(livro) deleuze, gilles - cinema, a imagem - movimento

Upload: marconi-moura-fernandes

Post on 14-Oct-2015

19 views

Category:

Documents


5 download

TRANSCRIPT

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    1/24

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    2/24

    Gilles Deleuze

    Cinema 1

    A

    imagem-movimento

    Traduo:Stella Senra

    Copyright 1983 Les Editions de Minuit.Ttulo original: Cinema 1 L'Image-Mouvement.Copyright da traduo:Editora Brasiliense S.A.

    Capa:Ettore BottiniReviso:Jos W. S. Moraes Elvira da Rocha

    Consultor desta edio:Incio Arajo

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    3/24

    ndice

    Prlogo.........................................................................................................7

    Teses sobre o movimento Primeiro comentrio de Bergson..........................9

    Quadro e plano, enquadramento e decupagem ............................................ 22

    Montagem ................................................................................................ 44

    A imagem-movimento e suas trs variedades Segundo comentrio de Bergson ............................................................ 76

    A imagem-percepo.................................................................................. 95

    A imagem-afeco: rosto e primeiro plano ................................................ 114

    A imagem-afeco: qualidades, potncias, espaos quaisquer......................132

    Do afeto ao: a imagem-pulso ........................................................... 157

    A imagem-ao: a grande forma .............................................................. 178

    A imagem-ao: a pequena forma ............................................................ 200

    As figuras ou a transformao das formas ................................................. 221

    A crise da imagem-ao............................................................................ 242Glossrio ................................................................................................. 265

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    4/24

    Agradeo a gentileza com que atenderam minhas consultas no decorrer destetrabalho: Ana Maria Mariano, Andreas Hauser, Arlindo Machado, Elisa Kossovitch,Elza Mine, Evando M. de Paula e Silva, Franklin Leopoldo e Silva, Incio Arajo (quetraduziu os ttulos dos filmes citados ao longo do livro), Laymert Garcia dos Santos,Lgia Zogbe, Maria Lcia Santaella Braga, Roberto Romano da Silva, Rodrigo Naves,

    Rubens Rodrigues Torres Filho, Vincius Dantas.ED. Helena e Tiago,pelo carinho com que me ajudaram a revisar as provas.

    Stella Senra

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    5/24

    Prlogo

    Este estudo no uma histria do cinema. uma taxionomia, uma tentativa declassificao das imagens e dos signos. Mas este primeiro volume deve contentar-seem determinar os elementos, e apenas os elementos, de uma nica parte daclassificao.

    Referimo-nos amide ao lgico americano Peirce (1839-1914), porque eleestabeleceu sem dvida a mais completa e a mais variada classificao geral dasimagens e dos signos. Trata-se de uma classificao como a de Lineu em histrianatural, ou, melhor ainda, como uma tabela de Mendeleiev em qumica. O cinemaimpe novos pontos de vista sobre este problema.

    Uma outra confrontao faz-se necessria. Em 1896 Bergson escreviaMatire et

    Mmoire: era o diagnstico de uma crise da psicologia. No se podia mais opor omovimento, como realidade fsica no mundo exterior, imagem, como realidadefsica no mundo exterior, imagem, como realidade psquica na conscincia. Adescoberta bergsoniana de uma imagem-movimento, e, mais profundamente, deuma imagem-tempo, conserva ainda hoje tal riqueza que talvez dela no se tenhamextrado todas as conseqncias. Apesar da crtica muito sumria que Bergson umpouco mais tarde far do cinema, nada pode impedir a conjuno da imagem-movimento, tal como ele a concebe, com a imagem cinematogrfica.

    Nesta primeira parte tratamos da imagem-movimento e de suas variedades. Aimagem-tempo ser objeto de uma segunda parte. Os grandes autores de cinemanos pareceram confrontveis no apenas com pintores, arquitetos, msicos, mastambm com pensadores. Eles pensam com imagens-movimento e com imagens-tempo, em vez de conceitos. A enorme proporo de nulidade na produocinematogrfica no constitui uma objeo: ela no pior que em outros setores,embora tenha conseqncias econmicas e industriais incomparveis. Os grandesautores de cinema so, assim, apenas mais vulnerveis; infinitamente mais fcilimpedi-los de realizar sua obra. A histria do cinema um vasto martirolgio. Ocinema no deixa, por isso, de fazer parte da histria da arte e do pensamento, sobas formas autnomas insubstituveis que esses autores foram capazes de inventar e,apesar de tudo, de fazer passar.

    No apresentamos nenhuma reproduo que viria ilustrar nosso texto, pois nosso texto, ao contrrio, que gostaria de ser apenas uma ilustrao de grandesfilmes de que cada um de ns guarda, em maior ou menor grau, a lembrana, aemoo ou a percepo.

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    6/24

    Teses sobre o movimentoPrimeiro comentrio de Bergson

    1

    Bergson no apresenta uma nica tese sobre o movimento mas trs. Aprimeira a mais clebre, e corre o risco de nos esconder as outras duas.Ela no passa, no entanto, de uma introduo as outras. De acordo comesta primeira tese, o movimento no se confunde com o espaopercorrido. O espao percorrido passado, o movimento presente, o

    ato de percorrer. O espao percorrido divisvel, e at infinitamentedivisvel, enquanto o movimento indivisvel, ou no se divide sem mudarde natureza a cada diviso. O que j supe uma idia mais complexa: osespaos percorridos pertencem todos a um nico e mesmo espaohomogneo, enquanto os movimentos so heterogneos, irredutveisentre si.

    Mas, antes de se desenvolver, a primeira tese tem um outroenunciado: no se pode reconstituir o movimento atravs de posies no

    espao ou de instantes no tempo, isto , atravs de "cortes" imveis...Essa reconstituio s pode ser feita acrescentando-se as posies ou aosinstantes a idia abstrata de uma sucesso, de um tempo mecnico,homogneo, universal e decalcado do espao, o mesmo para todos osmovimentos. E ento, de ambas as maneiras, perde-se o movimento. Deum lado, por mais infinitamente que se tente aproximar dois instantes ouduas posies, o movimento se far sempre no intervalo entre os dois,logo, s nossas costas. De outro, por mais que se tente dividir e subdividiro tempo, o movimento se far sempre numa durao concreta; cadamovimento ter, portanto, sua prpria durao qualitativa. Opomos, porconseguinte, duas frmulas irredutveis: "movimento real duraoconcreta" e "cortes imveis + tempo abstrato".

    Em 1907, em A Evoluo Criadora,Bergson batiza a frmula injusta: ailuso cinematogrfica. Com efeito, o cinema opera com dois dadoscomplementares: cortes instantneos, que chamamos imagens; ummovimento ou um tempo impessoal, uniforme, abstrato, invisvel ou

    imperceptvel, que existe "no" aparelho e "com" o qual fazemos desfilarem

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    7/24

    as imagens.1 O cinema nos oferece ento um movimento falso, ele oexemplo tpico do movimento falso. Mas curioso que Bergson d umttulo to moderno e to recente ("cinematogrfico") a mais antiga iluso.Com efeito, diz Bergson, quando o cinema reconstitui o movimento pormeio de cortes imveis, ele no faz nada alm do que j fazia o maisantigo pensamento (os paradoxos de Zeno), ou do que faz a perceponatural. A esse respeito Bergson se distingue da fenomenologia, para aqual o cinema antes romperia com as condies da percepo natural."Temos vises quase instantneas da realidade que passa, e como elasso caractersticas desta realidade, basta-nos alinh-las ao longo de umdevir abstrato, uniforme, invisvel, situado no fundo do aparelho doconhecimento... Percepo, inteleco, linguagem procedem em geralassim. Quer se trata de pensar o devir, ou de o exprimir ou at de o

    percepcionar, o que fazemos apenas acionar uma espcie decinematgrafo interior."(EC, pp. 298-299 (305).(N.T.)) Deve-sedepreender da que, segundo Bergson, o cinema seria somente aprojeo, a reproduo de uma iluso constante, universal? Como setivssemos sempre feito cinema sem saber? Mas ento, muitos problemasse colocam.

    E, de incio, a reproduo da iluso no tambm, de certo modo, suacorreo? A partir da artificialidade dos meios pode-se concluir a

    artificialidade do resultado? O cinema opera por meio de fotogramas, isto, de cortes imveis, vinte e quatro imagens/segundo (ou dezoito noincio). Mas o que ele nos oferece, como foi muitas vezes constatado, no o fotograma, mas uma imagem media a qual o movimento no seacrescenta, no se adiciona: ao contrrio, o movimento pertence aimagem-mdia enquanto dado imediato. Objetar-se- que o mesmoacontece no caso da percepo natural. Mas a a iluso corrigida antesda percepo pelas condies que a tornam possvel no sujeito. Enquanto

    no cinema ela corrigida ao mesmo tempo que a imagem aparece, paraum espectador fora de condies (a esse respeito, como veremos, afenomenologia tem razo em supor uma diferena de natureza entre apercepo natural e a percepo cinematogrfica). Em suma, o cinemaoferece uma imagem a qual acrescentaria movimento, ele nos ofereceimediatamente uma imagem-movimento. Oferece-nos um corte, mas um

    1 L'volution Cratrice,p. 753 (305). Citamos os textos de Bergson segundo a edio doCentenrio; e entre parnteses indicamos a paginao da edio corrente de cada livro

    (PUF). (N. T.: quando se tratar deA Evoluo Criadora,indicaremos, ao final da notado autor, a pgina correspondente da edio brasileira. AEvoluo Criadora,trad.Adolfo Casais Monteiro, estudo introdutrio de Jean Guitton, Rio de Janeiro, Ed. OperaMundi, 1971, p. 292. 0 cap. 2 do mesmo volume foi tambm traduzido por NathanaelCaxeiro,in Bergson,Col. "Os Pensadores", Ed. Abril, 1984.)

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    8/244

    corte mvel e no um corte imvel + movimento abstrato. Ora, o que novamente curioso, que Bergson tinha descoberto perfeitamente aexistncia dos cortes mveis ou das imagens-movimento. Isto se deuantes de AEvoluo Criadora e antes do nascimento oficial do cinema, emMatire et Mmoire, em 1896. A descoberta da imagem-movimento, paraalm das condies da percepo natural, constitua a prodigiosa invenodo primeiro captulo de Matire et Mmoire. Devemos acreditar queBergson a havia esquecido dez anos depois?

    Ou antes se deixava enredar por uma outra iluso que atinge todacoisa em seus primrdios? Sabemos que as coisas e as pessoas sosempre foradas, obrigadas a se esconder quando comeam. E nopoderia deixar de ser diferente. Elas surgem num conjunto que ainda no

    as comportava, e devem pr em evidncia os caracteres comuns queconservam com esse conjunto para no serem rejeitadas. A essncia deuma coisa nunca aparece no princpio, mas no meio, no curso de seudesenvolvimento, quando suas foras se consolidaram. Isso Bergson sabiamais que qualquer outro, ele que havia transformado a filosofia ao colocara questo do "novo" em vez da questo da eternidade (como a produoe a apario de algo novo so possveis?). Ele dizia, por exemplo, que anovidade da vida no podia aparecer em seus primrdios, porque no incioa vida era forada a imitar a matria... No a mesma coisa para o

    cinema? Em seus primrdios o cinema no forado a imitar a perceponatural? E, melhor ainda, qual era a situao do cinema no princpio? Deum lado, a cmera era fixa, o plano era, portanto, espacial e formalmenteimvel; de outro, o aparelho de filmagem era confundido com o aparelhode projeo, dotado de um tempo uniforme abstrato. A evoluo docinema, a conquista de sua prpria essncia ou novidade se far pelamontagem, pela cmera mvel e pela emancipao da filmagem, que sesepara da projeo. O plano deixar ento de ser uma categoria espacial,

    para tornar-se temporal; e o corte ser um corte mvel e no maisimvel. O cinema reencontrar exatamente a imagem-movimento doprimeiro captulo deMatire et Mmoire.

