquece todas as tribulações da vida e meu amor por ela consegue abafar todas as amarguras da solidão. Caraca! Estou sendo muito dramático. Mas o dia está maravilho. O sol dá aquele afago nos flaboyants que estão cheios de suas flores de um alaranjado fogo. O vento cochicha rapidinho por entre suas folhas e sinto toda bondade de Deus na minha vida quando vejo esse cenário. O dia está tão lindo que posso até dizer a amo e vai soar como a maior revelação de todos os tempos.

Roberta faz estágio numa estatal. Entrou nesses progra-mas para menores com incentivo do governo e tudo. Conse-guiu essa vaga porque é a melhor aluna de sua turma. O tipo de pessoa que tira dez só de hobby. Talvez nem tenhamos tan-tas coisas em comum assim, como eu pensei antes. É aquela parada, ao encontrar alguém lendo o livro que você ama, logo acha que essa pessoa tem tudo a ver com você. Esses dias eu vi um artista dizendo como ele começou sua banda. Ele estava

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com uma camiseta de rock e um cara passou por ele usando o mesmo tipo de camiseta. Aí parou, perguntou e começaram a trocar ideia a respeito. Só que, com o tempo, você acaba vendo que não são tão parecidos assim. Foi uma coincidência gos-tarem da mesma coisa. E talvez uma coisa só. A pessoa pode gostar de Legião Urbana, mas também gostar muito do Zezé Di Camargo. Aí ferrou. Vai ter que ouvir aquilo todos os dias caso case com ela. Acho que o gosto pela leitura e por umas músicas nos aproximou. Eu escrevia um pouco e ela fazia a agenda de diário. Mas acho que no final das contas eu sou mui-to rocki in roll e ela super brega. Então, desde que deixei de ser super romântico, ou coisa parecida, de enchê-la de carinho e ter tempo só pra uma parada que chamamos vulgarmente de igreja, a coisa toda desandou completamente.

Cheguei dez minutos antes dela sair. Era minha primeira folga em meses. Eu estava ainda de roupas sociais. Putz. Ri-dículo. Mas estava feliz em poder vê-la. A avistei na calçada do outro lado. Ela também me viu. Dei um sorriso com um aceno. Ela um semi-sorriso com o canto da boca. Quando atravessou a rua, fui com aquele abraço de saudade e iria dar o maior beijo do mundo. Nada, enfim entendi aquela letra do Djavan: “Você sabe ser fria tanto como a Suécia e eu o Brasil das matas tropicais”.

Roberta veio com aquele papo furado. Se desvencilhando mais que Neo em Matrix. Um “seca Lourenço” desgraçado. Isso me aporrinha. Pra variar ela estava só divagando sobre futuro, vida, Deus, o mundo, guerra nuclear, Bob Esponja, sei lá mais o quê. Um monte de bobagens que não levavam a lugar algum. Mas me disse que estava ocupada. Não poderia sair hoje. Ti-nha que estudar ou sei lá o quê. No final, quando chegamos frente ao portão de sua casa, ela mandou a real. Disse que não era bem aquilo que estava pensando pra sua vida. Nós ficamos

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muito distantes um do outro. Não estava dando tempo pra se conhecer. Queria estudar, ter uma carreira, uma vida diferente. Achava que aquele lance de “obra de Deus” era muito radical e tudo. Trocando em miúdos: tudo acabado entre nós!

Dane-se! Fiquei meio triste, mas ao mesmo tempo ali-viado. Sabia que aquilo não iria render muito. É estranho quando você está com uma pessoa que não te chama de “amor”. Ela me chamava de “querido”. Outra parada é que re-almente quero mudar o mundo. Ela quer salvar o seu mundo. Não estou a fim de perder meu tempo indo ao shopping ou saindo com a galera. Gosto dos livros, gosto da música que canto, gosto das pessoas que atendo. Gosto de fazer o que é pra ser a “obra de Deus”. Quero catequizar os povos. Quem sabe a nações inteiras. Isso é mais importante que um namo-ro adolescente incompatível. Pensar enche o saco. Acho que vou ao cinema.

Chegou um pastor novo pra assumir a região. É um cara mais velho. O anterior, que me pôs aqui na obra, devia ter uns 30 anos no máximo. Apesar do jeito autoritário, eu gos-tava dele. Sempre via no seu carro um livro diferente. O cara estava constantemente lendo e quando falava com a gente, ti-nha sempre uma parábola legal. Algo mais novo ou inusitado. O problema é que ele era meio rebelde, sabe. O bispo estadu-al mandou que ele fechasse uma igrejinha que o aluguel era caro: “Isso aí não dá lucro, dá prejuízo”. Prováveis palavras que ele teria ouvido do bispo estadual. Mas, ao invés de fechar, ele recolheu as ofertadas de domingo à noite das igrejas da região e manteve a igreja aberta. Ele nos disse “Eu sei que estou de-sobedecendo ao bispo se eu não fechar essa igreja, mas estarei desobedecendo muito mais a Deus caso feche essa igreja”.

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Achei legal da parte dele. Mas iria se ferrar. Não teria jeito. Esses homens “santos” que nos lideram, não gostam de ser desafiados. Se não tomarem uma decisão colérica a seu respeito no ato, pelo menos anotam seu nome. Ou melhor, tatuam nos punhos pra te esmurrar todos os dias. O regional, apesar da pouca idade, já estava na obra da igreja há mais de 15 anos. Na verdade, entrou criança. Ele passava segurança e credibilidade. E esse lance de pegar o dinheiro de domingo a noite pra pagar a igreja que iria fechar, só foi possível porque ele liderava bem. Todo mundo firmava com ele.

Ninguém se atreveria falar nada a seu respeito. Sem con-tar o jeito que pregava. Acabei pegando o jeito dele. Ficava andando de um lado pro outro por uma hora ou mais, fazen-do gestos condutores com as mãos cada vez que dava ênfase numa palavra ou exemplificava algo. Já me esculachou, é cla-ro. O problema é que eu encaro as pessoas nos olhos. Sério mesmo. E minhas sobrancelhas descem em cima dos olhos fazendo aquela cara de mau. Aí, podem me dar a bronca que for, eu fico lá, olhando nos olhos, com aquela cara de quem tá com a razão. Meu amigo Léo disse que eu tinha que abaixar a cabeça e deixar meu superior cuspir em mim, depois sair fazendo aquela cara de culpado, dizendo: “Sim senhor, sim senhor”. Não conseguia agir assim. Talvez também porque achasse que não devesse.

Uma vez, rolou um culto desses de cura e tal. Nesses que vão todos os pastores da região e a sede fica lotada. Quase no final, um X-9 mauricinho me viu conversando com outro au-xiliar no hall de entrada. Anotou nossos nomes e ligou para o regional que estava na estrada vindo de uma reunião estadual sinistra. É muito bichinha. Na real, esses caras estragam tudo. Bom, o regional chegou, nós estávamos sentados, esperando ele chegar, tarde já. Ele me esculachou. Não sei que tipo de fo-

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foca que o cara fez. Pela cara do safado do X-9, ele deve ter dito que eu estava jogando dominó lá fora enquanto o culto rolava. Não duvido nada.

“E tem também aquela história do prato né, com sua espo-sa”. Perguntou pro pastor que o auxiliava, que foi logo confir-mando. Acho que a mulher deve ter mandado pegar um prato, sei lá. Sério, não lembro. E é claro, o mariquinha do pastor deve ter chegado pro regional e dito “Sabe o Eduardo, minha linda esposa mandou ele pegar um prato e ele não foi imediatamen-te, faz alguma coisa”. É muito mulherzinha mesmo. O fato é que o regional nesse dia me esculachou. E como eu continuava olhar nos olhos dele enquanto ele falava, ele disse “E esse olhar, você tem problema? Viu seu pai bater na sua mãe quando era criança?”. Esculhambou. Me deixou um tempo de molho no “paredoviski”.

Mas eu gostava dele assim mesmo. Ele era um cara que estava cansado dessa palhaçada de campanhas malucas, en-trevistar demônios, fazer sensacionalismo nos cultos. Sabe. Ele gastava um tempo com a Palavra. Afinal, está escrito que a igreja de Cristo seria edificada pela Palavra e não por corren-tes poderosas, distribuição de amuletos, procissões, imagens, cruzes, saquinho de sal... Nada dessas bobagens. Então, era muito bom ficar mais de uma hora em silêncio sepulcral ou-vindo-o falar. Mas, cedo ou tarde ele iria se ferrar. E não deu outra. De uma região com uma igreja sede grande e com mais de dez outras igrejas para comandar, o mandaram pra uma igrejinha lá na favela. Numa viela sem calçamento. Sinistra. Só Deus é justo, a igreja comandada por homens não.

O regional novo: – um coroa que se achava famoso – ficou um bom tempo em uma igreja que cresceu muito na Bahia. Nessa época, qualquer coisa que você dissesse, estando a fren-te do púlpito, era seguido à risca pelo povo. Chamávamos de

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“vinho novo em odre novo”. Nossa igreja tem uma linguagem diferente das tradicionais e o povo era novinho em folha. Era natural que as pessoas depositassem uma fé no jeito que pre-gávamos, porque falávamos forte. E pegávamos pesado con-tra todos. O pastor Figueiras, um militar aposentado, cresceu nessa época. Mas ficou por lá. Essa região era a primeira dele. Talvez não tenha galgado postos maiores por conta da idade ou do jeito bonachão. Ele é quase um ex-gordo. Fez redução de estômago, mas não havia emagrecido. Tinha um andar cam-baleante e uma respiração forte, a voz era empostada, pois ele achava que era locutor estilo AM. E detalhe, se portava como um cantor de seresta nos cultos. Ele realmente acha que sabe cantar. É uma figura. Eu dou boas risadas com ele.

O problema é que ele não evoluiu. Acha que ainda está no final dos anos oitenta na Bahia. Lê pouco a Bíblia, não pesquisa, não estuda a palavra. Suas pregações são pífias, seus cultos são um porre. Ele pega os temas dados nas reuniões estaduais e os repete. Tenta alcançar o povo pela emoção. Beleza, a maioria faz isso, mas não tão descarado quanto ele. É demais.

Diz: “Tem que mexer com o brio da pessoa. Tem que pe-gar pesado mesmo”. Então, ele usa um papinho de “seca lou-renço”, mandava um “migué”. Por exemplo, quando vai vender o jornal da igreja no culto. O que é muito bom, pois 30% da comissão desse jornal que ele vende, vai pro bolso dele. É um trabalho limpo, livre de impostos. Só vender, pegar os 30% dele e mandar o restante pra sede estadual. Pensando nisso, man-dou aumentar em 100% o número de jornais. Putz, a gente não consegue vender isso, pois é simplesmente seis vezes mais o número de membros que há na igreja. Aí, se há uma matéria sobre a África no jornal, ele manda essa pro povo “Eu não acre-dito que vocês vão deixar nossos irmãos da África morrerem de fome. Não acredito que não há gente aqui que tenha coração”.

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Canta uma música triste, com os olhos quase lacrimejando, dá uma soluçada enquanto o povo compra o jornal. Depois diz pra gente: “Viu aí como se vende o jornal?”. O problema é que ele também ganha 15% dos jornais que são vendidos na região, então, aumentou substancialmente de todo mundo. Além dos dízimos, ofertas e campanhas de valores especiais, ainda temos que ficar sobrecarregando o povo, forçando a comprar jornais.

Ele é muito preocupado com dinheiro. Não era sovina nem nada. Gastava pacas. Mas o dinheiro que estou falando é o da arrecadação da igreja. O regional anterior tinha uma mensagem muito forte. Logo, impactados pela sua palavra, nos momentos da oferta e dízimos, ele não precisava se esfor-çar. As pessoas vinham mesmo, acreditando que aquele era um solo fértil pra plantar. O pastor Figueiras prega mal. Nem sempre os seus argumentos funcionam. Já havia presenciado mais de uma vez ele, enquanto orava, dá uma averiguada na sacola de oferta no altar mesmo, por detrás do púlpito, pra ver quanto havia arrecadado. Putz, quando eu vi aquilo da pri-meira vez fiquei abismado. Com aquele olhar de “o que é isso minha gente?” O cara nem esperou terminar o culto pra ficar vendo quanto arrecadou? Ele nunca termina o culto, depois da oferta pede pra gente fazer algo e sobe pra contar. Tem uma preocupação muito grande com isso.

Por outro lado, atrás desse sujeito preocupado com o di-nheiro do povo, havia uma caricatura de pastor, que na verda-de era um marinheiro velho que gostava de pimenta e comer muito bem. Conta várias histórias de suas viagens. Gosta de vangloriar-se de como era sua igreja na Bahia. E nos conta várias outras histórias engraçadas. Às vezes, à noite, me leva pra jantar na casa dele. A comida é ótima.

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O pastor Figueiras me pegou emprestando um livro a um pastor mais antigo.

“O que é isso aí, que livro é esse? É do Bispo?”. “Não senhor, é um livro motivacional com recursos para

organizar melhor a vida”. Respondi. “Olha isso aí, é como aquela palavra ‘as más conversações

corrompem os bons costumes’. Olha isso aí, Eduardo, sabe que tem que ler só livro da igreja”.

Eu não acreditei que ele disse esse versículo. Sério. Putz. Nada a ver. Tudo bem que a gente tem mania de soltar versí-culos bíblicos pra justificar todos nossas ações ou repelir algo que não gostamos. Mas, tem que ser, no mínimo, o versículo certo. Putz. Ri muito com isso. É disso que estou falando.

Essa parada de restrição a livros começou por causa do primeiro bispo do Brasil. Antes, só havia mesmo o Bispo. Aí começou essa coisa de “consagrar” vários caras para serem bis-pos e colocá-los em um estado ou país. No início dessa distri-buição de poder, o Bispo pegou um cara novinho e o pôs de bispo do Brasil. A velha guarda ficou enfurecida. O lance é que ele começou a ler uns livros radicais sobre santidade, amor, e essas coisas. Decretou que quem quisesse ser obreiro ou pastor, tinha que ter lido pelos menos um livro de um escritor oriental que ele gostava, sobre autoridade espiritual. Depois começou a escrever vários estudos e passar isso pra gente. Para a igreja de todo o país. E sempre vinha com um livro diferente.

Chegou um momento que ele achou essa nossa fórmu-la de passar fé meio radical. Tínhamos que amar mais e tal. Tanto que foi apelidado de “o bispo do amor”. Concluiu que a “bagaça” toda estava errada mesmo e essa fórmula mágica criada pelo Bispo não tinha nada a ver com o apóstolo Paulo e suas beatas que usavam véu. Então ele “meteu o pé”. Saiu da igreja e foi abrir outra igreja pra ele. Uma parada mais “santa”,

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com mais amor e sem essa loucura de expulsar demônio. Ti-nha que ver, foi o maior choque. Nunca alguém como ele ti-nha saído assim, do nada. Lembro que estive na reunião onde anunciaram sua saída e foi uma choradeira só.

O cara tinha fama de “bom moço”, fazia programa na rá-dio dedicado às vovós. Provavelmente foi criado por uma. E pra melhorar ele era cantor e dos bons. Tudo o que ele grava-va, vendia igual a pão quente de manhã. Aí, um sujeito desses, que era a cara do futuro da igreja, que tem um líder sisudo que comanda a igreja com mãos de ferro, “mete o pé”. Geral ficou como? Com um ponto de interrogação enorme na cabe-ça. Mais ainda quando ele abriu mesmo sua igreja e começou a espalhar seus CDs com mensagens diferentes do que prega-va. Uma galera debandou.

Agora o cerco estava completamente fechado para nós que já não nos misturávamos com outros grupos de evangé-licos. Não podíamos nem nos dar ao luxo de outras ideias e pensamentos. O que valia era o que o Bispo pensava. Um ma-luco faz as doideiras dele e é a gente que paga o pato. Acho que o Bispo também não quer ninguém por aí, pensando. Isso ele já faz por nós.

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Quem disse que uma pessoa não pode começar a mudar o mundo a partir de uma aldeia tipo a Galiléia? Aqui na igreja é um alívio para o povo e para o pastor quando há mudanças. Um ano após a permanência do pastor na igreja, se não há no-vidade de vida na mensagem ou se os milagres não acontecem, já há um início de saturação. A maioria dos pastores se cansa rápido. Querem chegar e dizer pro povo que tudo vai mudar, os milagres vão acontecer e que tudo o que Deus prometeu se cumprirá sob sua supervisão. Então, ele começa com as cam-panhas, correntes de oração, “fogueira santa”, distribuição de “pontos de contato” como rosa, óleo, lenço, e, no final das con-tas, algumas coisas até acontecem. Mas, não o que ele disse que aconteceria. O povo desanima. O pastor também cansa. Mas a culpa é do pastor. Quem disse que vida com Deus tem que ser essa busca implacável por dádivas? Quando muda o pastor, as pessoas pensam: pronto, nova corrida ao pote de ouro. E o pastor: pronto, povo novo, talvez aqui funcione tudo.

