lisboa ou o belarmino fragoso: espaço político em belarmino

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Lisboa ou o Belarmino Fragoso - Espaço Político em Belarmino 1 Pedro F. Neto Belarmino, média-metragem realizada por Fernando Lopes em 1964, é o registo biográfico de Belarmino Fragoso, conhecido pugilista, mas também engraxador, colorista de fotografias, homem de biscates, homem da vida. Debruçando-se sobre as vicissitudes do pugilista, Fernando Lopes desmonta a dura realidade do personagem e país: humilde, marginal, decadente, analfabeto, amordaçado, explorado e de estômago vazio. Aquando do lançamento de Belarmino vivia-se em Portugal uma época de forte contestação política – a candidatura de Humberto Delgado em 1958, o estalar da Guerra colonial e o sequestro do navio Santa Maria em 1961, a crise académica de 1962, entre outros momentos menos iconográficos e que davam conta da inevitável transição que tardaria mais uma década a chegar. O cinema não ficou alheio a tais prenúncios e vontade de mudança: Belarmino, a par d’Os Verdes Anos (Paulo Rocha, 1963), instalaram a ruptura no panorama cinematográfico português, distanciando-se assim dos cânones propagandísticos que o regime de índole fascista oferecia a uma população autoritariamente iletrada. Assiste-se ao nascimento do Cinema Novo, cunho bem distante do então contestado Estado. De um cinema do Regime - de narrativas menores, de bairro, de solidariedades e controlo mecânicos, salta-se para uma abordagem urbana - de indivíduos numa sociedade orgânica. O cinema português sai para a rua, “ocupa” a cidade e assume uma 1 O presente artigo é uma adaptação de duas comunicações realizadas: I Encontro do AIM - Universidade do Algarve, Maio 2011; Ciclo de Conferências Revoluções – Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, Julho 2011.

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Belarmino (Fernando Lopes, 1964), filme retrato de Portugal na década de 60, apoia-se na representação espacial enquanto metáfora dessa realidade.

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Lisboa ou o Belarmino Fragoso

- Espaço Político em Belarmino1

Pedro F. Neto

Belarmino, média-metragem realizada por Fernando Lopes em 1964, é o registo biográfico de Belarmino

Fragoso, conhecido pugilista, mas também engraxador, colorista de fotografias, homem de biscates,

homem da vida. Debruçando-se sobre as vicissitudes do pugilista, Fernando Lopes desmonta a dura

realidade do personagem e país: humilde, marginal, decadente, analfabeto, amordaçado, explorado e de

estômago vazio.

Aquando do lançamento de Belarmino vivia-se em Portugal uma época de forte contestação política – a

candidatura de Humberto Delgado em 1958, o estalar da Guerra colonial e o sequestro do navio Santa

Maria em 1961, a crise académica de 1962, entre outros momentos menos iconográficos e que davam

conta da inevitável transição que tardaria mais uma década a chegar. O cinema não ficou alheio a tais

prenúncios e vontade de mudança: Belarmino, a par d’Os Verdes Anos (Paulo Rocha, 1963), instalaram a

ruptura no panorama cinematográfico português, distanciando-se assim dos cânones propagandísticos que

o regime de índole fascista oferecia a uma população autoritariamente iletrada. Assiste-se ao nascimento do

Cinema Novo, cunho bem distante do então contestado Estado. De um cinema do Regime - de narrativas

menores, de bairro, de solidariedades e controlo mecânicos, salta-se para uma abordagem urbana - de

indivíduos numa sociedade orgânica. O cinema português sai para a rua, “ocupa” a cidade e assume uma

                                                                                                               1 O presente artigo é uma adaptação de duas comunicações realizadas: I Encontro do AIM - Universidade do Algarve, Maio 2011;

Ciclo de Conferências Revoluções – Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, Julho 2011.

posição.

Na falta de escolas próprias em Portugal, Londres e Paris eram destinos frequentes, e dessa forma, o

contacto com correntes e filmes em Portugal censurados, com outros inquietos cineastas, com sistemas

democráticos e livres, repercutiram-se na formação das personalidades da sétima arte mais periférica da

Europa Ocidental. A “Revolução” – em termos culturais, políticos e sociais – tanto quanto o na altura

vigente e autoritário controlo, passaram inevitavelmente pelo uso da imagem em movimento.