    Devemos concluir que a primeira tese de Bergson sobre o movimento mais complexa do que parecia inicialmente. Por um lado, h uma crticacontra todas as tentativas de reconstituir o movimento com o espaopercorrido, isto , somando cortes imveis instantneos e tempo abstrato.Por outro lado, h a crtica do cinema, denunciado como uma dessas

    tentativas ilusrias, como a tentativa que faz culminar a iluso. Mas htambm a tese de Matire et Mmoire, os cortes mveis, os planostemporais, e que pressentia de modo proftico o futuro ou a essncia do

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    9/24

    cinema.

    2

    Ora, A Evoluo Criadora apresenta justamente uma segunda teseque, em vez de reduzir tudo a uma mesma iluso sobre o movimento,distingue pelo menos duas iluses muito diferentes. O erro consistesempre em reconstituir o movimento atravs de instantes ou posies,mas h duas maneiras de faz-lo: a antiga e a moderna. Para aantiguidade, o movimento remete a elementos inteligveis, Formas ouIdias que so, elas prprias, eternas e imveis. Evidentemente, parareconstituir o movimento, apreenderemos essas formas o mais prximo

    possvel de sua atualizao numa matria fluente. So potencialidadesque s se realizam ao se encarnarem na matria. Mas, inversamente, omovimento limita-se a exprimir uma "dialtica" das formas, uma snteseideal que lhe confere ordem e medida. O movimento assim concebidoser, portanto, a passagem regulada de uma forma a uma outra, isto ,uma ordem de poses ou de instantes privilegiados, como uma dana."Supe-se" que as formas ou idias "caracterizam um perodo cujaquintessncia exprimiriam, sendo todo o resto desse periodo preenchidopela passagem, em si mesma desprovida de interesse, de uma forma auma outra forma... Isola-se o termo final, ou o ponto culminante (tlos,acm) que considerado como momento essencial, e este momento, quea linguagem fixou para exprimir o conjunto do fato, basta tambm para acincia o caracterizar".2

    A revoluo cientfica moderna consistiu em referir o movimento nomais a instantes privilegiados, mas ao instante qualquer. Mesmo que omovimento fosse recomposto, ele no era mais recomposto a partir de

    elementos formais transcendentes (poses), mas a partir de elementosmateriais imanentes (cortes). Em vez de fazer uma sntese inteligvel domovimento, empreendia-se uma anlise sensvel. Assim se constituram aastronomia moderna, ao determinar uma relao entre uma rbita e otempo de seu percurso (Kepler); a fsica moderna, ao vincular o espaopercorrido ao tempo da queda de um corpo (Galileu); a geometriamoderna, ao destacar a equao de uma curva plana, isto , a posio deum ponto numa reta mvel em um momento qualquer do seu trajeto(Descartes); enfim, o clculo infinitesimal, a partir do momento em que se

    experimentou levar em conta cortes infinitamente aproximveis (Newton e

    2 EC, p. 774 (330); 320.

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    10/2

    Leibniz). Em toda parte, a sucesso mecnica de instantes quaisquersubstitua a ordem dialtica das poses: "A cincia moderna deve se definirsobretudo pela sua aspirao de considerar o tempo uma varivelindependente".3

    O cinema parece realmente o ltimo rebento desta linhagem destacadapor Bergson. Poderamos conceber uma srie de meios de translao(trem, carro, avio...) e, paralelamente, uma srie de meios de expresso(grfico, foto, cinema): a cmera surgiria ento como um transdutor, ( *)ou melhor, como um equivalente generalizado dos movimentos detranslao. assim que ela aparece nos filmes de Wenders. Quando nosindagamos sobre a pr-histria do cinema somos as vezes levados aconsideraes confusas, porque no sabemos at onde remonta, nem

    como definir a linhagem tecnolgica que o caracteriza. sempre possvel,ento, invocar as sombras chinesas ou os mais arcaicos sistemas deprojeo. Mas na verdade as condies determinantes do cinema so asseguintes: no apenas a foto, mas a foto instantnea (a fotografia posadapertence a uma outra linhagem); a eqidistncia dos instantneos; atransferncia dessa eqidistncia para um suporte que constitui o "filme"(Edison e Dickson perfuram a pelcula); um mecanismo que puxa asimagens (as garras de Lumire). neste sentido que o cinema osistema que reproduz o movimento em funo do instante qualquer, isto

    , em funo de momentos eqidistantes, escolhidos de modo a dar aimpresso de continuidade. estranho ao cinema qualquer outro sistemaque porventura reproduza o movimento atravs de uma ordem de posesprojetadas de modo a passarem umas atravs de outras, ou a "setransformarem". o que fica claro quando se tenta definir o desenhoanimado: se ele pertence inteiramente ao cinema porque aqui odesenho no constitui mais uma pose ou uma figura acabada, mas adescrio de uma figura que est sempre sendo feita ou desfeita, atravs

    do movimento de linhas e de pontos tomados em momentos quaisquer doseu trajeto. O desenho animado remete a uma geometria cartesiana e noa uma geometria euclidiana. Ele no nos apresenta uma figura descritanum momento nico, mas a continuidade do movimento que descreve afigura.

    No entanto, o cinema parece se nutrir de instantes privilegiados.Costuma-se dizer que Eisenstein extrai dos movimentos ou das evoluescertos momentos de crise dos quais ele faz o objeto por excelncia do

    cinema. inclusive isto o que ele chamava de "pattico": ele seleciona

    3 EC,p. 779 (335); 325.* Transdutor: dispositivo que efetua a converso de energia de urna forma outra.(N.T.)

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    11/2

    pices e gritos, leva as cenas ao seu paroxismo e as faz colidir uma com aoutra. Mas no se trata em absoluto de uma objeo. Voltemos pr-histria do cinema, e ao clebre exemplo do galope de cavalo: este spode ser decomposto exatamente atravs dos registros grficos de Mareye dos instantneos equidistantes de Muybridge, que remetem o conjuntoorganizado da andadura a um ponto qualquer. Se escolhermos bem osequidistantes, cairemos forosamente nos tempos marcantes, isto , nosmomentos em que o cavalo tem um p no cho, depois, trs, dois, trs,um. Podemos cham-los instantes privilegiados: mas no ,absolutamente, no sentido das poses ou das posturas gerais quecaracterizavam o galope nas formas antigas. Tais instantes no tm maisnada a ver com as poses, e seriam at formalmente impossveis comoposes. Se so instantes privilegiados, a ttulo de pontos marcantes ou

    singulares que pertencem ao movimento, e no a ttulo de momentos deatualizao de uma forma transcendente. A noo mudou completamentede sentido. Os instantes privilegiados de Eisenstein ou de qualquer outroautor so ainda instantes quaisquer; simplesmente, o instante qualquerpode ser regular ou singular, ordinrio ou marcante. O fato de Eisensteinselecionar instantes marcantes no impede que ele os extraia de umaanlise imanente do movimento, de forma alguma de uma sntesetranscendente. O instante marcante ou singular permanece um instante

    qualquer entre os outros. inclusive esta a diferena entre a dialticamoderna, que Eisenstein reivindica, e a dialtica antiga. Esta a ordemdas formas transcendentes que se atualizam em um movimento,enquanto aquela a produo e a confrontao dos pontos singularesimanentes ao movimento. Ora, esta produo de singularidades (o saltoqualitativo) se d por acumulao de ordinrios (processo quantitativo),de modo tal que o singular extrado do qualquer, ele prprio umqualquer simplesmente no ordinrio ou no-regular. O prprio Eisensteinprecisava que o "pattico" supunha "o orgnico" enquanto conjunto

    organizado dos instantes quaisquer por onde os cortes devem passar.4

    O instante qualquer o instante equidistante de um outro. Definimosassim o cinema como o sistema que reproduz o movimento reportando-oao instante qualquer. Mas a que a dificuldade avulta. Qual o interessede um tal sistema? Do ponto de vista da cincia, muito superficial. Pois arevoluo cientfica era de anlise. E se era necessrio reportar omovimento ao instante qualquer para poder analis-lo, no se percebia ointeresse de uma sntese ou de uma reconstituio fundada no mesmo

    princpio, a no ser um vago interesse de confirmao. Esta a razo pela

    4 A propsito do orgnico e do pattico, cf. Eisentein,La Non-Indiffrente Nature,I, Coll. 10-18.

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    12/2

    qual nem Marey nem Lumire confiavam muito na inveno do cinema.Teria ele pelo menos um interesse artstico? Aparentemente nem isso,pois a arte parecia preservar os direitos de uma sntese mais elevada domovimento, e continuar ligada as poses e formas que a cincia repudiara.Encontramo-nos no prprio corao da situao ambgua do cinemaenquanto "arte industrial": no era nem uma arte nem uma cincia.

    Entretanto, os contemporneos podiam ser sensveis a uma evoluoque carregava consigo as artes e mudava o estatuto do movimento, atna pintura. Com mais razo ainda, a dana, o bal, a mmicaabandonavam as figuras e as poses para liberar valores no-posados, nopulsados, que reportavam o movimento ao instante qualquer. Por isso adana, o bal e a mmica tornavam-se aes capazes de responder aos

    acidentes do meio, isto , a repartio dos pontos de um espao ou dosmomentos de um acontecimento. Tudo isso conspirava com o cinema. Apartir do sonoro, o cinema ser capaz de fazer da comdia musical um de seusgrandes gneros, com a "dana-ao" de Fred Astaire, que evolui em um lugarqualquer, na rua, entre os carros, ao longo de uma calada. 5 Mas j no mudo,Chaplin arrancara a mmica da arte das poses, para transform-la numa mmica-ao. Aos que acusavam Carlitos de se servir do cinema e no de o servir, Mitryrespondia que ele conferia a mmica um novo modelo, funo do espao e do tempo,continuidade construda a cada instante, que se deixava decompor apenas em seus

    elementos imanentes marcantes, em vez de se reportar a formas prvias a seremencarnadas.6

    O cinema pertence inteiramente a essa concepo moderna domovimento eis o que Bergson demonstra com eloqncia. Mas, a partirda, ele parece hesitar entre dois caminhos, dos quais um o conduz a suaprimeira tese e o outro abre, em contrapartida, uma nova questo. Deacordo com o primeiro, as duas concepes podem ser muito diferentesdo ponto de vista da cincia, sem deixarem de ser quase idnticas quanto

    a seu resultado. Na verdade, d no mesmo recompor o movimentoatravs deposes eternas ou decortes imveis: em ambos os casos perde-se o movimento porque nos atribumos um Todo, supomos que "o todo dado", enquanto o movimento s se faz se o todo no dado nem podevir a s-lo. A partir do momento em que nos atribumos o todo na ordemeterna das formas e das poses, ou no conjunto dos instantes quaisquer,ou o tempo apenas a imagem da eternidade, ou a conseqncia doconjunto; no h mais lugar para o movimento real.7 No entanto, um

    5 Arthur Knight,Revue du Cinma, n10.6 Jean Mitry,Histoire du Cinma Muet,III, Ed. Universitaires, pp. 49-51.7 EC,p. 794 (353); 339.