Seja como for, eu queria dar uma melhorada no nosso supermercado de bênçãos. Fazer daqui um lugar de devoção, meditação na palavra de Deus e, talvez, quem sabe, fosse até

Capítulo"Quem não nascer de novo não pode entrar no reino"

João 3:3

CINCO

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possível ser cristão, ou simplesmente seguidor daquilo que Jesus ensinou pra gente praticar. É, é isso mesmo. Jesus era judeu, não inventou o cristianismo. E, sinceramente, às vezes fico envergonhado de ser chamado de cristão. Envergonha-do diante de Deus e dos homens. O segundo é mais fácil de explicar. Por exemplo, a igreja católica também diz que seus devotos são cristãos. Então, é complicado ser a mesma coisa que uma instituição que matou tanta gente, que escravizou e enriqueceu ilicitamente. É muito complicado ser a mesma coisa que pessoas que se dizem cristãs (seguidoras de Cristo) e depositam sua fé em imagens de escultura.

Uma vez um professor de história defendendo o catolicis-mo disse que era só pra lembrar, como fotos de pessoas passa-das e tal. Mentira. Todo mundo vê a fervorosa fé que as pessoas aplicam a esses dias de santos. Aquelas romarias e, mesmo sa-bendo que se pode falar direto com Deus, as pessoas preferem pagar algum tipo de promessa a qualquer imagem que seja apresentada como santo. Não quero ser a mesma coisa.

Por outro lado, ser cristão mesmo, “à vera”, como dizem os Evangelhos, é algo que a igreja evangélica do presente sécu-lo desconhece. É muito complicado. Em todas as igrejas, sejam tradicionais ou neo-alguma-coisa, há uma valorização do lado material. Jesus disse pra “não ajuntar tesouros na terra”. Quem é que consegue praticar? Quando começou a igreja cristã em Atos dos Apóstolos, as pessoas que se convertiam vendiam o que possuíam e compartilhavam com os outros. “Ninguém con-siderava exclusivamente sua nenhuma das coisas que possuía; tudo lhes era comum”. Isso tá lá no capítulo 4 de Atos. Mas eu pergunto: quem vai praticar isso hoje? Ou quem já disseminou esse pensamento em cem anos de igreja evangélica no Brasil?

Quando o assunto é perdoar como Deus nos perdoa, aqui onde estou, acho que o texto usado é outro: “Perdoe seus inimi-

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gos, mas anote o nome deles”. É mais ou menos quando aquele técnico da seleção brasileira não chamou um grande craque mundial porque quando os dois se confrontaram como joga-dores, o técnico, que era zagueiro na época, levou um chapéu, lençol e outras coisas humilhantes. O tempo passou, e ele guar-dou aquilo direitinho. Perdeu a copa, mas não chamou o cara que o humilhou numa partida. Aqui funciona assim. Já vi que em vários outros lugares do mundo cristão também.

Se você praticou alguma ação desrespeitosa, os líderes guardam seu nome. Lançam o sujeito ao pior limbo possível só pra humilhar. Jesus perdoaria. Mas os cristãos de hoje não estão muito preocupados em serem como Jesus. É muito “ul-tra-revolucinário” isso de perdoar. O que dizer de amar nos-sos inimigos? Impossível esta prática. Meu Bispo, líder maior da nossa igreja, tem um objetivo insano de se vingar de todos os seus inimigos. Pra isso, ele quer abrir mais igrejas, quer comprar mais emissoras de TV. Isso porque o maior inimigo dele tem a maior emissora de TV do país. Ele quer vingança. Quer quebrar seu adversário. Orar pelos inimigos? Esqueça! Se depender da igreja do presente século, as próximas gera-ções não vão conhecer o que é isso. Os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João vão parecer livros mortos, fábulas espe-taculares. Mais nada.

Agora se tem uma coisa que me deixa enojado mesmo é o fato de que caras, com título de pastor e tal, ignoram o versí-culo 25 de Mateus 20, “Sabeis que os governadores dos povos os dominam e que os maiorais exercem autoridade sobre eles. Não será assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo”. Funcionava assim, o cara era um pastor aqui no nosso meio, o conhecíamos e tal, ele fala-va com a gente. Aí o sujeito concorre a deputado, por exemplo,

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damos o sangue pra ele se eleger, estragando os cultos com o nome dele, passando a vergonha de ter que dizer o nome do su-jeito em todas as reuniões, fingindo que estamos orando por ele, mas era só pra burlar a lei e tal, e sei lá mais o quê. Por fim, ele se elege, e vira rei. Sério, ninguém consegue falar com ele. Passa como se fosse o dono do mundo. Talvez alguém diga: normal. Mas não era pra ser com um cristão de verdade. Tem que existir algo de humildade, de cristandade, não dá pra ser como todos os políticos, não dar pra ter essa gana por poder, não dá pra ficar igual. Então não é cristão. É só mais um religioso. E como Jesus não inventou nenhuma religião, o que é esse cara então? Essa gana por poder que tem na igreja vai contra todos os princípios da humildade desse versículo. Não é o cargo nem nada, é o com-portamento do sujeito quando está em determinada posição.

Sinceramente, às vezes, nem sei se vou conseguir. Meus amigos sempre dizem que é só repetir, só obedecer, só fazer aquilo que é mandado. É claro, a direção sempre usa aquela pa-lavra “Obedecer é melhor que sacrificar”. Ou seja, não precisa pensar. Não precisa refletir. Não precisa mesmo. É só ouvir a palavra de segunda, na reunião dos pastores e repeti-la a sema-na toda. Fazer as campanhas, as correntes, manter os objetivos e mandar a arrecadação pra sede. É isso ou dizer pra todo mun-do que o Evangelho tá muito deturpado. Que essa casca comer-cial, religiosa, capitalista que inventamos nos afasta do Deus da Bíblia Sagrada. Provavelmente, iria ouvir de qualquer um que tem mais tempo que eu: “Quer dizer que todos esses anos de sucesso, com templos, catedrais, rádios, TVs, milhares de membros estão errados e um fedelho que ainda nem começou a vida tá certo? Levaria um bico no traseiro e ficaria sem igreja.

Seja como for, assumi minha igreja. Se vou revolucionar, se vou mudar tudo, dane-se, não dá pra saber. Jesus, indepen-dente do momento caótico que o seu país estava vivendo, foi

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escolhendo seu pessoal, ensinando um monte de coisas sub-versivas sobre amor, fé e um reino invisível. Acho que não se preocupou muito com a religião onde ele foi formado. Pelo contrário, usou os próprios livros adotados por essa religião pra denunciar fanatismo, subjugação e a hipocrisia dos líderes religiosos. Falou para os discípulos para não se preocuparem com tempos ou épocas, mas a atenção deveria estar em receber o poder do Espírito Santo e serem suas testemunhas em Jeru-salém, Galiléia e até os confins da terra. Então aqui estou eu.

Agora tenho um pastor auxiliar. Quando eu cheguei à igreja estava rolando um culto. Cheguei na metade, o auxi-liar estava lá, de joelhos no altar orando. Algumas pessoas no salão do templo também estavam ajoelhadas. Ele fazia um clamor, pedindo perdão, pedindo misericórdia. Parecia bem sincero. Sério mesmo.

O Anselmo era um amigo de algum tempo já. Na ver-dade, a gente até dava uma zoada nele por causa do seu jeito “crentão”. Ele era do tipo que se a gente parasse num lugar pra almoçar, antes de dar a primeira garfada ele fazia uma longa oração começando “Oh, Deus, em o nome do Senhor Jesus...”. Ele tinha aquela voz de pastor tradicional. Era o tipo “muito santo”. Mas era do bem. Ele é do tipo certinho. Se a gente ou-via um rock, ele com aquela voz de padre. “Que isso irmão, tá muito agitada essa música”. A gente ria muito. Mas agora ele estava lá comigo. Achei profunda a oração dele. Humilde. Na verdade, a maioria das vezes a gente aprende que Deus só tem que quebrar o nosso galho. Tem gente que nem se lembra de Deus, nem tem comunhão diária, ou devoção qualquer. Mas quando precisa resolver algo, joga a responsabilidade pro alto. Pede a Deus. Na atitude da oração do Anselmo, eu fiquei um pouco lá atrás, esperei ele terminar a oração e pensei o quanto Deus é maravilhoso e me atura. Me atura mesmo.

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Eu deveria ser muito mais sincero. Deveria ter um pouco mais de coragem. Pois em vários momentos da minha vida, eu me encontro num estado de distanciamento entre o que faço e o que acredito. Isso é dissonância cognitiva. Li num texto que falava de psicologia. Se eu acho a metade das coisas institucionais que pratico, meio fora daquilo que realmente enxergo no Evangelho, porque ainda continuo atuando como esse tipo de pastor. A maioria das campanhas, amuletos e coisas que usávamos para atrair a fé do povo, por exemplo, eu achava desnecessário. Mas ainda assim, estava lá e passava aquilo com fé. Achava que a direção confundia o que é ser empregado da igreja, instituição e servir a Deus. Mas mesmo assim me iludia, achando que qualquer coisa que fizesse obe-decendo, Deus estaria ali. Me entendo.

A pergunta que me fazia constantemente era: com as práticas dessa igreja, estou realmente seguindo a Cristo? Es-tou indo pra onde ele está indo? A maioria dos caras que eu conheço, acredita realmente que está praticando aquela pala-vra de Jesus, que diz “Não há quem tenha deixado pai, mãe, casa... que não recebe nessa vida cem vezes mais e muito mais no porvir”. Deixamos tudo. Mas o Evangelho de Cristo me perseguia todos os dias para que, de fato, eu pudesse manifes-tar suas verdades e não uma tradição, um costume e jeito de manter uma determinada igreja.

Foi muito bom ter chegado naquele altar. Ter orado com aquele povo e o Anselmo. Pedindo as misericórdias de Deus. Pedindo para que ele manifestasse, ali, a sua vontade, a pesar de mim. Cantamos uma canção de fé, daquelas que trazem esperança, absurdamente, do jeito que a Bíblia diz. Foi algo bonito. Mas acabei fazendo o que meus iguais cos-

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tumam fazer. Todo pastor quando assume uma igreja nova, chega prometendo mundos e fundos. Dizendo que tudo vai mudar, que as promessas que Deus fez vão acontecer durante sua estadia ali naquele templo. Eu não fiz muito diferente. In-flamei o povo. Disse que tudo iria acontecer. Não importava o quanto estava demorando, era pro povo depositar sua fé, pois os milagres aconteceriam. Todo mundo ficou incendiado. E como não é diferente com nenhum pastor que chega desse jei-to, o povo põe uma fé nesse tempo, nesse momento e querem resolver logo seus problemas. Querem milagres. Afinal, elas aprenderam que Jesus, quando esteve por aqui, curou lepro-sos, cegos, paralíticos, abençoou casas, pescas maravilhosas, multiplicou pães e dinheiro saiu da boca de peixe. As pessoas que frequentam nossas igrejas querem essas coisas. E eu sei que o Reino de Deus é muito mais que isso.

Na verdade, é “azeitoninha na empada”. Quando ele diz “buscai primeiro o Reino de Deus e as demais coisas serão acrescentadas”, está falando sério. É pra fazer isso mesmo. O problema é que a gente chega na TV, na rádio e dizemos não importar qual seja o problema Deus tá afim de resolver. As pes-soas irão buscar a solução do problema, e acabarão conhecen-do a Deus. Em tese é até bom. Mas, há pessoas que vão lá, ficam anos e saem, sem ter tido nenhuma ideia real de quem é Jesus.

Um senhor que atendi ficou horas contando sua história. Dizia-se muito decepcionado. Já estava há mais de três anos na igreja e nada acontecia na sua vida. Foi lá por causa do problema de vício do seu filho. Seu filho estava se acabando nas drogas. E depois de anos ali, sua luta era a mesma. Seu casamento era um fracasso. E ele começou a dar melhores detalhes sobre sua vida. Disse que fez vários propósitos pelo seu filho: fogueira santa, campanhas, correntes e nada. Há um ano e meio ele tomou a decisão radical. Pensou “nada está

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acontecendo, vou me batizar pra ver se meu filho muda”. No seu casamento, como já fazia alguns anos que ele e sua mulher não tinham relação sexual, ele matinha uma amante ciumenta que estava infernizando a vida dele também.

Contou-me sobre um amigo dele que era muito louco, vi-via bebendo, pegando geral, só na farra, na mulherada. Esse cara se separou da mulher e caiu na gandaia de vez. Um belo dia, o indivíduo conheceu uma moça evangélica que o levou pra igreja. Depois de um tempo, ele encontrou o sujeito e o convidou pra tomar uma cerveja. O amigo disse que era outra pessoa, que estava noivo, iria casar, não desperdiçava mais seu dinheiro na vadiagem, que agora servia ao Senhor Jesus. Ele não acreditou. Mas conforme passou o tempo, ele encontrou o sujeito no shopping, depois já casado com a tal moça evangé-lica e o cara era realmente outro. Então, esse senhor me disse que era isso que ele queria. Encontrar alguém assim. Ele atri-bui a mudança do amigo à moça evangélica que o direcionou. Disse que queria encontrar alguém assim, pra deixar a mulher que ele não amava e a amante que só era pra satisfazê-lo sexu-almente. Aí ele mudaria de vida definitivamente. Todo errado. Isso nunca iria acontecer.

O cara ouviu que seu problema poderia ser resolvido e ficou anos na igreja atrás disso. Jesus não veio ao mundo, não entregou a sua vida pra criar um supermercado de bênçãos. Ele disse que veio pra termos vida e vida com ele, quando ele dizia para as pessoas “vá e não peques mais”, “venha e segue-me”, “chegou até você o reino...” Exige uma entrega total pra viver com ele. É claro, seu reino não tem miséria, desgraças, doenças. No reino dos Céus não há essas faltas. E como a proposta é manifestar o reino dos Céus aqui na terra, é natural que, ao recebê-lo, sua vida seja transformada. Mas o foco é outro.

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Ele deseja um relacionamento profundo com os que que-rem fazer parte do seu reino. Não é como se a pessoa fosse um viajante, entrasse no reino de Cristo, pegasse o que estava precisando e seguisse caminho. Não é essa a proposta. Tem que fazer parte do reino. E o desejo de estar com o Rei dos reis deve ser maior do que receber qualquer dádiva. O batismo é o símbolo de que você está purificando-se pra entrar no rei-no puro, sublime. Não traz milagres pra si, muito menos pra outros. Nada disso. Se aquele senhor tivesse recebido o Reino de Deus pra si, se manifestaria em sua casa, em sua mulher e seu filho. Mas assim como várias pessoas fazem mandingas, simpatias, promessas pra santos e outras crendices, esperando que vá acontecer o que pediu, muitas pessoas também vão às igrejas, fazem correntes e campanhas porque querem mila-gres. Não querem conhecer a Jesus. Não querem se arrepen-der, mudar de direção, mudar de rumo, vê pra onde Cristo está apontando e seguir.

Além disso, o tal senhor desejava o mesmo final que seu amigo. E não funciona assim. O chamado de Deus e seu re-lacionamento são coisas individuais. Não dá para padronizar. A fé é individual, assim como a manifestação de Deus. Ele chama a cada um e faz aquilo que é necessário a cada indi-víduo. Eu gastei um tempo explicando isso para esse senhor. Mas o pior é que ele não entendeu. Repetiu a mesma ladainha novamente, sobre o que ele esperava que acontecesse. Que se sentia iludido porque não havia acontecido. Mas a proposta de mudança e Reino de Deus que fiz a ele, a de Cristo, pedia renúncia. Mudar mesmo. Largar a amante, sair da zoeira da rua, parar de pensar só em sexo e ter um ponto de partida novo com Deus. Buscar conhecê-lo e o que ele gostaria que fosse feito. Sobre seu filho, está escrito lá no salmo 91 que “Se o altíssimo for seu refúgio, sua morada, praga nenhuma che-

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gará a sua casa”. Pronto, o filho estaria protegido e Deus até o mudaria, pois é assim que ele faz com os que pertencem ao seu reino. Ele não entendeu, achou difícil e sumiu.

