livro carlos bauer

152
EDUCAÇÃO, TERRA E LIBERDADE

Upload: alessandro-euzebio

Post on 22-Nov-2015

20 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

  • Educao, tErra E libErdadE

  • Carlos Bauer

    Educao, terra e liberdade:princpios educacionais do MSt em

    perspectiva histrica

    2008So Paulo

  • 2008 by Carlos BauerXam Editora/Edies Pulsar 1. edio 2008

    Edio e capa: Mariana VieiraReviso: Estela Carvalho

    Editorao eletrnica: Xam Editora

    ISBN - 978-85-7587-076-1

    Xam VM Editora e Grfica Ltda.Rua Professor Tranquilli, 27 - Vila Afonso Celso

    CEP 04126-010 - So Paulo (SP) - BrasilTel.: (011) 50834649 Tel./Fax: (011) 5083-4229

    www.xamaeditora.com.br [email protected]

    Edies PulsarRua da Quitanda, 113 - Conjunto 74 - Centro

    CEP.: 01012-010 - So Paulo (SP) - Brasil

    Impresso no Brasil 2008

  • A Ana Rita, ao Kau e as minhas filhas, Nina, Serena e Ana Carolina, sementes plantadas na terra lavrada da utopia, dos sonhos e da esperana de um mundo radicalmente livre da opresso, da explorao e da sordidez humana...

    A Ermnia (in memorian) minha me , uma mulher sem terras, sem posses, mas produtora de uma existncia povoada de sonhos, esperanas e amorosas utopias cotidianas, sempre nos dizendo que o amanh ser melhor.

  • lista de siglas

    Anped Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em EducaoCEB Comunidade eclesial de baseClacso Conselho Latino-Americano de Cincias SociaisCLT Consolidao das Leis do TrabalhoCNBB Conferncia Nacional dos Bispos do BrasilConcrab Confederao Nacional das Cooperativas de Reforma Agrria do BrasilCNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e TecnolgicoCPT Comisso Pastoral da TerraCPI Comisso Parlamentar de InquritoCUT Central nica dos Trabalhadores Enera Encontro Nacional de Educadoras e Educadores da Reforma AgrriaFAO Organizao das Naes Unidas para a Alimentao e a AgriculturaFiesp Federao das Indstrias do Estado de So PauloGemdec Ncleo de Estudos sobre Movimentos Sociais, Educao e CidadaniaGT Grupo de trabalhoIbad Instituto Brasileiro de Ao DemocrticaIBGE Instituto Brasileiro de Geografia e EstatsticaIpes Instituto de Pesquisa e Estudos SociaisIbra Instituto Brasileiro de Reforma AgrriaIncra Instituto Nacional de Colonizao e Reforma AgrriaInda Instituto de Desenvolvimento Agrrio Iterra Instituto de Capacitao e Pesquisa da Reforma AgrriaMCC Movimento Campons CorumbiaraMCP Movimento de Cultura Popular MEB Movimento de Educao BsicaMDST Movimento Democrtico dos sem-TerraMLT Movimento de Luta pela TerraMobral Movimento Brasileiro de AlfabetizaoMST Movimento dos Trabalhadores Rurais sem TerraOfoc Oficina Organizacional de ComputaoPCB Partido Comunista BrasileiroPNA Plano Nacional de AlfabetizaoPT Partido dos TrabalhadoresPTB Partido Trabalhista BrasileiroSupra Superintendncia da Poltica AgrriaUDR Unio Democrtica Ruralista Unicamp Universidade Estadual de CampinasUninove Universidade Nove de Julho

  • Sumrio

    Prefcio, 11

    1 Introduo, 17

    2 Histria, educao e crise agrria no Brasil contemporneo, 25

    Caracterizando o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), 25

    Uma explicao marxista ao problema da terra no Brasil e na

    Amrica Latina, 42

    O modelo rentista da economia na Amrica Latina e a existnciade uma

    agricultura tradicional, 45

    A transio para uma agricultura empresarial: a revoluo verde e suas

    conseqncias no mercado agrcola mundial e na Amrica Latina, 48

    O salto em direo agricultura empresarial: o agro-negcio

    (agrobusiness), 50

    A inovao e introduo de produtos pela indstria na

    dcada de 1970, 53

    3 A problemtica da concentrao fundiria no Brasil e suas conseqncias, 55

    As lutas camponesas na Amrica Latina, 55

    A questo camponesa e a revoluo permanente, 57

  • A problemtica da concentrao fundiria no Brasil e suas

    principais conseqncias, 59

    A modernizao conservadora da agricultura e as relaes de trabalho e

    de classe no campo, 64

    Guerra civil no campo e o pacifismo do MST, 70

    A Igreja Catlica e suas contradies, 79

    4 Princpios educacionais do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, 83

    Princpios educacionais do MST, 83

    O MST e a pedagogia da luta , 103

    Os limites da direo do MST e sua prtica poltica pedaggica, 109

    Educao e cultura na formao da conscincia poltica dos

    militantes do MST, 122

    Consideraes finais, 133

    Referncias, 139

    Nota sobre o autor, 151

  • Prefcio Maria da Glria Gohn1

    Este livro resultado de um programa de ps-doutorado desenvolvido por Carlos Bauer junto ao Ncleo de Estudos sobre Movimentos Sociais, Educao e Cidadania (Gemdec) da Faculdade de Educao da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) entre 2004 e 2005. Dentre as atividades realizadas, a principal delas foi um projeto de pesquisa sobre a educao junto aos assentamentos rurais do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST). Na ocasio, seu interesse especfico era a rea da formao de educadores para o movimento. Bauer faz parte de um ncleo de histria e teoria da profisso docente e do educador social na Universidade Nove de Julho (Uninove/SP) e props estudar, nos cur-sos desenvolvidos pelo MST, o material pedaggico utilizado, seus pressupostos filosficos, as teorias que aliceram seus programas e seus planos curriculares.

    Na primeira etapa do estudo, Bauer fez um levantamento de livros, teses e dissertaes j realizadas sobre o tema da educao no MST, assim como os materiais pedaggicos desenvolvidos pelo prprio movimento. Do material encontrado, selecionou algumas teses e livros e reconstituiu o processo educativo do MST na educao formal, escolar, e no-formal, extra-escolar (principalmente para a formao de lideranas). Este material possibilitou ao autor sistematizar elaboraes prprias e produzir novos conhecimentos sobre o MST, sobre seu processo educativo e outras temticas e problemticas pertinentes.

    Sendo o professor Bauer um historiador, inicialmente localizou seu objeto de estudo na histria da crise agrria na Amrica Latina, ttulo principal de seu texto. Educao, terra e liberdade: perspectivas e princpios educacionais do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) no Brasil contemporneo foi o foco do conjunto da obra que, agora, aparece publicada com o nome Educao, terra e liberdade: princpios educacionais do MST em perspectiva histrica.

    O resultado da pesquisa, ora apresentado neste livro, certamente ser muito til para outros pesquisadores, dado o balano de temas e problemas que Carlos Bauer recortou nas pesquisas realizadas. Considerando a importncia das lutas pela terra no Brasil e na Amrica Latina na atualidade, no poderamos deixar de registrar neste momento algumas consideraes sobre o sujeito protagonista principal do livro que ora Bauer traz luz, ou seja, o prprio MST.

    1 Professora da Faculdade de Educao da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora titular do Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Nove de Julho (Uninove). Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq).

  • 12EDUCAO, TERRA E LIBERDADE

    Sabemos que no campo dos movimentos sociais rurais a organizao popular cresceu bastante a partir dos anos 1990. Pesquisas recentes indicam a existncia de mais de 80 movimentos rurais no Brasil no incio deste novo milnio. Dentre os inmeros movimentos de sem-terra criados, o mais expressivo o MST. Ele se destaca em termos nacionais, como no plano internacional, via um eficiente trabalho de mdia e marketing poltico de suas demandas pela reforma agrria, bandeiras e msticas.

    O MST busca construir uma identidade cultural nova aos sem-terra, basea-da no modelo cooperativo/coletivo. Os sem-terra tm suas razes e tradies, que fundamentam e balizam suas vises de mundo e comportamentos. A categoria terica frame2 apropriada para entendermos a identidade do MST, pois diz respeito aos marcos referenciais estratgicos do movimento, aquele conjunto composto de significados e entendimentos comuns compartilhados pelo grupo. Assim, os frames do MST dados pelos smbolos culturais e ideolgicos construdos pelo movimento tm como marcos referenciais um modelo (dado pelo pobre/excludo/sem-terra), e o agenciamento destes frames feito pelas estruturas organizativas do movimento, que criam um sujeito singular: sempre de bon vermelho e camiseta branca com o emblema do movimento, foices e enxadas. Os cones emblemticos conferem uma identidade queles sujeitos que os diferenciam das outras categorias de pobres e igualmente excludos do campo.

    O MST um ator poltico porque atribui qualidade aos atores sociais que compem suas bases, ao inseri-los num plano que vai alm da luta pelo acesso terra, que a luta pela democracia, pela igualdade, contra a excluso. Ele se formou ao redor de uma identidade ser sem-terra e luta para alterar a qualidade desta identidade, passando a ser um com-terra. Mas, ao buscar esta reverso, atinge eixos centrais nas relaes capitalistas, referentes propriedade. O grande problema que ele quer ser um com-terra, um igual, sem passar pela pelo funil divisrio que a compra. Quer o acesso terra pela posse com direitos iguais aos que detm sua propriedade e com isto perturba a lgica e a ordem das relaes demarcadas na sociedade. Por isto ele um agente de tenso contnua, tem uma face inovadora e outra perturbadora ordem dominante.

    Existe, entretanto, um outro ponto fundamental no MST a que poucos analistas tm atentado. Trata-se do fato de ele ter mudado a pauta de reivindicaes dos trabalhadores brasileiros, criando algo mais adequado ao mundo globalizado

    2 O conceito de frame foi utilizado intensamente por Sidney Tarrow (Power in movement. Cambridge, UK: University of Cambridge, 1994), sendo criado anteriormente por Erving Goffman (Frame analysis. Cambridge, Mass.: Harvard University, 1974).

  • 13PREFCIO

    em que vivemos. As reivindicaes clssicas dos trabalhadores desde o sculo XIX diziam respeito a salrios e jornada de trabalho. O MST introduziu uma nova agenda pauta j tradicional dos trabalhadores rurais (de acesso terra para nela morar e produzir), composta de trs novas reivindicaes: 1) acesso ao crdito, numa poltica de democratizao da propriedade, 2) apoio tcnico aos assentamentos e 3) organizao do trabalho em cooperativas de produo. As duas reivindicaes iniciais (terra e moradia) so clssicas na luta das camadas populares. Mas as trs ltimas (crdito, suporte tecnolgico e trabalho cooperado) so atuais, moder-nas, pois buscam sadas para o emprego no meio rural, na produo de gneros de primeira necessidade que podem minorar o problema da fome no pas, com baixo custo econmico e perspectiva de melhoria na produtividade a mdio e longo prazo. Alm disso, o acesso ao crdito incide sobre um setor crucial do capitalismo contemporneo que o sistema financeiro.

