lisboa agosto de 1988

400
O universo. Refletia da tarde na água. Diante do postal de Kleber, no delírio de ter uma cidade sob o sol nas mãos e estar sob o sol de outra cidade, evoquei o dia em que conheci Nastácia, levado pela relação entre a reminiscência e os dois sóis, relacionando Nastácia com minha vinda de um para o outro. Na margem do Tejo, o suposto vendedor de haxixe (na verdade caldo concentrado de galinha prensado com louro) aborda os estrangeiros, simpático enxame qual babel preguiçosa à beira do rio. Eflúvios de tágide emanam do outro envelope – uma carta de Claudia, jovem que eu conhecera em Veneza e nos instigamos e ficamos naquele jogo de olhares sutis e palavras dúbias a sugerir a íntima celebração de um querer reticente, quando o que é implícito beira a revelação. Enquanto isso dura, resiste uma inquieta amizade. E nos tornamos amigos. Agora me escrevia de Muggio, falava de trabalhos e estudos em Milão, de sua vida solitária de muitas atividades, de todo o seu tempo tomado, mas dera assim

Upload: ricardo-de-almeida-rocha

Post on 21-Jun-2015

161 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

http://www.youtube.com/watch?v=e0fOEVmbghY

TRANSCRIPT

Page 1: LISBOA AGOSTO DE 1988

O universo. Refletia da tarde na água.

Diante do postal de Kleber, no delírio de ter uma cidade

sob o sol nas mãos e estar sob o sol de outra cidade, evoquei

o dia em que conheci Nastácia, levado pela relação entre a

reminiscência e os dois sóis, relacionando Nastácia com

minha vinda de um para o outro. Na margem do Tejo, o

suposto vendedor de haxixe (na verdade caldo concentrado

de galinha prensado com louro) aborda os estrangeiros,

simpático enxame qual babel preguiçosa à beira do

rio. Eflúvios de tágide emanam do outro envelope – uma

carta de Claudia, jovem que eu conhecera em Veneza e nos

instigamos e ficamos naquele jogo de olhares sutis e

palavras dúbias a sugerir a íntima celebração de um querer

reticente, quando o que é implícito beira a revelação. 

Enquanto isso dura, resiste uma inquieta amizade. E nos

tornamos amigos. 

Agora me escrevia de Muggio, falava de trabalhos e

estudos em Milão, de sua vida solitária de muitas atividades,

de todo o seu  tempo tomado, mas dera assim mesmo

um pulo a Moscou após breve giro pelas capitais da

comunidade européia em pleno início da livre circulação de

pessoas  e mercadorias. Falava. Posso ouvir a sua voz. Soa

Page 2: LISBOA AGOSTO DE 1988

com naturalidade para mim apenas compreensível de quem

diz ter ido ver o crepúsculo na varanda de casa. Ai, o tom

confuso do mundo de camponeses e reis, dos pedestais da

aristocracia feminina e ternos vagabundos sob o sol...

Claudia não era personagem central em minha história,

mas passava algumas questões centrais,  como a da

fidelidade,  dilacerante dilema do homem ainda jovem que se

acha velho demais para encontrar o  amor perfeito que

idealizou um dia. Na noite a chuva e na chuva as lembranças

– escreve ela – e nas lembranças da chuva traços que ainda

desenham o seu rosto. A vida é isso? Emoções tragadas pela

pressão do cotidiano, pelas regras sociais e por nossas

próprias interrogações sobre o que é a vida?

As pessoas ao redor adaptavam aquele rosto à própria

capacidade de compreensão, o que tornava-o multíplice e

ninguém numa terra de todos. Sempre é visto pelas ruas da

cidade, mas pessoa alguma pára e pergunta o que há de

errado. Se precisa de alguma coisa, se podem ajudar. Isso

teria sido um motivo para parar de chorar por dentro. Porque

ele carrega esse pranto constante. Mas as pessoas apenas

passam. E ele irá evadir-se antes que alguém se aproxime.

Não se incomodem comigo.

Um fim inelutável. Agora tem a caderneta na mão

esquerda, dentro a correspondência, servirá de apoio.

Quanto tempo mais poderá resistir? Não é fácil, não é nada

fácil, principalmente por essa consciência de si mesmo. De

repente achou por bem fazer alguma coisa. Quem sabe se.

Mas nada. Quando a moça passou e perguntou se tinha fogo,

fazendo-o parar, encheu-se de uma confiança estranha,

finalmente me notaram, então teve ânimo novo para

Page 3: LISBOA AGOSTO DE 1988

procurar um banheiro público, aliviar-se e dar um jeito na

aparência, renovar a máscara. Sai depois e caminha um

pouco mais, irá sentar-se e escrever novamente. Ora, por

que não? Ainda resta sim esperança.

Não estou em qualquer das aparências de mim. Estou

sozinho. Bem, não exatamente sozinho. Há a luz, as

cintilações à superfície do rio.

Ele se lembra. Um vagão. Um vagão cheio. Agora a

caneta está na mão direita. Continue escrevendo, meu

querido, tem de haver uma razão por que estejamos aqui; e

escrever é antes isso – um fazer que não se origina no desejo

de partilhar uma mensagem ou visão e sim em que, ao

contrário, não sabemos e queremos saber. Precisamos.

Caminha um pouco mais, atravessa a rua. Lisboa passa

por ele, como a paisagem da janela de um eléctrico. O que é

isso? Ah, um bonde. Senta-se, como planejara. Ergue os

olhos, torna a abaixá-los, abre a caderneta, escreve. A letra

sai tremida. Para onde irão essas linhas de luz? Falam às

suas costas. Ê pá esperemos que isso não– Portanto pode ser

que– Solidão. Em nada ajuda a fortuna espalhada naquele

quarto.

A revelação não tem hora nem lugar, acontece de vez

em quando, agora aqui, em reveladora fúria de fogo da qual

logo nada restará além do futuro. Não sempre. Às vezes.

Porque sempre não o suportaria o ser humano. Seus pés

estão imersos no rio. Talvez essa sensação seja um

presságio. Ao longo de toda a vida procurara. Nesse

momento se apega a uma fé sempre rejeitada. Uma vez

lançada a sorte, o que escrevermos teremos escrito; e,

ninguém sabe bem como, o inefável se tornará dizível, no

regresso ao país natal.

Page 4: LISBOA AGOSTO DE 1988

Claudia está bem, na casa da mãe, ali se sente livre.

Queria ter escrito antes, mas não encontrava palavras. Afinal

decidiu, pois que são palavras além de signos inertes ao

quais se atribui valor? E ela sabia, meu amigo, que você faz

isso muito bem. Eu lia e me perguntava se estaria certa. Eu

morria e tentava acreditar num resgate, que pudesse a

escrita ensinar o prisma da posteridade,  era  importante que

o fizesse, mesmo fosse a minha uma posteridade de

ninguém. Também me perguntava por que eu tinha vindo e

quanto tempo ficaria. Não sei. Talvez a Europa tenha

arrastado minha alma, como as palavras se escrevem a si

mesmas. Não decidirei o dia da minha volta, se é que haverá

dia de voltar. Um oceano se interpõe e queimei a ponte

atravessada. O Brasil se tornou memória da bruma. PS.

Queria tanto ouvir de novo a sua voz. Quanto a mim, não sei

mais o que querer, hesito mesmo quanto a crer na validade

de meus escritos, a minha voz.

Chegara a Portugal com objetivos seculares, um

emprego em jornal e um vínculo afetivo estável. Se no meio

do caminho descobri a grandeza da literatura e a miséria,

isso se devia à vaidade da qual fugira.

Então me vi na carta. Não é metáfora. Vi minha imagem

na carta. O papel fino me refletia ali sentado, recortado

contra o trânsito que flui na direção do Porto. Acinzentado

brilho imperial cobre o casario nas ladeiras ao redor. Cheiro

de vinho no ar ao de grelha e rio se mistura. Nastácia na

memória de minha língua. Tamborilam as águas da fonte nos

ladrilhos rangentes à passagem dos bondes. O prédio na

esquina do paço ergue-se triste em cicatrizes e olhos,

duplicado abaixo ao longo da poça no meio-fio. Minha gola

Page 5: LISBOA AGOSTO DE 1988

azul de zuarte está levantada até as orelhas e as

sobrancelhas se encontram na glabela. No cenho, a leitura se

converte em saudade e dor. Ergo os olhos. As dragas

empurram as ondulações contra a superfície sáxea que

margina a avenida até a torre de Belém. As moças passando

não sabem o que são aquelas coisas e para que servem.

Espero a subsistência do jornalista e do escritor o nome;

todavia, se devo escrever, será apenas para a manutenção

da sanidade e transcender a fome e o relento.

De longe e do alto, do castelo de São Jorge por

exemplo, a visão parecia maquete a que uma criança tivesse

deitado talcos. O vento sopra em direção ao sul. Umas quatro

e meia da manhã. O inferno em directo da rua Garret. Oh

meu Deus! Pessoas, não venham para a Baixa. Os prédios

cospem labaredas. Agora vou pá li a ver se de facto. Estar

vivo, estar realmente vivo, é ter consciência da morte.

Hoje será transmitida a décima sinfonia de

Beethoven. Liguei-me às palavras mas um avião interferiu no

som do rádio. Depois, a glória substituiu o locutor e restou a

idéia da vida legitimada após a morte; da ausência como

única circunstância eterna. Seremos meros acasos no

universo ou será o mundo mero acaso em nós, pano de fundo

para as existências. A cidade inteira está na imensa largura

do rio, o sol são miríades de diamantes à superfície.

Aumenta o tráfego na ponte conforme desce a noite, são

Page 6: LISBOA AGOSTO DE 1988

engrossadas as linhas douradas que na outra banda se

dissiparão; mas, na perda do fulgor, as pessoas estarão em

casa. A perfeição possível é póstuma, pensei; e o que nas

pessoas importa, imortal.

Fora a última notícia, a descoberta do dez onde só há

nove, atributos do milênio que se aproxima, baseado em

computadores. Na cintilação que a meus pés derrama,

falante e trêmulo, o alegre grupo de língua francesa sentado

à minha frente, arrebatou-me a necessidade e a inutilidade

da arte, que trabalha revertendo vicissitudes, na voz

feminina que abria o programa seguinte, uma guitarra de

blues ao fundo. O imaginário.

Perdi-me nas possibilidades quase sempre inócuas de

uma vocação e, naquele labirinto, comunicou-se o velho

sentimento temido e absurdo de missão. É preciso dizer tudo

a todos de todas as formas para chegar talvez a um sentido

para a vida e conquistar ânimo de permanecer respirando.

Como se acha solitário! Não vos comove isso, a vós que

passais pelo caminho?

Lisboa. Repartida pelos portugueses com europeus

glaciais do Cáspio e do Reno à vontade em leves roupas

coloridas ao chamado do sol ibérico, e com negros

provenientes das ex-colônias africanas, sentados atrás da

igreja de São Domingos, logo ali, depois da Praça da Figueira

ou defronte à estação Restauradores do metrô. A primavera

traz o humor de seus dias tanto do inverno que passara

quanto do verão por chegar. Estamos num desses

últimos. Give light?, sorriu a descontraída jovem cujo

vermelho da pele acusava a palidez congênita.

Os mochileiros se movimentavam como numa festa

íntima.

Estaria eu apto a lhes oferecer alguma luz com a mesma

Page 7: LISBOA AGOSTO DE 1988

serenidade com que acendia seus baseados? Ou seria o

recreio, e não mais; o jardim, e só isso? – menestrel na festa,

sem qualquer dimensão de arauto do mundo uno, da

pluralidade de raças, sugerido ali na rua da Augusta, por uns

preconizado para a política da comunidade européia e por

outros para toda a humanidade.

Mas apenas escrevo livros de bolso. É o que faço para

complementar a renda. Ou fazia, no Brasil. Livros que duram

uma viagem intermunicipal de duas horas. Banais histórias

de amor e aventura com enredo previamente permitido pelo

mercado, naturalmente com final feliz.

Isso aqui é vida real.

Não tenho mais como denunciar o mal pela imprensa. O

mal está em mim mesmo tanto quanto no planeta da luta de

classes (esboçava na mente o artigo sobre o Maio de 68) e

sobretudo da concorrência entre membros da mesma classe,

afluindo a todo transe ao lugar onde a generosa dignidade

dos ricos assiste, cúmplice, ao espetáculo. Inútil! Inútil

resistir! Assim é e será sempre!

A indolência dos turistas em seu ócio contrasta com a

pressa dos lisboetas que se dirigem a seus empregos,

fardados de sobrevivência, ali na Praça do Comércio.

Calcei-me e desci do muro de onde sentado via os

cacilheiros. Apanho a mochila preta e jogo as alças no

ombro. Está cedendo na costura, dá pra ver lá dentro uma

camiseta azul e um desodorante em bastão. O ruído dos

tecidos ao roçarem é como o chiado de um disco velho, como

o chiado de um disco velho, como o chiado. Roupas que

crepitam. Caminho no sentido da estação de Santa Apolônia:

à meia-noite pegarei o trem para a Espanha.

Tudo o que eu queria ao atravessar o Atlântico era um

Page 8: LISBOA AGOSTO DE 1988

lar, a banalidade dos felizes, não estar integrado em uma

civilização superior, mesmo que essa civilização agora

abrigue Blandine. Blandine não faz parte de meus motivos

conscientes. Não me interessa senão o pouco que a

economia destroçada de meu país já não permite. E, em vez,

a liberdade de longas estradas dando em lugar nenhum, em

lugares comuns - 1992, unificação européia, a abertura de

fronteiras, grande crescimento tanto da discriminação aos

imigrantes quanto dos movimentos contra o racismo. Estou

cansado. A magia da palavra perfeita é ensaiada em meu

caderno, administrada pelo caos, na perspectiva talvez de

um salário de navalha pago antes da falência –

ensangüentados crepúsculos solitários se derramando em

minha mente perturbada. Atravesso a transversal sob as

primeiras estrelas. Mas o rádio disse que vai chover.

Meu caminho era feito de incisões seguidas a que se

costuravam as semanas imediatamente anteriores às

imediatamente seguintes, porque eu nunca tive memória

ampla o bastante para lembrar fatos de há muito acontecidos

nem esperança tão larga que compreendesse um futuro por

demais distante. Portanto tentava agrupar os dias em que

Nastácia participou do torneio em Barcelona com as

possibilidades após receber o pagamento do artigo e quem

sabe a encomenda de um outro, não descartando ser

efetivado na revista. Mas além disso esbarrava na limitação

antes mencionada. É melhor, dizia a mim mesmo pela rua da

Alfândega ouvindo o rio, parar por aqui mesmo e pensar só

na chegada a Madri.

Um estado puro de luz e a ausência de esperançam

dissipam a ansiedade. Não estou entre as melhores cabeças

de minha geração nem minha sobrenatural verve articula

discursos admiráveis. Mas na mente escrevo, celebro coisas

e lugares, escrevo vorazmente, e dessa escrita me embriago,

Page 9: LISBOA AGOSTO DE 1988

depressão e euforia, não há equilíbrio. Escrevo, caminho. A

estação está longe, senhor? Ali, depois daquele prédio.

Anoitecia e esfriava.

E sequer freqüentei uma universidade ou a plenitude

de minha alma, e não faz sentido o legado de meus

escritos dispersos. Aceitei contudo a encomenda do texto

sobre a passagem dos vinte anos do Maio em Paris e vou

entregá-lo pessoalmente na revista espanhola. Depois

posso passear em Madri, conhecer a movida, e talvez sentir a

respiração de uma espanhola em meu rosto, no fôlego dessa

sensualidade sem mais escape, mais estética que orgânica,

digamos assim, uma mulher de fala cantada cuja voz apenas

causaria o desejo, cabelos negros e longos, pele clara,

branca por assim dizer, coxas grossas e brancas exceto pelas

veiazinhas entre o azul e o vermelho como a luz do sol numa

cortina azul e a pele mesmo semelhante a uma malha cor de

carne muito fina, nada a ver com essa moça que passa em

sentido contrário, ibérica também. Tenho desejo de Espanha,

das pessoas e coisas da Espanha, porque não estou na

Espanha.

Mas estou indo, e as coxas são brancas, e a chama é

densa. E sou pelo sonho arrebatado, armado, vestido. Entro

na estação. Vozerio, burburinho que ambienta meu silencio

interior em lama de frio e fome que se abrigou no meu

sangue aquecido e preparado, grosso. Estou indo. Depois

apaziguarei em Madri meus temores  ancestrais e a opressão

dos dias.

Deus, pensei, por que esses alívios paliativos?

Eu não voltarei ao mundo, não voltarei; e, se não

voltarei, por que olho o céu temeroso e me importo com a

opinião das pessoas? De nada vale a vivência a não

ser para descrevê-la? Estou cansado de lidar com palavras

Page 10: LISBOA AGOSTO DE 1988

sem a respectiva vida. Não tenho qualquer razão, não tenho,

para ser o que penso e viver como escrevo. Com a

disponibilidade máxima para riscos. Não voltarei, o que é

tempo? e o sopro de vida em mim será tirado como esse trem

da plataforma 1. Exceto minhas ações, nada restará depois

de minha morte.

Com os lábios trêmulos cheguei a dizer Estou com frio,

e o homem a meu lado não entendeu ou não se interessou ou

não estava com frio. Então por que não bendizer meu

respirar efêmero, inclusive as conseqüências de ter me

desfeito de tudo para entrar naquele avião com passagem só

de ida? Por que não escrever LUZ no cascalho da fronteira e

continuar a ver as pedrinhas cintilando entre os

trilhos, mesmo depois que a anunciada chuva apagasse a

transcendental grafia?

Eu tinha uma amada ausente, viva na foto em minha

carteira e nalgum recôndito de meu coração. Ela longe eu era

livre, mas não sabia até que ponto; não sabia se era bom. Na

cabine solitária do vagão chegam cheiros de todas as casas

que passam na escuridão. Camas rangendo, armários abertos

rangendo, (onde o casal pegou a roupa de dormir), relógios

refletindo o feixe de luar, sons externos de bichos noturnos,

Sim meu amor, outra camada do tiquetaquear do trem na

noite, um nível paralelo de consciência. A mulher se ajoelha,

o homem por trás segura os seus seios, ofegam, o leite no

copo à cabeceira ondula. Era assim em Minas? Os pingos

enchem o vidro da janela do trem e escorrem pelas pernas

trêmulas.

Na estação de Atocha, Madri pela manhã, todos os

rostos traziam o seu rosto, como um ciclo de dulcinéias, eu

quixote. ¿Por favor, dónde un hotel? A vida é irônica, pensei.

Eu não era um libertino, nunca fora infiel; e Nastácia, casada,

Page 11: LISBOA AGOSTO DE 1988

me levara a readaptar conceitos. Esperava na perfeição de

uma única musa, até a toquei quando toquei Blandine, mas

fui tragado pela promiscuidade, ou talvez, sei lá, algo menos

sério, mas não era a beleza dos cisnes. O tempo está mesmo

ficando carregado.

Entrei no pequeno hotel. Não é tão perto como ela

disse. Fiquei com o quarto. Madri como a vejo. Romântica,

terapêutica, amarela, um novo e radiante amanhecer. Lá fora

troveja. Solidão. Solidão. Uma assombrosa periculosidade

rasteja em torno, de um ponto exterior ao quarto, no

corredor possivelmente. Rodinhas no piso se arrastam, o

carrinho geme, era o piso acarpetado? Ele não se lembra, diz

a voz, do gerente talvez, dando ordens à camareira. Passos

arrastados. De que falam? As vozes impregnam a memória

da janela. Meu Outro será para sempre um mero espectro? O

recém-nascido morrerá antes de não mais temer seus

temores? Continuarei morrendo através do tempo? Ele não

sabe, diz a camareira, não para o gerente pois a resposta

menciona o gerente, sujeito ridículo. Estava terminando o

texto (as folhas do caderno se dobram no canto superior,

preciso comprar um novo); estava terminando e sabia, mal

acabasse, nada restaria de mim, desse eu mais justo e

agradável que me possui ao escrever.

Não sei se esse hóspede está aí, parece que há um

recado.

É um impasse. Abrir mão dos vislumbres, conformá-los

aos mecanismos da normalidade, e me conformar com o

conforto transitório. Ou nadar contra a corrente, permanecer

exposto a privações e provações dificilmente suportáveis. O

corpo na cama deitou ao quarto a dor da ferida que

constantemente se abre, emanada da vida futura. Meu ser

não era eu, só um efeito cuja causa não era eu, ou não

Page 12: LISBOA AGOSTO DE 1988

plenamente eu. Meus olhos estão nublados, doem um pouco.

Mas tenho esperança. A perfeição passa por uma floresta

densa de volúpias, do tempo e do poder; passa pela

decadência. Mastigo esse tipo de abstração desde sempre.

Você precisa fazer uma faculdade. Bem que minha mãe me

avisou. Estudo é status, dinheiro é falo. A noite ronda a

janela, deflui em celebrações embriagadas.

Todos afinal têm razão e talvez ele. E possivelmente a

ereção inútil.

Acordei comigo mesmo em nada pensar sobre a noite

passada. Os caminhões municipais escovam o asfalto, lavam

o dia. Gotas se multiplicam no espelho escuro. Recém-

nascido de um Maio há vinte anos, logo morreria outra vez,

até quando? Você em minha mão solitária. Relâmpagos

jorram do cérebro, ecoam, mosaico de recordações.

Lembranças palpitam. A alma quer arrancá-las da memória e

trazê-las à mesma mão tornadas rosa, cujo aroma desnorteie

a serpente e inverta o ruído do trovão. A janela enquadra o

céu, uma estrela aparece, imponente ou simplesmente só,

em minha solidão como um sinal. Que o vento leve o que eu

vejo e veja o vento quando eu não possa mais.

Na  neblina, a cidade derrete. As ruas cansadas,

cheirando a desprezo, estão mortas. Sentado na beira da

cama, onde os treze anos?, a casa dos avós? – a vivência não

haveria de seguir com as nuvens mas ficar com a estrela. Eu

não voltaria, e o efeito haveria de se libertar, não passaria

sem legar algo aos que estavam na festa e aos que ainda

chegariam, quando olhassem por uma janela.

Resolveu procurar Bernardo. Não estava. Filomena, diz

Page 13: LISBOA AGOSTO DE 1988

que espere. Esperou. Durante três semanas, esteve no

negócio. Não posso fazer nada meu Deus, não posso evitar.

Não era minha intenção, preciso sobreviver. E ainda no

jantar ela percebeu o quanto ele estava abatido, embora

naturalmente nem imaginasse que fosse o efeito das preces.

Não fique assim, vai dar tudo certo, disse ela, agora você não

tem alternativa mas logo as coisas vão melhorar, fique

tranqüilo. E olhava para ele com uma ternura fraterna que

ele não conhecia. Ele quis então dizer que eles tinham sorte

de terem um ao outro, pois mais tarde estaria naquele

quarto, ainda sozinho e morando de favor. Mas apenas disse

Obrigado e assegurou que de algum modo ele os

compensaria. Imagine. Falava sério, só não sabia quando –

um dia. E realmente, o quarto. A cama ao lado da janela.

Noites de lua espraiavam todo tipo de saudade pelo assoalho

revestido de sinteco do Porto.

O passar das horas. O relógio registrava o final de abril.

Também o jornal que eu lia na cama, apoiado num cotovelo.

Noticia o crescimento da tensão no avião árabe

seqüestrado. Os olhos para o céu. Na copa das árvores, o

verde muito escuro retém pelas nuances do letreiro a luz do

sol já imerso no abismo. Pouco resta. E fragmentado,

caótico. Como um profeta, eu perdera. As coisas materiais,

sociais – agregadas por assim dizer – que eu prezava. Aos

poucos, retiravam-se também os sentimentos de apego, de

valorização  das aparências. O conformismo aos conceitos

seculares. Mas não de todo.

As coisas mudaram e não seria possível viver com os

Page 14: LISBOA AGOSTO DE 1988

velhos pontos de vista. Eu deveria saber. Estar ao menos

inclinado a entender. Um processo irreversível, fatídico.

Escapa a qualquer controle. Por quê? Eu perguntava, queria

saber. Perguntava: não era um profeta. As manhãs vinham e

depois as noites. Grande es la sensación de soledad en

ciudad grande. O coração se enche de amargura. Um cara

forte que só, mas está um pouco cansado. As vozes no

corredor se distanciam, crescem os sons do vizinho de

quarto. Não entendo como pode fazer tanto barulho num

lugar tão sem nada. Talvez por isso mesmo. O ruído oco e

duro do vazio.

Diante do reflexo. Em torno da lâmpada, mariposinhas.

O sol atrai a terra e se move no infinito, arrasta consigo o

planeta, não permite que suma no vácuo. Nastácia abordada,

a carona. Salvo. De solstício a equinócio, a humanidade vive

uma estação. É assim? Um brilho diferente no reflexo, de

algum modo ligado à respiração. Primavera. Seja o que Deus

quiser. Um cara que lutou com limitações financeiras e de

saúde em nome da viagem. Conseguiu. A voz da mãe martela

na cabeça. Lutar pelo que se quer. Usufruir da conquista.

Depois do inverno, o calor não ludibria a noção de um outro,

no ano seguinte. Os dias passam e assim as noites. Quando

seria eu resgatado? Seria resgatado?

Tilintar de copo, uma torneira. A faca corta uma fruta,

biscoitos são na lata colocados. Não dá pra me levar a sério,

digo a mim mesmo, as mãos na parte de trás do pescoço.

Ainda que escrevesse um romance, sim, ainda que

conseguisse, deveria supor um valor de vida? Quem sabe

seja. Cartas caídas no chão, jornais velhos que se misturam,

fotos, papéis dispersos voam da mesa e alguém exulta. Um

livro!

Page 15: LISBOA AGOSTO DE 1988

Não sou a mão que escreve, sou a espécie. Sonhos

sensuais; amor, que seja. Espelho. A mão na lata. Os

utensílios de minha normalidade planetária haviam sido

tirados um a um. Amor, pátria, trabalho. E agora?

Honrar o homem em mim que conseguiu a viagem? Mas

a que preço. O que pretendia? Ser feliz? Já não era antes

feliz? O que é ser feliz? Alguém chega a ser realmente feliz?

Detestava quando a mãe fazia perguntas apenas para

introduzir suas teorias sobre tudo. Teria talvez pensado que

era feliz nos mimos à criança, nas atenções voltadas para a

puberdade do filhinho, nos paparicos à inteligência, nos

agrados ao adolescente sem espinhas, nas lisonjas que o

sucesso literário profetizavam.

Mas o que é sucesso literário? Aliás, o que é sucesso?

Aliás – a mão não que escreve mas segura o copo dágua.

Bebo. Saciado, não me lembro mais quem sou. Não me

lembro mais. Não me lembro. Não me. Não. O quê? As luzes

se desprendem das folhas e se esvaem na noite. Se escrevo

bem qual a serventia? se nem tanto, qual o prejuízo? Não

amo faz tempo a glória dos homens, não mesmo. Não

mesmo? E se sim, se não amo, qual a utilidade dessa

convicção? Na noite onde se esvaem as luzes, me resta

colocar o coração, ainda bem irrigado pelo tempo de

exercícios e alimentação balanceada, a serviço do que deve

perdurar – os vislumbres pesados, as asas da sombra, a casa

esperada. Junto ao tesouro sem traças que me resta.

Odor de cinzeiro. A matéria do Maio, com ela me

despediria do jornalismo. Diante de mim, a tensão crescente

no avião. Mas acabo de ouvir que os seqüestradores de há

muito conseguiram escapar. Não há mais seqüestro. Ao som

do noticiário, um jornalista cujo sonho é ser escritor, e o que

não mais interessa: especulações sobre os extremistas, o

Page 16: LISBOA AGOSTO DE 1988

estado psicológico dos reféns. Já aconteceu a fuga, no tempo

do mundo. As panturrilhas estão doloridas. Escaparam,

pensei, inclusive da imprensa, elite cujo propósito é ver o

circo pegar fogo para enfiar o microfone na boca chorosa do

palhaço.

Mas eu continuava preso àquela engrenagem. Era a

minha profissão, havia dez anos, embora não tivesse

diploma. Embora eu quisesse ser livre e os órgãos servis, era

o que sabia fazer. Em Portugal, a exigência do diploma não

equivalia a um progresso estabelecido. Lençol limpo,

convidativo, o corpo filtrado pela viagem se distende entre a

entrega da matéria e o torpor de tantos nadas. Minha vida se

tornara inoportuna. Preciso não ter interesse material ligado

à escrita, ser livre e acreditar no que faço tanto quanto sei

fazer, e viver de acordo, com cuidados de retidão e

caligrafia, incluindo rasuras e correções. Um cartaz entra

pela janela que vê Madri. Ahora es tu oportunidad.

Se a variação cromática define na rede a imagem

reticulada embora as retículas não sejam perceptíveis a olho

nu – pensei perdido no quadro na parede (um casal em uma

praia)–, na alma a personalidade se imprime pela índole,

depois pela educação e arbítrio. Tudo passa então a ser

atribuído a um ente imaginário criado pelos outros, o qual

assume a pessoa como se nela se consistisse. Meus olhos

estão mesmo com algum problema. Uma mulher no quarto do

lado oposto. Assim, assim. A análise psicológica quando

muito discerne sutilezas, causas remotas sem maior

significado além da retórica.

A possibilidade de uma vida. Viscosa e morna. Não há

mais.

Preciso me descobrir, viver, sair de mim pelo prisma

alheio, desdenhar dos motivos, tomar o destino. Testo a

Page 17: LISBOA AGOSTO DE 1988

esferográfica na mão. Apreensões impedem a entrada da luz

e a treva não deixa que eu capte a essência não histórica do

tema.

Está cansado da viagem, se cair na cama desmaia.

Resiste, porém, por causa da noite madrilena. Mas devia sim

tentar dormir um pouco.

Dormir direito, há quanto tempo não?

Desde que renunciei a me acalmar. Não conseguia,

pensando em Blandine. Às vezes até que, mas só em certa

medida, numa coisa só física, para esse efeito de alivio.

Então, se é assim, abdico do direito.

Ansioso. Solto por pensamentos os mais diversos,

culminando naquele, sobre a História. Tem um livro com esse

nome, disse uma vez o senhor Jean; de uma tal Morante,

alguma coisa assim. Fala de como os fatos históricos nada

mais são do que um amontoado de dramas anônimos que a

História jamais contará. Se maio foi referência em Paris,

1968 tivera outras, mais nos suspiros do que nas explosões.

Que significariam individualmente?

Uma camareira rende a outra, passa pelos quartos

abertos recolhendo a roupa suja. Imagina como o marido

teria se sentido quando ela finalmente tomou coragem e

disse Vou sair de casa, não precisava dele para sobreviver.

Recorda a cara da filha ouvindo-a dizer que tomara a

decisão, Mas mãe, entretanto quase se podia tocar o orgulho

da moça, escondida atrás da enorme barriga. Passa com o

carrinho pelo balcão vazio da portaria, atrás do qual havia os

quadros da Inspeção Sanitária, a advertência contra crimes

sexuais, o espelho e o quadro das chaves, passa e sente todo

o alívio.

A que saiu se encontra com o namorado, Vamos antes

Page 18: LISBOA AGOSTO DE 1988

comer alguma coisa, e seguem pela Gran Via, certos de que

suas esperanças não podem ser interrompidas nem por

pessoas contrárias a estarem juntos nem por aqueles que

dizem quererem apenas o bem deles, como a mãe dele. Filho,

você é um empresário respeitado, ela mesma acabará se

sentindo mal diante de seus amigos, cada um tem de viver

no próprio mundo. E depois que comeram as iscas de fígado

que ele preparou, foram para cama e no dia seguinte

acordaram quase meio-dia.

O porteiro está voltando, cantarola a música que

encerrou o show do dia anterior, bem que seus amigos

disseram que ele iria adorar, de fato era uma banda

fantástica, uau, fantástica – sentiu-se envolvido por uma

energia louca, e agora era como se todas as coisas boas que

deveriam acontecer ao longo do dia, as gorjetas, a pausa do

almoço, o flerte com as hóspedes, tudo estivesse ligado aos

acordes que insistiam dentro dele. Todos perceberam o

quanto estava bem e seu humor mais leve.

As escadas descem em voltas, deve levar bem uns cinco

minutos ou mais desde o momento em que se sai dos quartos

até o corredor que dará na rua, agora visível. A luz faz com

que se aperte os olhos, os transeuntes se aproximam de

quem sai. Junto-me a eles. Passo pela mulher numa calça

muito apertada, os quadris requebram em negro; desvio de

dois casais parados em frente a um prédio; o ônibus ronca e

retoma seu trajeto. A rua é estreita mas deve me levar à vida

que procuro, oculta em cada palavra que me ocorre por conta

do artigo –ideal, revolução, liberdade. Se houve o Maio

francês, o vento sopra desde sempre, meu amigo, as

respostas.

Estou saindo sem destino pelas ruas de Madri.

Page 19: LISBOA AGOSTO DE 1988

Valerie queria fazer amor com aquele homem, o

professor – era o queria, sem qualquer outra implicação.

Saboreava a intensidade desse desejo sem culpa quando

suas amigas acenderam o baseado. Quando fez efeito,

inflamando-lhe a vontade, passou pela sua cabeça a reação

de Hans se soubesse, e certamente, do jeito que eram as

coisas, haveria de saber. Em nenhum momento sentiu menor

o seu sentimento por ele, por Hans, desde que viu o outro no

campus e quis estar com ele ao menos uma noite. Se não há

sentimento ligado a isso, pensou, tampouco tenho qualquer

ligação com os ideais do movimento estudantil e não estou

entre os membros mais engajados? Quando ele chegou e

disse Oi pessoal, ela já tinha tudo planejado e pouco depois

estavam no alojamento, procurando-se. Do outro lado da

parede vinha uma música dos Beatles, que falava de

revolução. Os outros deviam estar ainda tagarelando sobre

sistema educacional, política, Vietnã, mas no fundo tudo o

que diziam era que Valerie tinha o direito de fumar um

baseado e depois fazer sexo com aquele homem.

Madri. Pelos labirínticos subterrâneos do trem

metropolitano, contemplando a fauna de que fazia parte,

cheguei ao outro lado da cidade no princípio da noite.

Arrefecido o horário, restou a oferta de corpos, o burburinho

nos bares, adolescentes discutindo qualidade e preço. As

espanholas com elegância se exibem. Namorados e um

romantismo anacrônico. Simpáticos executivos ensinam após

o expediente. Si llevas dinero, te vas de copas. Peço uma

informação ao rapaz que passa em sentido contrário, não

Page 20: LISBOA AGOSTO DE 1988

entendo sua resposta, que a escrevesse pra mim, por favor.

O que estou fazendo aqui? Quanto resistirá esta casca?

Grupos marginais nas esquinas como ventos se

agrupam antes de distribuídos. Apertos de mão em código,

socos de camaradagem e beijinhos descompromissados,

alíneas de parágrafos jamais acabados. Tive mais que esse

fim de caminho, onde começou? Ao se dispersar o

grupo, alguém deixa um pedaço gratuito como prova de

amizade.

Sento no degrau de uma loja de uma loja fechada. Um

policial olha fixamente para a caderneta que eu tirara do

bolso da jaqueta. Presença incômoda. Levanto e tomo de

novo a direção do metrô. Pouco depois, estava na avenida

Daroca, ventava forte na Ciudad Lineal. De Vicalvaro até a

entrada da estação Las musas, entro no mundo que nasce

quando morre o diurno e sua retidão.

Apanhei a linha 7 até Pueblo Nuevo e a 5 até Ventas, no

sentido de Callao. Cinemas, sopas, madrugadas imprevisíveis

segundo o suplemento. Entrei após ver o cartaz. “Julia e

Julia”. A inverosimilhança de Sting falando um castelhano

tão perfeito com Kathleen Turner fez da sessão um tipo

estranho de terapia e saí sereno, bem disposto. Não me

ocorreu qualquer associação entre a bizarra película e

Blandine, o que colaborou decerto para a tranqüilidade. E no

entanto havia Trieste, fronteira de barcos e aves, castelos e

museus, professores famosos e virgens mais que prudentes,

cidade que não conhecia mas tão ligada estava a meu

passado e destino. Se estabelecesse analogias (o que pode

ter ocorrido no inconsciente) entre Blandine e Kathleen,

Sting e eu; se relacionasse aqueles cenários com os

arredores da via Della Sorgente, ruas onde Blandine vivia e

caminhava ao sol, aquele mar do filme com o mar que todos

Page 21: LISBOA AGOSTO DE 1988

os dias a extasiava, crepitando ao constante vento, a

ansiedade de um reencontro não me deixaria concentrar em

Julia, nas fantasias em estado bruto que produzia. Kathleen

seria Blandine; e seu amor por Sting, nosso abortado

romance. Mas não me ocorreu qualquer ligação. Não evoquei

Trieste, não lembrei de Blandine e saí ileso, graças a esses

complexos mecanismos mentais que nos protegem de nós

mesmos.

Meses depois – agora há poucos minutos de quando

escrevo isto –, quando voltasse a ver o filme em Lisboa numa

sessão reservada a jornalistas e cineastas para mostra dos

processos inovadores da tecnologia da alta definição, por um

detalhe, o espaço entre as casas, de que Nastácia não

gostava por achá-los grandes demais, agente do isolamento

dos habitantes, eu pressentira Trieste e confirmaria mais

tarde a intuição. Nessa sessão futura, em que os cuidados

técnicos subtraíam ao filme aquele halo de magia,

substituindo-o por um tipo de video-tape, algo como trocar a

pintura de um mestre pela foto da paisagem que o inspirou,

nessa outra sessão, em Lisboa, quando Sting falava com sua

própria voz o inglês original do filme, experimentei imensa

angústia pelo desfecho em que me encontro e porque, se

conhecemos uma ficção e aceitamos as horas que dentro

dela passamos como um tempo vicário onde a ilusão assume

o papel da realidade com o nosso aval, quando voltamos a

nos deparar com essa obra, após ver os atores recebendo

prêmios, em entrevistas ególatras ou simplesmente em

outros papéis, ao revivermos a narrativa depois da lisonja da

crítica e dos apuramentos técnicos, a obra perde a dimensão

de vida que lhe concedera nosso espírito na primeira leitura,

nos detemos nos detalhes, tudo se torna evidente como fruto

de uma humanidade vã, verossímil demais para ser

verdadeiro. Você nunca viu o mar e se delicia ao imaginá-lo,

Page 22: LISBOA AGOSTO DE 1988

mas talvez não irá gozar de seus prazeres quando em meio

às ondas. A masturbação de um adolescente pode ser mais

gratificante que as relações que manterá depois de adulto.

Ouço um trem. Uma buzina. Outra. Vozes. Passam pelas

calçadas. Só quem morbidamente susceptível sofreu a

miséria como eu saberá a pressão a que se é submetido, as

humilhações dolorosas e alegrias potencializadas por

contraste. Sou patético porque no fundo sou normal. Mas

sofro. De um jeito ou de outro, sofro. Só quem vivencia

realidade semelhante poderá avaliar o quanto sofro.

Não era assim após o filme em Madrid. Estava sereno,

bem disposto, cheio de esperança. Encaminhei-me assim,

com postura e respiração de peito, para uma ronda que me

deixasse na zona das tavernas, pronto para entrar na mais

barata. Ao passar por uma banca de jornais, bati o olhos num

postal sem foto, apenas a plastificação negra do cartão.

Noche. Madrid. Sorri. Comprei. Virei-me e devo ter dado uns

cinco passos. Um rapaz me pede um cigarro. Depois de

acendê-lo, propõe um chocolate.

Dialeto dos fumadores de THC. Maconha, cabonha,

ganza, erva, pito, hashis, kaia, erva, liamba. diamba, porro,

joint, charro, chá, chamón. Pinturas diferentes de uma

mesma porta, para um mesmo lugar. Independe o efeito do

nome. "Chocolate" agora, o carimbo na fronteira. Se eu devia

ou não ultrapassá-la, esse era um outro, velho complexo

problema no qual não podia me dar ao luxo de me deter

então – o mundo passa, e seus mistérios.  Necessito agora

não de droga mas interlocutor e a erva se prontifica sem as

cobranças do amigo e, principalmente, da amiga humana.

Assim que lhe dei o dinheiro de minha parte, o rapaz foi

até um vulto na transversal do outro lado da rua, sem dizer

palavra. Voltou e fomos andando enquanto preparava o

Page 23: LISBOA AGOSTO DE 1988

cigarro. O rapaz, Michel, inglês, pronunciava o espanhol tão

corretamente quanto Sting no filme – porém ele era real

como minha alma dilacerada. Canta o lhú de lluvia (começava

a chuviscar) e o lhê de calle (convidara-me para ir tomar 

sopa num clube noturno e agora me explicava  o caminho),

diferente dos sul-americanos que dão aos eles som de jota.

No percurso, pelo cheiro juntaram-se a nós um italiano

e um português. Eu ouvira falar, em Paris, Roma e Lisboa,

acerca de Amsterdã, auge de uma europa paralela, una,

subterrânea. Uma bicicleta em Den Haag Utrecht contra o

vento. Uma moça com a mochila aos pés ao lado de uma feliz

placa azul, ela pede uma carona. Outra. Bate fotos dos

amigos. Uma transversal. Vou ao longo das rua de casinhas

ajardinadas e tetos graciosos, à semelhança de casas de

bonecas. Não vou realizar tais sonhos.

Oleana pergunta Por que não? Poderiam, sei lá, marcar

um encontro em Amsterdã no Natal. Palavras. Ela não

festejava Natal, mas tinha costume de fazer uma viagem

desse tipo no final do ano. Ele precisa mudar aquele

sentimento de que a vida são promessas não cumpridas,

desejos não realizados, pequenas traições,

indisponibilidades. A vida é boa, meu amigo.

É ele. Revelou-se. Aquele que não tem futuro, o que

então parece esperar? É ela. Não há outra. O tipo de convite

feito da boca para fora, como se falar fosse um tipo de

imunidade. Amanhã sequer lembrará de ter dito isso. Teve a

impressão, enquanto a escutava, enquanto entrava naquela

dimensão em que era estrangeiro, do dizer por dizer, e justo

no momento em que o prazer é tanto que substitui a razão,

de ouvir um desejo de silêncio espalhando entre velhos

Page 24: LISBOA AGOSTO DE 1988

sonhos e novas excitações os cordões firmes do cumprimento

do que se diz, a mais sagrada de todas as coisas.

Um veículo pesado subitamente faz com que a avenida

estremeça. Um sino. Meia-noite. Tudo que um segundo

comporta.

Na verdade, as cidades da Europa – pensei enquanto

Michel arrematava o cigarro, girando-o na boca –, cada uma

oferecia seu clímax próprio num continente de coisas velhas,

acusado de xenofobia, com um comprometedor passado

colonialista, mas sempre fascinante a olhos estrangeiros,

como o salão de uma duquesa do século dezenove, cheio de

gente sequiosa do convívio que impõe nobreza qual lápide

numa sepultura, tentação a que não resistiram nem os

grandes da arte refratária ao tempo, como se não houvesse

o juízo das gerações.

Tentava resistir. Convidado por Maria das Dores, uma

linda secretária do Palácio Foz para um coquetel naquele

exato momento oferecido a jornalistas estrangeiros em

Lisboa, preferia partilhar – preferia? – a companhia de outros

perdidos dispersos na península.

Bernardo vê a sua amada em algumas expressões do

brasileiro, um certo eco de pensamentos que conhece tão

bem. Os olhos dele próprio também retém o amor também

por um momento, mas não pode durar. Se fosse assim

sentimental, argumenta consigo mesmo, já estaria morto.

Bernardo. O entroncado moreno do Porto. Está falando

alguma coisa sobre mulheres. Diz que sexo e sentimento são

para elas a mesma coisa ou duas coisas tão ligadas que

Page 25: LISBOA AGOSTO DE 1988

terminam por ser uma só. Quando sentem prazer, sentem

amor. O homem  não associa  assim, por muito  que ame.

Admitimos que a imagem da amada possa por momentos se

pagar e o coração transmitir outras imagens, mesmo pronto

para pulsar o ressurgimento de sua amada.

Donde o espírito possessivo toma conta delas – Mario, o

italiano que vivia em Barcelona faz uma pausa e vai concluir.

Mas Bernardo, como que desabafando um caso recente,

conclui ele próprio.

Como uma possessão mesmo. O ciúme é o demônio

particular das mulheres.

A mulher é que é o demônio, diz Mario. Naquela mesma

noite deixará de pensar assim. Eis a mulher que esperava,

tão doce e castanha. Sabia que ela existia e que iria

encontrá-la. Muda assim sua forma de ver as coisas, sua

maneira de encarar um relacionamento. Eu sabia. Horas

depois pensará. Ali estava Isabelle, sem intenção de seduzir.

Desdenhando seduzir. Apenas caminha na noite.

A mulher é o demônio, repete o murmúrio.

Era um engano pensar assim. A ironia musicava o

castelhano de Michel. Uma mulher não passa despercebida.

Bernardo carrega sua melancolia dum forte sotaque. Su

codigo es místico. As feições acompanham as palavras.

Confissão de uma mágoa nas entrelinhas. O silêncio dos

outros estabelece a compreensão que permite que continue

sua queixa. Para elas a amante eventual é definitivamente

traição, prova inequívoca de desamor, quando na verdade

apenas prova uma tendência polígama primordial. Aventuras

nada significam.

Mario acrescenta: Nada para nós. Para elas, sempre

significam alguma coisa.

Page 26: LISBOA AGOSTO DE 1988

Soava engraçado quatro jovens estrangeiros na movida

madrilena levados pelos primeiros toques do cânhamo a

semelhantes divagações. Bernardo se perde na imagem

motivadora de suas palavras. Mario, depois de receber o

charro de Michel e fazer a gravata de saliva para retardar a

queima, concorda que os homens, mesmo privilegiando o

lugar da amada, não resistem a outros lugares. Michel sorri e

diz E eis que uma mulher sai ao seu encontro. Passam três

moças em sentido contrário, provocantes. Ele virou-se e as

seguiu no decurso de uns passos. Mujeres, vosotras las

chicas, no valeis nada, no sois nada, no teneis sentimientos,

ni corazon, ni entrañas - no queréis ninguna salir

conmigo? Uma alma paralela extraiu etérea das nuvens a

idéia de Deus que associei a adoráveis chicas espanholas.

O que torna tudo tão difícil, comentou Mario, é que a

mulher escolhe sempre um homem que vá despertar a

atenção de outras – o rico, o charmoso, o bonito, o

inteligente, o protetor, o sedutor. Mas só leva em conta que,

se é fiel, garantirá o direito de exigir fidelidade. Escolhe e se

entrega logo, antes que surja a questão de sua própria

beleza, independência, charme, meiguice que desperta no

homem o desejo de proteger, de seu jeito apaixonado. Daí

deduz que sua entrega fiel dá o direito de fazer cobranças.

Não preserva seus encantos e exige fidelidade cega,

independente desses encantos.

O pastor pregava em vigília evangélica na igreja que

logo adiante cresceu. Por que a duração de nossa vida é

setenta anos, e se alguns mais robustos talvez cheguem a

oitenta, o melhor deles é canseira e enfado. São levados

como corrente de águas, como um sono; são como a erva que

cresce de madrugada, de madrugada cresce e floresce, à

tarde corta-se e se seca. Deus fala aqui da brevidade da vida

e por ser breve temos de mostrar a nossa fé E a nossa

Page 27: LISBOA AGOSTO DE 1988

prosperidade mostra a nossa fé, aleluia! Gritos santos são

ouvidos aqui de fora.

Fidelidade – pensei – só deixa de existir, efeito, quando

uma causa já se desenvolveu nos tempos. E do efeito são

criadas águas, e afunda-se no efeito. E agora, sem convicção

para ser fiel, justamente agora, era mais amado e mais me

era exigida fidelidade, cuja noção em mim a névoa

confundira, a noção da fidelidade natural que jurei um dia,

não diante de um homem assim, mas dentro do coração.

Como a pele só sente a mudança para mais frio ou calor

e não a temperatura que se mantém, assim, acho, o tempo

só é sentido na mudança, e quando a gente vê alguém depois

de muito tempo, cresceu, mudou, o que não percebem as

pessoas ao redor. O que pode, pensou Mario chutando uma

pedrinha, o que pode dizer de fidelidade o homem num

mundo, como diria meu pai, em que a graças das mulheres,

como o velho teria dito, tece a passamanaria de todos os

assentos? Bene. E o que dizer de um mundo que assim não

fosse?

Um mundo sem a mercê da mulher, pensei, seria sem

vida. Como num hospital as enfermeiras não passam pelos

corredores para ensejar aos enfermos desejo de viver por

causa da graciosidade delas, mas porque ali trabalham e são

competentes; porém, esse requisito evidente seria, sem a

sutileza do outro atributo, tão inócuo quanto um soneto

clássico na forma, sem o coração das palavras. Até posso

escrever um agora, palavras chegam aos montes, de frescas

instâncias, junto a expressivas imagens expressivas, no óleo

mais puro de existir. Mas caminhávamos e se volatilizavam.

Palavras.

Page 28: LISBOA AGOSTO DE 1988

Contudo, bem ou mal, delas subsisto. Escrevo. Sou lido,

segundo cartas que recebia nas redações, era até apreciado

por algumas pessoas. Assim, parece coerente o oficio; e

depender de palavras meu tempo de subsistência, uma troca

sensata. Mas não há coerência na vida e nada é tão

insensato quanto o que nos ocupa coerentemente o tempo

sem fazer sentido no final. Como os dias de meu

relacionamento fiel com Blandine.

Mario agora fala sobre as possibilidades próximas à

Puerta del Sol. Bernardo comenta que um italiano em Madrid

não pode deixar de conhecer o Pinoccio, onde jantara por

duas mil pesetas. Resquícios em meu silêncio. Fidelidade. O

que sei? Mal e mal da dimensão entre o primeiro pranto e o

último suspiro – prantos e suspiros – e sequer se antes

haverá vida verdadeira, a fidelidade de Deus, antes do

réquiem dos querubins irradiando uma luz apenas provável.

Chegamos, disse Michel, tirando-me de mim.

Entramos.

O ambiente está cheio de um azul sonoro que

relampeja, diria que é uma boate, mas como se uma

autoridade maior me chamasse, quieto num canto voltei para

minha caderneta.

Há vinte anos, quando eu tinha vinte

Anos, queríamos mudar o mundo

Lembrar 1968 produz a frase inicial de um texto com

referências próprias, e todo o trânsito delas deveria se

Page 29: LISBOA AGOSTO DE 1988

resolver em cada visão pessoal, Albinoni reciclado em versos,

algo assim. O esboço no hotel aos poucos se transforma em

algo concreto perante mim, será lido e esquecido ou nem lido

mas e daí? Há vinte anos, quando eu tinha vinte anos, quem

estava com vinte anos aprendera a sonhar e queria tudo, o

futuro era agora. No final das contas porém, 1968 é só um

numero, que traz não evoca qualquer reinvenção do mundo,

e meus amigos da época, observei, estão mortos ou aderiram

à mediocridade geral. Não que tenham mudado, ao contrário,

agora são eles mesmos. Hoje, vinte anos depois de quando

eu tinha vinte anos, o que poderia ter sido não foi, o sonho

acabou. Que barulho ensurdecedor é esse, essas batidas? o

prédio treme, isso não é musica, ninguém aqui pode crer que

seja. As pisadas que faziam, há vinte anos, os palácios

estremecerem, hoje caminham macias pelos seus corredores.

A estrada e o polegar, um carro pára. Esse ainda não foi

contaminado pelo medo. Rosário? Duas horas na boléia de

poeira e sacolejos, cara tô muito doido, esta é mesmo da

boa, dizem que vai ter muita menina por lá. O rádio da

caminhonete toca uma canção portenha. À mesa do clube

noturno em Madri, caderno e caneta. Nas palmas das

pessoas que acompanham a música ambiente, ouço

aplausos. Minas pacas! muita mulher, cara, e todas facinhas!

Obrigado, bom resto de viagem. De nada, mas se cuidem.

Estamos quase nos anos setenta e na província de Buenos

Aires, se cuidem! Um prêmio para jornalistas, uma platéia

azul em minha mente. Onde você estava em 1968? O

motorista sem medo; a comunidade, Rachel. Palmas no

clube. Aplausos. Obrigado, obrigado.

Uma geração paira no nevoeiro inútil. A possibilidade

De mudar a sociedade não resta sequer como possibilidade.

Não se derruba o pode vigente sem derrubar antes o poder

Page 30: LISBOA AGOSTO DE 1988

vigente

Dentro de nós. Vaidade das vaidades. Como viajar nesse trem

Sem pensar em descer quando pare nas estações

em que se vendem doces artificiais nas cantinas?

Estávamos no pub – clube, boate ou sabe Deus – há

cerca de meia hora, bebendo refrigerantes potencializados

pelo haxixe. Bernardo súbito concentra as atenções. Minha

carteira! Alguém roubou minha carteira! Ato único, lembrei

de Michel. Onde estava? Mario conferiu discretamente o

conteúdo de seus bolsos. Uma sirene então disparou. Pensei

na polícia e no haxixe comigo, até discernir na sirene um

medo íntimo. Jamais saberei com certeza. O inquietante

barulho insiste, contínuo, não pára, aumenta. O porteiro

pede para que a gente saia, em idioma de súplica entendido

pelos gestos.

Quando estavam nas escadas a ponto de sair, já

claustófobos daquele lugar, esbarram em uma tranca de

bronze. Que loucura é essa afinal? Com o medo que em atos

bruscos se confunde com coragem, Bernardo tornou a subir

os degraus, de dois em dois, Tenho de sair daqui, e lá

embaixo ouvimos sua voz, desesperadamente enérgica,

levando o dedo de alguém a algum botão que atuou no

circuito. Vamos!

O frio lá fora se misturou ao relaxamento do haxixe. Eu

era adventício, todo homem é forasteiro, uma sombra em vão

se afana. Eu preferia estar descansando em frente a uma

televisão, ver um vídeo, ler um livro, e ouvir música, e

discutir filosofia em alguma culta cama continental, depois

de amar e dormir – dormir sem me preocupar com a refeição

seguinte –, atrás de um jornal em preto e branco. A

Page 31: LISBOA AGOSTO DE 1988

madrugada madrilena distribuía luzes e sombras pela

amplidão de suas iluminadas avenidas e nevoentas ruelas

sempre dando em alguma praça, entrada de metrô ou outra

avenida iluminada. As lâmpadas dos postes transpassam a

bruma, entranham no asfalto nossas encompridadas

sombras. Eu preferia sim a normalidade, a prosperidade, o

conforto; e quanto mais os preferia, os abominava mais.

Michel, antes da confusão e de seu sumiço, fará

confissões. Falará de algo com que sua mente um dia se

ocupou mas ficou no tempo. Agora é um empresário. Agora

tem de sustentar uma mulher caprichosa. Sente-se bem ao

falar com um estranho que não mais verá. O brasileiro terá

esse papel na maldita sensação de culpa. E todavia não

fizera nada demais, ora essa. Apenas tinha uma linda casa

em Londres; era sócio de uma próspera loja na Hawthorn

Avenue. Mas optara viver na Espanha pois se relacionava

com a resistência basca em nome da memória de um avô,

um basco francês.

Guardei aquilo. Que significado teria o Maio francês

para os bascos?   Durante nossa conversa, nada tinha contra

Michel e nem mais tarde saberei se deveria ter (em relação à

carteira de Bernardo); mas ele me pareceu dessas pessoas

perfeitas demais, nunca possuidoras de autenticidade

proporcional ao que aparentam. Corretas demais para serem

honestas. Quando portanto me fala de sua simpatia

engajada, duvido. Vacila a simpatia pela casa Euskadi, a casa

de meu pai, nire aitaren etxea, mas mal conheci meu pai, e

qual o poder da simples etnia? Há verdades e mentiras em

todas as casas, em todas as causas, pensava ao sairmos do

clube, ao pegar o ultimo pedaço do hashis para que

fumássemos ali mesmo em Lavapes, apesar da tentação de

Page 32: LISBOA AGOSTO DE 1988

guardá-lo para mais tarde escrever na solidão de meu

quarto.

Procuramos um lugar sem vento. Descemos na entrada

do metrô. Mario desfaz a barra aquecida sobre a moeda na

palma da mão. Dois policiais surgem de nosso descuido.

Olham e se aproximam. Podem mostrar seus documentos?

Um deles se detém em minha credencial. Jornalista, hen? Por

acaso trabalha melhor drogado? A voz se eleva, e ele me

encara, encostado em sua insígnia.

Na aura a que me propunha, eu trabalhava melhor

quando não era eu, despersonalizado; quando minha

consciência fazia parte de um todo que a mim mesmo via

como parte. Quando eu, autor, me afastava dessa função, e

permitia que os fatos (no caso do jornalismo) ou os

personagens (no caso dos livros de bolso) existissem sem

mim, sem noção de bem e mal, sem opinião. Não deveriam

ser o texto acabado, mas passar pelo crivo abstêmio, íntegro

em suas limitações – eu. Nisso o haxixe e a maconha faziam

seu papel. Mas preferiria não fosse assim. Queria ser minhas

próprias transgressões, sem a ajuda de deuses caídos

ocultos na erva.

Que cérebro em mim o faria, ou que coração?

Os guardas ainda nos avaliam com perguntas de praxe.

Devolvem os documentos. Voltam para seu turno.

Bernardo abriu o papel e Mario colocou a mistura, um

trabalho de equipe que supunha usufruto comum, mas não o

iríamos partilhar. Aspirávamos o máximo que não era muito

por ser fortíssimo o tabaco negro espanhol. Quando me

restou a acidez de tragar o cartão, atirei-o ao chão. Bernardo

disse que tinha de ir, deixou seu endereço no Porto, em Gaia,

Page 33: LISBOA AGOSTO DE 1988

É só pegar o autocarro 57, e se despediu.

Aconteceram em domingos, quando Filomena acordava

para preparar o almoço antes do culto, as chegadas tanto de

um como de outro. Andrei apareceu no momento em que ela

saía. Bernardo nunca teve antes essa confiança de deixar um

amigo assim à vontade com ela. Com Blandine a situação foi

de outro tipo, era um fim de caminho e agora pouco

importava à portuguesa o que era ou não permitido.

Nada de fato importava, além da paz daquela manhã,

dos novos caminhos para uma e para outra. 

Blandine nem percebera, diz Filomena, que seu jeito de

ficar em pé, com as mãos na cintura e as pernas afastadas, é

justinho como eu fico, estás a ver?, sabia porque até

ensaiava na frente do espelho. Com o rapaz, com Andrei, ela

não se comportou assim, antes fez um papel de mãe ou irmã

a que jamais se prestara.

Ficamos eu e Mario. O vento frio o sentíamos outro. E

nós mesmos, outros também – nós sob outro prisma. O que

pode enlevar, sim seu guarda, é incapaz de modificar. O tal

espelho que amplia é ainda só um espelho. O sábio será

sempre sábio e o tolo cada vez mais. Dependerei de um

reflexo que me leve, ampliado? Falo a respeito com Mario

quando passa uma jovenzinha roliça e castanha, pequenina,

dix-neuf ans, olhos verdes.

Page 34: LISBOA AGOSTO DE 1988

No lábios sem batom a macular, a pele se

crispava levemente sobre o rosa escuro. Os cabelos caiam

limpos pelo rosto. Um blusão surrado se abria o suficiente

para a visão de um dos seios, bico revelado pela

transparência da camiseta – castanha, já disse, como o

blusão e ela mesma. A cintura, era como Deus ali houvesse

se demorado o tempo exato de um critério estético perfeito.

Sua expressão era inteligente; as frases curtas, divertidas;

supergata charmosa. Não posso pretender que Mario ainda

se interesse por nossos espelhos. Chama-se Isabelle.

Quando entrou no quarto de Mario, teve um

estremecimento, não saberia dizer se de susto ou prazer.

Nunca passou pela cabeça dele, nunca mesmo, colocar uma

mulher em seu apartamento, brincar de casinha. E era uma

mulher ou apenas uma menina de dezenove anos? alguém

para partilhar mais que uma ou duas noites em Madri? Talvez

o fato de ser francesa. Talvez simplesmente não ser catalã,

tampouco espanhola. Non so. As fronteiras estão abertas na

Europa dos doze, fronteiras quaisquer. Ele sequer ligava para

política. Ela ficou observando, sentiu desejo, carinho,

segurou o rosto dele – com mãos de tão suaves quase frágeis

como rosas, mais brancas que seu passado contra todas as

aparências virginal – e o beijou.

O abraço da noite causava bem estar digno de menção.

Todas as mágoas se haviam dissipado. Geométricas figuras

com luz própria eram a cidade.  Do amarelo que cobria os

globos das lâmpadas se desprende a névoa úmida que nos

Page 35: LISBOA AGOSTO DE 1988

envolve. Produz em Isabelle prenúncios de amor. Os prédios

tremem na íris, resumidos nas áreas arredondadas, profecias

de desejo e santificação do desejo. Je suis amoureux. Era

uma menina feliz enfim naquela noite. Um bando de rapazes

passou cantarolando, bêbados. Aqui e ali carros respingavam

brilhos no fim visível da avenida. Um táxi pára para dois

casais que entram e batem a porta. Parte, cantando também.

Dei a posta-restante para contato em Lisboa e Mario

seu endereço em Valcarca, no Passeig de la Bonanova, perto

do Centro Médico. Trocamos também as direções de onde

estávamos em Madri e ficaríamos durante o fim de semana.

Quanto a Mario e Isabelle, pensam numa pousada para

aquele resto de madrugada.

Passos no corredor no fundo do qual brilha o néon,

pisca uma luz no fim do túnel. A porta. Aberta. Beau. Parece

aconchegante, ela diz. Era como se a treva da pura noite

invadisse o ambiente de lâmpadas, envolvendo-os,

envolvendo-os, aonde chegaria a paz daquela obscuridade? A

cidade falava ao redor, num ruído de carro, em vozes de

vizinhos, no ar condicionado, naquela música distante, mas

não nos passos, os passos ressoavam de uma nova

dimanação, até quando os poderiam levar?

A voz de Isabelle. Comove o doce acento de saboroso

gerúndio. Junto ao sorriso, disse um smiling esmerilhado,

cantando o g omitido nos Estados Unidos, e um tocante

Page 36: LISBOA AGOSTO DE 1988

talking ao comentar o filme de Kaufman. Ouvindo-a, você

poderia ver Juliete Binoche como Teresa na "Insustentável

Leveza" que evocávamos e se deleitar com a maneira como

dizia seu Tomás melodioso, assim, abrindo o a e derramando

o Sena dentro dele.

Paris, dezembro de 2008. Nunca ninguém fez isso para

ela, fazer o jantar, servir. E ali estavam. Descanse, vou pegar

também alguma coisa para a gente beber. Foi assim. Diante

dos olhos de Beatrice, ele se transfigurou, deixou de ser

aquele maior abandonado, aquele homem que provocava o

instinto maternal sem porém deixar de mostrar o quanto era

patético. Noite fria. Ele trouxe a garrafa, pôs sobre a mesa,

encheu os copos. Vai chover logo. A proximidade dos sessenta

anos é uma época diáfana em que não há mais tempo de

homiziar. O que sentia, ao permear assim os pensamentos

dela, nos momentos que precederam o leito, o que realmente

sentia, de acordo com os prismas pelos quais a via e as

perspectivas logo naturais que assim tarde engraçavam as

circunstâncias, era uma paz próxima do cansaço e não por

isso menos merecedora desse nome de paz, e quem sabe

agora ele se permita, até pelo mesmo cansaço, que também

se faz diligência quando é preciso trabalhar, quando se

percebe que alguém depende de nós. Ninguém disse

deitemos, e todavia deitaram. Não havia mais anfitriã nem

hóspede, um necessitado e uma mulher independente. Não

havia palavras. Ele seria naturalmente capaz, podia tocar o

negócio, e ela não poderia mesmo fazê-lo sozinha por mais

muito tempo. Com que então. Isabelle saiu de casa para

buscá-lo, em ultima análise. Beatrice não precisou de remédio

Page 37: LISBOA AGOSTO DE 1988

para dormir naquela noite.

Os sons de criança abandonada e o adeus do amigo são

guardados.

Um olhar ao redor. A caderneta. Um bar que se abre,

começam a servir. Buenos dias. O texto aberto em uma mesa

de canto. Café con leche y dos tortas. Terá sido tudo em vão

para os que tinham vinte anos há vinte anos?

Porque não mudamos,

Porque lutamos por mudança e não mudamos,

A utopia envelheceu sob o peso de nossa idade.

O circulador de ar no teto hipnotiza. Quando um

membro da chamada classe operária inveja as posses do

bem-nascido sem imitar as suas virtudes, qual deles faz

parte do Sistema? No decurso da infância, uma babá

adorada, uma cozinheira no papel de segunda avó. Poderia

ter chegado a algum lugar sem tanta dor inútil e idolatrias

várias. A única revolução é aquela que não devora o

revolucionário; antes de mudar o mundo, muda os

mudadores.

Talvez tenha por segundos adormecido e pairado junto

a sombras fantasmais da velhice, onde seria respeitado – não

famoso, reconhecido – e querido pelas pessoas ao redor,

fazendo o bem. Um sonho com Rachel. No sonho, ela também

é uma senhora venerável. Fala-se de arte e engajamento. Há

concordância. A arte comprometida destrói a arte e a

transformação social, e, além disso – nesse ponto, não há

Page 38: LISBOA AGOSTO DE 1988

mais memória do sonho.

As conversas no bar entrecruzadas atravessam o

cérebro em fragmentos latejantes. Outras lembranças. O

corpo profere fraqueza. Os bolos não satisfazem a fome

animal. Na mesa em frente, um velho de barbas brancas,

materialização de futuro talvez, perde-se no passado diante

de um copo de vinho pela metade, de há muito intocado. Ali

não havia estruturas exteriores passíveis de redenção.

Que foi feito daquela coisa epidérmica,

onírica? Das profecias nas paredes?

Onde está a sociedade revolucionada que se pensou?

Em Paris jamais foi vista; em Nanterre, não estava lá. Droga

de caneta.

O artigo em forma de poema, está a ponto de ser

rasgado como o primeiro, em prosa, escrito no quarto do

hotel. Perfeccionismo: um mundo, no final das contas. O das

soluções literárias para problemas comuns.

Entra uma jovem, olhos grandes e zombeteiros, em

nada semelhante a uma mulata da roça de Minas. Blandine

aparece com ela. Um livro poderia ser escrito sobre os

segundos que sucederam a entrada da moça no bar.

Apaziguar a solidão, dirigir-se a ela, não era idéia que

ocorria. Jag vill gärna– Percebeu que era observada. Fala

com o balconista. Sustentou um olhar entre a arrogância e a

sedução. Assim, foi só um instante de Blandine. O flerte e

suas conseqüências estavam preparados para a vida real, o

que normalmente não era prioridade. Mientras- Todavia, o

que pode se esperar desses ficares urbanos, jogos que pouco

Page 39: LISBOA AGOSTO DE 1988

mudaram desde Valmont? Blandine era o campo; e aquela

sina citadina, sem escapes. Caminho de asfalto e calçada, e

prédios tristes duplicados ao longo do meio-fio, de drogados

e de putas, da pesquisa estética, do querer reticente.

Uma alma sangrando de saudade devora a estranha. A

vida é simples, o afeto e a saciedade impedem desvios. É

simples quando os homens são homens. Paris 68, brincadeira

de crianças mimadas. A língua queima com o gosto do café

enquanto o Armagedon se espalha pela terra. De novo essa

visão! Fogo... Onde é isso? Da única batalha necessária, não

se ouvem explosões nem suspiros: dentro de nós o silêncio,

tácito acordo da sensualidade com a emoção, amparado pelo

desejo de conforto e pavor do sofrimento. Era preciso minar

toda a aparência de verdade para chegar à verdade;

confundir a concupiscência e refazer a canção, como Billie

Holiday fazia. A mesma canção ampliada ao mínimo

essencial.

A jovem, de aparência estrangeira, de costas junto do

balcão. Esquecimento. Sílfide de cabelos luminosos

escorrendo pela camisa azul-claro. Jeans geminando

perfeições. No bar ergo a cabeça, displicente. Talvez ela

esteja olhando. Meu texto diante de mim. Com isso deveria

manter a esperança, eu, que não tinha vinte anos há vinte

anos. Hoje, uma nova década nos recebe virando o rosto para

quem insiste em sonhar.

Porque os que buscavam o novo ficaram velhos

Porque é velho o novo que, soberbo, chegou.

O fundo de café com leite exala devoções fumacentas.

Você, aí no canto do balcão, que gestos são esses cuja fonte

Page 40: LISBOA AGOSTO DE 1988

não está em você mesma? É que ela se vira perfeita, tivera

materiais nobres e instrumentos de música, janelas divinas.

Boa bebida, boas refeições. E um trabalho. E uma casa. Se

viesse o fecho de um caso amoroso efêmero na manhã

nascida, nada de maior profundidade, como um rio raso de

correnteza rápida, por que não estaria perfeitamente feliz no

dia de seu conflito? 

Meu campo de visão a captou. Ah, esboça um sorriso.

Claudia liga a tv. Impossível dormir. Não suporta mais,

seu corpo não suporta mais, nem ela própria ser também seu

corpo. As lutadoras entram no rinque. Cada uma em seu

canto, sabem seu papel. São só duas TVs ligadas naquela

estação em toda Pádua. Primeiro round. Agora a de vermelho

vai derrubar a de azul e cair sobre ela. Derruba e cai. Desde

pequena adora luta-livre de mulheres. Amo il wrestle

femminile. Agora a de azul vai se livrar e levará a outra pelos

cabelos até o córner. Baterá com a cabeça dela e a de

vermelho irá cair. É o que acontece. Tudo muito bem treinado.

Há realismo de luta, não violência. Uma coreografia. Há

regras que na vida não, por isso ela adora.

Realmente ele não é feio. Pero sus ojos. Tristes demais.