É isso que tenho que deixar claro para o povo da minha igreja nova. Que o que importa é a vida com Deus, não os mi-lagres. Eu disse deixar claro. Não só falar de passagem. Dizer que os milagres não cairão iguais para todos, pois o que Deus faz na vida de alguém é algo pessoal, é um relacionamento ín-timo. Não uma distribuição de pães. É necessário deixar isso claro. Mesmo que eu ouça o Bispo em uma “fogueira santa” dizer que a vida de todo mundo vai mudar, não é verdade. Não acontece assim.

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Acabo de chegar de duas reuniões terríveis. A primeira foi com o Bispo. Putz, o cara estava fulo da vida. Sério mesmo. Ele está uma temporada aqui no Brasil para resolver uns negócios. Aproveitou para cuspir marimbondos em cima da gente. O lance é que tem uma emissora “mal das pernas” e ele queria comprar o tal canal. O detalhe é que a gente tá enfiando uma fortuna pra construir uma catedral gigantesca, com anseios faraônicos para o nome do Bispo entrar pra história como sendo o líder do maior templo do mundo. Então, ele tem seus projetos megalomaníacos, quer abraçar o mundo e quem sofre é a gente. Pô, fala sério.

Ele chega com aquela sobrancelha apertada em cima dos olhos, fazendo dois franzidos no meio e dispara: “Se vocês estivessem trabalhando direito, se estivesse crescendo 35% ao mês, nós agora poderíamos comprar essa emissora, o que nos colocaria muito a frente dos nossos inimigos. Mas não, ficam aí coçando o saco. O que vocês ficam fazendo com essas mu-lheres gordas que não querem nada. Parecem pulgas no saco dos maridos. Aí o sujeito não cresce, não faz o que tem que fazer. Nós temos que atrasar nossos planos em cinco, dez anos por que vocês não crescem o que tem que crescer”.

Capítulo“A que compararei o Reino de Deus?”

Lucas 13:20

SEIS

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Na boa, toda vez que vou a uma reunião dessas sinto um misto de revolta e acesso de riso. Pelo que me consta, fui cha-mado pra ganhar almas. Quando saí de casa eu disse isso pros meus pais. Que iria ganhar almas. Não disse: “Pai, mãe, estou saindo de casa porque preciso ganhar muito dinheiro pra aju-dar o Bispo comprar mais e mais emissoras pra ganharmos da concorrência”. Agora, o cara acha que precisa de milhões pra entrar pra história, ser um grande empresário, ou sei lá o quê ele tá pensando. Na moral, a maioria de nós, do lado de cá do baixo clero, não pensa muito nisso. Os caras com os quais converso fazem maior vista grossa. Dizem que o negócio é olhar para Cristo e tal. Fazer a obra de Deus, ganhar almas. É aquela parada “Pensar enlouquece”. Se a gente ficar pensan-do a gente vai deixar de chamar nossos líderes de homens de Deus e começar a vê-los como crápulas gananciosos. Aí vai ficar “insustentável a leveza do ser”.

A parada é que estamos fazendo campanhas mirabolantes para levantarmos dinheiro para essa catedral. Já dissemos para o povo que vinha as pedras de Israel, que será o muro das lamen-tações aqui no Brasil, onde Deus, lá no livro de Crônicas de Sa-lomão, disse que estaria com os ouvidos atentos à oração que se fizesse nesse lugar. Pronto, envelope com o nome e uma quantia em dinheiro como propósito. Os nomes serão enterrados com a pedra fundamental do templo. Na outra semana, envelopes para as pessoas trazerem pedidos para colocarmos nas pedras do muro. Caraca, isso já tá pegando mal. Um dia esses propósi-tos não vão colar mais. Aí beleza, como já raspou todo o tacho pra essa obra, o anúncio de uma possível venda da emissora, pegou o Bispo de calça na mão. Não há milhões guardados. Pelo menos é o que ele fez transparecer na reunião. Ameaçou:

“Quem não crescer vai virar obreiro! Chega de folga. Vo-cês vão trabalhar direito. Os titulares vão fazer as três reuniões

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diárias. E vão ficar na igreja. Nada de viagens para visitar pa-rentes. Só se a mãe morrer. E olhe lá. Os regionais vão ficar de olho nisso. Ai daqueles que fizerem corpo mole. Não quer, meu amigo, a porta da rua é serventia da casa. Pode seguir seu rumo. Vocês esquecem que entregaram a vida pra serem escravos de Cristo. Vocês não têm mais vida. A vida de vocês pertence à obra de Deus”.

É justamente esse o ponto senhor Bispo. A nossa vida per-tence a Deus. Não a uma multinacional que não paga nossos estudos, não nos dá horas extras, não nos dá plano de saúde, e quando nos dá o pé na bunda, saímos sem direito a nada. Tem gente que usa a Bíblia pra usurpar a nossa vida. Caraca, tenho uma bronca disso. Vários pastores usam isso como argumento, citando versículos bíblicos para que os obreiros fiquem traba-lhando na igreja e esqueçam suas vidas pessoais. No nosso caso, vida pessoal era algo tipo uma lenda. Ou coisa do passado. Ago-ra então. As informações sobre arrecadações teriam que ser diá-rias e não mais duas vezes por semana. Quem ficasse dois meses sem crescer perderia a igreja. E assim estava a minha vida.

Saímos da reunião do Bispo já bolados. O homem veio só com voadoras nos peitos. Mas como miséria pouca é bo-bagem, o pastor Figueiras pediu pra irmos direto pra sede, pois haveria uma reunião de regionais e depois ele faria outra reunião com a gente lá. Viria bomba, com certeza.

Todos reunidos na sede, rindo muito com vários casos e piadas. O homem chega. Nem bebeu uma água ou deu boa tarde. Chegou perguntando um a um: quanto tá lá? À medida que iríamos dizendo quanto estava o mês de nossas igrejas, ele ia ficando mais enfurecido. Todo mundo lá embaixo. Tam-bém pô, o que ele queria? É início do mês. Todos os pastores iam dizendo o valor e fazendo aquela cara de inocente. Eu estava me segurando pra não rir. O pastor Figueiras estava de-

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sesperado. O lance é que, apesar dele ser experiente na obra, era a primeira região dele e numa época que a direção do esta-do estava tirando a nossa alma pra investir em sei lá o quê. O cara que no começo, quando chegou à sede, era até animado, contava piadas e histórias da sua vida, agora estava virando um velho louco, ensandecido por dinheiro a todo custo.

“Não é possível que vocês só estejam com isso. Uma coisa que não dá pra entender: hoje é dia sete e o Nelson já bateu a cota do mês. Como é que pode isso? O cara tá pegando todos os meses no início. A gente precisa fazer alguma coisa”.

O Nelson era um pastor regional, conhecido como o rei do “sambarelove”. Ele inventava os argumentos mais sinistros possíveis e pedia alto no valor da oferta que a pessoa iria tra-zer no envelope. A última havia sido o lance da estrelinha. Ele distribuiu umas estrelas douradas no domingo. Não disse a razão disso. Só disse que quem quisesse saber o que era, as levasse na segunda à noite. Na segunda à noite todo o povo da igreja lá, uma sede pra mais de três mil pessoas. Dispara o argumento: “Olhe pra estrelas do céu e conta, se é que po-des, assim será sua descendência” Gênesis 15:5. Disse que esse era o sonho de Abraão, ter uma descendência, e perguntou ao povo qual era o sonho deles, mandou escrever na estrela e pediu pra por, num envelope dourado, um valor alto com a estrela e levar na próxima segunda. Pronto. Simples assim.

O pastor Figueiras não tinha insights como esses. Fazia o feijão com arroz que estava acostumando. Mas os tempos eram outros. Na época dele, o povo mal conhecia a Bíblia, qualquer coisa que dissesse o povo fazia, não importava o quê. Hoje, ainda é meio assim, mas é preciso usar cartas da manga como trunfos e nem todos tem esse talento. Eu mesmo não tenho nem faço questão de ter. Mas estando onde estou, isso é péssimo pra mim.

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O pastor Figueiras já estava possesso e começou a fazer ameaças. Perguntou a profissão dos pastores e indagava se o cara queria voltar a fazer aquilo, pois era isso que iria aconte-cer caso ele não crescesse. Disse pra gente que poderia perder a cabeça, mas a gente iria junto. Esse é nosso líder. A reu-nião foi um baixo-astral só. Mó saco. Na moral. Ele falou lá de umas campanhas malucas pra gente fazer. Que toda reunião tínha que plantar envelope fora o do dízimo, que no final do culto, além de vendermos o jornal, era pra fazer a “moeda da viúva”. Antes eu ficava pasmo com essas coisas. Agora não fico mais. O que é ruim. Preciso voltar a ficar assombrado com isso. Se começo achar normal, é porque acho certo e vou pra-ticar sem a hojeriza necessária.

O lance da “moeda da viúva” é baseado naquela passa-gem do Evangelho na qual a viúva pobre só tem duas moedas e entrega no gazofilácio. O objetivo era, depois de ter pedido o dízimo, a oferta do dia, plantado um envelope da campa-nha e o envelope do dízimo; e, por fim, vendido o jornal da igreja, antes da última oração, deveríamos pedir que as pes-soas separassem as duas maiores moedas que elas tivessem pra entregar na sacola. Putz, como certas coisas me deixam extremamente constrangido.

Agora deitado aqui na minha cama, fico pensando o que Jesus pensa de tudo isso. Na boa, penso mesmo. Fico jogando umas perguntas para o céu e exercitando minha pa-ciência esperando uma resposta plausível. O Bispo afirma que se Deus não fosse com ele o ministério dele não teria crescido tanto e tantas pessoas não estariam ali, crendo e tudo mais. Mas se pensarmos assim, teríamos que considerar também, por exemplo, o reverendo Moom, daquela seita da Unificação,

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que diz ter nascido para completar a salvação dos homens, além de várias outras crendices que líderes messiânicos costu-mam entupir nos ouvidos dos fiés. O lance é que milhares de pessoas o seguem e ele é muito próspero. Devo acreditar que Deus é com ele também por conta dos seus seguidores e de sua prosperidade? Isso sem falar na religião oficial, que tem rique-za e seguidores aos milhares. Isso é demonstração de que Deus está realmente na instituição A ou B? Claro que não!

Esses dias conversando com uma pessoa cheguei a um en-tendimento melhor sobre isso. Ela veio demonstrar seu descon-tentamento contra seus líderes. Segundo ela, o apóstolo de sua igreja foi pego com um valor alto em dinheiro indo pra sua casa nos EUA. Isso gerou uma reportagem que mostra a riqueza pes-soal do sujeito avaliada em 19 milhões. O que eu achei realmente estranho é que ele possui um haras com mais de 200 cavalos da raça manga-larga machador. Sério. Tem mesmo. Isso eu quase rolei de rir. Que o cara seja líder de uma igreja rica e precise de, sei lá, helicóptero, jatinho, um sítio pra igreja reunir pastores, é meio ostentador, mas, talvez, justificável. Mas porque um pastor precisa de uma fazenda com cavalos de raça? Sério, não consigo achar ligação entre a obra de Deus e esse tipo de posse.

A pessoa estava muito desorientada, não sabia o que fazer, só entrou ali porque foi a única igreja que viu a porta aberta àquela hora, mas não sabia se conseguiria continuar membro de sua igreja. Orientei que olhasse para Jesus, pois enquanto houvesse homens a frente das instituições, isso iria acontecer. Então, se fosse sincera, Cristo apontaria o caminho e tudo mais. Nem cogitei a possibilidade de convidá-la a con-gregar comigo aqui na igreja. Na nossa igreja, volta e meia sai um safado que estava roubando ou se prostituindo. Então, é certo que iria se decepcionar novamente. Fiz uma oração por ela, indiquei um salmo pra ler e a despedi.

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Já reparei que a maioria dos homens que tem grandes instituições e são pegos em algum escândalo, foram origi-nalmente chamados pra um ministério sério. Teve realmente uma revelação, um chamado, algo que Deus queria que eles fizessem. Sério mesmo.

Veja o caso deste apóstolo que essa senhora veio aqui se queixando, pois a mídia está mostrando suas posses e tal. Eu conheço a história dele. O cara começou juntando gente em casa, cuidando de viciados, pregando a palavra ali, ele e a mulher. Coisa que, na boa, eu jamais me meteria a fazer. Cuidar de viciados é punk. Mas enfim, o cara começou ali sinceramente e os malucões foram transformados. Depois a coisa toda começou a desenvolver. Reuniam-se num lugar co-mercial, depois registraram a igreja e abriram templos. Mas quando é que o cara degringola? Quando começa a pensar como qualquer outro capitalista que existe nessa terra. Em ter bons carros, boas mansões, Jet Sky e seu sonho deixa de ser as almas e passa a ser as posses, o nome físico da sua instituição e seus próprios deleites.

Sempre justificam isso com aquele versículo: digno é o trabalhador do seu salário. Só que esquecem que não estão numa multinacional. Que não estão segundo as leis do mun-do de compra e venda de valores. São sacerdotes. Abriram mão de sua vida pra servir a Deus. Mas aí, enriquecem usan-do algo muito precioso que é a oferta e o dízimo do povo. Aí a casa começa a cair. Depois eles ainda ficam com aquela cara de quem não estão entendendo o que está acontecendo. Tipo “Deus porque isso está acontecendo comigo?”

A gente volta pra aquela ideia do Bispo. Por ver a igreja grande, arrecadando alto e o povo indo às reuniões, acham que estão realmente fazendo a vontade de Deus. Mas estão com a mente cauterizada. Aí a justiça de Deus alcança e a casa

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cai. Se der tempo pro cara mudar o rumo, vê onde caiu, be-leza. Se não, já era. É o caso do próprio Moon. Se pensar di-reitinho o cara teve até uma história bonita, nas origens, no chamado, como se dedicava. Mas onde foi o ponto em que o cara achou que era o Messias? Que “Jesus vacilou, mas ele pode completar o trabalho”? Caraca, que loucura.

Peguei Juliette, minha querida guitarra e fui tocar um pouco. Depois de alguns minutos dando uma de Pink Floyd e tocando direto duas notas, me lembrei de uma ideia sinistra. Vou convidar a cidade toda pra se batizar. Era aquele papo todo que tive com o Léo. A ideia é simples, “Quem crer e for batizado será salvo”, segundo Marcos 16. Pronto, a exigên-cia para batizar e salvar alguém é que ela creia. Todo mundo conhece João Batista e sabe que ele ficava lá dizendo que o Reino de Deus estava próximo. Geral ia ao seu encontro para ser batizado. Como eles iriam continuar vivendo, o conse-lho era se arrepender, ou seja, mudar de atitude. Pronto, quer ser salvo? Se arrependa, mude de atitude e se batize. Era isso mesmo que eu estava conversando com o Léo? Tenho que anotar as coisas.

O lance é que a pessoa nem vai precisar ficar como mem-bro da minha igreja. Se ficar, melhor ainda. Mas se não ficar, tá tranquilo, o negócio é se batizar e guardar os princípios de Deus. Sei que há igrejas que fazem cursinho pra batismo. Uma vez vi uma cartilha de uma amiga. Ela tinha que responder algumas questões da Bíblia. Acho que se fosse reprovada não poderia ser batizada. O fato de crer em Jesus como seu salvador era só um detalhe. Tinha que passar no curso. Confesso que ri muito quando me mostrou a cartilha no colégio. O meu senso de hu-mor é muito corrosivo. Sou muito irônico e sarcástico. Mas ten-to ser bem sincero na maioria das vezes. No fim das contas ela acabou rindo muito comigo também. Era meio absurdo o lance.

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Demorou. Vou fazer cartazes, faixas, convites, pedir ao povo que leve para seus familiares. Reunir os obreiros, o povo e invadir a cidade com esse argumento.

Droga, cara. Na moral. Eu quero acreditar no que estou fa-zendo. Às vezes, acho que existe aquilo que realmente é e aquilo que achamos que seja. Há a verdade do Evangelho e aquilo que traduzimos aqui na igreja e passamos para povo pensando que seguimos a verdade do Evangelho. Putz! Que sono.

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Estou cercado de safados, ladrões e corruptos! Caraca, o que é isso minha gente?! Será que em nenhum mo-mento eu vou respirar a paz e a tranquilidade de fazer a obra de Deus no meio de irmãos sinceros? Só tem safado.

Mal havia acabado o café da manhã, Léo me liga dizendo que o bispo do estado caiu. Descobriram que o cara estava transando com a mulher de um pastor já havia um tempão. Pior, havia tido um caso com a secretária há uns sete anos atrás e ninguém sabia. Na moral, estou longe de ser qualquer tipo de santo, mas como é que o cara consegue segurar essa onda por tanto tempo. Comendo geral e dirigindo um estado. São milhares de almas, centenas e centenas de pastores. Como ele conseguiu essa façanha? É muita cara de pau. Na boa.

