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Dimenses da GlobalizaoO Capital e Suas Contradies

Projeto Editorial Praxishttp://editorapraxis.cjb.net Trabalho e Mundializao do Capital A Nova Degradao do Trabalho na Era da Globalizao Giovanni Alves Dimenses da Globalizao O Capital e Suas Contradies Giovanni Alves Srie Risco Radical 1 - O Outro Virtual - Ensaios sobre a Internet Giovanni Alves, Vinicio Martinez , Marcos Alvarez, Paula Carolei 2 - Democracia Virtual - O Nascimento do Cidado Fractal Vinicio Martinez 3 - Leviat - Ensaios de Teoria Poltica Marcelo Fernandes de Oliveira 4 - Trabalho e Globalizao - A Crise do Sindicalismo Propositivo Ariovaldo de Oliveira Santos Pedidos atravs do e-mail [email protected]

Giovanni Alves

Dimenses da GlobalizaoO Capital e Suas Contradies

PraxisLondrina 2001

Copyright do Autor, 2001 ISBN 85-901933-1-4 Capa e Diagramao: Giovanni Alves 2 Tiragem

Dados de Catalogao na Publicao (CIP) Internacional Bibliotecria Responsvel: Ilza Almeida de Andrade CRB 9/882 A474d Alves, Giovanni Dimenses da globalizao : o capital e suas contradies / Giovanni Alves. Londrina : G. A. P. Alves, 2001. 220p. ; 21cm ISBN 85-901933-1-4 1. Globalizao. 2. Capital (Economia). 3. Trabalho. I. Ttulo. CDU 339.9

PraxisFree edition home-page: http://editorapraxis.cjb.net Impresso no Brasil / Printed in Brazil 2001

Sumrio

APRESENTAO PARTE 1 Dimenses da Globalizao Captulo 1 Introduo Captulo 2 Globalizao Como Ideologia Captulo 3 Globalizao Como Mundializao do Capital Captulo 4 Globalizao Como Processo Civilizatrio Humano-Genrico Parte 2 Sociologia da Globalizao Captulo 5 A Globalizao Na Perspectiva dos Clssicos da Sociologia Captulo 6 Weber e a Globalizao Como Racionalizao do Mundo

Captulo 7 Durkheim e a Globalizao como Fonte de Solidariedade Social Captulo 8 Marx e a Globalizao como Lgica do Capital Parte III Globalizao e Trabalho Captulo 9 Toyotismo Como Ideologia Orgnica da Produo Capitalista Captulo 10 Toyotismo e Neocorporativismo Sindical no Sculo XXI Captulo 11 Dimenses do Proletariado Tardio Bibliografia

Apresentao

Apresentao

livro Dimenses da Globalizao um resultado terico-prtico de um percurso de reflexo intelectual buscando compreender, numa perspectiva dialtica, um tema maldito: o problema da globalizao. um livro de ensaios, o que significa que possui ainda um carter inicitico e inacabado, sugerindo algumas linhas de reflexes que procuram sair do lugar-comum sobre a discusso da globalizao. Procuramos organizar o livro em 3 partes a primeira, que d ttulo ao livro : Dimenses da Globalizao; a segunda, Sociologia da Globalizao e a terceira, Globalizao e Trabalho. A primeira parte do livro procura desenvolver uma interpretao original do processo de globalizao, procurando apreender seu carter dialtico e amplamente contraditrio. Buscamos evitar as unilaterialidades perenes dos apologistas da globalizao e dos seus crticos vorazes. Procuramos ensaiar uma crtica mordaz da globalizao como mundializao do capital, mas sem deixar de perceber que, na medida em que representa o desenvolvimento amplo e contraditrio do capitalismo moderno, a globalizao um processo civilizatrio humanogenrico prenhe de promessas de uma nova civilizao humanogenrica, profundamente frustradas pelo sistema orgnico do capital. Portanto, a globalizao, , ao mesmo tempo, a promessa e a frustrao de uma realizao histrico-social do gnero humano e a prova cabal de que o sistema do capital, com sua sanha incontrolvel no oferece nenhuma perspectiva de futuro para a humanidade.

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Dimenses da Globalizao

A tarefa intelectual suprema, na virado do sculo XXI, resgatar, mais do que nunca, a crtica radical do capital. Na verdade, o capital e sua incontrolvel globalizao que nos oferece a oportunidade histrica de atualizarmos a sua crtica social radical numa perspectiva histrico-materialista e dialtica. Na segunda parte, intitulada Sociologia da Globalizao, procuramos reunir alguns ensaios que tratam de abordagens sociolgicas sobre o tema da globalizao. Nesse caso, salientamos leituras de um dos socilogos brasileiros mais prolficos no tratamento do tema globalizao Octvio Ianni. Procuramos resgatar em sua obra, particularmente no livro Teorias da Globalizao, a contribuio de Marx e Weber para uma interpretao da globalizao. O ensaio sobre Durkheim, um dos autores clssicos da sociologia, pouco utilizado por Ianni em suas reflexes sociolgicas sobre o tema globalizao, procura resgatar alguma contribuio do socilogo francs para uma interpretao da globalizao. lgico que, ao tratarmos dos clssicos da sociologia, ao dizermos globalizao, dizemos desenvolvimento do capitalismo moderno. Nesse caso, a globalizao aparece como um momento tardio de desenvolvimento do capitalismo moderno. Na medida em que os clssicos da sociologia tratam do desenvolvimento do capitalismo moderno, eles tm alguma coisa a nos dizer sobre a globalizao, mesmo sabendo que, para ns, em sua particularidade histrico-concreta, a globalizao mundializao do capital no sentido dado por Chesnais. Finalmente, na parte 3, Globalizao e Trabalho, reunimos alguns ensaios sobre um objeto de estudo que temos tratado nos ltimos anos (em 1999, publicamos pela Editora Prxis o livro Trabalho e Mundializao do Capital, e em 2000, pela Editora Boitempo, publicamos o livro O Novo (e Precrio) Mundo do Trabalho). Estamos, portanto, em nossa rea de especializao. Na verdade, so ensaios publicados em algumas revistas e que trazem reflexes sobre a nova lgica de organizao capitalista

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Apresentao

(s compreensvel a partir da mundializao do capital) e seus impactos na objetividade e subjetividade do mundo do trabalho. O primeiro ensaio, Toyotismo Como Ideologia Orgnica da Produo Capitalista, saiu publicado na Revista Organizaes e Democracia, em 2000; o segundo ensaio, Toyotismo e Neocorporativismo no Sindicalismo do Sculo XXI saiu publicado na Revista Outubro, em 2001; o ltimo ensaio, Dimenses do Proletariado Tardio, saiu publicado na Revista Debate Sindical, em 2000. Mais uma vez, ressaltamos o carter ensastico do livro, totalmente aberto a crticas e sugestes. No poderamos deixar de abrir discusso pblica alguns resultados tericos ainda preliminares de nossa pesquisa sobre as dimenses da globalizao. um resultado, portanto, de leituras de vrios autores, economistas, socilogos e politicologos nacionais e estrangeiros, que tratam de questes pertinentes nova lgica do capitalismo mundial. Agradecemos, portanto, a todos aqueles que contriburam, de algum modo, para a nossa reflexo crtica. Procuramos nos apropriar de tais reflexes crticas e constituir uma interpretao dialtica da globalizao que procure resgata-la em sua dimenso contraditria plena. Marlia, 21 de abril de 2001

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Dimenses da Globalizao

[A integrao dos indivduos conflitantes, atravs do trabalho abstrato e da troca], estabelece, pois um vasto sistema comunitrio e de mutua interdependncia, uma vida ativa de mortos. Este sistema move-se daqui para l, de modo cego e elementar e, tal como um animal selvagem, exige rigoroso e permanente controle e represso Hegel

Hoje em dia tudo parece levar em seu seio sua prpria contradio. Vemos que as mquinas, dotadas da propriedade maravilhosa de reduzir e tornar mais frutfero o trabalho humano, provocam a fome e o esgotamento do trabalhador. As fontes de riqueza recm-descobertas se convertem por artes de um estranho malefcio, em fontes de privaes. Os triunfos da arte parecem adquiridos ao preo de qualidades morais. O domnio do homem sobre a natureza cada vez maior; mas ao mesmo tempo, o homem se transforma em escravo de outros homens ou da sua prpria infmia. Karl Marx

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1Dimenses da Globalizao

Introduo

1Introduo do nosso interesse demonstrar que a globalizao um fenmeno scio-histrico intrinsecamente contraditrio e complexo que caracteriza, em nossa perspectiva, uma nova etapa de desenvolvimento do capitalismo moderno. Procuraremos salientar que o fenmeno da globalizao resultado de mltiplas determinaes scio-histricas (e ideolgicas), isto , destacaremos as trs dimenses da globalizao que no podem ser separadas e que compem uma totalidade concreta scio-histrica, completa e integral. So elas: 1. A globalizao como ideologia 2. A globalizao como mundializao do capital 3. A globalizao como processo civilizatrio humano-genrico Portanto, o fenmeno da globalizao tende a constituir novas determinaes scio-histricas no (1) plano da ideologia e da poltica; (2) no plano da economia e da sociedade e (3) no plano do processo civilizatrio humano-genrico, vinculado ao desenvolvimento das foras produtivas humanas. O que significa dizermos que tais dimenses da globalizao compem uma totalidade histrico-social intrinsecamente contraditria? As dimenses da globalizao so contraditrias entre si, tendo em vista que, como iremos salientar, a ideologia (e a poltica) da globalizao tende a ocultar e legitimar a lgica desigual e excludente da mundializao do capital e a mundializao13

Globalizao Como Ideologia

do capital tende a impulsionar, em si, o processo civilizatrio humano-genrico, isto , o desenvolvimento das foras produtivas humanas, que so limitadas (ou obstaculizadas)- pelo prprio contedo da mundializao (ser a mundializao do capital). Qualquer leitura (ou anlise) do fenmeno da globalizao que no procure apreender o seu sentido dialtico e portanto, contraditrio - tende a ser unilateral, no sendo capaz de ver o fenmeno da globalizao tanto como algo progressivo, quanto regressivo, tanto como um processo civilizatrio, quanto como um avano da barbrie, e tanto como a constituio de um globo na mesma medida em que tente a contribuir para a sedimentao de particularismo locais e regionais.

ConceitosSeria importante recuperar o significado de alguns conceitos tais como globalitarismo, globalismo, globalidade e glocalizao. So expresses utilizadas por alguns autores no debate da globalizao. De certo modo, procuraremos ver, em cada um dos conceitos acima, as dimenses da globalizao que procuraremos salientar (a globalizao como ideologia, a globalizao como mundializao do capital e a globalizao como processo civilizatrio humano-genrico). Globalitarismo A idia de regimes globalitrios, utilizada por Igncio Ramonet no seu livro Geopoltica do caos (1997), procura ressaltar o prprio sentido ideolgico (e poltico) da globalizao. uma noo que diz respeito, principalmente, a globalizao como ideologia. Na verdade, um termo cunhado para ser utilizado como uma contra-ideologia da globalizao, ou melhor, contraporse (ou justapor-se) idia de globalizao. Ela explicita o verdadeiro contedo da globalizao como mundializao do capital: o totalitarismo do mercado.

