[livro] educação comparada

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Brasília, 2012

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Braslia, 2012

EsclarecimentoA UNESCO mantm, no cerne de suas prioridades, a promoo da igualdade de gnero, em todas as suas atividades e aes. Devido especificidade da lngua portuguesa, adotam-se nesta publicao, os termos no gnero masculino, para facilitar a leitura, considerando as inmeras menes ao longo do texto. Assim, embora alguns termos sejam grafados no masculino, eles referem-se igualmente ao gnero feminino.

Os autores so responsveis pela escolha e pela apresentao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organizao. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo deste livro no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCO a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, tampouco da delimitao de suas fronteiras ou limites.

Informaes do ttulo original:International Handbook of Comparative Education ISBN 978-1-4020-6402-9 e ISBN 978-1-4020-6403-6 Springer Dordrecht Heidelberg London New York Library of Congress Control Number: 2008932354 Springer Science + Business Media B.V. 2009

Informaes da verso em portugus: Esta verso em portugus fruto de uma parceria entre a Representao da UNESCO no Brasil e a Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES). UNESCO 2012. Todos os direitos reservados. Coordenao editorial: Maria da Consolao Magalhes Figueiredo Traduo: Elizabeth Bonfanti e Ana Maria Carvalho Reviso tcnica: Clio da Cunha Reviso gramatical e atualizao ortogrfica: Valderes Las Casas Gouveia Moreira e Reinaldo de Lima Reis Reviso editorial e diagramao: Unidade de Comunicao, Informao Pblica e Publicaes da Representao da UNESCO no Brasil

Educao comparada: panorama internacional e perspectivas; volume um / organizado por Robert Cowen, Andreas M. Kazamias e Elaine Ulterhalter. Braslia: UNESCO, CAPES, 2012. 2v. Ttulo original: International Handbook of Comparative Education. ISBN: 978-85-7652-060-3 (volume um) ISBN: 978-85-7652-061-0 (volume dois) 1. Educao Comparada I. Cowen, Robert II. Kazamias, Andreas M. III. Ulterhalter, Elaine. UNESCO IV. CAPES

Representao no Brasil SAUS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6, Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9 andar 70070-912 Braslia DF Brasil Site: www.unesco.org/brasilia E-mail: [email protected]

Setor Bancrio Norte, Quadra 2, Bloco L, Lote 6, 70040-020 Braslia DF Tel.: (55 61) 2106-3500 Fax: (55 61) 2106-3967 Site: http://www.capes.gov.br/

Impresso no Brasil

SUMRIO

Seo 1: Criao e recriao de um campo de estudos 1 Introduo editorial conjunta Robert Cowen e Andreas Kazamias A histria e a criao da educao comparada Robert Cowen Os primrdios modernistas da educao comparada: o tema protocientfico e administrativo reformista-meliorista Pella Kaloyannaki e Andreas M. Kazamias Homens esquecidos, temas esquecidos: os temas histrico-filosfico-culturais e liberais humanistas em educao comparada Andreas M. Kazamias O paradigma cientfico na educao comparada Dimitris Mattheou Teorias do Estado, expanso educacional, desenvolvimento e globalizaes: abordagens marxista e crtica Liliana Esther Olmos e Carlos Alberto Torres Educao comparada na Europa Wolfgang Mitter Anlise de sistemas-mundo e educao comparada na era da globalizao Robert F. Arnove Reflexes sobre o desenvolvimento da educao comparada Val D. Rust, Brian Johnstone e Carine Allaf 13

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Seo 2: Formaes polticas e sistemas educacionais 11 Paideia e politeia: educao e Estado/Estado e sua cultura poltica na educao comparada Andreas M. Kazamias 12 Imprios e educao: o Imprio britnico Gary McCulloch 13 Comparando os discursos sobre educao colonial nos Imprios francs e afro-portugus: um ensaio sobre hibridao Ana Isabel Madeira 14 Educao e formao do Estado na Itlia Donatella Palomba 15 Mudana social e configuraes de retrica: educao e incluso-excluso social na reforma educacional na Espanha contempornea Miguel A. Pereyra, J. Carlos Gonzlez Faraco, Antonio Luzn e Mnica Torres 16 Modernidade, formao do Estado, construo da nao e educao na Grcia Andreas M. Kazamias 17 O Estado desenvolvimentista, mudana social e educao Wing-Wah Law 18 Os Estados em desenvolvimento e a educao: frica John Metzler 19 Variedades de transformao educacional: os Estados ps-socialistas do Centro/Sudeste da Europa e a ex-Unio Sovitica Iveta Silova 20 A Unio Europeia e a educao na Espanha Jos Luis Garca Garrido Seo 3: O nacional, o internacional e o global 21 Introduo: O nacional, o internacional e o global Robert Cowen 22 Quem est passeando pelo jardim global? Agncias educacionais e transferncia educacional Jason Beech 407 197

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Sumrio23 Mobilidade, migrao e minorias em educao Noah W. Sobe e Melissa G. Fischer 24 Fundamentalismos e secularismos: educao e la longue dure David Coulby 25 O duplo significado de cosmopolitismo e os estudos comparados de educao Thomas S. Popkewitz 26 Educao multicultural em um contexto global: diversos temas e perspectivas Carl A. Grant e Ayesha Khurshid 27 Educao para o desenvolvimento internacional Nancy Kendall 28 A OCDE e as mudanas globais nas polticas de educao Fazal Rizvi e Bob Lingard 29 Bancos multilaterais podem educar o mundo? Claudio de Moura Castro 30 Por um panptico europeu: discursos e polticas da UE sobre educao e treinamento, 1992-2007 George Pasias e Yiannis Roussakis Seo 4: Industrializao, economias do conhecimento e educao 31 Introduo editorial: industrializao, sociedades do conhecimento e educao Robert Cowen 32 Industrializao e educao pblica: coeso social e estratificao social Jim Carl 33 Industrializao, economias do conhecimento e mudana educacional: um comentrio sobre a Argentina e o Brasil Mrcia Cristina Passos Ferreira 34 Educao, emprego e treinamento profissionalizante Leslie Bash

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Sumrio

35 O Estado-avaliador como poltica em transio: um estudo histrico e anatmico Guy Neave 36 Da coerncia diferenciao: compreendendo o Espao Europeu de Ensino Superior e Pesquisa (e suas transformaes) Wim Weymans 37 Mamon, mercados e gerencialismo: perspectivas da sia e Pacfico sobre reformas educacionais contemporneas Anthony Welch 38 Aprendizagem continuada e globalizao: por um modelo estrutural comparativo Peter Jarvis 39 Educao na sociedade em rede: reflexes crticas Eva Gamarnikow 40 Educao e desenvolvimento econmico: avaliaes e ideologias Eleni Karatzia-Stavlioti e Haris Lambropoulos

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SEO 1CRIAO E RECRIAO DE UM CAMPO DE ESTUDOS

1 INTRODUO EDITORIAL CONJUNTARobert Cowen e Andreas KazamiasEstamos indo bem...? De certa forma, sim. O campo da educao comparada comeou a crescer novamente na virada do milnio. Textos do final da dcada de 1990 e dos primeiros anos deste novo sculo incluem: ALEXANDER, Robin; BROADFOOT, Patricia; PHILLIPS David (Eds.). Learning from comparing: new directions in comparative education research. Oxford: Symposium Books, 1999; ARNOVE, Robert; TORRES, Carlos Alberto. Comparative education: the dialectic of the global and the local. Lanham, Maryland: Roman & Littlefield, 1999; BEAUCHAMP, Edward R. (Ed.). Comparative education reader. New York: Routledge; London: Falmer, 2003; BRAY, Mark (Ed.). Comparative education. Boston: Kluwer; London: Dordrecht, 2003; BURBULES, Nicholas C.; TORRES, Carlos A. (Eds.). Globalization and education: critical perspectives. New York: Routledge, 2000; CROSSLEY, Michael; WATSON, Keith. Comparative and international research in education: globalisation, context and difference. London: Routledge; New York: Falmer, 2003; KAZAMIAS, Andreas; SPILLANE, M. (Eds.). Education and the structuring of the European space: North-South, centre-periphery, identity-otherness. Atenas: Seirios Editions, 1998; NVOA, Antonio; LAWN, Martin (Eds.). Fabricating Europe: the formation of an education space. Dordrecht: Kluwer, 2002; MEHTA, Sonia; NINNES, Peter (Eds.). Re-imagining comparative education. New York: Routledge; New York: Falmer, 2004; SCHRIEWER, Jurgen (Ed.). Discourse formation in comparative education. Frankfurt-am-Main: Peter Lang), 2000; STROMQUIST, Nelly P.; MONKMAN, Karen (Eds.). Globalization and education: integration and contestation across cultures. Lanham: Rowman & Littlefield, 2000. E tudo isso sem falar na enxurrada de novos livros publicados no ano passado, ou um pouco antes: um novo livro sobre pesquisa em educao comparada (editado por Bray, Adamson, e Mason); uma coleo de artigos do peridico Comparative Education (editado por Crossley, Broadfoot, e Schweisfurth); um estudo das Sociedades de Educao Comparada, associaes profissionais; e livros recentes de Phillips e Schweisfurth, Donatella Palomba, e Sproge e Winther-Jensen. So inmeros tambm os peridicos, entre os quais citamos: Comparative Education (Reino Unido), Comparative Education Review (EUA), International Review of Education (UNESCO/Hamburgo), Canadian & International13

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Education (Canad), Compare (Reino Unido) e Prospects (UNESCO). H ainda outros peridicos por exemplo, em francs e em espanhol que trazem com frequncia artigos comparativos, ou que oferecem ocasionalmente edies especiais dedicadas educao comparada, como o Propuesta Educativa (Argentina); ou aqueles cujo contedo inteiramente comparativo, como o peridico grego Synkritiki kai Diethnis Ekpaideutiki Epitheorisi (Atenas). O estudo avanado da educao comparada est amplamente institucionalizado em programas de ps-graduao. Por exemplo, nos pases de lngua inglesa no mundo, alguns dos principais centros nos Estados Unidos so: a Universidade de Colmbia, a Universidade Estadual da Flrida, a Universidade de Harvard, a Universidade Estadual de Ohio, a Universidade de Pittsburgh, a Universidade de Maryland, a Universidade Estadual de Nova Iorque, em Buffalo e em Albany, a Universidade de llinois, a Universidade de Wisconsin, a Universidade da Califrnia em Los Angeles, a Universidade da Califrnia do Sul, a Universidade de Stanford, a Universidade Loyola e a Universidade do Hava. Austrlia, Canad, Inglaterra, Nova Zelndia e muitos dos pases anglfonos na frica, especialmente a frica do Sul, tambm oferecem programas de ps-graduao. Na Europa Continental, Alemanha, Blgica, Dinamarca, Espanha, Finlndia, Frana, Grcia, Holanda, Itlia, Malta, Noruega, Portugal e Sucia oferecem cursos especializados em educao comparada. De maneira geral, a institucionalizao da educao comparada vem aumentando, no s na Europa Meridional e no Leste Europeu, mas tambm nos centros universitrios metropolitanos mais antigos, medida que as universidades internacionalizam seus programas e absorvem um mercado de estudantes estrangeiros. Igualmente, em termos de suas redes internacionais e de seus congressos, a educao comparada est indo excepcionalmente bem. Mas como est se saindo intelectualmente? Isto , que tipo de preocupaes e que tipo de trabalho acadmico foi realizado, e vem sendo realizado no campo de estudo denominado educao comparada, basicamente, a partir de uma base ligada universidade? Onde estamos? E para onde vamos? Os dois volumes desta obra so um esforo para discutir sucintamente a situao. Como organizadores, utilizamos diversos princpios. Diversos argumentos orientam a forma como organizamos os volumes, e podem ser resumidos da seguinte maneira: 1. Ambos os volumes argumentam que aquilo que considerado boa educao comparada tem mudado ao longo do tempo. Analisam as agendas acadmicas mutveis, as perspectivas de ateno em transformao e as diferentes linguagens acadmicas utilizadas para construir educao comparada. Perguntam por que isso acontece: por que a educao comparada muda suas preocupaes epistemolgicas, sua leitura do mundo e suas aspiraes de atuar sobre ele? Mostram as maneiras pelas quais a educao comparada responde

