livro conhecimento escolar ciência e cotidiano alice casimiro lopes

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  • CONHECIMENTO ESCOLAR:CINCIA E COTIDIANO

  • UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

    ReitorAntnio Celso Alves Pereira

    Vice-reitoraNilca Freire

    EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

    Conselho EditorialElon Lages LimaGerd Bornheim

    Ivo Barbieri (Presidente)Jorge Zahar (in memoriam)

    Leandro KonderPedro Luiz Pereira de Souza

  • Rio de Janeiro1999

    Alice Ribeiro Casimiro Lopes

    CONHECIMENTO ESCOLAR:CINCIA E COTIDIANO

  • EdUERJEditora da UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRORua So Francisco Xavier 524 - MaracanCEP 20550-013 - Rio de Janeiro - RJTel./Fax: (021) 587-7788 Tel. (021) 587-7789 / 587-7854 / 587-7855e-mail: [email protected]

    Coordenao de Publicao Renato CasimiroCoordenao de Produo Rosania RolinsProjeto Grfico e Capa Heloisa FortesDiagramao Celeste de FreitasReviso Ana Silvia GesteiraApoio Administrativo Maria Ftima de Mattos

    Copyright 1999 by Alice Ribeiro Casimiro LopesTodos os direitos desta edio reservados Editora da Universidade do Estado do Rio deJaneiro. proibida a duplicao ou reproduo deste volume, no todo ou em parte, sobquaisquer meios, sem a autorizao expressa da Editora.

    CATALOGAO NA FONTEUERJ/REDE SIRIUS/PROTAT

    L864 Lopes, Alice Ribeiro Casimiro.Conhecimento escolar : cincia e cotidiano / Alice Ribeiro

    Casimiro Lopes. Rio de Janeiro : EdUERJ, 1999.236p.

    ISBN 85-85881-71-2

    1. Currculos. 2. Abordagem interdisciplinar do conheci-mento. I. Ttulo.

    CDU 371.214

  • memria do professor Jos Amrico Motta Pessanha,com quem aprendi, bachelardianamente,

    que somos o limite de nossas iluses perdidas

  • 7Sumrio

    PREFCIO ............................................................................................... 9APRESENTAO ............................................................................................. 13INTRODUO ............................................................................................. 17A PROBLEMTICA DA CULTURA E DO CONHECIMENTO ........................................... 33I - Pluralismo e descontinuidade da razo, do real e do mtodo ............... 35

    I.1 - Contra o monismo metodolgico nas cincias fsicas ................... 36I.2 - Marx e a crtica ao empirismo nas cincias sociais ...................... 44I.3 - Pluralismo, descontinuidade e argumentao ................................. 48

    II - Cultura, saber e conhecimento ................................................................. 63II.1 - Cultura ............................................................................................. 64II.2 - Processo de diviso social da cultura ............................................ 73II.3 - Seleo cultural ............................................................................... 84II.4 - O problema da legitimidade dos saberes ...................................... 93

    SABERES EM RELAO AOS QUAIS O CONHECIMENTOESCOLAR SE CONSTITUI .............................................................................. 103

    III - Conhecimento cientfico ......................................................................... 106III. 1 - O que cincia ? ....................................................................... 109III. 2 - A descontinuidade no conhecimento cientfico ........................ 117III. 2.1 - Recorrncia histrica ............................................................... 121III. 2.2 - A ruptura entre conhecimento comum e conhecimento cientfico nas cincias fsicas .................................................. 123III. 2.3 - Para uma nova cincia, uma nova filosofia .......................... 129

    IV - O conhecimento cotidiano ...................................................................... 137IV. 1 - Cotidianidade: vida e conhecimento ......................................... 139IV. 2 - Conhecimento cotidiano: senso comum e saberes populares .. 147IV. 3 - Conhecimento cotidiano e diviso social do conhecimento .... 153

  • 8CONHECIMENTO ESCOLAR EM FOCO .................................................................... 157V - Coordenao de anlises epistemolgicas e sociolgicas .................... 161VI - Processo de disciplinarizao ................................................................ 175

    VI.1 - A noo de disciplina ................................................................ 175VI.2 - Estratificao e compartimentao do conhecimento ............... 183VI.3 - Tenso disciplinaridade-interdisciplinaridade ............................ 194

    VII - Processo de mediao (ou transposio) didtica ................................ 201CONCLUSES ........................................................................................... 221

  • 9Desagradam-me muitos prefcios. Alguns, dotados de altoteor laudatrio, limitam-se a derramar elogios sobre o autor e suaobra, buscando antecipar (nem sempre devidamente) o que precisariaser opinio formada aps livre e cuidadosa leitura. Por exagerarem,no merecem ser levados a srio. Acabam fracassando, ento, natentativa de convencer o leitor do valor do texto. Outros, muitoextensos, esforam-se por aprofundar as questes tratadas no livro e,correndo em paralelo, tornam-se, quase, um outro livro. Em vez deestimularem, cansam o leitor. Em resumo, tanto a louvao como ominilivro cumprem mal a funo de propaganda. A meu ver, um bomtexto pode dispens-los, pode falar por si mesmo.

    Como fugir, ento, a ambos? Que esperar de um prefcio?Talvez, como prope Magda Becker Soares, caiba a quem o redigeesclarecer ao leitor por que o livro se sustenta por si prprio e comose situa no conjunto dos demais estudos da rea. Ou seja, tratar-se-ia de contextualizar o texto e destacar seus principais avanos. Porconcordar, este o caminho que percorro ao prefaciar o livro deAlice Casimiro Lopes.

    A obra aborda questes de conhecimento escolar, portanto,questes de currculo. Se entendermos currculo como o faz TomazTadeu da Silva, como o espao em que se desdobram as experinciasde conhecimento que a escola propicia aos estudantes, o que Alicediscute sem sombra de dvida, currculo. Seu livro, insere-se, ento,no conjunto da recente produo que toma o currculo como objetode estudo. J vale, nesse ponto, assinalar uma contribuio: a autorad alento a um campo que, a despeito de um significativo

    PREFCIO

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    desenvolvimento nas ltimas dcadas, ainda carece e precisabeneficiar-se de novas e originais reflexes.

    Mais voltado, em seus primrdios, para questes de ordemprtica, preocupado dominantemente com o processo de planejar,implementar e avaliar, o campo do currculo no Brasil ganhavisibilidade, nas dcadas de 60 e 70, com os livros de Marina Couto,Dalila Sperb e Lady Lina Traldi. Nossas especialistas refletem, nessemomento, a preocupao com a construo cientfica, na escola, deum ambiente de aprendizagem capaz de proporcionar ao alunoexperincias que instrumentalizassem o alcance de metas pr-definidas.Incorporam, assim, os pontos de vista dos autores americanosassociados ao progressivismo americano e ao que no Brasilconvencionamos chamar de tecnicismo.

    Na dcada de 70, o campo do currculo americano passapor um processo de reconceptualizao, em que se rejeitam os rumose as nfases anteriores e se acentua o carter poltico das decisescurriculares. Nesse processo notabilizam-se os nomes de William Pinar,Michael Apple e Henry Giroux, a despeito das diferenas que osdistinguem. No Brasil, porm, somente nos anos 80, quando todanossa literatura pedaggica sofre intensa transformao, que asdiscusses curriculares passam a dirigir sua ateno para a seleo doconhecimento escolar e seus efeitos no sucesso ou no fracasso denossas crianas na escola. Defendem distintas perspectivas, nesseinstante, os adeptos da pedagogia crtico-social dos contedos e osdefensores da educao popular. Esse debate marca, inevitavelmente,os rumos do campo. Nessa mesma dcada de 80, nossos especialistascomeam a sofrer a influncia dos estudos da teoria crtica de currculo,tal como desenvolvida nos Estados Unidos, principalmente, e naInglaterra.

    As atenes se desviam, ento, do planejamento para acompreenso do processo curricular, focalizando-se, dominantemente,questes de seleo, organizao, hierarquizao e distribuio doconhecimento escolar e relacionando-as estrutura de poder docontexto social mais amplo. A preocupao com tais temas evidentenas obras dos socilogos do currculo mais conhecidos entre ns Michael

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    Apple, Henry Giroux, Peter McLaren, Michael Young e Basil Bernstein.A teorizao curricular crtica responsvel, em seus vinte

    e muitos anos de existncia, por numerosa produo, ainda que, aofinal do sculo, seja vista em crise, com sua capacidade de anliseesgotada. Novas tendncias e novas influncias parecem contribuirpara que se avalie que ela no mais responde aos desafios prticosque lhe so colocados. Penso, porm, que esse discurso, responsvelpor significativa renovao no campo, apresenta, em tempos ps-modernos, possibilidades no cumpridas e pode mesmo vir a oxigenar-se com a contribuio dos novos referenciais que o atravessam.

    No pretendendo discutir a crise por que passa a tendnciacrtica, deixo-a de lado. Volto renovao a que me referi para nelaincluir os nomes de Ana Maria Saul, Iracema Lima Pires Ferreira,Jos Alberto Pedra, Jos Luiz Domingues, Nilda Alves e TeresinhaFres Burnham, membros histricos do Grupo de Trabalho deCurrculo da ANPEd (Associao Nacional de Ps-graduao ePesquisa em Educao), bem como os de Tomaz Tadeu da Silva,Alfredo Veiga Neto e Regina Leite Garcia, que mais recentementevieram a se incorporar ao referido GT. Destaco tambm o nome deLucola Santos que, ainda que participante de outro GT Didtica , tem apresentado expressiva contribuio para a discusso doconhecimento escolar.

    Alice Casimiro Lopes ilustre membro da chamada segundagerao do GT de Currculo, juntamente com Corinta Geraldi,Elizabeth Macedo, Marlucy Paraso, Nereide Saviani, Regina CoeliCunha e Sandra Mara Corazza, dentre outros, tem incorporado erevigorado as reflexes desenvolvidas pelos histricos sobre oconhecimento escolar. Mas em que, especificamente, Alice inova,neste livro que tenho o prazer de prefaciar? o que passo a comentar.

    Elaborado no incio da segunda metade da dcada de 90, olivro preserva, com muita propriedade, a preocupao da teorizaocrtica com o conhecimento escolar. Procura entender como se d asua produo no mbito da instituio educativa, bem como de quemaneira tal processo pode facilitar a divulgao (no a trivializao)do chamado conhecimento cientfico, de tanto prestgio entre ns

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    contemporaneamente. Nesse sentido, cabe realar o esforo porassociar o que Mirian Warde chama de ensino de s discussesmais gerais que vm caracterizando o campo do currculo, reforando,portanto, o indispensvel dilogo entre os especialistas em ensino decincias e os que estudam currculo e ensino em termos maisabrangentes.

    Alice vai ainda mais alm, ao caminhar na tenso que seestabelece quando se procura pensar processos prprios a qualquerconhecimento escolar, processos especficos de uma dada disciplina,relaes entre o conhecimento escolar e o saber de referncia, bemcomo situar as constituies e as caractersticas de uns e de outros noseio das discusses da cultura e de suas diferentes manifestaes. Daas indagaes que prope: que entender por conhecimento escolar?Como se forma esse conhecimento? H na escola possibilidade decriao de algo novo ou apenas se reelabora o que se produz emoutros espaos? Que peculiaridades assume, nessa dinmica, oconhecimento cientfico escolar? Como se relaciona com as diferentesmodalidades de produo cultural?