O cara tinha maior jeito de santo. Ele é um daqueles ca-ras educados, com semblante angelical. Até destoava da maio-ria de nós que normalmente fazemos cara de mau, como se estivéssemos numa guerra ou coisa parecida. Mas ele não. Ele vinha caminhando e parecia que tinha uma auréola dourada sobre sua cabeça e nuvens a cada passo que ele dava. Sério mesmo. O cara era muito santo. Cantava com uma voz ro-

Capítulo“Tu, porém vai e anuncia o Reino de Deus”

Lucas 9:60

SETE

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mântica, pastosa, com aquela pinta de galã. Detalhe é que a gente fica pensando no que a igreja de Jesus aqui depende. Ele às vezes chegava ao templo lotado e dizia: “Quem tá doente vem aqui agora. Se você não ficar curado a gente acaba com tudo logo, fecha as portas da igreja, porque se os milagres não acontecem o que a gente tá fazendo aqui?”.

Sei que tem gente que brada quando acontece um mila-gre, dizendo, “Deus tá aqui, olha o milagre!” Eu mesmo já fiz isso várias vezes. Mas isso realmente não prova nada. Como está escrito que a chuva e o sol são derramados sobre o justo e o perverso, assim também todas as outras dádivas de Deus. Aí chega o safado, cometendo alguns crimes, conduzindo o povo à salvação. A gente começa a juntar o quebra-cabeça. Putz, não tem mesmo pra onde correr.

O que fazemos de errado vai gerando frutos sinistros em nossa vida. Se não zerar e começar uma vida limpa novamente, é um erro após o outro. Mas essas coisas não impediram que o cara continuasse a assumir estados cada vez maiores. Ele sabe a manha, arrecada bem. O pecado dele é só detalhe, não influencia na sua arrecadação, só no estado espiritual do povo. Mas quem é que está pensando nisso se a arrecadação cresce todo mês?

O sujeito foi pego com a boca na botija. Transando com a mulher novinha do pastor. O que o pessoal riu muito é que essa parada acontecia na cama do Bispo. Numa suíte que o Bispo ficava quando vinha passar uma temporada aqui no estado. Eu fique imaginando a cara do Bispo dizendo: “E o safado fez isso tudo, esse tempo todo, na minha cama”. Sério, tive que rir. Não aguentei. Pô, e o pastor traído? É aquele pas-tor mauricinho que aparece na TV. Cabelinho de lado, cara de bom moço. Esse tipo muito santo. E a mulher dele dando pro bispo. Putz. O pior é que já fazia tempo que ele havia sido descoberto. O segundo pastor do estado é que pegou.

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Agora vem a parte mais podre. O tal segundo pastor do estado. O cara que fazia as reuniões com a gente. Que formava os pastores auxiliares. Comandava a galera com mão de fer-ro. Estava recebendo dez mil reais por mês para ficar quieto. Para não denunciá-lo. E permaneceu assim. A parada só veio à tona quando o mauricinho da TV foi transferido pra outro estado. A mulher se sentiu só ou sei lá o quê. Viu que ficaria longe do bispinho e abriu o bico e o cara dançou. Então, eram dois patifes guiando o nosso estado.

Como posso pensar em mudar o mundo? Estou eu aqui pensando em dizer pra uma cidade toda mudar de atitude, ou seja, produzir frutos de arrependimento e os cabeças da minha igreja são um bando de desajustados? O detalhe é que um dia desses numa reunião regional, o pastor Figueiras que-ria tirar da obra um pastor auxiliar que estava se masturban-do. Tudo bem que o moleque já havia confessado umas duas vezes que estava praticando a parada e, pelo visto, não estava conseguindo parar. Uns pastores mais antigos disseram que isso não era motivo, que o garoto poderia mudar e tal. Aí pu-seram ele em uma igreja maior com mais um auxiliar soltei-ro. Um negão de quase dois metros. O pastor Figueiras disse assim, “Quando ele for tomar banho, você segura uma régua, e se ele pegar no negócio dá uma reguada forte pra ele parar com essa sacanagem”. A gente caiu na gargalhada. Mas o me-nino estava se martirizando muito com isso.

Refletindo sobre o livro do Mário, coisas escabrosas aconteciam entre homens que eram pra serem representantes legítimos de Deus aqui na terra. Pensando nos meus dias, cada vez mais ladrões e prostitutos com Bíblia em punho, vendem milagres para o povo e estão tão ocupados com a contabilida-de, que não dá muito tempo de pregarem a verdade. Por isso se afundam na mentira.

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O que posso dizer da religião oficial desse país? Do seu enriquecimento através da vista grossa ao longo da história aos pecados praticados contra a humanidade. O que dizer so-bre o exército de padres pedófilos que decoram as manche-tes dos jornais e ilustram filmes do Almodóvar? Na real, está muito difícil hoje empunhar uma bandeira.

O cara era líder de um grande povo. Povo este que tinha um futuro e tanto pela frente, pois recebeu a promessa de alcançar o mundo todo. Suas bases já estavam bem firma-das e os inimigos eram destruídos um a um. Esse cara além de ser um grande líder era também músico, compositor, profeta, escrevia lindas mensagens e sempre comandava a festa nos dias de adoração a Deus. Era “O Cara”. Amado por todos.

Um belo dia, o sujeito, não satisfeito com tudo que ti-nha, deu vazão às tentações da carne. Elas chegam a todo o momento. Internet, TV, revista, ou mesmo no dia a dia, ainda mais sendo líder, tendo poder, o acesso às mulheres e ações sem limites é muito maior. O cara viu uma mulher lindíssima, daquelas que punha a “garota de Ipanema” no chinelo. Vai, toma e pega. Transou com a mulher. Só que ela era casada, aí a parada se agravou. “Um abismo puxou outro abismo” e o cara foi se enrolando mais. Ele já não sabia mais o que fazer pra esconder o rolo todo. Foi cometendo erro atrás de erro pra encobrir seu primeiro pecado. Afinal, ele era “O Cara”.

Um desses assessores para assuntos espirituais encontra esse líder e conta uma historinha bem parecida com tudo o que estava acontecendo. Qualquer um ficaria indignado. O cara da historinha tem toda aquela pompa de santo, escreve, compõe, toca, comanda a massa nos cultos e vem pegando o que é dos outros. O líder diz: “só matando um canalha desses!”

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O assessor espiritual responde:“esse sujeito que cometeu isso é você, rei Davi”.

Por causa do pecado que cometeu, o rei Davi comeu o pão que o diabo amassou. O salmo 51 que retrata como ele estava arrependido: “Apaga meus pecados. Cria em mim um coração puro”. Penou como um desgraçado. Tudo o que plan-tamos, colhemos. Não há saída.

Eu estava pensando nessa história, por causa dos últimos acontecimentos. Davi ficou um tempo destruído. Mas a Bíblia diz que ele era um homem segundo o coração de Deus. Era um cara sincero. Transou com uma mulher e matou o marido dela. Diante deste contexto, muitos podem achar fichinha o que pastores e padres do nosso mundo atual andam fazendo. Mas há uma diferença enorme.

Eu sei que Deus tem uma graça inexplicável. Alguém que realmente nós não conseguimos compreender. Mas a lei sem-pre corta em nossa consciência toda vez que fazemos algo que aprendemos que está errado. Olha o caso do Mário. Quan-do ele, sendo um jovem pastor, virgem e com uma inocência aparente, foi seduzido pela situação e transou com o amigo que havia sido auxiliar dele. Sinistro. Na cabeça dele logo veio aquela palavra do Antigo Testamento, “Maldito é o homem que se deita com outro homem”. A gente pensa logo nesses versículos bíblicos inquisitórios. Não há muito pra onde cor-rer no exato momento.

O cerne da questão é que Deus, na sua maravilhosa gra-ça, perdoou Davi. Ele ficou um tempo colhendo aquilo que plantou. Não é Deus que castiga, nós que procuramos, agin-do contra seus princípios. Davi estava com o coração voltado pra Deus. Não há como ser santinho. Não tem essa. O único cara chamado “homem segundo o coração de Deus” foi esse rei, que até hoje é o maior rei que Israel teve. O sujeito pode

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até falhar, vai acontecer, duvido que não aconteça, mas ele vai buscar refúgio nesse esconderijo maravilhoso que é a presen-ça de Deus. Isso é “a graça”.

O pastor auxiliar que havia confessado que estava se masturbando, acabou pedindo pra sair. Não resistiu ao fato de estar no altar de Deus, falando com Espírito Santo e quan-do estava sozinho pensava em pornografia, mulheres e sei lá o que mais o levava a se masturbar. Foi demais pra ele. Não tinha a mesma caraça de pau que o bispinho. O bispo do esta-do, casado, transava direto com a mulher do próximo e conti-nuava. Só saiu porque o pecado dele o encontrou.

Sexo fora do casamento não é tolerado de jeito nenhum na comunidade cristã. Masturbação também não, embora me pareça menos corrosiva. Ambição, ganância, falsidade, menti-ra, rancor, traição, calúnia, fofoca, isso até convive muito bem entre os irmãos. Só que o bispo do estado quis fazer todas as coisas ao mesmo tempo. Aí a pólvora explodiu.

Eu teria dito para o menino ficar. Isso iria passar. Dife-rente do bispo, que cometeu adultério, traição com sua mu-lher, com seu pastor, com o povo, com igreja, contra Deus... O menino só havia... Depois que sai já era. Oh, Deus vem com usa misericórdia.

Dane-se tudo! Pensei alto. Anselmo até me olhou com olhos arregalados. Eu disse isso muito alto. Peguei Jullie-te, pluguei num amplificador sinistro e pedi ao baterista pra marcar. O menino de 13 anos, com cabelo moicano e óculos de nerd, tocava muito. Bateu baqueta com baqueta três vezes, e começamos. Nem mandei essas músicas moderninhas que tenho achado horríveis. Toquei uma “Segura na mão de Deus” mais visceral possível. No primeiro “unhual, unhual,unhual”

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a galera deu um uhuuul alucinado. “Se as águas do mar da vida quiserem te afogar...” Ficou maneiro pacas.

Normalmente quem fazia essa reunião era uma obreira que era líder do grupo jovem. Reparei que ficava uma galeri-nha do lado de fora, lá na porta, só ouvindo pra ver coé. Pus uns bancos do lado de fora, na frente da igreja, amplificador, caixas e mandamos ver. Fazia parte do meu plano de evangeli-zação pra convidar a cidade para o batismo. Estava afim de falar com o maior número possível de pessoas. Pus jeans, camiseta e All Star, acompanhado de um baterista maluco e o Anselmo de gola pólo. Putz! Tinha que ser.

O sol da tarde caia suave sobre os cabelos das moças e o vento sacolejava lentamente as poucas árvores da rua. A ga-lera batia palmas e acompanhava ardentemente os rocks que estávamos mandando. Aquele pessoal que ficava do lado de fora, não se juntou ao grupo num primeiro momento, mas estavam lá batendo o pé. Legal. Escolhi canções com grande apelo sedutor aos braços de Cristo, pra qualquer safado que achava como única opção de vida encher a cara, depois bala-dinha e chegar morto em casa, soubesse que poderia ter um espírito invencível, mesmo nos momentos de derrota.

“Deus todo poderoso, nós estamos aqui porque te que-remos muito. A maioria de nós não sabe muito bem quem é o Senhor. A herança de nossos avós, de nossa sociedade, não foi suficiente para manifestar o Deus que achamos que vive nesse céu azul leitoso. Mas agora, enquanto nós falamos, Ele se manifesta em nossos corações. Só o Senhor pode tocar nos labirintos de nossa alma, arrancando a amargura, as desgra-ças que nos fazem tão descrentes de tudo, que nos fazem pen-sar que o Senhor está tão longe, que não tá nem aí pra gente. Desfaz Senhor, por favor, essa má impressão que temos de ti, e faça-nos sentir tua presença, de maneira que saiamos daqui

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hoje com a nossa vida transformada ricamente pela tua graça que é infinita e muda os que são presenteados por ela. É o que eu te peço em o nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém”. Amém, galera?!

“Améeeeeeeeeeeeeeem!” Ressoou o brado pela rua a fora. Beleza. Senta aí você que tem lugar, quem não tiver senta

no chão mesmo ou fica de pé. Nem vai demorar muito hoje. Pra quem não me conhece, sou o pastor Eduardo, dessa igre-ja aqui que vocês estão a frente. Hoje excepcionalmente vou ficar uns momentos com vocês pra gente trocar uma ideia so-bre a palavra de Deus.

Vou abrir minha Bíblia aqui no Evangelho de Marcos, ca-pítulo 10 a partir do verso 16. Pra quem não tem Bíblia eu vou contar a história que está aqui. É o seguinte: Jesus estava lá cercado pela multidão e todo mundo levando umas crianças para ele abençoar. Pensa na pompa. Jesus já era muito famo-so naqueles dias, fazia milagres, achavam que ele era profeta, santo e o Messias. Então, ficar perto de um cara assim, filho de Deus, prometido, era mó onda.

Chega um sujeito, apelidado de “O Jovem Rico”, puxa o saco de Jesus, o chamando de “bom mestre” e aquela ba-julação toda. Jesus sabendo da intenção dele de ficar bem na foto, corta logo a asa dele. O jovem rico pergunta: o que posso fazer pra herdar a vida eterna? Jesus dá aquela olhada pra ele e sabia que não era uma pergunta sincera. “Como assim?”, “Que isso pastor?”, “Tá julgando?”. Vou te mostrar aqui ó, na Palavra.

Jesus deve ter dado uma bocejada e pensado “pô esse cara tá querendo tirar uma onda”. Quer ver? “Você sabe os mandamentos né?” Aí listou o manual básico do judeu. O jovem todo metido, disse: claro Senhor, desde a minha mocidade, ainda era criança e já ia à igreja, direto. Fiz primeira

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comunhão, fui coroinha, ia todos os domingos à escola bíblica, toda minha família é religiosa e decorei vários textos sagrados, tenho aqui comigo ó, a medalhinha da minha santa protetora, além de lá em casa minha Bíblia só ficar aberta no salmo 91 pra proteger todo mundo. Também há um quadro na minha parede escrito “O Senhor é meu pastor”. Tudo isso tenho observado.

Quem tá entendendo? Foi mais ou menos isso que ele quis dizer. O cara tinha um orgulho filho da mãe de ser re-ligioso, de frequentar seu clube social, de olhar pra alguém e pensar, “Ih Alá, já faltou três sábados. Eu não falto um, estou sempre aqui”. E ainda tinha muito dinheiro. Na hora de dar uma oferta, pegava uma quantia alta, punha lá no altar e vol-tava de cabeça em pé, pensando que todos o estavam obser-vando. Quem tá entendendo?

Ele dá uma olhada pra Jesus, com um sorriso. Sério mes-mo. Tipo, tirei onda Jesus. Sou muito religioso. Sou o cara. Jesus dá uma olhada pra ele, coça a barba e pensa, “filho da mãe, tá se achando”. Mas então diz: “uma coisa ainda te fal-ta”. O cara fica atônito. Como assim? Pega seu celular, olha na agenda eletrônica, checa as tarefas marcadas: ler o Anti-go Testamento todo. Ok. Ir ao templo três vezes por semana. Ok. Vestir aquela roupa de santidade. Ok. Ter quadros com passagens bíblicas na parede. Ok. Viver cantando os hinos religiosos. Ok. Quem tá entendendo? Na cabeça dele girou um monte de paradas. Ele achou que realmente Jesus fosse dizer: “Tá vendo aí seu bando de safados. O garoto apesar de novo guarda todos os mandamentos, é um religioso exemplar. Vocês têm que ser assim, seus parasitas”. Mas Jesus chega pro cara e diz: “Vai, vende tudo o que tem. Desfaça-se dessa vida pomposa, dessa máscara, dessa vida de ostentação, distribua o que você tem, se desapegue de tudo e me siga”.

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Quantos aqui fariam isso? Quantos? Quaaaaaaantos? Po-des crer. Bem poucos ou quase nenhum. No mundo onde a gente vive e, já naquela época, você vale o que tem. Você vale o que ostenta. É por isso que muitos de vocês se matam pra ter um tênis caríssimo da marca que o rapper gringo tal usa. É por isso que muitos de vocês compram parcelando em mil vezes o celular com duzentas mil funções de ultima geração, manda vídeo, torpedo, entra nas redes sociais, faz café e serve um refrigerante – pra mostrar que podem. É por isso que muitos de vocês fazem prestações de setenta meses pra comprar um carro, porque na cultura do nosso país andar de bicicleta não é uma ideia sustentável, é algo pra pobre e a gente fica entu-pindo a rua de fumaça e aço, pra dizer que consumimos.