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s mutantes polticas e economias de eventos reais no mundo, assim como s correntes intelectuais que so fortes em tempos e locais especficos. A consequncia que podem ser identificadas diversas educaes comparadas, tanto em um momento especfico quanto ao longo do tempo, e essa educao comparada continua a mudar com as novas leituras do mundo que emergem atualmente. 2. H algumas coisas que esta obra no , nem pretende ser. No uma enciclopdia que cobre o universo da educao comparada (e os acadmicos dentro dele). No oferece estudos de caso nacionais sobre educao, algo que j estava fora de poca h 50 anos. Em especial, os volumes no assumem que o Estado-nao seja a unidade de anlise correta em educao comparada. A obra tambm no embarca em uma srie de estudos de caso sobre a condio da educao comparada na Argentina, no Brasil, no Canad, na Dinamarca etc., nem lamenta que a educao comparada seja relativamente frgil no Sul ou no Leste, nem insiste em que a tarefa desta publicao seja corrigir esse desequilbrio. Construir uma educao comparada no Sul para o Sul e do Sul um pouquinho mais complexo do que isso, ainda que o clich poltico do Sul tenha sido decifrado. 3. Portanto, a presente obra um relato de como um campo de estudo foi, e est sendo considerado dentro das polticas de seu tempo. Analisa a construo de uma educao comparada nos sculos XIX e XX, principalmente no Volume 1. O Volume 2 mostra quo vigoroso o campo atual dentro das novas polticas da atualidade. 4. Esta obra uma importante declarao da condio de um campo; no uma declarao por modismo. Assim, o futuro da educao comparada tratado, especialmente no Volume 2, mas no com a convico precipitada de que o futuro tem a ver com o choque de civilizaes; ou de que o futuro seja mais globalizado; ou de que necessrio apenas melhor entendimento de uma perspectiva intelectual (identificada e especfica). 5. Este livro produzido em um momento crucial da histria dessa rea do conhecimento e, portanto, deixa aberto seu futuro, oferecendo uma ampla diversidade de maneiras para falar sobre esse futuro. A obra dividida em dois volumes, cada um com quatro sees. No Volume 1, a Seo 1 mostra a construo da educao comparada como um discurso, incluindo a evoluo da educao comparada como um discurso acadmico, at o final da dcada de 1970. A seo destaca tambm que, como conceitualizada nos sculos XIX e XX, a educao comparada era um projeto ideolgico para ao no mundo. No sculo XIX, formuladores de polticas utilizavam, na prtica, uma perspectiva comparada para construir uma nova tecnologia social: educao bsica de massa e sistemas nacionais de educao. Assim, o tema mais amplo desta seo refere-se maneira pela qual o campo de

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estudo v seu passado no contexto poltico. O caminho direto para compreender a seo v-la como a identificao e a anlise de paradigmas epistemolgicos especficos que, ao longo do tempo, conceitualizaram a educao comparada no contexto social. A Seo 2 trata do mundo e do mundo da educao comparada aps a dcada de 1980: o repensar sobre os pressupostos e abordagens clssicas cuja construo foi descrita e analisada na Seo 1. A Seo 3 dedicada, em parte, ao tema da ao comparada ou seja, quelas formas de atuar sobre o mundo e sobre o mundo da educao fundamentadas em uma avaliao comparativa do mesmo. Os temas estratgicos que os autores foram convidados a abordar em suas descries e em suas anlises foram: (a) qual foi a agenda poltica para as atividades; (b) qual foi a viso do sistema pblico internacional que informou a ao poltica e a reforma educacional; (c) qual foi a viso da relao entre cultura, economias e educao; e (d) que conceito de educao comparada passou a ser visvel? A Seo 4 trata da transio da ansiedade em torno das relaes entre sistemas educacionais e economias industriais nos sculos XIX e XX para as relaes de sistemas educacionais e as economias do conhecimento que surgiram no final do sculo XX e no incio do sculo XXI. Portanto, esta seo discute alguns dos padres clssicos de reformas de sistemas educacionais, de modo a torn-los mais relevantes para a industrializao e para as contestaes e resistncias e para padres de educao muito diferentes que vieram como consequncia. No entanto a preocupao no meramente histrica. O mesmo imperativo econmico que causou tanta perplexidade nos sculos XIX e XX est adotando uma denominao repetitiva contempornea sob as rubricas de globalizao e economias do conhecimento, informadas ocasionalmente por vises do neoliberalismo. Qual a natureza do debate contemporneo? No Volume 2, a nfase sobre como o mundo mudou e como essa mudana afetou modos de pensar em diversas formas de educao comparada. Portanto, exemplifica algumas das preocupaes e das concepes mais importantes da educao comparada: transies rpidas nas sociedades; nova nfase no ensino e na aprendizagem; busca pela recuperao, pela reinveno e pela criao de identidade e de identidades futuras, incluindo ideias de ps-colonialismo e o sentido atual daquilo que constitui globalizao. Dessa forma, o Volume 2 evita com muita cautela um tratamento convencional de sistemas de educao e descries de reformas educacionais em muitos Estados-nao ou a descrio de sistemas educacionais setor por setor: elementar, secundrio, formao de professores e assim por diante; e evita as descries comparativas de tendncias e processos educacionais pas por pas ou com base em regies. Nessa estrutura geral, a Seo 5 do Volume 2 discute o ps-colonialismo. Esta uma rea crescente na educao comparada, na interseo entre cincia poltica,

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estudos literrios, teoria lingustica e histria. As preocupaes centrais so aquelas ligadas a identidade e idioma, formao e reorganizao de polticas e do Estado e sua cultura poltica, termos ps-coloniais de contestao discursiva, mudanas na natureza do Estado, e novas teorias de direitos. Esta no apenas uma rea extremamente interessante para a explorao comparativa: tambm uma rea difcil de novas teorizaes. E pedimos a Elaine Unterhalter cuja experincia sobre a frica do Sul e seu interesse em gnero, teoria de direitos, teoria das capacidades, e desenvolvimento acompanham o tema do ps-colonialismo que editorasse esta seo dos dois volumes. A Seo 6 aborda estudos comparativos sobre a pessoa educada, tal como ela construda por meio da escolarizao, e culturas pedaggicas em diferentes momentos e em diferentes localidades. Assim, esta seo explora a reviso de tradies de conhecimento e a construo o fazer e o adotar da identidade pedaggica, um tema que tem uma longa histria na educao comparada, mas que vem sendo revitalizado por meio do trabalho de acadmicos tais como Basil Bernstein e Tom Popkewitz, de feministas e defensores de identidades posicionais tais como os negros norte-americanos, e alguns especialistas em currculo. Tendo em vista que a natureza dos locais de educao se altera na modernidade recente, a questo das culturas educacionais e identidade pedaggica torna-se vigorosamente desconectada de noes de cidadania, e cada vez mais vigorosamente vinculada economia ou religio. Dessa forma, a conceitualizao de temas de cultura, conhecimento e pedagogias vem mudando rapidamente, e uma educao comparada do futuro deve desenvolver novas maneiras de analisar o tema da identidade. As Sees 7 e 8 perguntam quais sero os caminhos futuros. Aps as Sees 1 a 6, perguntam: h algo mais a ser discutido? A resposta sim. Os volumes terminam com um conjunto de propostas novas para novas concepes de educao comparada.

2 A HISTRIA E A CRIAO DA EDUCAO COMPARADARobert CowenMax Eckstein e Harold Noah no sabem, mas h anos eu gosto de ambos, a nvel pessoal. O que mais me sensibilizou foi terem sido eles os primeiros na comunidade da educao comparada a receber-me afetuosamente nos Estados Unidos, onde, para minha surpresa, fui ensinar sociologia e educao comparada em uma boa universidade, no curso de ps-graduao. Em termos profissionais, eles anteriormente j haviam resolvido um de meus problemas como estudante: onde existe uma histria da educao comparada? A resposta estava l, em seu texto clssico (NOAH; ECKSTEIN, 1969). Nesse trabalho, as origens dessa rea do conhecimento estavam estabelecidas com clareza exemplar. As notas de rodap eram precisas e revelavam a profundidade das pesquisas realizadas. Considerando minha inteno de especializar-me em educao comparada, foi para mim um imenso alvio constatar que havia uma histria e havia tambm aquele maravilhoso relato no livro de Bereday (1964) sobre acadmicos em outros pases, suas universidades e seus departamentos. A educao comparada existia e tinha uma histria. Havia mais ofertas de trabalhos em sociologia, mas a educao comparada era, sem dvida, um tema mais atraente. Eu poderia fazer carreira. A histria dava-me essa legitimidade. E agora, algumas dcadas mais tarde? Agora que estamos todos legitimados, em que sentido existimos historicamente? A primeira dificuldade o fato de termos uma grande parte da histria ainda no conhecida, e de no dispormos de mo de obra para torn-la visvel. Temos arquivos em universidades importantes, mas no h compensaes bvias suficientes para que jovens acadmicos empreendam a tarefa de pesquis-los. Temos contribuies individuais, no publicadas, admirveis sobre a histria desse campo, como as de Peter Hackett e Richard Rapacz, mas at agora ningum reuniu essas correspondncias (nos dois sentidos). Gita Steiner-Khamsi e outros deram pelo menos um primeiro passo na pesquisa sobre a histria oral, algo que obviamente deve ser retomado o mais rapidamente possvel, pela Sociedade de Educao Comparada na Europa. No entanto, mais uma vez, o problema inicial a dificuldade que se associa carreira para algum ser identificado como especialista na histria da educao comparada. A segunda dificuldade o imenso esforo necessrio para manter em andamento um desses projetos histricos srios: um aspecto discutido com extrema clareza na19