    Ao final dos anos 1990 e incio do novo milnio houve um deslocamento do foco da luta no MST. Passou-se a lutar contra o modelo de reforma agrria de mercado (MRAM) do Banco Mundial, implementado nos anos 1990 e com continuidade at a atualidade. Segundo alguns analistas, a luta contra o MRAM no mais aglutina o conjunto de entidades de representao do campesinato pobre contra as polticas liberais. E mesmo aqueles movimentos que so contrrios a ele, como o caso da Via Campesina, relegaram esse embate a um plano secund-rio, por entenderem que a contradio principal no meio rural brasileiro hoje est entre o grande agronegcio exportador e os trabalhadores rurais sem-terra, e no entre a desapropriao e o crdito fundirio.

    Entre 1985 a 2007 o MST realizou cinco congressos nacionais. O quinto realizou-se em Braslia em junho de 2007, tendo como lema Reforma Agrria: por Justia Social e Soberania Popular, e contou com 17.500 participantes do campo de 24 estados do Brasil, alm de 181 convidados internacionais represen-tando 21 organizaes camponesas de 31 pases. Ao final do quinto congresso elaborou-se um programa agrrio e uma carta proposta/carta do congresso. Nos documentos, o MST reafirma bandeiras j histricas dos sem-terra, faz crticas lentido governamental na questo da reforma agrria e incorpora demandas de outros segmentos sociais excludos que tambm vivem no campo ou em aldeias, como os indgenas e os quilombolas, alm de defender causas de ambientalistas no que tange s florestas, guas e defesa do meio ambiente em geral.

    O quinto congresso reafirmou as posies acima destacadas sobre suas bandeiras de luta ao afirmar:

    Da forma como o campo est estruturado hoje, no h mais lugar para o campons. O campo se transformou em um territrio de produo

  • 14EDUCAO, TERRA E LIBERDADE

    de matria-prima para a exportao, produo essa fundamentada no mono-cultivo em grande escala, no uso intensivo de mquinas e agrotxicos que expulsam mo-de-obra e agridem o meio ambiente e bancada pelo capital financeiro internacional. O agronegcio, como ficou conhecido esse modelo, hoje o grande entrave reforma agrria defendida por ns do MST e pelos movimetos sociais da Via Campesina.3

    E o MST concluiu:

    [...] est explcito o sonho e a luta daqueles que acreditam que s poder haver justia social se houver uma ampla reforma agrria, que possibilite a democratizao do acesso terra e a eliminao da pobreza do campo. Alm disso, para que um povo possa se reconhecer soberano, ele deve exercer o controle sobre sua produo, de alimentos e de energia, para que esses possam cumprir suas funes sociais, em benefcio do prprio povo, e no para gerar lucros a poucos acionistas dos grandes bancos e empresas transnacionais.4

    No governo Lula, o MST busca redefinir suas aes e vive grandes contradies. De um lado, apoiou a eleio e a reeleio deste presidente; de outro, est em desacordo com as polticas e as prioridades econmicas adotadas pelo governo, denuncia e questiona o no-cumprimento de metas em relao questo agrria, discorda do modelo de reforma agrria que vem sendo implementado pelo governo, etc. Por isso, o nmero de ocupaes na primeira gesto de Lula superou em mdia o da gesto anterior, do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. bom recordar que o MST no fica apenas nas demandas econmicas, ou no simples acesso terra: ele quer a terra e condies de apoio econmico para viver nela, com infra-estru-tura moderna em outras reas bsicas do cotidiano, como escolas, sade, postos de comercializao, etc. O movimento desenvolveu tambm um mtodo prprio na rea da Educao, tanto para as crianas como para a formao de professores.

    A proposta de reforma agrria do MST assenta-se em quatro pilares: a demo-cratizao do acesso terra, combatendo-se a elevada concentrao existente (segundo dados do MST, 1% da populao dona de 46% das terras brasileiras e apenas 60 milhes de hectares destinam-se lavoura, dos 360 milhes aptos para a agricultura no pas); o desenvolvimento e ampliao da agroindstria local, que no precisa ser uma grande fbrica, pode ser um conjunto de pequenas comu-nidades de produtores; a educao, em todos os nveis e no s a alfabetizao 3 MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (2007). Balano do V Congresso Nacional do MST. Braslia, DF, 21 jun. 2007. Disponvel em: . Acesso em: 21 dez. 2008.4 MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (2007).

  • 15PREFCIO

    (principalmente o conhecimento tecnolgico local, a formao dos jovens como tcnicos, etc.); e a mudana do modelo tecnolgico agrcola existente no Brasil, baseado em oligoplios e nas multinacionais, para um modelo que considere, alm do problema social da fome e do desemprego, as especificidades da natureza, um modelo no-predatrio e que tenha compromisso com as geraes futuras.

    So vrias as transformaes que o MST tem promovido na cultura poltica dominante no pas em relao s representaes que a sociedade tinha a respeito da reforma agrria, obrigando os governantes a colocarem em pauta a questo rural; mas ele tm tido dificuldade para tratar com a prpria mudana cultural interna dos assentados. Os conflitos internos no se limitam fase do acampamen-to, mas se estendem aos assentamentos e muitas vezes levam desarticulao do grupo, gerando dissidncias internas.

    O MST no tem o radicalismo de esquerda presente em outros grupos latino-americanos como os do Peru (Sendero Luminoso, Tupac-Amaru), nem a identi-dade dada pelos vnculos tnico-culturais dos zapatistas de Chiapas, no Mxico, ou dos aymaras da Bolvia. Ele se define e criou sua identidade por uma ausncia: ser sem-terra. Criou tambm cones emblemticos para esta identidade, que se materializam nos bons e nas bandeiras vermelhas, como j apontado. O movimento tem um modelo de reforma agrria moderno, que inova a pauta de reivindicaes dos trabalhadores ao introduzir na agenda questes relativas ao acesso e democratizao do crdito, conforme destacamos acima, assim como tem contribuindo para a publicizao da esfera pblico-estatal. Mas seu modelo de reforma agrria tem encontrado muitas dificuldades e barreiras para aceitao na atual conjuntura das polticas neoliberais, de desregulamentao do papel do Estado na economia. Trata-se de um modelo que depende de fundos pblicos para desapropriar reas, auxlio a implantao dos assentamentos, etc.

    O tema da educao, destacado neste livro de Carlos Bauer, continua receben-do ateno do MST que destacou no quinto congresso a necessidade de investir em educao e em comunicao. O documento final de 2007 preconizou:

    Lutar para que a classe trabalhadora tenha acesso ao ensino fundamental, escola de nvel mdio e a universidade pblica, gratuita e de qualidade.Desenvolver diferentes formas de campanhas e programas para eliminar o analfabe-tismo no meio rural e na cidade, com uma orientao pedaggica transformadora.Lutar para que cada assentamento ou comunidade do interior tenha seus prprios meios de comunicao popular, como por exemplo, rdios comunitrias e livres. Lutar pela democratizao de todos os meios de comunicao da sociedade contri-buindo para a formao da conscincia poltica e a valorizao da cultura do povo.5

    5 MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA. Carta do 5 Congresso Nacional do MST. Braslia, DF, 15 jun. 2007. Disponvel em: . Acesso em: 21 dez. 2008

  • 1 IntroduoNeste trabalho, estamos preocupados em estudar e estabelecer algumas

    relaes entre educao e poder. Trata-se de um tema clssico presente, entre outras, nas reas de Sociologia, Filosofia, Histria da Educao, Currculos e Programas e se inspira na perspectiva de contribuir, mesmo que modestamente, com a construo de um projeto pedaggico humanista, num mundo em que predominam a ideologia e os interesses de classe da burguesia, que foram impregnando as concepes culturais e as representaes sociais no cotidiano das prticas escolares.

    A relao entre educao e as temticas mais variadas da vida social, em particular da poltica, ilimitada. Postura invarivel assumem as elites, para quem quaisquer projetos educacionais prendem-se exclusivamente s suas prprias necessidades econmicas. Na contemporaneidade, sua ofensiva vincula-se internacionalmente a um grande arcabouo ideolgico, com uma impres-sionante campanha miditica1, na defesa de uma pretensa modernidade, do paraso em terra da sociedade de mercado, da progressiva abolio das barreiras alfandegrias, do mais amplo afastamento da interferncia do Estado na economia e do fim das utopias sociais.

    Para as regies da periferia do capitalismo, como aquelas em que se situam os pases da Amrica Latina, desde os primeiros instantes da dcada de 1990 o projeto neoliberal significou, na prtica, a internacionalizao de suas economias, a privatizao dos servios pblicos, a livre remessa de lucros para o exterior, um rgido controle salarial e a institucionalizao do autoritarismo, com a represso aos movimen-tos populares por meio de instrumentos jurdicos perfeitamente compatveis com o formalismo da democracia burguesa. a forma ideolgica como as velhas relaes de dominao se apresentam, com a roupagem de novo, progressista, moderno.

    1 No Brasil, um excelente exemplo desta ofensiva da mdia a revista Veja. Funcionando como um verdadeiro partido da ordem social vigente, a publicao no abre mo de depreciar os esforos polticos, a pedagogia de formao humana e a busca de autonomia do MST. Em suas pginas, o movimento dos trabalhadores rurais brasileiros caracterizado como uma temvel iniciativa das classes perigosas, que no teriam outro propsito a no ser preparar seus quadros para desvirtuar a ordem vigente e deflagrar uma ofensiva contra o capital e pelo fim da propriedade privada, abrindo as portas para uma era de horror. Por ocasio da inaugurao da Escola Nacional Florestan Fernandes, suas palavras foram estas: O movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) criou sua prpria verso das madraais os internatos religiosos muulmanos em que crianas aprendem a recitar o Coro e dar a vida em nome do Isl. Nas 1.800 escolas instaladas em acampamentos do MST, crianas entre 7 e 14 anos de idade aprendem a defender o socialismo, a desenvolver a conscincia revolucionria e a cultuar personalidades do comunismo como Karl Marx, Ho Chi Minh e Che Guevara. (WEINBERG, 2004, p. 17) Em artigo publicado em setembro de 2004, Jos Arbex Jnior, com razo, observa que a referida revista faz uma grosseira e fantasiosa associao direta entre o fundamentalismo e o socialismo, relao que tenta legitimar a criminalizao do MST (ARBEX, 2004, p. 12).

  • 18EDUCAO, TERRA E LIBERDADE

    Desse modo, pode-se falar de pedagogia e ideologia e, em nosso caso especfico, de educao e contra-ideologia. Sobre as relaes entre educao e as principais premissas inseridas no pensamento conservador, na atualidade, ficamos com a precisa caracterizao elaborada por Michael W. Apple (2000, p. 31-32):

    Muitas das polticas direitistas que vm desempenhando agora um papel central na educao e em quase todas as outras reas carregam uma tenso entre uma nfase neoliberal em valores de mercado, de um lado, e um apego neoconservador aos valores tradicionais, de outro. Segundo a primeira perspectiva, o Estado deve ser minimizado, de preferncia liberando de controles a empresa privada [...]; de acordo com a segunda, o Estado precisa ser forte para ensinar conhecimentos, normas e valores corretos. Para ambas, esta sociedade est ruindo, em parte porque as escolas no atendem a nenhuma delas. Elas so excessivamente controladas pelo Estado e no ministram o ensino que se espera que dem. Isto um pouco contraditrio, mas, como veremos mais tarde, a agenda direitista tem formas de lidar com essas contradies e conseguir alinhavar criativamente uma aliana que una (algumas vezes de modo tenso) os vrios movimentos que a compem.