O lance do ‘jovem rico’ era mais ou menos isso. Muita gente hoje chega as suas igrejas todos os domingos, encostam seus carrões e pensam “todos vão ver que Deus é comigo, olha o meu carro”. Muitos chegam ao templo, lugar de reunir os irmãos, lugar de encontrar os que amam, pois a vida do dia a dia nos separa e, ao invés de trocar o amor, ficam exibin-do roupas, reparando em como o outro está vestido. E são as mesmas pessoas que compram aquelas revistas inúteis de celebridades pra olhar o que elas consomem e depois também ostentar. O ‘jovem rico’ era bem visto na sociedade onde mo-rava. Era o rei do baile. Era o dono da bola. Era o genro que toda mãe queria. Era o mauricinho da faculdade. Tão sacando a parada? Ele queria reinar por aqui. Queria na próxima se-mana sua foto lá na revista Caras: “Jovem rico é elogiado por Jesus Cristo”. E aquela foto de Jesus dando uns tapinhas nas costas. Ele com aquela cara de Príncipe Henri.

Jesus aqui estava ensinando o desapego. Não queria que o cara fosse pobre. Nada disso. Desejava que se desfizesse da-quilo que o fazia merecedor de alguma coisa. Jesus gostou

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dele. No duro. O amou muito. Viu no sujeito um potencial. Pensou, poxa vida, se esse cara for um embaixador do meu reino com essa dedicação que dá às coisas que são tão superfi-ciais, poderá ser uma grande testemunha. Seria ótimo na dis-tribuição do Reino de Deus.

Quantos de nós estamos presos aos nossos rituais. As nos-sas tradições. Achando-nos garantidos por Deus porque guar-damos as tradições que a religião dos nossos colonizadores en-sinaram. Porque frequentamos catecismo, escola bíblica, temos um amuleto, rezamos, oramos antes de dormir e pra sair de casa, pensamos que estamos cheios de méritos porque frequentamos igrejas hoje que parecem clubes sociais. Julgamos estar salvos por fazer o mínimo de maldade possível. Porque, talvez, seja-mos melhores que um traficante, uma prostituta ou um político ladrão. Achamos que realmente Deus tem que ‘quebrar nosso galho’, salvar nossa pele porque apresentamos a ele um pouco de devoção. E cadê nosso tapinha nas costas? Cadê nosso elogio por não sermos tão mundanos, por não sair por aí matando, rouban-do e dando em qualquer esquina? Pô, Deus, olha isso aí. Damos até uma esmola, separamos até as roupas usadas pra doar. Acha-mos realmente que somos bons.

Jesus dá uma olhada pra nossa vida, pra cada um de nós. Não é uma olhada coletiva. Ele olha nos olhos e diz pra largar aquilo que você acha que é mérito. Aquilo que acha que lhe garante. Ele diz, “Vem, me segue”. Esqueça o restante. Sei que é difícil. O que todo mundo vai achar? Se você é um artista, o que seus pares vão achar? Eu me lembro, por exemplo, de ter visto o Bezerra da Silva na igreja evangélica todos os do-mingos. Como assim? O cara é o exemplo de malandro, reve-renciado, citado, seguido pelo pessoal da malandragem. Como agora ele entra numa igreja crente. Dá dízimos e ofertas, fecha os olhos para orar, conversa com o pastor sobre o futuro da sua

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carreira. Que viagem é essa? Mas é a pura verdade. Bezerra da Silva, não sei porquê cargas d‘água, deu uma bicuda em toda sua fama de malandro, botou seu bonezinho e estava lá, bus-cando a presença de Deus aos domingos pela manhã.

E aquele roqueiro, Rodolfo Abrantes, dos Raimundos? A carreira dele estava no auge, quando ele lançou, com sua ban-da, o CD e DVD que mais venderam. Ele, constrangido pela presença de Deus, refez os pensamentos sobre o que era vida de verdade, abandonou tudo pra seguir ao Senhor Jesus. Note que o chamado é individual. Bezerra da Silva ainda depois que se converteu, lançou seu disco de samba. Rodolfo radi-calizou. Achou que não valeria à pena ficar trabalhando pra sustentar o sistema do mundo. Mas é individual o chamado.

“Talvez você diga, ‘mas pastor, você tá falando de um ma-landro e um roqueiro maconheiro. Os caras não eram lá flor que se cheire mesmo’. Aí é que está o espírito do jovem rico, achar que você está melhor. Achar que não precisa mudar. Achar que a tradição que você segue já está boa. Não precisa conhecer de fato e de verdade quem é esse nazareno louco, que lhe chama pra uma coisa mais louca ainda: A vida que ele tem para você. Talvez você tenha medo de perder sua namorada, seu namorado. Talvez você ache que algumas orações e vir aos domingos à igreja já tá bom. Não precisa transparecer tanto que você não é igual a esse mundo. Pode pegar mal. Gostaria que você pensasse hoje em Jesus lhe dizendo: deixe tudo isso que lhe prende, que lhe afeta. Tudo o que você acha; todas as suas razões, tradições, religiosidades ou mundanismo. ‘Deixe tudo isso e me segue’. Não a uma religião, não a uma igreja, mas ao Deus vivo e verdadeiro. Veja que convite louco é esse. O que ele tem pra você? Eu sei só um pouco. Não sei exata-mente o que ele quer com sua vida. Mas pelos vestígios que ele tem deixado, você não irá se arrepender se abraçá-lo”.

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Peguei Julliete, dei uns acordes suaves, e começamos a falar com Deus.

“Vamos tocar uma canção, aí onde você está, feche os seus olhos para que nada tire sua atenção e você possa se con-centrar naquele que ouve sua oração. Fale com ele enquanto você ouve essa canção”.

Lembrei da banda que gostava e comecei uma canção:“Se você não sabe para onde seguir. Se você percebe que

não quer esse fim. Levante a cabeça e não olhe pra trás. Cha-me a Deus, chame a Deus...”

Várias pessoas entregaram seu coração a Cristo naquele instante. Muitos jovens chorando diante da maravilhosa pre-sença do Deus vivo.

“Isso, fale com Deus. Diga a ele que você não é perfeito como aquele jovem rico achava que fosse. Diga que você não tem muito a apresentar, mas que estará aqui e quer saber o que Ele tem, quais são os seus propósitos e está afim de se entregar”.

Pedi pra obreira fazer essa oração. Fiquei dedilhando “Lá” e “Ré” por um tempo infinito. Viajando mesmo na possi-bilidade de as pessoas conhecerem a Jesus sem os rótulos que a gente põe. Eu nem consigo fazer isso. Nem consigo fazer com que essas pessoas conheçam um Evangelho puro. Quan-do terminar essa oração e tiver que terminar a reunião, terei que dizer pra esses jovens voltarem aqui, talvez alguns farão “correntes de libertação”, ou coisa parecida, ou seja, seguir os mecanismos que criamos para que sejam catequizados pela doutrina cristão neopentecostal.

Lembro que Cristo batia um papo com alguém, e as pes-soas saiam transformadas. Ele nem dizia: “Olha, agora vocês tem que me ver aqui três vezes por semana. Não vá a qualquer lugar não, fica só com meu pessoal. Só eles tem autorização pra ensinar vocês acerca do reino”. Nada disso. Ele salvava as

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pessoas de seus pesos e temores e fazia com que elas seguis-sem com suas vidas, agora com uma nova perspectiva. Com o alívio que só ele conseguia manifestar.

Só gostaria de fazer isso hoje. Agora, nesse momento, na vida de cada um. Até daquele cara que está lá do outro lado da rua enxugando uma lágrima do rosto. Por mais que o lance todo aqui o emocione, a mudança que Jesus manifestava nos cora-ções dos que o ouviam, eu não consigo fazer. O que me frustra muito. Aí eu tenho que ser dente dessa engrenagem que usa ar-tifícios sinistros pra que consiga ter um sucesso pedagógico em seus ensinamentos do Evangelho. Estou perdido. Mesmo.

Até o Anselmo riu quando disse a ele o que estava afim de fazer. Mas fui em frente. Mandei imprimir um lote de folhetos. Começamos durante a semana mesmo. De casa em casa. Batíamos nas portas, as pessoas atendiam e dizíamos do que se tratava. “Olha só, senhora, tá escrito que quem crer e for batizado será salvo. Mas isso não é um plano futuro não. Não é ser salvo quando “o mundo acabar” e a galera precisar ir pro céu e tudo mais. É ser salvo agora de um mundo que oprime as pessoas, de um espírito de desgraça e corrupção que atinge as famílias, fazendo com que elas vivam miseravelmente, com seus filhos nos vícios, com brigas constantes. É ser salva para um reino onde a senhora recebe um espírito novo e vai experi-mentar uma paz no seu coração jamais vista”.

A senhorinha argumentou que já havia sido batizada na igre-ja católica quando era bebê. Que a família dela tinha essa tradição. “Mas senhora, o batismo é pra remissão dos pecados. Quando a senhora nasceu não tinha nenhum. Porque arrancar o pecado quando adulto é um símbolo de que a senhora está entrando em uma nova vida”. Insisti para que ela me falasse da sua vida.

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Estava com a vida toda zoada. Não havia paz na sua casa. Seu marido se embriagava direto e seus filhos, os três, só vi-viam brigando. Pra melhorar, a menina namorava um rapaz que queimava todos os baseados da Jamaica e a estava levando para o vício. Isso tudo trazia muito desgosto. Ela ainda sentia dores de cabeça constantes. Eu fique revoltado com a situação. Ela disse que já tinha até feito promessa pra saírem as dores de cabeça e pra livrar a filha do “mau caminho”.

Meu sangue já tava fervendo quando ela disse isso. O povo sofre muito e acha que tem que pagar algum tipo de promessa pra receber a vida que já lhes pertence de graça. A religião estraga muito a vida das pessoas.

“Senhora, não precisa de promessa alguma. Se a senhora quiser, essas dores saem agora. Sabe por quê? Está escrito que ao nome de Jesus foi dado todo poder nos céus e na terra. A senhora crê nisso?” Fui enfático.

“Creio sim, meu filho, num aguento mais essas dores. Pede pra Jesus me curar”. Ela disse com voz trêmula.

Ali no portão de sua casa, pedi pra ela fechar os olhos. Pus a mão em sua cabeça e fiz uma oração. Estava tão revolta-do com aquela situação que fiquei molhado de suor enquanto orava por ela. Mandei aquela dor sair em nome de Jesus!

“Pronto, senhora. Vê aí, pode ver se tá doendo a cabeça e as pernas”.

Ela começou a chorar. Disse que estava boa. Que não es-tava sentindo nada. Dei um abraço nela e disse que esse era Jesus. É de graça senhora. Sem pagar promessa. Entreguei o convite do batismo e seguimos.

Eu sei que é difícil demais remover anos de tradição reli-giosa, não só do catolicismo, mas até mesmo do cristianismo pentecostal. Mas há pessoas com suas tradições e crenças que foram passadas anos após anos, que sai na mídia como ver-

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dade, que pobres e ricos consideram como sendo as coisas de Deus realmente. Aí chega você com uma proposta audaciosa, dizendo que todos podem entrar numa vida nova de esperan-ça e paz interior, que não são necessárias as romarias, nem ser especialista em nada, ou ainda, formado em algo. Só abraçar a boa nova do Reino de Deus.

Jesus também, quando começou seu expediente aqui na terra, não tinha como causar muito impacto e medo aos po-deres e tradições existentes. Seu país estava sitiado pelo gran-de César Augusto, que se posicionou como deus em todo im-pério romano. Até o rótulo grego para “evangelho”, definido como as “boas novas”, foi ele que começou a usar nos seus anúncios em todos os confins de seu reinado. Ele exigia ser adorado como um deus. E muitos de seus pares, que o ajuda-vam a guiar tudo com mão de ferro, realmente acreditavam que o império romano seria perpétuo.

Chega o filho do carpinteiro anunciando o quê? As BOAS NOVAS. Estas apresentavam o quê? O Reino de Deus. Quem era o rei? O próprio Jesus. Bom, mas um cara que chega sozinho às margens das praias, angariando seguidores não muito ins-truídos dizendo que pescariam homens, com umas promessas loucas de revolução. De nova vida. Agora que todo mundo sabe, a história é legal. Mas pense em Jesus surgindo hoje lá na praia de Copacabana, chamando o cara que vende mate com limão, o guarda municipal, e dizendo que vão revolucionar com as boas novas do reino. Todo mundo diria que é só mais um louco.

Então, vem o Anselmo e eu. Dois improváveis pastores, sem barba na cara, ou experiência alguma de vida, baseados numa mensagem escrita há 2000 anos, querendo salvar a ci-dade. Cara, que irado!

Orar por pessoas como aquela senhorinha é o que me trás esperança. Por um momento me lembrei que na religião

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oficial, se você for usado pra fazer um milagre, é canonizado, vira santo. É claro, isso demora anos. O sujeito é uma pessoa que crê em Deus, o serve de alguma forma, encontra um do-ente, ora por ele e ele fica curado. Pronto, agora bastam algu-mas beatas juntarem um monte de documentos, testemunhas e sei lá mais o quê, enviarem para o Vaticano, endereçados ao conselho que analisa as provas dos milagres e daqui a uns dez anos, se o papa quiser fazer uma média com o país do “mi-lagreiro”, o canoniza. Já é o primeiro passo para virar santo. Ridículo.

Lá no Evangelho de Lucas, Jesus disse, “E esses sinais se-guirão aos que creem. Em meu nome expulsarão demônios e curarão enfermos”. Todos. Qualquer um. Ele disse que era só crermos e isso seria possível. O lance é que durante esses anos eu já havia visto muitos sinais, milagres acontecerem. É uma coisa que é tão natural, apesar de ser sobrenatural. A religião complica tanto.

É isso mesmo. Simples assim. Se a pessoa usar a fé e, em nome de Jesus, mandar a doença embora, ela vai mesmo. Não precisa da autorização do papa, do concílio de qualquer coisa que valha. É só crer e orar. E o legal é que não precisa ficar documentando nada pra validar o milagre. Não é seu. Não é você que merece a glória. As pessoas não vão ficar adorando a você, fazendo promessas, medalhinhas, rezas, nada. Porque é feito pelo nome de quem tem o poder: Jesus.

A parte ruim dessa coisa toda foi que os neopentecostais criaram o tal povo viciado em milagres. Pois é. Os pastores anunciam na TV, no rádio, que haverá uma reunião de mi-lagres. Pronto, os templos lotam. Entopem de enfermos em busca dos milagres oferecidos. Mas esse povo acaba achando que Jesus tá ali para isso, só ficar servidos os outros de mila-gres. Usam a igreja como um hospital, ou farmácia. Os pas-

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tores dão suas doses e, pronto, o povo volta para suas vidas. A culpa é dos pastores, lógico. Os milagres são consequência de uma vida com Deus. Quem recebe o Reino de Deus recebe todos os seus benefícios. Não é isso? “Buscai primeiro o Reino de Deus e as demais coisas serão acrescentadas”. Mas ficamos lá: “Olhem os milagres, quem vai querê-los?” Putz. E as pes-soas ficam sem conhecer a Deus.

Se a gente der uma pensada veremos que as pessoas que Cristo curava recebiam um veredito final do tipo, “vai e não peques mais“ ou “a tua fé te salvou”. Ou seja, o milagre não era um fim, era o início pra um novo tipo de comportamento ou estado da vida do sujeito.

Seja como for, o Anselmo comprou o barulho. Nós va-mos convidar essa cidade pro batismo. No domingo já mar-quei com os obreiros e o grupo de evangelismo pra invadir-mos tudo, todos os lugares. A ideia é não usar os slogans do tipo “um milagre espera por você” ou coisa que valha. O gran-de trunfo é se você crê pode ser salvo. Hoje, agora.

Eu estava tirando um cochilo em cima do livro quan-do o pastor Figueiras apareceu de repente. Era uma tática mui-to velha usada pelos pastores. Alguns faziam isso até em reuni-ões do estado. A gente abre um livro ou a Bíblia, põe bem em direção ao rosto e finge que está lendo. Mas é um tipo de sono meio alerta. Não dá pra tirar altos roncos. Como a igreja fica aberta o dia todo, aparece sempre alguém pra pedir oração, atendimento ou qualquer coisa do tipo. Normalmente, fora do horário do culto a gente passa atendendo alguém. Por isso, nos momentos de calmaria é bom usar a tática do “dormindo len-do”. Quando o pastor Figueiras chegou logo abri os olhos. Nem deu pra usar aquela que a gente finge que estava orando.