*

Belarmino apresenta-se como um filme denso, de simultâneas leituras, construídas com hábil recurso à

montage, concretizando-se pela proximidade que estabelece com o seu meio e com quem o observa. A

intemporalidade e pertinência de Berlarmino apoiam-se nas leituras subliminares de cada momento - os

fragmentos de entrevista, de vida quotidiana e de flânerie; e em quatro pilares fundamentais - identificação

do espectador com Belarmino Fragoso; a personificação de Belarmino Fragoso na cidade de Lisboa e esta

enquanto seu espaço existencial; Lisboa e Belarmino enquanto metáfora do contexto sociopolítico e

cultural da época; e, por último, como uma síntese, a Lisboa capital, a cidade enquanto polis, a cidade

enquanto representativa do espaço político por excelência.

Identificação espectador - Belarmino Fragoso

Belarmino cativa e leva o espectador à identificação, a qual sucede sob perspectivas e contextos temporais

diversos. “-O Belarmino somos todos nós!”2 exclamou Baptista-Bastos, aquele que é no filme o cruel

entrevistador fora de campo. Uma identificação que Bastos estabelece com Fragoso, e que segundo o

próprio foi (é) transversal a toda uma geração. Uma identificação política, cultural, social, entre indivíduos

que partilhavam amplamente os espaços da “má vida”. Fragoso, ícone mediático, era o reflexo humano

daqueles do seu tempo: as difíceis circunstâncias económicas que defrontava no seu quotidiano, a iliteracia,

a fome - ou como preferiu “um estado de fraqueza razoável,” a exploração por outros perpetrada, são

elementos que documentam o miserável Portugal dos anos 60. Apesar da adversidade sofrida, da precária

condição, Belarmino manteve a sua qualidade humana.

“Contemplar as qualidades de Belarmino Fragoso numa pessoa que, como ele, sofreu o impacto de

numerosas agressões (da hereditariedade ao analfabetismo) é defrontar o insondável da dignidade

humana.”3 Esta dimensão humana, bem patente na personalidade do personagem, revela-se extremamente

importante pois estabelece com o espectador um profundo laço emocional.

Durante o filme, Fragoso ora é inquisitoriamente entrevistado, ora é retratado no seu quotidiano. Ora

profere inocentes mentiras e reconstrói o seu discurso em cada pergunta, ora percorre o espaço urbano. O

dia-a-dia entre a deambulação e a “vadiagem,” é constante na vida do personagem. E é o jogo entre o

movimento dado pelo flâneur, a emoção do seu carácter humano, e a inter-relação entre ambos, um aspecto

que se revela ponto de intersecção entre Belarmino e o público. Os percursos por si traçados permitem

experienciar os ritmos distintos do seu quotidiano, e assim, o público é convidado a participar numa

                                                                                                               2 Entrevista com Baptista-Bastos, extras do dvd Belarmino (Fernando Lopes, 1964) 3 Nuno Bragança, “Acerca de Belarmino”, Vértice, Vol.25, 1965, p.51

espécie de viagem. “O espectador [sente-se] um passageiro que atravessa um terreno emotivo, háptico4 (...)

O espectador imagina-se a residir num lugar, num lugar que pertence a outro, e coloca-se tangivelmente

dentro dele.”5 Em Belarmino, o espectador acompanha o personagem através dos espaços da cidade, dos

seus espaços, e nesse processo partilha a sua solidão, a sua alienação. O espaço urbano é revelado através

de colagens espaciais sobrepostas, por vezes disjuntas, e é na deriva que esse ambiente é apreendido.

O recurso ao som concretiza esta imersão - a interiorização do personagem e da cidade. Os diferentes sons

da cidade contribuem para a sensação de flânerie, os sentidos são despertados – observa-se Lisboa e pode-se

escutá-la em redor, sente-se a cidade de forma háptica, reagindo emocionalmente às imagens metafóricas

que chegam da tela. E como Pallasmaa - teórico da arquitectura e da imagem em movimento, reflectiu: “[a]

visão isola, enquanto o som incorpora, a visão é direcional, enquanto o som é omnidireccional. A visão

implica exterioridade, já o som cria uma experiência de interioridade.”6 O desvendar de um íntimo alheio

que move o público em direcção a uma notória partilha emocional7 – a identificação. Porém, não é só o

espectador que se sente com Belarmino, a cidade de Lisboa que surge à sua volta é o seu alter-ego.

