livro do desassossego - fernando pessoa

Upload: renato-inacio

Post on 06-Jul-2015

334 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

O Livro do Desassossego(Fernando Pessoa sob o heternimo Bernardo Soares)

A decadncia a perda total da inconscincia; porque a inconscincia o fundamento da vida. O corao, se pudesse pensar, pararia. (45) Tenho que escolher o que detesto ou o sonho, que a minha inteligncia odeia, ou a ao que a minha sensibilidade repugna, ou a ao, para que no nasci, ou o sonho, para que ningum nasceu. Resulta que, como detesto ambos, no escolho nenhum, mas, como hei de em certa ocasio, ou sonhar ou agir, misturo uma coisa com outra. (47) No meu corao h uma paz de angstia, e o meu sossego feito de resignao. (48) Mas o contraste no me esmaga liberta-me, e a ironia que h nele sangue meu. (49) Pedi to pouco vida e esse mesmo pouco a vida me negou. (50) E assim sou, ftil e sensvel, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoo que continue e entre para a substncia da alma. Tudo em mim a tendncia para ser a seguir outra coisa; uma impacincia da alma consigo mesma, como uma criana inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende... sou dois, e ambos tm a distncia irmos siameses que no esto pegados. (53) Ns nunca nos realizamos. Somos dois abismos um poo fitando o cu. (54) Se escrevo o que sinto porque assim diminuo a febre de sentir. (54) Fao paisagens com o que sinto. Fao frias das sensaes. (54) Desenrolo-me como uma meada multicolor, ou fao comigo figuras de cordel, como as que se tecem nas mos espetadas e se passam de umas crianas para as outras. (54) Viver fazer meia com uma inteno dos outros. (54) De resto, com que posso contar comigo? Uma acuidade horrvel das sensaes, e a compreenso profunda de estar sentindo. (55) Tudo que sabemos uma impresso nossa, e tudo que somos uma impresso alheia. (55) Um tdio que inclui a antecipao de s mais tdio, a pena, j de amanh ter pena de ter tido pena hoje grandes emaranhamentos sem validade nem verdade, grandes emaranhamentos. (56)

Em nada me pesa ou em mim dura o escrpulo da hora presente. Tenho fome da extenso do tempo, e quero ser eu sem condies. (56) Conquistei, palmo a pequeno palmo, o terreno interior que nascera meu. Reclamei, espao a pequeno espao, o pntano em que me guardara nulo. Pari meu ser infinito, mas tirei-me a ferros de mim mesmo. (56) So horas talvez de eu fazer o nico esforo de eu olhar para a minha vida. Vejo-me no meio de um deserto imenso. Digo do que ontem literalmente fui, procuro explicar a mim mesmo como cheguei aqui. (57) Se eu tivesse o mundo na mo, trocava-o, estou certo, por um bilhete para a Rua dos Douradores. (58) Mas o que so saudades, perante as grandes ascenses? (58) Subia da incerteza do abismo nulo inconstncia do desejo aceso. (59) E as princesas dos sonhos dos outros passeavam sem claustro, indefinidamente (59) A minha imagem, tal qual eu a via nos espelhos, anda sempre ao colo da minha alma. Eu no podia ser seno curvo e dbil como sou, mesmo nos meus pensamentos. (60) Tudo em mim de um prncipe de cromo colado num lbum velho de uma criancinha que morreu sempre h muito tempo. (60) Deus o existirmos e isso no ser tudo. (60) Tornamo-nos esfinges, ainda que falsas, at chegarmos ao ponto de j no sermos quem somos. Porque de resto, ns o que somos esfinges falsas e no sabemos o que somos realmente. O nico modo de estarmos de acordo com a vida estarmos em desacordo com ns prprios. O absurdo o divino. (60) A fraternidade tem sutilezas. (61) H em olhos humanos, ainda que litogrficos, uma coisa terrvel: o aviso inevitvel da conscincia, o grito clandestino de haver alma. (63) A literatura, que a arte casada com o pensamento e a realizao sem a mcula da realidade. (63) Mover-se viver, dizer-se sobreviver. (63) Um hlito de msica ou de sonho, qualquer coisa que faa sentir, qualquer coisa que faa no pensar. (65) Era a ocasio de estar alegre. Mas pesava-me qualquer coisa, uma nsia desconhecida, um desejo sem definio. (65)