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Introduo

Portanto, a idia de globalitarismo expressa uma crtica visceral globalizao como ideologia do imprio universal do Ocidente (Del Roio, 1998). Ela surge para se contrapor (ou expor) a globalizao como a ideologia e a poltica de um novo totalitarismo. No o totalitarismo do Estado, que caracterizou os regimes fascistas dos anos 30, mas um totalitarismo do mercado, do pensamento nico, expresso utilizada para caracterizar o pensamento neoliberal, que divulgado pelos aparatos de mdia e pelas polticas levadas a cabo pelos governos liberais (o jornal Le Monde Diplomatique, onde Ramonet jornalista, um dos principais rgos de crtica da globalizao). Vejamos com ateno a idia de um totalitarismo de mercado, implcita no conceito de regimes globalitrios. Diz Ramonet:H pouco tempo, denominava-se regimes totalitrios os que tinham partido nico, no admitiam qualquer oposio organizada e, em nome da razo de Estado, negligenciavam os direitos da pessoa; alm disso, neles, o poder poltico dirigia soberanamente a totalidade das atividades da sociedade dominada. A esses regimes, caractersticos dos anos 30, sucede, neste final de sculo, um outro tipo de totalitarismo, o dos regimes globalitrios. Apoiando-se nos dogmas da globalizao e do pensamento nico, no admitem qualquer outra poltica econmica, negligenciam os direitos sociais do cidado em nome da razo competitiva e abandonam aos mercados financeiros direo total das atividades da sociedade dominada (Ramonet, 1998)

A longa citao serviu para expor, com clareza, a idia de globalitarismo como sendo o totalitarismo do mercado que sucede ou se justape a um outro tipo de totalitarismo, o de Estado. Numa poca em que se dissemina pelo Ocidente a idia de democracia poltica, de que todos ns vivemos em regimes democrticos, plenamente legitimados pelo sufrgio universal, a idia de um novo totalitarismo talvez possa soar como algo15

Globalizao Como Ideologia

estranho.Mas o totalitarismo da globalizao no se d mais sob a direo do Estado, mas sim da economia:O Estado deixou de ser totalitrio, enquanto, na era da mundializao, a economia tende cada vez vir a s-lo (Ramonet, 1998)

Deste modo, para ele, a globalizao oculta o totalitarismo da economia, o que no novidade, tendo em vista que prprio do modo de produo capitalista o primado da economia sobre quaisquer outras esferas da vida social. S que, talvez seja isto que Ramonet queira destacar, sob a globalizao, o primado da economia aparece com mais vigor, tal como um totalitarismo de mercado que neutraliza os prprios avanos da democracia no Ocidente. A idia de globalitarismo supe a debilidade estrutural dos Estados. Sob o regime globalitrio, os Estados no tm meios de se opor aos mercados. A globalizao liquidou o mercado nacional, que um dos fundamentos do poder do Estado-nao. A globalizao, sustentada por regimes globalitrios, isto , governos que promulgaram o monetarismo, a desregulamentao, o livre-comrcio, o livre fluxo de capitais e as privatizaes macias, tenderam a diminuir o papel dos poderes pblicos. Veja bem: a globalizao , portanto, resultado, nessa perspectiva, de regimes globalitrios, de dirigentes polticos que permitiram, atravs de atos polticos, a transferncia de decises capitais (em matria de investimento, emprego, sade, educao, cultura, proteo do meio ambiente) da esfera pblica para a esfera privada. Foram os polticos liberais e conservadores que permitiram a privatizao da coisa pblica, contribuindo para que algumas decises importantes para a vida social passasem para as mos da economia privada. Quando dizemos economia privada, dizemos mercado, que representado (e determinado) pelas empresas, conglomerados e16

Introduo

corporaes transnacionais. A vida social, deste modo, passa a ser mais determinada ainda pela esfera privada que no possue nenhum compromisso social, nem preocupao com a qualidade do emprego, sade, educao, cultura e meio ambiente, mas apenas com a quantidade de riqueza abstrata, ou dinheiro, que acumulada por tal atividade de negcio. Ramonet destaca o poder das corporaes transnacionais que so, para ele, as principais beneficirias dos regimes globalitrios. Por exemplo: atualmente, entre as duzentas primeiras economias do mundo, mais da metade no so pases, mas empresas:O volume de negcios da General Motors mais elevado do que o produto nacional bruto (PNB) da Dinamarca; o da Ford mais importante do que o PNB da frica do Sul; e o da Toyota supera o PNB da Noruega (Ramonet, 1998)

Ramonet ressalta algo que iremos desenvolver mais adiante, ao tratarmos da globalizao como mundializao do capital. Diz ele que uma Ford, Toyota ou General Motors, por exemplo, pertencem ao campo da economia real, isto , produz e troca bens e servios concretos. Mas, nos ltimos trinta anos, os novos senhores da globalizao so os gestores do mercado financeiro, os fundos de penso e os fundos comuns de investimentos que dominam os mercados financeiros e que movimentam, por dia, trilhes de dlares. Na verdade so eles que, em linguagem de especialista, a imprensa econmica denomina os mercados:Do mesmo modo que os grandes bancos ditaram, no sculo XIX, qual deveria ser a atitude de numerosos pases, ou como as empresas multinacionais procederam entre os anos 60 e 80, daqui em diante os fundos privados dos mercados financeiros detm em seu poder o destino de muitos pases. E, em certa medida, o destino econmico do mundo.

Ramonet continua destacando (em 1997, portanto, pouco antes da crise asitica):17

Globalizao Como Ideologia

Que, amanh, [os fundos privados dos mercados financeiros] cessem de ter confiana na China (onde os investimentos estrangeiros diretos atingiram, em 1994, US$ 32 bilhes) e, como se fossem peas de domin, os pases mais expostos (Hungria, Argentina, Brasil, Turquia, Tailndia, Indonsia...) veriam os capitais se retirar sob o impacto do pnico, provocando sua falncia e a falncia do sistema (Ramonet, 1998)

Ao apresentarmos a globalizao como mundializao do capital iremos nos aprofundar no aspecto da mundializao financeira, que, pode ser considerada um trao fundamental (e fundante) da globalizao. Deste modo, regimes globalitrios so regimes polticos que assasinaram a poltica, concebida como gesto da coisa pblica, em prol do poder do mercado, dos grupos multinacionais que dominam setores importantes da economia dos Estados do Sul tais como o Brasil e, inclusive, do Norte. A globalizao e a desregulamentao da economia, levada a cabo pelos regimes globalitrios, favoreceram a emergncia de novos poderes que, com a ajuda das novas tecnologias da informtica e da telemtica, transbordam e transgridem, incessantemente, as estruturas estatais. Para Ramonet, portanto, a idia de globalitarismo diz respeito a um regime poltico que contribui para a dissoluo do poder do Estado e da esfera pblica (em prol do mercado e da esfera privada). O que se denomina mercado corresponde s empresas, conglomerados e corporaes transnacionais e, principalmente, o mercado financeiro que possui como principal gestor no apenas os bancos, mas os fundos de penso e os fundos mtuos de investimentos, americanos e japoneses. A idia de globalitarismo diz respeito a um regime poltico que incentiva o livre comrcio um dos dogmas neoliberais, sustentados pelas polticas da OMC. Ao dizer livre-comrcio,18

Introduo

queremos dizer o livre fluxo de capitais, de investimentos e de bens e servios (a trindade neoliberal) (Cassen,1999). Ao tratarmos da ideologia (e da poltica) neoliberal no tpico da globalizao como ideologia, iremos nos aprofundar nessa caracterizao do globalitarismo. O que precisa ser ressaltado que, para os crticos da globalizao neoliberal (termo comumente utilizado) o livre-comrcio de dinheiro e mercadorias dissolve no apenas o Estado-nao, mas, como iremos destacar logo mais, a cultura dos povos. claro que a multiplicao incrvel das trocas e dos fluxos comerciais e financeiros que ocorreu nos ltimos trinta anos teve o apoio decisivo das revolues tecnolgicas nas comunicaes e transportes, principalmente a informtica e telemtica. Tudo isso contribuiu para a interpenetrao dos mercados industriais, comerciais e financeiros (o que coloca, segundo Ramonet, problemas para a prpria natureza da empresa capitalista global). Portanto, alm do assassinato da poltica e da dissoluo da democracia republicana e do Estado-nao em prol do totalitarismo dos mercados, a idia (e a realidade) da globalizao oculta o assassinato da diversidade cultural, tendo em vista que a ideologia da globalizao tende a dizer respeito a um processo de mercantilizao universal que homogeneza tudo o libi da modernidade serve para dobrar tudo sob o implacvel nvel de uma estril uniformidade (Ramonet, 1998:47). Deste modo, sob o globalitarismo tende-se a constituir uma cultura global sedimentada pelo livre-comrcio. O principal responsvel, se poderamos dizer assim, pela dissoluo cultural dos povos numa world culture , na perspectiva dos crticos republicanos da globalizao cultural, o livre-comrcio:Um estilo de vida semelhante se impe de um extremo ao outro do planeta, divulgado pela mdia e prescrito pela intoxicao da cultura de massa. De La Paz a Ouagadougou, de Hyoto a So Petersburgo, de Oran a Amsterdam, mesmo filmes, mesmas sries de televiso, mesmas informaes, mesmas canes, mesmos slogans publicitrios, mesmos19

Globalizao Como Ideologia objetos, mesmas roupas, mesmos carros, mesmo urbanismo, mesma arquitetura, mesmo tipo de apartamentos, muitas vezes, mobiliados e decorados de maneira idntica...

E destaca o outro sentido do globalitarismo:Nos quarteires abastados das grandes cidades do mundo, o requinte da diversidade cede o lugar a fulminante ofensiva da padronizao, da homogeneizao, da uniformizao. Por toda parte, triunfa a world culture, a cultura global (Ramonet, 1998)

claro que algum poderia contra-argumentar que em outras pocas histricas, como durante o Imprio Romano, ou ainda, durante os vrios imprios do Ocidente, at o sculo XIX, inclusive sob o imprio Otomano no Oriente, a disseminao da cultura imperial pelas bordas dominadas era algo comum. Mas, o que perceptvel com a globalizao neoliberal, que assume propores inditas e ocorre numa velocidade impressionante, o carter totalitrio da imposio cultural (e no apenas cultural, mas poltica, tendo em vista que a idia de globalitarismo intrinsecamente poltica):Na histria da humanidade, nunca prticas caractersticas de uma cultura tinham chegado a se impor, de uma forma to rpida, como modelos universais. Modelos que so tambm polticos e econmicos; a democracia parlamentar e a economia de mercado frmulas que esto sendo aceitas, quase por toda parte, como atitudes racionais, naturais participam, de fato, da ocidentalizao do mundo (Ramonet, 1998:48)

Na medida em que a globalizao tende a reduzir tudo lgica mercantil, a tornar o mundo (e o pensamento) unidimensional, instaura-se um novo totalitarismo, que, inclusive, inibe o pensamento a pensar em alternativas para alm do mercado.