    Ressalto como importante contribuio da autora, aodesenvolver sua argumentao, a ousadia de articular as preocupaese os referenciais da sociologia do currculo a consideraes de cunhoepistemolgico, passo, segundo ela, indispensvel a uma compreensomais profunda do conhecimento escolar. Alice acrescenta: essaarticulao se deve fazer com o recurso no a qualquer epistemologia,mas a uma epistemologia histrica e a uma perspectiva descontinustada cincia. Nesse quadro, relativismo e universalismo podem, a seuver, ser repensados e melhor entendidos.

    No pretendo antecipar demais os argumentos e os pontosde vista de Alice. Terminando o prefcio, espero ter conseguidolocalizar o texto nos rumos do campo do currculo e destacar por queele se sustenta por si prprio. Espero tambm ter estimulado o leitora degust-lo, com prazer. Por via das dvidas, reitero o convite: leiamo livro. Vale a pena.

    Antonio Flavio Barbosa Moreira

  • 13

    Inicialmente, este trabalho1 foi motivado pelo interesse deampliar questes prprias da pesquisa em Ensino de Cincias,inserindo-as na problemtica do campo do Currculo. Aps mais dedez anos atuando como professora de Qumica, participando deencontros e desenvolvendo trabalhos de pesquisa em Ensino deQumica, sentia a necessidade de ultrapassar as fronteiras da sala deaula de uma disciplina especfica para compreender a Educao comofenmeno social mais abrangente. Afinal, a Educao no restritaao ensino, relao pedaggica professor-aluno, nem tampouco escola. Sem dvida fazem-se necessrios trabalhos de pesquisa comrespeito s metodologias de ensino em Cincias, contudo no podemosdesconsiderar as relaes entre as concepes de conhecimento ecultura e os processos de ensino-aprendizagem na sala de aula, sobpena de no conseguirmos melhorar nem compreender os processosgestados no espao escolar. Assim, foi no cruzamento desses contextosdiversos que procurei me movimentar, tendo sido fundamental paraisso a sintonia com o campo do Currculo.

    O foco central deste trabalho o conhecimento escolar esuas inter-relaes com o conhecimento cientfico e o conhecimentocotidiano. O eixo argumentativo orientador desta anlise ainterpretao pluralista e descontinusta de cultura, fundamentada nopluralismo da razo, do real e do mtodo. Essa interpretao concebea existncia de diferentes saberes embasados em diferentesracionalidades e, por conseguinte, concebe a existncia de uma rupturaentre conhecimento cientfico e conhecimento cotidiano.

    APRESENTAO

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    A partir desses pressupostos, proponho-me a analisar ascontradies engendradas pela apropriao do conhecimento cientficono espao escolar e o entendimento do conhecimento escolar comouma instncia prpria de conhecimento. Desta forma, objetivocontribuir para a anlise dos processos constitutivos do conhecimentoescolar a partir de uma reflexo sobre currculo e cultura, questescentrais hoje nas pesquisas nos campos de Currculo e Didtica eque, a meu ver, precisam iluminar pesquisas em Ensino de Cincias.Em face deste objetivo, construo minha argumentao, considerando,como possveis leitores, pesquisadores e pesquisadoras nesses temas,mas tambm professores e professoras dos diversos nveis de ensino,bem como todos aqueles que se interessam pelos rumos da educaoe da cultura neste pas.

    Como nunca demais reafirmar, todo trabalho de pesquisae de reflexo terica pode ser solitrio, porm nunca deixa de sercoletivo (e socialmente construdo). H sempre a necessidade dacolaborao direta e indireta de vrias pessoas, ainda que aresponsabilidade pela produo final seja toda de quem assina. Assim,no possvel deixar de agradecer, especialmente:

    - ao professor Antonio Flavio Barbosa Moreira, pelaconstante cobrana e questionamento, pela disponibilidade, pelo apoiointelectual no processo de orientao da tese que deu origem a estelivro, mas, acima de tudo, pela amizade;

    - aos professores Hilton Japiassu, Creso Franco Jnior,Gaudncio Frigotto e Pedro Benjamin Garcia, pelos comentrios feitospor ocasio da defesa de tese;

    - aos companheiros do Grupo de Trabalho de Currculo daANPEd, interlocutores de minhas idias, sempre questionadores e,por isso mesmo, sempre colaboradores;

    - aos integrantes da Diviso de Ensino de Qumica daSociedade Brasileira de Qumica, em especial ao Conselho Editorialde Qumica Nova na Escola Attico Chassot, Eduardo Mortimer,Jlio Lisboa, Lenir Zanon, Marcelo Giordan, Nelson Beltran, RobertoRibeiro da Silva, Romeu Cardoso Filho e Roseli Schnetzler ,

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    companheiros na difcil luta pela melhoria do ensino de Qumica nopas e, tambm, interlocutores, amigas e amigos com os quais tenhoo privilgio de conviver;

    - minha famlia, por compreender minhas ausncias tofreqentes e particularmente ao meu irmo Ricardo, pelas sugestesapresentadas, aps a leitura atenta dos originais;

    - aos amigos e s amigas da Escola Tcnica Federal deQumica do Rio de Janeiro - escola onde fiz meu nvel mdio, ondeposteriormente trabalhei por mais de dez anos como professora e que,por isso mesmo, marcou minha formao e minha vida;

    - aos alunos e s alunas, de hoje, de ontem e de sempre,freqentemente excludos das polticas culturais da escola, e por quemtrabalho, cotidianamente, entre erros, acertos e tropeos. Mas tambms professoras e aos professores, colegas em uma luta contra as relaessociais cada vez mais produtoras de excludos, no apenas dosprocessos econmicos, mas do direito ao consumo e produo decultura, conhecimento e cincia e a uma vida cotidianamente melhor;

    - e por fim, mas no por ltimo, ao Agostinho, companheirode vitrias e derrotas, das muitas horas de sofrimento e alegria, dasperdas e conquistas, desse desafio cotidiano, s vezes doloroso, svezes inquietante, mas sempre fascinante, que viver.

    1 O texto deste livro corresponde, com algumas adaptaes, tese de doutoradoConhecimento Escolar: quando as cincias se transformam em disciplinas, defendida naFaculdade de Educao da UFRJ, sob orientao do Prof. Antonio Flavio Barbosa Moreira.Parte deste texto, com moficaes, j foi previamente divulgado sob a forma de artigos,a saber: Bachelard: o filsofo da desiluso. Caderno Catarinense de Ensino de Fsica.Florianpolis, v. 13, n. 3, p. 178-276, dez, 1996; Conhecimento escolar em Qumica:processo de mediao didtica da cincia. Qumica Nova. So Paulo, v. 20, p. 563-568,set/out, 1997; Conhecimento Escolar: processos de seleo cultural e de mediao didtica.Educao & Realidade. Porto Alegre, 1997, v. 21, n. 1.; Conhecimento Escolar: inter-relaes com conhecimentos cientficos e cotidianos. Contexto & Educao. Iju, Uniju,v. 11, n. 45, p. 40-59, jan/mar, 1997; Pluralismo Cultural e Polticas de Currculo Nacional.XX Reunio Anual da ANPEd . Caxambu, set. 1997.

    NOTAS

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    Quando me propus a analisar as relaes entre o conheci-mento escolar nas cincias fsicas e os demais saberes sociais,notadamente o conhecimento cientfico1 e o conhecimento cotidiano,tinha em mente cinco pressupostos centrais. O primeiro deles consis-tia na compreenso de que os problemas de ensino-aprendizagem,seja em cincias ou em qualquer outro campo do conhecimento, nose resumem a questes metodolgicas. Exigem, igualmente, uma pro-funda anlise do processo de construo social do conhecimento, dosprocessos histricos de construo dos conceitos cientficos e dalegitimao ou no de diferentes saberes. Em outras palavras, h quese compreender os aspectos epistemolgicos e sociolgicos associa-dos ao problema educacional de uma forma mais ampla.

    Em segundo lugar, considerava importante trazer para areflexo do campo educacional as anlises da epistemologia histri-ca, uma epistemologia capaz de no limitar a compreenso do conhe-cimento: seja por consider-lo como produto absoluto, acabado,atemporal e anistrico, seja por recair em uma perspectiva relativista,que no admite a existncia de saberes mais favorveis do que outrosem dado contexto objetivo. Essa minha considerao decorria do fatode constatar como a Nova Sociologia da Educao (NSE) marcou aSociologia do Currculo e suas concepes de conhecimento com umvis crtico aos critrios epistemolgicos.

    Afinal, a NSE, ao se opor a uma Filosofia do Currculo dematriz racionalista anglo-saxnica, como a desenvolvida por PaulHirst e Richard Peters, optou por no oferecer nenhum critrio de

    INTRODUO

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    verdade e nenhuma epistemologia explcita, procurando problematizartudo o que conta como conhecimento e discutir qual o status de quemvalida como verdade dados conhecimentos. Nesse ponto de vista, overdadeiro critrio de validao do saber encontrado na capacidadede um dado saber contribuir para a libertao humana2 . Com isso, aconcepo sociolgica do currculo, no raramente, envereda porperspectivas relativistas3 e contribui para a viso de que todo o campoda epistemologia deve ser considerado como empirista, nos moldesdo tecnicismo, ou como embasado em uma racionalidade limitada, talqual o positivismo e o cartesianismo, sem admitir a possibilidade deuma epistemologia tambm problematizadora.

    Mas, ao contrrio, a epistemologia no se resume sperspectivas que concebem o conhecimento como fundamentadopor uma entidade transcendente Deus, a Natureza ou a Razo.Essas so possveis epistemologias, que pouco tm a contribuirpara uma perspectiva crtica, justamente por no se disporem adiscutir as rupturas do conhecimento, sua pluralidade e o carterprovisrio das verdades cientficas. Dessa forma, considerava podercontribuir para o trabalho da sociologia do currculo a partir dasconcepes da epistemologia histrica, visando a enriquecer aproblematizao sobre o conhecimento escolar que vem sendodesenvolvida no pas4 .

    Em terceiro lugar, colocava-se como pressuposto centralem minhas reflexes, o entendimento de que, embora a escola noseja restrita ao cognitivo, h nos processos curriculares umacentralidade do conhecimento e da cultura. Ainda que no possamosdesconsiderar as demais instncias da escola o ldico, o afetivo, ocorporal , o currculo eminentemente um campo de polticasculturais, terreno de acordos e conflitos em torno da legitimao ouno de diferentes saberes, capaz de contribuir na formao deidentidades individuais e sociais. Na medida em que a escola compreendida socialmente como tendo por principal funo ensinar,transmitir conhecimento e cultura, de forma a tornar pblico umconhecimento privativo de determinados grupos sociais, apresentam-

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    se como extremamente relevantes as questes referentes aoconhecimento escolar.

    Como quarto pressuposto, situava-se o entendimento de quea perspectiva pluralista de cultura seria capaz de contribuir para aanlise de diferentes saberes sociais, inclusive do conhecimento escolar,sem submet-los idia de que so um conjunto de mltiplasmanifestaes passveis de serem unificadas em um todo nico. Talidia de uma multiplicidade emprica que em ltima instncia seorganiza em um saber uno, justificado por uma razo, um real e ummtodo igualmente nicos, freqentemente se faz dominante, nos maisdiferentes contextos sociais, e atua ideologicamente como valorizadorade alguns saberes (e algumas racionalidades) em detrimento de outrossaberes (e de outras racionalidades). Portanto, deve ser questionadaem seu prprio processo de constituio.