E passou da idade. Ela hesita um segundo e, quando de novo

a procura,  não estava mais lá. Sua ausência deixa o escritor

com a caneta na mão, reforçando a palavra “chão”. Percebe a

poeira sobre a mesa. Escuta os pássaros matinais em ramos à

janela, por trás de suas palavras, como um novo nível de

Page 41: LISBOA AGOSTO DE 1988

audição a se destacar no burburinho externo das idéias

escritas, e agora do sentimento daquela súbita ausência que

há tão pouco fora um presença ainda mais súbita. Oleana,

chica! A voz está num mesmo nível do corvo junto à outra

janela, menor, onde a filha do dono do bar chora a partida do

namorado.

O prazo da entrega do artigo. Está se esgotando. Lê e

relê. Lembra coisas que restam. Lembra. O que resta é

desprezível. Formas indefinidas na escuridão

demasiada. Péssimo. Como estou escrevendo mal!... Até isso

perdi. Um artigo banal, indigno de um futuro promissor. Mas é

talvez que aí exista um fato mais que jornalístico, mais que

literário, que disciplina, que vocação, apesar de mim. Trata do

Maio mas é da minha morte que trata na verdade. De minha

morte miserável. Aquela altura que diferença faria se a fome,

o frio, ou eu mesmo a provocasse?

Mario e Isabelle brincam, ela está  vendada, différent,

ele de olhos bem abertos abre as mãos em toques largos,

délicieux, após ameaças que só envolveram a cabeça, mais

uma, a penetração é funda. Dilettate.

Bernardo pegara o trem para Portugal. Flores na encosta

à janela. Diante dele o lucro imenso. Volta duas vezes ao

vagão-restaurante. Caralho, é pouco ainda, os números à

frente da cerveja. Ê pá mais um salgado!

Michel sabe Deus onde anda é o que faz.

Quanto ao outro rapaz, caminhava, a estrada no crânio,

caminhava, o tempo passava por ele.

Amanhecia.

Blandine e o lago aparecem no bar. Pelo mesmo

Page 42: LISBOA AGOSTO DE 1988

caminho, Kleber e Donda Maria, sua mãe. Não eram muito

chegados a cartas, mesmo assim enviaram um postal e o

bilhetinho carinhoso. Oi Andrei, como tem passado? Por onde

anda que só agora mandou notícias? Eu conquistara o amor

de todos e ela esperava em Deus. Mas da filha não falava. A

porta da casa estaria sempre aberta, mas Blandine não estava

mais lá.

Donda Maria era desquitada de um francês, Blandine e

Kleber os frutos mulatos, grandes garfo e coração, integrados

nos mistérios da roça. Devolvi ao bolso o envelope que

escapara com o bloco. Sempre doente, a mulher nunca era

vista prostrada. Acordava às quatro da manhã, tratava dos

animais, tirava leite, moia café, cuidava enfim da parte

doméstica da fazenda do senhor Jean, que morava em

Ribeirão Preto e deixava a lavoura em Minas administrada

pelo filho.

Eu morava à época também em Ribeirão, escrevia para

um jornal local. Quando Blandine surge com o pai, vejo

televisão na sala. Ele está para se casar de novo, com a dona

da pensão. Planos na cozinha. Taquicardia qual revoada de

pulsações próximas à janela em que debruçada ela, Blandine,

espera pelos sonhos que sem dúvida se materializarão.

A lua no céu. O mar. Estou menstruada. Sou ciclos. Posso

ser livre?

Quando ela se move é de um jeito lento e ansioso. O

perfume suave tudo envolveu. Que nome bonito... O pai era

louco por Lizt. Se Kleber tivesse nascido primeiro teria se

chamado Franz. Sorrimos com a franqueza fácil da

perspectiva do amor.

Jantarão fora, me convidam. Eu andava bebendo demais.

As coisas não andam bem para mim, muito estresse no

trabalho. Estou tenso, infeliz. É a cidade grande, justifico. A

Page 43: LISBOA AGOSTO DE 1988

tensão do fechamento diário. Um tempo na roça? Você não

gostaria de vir conosco? No dia seguinte o senhor Jean ia

levar Blandine para Piumhi. Pode trabalhar nos cafezais. Será

uma ótima terapia.

Um dia, iria querer falar com ela. Era tão diferente das

outras! Sente aqui do meu lado no sofá, fale de seus anseios.

Calava porque nunca soube puxar conversa com estranhos. E

todavia. Sim, familiar. Como um sonho que se repete. O

letreiro ainda estala. Quero dizer o cartaz. Por sobre o

casario. É como a TV no canto da sala, como se a janela, o que

se via, fosse uma sala. Leonard Cohen. Posso ouvir. Sua voz

reencontrada. Suspirei.

Ela costumava levar a comida quando eu e Kleber

trabalhávamos no milho antes da panha. Então ele, o irmão,

pegou o trator. Talvez não goste do cara bonito e rico da

cidade (jovem também, eu diria), o tal Claudius. E demorou o

suficiente. O café esfria na caneca. Deitados na relva, ao lado

da casa desabitada, conversávamos ela e eu sob o sol frio e

baixo do começo de junho. Pergunto sobre seu namorado. Diz

que lhe dá segurança. Sente que o traiu comigo? É que no

interior – O interior está mudando. Gostei de você à primeira

vista, Andrei. Talvez estivesse me amando de verdade.  Não

reprimiria o desejo, a não ser que eu não a quisesse.

Eu a queria. Não desejá-la seria não estar ali, o lago ao

lado, os patos, a brisa encrespando as águas em sonhadora

sonata. Não desejá-la seria não existir, meu corpo não

formigar na grama, a vegetação não receber a tarde de

névoa. Contornos. A vida é transitória. Não haveria o cheiro

da terra e a calma do céu, não deseja-la seria ela não estar

ali, a inocência em seus olhos sagazes infiltrada nos traços

que a traduzem, refletindo o lago e a relva, as ressonâncias,

Page 44: LISBOA AGOSTO DE 1988

os aromas, a aragem e eu mesmo.

Juntos há uma semana. Kleber feliz. Donda Maria

também. Feitos um para o outro.  Felizes para sempre na casa

que o Sr. Jean prometera como presente de casamento.

Andrei nada sabe, nada mesmo. Se soubesse, talvez não

pensasse em partir. Mas Blandine não contou, não a princípio.

Se contasse, ficaria para sempre uma dúvida. Afinal não ficou.

Uma e outra coisa. E a nova vida, o casamento, ia

ficando para mais tarde. Planos são construídos de uma

substância indefinida de prazer, eles contêm a imaginação

não maculada pela realidade. Mesmo quando se encontra um

tipo de paraíso, as vezes é como se faltasse algo. Não bastam

um ao outro? Sempre perfectíveis? A consumação se esquiva.

Blandine pensa. É que você se sente dividido porque gosta da

roça mas não a ponto de esquecer as facilidades e prazeres

urbanos. Ou talvez seja ela quem queira viver longe dali,

daquele ambiente enfadonhamente familiar.

Mas quando chegavam a considerar a vida em comum,

eram de fato felizes. 1983. Bonito de ver.

Mais tarde, a mesma impressão continua a ser a dos

nossos amigos no Rio, no verão de 86. Terá de ser pago o

preço da juventude (nem tanto quanto a mim). Dias de desejo

e ciúme. O cheiro da terra ainda fará parte, por muito tempo

terá a ver. O café.

Se alguém pergunta. Por que a separação? Por que

alguém não impediu o rompimento? Não há uma explicação.

Equinócios e solstícios. As mais belas frases musicais enchem

o ar e silenciam. O navio da esquadra resistiria como nau

solitária no imenso mar onde tanto se sofre? Ninguém explica.

Agora, tudo parece perfeito. A luz do amanhecer, reflexos de

ouro. Deita-se a seu lado. Nuances sutis de um prazer

Page 45: LISBOA AGOSTO DE 1988

santificado pela estética.

Mas pensar além do rosto, do corpo, da voz, isso

aterroriza. A diferença de idade faz dele um homem maduro

ou quase um velho, um cara cheio de si ou um menino

inseguro. De novo essa voz! entra nos ouvidos com a

importância das coisas subjetivas e todavia vem de uma

estação monótona onde quem se corta só em outra estação

sangrará. A posição do sol em relação à terra.

Não pense além, então. Faço isso e me perco. Adoro uma

santa, enlouqueço uma mulher, mas os defeitos dela me

aborrecem, não pode ser santa, nem mesmo mulher, é só uma

menina mimada, o que houve não foi fruto de uma escolha

mas um passo para a perda da liberdade. Se não me liberto

pelo amor, passo a saber, a partir do amor, o mal de

depender do amor para se libertar.

Deliciava-se com presença dele, e mais ainda com a

ausência, sua presença imaginada, na verdade um novo tipo,

idealizado, de presença. O homem não mais é uma espécie

hostil. Gosta de explorar os ombros dele, sim, de beijar-lhe as

costas, os quadris, as coxas. De beijar sua boca, a barriga, e

chupar. Chegava a entender a si mesma, quando ao lado dele.

Vozes não muito longe se revezam. Apanhadores,

decerto. O sino da igreja dá seis horas, arrasta a memória em

cada badalada. A planta tem fome de vida. Precisará, ao

deixar de ser corpo flutuante, se transformar. Andrei.

Sussurra enquanto entra. A fome em cada memória. Após o

choque de badalo e campânula, o som só sossegará quando o

sino não vibrar mais. O ar e a luz. O estado da alga na busca

aérea de carbono. As recordações se deslocam pela matéria

porosa, sonora.

Ela escuta; ele olha.

Foi um apanhador de café calado, deslocado no canto da

carreta. O que era chamado de “jornalista" com cirúrgico

Page 46: LISBOA AGOSTO DE 1988

sarcasmo. Não entra antes do percurso. A assimilação da

água e dos sais minerais só pode ser feita no solo. Ela chega a

temer a umidade. Tanto prazer! Seria lícito? Não por ser

solteira. Seria lícito, tanto prazer, em qualquer circunstancia?

As vozes. Arrefecem. O sistema absorve o liquido. Os seios

abocanhados, um bebê, amassados, lambidos, como um bebê

não faria. A folha e o efeito do ar. Acima e abaixo. A folha:

verde. O espírito da torre da igreja, o som rasgando o ar até

pairar a décima sinfonia na oitava badalada e pouco a pouco

se dissipar na manhã.

A essência de todas as coisas em nós se reflete. Mas

veio o fim da safra. Quis partir sem um porquê aparente. O

interior está mudando mas não o bastante. As luzes da casa

ainda estão acesas, há pequenas cintilações nos telhados.

Questão de pouco tempo. A queda do muro de Berlim, o fim

de um era. A perestroika varrerá o leste europeu e promoverá

fartura para os povos soviéticos independentes, sem

derramamento de sangue. Mandela liberto, de volta à

harmonia familiar, mais que do apartheid trará o fim do

racismo no mundo.  Pinochet permite um plebiscito sobre sua

permanência no poder, aceitará o não. A transição política

brasileira se consumará graças à pureza dos partidos de

esquerda e à sublime Constituição de 88, está chegando o

primeiro presidente eleito após décadas. Enfim a justiça social

no País. Um jornalista precisa participar de tão singular

momento histórico, é missão. Os tambores devem rufar, as

pessoas têm de segui-los.

Manhã úmida. Mochila fechada.

Estou partindo.

No dia que eu que ia, segundos antes de ir, (pegarei o

ônibus que leva dos cafezais ao centro de Piumhi), ela

aparece à porta do alojamento. Tarde demais caí em mim.

Page 47: LISBOA AGOSTO DE 1988

Como quem não o quer, como que agindo sob o pano de fundo

da segurança que o namorado de BH proporcionava, ela

santificara nosso desejo, revelando uma face definitiva do

amor, a certeza simples de que a vida passa.

O calhambeque da empresa mineira de transportes

buzina ao longe a meus ouvidos fora de mim, buzina para

trazer a morte revestida de resto de vida, de saudade, de

vocação literária. Traz um epílogo, descendo pontual a

sinuosa encosta ladeada de ravinas, buzinando, buzinando.

Por que não sofreu uma avaria? Por que não houve uma greve

de motoristas? Por que o governo não proibiu todo êxodo

rural?

Dedinhos de bebê na sandalinha de pelicato. A luz vinda

da TV. Azul movediço. Em seguida os olhinhos fechados.

Amanhã é domingo. Cascais. A ultima estação. A torre de

Belém silenciosa é submersa na passagem dos vagões. A

treva posterior. Amanhã é que dia? Andrei, meu Deus, o que

você está fazendo aqui? Ele não consegue responder, não

acredita, ela está ali.

Onde?

O olhar molhado de Blandine me acusa cheio de dor e

altivez. Contra a luz seu queixo adquire contorno de seios. A

manhã treme em seus lábios. Em suas olheiras, a noite. Não

poderia ter vindo antes, me deter? Amor eterno pode ser

apenas isso, alguém que supere o amor-próprio e se antecipe

ao erro contra o qual o futuro será implacável. Mas não, não

quis. Preferiu me punir assim, segurando o vestidinho de

Page 48: LISBOA AGOSTO DE 1988

popelina contra o peito. Interdita corpo e coração. Enquanto

vivesse, guardaria aquela lembrança. Jamais iria esquecer

aquele fogo. Enquanto eu vivesse, ela estaria ali.

Desea usted alguna cosa más?

Encaro abobalhado a garçonete que veio não para servir

mas para que eu desocupasse a mesa. Conto mentalmente as

pesetas em meu bolso, representam mais uma xícara de café.

Antes que eu vá para o vale lá embaixo. Blandine anota o

pedido com cara de poucos amigos. Escorre enfim a

ressentida lágrima que retém em minha porta, como o mar

numa pequena onda busca a manhã para salgá-la. Saiu agora

da porta do alojamento e se foi, em silêncio de miragem.

E eu parti.

Agi como um perfeito estúpido, abortei a felicidade.

Jamais reaprenderia a viver sem Blandine, que se ressente

agora da verdadeira vida, o amor, inominável esperança que

contém o significado de cada acontecimento, que dá sentido a

nascimentos e mortes, casamentos e guerras. Blandine: meu

entendimento, uma respiração consciente da qual renunciei e

portanto morri. Sim. Por ter se tornado a minha vida, foi de

fato a minha morte.

O objeto do amor é desapego da vida, o apego a um

ideal. Longe do amor, o sofrimento é cruel e desejável se

comparado à ausência do sofrimento anterior ao amor. Ela o

ama. Te amo, disse. Dormira na casa dele, de Andrei, na

Tijuca. Foi à época da demissão em massa de jornalistas sem

diploma universitário. Ele descobre que ela, Blandine, há dois

anos trabalha na escola de idiomas no Rio, onde funciona o

jornal. Orvalho na noite. A mulher que se tornara reconhece

detalhes daquele corpo mas a ele próprio não conhece mais.

Nem o rapaz, tão mais velho, se recorda da menina do interior

de Minas, onde um homem nasceu com a terra quando

Page 49: LISBOA AGOSTO DE 1988

começou a garoar.

Desperta primeiro e a contempla. Partirá amanhã para a

Europa, convidada pelos pais gratos de um aluno. Por que

deixaria de ir? Se viveriam para se adorarem, que fosse pela

saudade, pela realização de sonhos materiais, interferindo na

vida afetiva pelos motivos condutores, padrões literários e

esquemas cíclicos teóricos.

Porque a maldição do destino é a benção da vontade.

Os ruídos da manhã envolvem a cidade, motores,

buzinas, vozes que sobre outras vozes se sobrelevam. Não há

todavia naquele quarto antigo qualquer vestígio da

necessidade da arte, posteridade, missão, vocação; nem fome

ou frio; nada de anemia. Há dois bons empregos e a

perspectiva de férias no exterior. A mulher amada, uma vez

perdida, reencontrada.

Mas agora partirá. A vida sem ela. Um mal-estar no

peito. Ele me idealizou demais, pobrezinho. Mas enfim há uma

satisfação secular, respeito dos vizinhos, amor das mulheres.

Partirá. Agora é a vez dela. Estão a ponto de se dissolverem

nos ruídos que envolverão a tarde, carregados da lei do

diploma. Não estarei aqui quando ele adormecer de novo. Os

campos do sul de Minas, nossa, aquele dia de nevoeiro na

região alta da Mantiqueira... fomos felizes... Compreendo que

não queira despedida, sei como é.

Uma lágrima à janela. A pomba na praça, desengonçada

e medíocre. Ao redor dela o macho louco. Adorada.

Quando anoiteceu naquele dia, evoquei uma casa,

refeições, um trabalho de jornalista no exterior, crianças ao

redor da casa. Talvez ao longo da existência baste uma chama

Page 50: LISBOA AGOSTO DE 1988

consumada. Estou fora do processo da evolução social.

Marginal, definitivamente. Domínio material e moral, planetas

e satélites. Quisera assim dizer palavra, pensar um tantinho

em mim, romper de vez com o hábito, seguir a pista do desejo

inalterado. Quando fui demitido, já tirara o passaporte, sem

qualquer perspectiva de usá-lo. Pairando entre a mudança

das coisas. Foi numa praça em pleno inverno, ao sol

agradável do inverno, dando razão de ser ao que não tinha.

No banco da praça do bairro Peixoto, lá onde dizem que será

a estação final do metrô, do outro lado do Rio, a realização do

sonho, o enraizamento da vida na esperança, talvez ao longo

de mim pense uma chama.

Deixá-la arder, ou melhor esperar, ou melhor nunca?

Ou riscar o texto, esquecer o projeto, a casinha no

interior, a amada, renunciar a arte, o afeto idealizado, o afeto

natural, recusar a vida.

Foi o que me levou à Europa de Blandine: talvez raptá-la.

Carregadores entram no bar. Às costas, engradados de

bebida revelam a rigidez dos músculos. O homem deve levar

seu jugo em silêncio, talvez assim haja esperança. Gritan, dan

voces. “Moinhos de Vento”, no último volume. Quixote...

Espanha... Europa... Eu sobrevivia, perspectivas sombrias,

dormindo aqui e ali, comendo dia sim dia não, ao relento. Qué

de la noche? Meu manuscrito sem forças, no primeiro

capítulo, segundo parágrafo, sobre a mesa na pensão do

Bairro Alto. Deus dá o dom e não permite usá-lo exceto como

um gigolô? Marrocos. Trago a mochila gasta de África. Nada a

perder. As vezes se torna mais difícil, seleciono clientes.

Eu era jovem ainda, para minha idade. Nasci cedo

demais.

Page 51: LISBOA AGOSTO DE 1988

Freqüento a casa dos pais de alguns deles. Cheguei

mesmo a convencer o Sean a se desintoxicar da heroína.

Passei a ser conhecido nos arredores do Campo Pequeno até

os lados do zoológico e, no outro sentido, até a galeria do

cinema de arte. Transfiguram-se agora, na neblina que tudo

envolve, imagens que não retenho nem esqueço. Meus olhos,

a rosa noturna, a cor da rosa, a noite, o gato e seu

movimento. A guinada afetiva e financeira me motiva a fazer

planos para as laudas em meu quarto.

Fantasmagórica representação da vida, limbo de

fertilidade pouco útil.

Tal é o que escrevo e mesmo penso enquanto a centelha

não age, a que se dá o nome de – não lembro, eu digo

integridade. Muitos outros também usam muito o termo, sem

saber o que dizem, exceto uns poucos que se esqueceram de

querer.

Os planos não duram. Julgamento e condenação sumária

por roubo de clientela. Esfaqueado na boca do metro no

Campo Grande, estava morrendo no hospital São José onde

estacionou o misericordioso taxista. Não querem saber de

nacionalidade ou quaisquer outros detalhes. Bondosos e

eficientes. Uma sorte extra: os chaváus levam o chamón que

incriminaria. Em tudo se esconde a catarse que é um passo

para a felicidade e outro maior, para o destino. Mais tarde

recomeçaria o negócio com a mercadoria de Bernardo. Gosto

de teu jeito de trabalhar, brasileiro, dá requinte à coisa. Sua

mulher, Filomena, me chama de príncipe.

Mas é preciso antes ser um sapo para sobreviver nesse

pântano, e eu andava vulnerável demais para tal grandeza.

É difícil resistir durante vinte anos. Difícil resistir.

Procurei com olhos o reservado. Precisava terminar depressa

Page 52: LISBOA AGOSTO DE 1988

o texto que me manteria comendo, bebendo e indo a um

banheiro decente. Gostariam na redação? Os leitores

gostariam? Gostassem ou não, havia a reserva de espaço.

Será publicado. Ou não? Sempre existe o recurso do calhau.

Não importa. Que o jornalista erre, se macule, se exponha;

mas o literato se guarde à espera do momento.

Sempre haverá maios enquanto houver mundo e,

enquanto houver mundo, haverá ideais. Uns nascidos da

esperança; outros da pura ociosidade.

Quando saio do banheiro, eu a vejo. Banho tomado,

vestida bem simples, nada da morena esfuziante de há pouco.

Junta-se no balcão aos que tomam o café dos atrasados para

os comportados expedientes após as noites em que toda

escuridão é permitida.

Jag förstår inte. De ontem para hoje, pensa ela, alguma

coisa aconteceu. Bien, mientras espero. Adoro homens com

aparência atormentada. São tão impressionáveis.

Houve a noite. Gritos na noite. Transformou um tempo

de Mulher. Acentuou o cheiro de primavera entre as coxas de

abril, quase maio. Ah! dedos, lengua, y todo ahora!. A

semente lançada se origina em movimentos tectônicos. Madri.

O que houve na noite remonta também às mais européias das

montanhas? Língua queimada de café numa distração além da

conta. Não faz sentido. Uma briguinha não pode alterar um

cotidiano perfeito, por tanto tempo desejado. Ela vivia em

Madri, de pesquisas, com um belo estrangeiro, à larga. Não

tenho que me envolver, lembra. Pero. Bien. Mientras. Nem

seria capaz. E que cara de bobo! Mas sim causou em mim

mesma uma forte impressão, no fundo.

Uma associação.

Page 53: LISBOA AGOSTO DE 1988

Blandine anotava antes o pedido, agora se inclina sobre

o balcão. Tão logo ela se apoiou, reluziu. Campos e prados,

elevação bucólica, habitantes harmônicos de montanhas e

pântanos, bandos de pombos escurecendo céus incendiados.

Sob a árvore, o potro relincha. Luzes firmes e redondas na

devotada pedra se refletem. Divisa encrespada. Rompe-se a

região onde constrangimentos impedem o prazer. Sem que

nada pedisse, o atendente a serviu. Ela ali de novo, o futuro

era agora e quem sabe até quando. De perfil. Bien. Olhos

distraídos, de solstício. Sólo diversión. Lagos.

Entretenimiento, no más. Planetas azuis.

Chegará o tempo em que se concretizará o sonho

insensato e a cama será tudo. Os corpos nus são sinceros.

Tudo o que se encontra passa pela perda. Agora ela vai

telefonar. De toalha, falará do futuro com língua precisa; de

tarde, dormirá. Não há surpresa quando na portaria do hotel

comunicar que, bem, fui convidada. Ah. Tudo bem. Já vi esse

filme. Mas me diga.

A realidade se anima no cenário fugaz do agora.

Ela percebe a saia presa sem pressa, lentamente,

faceirice e postura. Mis nuevas bragas. Entre a percepção de

que estava exposta e a supressão da tortura, esteve ele em

vertigem de nylon, renda e poros, em meio ao rumor do bar

em que mais e mais se intrometia a cidade lá fora – motores e

vozes , uma gaita e a onda de despertares simultâneos,

martelos e serras, enquanto numa coxa se alojou de novo o

sol por mais um segundo.

Devolveu-me o seu rosto. Nuvem escura sobre o lado

esquerdo da testa. Chovia ao longo até os ombros, onde o

Page 54: LISBOA AGOSTO DE 1988

secador se demorou um pouco mais. A umidade persiste na

cabeleira restante, persevera à luz do bar em pontinhos

prateados. Olhar de beleza estranha e cor indefinida: fosse

uma frase, não soaria como um convite, mas assim entendi

pela via do desejo. Cruzou-se com o meu e teria sido tudo, se

não discernisse um novo prazer na música que tocava a partir

das pernas, quadris, nádegas, e do colo desnudado pela

camiseta justa. Seios que adquirem primazia. Arfam. Narinas

respondem à respiração que pede repouso, evocam conhecida

tempestade cujos preâmbulos são como donativos para uma

causa justa.

Sair do abrigo. Molhar-me descendo a montanha.

Estivemos juntos por uma fração de segundo e o cheiro de

leite morno ainda era como outros cheiros. Ela de pé junto à

janela, a silhueta desenhada pela luz etérea de um dia

inexistente. Aqui. Delicias de seu corpo. Perdoname!,

exclamei ao chutar a perna da mesa derramando o café de

duas xícaras. Não entendo a ira que ouço e não vejo.

O que vejo: Olha pra mim...

Virou-se e se olhou no espelho atrás da estante de

bebidas. Luzes por todos os lados e duas estranhas. Planetas

azuis, rota de mim, a menina dos olhos dela acena, sorri,

convida, sim convida, e a menina dos meus aceita.

Lycka till. Até que ele tem um sorriso bonito, não se

pode negar.

Mas isso é nada. Direi por que: porque as montanhas do

mar estão próximas e o verde das árvores é sombrio à noite

nesse breve estágio que é tudo. Queria me molhar na

tempestade na tempestade e no lago, habitar o hálito da boca

entreaberta.

Apresso o final do texto.

Em junho, há vinte anos, a imaginação acaba.

Canceladas as promessas, Cohn-Bendit se inscreve na História

Page 55: LISBOA AGOSTO DE 1988

que não mudou.

Então aconteceu. Hora do almoço. O desejo de um

homem que começava a falhar e não podia, não agora. Ele sou

eu, o brasileiro destruidor de pontes. Agora. Se as águas são

cristalinas e há o contorno escuro da pedra submersa, posso

mergulhar e não pensarei mais no caminho. Olhei em volta.

No balcão, no lugar que ela ocupava, eis o gordo

sorridente de voz rouca. Às vezes a mulher precisa tomar a

iniciativa. Sua amiga surge exuberante. Eu tomei, responde,

mas só para ser protegida. Procuro com olhos ansiosos. Nada.

Levantar-me-ei pois e rodearei a cidade. Do bolso, as moedas;

um erro de cálculo. O proprietário faz uma piada racista

relacionando pesetas e cruzados.

Sua filha teria decerto reprovado. Ela ainda chora.

Atiro mais duas moedas no balcão e saio.

Pelas ruas e pelas praças, as marquises e postes não lhe

faziam sombra. Dois homens engravatados. É uma decisão tão

óbvia – Apesar disso, o mais alto não a percebe. O mais baixo

conclui. Os empreendedores precisam de criatividade e

coragem.

Busquei pelas ruas molhadas. Nada. Procurei então um

banco de praça para recostar minha cabeça. Cães sem rastro

deitavam-se em qualquer lugar. Era ainda muito de manhã.

Tons de névoa envolviam a cidade de espectros impenitentes.

O percurso que falta é memória, a paz anônima, a intimidade

retira a onisciência e reduz a sintaxe. Se a poesia é missão,

ou vida, o que apenas tem utilidade será nada mais que

utilitário, não questionará nem duvidará da estranha dádiva:

o estar que se desfaz no ser emudecido. A paz que falta é

solitária. Dei a volta no sentido da pensão embora a soubesse

tão abrigo quanto qualquer daqueles bancos gotejados.

Page 56: LISBOA AGOSTO DE 1988

Ainda distante da paz porém longe também da

acalentada navalha, talvez estivesse chegando ao dia temido

e desejado em que, subindo o rio, hei de ficar face a face com

o outro de mim, e darei de cara com enfim o óbvio

surpreendente. Não sei se desfalecei então diante do

desespero ou renascerei no libertário descanso da última

angústia.

O coração dispara. Ela senta a meu lado no metrô. Um

pouco antes de tê-la assim tão perto, nossos olhares se

haviam cruzado por sobre a aglomeração na estação Tirso de

Molina, rua Magdalena. Êxtase de reencontro, fogo que

aquece apenas se constantemente animado. Grande virtude

controlar um impulso e sujeita-lo. Vai ficar nisso. Olhei ainda.

Nada mais que isso. O teórico serve de freio. Mas as coisas

progrediam e contente eu perdia o controle.

E o rapaz, de barba porque não tinha tempo de fazê-la

todos os dias, tentava não perder na multidão a filha da

manhã, caída do céu. Quem a conhece se maravilha. Logo eu.

Onde agora a presença do Deus encarnado num pôr-do-sol, na

alegria da chuva, nos reflexos do lago, Deus, num tratado em

forma humana santificando o desejo e revelando a definitiva

face de suas olheiras?

Segurando seu vestidinho contra o peito, minha rosa

sarcológica.

O artigo aberto em meu colo, sobre um jornal que estava

no assento. Senhores passageiros. Próxima parada depois

que o conceito virar fato. Onde a barulhenta revolução falhou,

triunfa sutil o verme tecnológico; onde os coquetéis molotov

ontem, hoje a bárbara violência e a bárbara manipulação da

violência. Extra, Extra! Debateremos. Debateremos? Pela

Page 57: LISBOA AGOSTO DE 1988

ordem. Liberdade demais perde a liberdade e onde não há

liberdade tudo se torna liberdade. Por que no te callas?

O trem rangeu com um soco que inclinou os passageiros.

Seu braço pressionou o meu com resultados delicados. A

taquicardia se prolonga e assim desamparado percebo que lê

o texto sem cerimônia com os olhos que lavavam meu

cansaço.

Com rasgo de extroversão só possível a um tímido,

pergunto. Ela gostava de ler? Ajeita-se ainda calada para

levantar – ¡Qué idiota! – e então diz A poesia é a experiência

limítrofe entre linguagem e conhecimento, a experiência

individual das gerações e a experiência coletiva indivíduos.

Ahn?

No calor de sua voz, o trem parou. A voz do vagão canta

o nome da estação. As portas se abrem. Também vai descer

aqui? Apenas a segui. Que caminho? Janelas ainda iluminadas,

a luz tem um quê de terra, de lar.

Ainda a meu lado, um pouco mais à frente. As paredes

pichadas, o casario cinzento. A cidade nervosa desapareceu.

Ela precisa entregar um trabalho, uma pesquisa, na

biblioteca. Vi uma biblioteca realmente, de madrugada.

Parece. Não faz diferença.

Ruas secundárias ludibriam a onipresença do metrô

madrileno.

Madri exala uma agitação indescritível quando

caminhamos, porém não acredito que ela o sentisse, era como

se todo aquele açodamento fizesse parte de uma vida

irrevogável que ela adotara, ou a adotara, seja como for é

momento especial uma bela mulher de belo corpo passar em

meio à multidão, os homens virando o pescoço em torno dela,

e se não estou enganado um ou outro se aproveitara do vagão

Page 58: LISBOA AGOSTO DE 1988

nem assim tão cheio para acossá-la, embora seus olhos não

denotassem qualquer fato inesperado ou desagradável mas

sim parte de sua vida, da vida que subitamente tomei pelo

braço, e isso sim pareceu surpreendê-la, mas foi só por

alguns segundos, por pouco mais de um minuto talvez.

Poderíamos almoçar juntos, que tal? Havíamos descido

na Gran Via. Quanta gente. Puerta de Alcalá. Agora Menéndez

Pelayo, acho. Chegamos. Calle 12 del octubre. A casa dela?

Não respondeu. Disse apenas que precisava mudar de roupa.

E você, descansar um pouco. Sugeri que ela também. Está

feito. Uma fumaça calma envolve a atmosfera arredondada.

Descansarei de tarde. Enquanto falava, girou a chave. Uma

sala agradável, outra presença dela, fora dela. Cheiro de

apartamento, o cheiro dela. Aqui é lugar de renascimento.

Pássaros no galho que quase alcança a janela, sons que

ela emite. Se preciso descansar, estou no lugar certo. Nada

de recuos. Quando saísse, eu teria de novo a vida simples,

essa em que não há expectativa imediata, (alguém há de

esperar que um dia eu conte minha vida?), na qual tudo se

renova. Preciso.

Não tenho desejos, é tudo muito repentino, como o jeito

de inverno na primavera. Fui arrebatado através de uma

pintura antiga, aquele interior revelado a meu presente

absoluto. Ao lado da poltrona, contando histórias obscuras,

uma pilha de jornais, jornais velhos

– Portugal e Espanha integrados na CEE deverão – A

menina está desaparecida desde –

Passos sedutores em torno de mim. Prazer. O meu é

Andrei.

Nascera em Linkoping, apenas nascera; foi criada em

Madrid. Solto o xendi, os cabelos como boas novas se

espalham. Seu pai é representante de uma grande empresa

espanhola em Londres, ela passou lá a maioria de suas férias

Page 59: LISBOA AGOSTO DE 1988

escolares, a outra parte na Suécia. Não estou satisfeito, não

posso ser feliz, preciso desse impulso. Oleana continua

contando. Seus pais um dia foram de vez, ela ficou. Tem

decerto alguma coisa de inglesa. Perante ela um homem

estranho, e será isso um eufemismo: um marginal, aberração,

ruptura. Amor e ódio minguam numa mesma coisa dentro

dela, olha sem ver a janela e algo daquela região da cidade, e

um pouco de céu. Eu podia sentir o cheiro de seu xampu, a

pele vibrante, especiarias no hálito.

O ar se renova, Madri é outra. Dedos das mãos e dos pés

(unhas vermelhas nas sandálias azuis), tudo se une a fim de

formar um novo reino. A Suécia sempre me fascinou, a idéia

do bem-estar social. Um suspiro. Lá come-se bem, mora-se

bem, há segurança social, não há miséria. Mas quando a

miséria aparece, num viciado terminal, numa tragédia

familiar, num imigrante, não se sabe lidar com a tragédia,

mesmo as pequenas misérias cotidianas, ou a vaga e imensa

dor universal. É a terra de Bergman, onde se joga xadrez com

a morte, e quem vencerá? Há o tédio. O que há diante do

postal de Kleber, no delírio, nos traços que desenham uma

inesperada constelação?

Ela deixou amigas lá, mas não partilha o motivo delas,

que usam a Espanha apenas para férias, aventura. Fiquei pelo

desejo de contraste. Sinto-me realmente espanhola, penso

como uma espanhola, acredito. Ficou. Culto à aventura sim

mas também à paixão. Circunscreveu o sexo à sua experiência

sexual. Curvas confidenciais, inquietas. Exércitos perfilados.

Ah meu Deus. Cabelos de navalha em largas mechas libertas

respondem aos movimentos. Pelo calor humano, por isso

estava ali. Pela solidariedade, enfatizou. Pelos valores que o

conforto sufoca, na península escandinava ou no Reino Unido.

Sua voz cintila.

Não há homem ao longo do rio Tamisa que sequer pareça

Page 60: LISBOA AGOSTO DE 1988

comigo. O sol da meia noite jamais iluminará alguém como

eu.

Em certo momento de nossa vinda de Luanda, quando da

estada em Paris e Roma, Não tem jeito, eu digo, não podemos

mais viver assim. E como os olhos de Nastácia estão

distantes, concluo que não dá mesmo, mas não sei que

atitude tomar. Tenho esses escritos inéditos todos mas

nenhum dinheiro no bolso e portanto estou preso. Uma

brasileira com quem flertei uns dias na ausência de Nastácia

uma vez foi ao quarto e, olhando originais bagunçados pelo

chão, apontando-os disse que ali havia uma fortuna, Continue

escrevendo meu querido, um dia alguém te descobre; e eu

não sabia se zombava e descobrir no caso significava que

alguém iria puxar o lençol de meu corpo no velório. Ora,

Andrei Morgado, que ninguém espera encontrar nas estantes

de bibliotecas ou livrarias, ele acaba de chegar como um rei

incógnito na pensão do Bairro Alto, salve, salve!, onde

datilografará mais algumas páginas para a posteridade, o que

naturalmente em nada muda nada, por devotada que sua

obra seja e influente sua mecenas – eis a vida miserável de

um milionário dos manuscritos e páginas datilografadas,

confeccionadas ali, no ponto além de mim que os olhos

distantes de Nastácia vêem enquanto insisto que não dá etc.

Ok, concorda ela dizendo porém que me ama e eu

pergunto Ainda assim conseguiremos? e Sim, ela diz,

conseguiremos. Bom, então está certo. E continuamos assim

pelos hotéis caros, por seus amantes a cada cidade, ela gasta

tanto em cada uma delas, penso que com o que gasta eu

podia comer uma semana se estivesse sozinho. Aí um dia ela

Page 61: LISBOA AGOSTO DE 1988

diz que está indo embora por um tempo e sorri para mim e

por mais que mostre ânimo e coragem e alegria noto que está

cansada dessa vida. Uma vez eu desabafara medos e desejos,

e ela sussurrou Ah se a gente não estivesse num vagão

cheio!, o que me deixou excitado, mas mulher é assim, diz

hoje e amanhã desdiz.

Não sou assim, escreve o que digo e escreve que há uma

fortuna aqui em papéis bagunçados. – Há uma fortuna em

papéis bagunçados – Pode até ser mas em geral não é assim,

dizem por dizer, dizem e esquecem, não valeu, sabe-se lá.

Imagine que o rapaz (vamos ter a delicadeza de chamá-lo

assim) já entrou na faixa dos "enta", não dá mais pra

simplesmente deixar o tempo passando, por isso eu

perguntava a todo mundo se conhecia um editor, um agente

literário, um dono de gráfica, a amante do dono,

peloamordedeus, porque as casas, as ruas, tudo está

passando depressa demais demais demais – o casal à frente

também vai saltar – demais.

O amor é lindo, diz Nastácia, quando se pode dizer “Eu

te amo” em qualquer lugar, bem alto. Demais. Ela me

perguntou ainda, ao se despedir, abrindo a bolsinha, se eu

tinha algum dinheiro. Eu? Foi quando um cretino galante,

Gostosa!, disse ele, mas acabei rindo já que não dava mais

pra ter qualquer reação, pois ela, já com a bolsa aberta, me

contava o caso, acontecido naquela estação. E eu disse que

sim, que tinha dinheiro, e tinha mesmo, a continha, moedas

sobre notas, para a tal semana de refeições. Amanhã, dizem,

é outro dia.

Vou acreditar.

Refletido em seus olhos, eu a vejo. Oleana. Decidiu ficar.

Page 62: LISBOA AGOSTO DE 1988

Está sozinha, seus pais foram para a Inglaterra e mantém

residência na Suécia. Chega na praia. A seu redor homens

enlouquecidos. Um biquíni sumário a partir das marcas na sua

roupa. Esbocei um sorriso que ela devolveu como se lesse

meus pensamentos. Não é bom que a gente se prenda a

lugares, eu digo. Ou a pessoas, ela completa. Mas não era

justamente a filosofia de suas amigas, com que você

discorda? Se o que te preocupa é o futuro de nosso

relacionamento, responde, não acredita no poeta brasileiro? o

amor é infinito enquanto dura. Desconversei. Quem ali falara

em amor?

Olhe o apartamento, se parece comigo?

Não, não se parecia, na verdade era o oposto dela.

Pois bem, se quando o montei tivesse comprado coisas

de que realmente gostasse, decorado de meu jeito, me

apegaria, sofreria ao perde-lo. E o que nesta vida estamos

seguros de não perder?

Entendo.

Por isso deixei o apartamento do jeito que o encontrei.

Oleana. Em que momento mesmo me disse esse seu lindo

nome?

Uma estante divide as salas, a de estar se divisa por

entre um e outro livro pendente. A janela, de onde a vejo, dá

apenas para outras janelas. Uma pia embutida no armário da

cozinha – no armário que é toda a cozinha. Quando junto à

torneira, onde me servi, observei o sofá branco, gasto, em

algumas costuras roto, desfiando. Cabelos de Oleana. Que

confiança!, e gratuita, bebe água no copo em uso. Altiva e

bela. Passos.

Se aproxima e se afasta. De pau duro, pobrecito, é até

covardia.

Bela e estranha. Dá até um pouco de medo. Estou

Page 63: LISBOA AGOSTO DE 1988

pronto? Não será a vocação literária prova irrefutável de que

não? Mulher perfumada, homem cansado, não mais que o

acaso. A sombra de minha mão se define contra o mármore ao

pousar o copo. Ela o pega de novo e bebe até o final. Ao lado

do sofá, duas poltronas. No centro, sobre a mesinha de

mogno, o telefone e um bloquinho de anotações. Piso a nave

viking contra o sol. Luz quente no tapete. Uau. Olhara o

relógio. Desculpe. Distraíra-se na conversa e nem me

convidara para sentar. Fique à vontade. Não demoraria. Abre

a porta defronte da estante, entra.

O sofá envolvido num cheiro queixoso de eternidade.

Não me permito, letárgico, ator que esquece a fala. O que

dizer quando ela voltasse? Qual o gesto adequado? Como se

tudo não passasse mesmo de uma encenação.

Madri, 1988, segunda quinzena de abril.

Um apartamento próximo da estação do metro. Um

artigo para uma revista alternativa espanhola que sai em

portugues em Lisboa e no Porto (pensam no mercado

brasileiro também). Uma sueca de nome Oleana, criada na

Espanha e com bastante vivência inglesa, no quarto de seu

apartamento em Madri.

No sofá, fecho os olhos, mas não é ela quem chega e sim

um homem, um senhor de aparência honrada. Você se

aventurou, ele diz. Então por que não tem a mesma

determinação e refaz a vida em Lisboa ou consegue o dinheiro

da volta? Mas é isso mesmo, respondo, ouvira dizer que ele

era acessível e influente e que ajudava imigrantes quanto a

trabalho. Só em ocasiões especiais, em casos especiais. Que

não é o seu. No cheiro e sons de Oleana a realidade se anima

pelo cenário fugaz, agora, se me dá licença, tenho uma

reunião. Hoje eu diria Dane-se, vá para sua reunião, vá para o

Page 64: LISBOA AGOSTO DE 1988

inferno, mas naquele momento a fome e o cansaço disseram E

quanto ao meio editorial? A publicação de um livro em baixa

tiragem não seria viável? Seria decerto um começo mas para

ser um intermediário entre mim e os editores, antes de gostar

de mim como escritor, precisaria gostar como pessoa.

– E não gosto.

Passaria a gostar em circunstâncias especiais? Olhos

arregalados, seu olhar fala.

Abro os meus olhos. Sacudo a cabeça, expulsando o sono

e o homem. Havia uma mulher do outro lado da parede, e ela

me queria. Ou, se não, era possível. Apesar de tudo, de andar

pelas ruas e dormir nas praças e vez em quando pernoitar em

espeluncas, tinha meu charme, já até me acharam bonito.

Então. Estalidos de pano. Um estado fluido segundo o efeito

da imaginação rígida, rígida aparição, e eu a abraço por entre

os ruídos.

Lisboa, outubro de 1988. Quando Blandine voltava.

Brasil e Europa emaranhados na memória. E a memória na

respiração. Trabalho, projetos. A realidade que o significado

de tudo a toda hora transforma, nada fazemos senão, com

antecedência quase mística, as dispor. Sinto-me confortada

pelo reflexo da tarde no Tejo. Os cafezais de Minas, as ruas de

Ribeirão Preto, as praias do Rio de Janeiro, e todos os lugares

gerados pelo amor – tudo seguirá a música adequada. Uma

presença que a saudade renovou. As águas do Adriático: um

hábito jamais cristalizado nos olhos. Levara o Atlântico e o

estendera ali, no limite da Iugoslávia, à janela da casa.

O mar nos sobreviverá.

É outono em Lisboa e será sempre. Ainda quando chegar

o inverno e depois, quando a expectativa do verão florescer

Page 65: LISBOA AGOSTO DE 1988

na primavera. Porque agora, quando deixava Portugal, era

outono, esse outono não se permitiria renovar numa outra

estação, mas traspassaria imune o tempo, com suas frutas e o

aroma delas, e a criança que passa à janela no trem a

ribombar ritmado pela avenida 24 de julho. E a anônima

movimentação das pessoas que no cais ficariam para sempre.

Aperto os olhos. Por entre ruidos de roupa, sapatos,

portas de armário, o pensamento errante voltou ao outro

lado da parede. Terei a mulher do outro lado e sentirei falta

do que não tenho, do amor que passou e não voltará.

Súbito ela sabe, a casa de uma mulher não tem segredos

para sua dona.

Como o trem em que vim, o apito da fábrica que tornarei

a ouvir ao conhecer Garlos. Chamará. Assim o sino da igreja

que enche a hora. Acordam a cidade e ela vive. Assim. A

realidade vivia, e eu. Mesmo tão inverossímil como um sonho

se torna enquanto se desperta, eu. Fazia parte.

Caso quisesse ler alguma coisa para chamar o sono

(levanta a voz acima dos demais sons, arrastando a primeira e

a última sílaba da frase), decerto eu vira a quantidade de

livros. Todos muito bons. Relanceio os olhos à estante e digo

que não será preciso. Ela continua falando. Deixarei as

chaves.

Perplexo, me levanto.

Cheguei à porta aberta. Oleana de frente para o armário.

Prendera na liga as meias de nylon que envolvem suas pernas

até o meio das coxas. Luvas se movimentam entre os cabides.

Page 66: LISBOA AGOSTO DE 1988

A luz do basculante do banheiro delineia a manhã e molha o

trecho de pele nua. Minha presença não tem importância. Há

aquela outra, na porta aberta do armário. Olha. Sabe o que se

passa comigo, naturalmente.

Deixará as chaves? Os sul-americanos não tem boa-fama

na península. Si, son una basura. Embaixo dela o assoalho

reluz e multiplica-a mais. Virou-se. Desço pela encosta lisa,

sulcos, rios, pela prateadura a que era submetida. Súbito

fulgor rosa-avermelhado, gérbera no inverno. Estende na

cama a combinação de seda, coloca um par de sandálias altas

junto à cadeira. Em segundos eu media as extensões

trabalhadas anos a fio pelo ciclismo.

A cama, arrumada de ontem; o motivo nos olhos

sonolentos. Três almofadas descansam em cetim sobre a

colcha de tecido mole e peludo, verde desbotado. O bordado

denota divina paciência, responsável também por colinas e

bosques. Ai. Obliqua a penteadeira. O banquinho forrado de

veludo. Na cabeceira, um maço de cigarros, Le temps

retrouvé e um exemplar da Times, o número mais recente.

Será capaz a humanidade de suportar os progressos

tecnológicos que determina à história? No vértice das

paredes, um vaso grande demais como utensílio e por demais

feio como arte. As paredes: quadrados em quadrados,

retângulos em retângulos, triângulos em quadrados,

metempsicoses em metempsicoses, eternidades em

eternidades, inscritos no papel creme e atravessando-o ao

infinito.

Vejo-a agora em meio a tudo, Oleana, a existência de

Oleana, diante da qual se reduziam à insignificância os

móveis, os desenhos, a cortina, o tapete, e eu mesmo, sudaca

hijo de puta. Ela diz que não é daquela península. Não ligo a

mínima para a fama das pessoas, enfatiza, verdes de mierda,

enquanto seus olhos se distraem com o espelho. Só por falar,

Page 67: LISBOA AGOSTO DE 1988

para que ao responder ela prolongasse minha contemplação,

perguntei se não era temerário.

Mas sei que sou confiável, infelizmente está na minha

cara.

Quiçá, ela responde, talvez seja, a vida é temerária. Mas

não lidava com povos, lidava com pessoas, não com a fama

delas. Às vezes sul-americanos. Cabrones cerdos. Traduzi o

ricto. Quase um sorriso, um quase sorriso de malícia. Se fosse

perigoso deixar as chaves, seria perigoso ter trazido você.

Todos os segundos em que ela desviava os olhos, eu

dirigia os meus. Quadris redondos, lúdica exposição. Torso

suave. Membros libertos. Faz sentido, digo. Também ela

dirige o olhar. Oh U got a hell of a body de su reputiisima

madre. O inevitável depende agora de mim, o reencontro na

hora do almoço. Tudo bem. Sim, para de tarde. Quem sabe

para um outro dia.

De novo. De frente para o armário. Um vestido cetim-

prata, atrás uma fenda atrevida. Para de dia? A gaveta range

ao ser aberta. Agora, enquanto deixa transparecer num

relance alguma ternura – Oleana, deja en paz a lo chico –, que

eu ainda não percebera (porque não procurara, imagino), traz

à tona a lingerie – Bien, o no –, abre um pequeno sorriso.

Deixa cair sobre o vestido. Tremeluzires de oceano num

dia de sol, um oceano subitamente escurecido por um

cremoso bloco de nuvens. Surgirá a noite transparente.

Quando ela se curva para as sandálias, pedestal negro,

cresço com a manhã espanhola, o sul do tamanho da manhã,

sol no sentido do dia pleno. Retine uma medalhinha num

cordão de ouro. Prados longínquos e trotes distantes. Um

detalhe em seu braço, uma sombra de volume. Força.

Também juventude. Meu prazer era mais intenso assim. Só

me converti de todo a meu desejo quando as duas alças da

Page 68: LISBOA AGOSTO DE 1988

lingerie se compuseram, ocultando-a. Não dera ainda o

suficiente de mim para o usufruto de sua nudez. Merecer

excitava tanto quanto a perspectiva de ter. Algo meio doentio

e patético, naturalmente.

Todo preço precisa ser pago. Assim eu, ou alguma coisa

dentro de mim, pensava.

Intuí enigmas em sua ausência iminente. O oceano agora

desce, junto à luz de seu dia. Dissipação de um grito, um

grito noturno. Senta-se e prende a meia na liga, coloca uma

das sandálias para que eu entenda e brote. Levanta-se, mais

alta. Equilíbrio sutil de um colibri. Apanha a outra, delineada

pela lâmpada. Segura-a por trás apoiando o bico na beira da

cama. Abriga ali os dedos, forçando os músculos da

panturrilha. O pé amolda-se ao calçado. O vestido sobe,

acompanha a coxa lenta, um rochedo. Um pouco acima e ao

lado do ponto de tangência, um ossinho saliente na marca da

calcinha, alinhado com o culote. De repente, cédula de moeda

nova que tem o mesmo valor apesar do diferente layout,

outro prazer me sobe pelos nervos com a convicção de que a

profecia será cumprida. Como se minha reação tímida tivesse

valorizado, renovado o gosto das oferendas.

Apoiou o antebraço direito no alto horizontal da coxa, a

mão no joelho, cuja arquitetura animava arrepios e pêlos mal

raspados no jogo de luz e sombra: escurecem-se as

divindades do céu cristalino e refulgem a terra e os círculos.

O indicador e o polegar forçam o elástico em pressão discreta

como o tecido que o envolvia. A peça, esticada, detém-se

ligeira, acomoda-se. O cetim a cobriu, e me foi dada. Estava

pronta. O mundo a teria assim. E, quando voltasse para o

almoço, eu a teria, conforme os enigmas fossem decifrados,

conforme os preços fossem pagos, eu a teria.

Entretanto, permanecia uma advertência, vaga como

uma coisa viva, na obscuridade do quarto. Num futuro bem

Page 69: LISBOA AGOSTO DE 1988

próximo será necessário sair da pintura. A decoração da casa

de Oleana será a decoração da casa de Oleana. Não haverá

eternidades nas paredes. Ela será o que é e eu serei eu

mesmo – retornará a manhã conhecida. O livro que agora

tenho nas mãos será o mesmo velho livro, contando as

mesmas velhas histórias. De resto, quando a vi novamente

vestida, última aparição de uma Oleana a quem poderia ainda

imaginar recatada (e o estar tão à vontade valeria como

coisas de criança liberal), eu quis forças de memória para

guardá-la assim, como são guardados os autógrafos de

artistas no ostracismo – assinaturas que, independente deles,

serão sempre especiais para quem as conseguiu.

Numa noite fria de maio, o homem passou várias vezes

diante da porta da casa sem coragem para entrar.

Solidarizando-se com a mulher, os vizinhos estão lá dentro,

substituem-na nos afazeres domésticos. Um médico havia

sido chamado. Ela recuperava-se de complicações do parto. A

menina, saudável, dormia a seu lado. O Sr. Jean por fim havia

entrado. Sussurrou o nome da mulher. O medico deixou-os a

sós.

Donda, Donda...

Com a voz de leite, ela disse o nome dele. Sabia que iria

voltar. Você está com uma aparência ótima, querida. Ele

falava a sério, depois de tudo por que passaram, estava

mesmo muito bem. Ah, então ele já sabe o que eu passei.

Donda Maria sorriu ao pensar na gente da vila. E ele, como

estava? Agora bem, disse o sr. Jean, apertando a mão dela.

Posso ficar? A casa é sua, você mesmo a construiu.

Não para si mesmo.

Fique.

Ela era tão bonita. Claro que não sou. E a menina

Page 70: LISBOA AGOSTO DE 1988

também, tão linda... Nossa filha... Assim, depois de ficar longe

durante toda a gravidez da esposa, o pai voltava para casa.

Dele a filha herdara o gosto pela aventura, pela incerteza,

pela ausência de hábito, o horror da rotina. Se o homem, com

a idade, conseguira controlar esses impulsos, Blandine porém

não tivera tempo ainda. Quando partia para o Rio, sua mãe,

chorando, pede que ela não vá. Por favor.

Perdão, minha mãe, tenho de ir. A vida sem um lar é

muito difícil, filha. Num lar a gente tem coisas demais. Coisas

boas, disse a mãe. Talvez, mas coisas demais, agarram-se à

gente, e a gente se apega e não quer perder nada, e quem

tem coisas está sempre perdendo coisas.

Perante Octavio chamando-a de puta e a expulsando,

agora ela, mãe também, nada mais terá a perder.

Oleana raramente faz refeições em casa. Mas está ali a

geladeira, deve ter alguma coisa caso sinta fome durante a

ausência dela. Abriu uma portinhola na cozinha singular. A

chave do gás. Sorri. Tudo bem. Então estava indo.

Não sei na verdade o que ela quer de mim, o que tenho a

oferecer? Então renasceu ali aquela estranha solidão e aquela

bizarra timidez originadas não na personalidade mas na

condição financeira – o que posso dizer acerca disso? É querer

agir e se reprimir porque e depois?, querer amar e nada ter a

oferecer, mas pensando bem é assim que nascem grandes

amores do mundo.

Fechou a porta atrás de si.

Ouvi seus passos lá fora, o pulsar do coração daquele

apartamento. Fui até a estante.

O primeiro livro em que bati os olhos foi uma velha

bíblia, azul, antiqua version Casiodoro de Reina, traduzida na

Espanha e publicada na Geórgia, Estados Unidos, marcada

Page 71: LISBOA AGOSTO DE 1988

num trecho dos salmos.

Vivo entre o Rio e São Bernardo. Passo os finais de

semana redigindo matérias para um hebdomadário

fluminense. De segunda a sexta trabalho num outro jornal do

interior de Riberão. Nesses dias, ela chega de Minas, mais

amorosa e querida do que nunca. Estou realizado, tenho uma

situação financeira estável e uma vida afetiva feliz. Amo

Blandine, ainda a amo. Sou grato por ter ela encontrado o

homem em mim. (Sou mulher, me sinto mulher, devo isso a

ele, quem sabe a gente se encontra lá no Rio). No ponto

exterior preciso, bem no meio, um pouquinho acima, e

também a cabeça em meu peito, o indicador acariciando

minha nuca, inquieto segue, gosta de redesenhar meus

lábios.

Amo meu trabalho, ser a voz impressa que informa a

cidade, e por que não fazer isso de modo poético, apesar os

manuais de redação? Correspondendo-me, nas coisas que

digo, com certa beleza, com certa inutilidade, plástica delícia

de almas que se reconhecem – ela ouve e não diz nada, diz

depois, eu não deveria me preocupar com isso, se vão

reconhecer, o avanço tecnológico haveria de dispensar o

mercado, editores, agentes, divulgação, publicidade. Você

escreveria apenas para ser admirado, e pior, depois de

morto? Não a ouço, o que uma menina da roça vai entender

dessas coisas?

Com essa Blandine do Rio, não saberei súbito o que há,

conosco. Não sei lidar com a falta da singeleza da moça dos

cafezais. Perdeu-se o encanto. Ela decide aceitar o convite do

italiano. A perfeição de Piumhi soa como réquiem. A vida

depois disso seguirá, acostumada como essas moças que em

lugar público fazem coques, rabos, tranças, e sei lá que mais

Page 72: LISBOA AGOSTO DE 1988

dos cabelos soltos assim que se aquietam num banco de

praça, na cadeira de uma biblioteca, numa sala de espera – a

vida segue, normal, o que sublimo com a poesia – não, com os

versos – e com Deus – quero dizer, com a religião.

Abri o livro, a capa entre três e dois dedos, preciso

mesmo achar uma tesourinha. A vida é quase sempre

perversa e apenas vivemos. Em plenitude de paz, conforme

garantiam aqueles jovens nas imediações de Atocha, quando

a gente se converte. Mas não há salvação. Só muito dízimo,

muito cérebro lavado no batismo, muito pastor milionário – A

gente não pode generalizar, Blandine costuma argumentar,

mas de há muito eu não dou importância ao que ela fala. O

que há é mesmo muita ostentação de paz nas melhores casas

do ramo, discos e livros, shows que num mundo paralelo se

movem na direção do céu por uma estrada arcaica, a

encenação que se acredita.

Esse salmo foi um marco naquela época. Até quando

consultarei com minha alma, tendo tristeza em meu coração

cada dia? Sou membro de uma comunidade cristã em Niterói,

canto, bato palmas, o vestuário das irmãs não me permite ter

alívio; os anéis nos dedos líderes, de unhas bem feitas,

esmaltadas, tripudiam. Não se trata de religião, meu amigo.

Eu sei. Generosidade, é disso que deveria se tratar. Gentileza,

bondade, tolerância.

O perfume de Oleana. Não se apegar às pessoas.

Viver por causa delas.

Depois da experiência com os evangélicos, na verdade

nasci de novo. Saí de um ventre constrangedoramente

paradisíaco, para a luz do mundo real, uma outra consciência.

Talvez pela abstinência dos alteradores dela. Acaricio a

lombada. Apesar de tudo, há o sagrado. Acredito sim que há

alguém próximo à minhas paredes blasfemas, o interlocutor

Page 73: LISBOA AGOSTO DE 1988

desejado, escuto sua voz, ele sempre responde, tem sempre

essa delicadeza, com argumentos mais ou menos aceitáveis,

nunca totalmente claros, mas responde, e tento entender.

Pode-se dizer que toda a minha vida tenha sido a busca

de um pouco dessa clareza.

Da busca, a poesia; da inviabilidade de viver de poesia, o

jornalismo.

Nas redações, depois das tensões entre revisão e

digitadores, entre digitadores e past-up, tudo estoura na

olheria, a revisão da página montada, minha ultima função

antes da viagem. É de manhã, e ao sair para o trabalho digo a

Blandine que poderíamos jantar juntos. Responde com um

sorriso. Marcamos. No restaurante, conta sobre o convite do

italiano. Não sei o que sentir, o que dizer. O que deveria? Era

uma oportunidade única, ela sempre quis conhecer a Europa.

Voltará em um mês.

Passa rápido.

Não respondo. Fecho a cara. Ela faz um carinho em meu

rosto. Deixa de ser bobo. Seus dedos estão frios e atenuam

meu súbito horror. Mãos frias, consoladoras; um dia me

amaram. E o amor desde então passa a se resumir nesse

episódio, que repito e repito para mim mesmo. Ela dizendo

Tenho uma coisa para te contar. Eu não tenho nada para dizer

a respeito, me abrigo no silêncio.

Nos finais de semana que se seguem, menos. Passo-os

na casa de Donda Maria. Um mês passa rápido e de fato. E

dois. Três. Aí chegam as cartas. Ela vai se casar com o

italiano, é claro. Na minha, diz que pensou muito depois de

minha atitude de não levá-la ao aeroporto, não querer me

despedir, que isso significava alguma coisa, que não havia

nada mais entre nós, “Não há mais esperança para nós”. É

possível. Estou sentado perto da janela, Kleber vê o futebol

Page 74: LISBOA AGOSTO DE 1988

pela TV. Passo os olhos vezes sem conta pela carta, mesmo

depois de não mais ler, quando penso em como naquele

tempo de unificação da Europa dos doze, ao serem incluídos

Espanha e Portugal, quem quer que num desses países esteja

em toda a Europa estará. Na facilidade de ir de Luanda para

Lisboa, e talvez do Brasil para Angola.

Segunda à noite, no jornal, ainda penso nisso. Olho os

ombros da menina na prancheta à frente mas é em Angola

que penso, em Luanda, em embondeiros à beira-mar, no rio

Cuanza, no valor da moeda na Europa, em encontro de Países

de Língua Portuguesa. Bem, situação política piorou. Dá-se

um jeito. A questão é mesmo a grana. Posso vender os

móveis, fazer acordo no DP, a indenização e o dinheiro dos

direitos trabalhistas. Tem o apartamento. Acho que deve dar.

Quem vai atender? O editor liga de casa, pergunta se a página

três foi fechada. Digo que sim. Ainda bem. As vaidades

ficaram nos textos. Enquanto luto com elas, o pessoal já foi

esquecer as diferenças no bar da esquina. Eu poderia

encontrá-los quando terminasse. Não irei. A colega das costas

e ombros insiste, diz que eu estava precisando espairecer.

Quem sabe eu vá. Não vou. Talvez não tenha vocação

hedonista, talvez seja só timidez. Quando fala, a moça abre

uns lábios muito vermelhos, faz gestos largos que os seios

acompanham. Nunca fui muito bom em fazer um social, digo

para me desculpar. Não que não goste de convívio, pelo

contrário. Enquanto escuta ela meneia a cabeça num sinal de

entender, mas não poderia, pois eu não combino no espírito o

raciocínio com a fala, mas penso que o respeito com que me

tratam na redação é proporcional ao desprezo que nutrem por

mim fora dela. Ela não insiste mais, sai balançando os

quadris, eu a dispo devagar, beijo-a toda e a possuo.

A porta bate e retorno ao trabalho.

Page 75: LISBOA AGOSTO DE 1988

Já não será um exílio? A idéia da viagem está mais nítida

cada vez. Nos espaços das fotos nas páginas sobre a

prancheta vejo Luanda, a estranha Luanda. Dissipa-se súbito

e vão aparecendo os colegas, dos bares saem para motéis –

espaços na vitrine da noite, logo manhã em casas comuns,

pessoas normais, estabelecidas, que vão a shopping em

véspera de Natal – mas eu não posso ser normal, não gosto de

bar, detesto shopping, Natal é triste farsa, comércio,

glutonaria, trevas – Você é muito radical – Blandine me

oferecia contrapontos o tempo todo. Com Oleana aprenderei a

entender polifonia (ela estudara música na Inglaterra, em

simultâneo com o idioma, you know, art of polyphonic music

is art of think twice, ou algo assim, think again is think better,

acho que é isso, discerniu o pensar ao mesmo, parte sueco,

parte inglês, parte espanhol, parte caos – Eia desçamos! –

profundos todos, abissais, incoerentes, fluxos, interiores. Mas

eu ainda não entendia assim, não até ali. Blandine ficou

demais do contra. Defeitinho chato. Apago as luzes ao sair da

sala do Past-up. Contraluz supõe duas luzes, quer dizer duas

direções, pensarei um dia em uma outra luz, em alguma coisa

luminosa além da luz, um dia, mas agora apenas penso que

quisera ser luz, dum modo banal, como a própria expressão,

“ser luz”, batida nas igrejas evangélicas, como a facilidade

com que se diz Eu te amo. Sigo a silhueta pelo corredor,

faltam uns minutos para a meia-noite.

Quisera ser luz.

Vazando no bolso a tinta da caneta, material de péssima

qualidade, combina com os textos dos jornalistas diplomados

– como se faculdade pudesse – Quisera não me prostituir por

duas refeições diárias, que logo serão três ou quatro; e,

satisfeito o estômago chegam protestos de mais abaixo,

clamam por uma legítima Blandine – nos cafezais havia um

caminho que subia e levava a um ponto onde o entardecer era

Page 76: LISBOA AGOSTO DE 1988

a paisagem em chamas e a noite, fresca, mesmo após dias

bem quentes. Era como ter chegado. Na volta para a fazenda,

ao longo da trilha, as luzes da casa ao longe, nada da velha

ansiedade do dia seguinte – Quisera –; o desejo lícito logo é

concupiscência, promiscuidade e, resolvidos os problemas do

ventre, vem a carência emocional – e a moça, Íris ou Isis,

enfim, tinha as costas cintilantes à luz fluorescente, ombros

cheios, penugem ralinha na nuca, e quando se virou mostrou

uma aparência confiável, poderia vir a ser uma amiga, mas

nada que afastasse os planos de viagem – porque logo o que

está satisfeito busca a insatisfação, o afeto quer a poesia

para se expressar, e a poesia o tratará com desdém,

ambiciona agora o reconhecimento, a vaidade da qual fugira

etc., emoções tragadas, a porta aberta de uma casa importa

menos que vinte anos de papel, do que uma estranha que me

dardeja falsa na imaginação, do que uma mulher do outro

lado da parede, reconhecimento é falo, é poder, afasta o Deus

bucólico.

Uma laude sobe desde a roça mas a cidade sufoca o

cântico, torna-o menos que profano: banal.

Saudade. Essas estrelas atrás dos prédios vizinhos ao

jornal, luzes distantes, mais próximas do bar, dos colegas, do

cheiro de fritura e álcool digerido, real, absurdamente real – e

logo a busca de reconhecimento é a da riqueza, um jardim

iluminado, meia-noite e nove, rico descansarei ou no ócio

estarei apático demais para distinguir qualquer coisa além de

mim mesmo e perceber o outro ser humano nesse mendigo

que dorme ao relento na Ribeirão tão fria, na prostituta que

se oferece, gatinho – imagina... gato velho, isso sim – e no

guarda-noturno – boa-noite, boa-noite, como vai o senhor?

Não vejo senão a mim mesmo em meu caminho sem arte,

sem amor, sem Deus, sem a sabedoria ante a dor – que

aprende entre livros pendentes, que entende as janelas

Page 77: LISBOA AGOSTO DE 1988

apesar do cheiro de xampu. Sabedoria. Não se deixa minar,

não se deixa ninar, ah a solidão e o sofrimento, penso ao

entrar na pensão.

A mulher do senhor Jean distraída com que não ouve

meu boa-noite?

A bebida que embriaga e faz vomitar é a mesma que em

dose moderada alegra e abre portas – virtude: um vício

latente. Debruçara-me à janela de Oleana, ao som do sino que

ouvi ao chegar. A cidade adormece à janela. Meia-noite e

quarenta. Ouço no rádio que a obrigatoriedade do diploma, a

especialista comenta, será uma lei que pegará. E quanto aos

não-diplomados? Acredita ela que haverá demissão em

massa. Faremos agora um pequeno intervalo. De São

Bernardo, Viviane Lopez.

São 59 minutos em Ribeirão Preto. Irei para Angola. A

passagem na manhã seguinte. A mulher olha o passaporte,

faz poucas perguntas. Eu teria aliás poucas respostas. Era

destemido! Trabalhar na África em guerra! E de repente,

agora que estou em Angola, é um pesadelo. Nastácia...

Mudam pessoas e lugares, todavia a loucura humana tem a

vocação da permanência. Mas sim, estávamos indo para a

Europa, vindos da África. Levanto meus olhos para o teto,

aperto-os contra a luz da lâmpada, os drogaditos, os ex-

drogaditos, pregam em Atocha quando chego. No fundo os

invejava. Pelos motivos certos ou não, pareciam livres das

coisas da vida.

Ou pareciam livres porque estavam mortos?

Balanço a perna debaixo da mesa enquanto a mulher faz

anotações. Passa a língua nos lábios. Os seios ignoram o

decote, balançam, mal vejo, as imagens se desbotam.

Oleana fica. Mais e mais nítida. Era o único pensamento

Page 78: LISBOA AGOSTO DE 1988

que se repetia, os demais subiam, desciam, adiantavam-se,

regrediam, passavam, não voltavam, não, não mais, não

voltarão. Oleana permanece, permaneceu a hora do almoço.

Oleana – não fosse ela, seria outra. O carma do homem.

Fecho a Bíblia. Há uma hora ela saíra. Seu cheiro puro na

sala. Mais forte até. Sem ela por perto, posso trazê-la à

distancia que quiser, levá-la aonde quiser, fazê-la rainha ou

escrava. Súbito, abre-se o precipício que meu desejo absorve.

Futuro e passado, dois presentes fora de alcance. Eu

ambicionava o que não tinha e o que não mais possuiria. Meu

coração se divide e eu não mais sei onde fixar o coração.

Madri se espreguiça no quarto. A hora do almoço. A sesta

depois. A cidade dormiria. Um e outro carro. Os últimos por

um tempo. À janela, espero vida na rua, que leve de mim o

abismo. Mulheres. Longe da transcendência que fazem

acreditar, nada que possa supor o infinito.

E eu, eu esperava o infinito para almoçarmos.

1983. Notas pessoais. Personal data and information.

Esse diário pertence a Blandine Maria. Endereço comercial:

Fazenda Jean Huster. Residência: Rua Modesto Caldeira 13.

Piumhi - 89390-000. Minas Gerais. Brasil. 5 de maio.

Tá um frio danado e detesto frio, mas nem noto direito

porque fiquei muito feliz por meu pai ter vindo. Não me

conformo por ele e mamãe estarem separados. E nem tenho

uma amiga para conversar, desabafar. Mas estou feliz por

outra coisa. Ah quando eu vi ele no milho com o Kleber... Meu

coração quase sai pela boca. Vi de longe, assim que saí com a

marmita das ruas de café. Kleber foi muito legal e fofo por

renunciar ao papel de irmão mais velho. Foi talvez o indício

definitivo de que aquele é o homem de minha vida, o meu

Page 79: LISBOA AGOSTO DE 1988

amor. Preciso de dizer mais?

As brasas de uma fogueira não utilizada ardem ao sol.

De quando cheguei à Europa até o momento em que

recoloco a Bíblia na prateleira, quantos meses? A vida passa

naturalmente sem que sua transitoriedade deva se constituir

num pilar filosófico. Há cinco ou seis anos conheci Blandine

em Ribeirão. Semanas depois, o milho estava vingando.

Olha só!...

Não dá para saber que teve a iniciativa do beijo. Ele a

solta, Me perdoe, por favor. Os pés de milho e os de café

ensombram apenas a si mesmos. Ela tenta evitar o olhar.