Reconheo, no sei se com tristeza, a secura do meu corao. Vale mais para mim um adjetivo que um pranto real da alma. (65) Ah, a saudade do outro que eu poderia ter sido que me dispersa e sobressalta. (66) Nem sei pensar, do sono que tenho, nem sei sentir, do sono que no consigo ter. (66) Divido-me em cansado e inquieto, e chego a tocar com a sensao do corpo um conhecimento metafsico das coisas. (67) Ser a pgina de um livro, a madeixa de um cabelo solto, o oscilar da trepadeira ao p da janela entreaberta, os passos sem importncia no cascalho fino da chuva, o ltimo fumo aldeia que adormece, o esquecimento do chicote do carroceiro beira matutina do caminho... o obscuro, a confuso, o pagamento tudo que no fosse vida... (67) Tudo tanto, tudo to fundo, tudo to negro e to frio. (68) Passo tempos, passo silncios, mundos sem forma passam por mim. (68) Dormia tudo, como se o universo fosse um erro. (68) Somos todos escravos de circunstncias externas. (69) No me choca a interrupo dos meus sonhos, de to suaves que so, continuo sonhando-os por detrs de falar, escrever, responder, conversar at. (69) Passar dos fantasmas da f para os espectros da razo somente ser mudado de cela. A arte, se nos liberta dos manipansos assentes e obsoletos, tambm nos liberta das idias generosas e das preocupaes sociais manipansos tambm. (70) Encontrar a personalidade na perda dela a mesma f abona esse sentido de destino. (70) A nica realidade para cada um a sua prpria alma. (70) E, perante a realidade suprema da minha alma, tudo o que til e exterior me sabe a frvolo e trivial ante a soberana e pura grandeza dos meus mais vivos e freqentes sonhos. Esses, para mim, so mais reais. (71) Mas tambm, h momentos... em que me sinto mais a mim que s coisas externas, e tudo se me converte numa noite de chuva e lama, perdido na solido de um apeadeiro de desvio, entre dois comboios de terceira classe. (72) Coisa arrojada a um canto, trapo cado na estrada, meu ser ignbil ante a vida, fingese. (72) No mais ntimo do que pensei no fui eu (73) Vem-me, ento, um terror sarcstico da vida, um desalento que passa os limites da minha individualidade consciente. Sei que fui erro e descaminho, que nunca vivi, que

existi somente porque enchi tempo com conscincia e pensamento. E a minha sensao de mim a de quem acorda depois de um sono cheio de sonhos reais, ou de quem liberto por um terremoto, da luz pouca do crcere a que se habituara. (73) Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenao a conhecer, esta noo repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando, sonolentamente entre o que se sente e o que se v. (730 to difcil descrever o que se sente quando se sente que realmente se existe, e que a alma uma entidade real, que realmente no sei quais so as palavras humanas com que possa defini-lo. (74) Saber mal de si pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, ter subitamente a noo da mnada ntima, da palavra mgica da alma. Mas essa luz slida cresta tudo, consome tudo, deixa-nos nus at de ns. (74) Um cansao que quer um sono to profundo que o dormir no lhe basta. (74) ...no sei o que sinto, no sei o que quero sentir, no sei o que penso nem o que sou. (75) Verifico que, tantas vezes alegre, tantas vezes contente, estou sempre triste. (75) Assim passeio o meu destino que anda, pois eu no ando; o meu tempo que segue, pois eu no sigo. (77) ...netos do Destino e enteados de Deus, que casou com a Noite Eterna quando ela enviuvou do caos que nos procriou. (77) H um cansao da inteligncia abstrata, e o mais horroroso dos cansaos. No pesa como o cansao do corpo, nem inquieta como o cansao do conhecimento pela emoo. um peso da conscincia do mundo, um no poder respirar com a alma. (78) Viver uma vida desapaixonada e culta, ao relento das idias, lendo, sonhando, e pensando em escrever, uma vida suficientemente lenta para estar sempre beira do tdio, bastante meditada para se nunca encontrar nele. (79) ...no desalinho triste das minhas emoes confusas... Para compreender, destru-me. Compreender esquecer de amar. (81) A solido desola-me, a companhia oprime-me (81) O pudor vale sobretudo para a sensualidade como o obstculo para a energia. (83) O mal todo do romantismo a confuso entre o que nos preciso e o que desejamos... O que doena desejar com igual intensidade o que preciso e o que desejvel... o mal do romntico este, querer a lua como se houvesse maneira de a obter. (86) No se pode comer um bolo sem o perder. (86)

Na esfera baixa da poltica, como no recinto ntimo das almas o mesmo mal. (86) O meu sonho falhou at nas metforas e figuraes. (87) Por mais que pertena, por alma, linhagem dos romnticos, no encontro repouso seno na leitura dos clssicos. (88) E hoje, pensando no que tem sido a minha vida, sinto-me qualquer bicho entre duas estaes suburbanas. (90) Assim sou, quando quero pensar, vejo. Quando quero descer na minha alma, fico de repente parado, esquecido comeo da espiral da escada profunda vendo pela janela do andar alto o sol que molha de despedida fulva o aglomerado difuso dos telhados. (92) Qualquer dos sonhos, o mesmo sonho, porque so todos sonhos. Mudem-me os Deuses o sonho, mas no o dom de sonhar. (93) Sou um poo de gestos que nem em mim se esboaram todos, de palavras que nem pensei pondo curvas nos meus lbios, de sonhos que me esqueci de sonhar at o fim. (95) Toda a vida da alma humana um movimento na penumbra. Vivemos Num luscofusco da conscincia, nunca certos com o que somos ou com o que supomos ser. (96) Quem sou quando sinto? Que coisa morro quando sou? (97) Sou como algum que procura ao acaso, no sabendo onde foi oculto o objeto que no lhe disseram o que . (97) Com pequenos mal-entendidos com a realidade construmos as crenas e as esperanas, e vivemos das cdeas a que chamamos bolos, como as crianas pobres que brincam a ser felizes. (98) Di-me qualquer sentimento que desconheo; falta-me qualquer argumento no sei sobre qu; no tenho vontade nos nervos. Estou triste abaixo da conscincia. (99) ...como se a luz do dia fosse um pano de teatro que se escondesse para mim, o grande cenrio das estrelas. (100) O cansao de todas as iluses e de tudo que h nas iluses a perda delas, a inutilidade de as ter, o ante-cansao de ter que as ter para perd-las, a mgoa de as ter tido, a vergonha intelectual de as ter tido sabendo que teriam tal fim. (100) Tudo o que dorme criana de novo. (102) ... que a maioria pensa com a sensibilidade, e eu sinto com o pensamento. (103)