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    13/2

    outro caminho parecia abrir-se para Bergson. Pois se a concepo antigacorresponde efetivamente a filosofia antiga que se prope a pensar oeterno, a concepo moderna, a cincia moderna, invocam uma outrafilosofia. Quando reportamos o movimento a momentos quaisquer,devemos nos tornar capazes de pensar a produo do novo, isto , donotvel e do singular em qualquer um desses momentos: trata-se de umaconverso total da filosofia; e o que Bergson se prope finalmente fazer:dar a cincia moderna a metafsica que lhe corresponde e que lhe estfaltando como uma metade falta outra metade. 8 Mas possvel se deternesse caminho? possvel negar que as artes tambm tenham de fazertal converso? E que o cinema seja um fator essencial a esse respeito, eque ele tenha inclusive um papel no nascimento e na formao deste novopensamento, deste novo modo de pensar? Eis que Bergson no se

    contenta mais em confirmar sua primeira tese sobre o movimento. Apesarde se deter em pleno curso, a segunda tese de Berson possibilita umoutro ponto de vista sobre o cinema, que no seria mais o aparelhoaperfeioado da mais velha iluso, mas, ao contrrio, o rgo da novarealidade a ser aperfeioado

    3

    E chegamos terceira tese de Bergson, sempre em A EvoluoCriadora. Se tentssemos oferecer dela uma frmula brutal diramos: nos o instante um corte imvel do movimento, mas o movimento umcorte mvel da durao, isto , do Todo ou de um todo. O que implica queo movimento exprime algo mais profundo que a mudana na durao ouno todo. Que a durao seja mudana, faz parte da sua prpria definio:ela muda e no pra de mudar. Por exemplo, a matria se move mas nomuda. Ora, o movimento exprime uma mudana na durao ou no todo.

    O que problemtico , por um lado, esta expresso e, por outro, estaidentificao todo-durao.

    O movimento uma translao no espao. Ora, cada vez que htranslao de partes no espao h tambm mudana qualitativa numtodo. Bergson fornecia mltiplos exemplos em Matire et Mmoire. Umanimal se move mas no a toa, para comer, para migrar, etc. Dir-se-iaque o movimento supe uma diferena de potencial e se prope apreench-la. Se considero partes ou lugares abstratamente, A e B, no

    compreendo o movimento que vai de um a outro. Mas estou em A,

    8 EC,p. 786 (343); 331.

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    14/2

    faminto, e em B existe alimento. Quando atingi B e comi, o que mudouno foi apenas o meu estado, mas o estado do todo que compreendia B, Ae tudo o que havia entre os dois. Quando Aquiles ultrapassa a tartaruga, oque muda o estado do todo que compreendia a tartaruga, Aquiles e adistncia entre os dois. O movimento remete sempre a uma mudana,migrao, a uma variao sazonal. a mesma coisa para os corpos: aqueda de um corpo supe um outro que o atrai e exprime uma mudanano todo que os compreende a ambos. Se pensarmos em tomos puros,seus movimentos que testemunham uma ao recproca de todas aspartes da matria exprimem necessariamente modificaes, perturbaes,mudanas de energia no todo. Nosso erro est em acreditar que o que semove so elementos quaisquer exteriores as qualidades. Mas as prpriasqualidades so puras vibraes que mudam ao mesmo tempo que os

    pretensos elementos se movem.9

    Em A Evoluo Criadora, Bergson d um exemplo to clebre que noconseguimos mais ver o que tem de surpreendente. Ele diz que, aocolocar acar num copo com gua, "devo esperar que o acar sedissolva".10 curioso, apesar de tudo, pois Bergson parece esquecer queo movimento de uma colher pode apressar a dissoluo. Mas o quepretende ele dizer em primeiro lugar? que o prprio movimento detranslao que desprende as partculas de acar e as coloca em

    suspenso na gua exprime uma mudana no todo, isto , no contedo docopo, uma passagem qualitativa da gua onde h acar ao estado degua aucarada. Se eu agito com a colher, acelero o movimento, masmodifico tambm o todo que compreende agora a colher, e o movimentoacelerado continua a exprimir a mudana no todo. "As deslocaesmeramente superficiais de massas e de molculas e que a fsica e aqumica estudam" tornam-se, "em relao a este movimento vital que seproduz em profundidade, que j no translao mas transformao,

    aquilo que a imobilidade dum mvel ao movimento deste mvel noespao".11 Em sua terceira tese, Bergson apresenta, portanto, a seguinteanalogia:

    cortes imveis movimento como corte mvel

    movimento mudana qualitativa

    Com a nica diferena que a relao da esquerda exprime uma iluso,e a da direita uma realidade.

    9 A propsito de todos esses pontos, cf.Matire et Mmoire,cap. 4, pp. 332-340 (220230).10 EC,p. 502 (9-10); 48-49.11 EC,p. 521 (32); 67.

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    15/2

    O que Bergson pretende dizer, sobretudo com o copo de guaaucarada, que minha espera, seja ela qual for, exprime uma duraoenquanto realidade mental, espiritual. Mas por que esta dura-coespiritual testemunha no apenas para mim, que espero, mas para um todoque muda? Bergson dizia: o todo no dado nem pode vir a s-lo (e o erro dacincia moderna, como da cincia antiga, era de se atribuir o todo, de duas maneirasdiferentes). Muitos filsofos j haviam dito que o todo no era dado nem passvel deser dado; a nica concluso que tiravam disto era que o todo era uma noodesprovida de sentido. A concluso de Bergson muito diferente: se o todo no passvel de ser dado porque ele o Aberto e porque lhe cabe mudarincessantemente ou fazer surgir algo de novo; em suma: durar. "A durao douniverso deve constituir uma unidade com a latitude de criao que nele podehaver." 12 De tal modo que toda vez que nos encontramos diante de uma durao,

    ou numa durao, poderemos concluir pela existncia de um todo que muda, e que aberto em alguma parte. Sabemos muito bem que Bergson descobriu inicialmentea durao como idntica a conscincia. Mas um estudo mais aprofundado daconscincia levou-o a mostrar que ela s existia abrindo-se para um todo,coincidindo com a abertura de um todo. Assim tambm para o vivente: quandoBergson compara o vivente a um todo, ou ao todo do universo, ele parece retomar amais antiga comparao.13 E, no entanto, inverte completamente os termos. Pois seo vivente um todo, portanto assimilvel ao todo do universo, no tanto porqueseria um microcosmo to fechado quanto o todo supostamente o , mas, aocontrrio, enquanto ele aberto para um mundo, e que o mundo, o prpriouniverso, o Aberto. "Em todo lugar onde alguma coisa vive, existe, aberto emalguma parte, um registro onde o tempo se inscreve." 14

    Se fosse preciso definir o todo, ns o definaramos pela Relao. quea relao no uma propriedade dos objetos, ela sempre exterior aseus termos. Do mesmo modo, inseparvel do aberto e apresenta umaexistncia espiritual ou mental. As relaaes no pertencem aos objetosmas ao todo, desde que no o confundamos com um conjunto fechado deobjetos.15 Atravs do movimento no espao, os objetos de um grupomudam suas respectivas posies. Mas, atravs das relaes, o todo setransforma ou muda de qualidade. Da prpria durao, ou do tempo,podemos afirmar que o todo das relaes.

    12 EC, p.782 (339); 327.13 EC,p. 507(15); 53.14 EC,p. 508 (16); 54. A nica semelhana, mas considervel, entre Bergson e Heidegger

    justamente esta: ambos fundam a especificidade do tempo sobre uma concepo do aberto.15

    Fazemos intervir aqui o problema das relaes, ainda que ele no seja explicitamente colocadopor Bergson. Sabemos que a relao entre duas coisas no pode ser reduzida a um atributo deuma coisa ou da outra, e muito menos ainda a um atributo do conjunto. Em compensao, apossibilidade de reportar as relaes a um todo permanece indene se concebemos esse todo comoum "contnuo" e no como um conjunto dado.

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    16/2

    No se deve confundir o todo, os "todos", com os conjuntos. Osconjuntos so fechados, e tudo o que fechado artificialmente fechado.Os conjuntos so sempre conjuntos de partes. Mas um todo no fechado, aberto; e no tem partes, exceto num sentido muito especial,pois ele no se divide sem mudar de natureza a cada etapa da diviso. "Otodo real poderia muito bem ser uma continuidade indivisvel."16 O todono um conjunto fechado, mas, ao contrrio, aquilo pelo que o conjuntonunca absolutamente fechado, nunca est completamente isolado,aquilo que o mantm aberto em algum ponto, como se um fio tnue oligasse ao resto do universo. O copo de gua exatamente um conjuntofechado que compreende partes, a gua, o acar, talvez a colher; masisso no o todo. O todo se cria e no pra de se criar numa outradimenso sem partes, como aquilo que leva o conjunto de um estado

    qualitativo a outro, como o puro devir incessante que passa por essesestados. nesse sentido que ele espiritual ou mental. "O copo de gua,o acar e o processo de dissoluo do acar na gua so, sem dvida,abstraes, e o Todo do qual eles foram recortados pelos meus sentidostalvez progrida a maneira de uma conscincia."17 Mesmo assim esterecorte artificial de um conjunto ou de um sistema fechado no umapura iluso. Ele tem fundamento e, se o elo de cada coisa com o todo(este elo paradoxal que a liga ao aberto) impossvel de ser rompido, ele

    pode ao menos ser alongado, estirado ao infinito, tornar-se cada vez maistnue. Pois a organizao da matria torna possveis os sistemas fechadosou os conjuntos determinados de partes; e o desdobramento do espao ostorna necessrios. Porm, se os conjuntos esto no espao, o todo, ostodos esto precisamente na durao, so a prpria durao na medidaque ela no pra de mudar. De tal modo que as duas frmulas quecorrespondiam a primeira tese de Bergson adquirem agora um estatutomuito mais rigoroso: "cortes imveis + tempo abstrato" remete aosconjuntos fechados, cujas partes so na verdade cortes imveis, e cujos

    estados sucessivos so calculados sobre um tempo abstrato; enquanto"movimento real madurao concreta" remete a abertura de um todoque dura, cujos movimentos so os tantos cortes mveis que atravessamo sistema fechado.

    Ao fim desta terceira tese encontramo-nos na verdade em trs nveis:1) os conjuntos ou sistemas fechados, que se definem atravs dos objetosdiscernveis ou das partes distintas; 2) o movimento de translao, que seestabelece entre esses objetos e modifica suas posies respectivas; 3) a

    durao ou o todo, realidade espiritual que no pra de mudar segundo

    16 EC,p. 520(31); 66.17 EC,pp. 502-503 (10-11); 49-50.

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    17/2

    suas prprias relaes.