    Como quinto e ltimo pressuposto, existia a preocupaoem entender a dimenso produtiva do conhecimento escolar,focalizada por Chervel5 e Forquin6 , especificamente no mbitodas cincias fsicas. Segundo esses autores, o conhecimento escolar essencialmente uma cultura de segunda mo em relao culturade criao: subordinada funo de mediao didtica edeterminada pelos imperativos decorrentes dessa funo. Ou seja,o conhecimento cientfico e/ou erudito no pode ser transmitidona escola tal qual produzido. H necessidade de processos detransposio didtica, capazes de tornar os saberes escolaresdotados de especificidade, frente aos conhecimentos cientficos e/ou eruditos. Nesse sentido, a escola verdadeiramente criadora deconfiguraes cognitivas e de habitus7 originais, constituintes deuma cultura escolar sui generis. Portanto, h uma diferena, nonecessariamente indesejvel, entre saber ensinado e saber dereferncia: as novas configuraes cognitivas, construdas pelaescola ao reconstruir o saber de referncia, podem trabalhar nosentido de formar habitus desejveis no educando, habitus essesque no seriam produzidos pela simples transmisso do saber dereferncia.

  • 20

    Porm, quando se trata do conhecimento escolar nascincias fsicas, a definio de suas caractersticas prprias semostra mais controversa, uma vez que se trata de um conhecimentoaltamente valorizado socialmente, entendido como sistematizado epr-definido. Ou seja, tende-se a considerar qualquer transformaodo conhecimento cientfico no contexto escolar como um erro ou,ao menos, uma simplificao problemtica. Por outro lado, oconhecimento cientfico rompe com os princpios e formas depensar cotidianos, com os quais o conhecimento escolar precisadialogar, o que nos exige compreender como essas inter-relaesentre diferentes saberes sociais podem acontecer, de forma afavorecer a socializao do conhecimento.

    Assim, constitua-se como eixo articulador das questesdecorrentes desses cinco pressupostos a preocupao com a pluralidadecultural e com os conhecimentos cientfico, escolar e cotidiano. Aatualidade dessa temtica amplificada quando constatamos os pro-cessos contraditrios de valorizao / desvalorizao do conhecimen-to observados na sociedade brasileira. Concomitante ao discurso deque a escola a qualidade na escola pode salvar o pas, presentenos projetos de Qualidade Total lanados no Governo Fernando Collor,em todo discurso sobre a educao dominante na campanha eleitoraldo ento candidato presidncia Fernando Henrique Cardoso, em1994, e na atual proposta de seu governo, Acorda, Brasil. Est nahora da escola !, existe uma descrena quanto s possibilidadesdessa mesma escola ensinar algo de til8 . O discurso oficial enfatizaa necessidade de mudar a escola para mudar a sociedade e faz pre-valecer a idia de que a escola se modificar pela ao e vontade decada um de ns, no pela implementao de um projeto poltico queassocie Estado e sociedade civil organizada. Ao mesmo tempo, amdia salienta a m qualidade de ensino e o despreparo dos profes-sores como fatores justificadores das polticas governamentais.

    Por outro lado, constatamos, contraditoriamente, que oprprio conhecimento deixa de ser encarado como importante nosentido mais amplo de compreender / modificar uma realidade adversa,

  • 21

    prevalecendo a nfase no senso comum. Ao mesmo tempo que aracionalidade parece perder foras na sociedade como um todo, acomear por uma valorizao ideolgica do misticismo. As cinciasno so mais consideradas como instncia capaz de permitir alibertao humana, ainda que mantenham seu poder inequvoco ecada vez mais se articulem s polticas globais e s nossas aescotidianas. Mesmo que essa perspectiva permita um questionamentosalutar do modelo de razo ocidental, com base na matriz cartesiana,favorece a valorizao da des-razo, do irracional ou o enaltecimentodo senso comum.

    Nesse contexto, tem-se todo espao aberto opinio, pelopuro e simples fato de ser opinio pblica, esvaziando-seaparentemente o espao dos especialistas. Um exemplo disso so osconstantes levantamentos sobre os assuntos mais diversos: devemosou no privatizar a Vale do Rio Doce?, O Plano Real vai ou nodar certo ?. Programas de televiso, a exemplo do Voc decide,propem aos espectadores a deciso sobre as mais diversas questesscio-comportamentais, como se estas pudessem ser decididas sem oaprofundamento do debate, e a opinio da maioria, por si s, fosse averdade. Ao contrrio, como essa opinio muitas vezes a exacerbaode uma retrica doutrinria, nos dias de hoje muito bem representadapelo discurso da propaganda, esse discurso falsamente democrticoda maioria acentua a ao dos especialistas na defesa de umconhecimento privado contra um conhecimento realmente pblico.

    Em contrapartida, devido aos processos de globalizao daeconomia e mundializao da cultura, somos colocados em meio aum fluxo informacional cada vez maior. O acesso ou no a informaesprivilegiadas define, no invariavelmente, a incluso ou excluso depessoas nos processos de produo. Talvez nunca to claramentetenha se compreendido que o domnio do conhecimento, especialmentedo conhecimento cientfico, central nos processos econmicos.

    Esse quadro traz conseqncias diretas para o panoramaeducacional, principalmente no que se refere funo de construo / transmisso cultural da escola. Afinal, tem sido essa a funo mais

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    importante da escola discutida na Educao, notadamente, a partirdos anos 60. Desde ento, a crise da Educao vem sendo associadaao questionamento da legitimidade do que nela se ensina. Seja apartir da constatao de um descompasso entre o que se ensina naescola e as transformaes sofridas pela cincia e pela tcnica,nitidamente delineada na reao americana subida do Sputnik, sejapela problematizao do conhecimento, ou do que consideradoconhecimento, a partir do desvelamento de seu carter arbitrrio eideolgico.

    Mais precisamente a partir dos anos 70, temos odesenvolvimento do discurso de deslegitimao dos saberes ensinados(reprodutivismo), esboando-se, nos anos 80, a restaurao dos saberes(reao reproduo). Tambm nos anos 70, vemos emergir omovimento da NSE que, dentre suas principais concluses, destacouser o conhecimento escolar constitudo por uma seleo particulare arbitrria de um universo muito mais amplo de possibilidades.H um processo de tradio seletiva, fruto de lutas e conflitosentre grupos e classes sociais, que atua no sentido de valorizardado conhecimento.

    Nessa perspectiva, no existe nenhum currculo neutro eimparcial, nem tampouco um conhecimento escolar absoluto eimutvel. Grupos e classes dominantes atuam no sentido de valorizarsuas tradies culturais como conhecimento, excluindo tradiesculturais de grupos e classes subordinadas. Em vista disso, estudiososem Currculo passam a compreender o processo de criao, seleo,organizao e distribuio do conhecimento escolar como estreitamenterelacionado com os processos sociais mais amplos de acumulao elegitimao da sociedade capitalista9 .

    A compreenso desse fato no nos permite desconstruir opapel da escola como capaz de contribuir para a reproduo dasrelaes sociais excludentes, mas sem dvida nos permite desmascararconcepes tecnicistas e essencialistas de currculo, as quaisdesconsideram questionamentos quanto ao que se ensina na escola etornam reificado o currculo tradicional. Bem como nos permite

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    trabalhar no sentido de uma reformulao curricular que atenda aosinteresses de parcelas mais amplas da sociedade.

    Por outro lado, essa estreita relao entre os processoscurriculares e os processos socioeconmicos mais gerais no nosdeve direcionar para um determinismo mecanicista. A afirmao doscondicionantes econmicos sobre a cultura no deve empobrecer omundo simblico em geral, limit-lo ao campo das conseqncias dabase material, menosprezando, ou mesmo ignorando, sua capacidadeprodutora.

    Assim, o contexto no qual se insere atualmente a escolabrasileira vem redimensionar o intenso debate educacional dos anos80, entre os adeptos da valorizao dos contedos e do saber elaboradoe historicamente acumulado, e os que defendiam a valorizao dosprocessos de conscientizao, e consideravam tal saber como umsaber da classe dominante. Como enfoca Santos10 , a primeira vertenteressalta a necessidade de a escola socializar os conhecimentoshistoricamente acumulados, o que, de certa forma, significa tornar aescola responsvel pela popularizao do conhecimento cientfico. Asegunda vertente enfatiza a necessidade de a escola trabalhar com acultura das camadas populares, rompendo a relao existente entre acultura escolar e as experincias e cultura daqueles que detm opoder na sociedade.

    Hoje compreendemos o quanto essa dicotomia no sejustifica, uma vez que nenhum processo de conscientizao podeocorrer sem que esteja associado a processos de construo / transmisso de conhecimentos, assim como, independentemente devalorizarmos saberes historicamente acumulados, no podemos deixarde questionar as marcas de classe que assumem11 . A escola reproduz,mas tambm resiste, e nesse campo de contradies precisamostrabalhar para: socializar o conhecimento cientfico, dialogar com ossaberes populares e desconstruir a valorizao ideolgica doconhecimento cientfico feita na escola, sem que haja, muitas vezes,efetivamente, o ensino desse conhecimento.

    Em suma, neste trabalho procuro apresentar uma

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    contribuio da epistemologia histrica e da perspectiva descontinustae pluralista para a anlise do conhecimento escolar, questionandotanto posies que supem existir um critrio de verdade nico paradefinir o currculo escolar, quanto a viso sociolgica que desconsideraaspectos epistemolgicos. Parto de algumas premissas, j devidamentedesenvolvidas por outros autores, na definio do conhecimentoescolar: 1) trata-se de um conhecimento selecionado a partir de umacultura social mais ampla, que passa por um processo de transposiodidtica, ao mesmo tempo que disciplinarizado; 2) constitui-se noembate com os demais saberes sociais, diferenciando-se dos mesmos.Em sntese, o conhecimento escolar define-se em relao aos demaissaberes sociais12 , seja o conhecimento cientfico, o conhecimentocotidiano ou os saberes populares.

    Com base nesses pressupostos, argumento em favor da in-terpretao da cultura dentro de uma perspectiva pluralista edescontinusta, sob o marco da existncia de uma ruptura entre co-nhecimento cientfico e conhecimento cotidiano. Considero, portanto,que o conhecimento escolar apresenta a contradio de ter comoobjetivos a socializao do conhecimento cientfico e a constituiodo conhecimento cotidiano. Assim, defendo que a via para superaressa contradio no pode ser a interpretao do conhecimento esco-lar como uma ponte, capaz de mascarar a pluralidade e adescontinuidade do conhecimento. Diferentemente, o conhecimentoescolar deve ser compreendido a partir dos processos de transposio(mediao) didtica e de disciplinarizao, eminentemente constitutivosde configuraes cognitivas prprias. Entretanto, ao didatizar o co-nhecimento cientfico, o conhecimento no se deve constituir emobstculo epistemolgico. Ou seja, a produo de conhecimento naescola no pode ter a iluso de construir uma nova cincia, ao detur-par a cincia oficial, e constituir-se em obstculo ao desenvolvimentoe compreenso do conhecimento cientfico, a partir do enaltecimentodo senso comum. Ao contrrio, deve contribuir para o questionamentodo senso comum, no sentido de no s modific-lo em parte, comolimit-lo ao seu campo de atuao.