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“E aí Eduardo como vão às coisas?” Ele estava acompa-nhado do pastor auxiliar da sede.

“Tudo bem pastor, tranquilo até demais”. Eu disse fazen-do aquela cara de sério, como se estivesse compenetrado em algum assunto e ele acabara de interromper minha reflexão.

“É, da pra ver”. O auxiliar estava meio atrás dele fazendo aquela cara de riso. Safado. “A gente tá vindo lá da sede. Va-mos deixar uma material aí pra você “passar” na igreja. Pega lá no carro Bruno”.

O maluco voltou com uma caixa enorme cheia de troço. CDs, livros, chaveiros e um monte de outras lembrancinhas gos-pels. Ele foi me mostrando e dizendo o preço das coisas. Absurdo de caro. Disse que era pra ajudar na obra. Eu poderia ficar com 20%, mas tinha que vender tudo em 25 dias, pois era quando fechava o mês. Traduzindo, em todos os cultos, além de realizar a cerimônia espiritual, teria que pedir oferta, passar envelope do dízimo, da campanha da semana, passar o jornal da igreja, agora teria de vender um monte de coisas pra saturar o povo.

Mas saquei a dele na hora. O homem estava desesperado. Não estava dando pra fazer dinheiro nas ofertas, queria trans-formar os cultos em comércio pra engordar o seu mês finan-ceiro, superfaturando um monte de coisas que são baratinhas em qualquer lojinha de artigos evangélicos. O pior que nem tinha como recusar.

“Mas tem muita coisa aí pastor. A igreja aqui é pequena. Não tenho tantos membros assim. O senhor já dobrou o jor-nal, o que faz com que eu gaste mais tempo nos cultos...”

“Eduardo, “é melhor obedecer do que sacrificar”. Cadê sua fé? Pastor tem que ser de fé, num tem esse negócio de que não vai dar. Vai dar sim. Preste conta daqui a 25 dias de tudo. Não é pra sobrar nada. Venda pros obreiros, grupo jovem, sei lá, dê seu jeito. Quero esse material vendido”.

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“Sim, senhor”. “Vamos lá no seu escritório. Onde o Bruno guarda isso?”“Deixa aí mesmo, eu guardo depois”. “Que merda é essa Eduardo?” Ele pegou o folheto escrito

“O BATIZADO”. “Tá fazendo campanha diferente da direção da igreja?”

“Não senhor. É só um propósito aí pra batizar o pessoal no final do mês”.

“Sabe que não pode fazer campanha diferente, né? Tem que falar quando for fazer essas coisas. Acontece algum pro-blema, aí eu que sou o regional. Como é que vou te ajudar em alguma coisa depois? Não tem como, meu caro. Fica bolando essas coisas que a direção não passou...”

“Sim senhor, pastor. Vou avisar sempre”. É claro que não iria avisar nada. Até porque sabia que não podia fazer campa-nha financeira. Nem tem espaço pra isso no culto. Tenho que ficar me virando pra fazer os propósitos de oração, ler livro tal da Bíblia e o batismo. As coisas materiais tomavam mui-to tempo em nossas reuniões com a igreja. É maçante para o povo ficar ouvindo tanta coisa que ocupa o espaço da palavra e da adoração.

“Que cubículo o seu escritório. Não tem espaço pra nada. Me dá esse livro do mês aí. Que isso, Eduardo, todos os me-ses aqui? Bate a Receita Federal aí como vai ser? Pô, anota um mês e depois arranca a folha. Não deixa ficar acumulando não. Pô, olha só como tá o seu mês... Tá quanto tempo aqui?”

“Pouco tempo, pastor. Deixei os meses do pastor que es-tava aqui antes, também”.

“Você tá parecendo uma poça. Olha isso aqui, muito parecido com o mês passado. Tem que crescer esse negócio. Crescer só quando chega é fácil, quero ver crescer todos os meses. Sabe que a coisa tá feia. Muita gente vai perder igreja

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se não crescer. Você veio pra cá porque disseram que você era um bom pastor”.

Bom pastor, segundo Jesus, conforme o Evangelho de João 10:11, “Dá a vida pelas ovelhas”. No evangelho do pastor Figueiras, o bom pastor é outra parada. Não importa se vou à rua, evangelizo, levo gente pra ouvir a Palavra, quantas pes-soas eu batizo ou faço discípulos. O bom pastor leia-se: o cara que arrecada muita oferta.

Eu acho que tenho até algum tipo de talento. O pro-blema é que tenho escrúpulos demais. Conheço caras que inventam qualquer argumento pra arrancar o máximo pos-sível do povo. Tudo vira argumento para pedir mais. Lembro de um colega de trabalho, aqui mesmo da região, que o pro-prietário do imóvel disse que estava pensando em vender o espaço onde funcionava o templo. O cara mandou isso para o povo, dizendo que se o espaço fosse vendido e a igreja não comprasse, fecharia as portas. “Vocês querem isso?” Aí o povo responde: “Não!” “Então pega esse envelope aqui e faz um desafio. Pega tudo que você tem na poupança, na conta bancária, no colchão... Você vai investir em Deus para o nos-so templo não fechar. E Deus vai restituir em dobro”. O mês dele dobrou. Como ele já vinha de um mês bom, foi transfe-rido para uma cidade maior, com uma arrecadação melhor que a dele. O pastor que foi pra lá teve que descascar o aba-caxi. O povo reclamando que o imóvel não foi comprado... É claro que não foi. O mês da igreja não dava nem 10% do preço. E o pastor sabia disso. Mas, mesmo assim, usou esse artifício maligno. Se ele tivesse ficado lá, inventaria outra história. O cara é bom nisso. Se as pessoas estão sendo sal-vas, se estão tendo um encontro com Cristo, isso é detalhe.

“Tudo bem, passa o material aí. Pega firme na campanha da semana. Já vi que você é astuto. Nada de campanha paralela.

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Vamos nessa, Bruno”. O garoto estava dormindo em um banco da igreja. Devia estar super cansado. Sei como é a vida na sede.

“Sim senhor pastor. Pode deixar”. Quase bati continên-cia. Só de farra.

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Agora a casa caiu. Agora tudo acabou. Putz grilo umas mil vezes! Quando Léo me ligou, hoje, eu não podia acreditar no que eu estava ouvindo. Não acredito mesmo. Não há como crer nisso. Ele tinha uma voz de decepção. E disse que agora o “bagulho tava doido” mesmo. Ele terminou a ligação e eu fiquei atônito. Olhando pra lugar nenhum.

“O café vai esfriar pastor”. “Pastor...”. Alguém tocou no meu braço.“Tudo bem? Seu

café vai esfriar”. Anselmo com aquela cara de interrogação. Olhei pra ele como se também buscasse uma resposta.

Não há. Não estou encontrando. Me sinto perplexo, mas é só uma ligação.

Saí correndo. Fui à lan house que havia próximo a pra-ça. Tinha que ver isso como meus próprios olhos. O Léo me ligou dizendo que havia saído uma reportagem sinistra so-bre a igreja. Vários vídeos sobre dinheiro, que um ex-pastor havia feito.

Dei um Google em tudo. Achei a reportagem que estava procurando. Um pastor fez uns vídeos de vários bispos falan-do de dinheiro. Tem um vídeo do Bispo ensinando a galera a

Capítulo"Recebendo nós um reino inabalável"

Hebreus 12:28

OITO

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pedir, mas pedir alto. Dizendo que temos que ter aquela pose de “super-homens” que fazemos.

“O pastor tem que posar ali no altar tipo um Moisés. O cara que vai resolver os problemas da pessoa. Se o povo acre-dita em você, quando pedir algo, vão dar. Vão dar tudo, até. Você não pode é ser tímido, morrinha. Tem que pedir com vontade. Chegar e resolver a parada”.

Fiquei muito angustiado. Não tenho mais certeza do que estou fazendo. Por um instante me senti enojado. Parecia que realmente eu estava ali tentando fazer outra coisa que não era o meu propósito inicial. Agora me sinto um peixe olhando da margem do rio. Vendo que, aquilo, de viver na água, sem poder ver a vida aqui fora, não é vida. Sei lá, se a gente tá ali dentro, só vivendo, não sente. Não sabe direito a agressão que são aqueles termos. Cegos pela fé. Cegos por nossas ações.

Como um furacão revolucionário, invadimos todas as fa-velas, anunciando a libertação aos cativos. Passamos dias intei-ros de casa em casa. Orando doentes, orientando famílias des-truídas, abençoando bandidos e viciados, fazendo tudo o que o Estado, a religião, ou sei lá mais quem não fazia. Rapidamente a mensagem de transformação de vidas chegou aos corações angustiados. Homens largaram o alcoolismo, a violência, as drogas e se firmaram como cidadãos de bem. Mulheres aban-donavam a prostituição, a vida de inércia e passaram a cuidar de suas famílias e da igreja de Cristo.

Com o discurso de “ser cabeça e não calda” é provável que tenhamos aumentado consideravelmente o número de camelôs e de trabalhadores informais nas mais diversas áreas. As pessoas realmente “compraram” a ideia de não serem es-cravas, se tornarem independentes do sistema financeiro do capitalismo e do governo que oprime. Isso me parecia interes-sante e revolucionário.

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Agora o Bispo parecia um gangster do Brooklin. Sério mesmo. Nos vídeos que o safado gravou, o Bispo parecia que estava tomando a periferia de Nova York, enchendo o mundo de crack e pó. Seu discurso poderia se encaixar numa reunião de vendas, num time de futebol, num comitê de campanha política, sabe lá... Menos em uma reunião de pastores com-prometidos com o Reino de Deus.

Estava em uma cafeteria no shopping, afogando minhas mágoas num capuccino. Gostava do visual do lugar e de ficar olhando as pessoas. O café funcionava anexo a uma livraria muito bem frequentada por mim. Não que eu fosse um grande cliente, mas ali era possível ler várias coisas de graça, ter insight e me informar sem gastar nada. Passava algum tempo por lá. Era capaz de ler um livro inteiro de pé num corredor daqueles. Só compro o que realmente me interessa. Hoje não estava muito a fim de ler nada. É chato quando parece que nin-guém tem nada pra lhe dizer. Já cambaleei muito por lugares assim, tirando livro atrás de livros e ninguém dizia nada. Nem sei como as editoras conseguem publicar algo assim, que não diz nada. Livros que estão escritos corretamente, que respeitam todas as normas gramaticais e regras literárias, mas não dizem nada. Pelo menos a mim.

“Oi Edu” alguém tocou no meu ombro. Virei-me mecanicamente, sem muito entusiasmo. Ainda

fiquei parado por alguns instantes, mirando compenetrado. Até me dar conta de quem era. Ou mandar essa informação para o meu cérebro.

“Oi professora. Como a senhora tá?” Era minha profes-sora de literatura. Estava acompanhada do filho. Lembro-me que pediu muito pra orar por ele quando eu estava na sede re-

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gional. O garoto estava largado na vida. Vivendo todo zoado, experimentando tudo que viesse. De chá de cogumelo a crack. Foi um período sofrido pra ela, pois não há muito o que fazer nesses casos senão pedir intervenção divina. E foi o que ela fez. Mesmo não crendo por completo, mesmo não sabendo o que estava fazendo exatamente, mas a dor de mãe a fez perseverar nesse propósito de suplicar a Deus pela vida do seu filho.

“Poxa Edu, eu estou muito bem. Se lembra do meu filho, o Digo?

“Sim, claro que me lembro. E aí, como você tá rapá?”. Apertamos as mãos com entusiasmo. Eles pareciam muito bem, com um sorriso enorme no rosto e o semblante bem leve.

“Então, você lembra que eu vivia penando, pedindo a você pra orar por ele? Deve ter me visto nos cultos chorando por essa alminha aqui. Só Jesus! Deus fez um milagre, agora ele está transformado pelo poder de Deus”.

“É mesmo? Que legal! Isso é bom. Tá vendo aí como foi bom perseverar”.

O Digo andava com o mesmo visual skate, com os pier-cing e as tatoos, só que agora parecia uma pessoa transformada.

“Eu cheguei a assistir alguns cultos com a minha mãe lá, não sei se você lembra”. Digo disse com a voz meio cantada. Tinha um leve gingado no jeito de falar.

“Me lembro sim. Você ia sempre com um skate na mão. Acho que já tinha te visto à noite lá na pista de skate. Você manda bem”.

Eles me disseram que estavam frequentando uma igreja que funcionava em um sistema de reuniões em casa. Tinha um culto por semana. A igreja fazia um som rock'in'roll, as pessoas eram “diferentes” como o Digo. E o fato de ter en-contros nos lares aproximava mais as pessoas, dava pra fa-zer mais amizades e era mais fácil de acompanhar a vida de

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quem estava começando. Isso foi essencial para que o Digo recebesse a Palavra de uma forma mais prática, largasse vícios e começasse a andar com gente que gostava de coisas como ele, mas mantinham a fidelidade a Deus. A professora ficou indo junto para dar uma força para o filho. Acabou ficando por lá mesmo.

Ela já não estava com aquela cara oprimida dos primeiros dias quando começou ir aos cultos. Parece que aquele monte de demônios que a atormentavam havia saído. É o que sempre comentávamos, “nós limpamos para entregar a outras igrejas”. Nesses anos de ministério de libertação que praticávamos “ora-ção forte” contra os espíritos malignos, boa parte das pessoas que eram libertas não ficava conosco. Muitos queriam, depois de li-bertos, estudos bíblicos, longos momentos de adoração e comu-nhão com os outros cristãos. Nós não priorizávamos muito essas coisas. Nossa igreja era um campo de batalha contra ‘todo mal’. Parecia que vivíamos em permanente estado de guerra. Nem todos conseguem acompanhar o ritmo frenético de propósitos, campanhas, orações de “descarrego”, “fogueira santa”, trazer isso, levar aquilo, enfim, aquilo que fazíamos diariamente.

O Bispo estava tirando cada vez mais a música dos nos-sos cultos. Diziam que essas coisas só emocionam. Esse papo de amor e comunhão entre os irmãos, então, na cabeça dele só servia pra tirar o foco da fé. Por incrível que pareça, a fé nos dá certa agressividade. Mas eu estava muito feliz em vê--los transformados. Querendo mesmo seguir os caminhos do Senhor. Nesse caso, não me importo muito onde as pessoas estejam desde que haja nelas um encontro verdadeiro com o Deus vivo.

“Estou muito feliz em vê-los e saber que vocês estão bem. Quem sabe um dia eu não visito vocês quando estiverem reu-nidos em seus encontros”.

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“Sério Edu, que legal! Seria muito bom mesmo. Você faz parte dessa nova história que começou em minha vida”. A professora se entusiasmou. “Mas Edu, me deixa ir, ainda te-nho que fazer umas comprinhas hoje”. Ela me deu um abraço muito apertado. Parecia aqueles abraços de aeroporto. Senti que realmente ela tinha um carinho por mim.

“Amém professora. Foi bom vê-la também. Fica com Deus. Qualquer coisa sabe onde me encontrar”.

“Sei sim, Edu. Um beijo”. Disse, ainda segurando minha mão.

“Valeu pastor, a gente se esbarra por aí”. Digo se despediu de mim com um soquinho de punho fechado. Eu retribuí.

Fiquei por uns instantes observando-os enquanto se afastavam, quando alguém me deu um cutucão na costela. Acho que hoje era o dia dos cutucões.

“E aí Léo, tá fazendo o que por aqui?”“Ué, acha que é só você que pode dá um ´rolezinho’ no

shopping quando a casa tá caindo?” Ele me disse isso com a cara de cínico que fazia às vezes. Mó figura.

“Mas e aí, como vão as coisas?” Às vezes, eu faço esse tipo de pergunta mesmo sabendo da resposta. Só pra especular. Só pra divagar sobre o assunto.

“Desse jeito que você tá vendo meu nego. A casa caiu. E, olha, a gente já passou por várias situações desconcertan-tes e superamos todas. Mas essa do safado, aquele... Como é mesmo o nome do sujeito que divulgou os vídeos na TV? Não importa. Enfim, o cara foi cruel. Pela tonelada de vídeos que ele tinha, acho que já estava preparando isso há muito tempo”.

“É, também pensei nisso. Mas agora já era. Os caras va-cilam e a gente que tá quietinho em nossas igrejas, tentando batizar, salvar a galera. O que a gente faz?