    O movimento tem assim, de certo modo, duas faces. Por um lado, ele o que se passa entre objetos ou partes; por outro, o que exprime adurao ou o todo. Ele faz com que a durao, ao mudar de natureza, se

    divida nos objetos, e que os objetos, ao se aprofundarem, perdendo seuscontornos, renam-se na durao. Dir-se- ento que o movimentoreporta os objetos de um sistema fechado a durao aberta e a duraoaos objetos do sistema que ela fora a se abrirem. O movimento reportaos objetos, entre os quais se estabelece, ao todo cambiante que eleexprime, e vice-versa. Pelo movimento, o todo se divide nos objetos, e osobjetos se renem no todo: e, justamente entre os dois, "tudo" muda.Podemos considerar os objetos ou partes de um conjunto como cortes

    imveis; mas o movimento se estabelece entre esses cortes e reporta osobjetos ou partes a durao de um todo que muda, ele exprime portantoa mudana do todo com relao aos objetos e , ele mesmo, um cortemvel da durao. Somos agora capazes de compreender a tese toprofunda do primeiro captulo de Matire et Mmoire: 1) no h apenasimagens instantneas, isto , cortes imveis do movimento; 2) himagens-movimento que so cortes mveis da durao, imagens-mudana, imagens-relao, imagens-volume, para alm do prpriomovimento...

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    18/24

    Quadro e plano,

    enquadramento e decupagem

    1

    Partamos de definies muito simples, sob pena de corrigi-las maistarde. Chamamos enquadramento a determinao de um sistema

    fechado, relativamente fechado, que compreende tudo o que estpresente na imagem, cenrios, personagens, acessrios. O quadroconstitui, portanto, um conjunto que tem um grande nmero de partes,isto , de elementos que entram, eles prprios, em subconjuntos.Podemos operar nele uma reduo. Evidentemente, as prprias partes sotambm imagem. O que leva Jakobson a dizer que so objetos-signos,enquanto para Pasolini so "cinememas". Entretanto, tal terminologiasugere aproximaes com a linguagem (os cinememas seriam como

    fonemas e o plano como um monema) que no parecem necessrias.1

    Pois se o quadro tem um anlogo, mais do lado de um sistemainformtico do que lingstico. Os elementos constituem dados, ora muitonumerosos, ora em nmero reduzido. O quadro , portanto, inseparvelde duas tendncias a saturao ou a rarefao. Particularmente a telalarga e a profundidade de campo permitiram a tal ponto a multiplicaodos dados independentes, que uma cena secundria aparece na frenteenquanto o principal se passa ao fundo (Wyler), ou que nem se pode maisfazer diferena entre o principal e o secundrio (Altman). Emcontrapartida, imagens rarefeitas so produzidas ou quando a tnica colocada sobre um nico objeto (em Hitchcock, o copo de leite iluminadodo interior, em Suspeita; a brasa do cigarro no retngulo negro da janela

    Para distinguir da palavra "cinema", traduzi por "cinemema" o termo que Pasolini utiliza, poranalogia com os fonemas, para designar, na relao criativa entre o plano e seus objetos, asunidades lingsticas mnimas no cinema; os "cinememas" seriam "os objetos (objetivamente emnmero infinito) que pertencem realidade e que esto compreendidos no plano". Note-se aindaque, para Pasolini, a dupla articulao no cinema no consistiria nessa relao entre o plano e seus

    objetos, mas na relao criativa entre toda aordemdos planos e toda aordemdos objetos dosquais eles so compostos. Ver a esse respeito o cap. "Thorie des raccords", inPasolini, P. P.,L'Exprience Hrtique Langue et Cinma,Prefcio de Maria Antonietta Macciochi, Paris, Payot,1976. (N. T.)

    1 Cf. Pasolini,L'Exprience Hrtique, Paris, Payot, pp. 263-265.

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    19/2

    em Janela Indiscreta), ou quando o conjunto esvaziado de certossubconjuntos (as paisagens desertas de Antonioni, os interioresevacuados de Ozu). O mximo de rarefao pode ser atingido com oconjunto vazio, quando a tela fica inteiramente negra ou branca.Hitchcock d um exemplo disso em Quando Fala o Corao, quando umcopo de leite invade a tela, deixando apenas uma imagem branca vazia.Mas em ambos os extremos, rarefao ou saturao, o quadro nos ensinadesse modo que a imagem no se d apenas a ver. Ela to legvelquanto visvel. O quadro tem essa funo implcita de registrarinformaes no apenas sonoras, mas visuais. Se vemos muito poucascoisas numa imagem porque no sabemos l-la bem, avaliamos maltanto a sua rarefao quanto a sua saturao. Haver uma pedagogia daimagem, especialmente com Godard, quando esta funo for levada a se

    explicitar, quando o quadro passar a valer enquanto superfcie opaca deinformao, ora perturbada pela saturao, bra reduzida ao conjuntovazio, a tela branca ou negra.2

    Em segundo lugar, o quadro sempre foi geomtrico ou fsico, seconstitui o sistema fechado em relao a coordenadas escolhidas ou emrelao a variveis selecionadas. Assim, ora o quadro concebido comouma composio de espao em paralelas e diagonais, constituindo umreceptculo de modo tal que as massas e linhas da imagem que vm

    ocup-lo encontraro um equilbrio, e seus movimentos, uma invariante. o que freqentemente acontece com Dreyer; Antonioni parece chegar aolimite dessa concepo geomtrica do quadro, que preexiste ao que nelevem se inscrever (O Eclipse3). Ora o quadro concebido como umaconstruo dinmica em ao, que depende estreitamente da cena, daimagem, dos personagens e dos objetos que o preenchem. Oprocedimento da ris em Griffith, que primeiro isola um rosto, depois abre-se e mostra as suas imediaes; as pesquisas de Eisenstein, inspiradas no

    desenho japons, que adaptam o quadro ao tema; a tela varivel deGance, que se abre e fecha "segundo as necessidades dramatrgicas",como um "acordeom visual": desde o incio houve essa tentativa devariaes dinmicas do quadro. De qualquer modo, o enquadramento limitao.4 Mas, de acordo com, o prprlo conceito, os limites podem ser

    2 Noel Burch,Praxis du Cinema,p. 86: a propsito da tela negra ou branca, quando ela no servemais simplesmente de "pontuao", mas assume um "valor estrutural".

    3 Claude Oilier,Souvenirs cran,Cahiers du Cinma-Gallimard, p. 88. o que Pasolini analisavacomo "enquadramento obsedante" em Antonioni(L'Exprience Hrtique,p. 148). (Os filmes so

    citados pelo seu ttulo brasileiro. Quando no foram exibidos entre ns, procurou-se, sempre quepossvel, citar o seu ttulo original. Alguns filmes russos e japoneses no exibidos no Brasil ficaramcom seus ttulos franceses. N. T.)

    4 Num trabalho indito que compreende entrevistas comcamera-men,Dominique Villain analisaestas duas concepes do enquadramento:Le cadrage cinmatographique.(O termocadreur,que

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    20/2

    concebidos de dois modos, matemtico ou dinmico: ou como condiespara a existncia dos corpos cuja essncia os limites vo fixar, ou comoalgo que se estende precisamente at onde vai a potncia do corpoexistente. Desde a filosofia antiga, este era um dos principais aspectos daoposio entre platnicos e esticos.

    De uma outra maneira, o quadro ainda geomtrico ou fsico emrelao as partes do sistema que ele ao mesmo tempo separa e rene. Noprimeiro caso, o quadro inseparvel de acentuadas distinesgeomtricas. Uma belissima imagem de Intolerncia, de Griffith, corta atela segundo uma vertical que corresponde a muralha de Babilnia,enquanto v-se, direita, o rei avanar numa horizontal superior, adarveno alto da muralha, e a esquerda, os carros entrando e saindo numa

    horizontal inferior, as portas da cidade. Eisenstein estuda os efeitos daseco urea na imagem cinematogrfica; Dreyer explora as horizontais eas verticais, as simetrias, o alto e o baixo, as alternncias de preto ebranco; os expressionistas desenvolvem diagonais e contradiagonais,figuras piramidais ou triangulares, o choque dessas massas, toda umapavimentao do quadro "onde se desenham como que quadrados negrose brancos de um tabuleiro de xadrez" (Os Nibelungos e Metrpolis, deLang5). At a luz objeto de uma tica geomtrica, quando se organizacom as trevas em duas metades, ou em riscas alternantes, segundo uma

    tendncia do expressionismo (Wiene, Lang). As linhas de separao dosgrandes elementos da Natureza desempenham, evidentemente, um papelfundamental como nos cus de Ford: a separao entre o cu e a terra,a terra reconduzida para a parte inferior da tela. Mas h tambm a gua ea terra, ou a linha fina e alongada que separa o ar da gua, quando agua esconde um fugitivo no fundo, ou quando asfixia uma vtima nolimite da superfcie (O Fugitivo, de Roy, e Uma Lio para no Esquecer,de Newman). Em geral as potncias da Natureza no so enquadradas da

    mesma maneira que as pessoas ou as coisas, nem os indivduos domesmo modo que as multides, nem os subelementos do mesmo modoque os termos. Tanto assim que h no quadro muitos quadros diferentes.As portas, as janelas, os guichs, as lucarnas, as janelas dos carros, osespelhos so outros tantos quadros dentro do quadro. Os grandes autorestm afinidades particulares com um ou outro desses quadros segundos,terceiros, etc. E atravs desses encaixes de quadros que as partes doconjunto ou do sistema fechado se separam, mas tambm conspiram e serenem.

    traduzi porcamera-man,define aquele que enquadra a imagem. Essa funo exercida pelodiretor ou pelocamera-man.N. T.)

    5 Lotte Eisner,L'Ecran Dmoniaque,Encyclopdie du Cinma, p. 124.

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    21/2

    Por outro lado, a concepo fsica ou dinmica do quadro induz aconjuntos vagos que passam a se dividir somente em zonas ou discos. Oquadro no mais o objeto de divises geomtricas, mas de graduaesfsicas. Ento, as partes do conjunto valem como partes intensivas e oprprio conjunto uma mistura que passa por todas as partes, por todosos graus de sombra e luz, por toda a escala do claro-escuro (Wegener,Murnau). Trata-se da outra tendncia da tica expressionista, emboracertos autores participem das duas, dentro ou fora do expressionismo. ahora em que no se pode mais distinguir a aurora do crepsculo, nem o arda terra ou a gua da terra, no grande misto de um pntano ou de umatempestade6. Aqui, atravs dos graus da mistura que as partes sedistinguem ou se confundem, numa transformao contnua dos valores.O conjunto no se divide em partes sem mudar a cada vez de natureza:

    no se trata nem do divisvel nem do indivisvel, mas do "dividual". verdade que j era esse o caso da concepo geomtrica: era o encaixedos quadros que indicava ento as mudanas de natureza. A imagemcinematogrfica sempre dividual. A razo ltima disso que a tela,enquanto quadro dos quadros, confere uma medida comum aquilo queno a tem, plano distante de paisagem e primeiro plano de rosto, sistemaastronmico e gota de gua, partes que no apresentam um mesmodenominador de distncia, de relevo, de luz. Em todos esses sentidos, o

    quadro assegura uma desterritorializao da imagem.Em quarto lugar, o quadro se reporta a um ngulo de enquadramento.

    que o prprio conjunto fechado um sistema tico que remete a umponto de vista sobre o conjunto das partes. Evidentemente, o ponto devista pode ser ou parecer inslito, paradoxal: o cinema mostra pontos devista extraordinrios, rente ao cho, de cima para baixo, de baixo paracima, etc. Mas eles parecem submetidos a uma regra pragmtica que novale apenas no cinema de narrao: para no carem num esteticismo

    vazio, eles devem se explicar, devem se revelar normais ou regulares,seja do ponto de vista de um conjunto mais amplo que compreende oprimeiro, seja do ponto de vista de um elemento inicialmentedespercebido, no dado, do primeiro conjunto. Em Jean Mitryencontramos a descrio de uma seqncia exemplar a esse respeito (No

    Disco luminoso: termo de tica. Zonas de Fresnel so regies imaginrias em que se divide umaabertura num anteparo para analisar a difrao de uma onda eletromagntica. A difrao odesvio sofrido pela luz ao passar por um obstculo tal como as bordas de uma fenda em um

    anteparo. Ao passar pela fenda, a luz sofre uma difrao; o feixe luminoso vai aparecer sobre oanteparo como decomposto em um disco luminoso central rodeado por anis concntricos cadavez menos luminosos. Entre o disco central e o primeiro anel, e depois entre os anissucessivamente, h regies de sombra chamadas zonas. (N. T.)