Que os Deuses todos me conservem at a hora em que esse meu aspecto de mim, a noo clara e solar da realidade externa, o extinto da minha inimportncia, o conforto de ser pequeno e poder pensar em ser feliz. (104) ...perturba-me a perfeita ateno s minhas sensaes, o que me incomoda e me despersonaliza. (106) Um poente um fenmeno intelectual. (106) H sensaes que so sonos, que ocupam como uma nvoa toda a extenso do esprito, que no deixam pensar, que no deixam agir, que no deixam claramente ser. (108) Pobres das esperanas que tenho tido, sadas da vida que tenho tido de ter! So como esta hora e este ar, nvoas sem nvoa, alinhavos rotos de tormenta falsa. (109) Minha alma est cansada de minha vida. (108) Tudo me cansa, at mesmo o que no me cansa. A minha alegria to dolorosa como a minha dor. (109) Entre mim e a vida h um vidro tnue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu no lhe posso tocar. (109) Raciocinar a minha tristeza? Para qu, se o raciocnio um esforo? E quem triste no pode esforar-se. (109) Os meus sonhos so um refgio estpido, como um guarda-chuva contra um raio. (110) Sou to inerte, to pobrezinho, to falho de gestos e de atos. (110) Por mais que por mim me embrenhe, todos os atalhos do meu sonho vo dar a clareiras de angstia. (110) A minha vida como se me batessem com ela. (111) Ver estar distante. Ver claro parar. Analisar ser estrangeiro. (113) Compreender que a gramtica um instrumento e no uma lei. (113) Obedea gramtica quem no sabe pensar o que sente. Sirva-se dela quem sabe mandar nas suas expresses. (114) a ausncia inteira de palavras, o silncio da alma que se reconhece incapaz de agir. (115) querer compreend-lo [o universo] ser menos que homens, porque ser homem saber que se no compreende. (116)

Afinal eu quem sou, quando no brinco? Um pobre rfo abandonado na rua das Sensaes, tiritando de frio nas esquinas da Realidade, tendo que dormir nos degraus da Tristeza e comer o po da Fantasia. (117) ...fico apenas eu, uma pobre criana abandonada, que nenhum Amor quis para seu filho adotivo, nem nenhuma Amizade para seu companheiro de brinquedos. (117) Reconhecer a realidade como uma forma de iluso, e uma iluso como uma forma da realidade, igualmente necessrio e igualmente intil. (118) O sonhador no superior ao homem ativo porque o sonho seja superior realidade. A superioridade do sonhador consiste em que sonhar muito mais prtico que viver, e em que o sonhador extrai da vida um prazer muito mais vasto e muito mais variado do que o homem de ao... o sonhador um emissor de notas, e as notas que emite correm na cidade do seu esprito do mesmo modo que as da realidade... eu nunca fiz seno sonhar, tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida. Nunca tive outra preocupao verdadeira seno a minha vida interior. As maiores dores da minha vida esbatem-se-me quando, abrindo a janela para dentro de mim, pude esquecer-me na viso do seu movimento. Nunca pretendi ser seno um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei ateno. Pertenci sempre ao que nunca est e ao que nunca pude ser. Tudo o que no meu, por baixo que seja, teve sempre poesia para mim. (120,121) vida, nunca pedi seno que passasse por mim sem que eu a sentisse. Do amor apenas exigi que nunca deixasse de ser um sonho longnquo. (121) Ah, no h saudades mais dolorosas do que a das coisas que nunca foram! (121) Em mim foi sempre menor a intensidade das sensaes que a intensidade da conscincia delas. Sofri sempre mais com a conscincia de estar sofrendo que com o sofrimento de que tinha conscincia. (123) A vida das minhas emoes mudou-se, de origem, para as salas do pensamento, e ali vivi sempre mais amplamente o conhecimento emotivo da vida. (123) Todas essas coisas, que no me pertencem, prendem-me a meditao sensvel com laos de ressonncia e de saudade. (124) Senti hoje o mesmo que ontem no sentir lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadver vivo do que ontem foi a vida perdida. (124) Somos quem no somos, e a vida pronta e triste. (125) Que maus soam em ns, na noite de sermos, pelas praias que nos sentimos nos alagamentos da emoo. (125) Quanto morro se sinto por tudo! Quanto sinto se assim vagueio, incorpreo e humano, com o corao parado como uma praia, e todo o mar de tudo, na noite em que vivemos, batendo alto, chasco, esfria-se, no meu eterno passeio noturno beira-mar. (126) Um horror a ter que viver ergueu-se comigo da cama. (126)