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Introduo

No toa que se proclamou no incio da dcada de 1990 o fim da histria e at o fim das utopias. Tais manifestaes ideolgicas so expresses do globalitarismo que destila, no plano das prticas e pensamentos, a ditadura e tirania do mercado, que aparece como um deus ex machina, todo-poderoso, nico capaz de contribuir para o progresso dos povos rumo modernidade. por ser produto ideolgico de regimes globalitrios que a idia de globalizao aparece para o senso comum como algo a qual todos nos devemos nos submeter e nos adaptar e no impor resistncia ou buscar alternativas. Este o sentido do discurso do globalitarismo que se inscreve nas falas de polticos, empresrios, jornalistas e intelectuais dos mais diversos espectros poltico-ideolgicos. Deste modo, o que apresentamos atravs da idia de globalitarismo uma vertente da crtica da globalizao como ideologia (e principalmente como poltica). uma crtica republicano-democrtica radical, muito arraigada na inteligentsia francesa de esquerda, que tende a salientar o livre-comrcio como a expresso do mal que atinge a civilizao moderna. o livrecomrcio que degrada a coeso social, moral e poltica dos povos ocidentais, tendo em vista que os regimes globalitrios atentam contra o Estado-nao, o mundo do trabalho, a ecologia e o sistema cultural-nacional. Algum poderia perguntar: o que , portanto, o globalitarismo? Diremos: o globalitarismo a viso negativa da globalizao, a globalizao como ideologia negativa, como totalitarismo do mercado. Mas qual seria a viso positiva da globalizao, a sua ideologia positiva? Um termo utilizado para caracterizar a ideologia positiva da globalizao globalismo. Ele sintetizaria o que a globalizao diz ser e como ela abordada pelo pensamento neoliberal. Nos interessa apresentar aqui, um concepo da idia de globalismo apresentada pelo socilogo alemo Ulrich Beck. Depois, apresentaremos uma outra viso da idia de globalismo que totalmente diversa da apresentada por Beck (a idia de globalismo21

Globalizao Como Ideologia

apresentada pelo socilogo brasileiro Octvio Ianni). So aspectos diversos do globalismo como iremos ver, Beck destila o carter apologtico da idia de globalismo, o carter positivo da globalizao como ideologia; enquanto Ianni nos apresenta o carter sociolgico e fenomenolgico do conceito de globalismo. Globalismo A idia de globalismo, segundo Beck, entre outros, diz respeito ideologia da globalizao. No possui o sentido crtico (e negativo) da noo de globalitarismo. Traduz apenas a idia de ideologia (ou poltica) da globalizao, uma ideologia positiva da globalizao. Globalismo possui um significado totalmente diferente das idias de globalizao ou globalidade. Globalismo diz respeito a ideologia do imprio do mercado mundial, a ideologia do neoliberalismo. A idia de globalismo, segundo Beck, uma concepo ideolgica da globalizao e da globalidade que tende a reconhecer a morte da poltica diante da nova situao do mundo global (nesse caso, s cabe a ns nos adaptarmos globalizao). O mercado mundial bane ou substitui, ele mesmo, a ao poltica. A poltica no possue mais local ou sujeito e a sua tarefa primordial se perdeu de vista. O encanto despolitizado do globalismo, expresso utilizada por Beck, tende a ver a globalizao e a globalidade como algo restrito ao aspecto econmico, reduzindo sua pluridimensionalidade a uma nica dimenso: a econmica. A globalizao e a globalidade so pensadas de forma linear e deixa todas as outras dimenses (relativas ecologia, s culturas, poltica e sociedade civil) sob o domnio subordinador do mercado mundial (Beck, 1999) . Na verdade, a viso do globalismo liquida uma distino fundamental, a distino entre economia e poltica. Para Beck, a poltica, sob a primeira modernidade, teve (e ainda tem) um papel primordial:

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Introduo

... delimita e estabelece as condies para os espaos jurdicos, sociais e ecolgicos, dos quais a atuao da economia depende para ser socializada e tornar-se legtima (Beck, 1999).

Ao dizermos que a poltica para Beck ainda tem um papel primordial, precisamos dizer que, com a globalidade e a globalizao, como iremos ver mais adiante, a poltica precisa ser reinventada e reformulada. Antes de mais nada, Beck distingue dois momentos da modernidade a primeira modernidade, que parece ter o seu clmax sob o Estado social do ps-guerra, e a segunda modernidade, que surge a partir da crise capitalista dos anos 70 e que alguns crticos da modernidade acusam como sendo a ps-modernidade. Portanto, no que Beck exclua a poltica na segunda modernidade, como faz o globalismo, mas ele concebe que ela, tal como se constituiu na primeira modernidade, sob os auspcios do Estado nacional e territorial, perdeu seu lugar. Suas respostas s questes da segunda modernidade, diz ele, tornaram-se contraditrias e inadequadas. Na segunda modernidade, por outro lado, sob as condies da globalizao e da globalidade, impm-se o imperialismo da economia. Beck salienta que a economia de atuao global tende a derreter a soberania do Estado nacional e a excluir a poltica do quadro categorial do Estado nacional e at mesmo excluir o papel esquemtico daquilo que se entende por ao poltica ou no-poltica. O Estado nacional e o sistema poltico perdem seus recursos. Por exemplo, o recolhimento de impostos e sua autoridade. Mas Beck salienta que isto no diz respeito apenas a dimenso econmica:...uma imensa variedade de lugares conectados entre si cruza suas fronteiras territoriais, estabelecendo novos crculos

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Globalizao Como Ideologia sociais, redes de comunicao, relaes de mercado e formas de convivncia (Beck, 1999)

A crise do Estado nacional uma condio da globalizao e da globalidade. S que a ideologia do globalismo tende a reduzir esta nova situao em que est o mundo (que ele tende a caracterizar como sendo uma sociedade mundial), apenas dimenso econmica, reduzi-la, portanto, apenas a uma dimenso: a da tica do mercado mundial. A partir da, o globalismo reduz as lgicas particulares da globalizao da ecologia, da cultura e da sociedade civil, lgica da economia de mercado. Perde-se de vista a pluridimensionalidade da globalidade. Por outro lado, a idia de globalismo assume um outro sentido sociolgico na viso de Octvio Ianni. Para ele, globalismo um conceito sociolgico para caracterizaruma configurao histrico-social no mbito da qual se movem os indivduos e as coletividades, ou as naes e as nacionalidades, compreendendo grupos sociais, classes sociais, povos, tribos, cls e etnias, com as suas formas sociais de vida e trabalho, com as suas instituies, os seus padres e os seus valores (Ianni, 1996)

Portanto, o globalismo uma configurao histrico-social abrangente, surpreendente e determinante, uma totalidade histrica e terica complexa, contraditria, problemtica e aberta, uma totalidade heterognea, simultaneamente integrada e fragmentria, um novo ciclo da histria quando esta se movimenta como histria universal, umaconfigurao geo-histrica original, dotada de peculiaridades especiais e de movimentos prprios, que se pode denominar de global, globalizante, globalizada ou globalismo (Ianni, 1997).

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Introduo

O globalismo inaugura um novo ciclo da histria porque, como salientamos, a histria passa a se movimentar como histria universal:No passado, inclusive, nos tempos do Iluminismo e por todo o sculo XIX, a histria universal podia ser vista principalmente como idia, fico ou utopia. No sculo XX, e cada vez mais ao longo desse sculo, a histria universal se revela real, um imesno e impressionante cenrio, ainda que como Babel e labirinto (Ianni, 1997)

Apesar de dizer que o globalismo se constitui ao longo do sculo XX, Ianni salienta que ele, o globalismo, subsume histrica e teoricamente o imperialismo.Trata-se de duas configuraes histrica e terica distintas. Podem ser vistas como duas totalidades diferentes, sendo que uma mais abrangente que a outra. O globalismo pode conter vrios imperialismos, assim como distintos regionalismos, muito nacionalismos e uma infinidade de localismos. Trata-se de uma totalidade mais ampla e abrangente, tanto histrica como lgica (Ianni, 1997).

Para Ianni, o globalismo no se reduz ao neoliberalismo e muito menos se expressa apenas nessa ideologia. O globalismo tanto compreende o neoliberalismo como o socialismo. Deste modo , Ianni resgata o globalismo como o resultado scio-histrico do processo de globalizao que modifica mais ou menos radicalmente realidades conhecidas e conceitos estabelecidos. O globalismo, tal como o mercantilismo, o colonialismo e o imperialismo, uma histria que acompanha o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo pelo mundo afora, como modo de produo e processo civilizatrio. Trata-de de uma realidade social, econmica, poltica e cultural de mbito transnacional, que em geral modifica o lugar e o significado do que preexiste: Tudo que local, nacional e regional25

Globalizao Como Ideologia

recebe o impacto da transnacionalizao. Com o globalismo passa-se a se desenvolver a sociedade global, um cenrio no s problemtico, mas contraditrio (Ianni, 1997). Globalidade Como vimos, a idia de globalismo para Beck totalmente negativa e no pode ser confundida com a globalizao e globalidade. A idia de globalidade, utilizada por Beck, no seu livro O Que Globalizao, diz respeito a prpria condio da globalizao, ou seja, quilo que denominamos no apenas de mundializao do capital, mas de processo civilizatrio humanogenrico, um processo scio-histrico contraditrio e avassalador, de instaurao de uma nova economia e sociedade modernas . claro que Beck amplia o prprio sentido da globalidade, abrangendo no apenas a dimenso da economia global, mas principalmente as dimenses da cultura, da ecologia, da poltica e da sociedade civil. Para Beck, globalidade a situao do mundo sob a segunda modernidade, onde tende a se constituir uma sociedade mundial, o conjunto de relaes sociais, que no esto integradas poltica do Estado nacional ou que no so determinadas (ou determinveis) por ela. Beck diria mais adiante: a vida e a ao cotidiana ultrapassam as fronteiras do Estado nacional com o auxilio de redes de comunicao interativas e interdependentes(Beck, 1999). Globalidade uma situao do mundo em que todas as descobertas, triunfos e catstrofes afetam a todo o planeta, e que devemos redirecionar e reorganizar nossas vidas e nossas aes em torno de um eixo global-local. Se globalidade a nova condio humana, globalizao seriaos processos, em cujo andamento os Estados nacionais vem a sua soberania, sua identidade, suas redes de comunicao, suas chances de poder e suas orientaes sofrerem a interferncia cruzada de atores transnacionais.26

Introduo

um processo irreversvel e dialtico queproduz conexes e os espaos transnacionais e sociais, que revalorizam culturas locais e pem em cena terceiras culturas...(Beck,1999)

um processo que possui uma especificidade histrica, o que significa que o que ocorre hoje no o mesmo o que ocorreu na Europa desde o sculo XVI. A globalizao que est em curso, diz Beck,... consiste na extenso, na densidade e na estabilidade recproca que ainda est por ser comprovada empiricamente das redes relacionais regionais globais e sua autodefinio dos meios de comunicao de massa, bem como do espao social e das correntes icnicas nos domnios culturais, poltico, econmico e militar (Beck, 1999).

