litigar de salto alto

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O agregador da advocacia 28 Junho de 2011 www.advocatus.pt Litigar de salto alto Ele tem que estar livre das vicissitudes domésticas para poder enfrentar as vicissitudes profissionais. Ela enfrenta as vicissitudes profissionais em simultâneo com visitas ao pediatra, guerras do condomínio e a gestão de afectos! Compreende-se a posição dominante! Ela é de dar medo! pode rarear ou abundar, surgir por surtos ou regularmente q.b., inde- pendentemente do sexo do sujeito. Focando-nos nas diferenças entre a liderança feminina e masculina na advocacia, ressalta nos nossos dias que elas existem de forma exube- rante. Basta pensar que muito maior é o campo de observação pois, se em 1990 a proporção era de uma advogada para quatro advogados, actualmente elas estão em maioria. Igualdade São 51 por cento de “elas”, segun- do dados do Ministério da Justiça. Foi muito rápido o percurso das mulheres, num país que consagrou constitucionalmente a igualdade de géneros apenas há 37 anos e onde persistem muito boas razões para se afirmar que tal igualdade não encon- tra a devida correspondência na le- galidade e, muito menos, na prática social. Por exemplo, as advogadas grávidas A liderança feminina na advocacia pode ser definida como aquela que é praticada em saltos altos, mas não só! Para além desta característica existem muitas outras particularida- des que, genericamente, a distin- guem. Antes de mais, para prevenir quais- quer dúvidas, esclareça-se que não é a qualidade que torna única a ad- vocacia praticada em saltos altos. Aliás, a qualidade é requisito que Da esquerda para a direita, Manuela Neves (autora do artigo), Anabela Oliveira e Teresa Boino, da BPO Advogados, com agradecimento ao Tróia Design Hotel pelo apoio na produção fotográfica

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Litigar de salto alto

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O agregador da advocacia28 Junho de 2011

www.advocatus.pt

Litigar de salto altoEle tem que estar livre das vicissitudes domésticas para poder enfrentar as vicissitudes profissionais. Ela enfrenta as vicissitudes profissionais em simultâneo com visitas ao pediatra, guerras do condomínio e a gestão de afectos! Compreende-se a posição dominante! Ela é de dar medo!

pode rarear ou abundar, surgir por surtos ou regularmente q.b., inde-pendentemente do sexo do sujeito.Focando-nos nas diferenças entre a liderança feminina e masculina na advocacia, ressalta nos nossos dias que elas existem de forma exube-rante. Basta pensar que muito maior é o campo de observação pois, se em 1990 a proporção era de uma advogada para quatro advogados, actualmente elas estão em maioria.

Igualdade

São 51 por cento de “elas”, segun-do dados do Ministério da Justiça. Foi muito rápido o percurso das mulheres, num país que consagrou constitucionalmente a igualdade de géneros apenas há 37 anos e onde persistem muito boas razões para se afirmar que tal igualdade não encon-tra a devida correspondência na le-galidade e, muito menos, na prática social. Por exemplo, as advogadas grávidas

A liderança feminina na advocacia pode ser definida como aquela que é praticada em saltos altos, mas não só! Para além desta característica existem muitas outras particularida-des que, genericamente, a distin-guem.Antes de mais, para prevenir quais-quer dúvidas, esclareça-se que não é a qualidade que torna única a ad-vocacia praticada em saltos altos. Aliás, a qualidade é requisito que

Da esquerda para a direita, Manuela Neves (autora do artigo), Anabela Oliveira e Teresa Boino, da BPO Advogados, com agradecimento ao Tróia Design Hotel pelo apoio na produção fotográfica

Junho de 2011 29O agregador da advocacia

www.advocatus.pt

“não é a qualidade que torna única a advocacia

praticada em saltos altos. Aliás, a qualidade é requisito que pode rarear

ou abundar, surgir por surtos ou regularmente

q.b., independentemente do sexo do sujeito”