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    O processo escolhido para construo deste trabalho, elemesmo fruto de omisses e escolhas dentro de mltiplas possibilidades,foi organizado em sete captulos, componentes de trs grandes blocosde anlise.

    O primeiro bloco A problemtica da cultura e doconhecimento se compe de dois captulos. No primeiro captulo,analiso o pluralismo e o descontinusmo da razo, do real e do mtodo,princpios que fundamentam a interpretao pluralista da cultura e doconhecimento. Procuro demonstrar como as usuais concepesmetodolgicas se aliceram em concepes monistas13 de real e derazo, e dessa forma fundamentam a subordinao das cincias sociaiss cincias fsicas. Essa demonstrao feita pelo desenvolvimentodo argumento de que as prprias cincias fsicas j no mais sefundamentam na viso unitria de real e de razo. Dessa forma,sustento que as rupturas no campo das cincias sociais devem sercompreendidas segundo caractersticas prprias, e no a partir daincorporao de modelos oriundos das cincias fsicas.

    No campo das cincias sociais, procuro analisar como omarxismo contribui para o questionamento das concepesepistemolgicas tradicionais. A partir das categorias totalidade econcreto-pensado, possvel desconstruir o empirismo e sua concepode conhecimento como reflexo do real aparente. Na tentativa decompreender o modelo de cientificidade prprio das cincias humanas(e por isso mesmo sociais), defendo a perspectiva pluralista eargumentativa, questionadora do modelo reducionista de racionalidadeocidental.

    Com esse conjunto de argumentos, defendo, no segundocaptulo, que a diversidade cultural funo no apenas da diversidadede classes sociais, mas tambm do fato de que diferentes saberes nopodem ser reduzidos a uma nica razo, no se igualam do ponto devista epistemolgico. Explicito, assim, as bases de interpretao dacultura e do conhecimento que utilizo.

    Ainda no segundo captulo, analiso o conceito de culturaem nossa sociedade de classes. Discuto seu processo de reificao e

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    transformao em mercadoria, conduzido pela negao de sua relaocom o trabalho. Em contrapartida, argumento em favor da interpretaopluralista da cultura, como forma de combater a tendnciauniformizante das diferenas culturais, tendncia esta que se constituicomo crtica hierarquia dos saberes. Em outras palavras, compreendoque o questionamento s hierarquias culturais cultura culta, culturapopular no se deve fundamentar na homogeneizao epistemolgicados saberes. Questiono, ainda, a identificao da cultura dominantecom a cultura erudita, fator que facilmente justifica a desvalorizaodas culturas populares, na medida em que a cultura erudita entendidacomo o que h de melhor na sociedade.

    Com essa interpretao de cultura, primeiramente focalizoos processos de seleo cultural. Desenvolvo o questionamento aoponto de vista de que existe um conhecimento historicamenteconstrudo, universal, sistematizado, dominante, e que deva serensinado a todos, indistintamente. Considero essa perspectiva desistematizao e universalidade como idealista, por se colocar aolargo dos reais processos de construo do conhecimento dominantenas sociedades capitalistas contemporneas. O conhecimentodominante, o conhecimento das classes dominantes e que se fazhegemnico, nem sempre o conhecimento cientfico, universal.Muitas vezes no passa de senso comum, conhecimento de massas.Por sua vez, o processo de seleo cultural o processo construtorde uma tradio, ao construir o que considerado universal. Nesseprocesso, muitos conhecimentos so excludos e outros soprivilegiados na organizao do currculo. Importa considerar aindaque, em uma sociedade na qual o conhecimento se constitui em capitalcultural, nem todo conhecimento est disponvel para ser selecionado.Em seguida, desenvolvo o argumento de que diferentes saberespossuem legitimidade, sem que para isso tenham de ser cientficos:toda cincia um saber, mas nem todo saber cientfico. O ensinode cincias na escola deve procurar, justamente, construir umconhecimento que permita ao aluno identificar quando a cincia assumepapel apenas mistificador, ou quando se tenta conferir a outros saberes

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    a lgica cientfica, como forma de lhes conferir o poder da cincia.O terceiro e o quarto captulos compem o segundo bloco

    Saberes em relao aos quais o conhecimento escolar se constitui.Nesses captulos focalizo, respectivamente, o conhecimento cientficoe o conhecimento cotidiano, sob o prisma da descontinuidadeepistemolgica: a construo do conhecimento cientfico se d contra,e no a partir do senso comum cotidiano.

    No campo das cincias fsicas, a epistemologia histricamostra-se como instrumental de anlise privilegiado, e Bachelard,sem dvida, seu autor principal. Por ser o filsofo do descontinusmo,salientado, entre outros aspectos, por sua anlise das rupturas entreconhecimento comum e conhecimento cientfico, podemos, a partirde sua obra, enfrentar discusses sobre as relaes entre oconhecimento cientfico e o conhecimento cotidiano.

    Nas discusses sobre currculo e conhecimento escolar, acompreenso do conhecimento cientfico dentro da perspectiva daepistemologia histrica permite, igualmente, desconstruir interpretaesepistemolgicas positivistas que, a partir de um discurso definidor decritrios de demarcao entre cincia e no-cincia, objetivamdesmerecer alguns saberes em detrimento de outros. Tais interpretaescostumam fazer-se a partir de uma anlise aistrica, absolutizada, queconstri um discurso cientfico com base no qual saberes no-estruturados so desautorizados segundo as regras previamenteestabelecidas como definidoras do que cincia.

    Como afirma Lecourt14 , Bachelard inaugura esse no-positivismo, distinguindo-se de tudo o que se pratica noutro ladosob a designao de epistemologia. Trata-se de uma epistemologiaque se prope muito mais a uma anlise histrica das cincias, desuas revolues, bem como das dmarches do esprito cientfico15 . Ochamado outro lado da tradio epistemolgica, que engloba tantoos empiristas lgicos como as perspectivas de Karl Popper e de ImreLakatos, sempre se apresenta como a cincia da cincia ou acincia da organizao do trabalho cientfico, ou ainda como umafilosofia cientfica, com base nos conceitos da lgica matemtica.

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    Segundo Japiassu16 , trata-se de uma corrente epistemolgica lgica,que visa ao estudo e construo da linguagem cientfica, bemcomo a uma investigao sobre as regras lgicas que presidem atodo enunciado cientfico correto (positivismo anglo-saxnico). Aocontrrio, a epistemologia histrica nos faz questionar a possibilidadede definirmos de forma definitiva e universal o que cincia. Nessaperspectiva, cincia um objeto construdo socialmente, cujos critriosde cientificidade so coletivos e setoriais s diferentes cincias.

    No que se refere discusso sobre conhecimento cotidiano,encontro as melhores fundamentaes nos trabalhos de autoresmarxistas como: Antonio Gramsci, Karel Kosik e, especialmente,Agnes Heller. Todos os trs, de maneiras distintas, interpretam oconhecimento cotidiano de forma a no sacraliz-lo e nem tampoucodesmerec-lo. Conseguem estabelecer um contexto prprio para suaatuao, ainda que admitam a necessidade de se questionar e semodificar continuamente tal conhecimento. Procuro analisar como oconhecimento cotidiano se relaciona com as aquisies cientficas,acentuando e defendendo a relao de exterioridade que mantm comas mesmas. Por outro lado, procuro diferenar o senso comum dossaberes populares. Parto do pressuposto de que o senso comum nose restringe a uma dada classe e se mantm como obstculo constanteao desenvolvimento do prprio conhecimento cientfico. Da a atitudecrtica de o conhecimento escolar frente ao senso comum no implicar,necessariamente, um desmerecimento dos saberes populares. Aocontrrio, sua valorizao necessria dentro de uma perspectivapluralista de interpretao dos saberes.

    No terceiro e ltimo bloco Conhecimento escolar em foco, enfoco o conhecimento escolar em quatro captulos distintos. Nocaptulo cinco, destaco a contribuio da epistemologia histrica, tantoquanto a da sociologia do currculo, na anlise do conhecimentoescolar. Argumento que a associao de pressupostos sociolgicos eepistemolgicos necessria para a compreenso desse conhecimento,desde que a articulao se d a partir de uma sociologia e umaepistemologia crticas.

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    No captulo seis, analiso o processo de disciplinarizao,pela argumentao de que no podemos abdicar das disciplinas emnome de um projeto interdisciplinar centrado em princpios generalistasde unificao do conhecimento. Defendo a posio de que o combateao processo de estratificao e compartimentao do conhecimentoem disciplinas no deve ser empreendido a partir de um processo dehomogeneizao epistemolgica dos saberes.

    Dessa maneira, procuro redimensionar a discusso sobre oconhecimento especializado frontalmente questionado pelo projetointerdisciplinar versus opinio. Interpretar essa oposio comopermanente relao de domnio da opinio pelo conhecimento espe-cializado por demais simplificador. Quantas vezes no observamosna mdia o conhecimento especializado ser silenciado, com aprevalncia da opinio, sequer realmente pblica, a servio da esferapblica ? Quantas vezes no vemos o conhecimento escolar se afastardo conhecimento especializado e veicular a opinio hegemnica dosenso comum, a retrica vazia, discurso justificador das relaes so-ciais dominantes ? Em nossa anlise do conhecimento escolar cabetambm, portanto, a redefinio do papel social do discurso do espe-cialista, porta-voz do discurso cientfico, e o conseqente redimensio-namento do debate sobre a interdisciplinaridade.

    No captulo sete, analiso o processo de mediao didtica,defendendo ser este um termo mais apropriado para o processo dereconstruo dos saberes cientficos na escola do que o termotransposio didtica, extremamente ambguo, por tender a significarapenas reproduo de saberes. O processo de mediao didtica,articulado ao processo de disciplinarizao, um dos processos centraisde constituio do conhecimento escolar. No nvel bsico de ensino,a ausncia de maior profundidade da matematizao nas cinciasfsicas exige o maior apelo s metforas, que tendem a se constituirem distores do conhecimento cientfico, reforando, indevidamente,a continuidade com o conhecimento cotidiano. nessa funo demediao didtica que mais se evidencia o papel contraditrio doconhecimento escolar frente aos saberes cientfico e cotidiano.

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    Concluo pela anlise das possibilidades do conhecimentoescolar nas cincias fsicas, dentro da perspectiva pluralista edescontinusta, e contribuir para um projeto de formao cultural,direcionado para os interesses de parcelas mais amplas da sociedade.Em vista do fato de as cincias serem um saber extremamentevalorizado em nossa sociedade, em nome do qual muitas vezes seexerce a dominao seja pela transformao do discurso tcnico-cientfico em discurso de elite, seja pela veiculao da lgica dosenso comum como lgica cientfica , o questionamento doconhecimento escolar nas cincias fsicas terreno frtil paraexplorarmos as contradies da escola.