A constituio de uma sociedade mundial decorre da globalizao, uma sociedade mundial que um horizonte que se caracteriza pela multiplicidade e pela no-integrao, diversidade sem unidade, sociedade mundial sem Estado mundial e sem governo mundial. Pelo visto, Beck tende a opor, de um lado, a idia de globalismo e de outro, as idias de globalidade e globalizao. Poderamos at dizer que, para ele, o globalismo a prpria ideologia do neoliberais (os desmontadores do Ocidente). Glocalizao O conceito de glocalizao, utilizado por socilogos, diz respeito a uma nova forma de ver a globalizao, compreendida mais em suas articulaes entre o local e o global e no apenas na dimenso global.

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Globalizao Como Ideologia

Na verdade, glocalizao um conceito-alternativo noo de globalizao, tendo em vista que discorda da idia de globalizao como um processo de negao do local pelo global (o conceito de glocalizao articula as noes de local e global). O local e o global no se excluem. Pelo contrrio: o local deve ser compreendido como um aspecto do global (Robertson, 1999). De certo modo, a utilizao do conceito de glocalizao tende a ocorrer nas anlises da cultura diante das transformaes do capitalismo mundial. Por isso, observa Beck, comentando o conceito de glocalizao:Globalizao quer tambm dizer: a conjuno e o encontro de culturas locais que devero ainda ser conceitualmente redefinidas em meio a este clash of localities (Beck, 95)

A importncia do conceito de glocalizao promover uma renovao metodolgico-pragmtica da compreenso do processo de globalizao apreendido em seus aspectos contingentes e dialticos, contraditrios em sua prpria unidade. Deste modo, seriam indissociveis, por um lado, a generalizao e a unificao de instituies, simbolos e modos de vida (por exemplo, McDonalds, blue jeans, democracia, tecnologia de informtica, bancos, direitos humanos, etc) e, por outro lado, a redescoberta e a valorizao, e mesmo a defesa das culturas e das identidades locais (islamizao, pop alemo e rai norte-africano, o carnaval africano em Londres ou a salsicha branca do Hava). Como observa Beck, utilizando o exemplo dos direitos humanos,...estas culturas [locais - G.A.], bem como todas as outras, esto em primeiro lugar representando direitos universais e que, em segundo lugar, so representadas e postas em cena diferentemente conforme cada contexto (Beck, 96)

Nesse sentido, pode-se falar de paradoxos de culturas glocais, onde mesclam-se como unidades contraditrias universalismo e28

Introduo

particularismo, conexo e fragmentao, centralizao e descentralizao, conflito e compensao. O conceito de glocalizao recupera a contraditoriedade intrnseca prpria globalizao, criticando, portanto, uma ideologia da globalizao que tende a concebe-la meramente como um processo scio-histrico globalista e homogneo.

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2A Globalizao Como Ideologiaideologia da globalizao, tal como ns a conhecemos hoje, surgiu (e se impulsionou) a partir da mundializao do capital ocorrida a partir da dcada de 1980. s a partir de uma nova etapa de desenvolvimento do capitalismo mundial, que a idia de globalizao, com todos seus aspectos impressionistas, por exemplo, as idias de aldeia global ou de sociedade global, tendeu a adquirir um contedo scio-histrico concreto mais desenvolvido e a constituir uma ideologia orgnica elaborada. Com o desenvolvimento da mundializao do capital, o que podemos denominar de cones impressionistas da globalizao deixaram de ser uma mera projeo ideolgica contingente e residual, para assumir um substrato concreto efetivo. O que procuraremos ressaltar que a globalizao se constituiu atravs de uma operao ideolgica que tendeu a ocultar a sua natureza histrica e poltica de mundializao do capital. O nexo essencial da ideologia da globalizao apresentar um processo scio-histrico concreto constituido atravs da luta de classes, como um processo natural, de uma segunda natureza, a qual todos ns, inclusive governos, somos obrigados a nos submeter. De certo modo, a globalizao tende a ser apresentada como um processo homogneo e homogeneizador que conduz ao progresso e ao bem-estar universal, globalizao da democracia e desapario progressiva do Estado-nao.Tais caracteristicas da globalizao, dissiminadas atravs dos aparatos miditicos do

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sistema orgnico do capital, so meras incrustaes do que consideramos a ideologia da globalizao. Em primeiro lugar, a globalizao no um processo homogneo e homogeneizador. Pelo contrrio, desigual e combinado, seletivo e excludente, o que significa que ela no conduz ao progresso e ao bem-estar universal. Na verdade, tende a acentuar a desigualdade, a explorao e a excluso universal. Em segundo lugar, se a globalizao tende a dissiminar atravs do globo uma forma andina de democracia poltica, reduzida a seus protocolos jurdico-institucionais restritos, essa forma poltica de democracia oculta, sob um poderoso aparato estatal-miditico, a espoliao de direitos sociais e o desmonte do Estado-nao. Sob as condies adversas da presso social das massas excludas e exploradas, a forma poltica da democracia global tende a expressar seu contedo autocrtico-burgus. A globalizao da democracia segue, pari passu, o aprofundamento da crise de legitimidade (e no apenas de governabilidade) do Estado capitalismo sob as condies da mundializao do capital. Finalmente, ao contrrio do mero desaparecimento do Estadonao, o que observamos sua metamorfose politico-institucional, num aparato burocrtico-centralizado de dominao (e reproduo) do capital global concentrado. A globalizao tende a criar um Estado mnimo para as necessidades das massas populares excluidas e exploradas e constituir um Estado mximo para os interesses de reproduo e acumulao do capital financeiro global. Deve-se falar no meramente de um Estado-nao burgus, principalmente para os pases capitalistas subalternos, mas de um sistema mundial inter-estatal capitalista cada vez mais orgnico tendo em vista que, com a mundializao do capital, surge um nova elite capitalista desterritorializada - uma burguesia transnacional comprometida com os interesses do novo sistema mundial do capital financeiro.

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O sistema mundial inter-estatal capitalista, que poderia ser apreendido como um rudimentar Estado global do capital financeiro, com seus tentculos tecnocrtico-institucionais (tais como FMI, Banco Mundial, OMC, etc), a expresso poltico-institucional do que Chesnais veio a denominar de oligoplio mundial. Na verdade, a globalizao como mundializao do capital um construto poltico de polticas estatais-nacionais servio dos interesses das empresas, conglomerados e corporaes transnacionais, a espinha-dorsal do oligoplio mundial (Chesnais, 1995). Alm das caracteristicas principais da ideologia da globalizao, apresentadas logo acima, importante salientar alguns de seus traos essenciais: 1. Possui uma srie de cones impressionistas, ligadas ao prprio desenvolvimento do capitalismo e de suas foras produtivas ( o que observamos com as idias de aldeia global ou mesmo de sociedade global e cultura global) e que marcaram a pr-histria da ideologia da globalizao. 2. A ocultao de seu carter scio-histrico, o que implica na operao linguistico-conceitual de toda e qualquer ideologia (deshistorizar e ocultar o carter de classe e de luta de classe intrinseco a todo o processo scio-histrico moderno). 3. A impresso de um contedo economicista/naturalista, que permite apreender a globalizao meramente como um resultado da evoluo civilizatria, a qual todos ns devemos nos submeter e apenas nos adaptar.

cones impressionistas do novo capitalismo mundial possivel dizer que antes do surgimento e desenvolvimento da ideologia da globalizao propriamente dita, ocorrida em meados dos anos 80, tendeu a se disseminar sob o capitalismo mundial do ps-guerra, uma srie de impresses conceituais que indicavam a possibilidade de constituio de um um mundo s ou de um

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Globalizao Como Ideologia

globo. Surgem, de certo modo, as idias de aldeia global e mesmo de sociedade global e cultura global:A partir dos anos 80, o anglicismo globalizao domina o discurso de marketlogos da economia e da poltica, apesar de que essa inveno data do final dos anos 60 (Castro, 1999)

Por exemplo, de 1968 o livro Guerra e paz na aldeia global, de Marshall McLuhan, um dos profetas da telemtica. Os avanos das transmisses ao vivo pelas redes de TV nos Estados Unidos, tendeu a anunciar para Mcluhan o surgimento de uma aldeia global. a realidade dos novos meios de comunicao, que tendiam a criar para milhes de espectadores, uma nova realidade virtual, que impressionou McLuhan a sugerir a idia de umaaldeia global, expresso que veio a se dissiminar e caracterizar uma possibilidade concreta posta pelo desenvolvimento da telemtica e das telecomunicaes a partir dos anos 70. Um outro autor que contribuiu para dissiminar mais um cone impressionista da globalizao, na pr-histria da ideologia da globalizao, o politlogo, diretor do Instituto de Pesquisa sobre o Comunismo, da Universidade de Columbia, conselheiro de Segurana Nacional do Governo Carter e que criou a Comisso Trilateral: Zbigniew Brzezinski, autor de A revoluo tecnotrnica (de 1969). de Brzezinski a utilizao das idias de sociedade global e cidade global para designar um novo tipo de habit humano permeado pelas redes tecnotrnicas (a conjugao de computador, TV e computadores) (Castro, 1999). O modelo de sociedade global, para Brzezinski, so os Estados Unidos, a principal fora propulsora da revoluo tecnotrnica mundial: isso porque, primeiro, so o ponto de partida de 65% de todas as comunicaes mundiais; segundo, porque com a venda de produtos das suas indstrias culturais, junto exportao de tecnologias, de procedimentos e de sistemas33

Dimenses da Globalizao organizacionais, os EUA oferecem ao mundo o nico modelo global de modernidade com os correspondentes padres de comportamento e valores universais (Castro, 1999).