    6 Cf. Bouvier e Leutrat,Nosferatu,Cahiers du Cinma-Gallimard, pp. 75-76.

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    22/2

    Matars, de Lubitsch): num travelling lateral a meia altura, a cmeramostra um muro de espectadores vistos de costas e tenta se insinuar ata primeira fila; e ento se detm sobre um perneta cuja perna ausentepropicia uma mirada no espetculo, o desfile militar que passa. Elaenquadra, portanto, a perna vlida, a muleta, e, sob o coto, o desfile. Eisum ngulo de enquadramento eminentemente inslito. Mas um novoplano mostra um outro invlido atrs do primeiro, um homem-tronco quev precisamente deste modo o desfile, e que atualiza ou efetua o ponto devista precedente.7 Dir-se- ento que o ngulo de enquadramento era

    justificado. Entretanto esta regra pragmtica no vale sempre, ou, pelomenos, quando vale, no esgota o caso. Bonitzer elaborou o conceitomuito interessante de "desenquadra-mento" para designar estes pontosde vista anormais que no se confundem com uma perspectiva oblqua ou

    um ngulo paradoxal, e remetem a uma outra dimenso da imagem8.Deles encontraramos exemplos nos quadros cortantes de Dreyer, osrostos cortados pela borda da tela em APaixo de Joana d'Arc. Mas, maisainda, como veremos, os espaos vazios a maneira de Ozu, queenquadram uma zona morta, ou ento os espaos desconectados amaneira de Bresson, cujas partes no se juntam, excedem qualquer

    justificao narrativa ou, mais geralmente, pragmtica, e vm talvezconfirmar que a imagem visual tem uma funo legvel, para alm de sua

    funo visvel.Resta o extracampo. No se trata de uma negao; tambm no

    basta defini-lo pela no-coincidncia entre dois quadros, dos quais umseria visual e o outro, sonoro (em Bresson, por exemplo, quando o somtestemunha pelo que no se v e "reveza" com o visual em vez de reiter-lo9). O extracampo remete ao que, embora perfeitamente presente, no

    O uso tem consagrado entre ns o termo ingls travelling, emvez da sua traduo "carrinho".(NT)7 Jean Mitry,Esthtique et Psychologie du Cinma, II, Ed. Universitaires, pp. 78-79.8

    Pascal Bonitzer, "Dcadrages", Cahiers du Cinema,n 284, jan. 1978. Esse termo tem sido traduzido entre ns por espao fora do campo, espao em offou ainda,menos correntemente, porextracampo.Optamos pelo ltimo termo, tendo em vista justamente aparticularidade da anlise do autor, que vai distinguir nesta noo dois aspectos, um dos quais como se ver no se refere presena virtual do espao. H para Deleuze, de um lado, umaspecto relativo no extracampo, atravs do qual um sistema fechado remete no espao a umconjunto que no se v, e que pode por sua vez vir a ser visto, sob pena de suscitar um novoconjunto no visto; h, de outro lado, um aspecto absoluto, atravs do qual o sistema fechado seabre para uma durao imanente ao todo do universo, que no mais um conjunto e nopertence ordem do visual. Aqui sua juno seria introduzir o trans-espacial e o espiritual nosistema constitudo pelo quadro. Em razo da distino desse segundo aspecto, que para Deleuzesempre acompanha o primeiro, e cujaanliseconfere a nosso ver uma nova dimenso prpria

    noo de extracampo, preferimos adotar um termos que no se limitasse referncia ao espao.(N. T.)9 Bresson,Notes sur le Cinmatographe,Gallimard, pp. 61-62: "Um som nunca deve vir em socorro

    de uma imagem, nem uma imagem em socorro de um som (...). Som e imagem no devem seajudar mutuamente, mas trabalhar cada um por sua vez numa espcie de revezamento".

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    23/2

    se ouve nem se v. verdade que esta presena problemtica, eremete por sua vez a duas novas concepes do enquadramento. Seretomarmos a alternativa de Bazin, mscara ou quadro, ora o quadroopera um recorte mvel, segundo o qual todo conjunto se prolonga numconjunto homogneo mais vasto com o qual ele comunica, ora como umquadro pictural que isola um sistema e neutraliza seu contexto. Estadualidade se exprime de modo exemplar entre Renoir e Hitchcock; para oprimeiro, o espao e a ao sempre excedem os limites do quadro, queopera apenas uma extrao em uma rea; no segundo, o quadro operaum "aprisionamento de todos os componentes", e age muito mais comouma armao de tapearia do que como quadro pictural ou teatral.

    Mas, se um conjunto parcial s se comunica formalmente com o seu

    extracampo atravs das caractersticas positivas do quadro e doreenquadramento, por sua vez um sistema fechado, mesmo muitofechado, s aparentemente suprime o extracampo, e tambm lhe atribui,a seu modo, uma importncia decisiva, mais decisiva ainda.10 Todoenquadramento determinar um extracampo. No h dois tipos dequadro, dos quais apenas um remeteria ao extracampo, mas sim doisaspectos muito diferentes do extracampo, remetendo cada um a um modode enquadrar.

    A divisibilidade da matria significa que as partes entram em conjuntosvariados, que no param de se subdividir em subconjuntos ou so, elesprprios, o subconjunto de um conjunto mais vasto, ao infinito. por istoque a matria se define ao mesmo tempo pela tendncia em constituirsistemas fechados e pelo inacabamento dessa tendncia. Todo sistema

    A conhecida oposio de Bazin quadro ou mscara extrada da comparao que o crtico fazentre a tela de cinema e o quadro pictural perde, na traduo, o realce que o idioma francs lheconfere. Pata Bazin, o quadro pictural abre o espao contemplativo apenas para o interior,enquanto a tela de cinema, ao contrrio, sugere o prolongamento para o exterior daquilo que

    mostrado. Para sustentar a sua comparao, Bazin recorre ao termomascara (cache;decachei,esconder), usado em fotografia e em cinema para designar o papel negro ou o filtro que escondeparte da pelcula a ser impressionada. Esta tcnica tem por efeito, ao esconder parte da cena ouobjeto fotografado ou filmado, mostrar apenas "uma parte da realidade". Ao invocar a tcnica damscara em relao ao quadro cinematogrfico, a tela constituiria para Bazin justamente estasuperfcie que a mscara teria deixado visvel, e que seria, ela prpria parte de uma superfcieainda maior. Por isto a tela cinematogrfica teria para Bazin esse poder de sugerir a existncia deum prolongamento daquilo que se v: ela seria "centrfuga', ao contrrio do quadro, que seria"centrpeto". Quest-ce que le Cinma,Ed. du Cerf, 1958. (N. T.)

    10 O estudo mais sistemtico do extracampo foi realizado por Noel Burch, justamente a propsito deNana,de Renoir(Praxis du Cinma, pp. 30-51). E desse ponto de vista que Jean Narboni opeHitchcock a Renoir(Hitchcock, Cahiers du Cinma, "Visagesd'Hitchcock", p. 37). Mas, como

    lembra Narboni, o quadro cinematogrfico sempre uma mscara, como o entendia Bazin: poristo que o enquadramento fechado de Hitchcock tambm tem seu extra-campo, ainda que de ummodo completamente diferente do que em Renoir (no mais "um espao contnuo e homogneo aoespao da tela", mas um "espao em offdescontnuo e heterogneo ao da tela", que definevirtualidades).

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    24/2

    fechado tambm comunicante. H sempre um fio para ligar o copo degua aucarada ao sistema solar, e qualquer conjunto a um conjunto maisvasto. Este o primeiro sentido do que chamamos extracampo: se umconjunto enquadrado, logo visto, h sempre um conjunto maior ou umoutro com o qual o primeiro forma um maior, que por sua vez, pode servisto desde que suscite um novo extracampo, etc. O conjunto de todosesses conjuntos forma uma continuidade homognea, um universo ou umplano de matria propriamente ilimitado. Mas certamente no se trata deum "todo", apesar de este plano ou estes conjuntos cada vez maioresguardarem necessariamente uma relao indireta com o todo. So bemconhecidas as contradies insolveis em que camos quando tratamos oconjunto de todos os conjuntos como um todo. No que a noo de todoseja desprovida de sentido; mas ela no um conjunto e no tem partes.

    A noo de todo antes o que impede cada conjunto, por maior que seja,de se fechar sobre si prprio, e o que o fora a se prolongar num conjuntomaior. O todo , pois, como o fio que atravessa os conjuntos e confere acada um a possibilidade necessariamente realizada de comunicar um como outro, ao infinito. O todo tambm o Aberto, e remete mais ao tempoou at ao esprito do que matria e ao espao. Qualquer que seja arelao entre os dois, no confundiremos, portanto, o prolongamento dosconjuntos uns atravs dos outros, e a abertura do todo que passa em

    cada um. Um sistema fechado nunca absolutamente fechado; mas, porum lado, ele ligado no espao a outros sistemas por um fio mais oumenos "tnue", e por outro integrado ou reintegrado a um todo que lhetransmite uma durao ao longo desse fio.11 Por conseguinte, talvez nobaste distinguir, com Burch, um espao concreto e um espao imaginriodo extracampo, o imaginrio tornando-se concreto quando entra por suavez num campo portanto, quando deixa de ser extracampo. Pois emsi mesmo, ou enquanto tal, que o extracampo j contm dois aspectosque diferem por natureza: um aspecto relativo, atravs do qual um

    sistema fechado remete no espao a um conjunto que no se v e quepode, por sua vez, ser visto, com o risco de suscitar um novo conjuntono visto, ao infinito; um aspecto absoluto, atravs do qual o sistemafechado se abre para uma durao imanente ao todo do universo, que no mais um conjunto e no pertence ordem do visvel.12 Os

    11Bergson desenvolveu todos esses pontos emL'volution Cratrice,cap. I. Sobre o "fio tnue", cf.p. 503 (10); 49.