    Michael Apple observa que a aliana hegemnica um amplo guarda-chuva e abriga de forma combinada quatro agrupamentos principais. So eles:

    (1) as elites polticas e econmicas dominantes que tentam modernizar a economia e as instituies a ela ligadas; (2) os grupos de classe mdia e classe trabalhadora que desconfiam do Estado e esto preocupados com a segurana, a famlia, o conhecimento e os valores tradicionais, e que constituem um segmento cada vez mais ativo, podendo ser chamados de populistas autoritrios; (3) os conservadores econmicos e culturais como William Bennett, que querem uma volta aos altos padres, disciplina e competio social darwinista; e (4) uma frao da nova classe mdia que pode no concordar totalmen-te com esses outros grupos, mas cujos prprios interesses profissionais e progresso dependem da expanso de sistemas de prestao de contas, da busca da eficincia e de procedimentos gerenciais, os quais constituem seu prprio capital cultural. (APPLE, 2000, p. 32)

    Finalmente, Apple observa que a esfera da educao uma daquelas em que a direita tem crescido. De fato, para este autor o objetivo social-democrata de expandir a igualdade de oportunidades (uma reforma limitada em si mesma) perdeu muito de seu apelo poltico e de sua possibilidade de mobilizar pessoas. Sobre tais tenses, Apple (2000, p. 32) assim escreve:

  • 191 INTRODUO

    O pnico referente a padres rebaixados, evaso e analfabetismo, o medo da vio-lncia nas escolas, a preocupao com a destruio de valores familiares e religiosos, tudo isso teve seu efeito. Esses medos so exacerbados, e usados, pelos grupos domi-nantes, os quais, na poltica e na economia, conseguiram deslocar o debate sobre a educao (e sobre todas as outras reas sociais) para seu prprio terreno o terreno do tradicionalismo, da padronizao, da produtividade, das iniciativas de mercado e das necessidades industriais. Porque muitos pais esto justificadamente preocupa-dos com o futuro econmico e cultural de seus filhos em uma economia que cada vez mais se caracteriza por salrios baixos, fuga de capitais e insegurana , o discur-so direitista se liga experincia de muitas pessoas de classe mdia e trabalhadora.

    preciso reconhecer que, diante dos antagonismos e tenses que caracterizam o mundo poltico moderno, a propaganda ideolgica do neoliberalismo ganhou mais espao com um sem-nmero de episdios que se articularam historicamen-te, como exemplificam a surpreendente e meterica desagregao dos Estados burocrticos do Leste Europeu e com as crescentes contradies presentes no desenvolvimento de regimes como o chins, o cubano, o norte-coreano e at mesmo de alguns pases africanos.

    Por outro lado, no Brasil, como tambm em outros pases latino-americanos, os chamados movimentos sociais acumularam enormes contradies ao longo de seu desenvolvimento. Muitos deles, ao buscarem constituir-se no sonho de emancipa-o da classe trabalhadora, acabaram trilhando caminhos tortuosos, ou mesmo se deixaram cooptar no transcurso de sua ao. Tal e conflitante iderio muito bem tra-duzido por Maria da Glria Gohn, quando, teorizando sobre estes, argumenta que:

    Movimentos sociais so aes sociopolticas construdas por atores sociais coletivos pertencentes a diferentes classes sociais, articuladas em certos cenrios da conjun-tura socioeconmica e poltica de um pas, criando um campo poltico de fora na sociedade civil. [...] As aes desenvolvem um processo social e poltico-cultural que cria uma identidade coletiva para o movimento, a partir dos interesses em co-mum. Esta identidade amalgamada pela fora do princpio da solidariedade [...] Os movimentos participam, portanto, da mudana social histrica de um pas, e o carter das transformaes geradas poder ser tanto progressista como conservador ou reacionrio, dependendo das foras sociopolticas a que esto articuladas, em suas densas redes; e dos projetos polticos que se constroem em suas aes. (GOHN, 1997a, p. 251-252)

    Mesmo em se tratando de processos histricos que esto em pleno curso,

    trazendo com isso o risco de prognsticos imprecisos e dependentes de fontes jornalsticas, preciso ter a disposio de analisar as aes daqueles que busca-

  • 20EDUCAO, TERRA E LIBERDADE

    ram enfrentar esta ofensiva denunciando o neoliberalismo como um instrumento de dominao imperialista dos pases ricos e de fortalecimento do capitalismo, responsvel pela explorao predatria da natureza, pela concentrao da rique-za, pelas guerras, pela represso, opresso e misria dos povos (PETRAS, 2002). Como exemplo recente, podemos citar a interveno estadunidense no Oriente Mdio, que visou apenas continuar controlando reas vitais para o exerccio de sua dominao poltica, econmica e social, que se pretende mundial.

    Estamos preocupados em estudar os que buscam superar o capitalismo e seus projetos assentados nas premissas do liberalismo. Rejeitando os regimes buro-crticos de partido nico que foram institudos em nome do socialismo, reafir-mando a necessidade de continuar travando a luta anticapitalista, fortalecendo os objetivos histricos de emancipao da classe trabalhadora, por meio da luta pelo estabelecimento de uma sociedade socialista e democrtica. Evidentemente, no estamos falando de uma democracia meramente formal,

    [...] de uma democracia que aprofunda as desigualdades, puramente convencional, que fortifica o poder dos poderosos, que assiste de braos cruzados aviltao e ao destra-to dos humildes e que acalenta a impunidade. No de uma democracia cujo sonho de Estado, dito liberal, o Estado que maximiza a liberdade dos fortes para acumular capital em face da pobreza e s vezes da misria das maiorias, mas de uma democra-cia em que o Estado, recusando posies licenciosas ou autoritrias e respeitando realmente a liberdade dos cidados, no abdica de seu papel regulador das relaes sociais. Intervm, portanto, democraticamente, enquanto responsvel pelo desenvol-vimento da solidariedade social.Precisamos de uma democracia que, fiel natureza humana que tanto nos fez capa-zes de eticizar o mundo quanto de transgredir a tica, estabelea limites capacida-de de malquerer de homens e mulheres. (FREIRE, 2000, p. 48)

    por isso que se faz absolutamente imperioso acompanhar e analisar o necessrio esforo que os trabalhadores e demais setores populares buscam empre-ender, na perspectiva de fortalecer sua prpria experincia de auto-organizao, no apenas no plano corporativo e econmico de seus movimentos sociais, mas tambm na arena da cultura, da educao, da poltica, da influncia e da disputa por hegemonia na esfera pblica. Tal perspectiva parece-nos imbuda de grande relevncia social, principalmente porque, como Paulo Freire, no cremos

    [...] na democracia puramente formal que lava as mos em face das relaes entre quem pode e quem no pode porque j foi dito que todos so iguais perante a lei. Mais do que dizer ou escrever isto, preciso fazer isto. Em outras palavras, a frase

  • 211 INTRODUO

    se esvazia se a prtica prova o contrrio do que nela est declarado. Lavar as mos diante das relaes entre os poderosos e os desprovidos de poder s porque j foi dito que todos so iguais perante a lei reforar o poder dos poderosos. imprescind-vel que o Estado assegure verdadeiramente que todos so iguais perante a lei e que o faa de tal maneira que o exerccio deste direito vire uma obviedade.O que me parece impossvel aceitar uma democracia fundada na tica do mer-cado que, malvada e s se deixando excitar pelo lucro, inviabiliza a prpria demo-cracia. (FREIRE, 2000, p. 48-49)

    Desta sorte, o objetivo central do presente trabalho buscar lanar um olhar

    crtico sobre os organismos criados pelos trabalhadores como o caso Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) , aqui estudados no desenvolvimento de seus princpios educacionais, trabalho de formao e conscientizao poltica, e que tiveram entre seus marcos a luta contra a ditadura militar e a democratizao do Estado brasileiro, combinada ao sindical e poltica em defesa do salrio, do emprego, da terra, da autonomia e liberdade sindical, quando, conforme es-tudo de der Sader (1988), inmeras oposies sindicais disputavam eleies e conquistavam novos sindicatos para o campo progressista e antiditatorial. Essa estratgia de ao de massa foi crucial para que, no contexto das tenses polticas entre Estado e sociedade que caracterizaram a transio nos anos 1970-1980, os movimentos sociais, sindicais e polticos produzidos pelos trabalhadores, particularmente aqueles liderados pela Central nica dos Trabalhadores (CUT) e pelo Partido dos Trabalhadores (PT), mas tambm pelo MST, ocupassem lugar de destaque, colocando-se como legtimos interlocutores dos setores populares no processo de disputa de hegemonia poltica e cultural na sociedade brasileira, principalmente se levarmos em conta os aspectos e os princpios educativos dos movimentos sociais.

    Sobre estes, alis, Maria da Glria Gohn (1994, p. 16) faz a seguinte reflexo: A educao ocupa lugar central na acepo coletiva da cidadania. Isto porque ela se constri no processo de luta que , em si prprio, um movimento educativo.

    De nossa parte, neste livro, o carter histrico, poltico e os princpios educacionais do MST aparecem estudados e divididos em trs partes: Histria, educao e crise agrria no Brasil contemporneo, A problemtica da concentrao fundiria no Brasil e suas conseqncias e Princpios educacionais do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; nas Consideraes finais esse movimento caracterizado como um dos mais complexos, atuantes e enraizados socialmente na Amrica Latina.

    Ao longo destas pginas, procuramos produzir uma explicao marxista para o problema da terra no Brasil e na Amrica Latina, refletindo sobre o modelo rentista da economia e a existncia de uma agricultura tradicional; debatemos

  • 22EDUCAO, TERRA E LIBERDADE

    tambm a transio para uma agricultura empresarial: a revoluo verde e suas conseqncias no mercado agrcola mundial nessa regio do mundo. Foram focalizados, historicamente, as lutas camponesas e o salto em direo agricultura empre-sarial: o agronegcio (agrobusiness), a inovao e introduo de produtos pela indstria, a questo camponesa e a revoluo permanente, a problemtica da concentrao fundiria em nosso pas e suas principais conseqncias sociais, a modernizao conservadora da agricultura e as relaes de trabalho e de classe no campo. A guerra civil no campo, o pacifismo dos sem-terra, sua prtica poltica pedaggica, educao e cultura na formao da conscincia poltica dos militantes desse movi-mento social, o papel da Igreja Catlica e suas contradies tambm foram analisados, assim como os princpios educacionais do movimento e sua pedagogia da luta, procu-rando demonstrar o carter pedaggico e a importncia histrica e social do MST.