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seo de Agradecimentos que abre o livro Common Interests, Uncommon Goals (MASEMANN; BRAY; MANZON, 2007). H problemas muito prticos na atividade de escrever histrias a maneira pela qual devem ser escritas quando se trabalha com seriedade em pesquisa histrica. Miguel Pereyra, por exemplo, vem trabalhando seriamente e h muito tempo na anlise de Kandel como acadmico na histria da educao comparada. No entanto, a busca por material referente a Kandel envolveu grandes viagens e despesas que s podem ser enfrentadas com grande esforo por um acadmico em meio de carreira, mas h pouco apoio estrutural para uma pesquisa histrica como essa. A terceira dificuldade que, devido invisibilidade de um grande volume de informaes, simplesmente no temos a densidade de informaes necessria para compor uma histria consistente. impressionante o volume de material necessrio para garantir um relato histrico de alto nvel. O trabalho de Dalrymple em The Last Mughal (2007), to brilhantemente contextualizado, depende da possibilidade de um conjunto completo de informaes do arquivo nacional tornar-se disponvel. O trabalho de Herman em The Scottish Enlightenment (2006) depende de uma slida bibliografia elaborada a partir de textos anteriores, especializados e detalhados. Histrias importantes, sejam elas de autoria de Norman Davies (1997) ou de Tony Judt (2007), baseiam-se em bibliografias cujas referncias equivalem extenso de todo um captulo de um ensaio. Um contra-argumento bvio poderia ser apresentado: esse um trabalho de investigao central histria (embora essa seja uma expresso curiosa, tendo em vista os temas que os historiadores estudam atualmente). E, ainda de acordo com o contra-argumento, pode-se afirmar que a comparao injusta, uma vez que estamos falando de histrias de campos de estudo. Contudo, esta ltima proposio no convincente, tendo em vista textos como o livro The Sociology of Philosophies, de Randall Collins (1998), o livro de Friedrichs (1970) sobre sociologia, ou mesmo uma monografia como a de Bartholomew (1989), que trata de um campo de estudo sobre a formao da cincia no Japo. No momento, simplesmente no dispomos de material suficiente para ir alm do imenso volume de trabalho j envolvido na organizao dos artigos nesta seo do livro. admirvel o aparato acadmico de todos os captulos desta seo, e em alguns deles, esse aparato acadmico surpreendente. No entanto, ainda nos falta material. O problema tambm mais grave do que isso porque, mais cedo ou mais tarde, uma histria da educao comparada haver de tornar-se uma histria comparativa da educao comparada. Ainda estamos um pouco distantes disso, embora seja importante lembrar que a histria da educao comparada nestes volumes no se limita primeira seo. A leitura dos captulos das outras sees dos volumes Larsen, sobre histria; Steiner-Khamsi e sua conceituao do desenvolvimento da educao comparada; a

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explorao e o estudo da educao comparada no Leste da sia, esquematizada por Wang e Dong e Shibata; o conceito de vozes levantado por Mehta; os mapeamentos de Paulston; a anlise de Popkewitz levam-nos a pensar nas possibilidades e nas temticas de uma potencial histria comparativa desse campo de estudos. H tambm o receio do choque que vir mais tarde, concluda a leitura dos dois volumes, quando percebermos que no temos, em verso impressa, uma histria sria da educao comparada no Brasil ou na Argentina, apesar da importncia de Sarmiento, na Argentina, com suas vises polticas e sua impressionante educao comparada prtica, ou da importncia de Ansio Teixeira e suas conexes internacionais na histria educacional brasileira. (Sem dvida, h em nossos peridicos especializados artigos sobre esses dois autores, oferecendo boas sugestes sobre em que direo uma histria deve ir, mas justamente a isso que me refiro: temos artigos e sugestes; e no temos histrias).1 Nem chegamos a reunir de maneira sria as histrias individuais da educao comparada na Alemanha, na Frana, na Itlia e assim por diante. Embora, mais uma vez, em pelo menos trs captulos de livros ou artigos escritos por Wolfgang Mitter (um deles encontra-se publicado no Volume 2) seja possvel encontrar indicaes para uma histria comparada mais completa. Portanto, sejamos otimistas como uma criana animada e feliz. Vamos supor que uma fundao importante, como a Gulbenkian ou a Hoover, decida que vale a pena financiar uma histria comparativa dessa subrea do conhecimento. Alm de criar um Conselho Consultivo composto por acadmicos de nvel snior, como Eckstein, Noah, Kazamias, Mitter e Rust, o que gostaramos que nossa equipe de verdadeiros pesquisadores levantasse como evidncias para esta suposta histria, de modo que nosso material para escrev-la se tornasse cada vez mais profundo? Quase certamente, seria necessrio rever a histria de outros campos de estudo, inclusive o do estudo comparativo (SCHRIEWER, 2006). Seria necessrio dar visibilidade s mulheres, por exemplo, Ann Dryland, Madame Hattinguais: elas esto na histria, mas no esto nas nossas histrias. Desconfio que tambm seria necessrio dar um sentido mais completo aos pressupostos metaepistmicos de diversas educaes comparadas em diversos pases, por exemplo, o efeito que a sociologia estrutural-funcionalista nos Estados Unidos exerce sobre a educao comparada americana, mas a relativa falta de efeito da Escola de Frankfurt; o medo da sociologia, que caracteriza a escola culturalista, mas no Lauwerys, no Instituto de Educao e no Kings College, em Londres, no final da dcada de 1950 e no incio da dcada de 1960; a sbita mudana no vocabulrio, que inclui a palavra internacional como qualificativo da palavra comparada, ou justaposta1. Nota de reviso tcnica da traduo (NRTT): Em relao ao Brasil, h um estudo clssico de um grande educador brasileiro que foi Loureno Filho. LOURENO FILHO, M. B. Introduo ao estudo da escola nova. So Paulo: [s.n.], 1963.

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a ela; e os motivos que levam a uma reviravolta lingustica ou a uma reviravolta ps-moderna, ou ainda o novo vocabulrio que envolve uma reviravolta geogrfica e um certo nmero das diversas cincias sociais, inclusive uma aluso a esta ltima reviravolta dentro da educao comparada. Alm disso, surpreendentemente, no temos um relato preciso, do tipo produzido por um historiador, sobre a vida de George Bereday ou de Joseph Lauwerys e seu trabalho na UNESCO, seus vnculos com Piaget, com o BIE, com Teixeira e com Hiratsuka, no Japo. John Bereday e Lauwerys estabeleceram vnculos entre pessoas e ideias atravs de culturas e continentes e, por razes bastante justificveis inclusive, seu impacto sobre suas prprias instituies, sobre as sociedades de educao comparada e sobre geraes de estudantes de cursos de ps-graduao, assim como suas impressionantes habilidades como palestrantes, so muito conhecidos no campo de estudo; mas, indiretamente, levantam uma questo mais ampla. No compreendemos nossas prprias iconografias. Por exemplo, Sir Michael Sadler foi, evidentemente, um excelente funcionrio pblico e um lder na rea da educao e, pode-se dizer, um ser humano bastante agradvel. timo. Mas ns lhe atribumos uma espantosa importncia na educao comparada, embora aquele seu famoso ensaio (SADLER, 1964) tenha causado muito mais confuso do que apresentado solues. No entanto, Sadler est sempre presente nas histrias, o que se torna um problema histrico da construo social de nossas iconografias. Sem dvida, uma histria comparativa de nosso campo de estudos investigaria se essas iconografias tambm foram inseridas na evoluo da tradio da educao comparada no Japo, na Alemanha ou na Frana. O paradoxo final, certamente, que, enquanto a evidncia pode tornar-se disponvel, como se j estivesse preparada por meio da estabilizao e do desenvolvimento dos arquivos, bem como transformando os fatos ocultos mais visveis, o mesmo no acontece com os problemas. Em algum ponto desta primeira seo sobre a criao e a recriao de um campo de estudo, Andreas Kazamias que, como historiador, est e sempre esteve profundamente comprometido com a produo de um volume imenso de trabalho sobre a histria do campo de estudo, cita T. S. Eliot. A citao confirma, de maneira sutil e elegante, uma das convices do prprio Andreas: cada gerao deve reescrever sua histria. Essa convico quase nos coloca um paradoxo. As proposies de Eliot e Kazamias criam a ideia de que o futuro que determina o passado. Sim, eu sei que nenhum deles fez essa afirmao. Mas as probabilidades so estimulantes. A citao de Eliot tem repercusses. Nossas histrias contemporneas sobre ns mesmos devem ser revisitadas agora, e devero ser revisitadas novamente e, com frequncia, no futuro.

A histria e a criao da educao comparada

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3 OS PRIMRDIOS MODERNISTAS DA EDUCAO COMPARADA: O TEMA PROTOCIENTFICO E ADMINISTRATIVO REFORMISTA-MELIORISTAPella Kaloyiannaki e Andreas M. Kazamias

IntroduoOs primrdios modernistas da educao comparada (EC) como campo de estudo so convencionalmente ligados ao perodo ps-Iluminismo, no incio e em meados do sculo XIX, especificamente ao trabalho pioneiro de Marc-Antoine Jullien de Paris e aos discursos de formuladores de polticas educacionais, reformadores e administradores na rea da educao na Europa e nos Estados Unidos, como Horace Mann, Calvin Stowe e Henry Barnard, nos Estados Unidos; Victor Cousin, na Frana; e o poeta e inspetor escolar Matthew Arnold, na Inglaterra. Em primeiro lugar, este captulo analisa com certa profundidade as ideias de Jullien sobre a EC sua metodologia, sua epistemologia e sua ideologia , refletidas principalmente em seu trabalho, agora famoso, Esquisse et vues prliminaires dun ouvrage sur lducation compare 1, publicado em 1817, que levou Jullien a ser aclamado como o pai da EC. A concepo de Jullien sobre a EC ser tratada aqui como representante do tema protocientfico humanstico e meliorista na histria desse campo. Em segundo lugar, o estudo analisa mais brevemente aquilo que pode ser identificado como o tema reformista-meliorista na educao comparada, que se refere a discursos sobre educao no exterior, refletidos nos textos relevantes de formuladores de polticas, reformadores e administradores do sculo XIX, como Victor Cousin, da Frana, e Horace Mann, Calvin Stowe e Henry Barnard, dos Estados Unidos da Amrica.

O tema protocientfico e humanista: Marc-Antoine Jullien de ParisO homem, seu trabalho e sua poca Marc-Antoine Jullien de Paris nasceu em Paris em 1775, filho de pais com alto nvel de formao na rea de humanidades (filosofia, idiomas, literatura e1. Nota de traduo (NT): Esquisse et vues prliminaires dun ouvrage sur lducation compare uma obra sobre educao comparada, referenciada neste texto simplesmente como Esquisse.