O meu corao batia como se falasse. (127) H abatimentos da alma abaixo de toda a angstia e de toda a dor. (128) Viver parece-me um erro metafsico da matria, um descuido da emoo. (128) Nunca fui seno um vestgio e um simulacro de mim... O meu passado tudo quanto no consegui ser. (129) To suprfluo tudo! Ns e o mundo e o mistrio de ambos. (130) As crianas so muito literrias porque dizem como sentem e no como deve sentir quem sente segundo outra pessoa. (140) Somos todos mopes, exceto para dentro. S o sonho v com o olhar. (144) ... mais humano talvez o cabo para o lugar indefinido do mar comum do que a sinda abstrata para o vcuo do mundo. (147) Sentir tudo de todas as maneiras, saber pensar com as emoes e sentir com o pensamento; no desejar muito seno com a imaginao. (151) Busco-me e no me encontro. Perteno a horas crisntemos, ntidas em alongamentos de jarros. Devo fazer da minha alma uma coisa decorativa. (153) A anlise constante das nossas sensaes cria um modo novo de sentir, que parece artificial a quem analise s com a inteligncia, que no com a prpria sensao. (154) O peso de sentir! O peso de ter que sentir! (155) O que sonha possvel tem a possibilidade real da verdadeira desiluso. (159) H venenos necessrios, e h-os subilssimos, compostos de ingredientes da alma, ervas colhidas nos recantos das runas dos sonhos, papoilas negras, achadas ao p das sepulturas dos propsitos, folhas longas de rvores obscenas que agitam os ramos nas margens ouvidas dos rios infernais da alma. (169) Quem sou eu para mim? Sou uma sensao minha. (170) O meu corao esvazia-se sem querer, como um balde roto. Pensar? Sentir? Como tudo cansa se uma coisa definida. Este sentimento de a vida no ser nada conduz ao infinito. (170) puxam-se as sensaes como elsticos, para ver os poros da sua falsa continuidade bamba. (170) H frases literrias que tem uma individualidade absolutamente humana. (172)

So sempre cataclismos do cosmos as grandes angstias de nossa calma. (174) No posso considerar a humanidade seno como uma das ltimas escolas na pintura decorativa da Natureza. (176) A vida deve ser, para os melhores, um sonho que se recusa a confrontos. (177) Temos o que abdicamos, porque o conservamos sonhado, intacto, eternamente luz do sol que no h, ou da lua que no pode haver. (177) Eu mesmo, que sufoco onde estou e porque estou, onde respiraria melhor se a doena dos meus pulmes e no das coisas que me cercam? (180) Tudo quanto fazemos, na arte ou na vida, uma cpia imperfeita do que pensamos fazer. (182) Mais tarde, talvez... Sim, mais tarde... Um outro, talvez... No sei... (183) Sou eu verdadeiramente nesta eternidade casual e simblica do estado da meia-alma em que me iludo. (187) Tenho sono, muito sono, todo o sono! (187) Quando nasceu a gerao a que perteno encontrou o mundo desprovido de apoios para quem tivesse crebro, e ao mesmo tempo corao. (187) Povoamos sonhos, somos sombras errando atravs de florestas impossveis... (189) Tenho saudades de poder ter um dia saudades, e ainda assim absurdas. (191) Vago, e folheio em mim, em o ler, um livro de texto interpeso [sic] de imagens rpidas, de que vou formando indolentemente uma idia que nunca se completa. (191) Ante-falhei com a vida, porque nem sonhando-a ela me pareceu deleitosa. (192) Transbordei de mim e no sei para onde, e a fiquei estagnado e intil. Sou qualquer coisa que fui. No me encontro onde me sinto e se me procuro, no sei quem que me procura. Um tdio a tudo amolece-me. Sinto-me expulso da minha alma. (192) Aborreo-me de mim em tudo. Todas as coisas so at s suas razes de mistrio, da cor do meu aborrecimento. (192) No aspiro a nada. Di-me a vida. Estou mal onde estou e j mal onde penso em poder estar. (192) Assim arrasto a fazer o que no quero, e a sonhar o que no posso ter. (196) O homem vulgar, por mais dura que lhe seja a vida, tem ao menos a felicidade de a no pensar. (196)