    Ademais, num quadro como este, estamos preocupados em estudar o papel do MST na disputa de hegemonia e na construo de uma contra-hegemonia cultural quanto criao de condies objetivas para a formao de um bloco histrico que assuma as responsabilidades pelas transformaes estruturais em nosso pas. Mais precisamente, estamos dispostos a reunir subsdios que permitam aos inte-ressados melhor compreender e refletir sobre as relaes entre o MST e as fecundas aspiraes que nutrem pela educao.

    O desenvolvimento da presente pesquisa foi possvel graas ao acolhimento de seu projeto pela professora Maria da Glria Gohn, num estgio de ps-doutorado reali-zado na Faculdade de Educao da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), bem como pela oportunidade, dada pelos professores Jos Rubens Lima Jardilino e Cleide Rita Silvrio de Almeida, de desenvolv-la como docente-pesquisador do Pro-grama de Ps-Graduao em Educao da Universidade Nove de Julho (Uninove).

    Em nossa opinio, todo trabalho de pesquisa coletivo. Pressupe mecanismos efetivos de estmulo, convivncia com companheiros dispostos ao debate crtico, partilha de resultados, reconhecimento histrico do significado das utopias, alm do respeito pela militncia poltica e educacional que procura-mos desenvolver na cotidianidade de nosso trabalho. Tudo isto, estes educadores no cansam de proporcionar.

    Tambm devo meus agradecimentos aos editores Jair Baida, Expedito Correia e Fabiana Ramos que, num pas de no-leitores, insistem no ofcio e na arte de publicar livros, e s professoras Maria da Glria Gohn e Thrse Hamel, primeiras e crticas leitoras dos manuscritos que esto na origem da presente publicao. A todos minha gratido, profundo respeito acadmico, permanente amizade e confiana profissional.

  • 231 INTRODUO

    Durante a vigncia do estgio de ps-doutorado, alm da efetiva participao em bancas examinadoras de dissertaes e teses orientadas por Maria da Glria Gohn, no mbito da Faculdade de Educao da Unicamp e dos encontros do Ncleo de Estudos sobre Movimentos Sociais, Educao e Cidadania (Gemdec) do Programa de Estudos Ps-Graduados em Educao da mesma faculdade, envolvemo-nos na produo de um levantamento pormenorizado da bibliografia, peridicos, trabalhos acadmicos e documentos pertinentes ao tema, com o objetivo de nos informarmos sobre a situao atual do problema estudado, sobre os trabalhos produzidos anteriormente, sobre as opinies e anlises j realizadas acerca dos princpios educacionais do MST e a problemtica questo da terra no Brasil e na Amrica Latina. Trabalho exaustivo, porm necessrio.

    Este procedimento permitiu, na construo do presente texto, a articulao de um sem-nmero de informaes produzidas por diferentes autores preocupados em estudar no apenas o trabalho de formao educacional realizado pelo MST, mas tambm a problemtica da terra numa dimenso histrica, poltica, econmica e social no Brasil e na Amrica Latina. Conhecer seus modelos tericos, suas princi-pais referncias polticas e educacionais, faz-se necessrio ao desenvolvimento das pesquisas de especialistas acadmicos preocupados em estudar e refletir sobre as questes pertinentes ao desenvolvimento dos movimentos sociais no campo.

    Nosso principal objetivo sempre foi o de buscar estabelecer uma viso histrico-dialtica da realidade social e cultural produzida pelo MST na construo e desenvolvimento de seus princpios educacionais.

    A pesquisa aqui apresentada um modesto reconhecimento da importn-cia e da legitimidade dos princpios educacionais que estes trabalhadores rurais defendem, produzindo, assim, um breve registro e uma memria escrita de uma das mais importantes experincias educacionais em curso na sociedade brasileira.

  • 2 Histria, educao e crise agrria no Brasil contemporneo

    Caracterizando o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) Para alguns analistas, o MST nasceu em um processo de enfrentamento e

    resistncia contra a poltica de desenvolvimento agropecurio instaurada duran-te o regime militar, no perodo compreendido entre 1978 e 1985. Esse processo entendido em seu carter mais geral, na luta contra a expropriao e a explorao do desenvolvimento do capitalismo. Para Bernardo Manano Fernandes (1996, p. 66),

    Neste perodo da luta pela democracia, de transio poltica e de rupturas, a classe trabalhadora retoma suas perspectivas conquistando novos espaos no campo e na ci-dade. Os acontecimentos mais importantes dessas conquistas tm o seu comeo assi-nalado pelas experincias construdas nas lutas populares, que desafiavam as formas institucionais. Os desafios se apresentavam no avano da luta em relao aos partidos polticos, legais e clandestinos [...], nas rupturas com tradies e prticas conhecidas [...] e pelo rompimento com esquemas populistas do passado [...], etc. Rompendo com estruturas, desafiando-se e criando um novo processo de conquistas na luta pela terra.

    Com efeito, durante todo este perodo a formao de inmeros movimentos sociais enquanto sujeito histrico foi uma realidade profundamente marcante no cenrio poltico nacional, traduzindo um espao conquistado pelas diversas experi-ncias e lutas populares, como nos informa Roseli Salete Caldart (1999, p. 3):

    O Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, tambm conhecido como Mo-vimento dos sem Terra ou MST, fruto de uma questo agrria que estrutural e histrica no Brasil. Nasceu da articulao das lutas pela terra que foram retomadas a partir da dcada de [19]70, especialmente na regio centro-sul, e aos poucos se expandiu pelo Brasil inteiro. O MST teve sua gestao no perodo de 1979 a 1984, e foi criado formalmente no Primeiro Encontro Nacional de Trabalhadores sem Terra, que aconteceu de 21 a 24 de janeiro de 1984, em Cascavel, no Estado do Paran. Hoje o MST est organizado em 22 estados, e segue com os mesmos objetivos defi-nidos neste Encontro de [19]84 e ratificados no I Congresso Nacional realizado em Curitiba, no ano de 1985, tambm no Paran: lutar pela terra, pela reforma agrria e pela construo de uma sociedade mais justa, sem explorados nem exploradores.

    Referimo-nos ao processo de formao dos sem-terra inspirados na obra de Edward P. Thompson (1987a) e, ao mesmo tempo, preocupados com os

  • 26EDUCAO, TERRA E LIBERDADE

    processos por meio dos quais trabalhadores rurais sem-terra fizeram-se ou ainda se fazem este novo sujeito social chamado Sem Terra, com uma identidade e uma conscincia que lhes insere nos embates polticos do nosso tempo (CALDART, 1999, p. 4). Segundo Thompson, quando buscamos explicar o sentido do fazer-se, por exemplo, da classe operria inglesa, estamos preocupados em compreend-la como um processo ativo, que se deve tanto ao humana como aos seus condi-cionantes. Para Thompson (1987a, p. 7), a classe operria no surgiu tal como um sol numa hora determinada. Ela estava presente ao seu prprio fazer-se.

    Segundo Clia Regina Vendramini, o conceito de classe social formulado por Thompson central para examinar e aprofundar o papel dos sujeitos sociais, na medida em que considera a classe como um fenmeno histrico, como algo que efetivamente ocorre nas relaes humanas, no de forma determinada, mas como uma capacidade de percepo e articulao de interesses de alguns indivduos contra outros, cujos interesses diferem dos seus. Para Vendramini (2000, p. 32),

    Thompson compreende que a classe e a conscincia de classe vo forman-do-se juntas na experincia: uma formao imanente. Como exemplo, descreve o perodo entre 1790 e 1830, quando se forma a classe operria inglesa. O fato revelado, em primeiro lugar, pelo crescimento da conscincia de classe: a conscincia de uma identidade de interesses entre todos esses diversos grupos de trabalhadores, contra os interesses de outras classes. E, em segundo lugar, no crescimento das formas correspondentes de organizao poltica e industrial.

    Nas palavras do prprio Thompson (1987b, p. 17), o fazer-se da classe operria um fato tanto da histria poltica e cultural quanto da econmica. Compartilhamos da leitura que Vendramini nos apresenta ao retratar as mudanas de vida dos trabalhadores rurais, dos artesos e teceles:

    [...] pode parecer um registro de frustraes e fracassos, mas a experincia apresenta muitas tradies que se originam desse perodo. Dos primeiros estgios da auto-educao poltica de uma classe, que diz respeito aos efeitos morais da sociedade, acompanhamos com o autor o despertar de uma autoconscincia coletiva, associada a teorias, instituies, normas disciplinares e valores comunitrios correspondentes que distinguem a classe operria do sculo XIX da plebe do sculo XVIII. (VENDRAMINI, 2000, p. 32)

    Para Thompson, foi sem sombra de dvida a partir das prprias experincias da classe operria que se produziu sua expresso cultural e poltica. Sua anlise considera, entre outras coisas, o modo de vida caracterstico dos trabalhadores, que est associado com um determinado modo de produo, e os valores partilhados

  • 272 HISTRIA, EDUCAO E CRISE AGRRIA NO BRASIL CONTEMPORNEO

    pelos que viveram durante aquele perodo histrico que convencionamos chamar de Revoluo Industrial. Em linhas gerais, sua magistral obra A formao da classe operria inglesa preocupa-se em estudar as experincias cotidianas, as condies de vida, os desejos e a racionalizao impostos aos trabalhadores.

    Se determos [sic] a histria num determinado ponto, no h classes, mas simplesmente uma multido de indivduos com um amontoado de experincias. Mas se examinarmos esses homens durante um perodo adequado de mudanas sociais, observaremos padres em suas relaes, suas idias e instituies. A classe definida pelos homens enquanto vivem sua prpria histria e, ao final, esta sua nica definio. (THOMPSON, 1987a, p. 11-12)

    A compreenso que Thompson tem do processo de formao da classe operria inglesa nos remete idia de que a classe , antes de qualquer coisa, uma formao tanto cultural como econmica e poltica, que se produz e se manifesta historicamente nas relaes humanas e sociais, como um dos resultados de experincias comuns, determinadas principalmente pelas relaes de produo. No de outra forma que, para este autor, a chamada conscincia de classe:

    [...] a forma como essas experincias so tratadas em termos culturais: encarnadas em tradies, sistemas de valores, idias e formas institucionais. Se a experincia aparece como determinada, o mesmo no corre com a conscincia de classe. Podemos ver uma lgica nas reaes de grupos profissionais semelhantes que vivem experincias parecidas, mas no podemos predicar nenhuma lei. A conscincia de classe surge da mesma forma em tempos e lugares diferentes, mas nunca exatamente da mesma forma. (THOMPSON, 1987a, p. 10, grifo do autor)

    Preocupado em desenvolver uma ferrenha e acirrada crtica ao pensamento de autores como Louis Althusser, Thompson procura analisar em profundidade problemas epistemolgicos e de teoria e prtica social. Seu questionamento produz-se a partir do desenvolvimento de algumas proposies que procuram demonstrar, por exemplo, que a epistemologia de Althusser produto de um limitado percurso acadmico de aprendizado, no qual no levada em considerao a experincia, ou mesmo a influncia do ser social sobre a conscincia que este produz da sociedade em que vive. Isto faz com que exista na epistemologia althusseriana um falseamento do dilogo com evidncia emprica, inerente produo do conhecimento e prpria prtica de Marx, o que leva este autor a cair seguidamente em um mecanismo de pensamento caracterizado como idealista pela tradio marxista (THOMPSON, 1981). No sentido de alimentar vivamente essa polmica, Thompson (1987a, p. 10-11) faz a seguinte observao:

  • 28EDUCAO, TERRA E LIBERDADE

    Existe atualmente uma tentao generalizada em se supor que a classe uma coisa. No era esse o significado em Marx, em seus escritos histricos, mas o erro deturpa muitos textos marxistas contemporneos. Ela, a classe operria, tomada como tendo uma existncia real, capaz de ser definida quase matematicamente uma quantidade de homens que se encontra numa certa proporo com os meios de produo. Uma vez isso assumido, torna-se possvel deduzir a conscincia de classe que ela deveria ter (mas raramente tem), se estivesse adequadamente consciente de sua prpria posio e interesses reais. H uma superestrutura cultural, por onde esse reconhecimento desponta sob formas ineficazes. Essas defasagens e distor-es culturais constituem um incmodo, de modo que mais fcil passar para algu-ma teoria substitutiva: o partido, a seita ou o terico que desvenda a conscincia de classe, no como ela , mas como deveria ser.Mas um erro semelhante diariamente cometido do outro lado da divisria ideolgica. Sob uma forma, uma negao pura e simples. Como a tosca noo de classe atribuda a Marx pode ser criticada sem dificuldades, assume-se que qualquer noo de classe uma construo terica pejorativa, imposta s evidncias. Nega-se absolutamen-te a existncia da classe. Sob outra forma, e por uma inverso curiosa, possvel passar de uma viso dinmica para uma viso esttica de classe. Ela a classe operria exis-te, e pode ser definida com alguma preciso como componente da estrutura social.

    Acompanhando este raciocnio, Roseli Caldart apresenta a seguinte argumen-tao sobre a formao e histria do MST:

    [...] os sem-terra no surgiram como sujeitos prontos, ou como uma categoria scio-poltica dada, atravs do ato de criao do MST. Sua gnese anterior ao movimento e sua constituio um processo que continua se desenvolvendo ainda hoje, embora, tal como no caso da classe operria analisada por Thompson, j seja possvel identificar um momento da sua histria em que se mostra como identidade melhor definida. Este momento corresponde ao final da dcada de 80, incio dos anos 90, deste final de sculo XX. (CALDART, 1999, p. 8)

    Pautando a questo da autonomia dos protagonistas das lutas sociais, seus

    sujeitos, suas organizaes frente ao Estado e outras instituies comprometidas com a manuteno do poder, quando buscamos as razes histricas do MST importante dizer que este um movimento que surgiu fortemente ligado Igreja Catlica. No sem contradies e implicaes sua prpria autonomia poltica, a maior parte dos movimentos sociais que se organizaram a partir da dcada de 1970 contou com uma influncia bastante grande e bem visvel de alguns setores do clero catlico. Com efeito, na primeira metade da dcada de 1970, e nos anos

  • 292 HISTRIA, EDUCAO E CRISE AGRRIA NO BRASIL CONTEMPORNEO

    de auge do regime militar, as comunidades eclesiais de base (CEBs) foram, ou melhor dizendo, produziram um lugar social no qual os trabalhadores encontra-ram condies para se organizar e lutar contra as injustias e por seus direitos. Em que pese muito em sua histria o fato de ter apoiado o golpe de 1964, a partir de 1973 a Igreja Catlica comeou a mudar sua posio sobre o regime militar.

    Naqueles tumultuados dias, o presidente Joo Goulart, com o apoio do Par-tido Trabalhista Brasileiro (PTB), defendia a instaurao da reforma agrria com o objetivo de aumentar a produo agrcola do pas e ampliar o mercado interno. Para ele, este gesto poderia levar ampliao do mercado interno na-cional e concretizao de outra bandeira de seu governo: o desenvolvimento da indstria nacional. Com esse intuito, o presidente Goulart formou uma aliana com a Igreja e os comunistas a chamada Poltica de Frente nica que buscava realizar mudanas profundas nas relaes agrrias no Brasil e, ao mesmo tempo, combater as Ligas Camponesas, que nesse momento assumiam uma posio mais radical: a revoluo camponesa.

    Para garantir o sucesso dessa estratgia, escreve Alessandro Soares da Silva (2002), Goulart buscava o apoio da burguesia que no poucas vezes era a mesma proprietria das terras ao defender o aumento de seu lucro por intermdio da ampliao do mercado interno. Contudo, a burguesia aliou-se no Frente nica, mas aos latifundirios e ao Exrcito, opondo-se, na prtica, aos planos daquela. Luis Carlos Tarelho (apud SILVA, 2002, p. 4) afirma que havia diferentes caminhos possveis para a resoluo da questo agrria brasileira nesse momento: o projeto de mudana radical defendido pelas Ligas Camponesas poderia ter sido um, caso a esquerda o tivesse apoiado; a nacionalizao da economia e a reforma agrria progressiva defendidas pela Frente nica poderia ter sido outro, caso a burguesia tivesse se incorporado Frente. Mas ambas as formas foram liquidadas de uma s vez pelo golpe e o caminho seguido foi o da internacionalizao da economia, da concentrao da terra, da militarizao da questo agrria e da modernizao abrupta do campo. (TARELHO, 1988, p. 18)

    Historicamente falando, as iniciativas educacionais destinadas aos trabalhadores rurais estiveram muito dependentes de iniciativas de setores da Igreja ou de cam-panhas oficiais de alfabetizao de adultos. Podemos lembrar aqui, por exemplo, de iniciativas como o Movimento de Educao Bsica (MEB), Plano Nacional de Alfa-betizao (PNA), Movimento Brasileiro de Alfabetizao (Mobral), Projeto Minerva, Projeto Rondon, projetos que, muito embora estivessem centrados na alfabetizao, tratavam tambm de outras questes como direitos trabalhistas, legislao previden-ciria, reforma agrria, principal e evidentemente no caso das experincias protago-nizadas pela Igreja Catlica por meio de suas pastorais (MANFREDI, 1996).

  • 30EDUCAO, TERRA E LIBERDADE

    Inversamente, neste cenrio complexo e conflituoso buscando superar os muitos desafios que se mantinham como uma herana maldita do perodo anterior,

    [...] a proposta do MST de alfabetizao de jovens e adultos tem como objetivo a alfabetizao e discusso do trabalho cooperativo no assentamento [Ela considera que] este um processo lento, pois o adulto tem mais resistncia ao aprender a ler e escrever, uma vez que aparentemente para trabalhar na terra no h necessidade de escrever, no entender de alguns assentados. Por outro lado, sentem a necessidade de entender a organizao de uma associao, cooperativas, e para tal a educao comprometida com o ler/escrever, mas acima de tudo com a emancipao poltica e cultural dos assentados. (SOUZA, 1999, p. 11)

    A tendncia ascendente das lutas dos trabalhadores rurais, associada ao con-texto de efervescncia poltica do perodo imediatamente anterior ao golpe militar de 1964, em que a bandeira da reforma agrria tinha um importante significado poltico, forou o Estado a absorver progressivamente algumas demandas des-ta importante parcela da populao brasileira. Por exemplo, os direitos sociais e trabalhistas destes trabalhadores rurais foram reconhecidos no perodo e consolida-dos em alguns marcos legais, como o direito de organizao sindical e o Estatuto do Trabalhador Rural, implantado a partir de 1963, e o Estatuto da Terra, promulgado em 1965. Particularmente, por intermdio destes instrumentos o Estado procurava estender ao campo os mesmos direitos (mas tambm alguns dos mesmos instru-mentos de controle) que j eram conferidos ao conjunto dos trabalhadores desde a instituio, na dcada de 1930, da Consolidao das Leis do Trabalho (CLT), porm com muita luta e at mesmo sacrifico de muitos trabalhadores rurais.

    Exatamente pela compreenso desta problemtica realidade, conforme destaca Maria Antnia de Souza, (1999, p. 12), [...] o Setor de Educao do MST enfatiza o trabalho com os temas geradores: assentamento; luta; trabalho no assentamen-to, sempre destacando os alunos como sujeitos do processo de luta/conquista. A proposta parte da realidade para contextos mais amplos. O objetivo no ficar apenas na discusso da realidade. Ela apenas ponto de partida.

    Ainda no que se refere ao perodo anterior, que abrange as dcadas de 1960 e 1970, a tnica das atividades formativas e educacionais girava em torno da preparao das lideranas para o conhecimento das leis e para uma prtica social que tinha, na cobrana pelo cumprimento delas, no s o eixo como o limite da ao. Alm disso, aparece tambm como destaque a questo da gesto do universo rural, procurando produzir um padro de organizao deste na inteireza do pas. A poltica estatal procurava influenciar tanto os tcnicos como os dirigentes polticos dos trabalhadores rurais, numa consciente tentativa de uniformizao do discurso.

  • 312 HISTRIA, EDUCAO E CRISE AGRRIA NO BRASIL CONTEMPORNEO

    Evidentemente, a formao poltica do MST se articula decididamente a uma outra vertente, s chamadas polticas educacionais. Seus objetivos apontam, entre outras coisas, para uma fundamentao terica que engloba perspectivas e autores como:

    [...] Paulo Freire; Vygotsky, Makarenko, Pistrak e, conseqentemente, uma concep-o dialgica/emancipadora de educao. O grande problema se refere formao/capacitao de educadores. O grande desafio que os professores conheam a his-tria do assentamento; do MST, da luta, dos sujeitos e a conjuntura poltico-eco-nmica justamente para colocarem em prtica a proposta do MST ou contest-la com fundamentos consistentes. Este desafio pode ser vencido atravs da atitude de pesquisa, de indagao, de sistematizao de conhecimentos e de discusso pbli-ca dos conhecimentos construdos. (SOUZA, 1999, p. 12)

    Na instituio dos marcos legais para a regulao da situao dos trabalha-dores rurais, o Estado brasileiro instituiu uma srie de medidas destinadas a levar um determinado padro de modernizao produo agrcola brasileira, baseada na integrao da agricultura aos demais setores produtivos (com destaque indstria de insumos, como tambm indstria de processamento de alimentos). Efetivamente, estes dois aspectos possibilitaram a instituio de um novo padro de organizao da agricultura e do prprio meio de vida rural.

    Em sntese, esta modernizao, tendo em vista seu carter conservador, rapidez e intensidade com que foi promovida, gerou uma srie de situaes de conflito que no podiam ser absorvidas pelos instrumentos legais perpetrados com esse fim. Nesse perodo, os conflitos por terra explodiram, cresceu o uso de trabalho forado, a excluso e a precria situao econmica dos pequenos agricultores atingiram nmeros nunca antes vistos. Frisa-se aqui que essa recomposio e intensifica-o dos conflitos sociais agrrios acontecia em um momento em que a ditadura militar comeava a enfrentar dificuldades de sustentao, com um visvel esfria-mento do chamado milagre brasileiro e desgastada perante a opinio pblica pelas irrefutveis evidncias de prtica de violncia e restrio de direitos civis.