Lisboa como espaço existencial

Após a breve introdução do boxeur – entre o treino e a entrevista; surge o homem. A sequência inicial

parte com o treino colectivo intercalado com a entrevista, depois surge o balneário, a localização na cidade,

em casa com a mulher, e então Belarmino na cidade. Uma ordem de imagens que remetem inevitavelmente

o espectador para uma progressiva interioridade. Uma ideia que sai reforçada quando se observa a

                                                                                                               4 Giuliana Bruno, Atlas of Emotion: Journeys in Art, Architecture, and Film; London: Verso, 2000, p.6 5 Bruno, Atlas of Emotion, 2000, p.36

6 Juhani Pallasmaa, The Eyes of the Skin. Architecture and the Senses. Chichester (UK): John Wiley, 2005, p.49 7 cf. Paul Melo e Castro “Circling the city in Fernando Lopes’ Belarmino (1964)” in Studies in European Cinema, Vol. 6, Number 2&3,

Intellect 2009, pp.179-189

incorporação da cidade, a qual é entendida objectivamente pela metamorfose do personagem com o

ambiente urbano. Fernando Lopes não procura dissimular tal facto, aliás, sugere-o de forma bastante clara

ao sobrepor imagens de Lisboa e do personagem, vincando a ideia do homem e da cidade em identidade

complementar. Habitat e habitante coexistem em influência recíproca.8

Acerca de como as qualidades fílmicas da cidade permitem construir os seus personagens, e a propósito de

Belarmino biografado, Nuno Bragança reforçou que “(...) o essencial está em captar a totalidade existencial

relativa a um ou vários seres humanos. Pelo que uma rua ou um café podem ter importância equivalente à

de uma cicatriz colhida num plano de pormenor.”9 Se frequentemente Belarmino é apresentado a emitir

opiniões, a discutir factos, parece que é no acto voyuer de observar o seu banal quotidiano que se acede ao

foro íntimo. Os seus percursos traçam à vez os desejos e os conflitos interiores. Os “territórios

belarminianos” transmitem as suas emoções, os seus devaneios, e tudo aquilo que não é dizível. Não se vê

Belarmino à deriva em Lisboa, pelas ruas, praças, restaurantes ou cafés, está-se “dentro dele” e desse modo

abre-se a janela de uma cidade. Tal “[n]ão constitui um painel completo nem uma visão totalmente

consciente do fenómeno cidade, mas o modo como o indivíduo a reflecte, nas suas zonas obscuras e nos

seus segredos.”10 A cidade e os espaços delineados pela sua “arquitectura [são apenas] os instrumentos

basilares da nossa relação com o espaço e com o tempo, permitindo atribuir a estes elementos a medida

humana.”11 É deste modo que Belarmino e Lisboa formam à vez um corpo único que a câmara de Augusto

Cabrita soube tão bem captar e recriar - o espectador encontra-se afectivamente ligado ao personagem e

sente o impacto emocional do ambiente e dos objectos que o rodeiam. Em Belarmino sente-se o peso do

seu habitat, sente-se o confinamento espacial – existenzminimum, Lisboa e personagem metaforizam assim o

contexto e o tempo vivido.

                                                                                                               8 cf. entre outros Nezar AlSayyad, Cinematic Urbanism – A history of the modern from reel to real, London/New York: Routledge, 2006

9 Bragança, “Acerca de Belarmino”, 1965, p.47 10 Luís de Pina “A Cidade no Cinema Português”, Boletim do Instituto Português de Cinema - Cinema Português, Verão 1977, nº2, p.48 11 Pallasmaa, The Eyes of the Skin, 2005, p.17

Metáfora  e  documento  

Belarmino é considerado um “filme-documento,” ressonante das condições de existência em Lisboa, e um

eco de todos os que viviam em Portugal nos anos 60. Ao longo do filme, fora de campo, perguntas ferozes

e sem rosto interpelam Belarmino, espremem-no, esmagam-no tal como a vida o esmagou. Perguntas

inquisidoras, tom inquisitório, a voz de Baptista-Bastos é a metáfora da censura perpetrada pelo regime

decadente. Belarmino “[é] um filme estranho e insólito, um documento de cinema-verdade que nos mostra

uma Lisboa de bastidores, de rua, café e expedientes, de estádio de Alvalade e parque Mayer, de pugilistas e

prostitutas, de gente parada nos passeios e refúgios antigos de seres medíocres. Mais do que um

documento de um pugilista em declínio, Belarmino [seria] a nova crónica de Lisboa (...)”12 A crónica da

cidade encerrada, da cidade disjunta, da cidade feita com vazios humanos, de humanos que não chegam a

sê-lo. A crónica da cidade retrato da anomia social que se encontra bem patente na condição de ser de