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“Cara, não há muito o quê fazer. É pregar a palavra, bus-car a Deus e quando for pedir oferta, mostrar a Bíblia e ser discreto. Nós não somos sinceros?”

“Sim, somos”. “Então, vamos esperar essa poeira baixar pra ver o que

vai acontecer”.“É verdade. Tudo debaixo do céu tem um propósito. Vamos

ver o que Deus faz com isso tudo. Você vai pra onde agora?”“Daqui a pouco vou pra igreja. Vamos dar uma passada

ali na livraria”?“Vamos sim. Vou desfolhar mais alguns livros pra ver se

algum tem algo interessante”. Léo assim que entrou na livraria foi pra sessão de HQs

e livros de design gráfico. Ele passava um bom tempo len-do quadrinhos. Dizia que era uma linguagem revolucionária. Estava preparando um material evangelístico para apresentar Cristo às próximas gerações. Algo em grafite, quadrinhos, pi-chações, sei lá o quê. Queria ideias inovadoras. Assim como eu, achava que nas livrarias evangélicas, no que diz respeito a juventude, só tinha material de “crentão”, chato, nada anima-dor. Acho que ele ficava pesquisando ou, se inspirando nessas paradas que lia.

Seja como for, nem fui para a sessão de livros. Estava sem saco para assuntos longos. Fui dá uma olhada nas revistas. Era rápido, não precisava pensar muito e se eu não quisesse ler era só ver as imagens. Realmente, a paciência havia fugido de mim. A ansiedade pelo passar do tempo estava tomando conta dos meus pensamentos. Comecei a desfolhar revistas.

“A diferença entre querer e fazer”. Caraca, muito boa essa matéria. Encontrei em uma dessas revistas moderninhas. A matéria estava falando sobre uma menina, Júlia, que em uma cidade de São Francisco, EUA, resolveu protestar contra a

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derrubada de uma floresta. Arrumou “mala e cuia” e subiu na árvore. O resultado é que acabou morando dois anos so-bre a árvore vigiada 24horas por dia, pra que fosse impedida de receber informações e mantimentos pra sobreviver. Mas resistiu até que a empresa responsável pelo derrubada resol-veu vender a área da árvore por 50 mil dólares. Com ajuda de amigos ela conseguiu levantar o dinheiro em um dia. Salvou a sequóia e virou heroína. Muito irado isso.

Dei uma olhada por entre o mar de livros pra ver se lo-calizava o Léo. Tinha que mostrar isso a ele. Mostrar que nos-sos sonhos de pregar o Evangelho puro e simples e alcançar as massas com movimentos impactantes era possível. Tínha-mos que pagar o preço. Tínhamos de nos sacrificar por uma causa maior. Essa moça, de 23 anos, era tipo um João Batista do novo século. Anunciando que era preciso um esforço pra que o meio ambiente fosse salvo. Foi exatamente isso que João Batista fez. O cara vinha de uma linhagem de profetas. Pode-ria ficar lá, todo pomposo, como sacerdote no templo, fazendo politicagem, oprimindo as pessoas com suas leis e defendendo o interesse de sua classe como os fariseus. Mas não, foi para o deserto, sem roupas finas, sem comida adequada, mas os frutos vieram, as pessoas buscavam a mudança de rumo que ele pre-gava. É isso. Não precisamos de um sapato de pelica, um terno Armani ou camisas de abotoaduras pra impactar o mundo com a mensagem do Evangelho. Poxa, cadê o Léo?

Desisti de encontrá-lo. Fiquei viajando por um tempo nas possibilidades de virar um pregador de mochila nas cos-tas e uma Bíblia na mão. O que eu tinha a perder? Era um garoto. Apesar de ter dedicado minha adolescência e juven-tude a esse ministério, a essa instituição, os últimos aconteci-mentos estavam me deixando mais tenso que um Jack Bauer em “24 HORAS”. Tudo bem que uma vez ouvi que “os verda-

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deiros heróis nasciam na guerra”. Mas, cada vez mais, parecia que lutava uma guerra que não era minha. Era uma guerra do Bispo contra os donos do poder no país. Antes a nossa luta não era “contra a carne e o sangue e, sim, contra as forças es-pirituais do mal” como disse o apóstolo Paulo. Agora, a nossa luta era contra um grupo de comunicação, políticos, mercado imobiliário, mercado financeiro... Nem sei mais o quê. E eu na engrenagem... Ah, não vou procurar o Léo.

Achei uma pérola. Uma entrevista com o ex-bispo do Bra-sil da nossa igreja. O bispo que pregava o amor e coisas consi-deradas muito sentimentais. Devorei a entrevista em minutos sem piscar os olhos ou olhar para os lados. Ele disse que teve vários motivos pra sair, mas, o principal, foi que numa reunião de bispos e líderes da igreja, o Bispo decidiu montar um par-tido político e usá-lo como instrumento principal para galgar o poder. Era contra esse pensamento, pois achava que o Reino de Deus é o fator determinante para qualquer mudança e que, em Deus, está todo poder que nós precisaríamos para alcançar as pessoas. Ele achou que a igreja estava se apoiando em bra-ços humanos e materiais. Viu que já não tinha mais espaço pra pregar o que ele acreditava, em como o Evangelho realmente é. Com muita tristeza, teve que deixar a igreja que ele tanto amou.

Eu fiquei um tempo com o nariz colado na vitrine. Deixei até uma marca no vidro, tipo uma impressão digital. Observei um tempo o Léo, com as sobrancelhas suspensas e um semi-sorriso no rosto, viajando em um livro. Dei três to-ques leves na vitrine pra ele perceber que já estava na hora de partir. Ele olhou com surpresa e me pediu pra esperar. Veio até o vidro e me mostrou uma página do livro: “Aquilo que guia e arrasta o mundo não são as máquinas, mas as ideias” Victor

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Hugo. Fez um sinal de positivo e soletrou com a boca, i-ra-do! Eu devolvi o sinal de positivo pra ele e fiz o sinal de “meter o pé”, fatiando o nada com a palma da mão virada pro alto.

Ele saiu. Antes que eu dissesse que iríamos nos atrasar pra fazer o próximo culto, ele se adiantou e disparou a falar.

“Caraca, Edu. Viu aquele livro que eu estava lendo? Tenho que comprar aquilo. É sinistro. Já ouvi falar em The Wave?

“Ah sim, musicado Tom Jobim?” Disse isso só de farra. “Que mané Tom Jobim. Tom Jobim é Wave. Fez cara de

irritado, depois riu. “Eu sei cara, tô só te gastando”. Normalmente metade das

conversas que tenho com os amigos chegados é zoação. Fico dissimulando e vendo até onde a pessoa vai. “Isso não é aque-la parada que o cara inventa um grupo chamado A Onda e comanda uns estudantes e tal...?”

“Justo. Isso mesmo. Então, aquele livro ali é, meio que, em quadrinhos, meio texto. Imagens radicais com traços iradaços. Eu tinha ouvido falar de outra forma. Mas ali fala que foi um experimento de um professor de escola secundária. O cara, in-centivado pelos alunos, cria um grupo a fim de estudar aqueles lances de “poder, disciplina e respeito”, e esse seria, mais ou me-nos, o slogan dos caras. Eles começam a seguir as regras do gru-po, criam um padrão de roupas e logomarca, uma linguagem e espalham a parada toda pela cidade”.

“Tá, o que tem isso?” Fingi que não estava interessado. Fiz um olhar desdenhoso.

“O lance é que mais e mais jovens vão aderindo ao mo-vimento e toma forma de grupo fascista, virando fanatismo e fazendo a galera obedecer cegamente”. Ele, empolgadão.

“Sei, Léo. Conheço outra versão... O cara fez uma parada assim, chamada The Wave, mas, na verdade, a galera trabalha-va para o nazismo. Mesmo sem saber”.

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“Isso não importa. O lance todo é a ideia. A ideia de você criar um grupo, um slogan, um símbolo... Basear seu funda-mento nos ensinamentos de Cristo, e catequizá-los para que sejam salvos e sirvam a causa do Evangelho, mesmo que a princípio achem que é apenas A Onda. Sacou?"

“Sim, sim. Pensei nisso uma vez. Mas, como já tinha ex-periência com grêmio estudantil, achei que daria muito tra-balho lidar com grupos novamente. Vejo isso no grupo jovem da igreja. Grupos são muito egocêntricos, carentes, esquisitos, sei lá... Dá muito trabalho lidar com esse pessoal. Aí, tendo pensado sobre isso, achei melhor atuar como um infiltrado”.

“Cara, como assim infiltrado?” Léo fez cara de espanto. “Você lembra daquela reunião que o Bispo estava falan-

do que um grupo de jesuítas se infiltrava, entre os evangélicos para acabar com o ministério cristão. Lembra?” Sim, sim. Me lembro. Pô Edu, vai me dizer que você é jesuíta?” O sacana fez aquela cara de preocupado.

“Pô, que mané jesuíta. Só estou falando que achei que daria certo, mesmo não concordando com várias paradas de nossa igreja, me infiltrar como pastor, talvez conseguir chegar a bispo, para fazer a coisa certa. Salvar almas, pregar o Evan-gelho do jeito que ele é”.

“Até te entendo Edu, mas há dois erros aí. Primeiro já tentaram isso. Esse lance de mudar o padrão de atuação de nossa igreja. O cara era bispo do Brasil e se estrepou de verde e amarelo. Segundo, como você acha que o Evangelho é?”

“Pô Léo, num zoa. O que você acha que nós fazemos? Em que igreja você está? O que nós priorizamos no dia a dia de nossos cultos? A pergunta que você tem que fazer é: Jesus faria isso?”

“Tá vendo aí, é isso que estou falando. A gente faz tanta coisa maluca que, se fizermos um movimento tipo “A Onda”

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vai passar camuflado e a gente consegue discipular um monte de gente pra servir a Cristo de uma forma mais próxima. Tá sacando? O nosso trabalho é muito distante. A gente chega lá no púlpito e começa a fazer entretenimento pra dezenas, centenas e até milhares de pessoas e tem que segurar o ritmo, manter as pessoas sedadas pela nossa energia de falar. Eu que-ria sentar juntos delas, fazê-las pensar, meditar sobre tudo o que está escrito”. Ele dizia isso pensativo.

“Sei como é. É provável que se quisermos algo mais só-lido para o futuro, seja preciso esclarecer, refletir, indagar e imprimir no coração das pessoas algo mais sólido que só um oba oba...”

“Tá tocando seu celular aí, Léo”. “Putz, quem será uma hora dessas... Ih caraça, é o ‘omi’.

Sim senhor, pastor Figueiras. Na escuta”. Atendeu tipo um soldado tosco. “Mais ou menos pastor... ainda tá baixo. Mas vai melhorar... unhum. Sei... Vou fazer isso sim pastor. Pode deixar...”

“E aí Léo, o que o ‘omi’ tá querendo?” “Cara, ele me ligou pra saber como tá o mês... Você acre-

dita nisso? A casa caindo, um monte de vídeos mostrando lí-deres da nossa igreja falando agressivamente em dinheiro e o cara quer saber se a gente tá pedindo direitinho, se falta muito pra ‘pegar o mês’. Caraca, é disso que tô falando...” Léo estava fazendo mó cara de perplexo. Sério mesmo.

“kkkkkkkkkkkkkkkk. Caraca, tô falando. Daqui a pouco ele me liga também.”

“Aí, ó, é ele. Fala alguma coisa boa aí pro ‘omi’ Edu”. “Sim, senhor pastor. Na escuta”. Se ele pudesse ver mi-

nha cara agora. Mataria. “Tá um pouco acima do que estava na mesma data do mês passado. Mas com esses acontecimen-tos... O senhor sabe né...” Falei com aquela voz de preocupado

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pra ver qual era a dele. Ele disse que não queria saber disso não. Isso era desculpa. O negócio não era ficar chorando leite derramado. Era passar fé pro povo e continuar com a campa-nha. Quem quisesse sair que saísse. ‘Deus mandaria’ outros pra dar se esses não quisessem... E blá blá blá... “Sim, senhor pastor. Vou pegar firme, sim. Vou meter bronca hoje. Sim se-nhor... Sim senhor... Sim senhor...”.

“E aí, o que ele falou de novo?”“Nada. Mesma coisa. Eles ainda não têm resposta do que

vão fazer a respeito da reportagem. Pelo visto os advogados da igreja estão estudando isso. E a vida continua.

As respostas aos vídeos, repercutidas na TV sobre os bis-pos falando e pegando em dinheiro o tempo todo viria à noite, mas tarde, num programa especial que acontece na emissora da igreja. Era praxe. Todas as vezes que acontecia alguma coi-sa agredindo a igreja, o Bispo ou a sua emissora, normalmen-te em algum programa apresentado por um pastor ou bispo, vinha com armamento pesado respondendo, justificando, sempre trazendo pastores renomados de outras denomina-ções, especialistas seculares, enfim, todo aparato necessário pra uma “guerrinha santa”. Pelo tamanho da gravidade, acho que eles ficariam uma semana tentando apagar esse incêndio.

“Pô, Léo, olha a hora. Acho que vou ligar pro Anselmo pra ele fazer o culto agora. Não vai dar tempo de chegar lá”.

“É, também vou ligar pra igreja, vou fazer só o da noite”. Enquanto Léo falava ao celular, fiquei pensando no pas-

tor Figueiras, na preocupação e prioridade dele. Eu estava beirando o precipício trilhado por uma boa parte de jovens como eu. Que entra em um ministério, fica uns dois anos e sai. Depois de ter experimentado a vida no altar era muito complicado seguir a vida normalmente lá fora. Mas eu tinha um problema sério com o tipo de bandeira que se empunha.

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Eu nem mesmo uso marcas, camisetas de futebol ou qual-quer outro símbolo que não acredito que valha a pena. Lembro quando saiu aquela matéria dizendo que a Nike usava trabalho escravo no Afeganistão pra fabricar seus tênis. Não queria sa-ber de usar essa marca, nem mesmo em camisetas da seleção brasileira. Sabe, não quero ser conivente com a injustiça social e outros bichos. Gosto do Malcom X, por exemplo. Gostei muito da biografia dele e sua luta pela causa do negro. Mas não usa-ria uma camiseta com ele estampado por ele ser mulçumano e representar isso no mundo. É que isso poderia ser interpre-tado de outra forma pelas pessoas. Gosto de saber exatamente a mensagem que estou passando com o que estou vestindo ou com aquilo que estou falando. Então, pertencer a um grupo X era uma tarefa demasiadamente complicada pra mim.

“Fala aí, Edu, o que a gente vai fazer agora? Temos um tempinho até o culto da noite”.

“Pô, vamos pegar um cineminha para distrair. Quem sabe a gente não recebe uma inspiração pra mudar o mundo”. Léo explodiu numa risada hilária.

“Cara, tu é muito bobo. Mas quem sabe isso não acontece...” Rindo muito.

O filme escolhido pela maioria foi “Socialisme” do Jean Luc Godard. Um amigo havia me dito que esse filme era poesia ambulante. Provavelmente, ele me incitaria a fazer uma coisa da qual estava fugindo: pensar. Alguém usou essa frase: “Pensar enlouquece”. Eu acho que é isso mesmo. Só queima o tutano. Ih caraca, uma garota meio “hippie de boutique” passou me encarando e disse um ‘oi’. Putz, que isso.

“Aí, Edu, arrumou pra hoje”. Léo zoava muito. Ficou me pilhando com isso.

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A garota era linda. Na verdade, uma beleza meio fran-cesa. Daquele tipo excêntrico. O corpo esguio e os cabelos encaracolados presos por uma faixa na cabeça. Sandália ras-teirinha e saia de Bali. Não sei realmente porque me olhou, ou mostrou algum interesse. Eu estava de roupas sociais. Tudo bem que o cabelo era sempre despenteado, do tipo “acordei agora”, mas não sei se fazia o estilo dela. Será que era porque eu estava comprando ingresso pra assistir Godard?

Seja como for, nunca sabia direito como agir em relação a isso. Por estar como sacerdote numa igreja, a reação nor-mal de caras como eu era de repelir tal situação. Uma vez eu conheci uma menina linda no ônibus. Como eu estava indo participar de uma reunião na qual estariam vários pastores, em uma cidade mais distante, tivemos tempo pra conversar. Ela era mais nova, dessas loiras branquelas e estava com um saco de doces, dizendo que era pra passar a viagem. Disse a ela que era pastor de igreja e tal. Conversamos amenida-des, música, sei lá... Ela me disse que era “testemunha de Jeová”. Seus pais comandavam um salão de reuniões dessa religião. Num dado momento ela perguntou se pessoas da minha “religião” não podiam namorar meninas de outra. Eu fiquei daquele jeito: É... Bem... Digamos... Quando chegou ao meu destino nos despedimos sem nem mesmo trocar um telefone. Seria meio inútil. Mas o lado humano fica pensan-do... Sei lá. O fato é que mesmo que essa moça “new hippie” se atire em mim, minha reação normal é sair correndo. Não vai prestar.