Tudo bem, diz. Quando os lábios se reencontram, sem

perspectiva ou lembrança, no auge da luz e do calor, era

como se o dia houvesse se imobilizado sem sons no cheiro do

mato recém carpido, e então unem-se os dois mundos, a

camponesa e o jornalista, empertigados, nem tanto, mãos sob

as blusas úmidas, dedos nos cabelos, olhos fechados, pontos

de luz, abertura, os dedos dela se lhe crispam nas têmporas –

O centro de minha história.

Nastácia teve de ir a Nápoles e agora estou aqui sozinho

nessa espelunca empoeirada e escura em Lisboa,

desempregado. Porque sou doente, o ímpeto de correr mundo

pode ser patológico, me digam se não: eu estava feliz,

realizado, trabalhando no campo, ganhando bem, e a meu

lado a mulher que amo – já disse tudo isso – e por que

exatamente a perdi? por que perdi tudo? Blandine na Itália.

Me resta escrever. Chego da sessão reservada de “Julia y

Page 80: LISBOA AGOSTO DE 1988

Julia” impregnado de tédio em alta definição. No caderno,

espero Oleana apenas para perdê-la também.

Tudo por causa da doença.

Minha liberdade é não estar livre mas não estar em lugar

algum. Escrever pode ser patológico, manifestação da

covardia. Eu quis, falhei, e agora reclamo e julgo. Quem sabe

a posteridade me resgate, ou em definitivo me condene,

ignorando-me. Coloquei os olhos nas letras douradas da capa

de couro. Estou realmente cansado. A face dura de um Cristo

de lábios ressecados na poeira (um quadro de Oleana) me

questiona na quase tarde. Um silvo parece vir da nuvem.

São talvez onze horas da manhã e ele sente com mais

clareza que nunca a diferença entre estar dentro de uma

casa, de um apartamento, ou no meio de pessoas ao sol numa

manhã assim. Há sem duvida o fator acolhimento, guarida,

que é não pouco reconfortante para quem anda pelas ruas e

passando noites sem ter um teto sobre a cabeça, mas noa dá

para simplesmente ignorar a vida que existe na privação,

alguma coisa semelhante ao frio, e ele justamente sentia esse

prazer de nos dias frios lá em sua adolescência no sul do

Brasil, sair de manga de camisa, gostava de sentir frio, era

sentir-se vivo, assim o apartamento o abrigava mas também

era uma mortalha, se tivesse dinheiro estaria esperando a

mulher num café, num restaurante, bem, talvez não, estava

insone e podia agora entrar no banho para depois dormir,

cansado e descansar, então há mesmo vantagens em ver as

ruas e as casas assim, da janela, enrolado em uma toalha.

Do parapeito, por uma fresta entre dois prédios, vi

caixas empilhadas e pivetes pedindo pão. Alguém escutava

Hendrix. Lá embaixo um homem interrompeu seu caminho

para apanhar o embrulho que umas morena deixara cair.

Inclina-se com a reverência da adoração. Sou eu. Mães

exibem suas crianças saudáveis. Em algum lugar um índio

Page 81: LISBOA AGOSTO DE 1988

morre de doença branca; em algum lugar um palhaço chora

por uma bailarina; em algum lugar alguém sozinho e insone

não tem para onde ir. Quando deito sobre a colcha verde, o

vento sussurra o nome de Blandine.

Setembro de 1988. Caro Andrei. Não sei como pedir

desculpas. Deveríamos imaginar que você voltaria. Fico

angustiada de pensar em você de lá para cá, sem saber onde

nos achar. Infelizmente, aquela empregada da família com

quem deixamos a casa para irmos a Roma, ela é meio

esquisita. Deveria ter deixado você entrar, devia ter lhe dado

a chance de se apresentar. Por favor acuse recebimento. Se

houver ainda algum desejo teu de viver em Paris trabalhando

conosco, nos dará imenso prazer. Deus o abençoe. Helena

Peyroux.

Mais ou menos isso. Um frio no coração.

As paredes do quarto me afligem. Ecoam lamentos

eternos. Batem os pensamentos, rebatem. Corpo pesado. O

espelho não mente, não mente a tontura. Quase desabo no

sofá. Quis sair, andar pelas ruas, voltar a Lisboa, ir para longe

dali, bem longe do agora. Mas não adiantaria. Não sairia de

mim, do espírito que se apossara da ausência de minha

legitimidade, como pessoa, como escritor, como o amor de

alguém.

A caderneta no bolso do blazer. Como não achasse a

caneta, ao ver um lápis sobre a estante, fui naquela direção.

A janela. Sobe a alma da cidade e resulta do movimento

angústia e medo. Respirei fundo. Um rumor estranho pelo

pulmão. O lápis cadenciado ofega no papel, como agora.

Concebo um mundo para esquecer o mundo, ou lhe dar

Page 82: LISBOA AGOSTO DE 1988

sentido. Risco tudo furiosamente. Num momento, toda a

motivação. A inspiração parece um fenômeno simples. Cada

objeto, cada mínima recordação, tudo ao redor é motivo.

Lápis deitado sobre a caderneta. Me levanto. Ligo a TV. Passa

o momento. Meus esforços são caracteres de uma carta que o

correio devolve porque o destinatário se mudou.

Rolo na cama, inquieto. Ansioso, impaciente, apático.

Ligo o rádio (há um, cinza, na parte baixa da mesinha de

cabeceira). Desligo. Não tenho culpa de ser como sou, assim

nervoso. Atravesso a divisória entre quarto e sala com a

tensão do estrangeiro tímido que pela primeira vez em Paris,

Arrivées, Arrivals, entra após passos hesitantes na rue

Princesse, estreita ecoando, ers, enes, eurs, etres. O rádio

que pensei ter desligado. Há vinte anos, quando eu tinha

vinte anos, abri o armário da despensa. Uma caixa de suco de

laranja. Um gole longo, mudo das evocações parisienses

(atentei ao clique do botão). Seguro o lápis e o aperto em

movimentos rápidos sobre o papel. Palavras desafiam as

paredes.

Tudo refletiu no copo.

Perdera família, bens, amor, mas possuía ainda a paixão

da entrega. Sentia cheiros que mais ninguém (não é suco

natural), ouvia sons que mais ninguém (que importa, que

sede!), eu, definitivamente mais ninguém. Espectros no

apartamento, para sempre, fluxos oníricos, despedaçamentos.

Minha cruz, ninguém a poderá carregar (corpo pesado,

pesado). Quem se alegrará com minha alegria? O vestido

preterido na cadeira. A Europa espreita, espreita a incerteza.

Na TV, nos espelhos do armário. Eu me multiplicava quando

voltei inteiro por outro pouco de tempo ao quarto de Oleana.

Eu, a vida que ninguém podia.

Page 83: LISBOA AGOSTO DE 1988

Fome forte pelo fim total do efeito. O haxixe é parte de

uma madrugada tão longínqua que dá pra duvidar. Me

reaproximo do armário onde julgava ter visto batatas. Aí

estão. Minha sombra na parede vence limites. Acaso uma

máquina de escrever na casa, talvez um processador de

texto? Os eventos históricos me ultrapassam, como essa

sombra. A história e o progresso tecnológico me ignoram. Mas

só por mim poderá ser escrito um livro sobre minha Europa e

um Maio vinte anos depois segundo minha vivência.

Para quê?

O ar quente de Luanda se dilata ao diálogo, às frases

que trocamos, eu e Nastácia. Entro em seu carro, o dedo

mindinho protegido por uma tala. Saíra do lugar.

Não dói mais. Vou tirar isso.

Não. Ela me levaria num médico, é o mínimo para si,

disse-me quando a água começou a ferver.

O sol reveste de dourado as lombadas na estante. Uma

coleção de Shakespeare se destaca na ultima prateleira,

atraso o regresso a Angola. O sol, o sol madrileno. Os prédios

ainda ocultam a névoa, a mulher fecha a janela em frente. A

chama na saída do gás, um vermelho sujo, o calor de Luanda,

a terra angolana. As batatas pulam no chiado borbulhante.

Chiado, Baixa, Cidade Alta, rua Garret, rua da Rosa, pensão,

meu caderno. Enlevo de cebola e alho. Miríades nos olhos,

úmida contemplação. Sol que se insinua. Dois ovos. Antes

preciso de um banho.

Blandine diz que não era para eu saber. Não queria que

Page 84: LISBOA AGOSTO DE 1988

decidisse ficar a não ser pelo amor. Você está grávida! É

nosso filho, não poderia ter escondido isso de mim. Ela diz

que ia contar, eu digo Amo você. Ela pergunta sobre meus

planos para depois da safra. Não vai voltar para o jornal?

Pergunto se não iria comigo. Ela responde com uma pergunta.

Você não ficaria? Olha, começou a chover... Gostamos de

chuva. Deveríamos falar com o Sr. Jean agora?

Talvez seja melhor esperar.

A saúde frágil apesar da aparência. Trabalhava duro na

panha. Aborto. O lago, os pássaros, os cheiros – corri para a

panela, espetei a garfo em duas batatas, diminui o fogo. Um

pouco mais de água. Quando estaria pronto? A perspectiva da

volta de Oleana. Era tudo. Era só.

Em Angola não me aceitaram como cooperante. Nada de

promessa, só a interpretação da vontade. A cega

determinação de partir. Na verdade, apenas uma resposta

padrão à disponibilidade na carta que enviei. Os endereços de

conhecidos de conhecidos não me socorrem. Não sei se me

arrependo de ter vindo. Precisava partir, deixar os hábitos

arraigados, o conforto, o conformismo, aquele eu antigo que

não interessava mais. Precisava de Blandine. Não me

arrependo. Estou apenas apavorado.

Uma vez, nos dias que chegara a Lisboa, uma mulher a

meu lado no trem perguntou se eu não havia morado em

Luanda. Tenho quase certeza de que te vi um dia na avenida

Beira-mar. Pelos detalhes, realmente era eu.

Caminho lentamente. Seguro. Tranquil – palavras de

encorajamento sobre a pastelaria. Não. Apenas a baía e

prédios contíguos que nada significam. Louco...

Mas realmente existia uma pastelaria por aqui.

Page 85: LISBOA AGOSTO DE 1988

Chamava-se Imperial. Costumava vê-la. Em criança, meus

avôs me levaram a um cruzeiro, no "Eugenio C" e em Lisboa

deixaram a excursão. Casa da bisa. Jardim Estrela. Uns dias

com uns parentes na África. Na volta de Quiçama, entramos

na avenida de Luanda. A pastelaria. Sobre ela, o letreiro de

uma companhia de seguros, meio encoberto do ângulo em

que nos encontrávamos. Palmeiras balançando ao terral,

sopro divino. Na orla do mar, recortada em semicírculo,

acompanhando o desenho da avenida, eu me agito, gemendo,

me curvo, não quebro, ainda não, apesar da solidão

desgraçada e do desamparo.

Luanda, das acácias e dos embondeiros.

Ela atravessa a rua no sentido do automóvel branco –

sábia e indiferente, me ignora. Portuguesa, criada na capital

angolana, conheceu o marido no golfo de Nápoles, ao som de

Caruso. Férias na Itália, onde vive agora, no Cantazaro. Não

era um lugar ideal para morar. Dias mais tarde um sorriso.

Prima di tutto, la famiglia. Antes de casar, certificou-se de

que encontraria o clima do soldato innamorato, Teatro di San

Carlo, não as vielas onde à janela as mulheres vivem

estendendo roupas varanda a varanda sob as bênçãos de

Santa Lucia. Tutto per voi. Arranjou-se além das expectativas.

Uma casa em Nápoles, onde o marido trabalhava. Saiu da

universidade para adornar com sua beleza, elegância e

cultura as relações sociais dele, que a dispensava de outras

relações. E cada vez mais escapava para um fenômeno

anterior, de sua adolescência: Nastácia, a que estava disposta

a se envolver sob o sol com ternos vagabundos.

Viera visitar os pais, portugueses vivendo em Angola

apesar da Independência, graças à influencia de um tio,

conceituado contrabandista de diamantes a quem nem as

forças no poder nem os rebeldes incomodavam. Ainda

Page 86: LISBOA AGOSTO DE 1988

moravam em Alvalade, como antes como antes de 25 de abril.

Não fugiram, não se tornaram "retornados", embora

retornassem a Portugal sempre que lhes aprazia fazê-lo. Na

avenida, eu a vi pela primeira vez. Na tarde do dia em que

vencia a legalidade de minha estada. Saía do banco.

Inacreditável guarda de trânsito com capacete de caçador

sobre uma armação circular pintada de vermelho (uma

“pianha”, alguém me dirá mais tarde). Sinalizava para que

ela passasse e, distraído ao contemplá-la por trás, uma

buzina irritada o trás de volta. Ele e o motorista discutem em

língua estranha, apesar das palavras portuguesas.

Hoje em dia é diferente. O quepe se pode dizer

universal. O sol encontrou seu duplo no horizonte, a noite

começa a cair. Ecos. Todos no mesmo lugar, e o tempo só

convém ao coração transpassado que chega ao todo pela

parte. Portugal é um país triste, escreveu minha mãe em um

diário, por meio do qual soube quem ela era. Mas quando veio

me ver disse que sim, que gostava muito, que adorava Lisboa,

como Jacques (não me sinto à vontade para chama-lo de pai).

Só que lá jamais sentiu como eu, nem poderia, o cheiro

da terra vermelha.

Não diria que era bela. Possuía, digamos, uma beleza

nascida um pouco da elegância, outro da serenidade, e um

tanto da sensualidade velada, num código estético

incompreensível para meus próprios padrões.

Preciso partir e não tenho como.

Teria a minha idade. Rica, era evidente. Tailleur caqui,

cintura marcada, molhada de gabardina, bermuda bem

recortada; bainha italiana, discreta. Dos pés ocultos nos

Page 87: LISBOA AGOSTO DE 1988

requintados sapatos que o calor dela retém, surgem

tornozelos logo também ocultos antes do meio das coxas

brancas.

Misturar leite com suco não vai me fazer bem.

Que olhar persistente. Deixa-me nua. O que está a

pretender? Todavia. Um olhar triste. Não é angolano. Nem

parece português.

Com licença.

Ela não gosta de Luanda, às vezes nem da Itália. Afinal

chegou o dia. As posses já não bastam. O que bastará? Che

cosa desiderate, cara? Não sabe. Quisera. Não acreditava em

amor, gostaria. O carro fervendo, o corpo fervendo, a vida

gelada. Meias brancas. A paz que transmitiu: a possibilidade

de eu meu safar.

Isso tem um nome.

Lábios finos. Os olhos nunca olham diretamente para o

que vê – lentos, ligeiramente estrábicos, dissimulados. Ilusões

em seu semblante. A aliança exagerada alardeia a obrigação

matrimonial. Nastácia parece respeitosa ao escutá-la. Entrou

no carro e antes de dar a partida me percebeu perscrutando-

a, desolado.

Talvez tivesse sido melhor ter continuado no jornal,

lutado pela carteira provisional, que afinal tinha o mesmo

efeito que o diploma. Talvez a tenha deixado se afastar

demais antes de encará-la. Doravante será a estranha que

passou, mulheres que poderiam ter sido na vida de um

homem e não foram, por timidez, por unilateralidade, por

soberba, por inadequação, por martírio.

Ela me olha com o tipo de olhar dirigido que se declara

inocente ao captar tudo à volta. O sorriso não deixa de

possuir os lábios mas não a libera ao acesso. Um brinco em

forma de folha. Responde a seus mais leves movimentos de

cabeça. Grafite no muro enquanto caminho. MPLA. Me

Page 88: LISBOA AGOSTO DE 1988

aproximo. Uma garfada nas batatas. Para onde você vai?

Ia para Alvalade.

A faca corta rodelas de cebola. Poderia me dar uma

carona? Devia estar querendo dizer "boléia", pois não? A

lâmina pica o pimentão. Ainda fala e já começa a colocar para

trás três pastas que cobriam o assento. Entro no carro, bato a

porta e faço meu prato. Ela gira a chave. Mãos delicadas e

decididas. Na segunda tentativa, o motor responde em meu

paladar.

Sabiam que nunca mais. Que tudo o que tinham de

verdadeiro estava – Perdido? Questão de ponto de vista.

Talvez. Então se permitiram. Para ele, perdido em Luanda,

perdido onde fosse. Dependente. Ou aceitava a profissão.

Ficar rodeando autoridades corruptas em busca de uma

declaração mentirosa em primeira mão. Comentar a

declaração mentirosa como se fosse alguma coisa de suma

importância. Fazer espetáculo da dor alheia. Aí descobriu.

Não era o diploma. E mais. No mercado literário seria

igual. Exceto se. Descobriu, não porque estivesse procurando.

Agora é tarde. Irá, seja como for. E ela. Tarde demais. Não

reencontraria a inocência perdida. Não poderia mais

desconhecer que um casamento de conveniências acaba

saindo muito mais caro do que os bens que pode

proporcionar. É só fazer as contas, como se diz, na ponta do

lápis. Então os dois. Não têm mais alternativas de arbítrio. Ou

talvez. Querem uma vida que não existe, e sabem.

Podem enfim ter aquele caso.

Que cores! As vendas na rua, a mistura de cânticos e

frutas. A mulher deixa-se tocar ao sul na estreita faixa alpina

até as ondulações temperadas pelas correntes marítimas.

Para ele, é uma visão atordoante de sonho, são palestras de

Page 89: LISBOA AGOSTO DE 1988

deuses acerca dos aromas do jardim.

A aposta pascal é péssimo argumento, mas sentindo-me

tão amado, acaba por funcionar. Vinde e vede. Que repouso!

Luanda.

Uns vinte minutos de barco, talvez menos. Pernoite em

Mussulo. Que tipo de rede é essa? Que casa, uma estância.

Palmeiras flutuam na penumbra lunar. A areia já lembrou

ouro, o mar um espelho. Mas não se esqueça de que é um

país destruído.

Sei como é, o Brasil também, e sem uma guerra civil.

Basta a violência urbana de cada dia, a morte de crianças.

Sem falar nos portugueses assassinados por lá.

Sim e aqui a realidade é essa, pobreza da maioria,

corrupção. E tudo o mais, sabe Deus. Todavia, onde mais

existe um céu assim?

E tudo o mais. Sabe Deus. Disfarço meu deslumbramento

e êxtase, gato que ameaçado finge sentir cheiros no chão.

Cidades não são casas e ruas e tudo mais, mas a consciência

das pessoas. Um país, o que é?

Não é o consolo entre minhas coxas, os seios ainda

empinados, a umidade escura, o augúrio da língua, as

guarnições nos olhos? Sou menos que isso? Pedra, azulação,

um mesmo tom de noite confunde céu e profundezas, a maré

noturna e algas resplendentes. Ela dispensa o carinho. Essa

outra é assim tão digna ao entristecê-lo assim?

Se está mesmo feliz, ela não mereceria um sorriso?

Está tudo bem. Tudo bem. É só a hereditariedade, a

herança da noite no mar, na pedra, nas algas, sei lá. Nada de

fato me diz nada além da noite nas ilhas, da chuva na noite,

do piso do barco ecoando nas pequeninas ondas. Depois a

gente pensa no depois. Deixe o gato comer uma lagosta

dessas, deixe-o disfarçar.

Page 90: LISBOA AGOSTO DE 1988

Em Lisboa.

O aeroporto apenas o tempo de marcar um novo vôo. Um

táxi. Campo Grande, por favor. Remamos no lago. À mesa da

esplanada. Uma xícara de café pela metade, uma bica. Eu

disse que assim mal dava para sentir o gosto. No Brasil as

chávenas vêm cheias. É só pedir bica cheia, amor.

O metropolitano para o Campo Pequeno. Ela se aproxima

de um grupo de jovens num banco de jardim, sentados no

espaldar. Pede “três pintores”: são trezentos escudos de

haxixe. Um sorriso, um suave ruído de sorriso. Você fuma?

Raramente. Mas agora está a lhe apetecer viajar comigo.

Três quadrados de uma ganza escura e maleável.

Sentamos num outro banco, mais próximo da praça de touros.

Ela faz o cigarro e fumamos ao som da conversa dos garotos.

Em cada frase inserem um "pá", um "caralho" e um "foda-se".

Adoro o submundo, diz Nastácia.

Aproveitamos os mesmos bilhetes de metrô (estava

dentro do horário de validade mas esse reaproveitamento era

ilegal). Não é ótimo transgredir, my dear? Descemos na

estação dos Restauradores e subimos as escadas para a

avenida da Liberdade. Também aqui Foda-se Caralho. Uma

menina esmurra o peito do homenzinho careca. E aí ó pá?

Fodeste e não vais pagar?

Essa não tem chulo, explicou Nastácia.

Outro táxi na Primeiro de Dezembro, em frente ao

teatro. Bom dia. Para Algés por favor. Ela queria que eu

conhecesse um barzinho onde ela costumava se refugiar para

ler. Comemos pastéis de nata com bicas duplas. Ela lamenta

não haver mais tempo para voltar de electrico. De quê?

Aquilo. Ah, o bonde. Estava louca para andar de bonde.

Pegamos um terceiro táxi até o aeroporto e depois o vôo

Page 91: LISBOA AGOSTO DE 1988

para Paris. Adoro Lisboa, disse ela já na poltrona do avião.

A bacia parisiense. Um problema de teto, atraso na

descida. Entre Montfermeil e Meudon, manchas verdes

intervalam aglomerados. Senart, olha. Ulalá, Fleuve la Seine.

Paris! O impacto da pista.

Por que Paris? Apesar de todas as vicissitudes por que

passamos juntos, não cheguei a conhecer Nastácia a ponto de

poder advogar seus motivos, ou dizer qual Nastácia a

verdadeira, não o sejam todas.

Se ele soubesse. Por que porém deveria saber? Tenho de

carregar a minha cruz sozinha. Só por ter aparecido, ele já

está me ajudando.

De concreto sobre ela sei que entrará pela porta de

nosso quarto de pensão muitos meses depois de eu tê-la

encontrado em Luanda e uns poucos depois daquele dia em

que espero Oleana em Madri. Entrará, exalando o furor sexual

que os clientes do pub desencadearam (como se fosse

preciso) durante a noite de bebidas e dança de corpos

colados. Para que eu o aplaque, ai de mim!

No aeroporto, a complicação de se entrar na Europa

unificada. Sou jornalista. A credencial ainda serve, menos

mal. Uma manobra burocrática por meio da qual houve a troca

de nossa pequena estada pela garantia de nossa breve

partida. Não sabia que você era advogada. Havia se formado,

mas nunca exercera, mas isso eles não precisam saber, pois

não? Deixamos as bagagens. Rungis. De mãos dadas, os

lugares interessantes da cidade. Aqui. E aqui. Ah, e ali. O que

valia como pontos de referência. Vai que a gente se perca. Ou

que ela precise me deixar sozinho.

Marca um local de encontro para essa eventualidade.

Page 92: LISBOA AGOSTO DE 1988

Abre um mapa que não tem paciência de consultar.

Monsieur, Rue des Francs-Borgeois s'il vous plaît. Na troiseme

a gauche, ela virou para um compromisso que não me dei ao

trabalho de questionar.

Há um momento em que as cidades se abrem ao

estrangeiro mas não todos percebem, ou não cheguem todos

a esse ponto, os ruidos dos carros, as vozes anárquicas, os

pássaros do caos, tudo se faz novo e o sentimento pode se

apropriar da novidade, só a coisas velhas se é estranho.

Esperando a hora do reencontro marcado, tentei relaxar

e aproveitar a oportunidade. Paris! Os prédios dourados,

como se ardessem. Como se ardessem, de onde me vem essa

lembrança? Bistrot também é algo familiar, risadas. O negro e

o marroqui discutem aos gestos na rua estreita. O rapaz de

bicicleta com um pão nu no sovaco, um clássico. Clochards

pedindo dinheiro – pra mim, essa é boa. E aquele outro dá um

show ao longo da avenida, depois falam do Brasil, nem lá

nunca vi algo assim, pobre homem. E esses babacas rindo

desse jeito, filhinhos de papai, filhinhos de uma civilização

superior e imbecilizada. Ouvi dizer que em Portugal mesmo há

brasileiros com problemas de visto e na Espanha são

sumariamente deportados. Mas ainda assim amanhã outros

virão e outros europeus irão para o Brasil para serem

assassinados. Mas sim que ruas iluminadas, lindas, e essa

maison e aquela, formidável, é mesmo uma cidade iluminada.

Hun. Gostosa. Eu diria que é uma prostituta. Bonita e

elegante, de luxo se é. Sou apaixonado por esse tipo de

lustre, ou sei lá o que, como brincos caídos nas orelhas de

uma portuguesa em Luanda. O argelino quer passar haxixe,

me espera à noite no Quartier Latin. Que idioma é esse?

Mundo o quê?

Page 93: LISBOA AGOSTO DE 1988

Globalizado.

Ah. Vai piorar.

Me olham com atração e desdém. Segui, portanto, a

sugestão de dar uma volta antes de esperá-la no café da

praça Saint-Michel. Aquelas ruas de charme triste. Embaixo

das pontes é muito romântico. Não os prédios baixos, que

tornam toda a cidade semelhante e logo tediosa, mal

conservados, reformados alguns, feios, fétidos até, dissera a

mulher, conhecida parece. A arrogância das pessoas.

Conhecida sim, a escritora da coluna de teatro publicada pelo

jornal em que eu trabalhara. Não dá atenção a quem esteja ao

redor.

Claro que é ele, o pobre coitado, ou haverá uma chance

de – Respira fundo, não ouve o que a outra diz. Respira fundo

e admite que há coisas magníficas.

O impacto da saída do metrô em Trocadero. Fontes –

tranças descendo às costas da mulher amada, cúpulas

alimentadas pelo mistério de um rosto que sobressai na

multidão; o sonho virginal que alimenta o turista em sua

primeira noite. Paris. Conciergerie pintada no céu por mão de

amante que não ignorou o efeito da luz em parte alguma do

dia, pensou o vagabundo. Journalier. Por ali perambula desde

que enlouqueceu. A avenida da Opera e o pavilhão místico.

Notre Dame. Adjacências. Contra o verde, tochas na noite,

amarelas, alaranjadas, vermelhas e azuis. Aura dos Campos

Elíseos. Emanam vozes de deuses tristes naqueles dias

chuvosos – a turista adorara tudo, estava fascinada, como um

anjo dormia. Saint Germain des Pres, Cafe de Flore; entre

coquetes e aprendizes de coquete, puríssima nota de Isadora.

Tertre. Um artista se nutre do recorte dos prédios e árvores

no horizonte.

Chega um desconhecido, quer fazer amizade.

Page 94: LISBOA AGOSTO DE 1988

Nastácia passou pela praça Vosges. Gritinhos na praça

sobem além das sentenças na Bastilha. Um trem.

Prolongement jusqu'à la défense. Outra praça. O sol baixo.

Um pai calvo atravessa com sua garotinha. A trepadeira

murmura. Um andar ligeiramente manco. Uma rua mais

exposta à luz que molha a metade superior das paredes

externas. Musica, uma voz se destaca dos telhados. A luz do

sol no Sena tinge de ouro o teto do barco de turistas.

Uma esquina num V sem ponta. Pombos, bicicletas.

Cercas de ferro ao longo de uma rua que dará nessa igreja.

Toldos vermelhos. Uma livraria. Música num acordeom. Um

cão, um cão branco. Folhas pelo chão, folhas em pedaços. Em

Portugal se dirá “partidas”. Paletós dobrados em braços, um

rapaz correndo. Mais uma ponte, cintilações da água do rio,

limo nos pilares, garça, pichações sem fim. E o arco.

Latas de cerveja e grafites bêbados. Famille o quê? A luz

obliqua entre os túmulos. Nem nos shows dele haverá

azáfama assim. This is the end. Um busto de Jim, Je taime

toujours. Ali ele. Entre Yves Montand e Joachin Murat. Pedra e

vento.

Foi aí, nessas ruas e praças, andando por aí, que pensei

pela primeira vez em lar, em como seria minha vida com

Blandine, nosso casamento, nossas alianças de compromisso,

nossos encontros num quarto como parte de nosso encontro

na vida, o amanhecer conversando, o longo dia após o

amanhecer, tanto trabalho e prazer multiplicado pelo afeto

impossível, e a casa – mais non la gourmandise n’est pas un

– enfin surtout passionnés – O que eu estava mesmo

pensando?

Cansado. Você não?

Page 95: LISBOA AGOSTO DE 1988

Será possível se cansar em Paris?

É possível, pensei. Estou bem.

Ela estava mais que bem. Estava a se apaixonar.

Não seriam talvez mais românticas, e apaixonantes,

vielas em meio a gente alegre junto a uma baía?

Nápoles? Por quê?

Respondi que gostava da Itália.

Pois iremos a Roma!

Ótimo, sorri. Nápoles... É, na verdade esqueci o Franco.

Claro. Mas tudo bem. Tenho também, disse-me, outros

francos.

Eu já tinha percebido. E ela não era nada econômica.

Mas se não o ama, por que se casou?

Por não ser nada econômica, meu bem.

Pernoitamos num hotel em, salvo erro, Villa Eugenie.

Entro pelo cheiro de corredor, misto característico de

roupa passada, tapetes cediços e paredes impessoalmente

pur Napoléon III, necessito sentir por Nastácia, ali sentado,

caído na poltrona vermelha, o vento mexendo a cortina

branca, o amor que não sentia, quando à esquerda, chegando

ao quarto, nos vimos no espelho em frente, que nos devolvia

e multiplicava ao infinito que se abria na noite à janela. Eu

estava me tornando um hóspede profissional. Mas não foi por

ali que esteve Hemmingway, que teve os lares que quis

(inclusive em Paris) e ofereceu seu corpo no fim? Life is not

hard to manage when you ha ve nothing to lose. O forte e o

frágil têm afinal muitos pontos em comum.

Pensando assim, e ali Moyen Age, e aqui eu, escapo pela

Gauche ao amanhecer. Saint André des Arts, vibrações de

Kerouac. Como no capítulo daquele seu livro, eis uma igreja,

miraculosamente surgida!

Page 96: LISBOA AGOSTO DE 1988

E assim, num apartamento em Madri, lembrando de

Paris, estou em Saint Germain des Près ao alcance dos ares

eternos do Sena, sob Deus que é tudo e se derrama desde a

vastidão da ilha Saint Louis e além.

Nada perguntei a Nastácia sobre seu encontro. Ela se

satisfaz com a explicação para meu sumiço de manhã.

Dois dias depois, esperávamos o vôo para Roma. Não

decerto para atender meu desejo de Itália. Nada questionei.

Na sala escura, no mergulho do papel, a foto se define.

Exuberante luz de uma terça-feira. Sol suave, agradável

sensação. Nas vitrines da rua Condotti refletidos. Meu Deus,

as coisas aqui são mais caras que nos Estados Unidos! Em

Roma, há duas horas. Deixamos a bagagem no hotel e saímos.

Agora ali estávamos, na travessa, sentados na muretinha. Até

o café-expresso na rua Fratinna, não foi um longo percurso.

Pensei que Paris fosse a cidade de seus sonhos, eu

disse.

Paris é para meu lado fresco, respondeu ela; Roma é

calorosa, para meu lado emocional. Os italianos, completou,

são todos gente boa. E riu.

Exceto o Franco.

Ah, como adoro Roma, amor! Chi la conosce la ama

moltissimo! A bem da verdade, me sinto melhor aqui. Os

italianos são como vocês, calorosos...

Não generalize. Não sou caloroso, se depender disso,

não sou brasileiro. E o Franco é italiano... Acaso é de Trieste?

Trieste?

Você não gosta de lá, acha uma cidade fria.

Ah. Bem, Franco não é italiano de verdade, é um

acidente geográfico; e Trieste é uma cidade que apenas fica

Page 97: LISBOA AGOSTO DE 1988

na Itália; uma bela cidade, mas sem identidade própria, como

toda cidade fronteiriça; não é assim no Brasil?

Dito assim, não me recordo.

Ao contrário do espírito italiano, em Trieste as pessoas

são distantes, como as próprias casas, umas das outras.

Caminhos de vinhedos, sanduíches ao longo do Tibre,

Nastácia, renova a imagem de menina mimada pelo calçadão

da calçadão da piazza San Lorenzo. Um hospital. Jubila noutro

rompante. Magnífico per una dona. O quê? Foi uma mulher

que?

A liberdade. Repetiu. Liberdade. A liberdade é bela,

magnífica.

O elixir do fascínio romano nasce no hálito de suas

inumeráveis fontes.

Eu escreveria um poema a respeito.

Escreverás muito mais que um poema e sobre muito

mais que fontes romanas.

Então Nastácia encontra uma senhora simpática, velha

amiga que morava em Foggia. Che passato un anno!

Abraçaram-se efusivas.

Um café em Trastevere. Romanos são uma coisa, diz ela,

trasteverinis uma outra. Aqui, estamos no coração de Roma.

Esquina da Emilio Morosini. O dia útil termina mas não seus

misteriosos encontros. Deixa-nos um instante para fotocopiar

uns documentos numa copisteria próxima. A senhora

Bonfante fala o tempo todo. Nosso péssimo inglês. Exercício

delirante em meio a cães, gatos e motos. Garante que sou

inteligente e vou aprender rápido o italiano, caso fique em

Roma, easily, believe me. Quando Nastácia volta, a mulher lhe

dirige a eloqüência, gesticulando alegremente. Depois se

afasta conversando com um homem que lhe que parece falar

Page 98: LISBOA AGOSTO DE 1988

que por décadas morando ali nunca viu uma época em que a

região estivesse tão descaracterizada.

Ela disse que você tem uma conversa agradabilíssima.

Mas eu quase não falei. Que melhor interlocutor aquele que

sabe ouvir?

Estávamos em uma esplanada num canto da praça de

Navona. Nastácia é logo reconhecida pelo pessoal da mesa ao

lado.. Foi até eles. Olhando-os, sorri com o lábio superior.

Assim amarelo, com débeis covinhas, distraidamente.

Gargalhadas. Il problema é impedire il mercato unico del 92

divenire terra di conquista per prodotto assemblati in Europa.

Apanhei um papel com entrevistas que fizera antes de viajar,

com dois casais um pouco mais velhos do que eu, no

aeroporto e no avião. Jovens, haviam participado do Maio.

Comecei a rabiscar um fio condutor para o artigo. Em Lisboa,

num café, eu conhecera um editor que me fizera a encomenda

do texto sobre a revolta estudantil. Disse-lhe. Eu não sou a

pessoa adequada. Ele me convenceu. Explicou que a matéria

principal seria escrita por ele mesmo, que participara

ativamente desde Nanterre. Mas eu não, não terá

credibilidade. Terá, claro, respondeu. O que preciso é de uma

retranca, que mostre um outro ponto de vista. E o de um

alienado da contracultura seria ótimo.

Que argumento.

Mostre que as coisas não saíram como se profetizava, dê

a visão de alguém de fora. Que eu indicasse, sobretudo, onde

o Maio não podia ir além de qualquer revolução ou tentativa

de revolução, onde os vícios do que se contesta estão vivos,

em seu próprio seio. E isso, pela nossa conversa, sei que você

pode fazer.

Bem, ainda faltavam alguns meses. Com Nastácia, eu

acreditava que iria conhecer um editor e me livrar do

Page 99: LISBOA AGOSTO DE 1988

jornalismo. Até lá, por que não? Era um dinheirinho muito

simpático.

Esperei que ela falasse alguma coisa para me situar e,

quando o rapaz o disse querer uma coisa leve mas

caprichada, ela disse olha aí, meu, que diabos você tá

pensando? você tá muito enganado, e ele espantado disse

Mas são tantos dólares, não está bom? – Quanto em liras? –

Em liras? Não pode ser em escudos? Quanto? Deixa eu ver...

(disse uma quantia) Suponho que sim, respondeu ele. E

acrescentou: Tanto? Então ela abriu um sorriso radiante que

guardava para momentos especiais e parecia o sol nascendo

entre seus dentes. Olha só, disse ela, não se deixe

impressionar, são apenas muitos zeros, na verdade esse tanto

de liras é muito pouco para um trabalho assim. Nastácia, eu

disse baixinho, mas ela me ignorou e continuou fazendo

contas mentais. Claro que é muito pouco, fumamos a metade,

estás a ver? Ele repete: Ah sei, questão de muitos zeros.

Nastácia, intervim, deixe que a gente se acerta.

Ok ok, forget.

A revista era uma dessas publicações que aparecem de

vez em quando, que nascem com os dias contados, só para

satisfazer ainda que fatuamente, a vaidade de seus donos,

um empresário da comunicação, essas coisas sabe-se lá. De

qualquer maneira, era uma chance, conclui, de me integrar

entre os jornalistas europeus, conforme aliás meu plano

original.

Até aquele momento em Navona, eu hesitara. Quando

Nastácia nos deixou e foi matraquear com os amigos, me

lembrei da conversa com o espanhol no café de Lisboa e

decidi. Preparei-me para escrever o esboço. Na pior das

hipóteses seriam umas tantas porções de haxixe como

aquela.

Perguntei a Nastácia se ela não queria fumar o resto.

Page 100: LISBOA AGOSTO DE 1988

Era-lhe um ótimo afrodisíaco, concordou.

Enquanto ela dormia naquela noite, eu escrevia numa

saleta ao lado. Naquele dia descobri como as idéias fluem

melhor viajando; em Madri, com os rapazes, com Mario

apenas na verdade, descobri como é melhor estar careta para

escrever o texto final, e mais tarde como era melhor

simplesmente ser abstêmio de qualquer coisa.

Mal Nastácia despertou, voltou à querela dos bondes. No

Brasil existem electricos? A Paris il n y a pas de tramway.

Pensei ter visto um. Aquilo não é electrico, bobo. Não?

Edificante assim o nosso relacionamento.

Vamos alugar um carro! Me apetece dirigir pela via

Veneto!

Ela se comportou assim todo o tempo em Roma.

Arrumando a mesa para o almoço com Oleana. Woody

Allen e Diane Keaton se movimentam em “Io e Anne” na TV

do quarto romano. Nastácia precisa encontrar o marido, mas

voltará para passarmos juntos um tempo e procurarmos um

lugar em Lisboa para eu fixar residência. Bem, talvez um

quarto de pensão. Sugeri esperá-la em Veneza. Tudo bem.

Ela estava mesmo querendo ver um espetáculo no Fenice.

De Veneza a Trieste será um pulo. Nada impedirá que

seja assim, saindo pela Avenida Liberdade, pegando a auto-

estrada, chegando no porto, Scala dei Giganti, Via della

Maiolica, pronto, ali está ele, logo ela vai chegar. Combinam

se encontrar na casa que Blandine comprou para que Donda

Maria seja sua vizinha, no Quartiere Melara. Ou – isso será

bem mais romântico – um encontro numa casa próxima à

catedral de Rovinj, cidade em que chegarão pelo mar, ele a

partir de Veneza mesmo. Não há nada tão sublime como o céu

da Iugoslávia visto do Adriático. Quando punha a fita no

aparelho de som do quarto quando ela chegava pela rua

Page 101: LISBOA AGOSTO DE 1988

Grisia, sentiu o coração transbordar. Finalmente. Não se

derramarão mais sem controle, não estarão sujeitos a mais

que suas necessidades. Seriam felizes enfim, como o orvalho

sobre a relva. E depois não dormirão imediatamente mas

lentamente adormecerão.

Se estou irreversivelmente preso ao tempo, o tempo

não faz diferença para mim. Se o espaço é onde tenho de ser,

o espaço em si não importa. Onde estamos? Na Ilha

Vermelha, onde mais?

No dia seguinte ao balé, Francesca e eu nos

despedíamos. Ela insiste para que eu fique num hotel. Ficarei

melhor entre os mochileiros. Ela compreendia mas o Franco

tem relações com políticos contrários e esse tipo de turismo.

O Franco... Suspirei. Não fique assim, disse ela. Tudo ia

terminar bem. Por agora, que nos divertíssemos. Para isso

ela se casara com um homossexual rico. Então mudássemos

de assunto. Ela realmente conhecia a região de Friuli-

Venezia? Palmanova, Udine... Trieste?

Uma e vinte. Oleana deve chegar a qualquer momento.

Veneza cabia bem em postais, que não tem cheiro,

segundo meu mau humor pela presença de Nastácia e minha

dependência dela. O que eu queria?, perguntava ela rindo. A

Europa não é o paraíso. Ah eu sei.

A romântica Ponte dos Suspiros, o beijo encantado...

Pois. Tape o nariz e me beije.

Page 102: LISBOA AGOSTO DE 1988

Eu admitia. Estava chateado sim e não com a Europa.

Comigo mesmo. Porque me desfizera de tudo para chegar à

África sonhando sabe com sabe o quê? Em ser cooperante em

Angola, fazer dinheiro, viver uma vida de paz.

Na Europa. Como cooperante, com sorte,levaria anos,

se sobrevivesse à guerra. Comigo, já está aqui e afinal, meu

adorado, o paraíso está dentro de nós.

Dei-lhe razão. Mas pelo menos me deixe ficar com os

mochileiros.

Ela suplica. Fique no hotel. Sentados com os pés na

água. A frialdade da pedra. A língua em minha orelha.

Enfim concordei, ao pegar o livro na cabeceira. Comecei

a folhear, inquieto. "Apres le dejeuner quand nous sommes

allés à Venise"... Nastácia acaba de partir para Nápoles.

Caminhei. Veneza. Subi escadas e desci. O homem com

acordeom. Acordeom. De novo. Acena com a cabeça. Dobrei

uma ruela e sentei à beira dágua. Um leão de pedra. No colo,

o gatinho ronrona. Na ultima vez que voltei a São Marcos, a

pintora havia terminado o quadro que começava quando

Nastácia e eu estivemos ali pela primeira vez. Um bêbado

dorme ignorado. São Boldo. Casas velhas, crianças pobres.

Veneza. Fria praia vazia. San Zacaria, um vaporeto. Ilhas. Em

algum ponto além, Trieste e Blandine.

Tempo para refletir a respeito.

Melhor que não seja aqui. De decadente, de agonizante,

basta eu. Uma carona para Pádua. Já que o rapaz se comoveu

tanto com minha história – molto interessante! – ou com a

parte que julguei conveniente contar, pegava realmente

bem. Até porque um lugar de igrejas era tudo que de fato eu

precisava, precisava mesmo de paz, de rezar. Em quanto

tempo estaremos lá? O rapaz responde que talvez em uma

Page 103: LISBOA AGOSTO DE 1988

hora se tanto. Mas foi bem menos porque ao sairmos da

rodovia para usar um sanitário acabei achando o hotelzinho

de Marghera, tão aconchegante que eu quis ficar. Ele parece

não ter gostado.

Tomara que pegue uma enchente, amaldiçoa ao ir

embora.

Fiquei. Ainda poderia ir para Pádua, poderia até me

surpreender e pegar o caminho de Trieste de uma vez. Na

verdade o que me impedia, exceto o absurdo da situação,

mas esse estará sempre comigo. O que devo fazer ao

encontrá-la? Dizer: Olá meu amor, vamos? Para onde? E com

que situação?

De repente amor eterno é também uma estrutura

material. Quando a necessidade bate à porta a paixão sai

pela janela? Desaba de novo sobre mim o limite em que me

encontrava. Assim terminarei mesmo entre os mochileiros –

pior, entre os desabrigados. Há alguma perspectiva de que

não seja assim?

A mochileira permanece arrumando suas tralhas.

Absoluto desdém: não existo. Um determinado nó resiste.

Posso ajudá-la?

Não, obrigado. Falava inglês, tomei coragem.

Disse que havia sido mochileiro quando ela ainda

estava no jardim de infância. E era perito em nós. Eu só

queria aju–

Não quero sua ajuda, merda! Desatou a rir e assim ficou

um tempo enorme. Só faltava essa, nostalgia hippie! O que

eu continuava fazendo a seu lado? Já disse, não quero ajuda

nenhuma!

Cercas vivas. Além, por detrás dos telhados, no azul se

Page 104: LISBOA AGOSTO DE 1988

espalha a fumaça negra de um cargueiro. Perguntei a idade

dela.

Era um crente querendo converter a pecadora. Só pode

ser. Sou autêntica e não me troco por mil evangélicos

hipócritas!

Tenho dificuldade para entender o que ela diz e teria

mesmo se fosse português, tal o modo pastoso e arrastado

com que falava. Não sou de nenhuma igreja não, só queria

uma amiga. Antes que terminasse a frase ela grita.

Quer saber? Não estava em nenhum jardim de crianças

quando você se aperfeiçoava em nós! Quantos anos? As

idades de pessoas como ela se mede em séculos. Alivia o

suor num largo movimento da mão direita. Inclina o rosto,

chora.

Ei, tudo vai ficar bem... Acariciei os cabelos dela. De sua

pálpebra escapa um movimento involuntário.

Olha aqui, me odiava, disse ela. Odeio todos os homens.

Pode esquecer, não vai deitar comigo, não de graça, de graça

só com mulheres!

O amor do homem não permite. Violenta, desfigura,

corrompe. Provoca o ciúme, no máximo. Milão testemunha a

decadência. Olhava o cliente e não conseguia mais ver o

dinheiro e o que fazer com o dinheiro, como no começo. Mas

é Claudia, a infeliz, a que não tem mais caminho de volta. Os

braços manchados, corroídos de dor, são sua vida. Então

chegaram ao quarto, ela e a companheira de sonhos, de vida,

de agulha. As mãos fracas se procuram. Se ajeitam. Uma de

joelhos na cama, a outra se abrindo por cima. É Claudia,

cujas feridas no ar se multiplicam, espanto de ilusões. E a

Page 105: LISBOA AGOSTO DE 1988

outra, e a cama no meio do quarto, e os homens no meio das

duas. Não me chamem de lésbica. Me chamem de puta,

poetiza e puta. Ela, Claudia, e sua amiga querida. Quem quer

que fosse a outra, sua amiga mais querida.

Será que sempre há coisas assim? Mas não havia. O que

foi tão espontâneo, tão natural, não tendente? O que tão

belo, como essa lisura de coxa, esse ombro delicado, esse

rosto perfeito apesar das ruas, esse olhar emocional, sem

lugar para cálculos de provedor, de protetor, enfim, do

homem – a matemática do nada, o poder do vazio. No centro

da cama, no meio, mas nelas não, preferia, um roçar de pele

materna, a filha da frustração que em prece é guardada nos

filhos que virão, não por isso, mas porque não cabem mais

nessas lindas e trágicas filhas não de Safo, inteiras do

masculino vácuo que não quer, que só quer. Envolverá um

homem assim um corpo como o meu?, pensa ela, satisfará

assim um desejo de antemão condenado a alternativas? Ou

premiado?

Filha, doce filha, rosa, minha mãe, irmãs. Não há mundo

lá fora. De graça sim só com mulheres!

Só com mulheres! Tornou a rir enquanto permanecia

chorando. Só com mulheres! Em silêncio, deformado, eu

descia em suas lágrimas. E você não tem cara de quem possa

pagar nem cinco minutos com a deusa Claudia! Gargalhou.

Você também parece ter séculos, cara!

Cenas assim não deviam ser incomuns. A maioria das

pessoas passa e nos ignora.

O que está havendo, gata? Não nos demos conta da

aproximação dele. Inconfundível acento lusitano para quem

Page 106: LISBOA AGOSTO DE 1988

tivesse ouvido uma angolana falando inglês.

Você não está cumprindo nosso trato, Antonio. Trato,

que trato? Você sabe: viciá-la e joga-la na vida; apenas por

isso você estava naquele lugar naquela hora. Ó Massimo,

foda-se, estou a gostar da chavala, o trato está cancelado.

Você não é capaz de gostar de ninguém. Foda-se, pá, meu

jeito de gostar não é da sua conta! Se você gostasse mesmo,

não teria levado a coisa tão adiante. Está com ciúmes porque

ela gosta de mim. Só está contigo por causa da droga. Foda-

se, caralho. Tudo bem, alteremos os planos: eu não apareço

mais para convence-la a se internar na clínica, você faz o

papel, mas interne-a, acabe com o sofrimento dela. Quem

disse que ela está sofrendo? Está. Não, pá, ela faz o que

gosta e adora dinheiro e, se vai com muitos, apenas comigo

ela vibra. Tanto que precisa de mulheres... Deixo-a livre, ela

adora ser livre. E as drogas?, estão acabando com ela, você

não vê? Não fui eu que fiz a vida humana ser curta, mas a

dela será curta e intensamente vivida. Você está louco. O pá,

te basa, foda-se, você é que iria lhe dar o que ela precisa, um

fodido de um escravo do trabalho? O dinheiro possibilita

liberdades. Não sou executivo de gravata mas meus negócios

vão muito bem, graças a Deus e papel não é o que falta para

Claudia, admita que perdeu e continuemos amigos.

Intervalos de terra, manchas, de terra e de água, e

permeando-os uma luz única. Perto do mar. O espírito

alterado. Antonio não foi órfão, não teve uma infância difícil;

Page 107: LISBOA AGOSTO DE 1988

ao contrário, nascido em bom berço, teve tudo o que quis.

Demorou mas enfim seus pais, Ele não tem mais jeito,

querida, Bobagem, dizia a mãe, é só uma fase. Quando

sentiu alívio ao deixar Antonio a casa, deu o braço a torcer. O

pai se refugiou no quarto, Meu filho, meu único filho.

Ali estava ele, quase às margens do golfo.

What it s happening here? As pessoas param, mantém

uma distância prudente. Che cosa è? Era a vida de um

brasileiro, tornada subitamente importante. Os presentes

nunca teriam dúvidas a respeito mas, ao contarem o caso

para os amigos, omitiriam esse ou aquele detalhe e, o mais

importante, não saberiam dizer como ele chegara ali. Mas é

um homem corajoso.

Coisa que na realidade jamais foi.

Antes que atacasse, Antonio de relance viu a morte da

mãe, ela morta, um segundo de nada e em nada resultou. A

luz do sol é a mesma para os três, os reflexos do estilete se

repetem no canivete. Agora. Wow! Ele, Andrei, nunca

brigara. Não tenho chance, mas que importa? Mas há entre

as pessoas quem acredite. Crazy world! Antonio só muda o

tom por medo e o medo impulsionou o braço de Andrei.

Ameaçador, Antonio avança. Ela não está em condições.

Doce menina.

Um brasileiro? Abriu o canivete. Foda-se! caralho! Um

estilete no bolso da jaqueta. Achava que ia assustá-lo com

esse chino ridículo?

Era um instrumento de trabalho, nada que devesse

assustar. Só queria conversar com Claudia. Onde respira o

horizonte, na luz do sangue nos olhos?

Page 108: LISBOA AGOSTO DE 1988

Foda-se! Conversar com minha mulher? Nunca mais

quartos exilados sem futuro. Caralho! Nunca mais falta de

diploma, livros sem publicação. Enfia esse chino no cú!

Tomba o caos. Inclinam-se as dores para bem. António,

intervém ela, doce, doce menina – escute, ela suplica que

pare!...

Fizera um movimento, a lâmina de past-up que ele

chamava de chino a um braço de seu pescoço, o sol em seu

canivete. O pá, te basa! Sai fora, acho que é isso. O corpo

dela exala um cheiro forte; o dele, Andrei, também. Amor e

ódio. Bem, se quisesse dar uma, Antonio fala, aí a conversa

seria outra. Toda vida é descartável? Iras reprimidas em seu

queixo. Foda-se! Ecos de um grito, gritado por um vapor

interno escuro e azedo.

As pessoas ao redor param por causa da cena. Do chão,

amaldiçoa. Um gajo morto, o que eu era. Definitivo, avança.

Ela entre os dois. Os policiais abrem caminho. Luzes

circulam, sirene. A investida adiante, empurra Kátia – Foda-

se! A lâmina rasga o ar. Continuar, portanto sobreviver. Ela

sangra, pobrezinha. Agora pense: há um fato realmente

novo.

Polizia!

Pagarão caro, não sabem com quem estão mexendo. Os

policiais não entendem, ou fazem que não. Os turistas

voltam ao passeio, os nativos a seus afazeres. Acabou.

Um bosque. Uma lancha passando. Além, uma cúpula.

“Quand on ne s'aime plus”. Arredores de um lugar chamado

Giudesca, Giudecca, algo assim, se bem me entendia os

circunstantes. Uma rua de nome Pietro Buratti, se vi direito a

placa (se era de fato uma placa). Não estamos mais no

Page 109: LISBOA AGOSTO DE 1988

centro, não está mais tão perto de São Marcos, embora aqui

transitem na boa muitos pombos em meio a um e outro

gatos. Quem quebrará o silêncio? Ela o abraça-o sem dizer

palavra. Medo. A razão de não o ter enfrentado antes. Mas

provavelmente também estivesse acomodada. Com Antonio

tinha toda heroína de que precisava. Só agora, pouco antes,

se decidira. Custasse o que custasse, voltaria a Muggio, sua

comuna.

Então eu tive uma súbita alegria, Muggio é perto de

Trieste, não é? Na verdade não era do meu feitio ficar assim

tão gratuitamente alegre até porque Blandine havia se

arrefecido em mim, por causa da própria Claudia. Mas era

assim., um azul intenso sobre os telhados, e o rosto de

Claudia como o rosto de uma grande amiga a quem logo faria

a definitiva confidencia, estou perto de reencontrar o amor

da minha vida. Os lábios dela se apertam e encosta a cabeça

em meu peito, então dei por mim, o quanto me tornara

patético, e nem sei onde ou pór que isso começou e se

alastrou em meu ser, um menino tão promissor, um

adolescente estudioso, um estudante aplicado, quanto

inutilidade sob esse céu de intenso azul, e sequer era assim,

não, Muggia é que perto de Trieste, como quem vai para

Portogruaro, tenho uma amiga lá, inclusive, a Andrea, seus

olhos me desnudam e dá um risinho, você ta pensando em

Muggia, é lindo lá também, tem uma linda catedralzinha, mas

minha cidade é Muggio, como quem vai para Brescia,

passando por Verona, ah sim, a cidade do amor trágico,

muito significativo, pensei, olhando a macas de seu rosto se

tronarem de um rosa sóbrio e sadio, e piscando ela disse que

é comum as pessoas fazerem essa confusão. Agora está mais

claro do que nunca que o que tenho de trágico é antes

constrangedor.

Page 110: LISBOA AGOSTO DE 1988

Sim, voltará a Muggio, como estava dizendo. Irá

retomar a vida de onde fora interrompida, havia dez anos,

quando conhecera o gigolô. Queria haxixe. Experimentou

heroína gratuita. Então ele lhe propôs a riqueza, a beleza

dela com a sua proteção. Viciada e transtornada, aceita.

Por falar nisso, Claudia precisa um pouco de pó. Ou

enlouqueço.

Um hotel. Trieste esquecida.

Precisavam ir na chefatura amanhã, segundo dissera o

comissário. Flash. Um BNW (acho, não reconheço senão os

fuscas), azul e branco. 64390. De uma delas descera o

carabiniere que imobilizou Antonio. Apenas rotina, esclarece

Claudia ao voltar do banheiro da suíte, a fala de novo

pastosa, tiques de novo.

Que linda era há vinte anos! Uma menina gordinha,

adorável, tão querida, dizia a tia para a irmã. Um dos

guardas dissera, ao ver os documentos, Un’anziana signora...

riconoscimento di Cittadinanza Benemerita, Si disse o outro,

gode immensa popularità... Doces influências de mamãe.

A primavera sorri em meio aos espantos.

Seus cigarros. Ai. Onde deixara os cigarros? Você não

viu? Divisões de mochila freneticamente vasculhadas.

Podíamos ir tomar um café, contaríamos nossas histórias.

Seus olhos são tão claros... Ela então mostraria os poemas

de sua agenda nova. Tome um dos meus.

O quê?

Você não queria um cigarro?

Ah.

Page 111: LISBOA AGOSTO DE 1988

Acende. I live in an - o-ther world - Claudia em dueto

com Dylan - where life and death are memorized. Deixa-o ao

fundo: all I see are dark eyes. A gente vive num outro

mundo, um mundo de almas puras onde eu queria ficar com a

purificação da minha. Mas talvez seja tarde demais.

Dois frêmitos se insinuam no torpor à janela. Na

habitação vizinha, sobre a casa, uma caixa dágua recortada

contra um céu prateado como um carro de polícia. Uma

caminhonete está parada diante do hotel, nada mais que um

sobrado coberto de hera. A noite outonal, fresca lá fora, fere

com insuportável beleza. É que às vezes fico mesmo

sentimental demais.

Caso seguíssemos daqui, no sentido apontado, iríamos

parar na França. Mas esse dedo apenas quer mostrar onde

há um lugar que vende leite e pão. Mas por enquanto vamos

dormir.

Dormiram.

O prédio da polícia. Quando voltarmos a Veneza.

Convencida a fazer uma promessa. Claudia, você pode. A

imagem de um animalzinho acompanha as palavras. O que

perderia se tentasse? O esquilo avalia os riscos, supera os

obstáculos e alcança a noz. Tenho medo, ela diz.

As primeiras quarenta e oito horas. Passeando em

Veneza, sem romance, apesar de reticências aqui e ali.

Amigos. Sobretudo isso. Mas logo ela, prenhe de sobressalto,

quer desistir. Na manhã do terceiro dia, pede para ser

amordaçada: seus gritos poriam tudo a perder. O que

sustenta os estão que sem limites? Na mochila, um velho

vestido largo. Espírito de desintoxicação se arrasta ao

Page 112: LISBOA AGOSTO DE 1988

banheiro. As mãos na borda da privada, polegares para

dentro. Será que posso fazer alguma coisa?

O que se faz num momento assim?

Lui è un uomo confuso, ma così dolce. Um homem tão

inseguro também, mas tão disponível. Podia fazer alguma

coisa? Cheiro de inferno pelas frestas. Poderia recuperar a

minha infância? Não sei quanto tempo. Aparece enfim morta,

sinalizando para que tire a mordaça. Vômito pelos braços.

Oh Deus misericordioso! Uma quina de livro aparece na

mochila. Ela tenta voltar para a cama, curvada sobre sua

sentença. Alguém a seu lado. Seu corpo, um país invadido. A

dor estava ali, em letras garrafais. Abraçou com força os

joelhos. Olhos súplices. As solas dos pés. Os dedos nervosos

se contraem. Olhos súplices e pontos de pressão. Hun. Se

aquieta. Suor abundante, orvalho de uma futura vitória? Não

será capaz. Não serei, tampouco.

Mas e a codeína em minha mochila, daquela gripe pouco

antes da viagem? Uma cápsula para cada um. Multiplico-me

em do-in, nos pés, nos pulsos, na nuca de Claudia. Dou

banho nela. É na água o indício mais intenso de uma calma

próxima. De que lugar do Brasil você é?

Do Espírito Santo, já ouviu falar? Uma parte do Espírito

Santo se derramou pelo mundo, quase um pentecostes.

Ela sorriu.

Toma o pulso dela, acaricia em torno. Por pouco ela não

tem idade de ser sua filha. Então ele retira, além da correia

do relógio, as fitinhas e as miçangas. Ela era quase da altura

dele mas agora está maior, justa nos movimentos. A paz

molhada que a acariciava se mostra fugaz, a respiração se

Page 113: LISBOA AGOSTO DE 1988

altera, de novo e de novo. Assim.

Até o sexto dia.

Devagar, o sono em suas feições. A noite avança e ela

dorme. Ele se recosta a seu lado e despenca em seu perfil.

Sabia que a chance era pequena, mas Claudia era valente,

apesar do cansaço de estar viva. Comovente seu jeito de

dormir, filhote de gazela lambido pela mãe. A maciez alta do

travesseiro esconde parte de seu rosto, a moça de Muggio.

Acima dos cabelos espalhados, a guarda da cabeceira se

entrelaça em palha.

Houve aquele momento de cuja espécie são feitas as

decisões mais nobres que são tomadas ao longo da vida. Ele

a olhava e disse baixinho que ela se livraria, determinado

talvez com isso a salvar a si próprio. Aproxima o olhar e se

excita. Era como se tivesse pegado o futuro, como se o

tivesse dominado. A exaltação cresce e o desejo chega.

Difícil separá-lo do amor, esquadrinhá-lo, discernir o amor.

Pensou ter reconhecido um desses instantes antes de

novamente dormir.

Acordou sobressaltado. Ela acabara de acordar também.

Queria dar uma volta. Em Veneza há um lugarzinho, ao lado

do canal, em frente do relógio da igreja, quase junto às

escadas, uma comidinha. Também talvez vidros, jóias.

Lembranças da infância dela. Contemplações de chocolate. A

desintoxicação é uma gravidez.

São cinco horas, amanhece, há de repente um motivo

para se levantar. A morte não a atrai agora nem a vida a

assusta. Ele abre um sorriso e toca a testa dela com cuidados

de louça. Você está com uma aparência muito boa, ótima na

Page 114: LISBOA AGOSTO DE 1988

verdade.

Se ele estava dizendo, ela acreditava. Ele. Então

também o tocou, não como se toca um amigo, talvez como a

um irmão mais velho (se o incesto não fosse pecado), sim,

como uma irmã mais nova, muito grata e definitivamente

desejosa.

Ele escreve. Ela torna a se deitar. Faz-se silêncio, como

os silêncios que antecedem, depois dos largos, os alegros de

Vivaldi.

Sentiu que renascia. Amando quem ali estava e tudo ao

redor. Disse a ele que se sentia estranha, o quarto lhe

parecia estranho, um lugar como esses que a gente sabe que

conhece embora nunca tenha estado lá. Está feliz – é

possível? Está viva. Sentada na cama.

Nossa, pergunta se o relógio estava certo. Sim, ele diz.

Era quase um novo dia e já começara. Ela sabia e queria

partilhar com esse que indaga de seu estado.

Estou ótima. Estava se sentindo realmente muito bem.

Disse o que ele espera ouvir. Abraçam-se. Não saberiam

dizer o que sentem, por isso se calam. Sem a droga, tudo se

tornará mais fácil. Ela tentará se manter limpa cada dia,

como os anônimos. Era mesmo o único jeito, concorda ele e

pensa como se tornaram próximos, em como ela estava

próxima, cheirando a sabonete, com sua coxa encostada na

eletricidade do braço dele, a renda da calcinha brotando

como um sol no horizonte do cós da bermuda, levantando-se.

Um pássaro, um pássaro noturno. Foi assim desde sempre.

Nunca cresceu o bastante, nunca acordou completamente.

Um começo escuro do sulco das nádegas.

Ela pergunta. Ele era homossexual? Ele sorri. Por quê?

Page 115: LISBOA AGOSTO DE 1988

Bem, tinha visto ela nua, dera-lhe banho, dormiram juntos. E

agora aquele abraço. O abraço. Alfazema. Quando eu era

menina, no sul da França. Uma perfeita aristocrata...

Ele ainda era um vagabundo? Sei não. Estou meio

acostumado a acordar com codeína. Azulíssimo mar de

lavanda. Não é bem azul. É... Poderíamos fazer uma viagem,

pensou ele, depois de comprometidos. Disse a ela que estava

enganada, é claro que ele sentira o abraço, mas é que a

gente acabou de chegar do Inferno e não há mais trens hoje

para o Paraíso.

Pensando bem, disse ela, acho que senti o trem.

Antes o quê? Sempre alguma coisa. O trem estava na

estação mas não havia horários para aquele dia. Imagino que

você esteja exausta.

Ele estava sendo muito bondoso, disse ela, pensando.

Mas será que não dou mesmo sorte, ou é oito ou oitenta?

Demais. É sobra.

Seria melhor o tal Antonio?

Furiosa. Indignada. Realmente, não havia mais trens.

Cansado da solidão, recusa-se a se livrar. O que a isso

o levava? A fuga do que se deseja. O medo da realização.

Claudia podia ter se tornado protagonista. Tão mais simples.

Nada mais de loucuras, de mulheres casadas. Ai. O pássaro

de novo. De novo a sua voz. Um clamor desesperado. As

coisas só precisam seguir naturalmente o seu curso.

Patético, pero uno patético con cierto encanto, murmura

Oleana na Biblioteca. As chaves que ela deixou entre os

dedos dele no apartamento. “Peer Gynt”. Esse não conheço.

E é Ibsen. Minha cultura é nenhuma para um jornalista –

esses homens extraordinários que entendem de tudo,

Page 116: LISBOA AGOSTO DE 1988

tudinho.

Depois de passar a manhã ao sol e o tom róseo se

sobrepor à palidez mais que congênita, doentia, ela, Claudia,

se arrumou, excitada. Iria finalmente reencontrar a mãe.

Passara ele para segundo plano e lamenta agora a

oportunidade perdida. Sina dos tímidos, dos acanhados,

fracos. Mas ele não. O que, enfim? Coisas da droga,

seqüelas? Ele fora ela, o rapaz, o homem do Espírito Santo.

Passara pelo que a menina de Muggio passou. Ele fora ela,

ontem. Ainda tentou se insinuar. Ela lembra que não há mais

trens.

Esqueceu?

Pergunta-lhe se ainda está zangada e Claudia diz que

não, Tanto que gostaria que fosse comigo, convidou. Para ser

apresentado a mãe, pensou ele, como um bom amigo, e a

seus amigos como um novo? Entre eles decerto um

namoradinho de adolescência e um novíssimo flerte em cujos

braços se jogará amanhã. Podia ouvir os risos, as lágrimas, a

noitada de comemoração, ele acabrunhado num canto,

sozinho.

Ao menos, me deseje sorte.

Ela ia para casa. Ele jamais. Desesperado, não tem mais

jeito. Boa sorte e se cuida para não passar para o outro lado

e se tornar uma burguesinha fútil.

Em que lado estava ele? morto ou vivo? Nem uma coisa

nem outra, certamente.

Recebe a primeira carta ainda em Veneza. O remetente

dizia Muggio-Mi. Lembra de tudo o que ela havia contado, da

infância cheia de viagens, da região da Lombardia, e de tudo

Page 117: LISBOA AGOSTO DE 1988

o que preferira não saber pelo muito que gostaria de ser. Ai.

Claudia, refizera ela a vida. Começara a trabalhar e estudar

arte. Noutra carta, já para a posta-restante de Lisboa, está

nadando, viajando novamente, tocando num clube de jazz,

batendo fotos para uma revista e escrevendo uma peça.

Tocando a vida. Pretendia até fazer esportes de inverno.

Então ele se perguntou. Qual a relação entre a vida

despreocupada das varandas ao crepúsculo e a travessia sem

rumo entre sóis?

Respirou fundo e enfiou nos cabelos os dedos que

haviam dobrado a carta e a devolveram ao envelope, os

mesmos dedos que dias antes estavam introduzidos nos

cabelos de Claudia. Quase podia sentir o cheiro dela, um

cheiro de mortalidade, um doce aroma de tempo. A

libertação encerrava sim a angústia, estreitava a estrada,

dificultava os prazeres e os potencializava. Intuiu no

momento exato em que sob a estrela, que era a ultima, o

bem-estar se desgarrou da satisfação da necessidade e do

desejo; quando a estrela, a ultima, a que restou da noite,

cintilou. E cintilaria apesar da dor e ainda que os olhos se

fechassem.

Então, só me resta dormir. Adormeço segurando a

folha.

A campainha. Atravessa a tarde entre as paredes.

Oleana entra. Que cheiro bom! Olhava-a, parado na

porta. Hun... A timidez, que o vidro da janela refletia, me

detinha. Cântico dos primórdios. Eco de oceanos. A

respiração, ondas. Sobe uma gaivota, evita a espuma para

ter o vislumbre do peixe. Ela me pergunta se eu quero tomar

Page 118: LISBOA AGOSTO DE 1988

alguma coisa.

Hun?

Se eu queria vinho tinto ou verde.

Você quer mesmo almoçar agora?

Na verdade, ela não estava com fome, mas a comida

estava com tão bom aspecto, iria esfriar. Além do mais, o

cheiro já começara a abrir seu apetite.

Talvez eu esfriasse também.

Calma. Temos a tarde toda e –

Tarde toda que nada. Comida se requenta. Eu adorava

comida requentada.

Eu não, disse ela num tom de repreensão, com aquele

tipo de raiva contida que se alarga pelos gestos e cria tiques

no olhar e nas mãos. Onde esta o menino comportado que

deixei aqui de manha?

O assassino ocupa um lugar de honra na casa do morto.

Onde estava na verdade? (me pergunto). O menino. Viajou.

Voltou ao Brasil, esteve na África, voou a Paris, passou por

Roma, e agora há pouco estava num maravilhoso idílio em

Veneza, interrompido por uma ridícula falta de trens.

Ela estava preocupada. Você se drogou na minha

ausência?

Respondi altivo. Olha para mim, nos meus olhos. Há

algum indicio de droga?

Ela estava olhando e garantia que isso em nada

ajudava. Queria que a gente sentasse e conversasse.

Mentira!

Era mentira sim... Jogou a bolsa na poltrona e deu três

passos na minha direção.

Page 119: LISBOA AGOSTO DE 1988

Há uma luta de toques febris em planos distintos, pela

renuncia do amor nos corpos unidos e desmascarados pelo

mesmo beijo. Uma luta mortal reluzindo na faca em minha

mão (fiapos de cebola no corte). Dou uma olhada na pia e me

oriento para deixá-la ali. Oleana enlaçou o meu pescoço e

cobriu meus lábios com os seus (oh glädje, mycket fint). Foi

um beijo longo cheio de alternativas. Ofegante fiz as suas

roupas acompanharem para cima o braço que a envolvia. O

quanto de desejo, paixão, e o quanto de espécie? Arbítrio

algum. O outro braço dobrou os joelhos dela, e peguei-a no

colo, criança rendida. Levei-a para o sofá, sem interromper o

beijo, a ouvir sandálias ecoarem no assoalho. (Oh fuck jag).

Ignorando que, tardasse o que tardasse, tudo estaria

terminado quando o fogo deixasse de crepitar.

Depois das janelas cuspindo labaredas, apenas

cadáveres de pedra.

Ela se deixa no sofá. Me ajoelho, escravo, adorador da

espécie. A mão entra no decote. Descem os lábios, orvalho

num monte. Quando desanoitece o outro, um padeiro na

falda amassa pão. Meu desejo entrecortado se confessa: a

respiração me reconhece pecador diante da perversa

inspiração anatômica de Deus. Cúmplice do criador, liberta o

pulsar como uma hóstia. Eu nada podia senão contemplá-la

em suspenso.