    NOTAS

    1 A expresso conhecimento cientfico, no contexto deste trabalho, ser utilizadafreqentemente restrita ao conhecimento nas cincias fsicas, o que no significa, contu-do, desconsiderar a existncia de cientificidade no campo das cincias sociais, comoanaliso no captulo 1.2 YOUNG, Michael. Taking sides against the probable: problems of relativity and

    commitment in teaching and the sociology of knowledge. In: JENKS, Chris (ed).Rationality, education and social organization of knowledge. London: Routledge& Kegan Paul, 1978. p. 86-95.

    3 Para uma anlise das crticas feitas contra o relativismo terico da NSE, ver:FORQUIN, Jean-Claude (org.). Sociologia da educao - dez anos de pesquisa. Petrpolis:

    Vozes, 1995.4 Ver trabalhos apresentados na ANPEd nos ltimos dez anos, especialmente nos GTs deCurrculo e Didtica.5 CHERVEL, Andr. Histria das disciplinas escolares: reflexes sobre um tema de pes-

    quisa. Teoria e Educao. Porto Alegre, n. 2, p. 177-229, 1990.6 FORQUIN, Jean-Claude. Saberes escolares, imperativos didticos e dinmicas sociais.

    Teoria e Educao, Porto Alegre, n. 5, p. 28-49, 1992. _________. Escola e cultura. Porto Alegre: Artes Mdicas, 19937 Habitus um termo da filosofia escolstica reinterpretado por Bourdieu, no contexto doembate entre o objetivismo e a fenomenologia. Para Bourdieu, habitus definido comosistema de disposies durveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionaremcomo estruturas estruturantes, isto , como princpio que gera e estrutura as prticase as representaes que podem ser objetivamente regulamentadas e reguladas semque por isso sejam o produto de obedincia de regras, objetivamente adaptadas a umfim, sem que se tenha necessidade da projeo consciente deste fim ou do domnio dasoperaes para atingi-lo, mas sendo, ao mesmo tempo, coletivamente orquestradas semserem o produto da ao organizadora de um maestro (BOURDIEU, citado por ORTIZ,Renato. A procura de uma sociologia da prtica. In: BOURDIEU, Pierre. Sociologia.Introduo e organizao de Renato Ortiz. So Paulo: tica, 1983. p. 15).Nesse sentido, o habitus se constitui de um conjunto de valores, formas de percepodominantes, incorporadas pelo indivduo, e a partir dos quais ele percebe o mundo social,percepo que, por sua vez, regula sua prtica social.. O habitus sempre e unicamente

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    uma internalizao, consciente ou no, no tem existncia exterior. O que tem existnciaexterior a estrutura social, do qual ele expresso exteriorizada.8 Para uma discusso sobre o contraditrio processo de utilidade o que intiltambm cumpre sua utilidade para determinados fins , ver: CHASSOT, Attico. Paraque(m) til o ensino? Alternativas para um ensino (de qumica) mais crtico. Canoas:ULBRA, 1995.9 SILVA, Tomaz Tadeu da. O que produz e o que reproduz na educao. Porto Alegre:

    Artes Mdicas, 1992. p. 78.10 SANTOS, Lucola. O processo de produo do conhecimento escolar e a Didtica. In:

    Conhecimento educacional e formao do professor. Campinas: Papirus, 1994. p.27-38.

    11 Para uma viso mais ampla dos debates do pensamento curricular brasileiro na dcadade 80, ver:MOREIRA, Antonio Flavio B. Currculos e programas no Brasil. Campinas: Papirus,

    1990. p. 135-200.12 SAVIANI, Nereide. Saber escolar, currculo e didtica. So Paulo: Autores Associados,

    1994. p. 176-177.13 Segundo Andr Lalande, o termo monismo designa genericamente todo sistemafilosfico que considera o conjunto das coisas redutvel unidade, quer do ponto de vistada sua substncia, quer do ponto de vista das leis lgicas ou fsicas pelas quais soregidas, quer do ponto de vista moral.LALANDE, Andr. Vocabulrio Tcnico e Crtico da Filosofia. So Paulo: Martins

    Fontes, 1993. p. 698.14 LECOURT, Dominique. Para uma crtica da epistemologia. Lisboa: Assrio e Alvim,

    1980. p. 8-9.15 JAPIASSU, Hilton. Introduo ao pensamento epistemolgico. Rio de Janeiro: Fran-

    cisco Alves, 1991. p. 65.16 JAPIASSU (1991) op. cit., p. 65.

  • A PROBLEMTICA DA CULTURA EDO CONHECIMENTO

    A perspectiva pluralista e descontinusta questiona basica-mente nosso modelo de razo ocidental, centrado na unicidade do reale na idia de cultura como processo cumulativo de idias e smbolos.Esse modelo de razo fundamenta o monismo metodolgico, o quetorna as cincias sociais subservientes ao modelo das cincias fsicas.Muitas so as crticas a essa equiparao de campos to diversos doconhecimento, normalmente baseadas no papel da ideologia e na cr-tica ao objetivismo, com a conseqente defesa da relao sujeito-objeto nas cincias sociais. Menos freqentes, contudo, so as anli-ses das bases do monismo metodolgico, assim como seuquestionamento no mbito das prprias cincias fsicas contempor-neas, linha que aqui procuro desenvolver. Ou seja, procuro desconstruiro argumento monista pela raiz: no cabe defender para as cinciassociais o que sequer tem validade nas cincias fsicas.

    Contemplar o trabalho dos deuses.Os homens

    fazem.

    Os homens domam a natureza,esforam-se para dialogar com as vrias fomes

    e caam os animais e tambm caam os sonhos. e morrem.

    Moacyr Flix, Esquema

  • 34 CONHECIMENTO ESCOLAR: CINCIA E COTIDIANO

    Por sua vez, no campo especfico das cincias sociais, inegvel a contribuio do marxismo para a desconstruo doempirismo e das concepes realistas de conhecimento, bem comopara a consolidao de teses descontinustas, com a defesa de umasociedade dividida em classes com interesses econmicos e pol-ticos contraditrios. Procuro, portanto, analisar essa contribuio,com nfase nas categorias de concreto-pensado e totalidade aber-ta. Entretanto, no sentido de avanar na crtica s concepescontinustas e monistas da razo, enveredo pela discusso dopluralismo e da teoria da argumentao como forma de interpre-tao das cincias sociais.

    Sob o enfoque descontinusta e pluralista da razo se modi-fica nossa compreenso da cultura, do saber e do conhecimento.Argumento, assim, a favor da descontinuidade cultural, no sentido noapenas da existncia de uma diversidade cultural, em funo das di-vises sociais de classe, mas em funo de que diferentes saberes nopodem ser reduzidos a uma nica razo, seja pela superao de umpelo outro, seja pela fuso de diferentes saberes.

    Com base na interpretao da cultura como um multiversocultural, possvel questionar o processo de reificao e de trans-formao em mercadoria a que est submetida em nossa socieda-de. Em seguida, analiso o processo de diviso social da cultura,com especial interesse pela diferenciao entre cultura erudita ecultura dominante, o que traz conseqncias importantes para adiscusso sobre conhecimento escolar. Permite no sredimensionar a interpretao das pedagogias legitimistas erelativistas1 , bem como problematizar a idia de conhecimentohistoricamente acumulado. Tendo em vista esses pressupostos,analiso a seleo cultural como processo definidor da culturadominante, nem sempre erudita, nem sempre cientfica, muitomenos universal. Posteriormente, analiso a descontinuidade dossaberes e as definies de saber e conhecimento, o que permiteabertura para as discusses finais sobre o problema da legitimida-de dos saberes.

  • 35A PROBLEMTICA DA CULTURA E DO CONHECIMENTO

    I - PLURALISMO E DESCONTINUIDADE DA RAZO,DO REAL E DO MTODO

    Quando nos debruamos sobre nossa tradio filosficaocidental, constatamos a valorizao conferida ao discurso demonstra-tivo fundado em proposies evidentes, capaz de conduzir o pensa-mento concluso verdadeira inequvoca. Valoriza-se a lgica formal,a racionalidade instrumental, a razo que em ltima instncia encontranos fatos ou na lgica formal sua justificativa. Trata-se de uma razoque se quer nica, estruturante de grandes explicaes monolticas,instauradora de todo real, uniforme e tambm nico - o real panor-mico, do qual julgamos dar conta apenas pelo nosso olhar.

    Nesse sentido, as concepes monistas de razo e de realengendram concepes monistas de mtodo, mtodo esse entendidocomo garantidor do conhecimento cientfico. Portanto, na medida emque tenciono defender a pluralidade cultural, preciso questionar asbases das perspectivas que defendem a unicidade dos saberes e dacultura. Assim, objetivo neste captulo argumentar em favor de umarazo plural, histrica e descontnua, que raciocina sem coagir, sendocapaz de interpretar a pluralidade do real e de questionar o monismometodolgico.

    Parto da interpretao destas questes no mbito das cin-cias fsicas por serem estas freqentemente entendidas como o conhe-cimento cientfico por excelncia, de tal forma embasado em fatosobjetivos, na lgica matemtica e construdo sob rigor metodolgico,que parece perder suas caractersticas de construo cultural humana. Ouseja, freqentemente as cincias fsicas so excludas do campoconflituoso, ambguo e contraditrio da cultura e so colocadas comoreferncia a todo saber que se pretenda objetivo. dessa forma que areflexo sobre as cincias sociais se enriquece com a anlise da objeti-vidade e das relaes sujeito-objeto, no no sentido usual de conceberque o vale para as cincias fsicas deve ser utilizado nas cincias sociais.

    Nos tempos atuais, em que a crtica s explicaestotalizantes, razo cartesiana e s perspectivas empiristas ou

  • 36 CONHECIMENTO ESCOLAR: CINCIA E COTIDIANO

    positivistas, por vezes, se faz a partir de um discurso relativista dovale tudo, ou puramente ctico e niilista do nada vale, considerofundamental uma reflexo que aponte caminhos diversos para a razoe, portanto, para a cultura e o conhecimento.

    I. 1 - CONTRA O MONISMO METODOLGICONAS CINCIAS FSICAS

    Ser a metodologia cientfica a cabal apresentao dos ca-minhos percorridos pelo pesquisador para alcanar seus resultados,numa perfeita equivalncia entre o significado etimolgico2 e o sig-nificado prtico do termo? Hoje, sem dvida, no poderamos repetirDescartes em seu Discours de la Mthode:

    Por mtodo, entendo as regras certas e fceis, graas s quaistodos os que as observam exatamente jamais tomaro como ver-dadeiro aquilo que falso e chegaro, sem se cansar com esforosinteis, ao conhecimento verdadeiro do que pretendem alcanar3 .

    Descartes no intencionava, com essas palavras, banalizar omtodo cientfico, como primeira vista pode parecer, mas demons-trar sua clareza racional, lmpida e transparente; um mtodo capaz depermitir a explicao do mundo. Um mundo que como e assimpode ser compreendido, pois foi criado por um bom Deus, incapazde criar coisas que seus filhos, ns, seres humanos, no compre-endssemos4 .