    Por essas e outras razes, perfeitamente compreensvel que Maria Antnia de Souza finalize seu trabalho defendendo a idia de que:

    [...] a luta por educao nos assentamentos e acampamentos a luta por cidadania, pelo cumprimento das leis e pela transformao social. Portanto, para alm da espe-cificidade do MST, a luta por uma sociedade diferente e por uma escola que seja da classe popular e no para ela. Uma escola que seja do campo e no para o campo. Uma educao que seja do MST, do acampamento, do assentamento e no para o assentamento/acampamento. Eis o desafio que tem sido enfrentado pelo MST, prin-cipalmente. Uma educao que seja construda em conjunto com instituies inte-

  • 32EDUCAO, TERRA E LIBERDADE

    ressadas em discutir e construir um processo educativo diferenciado. Neste sentido, um dos desafios do MST reconhecer o papel que profissionais docentes-pesquisadores universitrios podem desenvolver na construo da educao diferenciada, respeitan-do as autonomias e competncias dos mesmos. (SOUZA, 1999, p. 15, grifo da autora)

    Esta vertente da formao poltica e educacional desenvolvida pelo MST foi aos poucos convergindo com as lutas pelas polticas pblicas, para a conforma-o, ao longo da dcada de 1990, de um projeto alternativo de desenvolvimento sustentvel, muito alimentado, no interior do movimento, pela abordagem temtica das tecnologias alternativas e do associativismo/cooperativismo como possibilidade de um novo modelo societrio.

    Procurando investigar e analisar os processos pedaggicos presentes no interior dos acampamentos do MST, Maria da Glria Gohn (1999b, p. 11) argumenta que [...] o processo de alfabetizao dos alunos nas escolas do MST no se restringe ao acesso decodificao das letras na leitura e sua formulao na escrita. Trata-se de um processo interativo lastreado na realidade vivida, fermentado pelas esperanas e utopias que os repertrios de suas reivindicaes constroem.

    Gohn reconhece um conjunto de possibilidades socioeconmicas articuladas que contriburam para a construo das propostas de organizao da produo e das noes iniciais de sustentabilidade no projeto poltico do MST. Assim, ao analisar a proposta de educao do MST, a autora afirma tambm que este movimento no estabelece distino, ou dicotomia, entre educao e poltica. Ele tem como ponto de partida o aspecto poltico do ato educativo. Enfatiza a especificidade poltica da educao, segundo os conceitos gramscianos, de uma relao pedaggica que se insere num universo de luta contra as relaes hegemnicas do capital, as quais desqualificam todo e qualquer saber que no est em consonncia com o status quo (GOHN, 2000, p. 127).

    O desfecho conservador da transio poltica brasileira teve um impacto fortssimo para as principais tendncias dos movimentos sociais no campo. O MST constituiu-se numa organizao de carter nacional, com forte capilaridade e pleiteando constituir-se como principal interlocutor dos trabalhadores rurais com o Estado. Numa conjuntura marcada pela busca de consolidao da democracia poltica do incio da dcada de 1990, a capacidade de interlocuo tinha de ser acompanhada com a mobilizao social para se fazer prevalecer. Simultanea-mente, esta mesma conjuntura exigia a articulao com outros movimentos que haviam conquistado visibilidade pblica.

    Estes ltimos elementos capacidade de mobilizao e de articulao com outros setores estavam presentes no MST por conta de sua credibilidade, alcanada em anos de luta e capacidade de organizao. Neste aspecto, Gohn

  • 332 HISTRIA, EDUCAO E CRISE AGRRIA NO BRASIL CONTEMPORNEO

    (2000) considera que o MST soube aproveitar a estrutura dos trabalhos de formao tcnica que organizou. Para ela, o acmulo de experincia no desenvolvi-mento dos cursos e a lacuna histrica na oferta de capacitao tcnica para o traba-lhador, especialmente no meio rural, criaram para o movimento uma estrutura de oportunidades polticas, uma srie de brechas que foram capturadas pelo MST.

    Segundo esta autora, foram oportunidades dadas pela prpria conjuntura social, poltica, cultural e econmica do pas, na qual h um vcuo no setor de formao tcnica, principalmente para atuar no campo. Gohn defende a idia de que a criao de novidades que causam impactos e aliceram as aes coletivas foi uma estratgia utilizada pelo movimento. Parte do grande crescimento que o MST obteve nos anos da dcada de 1990 pode ser explicada pelo exame do cenrio daquela conjuntura (a outra parte deve ser atribuda prpria capacidade organizativa do MST). (GOHN, 2000, p. 111)

    Porm, importante reconhecer que, muito embora este movimento tenha penetrado em praticamente todos os estados do pas, sua capacidade de reconhe-cimento e mesmo de interlocuo com o Estado nem sempre foram satisfatrias. Suas principais dificuldades sempre estiveram evidentes no momento de buscar equilibrar as dimenses da crtica social e da proposio poltica, e de romper com o sectarismo com que a grande imprensa quase sempre tratou o MST.

    Nesta busca de superao de suas dificuldades, entrou em cena a luta por um projeto alternativo de desenvolvimento rural sustentvel, tendo por base a expanso e o fortalecimento da agricultura familiar e das cooperativas. Uma proposta que, simultaneamente, teria a tarefa de recompor a unidade das diferen-tes reivindicaes dos vrios segmentos em luta no meio rural, com um contedo estratgico expresso na perspectiva de um projeto alternativo e que fosse capaz de absorver sua maneira o debate sobre desenvolvimento e sustentabilidade.

    Neste aspecto, portanto, o desenvolvimento do projeto poltico do MST d-se em dois campos prioritrios de ao um externo e outro interno ao movimento. No campo externo, o MST dever buscar atualizar suas bandeiras de luta, inovar e massificar suas formas de ao; porm, dever continuar precria sua capacidade de superar os sectarismos prprios da grande imprensa para com o movimento. No campo interno, o MST buscar promover a unificao, ainda que conflitante e muito difcil, das tendncias em disputa em seu interior, promovendo a atuali-zao de sua estrutura organizativa e poltica e buscando avanar no terreno da organizao tcnica da produo, da cooperao e, principalmente, da educao.

    Tais caractersticas so fundamentais para se entenderem os pontos mais marcantes da poltica e os princpios educacionais do MST nos dias de hoje. O que ocorre que os contedos, temas e prticas produzidos no campo

  • 34EDUCAO, TERRA E LIBERDADE

    educativo iro se dar exatamente onde o projeto poltico do MST conseguiu produzir a esperana e a dignidade aos trabalhadores rurais sem terra: no assentamento. Mesmo que, como escreve Jos Benedito Leandro (2002), o assentado no tenha essa percepo e no esteja acompanhando as idias do MST e seu Coletivo Nacional de Educao, estimula-se uma educao libertadora e revolucionria nas reas dos assentamentos de reforma agrria e acampamentos de sem-terras.

    No entanto, tambm na opinio de Leandro (2002), seria necessrio um amplo debate nas reas citadas para verificar o que os indivduos esperam da educao. O resultado poderia ser bem diferente do esperado pelos lderes do MST, mas estar-se-ia respeitando as realidades das pessoas em seu mais rico cotidiano, o que, alis, pode ser muito mais avanado que as propostas dos agentes de mediao, como salientam Poker (1994), Martins (1996), DIncao (1976) e tantos outros pesquisadores. No se confunda essa sugesto com defesa de aes meramente espontneas e a volta a propostas isoladas de educao, mas o que se espera um processo democrtico no s na formulao de uma proposta educacional, como nas prticas dos professores e demais militantes do MST.

    Mesmo que alguns analistas e crticos possam levantar alguns problemas destas propostas educacionais, como tambm o carter principista e ideologizado dos contedos, necessrio reconhecer que est implcito no projeto educativo do MST um princpio de que o caminho para a libertao a conscientizao poltica. Trata-se de uma viso emancipatria, evidentemente inspirada em Paulo Freire.

    Por outro lado, para Gohn (2000) a forma com que os educadores do MST realizam ou procuram realizar esta conscientizao no deve ser vista como uma nica e exclusiva vertente ortodoxa das propostas educacionais. A autora relembra, ainda, que

    [...] nesta vertente, passa-se pela idia de sujeito histrico nico e uno a classe operria, o proletariado que, aps tornar-se consciente de seu papel e destino histrico, daria direo resistncia, politizando suas reivindicaes ancorado pelo partido e por seus intelectuais orgnicos. A denncia e a luta contra as estruturas dominantes so parte do processo de construo dessa conscincia, formada a partir da interao com os intelectuais orgnicos, os quais, com seus esforos, promoveriam a capacitao cientfica e tcnica do proletariado. Em tese, a conscientizao possibilitaria aos indiv-duos fazerem uma leitura do mundo, distinguir os interesses antagnicos, e desvelar as contradies sociais. No processo delineado, aparentemente o aprendizado resulta da absoro do aprendizado das informaes transmitidas pelos intelectuais. um processo que vem de fora dos sujeitos/alunos, pela assimilao das mensagens transmitidas. (GOHN, 2000, p. 127)

  • 352 HISTRIA, EDUCAO E CRISE AGRRIA NO BRASIL CONTEMPORNEO

    Seguindo neste percurso interpretativo, um olhar mais atento sobre as iniciativas educacionais e formativas desenvolvidas pelo MST junto aos trabalhadores rurais, pelo menos desde a segunda metade da dcada de 1990, reafirma as perspectivas de que os desafios vm sendo superados. Um bom exemplo o debate sobre o desenvol-vimento rural sustentvel, sobre a economia solidria, a atuao nos conselhos pbli-cos e a forma com que as questes polticas, ideolgicas e principistas so tratadas.

    No que se refere aos cursos de formao poltica do MST, Maria da Glria Gohn (2000, p. 128) faz questo de salientar que:

    [...] o movimento busca realizar a tarefa do desenvolvimento da conscincia dos alunos participantes, ou melhor, da formao de sujeitos polticos com uma determinada cultura poltica que contempla um olhar crtico sobre a realidade. Para tal utilizam-se mtodos que so uma combinao de anlises j realizadas por tericos famosos da esquerda no passado com mtodos e tcnicas que so muito semelhantes aos preconizados por Paulo Freire, a saber: 1. Parte-se da anlise de uma situao concreta codificada numa imagem (um fato da re-alidade do mundo rural congelada numa foto, num desenho, uma cena de vdeo etc.);2. Aps a projeo da imagem inicia-se o processo de distanciamento e decodifica-o da imagem. Busca-se o todo implcito naquela parte da realidade projetada na imagem, via a decomposio de seus elementos constituintes.

    Os projetos educacionais e de formao poltica do MST, desenvolvidos sistematicamente desde os primrdios da dcada de 1990, contriburam largamente para aprofundar a capacidade de compreenso da problemtica da terra e da excluso social em nosso pas, principalmente quando suas lideranas foram capazes de debater com os gigantes da agroindstria e dos representantes dos governos estaduais e federais a possibilidade de um projeto alternativo de desenvolvi-mento, como tambm revelaram fortes barreiras no que diz respeito incorporao, nas aes governamentais, de suas propostas de reforma agrria, que implicariam mudanas estruturais no modelo organizativo do Estado brasileiro.