Eu tudo podia naquela contemplação.

Sair do que não era, parecendo ser. Penetrar no que

tudo compreendia, nada parecendo. Contemplar. Bicos

Page 120: LISBOA AGOSTO DE 1988

róseos roçam meus joelhos. Eu me lembro. Como de um

espetáculo no qual os atores existem apenas em função da

peça que representam, não têm vida pessoal, e a peça não

contem valor dramático, apenas estético. E meu outro ser,

alheio a meu corpo ator, deduzia das mãos e lábios

incansáveis, que a realidade não estava ali, mas o obscuro

preâmbulo de um depois mais cedo ou mais tarde.

O vestido reluzia amarrotando-se nas costas dela,

subindo e a desvendando, égua de reprodução, guizos ao

balanço da correntinha com o crucifixo, galopa em campos

distantes que o trem atravessará. Inclinado, me apoio

descendo a trilha onde seu umbigo era referencia.

Enfim! Premiado! Meus dedos brincam com o elástico,

um beija-flor paira sobre o jardim, ou alguma outra imagem

semelhante, quero dizer que podia sentir seu cheiro agora

forte e doce, não familiar. Um toque, um toque que se

demora, uma profundeza esperada.

A sala imerge em uma nuvem oleosa. Cílios de sol lá

fora dissipam o cinzento da manha. Eso, ahora. Uma torre.

Uma cúpula. O movimento conforme o reclame dos lábios. O

braço que antes apoiava sua cabeça (uma pomba se solta

das mãos de uma criança) leva a minha mão ao longo do

sulco pelo arrepio da pele. Detenho-me também aí no

elástico e alivio o aperto até restar a marca estriada na

cintura dela; desço mais, até a umidade tenra.

Si, si...

A pressão chega ao fundo de um grito surdo. O outro

dedo passeia na abertura, como um homem preocupado anda

pela sala. Soy tu perra ahora. Não quer um namorado. I have

my love. Que ele, que Andrei não estragasse tudo com

carinho.

Page 121: LISBOA AGOSTO DE 1988

Provo um gosto de mim mesmo naquele ponto em

vivido contato com a Mulher dentro dela desfeita em

gemidos, e cada descoberta lateja mais. Deixa eu te engolir,

puto, dejame te comer. Latejava, mais e mais, a ponto de –

O arroz!

Um cheiro de queimado se sobrepõe aos demais. Um

ruído de água transbordando sobre o fogão, no ferro

enferrujado. Com o sacrifício do operário ao som do

despertador, segurei seu rosto e sai de sua boca. Levantei e

tentei andar, tropeçando na calça. Consegui chegar junto ao

fogão e desliguei a chama. Eu podia jurar que tinha

desligado.

Ela podia jurar que eu só a andara atiçando.

Contemplei-a. Fiquei descalço e tirei as calças antes de

voltar. Limitar ao homem a dissociação entre amor e sexo?

Ondas puras de desejo emanam dela. Em todo caso, um

problema semântico, pensei. A humanidade faz amor quando

faz uma coisa cuja única semelhança com a relação física do

amor é ser igual a ela.

Recostados no sofá, abraçados, nos beijamos. Por

instantes, nada aconteceu alem do beijo.

Jardim iluminado e regado. Deixam-se cair. Ela abre os

braços dele contra o tapete e procura se deixar. Tarda os

movimentos necessários. Não mais segura os pulsos, mas os

braços continuam abertos. Ele desenha os contornos dela,

levando a seda e o crepe. Deixa que suas pernas façam o que

pedem, e se abrem. Entre elas, ele entra.

Cintilações ao longo da noite transparente derramada

no tapete.

Mãos, mundos a que o sol ibérico não tem acesso.

Page 122: LISBOA AGOSTO DE 1988

Sussurra o nome dele, agora grita. Que a comesse todinha.

Assim, tão limpo, tão liso, quase uma criança, uma criança

macia e valente, trem na campina, deve ter sentido que ia

gozar, saiu e veio por trás, encheu as mãos com seios e ela o

recolocou e ele arrematou. A gruta agora o recolhe sem o

lapso do outro jeito. Às suplicas dela, apressou-se num quê

de selvagem. Animais na floresta. Alegro, majestoso.

Um rio, brutal onde nascia e sereno ao correr no leito

em Oleana preparado.

A meu lado na cama, ela dorme. Ah os objetos do

desejo! tão distantes do que antes fazem supor! Mas o que

eu quero? Que a noite não chegue após o crepúsculo? Uma

vertigem conhecida se segue no sonho de Oleana, mar

laminado a invadir todo conhecimento e linguagem. A mulher

se levanta e Oleana está falando ao dormir.

Eu também sonhei, num cochilo, com a chegada de meu

habitante, o Outro, não eu, o Eu, em mim. Eis a pureza do

dia. Talvez Deus, talvez o amor, provavelmente ambos.

A noite insone, o haxixe, Oleana, o almoço: adormeci

profundamente.

Fios escapam do sono para o quarto, a cor do dia

esmaece. Quando algo quer negar a realidade da noite, sente

a cabeça recostada a seu peito e torna a adormecer.

As persianas batiam, as cortinas arfavam, um miado

atravessa a musica sobre o casario, pombos súbitos

encontram e abandonam o parapeito.

Um cheiro.

Page 123: LISBOA AGOSTO DE 1988

Diluo-me por uma substancia horrenda, impregnada de

trevas, num mundo geométrico, de profundidade publicitária.

Atravessada a fronteira, um continente sem esperança. De

súbito um caminho, de árvores ladeado. Quem sabe. Os

tempos estão mudando. O amor é revolucionário, redentor.

Mas minha vitalidade se funde mesmo ao nada sob a copa

cremosa de uma árvore, não mais tão grande como antes

parecia, um arbusto na verdade.

Acordei sobressaltado, tentando discernir quem era. Ou

o quê.

No buço dela, a noite sobre os lábios entreabertos. Nem

num nem noutro mundo meu coração podia se acalmar. Não

havia mais sonho ou despertar que me valesse.

Oleana, sonha com aviões e tempestades. Está nua,

exposta aos trovões, mas seu namorado batia na porta. Foge

dali e adiante surge uma figura inócua, uma sombra. Depois

conversa com um estranho num elevador, acerca do tempo.

As feições dela tem alguma coisa dura, militar.

Peguei em  armas quando pouco mais que um garoto,

não era ainda um homem e as tinha abandonado, sem usar.

Costumávamos lanchar de frente para a baia, encostados

num tronco, à sombra do verão carioca, diante do prédio do

jornal. Liberdade de imprensa. No dia em que chegasse,

alguém dizia, não deveria ser pretexto para a obscenidade,

para o desrespeito, para a notoriedade vã e o ganho a

qualquer custo. É isso que eu temo, diz alguém. Liberdade

demais sufoca a liberdade. Folhas caem, a arvore farfalha.

No dia em que a revolução vinga não subsiste em seu seio os

pecados que inspiraram o levante?

Há uma loja na esquina, abriu na semana passada, que

Page 124: LISBOA AGOSTO DE 1988

importa vinhos de mais de dez países. Eu não sabia. Sei que

uma nova organização social não existe, mas renascimento

de homens. Lanchávamos e agradecíamos por ter o que

comer. Dois de nós, antigos andarilhos. Perto de mangueiras,

quando se está em cidade do interior faminto do lado de fora

dos muros, o chão fica coberto dos frutos de repente e o

mochileiro mata enfim a sua fome.

O cheiro, entendi, era de manga.

Conheci Rachel no trem de Buenos Aires para Santa Fé.

Havia uma certa dureza em seu rosto, que logo se mostraria

falsa, era uma ternura de garota. As mesmas sobrancelhas,

como que escovadas, pálpebras lisas e cílios curvados

alongando o seu olhar. Se não se pareciam, decerto uma

lembrava a outra.

Agora Oleana está no metrô, olha para frente, mas

ninguém sabe para onde olha, por causa dos óculos escuros,

e pode assim perceber o  olhar de soslaio do rapaz a seu lado

enquanto a voz cantava o nome da estação.

A voz de Joan Baez enche a inverossímil comunidade

hippie em Rosário, em fins do percurso de Perón, como uma

voz que canta nomes de estação.

Rachel e eu tivemos um primeiro contato na Ciudad de

los Ninos, em La Plata. Ela estava com uma sobrinha e eu

escrevia um poema quando uns gorilas me agarraram.

Vieram com uma conversa estranha, exigindo que eu

dissesse o que os versos significavam. Perguntei se

gostavam de poesia, quase me estrangularam. Eu não tinha

Page 125: LISBOA AGOSTO DE 1988

mesmo a menor queda para guerrilheiro, apesar de minha

barba à época. Rimos muito quando ela me explicou sobre a

direita argentina e o Exercito Revolucionário do Povo, acho

que é isso. Fizemos amor pela primeira vez no dia 1o. e maio

de 1974, os conflitos pelo radio como fundo.

Folhas caindo das arvores, namorávamos entre os

pássaros, as borboletas e as abelhas.

Nunca mais eu o vi, pensou Rachel ao pegar a foto na

gaveta, focalizando o sorriso. Dizia coisas engraçadas e era

tão meigo, sentia mais falta do feijão do que dos pais e,

como ela, nada tinha de revolucionário exceto por um

comportamento, embora compassivo, dado a indignações

pelas quais nunca havia razões oficialmente nobres.

Ela o levou ao quarto sabendo que ele era virgem, pois

contara para ela. Mais tarde, um amigo deles embaixo dos

galhos esperava os frutos. Olha só este, que lindo, Rachel.

Oh si mui hermoso. E valia para as mangas e também para o

corpo dela, de short, no galho acima. Alguém poderá dizer

que acabaram de sair da cama, portanto como pode? Ele não

sabe, naturalmente não tem a ver com sensualidade, era

uma atração, e ainda é, muito ligada à visão, não

necessariamente à carne, bem, não tenho uma teoria a

respeito, apenas é assim.

E antes ou depois de perder a virgindade, não mudou

nadinha.

Ah como ele conseguia manter aquele cheiro gostoso de

homem saindo do banho? Um homem cheirando mal é quase

tão repugnante como um homem sem cheiro – ela dizia

coisas assim, totalmente inesperadas, pela alameda que

florida serpenteava ate o portão.

Page 126: LISBOA AGOSTO DE 1988

As flores, regávamos de manhã, durante as passadas, e

à tardinha, caindo a casa nas sombras argentinas. Como se

diz, bons tempos. Cheiro de manga em nossas viagens pela

Santa Fe real em nossos corpos oníricos. Quatorze anos...

Onde ele estará?

Quanto a ela, Rachel, estava ali, longe dele, nem sabia

porque estava pensando nele, em Andrei, afinal.

Em todos os sentidos sim mais distante. Mudara ela de

cidade, de país (não de idioma), tinha sua própria casa, neste

mesmo mundo não-revolucionável, uma casa própria, com

menos flores e caminhos, um outro cheiro, e nenhum amor

exceto o sexo, e companhia alguma com quem partilhar no

dia-a-dia tardes como aquela tarde de abril, quase maio,

pensou Rachel ouvir o baque no chão, e outro.

1988. Há de ser ainda um bom ano.

Cheiro de manga quando, deitados na rede da varanda,

Rachel e eu partilhávamos os mundos que jamais se

cruzariam de novo. Que amizade! Logo íamos descobrir não

ser o bastante, nem o anseio de justiça, nem as lágrimas

comuns, nem a misericórdia ou o desejo.

Não, não era o bastante. Estava tão sozinha, assim

nasceu e morrerá, assim vivemos. Nunca mais o vira.

O que é o tempo? em que ponto dele Rachel ficou? O

que é passado, e em que sentido passou? Não volta? Quem

pode garantir, por que não se há de renovar noutras

pessoas, noutras consciências,  por que –   Quando

atravessava o rio no sentido de Pasos de los Libres, senti a

falta que Rachel me fez um dia. Em que sentido não é a

mesma falta que sinto de Blandine? Ali meu coração a

Page 127: LISBOA AGOSTO DE 1988

preparou, ou ao menos talvez tenha preparado, ali também

me preparei para meditar no apartamento de uma mulher,

onde sobre todos os moveis há toalhinhas de crochê, o que

em nada combina com Oleana, que agora desperta e diz Olá.

Ola. Que horas? Digo. Ainda? Vou dormir um pouquinho

mais, esta bem? Claro, dorme. Um beijo na testa.

Ela quase começa a gostar desse tipo de manifestação.

Aconchegou-se e logo a respiração introduzia novos

sonhos. Já vestido, dou uma olhadela para seu corpo antes

de sair. No final do corredor, a ânfora no suporte. Não há

uma semelhança com aqueles vasos de Veneza? Ei, sim,

muita mesmo.

Claudia partira e Nastácia havia regressado conforme

combináramos. Estava rosada. O lenço com que prendia os

cabelos realçava a beleza de seu rosto. Não torna a

mencionar divórcio. Ainda bem. A beleza que exibia era a do

pecado sem futuro, essencialmente a nossa condição. Entre

Trieste e Muggio, eu procurava ganhar tempo.

Agora estava bem perto. Friuli-Venezia Giulia, Altopiano

Carsico, Café Degli Specchi, Revoltelle, Della Sorgente,

Adriático: nomes a que Blandine concedera aura mítica.

Durante meses a fio, desde que ela partira, eu perambulava

pela riviera triestina e ali ficava ao sol. Súbito ela surge.

Sozinha. Olhamo-nos uns segundos e corremos um para o

outro.

Todavia...

Agora eu me sentia meio que liberto do encanto, pela

Page 128: LISBOA AGOSTO DE 1988

realidade que retirava da imaginação a magia. Com a mesma

proximidade, reapareceram as ninharias que produziam

grandes discussões, palavras ferinas ditas com o fim de

serem esquecidas, ou jamais esquecidas, mas eram

realmente esquecidas até a discussão seguinte. E eis os

ciúmes, a perfeita harmonia fazendo fronteira com

incompreensíveis indelicadezas, representando, além do

amor, certos amores que, por demasiada intensidade,

gastam-se em não muito tempo, quando poderiam, mais

contidos e menos apaixonados, durar a vida inteira.

Mesmo fosse isso irreversível, quero dizer essa

instabilidade do relacionamento, esses altos e baixos, se não

tivesse jeito, estava ligado, o relacionamento, a uma

condição matrimonial que me excluía, como de resto era

agora a minha condição em relação a própria Blandine. E o

sonho, por demais perto agora com a proximidade entre

Veneza e Trieste, esmaecia.

A água ferve na chaleira e o vapor se junta aos

gritinhos do bebê. Bruna, meu amor!... Cadê mamãe? Cadê o

neném mais lindo do mundo? Ah, ela está tão linda, não

está? O pai faz que sim e abre a porta. Olha para os dois

lados antes de sair ao sol e entrar no carro.

Entrando em minha vida como entrara, Claudia me

envolvera com uma outra realidade, suficientemente nova

para permitir o sonho e aos poucos eu estava livre para

esquecer Blandine, pensava, junto de um vaso à janela.

Quanto a Nastácia, não havia por que me culpar, me usou

tanto quanto eu a usei. Era um adultério. Como a própria

Blandine seria.

Page 129: LISBOA AGOSTO DE 1988

Estou dando voltas.

Foi fácil convence-la. Por que não parávamos em Milão?

Ela não dissera que queria ver o tal desfile no Palácio do

Senado e fazer compras por lá? Se levasse em contas os

negócios de Nastácia em Roma e Paris, não deveria estar me

sentindo assim culpado.

Milão fervilha.

No parque, um viciado se aplica. Nas ruas dos prédios

luxuosos, boring people who think only for the money, como

dissera Claudia na carta. Duomo e adjacências. Quase toda

as cidades aqui tem esas ruas só de pedestres, é bonito e

muito decente. Ninfas grifadas no ar de haxixe e ravióli. Era

natural que a esposa de um milionário tivesse muita coisa

para ver por ali. Deixei Nastácia numa galeria e fui procurar

Claudia.

Alameda de bosque no burgo pós-moderno. Essa

catedral é como se fosem estalactites ao contrário. Acho que

é uma Ferrari. Avistei-a de longe, antes de chegar ao

endereço que me dera. Abraçada a um yuppie, se existem

ainda, seu noivo segundo as alianças nos dedos. Há menos

de um mês nos havíamos despedido! Estou chocado.

Faustos felizes feitos um para o outro. Aquela não era a

Claudia. Só se pareciam muito.

Quando recolhe o algodão do lençol entre os dedos, no

Page 130: LISBOA AGOSTO DE 1988

dia em que ia deixar Veneza, sente-se como a escolher as

palavras com que liberte seu desejo e antes o envolva nesse

outro gozo, manuseie o tempo que virá e, por ter vindo, irá

passar e, ao passar, deixará saudade, fresca como o tecido

acarinhado, feito os bicos dos próprios seios na banheira,

tecido de onde nosso cheiro pode emanar. Cosa stupida!

Treni... Poderia sim emanar dali o cheiro deles, deslocando

pelo quarto as percepções róseas da persiana. Não fugirá

mais, decide, soltando o lençol que lentamente se derrama

pela cama, nem mais desejará. A felicidade, se existe ou não,

se liga à expectativa, e é aquilo, a gota secará, é impossível

impedir, a menos que seja lançada no mar.

Ela me viu.

O rapaz entra numa loja de equipamentos de

informática. Ela se aproxima, mantendo o olhar e, quando

está a meu lado, a voz sai de sua boca de antes, sua voz

conhecida, era ela. Olá. Sim, estou ótima. Claro. Como assim,

Andrei? Sim, me sinto bem, não estou bonita? Não estou

elegante? Vim comprar um tapete para nossa casa. Olhe. Ali.

Não são lindos? Tudo aqui é muito chique. Os tapetes, as

escadas rolantes, as fontes, os computadores. Gosto tanto

de cada dia ali, olhe, naquela loja em que trabalho; é a

perspectiva de um vestido novo, sapatos novos, uma jóia,

filmes, restaurantes. Uma fita de vídeo, discos, como

chegaria a gostar de Dylan sem um aparelho de som? E

cursos, viagens, liras no banco. Sou tão jovem e perdi tanta

vida. Agora quero usufruir tudo.

A vida tinha de ser mais que isso, mais que coisas que

se conseguem assim.

Page 131: LISBOA AGOSTO DE 1988

Assim como? Meu Deus. Massimo apenas me arranjou

um emprego.

O contrato de trabalho é esse anel?

Você não muda mesmo, não é, Andrei?, quase sempre

tão gentil, como consegue ser assim grosseiro, apenas

porque vive em outro mundo e não aceita o mundo das

outras pessoas?

Você sonhava com outro mundo. 

Talvez, mas não se vive de sonho, sonha-se no mundo

real.

Pelo menos, você ainda sonha.

Sonho. E durmo, e trabalho, e estudo. Não me olhe

assim. Ah meu anjo, o que você quer da vida?

Quero a utopia, até a vi um dia, nas suas lagrimas em

Veneza, em mim, no límpido reflexo delas.

Pobrezinho... Quantas mulheres no mundo não

desejariam não mais morrer só por saber que alguém como

você existe! Mas a mulher que se aproxime de você e o

conheça ao longo de uma semana, não mais estará

apaixonada. Onde você encontrará uma com quem não seja

assim?

Decerto não onde você encontrou Massimo.

Por que ele te incomoda tanto? Por que ele é rico? Ele é.

Ou por que não gosta de sofrer como você?

Você não sofre mais, Claudia?

Não quero mais sofrer, não quero mais tentar ser pura

num mundo impuro que não precisa de minha respiração. Eu

preciso do ar dele.

Cheguei a pensar que o alento de alguém poderia

Page 132: LISBOA AGOSTO DE 1988

bastar para você.

Você não existe... Que ar se respiramos adormecidos

num sonho senão o mesmo que se respira acordado?

Sou um sonho?

Um sonho bom, quem dera você existisse.

Um dia você inexistiu, onírica também.

O que te faz pensar assim?

Nosso inferno.

Uma viagem? Voltamos. O que você queria? Que

ficássemos na estação da utopia eternamente, esperando um

maldito trem que está fora de linha?

Foi um erro meu. Deveríamos ter reativado a linha.

Reconheço o trem, mas duvido muito de seu destino;

aqui meu destino é seguro.

Você o ama?

Massimo? Claro, por que não amaria?

Pela razão que leio em seu rosto.

Você lê meu rosto? Ali tem um espelho, olhe o seu.

Meu rosto... Um universo nos traços que se juntam na

tarde. Meu universo, a vida que eu vivo. Nela estão os meus

dias, os meus meses e anos, as cidades em que vivi. A tarde

é meu único abrigo, da tarde saem as reflexões que se

tornam meu mundo; e do espelho que é o mundo, apenas

meu mundo se reflete. Um espelho que amplia, ou reduz

conforme o caso, mas é sempre e apenas um espelho.

Ela me dá um beijo de leve. Um beijinho. Um selinho

que quase Massimo apanha. Agora, estamos apenas

conversando. Fiquei feliz de ver você, diz ela. Não entendo,

definitivamente não entendo; mas o incompreensível se

Page 133: LISBOA AGOSTO DE 1988

torna familiar. Ele se aproxima no terno reluzente, desviando

das pessoas. Então é assim que é um sujeito normal, um cara

bem de vida. Seja como for, o casamento não ira durar. Ou

nem se realizou. Estava numa passagem de carta cheia de

entrelinhas familiares, enviada para Lisboa.

Reencontraram-se, Claudia e Massimo, após ela ter

voltado para Muggio. O pedido de casamento a tomara de

surpresa e, ainda grata pela oferta de trabalho, não teve

como dizer não. Mas depois, refletindo. Na casa de minha

mãe não dependo de Massimo, muito menos de Antonio.

Quem sabe desenhar e conhece meu rosto fará

facilmente meu retrato juntando a pupila apequenada pelo

sol lisboeta, imaginando uma noite de chuva sobre o casario

de uma cidade do interior da Itália, batido de uma luz

enegrecida, escrevendo, à mesa do quarto, os cabelos ígneos

como da ultima vez em Milão; desenharia um homem na faixa

dos quarenta anos a quem não davam mais de trinta, olhar

distante, um ricto tenso e o cenho franzido à força da

imagem da jovem perante o papel de carta. Ela escreve.

Quero ouvir a sua voz.

Abraçada a Massimo, Claudia me acena: sinais sem mais

função. Nastácia estava chegando ao café onde ficamos de

nos encontrar. É o amor possível, pensei à saída do teatro.

Creio agora que sim, que poderei amar essa mulher, e será

esse meu final feliz.

De resto, era tépido o tapete que eu e Claudia

pisávamos, na entrada do centro comercial. Os espelhos

Page 134: LISBOA AGOSTO DE 1988

espelhavam, os computadores computavam, minha alma

sangrava – tudo estava em seu lugar.

Durante a estada em Milão, coroei com uma otite a

minha dor. Não somatização, modo de falar ou desconforto

moral. Dor. Ecoa a partir de cavernas em terra onde a paz

quase floresceu. As fisgadas falam de minha tristeza e, ao

tardar o efeito do antibiótico, julguei haver perdido uma

gratidão onde depositar minha esperança, na rua em que o

luar italiano absorveu toda a treva noturna em sua pureza

arredondada.

Um parque, um prédio espelhado, pontes, arcos,

cúpulas. Catarse! Assim, ao sentir o ouvido, emprestei à

felicidade os atributos do alivio. Não tomarei analgésico,

nem pingarei nada, não ainda. Esperarei da própria dor, pois

nada aqui conforta, não vejo o que possa diferenciar a cidade

de qualquer outra onde pessoas entediadas correm atrás de

dinheiro, exceto o que já conhecia dos programas esportivos

ou talvez se eu pudesse visitar certas igrejas, tirar fotos de

esculturas para mostrar a meus filhos, o que faria um turista,

e eu não sou. Enfim, logo Milão terá sido passado; e quem

sabe uma glória oculta esteja triste e tenha feito nas

pontadas seu abrigo pouco nítido e prudentemente

provisório.

Onde ele está? Cague...

Carrega-me por Madri, enquanto Oleana dorme, a minha

eterna questão: atentar demasiado em ser gentil, agradável,

Page 135: LISBOA AGOSTO DE 1988

em ser justo, querido, aprovado, ser reconhecido. Tudo isso

está numa ameaça de pontada no ouvido e num brilho de

cores básicas, comum às grandes cidades européias, que se

espalha pela Gran Via.

Hur är vädret? Que cara mais doido, pensa. Pega o

telefone, tira do gancho, hesita e desliga. Não. Mas queria

tanto que seu homem voltasse, surgisse da ausência do

brasileiro, ocupasse o lugar de novo vago na cama.

Madri. Edifícios assombrados. Os passantes me olham

com suspeita. Sinto-me desaparecer. Eu. Quem?

Perambulando perto da Caja de Pensiones. O parque agora

não está longe, um parque é sempre um alívio. Um telefone

público.

Havia nas cabines telefônicas de Lisboa um orifício pelo

qual se introduzia um arame, estabelecendo-se um sinal

ilimitado. Assim eu soube da morte de Donda Maria.

Perguntei a Kleber por que não me dissera quando mandou o

postal. Ela morrera dormindo. Estava melhor que nós. Não

adiantaria de nada te dizer. A vida é assim mesmo. Eu teria

preferido que ele não usasse tal clichê. A gente começa a

morrer quando nasce.

Nastácia e eu. Quando comecei a escrever o livro, se é

que será um livro (talvez seja essa a ultima desculpa daquele

a quem não restam outras opções de atividade e renda),

vivíamos na periferia de Lisboa, em Linda-a-Velha. Ao lhe

contar, em lágrimas, sobre a morte da mãe de Blandine, sua

reação me repugnou. Depois de um silêncio emburrado, ela

me disse que eu ficava ridículo a chorar por uma velha que

de qualquer maneira não veria mais.

Page 136: LISBOA AGOSTO DE 1988

Nastácia, acho que devíamos dar um tempo.

Devíamos? Claro, que momento melhor? você refez sua

vida...

E ela jamais deixara de manter a dela, com tudo que

estava incluso.

A que eu me referia, perguntou.

Você sabe.

Tudo bem, ela sabia. Não lhe falei antes porque queria

te poupar.

Não deveria.

Era loucura mas percebi que para ela se tornara

insuportável a idéia de viver sem mim, ainda mais do que eu

sem ela.

Do que exatamente queria me poupar, de vê-la na cama

com outro?

Transtornada. Como eu era ingrato! Mesquinho! Como

era cruel! Ela nada sentia por Jacques.

Quem?

O gajo que precisava ver em Paris, metera-se nuns

negócios com ele. É dele que estamos falando. Nada sentia

por ele e se metera naqueles negócios por mim. Sim, por

você, Andrei! Eu precisava acreditar. Ela só se realizava

comigo. Mas eu parecia só me realizar com o que escrevia.

Tive ciúmes dessa tal Donda. Abraçou-me. Quem dera

chorasses por mim! Só se realizava comigo, nada sentia com

os outros. Além do mais, era passado.

O pub é bem presente.

Suplica que a liberte dos outros. Querido, só contigo me

realizo...

Page 137: LISBOA AGOSTO DE 1988

Caminho portanto pela avenida Daroca. Penso no que

outros brasileiros em Lisboa disseram acerca das ligações

interurbanas sem fichas. Preciso falar com minha mãe.

Deixara o Brasil sem me despedir. Carrego a urgência do

sentimento de reconciliação. Acabara de fazer amor com

Oleana. Coisa estranha pensar nisso agora. Ela tinha sido

ótima, uma delícia. O que eu queria afinal? Eu queria Ploft

esbarrei num cego que Zapt me deu uma bengalada e Vaya

maricon hijo de puta! me fez esquecer a minha mãe.

Nastácia me espera na galeria em Milão, para irmos ao

teatro. Tomamos um café e fomos. Ao chegarmos a Lisboa,

passaríamos nos seus tios, em Povoa de Santa Iria. Depois

visitaríamos os avós, que moram perto de Sintra, pois ali

dissera aos pais e a Franco que estaria. Me confundia. Seu

casamento aberto tão cheio de cautelas e mentiras. Mais até

do que um casamento normal. Ela teme perder a fonte de

renda, explica. Com a vida que leva, será mesmo perda total.

Quem sabe existam mesmo reuniões de negócios pela

Europa.

Ternura. Noite estrelada. Mancando.

Quase oito da noite que ainda não aparecera no céu

outonal. Portugal ao entardecer, vindos da Itália. Póvoa de

Santa Iria. Apresentado como amigo do tio, um tipo que

negociava diamantes. Tratado com polidez excessiva,

constrangedora. Nastácia diz que estará treinando equitação

nos dias seguintes; realmente passamos em Cascais, onde

apanha sua égua.

Eu precisava acreditar que a amava. Aquele era o rosto,

Page 138: LISBOA AGOSTO DE 1988

a mulher de minha vida. Me redimiria do passado. Ou a

miséria absoluta no inverno que com o fim de ano se

aproximava.

Depois precisamos ver um amigo seu, o Miguel. Ela

ainda fala, Nastácia, enquanto sobe para tratar com a

proprietária da pensão. Assisto, embaixo, na TV, um

julgamento. Toni Ramos é o réu, Fernanda Torres surge

numa cadeira de rosas, acho que será tipo uma testemunha

inesperada. O juiz parece o Viloni, me esqueci o primeiro

nome. O acento brasileiro comove na tasca sob os quartos.

Bebendo uma coca. Rua Garret, o quarto. Entre

varandas e varais, as primeiras noites da composição do

livro. Porque os de bolso não contam, os faroestes, a

espionagem, os romances cor-de-rosa; por que o desdém

pelos mocinhos bem mocinhos que só existem por causa dos

bandidos bem bandidos, do escape, dos finais felizes? Com

Antonio, eu teria puxado a arma com rapidez invencível.

Nastácia seria a dona do bordel, de coração bondoso. Claudia

uma de suas meninas. Rachel, a guerrilheira doce e feroz.

Oleana, uma mulher fatal que quase desvia o mocinho; mas

não, um deslize apenas. Mario o melhor amigo, que

provavelmente no final da estória dará a sua vida. Outra, por

favor. Na ladeira, punks e darks grasnando, vindos dos cafés

da praça do consulado brasileiro.

Burburinho no saloon.

Muita gente na praça em que os agentes deveriam se

encontrar para fazer a troca do disquete pelo dinheiro. Rua

do Carmo. Busto de Pessoa. Um café. Arde em minha língua.

Ali se encontraria o casal após tantas intrigas e celebrariam

o final feliz com uma tirada bem-humorada antecipando a

noite de amor. Livrarias mais abaixo. Entrando em mármore

e degraus acarpetados, diante da vitrine, refletido, um autor.

Page 139: LISBOA AGOSTO DE 1988

Será reconhecido no final, mas para tanto terá de superar os

terríveis anos da injustiça do mundo e, com dignidade,

vencer os obstáculos do destino.

Obrigado, estou só olhando

Clássicos, lançamentos, e, diante da montra o menino

de rua, não, o cão, um cão de desenho animado, diante do

assador giratório de frangos.

Casais enamorados a buscar o fado. A noite ali sempre

efervesce, para os lados da editora até o mirante onde reina

o gigantesco pôster do filme em cartaz no cinema em frente

à boca dos Restauradores, o bar da sopa 24 horas e a cerveja

com tremoços. No alto da ladeira, os que chegam com a noite

ali descem trôpegos e risonhos, quando não há briga por

causa de mulher. Não raro o ofendido sacará o cinto da calça

para surrar o inimigo, com o risco de terminar de fazê-lo de

cuecas. Ternos impecáveis louvam aos gritos o golaço de

Mozer, goooolo!, Benfica! Da janela é também possível

escutar imprecações diversas, brigas de amantes, de gigolôs

com clientes, de meninas com gigolôs, de meninas com

meninas, vizinhas de porta, empregadas de pubs (tratados

assim mesmo, com esse eufemismo) a trazer clientes para a

hora extra, a gritaria nas tascas, o fado ficou escondido em

algum recanto, Ó pá te basa! O que caralho? Crianças na

noite pelas ruas estreitas, a música alta e hirta, bandos da

outra banda, Estás a ver?, Estou credo a rebentar!

A vida pulsa na imaginação do escritor que não acredita

mais em finais felizes.

Quando com sua mecenas se prepara para a viagem,

uma idéia insiste em sua cabeça – um romance, um romance

Page 140: LISBOA AGOSTO DE 1988

de verdade, em meio a tanta mentira, por que não? Ao

chegar de Barcelona, não perca tempo, meu amor. Que eu

me dedicasse apenas ao livro, Nastácia insiste. Não se

importe com mais nada.

Não havia mesmo mais nada com que me importar.

O quarto estava pago. Vamos? A Catalunha à espera.

Mas, nada é perfeito, será nossa despedida por um tempo.

A cidade não conhece limites. De Lisboa surgem todas

as cidades do mundo. Meu corpo não conhece limites. Dele

nascem todos os homens. Como na criação original, há é

claro muitíssimas imperfeições. Cidades e homens: crescem,

desaparecem, não sem que antes a vida se renove nas ruas e

nas avenidas, sobre o casario e no interior das casas. Uivam

os ventos, passam as pessoas, se aquecem, amam-se e se

odeiam perante mim.

Antes de partimos, Nastácia pegou a picape de Juan

XXIII, o cavalo de Miguel, que já estava num haras na

Catalunha. Insistiu em rodarmos por Lisboa para tirar umas

fotos, o que fizemos e interrompeu por instantes os

caminhos de muitos lisboetas. Também tirou muitas

fotografias minhas, sozinho. Só veríamos as fotografias

muito tempo depois, quando já estávamos vivendo em Linda-

a-Velha; mas já no caminho para Barcelona me levaram a

uma insônia de divagações. Senhor, podemos contar consigo

para tirar uns instantâneos? Condescendência sem fim com

os caprichos da benfeitora. Levou quase o dia inteiro.

Quando ela fez quinze anos, houve uma reunião dos

Page 141: LISBOA AGOSTO DE 1988

amigos. Bruna apenas provou o bolo. Andava com medo de

engordar. Mas não seria justo dizer que era por vaidade. Por

melancolia talvez. Nem se tente entender a razão de certos

sentimentos das adolescentes. Medo de chamar demais

atenção, por ser gorda demais, tanto quanto se tornar bonita

demais, pela mesma razão, mas aí teria jeito, uns óculos

esquisitos aproveitando o pequeno grau de miopia e um

penteado fora de moda. Não. Aí é que chamaria mesmo a

atenção.

Não sei mais o que fazer de mim, pensa ela.

Ou seria por ter medo de perder a plena liberdade de ir

e vir, de sumir, para bem longe daqueles cafezais, daquela

cidadezinha perversamente provinciana. Sonhava com ruas

decentes, com avenidas em que seria anônima. No fundo,

não sabia por que. Engordar, e daí? Tudo no fim colaborava

para essa paz de não ter no que pensar e assim acabar

pensando em qualquer coisa.

As fotos estavam junto aos demais papéis que caíram e

se espalharam.

Eu na rua da Prata, com um pesado sobretudo de

Nastácia, exagerado para o frio que efetivamente fazia. Ao

longe, o relógio tocado em reflexos pelo dia e dentro do arco

pétreo uma mancha esverdeada. Dom Jose em seu cavalo.

Também sozinho, eu lá pelos lados da Porta do Sol, numa

sacada. Embaixo, prédios envelhecido que fixavam às fotos,

inseguros e transitórios, sua vocação eterna. Além,

esmaltados no cenário outonal, o Tejo, cacilheiros, um navio.

Eu. Tomando água num bebedouro constante a céu aberto

Page 142: LISBOA AGOSTO DE 1988

perto do zoológico onde as vozes dos animais se cruzavam

no ar silvestre, domesticado, eu inclinado.

As crianças ao redor indiferentes, rodando no

brinquedo do parquinho, riam, davam gritinhos, eu sei, e

quase estava lá, na própria foto. Em frente do jardim, na

boca do metrô, sentado numa mureta, eu lia o semanário –

trazia a ministra da saúde, bela e poderosa, na capa em que

a tarja diagonal no canto superior esquerdo anunciava

matéria sobre a feitura do filme em que pela primeira vez

dividam a cena atores e desenhos ou, para ser mais preciso,

pela primeira com certos requintes de realidade, como a

sombra, como essa que deixo a meu lado na mureta. 

Os macacos chamam a atenção das crianças desde as

jaulas. Eu, já sem o sobretudo, com minha jaqueta preta

cheia de bolsos e um tecido pregueado usado como porta-

caneta, sobre a camisa de veludo azul-lavanda, a olhar o

painel de emissoras de TV européias na galeria contígua à

estação dos correios. Na escada sob o rei João Primeiro pela

graça de Deus, a montaria com crina de passarinhos. Eu

beijando o canário da casa dos avós de Nastácia – eles

pareciam ter se afeiçoado a mim, manso como um rapaz que

condescende com caprichos da amante por medo da miséria –

na palma da mão. Os braços por sobre os ombros frios de

Fernando Pessoa. Na areia cascalhenta à beira do Tejo, vulto

de um barco no fundo espectral. Desejando os produtos dos

livreiros do Chiado.

É um registro histórico, mas ainda não sabe disso.

Eu no hospital do Câncer sob o sol que oculto retirava o

brilho às arvores e prédios em volta, ou deveria dizer a

luminosidade, talvez o lustro, o fulgor que a luz do dia

empresta em fotos às coisas, mesmo aos cantos mal-

cheirosos.

Page 143: LISBOA AGOSTO DE 1988

Mais para cá , meu lindo.

Com os papeis e fotos caiu também uma esferográfica

preta, quicando e sumindo debaixo da cama. Ah, ouvi falar

que fotos em papel se tornarão obsoletas; mas são tão

expressivas, tranqüilas, o mundo, a vida, amor em pedaços.

Eu diante do viveiro espelhado dos peixes róseos no

Centro Cultural.

Começa a fazer um friozinho.

O rapaz que condescende dirige o carrinho do jardineiro

da Fundação. Cada passagem entre as fotos fatiga-o mais

que os percursos. Os registros mostram alguém de quem ele

nada sabe. Nenhum daqueles homens, por exemplo, parecia

amar uma camponesa que partira para bem longe. Menos

ainda que por causa da camponesa algum deles abandonara

o país.

Por outro lado, estavam todos vivos e sabiam de coisas

interessantes que o rapaz que olhava as fotos desconhecia.

Um bonde. O cartaz publicitário no corpo do bonde. 

Crianças de rua ao redor da estátua no Paço. Eu, iluminado

pelo flash, quase noite na Baixa taquicárdica, e de novo

olhos vermelhos, ajoelhado (rezei) na igreja de Madalena.

Molhando os pés à beira do rio, sentado no degrau de

musgo, firme no musgo. No museu de Lumiar não desejei

mais a memória do mundo mas a sobrevivência digna que

hoje me foge, tanto tempo depois daquela tarde. Eu numa

lápide. Na universidade.

Page 144: LISBOA AGOSTO DE 1988

Docas de Alcântara. Palácio das Necessidades. Parque

Eduardo VII, pracinha do Duque no Cais do Sodré. Partidas e

chegadas. Onde estão as bagagens? Sono, sono pesado, sono

vespertino de quem não terá onde dormir à noite. Aeroporto.

Rotunda, Paço da Rainha. Não raras vezes sequer sabia onde

estava, fugia qualquer coisa que se aproximasse de

consciência. Peito dolorido, cabeça pesada, dói mais no

burburinho do shopping Alvalade. Aqui, ah sim, com toda

certeza, é o templo do novo mundo, é tudo de fato o que se

tem do mundo, o rapaz que não se reconhecerá nas fotos diz

Vou ao banheiro um instante, e o alívio é maior porque na

volta – o mármore é frio, os ladrilhos azuis despertam um

tipo brumal de vida – a sessão está enfim terminada. Desce a

noite com quês de Juízo do qual ela e o rapaz se abrigam

num estranho filme estrelado por uma envelhecida Kristy

McNichol, não mais protagonista (o tempo), que é no caso

Sherilyn Feen. Nunca dormira antes no cinema.

Exausto. E a viagem nem começara.

Lisboa, 25 de agosto de 1988

Terminei o livro. Na verdade será apenas a primeira

versão. O final que a imaginação não me trazia, a realidade

trouxe. Desci as escadas com os olhos vermelhos por ter

chorado tudo. Bati à porta da dona da pensão para avisá-la e

usar o telefone.

Posso dizer que só conheci Madrid mais tarde, quando

fui de trem. Agora passando, cochilando, ignorava a cidade

de cima do metal sobre a taxa moderada de compressão,

Page 145: LISBOA AGOSTO DE 1988

motor continuamente ruidoso em minha continua

consciência, ou o que fosse. Não conseguira pegar no sono

na noite anterior, o cansaço das fotos não se fez acompanhar

de sonolência, além do que Nastácia, inteira na vigília,

também contribuíra, alegre e jovem, e otimista. Nada a

cansava. Eu escutava, longínqua, a discussão sobre que

caminho tomar até Barcelona. Quando meio que acordei,

Madri dizia adeus e só havia tempo para isso. Miguel acelera.

Aragão. Saragoza. Evitar o mediterrâneo. Por quê?

Ele tinha suas razoes e foi, não pelo caminho que

Nastácia teria preferido.

De volta ao cochilo. Imagino Girl na picape, majestosa

em seus oito anos, juvenil maturidade, joelhos baixos mas

eretos, peito forte, vigor e voluntariedade nas obedientes

espáduas. A vontade de sua dona. No entanto, uma égua

perfeitamente livre.

A tarde caminha quieta e calma no sentido de San

Domingo de la Calzada, lapida um crepúsculo latente entre

as crescidas uvas em época de vindima na região do rio Oja.

Estamos, nesse período com toques semelhantes que se

encontram entre o final de um ano e o começo do outro, a

caminho de Logroño, onde vivia a namorada de Miguel, razão

da sua insistência no percurso por dentro, não pela costa.

Algumas horas após Madrid, que calculei pela bexiga, nas

quais dormi afinal todo o tempo, às 18 horas, agora pelo

relógio de Nastácia, enfim chegamos.

Se Quixote aqui ressuscitasse, teria muito o que fazer.

É a o planejamento energético para o século vindouro. Mas

Quixote em mim ainda e sempre está ocupado. Ela estava

sentada, ah!, no sofá de colchões de encostos e almofadas

na varanda. Percebe o motor como quem ouve a voz de um

amigo.

Page 146: LISBOA AGOSTO DE 1988

Então Rachel se levanta e dá gritinhos, sacudindo os

braços em acenos por sobre a cabeça.

Miguel desce. Ela, Rachel, se joga sobre ele; enlaça-o

pelo pescoço. Gritinhos acastelhanados de alegria. Vestida

com uma blusa larga e cavada, rodada e rosada a saia de

linho, e rosadas as suas faces argentinas. Surge a

comunidade de Rosário, a capina e a leira de temperos, a

vassoura e o pano de pó apesar da alergia. O êxtase com que

tudo era feito: a alegria de vislumbrar no trabalho uma

introdução de Rachel. Semelhante associação mais tarde se

relacionará com a panha do café. E mais que a manutenção

de uma casa e seu quintal, o café, com sua produção de

muitas sacas de 60kg por hectare e aumento anual dos

hectares de lavoura mais três adubações, era serviço árduo

e, à medida em que mais árduo era, determinava quão

gratificante o amor de Blandine, quão mais intenso que o de

Rachel.

Estava mais bonita. A gente fica mais bonita com a

idade, Chris, eu acho. Tempo e espírito no semblante

manifestos.

Vinte anos há vinte anos. E daqui a outros vinte, quem

sabe.

Prelúdios de reconhecimento, prazer maior que um

esperado reencontro.

Permanecem abraçados após o beijo, Rachel e Miguel.

Chegam juntos à janela da picape. Cumprimentos tímidos,

um convite para entrar. Ela iria preparar os quartos. Nastácia

disse não, obrigado, iremos para um hotel. Ah nada disso.

Rachel não iria permitir nada de hotel. Etc.

Estranhas luzes no céu, brisas oceânicas no ar,

Page 147: LISBOA AGOSTO DE 1988

caminharam para dentro, abraçados, trocando beijos na

direção da rústica casa confortável, os cabelos negros de

ambos se entrelaçando e, entrelaçados, videiras e

jaborandis. Quando entraram, Nastácia aconchega a meu seu

lado o corpo quente da quietude ali quase catalã, quase

basca, quebrando em si a questão que ainda a chateava, da

rota direta que preferia. Aliteração: o desejo se repete em

momentos próximos. A rima entre as pernas, molhada. A

sensualidade sutil sua assonância. E todavia era santa,

separada das outras por um projeto de libertação mútua por

meio do sofrimento.

Inútil. Dolorido poema que se dilui após a leitura.

Rachel volta para buscar e acomodar os amigos do

amante. Que tomassem banho e fossem comer. Nada parecia

real. Mas nada demais realmente. Pós-guerra e pós-

revoluções, a transformação cultural transitando para

instituições permanentes sob uma falsa capa de novidade, a

suposta diferença entre a expectativa das gerações. Um

reflexo social que encontra certo olhar da juventude deles,

pouco mais que adolescência, mútua em ideais e desencanto.

Rachel e Andrei. Os olhos dela semelhantes às uvas, em

pacto silencioso. Distante Rosário, do outro lado do

Atlântico, talvez em outra vida. A quarta-feira se ergue na

névoa, um ultimo suspiro do dia. Esfriava após o calor ao

longo das horas de sol.

O quarto em uma cave agradável. Janela de caixilhos

azuis, como suporte para o vidro batido. Cama de mogno. Um

tipo de aposento que se mostra purificador. Dava para um

corredor branco, hun, quantas vezes não imaginado?,

aromatizado de vindima. Chega-se após cinco degraus.

Grades da janela em madeira torneada. Exala infância. Pés-

Page 148: LISBOA AGOSTO DE 1988

de-pato no rodapé, junto à máscara de mergulho. Ar salino,

apesar do mar não próximo. No exíguo aposento conseguira

Rachel acomodar fitas folk e muito livros, (titulo de um livro

que tenha a ver) à cabeceira – no caso, um pequeno espaço

de madeira crua que fazia parte da cama, um única peça. O

serrilhado largo das folhas recortava ali sua sombra, que

toca quando passo curvado, por causa do teto baixo.

Simpático, não é? Muito, respondo. Uma luminária

típica, igual à que eu havia comprado uma vez, importada,

por setenta cruzados, para Blandine, no Centro de Luz de

Belo Horizonte, com cabeça articulável e interruptor de

correntinha, vermelho. Uma única luz no quarto imerso no

chão riojano. Aranjuez (inserir um intérprete de), único disco

cuja capa estava visível. Um vaso vermelho vivíssimo quase

salta do cacto que lateralmente se propaga cintilante ao

feixe de luz que pela janela entra. Amor, vou tomar um bom

banho.

Depois do Jantar. Pimentões recheados a molho

ferrugem, regados a vinho da região. Você então não

acredita que esses movimentos, do feminismo ao ecológico?

Um pão caseiro de tenro se desmancha na boca. O orientador

de minha monografia quis que eu incluísse o código genético

entre os fatores das mudanças ideológicas desta década.

Obrigado, Rachel, a comida estava realmente ótima.

De novo os cinco degraus. O corredor está agora cinza-

escuro. Não há lua. Concedi a Nastácia a entrada na cave

antes de mim, simpático cubículo de desejos cumulado, num

gesto de mão espalmada, com um sorriso. Ela se troca atrás

do biombo. Camisola transparente. Cantarola em italiano.

C'era una volta. Senta-se na cama e sorri, separando saturnal

as sílabas do conhecido convite.

Page 149: LISBOA AGOSTO DE 1988

Anda cá...

Dormiu. Ainda viajo, em pessoal tradução dos assuntos

do jantar. Não há mais como a política ignorar a tecnologia.

Não há limite para a investigação científica. O sexo e a

revolução quase são a mesma coisa, como o engajamento e a

maconha. Porque deveria a Comunidade Européia se crer

imune à destruição a seu redor? Na há mais lugar a salvo na

guerra generalizada, travada agora também dentro das

casas, sobretudo aí. Todavia, no sonho, uma casa talvez em

Madri mesmo, férias em Irun e San Sebastián, viagens

editoriais para Frankfurt. Meu próprio negocio, paralelo à

casa publicadora de Barcelona. Beatrice um dia dirá: L

optimisme dês Français, Europe à heure de a livre circulation

des marchandises et des hommes, 12 pays, 350 million d

habitants. Enfim. Uma viagem, livre circulação pelo sonho,

um sonho bom na noite de Logroño, que infelizmente na

época em que de fato conhecerei Madri e Oleana estará se

desfazendo em doloroso despertar.

Levitando sobre o Rioja, a minha Europa, a branca dos

Pirineus, franco-catalã, ou sei lá como se diz, se é que se diz.

Doce prisma alucinógeno sob efeito de mim mesmo sem

droga exceto a esperança. Viajava por prelúdios de Liszt e

não dormi senão próximo da manhã, relacionando o

ambiente das fotos em Lisboa com um continente onde me

estabeleceria e criaria uma vida para mim.

Será que ouvi uma trovoada?

Nastácia, meu presente que sorrindo dormia.

Descoberta, matizada de luar, bicos de violeta. Tocados. Um

arrepio, uma inspiração, o movimento do rosto para o lado.

Page 150: LISBOA AGOSTO DE 1988

Acaso compreende? Assim nascem famílias, cidades, reinos.

Um toque e um pouco mais ao longo do dorso prateado. O

mar num rochedo. A noite no mar. O rochedo na noite. Um

enredo. Não sei se bom, coerente. Preciso, apenas preciso.

Ela acaso? O arrepio nos culotes alisados, uma onda súbita

na pele pálida. Os dedos fogem de mim. E quem? O rochedo.

O relâmpago. De novo. Ufa. Então aquele dia deve ter sido

um momento inadequado. Um duplo sem explicação ou

julgamento. Ela pensa. O que sinto? Amo-o? Integrei em mim

de tal sorte amor e sexo? As mãos dele são agora uma carta

de amor, mãos de jornalista. De novo. Um móvel arrastado. O

que foi a noite, não saberá ele pelas demais noites da vida.

Por quê? É a espécie, as coxas que se afastam, a calcinha

suave e demorada enrolando-se abaixo, escuridão no sulco, o

abrigo preciso do cuidadoso dedo médio. O rochedo no mar

na noite, no drama, na espécie. Estala o madeiramento da

casa em Rosário. Oito segundos, contei. Mas não pare.

O sol pela Rioja se derrama.

Em algumas horas, estaríamos em Barcelona, sendo

hospedados por Andréa, a bela esposa de Miguel. Nos

despedimos de Rachel após o café, que ela serve vaporosa,

cheirando a amor e a vinho.

Por causa da parada em XXXXXX, chegamos às quatro

da tarde. Sinto frio. Sabe, esse bulevar era um rio e

efetivamente vai dar no mar. Desliza a avenida. Hesito na

passatge de Marimon mas confio no futuro ao longo da

Diagonal. Quando chegasse a primavera meu livro estaria

pronto.

Page 151: LISBOA AGOSTO DE 1988

Andréa parecia bem mais nova do que eu imaginara

Talvez fosse até mais nova que Rachel e de beleza mais

sofisticada. O apartamento de Miguel, na Carrer de

Cartagena, nas proximidades do hospital, em termos de

Barcelona era até modesto. Entrem por favor, fiquem à

vontade. Guardada as proporções, e o próprio conceito de

simplicidade, era tão simples quanto a filial de Logrono.

Às vezes ele pensa que não está certo. Respeita

Andréa. Não saberia dizer como Rachel aconteceu em sua

vida. Também não parece preocupado com a resposta. Mas

suas temporas são altas e passam a impressão de que está

sempre absorto por algum dilema. Olhem a vista, disse ele,

como se mostrasse um pedaço de sua alma simples ao abrir

as cortinas. Seus movimentos são firmes. Lindo! Nastácia

parece sinceramente extasiada. Está pensando como sempre

em dar uma volta.

Depois do banho, ela me leva para outra sessão de

fotos; ainda não se enfadou do brinquedo encontrado na

casa dos avós. E fomos ao entardecer, depois do banho

introduzido pelo cheiro forte de café que impregna o

apartamento e chega talvez aos navios. A lua surge do cós

do dia, pessoas chapinham pelo cais. Vozerio, postes, luzes

dirigidas de uma lanterna. Sei que não há futuro para mim.

Já o admiti em meu intimo. Penso nisso quando Andréa serve

a torta. Ao passamos pela porta, ela juntava dois ovos ao

trigo, mais uma colher de manteiga, uma xícara de açúcar e

um copo de leite. Beijou o marido, limpando as mãos no pano

de prato. Deu dois beijinhos em Nastácia e me ofereceu pela

mão macia o calor de seu corpo. Ouve mentiras sobre a

viagem, pede licença para voltar à cozinha.

Não sabe direito porque suporta essa vida. Eu tinha

outros planos, Miguel. Suspeita que é por causa da

Page 152: LISBOA AGOSTO DE 1988

dependência financeira mas isso não explica tudo. Níveas

mãos passeiam pela forma untada com óleo de girassol.

Nastácia sente um desejo estranho de pedir detalhes da

receita. Sobre a massa na forma, cinco bananas em fatias.

Dado momento, caiu de sua mão a faca. Abaixamo-nos juntos

para apanhá-la. Ela pôs para assar, sugerindo que no meio-

tempo de 25 minutos nos banhássemos. A torta sabia a zelo

e lar e o café tinha no final um gostinho de família. A torta só

não ficou melhor porque o idiota do marido (não pode ocultar

o quê de a sério) apagou o fogo antes do tempo. Ah, por

favor, Andréa, tinha cheiro de gás por toda a casa. Tanta

devoción... por qué él no es así en todos los asuntos?

Adorei que o bolo estivesse solado, assim pude comer

mais, já que os outros apesar de tentarem ser gentis, ficaram

mesmo de onda. Ainda mastigava um pedaço quando saí com

Nastácia.

Sob as bênçãos de Monjuich, chovia fininho, guarda-

chuvas e capas e casamento de espanhol. Esse casal se torna

um vazio sob a chuva. Um cão puxa a jovem. Hospital,

estádio, galeria, museu, zôo, pela avinguda D´icaria os

prodígios da cidade. As árvores deitam sombras nas Ramblas

à travessia dupla dos vultos crepusculares.

Vou repetir. Um postal e uma carta. Dois sóis e luz

alguma. Primavera. Irei à noite para Madri. A noite anterior

foi difícil, não quero mais pensar a respeito. Minha

permanência na Europa depende do artigo, de entregá-lo no

prazo, de ser aceito. Pouco sei acerca de qualquer coisa,

incluindo a publicação e o pouco que sei também não ajuda

muito. Então me refugio na beleza das mulheres. Espanholas

agora. Quero dizer madrilenas. Irão me ignorar desde Atocha

até a manhã do dia seguinte. A estrangeira não, e de certo

Page 153: LISBOA AGOSTO DE 1988

modo as representa, as mulheres e a Espanha. Me percebe.

Me entende? Seria querer demais. Mas se põe bonita e

disposta para tomar café no bar onde estou após me

despedir de meus novos amigos (não sei posso chama-los

assim, mas não vem ao caso). Alguma coisa em sua noite, na

noite de Oleana, parece não ter dado certo, parece ter sido

uma noite difícil, como a minha própria noite anterior em

Lisboa. Sei que você vai se dar bem, dirá antes de dormir,

nunca li nada tão bem escrito. Pode ser, como diria o pai de

Mario. Mas vou me dar bem sim, penso ao deixar a casa dela

e entrar em Madri. Esse tipo de pensamento positivo que

nunca deu certo comigo. Estou na rua agora, procurando um

telefone. Levo uma bengalada, era o que me faltava. Tenho

brancos. Em que mês estamos? Sequer posso perguntar. O

que resta? Caminhar, caminhar. Para que mais mesmo eu

sirvo?

Massa de bolo nos dentes. Nastácia no tailleur crepe em

abotoamento duplo, decotado em V para afinar a silhueta

(sim, reclamava estar engordando, eram os doces) e saia

com detalhes em seda no debrum e listras que deveriam

disfarçar o avantajado dos quadris. Sapatilhas de camurça.

Mais poças, caminhos molhados, clarões. Um dois três oito.

Reflexos de vidro e água. Eu caminho, cheio de pose, como

se possível fora sair de mim. Ao contrário. Esse ser exterior

vai me afastando do que deveria ser eu, algo pequeno mais

inteiro, que deveria ser a minha expressão, uma escrita não

rebuscada e difícil apenas na medida da diferença na qual

acredito, mas preferia não existisse, impossível porém não

pensar na normalidade feliz, autenticamente feliz, depois de

Miguel e Andréa e de meus próprios sonhos antigos de

Page 154: LISBOA AGOSTO DE 1988

normalidade junto a Rachel. Mas tenho uma missão. Então

relevo meus erros e principalmente em relação a Nastácia. O

blazer enrugado sobre a camisa de viscose nova, me dá

segurança assim como a calça de veludo molhado. Em meus

olhos, vaidades primordiais, não pela perspectiva de

escrever um romance mas por estar na cidade das maiores

agências literárias.

Barcelona. Sagrada Família. Atarazanas. Ansiosa, a

mulher rói uma unha, subitamente pára, não sabe bem se é

amor, se paixão, ou até sentimento maternal, ele é tão

carente, que tipo de culpa era a sua, que era isso o que

sentia? Sentia saudades dos primeiros tempos do

casamento, quase podia dizer que sentia saudades de

Nápoles, aquela outra, de um tempo atrás. Teria talvez sido

diferente se houvesse recusado aquela carona? Talvez, mas

não tinha certeza, era tipo da coisa que se tem de acontecer

de determinada maneira, acontece. Atravessando a cidade

na diagonal, uma ou duas casas em que discerne rostos

sonhadores à janela.

Ah, pensou a jovem sonhadora, quanto desejaria estar

longe dali, porque ali passara a infância e ali a adolescência

A felicidade, a vaga felicidade que se torna a avenida, é a de

saber que posso caminhar para os quatro cantos da cidade

em meu blazer e não seria em qualquer momento

reconhecido. Nunca antes vi Nastácia roer as unhas.

Engraçado. Estranho. Raro, raríssimo. Não é nada engraçado

se sentir assim, adúltera, e por que se sentia? Não fora ele o

primeiro. Mas fora o primeiro a mexer com os sentimentos

dela, seria isso? O adultério se consuma mesmo no coração?

Feliz e infeliz. Sem possibilidade de ser surpreendido por um

rosto conhecido, por uma testemunha do passado, meu

insípido e louco passado pelas ruas do Rio de Janeiro, pelas

redações, pelos crepúsculos de Ribeirão, pelas lavouras do

Page 155: LISBOA AGOSTO DE 1988

sul de Minas. Plaça de Ciutadella. Ela pensa. Ele me olha

assim, acho que deseja estar só.

Planejo, ela até dá a impressão de pressentir, um

passeio sozinho no dia seguinte, por vagos sonhos de

libertadores inesperados. Carrer de Jerez. Quando voltar, irei

tocá-la com mãos amantes não presentes, inúteis de um

desejo encomendado.

Vejo na jovem à janela a mim mesmo, imagino que

espere alguém sincero, cheio de boas intenções, que a faça

rir, idealista, trabalhador. Um homem assim não existe,

pensa ela ao deixar a janela; no movimento cai uma migalha

do sanduíche. Então, na busca do night-club onde

deveríamos esperar Miguel e Andréa, eu havia perdido toda a

vontade de escrever o livro que Nastácia se dispusera a

patrocinar. Me convenci ao longo da caminhada de que a

salvação não chegaria inesperadamente. Eu necessitava

esperar antes em alguma coisa que a pudesse trazer. Carrer

dels Escudellers. Porque não existe um livro bom ou mau,

mas bem mal ou mal expresso, fiel ou não a uma idéia

anterior.

Do outro lado, surge a entrada do zoológico. Uma pena

não dar uma volta em Barceloneta, lamentou Nastácia, e

decidiu que antes devíamos comer algo. Deve ser o haxixe da

viagem. Sem mais palavras. O casal, a noite nascendo, os

bares. Um cão ladra, insistente. Paz nos vidros de cada

entrada, frágil como uma rosa oferecida a uma criança

doente. O casal descendo pela rua Granada, satisfeitos por

causa do alimento, dilemas substituídos por omelete.

No dia seguinte acordei antes de todos e sai pelas ruas

Page 156: LISBOA AGOSTO DE 1988

da cidade. Obras das olimpíadas. Respiro fundo sentado na

cerâmica. Mirador e casa rosa. Barcelona lá embaixo.

Aproveite o dia. O rapaz com a mochila me faz lembrar. Eu

tinha pensado em ir até a estação. O burburinho de novo,

soa agora como jazz. Eu pensara, bem, é a cidade de

Carmem, de Karina, nem precisava tanto mas sabe-se lá,

havia alguns contos na mochila, e é a capital dos escritores

sul-americanos. O vidro nas estruturas metálicas devolve o

movimento das locomotivas, vagões e pessoas nas

plataformas, e contém mais, reflexos essenciais e invisíveis,

assim como a torre da igreja guarda não apenas o sino mas a

aura inteira das badaladas, e as cintilações nas águas

refletem a tarde e também todo o universo pessoal, mais

amplo que o mundo em que se desenrola a História.

Nove horas, a partida para Austerlitz, a possibilidade de

estar num daqueles vagões. Um contato casual por uma

bagagem que cai. Gentileza de cavalheiro. Um convite.

Parece uma ilustração de enciclopédia antiga, santas antes

da canonização quando ainda eram filhas de camponeses,

pastoras. Todavia o pai é um homem de negócios moderno,

influente editor que me abrirá as portas de seu mundo. Na

verdade nem fantasia era. Eu tivera um editor assim nos

livros de bolso e Blandine era mais ou menos assim – tênue,

tênue separação, varandas, reis e camponeses. Nove horas.

A partida, a possibilidade de estar num daqueles vagões,

quase genro de meu editor. Não acredito portanto que tenha

qualquer talento. Já não tenho qualquer ilusão, e se devo

desistir de escrever, o que me resta?

¿Por qué él mira asi? Pega a foto do rapaz na valise,

aperta-a contra o peito. Pensa na noite anterior. O que

acontecera? Dera sua vida por aquele relacionamento!

Entregara-se, mas não, nada de posse, ciúme algum. ¿Y no lo

nota esta pobrecita al lado de él? Homens... Mas no fundo se

Page 157: LISBOA AGOSTO DE 1988

culpa, não fora capaz de segura-lo, só chamava a atenção de

caras comprometidos.

Avinguda del Marquès de l'Argentera. A felicidade enfim

nas pequenas coisas. A doce catalã que me seria dada em

matrimônio, meus dias de trabalho no moderníssimo 386 em

nossa casa em Bilbao, a perspectiva de filhos bondosos e

companheiros, orgulhosos dos pais. Com destino de Paris, o

pendular silencioso das 9 e 25, famoso por seu vagão-

restaurante, naquele horário estaríamos jantando na casa de

Miguel e Andréa, e súbito desesperei de fantasiar, do que fui

salvo pela morena que desceu do Genebra-Barcelona, de

corpinho e saiote, uma franja quase cobria seus olhos

amendoados na segunda plataforma, com ares humanos e

gélidos, blocos de gelo no mar, na noite, vida se arrojando

nos campos onde a treva floresce ao longo de trilhos e

estradas. A tristeza das coisas pequenas.

Saindo da estação que salvo erro chama-se França,

reconheci como meu único lugar o não-aqui em meio à dança

na praça, pedi a Deus por meus desejos e ao pintor nos

Capuchinos uma passa após a qual segui por Estúdios, subi.

Havia me registrado, na passagem pela catedral, numa

hospedaria na rua da marina, à espera do milagre. Mas nem

trouxe os originais comigo para o caso. Miguel dera a chave

de casa, coloquei-a num chaveiro comprado ao lado da

hospedaria e vinha girando-o no indicador pelas Ramblas.

Aconteceu então. Foge do controle, voa e cai numa cadeira.

Fui apanhar rindo, por efeito do haxixe, da avenida ou das

pessoas ao longo dela.

Um trem ao acaso nos subterrâneos. A depressão que

se estabelece após a euforia. Dá para tocar. Vaivém do

porto. Todos são eu e sou as roliças vendedoras de peixe

Page 158: LISBOA AGOSTO DE 1988

cuja Barceloneta ancestral se volatiliza no trecho do percurso

de carona. O velho reclama da prosperidade, da unificação

européia, da unificação espanhola, um absurdo, não quer

mais ouvir falar em mercado. No final das contas,

prevalecerá a singeleza da questão do indivíduo mais que o

complexo contexto econômico. Entende? Eu não entendia.

Talvez antes exista o progresso tecnológico e tudo se resuma

em que para muito crescimento da economia e progresso da

ciência não corresponda o benefício social. Ele me olhou e

não sei bem em que momento deixou de ser um catalão e eu

um estrangeiro a quem pregava. (expressão catalã)

Mais uma vez. Mergulho nas ruas de Barcelona após ter

concordado em que Nastácia e eu teríamos um adeus

(provisório, ela espera) num concurso de equitação na

Catalunha. Pagara minha pensão em Lisboa, tiramos fotos

uma tarde inteira. Encontramos Miguel e pegamos a estrada,

pernoitamos em Logroño. Rachel, flor para as mais doces

recordações. Barcelona, Andréa fazendo bolo, eu e Nastácia

saindo para novas fotos, eu saindo sozinho, e agora voltando

de carona. Condoei-vos dele, todos os que estais em redor

dele e todos os sabeis o seu nome, dizei: Como se quebrou a

vara forte, o cajado formoso!

À tarde Nastácia e eu nos cavalos. O que me fascina

afinal nessa gente afetada e me leva até a ter gosto em tal

convivência? Que droga de sucesso é esse que depende

tanto do muito falar quanto do dinheiro? Me vesti direitinho

para a ocasião, até passava por um deles. O lugar era fora da

cidade. O resto do dia entre a borracha negra com areia dos

picadeiros e os boxes. Frágil relação, relação sem futuro,

breve ilusão que assume um lugar no tempo.

Subitamente, como se afinal percebesse o óbvio, o

Page 159: LISBOA AGOSTO DE 1988

coração dela dói por ambos. Ali o seu amor, talvez, com a

certeza tardia e todo tipo de vicissitude peculiar a casos

assim. Sim, estava apaixonada. E de que adiantava? Ele não

era alguém para se amar ao longo de uma vida. E se o futuro

dele era sombrio, o dela naturalmente o seguia.

Encontraram-se tarde demais.

Tarde demais?, pensei ao fazer a cama de Girl, cama

que no dia seguinte também levantaria. Dei-lhe a mistura de

cenoura e cevada. Escovada, dá show no treinamento sob a

rédea firme de sua dona, espora atrás da cilha, trote

diagonal. Aproxima-se do obstáculo, estende e alonga a

coluna para frente ao intuir a intensidade do esforço.

Cabelos lançados para trás, Nastácia sofreou o animal e

desceu, levando-o para o boxe. Anoitece no bridão e no freio.

Eu o acarinho, acarinho Girl, que puxa minha camisa.

Nastácia rindo lhe dá o digestivo, mas é um riso nervoso, ela

não sabe o que fazer, não sabe mais o que fazer. Estava

chegando a hora e não havia mais o que fazer.

Deveria apenas acompanhá-lo à estação e cada um ir

para seu lado. Dizer. Foi um erro. Ou ao contrário cair em

seus braços? Nem uma coisa nem outra. Sobreviveriam.

Sempre se sobrevive, a tudo, e tudo se fará necessário para

uma melhora adiante, necessário como a chama no bastão de

incenso, tanto quanto o próprio incenso. Estamos falando de

crises pessoais, o que são diante do que passa o mundo

nesse fim de século, do que passou o planeta ao longo do

século – duas guerras mundiais, catástrofes naturais, fome,

Ao lado desse sofrimento coletivo, o que é uma dor de amor?

Existe uma dor de amor (donde existirá portanto o amor)?

Necessários foram um para o outro, ela o ajudou

materialmente; por meio dele, ela pode enfim, seja, amar de

verdade, sofrer por amor e sentir saudade, tanto do amor

quanto da segurança na falta de amor que para trás deixara,

Page 160: LISBOA AGOSTO DE 1988

não, não a poderia deixar, acabou, graças a Deus tudo

acabou, uma aventura, como tinha que ser.

Tudo assim transformado num final de semana da lata

burguesia adquire contudo a face do adeus que segunda-

feira nos daríamos, quando ela voltasse a Nápoles e eu a

Lisboa.

No torneio de hipismo, não posso me expor demais,

pela provável presença de amigos de Franco, o que

acrescenta esse outro clima à face do adeus. Eu não sei,

Nastácia, se poderia ter sido diferente, numa outra época,

realmente não sei. Ela encarna alguma coisa do Maio, um

intercâmbio entre corpo e teoria política. É, você tinha isso.

O poder do corpo era a imaginação no poder.

Mais algumas semanas e passaria o natal sozinho,

talvez, se já conhecesse Oleana, pensaria em encontrá-la,

como um dia ela irá sugerir, em Amsterdã. Natais solitários

como sempre, antes e depois de Blandine. Não dá para crer

que sobreviverei ao inverno europeu praticamente no

relento.

Não será tempo de uma nova canção de natal?

O rapaz que a atraiu, a beleza dele perdurou o tempo

exato que seus olhos levaram para se acostumar e agora

Blandine se refugia no quarto de Bruna como costuma fazer

quando entra em pânico ao olhar aquele redor estranho e

hostil dos telhados e casario, a Iugoslávia além do mar,

daquele estranho mar. Em Trieste não se sentia alguém,

sequer em algum lugar, estrangeira num outro mundo, numa

condição para a qual não estava preparada, que tipo de natal

Page 161: LISBOA AGOSTO DE 1988

passaria ali, depois de ter sido mãe?

Abril ou já será maio de 1988. Que dia é hoje?

A noite desceu sobre Madri e sou fim, louco sob a

chuva. Preciso desesperadamente encontrar alguém que me

seja referência, testemunho do que sou, do que fiz, do tempo

que gastei fazendo, que elucide fatos sobre os quais hesito.