    Porm, como bem afirma Bachelard, o mtodo cartesianoque acerta to bem em explicar o mundo, no chega a complicar aexperincia, o que a verdadeira funo da pesquisa objetiva5 . Acincia cartesiana simplifica a experincia, simplifica o complexoobservado, enquanto a cincia contempornea procura ler o complexoreal sob a simplicidade aparente dos fenmenos. Na cincia contem-pornea, como afirma Bachelard6 , o simples sempre o simplificado,aquilo que passou por um processo racional de simplificao. O sim-

  • 37A PROBLEMTICA DA CULTURA E DO CONHECIMENTO

    ples em si no produz conhecimento, pois o composto, a relao entreentidades simples, que produz propriedades, atributos. Segundo aanlise de Canguilhem7 , Bachelard se prope a mostrar que a histriados problemas cientficos no ordenada segundo sua complexidadecrescente, porque o fenmeno inicial de uma pesquisa no um fe-nmeno primitivamente simples. A soluo achada que reflete suaclaridade sobre os dados e demonstra o quanto o problema era obs-curecido por graves erros. Por isso, Bachelard afirma que as regras domtodo cartesiano so bvias, so os hbitos evidentes de um homembem-educado8 ; no se aplicam complexidade da cincia contempo-rnea, na qual os mtodos se diversificam, se multiplicam em funodas inmeras especializaes.

    As concepes metodolgicas do empirismo de Bacon, base-adas na induo rigorosa, na experimentao e na verificao constante,tambm no podem ser base das concepes metodolgicas contempo-rneas. Sem dvida compuseram, junto com o pensamento cartesiano,um projeto para a cincia at o final do sculo XIX. Permitiram maximizara expanso da cincia ainda que hoje sejamos um misto de vtimase heris desse projeto , porm no mais so capazes de interpret-la.

    Entre as proposies de Descartes e Bacon e as atuais con-cepes epistemolgicas, existem mais de trs sculos de discussesfilosficas que no possvel traduzir em poucas linhas, sem o riscode efetuar uma canhestra e linear histria da filosofia. Procuro apenassalientar que, a despeito de refletirem diferentes concepes de mun-do, o empirismo, o racionalismo e, tambm, o positivismo tm emcomum o monismo metodolgico. Tanto concepes emprico-positivistas9 , quanto concepes baseadas no racionalismo cartesiano10

    impregnam o discurso cientfico do social e mantm essa iluso demtodo como mapa da verdade. Por balizarem os caminhos a serempercorridos pelos pesquisadores, continuam a ser defendidas pelosque encaram essas concepes como a nica forma de nos afastarmosdo relativismo. Seja por meio do rigor absoluto da matematizao, daquantificao (projeto cartesiano), ou por meio das evidncias daexperincia (projeto baconiano).

  • 38 CONHECIMENTO ESCOLAR: CINCIA E COTIDIANO

    Definido a partir das cincias fsicas, o mtodo cientfico,assim compreendido, tornou-se a garantia da objetividade, da neutra-lidade, do rigor e, portanto, da cientificidade de um conhecimento.Mas toda e qualquer concepo metodolgica est diretamente asso-ciada concepo de real preconizada e a uma dada concepo derazo. Essas so as concepes que precisamos analisar, quando pre-tendemos discutir a questo do monismo metodolgico.

    Segundo as concepes emprico-positivistas, o conhecimentoadvm da experincia: h um real dado em que a razo deve se apoiar.O real um todo nico, composto de fatos, fenmenos que se apre-sentam ao experimentador e que pressupem, portanto, uma nicarazo capaz de dar conta dessa multiplicidade desconexa. Entendidasde uma maneira mais ampla, as concepes realistas, campo no qualo empirismo se enquadra, compreendem o modelo da teoria do refle-xo11 . O conhecimento, como produto do processo de conhecer, refleteo real e tanto mais objetivo e cientfico ser, quanto maior for o graude reflexo alcanado.

    Mesmo as concepes positivistas12 , que avanam ao sali-entar a necessidade do referencial terico, definidor da forma de in-terpretar os fatos, no rompem com a concepo realista, pois preco-nizam que a verdade est na Natureza, no fenmeno, e cabe ao pes-quisador revel-la, torn-la visvel aos olhos, razo. Para o empirismo,a construo racional s se pode estruturar a partir da experinciasensvel. Para o positivismo, a teoria uma rede de pescar dados, masos dados que orientaro a elaborao de novas teorias.

    Nessas perspectivas, observa-se a supervalorizao do mtodocientfico. A partir das palavras de Nagel, podemos analisar uma versoelaborada da metodologia cientfica, segundo o empirismo-positivismo:

    No deve ser entendida como afirmando, por exemplo, que aprtica do mtodo cientfico consista em seguir regras prescritaspara fazer descobertas experimentais ou para encontrar explana-es satisfatrias para fatos estabelecidos. No h regras de des-coberta e inveno na cincia... Nem afirmando que a prtica do

  • 39A PROBLEMTICA DA CULTURA E DO CONHECIMENTO

    mtodo cientfico consista no uso de algum conjunto especial detcnicas em todas as pesquisas, independente do objeto ou doproblema em investigao. Tal interpretao do dictum umacaricatura de sua inteno... Nem, finalmente, a frmula deve serlida como reivindicando que a prtica do mtodo cientfico elimi-ne efetivamente toda forma de bias ou fonte de erro pessoal quepoderia de outro modo debilitar o produto da pesquisa, e maisgeralmente que ela assegure a verdade de qualquer conclusoalcanada pelas pesquisas que empregam o mtodo.A prtica do mtodo cientfico a crtica persistente dos argumen-tos, luz dos cnones postos prova para julgar a fidedignidadedos procedimentos atravs dos quais os dados da evidncia soobtidos e para avaliar a fora comprovadora da evidncia em quese baseiam as concluses.Se as concluses da cincia so os produtos de pesquisas conduzidasde acordo com uma poltica definida para obter e julgar a evidn-cia, a rationale para a confiana autorizada nestas concluses deveser baseada nos mritos desta poltica13 .

    A partir desse texto, constatamos que a confiana das con-cluses se alcana pelo mtodo aplicado aos dados de evidncia.Admitem-se, inclusive, tcnicas diversas, especficas a cada campo deatuao. Contudo, a matriz metodolgica possui uma raiz comum. Hapenas um real, monolgico, portanto h apenas uma razo capaz dedar conta desse real, razo essa definidora dos critrios de demarca-o entre cincia e no-cincia. A mitificao do mtodo foi tanta queretirou da cincia justamente sua funo de turbulncia, de audcia.No havia risco para a razo, pois o mtodo era sua defesa contranovas idias, novas formulaes, novas razes.

    No mbito da pesquisa do social, surgiram algumas dasmais contundentes crticas a essa busca de status quo para as cinciassociais a partir do modelo das cincias fsicas. Todavia, precisoressaltar o quanto esse modelo no se aplica mais s cincias que tma Matemtica como principal linguagem. A cincia contempornea

  • 40 CONHECIMENTO ESCOLAR: CINCIA E COTIDIANO

    trabalha dentro de um pluralismo metodolgico, continuamente ques-tionado pela teoria, que rompe com o realismo e com o racionalismonos moldes cartesianos.

    A concepo realista da Natureza, to cara aos filsofos damatriz emprico-positivista, sofre seu primeiro grande abalo com oestabelecimento da hiptese quntica por Max Planck, em 1900. Se-gundo comentrios de Heisenberg14 , o prprio Planck custou a aceitaro rompimento com os pressupostos da Fsica Clssica, dado seuconservadorismo. Contudo, teve que se render necessidade de pos-tular a descontinuidade na energia para interpretao da radiao tr-mica de um corpo negro15 . Com este trabalho, iniciou-se um campode investigao dos mais ricos neste sculo: a Mecnica Quntica. principalmente a partir das interpretaes suscitadas por essa rea daFsica que sero desenvolvidas epistemologias histricas como a deGaston Bachelard.

    Com o filsofo francs, compreendo haver distino entrereal cientfico e real dado. Na cincia, no trabalhamos com o que seencontra visvel na homogeneidade panormica. Ao contrrio, preci-samos ultrapassar as aparncias. O aparente sempre fonte de enga-nos, de erros, e o conhecimento cientfico se estrutura pela suplantaodesses erros, em um constante processo de ruptura com o que sepensava conhecido. Para o senso comum, a realidade uma s: aquelaque se apresenta aos sentidos, o real aparente faz parte do senso comum.Portanto, ser essencialmente a partir do rompimento com esse conhe-cimento comum que se constituir o conhecimento cientfico.

    Conforme aponta Canguilhem, para Bachelard a cincia nocapta ou captura o real, ela indica a direo e a organizao intelectual,segundo as quais nos asseguramos que nos aproximamos do real. nocaminho do verdadeiro que o pensamento encontra o real; a realidade domundo est sempre para ser retomada, sob responsabilidade da razo16 .

    Contra essa concepo unitria do real se colocar Bachelard:

    (...) ser demasiado cmodo confiar-se uma vez mais a um rea-lismo totalitrio e unitrio, e responder-nos: tudo real, o eltron,

  • 41A PROBLEMTICA DA CULTURA E DO CONHECIMENTO

    o ncleo, o tomo, a molcula, a micela, o mineral, o planeta, oastro, a nebulosa. Em nosso ponto de vista, nem tudo real damesma maneira, a substncia no tem, em todos os nveis, a mes-ma coerncia; a existncia no uma funo montona; nopode se afirmar por toda parte e sempre no mesmo tom.17

    Por que nem tudo real da mesma maneira? Por que aexistncia no uma funo montona ? Porque h diferentes razesconstitutivas de diferentes nveis de realidade. A realidade de umobjeto que se apresenta aos olhos, que pode ser tocado, que possuilugar e forma definidos, no do mesmo nvel de realidade de umamolcula, a qual constitui e constituda pela teoria molecular a elasubjacente. Todavia, necessrio deixar claro que no se trata de umadistino entre realidade e idealizao. Molculas, tomos e eltronsno so idias que podem ser utilizadas enquanto os fatos assim opermitem, ou ainda abstraes racionais com as quais formulamosteorias. Trata-se de uma outra ordem de realidade, que no pode sercompreendida sem o uso da razo.

    A construo do objeto de conhecimento nas cincias fsi-cas realizada na relao sujeito-objeto, mediada pela tcnica. Acincia no descreve, ela produz fenmenos, com o instrumento me-diador dos fenmenos sendo construdo por um duplo processo instru-mental e terico. Mas no devemos atribuir a essa relao umsubjetivismo inexistente. No caso, a influncia do sujeito sobre oobjeto sempre mediada pela tcnica, pelo aparelho ou instrumentode medida. No se trata de uma influncia da psique individual dopesquisador sobre o objeto de pesquisa, gerador de um relativismosem medida. Portanto, para compreendermos a noo de real nascincias fsicas, a partir de Bachelard, precisamos ter muito clara anoo de fenomenotcnica18 .

    preciso haver outros conceitos alm dos conceitos visuaispara montar uma tcnica do agir-cientificamente-no-mundo e parapromover a existncia, mediante uma fenomenotcnica, fenme-

  • 42 CONHECIMENTO ESCOLAR: CINCIA E COTIDIANO

    nos que no esto naturalmente-na-natureza. S por umadesrealizao da experincia comum se pode atingir um realismoda tcnica cientfica..19

    Em Le Rationalisme Appliqu, Bachelard discute o exemplodo espectrmetro de massa20 como estreita relao entre teoria e ins-trumento: o prprio instrumento teoria materializada, teoremareificado. As trajetrias que permitem separar ons nesse aparelho soproduzidas tecnicamente, sem nenhuma seqncia com fenmenosnaturais. Existe a teoria que permite a construo do aparelho e ateoria que permite a interpretao dos resultados; teoria essa que sadquire valor pelo processo de aplicao experimental.

