lispector, clarice - a criada

Upload: claricelis

Post on 31-May-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/14/2019 Lispector, Clarice - A criada

    1/2

    Clarice Lispector(Ucrnia, 1925 - Brasil, 1977)

    A criada

    Seu nome era Eremita. Tinha dezenove anos. Rosto confiante, algumasespinhas. Onde estava a sua beleza? Havia beleza nesse corpo que no era feionem bonito, nesse rosto onde um doura ansiosa de douras maiores era o sinalda vida.

    Beleza, no sei. Possivelmente no havia, se bem que os traos indecisosatrassem como gua atrai. Havia, sim, substncia viva, unhas, carnes, dentes,mistura de resistncias e fraquezas, constituindo vaga presena que seconcretizava porm imediatamente numa cabea interrogativa e j prestimosa,mal se pronunciava um nome: Eremita. Os olhos castanhos eram intraduzveis,

    sem correspondncia com o conjunto do rosto. To independentes como sefossem plantados na carne de um brao, e de l nos olhassem - abertos, midos.Ela toda era de uma doura prxima a lgrimas.

    s vezes respondia com m-criao de criada mesmo. Desde pequena foraassim, explicou. Sem que isso viesse de seu carter. Pois no havia no seuesprito nenhum endurecimento, nenhuma lei perceptvel. Eu tive medo,dizia com naturalidade. Me deu uma fome, dizia, e era sempre incontestvelo que dizia, no se sabe por qu. Ele me respeita muito, dizia do noivo e,apesar da expresso emprestada e convencional, a pessoa que ouvia entravanum mundo delicado de bichos e aves, onde todos se respeitam. Eu tenho

    vergonha, dizia, e sorria enredada nas prprias sombras. Se a fome era de po- que ela comia depressa como se pudessem tir-lo - o medo era de trovoadas, avergonha era de falar. Ela era gentil, honesta. Deus me livre, no ?, diziaausente.

    Porque tinha suas ausncias. O rosto se perdia numa tristeza impessoal esem rugas. Um tristeza mais antiga que o seu esprito. Os olhos paravam vazios;diria mesmo um pouco speros. A pessoa que estivesse a seu lado sofria e nadapodia fazer. S esperar.

    Pois ela estava entregue a alguma coisa, a misteriosa infante. Ningumousaria toc-la nesse momento. Esperava-se um pouco grave, de corao

    apertado, velando-a. Nada se podia fazer por ela seno desejar que o perigopassasse. At que num movimento sem pressa, quase um suspiro, ela acordavacomo um cabrito recm-nascido se ergue sobre as pernas. Voltara de seurepouso na tristeza.

    Voltava, no se pode dizer mais rica, porm mais garantida depois de terbebido em no se sabe que fonte. O que se sabe que a fonte devia ser muitoantiga e pura. Sim, havia profundeza nela. Mas ningum encontraria nada sedescesse nas suas profundezas - seno a prpria profundeza, como naescurido se acha a escurido. possvel que, se algum prosseguisse mais,encontrasse, depois de andar lguas nas trevas, um indcio de caminho, guiado

    talvez por um bater de asas, por algum rastro de bicho. E - de repente - afloresta.

  • 8/14/2019 Lispector, Clarice - A criada

    2/2

    Ah, ento devia ser esse o seu mistrio: ela descobrira um atalho para afloresta. Decerto nas suas ausncias era para l que ia. Regressando com osolhos cheios de brandura e ignorncia, olhos completos. Ignorncia to vastaque nela caberia e se perderia toda a sabedoria do mundo.

    Assim era Eremita. Que se subisse tona com tudo o que encontrara nafloresta seria queimada em fogueira. Mas o que vira - em que razes mordera,com que espinhos sangrara, em que guas banhara os ps, que escurido deouro fora a luz que a envolvera - tudo isso ela no contava porque ignorava:fora percebido num s olhar, rpido demais para no ser seno um mistrio.

    Assim, quando emergia, era uma criada. A quem chamavamconstantemente da escurido de seu atalho para funes menores, para lavarroupa, enxugar o cho, servir a uns e outros.

    Mas serviria mesmo? Pois se algum prestasse ateno veria que elalavava roupa - ao sol; que enxugava o cho - molhado pela chuva; que estendialenis - ao vento. Ela se arranjava para servir muito mais remotamente, e aoutros deuses. Sempre com a inteireza de esprito que trouxera da floresta. Semum pensamento: apenas corpo se movimentando calmo, rosto pleno de umasuave esperana que ningum d e ningum tira.

    A nica marca do perigo por que passara era o seu modo fugitivo decomer po. No resto era serena. Mesmo quando tirava o dinheiro que a patroaesquecera sobre a mesa, mesmo quando levava para o noivo em embrulhodiscreto alguns gneros da despensa. A roubar de leve ela tambm aprenderaem suas florestas.

    in Felicidade Clandestina

    Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998