Portanto, como podemos observar, os cones impressionistas da globalizao, que se disseminaram a partir dos anos 60, tenderam a ter como substrato concreto imediato, a III Revoluo Tecnolgica, cujo epicentro so os EUA e que impulsionou o desenvolvimento das redes de telecomunicaes e da telemtica. A exuberncia do mundo scio-tcnico ocorrida no sculo XX tendeu a criar seus cones impressionistas, alm de determinar as possibilidades concretas de desenvolvimento do processo civilizatrio humano-genrico. Entretanto, cabe salientar que a globalizao em-si possui como prprio contedo scio-histrico, o americanismo (o esprito da dominao dos EUA no sculo XX). atravs dele que podemos apreender o contedo dos cones impressionistas (e pr-histricos) da ideologia da globalizao propriamente dita. Foi atravs da poltica de hegemonia cultural americana, principalmente com a presena da indstria cultural americana dissiminada atrves das redes teletrnicas e da constituio das empresas multinacionais globais americanas, que disseminou-se a idia de uma sociedade global ou de uma cultura global, antes mesmo que a ideologia da globalizao propriamente dita viesse a se constituir. Alm disso, a idia de uma poltica global, levada a cabo pelo Departamento de Estado americano nas circunstncias da Guerra Fria contribuiu sobremaneira, em vrios aspectos, para a construo de uma idia impressionista (e rudimentar) de globalizao. No apenas enquanto realizao da poltica imperial do EUA no Ocidente atravs da suas articulaes polticas, ideolgicas e militares anti-comunistas na Amrica Latina, frica e sia, mas inclusive no sentido tecnolgico, tendo em vista que foi atravs do apoio do Departamento de Estado americano que ocorreram avanos significativos na telemtica e na teletrnica

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Globalizao Como Ideologia

(por exemplo, a Internet, que veio a se disseminar sob a globalizao, originou-se de um projeto militar americano) que iriam constituir o substrato tecnolgico-material da globalizao propriamnete dita. Portanto, por um lado, ocorre, a partir dos anos 60, a constituio de uma economia mundial, atravs da expanso das multinacionais globais, no apenas americanas, mas japonesas e europias. Por outro lado, uma poltica mundial assumia dimenses histrico-concretas atravs das diversas articulaes militares, polticas e ideolgicas anti-comunistas. Ela mesma, a nova poltica do capitalismo mundial do ps-guerra tendeu a anunciar a sociedade global bem antes, a partir dos anos 40, com a constituio, naquela poca, dos cones institucionais da globalizao propriamente dita, tais como ONU, FMI, Banco Mundial e mais tarde, OTAN e todos os aparatos de poltica e economia global. Alm disso, cabe salientar os resultados, ainda imaturos, da III Revoluo Cientfico e Tecnolgica at os anos 60, principalmente no campo da comunicao e dos transportes, imprescindiveis para acelerar o fluxo de comrcio e de informaes no globo (a idia de aldeia global). Todos essas mltiplas determinaes contribuiram para constituir os icones impressionistas de um discurso originrio da globalizao. At os anos 1980, o anglicismo globalizao ainda no era utilizado para caracterizar uma srie de cones impressionistas de um globo que se constituiu na poltica, na economia e na cultura, atingindo os mais diversos pases capitalistas (e socialistas) em maior ou menor proporo, dependendo de sua insero no mercado mundial. No se dizia globalizao, mas se dizia ONU, FMI, Banco Mundial, OTAN, Pacto de Varsvia, Operaco Condor, aldeia global, sociedade global, multinacionais etc. Ora, tais cones impressionistas no so arbitrrios, mas possuem como lastro histrico concreto, como salientamos, realidades polticas scio-histricas e tecnolgicas de um

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capitalismo mundial em constituio no ps-II Guerra Mundial. At os anos de 1980, a ideologia da globalizao propriamente dita no surgia ainda como uma realidade scio-histrica que se impunha, tal como ocorre nos nossos dias, tendo em vista que a prpria globalizao como mundializao do capital, ainda no tinha se constituido plenamente. At fins dos anos de 1970, vive-se um processo scio-poltico de intensas lutas de classes, de percursos ainda sinuosos de reestruturao capitalista, principalmente a reeestruturao produtiva, num bojo de crise da economia capitalistas central. A idia de uma globalizao apenas transparecia atravs de seus cones impressionistas originrios, no tendo ainda dominado o discurso da mdia e dos interesses discursivos do Ocidente, o que ocorreria com maior vigor nos anos 80. Como iremos verificar, s nos anos de 1980 que a globalizao como mundializao do capital iria assumir um novo sentido sciohistrico. A ofensiva do capital na produo adquire um carter sistmico e o avano das polticas neoliberais nos principais pases capitalistas indica um novo padro da acumulao capitalista mundial. Constituem-se para a prtica reprodutiva capitalista uma srie de constrangimentos estruturais, no campo da gesto poltica da economia dos Estados-Nao, criando amplamente as condies para o discurso (e a ideologia orgnica) de uma globalizao inexorvel a qual todos - individuos, classes, empresas e governos tm que se submeter, sob pena de irem ruina no mercado mundial. A construo do cenrio da globalizao, onde o discurso da resignao liberal tendeu a adquirir um maior poder ideolgico, antes de tudo um construto poltico (a vitria de coligaes polticas conservadoras em fins dos anos de 1970 e no decorrer da dcada de 1980) e um construto econmico (resultado de uma srie de decises empresariais das multinacionais globais, sedentas em recuperar um novo patamar de acumulao capitalista). A crise do capital, a partir de meados dos anos de 1970, um dado objetivo, intrinseco a prpria lgica de desenvolvimento36

Globalizao Como Ideologia

capitalista no ps-guerra. So determinadas respostas polticas e empresariais crise do capital que constituiu o ambiente natural para o surgimento e desenvolvimento de uma determinada ideologia da globalizao, a partir de seus cones impressionistas que salientamos acima. O que procuramos caracterizar como sendo a ideologia da globalizao assume um carter orgnico, a partir dos anos de 1980, porque emerge um complexo scio-histrico constituido pelas polticas neoliberais, com o mito do mercado autoregulador e otimizador, e pela reestruturao produtiva, que articularam atravs do anglicismo globalizao, ou globalization, o sentido da nova ocidentalizao do mundo. A partir da, todos aqueles cones impressionstas da globalizao, consituidos, principalmente, no ps-guerra, passaram a ter um novo sentido scio-histrico. A III Revoluo Tecnolgica, com o mito do primado da tecnologia ou da modernidade informacional e o mito da realidade virtual ou da suposta unificao do tempo e do espao na aldeia global, atravs da telemtica ou teletrnica, deu o substrato concreto originrio a tal processo de constituio da ideologia da globalizao propriamente dita.

A Negao da Histria (e da Luta de Classes)Apesar de ter uma origem scio-histrica e ser um resultado da luta de classes, a globalizao como mundializao do capital tende a ocultar suas origens. Na verdade, uma caracteristica essencial de qualquer construto ideolgico ocultar suas origens scio-histricas concretas. No poderia ser diferente com a ideologia da globalizao. deste modo que ela - a ideologia da globalizao - contribui para o desenvolvimento e legitimao poltica do prprio processo scio-histrico (e poltco) da qual se originou.

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Como ideologia, a globalizao aparece como resultado da evoluo natural da civilizao. Como proceso natural e inexorvel, a globalizao s poderia ser assim e seria ociosidade e insensatez lutar contra ela, ou melhor, querer que as coisas sejam de outro modo. por isso que a ideologia da globalizao supe apenas que devemos nos adaptar e no resistir mundializao do capital tal como ela . Na medida em que a idia de globalizao aparece como uma ideologia, ela ideologia orgnica de um amplo processo de reestruturao capitalista. um poderoso recurso ideolgicolingustico que instrumentaliza (e mistifica) um novo processo scio-histrico instaurado pela mundializao do capital. Como observou Batista, o poder mistificador da palavra globalizaose alimenta da percepo de processos reais que dominam a economia mundial: progresso das telecomunicaes e informtica, crescente integrao comercial e financeira, internacionalizao de muitos processos de produo, etc. (Batista Jr, 1996).

Tais recursos de instrumentalizao e mistificao prprio de todo e qualquer construto ideolgico-orgnico. Mas, se a ideologia da globalizao oculta e mistifica (e ainda instrumentaliza) porque existe um processo scio-histrico de novo tipo, uma nova dimenso civilizatria mundial que no pode ser negado e que est pressuposto como substrato scio-histrico concreto. A globalizao no meramente uma ideologia, apesar de que possua uma ideologia, ou seja, um arcabouo de crenas e prticas polticas (e culturais) inscritas nos discursos da mdia, de polticos e empresrios e intelectuais, cujo objetivo latente (ou manifesto) legitimar o novo regime de acumulao mundial do capital. Portanto, a ideologia da globalizao articula-se, mas no pode se reduzir, ideologia neoliberal. No pode se reduzir porque a ideologia da globalizao propriamente dita muita mais38

Globalizao Como Ideologia

ampla e diz respeito a um processo scio-histrico de maior envergadura civilizatria. Diz respeito a uma percepo ideolgica de novos processos civilizatrios inscritos no desenvolvimento capitalista. Tais processos scio-histricos objetivos, claro, tendem a ser recuperados (e incorporados) por uma ideologia (o neoliberalismo) e sua classe dominante - a burguesia transnacional emergente. Desde os anos de 1940, as crenas neoliberais existiam no cenrio intelectual do establishment, s que, naquela poca de expanso capitalista, o arcabouo ideolgico da reproduo orgnica do capital era totalmente outro. Em decorrncia da correlao poltica da luta de classes no ps-guerra (e a situao de Guerra Fria) tendia a predominar a ideologia estatista de cariz social-democrata (Anderson, 1994). Foi preciso a crise capitalista nos anos de 1970, colocando novas exigncias para a reproduo orgnica do capital, e a derrota poltica (e sindical) do bloco social-democrata, para que o idario neoliberal surgisse como a ideologia organica do sistema do capital. A ideologia neoliberal a ideologia poltica hegemnica da globalizao originria, que tenta impor uma nova ordem capitalista mundial centrado no mercado. Na verdade, o neoliberalismo um discurso, uma crena e uma prtica de economia poltica do capital que se desenvolve (e se potencializa e se auto-reproduz) nos perodos histricos de maior expanso capitalista mundial. a crosta ideolgica do prprio projeto expansionista do capital pelo mundo ou pelo globo. Entretanto, a ideologia neoliberal no pode ser reduzido, como temos salientado, seu contedo scio-histrico, o prprio movimento de expanso e desenvolvimento do capital, que, em outros momentos histricos, se apropriou, para a sua reproduo orgnica, do Estado e de outra ideologia orgnica (a ideologia estatista de cariz social-democrata). Outro aspecto a ser salientado que a ideologia da globalizao exacerba o pensamento positivo destilado sob o capitalismo39

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industrial desenvolvido. o pensamento unidimensional, caracterizado por Marcuse (em meados dos anos de 1960), que tende a ocultar a negatividade intrinseca do real, negatividade decorrente dos interesses antagnicos de classe e que est na origem das lutas sociais e polticas do sculo XX. Entretanto, sua capacidade de sustentao ideolgica deveras dbil, pois, o verdadeiro contedo da mundializao do capital, tende a exacerbar a desigualdade, a explorao e a excluso social no globo. Por isso, ocorrem novas determinaes da ideologia da globalizao e principalmente na ideologia neoliberal, que tende a incorporar um verniz social-democrata. a presso dos resultados sociais da globalizao, que desvela o seu contedo real, que cria (e recria) a ideologia da globalizao.