Confesso que estava meio ansioso com o filme. Toda vez que me via em uma tempestade gostava de recorrer a elemen-tos que me inspirassem ações renovadoras. É claro que re-corria direto à Bíblia Sagrada, principalmente aos Salmos de Davi e Asafe. Mas, assim como Cristo usava as parábolas, eu

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gostava de utilizar as alegorias da vida como cinema, música e arte pop de modo geral, como ingredientes reflexivos.

A abertura do filme era seca e direta. Uma câmera focan-do o mar e uma voz cita: “O dinheiro é um bem público”. Uma voz feminina responde afirmando: “Assim como a água”.

Isso parecia tudo, menos uma verdade. Embora Cristo, segurando uma moeda com a figura de César, tenha dito “dai a César o que é de César”, mostrando quem são os interessados em angariar riquezas nesse mundo, Godard agora, ratificava o nosso discurso que era baseado no Evangelho, no qual Cris-to diz “Eu vim para que tenham vida e vida em abundância”. Assim como Godard, nós estávamos pregando que o dinhei-ro era pra todo mundo. Venham todos, peguem, saqueiem o mundo como Josué, derrubando as muralhas de Jericó, pe-guem, peguem! Mas, a figura do bispo me soava mais como um César colhendo o maior número de níqueis possíveis para lapidar seu império. As imagens que rolaram na matéria da TV só serviram pra me trazer à lembrança várias reuniões de mensagens arrecadativas.

Eu não acho errado pedir. Sério. Não acho errado que as pessoas deem ofertas altas nos altares dos templos. Não acho mesmo. Elas fazem isso nos altares desse mundo o tempo todo. Olha o filme mostrando em cortes rápidos o que as pessoas fa-zem com seu dinheiro. Cassinos, boates, bebidas e seguem no disparate frenético por satisfação, desperdiçando dinheiro que poderia ser mais bem empregado em si próprio. Como diz lá no capítulo 8 do Evangelho de Lucas, as mulheres que eram transformadas por Jesus o serviam com seus bens. Ou seja, a gente encontra a vida proposta por esse Salvador e quer ajudar, colaborar para que essa mensagem chegue a outras pessoas.

Godard muda de ambiente repentinamente. Sem avisos ou apenas com frases em fundo negro como poemas con-

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cretistas de Arnaldo Antunes. Vagueia por cidades e regiões onde aconteceram os maiores conflitos pela busca do poder e da riqueza. Palestina, Nápoles, Odessa... A corrida da hu-manidade é a mesma. Enquanto o povo busca sobrevivência, os que fazem parte do poder querem a riqueza e mais poder. Não importando o preço, ou quantos terão que sacrificar, e quanta moral vai para o ralo. Isso não importa muito. Séculos destruindo nossa decência e moral seja em nome de “deus” ou de qualquer outra coisa que achemos justificável.

Quando o filme mostrou o Egito e uma pirâmide, foi ine-vitável. O Bispo não saiu da minha cabeça. Foi inevitável, tive que pensar no suntuoso templo que ele planeja construir. Ele disse que é para “glória de Deus”, mas a gente sabe bem para o que de fato é. O fato do templo de Salomão, em Israel, estar derrubado até hoje, mostra muito bem com o que Deus está preocupado. É aquele lance que uma mulher perguntou a Jesus onde deveria adorar a Deus: no templo ou no monte. Jesus res-ponde que nem no templo nem no monte, mas viria o tempo e já era chegada a hora em que os verdadeiros adoradores o adorariam em espírito e em verdade.

O próprio Jesus fez suas maiores e mais importantes ce-rimônias em salas residenciais, descampados e esquinas. Em-bora frequentasse o templo, não dava a ele a importância que os religiosos da época davam. Pra ele, tanto fazia onde fosse o lugar, o importante era a conexão com Deus. Isso deixou claro em suas palavras quando rasgou o véu de divisão do altar de alto a baixo.

Nós, jovens pastores da atualidade, provavelmente está-vamos trabalhando pra construir pirâmides para faraós no nosso século. Para que seus nomes entrassem pra história. Para que as notícias sobre seu templo fossem veiculadas mun-dialmente e isso elevasse seu nome. Mas o baixo clero estava

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“mordido”. Falava-se em redução de salário, corte de décimo terceiro e aumento agressivo de arrecadação para construção do tal templo. Ou seja, glória de um com sacrifício de outros. Os mais necessitados, é claro.

Novamente a voz do início do filme: “Todos tem o direito de viver como se Deus não existisse”. Putz grilo. Acho que é exatamente isso. Grande Godard. Traduziu os meus sentimen-tos. Os poderosos agem roubando, matando, manipulando por causa disso. Os pobres, em sua desgraça, acham que Deus não tá nem aí por eles, por isso não se preocupam em saber o que Deus realmente quer para suas vidas. Os religiosos criaram um Deus segundo a sua própria religião. Inventaram suas verdades e agem da mesma forma que os poderosos, promovendo suas cruzadas por poder, riquezas e manipulação em nome de um Deus que está alheio a tudo isso. Simplesmente esse Deus que eles dizem representar não existe. Não é o da Bíblia. Deve ser qualquer outro, menos esse da Escrituras Sagradas. Viver como se Deus não existisse dá esse resultado aí. Essa catástrofe que se transformou a humanidade e os ensinamentos de Jesus numa religião corroída em todas as instâncias.

O interessante é que o filme cita sempre uma obra de arte. Usa sempre música clássica e, em muitas cenas, as pessoas es-tão enfurnadas num livro. Parece que o diretor está querendo dizer que a cultura pode libertar, pode socializar, mudar tudo isso. Sei lá. Às vezes me parece que a gente se enfia no conhe-cimento, nos refugiando em um mundo que não consegui-mos pôr em prática. Então, fugimos daqui de onde vivemos de verdade. Isso é frustrante às vezes. Saber e não poder viver.

Há uma moça num posto de gasolina tão compenetrada em um livro que nem responde aos que falam com ela. O livro deve ter umas mil páginas. “As Ilusões Perdidas” de Balzac. Léo me dá uma olhada e ri. Ele até põe a mão na boca pra segurar

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e não romper o silêncio sepulcral da sala com uma gargalhada estridente. Mas eu também começo a rir. “As Ilusões Perdidas” poderia ser título de algum livro sobre minha vida agora. Droga de filme. Fica fazendo a gente pensar. Acho que a gente tem que assistir a esses filmes campeões de bilheteria. Comédias inúteis, saga de bruxos, vampiros, Jack Chan dando pancadas, sei lá... Ficar tipo um cachorro olhando o frango da padaria e sair com a sensação de que foi alimentado. Que nada. Pensar enlouquece.

É, meu caro Godard, não sei se enfiar a cara no livro iria impedir que todos esses desmoronamentos acontecessem. Embora o profeta Oséias tenha dito lá no versículo 6 do quar-to capitulo de seu livro, “O meu povo sofre por falta de conhe-cimento”, o saber tem me trazido, talvez, muito mais transtor-nos que a ignorância. Quem é ignorante não tem como sofrer tanto. Não sabe o que é realmente a verdade. Todo mundo lembra que a igreja católica não traduzia a Bíblia Sagrada por séculos. O povo seguia cegamente o engodo dos sacerdotes. Eles ficaram apavorados com a possibilidade de as pessoas te-rem acesso às Escrituras Sagradas. Iria “cair o pano”. Agora eu fico aqui envolto em minha consciência, triturando-me com a revelação diária do Reino de Deus, enquanto tenho que, como um vendedor de loja enrolão, usar artifícios para convencer o povo de que nosso erro ‘é’ perseguição dos nossos inimigos. Essas abobrinhas... Jesus, eu só queria falar de ti!

O filme acabou como era de se esperar. Várias perguntas sem nenhuma resposta. Saímos em silêncio e permanecemos assim por alguns momentos. Fomos só acompanhando o flu-xo, como se fosse costume. Ficamos andando um tempo em silêncio. O liquidificador de informações ainda girava alto na minha cabeça. Não havia um lugar silencioso na saída. Deci-dimos voltar ao café pra comer alguma coisa. Pegamos uma mesa lá no fundo. Parecia ser a mais tranquila.

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“E aí, Léo, o que vamos fazer?” Perguntei com um sorriso irônico nos olhos.

“Você tá falando de quê? Um ‘sambarelove’ para o próxi-mo culto ou o que fazer da vida mesmo"?

Reparei que, normalmente, quando os pastores se encon-travam, dificilmente compartilhavam palavras de reflexão es-piritual ou descobertas teológicas. Sempre era o versículo do ‘sambarelove’, o argumento para a próxima reunião. Qual ver-sículo usar para pedir, de forma que passasse fé para o povo. Como nós criamos um círculo vicioso, que nesse momento fazia cada vez menos sentido para mim!

“Cara, você acredita que eu estava fazendo um movi-mento pra batizar o povo da cidade? Indo de casa em casa e tudo mais. Agora vou ter que ir às casas dos membros que se afastarem por conta de toda essa palhaçada”.

“Aí, Edu, fica roubando minha ideia não. A gente não conversou sobre isso uma vez?”

“Sim, sim, mas eu resolvi fazer logo. Não queria ficar es-perando ser bispo do Brasil. Talvez nunca chegue a ser, aí re-solvi meter bronca logo e fazer o que dá pra ser feito”.

“Pô, também estou fazendo uma parada lá. Estou usando aquela passagem de João 6:56. ‘Quem come da minha carne e bebe do meu sangue, permanece em mim e eu nele’. Fiz folhe-tos e estou convidando quem desejar permanecer em Jesus a participar da ‘Santa Ceia do Senhor’. Vai ser mó benção”.

“Tá convidando todo mundo? Tipo aquela ideia que eu te dei outro dia?”

“Ih, sai pra lá Edu. Vou começar a gravar nossas conver-sas agora. Melhor, vou fazer vídeos. Depois libero para passar na TV.” Explodimos de rir. Pra variar, brasileiro faz piada com tudo. A gente fazia com qualquer coisa mesmo. Rolamos de rir com isso.

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“Beleza, Léo, e depois? A gente estudando pacas a Pala-vra de Deus, lendo que nem garimpeiro atrás de ouro, cheios de ideias para ganhar almas e espalhar o Reino de Deus pra todo mundo, vai ficar nessa vidinha de “bater a cota” senão vai pra rua?”

“Cara, você não toca guitarra?” Sabia que viria mais uma ideia irônica. Ainda mais ele fazendo aquela cara.

“Tá, toco. E aí, o que isso tem a ver?” “Pô, sei lá. Pega tudo que a gente tem conversado e mete

o pé na estrada. Vai pro centro da cidade, fica na esquina to-cando guitarra e cantando e quando juntar um punhado de gente, você com essas roupinhas de roqueiro que gosta de usar, abre a Bíblia e começa a pregar pra geral”.

“Tá! E como eu cuido de quem se converter? Quem re-solver se entregar em praça pública?”

“Bom, a gente já conversou sobre isso. Jesus quando ce-lebrou a santa ceia, por exemplo, se reuniu numa sala. Você pode fazer o mesmo. Não foi isso que você me disse um tem-po atrás? Que achava que no futuro as igrejas iriam voltar às origens de se reunir em casas, dado a grande número de es-cândalos. As pessoas vão perder a fé nessa engrenagem toda. Vamos reunir, não importando o lugar”.

“Já pediram?” Uma moça morena de avental, pergunta com a ponta da caneta num bloquinho.

“Dois capuccinos e quatro pães de queijos. Tá bom, Léo?”“Tá sim... Mas então, não é isso que você vai fazer?”“Quer saber o que tenho vontade mesmo de fazer?”“Hum?” Léo até se acomodou na cadeira como se fosse

saborear tudo que eu iria lhe dizer. “Chegar à igreja, no programa que vamos fazer lá na rá-

dio hoje, lá na casa de meus pais e dizer que é tudo verdade. Fomos sim instruídos a encenar, a usar pretextos bíblicos para

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que as pessoas não tenham medo de dar altos valores. A gen-te grita, fala com esse tom de voz pra você achar que somos super-homens, mas a verdade é que precisamos arrecadar muito, precisamos “pegar o mês”, temos que comprar emis-soras de TV para o Bispo ficar posando de empresário por aí. Precisamos fazer o maior templo do país pra impor respeito. Precisamos fazer isso. Então, não me levem a mal, eu creio em Jesus, ele quer salvar sua alma, vou gastar um tempo pre-gando a palavra de salvação, mas preciso fazer isso se quiser continuar aqui”. Dei uma respirada.

“Ah tá, Edu, duvido”. Léo se deliciando com aquela cara de riso.

“E, digo mais, esses vídeos aí são fichinha. Esqueçam isso, o Bispo, homem de Deus, acha que devemos ser agressivos como se estivéssemos competindo no mercado global ou coisa do tipo. Então galera, é isso. Só não esqueçam de buscar a Deus de verdade porque isso não vai durar para sempre. Tudo pode acontecer. E quando acontecer, que suas almas estejam salvas e que vocês não estejam só financiando uma organização a ter poder na Terra e, sim, servindo ao Deus vivo de verdade”.

“Seu pedido, senhor. Mais alguma coisa?” A moça sor-rindo só com os olhos, põe os cappuccinos e os pães sobre a mesa rapidamente.

“No momento, não. Obrigado”. Disse a ela, ainda bem sério.“Beleza, aí ‘os omi’ te dão uma bicuda no traseiro e o que

você vai fazer?”. “Eu disse que tenho vontade de fazer, não disse que faria”. Tomamos o café em alguns momentos de silêncio. Pró-

ximo de nós havia uma senhora lendo o jornal que fica dis-ponível na cafeteria. Por incrível que pareça ainda consegui ver a manchete “Dinheiro em nome de Deus”. O assunto ain-da repercutia e provavelmente ainda renderá muito. Afinal,

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a maior emissora do país é simplesmente a arqui-inimiga do Bispo. Mas, lendo isso, me lembrei logo de uma frase escrita por Jorge Luis Borges através de um de seus personagens. “A imprensa... tendeu multiplicar até a vertigem textos desneces-sários”. Ironicamente o personagem que citou isso é daquela história “Utopia de um homem que está cansado”. Era o meu título agora. Esse título se encaixa levianamente na minha re-cente biografia. Nesse momento, eu estava desesperadamente lúcido. Já que estavam usando o desleixo autoritário do Bispo para subverter o Reino de Deus, envenenando virulentamen-te o povo, eu me sentia no dever de usar todos esses aconteci-mentos de uma maneira mais subversiva ainda.

“Léo, vamos embora cara. Tenho que agir. Não posso ficar parado enquanto o Reino de Deus, que eu amo, é ma-culado de uma forma constrangedora pela imprensa, bispos, políticos e religiosos”. Levantei rapidamente enquanto Léo me observava com uma cara de espanto.

“Cara, o que você vai fazer?” Léo agora parecia preocupado.Eu estava saindo apressadamente. Mas dei uma parada

brusca, olhei nos olhos do Léo e disse: “A pergunta é: o que Jesus faria?”

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Jornalista e pesquisador do cristianismo. Participou

da revolução neopentecostal como ministro de culto

e hoje se ocupada do reino de Deus puro e simples

com suas impossibilidades. Escreve periodicamente

no www.oreinoperdido.wordpress.com

W.WIL

duardo está decidido: abandona os estudos, sua banda de rock,

namorada, tenta controlar seu cinismo e rebeldia e entrar de cabeça

em uma das maiores instituições cristã do mundo. Ele acha que pode

revolucionar: catequizar os povos e mudar a humanidade. Busca a

manifestação real do reino de Deus e a redenção espiritual. Só não

conta que talvez o Bispo, líder maior de sua igreja, tenha planos

diferentes e mais importantes que os dele: construir um império

terreno com suntuosas catedrais e uma poderosa rede de comunicação,

pra vencer a concorrência, manter o poder e receber toda glória digna

de um rei. Não necessariamente Jesus Cristo. Nessa trajetória de

reflexões e disparos certeiros, qualquer semelhança com a realidade,

talvez não seja mera coincidência. Arte e vida se imitam, reciclam e

nos subvertem constrangedoramente.

E