    Por isso Canguilhem afirma que na cincia moderna, paraBachelard, os instrumentos no so mais objetos auxiliares. Eles soos novos rgos que a inteligncia se d para colocar fora do circuitocientfico os rgos dos sentidos, na qualidade de receptores21 .

    Na anlise da cincia qumica feita por Bachelard22 , pode-mos compreender melhor o processo de construo de fenmenos. Aqumica, em sua histria, rompe com o imediato e abre espaos parao construdo, criando e atuando sobre a natureza a partir da tcnica.Ou seja, a qumica transforma-se em uma cincia elaborada sobre asbases de uma fenomenotcnica. Um bom exemplo disto so os pro-cessos de snteses de substncias qumicas inexistentes na Natureza,produzidas a partir do objetivo de se construir determinada proprieda-de. Como diz Bachelard, o qumico pensa e trabalha em um mundorecomeado. Se a natureza possui uma ordem, a qumica no se faza partir dessa ordem: o qumico constri uma ordem artificial sobre anatureza. A razo qumica, em seu dilogo com a tcnica, avana narealizao do possvel. O possvel nunca gratuito, mas j est inclu-do em um programa de realizao, j ordena experincias para arealizao23 . O possvel no o que existe naturalmente, mas o quepode ser produzido artificialmente.

    Com a diferenciao entre fenmeno e fenomenotcnicacompleta-se a compreenso da distino entre real dado e real cien-

  • 43A PROBLEMTICA DA CULTURA E DO CONHECIMENTO

    tfico. O fenmeno o real dado, o mero evento. O real s adquireo carter de cientfico se objeto de uma fenomenotcnica. Amplia-mos nossa compreenso de por que no podemos falar de uma funomontona do real: no real cientfico, necessrio o dilogo da razocom a experincia para estabelecer o processo de construo racional,mediado pela tcnica.

    Portanto, a filosofia do racionalismo aplicado24 , criada porBachelard a partir da necessidade de uma nova filosofia que desseconta da interpretao de uma nova cincia, eqidistante do idealis-mo e do realismo, sendo crtica de ambos. A matria no uma ilusodo sujeito, nem tampouco a realizao de uma idia: existe a experi-mentao que orienta a forma de aplicao da razo. Por outro lado,o real cientfico, a matria no mbito cientfico, no independe dosujeito, pois sua interpretao se vincula diretamente a uma teoria ea uma tcnica, mais precisamente, a uma fenomenotcnica.

    Nesse sentido, modifica-se completamente a noo de obje-tividade. O problema da objetividade passa a ser colocado em termosde uma objetivao procura do real.

    Determinar um carter objetivo no tocar em um absoluto, provar que se aplica corretamente um mtodo. Objetar-se- sempreque em virtude do carter revelado pertencer ao objeto que ele objetivo, quando jamais se fornecer outra coisa alm da provade sua objetividade em relao a um mtodo de objetivao.25

    Os mtodos de objetivao do conhecimento se multipli-cam, diante da heterogeneidade do real. A cincia se especializa e noapenas diferentes tcnicas so construdas em diferentes campos, masdiferentes racionalidades engendram diferentes mtodos, caindo porterra o monismo metodolgico e a razo continusta.

    Como afirma Canguilhem26 , a epistemologia de Bachelardrecusa a idia de que existe um mtodo positivo ou experimentalconstitudo de princpios gerais, cuja aplicao diversificada pelanatureza dos problemas a responder.

  • 44 CONHECIMENTO ESCOLAR: CINCIA E COTIDIANO

    Em outras palavras, um mtodo cientfico um mtodo que buscao risco. Seguro do adquirido, se arrisca em uma nova aquisio. Advida est diante dele e no atrs, como na vida cartesiana. Porisso posso dizer sem grandiloqncia que o pensamento cientfico um pensamento comprometido. Sem cessar pe em jogo suaprpria constituio.H mais. Parece que, por um paradoxo notvel, o esprito cient-fico vive na estranha esperana de que o mtodo mesmo fracassetotalmente. Pois o fracasso o fato novo, a idia nova.27

    Mesmo porque, o fracasso de um mtodo sempre seguidode uma reorganizao do mtodo, em um racionalismo permanenteque se ope, no apenas a todo empirismo, mas tambm idia derazo imutvel. No existe um mtodo a partir do qual novas teoriasprecisam ser verificadas / refutadas experimentalmente; existem vari-ados mtodos pelos quais novos fatos precisam ser verificados teori-camente. Os mtodos cientficos no so mais do que o resumo deatitudes ganhas na longa prtica de uma cincia28 .

    Como o prprio estatuto de cientificidade das cincias fsicasadquire outros contornos, as cincias sociais ficam livres para construirseus prprios pressupostos. Se a Fsica Clssica era o prottipo incontes-tvel de cientificidade, destrudos seus alicerces to bem definidos, maisfacilmente podemos pensar o social sem a seduo do monismometodolgico, com o qual a compreenso do mundo fsico e do mundosocial se fazem pelas mesmas bases. Por outro lado, no precisamosenveredar por um pessimismo que abandona ao irracional e opiniono apenas as cincias humanas, mas tudo que se refere ao nosso agir,aos problemas morais e polticos, tudo que se refere filosofia29 .

    I. 2 - MARX E A CRTICA AO EMPIRISMO NASCINCIAS SOCIAIS

    Nas cincias sociais, uma das grandes rupturas com a visoempirista de compreenso do real e da metodologia cientfica se conso-

  • 45A PROBLEMTICA DA CULTURA E DO CONHECIMENTO

    lida com o pensamento marxista. Marx30 desenvolve grande parte de suaobra em rompimento com a economia poltica clssica, opondo-se sconcepes empiristas que norteavam os trabalhos at ento desenvolvi-dos, principalmente em sua tentativa de ser a descrio e a representaoabsoluta desse real. No h, contudo, representao alguma capaz de darconta da totalidade do real em seus mltiplos e variados aspectos. Con-seqentemente, o conhecimento emprico no consegue permitir areapropriao desse real, pois o processo de abstrao constri um co-nhecimento absolutamente distante de seu ponto de partida.

    Marx inicia por modificar a forma de conceber o real. Arealidade social um todo estruturado em suas mltiplas determina-es, contraditrio e possuidor de uma ordem que no est dada, no aparente, alm de ser histrica e ideolgica. Trata-se, como afirmaKosik31 , de uma totalidade concreta na qual cada fato pode ser raci-onalmente compreendido. O conhecimento dos fatos o conhecimen-to do lugar que eles ocupam na totalidade do prprio real.

    A construo de uma totalidade concreta implica obter-seuma viso de conjunto, sempre provisria, a partir de um processo desntese de partes que apenas assim adquirem sentido. A totalidade sempre mais do que a soma das partes, pois inclui as contradiesentre as partes e seus processos de mediao.

    Por isso, na perspectiva marxista, devemo-nos referir to-talidade concreta como uma totalidade aberta, mvel, dialtica, unida-de e multiplicidade contraditrias e indissoluvelmente ligadas, emoposio s totalidades fechadas e acabadas. Uma totalidade aberta,inclusive, pode englobar outras totalidades, igualmente abertas, que seimplicam profundamente32 . Exatamente por se tratar de uma totalida-de concreta e aberta, com determinaes no aparentes, que o pro-cesso de conhecer no se pode dar por via sensorial. A realidade nofornece diretamente dados capazes de permitir sua compreenso. Oacesso imediato apenas nos fornecer fragmentaes do real, as quaiss vo adquirir sentido quando descobrirmos suas determinaes. Masisso no implica que o processo de conhecimento se d por ao dopensamento isolado do real (perspectiva idealista).

  • 46 CONHECIMENTO ESCOLAR: CINCIA E COTIDIANO

    O todo, na forma em que aparece no esprito como todo-de-pensamento, um produto do crebro pensante, que se apropria domundo do nico modo que lhe possvel, de um modo que difereda apropriao desse mundo pela arte, pela religio, pelo espritoprtico. Antes como depois, o objeto real conserva a sua indepen-dncia fora do esprito: e isso durante o tempo em que o espritotiver uma atividade meramente especulativa, meramente terica.Por conseqncia, tambm no emprego do mtodo terico neces-srio que o objeto, a sociedade, esteja constantemente presente noesprito como dado primeiro.33

    A questo que se coloca : como se d o conhecimento datotalidade?

    Em primeiro lugar, preciso salientar no haver conheci-mento absoluto da totalidade concreta, nem ser preciso o conhecimen-to de todas as determinaes para compreendermos a realidade. Mes-mo porque, no se trata de um todo imutvel. Ao contrrio, h umprocesso de modificao constante, ainda que determinado. neces-srio haver o acesso s determinaes fundamentais, o que s pos-svel a partir de um processo de formulao de conceitos simples,capazes de permitir o conhecimento do que no perceptvel. Serpreciso um trabalho terico de abstrao para fazer uma reconstruoda realidade, realidade essa que pensada, por ser alcanada pela viaterica do pensamento. Mas que tambm concreta, por ser recons-truo do concreto real, conseqentemente determinada pelaracionalidade do modo de produo, instituinte de limites histricosao pensamento. O real s adquire esse carter concreto (concreto real,totalidade concreta) a partir do momento em que se tem a compreen-so de suas determinaes essenciais.

    O concreto concreto por ser sntese de mltiplas determinaes,logo, unidade na diversidade. por isso que ele para o pensa-mento um processo de sntese, um resultado, e no um ponto departida, apesar de ser o verdadeiro ponto de partida e portanto

  • 47A PROBLEMTICA DA CULTURA E DO CONHECIMENTO

    igualmente o ponto de partida da observao imediata e da re-presentao. O primeiro passo reduziu a plenitude da representaoa uma determinao abstrata; pelo segundo, as determinaes abstra-tas conduzem reproduo do concreto pela via do pensamento.34

    Nesse sentido, o concreto produzido pelo pensamento con-creto pensado no o prprio real, como tambm no o permite criar,mas construdo em interao com o real, possibilitando sua apropria-o. O pensamento no produz realidades: o real sempre anterior aopensamento e esse pensamento produz sempre uma teoria sobre o real.

    (...) Hegel caiu na iluso de conceber o real como resultado dopensamento, que se concentra em si mesmo, se aprofunda em simesmo e se movimenta por si mesmo, enquanto que o mtodo queconsiste em elevar-se do abstrato ao concreto para o pensamentoprecisamente a maneira de se apropriar do concreto, de o reprodu-zir como concreto espiritual. Mas este no de modo nenhum oprocesso de gnese do prprio concreto.35

    No processo de construo do concreto-pensado (reconstru-o do real), o pesquisador no cria determinaes inexistentes previ-amente no real. Ele constri categorias, a partir do concreto pensado,que permitem elucidar determinaes j existentes. Dentro dessa pers-pectiva, podemos igualmente compreender a heterogeneidade e acomplexidade do real, sendo importante que a distino entre a rea-lidade fsica e a realidade humano-social no seja vista em absoluto.