O Novo EconomicismoA ideologia da globalizao incorpora um novo economicismo como senso comum. Na medida em que nega o processo sciohistrico e de luta de classes, constitui um construto de pensamento e de idias apropriada pelo neoliberalismo e que se impe ao senso comum. J discutimos a idia de globalismo e de globalitarismo como recursos ligados ideologia da globalizao, seja num aspecto positivo ou negativo. Ao dizermos o novo economicismo queremos dizer que a mundializao do capital tende a apresentar o mercado como o deus ex-machina que se torna a referncia universal dos processos decisrios polticos. Beck critica o globalismo que reduz a globalizao a concepo de que o mercado mundial bane ou substitui, ele mesmo a ao poltica. Para ele, como j salientamos, o globalismo tende a ser a expresso da ideologia da globalizao na medida em que reduz a globalidade ideologia do mercado mundial, a ideologia do neoliberalismo:

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O procedimento monocausal, restrito ao aspecto econmico, e reduz a pluridimensionalidade da globalizao a uma nica dimenso a econmica -, que, por sua vez, pensada de forma linear e deixa todas as outras dimenses relativas ecologia, cultura e sociedade civil sob o dominio subordinador do mercado mundial (Beck, 1998)

Mas, o que Beck apresenta como um excrescncia expresso contraditria daquilo que ele prprio denomina de globalidade ou globalizao. A ideologia da globalizao como novo economicismo se origina do prprio modo de ser essencial da globalizao como mundializao do capital. o capital que se explicita como sujeito de um processo scio-histrico amplo, de mltiplas determinaes ecolgicas, culturais e sociais. Se predomina o aspecto econommico em detrimento da pluridimensionalidade da globalizao (o novo economicismo) porque a globalizao, antes de ser um processo civilizatrio, a mundializao do capital. processo civilizatrio,mas , acima disso, mundializao do capital. Por isso, a ideologia da globalizao, com seu novo economicismo, tende a ocultar o carter scio-histrico e poltico do processos de globalizao, ligado a interesses de classe e imposto a partir de processos de luta poltica, e expressa a realidade concreta da lgica da globalizao como mundializao do capital, que submete a sociedade em suas mais diversas instncias lgica da rentabilidade universal. Ao analisarmos a globalizao como mundializao do capital iremos verificar que o novo economicismo que surge com a globalizao expressa to-somente a prpria natureza da globalizao em-si: ser o imprio universal do capital, representados pelas empresas, conglomerados e corporaes transnacionais e pelos fundos de penso e fundos mtuos de investimentos, centralizadores de uma imensa massa monetria sedenta de valorizao.

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Dimenses da Globalizao

Ao discutirmos o novo economicismo importante salientarmos que, o economicismo pode ser considerado, em suas diversas expresses scio-culturais e ideolgicas, a ideologia do sculo XX. Isso sintomtico da prpria natureza do processo de modernizao capitalista. Sob as condies do capitalismo desenvolvido, o economicismo penetra no apenas a ideologia hegemnica do capitalismo moderno, com a globalizao sendo a sua expresso mais desenvolvida, mas inclusive a ideologia contra-hegemnica da esquerda, que, em algumas percepes analticas, pode negar os processos scio-histricos e polticos da luta de classses na constituio do em-si da globalizao. A ideologia do economicismo o prprio ter da modernizao capitalista, que possui tanto mais eficcia ideolgica na medida em que o capitalismo como modo de vida social se desenvolve. o que Weber salientou como um processo de desencantamento do mundo, de reduo do mundo humano-social processos tcnicos e economicos que tendem a serem fetichizados. Mas, antes dele, Marx salientou o fetichismo da mercadoria como a prpria caracteristica da estrutura da sociabilidade capitalista. O que significa que o novo economicismo, expresso pela ideologia da globalizao, a prpria expresso imanente do fetichismo das mercadorias, que se desenvolve cada vez mais na medida em que o prprio capitalismo, no apenas como modo de produo, mas principalmente como modo de civilizao, com suas relaes sociais, institucionais, polticas e culturais, se dissimina pelo globo. Portanto, a crtica do globalismo, ensaiada por Beck, ressalta bastante o carter de novo economicismo da ideologia da globalizao. A crtica do globalitarismo, salientada por Ramonet, ressalta bastante o carter natural e totalitrio da ideologia da globalizao. Tais abordagens criticam uma ideologia constituida e amadurecida nos anos 80. Mas importante salientar que, a globalizao como processo scio-histrico concreto (como mundializao do capital e, ao mesmo tempo, processo civilizatrio humano-genrico, conduzido

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pelo capital) exala uma ideologia orgnica, que tende a surgir e se desenvolver nos anos de 1980. uma ideologia que possui bases concretas scio-histricas reais (Gramsci, 1985). Antes tinhamos apenas cones impressionistas que apontavam para o que hoje criticamos como globalismo e globalitarismo. Nos anos de 1960, tais cones impressionistas no se impunham como ideologia orgnica pela prpria imaturidade da mundializao do capital. Contm gros de verdade sem constituir ainda a verdade que apenas iria se consolidar e se desenvolver a partir dos anos de 1980, em virtude de processos scio-histricos e luta de classes.

Dimenses da Globalizao

3Globalizao Como Mundializao do Capitalo abordarmos a globalizao como mundializao do capital procuraremos trat-la como um processo scio-histrico concreto que se desenvolve a partir das ltimas dcadas do sculo XX. uma nova etapa de desenvolvimento do capitalismo mundial que surge com a crise do capital em meados da dcada de 1970. nessa poca que ocorre um complexo de fenomnos scio-histricos de novo tipo, com a mdia tendendo, mais tarde, a apreende-los como a globalizao. Entretanto, do nosso interesse investigar a lgica essencial de tal fenomno scio-histrico, apreendendo suas mltiplas determinaes. Existe uma vastssima literatura nas cincias sociais que trata da globalizao. Na verdade, tornou-se um tema da moda intelectual do Ocidente no fin-du-sicle, uma palavra vadia que procura traduzir a sensao ntima da profunda mudana sciohistrica que vivemos, de uma suposta ruptura com um passado que nos parece distante. Sobre a globalizao, ou a pretexto dela, disseminaram-se, principalmente a partir da dcada de 1990, livros, ensaios e artigos de revistas e jornais em diversos idiomas, principalmente o ingls. Foi a partir dos anos 70 que dissiminouse uma vasta literatura das cincias sociais procurando discutir a nova constelao do capitalismo mundial, buscando descobrir as novas significaes de um capitalismo criticamente em expanso (a idia de crtica intrinseca a de expanso/ desenvolvimento do sistema mundial do capital).

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Em sua maioria, as reflexes sobre a globalizao tenderam a sucumbir a uma perspectiva impressionista, isto , meramente descritiva e muitas vezes no-crtica. Como permanecem vinculadas a um horizonte metodolgico positivista, tendem a no elaborar o conceito e se rendem ideologia da globalizao, desrespeitando, portanto, seu contedo intrinsecamente histricodialtico. O nosso intuito to-somente indicar alguns elementos para uma teoria dialtica da globalizao, que reconhea, como seu nexo essencial, a contradio scio-histrica em processo. Estamos nos utilizando de autores do campo histrico-dialtico para construir uma proposta de investigao da globalizao que seja capaz de incorporar as mais diversas contribuies das cincias sociais. Existe um debate acirrado sobre a globalizao. Por um lado, o debate circunscreve-se em torno da questo de saber se a globalizao representa ou no uma nova dimenso sciohistrica do capitalismo mundial, uma nova poca histrico-social do processo civilizatrio. Por outro lado, discute-se a prpria natureza da globalizao, se ela representa uma nova etapa de desenvolvimento do capitalismo mundial, ou seja, uma ruptura com o dinamismo capitalista do passado, como podemos caracterizar suas conexes essenciais. Para alguns autores, no haveria nada de novo com a globalizao. Ela apenas reproduziria dinmicas de expanso capitalista do passado, tais como as que ocorreram na virada do sculo XIX para o sculo XX (Hirst e Thompson, 1998; Nogueira Batista Jr, 2000). Mas no do nosso interesse abordar as nuances - no apenas terico-metodolgicas, mas inclusive de carter nacional, do debate sobre a globalizao. Nossa pretenso to-somente apresentar uma breve interpretao ensastica sobre a natureza da globalizao que respeite sua legalidade histrico-dialtica. claro que argumentos, sendo alguns de carter emprico, contra a idia da globalizao como uma ruptura com o dinamismo45

Dimenses da Globalizao

capitalista do passado so sustentveis. o que encontramos, por exemplo, em Hirst e Thompson. Entretanto, tais autores tendem, no geral, a desprezar, de certo modo, primeiro, a natureza essencial do desenvolvimento capitalismo moderno e, segundo, a importncia (e significado qualitativamente novo) de alguns fenomnos da produo (e reproduo) do capitalismo mundial a partir da crise capitalista de meados dos anos 1970 (para uma crtica ponderada de Hirst e Thompson, ver Chesnais, 1997). Ora, o desenvolvimento capitalista mundial intrinsecamente dialtico, e, portanto, contraditrio. comum presenciarmos no decorrer do processo de desenvolvimento scio-histrico do capitalismo, momentos de superao de formas de desenvolvimento do capital (utilizamos a palavra superao, no sentido da palavra alem aufhaben, que significa superao/ conservao). Desde o sculo XVI, o sistema mundial do capital teve diversas formas de desenvolvimento, todas caracterizadas como modos de expanso do mercado mundial e de disseminao contraditria do modo de produo (e de reproduo) capitalista. Elas articularam um complexo de determinaes polticas, culturais e tecnolgicas de dominao e poder a servio dos interesses de avano da lgica da modernizao. Mercantilismo, colonialismo, imperialismo, neocolonialismo so termos que caracterizam, desde o sculo XVI o avano da expanso capitalista mundial, sob a hegemonia (e supremacia) de imprios e de Estados-nao (Arrighi, 1998). O que veio a ser denominado de globalizao um novo modo de expanso capitalista a partir de um novo regime de acumulao capitalista. A globalizao poderia ser considerada o desenvolvimento mais avanado de apresentao do sistema mundial do capital (que passaria a assumir um carter realmente orgnico). A partir dessa nova forma de desenvolvimento capitalista instaurou-se, em meados dos anos de 1970, o que poderiamos chamar de uma descontinuidade no interior de uma continuidade plena (Alves, 1999).