Mas quem poderia ser, se chegara a Lisboa após as provas

de equitação há (quantos?) dias, sozinho, e sozinho ficava

horas a fio na pensão onde alugara o quarto a tentar em vão

sair do primeiro capitulo do romance, circulando nos

intervalos com a caneta vermelha os anúncios do Diário de

Noticias, e indo sozinho a redações e editoras receber

padronizados nãos, e sozinho viera a Madri no dia em que

recebi o postal e sozinho – Não... o breve período no Campo

Pequeno... – não não... com Nastácia, alguém num café, um

espanhol – sim, uma revista espanhola, um poema... a noite

madrilena.

Havia um postal.

Onde o pusera? Os bolsos. Não neste. Nem aqui. Noche.

Madri. Ele passa pelas jovens, os olhos perdidos. Deusas? O

tecido das roupas, os perfumes que usam, a casa diante da

qual subitamente parado sonha. Contempla-as ainda quando

as perde de vista, em coisas diversas, carros, muros, postes,

janelas. Uma diz à outra. Viu os olhos dele, tão arregalados?

Decerto está drogado.

Resta a etérea imagem dum vestido florido, o aroma da

alfazema se confundindo com a casa azul. Diante da qual. E

sobre a lâmpada do poste, rodeada de mariposas, o céu era

azul, quase negro, como os olhos de... Deus!... O postal da

Page 162: LISBOA AGOSTO DE 1988

noite ajuda mas não é suficiente. Precisava de alguém,

referente a mim mesmo, dentro da noite madrilena.

Precisava de –

Mario exclama. Ei, chico! Isabelle apenas sussurra. Que

cara...

Na rua General Margallo, encontrei-os em meio à

neblina. Um pouco antes, quis saber as horas. Talvez pela

chuva, o mostrador se apagara. O quê? Súbito sono. Afinal de

contas, há quanto tempo, onde, com quem, quem, o quê?

Quis voltar para casa, como se tivesse uma. Perder

vislumbres e recuperar a sanidade. Por outro lado, um

distanciamento, uma dissolução da saudade e da dor, sem

seqüela aparente – de resto sem qualquer aparência –, nem a

fome ou a consciência do relento, como – há dois dias, há

dois dias! Eu voltara! Mario, Isabelle, o postal... Os anjos

ainda velam.

Então perguntaram se já havia apresentado a matéria.

A matéria?

Maio de 68, não é? Ah. Não entregara. Deixei para

amanhã. Um carro passou chiando no asfalto molhado.

Mas será que haveria alguém lá num sábado? O ar

molhado na avenida, tênis emborrachados na calçada,

sapatos martelam e ecoam ao fundo das vozes

enrouquecidas.

Eu disse que o endereço do espanhol podia ser também

a sua casa, como quando tive minha própria revista.

E que tal, disse Isabelle, irmos agora?

Na aberta das nuvens, raios de Oleana, como o texto de

escritor irregular alterna trechos geniais e medíocres. Agora,

ela era minha beleza e genialidade. Nasceu no café da manhã

Page 163: LISBOA AGOSTO DE 1988

no bar, me acalmou, me deixou ser, e ficou lá adormecida,

sonhando talvez comigo, eu gostaria de pensar.

Sim, deveríamos ir. Mas se você não terminou.

Não digitei.

E o tamanho?

Conforme pediram, assegurei. Iriam comigo?

Sorriram. Claro que sim.

Assim meu trabalho foi salvo e entregue, e receberia o

pagamento.

Defronte do prédio do editor, olhavam-no. Realmente

gostavam dele. Mais que isso, Mario acreditava em seu

sucesso, gostava da sua escrita. Precisava agora todavia

achar o correspondente na forma de viver. Lentamente, a

lâmpada se acende sobre eles, e Isabelle percebe o tremor

em suas mãos, nas mãos do amigo. Problemas de abstinência

sim mas algo além, ligado mais ao caráter que aos nervos,

talvez à timidez, e sem duvida à má alimentação atual. Que

magreza... Sem dúvida é também o começo da decadência

física. O céu pesado contrasta com a lâmpada. Lá dentro,

enquanto Andrei e o editor acertavam, o casal trocava

baixinho essas impressões, esses sentimentos.

Havia algo trágico em sua figura.

Ao observar isso, Mario tocou os lábios de Isabelle com

a ponta de dois dedos. Se o amor existe. Ali estava. Ou o

que, não fora isso, seria o amor?

Telefonei para Oleana. Importa antes a dor que a

manutenção de uma mentira. Precisava vê-la, que me

amasse, e amá-la de verdade – minha mulher forte,

Page 164: LISBOA AGOSTO DE 1988

independente, minha deusa de lingerie preta na manhã.

Precisava. Amor. Embora não soubesse o que fosse. Percebo

que não, agora que Nastácia está em sua casa e Blandine na

dela, páginas viradas.

Precisava. E que isso apagasse meu receio quase

certeza do desencanto.

Ela está acordando. Onde estará esse débil mental?

Minha decisão agora diz respeito apenas a mim mesmo.

Importa portanto dar outra chance ao amor, continuar

brincando até que o brinquedo se quebre, ou sabe Deus.

Precisava. Ver Oleana. E o amor daria esperança, ou sua

ausência a necessária determinação.

Calafrios de amnésia percorrem resquícios do dia de

haxixe, amizade, reminiscência, sexo e cozido, e ruas

insanas. E a chegada dela, Oleana. As grossas coxas, saindo

majestosas do short verde de cós alto reluzindo à rotação,

músculos que sobem e descem, um elevador lúbrico pelas

costas das pernas cheias de desejos insepultos. O peso

escuro, as gotas no cabelo. Um olhar submerso de Mario

pouco sutil ao longo de espaços degustáveis.

Horas antes, quando passou a própria Isabelle, quando

a vimos, de madrugada.

Mon Dieu... Não estrague tudo, pensa ela, Ne fait pas

comme sa, não estrague tudo por tão pouco, s'il vous plaît,

mon amour...

Estranhei a principio o comportamento dele, mas não

foi uma sensação má, antes de alivio semelhante a uma

canção conhecida na voz de outro cantor. Apresentações.

Ola, Que tal. Mario, sorri. Sedutor? Isabel quer devorar o

fígado de Oleana. Ele explica a situação. Pergunta se Oleana

Page 165: LISBOA AGOSTO DE 1988

não quer vir junto. Para onde? Portugal. Bater apressado de

um coração. A noite na lâmpada do poste.

Por quanto tempo?

Uma semana mais ou menos.

Era o tipo de coisa que ela estava acostumada a fazer.

Seria ótimo.

Vocês estão de carro?

Não estávamos.

Na verdade, Oleana esperava desde o inicio que Andrei

fizesse um convite desses, afinal morava em Lisboa, mas não

quis saber a razão de Mario tê-lo feito, possivelmente

aqueles ridículos acessos de timidez do brasileiro. Mas tudo

valia a pena por um bom sexo. Realmente, pensou, valeria a

pena prolongar a aventura sexual em Portugal, antes de –

Mas no fundo tem receio de deixar Madri agora e o que foi

uma briga de momento, normal entre amantes, se prolongue

e venha a dar em separação, isso ela não queria, até porque

havia a perspectiva das férias combinadas em Aquitaine, na

casa da família dele.

A saída do trem não tardaria. O suficiente para

aproveitarmos um pouco da noite. Na noite há diferença no

ar, um clima partilhado de segredo. Aproveitar a noite – a

idéia surgira há pouco. A bagagem ainda por fazer. Todos

estamos alertas a esse novo mundo que espreita. Todos,

acredito. Eu certamente. Vivo enquanto a cidade dorme.

A bagagem não é problema, meu amigo. Dá tempo.

Minha bagagem, a velha mochila, que bom ainda tenho

esse pertence, uma testemunha, que bom ter coisas. Ser e

Page 166: LISBOA AGOSTO DE 1988

ter, falsa dicotomia! Possuir coisas. Minha Oleana. Será

mesmo? Acredito. Ela corresponde ao beijo. Depois diz que

gostaria muito de ir a um lugarzinho maravilhoso cujo ponto

parece que está vendido.

Passos ecoam na região da Praça de Espanha. Os carros

passam e dois casais aparecem nos vidros. Noite plastificada

nas poças. Friozinho. Nas vitrines tanto a roupa de

enfermeira como o vestido de noiva, algemas ou a capa dura

de um livro, ou ainda caixas da medicação que Claudia tomou

em Veneza no auge da crise. Os reflexos são de rostos

amorosos, de ereções dissimuladas, de coxas luzentes, de

casas bucólicas, de campos eternos, de velas que tanto

podem estar em candelabros ou em lápides, de sandálias

prontas para fugir ou voltarem para casa.

As vitrines... eu... eu... A sanidade de um homem que

esteve para perdê-la. Afirma-se, ratifica-se, se diz presente.

Por quanto tempo? Escapara, retornara, não tornara a sair.

As luzes de Madri dizem de mim, significando a força de

meus espantos no limite. O transito ruge. As luzes de Madri.

O céu é um sentimento. Ali estava de novo, quem sabe um

novo e derradeiro começo. A lógica do sonho preenche meus

passos na noite pela avenida Conde Duque difusa duma

substância estranha, de milagres.

Eis ali. O lugarzinho maravilhoso. Um garçom com cara

de índio indicou gentilmente uma mesa e torna a tocar sua

flauta. Cervejas. A ultima vez que bebi bebida alcoólica.

Isabelle entre as mesas, tensa, musa subitamente

encurralada. Não o são todas em algum momento se o cara é

Page 167: LISBOA AGOSTO DE 1988

um sedutor? Uma luz que vem da rua, guarda um tipo de

voluta, olha só, como se a lua se revestisse, ela percebe. É,

pode ser. O sorriso de Isabelle, terno mais que irônico, a

mulher do amigo. Paredes de madeira, janelas sem vidro, no

olhar e não nas coisas a diferença. O corpo, a música,

tocando detalhes. Queria que ficassem.

Volte então, volte um dia.

Quando peguei o relógio percebi que voltara a

funcionar. Oleana fala. Você esqueceu papéis em minha casa.

Mario sorri malicioso, naturalmente pensa em cocaína, no

final das contas é bem bobo para o grande amigo que eu

pensava ter descoberto. Eram dois cadernos e papéis soltos,

não é bem que deixei, eu esperava voltar. Nesse momento

quero falar sobre a perturbação mental mas não tenho essa

liberdade, não me sinto tão à vontade assim. Lá fora o

cenário são transformações de luz em torno de

possibilidades.

Hombres ridiculos, os olhos dele em meu colo, really

ridiculous, um colo pálido totalmente desnudo ainda mais

desnudado por olhos muito vermelhos. A mão segura o copo

sem anéis nos dedos culminando em unhas retas e rentes –

Isabelle bebe um grande gole e estremece, seus braços

tremem, se arrepia. São poemas, sabe, Isabelle, e anotações

para uma matéria, inclusive as notas que estavam no colo

dele quando a gente se conheceu no metro.

Ele tem talento, você não acha?

Mario zomba dos erros e da pronúncia.

O pêndulo no espelho: o que vejo não existe mas é

tudo. O filme da vida. Olhares. Pés cutucados com fora

Page 168: LISBOA AGOSTO DE 1988

debaixo da mesa e o sutil sorriso de Oleana. Fortalecido.

Rimos. Imperceptivelmente, não o bastante, Isabelle baixa a

cabeça, também ocultando um ricto, satisfeita. Estava

amando, voyez, um cara conhecido ainda ontem, qui?, e nem

era assim tão bonito, quase diria nem possui atributos claros

para chamar a atenção de um a mulher, mais je ne suis pas

vraiment une femme.

Há ainda meninas de dezenove anos no mundo.

Oleana, o que fazia quando liguei? Eu a tirara da cama,

respondeu. Sim, e subitamente, já passados os quarenta e

com alguma dificuldade residual, o dia não ensombrara o

pássaro na hora do encantamento. Tirou-me da cama, mas

nada que não pudesse ser consertado. O trem para Lisboa

tem cabinas muito confortáveis.

Unidos pela sétima cerveja, a raça humana se resume a

nos quatro e cantávamos, um canto alegre e tranqüilo. Por

quanto tempo? Cantemos, envolvidos pelos druidas saídos da

mágica de uma flauta.

Agora há estrelas no céu. É dos ultimo dias bonitos de

uma época de certo modo tranqüila, salvo é claro o

reencontro, que de algum modo estava também ali, como

esperança ou quiçá medo, porque afinal Blandine ainda era a

razão de ser da sobrevivência, adormecida no sonho da vida,

que não passa mesmo de uma longa e estranha canção.

Cochilando no trem, regresso a meu principio, ao

primeiro poema europeu, o inicio do livro. Começo dali, a

caminhar errante pelas ruas da Luanda dos embondeiros e

palmeiras ao vento. Retornarei em prosa a meus poemas, se

tiver alento para tanto, e será um tipo de terapia nos meses

seguintes, mais que o aspecto redentor da literatura, se isso

Page 169: LISBOA AGOSTO DE 1988

existe. Estrutura de romance. Sigo com a poesia sobre os

negros falando português com acento e o seguinte, escrito

no avião para Paris, sobre o submundo do Campo Pequeno.

Depois as ruas, praças e metrô parisiense, metáfora dos anos

sessenta, culminando com os versos sobre Jim Morrison

sepulto. Naturalmente, vinte anos há vinte anos, e por aí.

Amanhece. Na descida em Santa Apolônia, de onde há

uma semana tomara o trem para Madri, estou com uma

mochila nova, e por que parece também um lugar diferente?

Mais amplo, é uma estação bonita. De algum modo você

começou uma nova vida quando entrou naquele trem. Olho

para Mario, tenho de me certificar de que fala a sério.

Na noite de sábado, em Madri ainda, pernoitaram altos

de flauta e cerveja, no apartamento de Oleana, amigos,

Isabelle e Mario no sofá aberto. Acordam famintos e tomam

um belo café da manhã na própria estação, onde as

passagens foram compradas. Ficam à espera do horário nas

imediações das praças do Sol e Maior. Chegam em Portugal

quando o domingo declina.

Defronte do Museu Militar, decidiram comer alguma

coisa e àquela nova fome veio se juntar um desejo de

silencio. Como assim? Que coisa mais estranha e idiota, são

mesmo chatos e estúpidos.

Apanharam as mochilas no chão e seguiram pelas ruas

da Baixa, no paladar bicas e bolas de creme. Por um

momento há a aproximação úmida pela rua Santarém,

incluídos no espaço-tempo português pela aura das roupas

pétreas de São José. A primavera se aproxima do verão e o

frio esmaece numa brisa que quase podia ser interrompida

Page 170: LISBOA AGOSTO DE 1988

com a palma das mãos.

Somos nós.

Isabelle é causa de algo próximo da angústia, alguma

coisa bela e dolorosa, ao afivelar as sandálias em frente ao

correio na Praça do Município. Não sei o que é isso; se não

está ligada a sexo,que tipo de sensualidade é? Era dedos

gordinhos, com unhas arredondadas mas também cortadas

rente. Os pezinhos, ligeiramente inchados, despem-na de

seus segredos. E ainda que eu não o desejasse, que não o

esperasse, ao desviar o olhar para a fachada da posta-

restante, perco-me em recordações, brigando com o coração

esteta. O maléolo lateral, com jeito de cúpula, seguia na

linha que levava às pequenas rugas da sola rósea na

sandália, em toda a extensão ao longo da qual iria nascer

como uma frutinha o dedo mínimo.

Dieu de pitié... Esse jeito com que ele olha, a um tempo

lascivo e ingênuo, todos os detalhes da gente... Vê-se que

não faz por mal. Ela olha a própria perna dobrada,

formigando quase, e mexe os dedos, todos juntos primeiro,

depois um a um, lentamente. De algum modo, pressente.

O quê?

Olha nos olhos dele, sem cobrança ou desafio, mas os

olhos já deixaram o seu pé, então naqueles olhos vê sua

mãe. Oleana não sente nada por ele, non, e lembra em

seguida como sua mãe foi abandonada pelo marido. Elle ne

l'aime pas lui, Oleana realmente não o ama. Desvia o olhar

para a moça da Suécia e o vê, o padrasto, aquele canalha se

insinuando no quarto enquanto ela dormia, enquanto

acordava, aquilo era violento e injusto, até mesmo como

fantasia, o corpo fazendo sombra à lua. Ah, poderia matá-lo

se voltasse, decerto o mataria se o tornasse a encontrar. Mas

sua mãe o amou tanto(como podia?). Então não sabia mais se

Page 171: LISBOA AGOSTO DE 1988

o mataria, não sabia mais de nada.

Foi um tipo de choque, mas não algo mau, quando seus

olhares se cruzaram, num átimo, deixando o dele a barriga

clara, com arrepios, frágil pedaço de céu cor da pele entre o

cós da saia e o inicio da blusa azul-clara – como se ali

houvesse uma alma –, e o dela saindo da boca lânguida de

sua mãe apaixonada (lábios carnudos, serão os de Andrei

femininos ou masculinos os da mãe?), e um ao outro

velaram, e quase ela foi encontrá-lo nessa outra dimensão

sem segredos. Gostaria de tê-lo como confidente, falar de

amores súbitos, de ciúmes até então desconhecidos,

sobretudo de receios, receios de perda, porque encontrara,

um confidente confiável porque os olhares indiscretos podem

ser antes murmúrio da intimidade franca possível entre

amigos de sexos diferentes.

Quando por fim o corpo de Isabelle se integrou à

paisagem marginal em meio ao odor de rio em nuances

cintiladas, ruidos monótonos de marolas e batidas de barco

na beira do cais, a luz ofuscou a imagem dele, com o que o

momento passa, passa o sonho e acordam, no momento em

que o cacilheiro range, a gaivota grita, seu corpo grita, e ali

estão os três, Mario, Andrei e Oleana, à sombra da estátua,

agora com uns dez graus menos de inclinação,

proporcionalmente acompanhada pelas sombras de cada um.

Ouvi na gaivota a respiração de Claudia nos signos de

sua carta, junto a meu coração. Em algumas passagens de

espontaneidade ofegante, noutras pausadas de cálculo, com

rascunhos, a lentidão com que desenhava certos trechos e os

cobria e recobria com a esferográfica, num negrito artesanal,

ou a velocidade de um pensamento por demais caótico para

ser devidamente expresso, ao menos expresso por meio de

uma única tentativa nítida, sob um longo suspiro,

Page 172: LISBOA AGOSTO DE 1988

atropelamento, vontade de dizer pela censura de si mesma

recusada.

De quem é essa carta? Deixa eu ver. Tá bem, tá bem, é

um direito seu, todo mundo tem seus segredos.

Outras passagens estavam descaracterizadas, sua letra

corrompia sua escrita.

Não estou inspirada, pensa Claudia, Io sono così stanco.

Nem sei se devia estar escrevendo para ele, mas no futuro

fará diferença, acredita, será um registro. De resto era-lhe

tão grata!... Ma che noia. Era uma troca cruel, o efeito pelo

tédio, e mais cruel precisar do efeito para não ficar

entediada. Bene, bene, Vamos lá. E escreve. “Na noite a

chuva, e na chuva as lembranças. E, nas lembranças da

chuva, traços que se juntam e desenham teu rosto”. O que é

a vida? Não sabe se deve falar mais de Antonio, não sabe se

deve ainda lhe dar esperança. Ter esperança. Sobretudo não

sabe acerca de Massimo. Estava livre, agora que o noivado

fora rompido?

Fora rompido?

Os raios de sol reescrevem algumas sentenças

eletrificadas sobre minha cabeça, e as frases correm todas

na direção do epílogo. Os cacilheiros, os correios, o Tejo,

talvez as tágides, interlocutores últimos após a abstinência,

quando eu passasse por ali mais tarde com Nastácia, sublime

e sonoroso. Então eu não sabia que era um impasse. Não há

como ser um escritor de qualidade, com experiência de vida,

porque ou se está vivendo e tendo experiências ou se está na

frente de um papel construindo frases. Em um sentido

importante são coisas excludentes. Por definição um bom

Page 173: LISBOA AGOSTO DE 1988

escritor é alguém sem maior experiência de vida e alguém

experiente jamais será um bom escritor, pelo menos num

nível importante da prática, do viver portanto, e também da

teoria, dum outro tipo de viver, talvez não menos

importante, mas um obstáculo definitivo no tempo.

São dois momentos. Quando a experiência acontece e

quando a recordação a vivencia. São dois momentos?

Baseados, a viagem, um registro rascunhado, mais tarde a

melhor expressão.

Sei lá, cara. Vamos acender outro. Give me light? Lépida

Oleana e seu lépido isqueiro. Fiat lux! Vira-se para Isabelle e

pergunta se está tudo bem. Ofegando castanha pela Garret,

Tout va bien. E como todas as coisas iam bem quando o

sorriso de Isabelle se abria...

Mario está feliz, não se agüentava de tanta felicidade, o

que significava num tipo de eufemismo pactuado que não via

a hora de chegar num hotel, ele era muito criativo nessa

espécie de coisa, muito mais hábil do que eu com as

mulheres, um perfeito egomaníaco como eu mesmo não

queria me reconhecer. Sentei-me a seu lado, sob a estátua,

em frente ao consulado brasileiro. Parece bem cansado para

tão propalada energia.

Descansemos.

Lera em algum lugar sobre certas pílulas, mas não creio

que estivessem disponíveis. Perguntou-me se ainda faltava

muito.

Nada. Tá pertinho.

As ruas da Baixa antigas e simpáticas com suas paredes

escuras, manchadas, sujas, descascando. A fumaça de

cigarro se misturando à das refeições de tantos restaurantes

vizinhos, minha sala-de-jantar durante tanto tempo. Uma

Page 174: LISBOA AGOSTO DE 1988

pensão, de fato quase imperial, um hotel na avenida que

fora, ela própria, praticamente um hotel para mim.

Meu Deus, já estamos em maio. Há vinte anos mesmo...

Som brasileiro nalguns pubs, fado em tascas que

cheiram a cerveja e cigarro artesanal onde estaria

inconformado por ser tão tímido, logo ali o Bairro Alto, tímido

e nervoso por não conseguir me manter quieto, falo demais e

sobretudo me deixo demais levar pelas asas da minha dor.

Belos dias, apesar de tudo, nos quais eu conseguia

sobrelevar a mim mesmo, enquanto as pessoas passavam e

agora Oleana, depois de dar fogo para um segundo grupo, ao

terceiro se negou.

Chiado. Olha a pombinha rodando nas pedras do café.

Que sensação é essa?

No hotel. Após um banho, saímos.

Estamos procurando um alemão que conhecêramos no

trem, é para pegar a chave de seu trailer num camping. O

frescor dos corpos logo comprometido pela nova caminhada,

voltamos pela escadaria esbarrando em copas muito verdes

e baixas num farfalhar suave, imperceptível exceto por

sentidos de haxixe.

Na estação do Rossio, cujo horário mais nobre o

brasileiro integrou duas ou três vezes por semana na época

de Filomena, ali entre réstias de luminosidade que

atravessavam os telhados além dos trilhos e batiam

douradas na parede úmida dos sanitários, juntando-se aos

passageiros com destino a Aveiros e Óbidos dobram à

esquerda e continuam descendo, imersos em si mesmos dão

uma impressão de blasé (mas estão apenas cansados),

ansiosos pela tal chave. O que importa agora é descansar um

Page 175: LISBOA AGOSTO DE 1988

pouco. A necessidade cria importâncias, mas chega um

momento em que a necessidade é pura necessidade.

Estou particularmente ansioso pelo mar. O mar sempre

me bastou como felicidade. Ao atravessarmos a Liberdade à

altura do obelisco, pairou sobre nós uma aura como se fora

uma revelação. Estou tão não sei, angustiada, como se algo

tivesse me feito sentir todo o peso do mundo, estou mesmo

muito cansada. Haverá um consolo no final, uma redentora

introspecção que dê sentido a essas impressões?

Não sei o que essa angustia pode significar, Isabelle,

talvez tenha a ver com esse outro Fernando Pessoa – uma

escultura ou sabe-se lá o que de ferro retorcido, peça de arte

pós-moderna signifique isso o que significar, a propósito de

seu centenário. Efemérides, eis ao que no final somos todos

reduzidos.

Oleana pensa o quanto esses dois são complicados,

feitos um para o outro, talvez tenha feito mal em rejeitar a

paquera de Mario. Deixa de ser cínico, disse ele, puxando a

barba do brasileiro, você adoraria ser lembrado assim daqui

a cem anos. Io penso come questo. O próprio fato de

escrever por si já acusa os escritores.

Dormimos num hotel em frente ao coliseu, cartazes de

Leonard Cohen à janela do saguão e fotos de Rebeca de

Mornay nas revistas espalhadas na mesa. Amei Oleana

desesperadamente no 312, sem janela. Ainda escutava os

gemidos delicados de Isabelle através da parede quando

adormeci.

Ne me quitte pas. Mario sorriu docemente fazendo com

a cabeça um sinal de que não, jamais a deixaria.

Page 176: LISBOA AGOSTO DE 1988

Estivemos toda a semana no camping, no trailer do

alemão. Nadei, nadei muito, como se gozasse o velho mar

pela ultima vez, dividindo-o eventualmente com um e outro

adepto do windsurfe.

Oleana na mercearia escolhe cuidadosamente a marca

da massa para o almoço. Comprei uma vez lá em Madri e

gostei muito. Cidade pequena, tudo tão junto. Aquele molho

de tomate me esqueci o nome. Nem lembrava tampouco o

nome dele, e nem se comparava: o brasileiro era um faminto,

um cozinheiro faminto; o outro, um sofisticado chefe de

cozinha. Seja como for é o que interessa o momento

presente, hedonismo ou lá o que seja.

Agora saí do mar, a luz inunda um mundo esquecido

sem protagonistas. Fidelidade seria a renovação da mente

contra o século, a vitória do livre arbítrio? Passam dois gajos,

Que vento, ó Simão! Me vi a mim mesmo nos olhos de

Isabelle e depois também o olhar de Mario me espelhou. Pelo

menos não estava só. Olhei de cá longe, na calçada Oleana

com as sacolas. Mais um dia. Outra refeição garantida.

Quando chegava a certa distancia, lavado e preservado,

vi pontos ao longe, meus amigos e as casas banhadas pela

tarde oblíqua incidindo no resultado final do silêncio na

duna, cenário da futilidade dos planos e inutilidade das

mágoas no tempo presente que a todos absorve e no amor

de agora que todos os amores resume, não bem no silêncio

mas no sopro do vento que não se sabe donde vem e nesse

desejo molhado enquanto Oleana passa no alto e sequer

olha, luzidia de coxas a tremer firmes em direção do

açougue. Não tenho um amor presente, não tenho ausências.

A carteira não está comigo.

Ao sair da água pingando, Isabelle me embrulha na

toalha. Atordoado. Uma voz alienígena, naturalmente eu. Um

Page 177: LISBOA AGOSTO DE 1988

discreto sinal afirmativo com a cabeça e uma passa no SG

Gigante que Mario coloca em meus lábios, preparado.

A praia de São Martinho do Porto sobe para a falésia à

esquerda. Acorda-se com o vento grandes expectativas nos

amanheceres. Na rua General Carmona ao chegar à Marginal

o azul do céu se escurece na linha do horizonte e se adensa

quase ao negrume no mar alto além do formato de um U

largo. O marinheiro observa absorto o salto de um peixe.

Entrava na baia junto às rochas, estava de volta enfim, de

volta para sua amada. Todas as noites ela reza pela sua

volta. A consciência da vida adulta, pensou ele, apenas um

jovem de vinte e um anos, essa consciência afasta a

perspectiva exata das coisas que tínhamos quando

pequenos, deixa em seu lugar como compensação um

encanto às vezes assemelhado ao sonho, parte de uma

existência menos nossa e por isso com as virtudes do que

nos parece irreal, espíritos, ou nós sob outra ótica.

Esverdeia-se depois o mar nas ondas e logo o branco sobre o

verde prevalece. Como um efeito, um efeito da luz.

Creio que foi numa quinta-feira. Usei a viagem como um

pretexto, assim, sem pretensão de enganar, questão talvez

de gentileza. Mas queria ficar sozinho, Oleana já me cansava

e com Mario e Isabelle eu me sentia demais. Nunca foi o meu

forte dizer coisas desnecessárias, a franqueza dura.

Combinei encontrá-los em Lisboa. O tom dos campos oscila

no Alentejo entre o verde e azul, filme passando na janela do

carrinho alugado. Um castelo. Campos salpicados de aldeias

brancas em meu sentido inquieto por um desejo de Oleana

insatisfeito. Compro-lhe um presente em Obidos, uma ânfora

típica.

Page 178: LISBOA AGOSTO DE 1988

Subi a picada na direção branca num monte e tomei

vinho com um velho na porta de sua casa de lilases.

Fumamos. Mas logo ficou claro que não era aquele meu

destino, criar porcos, cultivar oliveiras. Maravilhado com os

montes e o mato ocre e brilhante, extasiado com a canção

dos pastores a se derramar dos cumes ao infinito, aquele

porém não era o meu destino.

Quem o acordou, nesses locais extraordinários, não

possuía a fragmentária sabedoria dos planos de ontem, era o

deles apenas um olhar desatento diante do ocaso. Aqui

estamos não disseram, nem viram os efeitos da luz no

detalhe encantado da presença.

Não sentiu qualquer falta dele ou que o lugar dele na

cama estava vazio. Está inquieta de lembranças não dele,

não, não dele. Em algum momento chega a ouvir uma voz,

não a dele tampouco. Não saberá precisar a razão de tanta

inquietude. O que é isso? Passos no corredor da pousada, o

vento ecoa, é filtrado. São Martinho do Porto, conhecida por

esse vento. Este. Que discute com o mar. Prolixo, não frio.

Mario e Isabelle agora no andar de cima. De alguma

forma, a pequena Oleana em 1968 preparando suas coisinhas

em Linkoping para a viagem. Ou na sua noitada de

adolescente na Grande Londres. Onde vocês foram? Um lindo

casalzinho, todos acham pelas ruas do povoado. Romance na

noite, a noite em Madri recuperada. Barcelona juntos? Passa

a ser uma idéia. Oleana adormece. Nunca sonha.

Peguei uma carona naquela mesma noite para o Algarve.

Vai ser bom para mim uma companhia, disse o rapaz, é um

caminho cansativo. São quase cinco horas, tantos quilômetros

Page 179: LISBOA AGOSTO DE 1988

de distância entre Obidos e Vila Real Santo Antonio. Estou a

me sentir o próprio Quixote. Como se chamam aqui? Os

moinhos giram, um espetáculo, marionetes na mão de um

artista experiente. Nunca nada foi fácil para mim. Uma cara

de dãr, de Não estou a entender – acho que esse gajo – Como

assim, destino?

Mudei de assunto, naturalmente. O importante é estar

vivo, o importante é ter saúde, o importante é saber de cor

todos os clichês, o importante é impedir a extinção do tigre

siberiano. Com que então você é um militante ecologista! Ah

eu não diria assim! Falemos portanto das águas limpas do

Algarve, verdes muito verdes, transparentes, conhece São

Martinho do Porto?, as falésias lá também – falemos pois de

outras coisas – das marinas lotadas, ele decerto há de ter um

barquinho, Ora pois, – das aglomerações das calçadas em

Lagos, desse tipo de reflexo laranja que só há em ruas sem

carros na Europa – um carrossel na rua? – e, claro, camelôs,

mas camelôs de primeiro mundo. Mas me diga: dependerá a

memória de uma filmadora? a locomoção de um carro? o mar

do turismo? a luz de fusíveis? Dependeremos um do outro,

Blandine, quando estivermos juntos afinal?

Essa coisa das estátuas vivas está mesmo pegando no

mundo todo portanto não mais falemos de nada exceto se

falarmos de tudo, repare o vento na esplanada, como

incomoda os clientes e faz as toalhas tremularem, por isso

não quero mais respostas selecionadas. Marionetes – o que

será que ele quis dizer? Essas casas brancas introduzem o

norte da África.

De novo a estrada, bandeiras, uma prancha de surfe,

imagino que seja um restaurante de beira de estrada, é mas

temos pressa não é?, é temos presa, então sigamos, embora

eu só saiba de um sono especifico cada vez mais próximo, do

Page 180: LISBOA AGOSTO DE 1988

haver tanta gente em lugares que não existem, em frente sou

a estrada, o sono que não concilio, a noite que chega, sou

ninguém a meu redor em Cacela.

Evidencia-se pelo tipo de calçamento e sinalização que

estamos chegando em algum outro lugar – eu nunca chegarei

– Sagres – que luz é aquela no horizonte, é mais que o sol, É

lindo não é? – É apavorante Deus meu, apavorante – Vamos

nos sentar aqui um pouco, Ah só me falta essa, ser um

homossexual, eu mereço – Venha – venta, venta – Portugal,

país das falésias – Olha ali – o ser feliz e o sofrimento de que

foge, estão também presentes na entrada de Silves, aquelas

colinas meio romanas meio gregas, talvez sim já africanas,

qualquer coisa menos portuguesas – Escuta essa música –

expressa no conhecimento passageiro, dessa forma toda a

vida é descartável, mas quem sabe se houver um registro, por

que não um livro, um registro, sim um romance... Convocados

homens e gaivotas, toda a idéia desesperada de futuro se

agitará num tempo que não será crível por causa do contraste

entre as conversas e as ondas que quebram em Burgal.

Talvez não seja tão esquisito o conceito de Oleana.

Poema é alguma coisa limítrofe. Diz-se nomes e os sons se

encarregam do resto. Talvez mais tarde uma pesquisa. Mas há

estou certo uma vida do tamanho da noite nas alamedas do

sul, as vozes no cassino em Monte Gordo se percebem junto a

um estar face ao mundo que se confunde com prodigiosa

poesia. Eu o soube ao escapar pelos interstícios do mundo em

Faro, assim como soube existir um amanhecer que, à

proporção que deixo de ser, flui no elo de prata e surge no

copo de ouro. E o cântaro se enche junto à fonte do Olhão.

E agora na volta para Lisboa não posso evitar no trem a

comparação entre Vila Real de Santo Antonio e Piumhi – é

mesmo um caso de obsessão.

Page 181: LISBOA AGOSTO DE 1988

As pilastras, pessoas e postes à janela têm pressa. A

composição chacoalha. Estou atônito porque qual o meu

destino ainda ignoro mas, separado ainda da realidade por

densa camada de névoa da praia, a noite aos poucos se

desvenda. Olá! finalmente!...

Meus amigos, minha amante, o livro mais firme como

projeto cada vez. Planos para o futuro. Copenhague,

Amsterdã, Paris de carona num caminhão da TIR. Falávamos

a respeito quando fui acompanhá-los à estação, no dia da

volta deles para a Espanha.

Um rosto no burburinho depois que partem.

Desculpe. Com licença.

Nastácia se aproxima. Viu a ternura do abraço de

Isabelle, Mario e Oleana já dentro do vagão. O ritmo da

composição cresce, preenche toda a nave da estação. Era

mesmo melhor que tudo terminasse ali. Ao relento talvez,

passando fome e frio mas livre. E quem ela é que acha que

pode aparecer de surpresa e fazer uma cena de ciúme na

estação? Perder tudo mas não a liberdade.

Que liberdade?

Enfim. Pronto para explodir à primeira palavra dos

questionamentos de Nastácia, a voz dela se faz ouvir.

Querido! – diz num abraço cheio de lágrimas.

Nunca deixara de pensar nele. Em como o conheceu,

como o imaginava ao se aproximar para pedir a carona. No

cara valente que um dia foi tomar satisfações com o

condutor do metrô de Lisboa porque fechou as portas antes

Page 182: LISBOA AGOSTO DE 1988

que ela tivesse entrado de todo; mas não era esse seu

comportamento habitual – e se fosse não seria um

inconveniente? Pensava. Na forma como a esperava quando

faziam amor. Ou mesmo quando –

Estou a me sentir tensa hoje.

Não prefere, Nastácia, deixar para depois?

Mas jamais iria ela deixar de querer se aquilo era todo o

remédio para tensão de que precisava. No final pensara nele

como um salvador, um deus quase, mas para salvador lhe

faltava condição financeira. Ou não seria talvez por isso

mesmo que o idolatrava e esperava nele como um salvador?

– Um deus quase, tanta qualidade e perfeição! Mas sabia que

esse Andrei vivia apenas em sua mente.

O que não podia lhe atribuir era a forma exata da

salvação que poderia ter ele para sua vida lasciva e

enfadonha uma vez que essa informação a mente com que o

recordava não possuía.

Se Nastácia beijava e abraçava longa e ardentemente

minha perplexidade e seus protestos de amor não se haviam

desgastado na ausência, se o que dizia estava expresso em

seus olhos o amor então de fato existia, sobrevivera à

distancia, não era capricho mas amor mesmo, desesperado,

entristecido por decisões erradas de passado que refletem

alguns de meus próprios erros na vida dum mundo contra

toda vida esperada. Ela optou por voltar a Lisboa, por partir,

que tipo de desculpa teria dado agora, não a Franco, a si

mesma? Crescera sem essa noção de dar satisfações e a

miséria de Luanda a fortalecera, nem Deus dá satisfações de

coisas tão mais sérias como a guerra, a miséria. Permitiu a

crueldade colonizadora. Uma menina tão frágil, seus pais

nunca entenderam de onde vinha tanto vigor e revolta. Onde

agora aquela menina?

Page 183: LISBOA AGOSTO DE 1988

Constrangido soube que não podia mais ficar com ela,

pois realmente me amava. Meu bilhete ficou à cabeceira.

Nastácia, não me queira mal, procure me entender; seja feliz,

tentarei ser também. Adeus. A menina frágil permanece

dormindo.

Pensa em procurar Bernardo. Telefona para Oleana. Ela

acabara de acordar. A voz que escuta é um rio entre mundos.

Há em seu sonho muitas pessoas em grupos apenas ela

está sozinha. Fazia há pouco parte de um casal, agora está

sozinha. Sente-se doente, tão raro. Não ligava pra essa coisa

de estar mal ou bem. Vivia. Mas então por que sonhar assim?

Oleana?

Sonhar quase como um replay do que naquela noite se

passara.

Está escutando? A ligação está ruim.

Maldita voz. Mas terá sua serventia esse patético. Estoy

tan cansada... Parece desanimada, ele diz. Ela fala: Tenho de

entregar as chaves do apartamento. Não menciona detalhes

nem é pedida uma razão. Ela se endireita, esfrega os olhos;

pigarreia, decidida. A idéia de viverem com o dinheiro que

tínham, aproveitando-o ao máximo e encararem depois as

vicissitudes de sua alta, isso caberia bem num escritor

despojado buscando vivências, mas partiu dela.

Marcamos na estação do Sodré dali a dois dias. Quero

evitar Santa Apolônia onde parece haver sempre uma

possibilidade de Nastácia.

Deus! ficara tão feliz quando o reencontrou ali! Não o

culpa por abandoná-la assim. Se fosse solteira... Um

Page 184: LISBOA AGOSTO DE 1988

caminhão passa em frente ao hotel e os pensamentos se

dispersam no vácuo. Acabara de acordar ou é ainda um

sonho esse bilhete? A continuação do sonho no qual surge

em algum lugar que parece o Brasil, uma praia, e o vê

sentado diante do mar, e se aproxima... Não lembrava mais a

partir daí.

Se fosse solteira, talvez eu até me sentisse bem, à

vontade em sua companhia. Embora confuso o principio da

fidelidade está arraigado em mim. Tenho é claro de adaptá-

lo. Pela religião eu traía não Blandine mas a esposa de quem

não havia oficialmente me separado. E se Nastácia se fazia

adúltera, a Oleana eu tornava ao me fazer adúltero com ela.

Vá entender.

O pastor subiu ao púlpito. Todos na igreja farão o seu

papel. Agora a menção a família. A mulher na primeira fila

sente-se vitoriosa, seus dedos agora agarram o anular do

companheiro que a abandonara e voltou. Ele que quer se

abra um buraco no assoalho, sumir. Tudo muito bem

pensado, não há brecha para que sabe lá se um Espírito

venha mesmo operar. Agora a coleta. Meu pobre salário. Eu

não sabia que voltar implicaria em tanta coisa sem nada a

ver com a volta. Talvez perca o emprego, melhor seria

mesmo ter perdido a mulher.

Tudo dentro do esperado. Um último cântico, uma

última oração e todos voltarão para casa do jeito que eram

ao virem, ou piores. Ou piores. Talvez exista uma exceção,

não lembro de ter conhecido. Para mim fidelidade e o próprio

Deus eram coisas ligadas a Blandine. Minhas caminhadas

com ela ao longo do riacho evocavam proximidade da

beatitude. Eternidade, fidelidade. Não sei mais o que pensar.

Complicado. Os próprios apóstolos o afirmam, que sim, que é

Page 185: LISBOA AGOSTO DE 1988

muito complicado, sem que, apesar do discurso do adultério

interior, o Senhor deles o negue. O meu Senhor. Não, não me

envergonho.

Não era pra ser assim. Ser algo impossível ao homem a

fidelidade.

Na varanda chegou a Blandine o céu extraordinário de

Trieste, cheirando a tarde molhada, nos inacreditavelmente

feios Melaraqua e Melara que todavia talvez a deixassem

mais à vontade, menos infeliz, por serem mais condizentes

com o absurdo de sua tristeza. Quando chegou pensava por

exemplo poder comunicar-se, saber italiano, achar-se

simpática, mas que língua era aquela, que gente, que cidade

e que marido?

Como venta!

Blandine mal o viu. Talvez tenha sido a primeira vez que

questionou a sério as viagens dele. Lembrou. A primeira vez.

A primeira vez que o viu. Na escola de idiomas no Rio de

Janeiro. Alguém em quem não se pode confiar. Esse ar

suspeito. Aí ele falou. Não se pode deixar certas pessoas

falarem com a gente. Ninguém poderia ter sido tão

simpático, tão sedutor.

Ela parecia cansada.

Ora essa. Naturalmente. Inclusive agora da curiosidade

dos vizinhos, se é que são vizinhos a uma distância dessas.

Naquele dia à noite, será inevitável sonhar com uma

Itália litorânea, porque parecia cansada e um estranho

percebera e convidara. Um litoral luminoso, limítrofe. Não

esse à frente dela. Trieste? Ouvira dizer. Quero.

Deslumbrada. Octavio sabe. Ela aceita sem estar totalmente

Page 186: LISBOA AGOSTO DE 1988

segura.

Estabilidade financeira. E quem sabe sejam só mesmo

dias de descanso na casa dos pais dele. De um modo ou de

outro. Qualquer coisa é melhor. Agora sabe que não é bem

assim. Tarde. Prisioneira. De luxo mas ainda.

Toda aquela gente escorre dos trens direto para os

barcos, preenche a marcha dos ponteiros da madrugada que

se inicia no Sodré em imagens carregadas de insensatez

perante o trincar de meus dentes, com destino à outra

margem do Tejo. Oleana e eu tomáramos o último horário

após a ilustrativa conversa com o casal de turistas franceses

sobre as possibilidades de privilégio na região da últimas

estações da linha do Estoril. Recomendam o determinado

hotel, cinco estrelas no monte. Pondero sobre a

extravagância, mas Oleana insiste em que não nos

preocupemos com dinheiro enquanto houvesse dinheiro.

Recebera, diz, uma boa indenização; e há o ganho pelo

artigo. Também algumas pedras que Mario nos deu.

Não era realmente pouca coisa mas achei um

desperdício, apartamento com vista para o mar, espelhos

sobre o console na saleta aprofundando o espaço do

corredor, banheiros de granito, e no quarto a cama larga de

mogno arrumada com colcha de couro chinês, e na varanda

cadeiras e mesas de varanda em branca madeira sofisticada,

tudo muito chique. Mas alguma coisa não parecia bem.

Oleana faz no saguão amizades que se tornam

rapidamente intimas. Dinamarqueses, espanhóis, franceses,

ingleses e alemães. Na mesma situação, ela estava em casa e

eu a milhas e milhas de ter uma. Éramos como duas manhãs

Page 187: LISBOA AGOSTO DE 1988

iguais: nunca seríamos a mesma manhã.

Oito da noite. O movimento nos elevadores sintoniza

minha angustia em meio à educação refinada em enérgicas

interlocuções na pompa que de mim completamente

prescindia – femmes 2 du matin dans le hall longue soirée –

business men – Europe des douze le plus gran espace

financer du monde – 100 % european executives pleasure –

days of the light you no truth – Caralho que cu – Eso me pone

loca! – E um vezzo parlare mal – Einfachheit ist

mitleiderregend – I been to college - Was ist n der teufel –

But – All across the telegraph – all across the telegraph!

Passei incólume pelas risadas lúbricas dans le couloir

decidido a mandar um telex para meu antigo editor. Quem

sabe queria um correspondente para aqueles agitados dias

europeus. Pode ser. OLP, Israel, FMI, petróleo, desemprego,

os sem-teto, imigrantes, avanço tecnológico, violência, tudo

com reflexos econômicos e assim algum reflexo na vida

brasileira. Oleana passa por mim no corredor, em sentido

contrário. Oi uf uau estava doida por um banho. Com ela um

rapaz que embora encoberto julguei conhecer.

Não será possível precisar o quanto de acaso. Você está

com a cara abatida. Venha ao meu apartamento, descanse

um pouco. Chamou o serviço de quarto que em seguida

chegou. Very funny! Ela está com muita fome. Ele logo

percebe. Segura os dedos dela. Pergunta. O que você tem

feito, Oleana? Nota a sutil elegância dos traços da moça de

Linkoping enquanto comem. Olha só, sorriu ele ao mostrar

um objeto redondo, de vidro, com algo dentro, comprado na

feira das pulgas. Guardaste! Ela se emociona. Estavam de

novo juntos... Não devemos nos precipitar, disseram os dois

Page 188: LISBOA AGOSTO DE 1988

em línguas misturadas. O que importa é que estavam juntos,

ahora. Preciso de um banho, ela diz. Claro, vamos, ele

responde e pede. Me perdoe...

Chico! Michel me abraça. Agora jura que nada sabe

acerca da carteira de Bernardo. Inclusive, diz, ele me deu um

endereço. Passarei lá e esclarecerei tudo. Eu disse que por

mim estava tudo bem. Nos vemos lá em cima, diz Oleana

erguendo a voz para que pudesse ser ouvida na distância

que já se encontrava. Tudo bem. Michel iria então passar –

não pude completar “no Porto”, pois um amigo desviou a

atenção dele.

Depois a gente se fala.

Mais tarde no quarto, relembrando o incidente no

corredor, fiquei espantado com a naturalidade com que

encarei a coincidência, com a ausência de ciúme ao vê-los

juntos – um relacionamento que jurariam ser antigo e se

surgirá um vértice serei eu. Na noite em que encontrei

Michel em Madrid, ele abandonara Oleana em uma festa após

brigarem. Olha, disse ele com um sorriso que não cheguei a

identificar como irônico ou carinhoso, você foi a primeira

pessoa por quem ela se sentiu atraída em muito tempo. Não

sabia de deveria me sentir lisonjeado ou o que, apenas

devolvi o sorriso porque – bem, não sei dizer o porquê.

Estou agora sentado na varanda escura exceto por um

feixe de luz vindo do banheiro e a réstia de luar desde as

nuvens aureoladas. Que palavras dirão os hospedes diante

da lua, as mesmas do olhar que atrasado enxerga apenas a

sombra? A imensidão trevosa do mar se estende nos milhões

Page 189: LISBOA AGOSTO DE 1988

de pontos prateados.

Não dou tanta importância a essa atitude entre o

equilíbrio e a apatia, a verdade é que não estou sabendo

reagir à situação. Chamar esse desconforto de maturidade?

Supor virtude tudo o que for estranho à minha maneira

nervosa de ser? Devo evocar amor da foto que retiro de

minha carteira e reluz como um gemido, tirada na praça

central de Piumhi diante da farmácia? Meu Deus, Blandine

não merecia se tornar isso, a manipulação de um conflito

visando afastar os batismos da vida, a proteção contra essa

força desconcertante que move o mundo, de algum modo

controlando o desejo e me poupando do ciúme, pois já

gastara tudo com a opção dela pela Europa.

Nada restara para as outras nem para essa outra, a

Blandine agora próxima e casada, real. Finalmente percebo.

Tenho uma vida além dos cadernos e em especial daquele,

aberto na pensão do Bairro Alto. Aí meus traumas favoritos

estavam irremediavelmente comprometidos.

Completada a ligação na sala de telex, lutando com o

teclado azert das maquinas européias, falei com o senhor

Matias. Ah claro que gostaria que você trabalhasse de novo

pra mim. Mas não precisava de correspondente, sabe como

é, a empresa está em contenção de despesas e a agência

internacional tiquetaqueia vinte e quatro horas, agora

mesmo bem na sala ao lado, no momento exato em que

conversávamos. Lamentou e me desejou sorte. Ouvia meus

próprios passos ressoando no corredor antes do barulho

antes do ruído da chave na fechadura, imerso no cheiro de

roupa passada dobrada no carrinho e na aura precisa da

enxaqueca.

Ao entrar vi Oleana enrolada na toalha branca em que

Page 190: LISBOA AGOSTO DE 1988

se destacava o emblema do hotel. Gotejava no tapete. Tudo

bem? Tudo bem, respondi.

Eu vou com o Michel no cassino. Você não se importa,

não é querido?

Perguntei por que deveria me importar, só por

estarmos juntos e ela sair com outro?

Estamos juntos? – espantou-se. Ora, apenas dormimos

na mesma cama. E era tão bom, não era?

Vem em minha mente uma comemoração de minha

volta ao Brasil. Revejo a lavoura de café e em seguida

hectares luminosos de trigo em torno da casinha que o Sr.

Jean prometera à filha como presente de casamento. Em

meio ao vozerio, o riso de uma menina. Súbito, embora todos

ali permaneçam, eu já não estou. Aqui os cabelos de Oleana

escorrem.

Ademais, diz, ninguém proibirá se acaso você quiser vir.

Não, obrigado, respondo. Vou ver um filme. Que ela

fosse sossegada.

Quando voltar não estará nada mudado em nossa cama,

não é?

Como você mesma disse, é tudo o que temos.

Vagueei pela varanda. O luar traça uma linha lilás de

horizonte. Oleana acaba de dizer que vai ligar para Michel.

Marcara uma piscina para amanhã. Agora está ajoelhada

sobre a toalha. Alguém indefeso diante dela. You are dead,

diz garçonete, amiga da protagonista. A musica toca,

grandiosa.

Oleana usa mãos e boca sem prestar atenção ao que

faz.

Page 191: LISBOA AGOSTO DE 1988

O que você quer exatamente, pergunta a si mesma. O

que quer? Há uma amargura escondida, um quê de

ansiedade que sua aparência diária jamais demonstra. Os

hóspedes vão e vem ecoando pelo corredor.

É dor, tenho agora certeza. Passará? Jazidas a céu

aberto se esgotam. O resto de luz natural se funde às

paredes junto ao esgotamento e a falta de sentido da vida.

Que tipo de personagem serei na historia de sua vida? Não

tem convicções, não se sente segura com a segurança

material que a proximidade de Michel garante. Pensa na mãe

doente, tem um desejo difícil de controlar, voltar para a

Suécia. A pressão das mãos aumenta por baixo e a ponta da

língua se distrai com uma película inesperada. Ele merece,

pensa. É muito bom no que faz. Naturalmente isso não o faz

merecer a chance de morar com uma mulher. Parque de

diversões é bom pelos brinquedos, ninguém mora ali.

Cascais à janela. Luzes pequeninas. Vinha do futuro a

salvação, dessa mesma entranha onde se originou a

semente?

Era para eu levantar. Oleana chamava para a piscina.

Anda, disse ela, o Michel já havia ligado. Me sacode.

Semicerrando os olhos por causa do sol que varava as

cortinas, consultei o relógio. Ah, vão vocês, eu queria ficar e

escrever.

Escrever? É isso que tenciona fazer de sua vida? E para

que isso serve? E para que serve uma criança, deveria

responder. Mas não fui eu quem criou a frase, me senti

plagiando alguém e parei. Antes mesmo de terminar de ouvir

o que eu cheguei a dizer, ela já meneava a cabeça,

penalizada.

Page 192: LISBOA AGOSTO DE 1988

Os dias se passavam como aquele. Oleana de manhã ia

à piscina, à tarde dormia e de noite voltava ao cassino.

Permanecíamos juntos mas naturalmente não ia durar.

Michel era um cara enérgico, simples e determinado, não

atraia maiores simpatias nem gerava grandes repulsas. Bem

sucedido. Que mulher admirável, pensa ao deixar Oleana na

porta do quarto, a chuva chicoteando os vidros. Trovões.

Decide ali mesmo e faz o convite. Saúde e felicidade, o

falo próspero. Entendia que ela quisesse ficar um pouco mais

com o brasileiro. Ele transmitia essa carência que marca as

mulheres, algo relacionado com a escuridão.

A súbita falta de energia no hotel logo é sanada pelo

gerador.

As coisas voltam ao normal. As coisas sempre voltam ao

normal quando a energia é restabelecida. Dá-lhe um beijo no

rosto. Ela não recusará o novo convite.

Quando acabasse o dinheiro, eu profetizava, estaria

sozinho pelas ruas de Lisboa, ao relento. Não foi surpresa

quando ao pagar a conta no saguão do hotel, minha carteira

quase vazia (e Oleana não precisava de carteira), ela sorriu

amarelo e pigarreou. Michel me convidou para passar um

tempo na casa dele em Londres. É claro. Ela havia aceitado.

Sorri. Ótimo. Iam no carro dele? Ela disse que sim. Então

imagino que não será problema me deixarem em Andorra.

Durante alguns instantes estive concentrado em certa

Page 193: LISBOA AGOSTO DE 1988

pressão no ouvido, que para meu pânico, imaginei uma

recaída da otite que em Milão me acometera. Não sei como

repercutiu meu rompante. Ao tornar a cruzar com o seu

olhar, Oleana dardejava. Inclino meu rosto para encarar

Michel, a dor que esperava dilui-se na expectativa, e percebi

nele um meio sorriso de quase cumplicidade. Take you take a

photo? Ao se dirigir ao outro hospede, com que então,

pensou, temos aqui um refinado senso de desforra. Deveria

imaginar algo assim, sua Oleana não se deixaria atrair, por

mais fugaz fosse a aventura, por um cara qualquer.

Pelo menos sei isso, não sou um cara qualquer.

Aí pensei. Mas ela não o ama. Embora estivesse longe

de ter certeza e de sequer vagamente saber o que fosse

amor. E se amasse haveria de ser um sentimento colonizado,

devidamente civilizado pelo primeiro-mundo nórdico.

Por momentos ela, a mulher das terras do norte, não

parecia mais nos ver. Era como se, de raiva ou desespero,

pensasse em longínquas paisagens de indefinidas cores, num

mundo que algum dia viu ou sonhou.

Andorra? Michel concordou efusivamente e perguntou

se eu estava pronto. Não temos pressa. Oleana transmitia

serenidade, iam passar na casa de um amigo em Toulouse.

Você aproveita e conhece meu avô.

Andorra... Nome mágico pelo qual a vida passou a

respirar.

Eu podia escrever uma bonita matéria sobre os reflexos

no rio Valira, as flores dos Pireneus, a arquitetura dos

montes, os campos de trigo e rebanhos, (Ah, as pedras

portuguesas de Copacabana e agora o pequeno Cristo, a

formação dessas ondas enormes, tudo subitamente lembra o

Page 194: LISBOA AGOSTO DE 1988

Rio por aqui), talvez partindo da época em que estava no

ginásio, na qual a modernidade somente existia para a

republiqueta na torre da estação solitária de radio, (Já essa

rotunda é muito Portugal, e a avenida dos combatentes nada

evoca senão esse tempo recente de tristezas), a torre do

rádio nas pedras altas dominando sobre os casebres dos

pastores ou rasgando o passado com a espada do prazer nos

estudos – Súbito se misturam na avenida de Sintra o futebol

(esse campo à esquerda é várzea autêntica) e a era do feudo

de Urgel defendido por valorosos montanheses. E, um

assunto puxa outro, Barcelona, o idioma catalão, a França, os

vizinhos bascos. Não seria possível até ligar os dois

assuntos, 68 e separatismo? Tinha tudo mesmo para ser uma

bela matéria. Eu poderia vendê-la no Palácio Foz. Ao

atravessar a ponte, todos os sonhos se faziam de novo

possíveis.

Estamos em Badajoz, uma represa passa ao largo na

amplidão romana da Extremadura, luz após o aperto nos

olhos sonolentos, o ar parado, sufocante, quente, quente,

ufa, nem é ainda verão, suávamos quando sugeri o caminho

das uvas. Tenho uma amiga que pode nos hospedar, o que

acham? Poderíamos ainda passar na casa de Mario em

Barcelona. Michel acha tudo ótimo. Oleana, espero que

esteja doente de raiva. Eu sorria, impressionado comigo

mesmo.

Me enganou. Não é tão idiota quanto pensei, pensou.

Mas, Oleana, não lembra? O que deveria lembrar? Sabe,

aquela rua. Homens. Gostosa. Não sei. Mas sim, um cara

interessante. Passou eu sei. Pena. Então vamos, amor! Ah, se

não der tudo certo... Sabe como. Vamos sim. Compras em

Page 195: LISBOA AGOSTO DE 1988

Andorra. Hunhun, vai ser uma boa de um modo ou de outro.

No sofá rústico, Rachel se diz apaixonada, jamais

esquecera. O sol imprime nos beirais os tons do dia

agonizante. Na sobreposição, o azul se juntou ao rosa.

Carregava, portenha, ao dobrar o ele e pedir que se

aproximasse. Oleana na cave com Michel. O céu estrelado.

Troveja.

O armário aberto estava cheio da noite. Sim, pois já

amanhecia. Rachel me deu uma camiseta para dormir. Do

cinza denso à pálida prata dos contornos, o sofá no canto

traz odores de passado. Déjeme. Rubor nas cortinas. Os raios

coloridos vistos naquilo que tocam, as coisas em si são

incolores. A uva não é vinho, e o vinho não é sangue. Alegria

e embriaguez Sim estou de novo, bêbado dum vinho anterior

à videira. Enlouquecendo.

Assim, foi mesmo num rompante.

Vamos agora, deixemos tudo para trás, venha comigo...

Ela aceitou, com aquele sorriso que eu conhecia tão bem e

apanhou as chaves na cabeceira, logo estávamos com os

cabelos esvoaçando ao vento que vinha de Vitória, talvez de

mais além, Você nunca perdeu essa fixação pelos bascos e

pelos Pireneus ao longo desses anos, não é? – na verdade, eu

não teria uma resposta adequada para isso, mantive essa

fixação mas a imagem do avô de Michel me concedeu um

novo alento, além é claro do subconsciente trabalhando na

matéria sobre Andorra.

Bem, dará no mesmo em termos de bascos, vamos aqui

por cima pelo norte, ladeando rios e contornando

Page 196: LISBOA AGOSTO DE 1988

montanhas, sob toda essa chuva até as tempestades

cantábricas no golfo, não me diga que nunca sonhou com

algo assim. Na verdade, ela havia sonhado, a tentação

quando chegou era grande para lutar pela causa separatista

ou outra qualquer como compensação pela perda da luta na

América Latina, ao que parece os revolucionários são meio

que viciados em querer a liberdade para todos e na maior

parte das vezes negligenciam a própria, a própria liberdade,

a própria independência, se tornam escravos de si mesmos.

Que seja então apenas por nós mesmos, subamos em

direção ao norte, cantando cânticos bascos ou o que for,

cantando, em meio às chuvas de verão, por nós mesmos,

porque se é difícil dizer que as revoluções têm algum

resultado prático uma vez consumadas por homens que não

mudam, que só pioram, é impossível importar uma revolução

ou mesmo um sincero desejo de revolução.

Em Rosário éramos adolescentes, tínhamos portanto

atenuante, hoje vamos apenas fugir, à maneira dos adultos,

e recomeçar, não é tarde. Na verdade, disse ela sorrindo,

meu sonho era mesmo alguma coisa assim. Vamos.

Não existe nada tão belo quanto a fúria do mar nos

despenhadeiros, ou tão terrível quanto ondas que sobem e

arrancam pedaços de muretas e cospem nos carros que

passam lá em cima, querendo talvez lambe-los para as

profundezas. Rachel apenas murmura algo que não entendo,

impassível, e seguimos, deslizando e chiando no asfalto.

Agora, ele está há cerca de um ano na Europa, um

pouco menos, deixe ver, saí do Rio de Janeiro na primavera

de 1987, então era outono por aqui, setembro, é, quase isso,

estamos caminhando para agosto de 1988, e após cruzar o

portão da casa de Rachel, podia sentir esse tempo como um

chicote na alma, machucando-a ou despertando-a,

Page 197: LISBOA AGOSTO DE 1988

renovando-a sem dúvida ao longo do caminho que leva a

Deba. Na beira da estrada, uma mulher rega o jardim com

cuidados de proprietária ou apenas uma devoção amorosa,

quem sabe o que evocará. Por favor, pegue o mapa. Está ali.

Vejamos.

O sorriso dela, reluzia mais que os reflexos do sol no

Euba. Olhei dentro de seus olhos, estremeci de prazer ao lhe

entregar, roçando sua pele quente com as costas de minha

mão esquerda enquanto a direita quase em simultâneo

fechava o porta-luvas, porque o revolver tremulo no metal

me estremecia também.

O que fizemos de nossas vidas, haverá tempo para

resgata-las, como o primeiro sol basta para que de novo a

vida se renove em eflorescência na frialdade da pedra? Não

sei, lhe digo, realmente não sei mas tudo se torna possível

na sensação desta liberdade (agora são quase 150 por hora).

E que se silencio de corpos é este que se espalha pelo

interior do carro?, assim eloqüente não estará dizendo justo

de resgate, de renovo, de futuro?

A proximidade dos abismos traz porém um futuro que

eu temo, que não consigo deixar de temer, que me apavora

apesar de me sentir tão bem com Rachel, como as crianças

do clube de natação de Logrono, e ela – quem era ela, me

perguntei, quem era, por detrás desses dentes perfeitos (os

meus estavam cada vez mais sensíveis entre as duas

próteses), desses cabelos esvoaçantes? Pode ser que seja o

objeto de meu amor, isso o que é, poderá ser qualquer coisa

ou posso merecer o que penso sentir? – porque efetivamente

eu amava, para bem e para mal.

Hondarribia é um lugar inacreditável, entre mar e

montanha, entre nações, uma nação na própria cidade, entre

vida e morte. Não seja assim dramático, Andrei, vai dar tudo

Page 198: LISBOA AGOSTO DE 1988

certo. Eu escutava e não podia saber se era a voz dela ou

alguma outra, interior. É apenas um lugar.

Vamos achar um restaurante e comer.

Estaciona. Desce do carro. Fome plena, também de

caminho, de carinho, de mar, de mistérios do abismo, de

olhares que se perdem na direção dos montes ainda não

visíveis.

Finalmente estão falando: como foram esses anos,

como ela conheceu Miguel, como Blandine o deixou. Mas por

Deus, por que não a procurou? Esteve tão próximo em

Veneza! Talvez não, pensei. Talvez quanto mais perto tanto

mais longe etc. E Rachel tinha certeza de que ele voltaria a

estar, então dessa vez – Súbito percebeu que, bem, se

estavam ali, fugindo do passado, não deveria pensar assim.

Estavam ali, realmente?

Será que você ainda a ama, Andrei? Será que um dia a

amou? Ela sabe como é, como a gente se engana. Sentiu ela

mesma alguma coisa por Miguel algum dia? Alguma coisa

que se sustentasse sem as terras, sem a casa em Rioja, sem

o carro, enfim que apenas se sobrelevasse ao cansaço, na

forma etérea de uma simples visão.

O entardecer aterrorizante nas profundas águas bascas

se contrapõe a qualquer pretensão dos bordões do Maio.

Aqui há sabedoria, ou quem sabe um impasse. O ar está frio,

embora a noite que se aproxime seja de verão. As vozes ao

redor dos dois perderão todo sentido, sejam palavras

espanholas, francesas ou bascas, e ainda que pudessem ser

catalãs, e ainda que fossem portuguesas ou ditas naquele

castelhano peculiar de certas regiões argentinas, como a

terra natal de Rachel, permaneceriam incompreensíveis,

impenetráveis, e não penetrariam as paredes que se haviam

Page 199: LISBOA AGOSTO DE 1988

erguido em torno deles, sozinhos no mundo e tendo à frente

na mais que o horizonte.

Pálpebras.

Há um mundo. Uma mureta de onde sentados poderão

ver os detalhes frios do penhasco a culminar nos respingos

ruidosos, corais de estrondos, e as águas, as águas

atlânticas, que são águas do golfo (não as do mediterrâneo?

Ah, sim, também), as águas do Ebro, e no mar profundas e

terríveis em sua fúria oleante, compreendedora, quase

misericordiosa.

Que luzes são essas? Que ruído molhado logo ali?

Cantarolando, o que era tão raro, ajeitei os ombros de

minha blusa em frente ao retrovisor, caramba, como estou

precisando de roupas novas, olha só a gola, velha de

ondulações. Uma blusa, uma camiseta na verdade, de malha

azul com que estava quando desci com Nastácia no aeroporto

de Paris. Com o canto do olho percebi o perfil altivo de

Rachel, parecia uma princesa, recortado pela paisagem de

uma fronteira que jamais poderia imaginar, Honyarbi,

Hondarribia – ganhei a minha vida, de um outro modo afinal.

Trieste era apenas uma fantasia, um sonho louco. Não

se fala mais nisso. Não terei mesmo coragem de encarar

Blandine. Por que então? Nenhuma resposta. E alguém

perguntou? Isso sim, como lá, o sangue levanta as veias do

membro. Paredes. Aquela janela. Estrelas? Todas essas

coisas. Se os que dormem se libertam, o que é isso que jaz

nessa profundeza banal da consciência?

Sim, dormi sim, sim, eu disse, e, tomado de dor e

decisão, levantei e me deixei consumir pelo estranho fogo

que queimava o quarto recém-nascido, renascido. Pálpebras,

barulho de águas, o flash de um piscar, e logo cor alguma, e

Page 200: LISBOA AGOSTO DE 1988

logo eu, e nunca mais nós.

O rosto dele. Devolvido pelos primeiros raios no

espelho, significa que contornos definidos substituem os

moveis escuros. Na mesa de cabeceira uma foto de Rachel

numa ponte em Irun, cidade que pelo seu caráter fronteiriço

ela amava, e a rosa que lhe dera. Talvez no dia em que a

conhecera, falavam sobre o que poderia significar o

envolvimento na luta pela democracia. Era uma conversa que

não o atraía. Ficou contrariado, como se estivesse irritado

com ela por alguma razão que, ao contrário de amanheceres

em quartos nos quais dormimos pela primeira vez,

permaneceria obscura. A alma se torna pequena diante

desse impasse entre o desejo de liberdade e a falta de

clareza do que seja liberdade. O abajur está insone, não tem

mais energia, é inócuo perante a dor de um homem que

desperta de um sonho tão nítido quanto seu rosto no

espelho. É ela quem cantarola. Os raios devolvidos pelo

espelho envolvem a claridade inútil da lâmpada.

Reluz de amanhecer a torre da catedral de Santa Maria

de Logrono. Fora da cidade, peregrinos retomam viagem,

carregando suas mochilas pelos caminhos santos. Na casa,

Rachel está se banhando.

O turbo do compacto alemão, o veiculo, seu ruído e

trepidação, alimenta minha tristeza por ter decidido não

ficar, tanto talvez quanto a tristeza dela própria, Rachel, que

contudo em nenhum momento pediu para que eu ficasse.

Não entendo você, Andrei. Gostaria. Você é um cara

muito complicado, difícil mesmo.

Page 201: LISBOA AGOSTO DE 1988

Não pretendo ser propositalmente difícil, mas não

posso tampouco me tornar comum para ser compreendido.

Sei que o difícil em geral se torna chato e queria ser

reconhecido, mas sou apenas o que sou, para o bem e para o

mal.

Lembra daquele domingo na praça, dos mercados?

Claro que lembra, mas do que adianta? Vai partir. Todos

partem. Eu mesma. Meus tios pediram para que eu não

saísse de casa. Não, não vá para a Espanha, diziam. Oh

chica... Esse homem não é uma boa pessoa, você não vê? Eu

até via, disse Rachel, mas tinha que vir. Eles ficariam lá,

sozinhos, e eu sozinha entre vinhedos, ficarei. A vida é isso?

Prestei-lhe a homenagem sincera de uma lágrima ao lhe

acenar do carro. Como em Rosário, parecia tão simples

ficarmos um com o outro, tão simples que desumano. Esse

ideal de singeleza só funciona na imaginação. Se resolvesse

ficar, ia por a perder o melhor de Rachel, e ela também me

perderia. A lembrança dela paira em minha vida com jeitão

de anjo da guarda, que quer o nosso bem mas não é Deus.

Em Barcelona, eu poderia ter ido à agente literária mas

embora já houvesse lhe escrito e perguntado sobre a

possibilidade de intermediar autor de língua portuguesa,

tendo recebido resposta afirmativa (desde que, lógico,

mandasse os originais), não tive o desprendimento suficiente

para ir, de novo. Tímido, deixei de mostrar a cara e dizer que

pretendia fazer, daqueles poemas um fio que contasse uma

história em vários momentos e diferentes vozes, inclusive a

de um narrador principal no momento em que escrevia sobre

coisas passadas mas na direção de eventos futuros. Covardia

típica de quem não está seguro de ter talento, porque no

Page 202: LISBOA AGOSTO DE 1988

final das contas o talento e a coragem quase se misturam, e

alguma coragem muitas vezes compensa a falta de mais

talento, quem acredita sempre se arrisca. Pretendia ainda,

ensaiei dizer, usar fragmentos de meu diário, cartas,

recortes de jornal, e citações de outras pessoas que

inspirariam personagens.

Incenso de um holocausto, dias depois do incêndio.