    12Bonitzer objetava a Burch que no existe "devir-campo do extracampo" e que o extracampo

    continua imaginrio, mesmo quando se atualizou sob efeito de um raccord:alguma coisa semprefica fora do campo, e, segundo Bonitzer, a prpria cmera, que pode aparecer a seu modo, masintroduzindo uma nova dualidade na imagem.(Le Regard et la Voix,10-18, p. 17.) Estasobservaes de Bonitzer nos parecem inteiramente fundadas. Mas acreditamos que existe noprprio extracampo uma dualidade interna, que no remete apenas ao instrumento de trabalho.

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    25/2

    desenquadramentos que no se justificam `pragmaticamente" remetemprecisamente a este segundo aspecto como sua razo de ser.

    Num caso, o extracampo designa o que existe alhures, ao lado ou emvolta; noutro caso, atesta uma presena mais inquietante, da qual nem se

    pode mais dizer que existe mas antes que "insiste" ou "subsiste", umAlhures mais radical, fora do espao e do tempo homogneos. Semdvida, esses dois aspectos do extracampo se misturam constantemente.Mas quando consideramos uma imagem enquadrada como um sistemafechado, podemos dizer que um aspecto se sobrepe ao outro segundo anatureza do "fio". Quanto mais grosso for o fio que liga o conjunto visto aoutros conjuntos no vistos, melhor o extracampo cumpre sua primeirafuno, que de acrescentar espao ao espao. Mas, quando o fio muito

    tnue, ele no se contenta em reforar o fechamento do quadro, ou emeliminar a relao com o exterior. Ele no garante, evidentemente, umaisolao completa do sistema relativamente fechado, o que seriaimpossvel. Mas quanto mais tnue for, mais a durao desce no sistemacomo uma aranha, melhor o extracampo realiza sua outra funo, que ade introduzir o transespacial e o espiritual no sistema que nunca perfeitamente fechado. Dreyer havia feito disto um mtodo asctico:quanto mais a imagem espacialmente fechada, reduzida at a duasdimenses, mais ela est apta a se abrirpara uma quarta dimenso, que

    o tempo, e para uma quinta, que o , Esprito, a deciso espiritual deJoana ou de Gertrud.13 Quando Claude Ollier define o quadro geomtricode Antonioni, no diz apenas que o personagem esperado ainda no estvisvel (primeira funo do extra-campo), mas tambm que ele seencontra momentaneamente numa zona de vazio, "branco sobre o brancoimpossvel de filmar", propriamente invisvel (segunda funo). E, de umaoutra maneira, os quadros de Hitchcock no se contentam em neutralizaras imediaes, em levar to longe quanto possvel o sistema fechado e em

    aprisionar na imagem o mximo de componentes; ao mesmo tempo faroda imagem uma imagem mental,aberta (como veremos) para um jogo derelaes puramente pensadas, que tecem um todo. por isso quedizamos: h sempre um extracampo, mesmo na imagem mais fechada. Eh sempre, simultaneamente, dois aspectos do extracampo: a relaoatualizvel com outros conjuntos, a relao virtual com o todo. Mas numcaso a segunda relao, a mais misteriosa, ser atingida indiretamente,no infinito, por intermdio e extenso da primeira, na sucesso dasimagens; no outro caso ela ser atingida mais diretamente, na prpria

    imagem, atravs da limitao e neutralizao da primeira.

    13Dreyer, citado por Maurice Drouzy, Carl Th. Dreyer n Nilsson,Ed. du Cerf, p. 353.

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    26/2

    Resumamos os resultados desta anlise do quadro. O enquadramento a arte de escolher as partes de todos os tipos que entram num conjunto.Tal conjunto um sistema fechado, relativa e artificialmente fechado. Osistema fechado determinado pelo quadro pode ser considerado emrelao aos dados que ele comunica aos espectadores: ele informtico, esaturado ou rarefeito. Considerado em si mesmo e como limitao, geomtrico ou fsico-dinmico. Considerado na natureza de suas partes,ainda geomtrico ou, ento, fsico e dinmico. um sistema tico,quando o consideramos em relao ao ponto de vista, ao ngulo deenquadramento: ento ele pragmaticamente justificado, ou exige uma

    justificao mais elevada. Enfim, determina um extracampo, seja sob aforma de um conjunto mais vasto que o prolonga, seja sob a forma de umtodo que o integra.

    2

    A decupagem a determinao do plano, e o plano a determinao domovimento que se estabelece no sistema fechado, entre elementos oupartes do conjunto. Mas, como j observamos, o movimento diz respeitotambm a um todo, que difere em natureza do conjunto. O todo o quemuda, o aberto ou a durao. O movimento exprime, portanto, umamudana do todo, ou uma etapa, um aspecto dessa mudana, umadurao ou uma articulao de durao. Assim, o movimento tem duasfaces, to inseparveis quanto o direito e o avesso, o recto e o verso: ele relao entre partes, e afeco do todo. Por um lado, modifica asposies respectivas das partes de um conjunto, que so como seuscortes, cada uma imvel em si mesma; por outro lado, ele prprio ocorte mvel de um todo, cuja mudana exprime. Sob um aspecto ditorelativo; sob o outro, dito absoluto. Consideremos um plano fixo onde

    personagens se movimentam: eles modificam suas posies respectivasnum conjunto enquadrado; mas esta modificao seria totalmentearbitrria se no exprimisse tambm algo que est mudando, umaalterao qualitativa mesmo nfima no todo que passa por este conjunto.Consideremos um plano onde a cmera se movimenta: ela pode ir de umconjunto a outro, modificar a posio respectiva dos conjuntos tudoisso s necessrio se a modificao relativa exprime uma mudanaabsoluta do todo que passa por estes conjuntos. Por exemplo: a cmerasegue um homem e uma mulher que sobem uma escada e chegam a umaporta, que o homem abre; em seguida a cmera os deixa e retrocede numnico plano, contorna a parede exterior do apartamento, atinge a escada

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    27/2

    descendo-a de costas, desemboca na calada e se ergue pelo exterior ata janela opaca do apartamento visto de fora. Tal movimento, que modificaa posio relativa de conjuntos imveis, s necessrio se exprime algoque est acontecendo, uma mudana num todo que passa, ele mesmo,por estas modificaes: a mulher est sendo assassinada, ela entrara livree no pode mais esperar socorro algum, o assassinato inexorvel.

    Argumentar-se- que este exemplo (Frenesi, de Hitchcock) um casode elipse na narrao. Mas, que haja elipse ou no, ou mesmo que hajanarrao ou no, no importa por enquanto. O que conta nesses exemplos que o plano, seja ele qual for, tem como que dois plos: em relao aosconjuntos no espao, onde ele introduz modificaes relativas entreelementos ou subconjuntos; em relao a um todo, do qual exprime uma

    mudana absoluta na durao. Este todo nunca se contenta em serelptico, nem narrativo, embora possa s-lo. Mas qualquer que seja, oplano tem sempre dois aspectos: por um lado, apresenta modificaes deposio relativa num conjunto ou conjuntos, por outro, exprime mudanasabsolutas num todo ou no todo. Em geral, o plano tem uma face voltadapara o conjunto, do qual traduz as modificaes entre as partes, e umaoutra voltada para o todo, do qual exprime a mudana ou, pelo menos,uma mudana. Disto decorre a situao do plano, que pode ser definidoabstratamente como intermedirio entre o enquadramento do conjunto e

    a montagem do todo. Ora voltado para o plo do enquadramento, orapara o plo da montagem. O plano o movimento considerado em seuduplo aspecto: translao das partes de um conjunto que se estende noespao, mudana de um todo que se transforma na durao.

    No se trata apenas de uma determinao abstrata do plano. Pois oplano encontra sua determinao concreta na medida que est sempregarantindo a passagem de um aspecto ao outro, a ventilao ou adistribuio dos dois aspectos, sua perptua converso. Retomemos os

    trs nveis bergsonianos: os conjuntos e suas partes; o todo que seconfunde com o Aberto ou a mudana na durao; o movimento que seinstaura entre as partes ou os conjuntos, mas que tambm exprime adurao, isto , a mudana do todo. O plano como o movimento queest sempre assegurando a converso, a circulao. Ele divide e subdividea durao segundo os objetos que compem o conjunto, ele rene osobjetos e os conjuntos em uma nica e mesma durao. Est sempredividindo a durao em sub-duraes, elas prprias heterogneas, e

    reunindo-as numa durao imanente ao todo do universo. Posto que uma conscincia que opera tais divises e reunies, dir-se- do plano queele age como uma conscincia. Mas a nica conscincia cinematogrfica

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    28/24

    no somos ns, o espectador, nem o heri a cmera, ora humana,ora inumana ou sobre-humana. Que se considere o movimento da gua, ode um pssaro ao longe e o de um personagem num barco: eles seconfundem em uma percepo nica, um todo tranqilo da naturezahumanizada. Mas eis que o pssaro, uma gaivota comum, avana e vemferir a pessoa: os trs fluxos se dividem e tornam-se exteriores uns aosoutros. O todo se formar de novo, mas ter mudado: ter se tornado aconscincia nica ou a percepo de um todo dos pssaros, afirmandouma natureza inteiramente passarificada, voltada contra o homem, numaespera infinita. E se redividir novamente quando os pssaros atacarem,de acordo com os modos, os lugares, as vtimas de seu ataque. E seconstituir de novo graas a uma trgua, quando o humano e o inumanoentrarem numa relao indecisa (Os Pssaros, de Hitchcock). Tanto

    poderemos dizer que a diviso est entre dois todos, quanto que o todoest entre duas divises.14 O plano, isto , a conscincia, traa ummovimento que faz com que as coisas entre as quais se estabelece noparem de se reunir em um todo, e o todo de se dividir entre as coisas (oDividual).

    o prprio movimento que se decompe e se recompe. Decompe-sesegundo os elementos entre os quais joga num conjunto: os quepermanecem fixos, aqueles aos quais o movimento atribudo, os que

    fazem ou sofrem tal movimento simples ou divisvel... Mas tambm serecompe em um grande movimento complexo indivisvel segundo o todocuja mudana exprime. Podemos considerar certos grandes movimentoscomo a assinatura prpria de um autor, a caracterizar o todo de um filmeou at o todo de uma obra, mas que ressoam com o movimento relativode tal imagem assinada, ou de tal detalhe na imagem. Num estudoexemplar sobre o Fausto, de Murnau, Eric Rohmer mostrava como osmovimentos de expanso e de contrao se distribuam entre as pessoas

    e os objetos num "espao pictural", mas tambm exprimiam verdadeirasIdias no "espao flmico", o Bem e o Mal, Deus e Sat. 15 Orson Wellesdescreve muitas vezes dois movimentos que se compem, dos quais um como uma fuga horizontal linear numa espcie de jaula alongada eestriada, com abertura, e o outro como um traado circular cujo eixovertical opera, no sentido da altura, uma plonge ou contraplonge:* seesses movimentos j so aqueles que animam a obra literria de Kafka,

    14

    Sobre a separao e a reunio dos fluxos, cf. Bergson, Dure et Simultanit, cap.3 (Bergsontoma por modelo os trs fluxos: de uma conscincia, de uma gua que escoa e de um pssaro quevoa).

    15 Eric Rohmer,L'Organisation de !'Espace dam leFaustde Murnau,Col. 10-18. (*) Usa-se maiscomumente a forma francesa do que a sua traduo "cmera alta" e "cmera baxa". (N. T.)