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cultura clssica). Ainda jovem e por um curto perodo, trabalhou como jornalista para os jacobinos e a Conveno Nacional Francesa, e foi diplomata e legionrio a servio de Napoleo Bonaparte. Viajou por toda a Europa, visitou a Inglaterra e a Esccia; foi tambm ao Egito como comissrio de guerra na expedio de Bonaparte a esse pas. Pela maior parte de sua vida, at sua morte, em 1848, dedicou seu tempo ao estudo da educao e da pedagogia, reas sobre as quais escreveu livros, monografias, ensaios, relatrios e memorandos. Jullien fundou e dirigiu, de 1819 a 1830, o peridico Rvue Encyclopdique ou Analyse raisonne de productions les plus remarquables dans la littrature, les sciences et les arts2, para o qual escreveu, entre outros temas, sobre a educao pblica na Sua, na Blgica e na Espanha. O interesse de Jullien pelo tema da educao comeou muito cedo em sua vida, durante a Revoluo Francesa, e manteve-se at sua morte. Segundo seu bigrafo, R. R. Palmer, Jullien comeou a escrever livros sobre o tema em 1805, quando servia nas Foras Armadas francesas. Como terico da educao, sentia-se particularmente atrado pela ideias pedaggicas dos famosos educadores suos J. H. Pestalozzi e P. E. Fellenberg, cujas escolas visitou na Sua em Yverdun e Hofwyl, respectivamente (PALMER, 1993). Segundo Fraser, em seu prestigioso trabalho de traduo e edio do Esquisse, de Jullien:At sua morte [...] Jullien esteve constantemente envolvido com questes cientficas e culturais. Fundou a Sociedade Francesa da Unio das Naes, e convidava acadmicos internacionais para jantares mensais em sua casa. Viajava continuamente, participando de congressos internacionais, dedicando seu tempo a sociedades de eruditos, e correspondendo-se com estadistas e educadores cujo cosmopolitismo buscava escapar das fronteiras do nacionalismo que se consolidava na Europa (FRASER, 1964, p. 12).

Na vida e no trabalho de Jullien possvel distinguir elementos que, combinados entre si, tiveram efeito sobre suas ideias pioneiras na promoo da episteme (cincia) da educao comparada. Jullien nutria-se tambm com as ideias e o esprito do paradigma de modernidade do Iluminismo, com sua nfase em razo/racionalismo, empirismo, cincia (inclusive cincia social), universalismo, secularismo, progresso e Estado-nao. Embora no fosse previsvel, desenvolveu interesse pelo estudo cientfico da educao. Educao comparada como uma cincia quase positivista Jullien imaginava a educao e, com maior razo, a educao comparada como uma cincia quase positivista (science positivie), anloga anatomia comparada. No Esquisse, explicava:2. NT: Revista Enciclopdica ou Anlise fundamentada das mais notveis produes em literatura, cincias e artes.

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A educao, como todas as outras cincias e todas as artes, composta de fatos e observaes. Portanto, assim como para outros ramos do conhecimento, tambm para esta cincia preciso formar colees de fatos e observaes organizados em grficos analticos que permitam que sejam relacionados e comparados, de modo a deduzir deles certos princpios, determinadas regras, para que a educao possa tornar-se uma cincia quase positivista [...]. Pesquisas sobre anatomia comparada resultaram em avanos na cincia da anatomia. Da mesma forma, as pesquisas sobre educao comparada devem prover novos meios para aprimorar a cincia da educao (FRASER, 1964, p. 40-41).

Para fazer da educao comparada uma cincia quase positivista, Jullien desenvolveu o Esquisse, j mencionado, que consistia de duas partes principais:[a] uma declarao introdutria sobre a avaliao crtica de Jullien do estado da educao nos diversos pases da Europa, e suas prprias ideias sobre como seria possvel melhorar a educao europeia incompleta e defeituosa; e [b] uma srie de questes que pretendiam coletar fatos e observaes, e que eram destinadas a fornecer material para Tabelas de Observaes Comparadas (FRASER, 1964, p. 31).

Por que uma cincia de educao comparada? Assim como seu contemporneo Auguste Comte (1798-1857), filsofo e socilogo cientfico positivista francs, Jullien acreditava que o mtodo cientfico poderia ser aplicado a questes das reas sociais e de humanidades. Portanto, sendo uma cincia positivista, a educao comparada deveria centrar-se em fatos e observaes passveis de serem determinadas de maneira objetiva e coletadas de maneira sistemtica. Segundo Jullien, uma cincia quase positivista de educao comparada, cuja coleta e tabulao de fatos e observaes aplicassem mtodos e tcnicas/instrumentos como aqueles aplicados pelas cincias positivistas e pelas artes mecnicas, seria til para a reforma e o aprimoramento da educao contempornea na Europa. Na introduo do Esquisse, Jullien afirmava que, nos diversos pases da Europa, tanto a educao pblica quanto a educao privada eram incompletas, insuficientes, sem coordenao [...] sem harmonia interna nas diferentes esferas fsica, moral e intelectual nas quais os estudantes deveriam ser orientados. Atribua educao incompleta e defeituosa os males sociais, polticos e morais dos pases da Europa, a corrupo e a degradao de mentes e coraes, que produziu revolues e guerras, a desordem e a deteriorao geral das sociedades europeias. Consequentemente, a educao precisava ser reformada e aprimorada. Em suas prprias palavras:A reforma e o aprimoramento da educao a verdadeira base da edificao social, fonte primria de hbitos e opinies, que exerce poderosa influncia sobre toda a vida so uma necessidade sentida na Europa, de maneira geral, como por instinto. Trata-se de indicar os meios para satisfazer as necessidades da maneira mais segura, mais eficiente e mais imediata (FRASER, 1964, p. 35).

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Segundo Jullien, a abordagem metodolgica que permitiria corrigir os defeitos e as fragilidades da educao e, de maneira geral, a condio da educao e da instruo pblica em todos os pases da Europa seria a elaborao de sumrios analticos de informaes, coletadas por meio de uma srie de questes um questionrio organizada na forma de tabelas de informaes comparadas e classificada segundo ttulos uniformes para permitir anlises comparativas. A responsabilidade pela coleta desses fatos e dessas observaes educacionais, para avaliaes e busca de solues para os problemas educacionais, seria atribuda a homens intelectuais e ativos capazes de fazer julgamentos seguros, (e) com reconhecida conduta moral (FRASER, 1964, p. 36-37; KALOYIANNAKI, 2002, p. 42-43). Jullien articulou da seguinte maneira esse valor reformista-meliorista de sua concepo cientfica quase positivista da educao comparada:Esses sumrios analticos de informaes sobre a condio da educao e da instruo pblica em todos os pases da Europa forneceriam sucessivamente tabelas comparativas do estado atual da Europa em relao a tabelas comparativas da situao educacional desse continente. Seria fcil avaliar aqueles que esto avanando; aqueles que esto ficando para trs, aqueles que permanecem inalterados; quais so, em cada pas, as reas carentes e inadequadas; quais so as causas dos defeitos internos... ou quais so os obstculos aos avanos em relao religio, tica e rea social, e de que forma esses obstculos podem ser superados; por fim, que setores em cada pas oferecem melhorias que podem ser replicadas em outro pas, com as modificaes e mudanas adequadas para as circunstncias e as localidades (FRASER, 1964, p. 37).

Uma perspectiva cientfica quase positivista na educao comparada, tal como vista por Jullien, seria valiosa tambm em relao a outros aspectos. Por um lado, forneceria novos meios para o aperfeioamento da cincia da educao (FRASER, 1964, p. 41). Por outro lado, liberaria o estudo comparativo da influncia de polticas, da onipotncia da religio, do preconceito e do despotismo (KALOYIANNAKI, 2002). E mais, ajudaria a construir naes, como ele argumenta no caso de um estudo comparativo da educao nos 22 cantes da Sua. Sem dvida, segundo Jullien, o estudo comparativo da educao nos cantes da Sua atenderia a um duplo objetivo: em primeiro lugar, dar vida ideia de transferir uns aos outros aquilo que pode ser adequado e til em suas instituies; e em segundo lugar, estabelecer e consolidar a unidade poltica da Sua, por meio do desenvolvimento de uma mentalidade nacional da Helvcia (FRASER, 1964, p. 45-46). A metodologia de Jullien: o questionrio e os indicadores de comparao A metodologia comparativa de Jullien pode ser descrita como emprico-dedutiva, e talvez qualitativa quase etnogrfica. Tinha o objetivo de reunir dados nas palavras de Jullien, fatos e observaes sobre a educao e questes relacionadas, por meio

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de um questionrio que consistia em uma srie de questes sobre seis reas da educao3:(a) ensino primrio e comum; (b) ensino secundrio e clssico; (c) ensino superior e cientfico; (d) ensino normal; (e) educao de meninas; e (f ) educao em relao legislao e instituies sociais. As observaes e os fatos coletados seriam ento organizados em grficos analticos ou tabelas de observaes comparadas que permitiriam uma anlise comparativa e a deduo de certos princpios, determinadas regras, para que a educao pudesse tornar-se uma cincia quase positivista (FRASER, 1964, p. 40).

No Esquisse, Jullien identificou os temas/tpicos educacionais para as seis reas que seriam objeto dos problemas a serem propostos. No entanto, conseguiu concluir questes apenas para as duas primeiras reas: ensino e instruo para os nveis primrio e comum; e ensino secundrio e clssico. Em cada rea, as questes propostas cobriam diversos tpicos e questionamentos da rea da educao. Algumas das questes eram relativamente curtas, buscando extrair dados quantitativos, ou perguntas cujas respostas eram sim ou no; outras eram relativamente longas, e buscavam extrair avaliaes e interpretaes qualitativas. De maneira breve e seletiva, apresentamos a seguir o contedo das questes relacionadas s duas primeiras reas:1. A primeira rea ensino e instruo para os nveis primrio e comum incluam questes sobre: (a) escolas primrias ou elementares (elementary schools): por exemplo, nmero, organizao, manuteno e administrao, diferenas entre as escolas destinadas a crianas de diferentes crenas religiosas, sejam elas gratuitas ou no; (b) estudantes: por exemplo, nmero, idade de admisso, taxas de matrcula; (c) diretores e professores do ensino primrio: por exemplo, nmero, formao, salrios, possibilidades de progressos ou aposentadoria; (d) educao fsica e ginstica: amamentao de crianas, alimentao, vestimentas, sono, camas, jogos, exerccios, caminhadas, cuidados de higiene e dieta, doenas, vacinao e taxas de mortalidade; (e) educao moral e religiosa: por exemplo, desenvolvimento inicial de sentimentos morais, represso de tendncias negativas, influncia de mes de famlia, instruo religiosa, seja ela rida e dogmtica ou interessante e adequada para produzir uma impresso profunda na alma, regulamentaes e disciplina das escolas primrias, punies [...] emulao: utilizada como motivao necessria, ou no? (f ) educao intelectual: por exemplo, desenvolvimento das faculdades mentais, instruo ou aquisio de conhecimento, educao inicial sobre os sentidos e os rgos, objetivos e meios utilizados no ensino, exerccios para a memria, trs faculdades principais: ateno, comparao, raciocnio; (g) educao3. NRTT: A educao bsica no Brasil compreende a educao infantil at os 5 anos, educao fundamental dos 6 aos 14 anos; e ensino mdio dos 15 aos 17 anos. A UNESCO considera os seguintes nveis educacionais: a educao infantil (de 0 a 6 anos), a educao primria (de 7 a 11 anos), educao secundria (de 12 anos at atingir a educao superior, subdividida por Lower Secondary Education, dos 12 aos 15 anos, e Upper Secondary Education, dos 17 aos 18 anos) e educao superior (estgio seguinte ao da educao secundria independente do curso, durao).