Tenho assistido, incgnito, ao desfalecimento gradual da minha vida, ao soobro lento de tudo quanto quis ser. (199) Parece que o Destino tem sempre procurado, fazer-me amar ou querer aquilo que ele mesmo tinha disposto para que no dia seguinte eu visse que no o teria. (199) De tanto pensar-me, sou j meus pensamentos mas no eu. (201) E alguma coisa de lgrimas sem choro arde nos meus olhos hirtos, alguma coisa de angstia que no houve me empola asperamente a garganta seca. (201) H um grande cansao na alma do meu corao. Entristece-me quem eu nunca fui, e no sei que espcie de saudades a lembrana que tenho dele. Ca contra as esperanas e as certezas, com os poentes todos. (201) Os sentimentos doem, as emoes que mais pungem, so os que so absurdos a nsia de coisas impossveis, precisamente porque so impossveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a mgoa de no ser outro, a insatisfao da existncia do mundo. Todos estes meios tons da conscincia da alma criam em ns uma paisagem dolorida, um eterno sol-pr do que somos. O sentir0mos ento um campo deserto a escurecer, triste de juncos ao p de um rio sem barcos, negrejando claramente entre margens afastadas. (202) No fundo da minha alma como nica realidade deste momento h uma mgoa intensa e invisvel, uma tristeza como o som de quem chora num quarto escuro. (203) ...as saudades divinas, as memrias, como esta que informemente me no doa, de um estado anterior, ou feliz por bom ou por outro, um corpo de saudade com alma de espuma, o repouso, a morte, o tudo ou nada que cerca como um grande mar a ilha de nufragos que a vida. (205) Prefiro a derrota com o conhecimento das flores que a vitria no meio dos desertos, cheia de cegueira da alma a ss com a sua nulidade separada. (206) Sonho porque sonho, mas no sofro o insulto de dar aos sonhos outro valor que no o de serem o meu teatro ntimo. (206) Um dia, no fim do conhecimento das coisas, abrir-se- a porta do fundo e tudo o que fomos lixo de estrelas e de almas ser varrido para fora da casa, para que o que h recomece. (208) Meu corao di-me como um corpo estranho. Meu crebro dorme tudo quanto sinto. (209) ...o cansao antecipado de todos os gestos, a desiluso antecipada de todos os sonhos. (209) Sou o intervalo entre o que sou e o que no sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim, a mdia abstrata e carnal entre coisas que no so nada, sendo eu nada tambm. (210)

Quanto mais medito na capacidade, que temos, de nos enganar, mais se me esvai entre os dedos lassos a areia fina das certezas desfeitas. (210) Escrever objetivar sonhos, criar um mundo exterior para prmio. (215) Que tm os outros com o universo que h em mim? (215) Ter opinies estar vendido a si mesmo. No ter opinies existir. Ter todas as opinies ser poeta. (217) Tudo se me escapa. A minha vida inteira, as minhas recordaes, a minha imaginao e o que contm, a minha personalidade, tudo se me evapora. (217) ...e tudo se me confunde num labirinto onde, comigo, me extravio de mim. (219) Nunca aprendi a existir. (219) Busco no encontro. Quero, no posso Sinto-me perdido de mim mesmo, fora do meu alcance. (222) INTERVALO DOLOROSO Sonhar, para qu? Que fiz de mim? Nada. Esttua interior sem contornos. Sonho exterior sem ser-sonhado. (223) Tenho sido sempre um sonhador irnico, infiel s promessas interiores. (223) Tenho uma espcie de dever de sonhar sempre, pois, no sendo mais, nem querendo ser mais, que um espectador de mim mesmo, tenho que ter o melhor espetculo que posso. Assim me construo a ouro e sedas, em salas supostas, cenrio antigo, sonho criado entre jogos de luzes brandas e msicas invisveis. (223) Guardo, ntima, como uma memria do beijo grato... (223) Tenho o corao opresso e as recordaes transformadas em angstias. (225) ...amarelecer-me esbatido para tristeza cinzenta na minha conscincia externa de mim. (227) Ah, quem me salvar de existir? No a morte que quero, nem a vida: aquela outra coisa que brilha no fundo da anci como um diamante possvel numa cova a que no se pode descer. (227) O Verbo, transmuda ritmicamente em sua substncia corprea o mistrio impalpvel do universo. (228) Ler sonhar pela mo de outrem. Ler mal e por alto libertarmo-nos da mo que nos conduz. (229)

A arte um esquivar-se a agir, ou a viver. A arte a expresso intelectual da emoo, distinta da vida, que a expresso volitiva da emoo. O que no temos, ou no ousamos, ou no conseguimos, podemos possu-lo em sonho, e com esse sonho que fazemos arte. (229) Fazer um obra e reconhec-la m depois de feita uma das tragdias da alma. (230) Feliz daquele que no exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe d. (231) Nada me satisfaz, nada me consola, tudo quer haja sido, quer no me sacia. No quero ter a alma e no quero abdicar dela. Desejo o que no desejo e abdico do que no tenho. No posso ser nada nem tudo. Sou a ponte de passagem entre o que no tenho e o que no quero. (231) A fadiga de ser amado, de ser amado deveras! A fadiga de sermos objeto do fardo das emoes alheias. (233) No se subordinar a nada nem a um homem, nem a um amor, nem a uma idia, ter aquela independncia longnqua que consiste em no crer na verdade, nem, se a houvesse, na utilidade do conhecer dela. (234) A alma humana um manicmio de caricaturas. (238) Perco-me se me encontro, duvido se me acho, no tenho se obtive. Como se passeasse, durmo, mas estou desperto. Como se dormisse, acordo, e no me perteno. A vida, afinal, , em si mesma, uma grande insnia, e h um estremunhamento lcido em tudo quanto pensamos e fazemos. (239) Tenho uma indigesto na alma. (239) A sede de ser completo deixou-me neste estado de mgoa intil. (240) A alma humana vtima to inevitvel da dor que sofre a dor da surpresa dolorosa mesmo com o que devia esperar. (241) Todos somos iguais na capacidade para o erro e para o sofrimento. (241) Agir foi sempre para mim a condenao do sonho injustamente condenado (242) Parece-me que sonho cada vez de mais longe, que cada vez mais sonho o vago, o impreciso, o invisionvel. (248) A alma humana um abismo obscuro e viscoso, um poo que se no usa na superfcie do mundo. (251) A vida que se vive um desentendimento fluido, uma mdia alegre entre a grandeza que no h e a felicidade que no pode haver. (251)