Fragoso: um anónimo, perdido, sozinho na multidão hostil. As suas dificuldades enquanto cidadão, são

uma asserção do impacto psicológico e emocional da sua luta pela sobrevivência num ambiente

permanentemente agressor. Circunstâncias que são sublimadas pela banda sonora claustrofóbica, em que

por vezes irrompe o jazz, que constrange e apela ao improviso, no “labirinto infernal” da própria

sobrevivência. E a certo momento Belarmino reflecte sobre a sua vida, constatando que “quando se tem

fome, graxa e boxe é a mesma coisa”. A violência do ringue é explicitamente comparada com a violência da

pobreza e da exploração, paralelismo que Fernando Lopes soube explorar cinematograficamente ao

alternar o deambular de Belarmino na cidade com as imagens do combate - a vida e a cidade são um ringue

de boxe. Durante o filme as imagens chegam encerradas, planos curtos, o “inexorável campo sem contra-

campo.” A opressão e o cansaço que Fragoso sente é sublinhada pelo olhar circunscrito da câmara. “A

experiência do espaço e tempo estão interligadas, e o confinamento do espaço leva ao confinamento e

concretização do tempo.”13 Um tempo ultrapassado, um tempo atrasado, que inflige simultaneamente um

estado de ânsia ao espectador. A crua cinematografia reporta o confinamento vivido, a encruzilhada, e fá-lo

com a ausência de um futuro. Em Belarmino não há horizonte, não se vislumbram saídas.14

A  cidade  enquanto  polis    

Belarmino é um documento sobre a condição de vida portuguesa de 1960, com um especial enfâse no

tecido urbano lisboeta e no espaço do quotidiano, é acima de tudo um filme profundamente político

todavia dissimulado.

Nos anos 60, com forte influência do incontornável e prévio neorrealismo, e mais tarde do Maio de 68,

constata-se que o cinema entra, com o seu devido peso, no debate político. O cinema devia ser pensado

em termos políticos, e a sua teorização era indispensável para tal tarefa.15 Os críticos e realizadores, como

                                                                                                               12 Pina, “A Cidade no Cinema Português”, 1977, p.47 13 Juhani Pallasmaa, The Architecture of Image: Existential Space in Cinema. Helsinki: Rakennustieto Publishing, 2001, p.48 14 “Grades e músicos de Jazz, em estilhaços gritados. Nem sonhos, nem ilusões, cansaço. E uma montagem que quer levantar voo e a

realidade que não deixa. Nem condoído nem exaltante: Belarmino é apenas um murro no estômago.” Jorge Leitão Ramos (1989),

Dicionário do Cinema Português 1962-1988, Lisboa: Caminho, 1989, p.50 15 “The questions were, firstly, how does mainstream cinema contribute to maintaining the existing social structure (i.e., what is its

characteristic ideological operation and what are its mechanisms)? And secondly, what is the appropriate form of an oppositional

aliás os artistas em geral, não podiam refugiar-se mais em questões meramente estéticas, mas sim submeter

a sua actividade ao desafio político com vista à mudança social. Tanto em Portugal, como lá fora, o cinema

desse período adquiriu progressivamente essa conotação, e no caso de Belarmino de Fernando Lopes, tal

influência é inequívoca. A estética quase documental foi (é) uma arma, e a sua construção narrativa leva ao

empenho do espectador. Não há como baixar os braços.

Com vista a atingir esta dimensão política do Cinema Novo, a construção narrativa de Belarmino assenta sobre

os vectores acima delineados: a cidade retratada enquanto espaço existencial de Belarmino, o espaço de

identificação do personagem biografado mas também de muitos como ele do seu tempo, e até do próprio

espectador intemporal, em que o confinamento que a câmara reporta é senão o espectro do pesado regime

ditatorial e inquisitório, e, como síntese, a cidade ou a polis enquanto espaço político por excelência que se

encontra asfixiada, amordaçada, tal como a sua personificação simbólica.16

A política surge com o nascimento da cidade, da polis, da discussão dos vários intervenientes de igual para

igual, da discussão em espaço aberto, espaços esses que não existem na agorafobia experienciada em

Belarmino. “No cinema português, Lisboa não é só a ‘capital’, mas a ‘cidade’”17 e em Belarmino, a cidade, a

polis, a política, não se concretizam, pois como ele encontram-se confinadas. Belarmino e a cidade

encontram-se atrás de grades. Talvez Belarmino não tivesse um peso político tão grande como quando

filmado na cidade.

Muito se escreveu sobre Belarmino, provavelmente mais se virá a escrever.

Ontem como hoje, filmes como Belarmino precisam-se.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             cinema that will break the ideological hold of the mainstream and transform film from commodity to instrument of social change?”

Robert Lapsley and Michael Westlake, Film Theory – an Introduction, Manchester: Manchester University Press, 2006[1998], p.1-2 16 (...)Belarmino est notre film noir, notre film de guerre, de gansters ou d’aventures: il nous parle de la solitude et de la peur. Il nous

parle de qulque chose d’universel et pour cela, il traverse le temps.” José Manuel Costa, “Belarmino de Fernando Lopes”, in Images

Documentaires, 61/62, 2e et 3e Trimestre 2007, Paris, p.40 17 Pina, “A Cidade no Cinema Português”, 1977, p.46