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Kaloyiannaki e Kazamiasdomstica e privada: por exemplo, at que ponto a educao tem incio e continuada pelos pais, no seio da famlia, em harmonia com a educao e a instruo fornecidas em escolas primrias e pblicas, ou em contraposio a elas?; (h) ensino nos nveis primrio e comum, em sua relao com o ensino secundrio ou com o segundo estgio, e em sua relao com as intenes da criana: por exemplo, a organizao atual do ensino primrio e comum est baseada em fundamentos suficientemente amplos, slidos e completos para fornecer s crianas das classes pobres e trabalhadoras todos os conhecimentos elementares indispensveis para que possam exercitar e desenvolver suas potencialidades?; e (i) consideraes gerais: por exemplo, a maneira como as crianas so educadas atualmente at os 7 ou 9 anos de idade a mesma praticada em pocas anteriores? Se no, quais so as diferenas entre as novas formas de educar e as formas praticadas antigamente? (FRASER, 1964, p. 53-67). 2. As questes na segunda rea, ensino secundrio e clssico, eram semelhantes s da primeira rea. Buscavam informaes sobre: (a) escolas secundrias (colgios, ginsios, instituies privadas e internatos): por exemplo, nmero, natureza, origem e fundao, organizao, encargos financeiros; (b) estudantes: por exemplo, nmero, idade, diviso em turmas etc.; (c) educao fsica e ginstica; (d) educao moral e religiosa: por exemplo, conhecimento de Deus, oraes dirias, sentimento de benevolncia, coragem, pacincia; (e) educao intelectual: por exemplo, desenvolvimento das faculdades, aquisio de conhecimento ou instruo [...] objetivos/mtodos de ensino [...] livros clssicos [...] exerccios para o desenvolvimento da memria, discernimento ou raciocnio, imaginao [...] frias [...] estilo de redao de cartas [...] estudo da legislao; (f ) educao domstica e familiar em sua relao com a educao pblica; e (g) consideraes gerais e questes diversas (FRASER, 1964, p. 67-82).

Jullien e seu conceito de educao comparada: uma cincia positivista ou humanista? Do ponto de vista privilegiado de uma metodologia emprico-cientfica do positivismo, pode-se afirmar, como de fato se afirmou, que o questionrio de Jullien demasiadamente complexo, demasiadamente longo e tendencioso, no sentido de que os pressupostos de Jullien sobre os objetivos adequados da educao permeavam as questes que props (NOAH; ECKSTEIN, 1969, p. 29). Da mesma forma, sob a mesma perspectiva metodolgica do positivismo, possvel acrescentar tambm que, em muitas partes, as questes propostas no Esquisse so confusas e induzidas, menos preocupadas em registrar fatos e observaes que podem ser determinados de maneira objetiva e coletados de maneira sistemtica, e mais destinados a divulgar e promover as ideias e teorias de Jullien sobre educao. Esses comentrios crticos certamente seriam procedentes, em particular em relao s perguntas confusas, tendenciosas e induzidas, que aparecem com frequncia sob as categorias temticas de educao moral e religiosa e de educao intelectual. Apresentamos a seguir uma seleo de exemplos pertinentes a esses tipos de questo:

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Educao moral e religiosa A instruo religiosa limitada ao ensino e explicao do catecismo, de preceitos, dogmas, cerimnias, formas exteriores? Ou busca penetrar a alma das crianas, dar uma slida fundamentao interna para sua crena religiosa, formar sua conscincia, desenvolv-las e fortalec-las por meio do duplo poder dos hbitos e dos exemplos, do carter moral, da devoo verdadeira, da disposio benevolncia, tolerncia, caridade crist? Existe empenho (de acordo com o sbio conselho do filsofo alemo Basedown) em levar as crianas a entender o lado belo da virtude e o lado ruim do vcio, de modo que se tornem de fato pessoas de bem, e no hipcritas ou seja, que no pensem apenas em seus prprios interesses ao fazerem o bem? Educao intelectual Quais so os objetivos da educao que as crianas normalmente recebem na escola primria? (Na maioria das escolas, a educao est restrita a leitura, escrita e aritmtica? Ou oferece tambm algumas noes bsicas de gramtica, canto, desenho geomtrico, geometria, alm de agrimensura, mecnica aplicada, geografia e histria do pas, anatomia humana, prticas de higiene, histria natural aplicada ao estudo dos produtos agrcolas mais teis ao homem? Sendo essenciais para cada indivduo em todas as condies e circunstncias da vida, todos os elementos dessas cincias deveriam fazer parte de um sistema completo de ensino nos nveis primrio e comum, perfeitamente adequado s reais necessidades do ser humano no estgio atual de nossa civilizao). Aplica-se o mtodo elementar de ensino de aritmtica, praticado com sucesso por M. Pestalozzi em seu instituto de educao, ou qualquer outro mtodo do mesmo tipo, seja em aritmtica ou em outras reas de instruo? De que forma se busca desenvolver e exercitar nas crianas, de maneira progressiva e imperceptvel, em primeiro lugar, o poder da ateno a principal faculdade geradora de todas as demais; em seguida, a faculdade de comparar, ou de estabelecer similaridades; por fim, o raciocnio (so essas as trs faculdades essenciais e fundamentais do conhecimento humano, segundo a distino estabelecida por M. Laromiguire em seu trabalho Lessons of Philosophy)? (FRASER, 1964).

No entanto, para situar a concepo de Jullien a respeito de uma cincia da educao no contexto histrico intelectual cientfico mais amplo do ps-Iluminismo, e mais, levando em conta (a) o background cultural humanstico de Jullien; e (b) que, como mencionado anteriormente, ele nutria-se das ideias, do esprito e da cultura do paradigma de modernidade do Iluminismo, talvez fosse possvel entender sua concepo de educao comparada como uma cincia quase positivista ou seja, no como uma cincia positivista no sentido estrito da expresso, como demonstrado pela natureza do questionrio e dos indicadores de comparao no Esquisse. Considerado stricto sensu, o Positivismo afirma quetodo conhecimento relacionado a fatos baseado em dados positivos da experincia, e sua caracterstica essencial a rigorosa fidelidade ao testemunho da observao e da experincia. E

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Kaloyiannaki e Kazamiasmais, sendo uma ideologia filosfica, o Positivismo material, secular, antiteolgico e antimetafsico. Disponvel em: .

Alm disso, segundo a Wikipdia, medida que se desenvolvia na segunda metade do sculo XX, o Positivismo(a) est centrado na cincia como um produto, um conjunto de afirmaes lingusticas ou numricas; (b) insiste em que, no mnimo, algumas afirmaes podem ser testadas, verificadas, confirmadas ou refutadas pela observao emprica da realidade; e (c) est baseado na convico de que a cincia apoia-se em resultados especficos que so dissociados da personalidade e da posio social do pesquisador. Disponvel em: .

Considerando o exposto acima, a concepo de Jullien a respeito de uma cincia da educao comparada no pode ser considerada compatvel com as concepes cientficas positivistas da educao comparada desenvolvidas na segunda metade do sculo XX por exemplo, as de Harold Noah e Max Eckstein (NOAH; ECKSTEIN, 1969). Tampouco se pode afirmar que seja compatvel com outras concepes cientficas no mesmo perodo do sculo XX, por exemplo, as de Brian Holmes (HOLMES, 1965), George Bereday (BEREDAY, 1964), as da Escola Funcionalista da Universidade de Chicago (ANDERSON, 1961; FOSTER, 1960) ou, sem dvida, as da Stanford World Systems School de anos posteriores (ARNOVE, 1982). No entanto, mesmo assim possvel afirmar que a concepo de Jullien a respeito de uma cincia da educao comparada era compatvel com aquilo a que os franceses e outros europeus por exemplo, os gregos e os alemes se referem como cincias humanas, que em certos aspectos se diferenciam, em termos de metodologia e de disciplinas, das cincias positivistas e de outras cincias emprico-estatsticas. Dois anos aps o surgimento do Esquisse para a educao comparada, Jullien publicou o Sketch for an essay on the philosophy of the sciences4, em que, segundo Palmer,a cincia adquiria o significado de atividade mental de todos os tipos, inclusive tecnologia aplicada, estudos sobre poltica e economia, literatura criativa e belas-artes. No mesmo trabalho, em uma tabela sinptica do conhecimento humano segundo um novo mtodo de classificao, Jullien classificou conhecimento humano como cincias de primeira ordem e segunda ordem. Em cincias de primeira ordem, incluiu as cincias fsicas e cincias prticas, como agricultura, minerao, engenharia e cuidados de sade; e em segunda ordem, incluiu cincias metafsicas, morais e intelectuais, cincias relacionadas mente, histria, psicologia, teologia natural, artes liberais, belas-artes, moralidade prtica e educao (PALMER, 1993, p. 176-178).4. NT: Esboo de um ensaio sobre a filosofia das cincias.

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Ideologicamente, como explicaremos a seguir, Jullien poderia ser caracterizado como um iluminista liberal e um reformador educacional internacional, humanista e cosmopolita. O objetivo de pesquisar de maneira cientfica/epistmica aquilo que considerava uma educao europeia incompleta, moral e intelectualmente falha era melhorar/aprimorar essa educao, reformando-a com base no que considerava serem princpios educacionais desejveis em termos morais, intelectuais e fsicos. Como mencionado anteriormente, o humanista liberal iluminista Jullien considerava a educao como a verdadeira base da edificao social, fonte primria de hbitos e opinies, que exerce uma poderosa influncia sobre toda a vida (FRASER, 1964, p. 35). Acreditava que a educao pode exercer uma influncia decisiva sobre o renascimento intelectual e moral do homem, sobre o bem-estar nacional e sobre a construo das naes (KALOYIANNAKI, 2001). Seu mtodo comparativo a utilizao do questionrio analisado anteriormente buscava mais do que apenas coletar fatos e observaes. Como apontaram Noah e Eckstein, Jullien, em ltima anlise, preocupava-se com problemas de difuso dos conhecimentos sobre educao, especialmente sobre o conhecimento da inovao educacional. Os mesmos autores acrescentaram:Sendo influenciado pelas ideias de Rousseau e Pestalozzi, [Jullien] desejou estimular uma metodologia educacional prtica, centrada na criana, que enfatizasse, entre outras coisas, a educao dos sentidos e a preparao para a vida em sociedade, sempre com uma nfase humanitria (NOAH; ECKSTEIN, 1969, p. 16).