Após me dispor a cumprir. Perguntei, soube, imaginei. Como

pano de fundo, a visão panorâmica da região alta da

Mantiqueira, que nunca deixei de ser moca típica de Minas,

nem depois de tudo, ou principalmente. Agora digo isso.

Antes deveria. Ou não. Agora se consuma assim. É tudo. Mas

a história não acaba. Como pode? Desço da montanha antes

contemplada. Sou afinal passos e erros, o sucesso do projeto

não é tão importante quanto o processo do projeto. A tensão

apenas do existir. Escrevo também agora. Metáforas, ritmos

e imagens, testemunhos, fragmentos, fluxos de consciência

da menina no sentido do menino que não existe mais.

No paseo de Gracia dava para ver. O sol batia em certa

fachada ocre, no sombreamento das pessoas defronte à loja,

perto das cinco da tarde. Nas paredes marmóreas

vivificadas, confunde o movimento de ida e vinda dos

passantes, a imortalidade urbana. O ar estava pesado.

Aproxima-se uma jovem em viscose de poás graúdos. O

indicador delicado, num meneio de cabeça, retira um cisco.

Pisca para certificar-se. Uma rede honesta de umidade se

instala na superfície pêssego do batom. Logrono longe, volto

Page 203: LISBOA AGOSTO DE 1988

aos poucos a ser eu mesmo. Certamente mais que uma

menina na moda, uma moça com estilo.

Encarou-me e em seguida bocejou.

Há em Barcelona um espaço entre os seres e as coisas

geométrico nas mãos dadas das mocas de família, nas

compras, uma retilínea beleza funcional, quente, quase

devota na aveningua que à escuridão do mundo se recusa –

vermelho, amarelo, prédios, pessoa vindo.

Deve de ser. Alguma coisa ligada, sei lá, disse Blandine

a si mesma depois que o marido saiu, um tipo de matemática

(seus olhos se fixaram mais no telhado do vizinho da frente),

alguma coisa ligada as próprias pessoas, como os traços

exteriores de uma folha representam uma folha mas não são

a folha, algo assim me parece, ela não sabia, imaginava,

doía, doía frio como a plaza agora ao entardecer.

Todos seguem adiante, a vida ávida se derrama catalã

nos sítios todos e ali você pode se sentir um

desentendimento.

Oleana fora do carro. Na pancada seca há loirice

adolescente em Linkoping em que se mescla a sensualidade

cosmopolita de Estocolmo. Kvinna e flicka. Mais atrás e

lentos, Michel me conta do mau-humor à noite, e eu é que

estou pagando, acrescenta rindo. Não pude evitar, Michel,

me desculpe. Ele ri. Estava tudo bem. Enfatiza. Quando

brigaram naquela festa, antes de me conhecer, ele estava

desistindo. Imaginara uma garotinha no fundo dela, de

Oleana, de mochila às costas, tomando água em concha

Page 204: LISBOA AGOSTO DE 1988

numa nascente suíça. Imaginara. Mas agora só mulher

nórdica, vivida, de longas artimanhas. Até acho que a amo,

sabe, mas não sabia mais, Andrei, o que fazer para dar um

jeito nela. Talvez ela nunca mais chegasse a ser o anjo que

de fato sabia ser, se um dia não saciasse essa gana de viajar,

de rodear a terra.

Mas agora. Como assim? Tive sorte.

Ele estava querendo dizer que eu trouxe o bem para o

relacionamento deles. Tentou explicar no justo momento em

que um ônibus escolar ou de excursão talvez tornou

inaudível a sua voz. Ele iria sofrer um pouco com o mau

humor que Oleana se permitia por minha causa, por causa de

Rachel, enfim, todos tem um pouco de testosterona. O caso

contigo foi bom para mim, chico, só tenho a lhe agradecer.

Ah, não por isso, sorri.

E se falou desse assunto e de outros até que Michel

chegou ao ponto. Oleana pressiona. Deixe-o na estrada. Não,

babe, não faríamos isso com um amigo.

Ora, você mal se conhecem! Eu mal o conheço!

Não precisa deixá-lo à própria sorte.

A idéia passa a ser: deixá-lo quando sob um teto. Com

Mario. Com Mario e Isabelle. É claro que Oleana lhe falara

dela.

Claro. Justamente por isso. Não se discute mais.

Michel parece franco, quase de se crer verdadeiro, mas

meio que recua. Por que não ficou com aquela linda garota

em Logrono, chico? Ou talvez não, talvez estivesse mesmo

apenas curioso. Por que nunca faço o óbvio, mesmo quando é

bom para mim? Ou não seria bom? A responsabilidade.

Page 205: LISBOA AGOSTO DE 1988

A linha mais curta entre dois pontos é o ziguezague.

Tão linda, Rachel. A história teria terminado ali. Súbito

o protagonista se dá conta de sua estultícia ao longo da vida

e seria a ultima cena, ele em meio a uvas e mangas. Não sei,

Michel.

Deveria. Tudo bem, não se sinta pressionado. Ainda

terá tempo para decidir. Penso. Imputabilidade penal.

Um abraço. Um abraço apertado. Ontem, Kleber, hoje

aqui, amanhã onde? Trieste, distante como outra vida,

distante mais cada vez. O sol de outra cidade.

Oleana falava animadamente com Isabelle quando

entramos. Cumprimentei a mulher de Mario com um sorriso

que ela me devolveu. Michel. Muito prazer.

O calor dele a percorre. Ela pensa quem é, o que faz da

vida, o que faz aqui. Mario, recostado na pia da cozinha,

espera a água para o café. Não gosta de visitas inesperadas.

Isso de Oleana com Michel não o deixa à vontade. E ainda a

carteira.

O casamento o mudara. Assim, tão de pouco? Verdade.

Fiel, cônscio dos deveres. Ah, então eu mesmo poderia

mudar.

Na sala, ele ignora Oleana. Quando não dá, é rude.

Reprova Michel, não por duvidar de sua inocência, mas por

ter reatado o relacionamento em tais circunstancias. Cara,

deixa disso, é a nossa época.

O que é isso, Andrei, que época porra nenhuma, isso

tem outros nomes. Sacanagem.

Page 206: LISBOA AGOSTO DE 1988

Não é não. Está tudo bem. A vida é assim sim, e mais

assim a vida hoje. Discussões e confissões sob as estrelas, à

fumaceira de peixe na brasa e tilintar de garrafas do Rioja.

Isabelle não está mais confortável com o sotaque nórdico, de

fato não mais o suporta, estão mais ofendidos e traídos do

que ele próprio, do que Andrei, que achava aquela atitude

dela perfeitamente desculpável, naturalmente um instinto

interessante de não ser culpável ele mesmo, adiante em

algum momento.

Ou era menos por conta de moral ou solidariedade ao

amigo e mais uma defesa do lar.

Isabelle me chama a um canto. Pede que eu entregue,

se não for incomodo, umas coisinhas para sua mãe em Paris.

Beijou-me como um irmão mais velho e imaturo. Se fosse

domingo, disse-me, eu iria encontrar a senhora na église.

Isabelle, vejam só, filha de evangélicos. Sorri de volta meu

sim.

Trouxemos lá de fora eu e Mario frio e fumaça

cheirando na roupa. Isabelle fechou a porta de vidro

corrediça. Oleana torna-se agora imigrante em Minnesota,

depois na gélida Quebec. Antepassados ali chegam e se

casam com mohanks em pé-de-guerra. Vocês sabem que os

índios do meio-oeste americano perderam as terras para

imigrantes suecos? Muitos desses selvagens foram

enforcados. Ah, os imigrantes peninsulares, sobretudo os

portugueses, é que são mesmo tolos, nada usufruem das

cidades em que chegam mas conhecem a fundo o complexo

sistema bancário canadense, precisam ver que idiotas. Pela

primeira vez a víamos bêbeda. Os problemas com Michel

começaram por isso.

Page 207: LISBOA AGOSTO DE 1988

Nem percebi, por causa do espanto, como ela fez a

travessia do oceano, voltou a Estocolmo, chegou a Madrid.

Que ficasse entre a gente: Oleana teve uma experiência

homossexual num hotel próximo da estação, sabe Michel,

aquele que uma vez pagamos oitenta dólares a diária,

caramba, a mulher da portaria era uma indiana

deslumbrante, uma perola verde na testa, Michel que a

desculpasse. Falava. Repetia.

Por fim condescendentes, Isabelle e Mario sorriam para

mim. Antes de dormir, disseram que eu poderia ficar o

quanto precisasse. Isabelle agora diz que a encomenda podia

esperar, não era nada de urgente. Agradeci mas disse não,

mas muito obrigado, eu estava comovido de verdade.

Pensava, ao agradecer,, como o pequeno apartamento

suportaria a madrugada bêbeda e desmesurada. De fato,

passaria várias vezes, após as luzes apagadas, pelo corredor,

para o xixi, defronte de Michel e Oleana, sem olhar, ouvindo

de lado, até decidir pela geladeira e vinho suficiente para

deitar e ignora-los até de manhã.

A memória e o sonho. Sonhei. Ao longo de um corredor

de trevas, fugia de gargalhantes espectros. Desemboquei à

margem de um ano que cheirava a primavera putrefata.

Estava ali, à beira, a rainha Cristina, primeiro com um rosto

de Greta Garbo, negro luzente, seco, do qual surgiram as

feições de uma Liv Ullman pornográfica, crente, hedonista,

trágica pelas ruas da Europa, a arrastar e farfalhar a saia,

sons que ecoaram no interior de Minas a partir da saia rubra

e farta, armada por imersão num lago, pelas tabernas tristes

em torno dos quarteirões do século 18. E Liv, a rainha da

Suécia, é súbito Liv, a imigrante no meio-oeste, mulher de

Page 208: LISBOA AGOSTO DE 1988

Max Von Sidon em New Land. O marido implora que não

morra. E eis Max sou eu e Liv, Blandine – metamorfoses por

demais velozes como pensamentos que sábios levam a

vislumbres – Reflexão não informação. Vislumbres intensos

tais na vida medíocre para nada servem e terminam

esquecidos em meio aos apelos dos sentidos. A eternidade,

lenta em meu sonho, materializa-se numa serpente – cavalgo

a serpente em Pere Lachaise, é o fim única amiga, grito, e

meu grito ecoa com nuances de farfalhar e de coxas em lutas

livres femininas, o prazer de Claudia num ringue armado

numa estação ferroviária, farsa na forma e realidade na dor –

É informação demais para um único sonho, por favor pare,

deixe-me, e o grito ecoa mais, pelo Mar do Norte, enquanto

em Trieste surge uma forma humana, Que anda fazendo

criatura tão doce, estremecimento de bondade, como a

criatura da grama que arde na canícula e toca o infinito? –

um meio de expor as coisas, semelhança humana, nada mais

que diferença menor. Um corpo conhecido circundado por

tecido elástico, noite de verão, alguém quer me ver, Liv sou

eu, o Outro.

Acordo.

Caleidoscópio de amanhecer nas cortinas. Como seria o

sonho passado a meu livro? Por que deveria ser? Primazia

das palavras sobre os seres e as coisas, reverte todavia um

vazio ao som dos vizinhos, azáfama do dia alto.

Às onze em ponto partimos.

Dava impressão de que, embrenhando-me na sonolência

mórbida de mundos indistintos, pairavam sobre o carro

gritos longínquos que podem ter ou não algo a ver com a

visão do espiritusanto que aqui pode ser um hospital envolto

no meio-dia de uma data que não se repetirá nem mesmo se

pensarmos em termos de lembranças ou histórias. A subida

Page 209: LISBOA AGOSTO DE 1988

de rocha há quanto tempo em épocas confusas e carentes da

vida que se verá do outro lado no verde pesado e nas águas

quase francesas em Ariege, há quanto tempo me pergunto

sem a devida resposta exceto o vento que traz o medo, que

traz as sombras, que traz intenso o sono a que se resiste em

nome não se sabe mais de que, na calma que se faz

estranha, pairando sobre os conflitos.

Mês longo e difícil, maio passara. Daqui pra frente é

lucro o quer vier. Minha vida sem qualquer mérito,

sobrevida. Talvez escritor seja o que nada tem a dizer ou

precisa aprender, dizendo, o que deverá dizer. Sim eu

sobrevivia, o que não era pouco para quem quase um ano

antes fora roubado em terra estranha e ficara sem casa,

trabalho e documentos, sozinho e as chances reduzidas

(agora além do mais pesa a idade). Quase um ano. Vinte

anos depois de nada. Em malfadada época, loucura e morte,

me aferro em frágil fé, o amor. Que olhos são esses que

observam a paisagem à janela do carro de Michel devorando

a estrada, cento e vinte e cinco cavalos e cinco válvulas, de

zero a cem em dez segundos – quem, neste vasto mundo de

Deus, precisa ir de zero a cem em dez segundos?

Por que não careço mais daquela alegria por demais

simples do mato, por que assim me acomodei? Mão na

janela. Por quê? Por entre a abertura de polegar e indicador,

o médio, uma sombra, a palma. Menos que uma sombra. Um

pulso. E logo o braço, cheio – não por demais, o bastante.

Ombro. Roliço. Moreno. Não posso ir. Não disse Não quero.

Dia radiante. Tontura dá consciência de vida.

Escuta. Pardais. O trânsito e a chuva pela carrer de les

valls. Ainda é? Tontura, vida, braço, mão, dedos, parapeito.

Procure-me lá. Que olhos são esses? Encostas tão floridas

não imaginei. Maio, não, junho agora. A retirada dos

Page 210: LISBOA AGOSTO DE 1988

soviéticos no Afeganistão representa o que nesse caos? O

Brasil vai agora para o inverno e no sul de Minas é tempo do

milho antes da chegada dos apanhadores. Quando nasce o

amor. Que céu é esse? Onde estão as aguinhas, onde

mochileiros ousados podem se saciar? Maio passara. Passou

a Espanha. Passam as nuvens. O frio maior abandonou a

frieza sáxea.

Eis tua Andorra!

Michel mexe no porta-luvas enquanto fala ao parar o

veículo. Andorra, la vieja. Vales estreitos, gargantas,

carrilhão, o tempo de vida se cerca de coisas concretas,

Anyos e Caldea, as montanhas e o desejo das montanhas, a

possível aquarela e as décadas futuras. A peseta e o franco

trarão o amor ao fascínio da rocha e no idioma sem nação?

Esse azul existe?

O sol. Quebra nos cumes – sonho súbito despertado,

realidade maior comoção: um filme já visto e adorado. É

possível, um mendigo? um homem que o acorda com

chutinhos? Talvez apenas bêbado no banco, um traficante, é

possível? Me informo sobre o caminho e a trago de volta, a

realidade. Agora, levo um souvenir. Não paixão mas fogo

circunvalado. Escolhas afetivas são mares quase sempre. Um

rosto que se transforma. Não, não estou dormindo.

Hei chico!

Minha Andorra. O que se pode dizer? No alto dos

montes a mesma cruz que por todo caminho desde Angola,

solene e absolutamente inútil. Este é um caminho único,

agora sou como todos. A vida dos ricos além de fútil não

incomoda mais, de jeito nenhum. Estou terminando um

Page 211: LISBOA AGOSTO DE 1988

sonho, mas vocês podem ir às compras como disseram,

depois a gente conversa. Não quero mais segurar vela, seria

legal que alguma coisa acontecesse nesse sentido.

A torre da igrejinha. Domina a paisagem interior. O ar

livre de mercado, de azul intenso, molha casinhas eventuais.

Amarelo de flores improváveis, o verde e a pedra, templos,

um tempo do qual nunca se está convicto. Cânticos que

retornam da infância e afastam a velhice, dos campos de

fumo e trigo aos asinino. Por aí iremos e será a pergunta

irrelevante. A mulher não saberá nada exceto por causa da

calma pressionada contra o peito. Aeroportos! Ferrovias! O

que faço de minha Andorra? Como faço para que uma terra

seja minha? Escrevendo, talvez numa posição incômoda que

provoque dor lombar. Escreverei então.

Escreverei?

No meio das casas, a igreja, deserto alongado em nave,

oásis e agonia. Olhar que toca as pedras acinzentadas nas

mínimas rachaduras, hera mais sutil. Escuta. Os que são bem

de vida brincam nos carrinhos, filmam as nádegas das mocas

à frente, mostram os dentes brancos e o riso fácil demais,

fácil demais. Pássaros do regresso. Passos. Declive. Manto

de luz nas telhas, persistências alimentadas. Quem sabe uma

glória oculta. Neves perenes onde côncavas ou talvez nuvens

amoldadas contra as quais bate a serenidade gelada. Meu

futuro. Catarse. Não, nada de remédio. Vamos. Recorta-se

crescendo o campanário em prumo de luz no meu coração

consumada.

Meu futuro, lugar de oração.

Aspectos bizantinos, edificações românticas ao sol,

cenário europeu de fervor turístico nas feiras das faldas:

gravatas, brinquedos, jogos, a mais fina manufatura de

primeiro mundo. Filmadoras, coqueteleiras, lanternas.

Page 212: LISBOA AGOSTO DE 1988

Relógios. Então, Andrei, o que está achando? Comprometido

o meu juízo. Cigarros e bebidas. Os montes quietos,

coadjuvantes. Na esplanada, a ciutat oferece duvidoso

descanso à fadiga do consumo. Perfumados da mesma

colônia, Michel e Oleana. Abrem os pacotes de cigarro

quando me despeço. Te cuida. Gostamos de você, sabe? O

continente me trouxera, agora cuide de mim.

Se as palavras me precisam, que sejam-me provedoras.

A vivência é a estrutura de qualquer obra, acho que foi

Faukner quem disse, ou Ethaw Hank em “Antes do

entardecer”. Fronteiras. O tempo e diferentes espaços

acabam sempre nos mudando no sentido do que fomos

sempre.

Alguns objetivos. Escrevera o artigo movido a três ou

quatro cafés, do dinheiro que Mario enfiou em meu bolso

quando deixei sua casa. Tenho de entregar a encomenda de

Isabelle. No palácio Foz me aconselharam o

acompanhamento dos movimentos contra o racismo e o

crescimento simultâneo de Le Penn. De novo.

O que era isso de me despedir? Poderia escrever da

casa da mãe de Isabelle. Pois então. Michel já se havia

disposto contra a doçura inócua das palavras de Oleana. Me

deixaria lá, garantiu. Ademais, você não gostaria de

conhecer meu avô?

Campos sombrios apesar da idéia de geleiras em que

convivem turismo de surfe e a umidade ávida de Euskaro.

Tourist, remember this is neither France nor Spain. Neve e

fogo. Michel e eu conversamos muito nas noites que se

Page 213: LISBOA AGOSTO DE 1988

seguiram. Falou-me dos picos nevados, lembrou-se de

guildas e daquela praia num Atlântico visível. Um enterro,

carreiros e artesãos, a bola basca, frango, cerveja e

pequeninas nuvens noturnas de insetos. Dois dias junto a

pescadores. Telhados íngremes, casas de caimento

ligeiramente inclinado, aurekus, jai lai, agora há bem-estar,

agora há visões de liberdade desde Santo Ignácio e São

Francisco Xavier, quero dizer que não há mais paisagem

exterior, estou conseguindo, o panorama a partir de mim,

sem mais a necessidade de interlocutor, de uma confidente.

Talvez. Há sinais. Estive vivendo para. Donostia. Nada de

manter minha timidez obscura. Se ainda hesitava, Julie me

concedeu essa determinação. Às vezes a revelação será tão

bela e trágica que se tornará herança.

Julie pediu carona não muito longe da ponte. Há flores

azuis e alaranjadas ao lado do caminho. O clima no carro se

havia arredondado a partir do horizonte de Ariege. Insinua-

se junto às curvas até Toulouse e permanece. Com um pouco

de confiança é impossível que você não se dê bem, dizia uma

fraternal Oleana. Não faz diferença o que diz pois a confiança

eu perdera e se quebrara qualquer elo que a ela me ligasse.

Naturalmente o dano era meu, só esperava que algo em mim

se revelasse tornando-me uma pessoa mais plena e,

portanto, um verdadeiro escritor.

Outra vez estávamos na estrada depois de um lanche,

subindo e descendo os Pireneus durante a tarde chuvosa, a

chuva caia em bátegas ruidosas sobre o carro e eu não podia

acreditar que ali estava uma mochileira sob uma frágil

marquise, com seu dedo suplicante apontando na direção do

Golfo de Biscaia, do País Basco portanto.

Julie era de Miramas, uma ville mais ao sul, estudava na

Page 214: LISBOA AGOSTO DE 1988

universidade de Toulouse, onde fizera anteriormente Belas

Artes. Ia para Paris, antes Beynac, mas com o sim de Michel

resolveu passar também uns dias na praia e agora adquirira

uma respeitável aura de testemunha no banco de trás a meu

lado. Para ela, maio de 68 já existia em Toulouse antes de 68

mas ainda era muito jovem na época, uma criança na

verdade, entre cinco e sete anos, quando seu pai chegava

para trabalhar na industria da aviação. Usufruiu, diz, de um

espírito libertário que germina antes de 68 e ainda hoje

frutifica. Entendo, respondi, enquanto Pau passava à janela

que à esquerda olhava a cordilheira. A pessoa como origem e

fim de tudo, não o fato histórico. Quero crer que sim, disse

ela, movimentos coletivos só preparam terreno para os que

cultivaram essa terra dentro de si, preparando o que existiria

de um modo ou de outro.

Estradas, os mesmos horizontes sempre à espera,

sempre além. Saint Jean de Luz, ah Donibanetik, Anglet,

Bayonne. Em Sara nos recebeu o avô de Michel, típico em sua

boina, na casa de madeira estalante, a fachada branca

contrastando com o vermelho e o verde das vigas. Sua

mulher nos serve torta de cereja. Mal falava ele o francês e

ela nada. Aqui o movimento armado não é bem visto. Sequer

há uma orientação separatista clara com respeito à França.

Nacionalismo aqui parece uma outra coisa ligada antes à

cultura e em ultima análise às pessoas.

Não dá para esquecer o almoço do dia seguinte, todos

cantando. Je ne comprend donc rien au basque mais je

trouve ce chant trés beau. Quanto a mim, não entendo a

proximidade e distância de Michel em relação àquela gente.

Creio ter ouvido de uma nacao naturalmente livre que existia

sol, e talvez tenha perguntado a um daqueles senhores se

havia uma terra assim com que pudessem sonhar. Há aqui

alguns amigos e um lugar tão agradável e amanha estaremos

Page 215: LISBOA AGOSTO DE 1988

saudosos uns dos outros e acredito, disse aquele que me

respondia, ser isso um privilegio, e mal sabia que sua

resposta na verdade estava em mim desde a minha

juventude. Nik maite dudan Euskal Herria! Haverá um

momento em que o avô gentilmente se desdenhará dos

ideais de Julie. A presença do próprio neto parece incomodá-

lo e definitivamente não gosta de Oleana. Julie me contava

sobre a única vez que veio à costa basca, que praticamente

se resumiu à praia de Les Cavaliers.

A gente praticamente havia aceitado que não éramos

mais que convenientes amigos por força de uma

circunstancia de viagem mas isso não pareceu nos diminuir

um perante o outro. A menina de Miramas subiu a pequena

elevação no jardim e se sentou na parte mais alta. Eu estava

com vontade de chorar mas não saberia dizer o porquê e

disse Julie com um acento razoável porém não pude

continuar, realmente me faltavam palavras até porque nosso

inglês não era bom, meu francês péssimo e ela sequer falava

espanhol, português então nem pensar. Não que eu não

quisesse, Andrei, se você soubesse o quanto eu tentei fazer

esses cursos, mas sempre havia outras prioridades. Era

mesmo porém uma questão maior que idiomas.

Chegamos a pensar em fazer amor mas logo desistimos

porque entendemos teria sido uma forma equivocada de

afirmar a intimidade, um desejo de saber mais do outro como

se fosse uma vergonha termos segredos já que nos havíamos

tornado tão próximos. Então como uma estranha

compensação tentamos nos ajudar a entender porque o avô

de Michel e seus amigos não se incluíam entre os

nacionalistas, o que seriam as principais questões de uma

pátria para eles. Estamos recostados, quase deitados na

grama, e ela canta. Agora dá para ver lá na varanda um casal

que em cadeiras de balanço sorri para nós. Ser um cidadão,

Page 216: LISBOA AGOSTO DE 1988

disse ela, é de certa forma existir, ter em vista o futuro.

Quando penso nisso, não creio que seja essencial a

preservação de uma terra histórica. Um vermelho noturno

soprou em nós e em seguida diante de nossos rostos passou

uma ave, asas céleres rasgando o ar e desenhando uma

forma liberta. As instituições podem sempre ter soluções

adaptadas, francesas, espanholas, bascas, catalãs. A

liberdade de estudantes ou operários será sempre relativa. A

sombra da nuvem adensa a treva já instalada no jardim

enquanto ela conclui que o ser cujo trajeto vai rasgando o

tempo de seu existir independe do cenário a que está

exposto, ele é em si mesmo a lenda, o mito pessoal, o seu

redor se consiste apenas no papel de parede do quarto em

que a criança escuta a história.

Em Toulouse, sabe, ali mesmo perto de onde vocês me

pegaram, houve manifestações no Maio, o que você escreveu

a respeito, a questão política? Eu disse que não, não tenho a

menor tendência a ver o aspecto político das coisas, na

verdade acredito que 1968 é muito mais um mito, o que

aconteceu diz muito mais respeito à década como um todo.

Se, por exemplo, dizem que a revolução sexual foi a única

que perdurou daquela época, não se pode é claro limitar as

coisas a um único ano. Ao falar isso eu estava pensando

naturalmente em minha dor, na promiscuidade de meu

desejo irresponsável, mas duvido que ela tenha percebido.

Talvez agora, quando me olha direto nos olhos, ela veja um

pouco dessa vergonha.

O vento rodeia a casa como se a estivesse secando.

Leva a umidade atlântica para algum ponto do norte, para os

lados de Periguex. Meu olhar estrangeiro recebe as

experiências como se fossem minhas. O vento. Não se sabe

de onde ou para onde. Agradeço a hospitalidade com uma

expressão em Euskara ensinada por Michel, me sentindo

Page 217: LISBOA AGOSTO DE 1988

milenar como o idioma e assim Julie a meus olhos era ainda a

tal criança de quando chegara em Toulouse.

Em certo momento da passagem por Beynac nos

perdemos nos arredores medievais com os pés silenciosos da

vontade reprimida, não faremos isso, não faremos isso –

todavia que mal poderia ter? Ouvimos ao mesmo tempo

palavras que não foram ditas. Éramos, não éramos, ouvimos

dizer que há um sentido para todas as coisas. É que nunca

nessa época seria possível adivinhar o que se mostrará um

dia puro desencanto.

Em Marais, Paris à tardinha, subimos de mãos dadas as

escadas da casa da mãe de Isabele. Na janela aparecem

tulipas vermelhas e amarelas, Julie tem algo em comum com

flores. Não, a senhora não está e, se podíamos esperar,

esperamos no vestíbulo ventilado. Há quadros de uma época

anterior, quando não se pensava em arte como mercado e

mera decoração de esperas. Bem, isso dependerá de quem

espera.

A empregada serviu raclette e café, agrado melhor

impossível, pensa Julie, que adora esse tipo de comida, faz

lembrar de sua avó, não saberia dizer a razão, não é uma

comida tradicional da região de Marseille, você não sabe

como Miramas é linda, com seu aspecto às vezes também

medieval (não concordo, aliás, que se fale em “idade das

trevas”), o vilarejo cresceu do alto, desde a Cidade Velha.

Entendi, eu disse, sem compreender todavia por que aquela

minha voz queria chorar.

É hora daquela lágrima teimosa?

O queijo no paladar.

A senhora não costuma receber e pouco pára em casa.

Agora foi visitar uma amiga e na volta passaria no mercado.

Page 218: LISBOA AGOSTO DE 1988

Não lembra do telefonema da filha e não se preocupa com a

hora de voltar. Prefere chegar depois da janta e evitar a

mesa, onde não se sente à vontade. Está a um passo da

separação do padrasto de Isabelle. Não há muito tempo

passou a acreditar na filha, nas histórias que contava sobre

abusos. Talvez sempre soubesse que era verdade, mas

amava tanto aquele homem. Ah, filhinha... Nesse momento,

Não posso esperar, disse Julie, sei que é importante para

você mas tenho de ir ver umas coisas.

Era importante sim, na medida em que eu prometera a

Isabelle.

A noite descera havia pouco e descíamos as escadas,

meus papéis caíram – alguns esboços sobre Harlem Desir,

sua origem, sua causa, seu provável futuro político. Loyers

libres, de acordo com matérias que consegui traduzir (mal e

mal); “Sous le cieul de Novgorod” e sua autora. E Sylvie

Guillen, maravilhosa. Tudo abortado, respondi. Por quê? Ora,

porque tudo o que importa agora é que estou em pleno

estado de paixão. Você é velho para mim, perdoe-me, ela

sorriu. É, sou, e também – Ah, vai dar certo! – palavra

estranha, certo: quando exatamente significa algo?

Afogueada, Julie diz que voltará no dia seguinte para a casa

de seus pais. Mas não tenho dinheiro para pagar um hotel,

que tal a gente andar pela cidade, ir a alguns lugares talvez,

o trem sai cedinho, antes do amanhecer.

Passeávamos por uma Paris que, por comparação com a

vez anterior, acreditei vazia, exceto pelos turistas. Havia

chovido, estava quente, as nuvens passam, é um sonho de

Paris, diz Julie: sem parisienses. Em frente a Baudelaire na

vitrine, ela fazia confissões discretas, de bom tom entre

recém-conhecidos que mostram afinidades e nos mantivemos

naquele nível superior em que se opina sobre a vida de uma

Page 219: LISBOA AGOSTO DE 1988

forma muito teórica, como se opina acerca de livros e se

esmiúça filmes e partilha-se o gosto musical; mas as

revelações pessoais são contidas, casuais. Entretanto a vida

real e prática estava ali, gritava em nossos silêncios.

Ela toca violão, compõe e canta, as gravadoras estão

todo o tempo recebendo fitas. Nada no mundo me faz

desanimar, pois certamente morreria se não cantasse. Acho

que há música até nos meus projetos de arquitetura, disse

rindo. Chegou mesmo a mostrar uma musica inteirinha, olha

só cara, chama-se simplesmente My Song – assim mesmo, em

inglês, é para atingir potencialmente mais pessoas, o

segundo idioma torna-se muitas vezes o primeiro.

É, comentei que era mesmo uma tendência.

Compunha, escrevia poemas. Falando, sentara-se à

margem do rio, fazendo massagem no pé que descalçara.

Abaixo da cintura, sou toda problemas, disse, aparentemente

para justificar a meia elástica. Quer ouvir uma poesia? É no

estilo de Rilke, sonho de artista, artista e arte integrados

sem lugar para nada mais. Sonhando, vivia ela assim, à parte

do mundo que diziam ser o real – sangue por pena vertido

sobre a folha branca do cotidiano. O mundo só pode ser

modificado pela arte, ela disse, política quando muito é um

pano de fundo. Os discursos das pessoas são sempre muito

repetitivos, dificilmente alguém diz uma coisa nova ou que

tenha uma nova conotação.

Por isso nos espanta tanto uma obra minimamente

criativa.

Julie era uma estudante de arquitetura fascinada pela

nuance rósea dos tijolinhos aparentes de Toulouse. Rosa que

me lembra canções. Depois recitou a letra da música.

Dividida, era plenamente ela quando deixava de ser. Como

um espelho que aumenta. Etc. Sinceramente compenetrado

Page 220: LISBOA AGOSTO DE 1988

nos versos, ele não notou o pavor nos olhos dela, como ponto

de ruptura. Perplexo, perceber quando mais tarde seus pais

contassem do suicídio.

Julie Wingran, assim alta e solene feito o nome, meias

de compressão, sapatilhas, música e poesia desfeitas após a

derradeira angústia. Agora faz todo o sentido a forma como

lembrou de Hendrix e acreditava em Hendrix muito mais do

que em Dylan. Não dá para crer numa arte que deixa de falar

em seus temas, que passe a falar apenas dela mesma, e

todavia é preciso que em algum momento o faça, sabe como

é, uma reflexão, mas só isso, Andrei, não um palco para que

eu atue.

Julie. Vereda curta, inutilmente longa, como o curso

concluído sem reflexo na vida profissional. E agora? A terra

girava. Meus membros iriam tremer e de todo perder a

antiga força. Continuar. Problemas de desejo e inspiração

sublimadora não fariam mais sentido. Sobreviver, de dor em

dor, oprimido, trabalho sem ganho. Iria com o corpo para o

mesmo pó. Agora eu sei. Julie, eu, mais cedo ou mais tarde.

Desfeitos, refeitos. Representação da vida, vida verdadeira.

Rosto no espelho. Vocação supõe coisas reveladas antes da

revelação de todas as coisas.

A verdade, escorregadia, ilude toda evidencia.

Michel e Oleana estão em algum lugar na densa noite

européia. Tardarei ainda alguns meses até saber do caso que

ela manteve com o pai do namorado. Esse era um

pensamento recorrente durante os dois dias e duas noites

em que errei por Paris. Minha enxaqueca voltou, embora

estivesse bem menos nervoso do que o normal. Continuava

Page 221: LISBOA AGOSTO DE 1988

sem saber o que faria quando chegasse a Trieste, que voltou

a ser objetivo, como um regime a que sempre se está

disposto e, embora nunca concretizado, sempre recriamos

sua expectativa. Desviava-me. Degraus sem fim que nunca

encontram uma porta.

Vosges. Toda essa gente. Sono bendito impede a

consciência. Sim, voltarei à casa da mãe de Isabelle, levarei a

encomenda. Homens de névoa, mulheres do bairro, cães,

crianças. O que será de mim? Flores, canteiros e jardins

exuberantes, bandeiras, o teatro. A bastilha não é por aqui?

Sem noção, eu havia sentado num canto da Praça e a

senhora apareceu coma menina.

Terei de permanecer eu mesmo. (Maman! Uma mulher

jovial) E só, comigo mesmo. (A menina está falando) Sozinho.

Je ne parle pas Français. (Ela está perguntando se você gosta

de vídeo-game) Ah, não muito.

E você, assim pequenina, já gosta? A senhora traduz. A

menina ri e esvoaça, pipilando. Bruce Willis não tem uma

filha assim nesse filme que estreou? Acompanhei-as até a

casa, ali perto. A menina chama, a senhora convida. O senhor

insiste que eu fique para o jantar. Eu podia trabalhar com

eles, como sanduicheiro, sabe o que é? Eu não sabia. Trata-

se do homem que estende uma fatia de pão como se fosse

um tapete. Depois, os sanduíches vão sendo cortados com

uma lamina redonda. Eles tem uma padaria, uma confeitaria

na verdade, ao lado da casa.

Uma terapia, claro.

No final de um mês, tinha dinheiro para ir ao sul, para o

sul, para Marseille. Compreendem como me sinto, embora eu

Page 222: LISBOA AGOSTO DE 1988

próprio não tenha certeza. Calma, queridirinha, não se

preocupe, ele voltará. Pagam um salário excelente, recebo

como um bom profissional sendo menos que aprendiz, jamais

fui assim reconhecido como escritor ou jornalista. Contava

essas coisas para os pais de Julie.

Miramas se aproximava e eu sentia o frio no estomago

das chegadas que não sabem o que se deve esperar.

Miramas, Duas horas de viagem nesse ultimo trecho. É uma

sensação estranha de vazio. Acredito que são onze da

manhã. Sei que não faz o menor sentido, que estou perdendo

o rumo e um mínimo sentido orientação. Perto por perto eu

também estava de Trieste quando em Veneza. Não consigo

encontrar a paz nas coisas pequenas e lógicas ou mesmo no

sonho que se busca com determinação. Estou antes fugindo

de Blandine que buscando encontra-la. O homem passou e

perguntei pelos Wingran, ah claro, são gente muito boa, você

é parente? Umas onze e quinze e os pensamentos se

inquietam por sobre o mar calmo e minha apatia paira

porque minha suposta intenção escapa de qualquer estímulo.

Tão pretensioso (o que posso diante do sol na água?), tão

vivido e todavia tão tímido, creio que já me perdi.

Chapelle Saint-Julien. Agora vou. Muito prazer, meu

nome é Andrei. Meus sentimentos. Falam dela, de Julie, o

quanto era valente e doce. Eles acabaram me consolando, eu

não devia me culpar. No final da tarde, choramos. A presença

de Julie é um mundo que surge como surge um rosto da luz

que amanhece no espelho.

Acompanhei-os numa sexta-feira a Marseille para

resolverem algumas coisas em relação à filha. O homem está

submerso num jardim indecifrável, está como morto. É

alemão, de Darmstadt. Fala-se de integração no país dele. O

Page 223: LISBOA AGOSTO DE 1988

alemão é um idioma bem difícil. O senhor Hans. Se mostra

indiferente ao futuro, Que me importa? Minha filhinha. Mas

consegue se animar um pouco ao falar de Kant.

Não ficou muito claro se os Peyroux estavam me

esperando de volta. E há alguém na Itália que preciso ver.

Ele não irá nem para um lado nem para o outro mas

continuará viajando, é como nossa filha. Não chore, amor.

E agora para onde iria? Não achei ser adequado falar de

Blandine e pensei em um breve giro pela Europa antes de

voltar ao Brasil agora que também estava na varanda e que

não existiam mais vagabundos ao redor. Vejo entã, mais uma

vez. O quanto deixo de ser. Esse cara sem personalidade, ao

sabor das aparências, preocupado ainda com o que

pensarão; é assim com todos em toda parte mas eu não

somos todos e a parte que me cabe parecia até ontem apesar

de tudo especial. Valerie, a mãe de Julie, sugere a Holanda,

Julie ficou lá recentemente, passou as férias num barco, fez

bons amigos. Parece-me que vi um olhar reprovador no

marido, talvez até imagine a razão. Ah, sim, eu tinha dinheiro

suficiente, eles foram realmente muito generosos. E se não

desse, pensei, ora, esse tipo de loucura é a minha vida. Parti

no dia 7, pensando ouvir qualquer coisa sobre Oliver North.

Quando deixei Miramas, soube que não voltaria; pela

primeira vez sem pena ou vergonha, soube que não voltaria,

não para ficar em lugar algum. Não deveria me preocupar

com a perda das raízes, algo que eu nunca tive. Nação é um

fenômeno transferível. E o Brasil estava em Trieste. Excitado

Page 224: LISBOA AGOSTO DE 1988

novamente com a perspectiva, metido num terno bege de

linho amassado, tomei um avião para Amsterdã, tranqüilo,

um rapaz de bem, pensa sua companheira de viagem, e lá

estão os amigos de Julie, entre paredes inclinadas e

bicicletas; paira nas ruas o cheiro de maconha, pego um trem

depois, vou para Bruxelas onde há todo um clima propício a

Cohn-Bendit, haverá ele de ser no Parlamento europeu

devidamente reconhecido e tratado com a honra do acaso.

Choveu há pouco, agora abriu o sol, parece um tipo de

tradição. Travei ainda breve conhecimento com um

diplomata, animado com a perspectiva de Lisboa estar

cotada para ser a próxima capital da CEE.

Foi na Bélgica, caminhando por ruas limpas ladeadas

por canteiros, ao distinguir uma moça no sentido contrário,

um pássaro ao crepúsculo, uma abelha a depositar pólen de

saudade, uma poeira fecundando em mim, no meu amor, que

imaginei poderia voltar para Paris e procurar sim a senhora

Hélenè, trabalhar com os Peyroux mais um tempo e traria de

universos prósperos a necessária prudência material para

que fosse enfim a ultima baldeação antes de Trieste.

Em Paris, quem diria, eu estava em casa, no berço do

Maio, a cidade luz, propícia a revoltas desde que inócuas,

centro de meu sonho europeu e de um lugar de trabalho, o

que sempre facilita as coisas, incluídas as que não tem a ver

com trabalho – enfim, meus olhos no aeroporto viram a tarde

entre as pessoas cheias de malas, de lá para cá,

carregadores, táxis. No céu, uma lua no dia se intromete. A

azáfama não causa medo, eu tinha para onde ir, não

dependia de ninguém. Na verdade, não me restava muito

dinheiro, quase nada na verdade, mas tudo bem. Não estou

preocupado. Marais está envolto numa luz pálida,

abandonada.

Page 225: LISBOA AGOSTO DE 1988

Então a velha empregada. Explica. Eles não estão. Não

sei quando voltam. A mulher não é rude, não é simpática,

apenas informa. Agora você está de novo ao relento, amanhã

poderá comer ou não. Mesmo assim agradeço. De nada. A

rua é um ser selvagem, os carros são monstros terríveis; as

luzes, instrumentos de tortura, as pessoas flamejam. O que

não tem remédio. Padece a folha ao vento, pousa num

parapeito. Caminhei pela arcada, sentei-me no mesmo banco

da praça.

O tom cinzento do numero 15 sabe o que sinto, está

estampado em mim, os vizinhos acham que eles não

voltarão, parece inclusive que venderam a padaria. Ah,

obrigado. Segundo o cliente de um antiquário, foram para

Milão. Há mendigos no meu suor frio. Segundo a profecia das

vitimas que se tornaram fraternas, estabeleça-se a medida

da recordação e da projeção. Que não seja preciso precipitar

o pranto em publico. Até Julie eu era um andarilho. Depois

dela me tornei um dos tantos sem-teto europeus que, sem

trabalho, caíram na rua, até em Miramas havia.

Anoitece, a noite de contornos do mundo outra vez, é

um mundo outra vez, um túnel para lugar nenhum. Eis a

minha hora. Eu olhava as pessoas com um misto de

perplexidade e terror, sintomas de uma doença que se pensa

curada, sinais que bem se conhecem, é a recaída ou nem

houve cura. Há odor de século passado até na indicação do

metrô. Só não pode esfriar. Toca um telefone. Uma barriga

luzente. A jovem se abaixa, à mostra o inicio do sulco no cós.

Vitor Hugo viveu aqui. Teria escrito. Je suis en train de

mourrir! De novo sozinho como os que acordam de um

pesadelo gritando e descobrem que o despertar não traz

consolo salvo talvez a fome, essa referência.

Limite até onde vai o desespero.

Page 226: LISBOA AGOSTO DE 1988

Rue Saint Antoine. Tenho de comer alguma coisa.

Aprende-se a cada dia, nada diferente de aprender acontece

na vida. Lembrei, comparando, minha situação sozinho em

Luanda. Lá havia a disposição peculiar dos que tudo podem

porque nada os embaraça. Tentam qualquer coisa, o

eventual fracasso estará longe de qualquer pessoa

conhecida, de toda vergonha. Essa virgindade a Europa já

perdera. Paris era caminho de Nastácia, Michel, Oleana,

possibilidade de Mario, Isabelle, dos pais de Julie...

Vergonha. O céu incendiado sorri com sarcasmo.

Aquela súbita rapidez de passos supunha que eu tinha

eu um destino.

Os lustres pendem em losangos. É um losango? Sou

péssimo nessas coisas. As pessoas passam nos pátios,

definitivamente mau-humoradas. Passe partout.

Olha e vê a si mesmo no reflexo do vagão. Ainda bem

que não está frio. De um lado para o outro, as pessoas vão e

vem. Não há a calma que propicia alternativas, nunca vira

algo assim, adeus segredos ornados, adeus solidão

reluzente. Estremece. Octavio XIV estremece, tremem as

seculares pedras acima do Maio: era a perspectiva do Pink

Floyd – eles ainda comoviam, com seus lasers, a juventude

mais esclarecida do mundo. Não saberia agora o rumo. River

rolls, time pass. Ainda que fosse um rumo qualquer, não o

mais adequado ou sabiamente ponderado, talvez seus

passos o fizessem por ele, teriam de fazer.

Precisa sair dali.

Os passos se apressam e como sempre, quando se está

vulnerável, surge uma igreja.

Há gente sincera na hipocrisia cristã instituída, pensa, e

Page 227: LISBOA AGOSTO DE 1988

durante a celebração já estava arrependido de seus muitos

pecados, pronto a se redimir deles em qualquer lugar onde

lhe dessem guarida.

O pastor se inflama, grita, cospe, demonstra

inequivocamente que os prevaricadores estão com os dias

contados e os que tendem para a sensualidade arderão

todos, eu disse todos, e soca o púlpito, ergue a bíblia

equilibrada na mão direita, aberta no fogo consumidor –

arderão – nunca soubera direito o que era o dom de línguas,

pronto, descobre, – queimarão –era alguma coisa antônima a

babel, a ação inversa, jamais preguiçosa, entender o que se

grita em idiomas que não se domina e saber que em seguida

virá o sublime momento das decisões, isto é, quando os

pecadores abrem o coração a Jesus se adiantam onde todos

possam ver e testemunhar o milagre, e em desespero ele

vasculha os bolsos, a cadernetinha, procura o endereço

daquele argelino, tenho certeza de que anotei aqui, e lá vão

os salvos a caminho, e sim reconhece que precisa comer, ter

um lugar para dormir, hesita e por fim recua, endurece o

coração, está perdido, não irá ter seu rosto iluminado pela

bem-aventurança enquanto louvam, aleluia, e agradecem e

comentam. Mas uma mulher.

Chama.

De aspecto sério, transgressor da orientação bíblica

sobre penteados, atavios e jóias, seus dedos longos

encimados pelo carmesim se ramificam no couro dourado das

letras na capa do livro. Pergunta. Brasil. Não falo francês.

Não pelo dom de línguas, ela muda o idioma. Gosto de

brasileiros.

Saímos em seu carro. Indagou acerca de minha vida.

Respondi com toda franqueza. Mas era assim tão difícil

Page 228: LISBOA AGOSTO DE 1988

voltar? Pela embaixada em Lisboa, par example. Era e

também seria o retomar a vida no Brasil.

Os jovens. Sempre se aventurando. Eu não sou tão

jovem assim. Talvez aliás fosse essa a pior parte do

problema. Bem. Tampouco ela. Jovem é minha filha, par

example. Mas me sinto tão jovem quanto. Porém ponderada.

De fato. Ainda jovem, e muito bela. Lisonjeada, comenta que

se deve ter cuidado com portas entreabertas. As portas de

retorno são sempre mais difíceis de se encontrar.

Calei.

Você deve estar com fome, claro. E, como eu

respondesse que ela parecia ter experiência de situação

como a minha, assegurou que eu não era o único imigrante

naquelas condições na Europa. Como ela sabia?

Sabia.

Convidou-me para comer alguma coisa. Durante nossa

conversa no restaurante, Você está com um problema sério,

disse ela, mas não estava se referindo à coisa da matéria,

mas queria dizer a síndrome de posteridade agravada por um

misticismo confuso. Como assim?, respondi, A senhora é

religiosa. Ela gostava de igreja e, diz, creio sim em outro

mundo. Mas você, rapaz, vive em um.

Estávamos à mesa a cerca de uma hora e meia. Ela

pediu licença, disse que tinha de dar um telefonema. Voltou,

pediu que a desculpasse, precisava dar uma saída, pediu que

a esperasse. Tive receio de que não voltasse, um medo físico

recusado por minha alma.

Na ausência de Beatrice, as pessoas nas mesas em

redor. Comendo bebendo e tendo para onde voltar. Eu

apenas retinha a idéia de lar, adorada e com a qual não

saberia decerto subsistir, caso se tornasse real. Quando ela

Page 229: LISBOA AGOSTO DE 1988

reaparece, traz consigo meu alívio, na bolsa uma paz que

como o seu nome, eu ainda ignorava. Não pensava mais

possível.

Época dos cafezais. Subsisto nas muitas tensões. Em

grande parte, graças à codeína. Após o primeiro dia na

panha, fraqueza, mal-estar, vômito e diarréia. Imaginam que

é falta de costume. Mas depois, na seqüência, o trabalho

árduo se mostra benigno, calmante, e no decurso dos dias

fiquei corado, engordei, me mantive limpo dos remédios.

A crise de Kátia. Para eu mesmo suportar, retomo o

hábito. Agarro-me à economia das ultimas cápsulas. A

síndrome espreita todo o tempo.

Agora. Solidão, fome, relento. Os sintomas da

abstinência já se manifestam: músculos repuxando, rigidez

facial, tremores nas extremidades, movimento involuntário

das pálpebras. Sempre se imagina que uma situação

tranqüila resolverá tudo. Não é verdade. Tive muitas chances

de largar. Em Paris mesmo, antes. E não adiantava sonhar

com novos cafezais, trabalho braçal na roça. Tomara a ultima

cápsula no dia anterior, presumindo da nova estada em

Marais, do trabalho na confeitaria, de uma nova caixa de

cápsulas etc. Portanto. Ah o alivio quando Beatrice me

passou francos e dólares sob a mesa. Junto um envelope, um

papel carbonado.

O sud-express.

A moeda francesa é para cobrir as despesas em Paris; a

americana, o valor de uma passagem de avião de Portugal

Page 230: LISBOA AGOSTO DE 1988

para o Brasil. Mas mal me conscientizei da viagem. Pensava

na farmácia. Aos poucos despertei do alivio. O sud-express, o

comboio Paris-Lisboa, sem crise de abstinência. Obrigado,

obrigado...

Sei que estou pálido, doentio. Tudo bem. O remédio me

manterá. Porque tanto quanto na fome, talvez mais, na

síndrome de abstinência não existe mal ou bem, culpa ou

inocência, só o vício em estado bruto. Sem sublimação, sem

arte, sem amor, sem dilemas existenciais ou destino. Por mor

dessa dor jamais anjos, cansada vida. Só o vazio, o vazio

total suplicando, suplicando outra dose. Cold-turkey, o cold-

turkey. Ei, onde você está? Beatrice passa a mão direita

diante de meu rosto. Pediu que eu pagasse a conta, depois

disse: Vamos.

Ao entrarem no prédio, reconheceu as tulipas. Lá em

cima, mexendo alguns papéis, a encomenda da filha. Pena

que o amigo que a trouxe não tenha esperado. Ouvirá a

explicação do rapaz. Saberá de Julie. Sua atenção conforta,

seus olhos brilham; sua boca, num instante breve, se

transforma na boca materna, seus seios logo satisfarão a

pequena Isabelle. O que, se não tivesse a senhora Hélenè

naquele dia? O que, se não Beatrice hoje? Dentre outras

coisas, o desejo se confunde com o constrangimento.

A senhora deve com razão me achar um oportunista. A

maldição humana, disse ela, é julgar. Deixei minhas coisas e

saímos de novo para uma volta.

O caminho produz um olhar agradecido. Atrás deles a

Page 231: LISBOA AGOSTO DE 1988

rua se estreita. Se afastam do rio. Contei de Blandine. Está

fazendo uma temperatura agradável. Poderia eu continuar

amando assim intenso se não mais pudesse vê-la? As

pessoas usam casaquinhos. Poderia, pergunto ainda,

sublimar o amor e, sem mais a angústia da posse, ser fiel?

Village Saint Paul. Se apaixonou então perdidamente por um

canalha. De onde brotam tantos pombos? E, agora, depois da

morte do pai de Isabelle, talvez tenha voltado a amá-lo.

Acabei de abandonar esse maldito, agora quero apenas a paz

das lembranças. Bem, quanto a essa resistência em relação a

uma eventual possibilidade de publicar, não quer dar

entrevistas de divulgação, tem mais a ver com um certo

sentido de respeito pela obra, que no caso é quase uma coisa

paternal, a senhora entende, Não posso permitir

simplesmente que o mundo via mídia se aproprie assim do

que é meu.

Barulho das águas da fonte.

Muito de madrugada, três e meia no relógio da sala, ao

sair para o banheiro, tateando no corredor junto à espiral da

escada, o luminoso repete-se lá fora. De volta ao quarto,

ondas da evocação de Isabelle. O dia então, na claridade

consumada, pousa na janela. Descerei a escada. Antes, terei

deixado o bilhete. Agora, as cápsulas.

O atendente não atende de imediato. O medico no

sobrado. Enfim a receita. Cremenceau, sintomas em aura.

Avenida Churchill, uma cápsula a seco. Depois outra, um refri

na brasserie.

A não-chegada da crise de abstinência. Eu me sentia

Page 232: LISBOA AGOSTO DE 1988

outro, desacostumado que ficara de mim. Como se eu mesmo

fosse uma condição exterior a mim. Sinto-me seguro com a

cartela no bolso da jaqueta. A placa de rue à altura de minha

cabeça mas eu não estava na rua, não chegou a síndrome, eu

era eu sendo outro – o desejado efeito de minha sobriedade:

fui feliz por dois dias.

Envolto na fumaça, o trem deu o tranco. Sentado à

janela, espalmei a mão no vidro. Da plataforma, ela pergunta

se eu escreverei. A senhora gostaria? Ela disse que não.

Talvez eu escrevesse. Um sorriso em seu rosto triste, sol

entre nuvens.

A dificuldade do adeus. Até ali, eu simplesmente não

parara para pensar no avião do regresso, exceto pela

gratidão que à senhora Beatrice devotava. Alguém pode

indagar por que a dor. Não sei. Mas à medida em que ela,

Beatrice, vai ficando pequena, menor cada vez ao ritmo do

ferro, é sofrendo que soletro, tocando os dedos na frase, um

ultimo protesto de amizade e admiração. Ela disse algo que

entendi como Adeus, querido, vá e encontre teu mundo.

Duas lagrimas azuis encheram os seus olhos.

Era meia noite quando a locomotiva puxou os vagões,

apitando. O sud-express... Parecia fantástico na imaginação

e todavia era igual a qualquer locomotiva puxando vagões e

apitando, em qualquer parte.

Uma locomotiva tem sua rede de músculos, como um

homem, na Europa, na América, em qualquer lugar. Podem

ser diferentes os homens, e são, mas a estrutura é a mesma

– como um trem. O cordel da maquina fazendo as vezes de

Page 233: LISBOA AGOSTO DE 1988

corda vocal; o apito, a voz; os tiques férreos tiquetaqueando

na fricção da partida – como pernas que se preparam para

correr. A fumaça da respiração. Os passageiros nos vagões,

células renovadas. As paisagens do sonho.

Sempre se precisa ambicionar uma estrela distante.

Sud-express. Sempre se ignora uma outra, tangível, aos pés,

na areia do mar onde pisamos – o mesmo mar, com a

estrutura de um ser humano, a voz das ondas, a alma do

abismo, e glóbulos de peixes em veias de correnteza: a

bonança como a calma de um homem e a tempestade coma a

fúria de uma mulher ciumenta – em todas as partes do

mundo.

Beatrice e eu deixáramos sua casa às dezessete horas.

Eu queria ainda ver um ultimo crepúsculo parisiense. Soava

melhor: No dia em que deixei Paris, o céu incendiado; do

que: Quando partia de Piumhi, os cafezais empoeirados.

Vaidade é inerência humana e senti-la, de algum modo, me

ligava ao resto da humanidade da qual me retirara. E ao ver

com a luz daquele céu a umidade tornar ainda maiores os

olhos dela, talvez essas colméias iluminadas tenham

inspirado o sonho que tive no trem.

Antes, a meu lado, um homem trazia aberto um livro.

“Everything is of equal importance from a truly creative

stand-point”. Parece coisa beat. Não estava de todo errado.

Era a introdução de Henry Miller para Os subterrâneos”.

Depus na passagem minha confiança. Suspirei pela chegada

a Lisboa e reinicio de meu livro, enfim só e sossegado,

espanto da quebra de longos costumes. Que os nervos

saltem mas eu seja. Cada vez mais o corpo dispensa piedade,

por virtude do paliativo. Não saibam minha doença. Quem

sou? O que se exalta? O dócil? Sou ambos, todos, a lasca de

Page 234: LISBOA AGOSTO DE 1988

rúcula, o sal e o vinagre balsâmico. Também a saladeira.

Misture bem. Sirva em seguida. Eu estava livre. Voltaria

enfim para o Brasil como um vencedor.

Depois de muita impressão trocada, da excitação de

conversar com um brasileiro na França (e sobre Kerouac!)

acabei cochilando e veio o sonho, visões da primeira vez que

fumei um cânhamo indiano legítimo, fortíssimo. Sob estrelas

que não vejo, acalentado pelo thuthuchz-thuthuchz do trem,

lembro, sonho. Eu, o iludido, o sonhador, na casa de minha

mãe, olhos fechados, um vaga-lume pairando sobre uma

circunferência negra, gigantesca. Piscava. Arte. Ajuda a

viver quando não simplesmente vive em nós, lojas de artigos

de inverno que vendem mais em pleno verão. Piscava, e do

outro lado da bola, outro vaga-lume piscou. Arte. Lenda de

crianças desaparecidas atormentando os vivos séculos

depois: o terror e êxtase futuros, décadas antes. Depois um

terceiro. Agora ele é esse terceiro vaga-lume e eis um quarto

– eis dezenas, milhares. Logo a circunferência inteira

brilhava, plena fulgência. Fugaz aparição. Ficara, todavia –

pelo espelho, pelo Outro, pela noite, pelas letra se todas as

paginas ainda em branco do caderno e os traços que a

simples memória recusou.

Despertei. Levantei-me. Por que estou chorando? No

espaço entre os vagões, respiro o ar molhado. É

praticamente verão, mas não está quente. Pergunta sobre

minha volta. Eu ainda não sabia, embora agora houvesse

meios de voltar, uma ponte reconstruída. Ele me contava da

primavera agradável no Brasil, inclusive na fria Curitiba,

onde morava. No verão, planejava ir para o Rio, pegar uma

praia e nadar um pouco. Na plataforma de desembarque de

Lisboa, eu vi, de esguelha, porque era outono e o inverno se

Page 235: LISBOA AGOSTO DE 1988

aproximava. Nastácia.

Há confusão em sua mente. Está ali parado, sem

esconder o rosto. Se ela o buscava, iria encontrar. Se era o

que ainda queria. Encontra, de fato. Acompanha os últimos

metros da composição. Sansão Medeiros, que mencionara

uma volta ao Brasil juntos, imagina a namorada do outro

brasileiro e que gostariam de ficar sós, despede-se.

Desço. A mochila no chão. Nastácia sorrindo a meu

encontro. Onde a fúria do mar? Eu a abandonara...

Não estava sozinha.

Per un futuro felice!, diz o homem a seu lado. Não podia

ser o marido. Oi, sou Franco Belini! Era.

Como sabia que eu estava naquele trem? Sabiam? Não

vamos duelar ou algo assim? Ele riu. Imitei-o.

Amava Nastácia, disse ele, e talvez ela o amasse. Ou

tivesse amado. Mas tinham um serio problema, a

convivência. Quanto a você dois, ela contou. E se amam, e

convivem bem um com o outro, devem continuar assim,

agora pelo menos, independentemente de se vai durar.

Seu raciocínio, coerente e liberal demais, me assuntou.

Mas aconteceu que, subitamente liberto da

dependência financeira de Nastácia, percebi nela encantos

que o dinheiro embotava. Como se fosse uma outra mulher.

Alguém que se deixa de ver por um tempo e na ausência

cortou o cabelo, mudou o penteado e passou no falar a ser

discreto. Uma nova pessoa. Barco que se vê ao longe: visão

falsa quanto ao tamanho e incompleta nos detalhes, a

memória e imaginação suprem essas lacunas para entregar

ao desejo um ser inteiro – não apesar da distância mas por

causa dela, deliciosa pessoa.

Percorrer com Nastácia os mesmos caminhos que

Page 236: LISBOA AGOSTO DE 1988

percorrêramos quando eu estava na miséria era andar por

caminhos não só novos mas redentores, lugares em que o

menino costumava brincar mas temia a chegada da noite

enquanto o homem se afadiga no dia e regozijará com as

sombras pelo crepúsculo prenunciadas.

Montes de mãos, rios que corriam em meus dedos,

impulsos primários de todas as formas satisfeitos. Noite. O

céu estrelado sob o vulto da árvore contorcida, ao ribombar

regular dos trens estremecedores cruzando a guarida do

manobreiro. Eu e Nastácia ocultos pela copa próxima à Torre,

ou será aquele o monumento aos descobridores?

Deita satisfeita na coberta retirada da mochila.

Margens mágicas sujas de lendas. Castelos. Abaixei-me junto

às águas. Transportei-me. Lugares inexistentes não precisam

da passagem de regresso. Azul escuro atemporal. A

lembrança de sempre na noite que restou. Um Tejo real,

adormecido. Só iremos dormir para valer já quase na manhã

de domingo, no gramado ao redor da igreja lá em cima, após

o sol secar o orvalho, lá pelas seis e meia.

Semelhante sono tende a ser desfeito pelo calor dentro

da lã na blusa necessária para a noite fria. Haverá além da

morte talvez o que se poderia ter em vida, saúde e

prosperidade, a forca de uma natureza benigna, a amizade

dos animais hoje selvagens, águas correndo da direita para a

esquerda perante os grãos de miragem que se formam nos

olhos quando desviamos o rosto para que não vejam que

está vermelho de uma irremediável vergonha. Cansados,

famintos, vamos agora procurar uma pensão. Acabamos no

velho hotel defronte do coliseu, luxo perigoso, sempre.

Chegamos assim a semelhante situação:

Page 237: LISBOA AGOSTO DE 1988

Eu nada dissera sobre a volta ao Brasil, sobre o dinheiro

que para isso me dera a mãe de Isabelle. Aliás, não falamos

sobre nada quanto aos últimos meses, os de nossa ausência

mútua. Nastácia está tranqüila em relação à parte financeira,

por causa de Franco. Também por amigos anteriores ao

marido, aos quais não vira após o casamento. Em sua maioria

portugueses “retornados” de Angola. Passaram por maus

pedaços na volta, após a independência da colônia, mas

conseguiram se restabelecer em Portugal. Tenho certeza, diz

ela, que nos receberão enquanto as coisas se acertam. Não

quis tripudiar sobre sua decepção, mas à época eu disse:

Será? “E se”... Agora é tarde, não adianta. Hoje sou enfim

um cara realista. Pelo menos isso as vicissitudes me

ensinaram. O sol em cima dos telhados é enfim apenas o sol

em cima do telhado; a nuvem só uma nuvem, não uma pista

de pouso. Mas eu sei que é triste a vida sem sonhar. A

pomba no parapeito do hotel geme qualquer coisa a respeito

e estala as asas, deixando-me sozinho novamente.

Pois bem. Os tais amigos recusam guarida. Um após

outro. Todos. Não. Exceto Hilda. Desce a noite e como a

região do coliseu se encontra triste à noite! Mulher

admirável, a Hilda. Ela e o novo marido, Garlos. Hospedam-

nos. As duas recordam passagens da adolescência enquanto

ele e eu acertamos meu emprego em sua fábrica de moveis.

Tudo caminha tão bem que me esqueço do livro. A paz é em

geral péssima musa. A banalidade dos felizes.

Comecei a trabalhar. Rapidamente, a reputação de

funcionário exemplar, simultânea à de protegido do patrão.

Garlos estava a pensar, diz logo depois do jantar no primeiro

sábado, em me pôr num dos escritórios. Serviço braçal não

Page 238: LISBOA AGOSTO DE 1988

combina contigo. Mas eu adorava. Feitura de cadeiras, mesas

de TV, vídeo e computador, escadas graduáveis. Montagem.

Ah, e a preparação das embalagens – pode-se dizer que me

tornei de fato um perito em nós.

Dias calmos na casa do casal. Nos finais de semana

íamos a um barzinho onde serviam bebidas quentes à lareira.

Sim, sobretudo aos sábados, sábados como ontem, meu

Deus. O pombo circula, está de volta. Ah, meu amiguinho. A

única coisa que me incomoda, Garlos, é incomodar vocês,

Incomodar nada, Claro que sim, por exemplo tirar sua filha

do conforto do quarto dela para nos instalar. Não era nada,

disse ele, era um prazer, completou Hilda. Mas de fato

mudaram a rotina da casa, horários de banho, refeições,

lugares à mesa, alem dos quartos. Perderam a privacidade.

Não é verdade meu amigo. Estamos optimos!

Mas um dia, tensão à mesa do jantar devido a um

problema com a menina. Pare! Não fale assim! Somos teus

pais! O quarto estava decerto entre os motivos da rebeldia,

não fosse o único motivo.

Uma casa de praia sem uso. Pedreiros e reforma.

Podíamos ficar lá. Hilda e Garlos oferecem uma resistência

não-convicta. Isabel nos olha agradecida. Amanhã estaremos

à beira mar. O sol busca no mar seu próprio reflexo, sombras

pesam em torno do hotel. A pomba se aquietou em algum

canto. Então silencio. Quero a solidão sem desejos. Deve

haver algum modo de saber por que o silencio nunca é

sereno. Há pouco, acordava e olhava a cidade lá embaixo, o

rio, os cacilheiros pequeninos. Houvera um casamento e as

Page 239: LISBOA AGOSTO DE 1988

pessoas saíam ao gramado a confraternizar.

Da distancia em que estávamos, eu e Nastácia aos olhos

dos convidados devíamos fazer parte da vegetação que

ladeava a rua até a igreja. Nos fones de ouvido, escuto a

mesma canção que escutei no aparelho de som de Felipe, na

casa de Garlos. Os transeuntes lá embaixo formam uma

mancha esverdeada, escura, móvel, nas cercanias na Torre.

Acordar num lugar assim traz invariavelmente um prisma

distinto, tudo parecerá novo – é a vantagem de estar

dormindo na rua e um dia em cada lugar.

Desviei olhos doloridos na direção de Nastácia. Cheios

de lágrimas, a viram, derramando-se entre os sonhos de

amor e o medo. Quando ela acordar, eu lhe direi que há

dinheiro suficiente para passarmos no hotel aqueles dias até

conseguir outro emprego, ou enfim a esperança é a ultima.

Contemplo de novo o rio, a cidade, as pessoas

pequenas, a mancha móvel, tudo cheio de desespero

também. Um arrepio nos nervos. Os olhos da pomba no

escuro. Deixo a varandinha, entro no quarto e fecho a porta,

recordando. A mudança para a casa de praia.

Outra vida.

Fins-de-semana, uma festa. Felipe, filho de Hilda e

meio-irmão de Isabel, 16 anos, descobrira facilmente ser eu

um apreciador do haxixe e, consumindo-o ele mesmo

desbragadamente – sem que a mãe, imersa em

planejamentos grandiosos, ou o ocupadíssimo padrasto

percebessem – introduzia as madrugadas de sábado a

buzinar sua moto, com a namorada na garupa eventual. Olá,

tios giros! Ô pá, cá estamos! Vinham sempre com irmãos de

Page 240: LISBOA AGOSTO DE 1988

CBX200 a fim de celebrar o ritual do início da noite de

sábado.

Ah, o que a mãe dele haveria de dizer, sua comportada

amiga de Luanda!... E Nastácia ria, riso de cristal ecoando na

cerâmica espelhada. Balcão de granito, arde o incenso. Estou

rejuvenescido ao entrarmos no astral do sonho, conversando

sobre o Deus do mar e das estrelas, sob elas, ao lado da

churrasqueira no quintal.

Numa segunda-feira, Hilda telefona. A primeira

secretária do escritório de Garlos em Lisboa pedira

demissão. Ela usou meias e ligas para convencê-lo a dar a

vaga a Nastácia. Significava que eu ia perder o lugar na

fábrica, pois só a parte administrativa funcionava na capital.

Começam grandes discussões, é claro que eu posso

continuar aqui e você ir para Lisboa, podemos passar juntos

os finais-de-semana, alugaremos uma casa numa cidade

intermediaria. Por quê? Separar-se? Estás a querer se ver

livre de mim! – Claro que não, Nastácia, seja razoável, estou

bem em meu trabalho, não é só uma questão financeira, e no

fundo eu sabia que a polêmica transcendia em muito essas

coisas. A brasa de um cigarro, quando rodada no escuro,

parece um circulo de luz ou de fogo; mas devagar torna-se

apenas uma brasa de cigarro girando no escuro.

Também Hilda e Garlos vão veementes de encontro a

meu desejo. Para ela, Hilda, será impossível Nastácia

conseguir algo semelhante noutra firma e para mim há

grandes chances de ter uma função igual em Lisboa. Sem

contar, acrescentavam, que eu ainda poderia trabalhar como

jornalista. E escrever teu livro, amor.

Mas um livro não é trabalho, trabalho é remuneração

imediata.

Page 241: LISBOA AGOSTO DE 1988

O ultimo dia na casa de praia. Lentamente o sol surge

na névoa. Cães latiam. Ventava muito como sempre. Da

porta, vi Blandine saindo da água. Um pássaro pairava sobre

ela. Mais um croisant, querido?

Mudamos para um subúrbio lisboeta.

Primeiro dia. Disciplinar-me por meio de uma agenda. A

idéia de me dedicar ao romance. Não deixa que a depressão

se instale. Já esqueci a discussão que tivemos ao chegar e

Nastácia dizer quanto era bonito o prédio. Tão difícil

conseguir um emprego bom, uma renda regular, você joga

tudo pro alto e quer que eu fique admirando a arquitetura

lisboeta?

Ah, Andrei, vê se pára de reclamar, estás a encher o

meu saquinho! Logo ela, que sempre disse que não sabe

fazer nada, nunca trabalhou, e nem quer saber de –

Caralho!, que eu saísse dali, saí, me deixa em paz,

porra!

Vou para a porta, Adeus então – Não, por favor, não

vá... E fazíamos amor melhor depois das brigas.

Recomeço a trabalhar no livro. Sem haxixe e mantendo

a codeína a níveis de não-retirada. Passo os dias pela cidade,

faço anotações em praças, em snacks, na mureta do Tejo.

Trabalhar, trabalhar mesmo, escrever à vera, só no silêncio

da noite. Aproveito notas de viagem, entrevistas,

depoimentos, poemas, artigos e, sobretudo, filmes.

Um escritor que acha melhor um filme do que um livro,

cuja técnica se há uma é antes de cinema que literária.

Page 242: LISBOA AGOSTO DE 1988

(Nesse período, particularmente, sou tocado por “Bird”,

a biografia de Charlie Parker. Não quero mais ver outro filme

de Clint Eastwood, não quero ver Forrest Whitaker na festa

do Oscar)

E tem o caderno que mantenho à cabeceira ou à mão,

onde quer que tenha dormido. Ao acordar para fazer xixi há

sempre um fragmento de sonho ou – de novo essa voz – e

logo adormeço de novo e pela manhã, ao Nastácia sair,

descubro feliz o poder da retirada de trechos do texto

principal, a eloqüência da rasura. As descrições viajam de

fora da janela para dentro de alguém que antes em mim não

existia, não sei direito quem é. Sabe as coisas a seu modo.