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    29/2

    concluiremos que existe uma afinidade entre Welles e Kafka que no sereduz ao filme O Processo, mas antes explica por que Welles precisouconfrontar-se diretamente com Kafka; se tais movimentos aparecem denovo e se combinam profundamente em O Terceiro Homem de Reed,concluiremos que Welles foi mais que um ator nesse filme, e participouintimamente da sua construo, ou que Reed foi um discpulo inspirado deWelles. Em muitos de seus filmes, Kurosawa tem uma assinatura queparece um ideograma japons fictcio: um grosso trao vertical desce dealto a baixo da tela, enquanto dois movimentos laterais mais finos aatravessam da direita para a esquerda e da esquerda para a direita; ummovimento complexo desse tipo, como veremos, tem relao com o tododo filme, com uma maneira de conceber o todo de um filme. Ao analisarcertos filmes de Hitchcock, Franois Regnault distinguia para cada um

    deles um movimento global ou uma "forma principal, geomtrica oudinmica", que poderiam aparecer em estado puro nos crditos: "asespirais de Um Corpo que Cai, as linhas quebradas e a estruturacontrastada por alternncia em preto e branco de Psicose, as coordenadascartesianas em flecha de Intriga Internacional. E talvez os grandesmovimentos desse filme sejam, por sua vez, componentes de ummovimento ainda maior, que exprimiria o todo da obra de Hitchcock, e amaneira segundo a qual esta obra evoluiu, se transformou. Mas no

    menos interessante a outra direo, segundo a qual um grandemovimento, voltado para um todo que muda, se decompe emmovimentos relativos, em formas locais voltadas para as posiesrespectivas das partes de um conjunto, para as atribuies as pessoas eobjetos, para as reparties entre elementos. o que Regnault estuda emHitchcock (assim, em Um Corpo que Cai, a grande espiral pode tornar-sea vertigem do heri, mas tambm o circuito que ele traa com seu carro,ou ento o anel nos cabelos da herona16). Esse tipo de anlise desejvelpara todo autor, o programa de pesquisa necessrio para toda anlise

    de autor, o que se poderia chamar de estilstica: o movimento que seinstaura entre as partes de um conjunto num quadro, ou de um conjuntoa outro num reenquadramento; o movimento que exprime um todo numfilme ou numa obra; a correspondncia entre os dois, a maneira segundoa qual eles se respondem mutuamente, passam de um a outro. Pois trata-se do mesmo movimento, ora compondo, ora decompondo, so os doisaspectos do mesmo movimento. E esse movimento o plano, ointermedirio concreto entre um todo que apresenta mudanas e um

    conjunto que tem partes, e que no pra de converter um no outro

    16 Franois Regnault, "Systme Formei d'Hitchcock",in Hitchcock, Cahiers du Cinma.Sobre acomposio de um movimento que exprimiria o todo da obra, cf. p. 27.

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    30/2

    segundo suas duas faces.

    O plano a imagem-movimento. Enquanto reporta o movimento a umtodo que muda, o corte mvel de uma durao. Ao descrever a imagemde uma manifestao, Pudovkin diz: como se subssemos num telhado

    para v-la, depois descemos janela do primeiro andar para ler as faixas,depois misturamo-nos multido...17 apenas "como se"; porque apercepo natural introduz paradas, ancoragens, pontos fixos ou pontosde vista separados, mveis ou mesmo veculos distintos, enquanto apercepo cinematogrfica opera continuamente, num nico movimentocujas prprias paradas so parte integrante e no passam de umavibrao sobre si mesmo. Consideremos o clebre plano de A Turba, deKing Vidor, que Mitry denominava "um dos mais belos travellings de todo

    o cinema mudo": a cmera avana no meio da multido a contracorrente,dirige-se para um arranha-cu, sobe at o vigsimo andar, enquadra umadas janelas, descobre um hall cheio de escrivaninhas, entra, avana echega at uma escrivaninha atrs da qual est o heri. Ou tambm oclebre plano de A Ultima Gargalhada, de Murnau: a cmera sobre umabicicleta, inicialmente colocada num elevador, desce com ele e capta o halldo grande hotel atravs das vidraas, operando incessantesdecomposies e recomposies, depois "corre atravs do vestbulo e dosenormes batentes da porta giratria num nico e perfeito travelling". A

    cmera, aqui, carrega consigo dois movimentos, dois mveis ou doisveculos, o elevador e a bicicleta. Ela pode mostrar um, que faz parte daimagem, e esconder o outro (pode tambm, em certos casos, mostrar naimagem a prpria cmera). Mas no isso que interessa. O que interessa que a cmera mvel como um equivalente geralde todos os meios delocomoo que ela mostra ou dos quais se serve (avio, carro, barco,bicicleta, marcha, metr...). Desta equivalncia Wenders far a alma dedois de seus filmes, No Correr do Tempo e Alice nas Cidades, introduzindo

    assim no cinema uma reflexo particularmente concreta sobre o cinema.Em outras palavras, o prprio da imagem-movimento cinematogrfica extrair dos veculos ou dos mveis o movimento que sua substnciacomum, ou extrair dos movimentos a mobilidade que a sua essncia.Era a aspirao de

    Bergson: extrair, a partir do corpo ou do mvel ao qual nossapercepo natural vincula o movimento como a um veculo, uma simples"mancha" colorida, a imagem-movimento, que "em si mesma se reduz a

    uma srie de oscilaes extremamente rpidas" e "no passa, na

    17 Pudovkin, cit. por Lherminier,L Art du Cinma,Seghers, p. 192. Tambm conhecido porO Ultimo dos Homensou O Ultimo Homem.

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    31/2

    realidade, de um movimento de movimentos".18 Ora, aquilo de queBergson considerava o cinema incapaz, porque levava em conta apenas oque se passava no aparelho (o movimento homogneo abstrato dodesfilar das imagens), aquilo de que o aparelho o mais capaz,eminentemente capaz: a imagem-movimento, isto , o movimento puroextrado dos corpos ou dos mveis. No se trata de uma abstrao, masde uma liberao. Trata-se sempre de um grande momento no cinema,como em Renoir, quando a cmera deixa um personagem e at lhe vira ascostas, adquirindo um movimento prprio ao cabo do qual ela oreencontrar.19

    Ao operar assim um corte mvel dos movimentos, o plano no secontenta em exprimir a durao de um todo que muda, mas faz

    incessantemente variarem os corpos, as partes, os aspectos, asdimenses, as distncias, as posies respectivas dos corpos quecompem um conjunto na imagem. Um se faz atravs do outro. porqueo movimento puro faz variar por fracionamento os elementos do conjuntosegundo denominadores diferentes, porque decompe e recompe oconjunto, que ele tambm se reporta a um todo fundamentalmenteaberto, cuja particularidade "se fazer" sem cessar, ou mudar, durar. Evice-versa. Foi Epstein quem mais profunda e mais poeticamente destacouessa natureza do plano como puro movimento, comparando-o a uma

    pintura cubista ou simultanesta: "Todas as superfcies se dividem, setruncam, se decompem, se quebram, como se imagina que acontece noolho de mil facetas do inseto. Geometria descritiva cuja tela o plano detopo. Em vez de se submeter a perspectiva, o pintor fende-a, entra nela(...). A perspectiva do exterior substituda, assim, pela perspectiva dointerior, uma perspectiva mltipla, cambiante, ondulosa, varivel econtrctil como um higrmetro a cabelo. Ela no a mesma a direita que esquerda, nem no alto e embaixo. Vale dizer que as fraes que o pintor

    apresenta da realidade no tm os mesmos denominadores de distncia,nem de relevo, nem de luz". que o cinema, ainda mais diretamente que

    18 Bergson,Matire et Mmoire, p. 331 (219);La Pense et le Mouvant,pp. 1382-1383 (164-165).Encontraremos freqentemente em Gance a mesma expresso "movimentos de movimentos". (Aintroduo aLa Pense et le Mouvant esttraduzida no volumeBergson,"Os Pensadores", Ed.

    Abril, 1984. VerO Pensamento eoMovente,trad. Franklin Leopoldo da Silva, pp. 101-151. N. T.)19 Cf. a anlise de Andr Bazin que tornou clebre uma grande panormica de Renoi, emLe Crime

    de M. Lange: a cmeraabandona um personagem numa extremidade do ptio, volta no sentidocontrrio varrendo o lado vazio do cenrio, para atingir o personagem na outra extremidade doptio, onde ele vai cometer seu crime(Jean Renoir,Champ Libre, p. 42: "este espantoso

    movimento de aparelho (...) a expresso espacial de toda amire-en-scne"). Higrmetro a cabelo: os higrmetros so instrumentos da fsica que servem para medir o grau deumidade atmosfrica. O higrmetro a cabelo um modelo mais simples de higrmetro porabsoro, que se baseia no fato de que algumas substncias orgnicas variam de volume quandorecebem umidade.(N.T.)

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    32/2

    a pintura, d um relevo no tempo, uma perspectiva no tempo: exprime oprprio tempo como perspectiva ou relevo.20 por isso que o tempoadquire essencialmente o poder de se contrair ou de se dilatar, assimcomo o movimento o de retardar ou acelerar. Epstein toca de perto oconceito de plano: um corte mvel, quer dizer, uma perspectivatemporal ou uma modulao. A diferena entre a imagem cinematogrficae a imagem fotogrfica decorre disso. A fotografia uma espcie de"moldagem": o molde organiza as foras internas da coisa de tal modoque elas atingem um estado de equilbrio num certo instante (corteimvel). Enquanto a modulao no se detm quando o equilbrio atingido, e no pra de modificar o molde, de constituir um moldevarivel, contnuo, temporal.21 Assim a imagem-movimento, que, desteponto de vista, Bazin opunha fotografia: "O fotgrafo procede, por

    intermdio da objetiva; a uma verdadeira captao do registro luminoso,a uma moldagem (...) (Mas) o cinema realiza o paradoxo de moldar-sesobre o tempo do objeto e de captar, alm do mais, o registro de suadurao".22

    3

    O que acontecia no tempo da cmera fixa? A situao foi muitas vezesdescrita. Em primeiro lugar, o quadro definido por um ponto de vistanico e frontal, que o do espectador sobre um conjunto invarivel: noh, portanto, comunicao de conjuntos variveis remetendo-se uns aosoutros. Em segundo lugar, o plano uma determinao unicamenteespacial que indica uma "poro" de espao a esta ou aquela distncia dacmera, do primeiro plano ao plano distante (cortes imveis): omovimento no , assim, liberado por si mesmo e permanece preso aoselementos, personagens e coisas, que lhe servem de mvel ou de veculo.

    Finalmente, o todo se confunde com o conjunto em profundidade, de talmodo que o mvel o percorre passando de um plano espacial a outro, deuma poro paralela a uma outra, cada uma com sua independncia ouseu foco: portanto, no h propriamente nem mudana nem durao, namedida que a durao implica uma outra concepo da profundidade, queembaralha e desloca as zonas paralelas, em vez de superp-las. Podemos,

    20 Epstein(crits,Seghers, p. 115) escreve esse texto a propsito de Fernand Lger, que foi sem

    dvida o pintor mais prximodo cinema. Mas ele retomar seus termos diretamente a

    p

    ropsito docinema (pp. 138 e 178).21 A propsito desta diferena entre moldagem e modulao em geral, cf. Simondon, G.,L'Individu et

    sa Gnse Physico-Biologique,PUF, pp. 40-42.22 Andr Bazin, Quest-ce que le Cinma?,Ed. du Cerf,p.151.