Na verdade, Jullien desejava estimular uma educao humanstica multifacetada, como indicava a nfase que dava em seu questionrio educao moral, religiosa, fsica e intelectual do homem, que, segundo ele, o sujeito sobre o qual atua a educao. Jullien afirma que o homem composto de trs elementos: corpo, corao e mente, que, cultivados e desenvolvidos, constituem para ele os verdadeiros caminhos para a felicidade (FRASER, 1964, p. 48). Seria importante acrescentar aqui que o Esquisse de Jullien e as questes propostas refletiam tambm a influncia humanitria do conde alemo Leopold Berchold, renomado viajante e humanista, e do francs M. Laromiguire, aos quais faz referncia no questionrio, relacionando-os com uma educao que cultiva as faculdades da alma (FRASER, 1964, p. 41, 91, 133-147; KALOYIANNAKI, 2002). E mais, que alguns pesquisadores, Gautherin (1993) e Leclercque (1999), consideram que o trabalho de Jullien constri um mundo humano polifnico, uma vez que, no Esquisse, Jullien vai alm da Europa, e refere-se humanit 5 , a todas as pessoas, ao aprimoramento do ser humano e ao amor pela humanidade, dando assim um carter universal e humanitrio sua abordagem comparativa e s proposies para reforma (KALOYIANNAKI, 2002).5. NT: Humanidade como um todo.

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Um liberal iluminista francs: liberdade, razo, educao No prefcio de seu estudo sobre Jullien, intitulado De jacobino a liberal (1993), R. R. Palmer escreveu:Nascido no ano em que teve incio nos Estados Unidos da Amrica a rebelio armada contra a Inglaterra, [Jullien] testemunhou a queda da Bastilha quando estudava em Paris, juntou-se ao clube jacobino, participou do Reinado do Terror, defendeu a democracia, depositou suas esperanas em Napoleo Bonaparte, voltou-se contra ele, comemorou seu retorno de Elba, tornou-se um liberal franco sob a dinastia Bourbon restaurada, rejubilou-se com a Revoluo de 1830, teve dvidas em relao Monarquia de Julho, saudou a Revoluo de 1848, e morreu algumas semanas antes da eleio de Luiz Napoleo Bonaparte como presidente da Segunda Repblica (PALMER, 1993, p. ix).

E no captulo sobre Jullien como um terico da educao, o mesmo autor observou:Na educao, como em outras reas, [Jullien] passou de jacobino a liberal. A educao, que antes via como parte do processo revolucionrio, passou a ser vista por ele como um substituto para a Revoluo, ou como um meio que permitiria evitar a Revoluo (PALMER, 1993, p. 151).

R. Freeman Butts, um notvel historiador da educao, escreveu:[O Iluminismo] foi uma reao contra a civilizao tradicional do antigo regime na Europa contra a monarquia absoluta, os sistemas econmicos fechados, a rgida estratificao social, o autoritarismo religioso, uma viso de mundo no cientfica, a doutrina do pecado original na natureza humana, e contra a dominao da vida intelectual por concepes de conhecimento medievais. [...] Subjacente a esse protesto havia uma crescente confiana nos poderes do homem, na cincia e na razo humana. Essa idade da razo exortava a convico humanitria em curso de que, assumindo suas opinies, o homem seria capaz de reformar suas instituies como um meio de promover o bem-estar geral. Essas correntes de pensamento contriburam para dar forma aos ideais liberais e democrticos que se disseminavam e que seriam a marca do desenvolvimento do Ocidente (BUTTS, 1973, p. 307).

Seria preciso acrescentar outro princpio bsico do Iluminismo: o conceito de liberdade. A liberdade foi exaltada por J. J. Rousseau, o eminente filsofo poltico e educacional moderno, e pensador do Iluminismo que influenciou Jullien; mas ainda por outro filsofo tambm eminente, o alemo Immanuel Kant. Segundo Kant,o Iluminismo o ressurgimento do homem que sai de sua imaturidade autoinfligida. A chance de uma populao inteira esclarecer-se ser maior [...] se a essa populao for permitido viver em liberdade [...] liberdade de fazer uso pblico de sua prpria razo em todos os assuntos. Disponvel em: .

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Por fim, e nesse caso com relevncia especial, deve ficar explcito aquilo que parece estar implcito nos pargrafos anteriores: na filosofia do Iluminismo, educao, pedagogia, poltica e construo das naes eram conceitos intimamente relacionados. O Esquisse de Jullien e seus outros textos sobre educao, por exemplo, Ensaio geral sobre educao, publicado em 1808, assim como seus diversos trabalhos sobre cultura e civilizao refletem algumas das ideias bsicas do Iluminismo mencionadas anteriormente. Em primeiro lugar, como demonstrado no Esquisse, mas tambm em outros trabalhos, Jullien colocou grande nfase na razo e na forma cientfica de conhecer que, como j indicado, constituam princpios capitais da filosofia do Iluminismo. No primeiro nmero da Rvue Encyclopdique, criada em 1819, lanada logo aps sua criao, Jullien escreveu:Nosso novo peridico deve atender a uma das necessidades de nosso tempo. Seu objeto expor, com preciso e confiana, a marcha e o progresso contnuo do conhecimento humano em relao ordem social e ao seu aprimoramento, que constituem a verdadeira civilizao (PALMER, 1993, p. 178-181).

E em uma edio em 1823, escreveu:Nossa Rvue o primeiro e o nico trabalho a ter realizado, por publicao peridica, a grande ideia baconiana da unidade das cincias, reunidas de forma a assemelhar-se a um Congresso universal, em uma aliana verdadeiramente sagrada para o avano da mente humana em direo ao mesmo objetivo moral e filosfico nas esferas infinitamente variadas nas quais est destinada a operar (DAVIES, 1996, p. 596-598).

Um segundo elemento na teoria da educao formulada por Jullien e compatvel com a filosofia do Iluminismo era sua nfase em regenerao e aprimoramento da educao/instruo pbica (FRASER, 1964, p. 36). Assim como os pensadores franceses do Iluminismo e os polticos liberais franceses e ingleses da poca, Jullien considerava a educao pblica social e politicamente importante para a produo de cidados esclarecidos e patriotas, para o renascimento do homem, para o progresso e o bem-estar das naes. Como observou Palmer, com justa razo: evidente o que levou Jullien a considerar a educao como um aspecto da cincia poltica e social. As ideias expressas no so somente suas. Podem ser encontradas, de forma dispersa, nos planos educacionais formulados antes e durante a Revoluo, entre os quais o de Talleyrand, em 1791, o de Condorcet, em 1792, e um terceiro endossado pelos jacobinos parisienses, em 1793. Lembram as ideias de Jeremy Bentham e dos emergentes Radicais filosficos, na Inglaterra (PALMER, 1993, p. 154).

Outro elemento do Iluminismo presente no repertrio ideolgico educacional de Jullien, que refletia a influncia de Rousseau e de Pestalozzi, foi sua nfase no princpio

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pedaggico de completa liberdade no desenvolvimento de faculdades ou inclinaes naturais e na individualidade de cada aluno. Aps visitar a escola de Pestalozzi em Yverdon, na Sua, em 1810, Jullien enunciou o seguinte princpio pedaggico:O quarto princpio geral [...] consiste em permitir um desenvolvimento pleno das faculdades e das inclinaes originais de cada aluno, medida que revelam e expressam a verdadeira natureza desse aluno [...] A criana cresce e de certa forma instrui-se a si mesma; o professor apenas o meio exterior de desenvolvimento e instruo [...] A educao deve tornar cada criana capaz de alcanar toda a perfeio que permite sua natureza fsica, moral e intelectual (PALMER, 1993, p. 163-164).

Um educador/pedagogo internacional e cosmopolita (cidado do mundo) Desde a dcada de 1940, quando o Esquisse de Jullien foi descoberto acidentalmente, at os dias de hoje, educadores comparativistas vm creditando a Jullien o mrito de ter sido o pioneiro no desenvolvimento da educao comparada. De fato, como observado anteriormente, alguns comparativistas aclamaram Jullien como o pai dessa episteme (cincia) modernista. Em termos gerais, no entanto, os comparativistas deram pouca ateno s ideias pioneiras de Jullien sobre Educao Internacional (EI) um campo epistmico anlogo. A expresso ou o conceito educao internacional foi contaminada por sentidos imprecisos e por uma multiplicidade de definies e interpretaes em relao ao tema (VESTAL, 1994, p. 13). Na literatura recente sobre o assunto, h uma distino entre educao internacional e educao comparada, mas h tambm o reconhecimento de que os dois domnios epistmicos esto relacionados entre si (FRASER; BRICKMAN, 1968). Isto confirmado tambm pelo fato de que, na dcada de 1960, a denominao da recm-fundada Comparative Education Society 6 , sediada nos Estados Unidos, foi alterada para Comparative and International Education Society 7 (JONES, 1971, p. 22). Quando a expresso utilizada por profissionais da rea da educao comparada e internacional, normalmente refere-se aos seguintes interesses e atividades: (a) estudo da educao de outras pessoas em outros pases; (b) intercmbios internacionais e estudos no exterior; (c) apoio tcnico ao desenvolvimento da educao em outros pases; (d) cooperao internacional no desenvolvimento da educao por meio de organizaes internacionais; (e) estudos comparativos e transculturais em diversos temas e disciplinas; e (f ) educao intercultural (VESTAL, 1994, p. 14). Analisado sob essa perspectiva de educao internacional, seria possvel, justificadamente, fazer referncia a Jullien como o precursor da educao

6. 7.

NT: Sociedade de Educao Comparada. NT: Sociedade de Educao Comparada e Internacional.

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internacional. Seus pontos de vista e suas crticas em relao ao estado da educao poca referiam-se aos diferentes pases da Europa, e no s a seu pas: a Frana. Alm disso, como afirma no Esquisse, o que era preciso para a regenerao e o aprimoramento da educao pblica na Europa era a organizao de uma Comisso Especial de Educao,pequena em nmero, composta por homens encarregados de coletar, por seus prprios meios e com a participao de associados correspondentes, cuidadosamente escolhidos, os materiais para um trabalho geral sobre os estabelecimentos e os mtodos de educao e instruo nos diferentes Estados europeus, relacionados e comparados de acordo com este relatrio (FRASER, 1964).

Com uma equipe de associados internacionais cuidadosamente selecionados, essa comisso internacional especial ficaria incumbida de verificar que sumrios analticos de informaes sobre a condio da educao e da instruo pblica em todos os pases da Europa fossem coletados utilizando um mtodo comum, identificado como o questionrio. O objetivo de coletar esses sumrios analticos de informaes era avaliar o estado da educao em cada nao da Europa, para identificar e investigar os aspectos crticos e deficientes em cada pas, e para sugerir melhorias. Falando como terico da educao, porm mais como reformador da educao internacional e pedagogo, Jullien afirmou:Estes sumrios analticos de informaes coletadas ao mesmo tempo e na mesma sequncia, [...] forneceriam sucessivamente, em menos de trs anos, tabelas comparativas do estado atual das naes europeias em relao a este aspecto importante. Seria fcil avaliar aqueles pases que esto progredindo; aqueles que esto ficando para trs, aqueles que permanecem inalterados; quais so as causas de deficincia interna; ou quais so os obstculos influncia da religio, da tica e do avano social, e de que forma esses obstculos podem ser superados; por fim, que setores em cada pas oferecem melhorias que podem ser replicadas em outros pases, com as modificaes e mudanas adequadas para as circunstncias e as localidades (FRASER, 1964, p. 37).