Me arranca das entranhas em inesperados crepúsculos de

efeitos, arrebóis de figuras, tudo o que é linear se torna

inverossímil. Que vida? Quem assim? O que se fala? E vem o

prazer da digressão.

Vou contar como:

Uma noite acabaram as cápsulas de codeína. De há

muito só protegiam da síndrome, de há muito não retirava

delas a mínima fonte de prazer. Para tanto servia também a

substância no emagrecedor de Nastácia. Procurei.

Costumava guardar numa gaveta com extratos bancários,

receitas e anticoncepcionais. Minhas mãos tremem. Derrubo

papéis que me serviam de guia no romance: mapas de metrô,

notas ficais, recortes, páginas avulsas, cartas. Encontro a

caixa, tiro um comprimido da lâmina, engulo com um pouco

de suco e me preparo para arrumar os papéis.

Para quê? Por que fora de ordem não me serviriam de

guia? Garantiam o domínio do tempo independente da

cronologia. De resto é como as coisas eram, caóticas, e

qualidade literária não há mesmo, nunca houve, de uma ou

de outra forma, agora eu sei.

Page 243: LISBOA AGOSTO DE 1988

À frente, um poema escrito na casa de Oleana. Quero

voltar para Lisboa, quero ir para longe, para a luz de um

mundo esquecido, novo porque antes um dia já vivido

(quando?), mas não mais por isso não mais, mundo

esquecido, reencontrado como a rocha em alto mar no

horizonte incendiado – mas não adiantará: lá ainda estarei

ainda comigo, minha perpétua e indesejada companhia, lá

estarei ainda longe de meu amor. A luz de uma vida não

perdida mas oculta, como a depressão de alguém rouba a cor

de seu quarto.

O postal de Kleber, a janela, o sol de outra cidade.

Assim purificado pela ausência, ou seja pela imaginação. O

que é isso? Ah o recibo do hotel em Atocha. O jornal que fala

do seqüestro. Minha carteira profissional. Dez anos entre o

primeiro e o último carimbo de uma empresa jornalística,

aqui pode entrar o diploma que não tenho. Em algum

momento aparecerá o passaporte. Não é questão de lugar,

sequer de tempo, mas de alguma coisa que existe em ambos

e os transcende, habitando céus e terra e sobretudo o limbo

intermediário.

Estar verdadeiramente apenas ao não estar, ao

lembrar, ao imaginar. Este recibo da pensão no Bairro Alto

me traz mais daquele período do que de fato sentia lá. Recrio

aquela vida e súbito eis que é vida enfim, justo aqui perto

assim da morte. Algo sobre Angola deverá vir na

correspondência que recebi ainda no Brasil. Vamos ver.

Aquela Time na casa de Oleana. O Proust de bolso! Uau...

Vejamos. O começo do livro pode ser também em Paris, ao

chegar de avião com Nastácia naquele cenário metálico

prateado e azul aos eventuais sons de um estranho pássaro,

a l`heure. É, pode ser.

Idéias confusas. O fato é que. O exercício de passar

Page 244: LISBOA AGOSTO DE 1988

aqueles textos todos para um único me deixa a mercê do

assalto de sentimentos por demais intensos quase violentos

para minha vulnerabilidade. Aqueles dias obscuros tem uma

luz peculiar, a que a vida posterior concede àquela que não

se sabe enquanto está passando. O livro perde a perspectiva

literária e o leitor, a posteridade e a necessidade de

reconhecimento, enquanto o trabalho desmaia de desejo,

mais exigente se torna na execução e obriga a renúncias

básicas como a da felicidade, da amizade ou do prazer.

Viro o postal. É a letra infantil de Kleber sobre o papel

amarelado, o universo realmente reflete de todas as nossas

conversas, amigo, nas quais tenho constantemente pensado,

desde que você, tolo, foi atrás de minha irmã. Fui. Vim.

Estou. Agora aqui. É noite. Meia-noite.

Oito horas da noite em Piumhi. A praça está quieta, sem

movimento. O casal que passa se lembra. Mas claro. Era um

cara bem legal. Ah, sim, ela também. Muito bonita. Nunca

mais. Nunca mesmo. Sumiram. E o Kleber? Dizem que vai se

casar. É uma noite de agosto, excepcionalmente fria mesmo

para o sul de Minas. Tanto assim não deveria. Tempo

estranho. Um miado no telhado do hotel em frente à praça.

Durou duas semanas. Sexta à noite no meu desespero

Nastácia chega sem preâmbulos. Briguei com Garlos, diz,

quem está ele a pensar que é para falar daquela forma

comigo na frente de todos? Pedira demissão. Mas não se

preocupe, amor. A casa fazia sim parte do contrato mas

telefonará para Franco no dia seguinte, pedirá algum

Page 245: LISBOA AGOSTO DE 1988

dinheiro. Alugaremos então um apartamento. E tenho

certeza o próprio Franco nos conseguirá trabalho junto às

suas relações em Lisboa.

Naquele momento escutei um miado agudo vindo do

telhado. O vento varria em redemoinhos.

Ali. Saindo de sua casa em Crotone. É ela. Uma mulher

maravilhosa. Com a roupa do corpo, um belo corpo. Então

eles combinaram. O que ela venha a precisar é só pedir. O

que precisar. Vá com Deus. Agora ela de novo, ligando para a

Itália. A mesma roupa, um pouco suada; o mesmo corpo, um

tanto cansado. Ele não está em casa, foi para Nápoles. Não.

Ninguém sabe onde. Claro que há uma explicação. Enquanto

isso poderiam recorrer aos avós dela em Póvoa.

Não era caso de desespero.

Os navios passam ao longo do Tejo, os cacilheiros o

atravessam. Ali estou de novo. Somos eu e Nastácia duas

pessoas sem nada em comum mas não posso abandoná-la

numa situação em que se meteu por minha causa. Sei porém

que não dará certo, jamais dará certo, é questão de tempo,

ela mesmo me abandonará. Esperarei.

Um casal em Cascais. Amigos dos últimos conhecidos da

agenda de retornados de Nastácia. Precisam de caseiros.

Melhor ficarem com o trabalho do que sermos constrangidos

a hospedá-los. É, também acho, diz o marido. Está resolvido.

Na quarta seguinte, ultimo dia de Nastácia no escritório

de Garlos, já havíamos mudado para a linha do Estoril, no fim

da qual o casal tinha a chacrinha.

Page 246: LISBOA AGOSTO DE 1988

Durou uma semana.

Quinta pálida perturbada entre as arvores que

farfalham. Ela chega pelo caminho que traz à habitação dos

caseiros. Estou cozinhando na lareira porque o gás acabou e

só poderei buscar um novo botijão no dia seguinte. Ela

estivera durante todo o dia e parte da noite na casa

principal, servindo os convidados. Desabou chorando sobre o

sofá e disse que não agüentava mais, era superior às suas

forças, não estava acostumada, não agüentava mais.

O senhor Couto compreendeu, a senhora Couto

lamentou.

Partimos no dia seguinte à tarde.

Durante o percurso de volta a Lisboa, escondia de mim

os olhos. Quando na penúltima estação as pessoas

começaram a apanhar suas coisas para descer no Sodré, ela

toma minha mãos e me encara, por favor me perdoe, queria

o melhor para mim, amava-me.

Estremeci.

Ao descermos na estação do cais, estávamos na rua,

sozinhos, amaldiçoados. Então ela fala. É hora de começar a

aprender a viver como se o Franco não existisse. Não iria

atrás de advogados ou detetives até porque não tinha

dinheiro para isso.

- Eu tenho.

Não era muito. Mas creio que para isso. Como, não quer

o meu dinheiro? Eu aceitei o teu todo esse tempo! Irritada

ela perguntou por que eu insistia. Não te incomodava tanto a

dependência? Agora eu estava livre, não dependia mais.

Anoitecia e tomei consciência da noite. O vento continuava a

soprar.

Page 247: LISBOA AGOSTO DE 1988

Em algum lugar além a circunstancia não me afeta.

Agora, quando atrás da igreja escrevo após a morte de

Nastácia, sinto-me assim. É antes de qualquer coisa um

estado puro de luz, de uma luz que não existe. Fragmentos

de espelhos expostos a essa luz me refletem, não a imagem

de mim mesmo mas de um todo espedaçado, também não o

universo. Nega a relação eu-e-o-mundo sem tornar as duas

coisas uma só. A palavra oculta, ainda palavra, chama a

crase se for o caso.

Me desviei do caminho, você entende? Eu poderia ter

sido. O palco ainda está lá, a luz, mas não há ninguém que

queira fazer o papel e muito menos espectadores para essa

peça.

Seres humanos à margem, desaparecidos. Longe de um

nirvana mas sem vontade, não a poderia distorcer. O acaso

determina os acontecimentos. Raras felicidades sem euforia,

constante amargura sem depressão. Apenas um rosto

pairava, envolvia tudo. Anjo a que não se pode fixar por

causa da glória nem é visto no decurso humano exceto pela

dádiva inaudita. Como alguém num sonho, alguém não

identificado, poderá ter a mesma intimidade conosco que a

mulher à espera no pomar. Atrevo-me a dizer que o fogo das

palavras me usa agora, pois a calma do amanhecer lisboeta é

tão rubra e viva, não como eu descreveria um arrebol, mas

se distantes e em mim os prédios realmente ardessem.

Podem ruir a qualquer instante, é possível sentir a

queda iminente. Os quarteirões crepitam. Se estivesse bem,

ele poderia ouvir. Num instante, já havia amanhecido, o fogo

Page 248: LISBOA AGOSTO DE 1988

envolve a elegante ladeira de Lisboa, devorando espaços dos

mais famosos da cidade. O vidro poderia ter sido partido por

um pedregulho e do impacto seguiriam as rachaduras em

todas as direções, mas não, que tamanho de pedra por meio

de que mão poderosa faria estrago assim, com violência

tamanha? Acalme-se Andrei. O homem está dizendo que vai

ficar tudo bem, já está chegando ajuda. É como um olhar

furioso, quebra-se em todos os sentidos ao se desprender do

olho e irá ferir o desavisado que não se protegeu. A vizinha

presta atenção na cena, o corpo levado pela ambulância

cercada de curiosos. Presta muita atenção mas minimiza, eu

o conheço bem, pensa, ele está sempre sob o efeito de

alguma coisa.

Senhora, por favor, e ao som de sua voz ela chegou

mais perto para – olha, há um principio interessante nessas

linhas, há vinte anos um determinado acontecimento,

percebe? e diz daqui a vinte anos uma outra coisa, e eu olho

para ela, é Oleana, é o que diz, há vinte anos, daqui a vinte

anos, mas não parece dar a mínima para a vida que se

repete, se reinventa, se renova, e quando vê o sangue aperta

os olhos, e ao abri-los ali está o vagão meio cheio do metrô,

a fronteira em que a poesia subsiste e os aproveitadores que

nas aglomerações acossam, a historia que se confirma ou ao

contrário contradiz tudo aquilo em que se acreditou, o medo

de movimentos no escuro que eram um gatinho afinal.

A rua ainda está vazia a não ser pelo ajuntamento em

torno da ambulância, silenciosa exceto pelo sopro vigoroso

do vento apavorante. Ele vê ao redor com o olhar

dissimulado de cento e oitenta graus, agora sem mais

qualquer função – poderia ver mas não sente essa

necessidade, nada registra além do que está imediatamente

à frente, o rosto da vizinha que é o rosto de Oleana no

metrô, as palavras dela que são as palavras que sua mente

Page 249: LISBOA AGOSTO DE 1988

em fuga determinar – sua compreensão não precisa ser tão

larga, tudo está atrás de si e à sua frente costurado àquele

último momento. E era como ele já tivesse assistido aquele

filme. Então você esteve lá, diz Oleana, quero dizer fez parte

do Maio, participou de algum movimento da época em seu

país?, e ele disse Não, que nada, não há ser no mundo mais

alienado do que eu.

Sei de uma mulher que a alguns inflamou de acordo

com as leis de uma natureza que não raro se desrespeita a si

mesma. Sei dessa mulher que está hoje velha. A moça, a

filha, entre palavras e dois gatos deixa de sonhar quando

vozes no paraíso a lembram de que não há um paraíso. Não

consigo deixar de pensar na moça que essa mulher um dia

foi. Não posso deixar de lembrar do rapaz diurno e fofo que

sem mais se viu cru na noite sem forças pra lutar. É ele quem

ainda vem me buscar à noite e me leva pelas palavras aos

mundos despertados pelo impulso, pela instabilidade, pelo

desejo, pelo amor e pela diferença entre amor e desejo.

Sou uma mulher, fui uma menina. Fui filha e sou mãe.

As coisas se deflagraram em minha vida. Não sei se é a

melhor palavra, “deflagraram”. Destino drástico e súbito o

meu destino até ir como um rio volumoso que desce a pedra

num filete, acariciando os últimos anos. Tenho essa filha que

sou eu. Ela frequentemente me espanta com olhos

escandalosos em pálpebras de nuvens e querendo saber do

pai grita ou sussurra. Cheira a jardins, a mato. Está

respingada de primaveras, às vezes transtornada e mentindo

por mentir.

Page 250: LISBOA AGOSTO DE 1988

Bruna. Sou eu. É o pai. Deixou através de páginas e

estações o eterno em plena colheita a fim de ser no tempo

algo que de ruptura em ruptura justifique essa náusea.

Nesses dias em que o dinheiro escasseava a ponto de

termos eu e Nastácia de economizar no sereno indo dormir

pela manhã no relvado da igreja no alto da rua da Torre de

Belém, fui à posta-restante e ela ao Ministério das Finanças

onde tinha esperança de encontrar uma ultima amiga de

infância. Carta pra mim. Rasguei o envelope com as mãos

trêmulas e o coração disparado. Nastácia se aproxima. Não

trabalha mais aqui, pá. Guardo a carta.

Não estava mais a agüentar, precisava de um banho,

tomar uma bica, comer uma comida decente. Quanto você

tem, Andrei?

Mil e quinhentos dólares.

O pá, tudo bem. Vamos para um hotel. Amanhã é outro

dia.

Sufocado por ânsia de santidade, massageava naquela

noite os meridianos do sistema nervoso sob a pele úmida à

altura dos ombros de Nastácia na banheira. Imergi junto dela

cujo viço de jardins internos dependia de iluminação,

umidade e ventilação, das caricias. Minha boca procurou na

sua o lábio inferior e as pontas das línguas criaram a

expectativa que não pode mais ser a do pecado, posto que a

amava. Claro que não tenho certeza, gostaria. Deslizei no

fundo sob ela e deixei-a ao longo de um imenso desejo de

paz. Transformado. Por causa da carta recebida.

Page 251: LISBOA AGOSTO DE 1988

Atordoamento e abismo.

No dia seguinte, o chamado “outro dia” no qual

decidimos acreditar, Nastácia ligará para um anúncio

classificado. Pede funcionárias de fino trato para

trabalharem num pub ou o que sejam aqueles inferninhos

nas ruelas escuras nos fundos de uma luminosa avenida

Liberdade. O céu está aberto naquela noite, estrelas sob o

rio insondável quase mar, não há quaisquer ilusões sobre a

pecaminosidade humana. Não sei que lágrimas eram aquelas

minhas nem o que significava exatamente o alivio na

expressão dela.

Uma semana. Duas. Três. Em um mês irá tirar mais que

eu em quatro ou cinco tiraria na fábrica. Se vangloria. Não

disse? Dá risada. Sei o momento de agir, ó pá. Quem poderia

questionar isso?

O casal bate uma foto na Praça do Comércio, no calor da

noite enevoada as sombras de Lisboa. Ali no final da estação,

onde se não insistirmos em comparar o clima com o

calendário, acharemos, vejamos, o hotel modificado pela

simples mudança do pagamento de diário para mensal, sim,

mudou mesmo meu querido, estão a nos tratar melhor.

Dentre outras coisas.

A luz da manhã também mudara, os corredores, um

espírito se move entre mim e meu sósia, entre o Outro que

desvia o olhar quando o imagino meu redentor e eu que

protejo Nastácia dos assédios de praxe às quatro da manhã.

Aos poucos me reintegro à realidade e não queira isso

dizer acostumar-se. Escrevi para Barcelona dizendo à agente

Page 252: LISBOA AGOSTO DE 1988

literária o que poderia dizer pessoalmente. OK, contatos por

escrito apresentam essa vantagem, o registro do correio.

Uma resposta – mesmo a padronizada – “Infelizmente nós” –

adquire algum valor. E escrever significa resumir, suprimir,

levar em conta o objetivo puro, quase não-objetivo, sem

maiores considerações. O livro perde com isso valor

comercial, escrita impecável, argumento, pontuação, sintaxe

e, acreditava eu, ganha corpo literário.

O calor se estabelecera em Lisboa, seco e pegajoso.

Durante esses dias, eu escrevia na biblioteca municipal. Para

chegar ao Campo Pequeno, evitava caminhos antigos,

amigos e inimigos de haxixe, além do próprio. Diminuía mais

e mais o remédio e usava as síndromes como um registro de

correio, para oficializar a desintoxicação. Alegrava-me assim

com o mal-estar, como me alegro agora ao receber o aviso de

recebimento de Barcelona sobre o balcão da posta restante.

O organismo durante muito tempo acostumado ao remédio

precisava ser ensinado do caminho inverso. A biblioteca

possuía amplo jardim com mesas de tampos vítreos e

cadeiras brancas de ferro, onde havia sombra e a

temperatura era agradável.

A órbita. O satélite em revolução ao redor da terra

atinge seu apogeu. O sol relativo. O ponto mais afastado. Ao

mais alto grau corresponde o mais baixo na mesma vida em

torno dos dias ou pelo o supõe. Ai dos que ao mal chamam

bem e, ao bem, mal. Que são sábios a seus próprios olhos.

Ela estava bonita, Nastácia. Eu lhe disse. Gosto tanto de

seu perfil, fique assim, vou pedir alguma coisa para o serviço

de quarto. Porque passara aquela fase em que as culpas

procuram responsáveis e as coisas boas sequer são notadas.

Tínhamos entrado na parte da vida em que tudo adquire

Page 253: LISBOA AGOSTO DE 1988

tamanho real.

As escadas externas dos prédios à janela se comunicam

com as roupas estendidas, não é uma visão propriamente

agradável mas se tornou familiar e assim amiga. Escuta-se

todo o tempo a camada sonora dos carros distantes e vozes

incompreensíveis como um som uniforme e queixoso. Aqui

bate uma porta, ali outra se fecha. Da janela da pensão o

azul do céu está diluído pela substância poluente a atenuar o

amarelo sujo das fachadas e a cor de terra dos telhados.

Será minha visão de futuro durante boa parte do dia.

São também um só ser as pessoas que descem as ruas

da Cidade Alta no sentido do centro, da Baixa, casais de

mãos dadas pode-se apostar serem estrangeiros. Os tons das

roupas das mulheres é sempre escuro e aquela ali agarra-se

à bolsa preta como quem protege a dignidade. Na praça dois

bondes se cruzam em direções contrárias e dentro deles a

tensão enrijece os rostos desencantados, tristes; o contraste

entre o modo de ser de Nastácia e os portugueses é esse, a

sua alegria injustificada. Portugal é um país triste, mais

adequado para mim que o Brasil, um Brasil que nem o

dinheiro da passagem em nenhum momento aproximou.

A letargia espreita minha paz. A consciência se mostra

comprometida. Quem iria me aconselhar acerca desse

momento? Períodos de amnésia. Nem mais os estranho ao

recuperar a memória (Mas nem sempre a recuperava, pensa

ela. Foi a primeira coisa que me chamou a atenção ao

examinar os papéis. Isso me deixava imensamente triste,

deprimida mesmo). Algum homem consegue sempre um

tempo de convivência com seu próprio fim estando ainda

longe? Estar, não ser – o caderno em que se escreve. Claro. E

há aquilo que ajuda. O calor na pele nas tardes frescas à

mesa vítrea do jardim.

Page 254: LISBOA AGOSTO DE 1988

Ali compunha também matérias. Não mais para vendê-

las a jornais mas a jornalistas recém-formados sem tempo

para redigirem. Não dependia mais do dinheiro de Nastácia e

pouco mexia nos dólares. Tinha também crises de ciúme e

volta e meia discutíamos. Suportávamos-nos. Sofríamos o

relacionamento doentio porque o destino nos empurrava um

para o outro na ausência de antigos amparos.

Saíram do quarto, um depois do outro e os mesmos

olhares para os lados, em seguida a porta se fecha e um eco

surdo não se alonga mais que os passos até o elevador.

Quem olhasse iria achar que escondem algo. Ele não perde

um único movimento que ela faz, como se disso dependesse

a própria vida.

É que ficamos sós no mundo. A solidão é nosso elo

inquebrantável.

Nove da noite, chego ao hotel. Boa noite. Boa noite,

senhor. Na penumbra da sala de TV esperei um documentário

do magazine geográfico sobre vida animal. Como terminasse

a novela brasileira no outro canal, todos deixaram a sala e

mudei a posição do seletor. Ao sentar-me de novo, passou

uma mulher azulada, mãe morena, solta no vestidinho

branco de linho despojado, cujo abotoamento e friso suponha

gravidez embora fosse um vestido, não uma bata. Os botões

da barriga estavam menos firmes que os demais, alguns fora

de suas casas. A beleza peculiar da gestante ainda pode ser

adivinhada mesmo com a gestação nos seus braços,

dormindo.

Page 255: LISBOA AGOSTO DE 1988

Ah minha amiga e espírito noturno, sei agora não terei

mais um nome ou esperança e tudo de mal já aconteceu e

justamente agora preciso entender a glória de nada ser em

meio ao drama eterno das armadilhas e inclusive à

obscuridade dos sentimentos. Ah meu anjo, minha amiga,

afaste a tentação da voz interior!

Ali estava ela mas não chega a me olhar, é como se eu

fizesse parte dos móveis.

Ele não tem o menor jeito com o semelhante, não é

sociável nem tem tato, é muito tímido. Acha irrelevante mas

o isolamento dá mostras de desgaste. Os amigos não

vingam. Amores frustrados. O que pensa? Impossível saber,

exceto se – O quê? Sente-se só e a mulher traz sonhos,

presságios.

Ali estava ela e era como fizesse parte de minha vida

desde sempre.

Falarei.

De costas, ela passa para a outra extremidade do sofá.

Indecoroso se aprazer da visão cujo poder não pode

controlar. Quer falar com ela, que lhe parece familiar como

um sonho recente. Quer contar a ela, contar tudo, a vida

toda – era tanto assim? Respiram fundo ao mesmo tempo. Ela

senta, calada, carne, luzes, pele, cores, cabelos escorrendo e

cansaço em seu rosto espelhado. Lança na penumbra um

olhar pelo espelho lateral. Os dedinhos na sandália de

pelicato. A sinuosidade prática do abotoamento. Angustio-me

por ti, diz a voz na televisão. O peito é oferecido ao bebê. Eu

te amo tanto, filhinha, muito, muito querida, muito,

queridinha da mamãe, é sim minha pequenininha, a

pequenininha da mamãe, ah meu amorzinho.

Suspirei incrédulo. Blandine.

Page 256: LISBOA AGOSTO DE 1988

Caminhões dágua da Câmara de Lisboa lavam as ruas

da Baixa. O asfalto está cheio de espelhos turvos que

devolvem a lua do chão. Mantenho no céu um olhar distante

e fugidio. Caminho ereto, ombros para trás e abdômen

recolhido. Fecho os olhos. Ahn? Nada, estava pensando.

Andávamos um ao lado do outro mas era como se

estivéssemos sós, num silêncio de nossos destinos. Um vão

entre as pedras do calçamento. Como num movimento

ensaiado, olhamos juntos para baixo.

Kleber saíra com o trator. Ela chegava com a marmita.

Oi, disse. Oi, ele respondeu. Quer que eu vá fazendo o fogo?

Nem lembrou que detestava comida requentada. Preferível

fria, deveria pensar, mas não. A emoção rege. O rosto dela.

Rubro-verde o silêncio dos cafezais, rubro verde como uma

casa basca. Constrangida. Mas a timidez não tem poder

sobre a necessidade da revelação. Disfarça o rubor das faces

enquanto Andrei bate nas pernas da calça para se livrar de

uma mancha de formigas. Procura gravetos e nós de pinho.

Precisavam jogar água de fumo pela lavoura, diz ela de

esguelha. Aproveite a posição e olhe por debaixo das pernas.

Para quê?

Era para avaliar o potencial de produção.

Ele não saberia.

Assim! – e ensinou. Pelas pontas das plantas multiplica-

se o número de pés de onde estão saindo e divide-se por

três. Ele não entende e não entenderia nem se fosse uma

conta simples: do vestidinho erguido, pela abertura de

algodão esticada pelos adutores, sobre as carnes firmes,

grácil, a pele exibe pontos sibilantes de arrepio. Ele me ama

Page 257: LISBOA AGOSTO DE 1988

ou apenas me deseja? Qual a diferença?

Ele mesmo só muito tempo depois pensaria a respeito.

Naquele momento apenas cresce ao vento, folha à deriva,

barco que ao som do mar mistura um ruído agudo, um uivo,

se mexe no mesmo lugar como a mão que imita as ondas.

Olha só, numa mancheia dolhos eu conto cinqüenta

pontas vindas de dez pés. Ah entendo, você quer dizer

cinqüenta vezes dez, quinhentos, que divididos... pelo que

mesmo? Ela ri, ele sente a menta. Os seios, redondos como a

tal conta – por acaso e também porque. Raios do sol de

inverno ao meio dia de agosto. Atravessam a mangueira

pulsando na abertura da copa que à brisa se forma e se

fecha. Será que ele pensa no primeiro encontro em Ribeirão?

A mulher não separa o sexo do amor mesmo em cidades do

interior que se liberam. Talvez quisessem mas não é

possível, não é possível, pensa Blandine quando de leve seus

lábios se tocam.

Quanto a ela, lembrava. Desde o primeiro momento em

que olhou para ele, soube que era ele, descartou a

independência tão prezada. Não queria a piedade futura dos

filhos, ela se apiedava dos pais, não era o que queria, como

Donda um lar para ser rainha, e nem mais tarde a solidão da

mãe que vive para os filhos quando não vive a própria vida

dos filhos.

Sou mulher. Descobrirei o que significa. Agora perto do

milho, sob a mangueira, a missa que o sino anunciou. Ela

propõe o casebre abandonado que dava para o lago. Ali

amou com a convicção do artista que se exibe sabendo que é

a hora do seu sucesso.

O sangue não vertia, acariciava.

Haveria outros momentos sob o céu da bem-

Page 258: LISBOA AGOSTO DE 1988

aventurança. Não só entre ela e Andrei, também com um

outro – Falo sério, Blandine, nunca senti isso por ninguém,

nunca conheci mulher como você – Você conhecerá muitas

mulheres, Pablo, conhecerá uma feita pra você; tem só

dezesseis anos, menino.

Dezesseis, quase dezessete. Onde estava o problema? O

adolescente a conquistou. Era amante experimentado, Pablo,

ela não podia entender como. Deixou-se levar, quase durou.

Mas Andrei fora o do pacto.

(Todavia tampouco durou)

Ah quando o viu no milho com Kleber! O amor de sua

vida. Momentos únicos, talvez como o primeiro cavalgar

pelos cafezais. Nunca mais desde então.

Cinco anos depois, torna a vê-lo. A música do tempo

sobre o lago transfere-se para a praia do Rio de Janeiro. Não

sabe se deverá assumir os dias que transcorrem ou apenas

sonhar de longe. O aroma cítrico, amadeirado. O rosto

querido exposto ao êxtase é o céu da roça distante de si

mesmo e de qualquer vínculo com a cidade. Gosto de

amêndoa, a afinidade ou ilusão da afinidade, um poder de si

mesmo, nunca do outro, do relacionamento. O doce da mãe,

de Donda, a calda na ponta dos dedos médio e indicador.

Cinco anos se passaram. Nossa, não parece... Fino o fio não

irá açucarar depois de frio? Desfalecimento. Espaços,

espasmos, espírito espargido sobre a carne se apressando ao

pedido de que fosse, oh sim, aplacado.

O prazer. Que silencio é esse que precede o percurso

interminável da mão que acaricia?

Bruna aceitou que aquele homem fizesse as vezes não

Page 259: LISBOA AGOSTO DE 1988

de pai, que mal daria a idade, mas de um tio talvez, de um

irmão mais velho, e naturalmente não teve como evitar

algum pensamento um pouco menos casto, mas nunca além

disso, porque Pablo era muito chegado, o bastante para

deduzir alguma familiaridade e romper a tentação; por outro

lado, ela sentia muita falta de um pai ou de um amigo que

para a menina só mesmo um bom pai pode ser. Enfim por

uma razão ou por outra ela ia encontrar Pablo, desabafava

com ele. Depois, na volta pra casa, às vezes contava para a

mãe, às vezes não contava. Afinal Blandine já tinha

demasiados problemas.

Como num movimento ensaiado, levantam

simultaneamente o olhar das pedras do calçamento. O ruído

do motor do caminhão distante dá a idéia do minuto passado

como uma canção que insiste na mente após dormirmos. As

ruas molhadas são almas, definitivo indício. As brasas de

uma fogueira não utilizada ardiam ao sol e a fumaça ao ar se

misturava, era o próprio ar em seu caminho. A fila anda e a

vida segue.

Andrei media o caminho com os passos, Blandine o

encarou rapidamente e em seguida abaixou de novo o rosto

com um piscar ondulado de pedras portuguesas enquanto o

aves revoavam em torno deles. Ele cobriu os ombros dela

com um abraço antigo e brusco, ela sorriu sem mostrar os

dentes e pousou a mão sobre a dele, caída agora pelas suas

costas. Pronto. Você sabe. Sabemos. E agora o quê? Não

eram necessárias palavras e todavia, nessa linguagem

silenciosa onde se indagam, que resultados advirão da força

aí reconhecida? Reluz a noite da Praça do Comércio, Como

Page 260: LISBOA AGOSTO DE 1988

gosto desse trecho da cidade, ela diz, ele também, Adoro,

sobretudo o contorno da ponte ao longe. Mas estão falando

de luzes, distâncias e prazeres que existem em si mesmos.

Cabe ressaltar antes dos corpos e do desejo, o sonho.

Faz-se pressentir. Afinidades convergem, miudezas

partilhadas, o gesto adivinhado, o olhar desdenha da palavra

e trocam-se almas como endereços em bilhetes cifrados que

entretanto tudo deixam impresso na leitura da grafologia.

Falo de amor. De um movimento da vida que segue mas

súbito quer parar, cuja realidade apesar dos pesares é o

corpo vivo e apenas ele. De uma eternidade que, diferente

das montanhas, não se pode contornar. Está sempre ali,

permanente e atemorizadora, contra a qual nada pode a

arrogância, o medo ou a esperança.

A fome na saciedade.

Se estava escrito que eu deveria ser de Blandine o sinal

não foi o amor físico, sempre ao corpo limitado – o corpo

limitado, sem o sonho – mas a calma do dia seguinte, na

busca que abandona Deus para se concentrar na plenitude

de uma beleza qualquer. Não só o desejo, carente de outro

corpo, mas a ternura anterior, ainda que em meio ao fetiche.

O corpo do destino se forja na tortura, um sentimento que se

pode escolher (falo de amor), dúctil ao arbítrio, rosa que

floresce do cultivo, ninho com cuidado preparado.

Pedi licença e entrei no restaurante para ir ao sanitário.

Ao apanhar o papel higiênico no bolso, tirei a carteira, tive

esse cuidado, perder documentos seria agora desastroso.

Numa das separações plastificadas, a foto de Blandine e uma

foto recente de Nastácia na casa de praia, soberba num

biquíni clássico. Nastácia. Separados na maior parte do

tempo por causa do pub, ela crescera – não há a luz de nada

saber acerca da cor? Por outro lado, Blandine deixara de ser

Page 261: LISBOA AGOSTO DE 1988

por estar súbito ali a meu lado?

A madeira se dá, generosa. Não escuta um único

agradecimento junto aos gemidos do fogo.

O calor abafado no cubículo. Sou a menina das

montanhas, sou teus sonhos, a própria montanha. Mas. Ao

lado do restaurante, a boate. A mulher que não dormira e

sim morrera.

Subíamos a viela, cheia de latas. Célere uma ratazana

passou à nossa frente na direção do lixo amontoado pelo

pessoal da prefeitura, que precedia os caminhões. Surgido

do nada, o gato que havia pouquinho recebia nosso afago

saltou e a abocanhou. Por que os animais tem de ser maus se

são criaturas sem arbítrio do próprio Bem?

Eu não podia acreditar... Tanto tempo passara e ela

ainda desvia, para questões genéricas sem solução, a nossa

conversa que pede o momento particular. Um ônibus passou

raspando ao atravessarmos a avenida. Ela continuou. Está

vendo? Para o sofrimento do homem há uma justificativa –

Me dá licença um instantinho? Deve ter sido o chá do hotel.

Agora estamos na esplanada à saída da boate. O

garçom se aproximou, ouviu meu pedido, gritou para a

cozinha e foi apanhar vinho verde no freezer. Na boca do

metrô, não muito longe, dorme um mendigo. Blandine

aponta. O quê? Para o sofrimento do homem sim, cabe uma

explicação natural, como no caso da miséria – ela parece

recitar – quando o quinhão que satisfaria as necessidades do

semelhante é retido... Eu praticamente acabara de voltar do

sanitário. Estava assim meio sem alternativa. Será que

Page 262: LISBOA AGOSTO DE 1988

esqueceu que conheço o discurso? Agora falará das guerras.

– Como no caso das guerras...

No queixo dela os mesmos seios tristes de quando da

minha partida de Piumhi. Não, na verdade não. O queixo

estava mais cheio, um queixo sedentário, financeiramente

seguro. Mas os vértices dos lábios carnudos mantinham

ângulos precisos de generosidade. Isso não perdera. Foi

quando comecei a pensar em felicidade conjugal. Em como

pode haver sensualidade, família, amor à arte e tudo mais,

debaixo de um mesmo teto, na vida de uma casa. Aquela era

uma esperança assassinada? Mas que esperança

exatamente? Desejo generalizado de tal modo que todo

produto, de margarina a tênis, e todo serviço, de banco a

telefone, se vende na propaganda por meio da idéia de uma

família feliz, de valores equilibrados de beleza, força,

trabalho e lazer, de uma casa viva. O amor ou a arte na

verdade não são indispensáveis nesse quadro, exceto pelo

conforto, pelo bem-estar que nada intensifica. Não que o

mal-estar o faça.

Então, o quê?

Como teríamos sido sem a separação? Me chamaria de

“papai” diante dos filhos e usaria “amor” como quem diz

“por favor”? Teria se mantido aquele desejo – se

estabelecidos, sem tédio? se em dificuldades sem brigas? Eu

não mais olharia para outras mulheres? Seria eu o bastante

para ela? Dependeria nossa harmonia da conta no banco e

meu poder de sedução do meio-termo sutil entre lar e motel

no mesmo quarto? O segredo de tudo talvez seja se manter

pensando. A maldição do homem, pensei, é se acostumar.

A literatura seria ainda essencial se tivéssemos casado?

Page 263: LISBOA AGOSTO DE 1988

Nossas mãos dadas sobre a mesa. Tato, pressão,

imperceptível movimento. Quanto é delegado à pressão das

mãos! Blandine, até que ponto você vai levar isso? Tirei o

envelope do bolso e comecei a desdobra-lo, solene. As

guerras... Quis prestar atenção nas sílabas, para não trocá-

las, mas a luminosidade embaça tudo a partir do contato das

mãos e dos olhares. O que podemos fazer em relação às

guerras? O que devia nos importar era a nossa paz!

Apaziguar o “Atântlico” no Mediterrâneo ou talvez...

- Atlântico, Andrei.

Odiava quando ela me interrompia e muito mais se era

para me corrigir.

Ele continua tão lindo, com esse jeitinho de trocar

letras e gaguejar, um doce... A guerra é sem dúvida muito

mais importante que nossa vida pessoal, meu amigo.

E isso aqui o que é, perguntei apontando a carta. Você

pensava em que guerra quando escreveu isso? (Li alto)

“Você não é capaz de transmitir tranqüilidade a uma mulher,

como o Octavio é”. (Mas não pára em casa). O que você

queria, questionou a si mesma, quando ele vem traz o

sustento, as roupas, as viagens. “E no entanto como sofri e

como sofro por sua causa, desgraçado!” Uma lágrima! Uma

lágrima nos olhos dela!

Sofro sim, Andrei, uma dor tão grande que é quase

física... Mas não posso mostrar qualquer emoção, chega. A

dor. Uma rede de terminais nervosos. Outras impressões

podem ter ou não relevância – a voz dela continua doce,

tranqüila, pausada, sua língua sai ainda ligeiramente nas

proparoxítonas – mas a dor tem sempre relevância, porque é

o alarme, porque pode ser a salvação.

Page 264: LISBOA AGOSTO DE 1988

Ela me olha com bondade. Aliás, você deve ter mais

esse tipo de noção, por causa da enxaqueca. De ter

aprendido. A viver com a dor. Viver com a dor. Ainda tem as

crises com tanta freqüência?

Pensei com surpresa o quanto as dores haviam

melhorado, as crises espaçado. Isso na pior fase de minha

vida, com pressão de trabalho, ausência de afeto, fome,

relento. – Tenho estado melhor.

A enxaqueca é um sinal vago dum perigo remoto

porque, imagino, é possível viver uma vida plena ou quase

com enxaqueca, sem maiores danos físicos ou psicológicos.

Não é? Respirando fundo sinto o mundo para o qual foi

necessário nascer de um vento que juntasse vida e virtude, e

ainda assim...

É verdade. É possível. Sim. Viver com dor. Superar.

Quando você realmente quiser, quando achar conveniente,

quando estiver se sentindo à vontade para – Essa é a

utilidade da dor, quando adverte e não incapacita mas

motiva, fortalece. O perigo maior do qual alerta ainda é a

gente se acostumar, se acostumar com a sua ausência.

Blandine morde o lábio inferior, que se deforma

ligeiramente entre a brancura extraordinária de seus dentes

frontais, transparentes, úmidos, luzentes. Eu mudei, Andrei.

Era a menina Blandine, que não conhecia a dor, agora sou

apenas Blandine. A virgem entregue ao herói. A minha

menina. Ergueu-se das pedras um horizonte que em meu

peito amou como ninguém antes jamais.

Não há por que uma excluir a outra. Você não assume a

carta? O raio da estrela transpassa a ambivalência dos

sentimentos que se negam, densa em ondulações de

memória. Nem lembro da carta, diz, para assumir ou não.

Page 265: LISBOA AGOSTO DE 1988

Justamente por isso ele estava lendo.

Disseram juntos Eu Você. Na mesa não apaziguada se

refletem mudanças advindas do abismo. Eu queria. Você

quer. Estrelas. Nebulosas. Estrutura espiralada. Gases e pó

envolvem o que se diz. Não sabiam o que querer.

“Você foi isso, Andrei, uma doença”, continuei lendo,

“mas não incurável” Jamais poderei deixar de amá-lo. “Olho

para a minha filha e dou graças a Deus por ter abortado de

você”. Se refletem também fulgurantes nardos e raros

fajardos, a ladeira de Heráclito e os céus da águia e das

plêiades. Poço e profundeza. “Pela paz que o Octavio me

transmite, pela segurança, logo irei amar ele tanto quanto te

amei”. Minha voz foi desmaiando ao perceber que não

pretendia ler aquele trecho. Impossível, pensa ela, como

poderei amar assim outro homem se nunca deixei de amar

você ou deixarei?

Diz então que era esse o seu consolo, sua vingança.

Ninguém poderá me amar como ela amou um dia; e ela

poderia amar um outro, que a merecesse, que a protegesse. -

O Kleber devia ter dito que você estava em Lisboa.

Se tivesse contado, ela deixaria de vir? Aliás, com o

dinheiro que tem, foi o acaso que a levou a se hospedar num

hotelzinho como aquele? A menina levada aos céus pela

carruagem de fogo era menos que suas bonecas pretendiam.

O que estava querendo dizer? Que ela viera na

esperança de encontrá-lo? Sua pretensão não tem limites! É

maior que a sua memória!

– Mas não maior que o meu amor.

Como se ela não ouvisse. Esqueceu que estivemos no

Rio em hotéis muito piores? Pareceu-me um hotel simpático,

Page 266: LISBOA AGOSTO DE 1988

entrei e fiquei. É como sempre faço. Se estivesse com o

Octavio, seria diferente, é claro.

É claro.

Octavio não ficaria nesse tipo de hotel. É o jeito dele.

Acha que deve oferecer à sua esposa todo conforto. Eu

concedo a ele essa alegria, por que não?

Onde está ele agora? – Tem uns assuntos no Porto,

responde ela. E, antes que você pergunte, não estou com ele

porque tenho umas coisas a resolver aqui relativas a meu

visto. E estou querendo me naturalizar.

Não entendi a relação dessas coisas, nem tive tempo de

perguntar. O garçom chegou. Quando saiu, nossos olhares.

Nada mais.

Ela disse Eu te amo, circundou a mesa e se jogou em

seus braços, poderia ter sido assim, por que não? E como não

separa o sexo do amor, se agora o deseja, voltam para o

hotel. Mais que uma possibilidade, quase uma lógica. Mas

nada nunca mais será tão simples, nada tão de acordo com

os sonhos, acabou essa fase, esse ciclo de vida. Agora será

preciso entender, aceitar, não há mais essa com a qual

sonha, menos ainda esse que costumava sonhar.

O vinho aberto, as taças. Como na primeira vez indizível

e todavia a partir dessa impressão poderia escrever um livro.

Bem, não significa muito, poderia escrever um livro a partir

de praticamente qualquer coisa. Mas viver, poderei? Enlevo e

morbidez. Se misturam. Desespero de viver. Não escreveria

livro algum, não sobre. Enfado da carne.

Blandine. Talvez tenha entendido de seus olhos

líquidos. Um riso discreto deixa em liberdade os rios sem

magia que os detenha ou apresse. Narciso na natureza

integrado. Não há pressa. Não há vida no mundo, não há vida

Page 267: LISBOA AGOSTO DE 1988

fora desses olhos, dessas mãos. Suspiramos gemendo e

gemendo choramos ao passarmos as trevas no silencio da

seiva.

Aquele momento! O passado à minha frente e o

presente literalmente atrás de mim... Era hora de Nastácia

chegar do pub, pela rua em lento declive às minhas costas.

Minha decadência. Um sonho de Blandine prova o vinho.

Emoções emaranhadas se roubam umas às outras. Blandine,

cujo aspecto físico não mudara, vestida do jeito como

costumava se vestir quando estava comigo, o rosto sem

pintura, sem ter adquirido sotaque ou modos requintados,

mantendo o acento mineiro, tornava o estar ali com ela a

vida real, e mecanismo mental tudo o que se passara após

nos separarmos. Todos os meus impulsos são no sentido de

abraçá-la, beijá-la, fazer confidências.

Não compreendo. É possível que esse Octavio seja

mesmo uma pessoa especial. Não é o que costuma

acontecer. Mulheres bonitas em geral e mulatas jovens em

especial são trazidas para a Europa com o fim de serem

submetidas à escravidão sexual, para serem prostituídas.

Tudo bem uma vez ou outra se sabe de um caso assim, de um

cara rico que casa com uma, mas não é o natural, e no caso

há a questão de como a chamou. Quem tenha intenções

sinceras não usará o tipo de subterfúgio que usou no curso,

“para que ela descansasse”, “parecia tão cansada”. Mas sou

eu quem pensa isso e não sou dono da verdade, de repente

foi isso mesmo, sabe-se lá.

É possível. Mas esqueça ele só uns minutos, se permita

só por esses momentos lembrar com alegria de nossos

momentos juntos, é possível, ninguém está falando em

traição, mas a gente se rever assim parece mesmo algo, de

tão improvável, especial – Não é?

Page 268: LISBOA AGOSTO DE 1988

O sofrimento do homem tem explicações de sobra. Ela

retoma o discurso sem o menor constrangimento. O

problema é quando a gente vê os animais sofrerem sem a

menor consciência do que seja o mal. O escorpião atravessa

o rio nas costas da rã. Sou um animal, disse eu, cheio de

razão, só por dizer. Não vá me dizer que o meu sofrimento de

hoje tem a ver com o fato de eu ter partido de Piumhi, talvez

por não ter ido levá-la ao aeroporto.

Era exatamente o que eu achava, a causa principal dos

efeitos que carrego. Adianto-me assim à sua resposta,

temendo que tenha uma. Não falo de ação, mas de intenção.

À fabula do escorpião acrescentemos o ditado, de boas

intenções o inferno. Quis de todo meu ser fazê-la feliz. Sou

tão inocente quanto um tigre ou um tubarão.

O vinho subiu-lhe às faces. De algum modo sim mudara.

Em sua beleza imprimira a maternidade. – Não me sinto mãe,

sou antes a que abortou.

Aos ruidos óbvios da noite se juntam as sombras

murmurantes nos telhados. O branco da parede ao lado. As

olheiras dela estavam mais fundas, seus braços mais

carnudos, redondos, a forma como depilava agora as axilas

era outra, a pele ali se tornara mais clara e não se poderia

imaginar que ali um dia tenha havido pêlos. Lembrei do

momento em que oferecia o seio a Bruna e quando a

acalantava.

Quando você me olha assim com ternura, para esses

braços que sentem a tua falta, sou só a menina na manta

verde-água, a mãe no chambre aveludado sobre a

maternidade recente.

Havia ainda em mim aquele fogo que de tanto padecer

a fome e o relento eu pensara ter perdido para sempre.

Preciso que isso não acabe e olho assim dentro dos olhos

Page 269: LISBOA AGOSTO DE 1988

dela, esperando o que precisa suceder como substituição da

morte. Há uma mulher de óculos à nossa frente e uma outra,

uma jovem de blusa vermelha e bolsa negra, se aproxima e

não diz nada, porque acredita que o que precisava ser dito

era dito pelo olhar e por sua própria aparição ali. Do lado

oposto um rapaz segura os cabelos da namorada de um jeito

tão terno que quando solta eles voltam aos ombros dela

como se fosse em câmara lenta, e em câmara lenta ela se

vira para ele e lhe promete aquela noite, enquanto os outros

jovens à mesa sorriem para a foto que alguém irá bater,

flash. Blandine agora segura o antebraço esquerdo, como

costuma fazer quando está inquieta e não sabe o que fazer

das mãos. Uma das moças ao lado tapa o rosto e diz que está

com a maquiagem borrada, não quer sair assim na fotografia,

seria um erro em mármore.

Agosto, mas a noite ainda não é tão quente como seria

de se esperar. Será possível sair vivo de um verão assim?

Fizeram-nos pensar na máquina fotográfica sobre a

cômoda do hotel. Peço para bater uma foto. Meio a

contragosto Blandine aquiesceu. Sim, amor, um registro, um

quarto em que ainda estejamos juntos, cercados pela luz que

se derrama nas ruelas junto ao rio. Há óleo entre o cacilheiro

que sai e o que chega, há paz nas cintilações onduladas pela

draga. Io posso. A empregada se disporá para que o amigo

brasileiro da patroa apareça no registro.

Passar-se-ão os anos.

Em que pensa ela no instantâneo? A objetividade plana

da mesa permite a sinuosidade do sonho e as lembranças. O

arranjo das margaridas ao fundo. O robe reterá eternidade e

infância. Marjorie, Marjorie Buell. Pensa decerto na menina,

no futuro da menina, o poderá dizer à filha sobre vida

amorosa? Nana neném, o amor no olhar de Blandine, aquilo

Page 270: LISBOA AGOSTO DE 1988

era amor, não qualquer olhar que me tivesse algum dia

dirigido. “Minha filhinha...” Não, nunca antes algo assim.

Bom que a criança tivesse um pai amoroso e esse amor

tivesse respaldo financeiro.

Mas.

Uma das meninas ao lado mexe os ombros ao

acompanhar uma música que não ouço, as mãos fazendo

formas no ar, como se fizesse um bordado invisível. É o que

devemos fazer agora, nos deixarmos ao sabor da música,

irmos juntos para o hotel com um pretexto qualquer, que

seja o da foto, não posso te deixar assim, seria uma heresia

contra coincidência tamanha.

Ela diz que quer perguntar uma coisa. Você esteve em

abril, maio, em Madri? Podia jurar que era você, entrou num

hotel em Atocha, deixei um recado na portaria.

Estive mas não me deram recado. Mas por que deixara

um recado, o que dizia? Você teria ido me ver?

Ainda me ama?

Era uma mulher casada.

Por cima de nós, o cartaz do cine Éden anunciava

vibrante o terceiro Rambo tremulando e estalando como uma

imensa bandeira. Lisboa à noite. A multidão de jovens

vestida de negro subia a ladeira da Glória para o inevitável

Bairro Alto. Subia a pé embora ainda fosse hora do bondinho.

É que o electrico está avariado, comentam os que passam

por nós.

Ainda eram jovens e todavia tinham um passado. Os

corpos, vividos, sentiam os movimentos. Esquecem o que

deveriam lembrar e se inquietam pelo que deveria estar

esquecido. Portanto por que não? Eram jovens – ou, dito de

Page 271: LISBOA AGOSTO DE 1988

outro modo, sua juventude se emaranhara ao tempo de vida

deles como folhas que terminam ao fim de um período em

partículas da terra dos parques. Cromossomos múltiplos nas

células. A roupa do rapaz sabia como devia se comportar a

cada movimento e limpa retinha algo do cheiro de sua pele.

Ah, esse cheiro, o que primeiro chegou a ela vindo de

Andrei. Na entrada da boate seria cumprimentado pelo

segurança. Tímido, devolverá o cumprimento. Ei podia ser

então que aquele rapaz do bar em Madri nunca tivesse visto

Oleana. As pessoas julgam e particularmente ele era exímio

nesse estúpido item de humanidade. Ela pode agora pensar

que sou um cara noturno, assíduo de boates. E julgar

também é um sintoma de insegurança, preocupação com o

que os outros estão pensando.

O céu limpo sobre eles. O homem permaneceu sorrindo

enquanto entravam. Pelo menos em Portugal as pessoas que

lidam com o público são atenciosas, não odeiam o publico.

Como se fizesse diferença no rumo de sua vida.

Lisboa. Noite de sexta-feira.

Uma vez saíram, uma única vez, para um programa

noturno em Minas. Foram de táxi para Passos. Depois do

jantar dançaram, o rosto dele se modificando nas luzes.

Sabia dançar. Ainda não sei o que estamos fazendo aqui,

dissera ela a rir como quem diz: É tudo estranho mas estou

gostando. O beijo sabia a chocolate branco. Derrete na

língua. Aonde vamos depois? Durante o beijo seguinte,

jovens morcegos lisboetas passam por eles numa outra

sexta-feira, num outro encontro dos dois; e o que ainda havia

que devesse perdurar? Estão próximos à travessa da Boa

Page 272: LISBOA AGOSTO DE 1988

Hora, o grupo passou por eles, quando vem a idéia. Por que

não irmos? E dançarmos? Nada de adultério, só um passeio,

escutar o fado.

A bebida também fazia efeito em meu coração.

Ela concordou. Tudo bem. Mas eu não deveria esquecer

que éramos apenas bons amigos. Minha vida hoje é o

Octavio. Estranho, pensei, mães recentes costumam

esquecer os pais de seus filhos pequenos, ou não fazer deles

a vida. Em todo caso, Ficou claro que sua vida era o Octavio

quando dançando nos beijamos. (Ela procura por chocolate

branco). Minha Blandine jamais me beijaria – sequer dançaria

comigo – em minha ausência.

E o beijo na mulher a quem eu havia sido plenamente

fiel, durante o melhor período de minha vida, fez renascer

uma urgência de fidelidade, uma necessidade maior que o

próprio amor, a essa altura algo medíocre, uma tola invenção

romântica. Uma fidelidade que todavia já não podia oferecer

à Blandine pois comigo traíamos mais do que a uma outra

pessoa, traiamos essas pessoas especificas: nós mesmos

fiéis.

Os anos sessenta mexeram com a idéia de fidelidade.

Mas o que tinha a ver comigo exceto pelo fato de ainda estar

vivo num mundo em que o aspecto sexual é o único resíduo

revolucionário daquela época? Meu artigo fora uma licença

poética. Há vinte anos eu não tinha vinte anos. Fidelidade

então era ter filhos, netos; e quando saíssem de casa

envelhecer juntos. No fundo era ainda assim. A história muda

os costumes de um modo externo, as pessoas são

essencialmente iguais. Isso é óbvio, pensei. Vivemos

essencialmente igual a nossos antepassados. Aos treze,

quatorze anos, não tenho por que me revoltar, desejar uma

Page 273: LISBOA AGOSTO DE 1988

sociedade diferente; aos vinte, vinte um, apenas quando há

uma exigência hormonal. Há vinte anos é a mesma coisa.

Jornalismo? Hoje é o contrário de revolução, falsa

coluna de liberdade. Blandine questiona, como todos: por

que não fiz uma faculdade quando da obrigatoriedade do

diploma? É que, meu anjo, as coisas mudarão, essa exigência

é a moda da vez, amanhã também o diplomado estará

rangendo e chorando porque lhe tiraram o emprego. Talvez

até, não é improvável, pelo excesso de estudantes de

jornalismo diplomados a cada ano. Ou por causa dos meios

tecnológicos como os corretores de ortografia. Estaria assim

perdendo um tempo que não tinha, ao fazer uma faculdade

que também nada iria garantir. Lembra, Blandine, o que você

dizia sobre isso, que eu não deveria ter esse tipo de

preocupação, que deveria apenas escrever, independente do

reconhecimento? De como a tecnologia mudaria as coisas? A

balconista espera que eu termine a frase e diz que a mesa

está pronta.

Há uma atmosfera de musgo na casa, com notas de

couro. O ambiente do fado ao longo dos meses se incorporou

à arquitetura e à decoração. Ela sabe agora que são iguais,

que não houve culpados, e alegremente percebe que ele

ainda assim se sente culpado, tanto quanto apaixonado e

ainda mais. Lá no fundo sabe também que a paixão não é por

ela, que só empresta sua pessoa para o ciclo de amadas,

apenas uma – a essência sem rosto do amor, por isso com

tantos.

A agitação e a necessidade material multiplicam os

objetivos não-essenciais. Difícil discernir agora o que. Sem

duvida um beijo. Definitivamente corpos que se abraçam

durante a dança. Nem sabiam se ainda se dançava assim. De

resto, o corpo suado se acostuma ao ambiente refrigerado.

Page 274: LISBOA AGOSTO DE 1988

Mas paulatinamente deixam de ser tão irresponsavelmente

felizes.

Há uma vida lá fora.

Ajeito na cadeira a resfolegante névoa de falação e

cigarro, a que a musica faz pano de fundo exceto por três

casais na pista de dança. O garçom se aproxima. Blandine

pede. Toucinhos de céu e sorvete. Romeu e Julieta.

Moléculas de infância. Excitado. Um milk-shake de framboesa

e dois Leônidas. Um cavalo se cumprirá na luz do pasto

longínquo? Não, eu não tenho direito de interferir na vida

dela, refleti em meio ao enrijecimento, na normalidade de

seu cotidiano. Desejaria para quem amasse o sofrimento de

uma vida como a minha, entre a demasiada loucura e a

lucidez excessiva?

Nas línguas se esvai o sabor de romance. Eles percebem

o sentido do real, o desespero. A patologia de um beijo. As

flores de centro. A escuridão da discoteca cortada pelas

lanças luminosas, azuis, vermelhas. Um momento para ser

lembrado, apenas isso. A infelicidade, a felicidade que se

sonha (sempre inatingível), as encarnações do amor (nunca o

amor), a raça do acaso. O toque das mãos de Blandine

entrelaçadas no pescoço dele era a glória cujo acesso se

perdera. Ela se tornara esposa de um executivo, mãe, dona-

de-casa, pretendia abrir uma loja, se naturalizar. Uma vida

na mais absoluta ordem, a opção dela. Lâmpadas piscam,

uma luz ao longe, da roça dá para ver Piumhi. A recordação

deles nos primeiros tempos, nos cafezais, não podia mais

possuí-la, quando muito tocá-la. A memória da desordem que

ela recusara.

Mas e a falta que dele sentia? O quanto era importante

para ela saber que ele estava vivo, ainda lutando, tentando

trabalhar, escrever, o que mais se pode fazer com um dom?

Page 275: LISBOA AGOSTO DE 1988

Ele não nascera para estabelecer família, cuidar de

orçamento, seria como morrer. Então se consolou da falta

que sentia dele e da consciência de que o reencontro não

podia ser um recomeço. Não poderiam fazer tal promessa um

ao outro. Talvez por isso se permita dar-se um pouco. Um

beijo, um beijo de consolação nos sons da noite ao longo do

pulsar dos corações, no cheiro forte e acre do centro

lisboeta, no frio que sensibiliza o ouvido, no gosto do vinho

entre o prazer do primeiro gole e a náusea disfarçada pelo

sorvete. A nuca de Blandine, fortuitamente exposta como

antes seus joelhos numa curva do táxi. Frisa na retina a

inocência. Era uma boa moça. Ele, um rapaz de boas

intenções. O mundo nos estraga e corrompe, sempre o faz.

Arranca o coração e o deixa exposto como as nucas.

Ela entrou no saguão e apanhou sua chave na portaria.

Treme, dissimula, enrijece-se. Um tipo de experiência que

não possuía. Se ao menos tivessem feito esse tipo de coisa

mais vezes, noitadas, tomar sorvete, andar de mãos dadas. A

Blandine dele, assim a queria e também não, que não

estivesse ali, pois ela estava em perigo, arriscava a vida que

conseguiu e ele sabe como é difícil, como pode ser

humilhante até que o respeito dos outros se crie ao redor.

Mas ah como resistir? Se as coisas não tivessem se resumido

a tanto sexo, a tantos passeios diurnos para ela tão banais –

os montes, os rios, os lagos, as árvores – se tivesse havido

encontros num sentido romântico mais convencional, um

namoro como deveria nos velhos tempos, tipo há vinte anos.

Ela pensa agora que podiam ter sido mais maleáveis. Afinal,

nunca foram mesmo ligados aos movimentos contraculturais

e toda aquela lengalenga de rebeldia e liberação.

Pára, hipnotizada pelo quadro atrás do porteiro. Flores.

Quantas vezes ele me deu flores? Ele me deu flores alguma

vez? Bombons? Se Andrei tivesse recolhido o namoro a essa

Page 276: LISBOA AGOSTO DE 1988

guarida, se reconhecesse no relacionamento a necessidade

desses mimos banais, como lingerie de presente no Dia dos

Namorados! E todavia ele era tão gentil. Precisava ser assim

tão diferente também, tão complicado? tão pouco ambicioso?

Um pouco de clichê teria lhes feito bem, como apesar de

todo comercio membros de uma família acabam por se

reconciliar na noite de Natal.

Esperei alguns minutos na friagem que despertava o

ouvido, resfolegando de fraqueza, depois caminhei

lentamente e entrei também. Blandine está no quarto 203;

Nastácia no 404. Continuo subindo as escadas pesadamente

até o quarto andar, descalço. Desci após alguns instantes e

parei no segundo. A porta se abre. Ângela está em seu

próprio quarto, contíguo; Blandine recostada em travesseiros

superpostos. O bebê dorme a seu lado. Sentei na beira da

cama.

Queria agora saber de sua mãe, me conta como foi, sei

como ela se sentiu com tua viagem, afinal passei a morar lá

logo em seguida, mas depois nada sei, como estava nesses

últimos tempos, chegou a conhecer o apartamento que você

comprou para ela?, é eu sei, o Kleber me contou. Ela dizia

que era minha segunda mãe, em muitos momentos foi a

primeira. Nossa. Você leva mesmo jeito, olha só a carinha

que ela faz, que neném mais linda que ela é, e súbito eu quis

ver um detalhe comum, mas isso não estaria certo, então

calei profundamente diante do seio em que tantas vezes eu –

Minha mãe, disse ela, era única, e talvez estivesse

simplesmente dizendo que todos nós o somos.

Sim, somos únicos, mas sei mais do que ninguém, por

temperamento e pela tendência ao vício, o peso de nosso

legado. Eu não queria pensar nisso, mas era inevitável. Qual

Page 277: LISBOA AGOSTO DE 1988

a idade de Bruna? Não deveria pairar nenhuma dúvida a

respeito. Eu já não sabia o que seria certo ou não nesse caso.

Tinha um ursinho de pelúcia. Você não vai adivinhar o

nome dele. Blandine sorri e não se saberá o quanto de

engraçado havia no tal nome, e o quanto de amargura. Posso

adivinhar. Claro. O ursinho lhe dá garantia de sonhos bons. É

o que eu sou? Sim, um sonho bom. Por isso era tão fácil te

amar nas noites. Nas responsabilidades cotidianas melhor

não tê-lo por perto. Havia tantas responsabilidades assim no

cotidiano dela? Ela sabe o que de fato estou perguntando, foi

essa questão implícita que não respondeu.

Responsabilidade demais. É preciso experiência e

maturidade, equilíbrio. Era como se dissesse: Agora eu sei,

agora eu sou. E foi subitamente revelado a ele o momento

em que Blandine decidiu vir para a Europa, as angústias da

insegurança financeira – porque as preferia a ser dependente

do pai (mas não estava apenas trocando de pai?) e o horror

de partilhar a cama com alguém que não se ama. A vida, é

preciso ambição. Saber o que se quer, ter metas, e lutar para

atingi-las. E ele entendeu o quanto havia de orgulho e

sofrimento no que ela dizia, era como se a ouvisse dizer

Estou viva, apesar de todos os sonhos que ficaram para trás

com sua partida de Piumhi, Estou viva, materialmente até

melhor do que estaria, e na parte afetiva tenho um homem

que me ama. Subitamente lhe foi revelado como que o

aposento em que ela vivia, cheio de dúvidas amargas

solucionadas não com certezas mas com ação.

A mão dela descansou na própria coxa, aqueles dedos

gordinhos de japonesa que não faziam nenhum sentido nas

mãos dela. Questionamentos, o sentido da vida, dilemas,

poesia, tudo isso é retórico demais, irreal demais para se

conciliar com os dias, com o dia-a-dia real e seus mecanismos

Page 278: LISBOA AGOSTO DE 1988

de trabalho, de subsistência, de manutenção da saúde, de

convivência com a família. Ambição. De ter uma boa casa,

comer bem, usufruir de um lazer interessante, ser respeitado

na sociedade e (claro) viajar. Os questionamentos e o sonho

inócuo cabem bem na noite, como ele, como ela mesma agora

há pouco. Não nos dias. E o dia sempre chega.

Quem sabe num livro.

Quando soube, tanto quanto feliz Blandine ficou

preocupada. Mas era tudo tão novo e acontecia tão rápido

que pouco sobrou de tempo para cismar. A explosão

hormonal lhe subiu ao rosto e o peso do útero descia à alma.

Tanto xixi assim de pouquinho, vida escorrendo para tornar

depois a existir na que se formava. A barriga lisa e frágil.

Não adianta tentar entender tanta transformação que não

permanecerá. Decerto é assim desde que o mundo é mundo.

O enjôo, a tontura, a fome, a falta de fome. Coisa lunar, só

pode. Que outra explicação haveria? Em que lua será o

parto? A crescente, dizem, é ótima para começos. A nova não

é má, mas nada de minguante pelo amor de Deus. O

desconforto, a dor nos seios, era por isso que tanto chorava?

Inchava. Dos intestinos aos sentimentos conflitantes. Com o

humor oscilava a pressão arterial e também as expectativas,

maravilhosas ou cruéis. O ardor da pele anunciou enfim o

esperado aumento da barriga. Ou seria impressão, como

mais tarde os movimentos do bebê se revelarão apenas um

discurso estomacal? Contaria a Andrei, estava excitada, será

ótimo. Se fosse menino, ia sugerir Diego. Se fosse menina,

ia... Não.

Se acontecesse de novo, agora enfim é outra vida, não

diria Mas, nem Depois. Talvez tenha sido melhor. Mas ia se

prevenir para não acontecer de novo, deveria pelo menos. Ou

Page 279: LISBOA AGOSTO DE 1988

não? Tenho dúvidas hoje, intuição feminina talvez, de que

não vai aceitar numa boa e se aceitar não será um pai como

tem de ser. E se já é mesmo outra vida, por que não

radicalizar de uma vez? Tudo bem, ela sorriu o máximo que

pôde. Eu aceito.

Bruna é um bebê muito meigo, bonita, inteligente.

Mostra a foto dela quando recém nascera. Estamos pensando

em mandá-la para Londres quando ela estiver na idade de

escola. O ensino inglês. É. Octavio conheceu um casal de

Finchley. Estiveram lá em casa esses dias. Eles se

dispuseram conseguir uma vaga para ela quando estiver na

idade.

Ah, por favor, um internato?...

Porque não, Andrei? Ele mesmo.

Eram outros tempos.

Olha, ela disse, e riu da preocupação, certamente

também eram diferentes os tempos em que seu meu pai te

abrigou lá em casa, na época um estranho, e continuou

rindo, mas era um riso de ternura, de memória, bem, havia

também um tantinho de tristeza. Euh ec darest. Pessoa

preparada, culta, fina, elegante, astral para cima, humor

sutil. Decerto Bruna até já demonstrou interesse por piano.

Você está zombando, Andrei. Mas sei que no fundo se

importa mesmo.

Era absurdamente verdade. Eu não disse nada. Ela falou

quase para si mesma. Tão pequenininha, batendo as teclas.

Mas, falando em educação européia, o que você faz na

Europa?

Escrevo um livro.

Page 280: LISBOA AGOSTO DE 1988

Há um descanso vítreo na chuva. Luz do abajur da

cabeceira. Ao olhar minha filhinha recém-nascida, perfeita,

me veio forte uma sensação estranha. A quem deveria

agradecer uma dádiva assim? Não há a menor duvida. Deus

existe e é amor. Deus, obrigado por esse batismo! Deitou de

novo, aconchegando-se ao bebe. Então pegou a carta. Por

que ele insiste? Encostou o papel ao peito, apertou-o. Devia

imaginar que faria algo assim, morar na casa de minha mãe.

E no meu quarto! E assim saber meu endereço aqui.

E quanto teria a falar! E quanto a saber! Mas era tarde.

Não é, filhinha? – disse ao rolar a lagrima. Amor... Mas.

Segurou a menina num gesto que se aproximava do

desespero. E se houvesse uma anomalia? Deveria, por causa

da dor, fechar os olhos ao principio perfeito? Isso só

aumentaria a sua dor. Sem palavras, hospedes do Éden na

chuva fina de Trieste. Ela e a árvore no meio do jardim. A

natureza está sob os mesmos efeitos, prisioneira dessa

mácula inverossímil e inegável. Um pássaro se choca com o

vidro da janela.

Mas um dia. Esse sistema de leis que governa (ou

desgoverna) o mundo. Será restaurado. A criação se livrará

da vaidade a que foi sujeita. Será liberta da corrupção para a

glória onde não mais haverá dor. Blandine acarinha o gato

que subira na cama, joga-o ao chão. Ah, a dificuldade

desventurada de reter no coração as coisas que a razão

rejeita!

Um relâmpago.

Contudo, só esse paradoxo explica a sentença humana

e as catástrofes naturais – a vida. (Tocou a têmpora de

Bruna, um toque tão suave que nem chega a existir). Fora de

nós e também dentro. Somos como deuses, gerando vida,

Page 281: LISBOA AGOSTO DE 1988

(Andrei falara de um livro na carta?), arte, discernindo o bem

e o mal. E como bestas, sujeitos aos desejos carnais, vindo

do pó e indo na sua direção. Temos a eternidade no coração

e somos esmagados pelo tempo. O intelecto resiste: como

pode uma criança inocente estar sob o peso da culpa de um

adão distante e talvez sequer real?

A brisa soprou, vinda da cozinha: a natureza está sob o

mesmo peso, ela, a natureza, muito mais inocente que uma

criança, pois jamais se tornará um adulto. (Fez de novo a paz

– as retas de luz jorram da esquerda para a direita, de um

vértice superior da janela para o oposto inferior) Fora de

nós, e também dentro, tudo aponta para o silencio onde é

possível vislumbrar o principio perfeito e suas perversões.

Bruna, que dormia para a parede, virou seu rosto para

nós. Lágrimas nos olhos que me ignoravam. Mas não a voz.

Vê aqui, Blandine apontou. Não é igual a têmpora de minha

mãe? Não pude verificar a semelhança. Bateram à porta. O

senhor poderia vir aqui um momento, se faz favor?

Sim? Pisei fora da soleira e encostei a porta. O porteiro

sussurrava, supondo cumplicidade. Sua mulher esteve

procurando o senhor várias vezes durante a noite. Minha

mulher? Ouvi Blandine acarinhando Bruna. Ela está bastante

perturbada, continuou ele, o que eu faço? Não era preciso

fazer nada. Obrigado. A fúria que me impulsiona escadas

acima já arrefeceu. No corredor do andar de nosso quarto.

Parei à porta, pensativo, como a praia vazia depois de uma

onda. O som do sono de Nastácia. Chega pelas frestas.

Voltei às escadas. Desci devagar, decidido. A porta

entreaberta. Entrei de novo no quarto de Blandine. Me

Page 282: LISBOA AGOSTO DE 1988

aproximo dela. A água de uma descarga corre pelos canos da

parede. Ouvi o canto de pássaros e, apesar da escuridão,

entendi que a noite estava acabando. Ela sussurrou. Estava

quase dormindo. Eu nada pretendia senão dormir também.

Deitei-me a seu lado e ela recostou a cabeça em meu peito.

Ah amigo por que as coisas têm de acabar? Afaguei sua nuca.

Foi assim, uma distração do destino.

A jovem que foi mãe precisa reaprender a ser mulher?

O contato era mínimo mas bastou para que os

levassem. Eu me contenho, não porque sou mulher

controlada, mas não haveria gemido ou grito proporcional.