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Globalizao Como Mundializao do Capital

claro que a economia da globalizao conserva ainda hoje, num sentido ampliado e intensivo, relaes, processos e estruturas de produo e troca oriundos da passagem do capitalismo liberal para o capitalismo monopolista. Por isso, alguns argumentos empiricos de Hirst e Thompson, e de outros, podem ser sustentveis. A globalizao at poderia ser identificada como um momento mais avanado do imperialismo (termo utilizado por Lnin para caracterizar, em 1905, a nova etapa do capitalismo monopolista). Mas o conceito de imperialismo no seria mais capaz de, por si s, expressar as novas significaes do sistema orgnico do capital, apesar de ser uma determinao originria (e essencial) da nova ordem mundial. Existem novas determinaes postas na totalidade concreta da economia mundial que nos permitem apreend-la com novas significaes - uma delas, por exemplo, a III Revoluo Tecnolgica; uma outra, a nova estrutura do capital financeiro, e ainda, the last but not the least, a derrota e a crise radical da poltica da social-democracia clssica e do movimeno operrio de esquerda (Castells, 2000; Chesnais, 1996; Bihr, 1998). O que procuramos salientar que a crise capitalista mundial, a partir de meados dos anos 1970, tendeu a constituir uma nova dinmica de produo capitalista (a discusso sobre a crise do capital pode ser vista em Mandel,1997 e de modo mais acabado, em Brenner, 1998). Subjacente a uma continuidade plena da lgica expansionista do capital, que impulsionou processos de expanso em vrios perodos da histria do capitalismo moderno (desde o sculo XVI), instaurou-se, mais uma vez, uma descontinuidade no tocante dinmica do sistema mundial do capital. Mas no uma mera descontinuidade scio-histrica, mas sim um momento de desenvolvimento mais avanado do sistema mundial do capital, qualitativamente novo. por isso que poderamos dizer que presenciamos a constituio real - e no meramente formal - de um sistema orgnico do capital. deveras perceptivel, principalmente a partir dos anos 1980, a ocorrncia de alteraes qualitativas, e no meramente47

Dimenses da Globalizao

quantitativas , no sistema mundial do capital. Ao dizermos sistema mundial do capital procuramos caracterizar o capitalismo mundial como uma totalidade concreta (Kosik, 1977). So mudanas complexas e interrelacionadas nos mltiplos campos da produo e reproduo do ser social capitalista, da ordem produtiva, tecnolgica e cultural, ordem poltica, militar e social, que atingem, em maior ou menor proporo, com impactos diversos e particulares, o conjunto dos pases capitalistas, sejam eles centrais ou subalternos Triade (EUA, Japo e Europa Ocidental). Esse determinado complexo de mudanas scio-histricas, que se desenvolve com vigor nos anos de 1960, e assumiria seu pice a partir da crise capitalista dos anos 1970, instigou, e continua instigando, o pensamento e a ao scio-humana. Por exemplo, alguns autores do campo dialtico - e inclusive, no-dialtico - nos anos 60 procuraram tratar da nova dinmica capitalista, antevendo, em alguns casos, novas determinaes que s assumiriam seu desenvolvimento pleno mais tarde. o caso de Andr Gorz, com o conceito de neocapitalismo e Herbert Marcuse, com o debate sobre a sociedade unidimensional e inclusive, os tericos do psindustrialismo, como Daniel Bell, entre outros. Entretanto, o que todos eles no puderam vislumbrar que a nova dinmica expansionista do capitalismo do ps-guerra tenderia a ser conduzida, em termos hegemnicos, com a globalizao dos anos 80, pelo capital financeiro (o que imprimiria uma marca determinada no prprio desenvolvimento do sistema mundial do capital). Como procuramos demonstrar, a globalizao possui, antes de tudo, uma ideologia que oculta seu verdadeiro significado histrico: a mundializao do capital, que significa uma nova estrutura da economia (e da poltica) mundial que d uma nova dinmica na produo (e reproduo) do sujeito da modernizao (o capital). Mas, na medida em que compreendemos a globalizao como mundializao do capital, somos obrigados a apreende-la como um processo scio-histrico intrinsecamente dialtico. dialtico porque contraditrio e o capital, como salientou Marx, a prpria48

Globalizao Como Mundializao do Capital

contradio viva (Marx, 1985). por isso devemos considerar a globalizao no apenas como ideologia ou ento como mundializao do capital, mas como um processo civilizatrio humano-genrico (o que iremos tratar mais adiante).

Globalizao como Mundializao do CapitalA utilizao do conceito de mundializao do capital para caracterizar a globalizao vincula-se a percepo analtica de Chesnais, desenvolvida no livro A Mundializao do Capital (edio original de 1994) e depois, em A Mundializao Financeira (edio original de 1996). Como constatamos, so obras delineadas no pice de um processo de desenvolvimento capitalista que assumiu na ltima dcada do sculo XX, o seu mais pleno (e perverso) desenvolvimento. O prprio desenrolar da conjuntura da economia e da poltica dos anos de 1990, a dcada da globalizao, iria conduzir Chesnais a apurar sua percepo da centralidade plena do capital financeiro, como ele iria reconhecer no livro de 1996:A interpretao do movimento de conjunto do capitalismo mundial proposta por mim em 1994 (ver o ltimo captulo de A mundializao do capital) tomava ainda como ponto de partida as operaes do capital engajadas na produo manufatureira e nos servios. No referido captulo, salientava-se o papel das elevadas taxas de juros, assim como a capacidade do capital financeiro (entendido aqui como aquele que se valoriza conservando a forma dinheiro) em imprimir sua marca no conjunto das operaes do capitalismo contemporneo. A esse respeito, o livro coletivo sobre a mundializao financeira [A Mundializao Financeira, coordenado por Chesnais, de 1996 - G.A.] apresenta uma mudana, que mais do que a simples consequncia do fato de que o referido volume trata da mundializao financeira como tal (Chesnais, 1997).

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Portanto, a globalizao , antes de mais nada, uma nova etapa do desenvolvimento do capitalismo mundial, que possui caracteristicas particulares em relao s etapas scio-histricas anteriores do desenvolvimento capitalista. Ela se caracteriza, principalmente, pela predominncia do capital financeiro no processo de acumulao capitalista em detrimento das demais fraes do capital a industrial e a comercial. o que Chesnais denomina de regime de acumulao financeirizada mundial. Se antes, sob o fordismo, o regime de regulao e o regime de acumulao era amplamente centrado no setor industrial e no investimento em capital produtivo, isto , o processo de acumulao capitalista ocorria sob a direo hegemnica do capital produtivo de valor, a partir de meados da dcada de 1970, e principalmente a partir da dcada seguinte, uma srie de acontecimentos no campo da economia e da poltica do capitalismo mundial, contribuiram para uma mudana de direo: a frao do capital financeiro tornou-se hegemnica. Para Chesnais, o capital financeiro aquele que se valoriza conservando a forma dinheiro - uma conceituao clssica de capital financeiro, muito mais prxima da de Marx, apesar de que em nenhum momento Marx utilize a expresso capital financeiro, mas apenas capital a juros ou ainda capital ficticio. A hegemonia do capital financeiro seria perceptivel atravs da incorporao, pelas demais fraes do capital (a frao do capital industrial e a do capital comercial) da lgica do capital financeiro que poderia ser traduzida atravs de uma expresso - short-termismo (expresso utilizada nos EUA para caracterizar o predomnio das politicas de curto prazo) e que tende a predominar nas decises de investimentos produtivos:Imposto pelos mercados financeiros e frequentemente agravado pelo ingresso massivo de fundos de penso na propriedade do capital, esse horizonte de curto prazo se impe quase que sistematicamente s custas do emprego, mas tambm do

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Globalizao Como Mundializao do Capital investimento, assim como da pesquisa industrial nos setores menos rentveis (Chesnais, 1997: 27).

Horizontes de valorizao muito curtos, ditados por imperativos do mercado financeiro, tendem, portanto, a alterar a prpria natureza do investimento produtivo, que constituiu o core do desenvolvimento do capitalismo moderno. Uma anedota, relatada pelo antigo ministro das Finanas do Japo, Toyoo Gyohteno, talvez possa ilustrar os imperativos do mercado financeiro que tendem a se incrustrar (e constituir) a prpria lgica do capital industrial. Diz ele:H pouco falei com um operador de divisas. Perguntei-lhe quais os fatores que levava em conta ao comprar e vender. Ele respondeu: Muitos fatores, a maioria de curtissimo prazo, alguns de mdio prazo e outros de longo prazo. Achei muito interessante o fato de que pensasse tambm a longo prazo e quis saber o que ele entendia por isso. No sem hesitar por uns instantes, disse-me com toda seriedade: Talvez 10 minutos. nesse compasso que se move hoje o mercado. (Apud Kurz, 1997:220).

Com a globalizao, presenciamos uma verdadeira ruptura do sentido de reproduo social, mais do que nunca ameaada pela lgica parasitria e rentista do capital financeiro:As caractersticas do investimento produtivo, considerado do ponto de vista de seu ritmo, seu montante e sua orientao setorial (afora os semicondutores e a informtica, so priorizadas as empresas de telecomunicaes, o transporte areo, as indstrias de mdia, as indstrias de lazer de massa para os aposentados da classe mdia, etc.) levam a formular a hiptese de que, pela primeira vez na histria do capitalismo, a acumulao do capital industrial no est mais orientada, no centro do sistema, para a reproduo ampliada (Chesnais, 1997:27-28).

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Os horizontes de valorizao muito curtos construdos pelo capitalismo-cassino (Kurz), tendem a imprimir a sua marca no apenas sobre a natureza dos investimentos produtivos, mas sobre a prpria sociabilidade capitalista.

Acumulao flexvel e mundializao do capitalEm seu livro de 1989, David Harvey constatou a compresso do tempo-espao, com impactos decisivos nas prticas polticoeconmicas, no equilibrio do poder de classe, bem como sobre a vida social e cultural. Harvey vincula tais mudanas nos usos e significados do espao e tempo transio do fordismo acumulao flexvel. Inclusive, poderamos dizer que, para David Harvey, a globalizao seria caracterizada principalmente pela transio do fordismo para a acumulao flexvel, um novo regime de acumulao e modo de regulao social e poltica a ele associado. A globalizao seria para ele - e cabe ressaltar que Harvey no utiliza em seu livro A Condio Ps-Moderna tal noo - o processo de constituio de um novo mundo capitalista apoiado na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padres de consumo:A acumulao flexvel [...] caracteriza-se pelo surgimento de setores de produo inteiramente novos, novas maneiras de servios financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovao comercial, tecnolgica e organizacional. A acumulao flexvel envolve rpidas mudanas dos padres do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regies geogrficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado setor de servios, bem como conjuntos industriais completamente novos em regies at ento subdesenvolvidas (tais como a Terceira Itlia, Flandres, os vrios vales e gargantas do silcio, para no falar da vasta profuso de atividades dos pases recmindustrializados). Ela tambm envolve um novo movimento que chamarei de compresso do espao-tempo no mundo52

Globalizao Como Mundializao do Capital capitalista - os horizontes temporais da tomada de decises privada e pblica se estreitaram, enquanto a comunicao via satlite e a queda dos custos de transportes possibilitaram cada vez mais a difuso imediata dessas decises num espao cada vez mais amplo e variegado (Harvey, 1992: 140).