No Esquisse, alm da organizao de uma comisso internacional especial, Jullien propunha que fossem estabelecidos um Instituto Normal de Educao e instituies semelhantes, em diferentes localidades, para a formao de bons professores. O Instituto Normal publicaria um Boletim ou General Journal of Education em diversos idiomas, que difundiria informaes para o aperfeioamento de mtodos instrucionais (FRASER, 1964, p. 39). O internacionalismo de Jullien na educao e, de maneira mais ampla, na cultura, no conhecimento e na civilizao refletia-se em outras atividades e em estudos tericos. Como observou Fraser, j citado:

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Kaloyiannaki e Kazamias[Jullien] viajava extensivamente, participando de congressos internacionais, dedicando seu tempo a sociedades de eruditos, e correspondendo-se com estadistas e educadores cujo cosmopolitismo buscava livrar-se das fronteiras do nacionalismo que se consolidava na Europa (FRASER, 1964).

A respeito dos contatos de Jullien com eminentes figuras internacionais, Fraser cita o presidente americano Thomas Jefferson, que, em uma carta escrita em 1810, acusando o recebimento do General Essay on Education, de autoria de Jullien, elogia-o por sua dedicao educao internacional (FRASER, 1964, p. 12-13). A Rvue Encyclopdique, fundada por ele e na qual atuou como editor, publicou nos Estados Unidos da Amrica, na sia, na frica e na Europa artigos, relatrios, notcias, resenhas de livros e cartas sobre civilizao/cultura (cartas, literatura e artes) e cincias. Em uma das cartas aos correspondentes e colaboradores da Revista, Jullien destacou que o peridico circulava por todos os pases do mundo civilizado, e acrescentou:A ns no basta sermos enciclopedistas; aspiramos especialmente a ser cosmopolitas (cidados do mundo). No consideraramos nossa tarefa cumprida sem que nossas edies apresentassem, da forma mais completa e precisa, o estado das cincias, das letras, das artes, trabalhos intelectuais e aprimoramento moral por toda a superfcie do globo (PALMER, 1993, p. 180-181).

Por fim, seria adequado mencionar que Jullien o internacionalista e o cosmopolita (cidado do mundo) no s merece a caracterizao de apstolo da civilizao, que lhe atribui Palmer, como tambm poderia ser chamado, com justia, de apstolo da paz. Perturbado pelo que percebia como a dissoluo de todos os vnculos religiosos, morais e sociais, corrupo extrema, degradao de mentes e coraes, que produziu revolues e guerras, Jullien enfatizou a necessidade de aprimorar a educao, nacional e internacionalmente, para a cooperao internacional e a coexistncia pacfica (KALOYIANNAKI, 2002). Tornou-se membro da Associao de Amigos pela Paz, sediada em Londres, e em 1883, em sua Letter to the English Nation, escreveu:Nosso ilustre e douto Cuvier, cuja morte ocorrida recentemente foi uma perda profundamente sentida tanto na Inglaterra quanto na Frana, julgou corretamente, em suas elevadas meditaes, que apenas a anatomia comparada e a geologia comparada levariam a avanos nas cincias de anatomia e geologia, que por tanto tempo permaneceram estacionrias. Do mesmo modo, somente a civilizao comparada permitir avanos rpidos em nossa civilizao atual, que, apesar de suas maravilhas brilhantes e grandiosas, ainda preserva os traos profundos e aflitivos da antiga barbrie (PALMER, 1993, p. 205).

Considerando seus pontos de vista sobre o valor de uma reforma na educao e na pedagogia europeias para a regenerao das sociedades da Europa e o aprimoramento da condio humana em geral, na Carta citada acima Jullien

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poderia tranquilamente ter acrescentado a expresso educao comparada ao lado de civilizao comparada como tendo o mesmo significado no avano da civilizao atual. Esse elemento de aprimoramento, que se destaca nas elevadas meditaes do prprio Jullien, assim como em suas propostas e atividades para o avano da civilizao e para a educao comparada e internacional, merece um comentrio adicional. Um reformador humanista cientfico e um meliorista comparativista/internacionalista Relatos histricos sobre a educao comparada como uma episteme (uma cincia) modernista situaram a concepo de Jullien a respeito dessa rea epistmica na primeira fase de seu desenvolvimento, que foi caracterizada como a fase de emprstimo. Outros observadores do sculo XIX que estudaram a educao europeia e que, como comparativistas, foram situados nessa categoria de emprstimo so os reformadores educacionais norte-americanos e europeus Calvin Stowe, Victor Cousin e Horace Mann, mencionados na introduo deste captulo, e sobre os quais voltaremos a falar adiante. Segundo Bereday, a nfase do emprstimo no sculo XIX[...] foi a catalogao de dados educacionais descritivos; na sequncia, as informaes coletadas eram comparadas para tornar disponveis as melhores prticas de um pas para que fossem transplantadas para outros (BEREDAY, 1964, p. 7).

E segundo Noah e Eckstein, o Esquisse de Jullien um exemplo importante de trabalho em educao comparada, motivado por um desejo de receber lies teis de outros pases (NOAH; ECKSTEIN, 1969, p. 15, 21). Por trs da ideia de emprstimo, de transplante das melhores prticas e de receber lies teis estava a ideologia meliorista de aprimoramento. No Esquisse, Jullien utiliza a palavra emprstimo como um provvel benefcio da anlise comparativa quando examina a aplicao de seu instrumento e seus grficos de observao primeiramente nos cantes da Sua. Em suas palavras: A reunio de cantes e a comparao entre eles com relao a esses aspectos dar vida ideia de transferir de uns para outros, aquilo que em cada um pode ser bom e til em suas instituies (FRASER, 1964, p. 46). No mesmo texto, Jullien utiliza tambm a palavra transpor, no sentido de transferir de um pas para outro aquilo que a comparao mostra que pode ser um aprimoramento. Nesse caso, no entanto, seria preciso realizar as modificaes e adaptaes que fossem consideradas adequadas s circunstncias e s localidades. Assim, seria possvel afirmar que, por trs de suas noes de tomar por emprstimo e transferir estaria um aspecto da ideologia meliorista de Jullien semelhante dos reformadores do sculo XIX j mencionados. Mas h outro aspecto do meliorismo de Jullien que o diferenciava dos outros comparativistas adeptos do emprstimo. Em termos simples, era o fato de Jullien ter ideias definidas sobre o tipo de educao e de pedagogia necessrio

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para a regenerao do homem europeu, da civilizao e da sociedade europeias. Isso fica patentemente claro quando se observa o tipo de questes que incluiu no Esquisse, algumas das quais so citadas na seo pertinente acima. Jullien afirmava que a regenerao da sociedade humana somente seria possvel por meio de uma educao moral e religiosa e de uma educao intelectual. Adepto da psicologia das faculdades, a teoria psicolgica dominante poca, Jullien propunha uma educao que desenvolvesse ateno, comparao e raciocnio as trs principais faculdades da mente. Mais importante, como Jullien deixa claro em seu questionrio, seria a educao moral e religiosa, especificamente:[...] primeiro desenvolvimento de sentimentos morais [...] instruo religiosa, rida e dogmtica ou interessante, para causar uma profunda impresso na alma [...] conhecimento de Deus, oraes dirias, sentimento de benevolncia, coragem, pacincia (FRASER, 1994, p. 60, 63, 71).

E na parte introdutria do questionrio, declarava inequivocamente: por meio da volta religio e moralidade, por meio de uma reforma elaborada de maneira ampla, introduzida na educao pblica, que ser possvel revigorar os homens [...], chegado o momento de dar prosperidade das naes e ampla fundao de polticas a necessria estabilidade de religio e moralidade (FRASER, 1964, p. 34-35).

Eplogo: Jullien como um educador comparativista e internacional No temos evidncias de que a metodologia comparativa de Jullien ou suas ideias e propostas sobre a educao comparada e internacional, tal como apresentadas em seu Esquisse, tenham sido adotadas ou tenham exercido alguma influncia significativa sobre o desenvolvimento subsequente dos dois domnios epistmicos relacionados. Como historiadores da educao comparada, concordamos com Stewart Fraser em sua prestigiosa edio avaliando o Esquisse, de Jullien, produzida em 1964. Reiterando o julgamento histrico de Franz Hilker, Isaac Kandel e Nicholas Hans trs comparativistas pioneiros do sculo XX de que Jullien no conseguiu influenciar de maneira significativa o desenvolvimento da educao comparada, Fraser acrescentou:Embora Jullien talvez no seja necessariamente qualificado como o principal pesquisador ou um expoente da pedagogia comparada no sculo XIX, sua obra Esquisse ainda um dos mais importantes produtos nessa cincia. Tecnicamente, e de fato, Jullien nunca desenvolveu integralmente uma metodologia de educao comparada, e tampouco viveu para ver o estabelecimento de suas ideias relacionadas a institutos de educao internacional. No entanto, Jullien tem sido amplamente identificado como um dos primeiros a consolidar em um esboo preliminar essas ideias profcuas que, por sua magnitude potencial, no permitem que seu autor seja ignorado nos dias atuais (FRASER, 1964, p. 117).