O pensamento pode ter elevao sem ter elegncia, e, na proporo em que no tiver elegncia, perder a ao sobre os outros. A fora sem a destreza uma simples massa. (253) Como todos os grandes apaixonados, gosto da delcia da perda de mim, quem que o gozo da entrega se sofre inteiramente. (254) ...a arte a comunicao aos outros da nossa identidade ntima com eles. (256) Ser os arredores de uma vila que no h, o comentrio prolixo a um livro que se no escreveu. No sou ningum, ningum. No sei sentir, no sei pensar, no sei querer. Sou uma figura de um romance por escrever, passando area, e desfeita sem ter sido, entre os sonhos de quem me no soube completar. (258) Poder saber pensar! Poder saber sentir! (258) Estou hoje, deveras, nesse estado intermdio da alma em que nem apetece a vida nem outra coisa. (259) O tdio... sofrer sem sofrimento, querer sem vontade, pensar sem raciocnio. (259) Tenho vontade de no me tirar dali de maneira nenhuma. (260) A arte livra-nos ilusoriamente da sordidez de sermos. (264) Possuir perder. Sentir sem possuir guardar, porque extrair de uma coisa a sua essncia. (264) No o amor, mas os arredores que vale a pena... (265) A maioria dos homens vive com espontaneidade uma vida fictcia e alheia. (269) Cada coisa que foi nossa, ainda que s pelos acidentes do convvio ou da viso, porque foi nossa se torna ns. No tenho alma para trabalhar seno porque posso com uma inrcia ativa ser escravo de mim. (270) Tenho vestgios na conscincia. Pesa em mim o sono sem que a inconscincia pese. (271) A liberdade a possibilidade do isolamento. (272) No toquemos na vida nem com a ponta dos dedos. No amemos nem com o pensamento. (274) Tdios do crepsculo e do desalinho, leques fechados, cansao de ter tido que viver. (275) a obra feita sempre a sombra grotesca da obra sonhada. (277)

Tropeo nos sentimentos reais dos outros. (280) A arte serve de fuga para a sensibilidade que a ao teve que esquecer. A arte a Gata Borralheira, que ficou em casa porque teve que ser. (287) Sem iluses, vivemos apenas do sonho, que a iluso de quem no pode ter iluses. (289) A energia para lutar nasceu morta conosco, porque ns nascemos sem o entusiasmo da luta. (290) ...mas a mim no enganei nem a conscincia do meu enganar. (291) Minha alma uma orquestra oculta; no sei que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, timbales e tambores, dentro de mim. S me conheo como sinfonia. (292) Todo o esforo um crime porque todo o gesto um sonho morto. (292) Todo o prazer um vcio, porque buscar o prazer o que todos fazem na vida, e o nico vcio negro fazer o que toda a gente faz. (293) Em todas as minhas horas libertas uma dor dormia, floria vagamente, por detrs dos muros da minha conscincia, em outros quintais. (299) Foi num mar interior que o rio da minha vida findou. roda do meu solar sonhado todas as rvores estavam no outono. Esta paisagem circular a cora-de-espinhos da minha alma. (299) Tenho quintas nos arredores da vida. Passo ausncias da cidade da minha Ao entre as rvores e as flores do meu devaneio. Ao meu retiro verde nem chegam os ecos da vida de meus gestos. Durmo a minha memria como procisses infinitas. Nos clices da minha imaginao s bebo o sorriso do vinho louro: s o bebo o bebo com os olhos, fechando-os e a Vida passa como uma vela longnqua. (303) Bate-me a vida no corao distante. Eu no fui destinado realidade, e a vida quis vir ter comigo. (303) Saber no ter iluses absolutamente necessrio para se poder ter sonhos. Atingimos assim o ponto supremo da absteno sonhadora, onde os sentidos se mesclam, os sentimentos se extravasam, as idias se comprometem. (304) O que mata o sonhador no viver quando sonha; o que fere o agente no sonhar quando vive. (305) Eu quero, falando numa voz suave e embaladora, como a dum confessor que aconselha, dizer-te o quanto a nsia de atingir fica aqum do que atingimos. (305) H dias em que sobe em mim, como que da terra alheia cabea prpria, um tdio, uma mgoa, uma angstia de viver que s me no parece insuportvel porque de fato a