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    33/2

    assim, definir um estado primitivo do cinema no qual a imagem est emmovimento em vez de ser imagem-movimento; e com relao a esteestado primitivo que se exerce a crtica bergsoniana.

    Mas, se perguntamos como se constituiu a imagem-movimento, ou

    como o movimento se liberou das pessoas e das coisas, constatamos queisto se deu sob duas formas diferentes, e, nos dois casos, de maneiraimperceptvel: por um lado, evidentemente, atravs da mobilidade dacmera, quando o prprio plano torna-se mvel; mas por outro lado,tambm, atravs da montagem, isto , do raccordde planos, cada um oua maioria dos quais podiam perfeitamente continuar fixos. Uma puramobilidade podia ser atingida desse modo, extrada dos movimentos depersonagens, com muito pouco movimento da cmera: era at o caso

    mais freqente, e especialmente ainda o do Fausto, de Murnau, ficando acmera mvel reservada para cenas excepcionais ou momentosmarcantes. Ora, ambos os meios se vero nos seus primrdios numacerta obrigao de se esconder: no s os raccords de montagem (porexemplo, raccords no eixo) deviam ser imperceptveis, como tambm osmovimentos da cmera, na medida que se referiam a momentosordinrios ou cenas banais (movimentos de uma lentido prxima dolimite da percepo23). E que as duas formas ou meios s intervinhampara realizar um potencial contido na imagem fixa primitiva, isto , no

    movimento enquanto ainda preso as pessoas e coisas. este movimentoque j era prprio do cinema, e que reclamava uma espcie de liberao,no podendo se contentar com os limites em que o mantinham ascondies primitivas. Tanto que a imagem dita primitiva, a imagem emmovimento, definia-se menos por seu estado que por sua tendncia. Oplano espacial ou fixo tendia a propiciar uma imagem-movimento pura,tendncia que passava a atuar insensivelmente atravs da mobilizao da

    O termoraccordno tem traduo entre ns. Usa-se a frmula francesa que, segundo o crticoNoel Burch, pode ter dois sentdos: o primeiro corresponde noo de "corte" ou "corte simples",e designa a mudana de plano: nesse sentido usa-se o termo "corte". No segundo est contidareferncia maneira como se d a mudana de plano; usa-se o termoraccord,que se refere,ento, a qualquer elemento de continuidade entre dois ou vrios planos. Noel Burch distinguevrias modalidades deraccord: aonvel dos objetos (um objeto que consta de um plano deveconstar de outro com o qual ele faz raccord);ao nvel do espao(raccordsde olhar, de direo, deposio seja de objetos, seja de pessoas); ao nvel do espao-tempo (envolvendo os diferentestipos de relao que podem existir entre a decupagem no espao e a decupagem no tempo). NoelBurch,Praxis do Cinema,Lisboa, Editorial Estampa, 1973. (N. T.)

    23 Estes pontos essenciais foram analisados por Noel Burch: 1) oraccordde montagem e osmovimentos de cmeratmorigens muito diferentes; Griffith quem codifica osraccords, mas

    fazendo da cmera mvel um uso excepcional(Nascimento de Uma Nao); Pastrone quem fazda cmera mvel um uso ordinrio, mas negligenciando osraccordse situando-se "sob o signoexclusivo da frontalidade, caractersticos do primeiro cinema primitivo" (Cabria);2) mas em Griffithe em Pastrone os dois procedimentos fazem face a uma mesma condio de imperceptibildadevoluntariamente procurada (Noel Burch,Marcel L'Herbier, Seghers, pp. 142-145):

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    34/2

    cmera no espao, ou ento atravs da montagem de planos mveis ousimplesmente fixos no tempo. Como diz Bergson, apesar de no o tervisto para o cinema, as coisas nunca se definem pelo seu estado primitivo,mas pela tendncia oculta nesse estado.

    Podemos reservar a palavra "plano" para as determinaes espaciaisfixas, pores de espao ou distncias em relao a cmera: como fazJean Mitry, no apenas quando denuncia a expresso "plano-seqncia",segundo ele incoerente, mas com mais razo ainda quando v notravelling no um plano, mas uma seqncia de planos. ento aseqncia de planos que recebe movimento e durao. Mas como no setrata de uma noo suficientemente determinada, ser preciso criarconceitos mais precisos para distinguir as unidades de movimento e de

    durao: o que veremos com os "sintagmas" de Christian Metz e os"segmentos" de Raymond Bellour. No entanto, do nosso ponto de vista,por enquanto, a noo de plano pode ter unidade e extenso suficiente selhe atribuirmos seu pleno sentido projetivo, perspectivo ou temporal. Comefeito, uma unidade sempre unidade de um ato que compreende,enquanto tal, uma multiplicidade de elementos passivos ou agidos.24

    Nesse sentido, os planos, enquanto determinaes espaciais imveis,podem perfeitamente ser a multiplicidade que corresponde unidade doplano, enquanto corte mvel ou perspectiva temporal. A unidade variar

    de acordo com a multiplicidade que ela contm, mas continuar sendo aunidade desta multiplicidade correlativa.

    Distinguiremos diversos casos a esse respeito. Num primeiro, omovimento contnuo da cmera definir o plano, sejam quais forem asmudanas de ngulo e de pontos de vista mltiplos (por exemplo, umtravelling). Num segundo caso, a continuidade do raccord queconstituir a unidade do plano, embora esta unidade tenha por "matria"dois ou vrios planos sucessivos que podem, alis, ser fixos. Do mesmo

    modo, certos planos mveis podem ter sua distino atribuda unicamentea limitaes materiais, e no entanto formar uma unidade perfeita emfuno da natureza de seu raccord: como em Orson Welles, as duas

    plonges de Cidado Kane, onde a cmera atravessa literalmente umavidraa e penetra dentro de um grande recinto, aproveitando-se da chuvaque se abate contra a vidraa e a quebra. Num terceiro caso, nosencontramos diante de um plano de longa durao fixo ou mvel, "plano-seqncia", com profundidade de campo: um plano desse tipo

    compreende em si mesmo todas as pores de espao simultaneamente,do primeiro plano ao plano afastado, mas no deixa de ter uma unidade

    24 Bergson,Essai sur les Donns Immdiates de la Conscience,p. 55 (60).

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    35/2

    que permite defini-lo como um plano. que a profundidade no maisconcebida a maneira do cinema "primitivo", como uma superposio depores paralelas, em que cada uma diz respeito somente a si mesma,sendo apenas atravessadas por um nico mvel. Ao contrrio, em Renoirou em Welles, o conjunto dos movimentos se distribui em profundidade demodo a estabelecer ligaes, aes e reaes, que nunca se desenvolvemuma ao lado da outra, num mesmo plano, mas se escalonam emdistncias diferentes e de um plano a outro. A unidade do plano conferida aqui pela ligao direta entre elementos tomados namultiplicidade dos planos superpostos que deixam de ser isolveis: arelao das partes prximas e distantes que opera a unidade. A mesmaevoluo aparece na histria da pintura, entre os sculos XVI e XVII: umasuperposio de planos onde cada um preenchido por uma cena

    especfica, e onde os personagens se encontram lado a lado, substitudapor uma viso completamente diferente. da profundidade, em que ospersonagens se encontram em linha oblqua e se interpelam de um planoao outro, em que os elementos de um plano agem e reagem sobre oselementos de um outro plano, em que nenhuma forma, nenhuma cor seencerram num nico plano, em que as dimenses do primeiro planoacham-se anormalmente aumentadas para entrar diretamente em relaocom o plano de fundo atravs da brusca reduo das grandezas.25 Num

    quarto caso, o plano-seqncia (pois h muitos tipos de plano-seqncia)no comporta mais nenhuma profundidade, nem de superposio nem derecuo: ao contrrio, ele rebate todos os planos espaciais sobre um nicoprimeiro plano que passa por diferentes quadros de tal modo que aunidade do plano remete a perfeita planura da imagem, enquanto amultiplicidade correlativa conferida pelos reenquadramentos. Era o caso

    25

    Essas duas concepes da profundidade na pintura, nos sculos XVI e XVII, foram estudados porWlfflin num belssimo captulo dosPrincipes Fondamentaux de l'Histoire de l'Art,Gallimard ("Planset profondeurs"). O cinema apresenta exatamente a mesma evoluo, como dois aspectos muitodiferentes da profundidade de campo que foram analisados por Bazin ("Pour en finir avec laprofondeur de champ",Cahiers du Cinma, n1, abril de 1951). Apesar de todas as suas reservascom relao tese de Bazin, Mitry concede-lhe o essencial: numa primeira forma, a profundidade recortada segundo pores superpostas isolveis, onde cada uma vale por si prpria (assim emFeuillade ou em Griffith); mas, em Renoir e em Welles, uma outra forma que substitui as porespor uma interao perptua, curto-circuitando o primeiro plano e o plano de fundo. Ospersonagens no se encontram mais num mesmo plano, eles se reportam uns aos outros e seinterpelam de um plano ao outro. Os primeros exemplos dessa nova profundidade estariam talvezemOuro e Maldio,de Stroheim, e corresponderiam perfeitamente anlise de Wlfflin: assim, a

    mulher se sobressalta num plano prximo, enquanto seu marido entra pela porta do fundo, e umraio de luz vai de um at o outro. (Conceitos Fundamentais da Histria da Arte,trad. Joo AzenhaJnior, Ed. Martins Fontes, 1984.Primeiro planoeplano de fundoso termos de perspectiva queindicam diferenas de profundidade. nesse sentido que sero usados tambm por Deleuze naanlise desenvolvida neste trecho. N. T.)

  • 5/24/2018 (Livro) DELEUZE, Gilles - Cinema, A Imagem - Movimento

    36/2

    de Dreyer, nos seus planos-seqncia anlogos a superfcies chapadas, eque negam qualquer distino entre diferentes planos espaciais, fazendo omovimento passar por uma srie de reenquadramentos que se substituema mudana de plano (Gertrud e A Palavra).26 As imagens semprofundidade ou com profundidade rasa formam um tipo de planocorredio e deslizante, que se ope ao volume das imagens profundas.

    Em todos esses sentidos, o plano tem realmente uma unidade. umaunidade de movimento, e como tal compreende uma multiplicidadecorrelativa que no o contradiz.27 No mximo pode-se dizer que essaunidade submete-se a uma dupla exigncia em relao ao todo, cujamudana ela exprime ao longo do filme e em relao as partes, cujosdeslocamentos em cada conjunto e de um conjunto ao outro ela

    determina. Pasolini exprimiu essa dupla exigncia de uma maneira muitoclara. Por um lado, o todo cinematogrfico seria um nico e mesmo plano-seqncia analtico, ilimitado por direito, e teoricamente contnuo; poroutro, as partes do filme seriam de fato planos descontnuos, dispersos,disseminados, sem ligao imputvel. preciso, portanto, que o todorenuncie a sua idealidade e se torne o todo sinttico do filme que serealiza na montagem das partes; e, inversamente, que as partes seselecionem, se coordenem, entrem em raccords e ligaes quereconstituam pela montagem o plano-seqncia virtual ou o todo analtico

    do cinema.28

    Mas no existe essa diviso entre o que de fato e o que de direito(que implica em Pasolini uma grande repulsa pelo pla