    No desenvolvimento de sua trajetria, inegavelmente o MST conseguiu ampliar as relaes com outros setores da sociedade brasileira e promover uma articulao entre ensino e pesquisa, o processo de formao poltica e tcnica de suas lideranas e a educao bsica. Assim, nesse percurso as atitudes e as habilidades de pesquisa so pensadas como a investigao sobre uma determinada realidade social, um esforo para entender mais a fundo aquilo que um problema. Pesquisa tem a ver com a anlise da realidade, no algo que se aprende de um dia para o outro, um processo que precisa ser planejado, acompanhado, como todo processo educativo. (MORIGI, 2003, p. 65-66)

    Desta forma, e mesmo com toda sorte de dificuldades, no interior do MST a prtica da pesquisa projetada e articulada com o objetivo de articular a

  • 36EDUCAO, TERRA E LIBERDADE

    teoria com a prtica, respeitando-se as diferentes faixas etrias, as metodologias educacionais e as exigncias especficas de cada realidade em que se produz.

    Nesta difcil e problemtica caminhada,

    [...] o que repassado como informao/conhecimento usualmente no assimilado e tomado como verdade absoluta num primeiro momento porque h um distancia-mento entre a razo daqueles que recebem as informaes (os alunos) e a razo que transmite aquele conhecimento (o professor, apoio, mediador etc.). Ainda que a direo do processo tenha um s objetivo voltado para a organizao popular que visa um processo emancipatrio, o sentido e o significado do saber construdo transfigu-ra-se em uma meta: transformar o mundo pela tica dos interesses da classe que eles representam os excludos. Os professores/assessores do MST estabelecem relaes dialgicas com os alunos enquanto sujeitos e objetos da reflexo do trabalho, que todos eles defendem o pressuposto de que o movimento tem, em si mesmo, a capacidade de construir novos conhecimentos a partir da prxis cotidiana. Estes sujeitos reelaboram sua prtica e transformam-na em prxis pela mediao que estes assessores/apoios professores desenvolvem nos cursos de formao. (GOHN, 2000, p. 128-129)

    O MST vem-se constituindo como uma objetiva e singular expresso da luta do homem do campo para superar as desigualdades a que submetido. Nesse sentido, quando nos dispomos a observar a coeso manifesta pelos participantes do MST na luta pela aquisio legal da terra, entre outras coisas, percebemos que h uma identidade grupal coletiva constituda a partir da luta pela posse da terra que se sobrepe aos desejos individuais de cada sujeito associado a este movimento social. Quando buscamos reconstruir essas trajetrias de interveno educacional e poltica que se operam no interior do MST, cumpre-nos salientar que a formao de quadros no est sendo estimulada somente para a atuao em assentamentos, mas para a atuao em todas as instncias e necessidades do MST.

    Apesar de todas as dificuldades, registre, principalmente, que o desejo de possuir um lugar ser um dos referenciais de identificao e signo de esperana s geraes presentes e futuras durante o contnuo processo de luta, durante a for-mao de uma identidade coletiva que supere as diferenas histricas e culturais dos sujeitos. Entendemos que essa identidade grupal e a conscincia poltica so expressas nas representaes sociais e seus significados sobre a posse da terra, nos contedos presentes em cada uma das dimenses da conscincia poltica e nas experincias vividas por cada sujeito no decorrer de sua existncia. Uma existncia histrica, como muito bem lembrou e caracterizou Paulo Freire (2000, p. 60-61):

  • 372 HISTRIA, EDUCAO E CRISE AGRRIA NO BRASIL CONTEMPORNEO

    O movimento dos sem-terra, to tico e pedaggico quanto cheio de boniteza, no comeou agora, nem h dez ou quinze, ou vinte anos. Suas razes mais remotas se acham na rebeldia dos quilombos e, mais recentemente, na bravura de seus companheiros das Ligas Camponesas que h quarenta anos foram esmagados pelas mesmas foras retrgradas do imobilismo reacionrio, colonial e perverso.O importante, porm, reconhecer que os quilombos tanto quanto os camponeses das Ligas e os sem-terra de hoje todos em seu tempo, anteontem, ontem e agora sonharam e sonham o mesmo sonho, acreditaram e acreditam na imperiosa necessidade da luta na feitura da histria como faanha da liberdade. No fundo, jamais se entregariam falsidade ideolgica da frase: a realidade assim mesmo, no adianta lutar. Pelo con-trrio, apostaram na interveno no mundo para retific-lo e no apenas para mant-lo mais ou menos como est.Se os sem-terra tivessem acreditado na morte da histria, da utopia, do sonho; no desaparecimento das classes sociais, na ineficcia dos testemunhos de amor liberdade; se tivessem acreditado que a crtica ao fatalismo neoliberal a expresso de um neobobismo que nada constri; se tivessem acreditado na despolitizao da poltica, embutida nos discursos que falam de que o que vale hoje pouca conver-sa, menos poltica e s resultados, se, acreditando nos discursos oficiais, tivessem desistido das ocupaes e voltado no para suas casas, mas para a negao de si mesmos, mais uma vez a reforma agrria seria arquivada.

    Para muitos estudiosos da questo fundiria, como o caso, Alessandro Soares da Silva (2002) os movimentos sociais rurais remontam ao perodo do Brasil col-nia. Com efeito, os povos pr-colombianos, os negros escravizados, os imigrantes e os camponeses, todos lutaram pelo direito terra, pelo direito de permanecerem na terra em que vivem e na terra em que plantam. Cada grupo, incessantemente, empreendeu diferentes formas de luta para resistir dominao. Os que detinham o poder contrapuseram-se a essas tentativas e procuraram descaracterizar o proces-so de explorao a que submetiam esses grupos para que, desse modo, as lutas por eles empreendidas fossem vistas como ilegtimas (SILVA, 2002, p. 1).

    De fato, desde h muito tempo conflitos pela posse da terra vm ocorrendo em praticamente todos os estados e regies do pas. No existe um s estado brasilei-ro em que no haja ocorrido algum tipo de enfrentamento no campo. Este quadro tem transformado a questo dos trabalhadores rurais sem terra em um verdadeiro problema nacional e, nos ltimos anos, as lutas e ocupaes que estes trabalhado-res impulsionam se expandem e intensificam por todos os cantos do vasto territrio brasileiro. Isto faz com que o movimento que ocorre no Brasil seja diferente daqueles que se verificam em outros pases latino-americanos, onde as lutas camponesas, que apresentam uma dinmica crescente, so localizadas em determinadas regies. Para se ter uma idia, nas zonas agrcolas de um dos mais importantes estados da federao,

  • 38EDUCAO, TERRA E LIBERDADE

    no caso o Estado de So Paulo, existem fortes focos de tenso bastante semelhantes queles que ocorrem nas mais remotas regies amaznicas.

    A incessante multiplicao desses conflitos acabou convertendo o MST no principal, para no dizer o nico protagonista das lutas camponesas no Brasil atual. Estas lutas pela terra no tm sido nadas pacificas; muito pelo contrrio, foram centenas de mortos e feridos que os mais diferenciados enfrentamentos produziram apenas ao longo da dcada de 1990.

    Na memria de muitos ainda est presente o massacre de Eldorado dos Carajs, pequena cidade nos arredores de Belm, no Estado do Par, onde foram assassinados 19 trabalhadores rurais e pelo menos 51 foram gravemente feridos pelas balas disparadas pelos soldados da Policia Militar no dia 17 de abril de 1996. Poucos meses antes, pistoleiros pagos por fazendeiros e com apoio de integrantes da Policia Militar assassinaram 12 trabalhadores agrcolas e feriram outras 53 pessoas que lutavam pela terra na cidade de Corumbiara, no Estado de Rondnia. Isto apenas para mencionar alguns acontecimentos que tiveram ressonncia jornalstica nacional, e deixando de lado inmeros casos que cotidianamente se repetem nas mais variadas localidades do vasto territrio nacional. Guerra civil no campo. Governo reage e ameaa sem-terra. No governo Lula, violncia no campo aumenta e assusta. So algumas manchetes que de vez em quando se apresentam nas capas dos mais prestigiados jornais e revistas nacionais para mostrar a situao conflitante no campo.

    No campo oposto a este da violncia institucionalizada, procurando valorizar as formas diretas de participao poltica dos movimentos sociais e exercitando sua compreenso libertadora da educao, Paulo Freire proclama as potencialidades histricas dos sem-terra:

    A eles e elas, sem-terra, a seu inconformismo, sua determinao de ajudar a democratizao deste pas devemos mais do que s vezes podemos pensar. E que bom seria para a ampliao e a consolidao de nossa demo-cracia, sobretudo para sua autenticidade, se outras marchas se seguissem sua. A marcha dos desempregados, dos injustiados, dos que protestam con-tra a impunidade, dos que clamam contra a violncia, contra a mentira e o desrespeito coisa pblica. A marcha dos sem-teto, dos sem-escola, dos sem-hospital, dos renegados. A marcha esperanosa dos que sabem que mudar possvel. (FREIRE, 2000, p. 61)

    Na perspectiva sustentada por Paulo Freire existe um princpio de esperana que acompanha os protagonistas destes movimentos que trazem a possibilidade histrica de uma sociedade comprometida com a erradicao da misria e da injus-tia social. Esse um importante elemento ideolgico do pensamento reformista

  • 392 HISTRIA, EDUCAO E CRISE AGRRIA NO BRASIL CONTEMPORNEO

    em nosso pas. No caso da luta pela terra, substantivamente, quem vendo sendo o principal organizador do movimento social o MST, que constitui o movimento rural mais dinmico do Brasil contemporneo.

    Principalmente se levarmos em conta que:

    Um dos processos educativos fundamentais da participao dos sem-terra est em seu enraizamento numa coletividade em movimento, que embora seja sua prpria construo (os sem-terra so o MST), acaba se constituindo como uma referncia de sentido que est alm de cada sem-terra, ou mesmo alm do seu conjunto, e que passa a ter um peso formador, ao meu ver decisivo, no processo de educao dos sem-terra. a intencionalidade poltica e pedaggica do MST que garante o vnculo da luta imediata com o movimento a histria [sic]. A trajetria do MST foi sendo desenhada pelos desafios de cada momento histrico. medida que os sem-terra se enrazam na organizao coletiva que os produz como sujeitos, pas-sam a viver experincias de formao humana encarnadas nesta trajetria. Mes-mo que cada pessoa no tenha conscincia disso, toda vez que ela toma parte das aes do movimento, fazendo uma tarefa especfica, pequena ou grande, ela est ajudando a construir esta trajetria e a identidade sem-terra que lhe correspon-de; e est se transformando e reeducando como ser humano. Tornar consciente e reflexivo este processo um dos grandes desafios pedaggicos do MST, e uma das razes de valorizar cada vez mais as atividades especificas de educao. Sem isto, os novos sujeitos sociais no conseguiro tornar-se sujeitos polticos, capazes de efetivamente fazer diferena no desenrolar da luta de classes e na reconstruo de nosso projeto de humanidade. No h como ser sujeito poltico sem saber-se um sujeito social, e no h como saber-se um sujeito social, coletivo, sem compreender-se no processo histrico da luta e da formao de seus sujeitos. (CALDART, 1999, p. 12)

    Hoje, no Brasil, o MST a mais significativa forma de organizao social em luta pela terra e pela reforma agrria, inclusive, pela abrangncia territorial que alcanou e mecanismos polticos orientadores de sua atuao, o mesmo no tem precedentes histricos. Esse movimento nasceu em princpios da dcada de 1980, porm adquiriu pleno carter nacional uma dcada depois, realizando ocupaes de terras na quase totalidade dos estados brasileiros. Trata-se de um movimento fortemente vinculado Igreja Catlica desde sua origem. Um movimento que nasceu quase paralelamente ao chamado sindicalismo classista, e mesmo ao novo sindicalismo do ABC paulista1. Enquanto este alcanou ressonncia e respeito nacional pela intensidade de suas lutas, os trabalhadores rurais sempre estigmatizados como violentos e sem lei estiveram confinados, marginaliza-dos, inclusive pelas organizaes de esquerda.