suporto. um estrangulamento da vida em mim mesmo, um desejo de ser outra pessoa em todos os povos, uma breve notcia do fim. (312) ...S no amor ou no conflito tomamos verdadeira conscincia de que os outros tm sobretudo alma, como ns para ns. (313) Os que pensam com o raciocnio esto distrados, os que pensam com a emoo, esto dormindo, os que pensam com a vontade esto mortos. (314) Minha impresso que o que existe sempre em outra regio, alm dos montes, e que j grandes viagens por fazer se tivermos alma com que ter passos. (315) Por degraus de sonhos e cansaos meus desce a tua irrealidade, desce e vem substituir o mundo. (317) A vida atira-nos como uma pedra, e ns vamos dizendo no ar, Aqui me vou mexendo. (320) O calor, como uma roupa invisvel, d vontade de o tirar. (324) Nada altera nada, e o que dizemos ou fazemos roa s os cimos dos montes, em cujos vales dormem as coisas. (327) Por mais que uma alma se esforce por saber o que outra alma, no saber seno o que lhe diga uma palavra sombra disforme no cho do seu entendimento. (328) Sei eu sequer se sinto, se penso, se existo? Nada: s um esquema objetivo de cores, de formas, de expresses de que sou o espelho oscilante por vender intil. (328) A procura da verdade seja a verdade subjetiva do convencimento, a objetiva da realidade, ou a social do dinheiro e do poder traz sempre consigo, se nela se emprega quem merece prmio, o conhecimento ltimo da sua inexistncia. A sorte quando da vida sai somente aos que compraram por acaso. A arte tem valia porque nos tira de aqui. (329) A memria, afinal, uma sensao do passado... e toda sensao uma iluso. (330) No possumos nem corpo nem uma verdade nem sequer uma iluso. Somos fantasmas de mentiras, sobras de iluses, e a nossa vida oca por fora e por dentro. (330) A loucura chamada afirmar, a doena chamada crer, a infmia chamada ser feliz tudo isto cheira a mundo, sabe a triste coisa que a terra. (331) Meu destino a decadncia. (331) Nunca deixo saber aos meus sentimentos o que lhes vou fazer sentir. Brinco com as sensaes como uma princesa cheia de tdio com os seus grandes gatos prontos e cruis.

Fecho subitamente portas dentro de mim, por onde certas sensaes iam passar para se realizarem. Retiro bruscamente do seu caminho os objetos espirituais que lhe vo vincar certos gestos. (334) O seu olhar tem qualquer coisa de msica tocada a bordo dum navio, no meio misterioso de um rio com florestas na margem oposta. (334) O que somos de mais doloroso o que no somos realmente, e as nossas maiores tragdias passam-se na idia de ns. (335) Trago comigo as feridas de todas as batalhas que evitei. Meu corpo muscular est modo do esforo que nem pensei em fazer. (338) A vida a hesitao entre uma exclamao e uma interrogao. Na dvida, h um ponto final. (340) H um outro outono nas emoes e nas sensaes. (340) Sou todo eu uma vaga saudade, nem do passado, nem do futuro: sou uma saudade do presente, annima, prolixa e incompreendida. (341) ...no tenho sono seno por lembrana, nem saudade seno por desassossego. (343) ...como quando se chama tdio ao desgosto ntimo e espiritual da vacuidade e da incerteza do mundo. (344) A ociosidade de sentir, o desgosto de ter de no fazer nada, a incapacidade de agir... (346) ...quereria que a minha ao pela vida fosse de educar os outros a sentir cada vez mais para si prprios, e cada vez menos segundo a lei dinmica da coletividade. (350) E assim como sonho, raciocino se quiser, porque isso apenas uma outra espcie de sonho. (354) Manh, primavera e esperana esto ligadas em msica pela mesma inteno meldica, esto ligadas na alma pela mesma memria de uma igual inteno. (356) Sim, outrora eu era de aqui, hoje, a cada paisagem, nova para mim que seja, regresso estrangeiro, hspede e peregrino da sua presentao, forasteiro do que vejo e ouo, velho de mim. (357) ...perteno voluptuosamente suavidade da minha dor. (360) No fiz da minha dor um poema, fiz dela, porm, um cortejo. (360) E assim, sem alegria, mas contente, entre as quatro paredes do meu quarto dorme, por inocncia, com o seu pobre papel feio e gasto, toda a angstia insuspeita de uma alma

humana que transborda, todo o desespero sem remdio de um corao a quem Deus abandonou. (360) Separo-me de mim e vejo que sou um fundo dum poo. (361) Cada vez acho menos sabor a tudo, mesmo a no achar sabor a nada. (361) A que cortejos pertenci, que um cansao de no sei que pompas embala a minha saudade? (361) Quando sers tu apenas uma saudade minha? (362) Enrolar o mundo roda dos nossos dedos, como um fio ou uma fita com que brinque uma mulher que sonha janela. (362) Todo o mundo, toda a vida, um vasto sistema de inconscincia operando atravs de conscincias individuais. Feliz, pois, o que no pensa, pois realiza por instinto e destino orgnico o que todos ns temos de realizar por desvio e destino inorgnico ou social. Feliz o que mais se assemelha aos brutos, porque sem esforo o que todos ns somos com trabalho imposto; porque sabe o caminho de casa, que ns outros no encontramos seno por atalhos de fico e regresso; porque, enraizado como uma rvore, parte da paisagem e portanto da beleza, e no, como ns, misto de passagem, figurantes de trajo vivo da inutilidade e do esquecimento. (363) Conservo dessa passagem pelo tmulo da vontade a memria de um tdio nauseado e de algumas anedotas com esprito. (367) O orgulho a certeza emotiva da grandeza prpria. A vaidade a certeza do que os outros vem em ns ou nos atribuem, tal grandeza. Os dois sentimentos nem necessariamente se conjugam, nem por natureza se opem. So diferentes, porm conjugveis. O orgulho existe s, sem acrescentamento da vaidade, manifesta-se no seu resultado como timidez: quem se sente grande, porm no confia em que os outros o reconheam por tal, receia confrontar a opinio que tem de si mesmo com a opinio que os outros pensam ter dele. A vaidade, quando existe s, sem acrescentamento de orgulho, o que possvel porm raro, manifesta-se, no seu resultado, pela audcia. Quem tem a certeza de que os outros vem nele valor nada receia deles. Pode haver coragem fsica sem vaidade; no pode haver audcia sem vaidade. E por audcia se entende a confiana na iniciativa. A audcia pode ser desacompanhada de coragem, fsica ou moral, pois estas disposies da ndole so de ordem diferente, e com ela incomensurveis. (368) Mas tudo afinal entra [em] casa pela janela da observao e pela porta do pensamento. (369) Viver do sonho e para o sonho, desmanchando o Universo e recompondo-o distraidamente confere mais apego ao nosso momento de sonhar. Viver a vida com todos o corpo, perder-se da realidade com todos os sentidos... (370)