Porque é que, na razão inversa do número de

advogadas, são eles que lideram? Mesmo sem

fontes oficiais, estima-se que a liderança feminina

nas sociedades de advogados é de menos

de 10 por cento

não podem ter baixa, à semelhança do que acontece com a generalida-de das trabalhadoras, e quando não podem trabalhar, arcam sozinhas o ónus da falta de produtividade. Isto acontece mesmo no âmbito do re-gime de segurança social, que as obriga a pagar mensalmente sobre um limite mínimo de dois salários mínimos nacionais. Numa palavra, a obrigação sem o correspondente direito. E quando nasce o bebé, a lei atribui, generosamente, um sub-sídio de maternidade de três a seis retribuições, equivalentes ao que se desconta para a Caixa de Previdên-cia dos Advogados e Solicitadores. Resultado: as mães advogadas re-começam a trabalhar mais cedo que a generalidade das outras profissio-nais. É que as despesas do escritó-rio, as solicitações dos clientes e os prazos processuais não se compa-decem com puerpérios razoáveis. Quanto aos prazos, a lei consagra a possibilidade de adiamento, por dois meses, de certos actos processuais, por referência ao parto. E estamos conversados em matéria de direitos das advogadas: “o tal” subsídio de maternidade e o adiamento de actos processuais!No mais, coexistem para elas como para eles toda a sorte de agruras das práticas jurídica e forense: os aperta-dos prazos legais e os judiciais (que são como calha); as constantes alte-rações da lei; a diversidade de juris-prudência; a deslealdade dos adver-sários; a competição dos pares … E, por aí adiante!Só que, para eles, as dificuldades da jornada ficam-se por aí e, para elas, ao fim do dia, recomeça um novo turno. Ir buscar as crianças à escola e ouvir atentamente o re-cado da professora; passar pelo supermercado; dar banhos; fazer o jantar; prestar a atenção possível aos filhos antes da hora de deitar; consultar na internet a conta ban-cária; planear o dia seguinte... Todo um conjunto de tarefas essenciais, antes do merecido repouso que vai ser interrompido por um pesadelo ou uma fralda para mudar.E isto bastaria para explicar por que é que, na razão inversa do número de advogadas, são eles que lideram. Mesmo sem fontes oficiais, estima-

-se que a liderança feminina nas so-ciedades de advogados é de menos de 10 por cento.Mas existem outras causas, mais ar-reigadas e, eventualmente, mais di-fíceis de combater. São as culturais, que ao longo do tempo remeteram as mulheres para certas funções, li-gadas à casa e à educação dos fi-lhos, e que fazem desconfiar sobre a sua competência..Passaram quase cem anos desde que Regina Quintanilha ousou lutar e vencer num mundo de domínio masculino. Em 1913 ela era a única e hoje são cerca de 14 mil advogadas. Noutras paragens, como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, dá-se um empurrão à causa feminina com a proliferação de escritórios female friendly, com trabalho ajustado e fle-xibilização de horários.Por cá, a liderança feminina exige superpoderes, mesmo contando com um sólido suporte familiar. Neste ponto, e por uma questão de justiça, não podem deixar de ser referidos os avós – essa gran-de instituição – e os raros com-panheiros que, efectivamente, partilham tarefas – e não apenas ajudam - como potenciadores das super-líderes. E já me esquecia, tudo em saltos altos!Para uma pincelada de real, num cenário imaginado cujos persona-gens não são pura ficção, poderia acontecer assim:- Quando se encontram de manhã à porta da sala de audiências, adver-sários numa intrincada causa, ela advogada e ele advogado, carregam a sua história.O próximo passado dele: noite tran-quila com a ajuda de uma pastilha; acordar duas horas e quarenta e cinco minutos antes da audiência, para rever alguns pontos do proces-so; proceder à higiene matinal com especial enfoque no escanhoar da barba; dar um nó perfeito à gravata escolhida de véspera e rematar os preparativos com uma taça de ce-reais integrais e uma bebida tonifi-cante.O próximo passado dela: despertar as mesmas duas horas e quarenta e cinco minutos antes da audiência e levantar com um atraso de meia

hora porque o sono foi irresistível; tirar uma criança da cama e vestir--lhe uma camisola quente; lutar com a tampa de um iogurte e o fecho de uma mochila; escrever um recado à empregada. De caminho, a toilette, que não descurou pulseira nem brin-co a condizer com o relógio. Tam-bém fond de teint e écharpe voile, porque há “francesices” fundamen-tais para o sucesso de uma mulher. Retoque de batom e blush no sinal vermelho.Voltando à porta da sala de audiên-cias: olhos nos olhos, cumprimen-tam-se com elegância e medem-se. “O emproado”, pensa ela! “A fútil, a tilintar pulseiras”, pensa ele!Na audiência extremam-se as posi-ções, como convém. Ele dita para a acta protestos plenos de latinismos e brocardos da mesma fonte. Ela não se fica e cita, rigorosa, o nome do instituto que julgou conveniente à situação, emprega sete vezes a palavra “justiça” e fala na primeira pessoa. O meritíssimo, já se vê, en-tediado com o dèjá vu!Já no escritório ele, fanfarrão, van-gloria-se aos colegas por antecipa-ção de uma vitória de que duvidava seriamente. Ela verbaliza, com ver-náculo, que aquele homem a irritava profundamente! Enfim, são dois estilos a que se atri-buem qualificações…! Assim: Ela confessa-se nervosa e é incapaz! Ele transpira, repete meneios de pesco-ço e é empenhado! Ela comove-se e é fraca! Ele ignora a maior desgraça e é competente!Ela eleva o tom de voz e é regateira! Ele brama e faz-se ouvir!Ela chega sempre atrasada para ir buscar os filhos à escola e não é uma mãe competente! Ele vai à es-cola um dia por semana e é bom pai!Enfim, muitos mais exemplos se seguiriam! O que aqui importa é o modo como é permitido a cada um encarar cada desafio.Ele tem que estar livre das vicissitu-des domésticas para poder enfren-tar as vicissitudes profissionais. Ela enfrenta as vicissitudes profissionais em simultâneo com visitas ao pedia-tra, guerras do condomínio e a ges-tão de afectos!Compreende-se a posição dominan-te! Ela é de dar medo!