    1 A origem da terminologia utilizada para designar a regio est associada a um conjunto de cidades localizadas na chamada Grande So Paulo, ou, mais precisamente: Santo Andr, So Bernardo e So Caetano.

  • 40EDUCAO, TERRA E LIBERDADE

    Este espao de atuao poltica e social, anteriormente ocupado pelo Partido Co-munista Brasileiro (PCB) e outras organizaes populistas e logo abandonado, foi ocupado rapidamente pela Igreja Catlica, que vinha de apoiar o golpe militar de 1964, mas que a partir de 1973 teve um importante setor de seu interior operando um giro poltico esquerda, resolutamente, somando-se na defesa e no restabelecimento dos direitos democrticos e sociais, usurpados pelo regime de exceo ento vigente.

    O crescimento do movimento agrrio no Brasil mostra-se no apenas pelo seu alcance nacional, mas tambm pelos nmeros que mobiliza. Esto sob influncia direta do MST mais de 1 milho de trabalhadores rurais; destes, o movimento conseguiu assentar centenas de famlias em dezenas de assentamentos que abarcam uma rea de alguns milhes de hectares em diversas partes do territrio nacional; existem ainda milhares de famlias acampadas em centenas de acampamentos, aguardando e lutando pelo atendimento de suas reivindicaes.

    Todavia, importante dizer que, no Brasil existem quase 17 milhes de trabalhadores rurais (ou aproximadamente 4,8 milhes de famlias), sem contar os milhes que tm sido expulsos do campo, impedidos de produzir e que se aglomeram nas periferias das grandes cidades.

    De acordo com enfticos apontamentos apresentados por Roseli Salete Caldart em seminrio organizado pelo Conselho Latino-Americano de Cincias Sociais (Clacso) em dezembro de 1999, o MST contabiliza os seguintes nmeros:

    Nos 16 anos que completa na entrada dos anos 2000, o MST contabiliza um nmero de aproximadamente 250 mil famlias assentadas e de 70 mil famlias acampadas em todo o Brasil. Quantidades pequenas diante da realidade das mais de 4,5 milhes de famlias sem-terra existentes no pas, mas significativas, dado o formato histrico da questo agrria entre ns, e a dignidade humana construda atravs destes nmeros. O MST j registra em sua histria reas conquistadas do latifndio que se tornaram lugares de vida e de trabalho para muitas famlias, e de produo de alimentos para mais outras tantas; hoje so 81 cooperativas de trabalhadores e trabalhadoras sem terra, 45 unidades agroindustriais e, o principal, a eliminao da fome e a reduo dos ndices de mortalidade infantil nos assentamentos espalhados pelo Brasil inteiro. (CALDART, 1999, p. 3)

    Em funo de uma preocupante permanncia histrica, importan-te lembrar que o aproveitamento da terra agricultvel no Brasil diminuto. Segundo dados apresentados por James Petras e Henry Weltmeyer (2001), na obra Brasil de Cardoso: a desapropriao do pas, calcula-se que menos de 20% da terra cultivvel plantada, deixando 80% para funes no-produtivas. Esses autores observam que os motivos que levam ao uso anti-social da terra no Brasil esto

  • 412 HISTRIA, EDUCAO E CRISE AGRRIA NO BRASIL CONTEMPORNEO

    centrados principalmente no padro de posse da terra; isto pode ser comprovado por nmeros como estes: 9% dos proprietrios de terra possuem cerca de 78% da terra enquanto, no outro extremo, 53% da populao rural tem pouca ou nenhuma terra (menos de 3%) (PETRAS; WELTMEYER, 2001, p. 124).

    A perspectiva meramente agroexportadora implantada sucessivamente pelos governos militares e civis a principal responsvel pelo inexorvel empobreci-mento dos homens do campo e do substantivo nmero de trabalhadores rurais e pequenos agricultores vivendo nas periferias das grandes e mdias cidades brasileiras. Sobre isto, tambm James Petras e Henry Weltmeyer (2001, p. 126) observam que esta poltica empresarial, na prtica, produz enclaves de crescimento dinmico de exportaes e um mar de pequenos e mdios fazendeiros decadentes e trabalhadores rurais sem terra desenraizados num mercado externo estagnado.

    Mais recentemente, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, verificou-se um cenrio de empobrecimento da zona rural, alm do que sua poltica econmica descapitalizou a economia agrcola, particularmente o setor ligado aos pequenos produtores que produziam para o mercado local (PETRAS; WELTMEYER, 2001, p. 122). No desenvolvimento de nossas anlises, fundamental recuperar e destacar o que dizem estes autores:

    Nos primeiros dois anos do governo de Fernando Henrique, entre 1995 e 1997, a populao economicamente ativa do setor agrcola diminuiu em 500.000 propriet-rios rurais e trabalhadores agrcolas, alm dos 1,1 milho de trabalhadores rurais que fugiram do campo entre 1990 e 1994. Estimativas recentes afirmam que entre os pequenos agricultores, 400.000 famlias foram obrigadas a abandonar a zona rural durante os primeiros cinco anos do governo Cardoso. (PETRAS; WELTMEYER, 2001, p. 122-123)

    Para ns, entre outras coisas, trata-se de buscar compreender, numa perspectiva

    histrica, o que est ocorrendo no campo, qual a dinmica de luta, qual o car-ter das organizaes que falam em nome dos trabalhadores rurais sem-terra, seus mtodos e sua poltica. Oficialmente, no temos no Brasil uma guerra civil aberta no campo, porm nos contnuos enfrentamentos ela se manifesta de forma embrio-nria ou velada; se no se torna aberta no pela pouca disposio dos trabalha-dores rurais, mas pelo frreo controle que exercem suas direes, que buscam uma reforma agrria nos marcos da legalidade produzida pela sociedade capitalista.

    Apesar disto tudo poderamos dizer, citando Bernardo Manano Fernandes (1996) quando analisou o desenvolvimento do capitalismo na agricultura do inicio da dcada de 1960 at os primeiros instantes da dcada de 1990 (resguardando as diferenas histricas de cada perodo), que o desenvolvimento do capitalismo desigual e contraditrio e que sua essncia est na reproduo ampliada do capital. proporo que acontece o desenvolvimento do capitalismo no campo, este tende

  • 42EDUCAO, TERRA E LIBERDADE

    a se apropriar de todos os setores de produo, expropriando os trabalhadores de seus instrumentos e recursos. (FERNANDES, 1996, p. 29-30) Do ponto de vista econmico e social, trata-se de uma discusso extremamente pertinente, e este processo de desenvolvimento desigual e contraditrio apresentado e elucidado por Fernandes com a seguinte argumentao:

    O capital apropria-se do trabalho livre para a sua reproduo. Desenvolve-se uma relao social em que, de um lado, o capitalista compra a fora de trabalho, pois esta fundamental para a reproduo ampliada do capital, e, do outro lado, o trabalhador vende a fora de trabalho, pois isto fundamental para a sua sobrevivncia. Cria-se assim a propriedade capitalista e o trabalho assalariado. Contudo, a reproduo ampliada do capital no acontece somente dessa forma, ou seja, por ser desigual e contraditrio [...]. Isso significa que o capitalismo no se desenvolve e se expande de forma linear. No seu desenvolvimento e expanso, o capitalismo instala relaes de trabalho assalariado e/ou instaura e subordina de modo formal outras relaes, como por exemplo as relaes de trabalho e de produo no-capitalistas: o trabalho familiar, a parceria, etc. (FERNANDES, 1996, p. 30)

    O presente trabalho tem, entre seus objetivos, analisar a situao dos trabalhadores rurais sem-terra e o problema agrrio brasileiro desde a tica acima explicitada, num momento histrico em que existe uma dinmica de ressurgi-mento das lutas camponesas com a expectativa de que elas possam colocar-se em sintonia com um provvel revigoramento das lutas operrias, tal qual tem ocorrido em pases como a Bolvia e, em menor escala, Colmbia e Paraguai. No Brasil, observa-mos um crescimento das lutas dos trabalhadores rurais sem-terra; so mobilizaes cada vez mais intensas e constantes, num momento em que existe uma profunda paralisia das lutas produzidas pelos movimentos operrios, populares e estudantis.

    Uma explicao marxista ao problema da terra no Brasil e na Amrica Latina

    A renda da terra a categoria que explica a explorao do valor econmico da terra sob o regime de produo capitalista, isto alm da forma que adquiriu a propriedade da terra. Partindo dos postulados marxistas, podemos dizer que o monoplio da propriedade territorial constitui uma premissa histrica e se ma tm como base constante do regime de produo capitalista e de todos os sistemas de produo anteriores baseados numa outra forma de explorao das camadas empo-brecidas dos trabalhadores. Estes, na medida em que avanam em sua luta e capa-cidade de organizao social, acabam construindo espaos de socializao poltica.

  • 432 HISTRIA, EDUCAO E CRISE AGRRIA NO BRASIL CONTEMPORNEO

    Um movimento socioterritorial como o MST tem como um de seus principais objetivos a conquista da terra de trabalho. E os realiza por meio de uma ao denominada ocupao da terra. A ocupao um processo socioespacial e poltico complexo que precisa ser entendido como forma de luta popular de resistncia do campesinato, para sua recriao e criao. A ocupao desenvolve-se nos processos de espacializao e territorializao, quando criadas e recriadas as experincias de resistncia dos sem-terra. [...] preciso dizer que a ocupao uma ao decorrente de necessidades e expectativas, que inaugura questes, cria fatos e descortina situaes. Evidente que esse conjunto de elementos modifica a realidade, aumentando o fluxo das relaes sociais. So os trabalhadores desafiando o Estado, que sempre representou os interesses da burguesia agrria e dos capitalistas em geral. Por essa razo, o Estado s apresenta polticas para atenuar os processos de expropriao e explorao, sob intensa presso dos trabalhadores. (FERNANDES, 2000b, p. 61-62)

    No nenhum exagero d