As figuras imaginrias tm mais relevo e verdade que as reais. O meu mundo imaginrio foi sempre o nico mundo verdadeiro para mim. Nunca tive amores to reais, to cheios de verve, de sangue e de vida como os que tive com figuras que eu prprio criei. Que leais! Tenho saudades deles porque, como os outros, passam... (371) Do meu quarto andar sobre o infinito, no plausvel ntimo da tarde que acontece, janela para o comeo das estrelas, meus sonhos vo por acordo de ritmo com a distncia exposta para as viagens aos pases incgnitos, ou supostos, ou supostamente impossveis. (376) Considerar a nossa maior angstia como um incidente sem importncia, no s na vida do universo, mas na da nossa mesma alma, o princpio da sabedoria. Considerar isto em pleno meio dessa angstia a sabedoria inteira. No momento em que sofremos, parece que a dor humana infinita. Mas nem a dor humana infinita, pois nada h humano de infinito, nem a nossa dor valem ais que ser uma dor que ns temos. Quantas vezes, sob o peso de um tdio que parece ser loucura, ou de uma angstia que parece passar alm dela, paro, hesitante, antes que me revolte, hesito, parando, antes que me divinize. Dor de no saber o que o mistrio do mundo, dor de no nos amarem, dor de serem injustos conosco, dor de pesar a vida sobre ns, sufocando e perdendo... (378) Saber, com um imediato instinto, abstrair de cada objeto ou acontecimento o que ele pode ter de sonhvel, deixando morto no Mundo Exterior tudo quanto ele tem de real... (379) ... o meu corao estava longe, ainda que batesse perto, senhor falso de um corpo desterrado e estranho. (383) Vivemos todos longnquos e annimos, disfarados, sofremos desconhecidos. A um, porm, esta distncia entre um ser e ele mesmo nunca se revela, para outros, de vez em quando iluminada, de horror ou de mgoa, por um relmpago sem limites, mas para outros, ainda essa a dolorosa distncia e quotidianidade da vida. (384) Saber quem somos no conosco, que o que pensamos ou sentimos sempre uma traduo, que o que queremos o no quisemos, nem porventura algum o quis saber tudo isto a cada minuto, sentir tudo isso a cada sentimento, no ser isto ser estrangeiro na prpria alma, exilado nas prprias sensaes? (384) ... a acuidade dolorosa das minhas sensaes, ainda das que sejam de alegria; a alegria da acuidade das minhas sensaes, ainda que sejam de tristeza. (388) Minha alma est hoje triste at ao corpo. (396) Sem querer, o corao sentia-se e pensar era um estonteamento. (397) ...e sempre, no fundo, vm memrias, com suas saudades ou sua esperana. E um sorriso de magia janela do nada, o que desejamos batendo porta do que somos...(401)

De tal modo me desvesti do meu prprio ser que existir vestir-me. (402) Acordo de mim pela banalidade de haver horas, clausura que a vida social impe continuidade do tempo fronteira no abstrato, limite no desconhecido. (404) Gostava de estar no campo para poder gostar de estar na cidade. Gosto, sem isso de estar na cidade porm, com isso o meu gosto seria dois. (405) Quanto mais alta a sensibilidade, e mais sutil a capacidade de sentir, tanto mais absurdamente vibra e estremece com as pequenas coisas. preciso uma prodigiosa inteligncia para ter angstia ante um dia escuro. A humanidade, que pouco sensvel, no se angustia com o tempo, porque faz sempre tempo; no sente a chuva seno quando lhe cai em cima. (405) Qual de ns pode, voltando-se no caminho onde no h regresso, dizer que o seguiu como deveria ter seguido? (405) O meu isolamento no uma busca de felicidade, que no tenho alma para conseguir; bem de tranqilidade, que ningum obtm seno quando nunca a perdeu mas de nosso, de apagamento, de renncia pequena (406) O convencimento em mim sempre a perda de uma iluso. (407) ...E ento desce em mim, surdamente, lentamente, a saudade antecipada do exlio impossvel (409)