Como observamos, uma percepo analtica que, contrastando com a de Chesnais, prende-se dimenso produtiva do sistema mundial do capital. Salienta-se o capital industrial como dando a direo de tais processos de flexibilidade e de mobilidade do capital, apesar de Harvey reconheer que o capital industrial, mercantil e imobilirio se integram de tal maneira s estruturas e operaes financeiras que se torna cada vez mais difcil dizer onde comeam os interesses comerciais e industriais e terminam os interesses estritamente financeiros. E mais adiante: A acumulao flexvel evidentemente procura o capital financeiro como poder coordenador mais do que o fordismo o fazia. (Harvey, 1992: 154) Na verdade, Harvey reconhece que o colapso do fordismokeynesianismo - como regime de acumulao e modo de regulao social e poltico do sistema mundial do capital - sem dvida significou fazer a balana pender para o fortalecimento do capital financeiro, tendo em vista que o abandono das taxas de cmbio fixas e a adoo do sistema de taxa de cmbio flexivel em 1973, com a completa abolio de Bretton Woods (o marco da passagem do fordismo acumulao flexivel, segundo ele), significou que todas as naes-Estados passasem a depender do disciplinamento financeiro, adotando medidas institucionais e polticas voltadas para a abolio dos controles sobre os fluxos de capitais. Os operadores financeiros privados passaram a desempenhar um papel decisivo na determinao dos preos relativos das moedas (as taxas de cmbio). Foi o primeiro passo na formao de um mercado financeiro mundializado. Portanto, surgem algumas interrogaes: a predominncia do capital financeiro no seio do sistema orgnico do capital e no meramente um novo regime de acumulao do capital53

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industrial (a acumulao flexvel), no seria a verdadeira explicao para a exacerbada fragmentao, fluidez e caos patente da vida moderna? No seria o novo regime de acumulao mundial financeirizada, o verdadeiro esprito da acumulao flexvel e, portanto, da prpria globalizao ? Numa breve passagem, ao tratar do capital financeiro como sendo um poder coordenador da acumulao flexvel, Harvey prev (em 1989, portanto pouco depois do crash financeiro de 1987), uma maior potencialidade, muito maior do que antes, de formao de crises financeiras e monetrias autnomas e independentes,apesar de o sistema financeiro ter mais condies de minimizar os riscos atravs da diversificao e da rpida transferncia de fundos de empresas, regies e setores em decadncia para empresas, regies e setores lucrativos (Harvey, 1992: 155).

E observa:Boa parte da fluidez, da instabilidade e do frenesi pode ser atribuda diretamente ao aumento dessa capacidade de dirigir os fluxos de capital para l e para c de maneiras que quase parecem desprezar as restries de tempo e de espao que costumam ter efeito sobre as atividades materiais de produo e de consumo. (Harvey, 1992: 155)

O que a dcada de 1990 iria demonstrar era o poder exacerbado do capital financeiro como o coordenador da acumulao flexivel. O conceito de mundializao financeira como sendo o ncleo orgnico da mundializao do capital iria traduzir tal percepo heurstica. Se uma das caracteristicas do capital em processo tornar o mundo a sua imagem e semelhana, o mundo capitalista que surge com a globalizao como mundializao do capital um mundo capitalista particularssimo, imagem e semelhana das54

Globalizao Como Mundializao do Capital

peculiaridades ontolgicas de uma frao do capital que expressa com maior desenvoltura a prpria forma de ser do sujeito capital (o capital financeiro). claro que a flexibildade o ser-precisamente-assim do capital em geral. Mas o capital financeiro que expressa com mais desenvoltura - e negatividade - essa flexibilidade do capital em geral, acentuando, como ressaltou Harvey, o novo, o fugidio, o efmero, o fugaz e o contingente da vida moderna, em vez dos valores mais slidos implantados na vigncia do fordismo. (Harvey, 1992:161).

O Que o Capital: Um Excurso Onto-MetodolgicoAo dizermos lgica do capital no salientamos apenas a dimenso da economia, como alguns interpretes liberais podem apreender. Na viso liberal, a ciso entre economia e poltica (e outros dimenses do ser social) que impede de apreender o verdadeiro sentido do capital como sujeito do processo de modernizao. Ora, o capital , antes de tudo, uma relao social de produo (e reproduo) da vida material, complexa e articulada, voltada para a valorizao do valor (ou seja, a acumulao perptua de riqueza abstrata) . um modus vivendi, o que significa considerar a srie de dimenses reprodutivas sciometablicas voltadas para sustentar a lgica do sujeito automtico, insacivel, da acumulao de riqueza atravs da produo de mercadoria (Marx, 1985). Depois, o capital um modo de controle social, capaz de constituir (e reconstituir), de modo particular, a totalidade social concreta, seja a economia, a poltica, a cultura, etc., na perspectiva de uma sustentao orgnica de seu objetivo essencial - a extrao de sobretrabalho. Por isso que, ao dizermos capital, pressupomos como sua contraparte orgnica e seu elo ntimo, o Estado poltico e sua superestrutura jurdico-ideolgica) (Mszros, 1995).55

Dimenses da Globalizao

Ao salientarmos o capital como o nexo orgnico articulador da sociabilidade moderna, procuramos apreender o capital como uma totalidade concreta e a globalizao como expresso de desenvolvimento tardio e complexo, com novas mltiplas determinaes, desta totalidade concreta que o capital como sujeito da modernizao (Kosik, 1977). por isso que os processos da globalizao s podem ser apreendidos como a interconexo essencial da economia e da poltica (e dizemos mais: da ideologia e da cultura, pois so eles que sedimentam a nova totalidade concreta do capitalismo mundial). Os movimentos da economia so intrinsecamente polticos e os movimentos da poltica possuem uma dimenso material-objetiva intrinsecamente vinculada lgica da acumulao do capital. Ou sendo mais rigoroso - no apenas vinculados, no sentido de uma exterioridade, mas verdadeiramente orgnicos. O capital e o Estado poltico, como forma coesiva e abrangente que sedimentam as condies da valorizao do capital, so elementos profundamente indissociveis (uma verdade obnubilada pela ideologia liberal, com sua estadofobia). Deste modo, ver a globalizao como o desenvolvimento da lgica do capital exige apreender o capital como uma totalidade concreta, com seus momentos predominantes e subordinados, mas numa relao dialtica, onde no podemos reduzir meramente uma determinao a outra. comum, numa anlise impressionista da globalizao, no apreende-la como um sistema orgnico do capital, possuindo, inclusive, em sua forma-Estado poltico, o componente essencial da prpria fenomenologia da globalizao. E mais ainda: no apreender como ncleo determinante do sistema orgnico do capital hoje, o capital financeiro. Muitas vezes perde-se suas conexes essenciais e concretas (o concreto como sntese de mltiplas determinaes, como diria Marx) e tende-se a dissolvelas num catico emaranhado de fatos e acontecimentos. Por

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isso que a apreenso do sentido verdadeiro da globalizao exige, como condio prvia de uma elaborao heurstica rigorosa, uma discusso ontolgica (e metodolgica), o que a maioria dos analistas - sociologos, geogrfos, politicolgos e economistas se recusam, tendo em vista que so, em sua maioria, presas indolentes do neopositivismo vicejante.

O Conceito de Capital Financeiro preciso salientar que o conceito de capital financeiro, o sujeito da globalizao como mundializao do capital, assume uma nova densidade ontolgica nas ltimas dcadas do sculo XX (nos primrdios do sculo XX ele j despontava com algumas determinaes concretas). Na verdade, ele atingido por mutaes qualitativas, decorrente de alteraes quantitativas do sistema do capital. Para apreender a particularidade concreta do desenvolvimento do conceito de capital financeiro, devemos compreende-lo no apenas como sendo a fuso do capital industrial e do capital bancrio (tal como apresentado por Hilferding e Lenin), mas como aquele que se valoriza conservando a forma dinheiro e assume a forma essencial no apenas de capital a juros, mas, principalmente de capital fictcio ou ainda de capital especulativo parasitrio. Por exemplo, segundo Carcanholo e Nakatami, o capital especulativo parasitrio, que ns identificamos com o capital financeiro, resultaria da converso da forma autonomizada do capital a juros quando este ultrapassa os limites do que necessrio para o funcionamento normal do capital industrial. Numa leitura atenta de Marx, os autores observam que tanto o capital produtivo - o nico capaz de produzir diretamente a maisvalia, quanto o capital comercial e o capital a juros so formas funcionais autonomizadas do capital industrial. Ao tratar do capital comercial e do capital a juros observam que, sem a existncia destes dois, a magnitude de valor constituda pelo capital produtivo no seria capaz de produzir a mais-valia na mesma medida. A diviso de

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tarefas, ao especializar-se cada um em funes especficas, os faz mais produtivos, ou melhor, mais eficientes:O volume total de valor resultante da soma dos trs capitais autonomizados no seria capaz de produzir e se apropriar da mesma magnitude de mais-valia se funcionassem sem a diviso de tarefas; se cada uma das empresas tivesse que cumprir todas as funes necessrias ao capital industrial.

E logo a seguir:Apesar do capital a juros (tambm o capital comercial) se apropriar de parte da mais-valia sem produzi-la, ele no parasitrio uma vez que contribui para que o capital produtivo o faa. Permite at que o capital, em seu conjunto, seja mais eficiente. O capital a juros se subordina lgica do capital industrial. Durante determinado estgio de desenvolvimento do capital, o capital produtivo o dominante, subordinado sua lgica tanto o capital a juros como o capital comercial. Esse o estgio da existncia e do predomnio do capital industrial no qual o plo dominante o capital produtivo (Carcanholo e Nakatami, 1999).

Portanto, tanto o capital comercial quanto o capital a juros, em determinado estgio de desenvolvimento capitalista, apareceram como formas funcionais autonomizadas do capital industrial. Nessa perspectiva, existe uma relao de funcionalidade entre as formas autonomizadas do capital industrial. Por exemplo, os bancos, portadores institucionais do capital a juros, atravs da concesso de crditos a outros, particulares ou empresas - crditos ou emprestimos a prazos variados desempenham uma funo central para qualquer economia de mercado e para a economia capitalista em particular. No suficiente produzir, preciso vender, e na expectativa de realizar as vendas

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preciso continuar a produzir. Neste ponto que os bancos desempenham seu papel - eles garantem a continuidade das trocas entre as indstrias e lhes permitem aguardar o momento da validao social da produo pela venda no mercado final. Quanto ao capital ficticio, conceito utilizado por Marx, ele , de certo modo, uma derivao do capital a juros. uma forma mais desenvolvida, prpria de um desenvolvimento ampliado ( e geral) da forma-mercadoria. O desenvolvimento, a expanso, a existncia generalizada do capital a juros no capitalismo desenvolvido transforma todo tipo de rendimento regular em uma receita que parece provir de um capital a juros. A formulao de Marx no captulo XXX do livro III dO Capital clara:A forma do capital produtor de juros faz que toda renda monetria determinada e regular aparea como juro de um capital, derive