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O tema administrativo-meliorista e orientado para polticas da educao comparada internacional: Victor Cousin, da Frana, e Horace Mann, Calvin Stowe e Henry Barnard, dos Estados Unidos da AmricaO Esquisse de Jullien e seus outros trabalhos que trataram da educao comparada e internacional foram alguns dos raros discursos desse tipo surgidos no incio do sculo XIX. Sem dvida, o Esquisse era um trabalho nico quando se tratava de educao comparada. No entanto, como observou William Brickman, um destacado historiador da educao internacional, em 1900, a escassa literatura sobre educao no exterior, que em alemo era definida como Auslandspdagogik, transformou-se em uma torrente de livros e outros trabalhos, como relatrios, observaes de viajantes ou visitantes, reportagens jornalsticas e escritos semelhantes (FRASER; BRICKMAN, 1968, p. 19). Essa produo foi especialmente intensa nos Estados Unidos da Amrica, mas o interesse pela Auslandspdagogik 8 manifestou-se tambm em pases europeus, principalmente na Inglaterra e na Frana. O perodo que se seguiu Revoluo Francesa foi marcado por prodigiosas mudanas polticas, sociais, culturais e econmicas. Segundo o historiador Freeman Butts, j mencionado, em meados do sculo XIX ocorreu uma transmutao no mago da civilizao ocidental que, at ento tradicional, desenvolveu ideias, valores e instituies socioeconmicas e polticas modernas (BUTTS, 1973, p. 295). No centro do projeto de modernidade expresso muito discutida utilizada por Jrgen Habermas para caracterizar essa transmutao, tambm denominada modernizao estavam as ideias do Iluminismo relativas razo e reconstruo da esfera pblica na qual a razo deve prevalecer, organizao racional da vida social cotidiana, cincia objetiva, ao conceito de moralidade e lei universais (HABERMAS, 2007). Um elemento importante do projeto de modernidade do Iluminismo era a reforma da educao. A organizao racional da educao nacional/pblica era vista como condio necessria para a reconstruo da esfera pblica a formao poltica nascente da Nao-estado e a organizao racional da vida social (BUTTS, 1973, p. 301-302). Assim como Jullien em relao a seu interesse pela educao comparada, reformadores europeus e norte-americanos do sculo XIX, em sua condio de administradores e formuladores de polticas educacionais em seus respectivos pases, manifestaram interesse na educao no exterior/internacional, mas principalmente com os objetivos relacionados ao emprstimo educacional, j mencionado nos relatos histricos do desenvolvimento da educao comparada (BEREDAY, 1964, p. 7; NOAH; ECKSTEIN, 1969, p. 16-21). Como observado8. NT: Educao em outras terras.

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anteriormente, o interesse de Jullien pela educao comparada e internacional era, em parte, meliorista, no sentido do emprstimo educacional, mas tinha tambm um significado cientfico: a coleta sistemtica de fatos e observaes comparveis, por meio de um questionrio, permitiria a comparativistas-internacionalistas deduzir, a partir deles, certos princpios, determinadas regras, para que a educao possa tornar-se uma cincia quase positivista (FRASER, 1964, p. 40-41). Para ilustrar este meliorismo no cientfico, no sentido de tomar por emprstimo discursos e prticas de educao internacionais/do exterior, optamos por apresentar as ideias de Victor Cousin, da Frana, e de Horace Mann, Calvin Stowe e Henry Barnard, dos Estados Unidos.

O discurso francs: Victor Cousin se estudo a Prssia, sempre na Frana que estou pensandoVictor Cousin (1792-1867) foi contemporneo de Jullien e, como ele, um intelectual liberal iluminista. No entanto, no h evidncias de que tenha havido colaborao ou comunicao entre eles. Segundo Palmer, Cousin foi mencionado como tema na Rvue Encyclopdique de Jullien, mas no como colaborador (PALMER, 1993, p. 180). Em sua carreira profissional como filsofo-professor na Sorbonne, Cousin foi atrado pela filosofia alem, especialmente pelo idealismo hegeliano que, segundo o prestigioso estudo Victor Cousin as a Comparative Educator, de Walter Brewer (1971), foi introduzido por Cousin na filosofia francesa (BREWER, 1971, p. 23-24). No entanto, no foi apenas a filosofia alem que Cousin tinha em alta estima, e que buscou introduzir na Frana. Tal como outros pensadores e reformadores contemporneos europeus, e, como veremos adiante neste captulo, tambm norte-americanos, Cousin considerava a educao pblica alem muito bem-sucedida e entendia que deveria ser estudada para que algumas de suas caractersticas e prticas fossem reproduzidas. Assim sendo, to logo passou de professor de filosofia a filsofo, administrador e responsvel pela formulao de polticas educacionais, durante a Monarquia de Julho, de Louis Philippe (18301848), tendo servido como membro do Supremo Conselho de Instruo Pblica no ministrio de Guizot e, em 1840, por um curto perodo, como ministro da Instruo Pblica, Cousin viajou para a Alemanha para estudar as instituies e prticas educacionais alems. O resultado de seu tour pela Alemanha foi seu influente trabalho Rapport sur ltat de linstruction publique en Prusse9 (1831), que, segundo o historiador americano E. W. Knight, figura entre os mais importantes de todos os relatrios sobre as condies da educao na Europa durante a segunda quarta parte do sculo XIX (KNIGHT, 1930, p. 117-118).9. NT: Relatrio sobre o estado da instruo pblica na Prssia.

Os primrdios modernistas da educao comparada O relatrio de Cousin sobre a instruo pblica prussiana

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Na parte principal do relatrio, Cousin abordou aspectos da educao prussiana, que considerava adequados para seu objetivo, e que expressou nas seguintes palavras: Se estudo a Prssia, sempre na Frana que estou pensando (BREWER, 1971, p. 50). Muito daquilo que considerava adequado para seu objetivo, Cousin encontrou em um projeto de lei do Conselheiro Privado Johann Wilhelm Suvern, que denominou Lei de 1819. Sobre o sistema pblico prussiano de educao primria, Cousin fez consideraes sobre os seguintes aspectos: a organizao e a administrao, ou o governo da instruo pblica; a capacitao, a designao, a promoo, a remunerao e a punio de mestre do ensino primrio; o dever dos pais em mandar seus filhos para a escola primria, e da parquia em manter uma escola primria s suas prprias custas; os diferentes nveis (ou etapas) do ensino primrio, ou seja, Elementarschulen10 e Burgerschulen11 ; e o contedo do currculo escolar (KNIGHT, 1930). A Lei de 1819, de Suvern, poderia ser interpretada como parte da abordagem poltico-social do projeto de modernidade europeu, j mencionado. Como Brewer havia escrito,[A lei] era uma das ltimas na srie de reformas polticas e sociais destinadas a modernizar e fortalecer o Estado depois que os desastres de 1805-1806 desmembraram a Prssia e a deixaram aos ps da Armada Imperial Francesa (BREWER, 1971, p. 44).

Assim como os reformadores prussianos seus contemporneos, Cousin, um reformador liberal iluminista, considerava que o estabelecimento de um sistema nacional de escolas primrias pblicas constitua uma exigncia bsica, necessria para o desenvolvimento de um Estado nacional francs moderno. No sistema alemo-prussiano de educao primria e na Lei de 1819, que descreveu em termos entusiasmados em seu relatrio de 1831, Cousin ento um formulador de polticas altamente conceituado viu uma estrutura para a reformulao da educao francesa e a formao de um sistema nacional. Em seu relatrio, Cousin identificou e comentou diversos aspectos da estrutura jurdica e institucional do sistema educacional prussiano na Lei de 1819, que a seu ver, poderiam trazer benefcios se fossem transferidos para a Frana. Trs desses aspectos receberam ateno especial. O primeiro, ao qual dedicou espao considervel, tratava do provimento e de mecanismos que Cousin denominou maquinrio e governo da instruo pblica, para a formao de um sistema nacional. Especificamente, Cousin teceu comentrios sobre: (a) a obrigao nacional dos pais de colocar seus filhos na escola primria; (b) o dever de cada10. NT: Escolas elementares. 11. NT: Escolas para a classe mdia.

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parquia em manter uma escola primria s suas prprias custas; (c) uma estrutura administrativa descentralizada, por meio da qual, segundo a Lei de 1819, todas as escolas primrias, nas cidades ou nas reas rurais, devem ter sua prpria gesto particular, seu prprio comit especial de superintendncia; e (d) manuteno, em uma medida justa e razovel da antiga e benfica unio de educao popular com a cristandade e a Igreja, mas sempre sob o controle supremo do Estado e do ministro da Instruo Pblica e dos Assuntos Eclesisticos (COUSIN, 1930, p. 130-155, 189-198). Outro aspecto da educao prussiana, includo na Lei de 1819, que impressionou Cousin foi a organizao da escolarizao em nvel nacional:A lei estabelecia duas etapas ou dois nveis na educao primria, ou seja, Elementarschulen (escolas elementares), para as Burgerschulen (classes mais baixas) e Stadtschulen (escolas para a classe mdia), para os comerciantes e artesos da classe mdia; e em seguida, uma terceira etapa o ginsio , para aqueles que quisessem ingressar em um curso de estudos prticos para a vida comum; ou de estudos universitrios de nvel cientfico, superior e especial, ou profissional (COUSIN, 1930, p. 155-156).

Cousin referiu-se tambm aos dispositivos da lei relacionados ao contedo dos currculos das escolas elementares e de classe mdia, tecendo comentrios bastante positivos. Observou que os dois tipos de escola deveriam oferecer um currculo geral incluindo religio e moral, idioma alemo, histria, geografia, matemtica, fsica, ginstica, desenho e canto. As escolas de classe mdia deveriam ensinar tambm o latim. O ginsio12, por outro lado, deveria oferecer exclusivamente uma cultura clssica e liberal (COUSIN, 1930, p. 155-164). O terceiro aspecto do sistema prussiano de educao que recebeu a ateno de Cousin foi a capacitao de mestres do primrio e o modo como eram designados, promovidos e punidos. Mais uma vez, Cousin citou detalhadamente os dispositivos da Lei de 1819, de Suvern, enfatizando aquilo que j havia mencionado sobre outros aspectos do sistema prussiano, ou seja, o cuidado e o papel ativo do Estado na educao (COUSIN, 1930, p. 167-188). Traduzido para o ingls e publicado na Inglaterra e nos Estados Unidos, o relatrio de Cousin sobre a instruo pblica na Prssia impressionou os reformadores educacionais ingleses e norte-americanos que, na segunda quarta parte do sculo XIX, estavam ativamente envolvidos no desenvolvimento de um sistema pblico nacional de escolas elementares (BREWER, 1971, p. 54-57). Segundo o historiador educacional Knight, nos Estados Unidos da Amrica o relatrio enfatizou a importncia do controle do Estado sobre a educao e a capacitao dos professores nas escolas normais financiadas pelo Estado. Sua

12. NRTT: No Brasil, o ginsio corresponde ao ensino mdio e/ou educao profissional.

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influncia claramente perceptvel, especialmente em Michigan e em Massachusetts (KNIGHT, 1930). Em relao Inglaterra, Knight acrescentou:O peridico Foreign Quarterly Revue recebeu o relatrio de Cousin como uma prova irrefutvel, em funo do argumento slido e substancial de completo sucesso prtico, de que um sistema de educao nacional no era uma utopia, nem uma iluso, no era um fantasma do crebro, imaginado por filsofos sonhadores; mas sim um modo de garantir a instruo elementar de todas as crianas, que pode ser estabelecida e mantida tanto quanto qualquer exrcito ou marinha (KNIGHT, 1930, p. 116-119).

A influncia do relatrio de Cousin na Inglaterra e nos Estados Unidos sentida mais como uma fora que d legitimidade aos esforos em favor da reforma educacional poca, que buscavam estabelecer um sistema pblico nacional de escolarizao elementar/primria. Na Frana, seu pas nativo, o relatrio de Cousin no s forneceu uma lgica que legitimou a reforma da instruo primria como tambm influenciou a aprovao da famosa Lei Guizot, de 1833, cuja redao foi escrita em grande parte pelo prprio Cousin: a lei baseou-se em seu relatrio e lanou os fundamentos para o desenvolv