    O sujeito que conhece o mundo, e para o qual o mundo existecomo cosmo ou ordem divina ou totalidade, sempre um sujeitosocial; e a atividade que conhece a realidade natural e humano-social atividade do sujeito-social. A distino entre sociedade enatureza anda pari passu com a incompreenso de um fato: arealidade humano-social to realidade quanto as nebulosas, ostomos, as estrelas, embora no seja a mesma realidade. Da a

  • 48 CONHECIMENTO ESCOLAR: CINCIA E COTIDIANO

    suposio de que s a realidade natural autntica realidade; omundo humano seria menos real, em comparao com uma pedra,um meteoro, ou o sol, e s uma realidade (a humana) seria com-preensvel, enquanto a outra realidade (a natural) seria apenasexplicvel.36

    Justamente por compreendermos as mltiplas determinaesdo real, no podemos reduzir a interpretao do social ao marxismo:nos afastamos do tempo em que interpretaes reducionistas de Marxdesejavam dar conta de todas as esferas da vida social e humana,fosse a economia, a histria, a filosofia, a psicologia, a linguagem, eat as cincias fsicas e biolgicas, como foi proposto pelo lissenkismo.

    A idia de um paradigma dominante, seja ele marxista ouno, no parece enriquecer o debate nas cincias sociais, pelo menosquando entendemos a permanncia desse paradigma tal qual um pe-rodo de cincia normal kuhniano: idias, crenas, valores, tcnicascompartilhados pelos membros de uma comunidade cientfica, garan-tidores da unidade dessa comunidade e de um perodo sem rupturas(revolues). Talvez, ao invs de to freqentemente nos referirmos crise dos paradigmas nas cincias sociais, devssemos pensar na pr-pria crise do conceito de paradigma37 . Melhor fazemos se procurar-mos incorporar s cincias sociais a existncia de mltiplasracionalidades. Ao invs de um paradigma dominante, aprenderemosa conviver com uma pluralidade de teorias aplicveis a contextosdiversos. Mas como, ento, podemos pensar na epistemologia dascincias humanas, esse conjunto esfacelado de discursos 38 , sem in-corrermos no relativismo?

    I. 3 - PLURALISMO, DESCONTINUIDADE E ARGUMENTAO

    As cincias sociais e humanas lidam com um objeto quefala, linguageiro e, por isso mesmo, polissmico, no limitado pa-rfrase matemtica, na qual o antecedente define o conseqente deforma indiscutvel. Mais que nunca o real plural, difuso, impiedoso

  • 49A PROBLEMTICA DA CULTURA E DO CONHECIMENTO

    com quem desejar aprision-lo em um conjunto harmnico de umdiscurso estabilizado apenas na monologia do A e do no-A.

    Ainda que qumicos contemporneos, como IsabelleStengers39 , interpretem o objeto das cincias fsicas como um objetoque no fala, mas que o fsico faz falar, faz testemunhar uma legi-timidade a seu favor, reafirmando a distino entre fato cotidiano qualquer fato e fato experimental trabalho experimental defazer um fato falar a seu favor , a distino entre a fala de sujeitose objetos permanece vlida. A polissemia dos sujeitos infinitamentemaior; no pode ser controlada pela linguagem matemtica, comofazemos com os objetos cientficos. A linguagem puramente formalno pode expressar a vida humana e social. uma linguagem exces-sivamente perfeita, excessivamente clara; nela no cabem o erro, advida, o obscurantismo, as imperfeies da vida humana.

    Ou seja, quanto mais purifico minha linguagem nos sistemasformais, mais clareza eu consigo. A consistncia maior, tiro todaambigidade e equivocidade, mas, ao mesmo tempo, tiro tambmtoda concretude do discurso, toda circunstncia e historicidade.Fica sendo um discurso modelar, porm totalmente abstrato eatemporal, vlido apenas enquanto fechado nele mesmo. No ser-ve para dizer coisa alguma, porque coisa alguma cabe nele, j quequalquer coisa o macularia de contingncia e comprometeria suapureza.40

    A constante tentativa de impor o modelo matemtico dascincias fsicas s cincias sociais, a metodologia das cincias fsicass cincias sociais, marca de nossa tradio filosfica na modernidade.Como assinala Perelman41 , na modernidade temos a restrio do con-ceito de razo, a reduo da racionalidade racionalidade experimen-tal, a limitao da prova racional prova analtica, demonstrativa,matemtica. Outras formas de provar no desaparecem, mas sodesprestigiadas como no-cientficas. Todo homem considera que estraciocinando quando delibera, discute, argumenta, mas tais formas de

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    provar so desconsideradas como cientficas, ainda que as utilizemostodo tempo, mesmo nas cincias fsicas.

    Em direo oposta a essa tradio, precisamos abrir espaopara novas formas de racionalidade, igualmente legtimas, no restri-tas evidncia e ao clculo. Precisamos de novas formas deracionalidade que no se restrinjam aos campos do universal, do eter-no, do atemporal e do absoluto, mas sejam fundamentais para oscampos do singular, do contingente, do histrico e do axiolgico.Novas formas de racionalidade para um tempo, como afirmaPessanha42 , em que a nfase na ruptura e no pluralismo maior doque a nfase na continuidade e na unidade.

    Durante muito tempo, principalmente no racionalismo clssico,considerou-se que o trabalho tpico da razo estaria justamente emdescobrir a unidade por trs da multiplicidade fenomnica, emdissolver a pluralidade inerente ao sensvel e s opinies numasoberana Unidade, estabelecida pela viso certeira e integradora daRazo. O logos filosfico seria fundamentalmente ligador,unificador. Seu empreendimento constituiria uma correo dasopinies por via do intelecto j devidamente corrigido, retificado:verdadeira ortologia cujo resultado final seria a substituio damultiplicidade da doxa pela unidade da cincia, da episteme. E quejustificaria a construo de uma mathesis universalis, sonho clara-mente expresso e perseguido por Descartes: conhecimento absoluta-mente verdadeiro, indubitvel e universal, a respeito de tudo quepudesse ser perfeitamente enquadrado pela ptica de uma razo fa-talmente absolutizadora posto que Razo Absoluta, razo do Abso-luto, viso coincidente com o Olhar Eterno (de Deus). Fora desseterritrio de necessrio consenso de todos os espritos aclarados pelacincia nica, ficaria o sombrio reino das impresses instveis einconsistentes, das idias falsas e obscuras, da no-verdade.43

    As concepes monistas compreendem a Razo comoabsolutizante e unificadora, portanto totalizante e totalitria. Desejam ser

  • 51A PROBLEMTICA DA CULTURA E DO CONHECIMENTO

    a palavra de Deus, divino olho onipresente e onisciente, que determi-na os caminhos a seguir. Rejeitam o plano humano, circunstancial,efmero, mutvel, por isso mesmo provisrio, histrico, concreto. DaPessanha apontar para a necessidade da prpria mudana de lingua-gem: ao invs de falarmos em universo cultural, deveramos nos re-ferir a multiverso cultural.

    Como contribuies fundamentais para redirecionar a dis-cusso dos termos unidade / pluralidade, continuidade / ruptura, temosa antropologia (insistindo na diversidade de culturas), o marxismo(mostrando a sociedade dividida em interesses econmicos e polti-cos, no apenas diversos, mas contraditrios) e as cincias fsicas(construindo teorias, como a da Relatividade, que rompem com aviso universal instituda, no caso a Fsica Newtoniana).

    Mas defender o pluralismo, e por conseguinte as rupturas,no tarefa fcil. Com o que julga ser o aval de Deus, o homementende-se apenas um desvelador de verdades, e nunca um construtor.Considera ele que o mundo est pronto, as verdades esto dispostasa serem reveladas, tudo est dado. Descartes j afirmava em seuDiscours de la Mthode que (...) havendo somente uma verdade emcada coisa, qualquer um que a encontre saber tudo quanto h parasaber44 . Subverter essa tradio antes de tudo uma atitude poltica.Afinal, o pluralismo se associa diretamente democracia, mas porisso mesmo implica a administrao de conflitos.

    A vantagem dos monismos fornecer, em cada campo, umaconcepo sistematizada e racionalizada do universo, sob to-dos os aspectos, permitindo encontrar uma soluo nica everdadeira para todos os conflitos de opinies e todas as diver-gncias.45

    Essa unidade que busca evitar o conflito parece-nos, pri-meira vista, garantidora de paz e consenso. Contudo, em nome de umadada concepo nica de mundo que se exerceu e se vem exercendono mundo a violncia, o autoritarismo. Em nome dessa razo nica,

  • 52 CONHECIMENTO ESCOLAR: CINCIA E COTIDIANO

    da lgica que atende aos interesses das classes dominantes, que sejustificam a misria e a barbrie.

    O inconveniente das ideologias monistas de favorecer umreducionismo por vezes dificilmente tolervel. Quando no che-gam a prevalecer seu ponto de vista, podem justificar - em nomede Deus, da razo, da verdade, do interesse do Estado ou do par-tido - o recurso coao, o uso da fora em relao aos recalci-trantes. Aqueles que resistem deveriam ser reeducados e, se no sedeixam convencer, devero ser punidos por sua obstinao ou porsua m vontade.46

    Os pluralismos, inclusive o metodolgico, significam adessacralizao e a humanizao da cultura47 . No se trata de consi-derar a existncia de uma raiz nica para toda essa multiplicidade,fazendo apenas com que se mascare a unidade na diversidade. Tra-ta-se efetivamente de razes diversas, razes diversas, tanto nasucessividade, quanto na simultaneidade temporal. Os defensoresdas rupturas no conhecimento e na cultura no colocam a existn-cia de uma razo que vem ao longo do tempo se modificando,adquirindo novas formas, se travestindo em diferentes momentos.H efetivamente descontinuidades nas formas de se compreendero mundo.

    Ortiz48 aponta para o fato de que, no momento em quesetores das cincias humanas questionam a validade da razo univer-sal, os administradores das grandes corporaes insistem sobre o tema.Preocupam-se no com filosofia, mas com o processo de globalizao:um produto universal quando possui abrangncia planetria, quan-do atinge o mercado mundial. A mundializao do consumo modificaa concepo de universalidade da filosofia iluminista, quando a afir-mao do universal se fazia a despeito das diferenas. Hoje, as fron-teiras da universalidade devem coincidir com as da mundialidade. Ouniversal se materializa em mercadoria e constitui a nica verdadeefetivamente partilhada por todos.

  • 53A PROBLEMTICA DA CULTURA E DO CONHECIMENTO

    Essas concepes nos abrem para outras questes. Noenveredamos com isso no confuso campo do relativismo? Em nomeda democracia, do pluralismo de razes, no passaremos a defenderque tudo vale, qualquer mtodo se aplica, nenhuma teoria melhorque outra, nenhuma poltica mais correta? Ou procuraremos a argu-mentao capaz de levar ao consenso e, portanto, subentenderemosexistir a possibilidade de consenso na sociedade de classes em quevivemos?

    No so essas as perspectivas que defendo. Sem dvida,percorre-se o fio de uma navalha: aparentemente so tnues os limitesa separarem essas proposies, mas apenas aparentemente. Pluralismono implica ecletismo, simbiose de concepes toricas contraditri-as, nem ausncia de conflitos. No preconizo a sopa metodolgica,criticada por Lfebvre, nem tampouco defendo a concepo deManheim, segundo a qual pontos de vista diferentes so complemen-tares49 . Preconizo, sim, que concepes tericas diversas podem