Como podem as coisas antigas se tornarem novas e no

entanto estarem destinadas em poucos momentos a se

dissiparem num passado mais que remoto, improvável

quando o movimento da lógica permear a memória, assim.

Ah, Blandine, estou sonhando, não me diga que não pode

ser.

Ela não dirá.

Estavam se levando a momentos outrora de inícios. Os

dedos nos dedos, pontas nos pontos de um pulso, o passado

não pode morrer, apenas dorme de acordo com nossas

escolhas, e se desperta é como agora com os olhares se

evitando.

Convoquei o joelho para o meio das suas coxas, e

exceto pelo cheiro é como se ela nem percebesse, pelo

menos até que sua mão direita passou a passear em minhas

costas. Na parte de fora dessa perna, a minha mão. Preciso

decidir alguma coisa? Precisamos estar convictos? Essa idéia

impertinente do que é e não é certo, como se pudéssemos

saber.

Nada perdi. O vento destelhou as casas, não as

Page 283: LISBOA AGOSTO DE 1988

destruiu. Posso.

O rosto dela. Seu sorriso. Por quê? Não há espaço para

isso, porquês. Há os olhos, as lábios, as narinas, e aqui, na

fresta, o seio alcançado e mais, esse calor é como a lâmpada

e a mão a mariposa, e a língua colhe esses gemidos como

borboletas, elas se multiplicam, estão sobre todas as flores

do jardim e cada uma.

É assim que ela deve vestir a menina (coisa formidável

isso de ser pai e mãe). E caso ela tenha se esquecido o

caminho, é por aqui. Jamais me esqueceria, pensa ela,

lembro em cada vez que estou só; e refaço esses nossos

caminhos, e mesmo quando não estou, o que é cada vez mais

raro (provavelmente Octavio tem outra, e isso será um

alívio). O jeito como ela dobra a perna e contorce o

calcanhar, os pés para baixo e para dentro. Dessas pequenas

coisas se constrói uma eternidade. Esse homem não poderá

jamais tornar a ser um estranho, as coisas não funcionam

assim.

O elástico não aperta mais a cintura. Esse ai é um

mantra, um louvor núbil partilhado com a respiração. Não sei

se ele devia nos expor assim, a empregada pode entrar e até

que ponto o ato é lícito na diante de uma criança, ainda que

adormecida? A madrugada fria penetra no quarto no instante

em que a calcinha é removida. Ele está preparando alguma

coisa nova. Esse jeito eu não me recordo. A luz por debaixo

da porta, reflexões severas no espelho da cômoda. Amor!

Sabem do que se trata mas não saberão explicar. É o

perfume das flores, o som do mar, as cores do crepúsculo, o

vôo do pássaro, a semente na terra. O galope da poldra. Para

cada veleidade será necessária uma noção? Não há mais

hora, não há mais antes, não há sequer as palavras que são

ditas. Vem agora, agora. O vento encrespa o imenso lago; a

Page 284: LISBOA AGOSTO DE 1988

vaga nascida procurará a margem mas, a partir daí, o quê?

Ele está indo de um lado para o outro no quarto. Repete

o caminho no tapete, da porta à janela, seus passos ali, mais

fundos cada vez. Olha para ela, para Blandine. Com que

sonha? É licito esperar?

Cavalga. O frio de fim de agosto em Piumhi. Os cascos

no galope. Vendinhas abrindo, o primeiro ônibus dos cafezais

para a cidade, o primeiro trator com boléia da cidade para os

cafezais. Um movimento diferente do cavalo torna o

amanhecer diferente. Não é mais pelo hóspede que será

transtornada a rotina, ou não apenas. Vem dela própria.

Como a caligrafia de súbito transforma o teor da escrita. Não

diga. Ela está falando. Não sabia que falava dormindo.

Andrei pára e tenta entender. Desiste. De quê? Volta à

janela.

O sol. O sol do sul de Minas, sua terra querida – está

acordando, à medida que Minas se afasta ou Minas se afasta

à medida em que acorda. Ou é a mesma coisa. O quê? Ahn?

Ele ri. Você disse alguma coisa. É a mesma coisa?

O sonho era dela...

Risadas. Uma pausa.

Ela olha, pisca, o colchão registra suavemente a perna

que se moveu sob a coberta, o braço que se esticou fora

dela. O que posso dizer? O que será de nós? É preciso seguir

adiante, continuar. Você sabe. Ouvir o amanhecer. Você é

exageradamente romântico, não dá pra ser assim. E todavia.

O que há de romântico? Um beijo. A ereção que não chega

mais a ser. Será ainda lícito esperar? A vida num segundo.

Page 285: LISBOA AGOSTO DE 1988

Dez horas da manhã, estávamos no aeroporto.

Enquanto esperávamos o Octavio, o que fizemos por cerca de

meia hora (eles iriam tomar o próximo vôo para Roma),

avistei um conhecido.

Ele viu dois.

Abraçou Blandine e a beijou. Pegou Bruna de Ângela

para seu colo. Octavio, esse é o...

- Octavio?

Uma gargalhada discretíssima e ele perguntou, num

português carregado. Vocês se conhecem?

- Vocês se conhecem?, repetiu Blandine.

Desnorteado, olhou ao redor. Não estava pronto para

tanta coisa. Alguém chega a estar pronto? Claro que sim,

olhe as pessoas, estúpido! E ela como estará diante de tudo?

O destino tinha toda a culpa, ou todo o mérito? Seja como

for, é impossível não pensar. Poderia ter dado certo, se

tivesse ficado, se a tivesse levado, se fosse esse outro. Sem

dúvida, quanta dor evitada... Mas como se chega a esses

momentos grandiosos da vida sem que tenhamos errado em

alguma escolha? A consciência do declínio tem um quê de

glória. E nossa noite, nosso reencontro, nossa manhã de

amor, onde fica em tudo? Próximos e distantes, educados,

civilizados como se deve ser em situações assim das novas

famílias que tem outros filhos com novos pais e ex que são

atuais e serão eternos porque geraram uma criança. Coisas

possibilitadas pela contracultura, essa maravilha há vinte

anos. O que ainda salva o momento no aeroporto é o

desconforto, pelo menos isso denotou algum sentimento,

alguma coisa fora dessa hipocrisia que é a vida de hoje, onde

todos são fantásticos e melhores amigos e amores perfeitos

Page 286: LISBOA AGOSTO DE 1988

e pais sublimes e filhos inacreditáveis. Onde queria chegar?

Já chegara. E tinha de voltar, de sair o quanto antes, não

seria possível suportar mais.

Aviões, aviões, aviões. Passageiros que chegam e que

partem. O que ela estava dizendo? Não teve cabimento,

Andrei, tudo o que deixei de aprender enquanto reciclava

meus conhecimentos de café. Eu não sabia. Agora olha só o

que temos diante de nós, com toda nossa vivência e cultura.

Um absoluto impasse. Pode ser, meu amigo, mas um impasse

escolhido. Não quero que minha filha permita que lhe

imponham sentimentos, remorsos. Que ela não saiba para

onde ir por não conhecer os caminhos. Táxis. O motorista

abre a porta e pergunta se não tenho bagagem, vislumbra

uma corrida que não haverá, enquanto eu olho para uma

placa que não me diz rigorosamente nada.

O Bernardo estava? Talvez chegasse no dia seguinte,

disse Filomena. Que pena. Sou o brasileiro que ele conheceu

em Madri. Claro!, ele falou muito acerca de ti. Falou muito

bem. Ela pergunta se ele estava, Andrei, a querer. Entrar no

negócio.

Que remédio.

Não deve ficar assim, Andrei. O Bernardo também era

cheio de escrúpulos no começo, e agora... Ele imaginava. O

lucro é tanto que torna o risco e quaisquer constrangimentos

irrelevantes.

Vou arrumar a cama no sofá. Ele não quer incomodar.

Não será incomodo algum. Sou a Filomena, muito prazer.

Bernardo também fala muito de você e dá pra notar o quanto

te ama.

Page 287: LISBOA AGOSTO DE 1988

Ela sorriu. Que bom.

Estavam juntos há quatro anos, Bernardo e Filomena, e

se davam muito bem. Mas em dezembro ele arrumou uma

cena no estrangeiro, na Itália, ela achava. Para lavar papel,

ela imagina. Desde então ele passa muito tempo fora do

Porto. Mas eu compreendo. Nosso relacionamento continua

muito bom, talvez tenha até melhorado com a distância.

Então passei a pensar que para as mulheres sexo e

sentimento são a mesma coisa ou duas tão ligadas que

terminam por ser uma só. Que imagem se apagara e qual

fora transmitida àquele coração pronto para pulsar o

ressurgimento da amada?

Nós nos conhecemos em Madri, disse Octavio, quando

fui tratar daqueles imóveis com o Paco, lembra?

Claro que Blandine se lembrava e explicou, rindo, que

era a única que o chamava de Octavio. Sentia-se bem sendo

a única a chamar pelo primeiro nome o doutor Octavio

Bernardo Coelho da Rocha. Mas acrescentou, Você não sabe

da coincidência maior. Bernardo ouvia atento, com um

sorriso paralisado nos lábios. Sabe quem é ele?

Octavio Bernardo não fazia idéia.

O rapaz que eu namorava no Brasil. Aquele. De quem

falara no Rio. Quando ele a convidou para passar as férias na

casa de seus pais em Trieste.

Portanto, não era, por exemplo, um policial do

Departamento de Narcóticos se passando por viciado. Alivio.

Uma pausa. Além disso, o assunto estava naturalmente se

afastando da noite madrilena, de Gaia, de Filomena.

Page 288: LISBOA AGOSTO DE 1988

Veja lá, gajo, se estás mesmo disposto. Todo dia

chaváus ficam nas mãos dos bofes e ligeiramente torturados

entregam os companheiros. Sem falar é claro da

concorrência. Matam sem piscar. Principalmente esses

africanos. Estão loucos de raiva com a CEE por causa da

discriminação de que se julgam vitimas e não precisam mais

que um mínimo pretexto para furar um branco.

– Obrigado. Estarei bem, não se preocupe.

Daria tudo certo. Filomena havia me aprovado e

Filomena tinha um sexto sentido para essas coisas.

Ela o amava.

Pois, chaváu. Ficou louca comigo porque descobri que

assumi com outra que aliás é brasileira também. Assumi com

outra um compromisso que esperava eu assumisse com ela.

Agora fazia sentido o jeito dele em Madri. Mas afinal quem

ele amava?

Amar, amor. Você é muito romântico. Não pode ser

assim. Mas ele achava que não saberia viver sem Filomena,

sem a certeza de que ela o estaria esperando. Seria capaz de

matá-la se o deixasse. – Quanto à minha esposa, não a

mataria.

Talvez significasse que amava a Filomena.

O que se vê num aeroporto nos momentos que

antecedem um vôo. Na névoa, a imagem que não retenho

nem esqueço. Piumhi. O que poderia ter sido. Uma vida

Page 289: LISBOA AGOSTO DE 1988

familiar. Caminhos na roca são feitos com enxadas diferentes

mas de mesmo formato. Com golpes precisos. Sem fugir ou

desejar.

Os olhos de Bernardo procuram cumplicidade nos meus.

Eu sei que você acha que convidei Blandine com

segundas intenções, mas não é verdade. Simplesmente

aconteceu.

O que fazia num curso de portugues para estrangeiros

no Brasil?

Era apenas um dos cursos da escola, antecipou-se

Blandine. Tinha também aulas de italiano, que Octavio

assistia.

Bem, querida, está na nossa hora.

Aproximou-se dela e a beijou ostensivamente. Adoro-te!

Mas em seus olhos não havia amor. Ela aperta a minha mão e

em outra mulher se transforma. Recebe Bruna do marido,

que a abraça. Adeus!

Adeus, eu disse, mas não me mexi, nem mesmo para

aguardar a partida no lugar apropriado. O que estou

sentindo afinal? Que amor? Ou como eles disseram não pode

ser assim? O que está acontecendo aqui exatamente? Se a

paz existe, consiste no flash que precede as trevas? Quanto a

destino, um diamante: a vontade lapida, e o trabalho, e o

desejo. Que noite! Que manhã! A luz à janela. Os primeiros

carros. Blandine agora está partindo, de vez. O estalido da

mudança de minuto clica no relógio do aeroporto.

Talvez eu devesse estar em casa, lá no Rio,

trabalhando, me alimentando bem, caminhando todas as

manhãs, talvez estar dormindo sem sonhos, um sono

reparador seguido de um despertar sensato. Mas não. Amor.

Literatura. Ora vamos... No máximo parecido (fisicamente)

Page 290: LISBOA AGOSTO DE 1988

com Kafka, e ainda esperando uma Dora, o que também não

deveria. A diferença de idade nem é tão grande assim, nem

Blandine tão apaixonada, nem eu genial. Deveria estar

contribuindo com impostos, com meu sagrado direito ao

voto, enfim, um homem respeitável, honesto, sem vícios, que

não usa as pessoas, um exemplo, estar aqui – estar aqui vai

além de qualquer avaliação lúcida da vida. É preciso agora

juntar os pedaços, se você for capaz. Quando caminham para

o avião, faço sinais.

Deveria contra a nova situação refazer minhas

expectativas e lembranças, mas não tenho forcas. Blandine

levara minha vida para o avião e pleno de nada aqui estou

após a decolagem. Não era nem saudade de um tempo ou

tristeza por outro que não virá, um lar. Rapaz, o que você fez

de sua vida!...

De onde vêm estas dimensões que surgem num

segundo, essa possessão? Grito. Não deixe que Bruna vá

para a Inlglaterra! Está passando. Só o tremor nas mãos. Vou

me concentrar no telefonema do diplomata. Só pode ser para

falar de trabalho. Esquecerei no trabalho o desencanto.

Gritou em meio ao pesadelo. Suava em seu leito de

prosperidade, chorava. Era por causa de gente como ele que

gente comum se revoltava? Invejam a transitoriedade e não

a gloria da flor. Bobagem, apenas um sonho, louca ilusão.

Respirou fundo. Levantou-se e tomou decisões para o dia

seguinte. Assim tinha que ser. Afinal. Era um renomado

homem público, um literato reconhecido.

E era rico. Lutara muito para chegar à posição que

Page 291: LISBOA AGOSTO DE 1988

estava, purificara-se pela obediência às leis democráticas,

porque a publicidade e o primado do povo são correlatos.

Crescera nas campanhas eleitorais em virtude de sua opção

pelos pobres, angariando também o apoio dos religiosos.

Aproveitara suas chances num mundo em que as

oportunidades são iguais para todos – de que deveria se

envergonhar?

Ninguém é perfeito.

Se todo homem tem seu preço, o seu era o preço de um

homem íntegro. Por que então estava gritando no meio da

madrugada? Pediria uma audiência no dia seguinte. Sim, era

rico. Tantos lhe deviam favores. O escudo da riqueza era

como a glória de Deus.

Dinheiro. Foi o que precisou para livrar Antonio.

Generoso, pouco queria em troca. Desejava antes dar. O

corpo de Antonio. Que entrasse em lugares. Em lugares em

que ele não deveria. Na bolsa, no trafico, nos bancos. O

mesmo principio. Foder. E Antonio se tornou um homem

livre, respeitável até. Mas o Antonio não está, meu sobrinho

querido? Quando o vi na televisão, chorei, o senhor

acredita?, chorei de saudade, fiquei arrepiado. E ele começou

a gostar disso. Começou a pretender alcançar as coisas não

só por meios legais, mas morais. Se alguém vasculhasse seu

passado, não descxobriria as manchas pelo amante, o seu

benfeitor, apagadas.

Exceto se.

Poderia sonhar com a respeitabilidade efetiva, não a

dos quinze minutos. Um cargo. Aí entrava a ameaça do

amante. Se um dia ele se recusasse...

Sexta à noite. Ele explica o negócio, mas Antonio

Page 292: LISBOA AGOSTO DE 1988

responde: Eu mudei, doutor. Quero uma mulher e, para isso,

quero ser um homem de respeito. Quero conquistá-la.

Sabe, Antonio, sinto algo estranho em ti. Tenho a dizer

duas coisas. Primeiro, não és insubstituível. Não vou mais

ameaça-lo com seu passado, pois seria uma ameaça para

mim mesmo, estamos juntos nesse barco. Mas se você

morrer, quem chorará? E, se você morrer, hoje mesmo

chamei a meu escritório um brasileiro. Tudo o que ele quer é

um trabalho. Ou ainda menos, um livro publicado. Coisa

simples. Estou pensando seriamente. Não faças com que me

sinta desconfortável na tua presença, Antonio.

Não quero ouvir nada acerca de brasileiros.

O que está acontecendo afinal?

O homem entrou pouco depois que Antonio deixou o

apartamento. O diplomata tomava banho. Cantarolava no

chuveiro. Esquecera o pesadelo. Esquecera, já, de Antonio.

Chegara a pensar que estava velho para iniciar um novo

relacionamento, mas esse Andrei caiu do céu. Estava cheio

de planos. Segurava o pênis e lavava a glande.

Percebe enfim o vulto.

Caía a tarde. Atravesso a transversal, perplexo com a

noticia, o assassinato do diplomata. O dinheiro de Beatrice

permanece quase intocado, mas o que significa, se significa

algo, o meu regresso? Não tenho mais profissão, à

obrigatoriedade do diploma se juntou um inelutável desprezo

pelo jornalismo. O que eu tenho? Pus tudo a perder. Perdi

minha vida. Não quero voltar. Prefiro morrer.

Page 293: LISBOA AGOSTO DE 1988

Pego a Gago Coutinho. As mulheres passam com suas

roupas escuras e maquiagem pesada apesar do calor, os

seios apontam o outro lado de mim. A cabine telefônica. Se

me perguntarem, não saberei dizer. Chove lá. Idas e vindas.

Um orelhão não poderia dar tal abrigo. Meus ombros se

curvam mais e mais. Ah Nastácia! Não imaginava que as

coisas poderiam ter essas todas essas conseqüências. Olhei

a rua. O que sobreviverá a tanta escuridão? As mulheres

continuam passando, os penteados duros, os olhos

debruados. Blandine não era assim. Leve, em vestidinhos de

poás esvoaçantes, sempre com pregas duplas arrematando

os decotes.

A cabine. Posso ouvir a voz dela, de Blandine. Enquanto

isso ela e Bernardo em solo italiano. Ignoro a entrada Areeiro

do metro e entrei num barzinho da Almirante Reis. Faço

sinais. Em que vida? O crepúsculo além do infinito. Mais essa

agora! – um buraco no meu tênis...

Eu havia ficado numa pensão por ali, cuja referencia

para mim era a Igreja dos Anjos. No quarto, ouvindo o casal

vizinho nesse temo sem afinidade, nessa vida sem vida, sem

razão de ser, não há mais o que esperar ou talvez um

regresso que seria recomeço ou quem sabe a viagem de

volta revelando o que seja preciso se é que seja enfim

preciso algo. Saí do estabelecimento pisando o assoalho

gorduroso, afasto-me do vozerio que estalava eletricidade de

tristeza.

No ritmo da passada tensa, apanhara-me a aura do

quarteirão da igreja sem que me desse conta, algo nos

vítreos sonhos da fachada, no sêmen das lâmpadas, me

devolveu o mendigo que costumava dormir nas escadas do

templo. Da primeira vez que ali passei, pediu-me um cigarro.

Vendo a cor mas não o raio luminoso que é a própria cor,

Page 294: LISBOA AGOSTO DE 1988

trouxe o vagabundo do lado de fora do café em Madri e na

seqüência Oleana entrou exuberante. Aí está o vagão do

metrô. Através da invisível retícula passa uma claridade

baça, quase uma sombra. O desejo me faz renascer por

instantes, segundo as técnicas de revelação e ocultação dos

decotes. O lirismo amplo das planícies foge no cuanza de

cigarros, do alto do café marroquino para a avenida ventosa

em Luanda. Chove no dia em que deixamos a África, chove ao

nos aproximarmos de Veneza, na carta de Claudia a chuva

recolheu meus traços. Começava a chuviscar e o mendigo

reaparece num tempo que não volta em se adianta e é tudo o

que há.

A ressoar no relento dorme o homem em seus andrajos

aquecido pela sopa da Assistência Social ali em frente. As

mesmas escadas de meses antes e o mesmo mendigo alheio

à noite que descera pontual com o conforto das trevas que o

juízo perfeito ignora. Aproximei-me num impulso e coloquei o

maço de cigarros no raio de sua existência aveludada pelo

vinho com essa aura cansada que nem dá tanto trabalho para

os anjos da guarda velarem sem que ele piscasse. O mesmo

bebedouro público onde tumultuados os passos ecoam na

noite, tomo um gole. Enxugo os lábios e a barba em

movimentos resignados dum modo de vida não o mais fácil,

não sou o mesmo. Tomo meu rumo.

Imerso o prédio num efeito de aquarela, minha janela

iluminada, a mesma da vez anterior – sim, ficara com o

quarto e agora desço estalando nos degraus, desliza pelos

corrimão a mão depositária do calor de Blandine, e ao

terminar a espiral recebi do ruído dos carros e da aragem

remota desconfortável profecia. Desci na entrada Anjos do

metrô. O vento encanado dos subterrâneos empresta

contração de rosto, olhos apertados e braços cruzados aos

esparsos e discretos passageiros na plataforma. Apanhei o

Page 295: LISBOA AGOSTO DE 1988

trem. Jogava entre as estações de lado e de outro na dança

de truques e trilhos. Estados Unidos. Saí.

Espírito ascensional capta todos os níveis da alma a se

juntarem ao percurso entre a boca da estação e a avenida,

sempre atrás de uma pegada recente, trêmulo, etéreo. Quem

é essa que do outro lado do córrego de água benta colhe

miosótis enquanto espera para me levar à Virgem nela

própria? Atravessamos no semáforo, cruzamos um pelo

outro, e ela desaparece por profundeza a que não tenho

acesso porque laços terrenos ainda me prendem, não me

queira mal porque tenho minha vida para tocar e você,

desculpe, não passa de um louco carente de afeto, clamando

por atenção, sem mais esperança. A voz de Michel promete

me levar à presença do Deus refletido no plástico da foto

escura mas me deixa diante do cine Londres a contemplar os

cartazes que me aproximam de meu desejo, ai de mim.

Que gente toda é essa, empurrando pedras com os

peitos em carne viva, uivando de dor, outrora expoentes? A

lua se encontra com um telhado e a noite se condensa ali

quando a sombra que repete a nuvem passa sobre mim.

Como entender pessoas que têm tudo de que precisam, isso

pode ser vida? Atravessar essa rua. Atravessar a geografia

sôfrega que o sonho impôs e ir para o filme. E de que me

valerá? As fotos do cartaz adquirem vida e se juntam à

multidão incorpórea comprando na bilheteria. Escritor

condenado pelo vicio num relacionamento neurótico com

bela editora. Mickey Rourke parece decadente e, nossa, é

Faye Dunnaway mesmo? O segredo da sala de espera está

contido no sabor de hortelã, no gole rascante da coca e no

lamentos dos sacos de papel. Uma noite como essa, diz a

mulher, é cenário de surpresas e há segredos também no

tecido de sua saia saudável e na resposta da amiga que

menciona prêmios do Imperador, estendendo-se ao chocolate

Page 296: LISBOA AGOSTO DE 1988

que se dissolve em minha língua.

No ar condicionado e no relento o frio não é o mesmo?

Na segunda hora da penúltima sessão, a pesada porta

se abriu e a funcionária a segurou. Pessoas entrando e

saindo se esbarram.

Apagaram-se a luzes de novo. A treva e o aviso: o

vinculo com a sanidade reside na dor. É assim? Curar-me

matará um possível o artista? A vida se equilibra sobre o

abismo enquanto o lanterninha se aproxima e me leva até a

poltrona. Gostaria de recostar assim numa cadeira do papai e

me deixar impregnar do bem familiar, do descanso

reparador, ah sim, talvez eu devesse! O sono fácil do

assalariado... Mas não: a cabeça vacilante, o desconforto, o

olhar doído, a dor de cabeça, os músculos aterrorizados, o

espasmo extrapiramidal, o ouvido eternamente sensível, a

fraqueza mórbida que se impregna na sala escura.

Faz tanto tempo que não sei mas existiu em mim um

rapaz saudável e bom, educado, que pensava meus

pensamentos. Era sábio e benigno. Desejava a beleza, não o

espelho à parede colocado, menos ainda a espuma adesiva

que o protege. Faz tanto tempo, não sei quanto. Muito,

imagino. Quarenta e tantos e o dia ensombra o pássaro,

primeiro o vôo e depois as asas expostas no pouso do terror.

Não há mais encantamento embora outro filme vá começar.

A cidade. Reflete da noite na rua.

Ouvindo os ruídos do casal vizinho, nos labirintos

construídos pela imaginação da própria experiência sob o

ranger da experiência alheia, eu escutava o jornal

Page 297: LISBOA AGOSTO DE 1988

transmitido pelo rádio, e atenção, o locutor imposta

solenemente o acento para dizer que o papa excomungou o

bispo. Na beira da cama, imagino um escritor que de jornais

não necessita. Desligo-me da voz e penso o quanto os

dogmas contrários se tocam, que a virtude só existe no

equilíbrio de vícios, nada que Pascal já não tivesse

percebido. A água está morna, intragável, mas tomei assim

mesmo. Os raios revelam o pó que meus movimentos

levantam. Quando voltava do cinema há pouco, as vozes dos

passantes erravam em minha alma e os corpos das mulheres

se recolhem em mim para testemunho daquela noite.

O asfalto molhado é como espelho de onde nasce um

cintilante sentimento de desfecho.

O casal. Combinaram fugir. Alugaram a única suíte da

hospedaria. Era um menino, ele. Quinze anos. Na banheira

juntos já nus. Ela tem corpo de mulher e o rosto também dá

idéia de mais idade, talvez mais dos dezesseis que tem de

fato. Está sentada na borda da banheira. Conversam. A essa

altura já deram pela nossa falta. Ele a lava e imediatamente

rijos despistam os anos que virão. Ela o envolve

cuidadosamente, lava em movimentos circulares, serpente,

não nos separaremos jamais, dois bichinhos enrodilhados, e

o beijo é quase uma pergunta, em que dialeto? Os pais deles,

os irmãos, jamais permitiriam.

A medida que não ignora e mais e mais se conscientiza,

enlouquecida, firme e cuidadosa. Aí está a retribuição. Ninfa

lavada, deusa, mãe e irmã mais velha, mulher inflamada e

úmida, impetuosa e santa, pensa Andrei ao discernir e juntar

as palavras do outro lado da parede, palavras que servem de

trilha, assim, a pé erguida, o pé crispado na borda, assim

poderá ele consumar mesmo em pé como ficaram, o que se

Page 298: LISBOA AGOSTO DE 1988

costuma acreditar difícil. Mas ele pode, é tão menino, corre

ao vento e como fauno arremata. Não importa se nos

acharem, teremos isso para sempre. Os lábios se juntam de

novo. São arrebatados à janela, saem à rua, cavaleiros do ar,

mariposas em torno da lâmpada do poste.

O sino badalou na noite. Sagraria a noite enquanto

vibrasse.

A cabine. Querido! Elo inquebrantável, Nastácia e eu

nos encontraríamos ainda naquela madrugada. Quem sou? A

que me agarro? Ao sexo ou à mulher no nível mais simples de

consolo? Ainda guardo alguma coisa do jovem audacioso e

inteligente de um tempo ao qual minha própria memória se

recusa? De repente a possibilidade do telefonema chegou

como tábua no oceano. Os detalhes entre mim e ela, os

detalhes mais sutis de nosso relacionamento e as coisas por

demais óbvias, seu ciúme grosseiro e a generosa devoção,

surgem sempre assim, do nada, como esse telefone. Meu

desejo e minha ira em relação à menina rica arrancada da

dissimulação para a rua explicita onde temeroso eu me

locomovia. Sua frieza em momentos cruciais e a labareda de

sua paixão. Nada mais podia me surpreender e as tantas

coisas sensualmente previsíveis se haviam tornado tão

fundamentais, não para aquele jovem mas ao menos para

mim, o homem de quem ele se retirou.

Som forte de chuva. Mulher tu não sabes! Risadas altas.

Nastácia está falando. Vou ter que caminhar até a pensão

debaixo dágua. Poderia pedir boléia, argumentou a amiga.

Não pegaria bem.

Ai que esse brasileiro já é uma doença, mulher!

Page 299: LISBOA AGOSTO DE 1988

Pode ser, mas que sintomas!

Nastácia é menos infeliz do que eu. Encontra animo

apara viver mesmo nessas condições. Já deixara o pub, ligou

avisando. Posso vê-la dançando sob a chuva, cantarolando,

vindo para a pensão.

Janela. Sereias. De que baile voltam? Ali. Nastácia.

Agora ao menos não era mais um adultério. Blandine sim.

Foi. Doideira.

Assim, sobre a suave aspereza do cobertor, as mãos

dela, ágeis e ardorosas, enganam o ser cansado.

Em sua roupa batida, por algum milagre não cheirando

mal – cheirando dele. Por algum milagre e pela bondade de

funcionários do comércio que permitiam os banheiros e pela

dona da pensão que deixou que usasse a máquina e o varal.

Vou abrir uma exceção. Quando Nastácia souber, vai dar

problema. Mas é uma senhora! Quase idosa... Aproveita a

cabine. Estou ligando, Mario, para dizer que entreguei a

encomenda de Isabelle.

Ah, e você imagina que ela não sabe?

Eles irão lá, a Paris, parece, mês que vem. Depois de

desligar, levou com a recepcionista uns papos mais leves,

mas por mais agradáveis que sejam, no final ela dirá um por

demais respeitoso “senhor” e isso o deixará de novo

arrasado. Quase lhe falou do livro, que coisa mais sem

sentido teria sido. Ou não.

Meu Outro flutuava nas folhas por sobre os fios do

Page 300: LISBOA AGOSTO DE 1988

bonde quando Nastácia entrou. Das folhas se concluía

qualquer coisa. A ordem do universo ou o contrário, a

importância ou não da revolução. O verde quase negro,

cintilante em branco. Planos secundários. Nada é discernível,

tudo faz parte. Noite estranha. Tomei seu corpo molhado.

Como se calará se eu não a beijar? Cala-se. Bebe de mim

como se ainda houvesse o que. Senti tanta saudade, querido!

Anda, vai. Agora. As mulheres vivem em chamas. Elas sabem

o caminho.

Aqueles mesmos fios de cobre, grosseiros, quase

encostados à janela. Tempo de olhar o teto também, o

tempo. Ela está linda assim, toda produzida. Está feliz. Ah,

amor, pensei que não fosse mais te ver, nunca mais! O que

fiz de minha vida? A primavera parte. Não serei resgatado. O

papa e o bispo excomungado, os governos e os

revolucionários, a rua e a casa luxuosa, o escritor e o editor,

há vinte anos e sabe Deus há quanto tempo, tudo no fundo é

a mesma coisa, os opostos se reconhecem como dois

conhecidos que perdidos na noite se reencontram.

Os dias passavam. Agosto chega e nada muda. Estamos

de novo juntos na pensão. Recomeçamos a vida em comum

mas com divisão de bens. Trabalhava no livro e nos afazeres

domésticos. Quase não ligava quando me chamavam de

chulo. Ele está estranho, estou a me preocupar, está tudo

bem, amor? Sim, claro. Exceto, pensava, essa sensação. O

fascínio da luz mais enganosa chegando com as

transformações atmosféricas.

Costumava dormir oito da noite, acordava à meia-noite.

Page 301: LISBOA AGOSTO DE 1988

Acordava, me arrumava e ia buscar Nastácia. E quando

voltamos e você logo adormece, lá pelas quatro da manhã,

me refugio na varanda.

Escrevo. Escrevo vorazmente pelo direito de escrever a

palavra Fim. Como se houvesse um sentido. Escrevo na

pensão, após a varanda, traído pela memória, pela sanidade

e pelo instinto de sobrevivência. Escrevo. Na madrugada em

que Nastácia dorme ou naquela em que a levo ao pub ao

longo da Avenida Liberdade, nos bares do parque até

fecharem, na volta da avenida no inicio da noite ou

esperando à saída, indo e vindo pela via esvaziada que se

sublima.

De quando em vez ia ao cinema, claro, esperando não

sei o que da sessão, talvez algo como a de Madri, para Julia

voltar a ser Julia e me esquecer de Trieste pelo reencontro.

Putana! Vê como o meu italiano está ótimo! Ela acaso

pensava que ele não percebera?

Um dia, na saída de uma das salas do Quarteto, um

significado. Sons de sino numa cidade católica enquanto a

vida circunstante passa em silencio na travessa da Gloria,

onde Nastácia um dia dissera Essa não tem chulo, entrei no

sebo. Não deveria estar aberto mas estava. Entrei. Crime e

Castigo num exemplar italiano. Pelas fortes implicações que

trazia, comprei o livro e voltei pelo longo caminho até a

pensão, quase feliz.

Mártires. Praça Luis de Camões. Rua das Flores. Cada

lugar retém um pouco de si mesmo. Hesita naturalmente em

Page 302: LISBOA AGOSTO DE 1988

seus passos, difícil sobreviver à certeza de que não há mais

muito que faça a vida indispensável. O suor faz com que

tenha a sensação de um calor que de fato não. Uma ou outra

rua parece pertencer a um sentimento de paz que não

prevalece. Aqui e ali a manifestação do vento é mais

perceptível, talvez escute alguma palavra no sopro em seu

corpo, nas partes desnudas é quase um toque de seu tempo

de vida. Caminhar assim na madrugada, quando a cidade

dorme, induz à noção enganosa de que existe silêncio no

mundo, leva a pensar que é possível ser só e estar bem.

Talvez fosse o momento; não podia esperar que algum

relógio no centro da praça o indicasse, e todavia será assim

visível, caso houver uma verificação séria por parte do que

resta de sua liberdade. Não se escuta ao redor nada que não

foi devidamente composto e todavia tudo o que vier a partir

de agora estará ligado à maquina, a ela se prestará o tributo

da existência. Travessa dos Fiéis de Deus. O século é uma

rua fora do percurso.

Nessa noite, seu rosto no espelho da penteadeira,

Nastácia se perguntou o que fazia num relacionamento que

da fidelidade de antemão havia prescindido. Não se incluía

no rol das mulheres que se conformam em estar com um

homem dividido, que ama outra, que toleram a relação assim

maculada. No inicio, quando soube de Blandine, pensou que

fosse apenas uma forma de ele se defender da existência de

Franco. Na verdade, quando soube, pouco se lhe dera. Ele,

Andrei, era apenas uma aventura, como os outros.

Surpreendeu-se quando ao charme da sedução se aliou uma

pompa insólita no desejo. Bem sabia que ele não consagrava

os momentos posteriores de que ela tanto carecia. Se a

Page 303: LISBOA AGOSTO DE 1988

principio nem se dava ao trabalho de pensar no assunto,

incentivada pelo espírito de fuga, mais tarde, ao se despojar

dos outros amantes, abriu largos espaços em seu tempo para

o até então desdenhado pensamento reflexivo, constatou

que a coragem para um rompimento é sempre cara. Sofria

por ter se dado esse direito para crescimento. Olhou mais e

fundamente. De seus olhos castanhos, a lâmpada, mel,

escorria pelo quarto. Talvez verdadeiramente o amasse e

dele precisasse para ser feliz, e aí Blandine passou a ser

ameaça àquela felicidade. Então Nastácia dormiu pensando

que, a partir do dia seguinte, seria a mais amável das

mulheres. Controlaria seu gênio, seu ciúme, até seu desejo.

Tentaria descobrir onde havia no sentimento dele a mágoa

de Blandine e se superaria para agir do modo mais diverso.

Mas não se mostrará subserviente. Não se deixará

envolver por suas emoções. Esse tipo de coisa – essas

pequenas determinações – são sempre eficientes mas pouco

perduram, pensou Andrei caminhando pela avenida. Queria

paz com Nastácia, era o que ainda restava. E ela estava

realmente disposta. Iria encarar seus defeitos, seria positiva,

otimista, alegre.

Conseguirá um outro emprego.

Devotar-se-á. Por amor dele e dela mesma, que teria

assim ao lado o seu homem, inteiro. Parará de se comparar

com outras mulheres: aquela é mais magra, aquela tem um

bom salário num trabalho pouco desgastante, aquela é livre.

Agora ele pensa que ela dorme.

Ao amanhecer, com a camiseta rosa e o par de tênis

novo, daria sozinha uma boa caminhada até a empresa

daquela Cíntia, que na noite anterior fora no pub flagrar o

marido. Assistente da presidência do instituto, cargo que ele

até ali ocupara sem qualquer interesse além do salário e das

Page 304: LISBOA AGOSTO DE 1988

secretárias do sogro. Claro que Nastácia era capaz! E claro

que aceitava, obrigado, obrigado, feliz como uma criança

feliz. Te espero então amanhã, disse Cíntia, em meio ao

abraço mais sincero. Maldição não mais haveria que pudesse

impedi-la de libertando-se transformar a sua numa vida

satisfeita e útil, honesta. O mundo era belo e da beleza do

mundo ela se impregnou. Dormiu na paz que por toda a vida

em lugares errados procurara.

Quando Nastácia adormeceu naquele dia, não fui para a

varanda fumar. Recostei, cabelos roçando minha barriga, e

abri o livro ao acaso. Ah se no início conhecêssemos o fim!

Mas se existe mesmo esse destino amaldiçoado, que seja

pelo menos um mesmo destino.

Não sabia por que a procurara mas agora estava

convicta de ter sido uma decisão acertada. A compreensão

apazigua. Me perdoe. Olha. Tens a menina. É, tenho. Sorri

pela primeira vez desde que chegou a Portugal ao olhar

Bruna no quintal atrás dos pombos.

Assim se passaram os dias.

Aliás, como aceitara a situação? Me diz, Filomena.

O que havia para dizer? Simplesmente se apaixonara.

Mas um dia não há mais como conciliar a paixão com um

mínimo de – Dignidade? Enfim, não sabia. Mas o amor está

Page 305: LISBOA AGOSTO DE 1988

aqui (segurou o peito com um puxão anterior da blusa), em

mim, intacto. (Queria que sim, pensou). Não nesse miserável

com quem casaste, como pôde, como eu pude?

Me sujeitar a tal papel.

O mesmo amor, integro, que darei a um homem que o

mereça. Nunca mais pensaria assim. Ah se o Bernardo

estivesse aqui! Essa certeza marca o começo de uma nova

vida, em liberdade.

Blandine sabia do que estavam falando aquelas

palavras roufenhas e lusitanas.

Quando aproximou seu rosto do rosto dela, não sentia

no rosto o familiar alento. Um calafrio. Um vácuo. Como

podia? Jamais a levou a sério quando Nastácia dizia sofrer do

coração, ela era por demais hipocondríaca. É claro que seu

coração sofre, por me amar. E ela sorria em silêncio, porta

que ligeiramente se abre e volta a se fechar sem que

ninguém entre por ela.

Segue-se o ritual. Chama por ela, sente-lhe o pulso,

busca o calor.

Fim do ritual.

Sua transitoriedade transforma-se em imortalidade.

Descanse, então. Que o hades seja um lugar melhor.

Soube na recepção do hotel de Lisboa que ele deixara o

estabelecimento no mesmo dia em que saíram juntos. Foi ao

Palácio Foz, à Universidade, à Fundação, a todos os lugares

mencionados desde que se encontraram na sala de TV até

Page 306: LISBOA AGOSTO DE 1988

Octavio Bernardo aparecer no aeroporto. Nada.

Haxixe: na policia, também, nada sabiam. Mas ficaram

com o telefone dela, o do hotel, para o caso de alguma

novidade. A ida ao consulado também não deu resultado

qualquer. Ele não havia se inscrito ao chegar, oficialmente

sequer estava lá. E ela? Estava com a situação regularizada?

Blandine empurrou o funcionário, que fosse à merda, e saiu.

Começou a se desesperar.

Chegara de Trieste, via Milão, pela manhã. Quando

decidiu vir a Lisboa, não pretendia abandonar o marido.

Havia justificado a necessidade da viagem: não era justo que

Andrei não soubesse acerca de Bruna. Estava certa de que

Octavio compreenderia.

Estava errada.

Agora não era mais só pela filha, estava ali por si

mesma. Não podia mais viver longe do homem que tal

sentimento desencadeara, o sofrimento de uma paixão é

assim. Ou termina por encontrar uma solução acomodada ou

transtorna a ponto de qualquer loucura.

– Que coisa mais dramática e ridícula, minha querida

esposa! Ainda está muito por dizer? Portanto, estou a me

reportar a isso mas acho que você sempre foi assim,

dramática e patética.

Não podia tampouco viver longe do país em que

aprendera a força da vida segundo o trabalho, da roça onde

aprendera esse trabalho, não era vida aquela sucessão de

pequenos incidentes de um conforto baixio.

Octavio não imagina que ela terá essa coragem.

Menospreza o acaso e o sinal de alerta só se acende quando

Page 307: LISBOA AGOSTO DE 1988

Michel vai visitá-lo no escritório.

Que importava agora?

Andrei não falara com ela depois do aeroporto, Blandine

não entende. Negócios ilícitos?

Ora, que ela não o aborrecesse mais. Aliás, fique

mesmo bem quietinha e arrume logo tuas coisas. Mas saiba.

Se o denunciasse nem terá tempo de se arrepender.

Não era nada daquilo, disse ela. Se me ama, se ama a

menina, nada vai mudar. Não me importam seus negócios?

Imagino que não, se tiver a cidadania e todas as suas

vantagens. Ele quase acreditava realmente que não. E se

calhar nem a Filomena importa. Ó pá que rapariga

compreensiva!

Blandine não sabe do que ele está falando.

O olhar de Octavio Bernardo alcança aquela dimensão

em que amor ou ódio inexistem. Ali só o gelo do ego habita.

Estou a ver. Era mesmo muito cínica!

Súbito ela caiu em si. Viu-se sufocada por todo tipo de

pensamento amargo. Junta as ultimas forças para concluir.

Você está fora de si. Como ela própria estivera. O mais

severo dos julgamentos.

Estava fora de si, responde ele, quando não percebeu

que ela apenas o usara para ter uma vida confortável na

Europa. Sua puta. Sim, e é verdade o que esse idiota contou

– quando ele ligara?

Blandine está próxima da janela. Há faíscas no céu de

Trieste, venta muito como sempre na superfície do mar, é

possível que neve, mais hoje mais amanhã, a terra sofre os

efeitos da raça humana, nota-se pelos efeitos nas estações.

Há faíscas por sobre o casario e chamas no horizonte. O

Page 308: LISBOA AGOSTO DE 1988

momento em que se desiste de apagar o incêndio.

Ele não telefonou.

Não mesmo? E o próprio Octavio conta com detalhes

sobre Filomena e seus negócios em Portugal e na Espanha,

porque em certos momentos mesmo o pior mentiroso sente

uma necessidade irresistível de se livrar do nojo da mentira.

Aliás, negócios que salvaram a vida do brasileiro e agora ele

cospe no prato e trai um amigo. E por causa de uma putinha

negra! Se merecem! Mas e daí? Mal sabe que lhe fez um

favor, Octavio estava mesmo a querer sair de Trieste, a

situação na Iugoslávia ia piorar, na Itália mesmo, permanecer

ali seria um atraso de vida. Ia para Londres e quando tivesse

se instalado buscaria Filomena e o filho deles, até nisso ela

era superior a Blandine, me deu um filho macho! Bruna não

pode mesmo ser filha dele. Ah, vagabunda, precisava mesmo

de toda aquela historia de “intuição paterna”? Estúpida!

Agora some! Octavio Bernardo sai, dizendo que quando

voltasse não queria mais vê-la por ali.

Em Lisboa, antes de procurar Andrei, ela vai para o

quarto de hotel. Está exausta. A menina ressona. Deita-a e

fecha as cortinas, depois deita ela própria. Fecha os olhos.

Todas as coisas que apenas são, nem boas nem más por si

sós, tudo o que apenas é, nem bem nem mal em si mesmo –

estão, está – em suas mãos tremulas de humanidade. Muitos

anos depois ainda lembrará com clareza daqueles momentos.

Os traços de Andrei desenhados pelo seu cansaço pairam no

quarto, são os traços, não sei, é como se fossem um resumo

da humanidade e assim de sua doença. O que sei é que ele é.

Mecanismo de um fado básico. Angustiada imerge no

silencio, louvor da solidão, beijo tornado saudade.

Page 309: LISBOA AGOSTO DE 1988

Adormecendo.

Branco luminoso de um cenário – rebanhos, montes,

cheiro branco de brilho intenso.

Três horas da madrugada. A noite se dispersa.

Recordações. Está isolada do mundo por um véu suspenso

pelos anjos da memória. E súbito, de novo, o vermelho em

meio às folhas misturado ao perfume dos campos.

Permaneceremos aqui após partimos, como folhas secas,

escurecidas, que se partem no solo. Havia alcançado aquela

atmosfera em que amor e ódio não existem mais, apenas a

fraqueza humana. Vira-se de lado, de frente para a lua que

se insinua pela fresta da janela e entra no seu propósito de

procurá-lo aqui e ali e quem sabe. Enfim. O tempo convém

aos corações transpassados pelas ultimas lanças de um reino

destruído. Acontecera, apenas. Seu velho pai e aquela idéia

tão típica, rapaz, você precisa de uns tempos na roça. O que

o senhor Jean realmente pretendia? Esse canto parece sim,

nana neném, o boi da cara preta mas estilizado, por assim

dizer. Ele precisava de alguém como ela e ela estava ali.

Simples assim. E agora. O peso da cabeça afunda o

travesseiro.

Houve então o silencio pleno que liga um dia ao outro.

Desci as escadas com os olhos ardendo por ter chorado

tudo. Bati a porta da dona da pensão, bati, bati. Não

atenderam.

Sai sem destino pelas ruas de Lisboa.

Ao atravessar a praça da igreja, ali estava ele, armado

pela coincidência. Não o reconheci a principio, de terno e

Page 310: LISBOA AGOSTO DE 1988

gravata, junto a dois outros sujeitos igualmente elegantes.

Vendo os rapazes assim bem apessoados, veio-me a velha

vontade de ser assim, normal, próspero, feliz, opressor.

Pedi fogo.

Mas claro. Eu era um gajo queimado. Dias de sorte ele

estava a ter.

Para Antonio foi fácil reconhecê-lo, pela barba e a

jaqueta preta de sempre. Ao sinal, os dois outros o

agarraram e levaram para o beco. Um dava pontapés; o

outro, socos no ouvido.

Afinal ele não iria ter a chance de saber se era eficaz a

receita de Blandine, dissolver camomila em óleo de cozinha,

coar e pingar umas duas gotas – É um antiinflamatório

natural. Para os males do tratamento anterior com

antibióticos, própolis e muito sol antes das nove e depois das

três. E abusar de iogurte. Tudo bem. Agora tudo ficou claro,

como uma pequena distancia faz com os quadros de uma

exposição. Esse é um pensamento fugaz. Ficam muitas

outras coisas. Você não tem ciúmes de mim? Nastácia me

perguntou isso quando se tornou óbvio que eu sabia de seus

casos. Acho que também uma vez em sonho. Me passou esse

sonho pela cabeça quando percebi que estava morta. Por

isso talvez agora considero. Salvou nosso relacionamento

com ela o fato de ter tantos amantes e não estar Franco

entre eles. Esse homem... se aproxima... Mas não. Mesmo

que. Não há esperança. Está partindo, como ela partiu.

Ah, realmente eu não teria suportado se ela, Nastácia,

minha mãe, dormisse com seu marido, o rival insuportável

contra quem não se pode lutar. Fosse o casamento de

Nastácia convencional, eu não teria suportado; por mais

conveniência que houvesse, seria um relacionamento

condenado. Agora se fortalecerá. Ela fora abandonada, como

Page 311: LISBOA AGOSTO DE 1988

eu próprio. A dependência se desfizera. Éramos ela e eu

enfim, com tudo de bom e mau que pudesse isso ter. Amor,

me perdoe.

O que, Nastácia?

Demorara demais a perceber, disse ela, o quanto

precisava de mim, de mim mais do que do dinheiro, e do

dinheiro menos do que imaginava.

Não faz mal, querida amiga. Não faz mais diferença

agora.

Antonio está mandando que me soltem, é o que faz. Não

sei em que sentido pode ser, como ele está dizendo, um

“assunto pessoal”. Tira a gravata e o paletó, puxa o canivete

e determina um outro para mim quando digo que estou sem

o estilete. Não sei que expectativa deva ser satisfeita. Não

quero machucar pessoas e já há uma lâmina gelada em meu

coração. Arremeto ao braço armado. A morte nos gumes

refletida. Bach. São Mateus. Questão de segundos.

Sentiu o golpe. Deve desabar. O calor é insuportável.

Tem febre. E esse impacto.

Eu andava resfolegando só de subir os andares da

pensão, de fazer amor com Nastácia. Este joelho em meu

estômago. O que afinal está dizendo, aos gritos? – os esses e

cês juntos chiam como um fogo que crepita; quase diriam

que ecoam desde longe. Este rasgo nas costelas.

Naturalmente. É sangue. O que resta de minha energia se

dissipa nas sombras.

O sino vibrava e por um pouco de tempo ainda vibraria –

badalar de novo, jamais. Eu me transformara em algo diverso

de homem. Quem eu era? O quê? A expressão pura, o afeto

Page 312: LISBOA AGOSTO DE 1988

de estranhos, a vida futura, a posteridade, o crescimento

espiritual, o amor, o dever, a missão, os sonhos – o sangue

que salpica o caderno diz mais do que qualquer palavra

escrita.

E todavia um livro.

Do galinheiro, Blandine escutou o pranto de Bruna.

Correu, atravessou a horta, chegou ao lugar onde a menina

estava. Mamãe, se Deus realmente ouvisse as orações, o

gatinho não teria morrido. A menina rezara por ele a noite

inteira. Deus deve ter coisas mais importantes com que se

preocupar. A mãe sentiu o choque. Novamente o corpo. Viva

de novo. Nem tentaria entender. Fechou os olhos. Debruçada

sobre o animalzinho, diz à filha que traga leite pois o gatinho

estava vivo. Bruna obedece, tremula de expectativa.

Blandine usufrui o momento de tornar a presenciar os

acontecimentos.

Gritinhos de alegria. Mami! ele tá bebendo! Blandine

agora deve voltar ao trabalho. A chuva parara. Ainda bem,

diz a criança, a umidade é ruim pro gatinho doente.

O mendigo faz sinais. O guarda se limita a olhar. O

homem atravessa; há firmeza nos passos andrajosos. Fala

com o policial.

Ali, nos fundos do prédio. Sim. Lá estava, realmente. O

corpo ensangüentado.

Page 313: LISBOA AGOSTO DE 1988

Logo as sirenes. Aumentam. De todos os lados. Os

carros da televisão chegam ao local da tragédia.

Aqui, aqui! Que horas são? Amanhecia. O vento sopra

em direção ao sul.

Como assim, Não venham para a Baixa? E que caminho

vou tomar? O rio. É como se daí, dessas águas e de suas

cintilações, o universo se refletisse, como se o mundo

surgisse feito um rosto no espelho enquanto amanhece. Uma

mulher acena, parece que. Ah. Mas quem quer falar comigo?

Oh meu Deus. Que horror... Alguém deveria prever. E Tavira.

Ei, o que é isso, está louco? Outro carro passa também numa

manobra arriscada. Depois, mais bombeiros.

Ah se você soubesse, se ela soubesse – ele dizia– o

quanto ele a amava e o quanto a vida passara a valer a pena

desde quando a conheceu. Isabelle sabia, ela sentia o

mesmo, nunca acreditei que isso pudesse acontecer, e a pura

verdade é que estavam mesmo mais e mais apaixonados

cada dia. Mas agora ela está triste por causa de sua mãe,

uma mulher tão bacana, generosa, mas não tinha mesmo

sorte no amor, sempre atrás de relacionamentos impossíveis.

Mario pára e pensa em dizer alguma coisa mas não diz nada,

é o tipo do assunto, melhor não fazer comentários. E como

sempre acontecia depois desses silêncios, eles se beijaram e

de tudo se esqueceram. Talvez, mesmo se estivessem

atentos à TV, mesmo se escutassem o pronunciamento de

Jacques Delors, não teriam pensado no amigo, relacionando-

o às dramáticas circunstâncias vividas hoje pela população

de Lisboa.

Page 314: LISBOA AGOSTO DE 1988

O fogo se reanima e se alastra ao fundo da rua Garret.

A fumaça tóxica se concentra agora na zona do Camões. O

senhor tem todos os seus haveres ali, muitos milhares de

contos incinerados. Uma mulher liga para sua casa, fala com

sua esposa. Está lá? Quem? A neta deles não vivia ali com um

brasileiro? Do outro lado, um homem segura o pulso de sua

esposa. Mulher, não sabemos. Sim sabemos. Querida. Deixe-

me. E se soltando torna a falar. Senhora, por favor – O

homem se afasta da mulher ao telefone e deita-se de roupas,

num instante estará quase dormindo, acordaram muito cedo,

como já não costumavam acordar desde que se mudaram

para Póvoa. Como havia dito, a neta morava por ali com um

brasileiro. Portanto os avós não sabiam da morte de

Nastácia, talvez o filho quisesse poupá-los e quem poderia

imaginar? Em Luanda, seus pais ainda não foram informados.

Fique tranqüila minha senhora, disse a mulher de Lisboa, e

assegurou que retornaria a ligação. Chegarão depressa à

altura própria de dizer que não houve vítimas, o fogo está

circunscrito a uma região comercial.

O cenário é dantesco, mas isso é tudo.

Um homem pára agora e se inclina no miradouro, um

desejo perplexo. Lá embaixo o bombeiro vai entrar por uma

janela, sente a água das mangueiras como uma garoa.

Parece que o vento está mudando. Súbito a cinza que

pairava é varrida em rodamoinhos. Decerto havia muito

plástico por aqui. Precisa ser rápido e preciso, é tarde para

pensar que não devia ter se metido numa profissão dessas.

Olha para fora e vê seus camaradas, não pode esquecer o

rosto de seu melhor amigo, destruído minutos antes pela

explosão do computador. Minhas mãos estão tremendo.

Page 315: LISBOA AGOSTO DE 1988

O homem no miradouro vê que o bombeiro já entrou,

imagina como conseguirá respirar naquele inferno e o que

exatamente foi fazer lá dentro. Impossível não comparar

aquilo com sua própria vida. Jamais deveria ter se

aproximado daquela mulher, bem que o avisaram sobre

essas mulheres de pub. Cíntia inclina um pouco o pescoço

para ver pela janela do carro. Lembra de imediato de

Nastácia, ela não morava aqui perto? Não consegue ter

certeza. Agora não ficará descansada enquanto a amiga não

chegar para acertarem as coisas do emprego.

Alguém nas imediações começa a tossir, sem dúvida

efeito da fumaça que demarca a área com clareza. Dá para

ouvir a tosse de dentro da sala da pensão onde a mulher fala

ao telefone. Aquele rapaz não veio para cá, aquele que teu

marido hospedou uma época lá na casa de vocês em Piumhi?

Pela expressão que faz a resposta deve ter sido positiva,

seguida naturalmente de algum comentário sobre o rapaz ao

que a mulher aqui replica Ah, as pessoas aí no Brasil se

iludem, a situação em Portugal não é assim, sobretudo em

relação a emprego, até dentistas já começam a sofrer a

concorrência local. Há até mulheres que chegam aqui e na

Espanha e acabam, sim eu sei que acontece em toda parte

mas aqui está a– A fumaça entra com maior intensidade, o

homem tosse mais alto e ao desligar o telefone a mulher vai

à janela e fecha a fresta que ainda havia.

O homem vê a mulher com o pescoço inclinado, avalia o

quanto é bonita e acredita se lembrar dela no pub na noite

anterior. Mas parece uma mulher tão fina, não é possível que

trabalhe ali, um ambiente no mínimo tão masculino. Pensa

em segui-la mas será loucura, então permanece ali parado

enquanto o motorista vira no sentido da avenida. Quando

passam, escuta a voz dela, é contralto, combina com ela, mas

parece que fala de uma outra dimensão, diz para o homem

Page 316: LISBOA AGOSTO DE 1988

que está dirigindo que ele não se preocupar, tudo vai ficar

bem, eu mesma tratarei de tudo. Lá fora o fogo crepita ao

fundo da chegada teatralmente ruidosa de mais um carro dos

bombeiros que passa pesado ao lado dele, no sentido do

próprio fogo, ao sul do elevador de Santa Justa.

Focos de fumaça súbito ressurgem de novo em

labaredas.

Um outro homem pergunta a si mesmo se haveria uma

causa para tal efeito olhando o caminho dos canhões de

água. Ele acordou com o prédio ruindo sobre si, quem sabe

resolveu pegar alguma coisa na loja. Que loucura. Poderia ter

perdido a vida, poderia ser hoje a principal notícia para esse

homem agitado a segurar o cabo do microfone em que fala.

Mas de sua mulher não escaparia, a ira de uma mulher

ciumenta é mais voraz que o fogo devorador.

Calma, calma. A mocinha conforta a senhora, passando

a mão pelos cabelos dela. Minha filha o que será de mim?

Sua loja estava a arder.

Deixem-me passar, gritou o homem com a cabeça para

fora do carro. Imagens que ficarão para sempre na memória.

Pessoas. Se faz favor. Agüente firme, já vai chegar ajuda.

Outra explosão. Poderá ser gás ou um aparelho de ar

condicionado. Na pensão o telefone não pára. Não, ele ainda

não voltou, deve chegar logo. De nada. Na verdade, a

proprietária não sabe a que horas voltará, nem mesmo se

tinha saído. Repete-se, enfadada. Não, não está. Era o editor

do jornal brasileiro que, armado de oferta inescusável,

precisava de alguém que cobrisse a catástrofe. Ele não está,

sim, darei o recado.

Resmungando, a mulher. Diante da TV. Na tela, o fogo.

O número não pára de dar ocupado. Maria das Dores

Page 317: LISBOA AGOSTO DE 1988

teria uma oferta irrecusável, caso tivessem atendido. Afinal

não é tão grave, há montes de jornalistas por aqui,

brasileiros também, e conhecidos; cobrarão mais, é claro,

mas é um momento único, vale a pena.

Maquete. Talcos.

O vigia. O policial. O bombeiro em chamas. O repórter.

O homem que se esvai em sangue. A avó desesperada. A

amiga. A fumaça aumentou muito e há pouco as chamas

tornaram a lavrar no primeiro quarteirão à esquerda. Quais

as informações ali da zona?

Os prédios cospem labaredas, o rio ao fundo. No canto

obscuro há gemidos. Um ardor imenso e ruidoso. Que

cenário!

Enquanto ainda há chamas no cruzamento da rua do

Carmo e da rua Garret, Michel toma o vagão da Northern Line

lá em Finchley. Está mesmo disposto a entrar em contato

com a amiga que passara pelo processo de desintoxicação

dos Alcoólatras Anônimos, está disposto a qualquer coisa

para que Oleana se cure. Ela trabalha no Hospital Memorial,

é uma jovem bonita e ninguém pensaria em dizer que

passara um dia por semelhante drama. Michel agora entra na

avenida Kenver e pensa no que dirá a moça.

Claudia assiste o desfile em Muggio. A apresentadora

pede um aplauso para a modelo, é uma beleza de vestido de

noiva, meraviglioso diz a amiga, mas ela parece distante.

Houve a batida na rua, os homens discutiram. Os dois bem

apessoados, na verdade uma batida pequena, nem valia a

pena mas o mais jovem ofendeu o outro e nesse momento

ela os viu. Fugiu dali, nem sabe como. Seja como for, não a

veriam mais. Estava mesmo decidida, jamais teria sossego

Page 318: LISBOA AGOSTO DE 1988

nos lugares de sua adolescência ou em Milão. Recomeçaria

então a vida em Pádua, melhor em Roma. Quando terminou

de arrumar a sua mala naquela noite, ouviu a noticia. Então

pensou em Andrei pela ultima vez.

Como chegou a tanta amargura esse homem que dá a

impressão de ter sido outrora feliz? Bruna se pergunta por

que tanta dor, por que erra assim, sem amigos, por que não

tem descanso exceto talvez essas horas que passa no

cybercafé. Ao longo da noite, a mais antiga luz onde a

sabedoria ergueu seus muros em meio às trevas está para

ele proibida. Exceto talvez por Bruna. Pelo carinho que sente

por ela, que tanto o ajudou no comecinho, quando nada sabia

de internet. Tamanho bem que lhe deseja. Mas não

argumenta desse sentimento para alguma expectativa que

não há.

Além das seis horas na loja, de onde tira seu sustento,

ela trabalha como voluntária, o que em si não significa

necessariamente muito, mas se dedica, diante dela seu

bairro se abre, amplia seu lugar no mundo, sua roupa é

simples, está limpa, faz algo por alguém, vive a vida. E o

homem outrora feliz agora sangra, por assim dizer

esfarrapado – não tem proteção social, foi fatal perder seu

emprego numa época em que a juventude era o requisito

profissional mais importante, o qual ele não tinha mais. Na

verdade, não tinha tampouco outros requisitos: dera as

costas ao mundo, modo que encontrou para manter um

mínimo de sua integridade original. Dera as costas a tudo.

Trabalho, amor, família, e a segurança que daí advém. Ela

não entende nada disso.

Não entende nada disso. Precisa ganhar para comer e

Page 319: LISBOA AGOSTO DE 1988

dormir e poder ser útil. Estuda. E um lugar de estudo não é

lugar de ideologia mas de aprender um modo de ganhar o

seu sustento.

À filha de Nastácia basta conhecer alguém. Para isso

está todo o tempo na internet.

Bruna notava que o homem não ia ali para isso. Para

fazer amigos, mesmo virtuais, é preciso algo que igualmente

perdeu, o sentido de socialização. Escrevia num blog,

escrevia livros eletrônicos, comentava filmes e livros.

Enquanto ela escrevia seu diário (num caderno, por trás do

balcão, não em seu terminal), dava olhadas de relance e

imaginava o que poderia ele escrever, os tipos de filme de

que gostava, que livros costuma ler. Chega a comentar um

dia com Filomena sobre ele.

Quando se aprende a viver como ela, imagino, não se

pensa muito na vida.

Mas algo os une. Se o consumo é o fim de tudo hoje –

pensaram ambos em momentos diferentes ao observar as

reações de namorados, de cônjuges –, se o consumo e

aparência são determinantes, então o quê? Senhor, sou

homem cuja carne envelhece, mas Tu permaneces de

geração em geração. Converta-me. O sorriso dela meigo e

forte o acusa. Porque ama não tem tempo para amargura ou

Page 320: LISBOA AGOSTO DE 1988

ciúme, desvela-se como a brisa num dia de sol.

Ela nunca existiu na verdade. É um mito, Bruna. É esse

mesmo seu nome, ontem ouviu alguém dizer. O todo pela

parte. Cheia e forte, contornos forjados pelo trabalho

doméstico, talvez até na roça. E, como se faz como a massa

de pão, será posta na cama, coberta, para crescer. De noite

ele a cobrirá de novo, caso ela se descubra. Fica observando

como ela dorme, tão serena. A filha que não teve, a mulher

que fugiu. Nem a presença súbita do noivo para buscá-la o

desperta. Ela está ainda deitada, um ligeiro tremor nos olhos

fechados, depois vai até ele, que está lendo na sala, e lhe dá

um beijinho no rosto. Tem um copo de leite nas mãos,

pergunta se ele quer também.

Quantos anos terá, uns cinqüenta? Mais? Sabe-se que

tipo de homem é esse, dessa idade, que gosta de navegar na

internet. Mas, pensa Bruna, se tanto escreve, será um

escritor, um jornalista talvez? E tenho medo de quem

escreve, mais quanto melhor: há no escrever bem certa

magia que, mal usada, destrói a prática do que se escreve, o

bem e a beleza que deveria ser expressada.

Bruna o vê, a rua escurecida, o dia ofegante, os efeitos

da insônia. Ninguém à volta deles. Não, não há esperança.

Ele é a rua, o cansaço, o sono que não concilia; e ela, a loja, o

trabalho, a luz.

– Oi, como vai o senhor?

É como se os prédios realmente ardessem. O abismo

está ali, onde pode ser visto mas jamais descrito. Vale a

Page 321: LISBOA AGOSTO DE 1988

pena essa vida de eternidades perfeitas e inalcançáveis? As

chamas ardem no vazio, cenário transitório do que apenas

pode ser lembrado. Que esperança? Há algo de muito

estranho a seu redor mas ele mal pode perceber. Vai ficar

tudo bem, já está chegando ajuda.

Eram vinte para as cinco, quando o homem se deu

conta, era numa montra, num buraco, não por janela, pela

montra, tem essas montras corridas, o senhor sabe, e aquilo

era tipo duma turbina que estava a puxar o fumo para fora,

antes dessa hora não percebi nada, quem chamou os

bombeiros foi o polícia lá de serviço, mais ou menos cinco

para as cinco, mas os bombeiros só chegaram entre cinco e

um quarto e cinco e vinte. Quando lá chegaram o fogo já

estava em grandes proporções, os armazéns praticamente

destruídos. O inferno em directo. Aqui, aqui! Olhem!

A infância para a mulher que a tudo assiste petrificada;

o corpo para a jovem que apenas dá uma paradinha antes de

ir pegar a condução para o trabalho; os bens para o analista

econômico – o que, para o homem ensangüentado? Que

propriedades possui a proximidade do fim? – fim: não

esquecimento, mas possibilidades que perduram. Calma, vai

ficar tudo bem, repete o mendigo. O corpo, a infância, os

bens, e há de ser além disso alguma outra coisa que

apreendo agora, pensa, seu sangue empapando o partícipe

papel.

O que esse senhor está dizendo? Creio que o conheço;

pelo menos já o vi por aqui.

Não consegue articular palavra, quer perguntar o que é

Page 322: LISBOA AGOSTO DE 1988

essa claridade espantosa, esse aterrorizante brilho, esse

sangue, mas Não fale, diz o mendigo, o policial se agacha e

repete Não fale, a ambulância já vai chegar.

As chamas abrandam. Legam, do ardor inicial, faces

fantasmagóricas aos edifícios. Cadáveres de pedra. As

pessoas atingidas devem se dirigir às juntas de freguesia,

entrar em contato com a Câmara Municipal ou com a Casa de

Misericórdia de Lisboa. Podem eventualmente olhar para

trás.

O homem não faz idéia do que pode acontecer ainda.

Nada de nada, não vi o administrador, não vi ninguém, do

total eram quinhentos ou seiscentos empregados dos

armazéns, ninguém sabe o que será deles, mas pelo menos

ninguém morreu, quero dizer, aquele vigia parece que não

resistiu às queimaduras, e parece que aquele bombeiro, mas

enfim, é pouco pelo que poderia ter sido, como se a tragédia

pessoal fosse um mal menor, como se males pudessem ser

menores porque atingiram um número menor pessoas.

O rapaz saiu de casa e a chamou. Bruna, Bruna!

Pergunta se ela não gostaria de ir ao cinema depois do

trabalho. Tô cansada, mas ele é tão legal. Vamos deixar para

um outro dia, Bernardinho. É que hoje ela queria olhar uns

vídeos daquele incêndio que foram colocados na internet, a

rigor foi naquela época que nos conhecemos. Foi sim, ele riu.

Fica para outro dia então. Claro, outro dia a gente vai, na

semana que vem vou estar mais tranqüila. Então ela deu a

sua palavra, deu portanto o melhor de si.

Page 323: LISBOA AGOSTO DE 1988

Quem pode saber o que irá resultar daí? A pergunta tem

um tom de crítica. A voz se emaranha ao burburinho. A voz,

musica para os ouvidos dele. Estão muito próximos agora.

Olhos nos olhos, um na aura do outro.

Muito zangada, ela havia sentado na praça para se

acalmar. Foi no ano passado, quando veio pela primeira vez

sozinha. A situação econômica no Brasil está estabilizada,

não é mais tão comum imigrantes brasileiros. Por isso

Bernardinho achou que ela poderia ter voltado por causa

dele. Seria tão absurdo?

Não sei porque você ficou tão ofendida. Hoje somos nós

que estamos a procurar nova vida em novas terras, como na

Angola em reconstrução. Ela responde que detesta quando

as pessoas falam de si assim, “nós”, quando estão falando

de um povo, ela não é “nós”. Diz: E sequer sou brasileira. E

não dava a mínima para o contexto social ou político. E ele

não podia tê-la beijado daquele jeito. Até porque somos

quase como irmãos.

Ele nunca a tinha visto assim mas não se intimidou.

Irmãos que nada, ora essa. Ele era louco por ela, desde

sempre, era louco por Bruna. Fala sério, diz ela, foi muita

falta de sensibilidade tocar nesse assunto justamente

quando estávamos tendo uma tarde tão legal, depois de um

filme tão especial. Esse tipo de atitude, pensa ela, é que não

me deixa confiar em homem nenhum. Mas de súbito olhou

para ele e percebeu uma certa dignidade em seu semblante,

assim, meio por nada, como uma revelação. Admirada, sentiu

o calafrio. Ai não. Era só o que me faltava.

A moça no banco da praça tentando se acalmar. Será

Page 324: LISBOA AGOSTO DE 1988

possível? Fazer uma viagem dessas com semelhante

intenção? O rapaz se aproxima. Não, ela já não está tão

certa, pode ser que seja bom que se enamore dele. Se minha

vida é tão vazia, o que exatamente teria a perder? Começa a

compreender sua mãe.

Ao redor falam sobre o incêndio, há vinte anos, dá para

acreditar? O homem que disse isso bateu com o canudo de

jornal nas mãos. Ali era o coração da conversa política, da

noite deslumbrante em restaurantes da moda. Todos

concordam que um pouco da historia de Lisboa se deixou

consumir nas chamas. Ninguém faz idéia de um rapaz que

morou ali perto e foi esfaqueado naquela mesma madrugada.

Um outro disse O tempo é mesmo uma coisa louca, e

passou pela cabeça dele a imagem de um cavalo branco, indo

e indo, às vezes dando meia volta apenas para em seguida

continuar a ir, e continuou e disse Não dá tampouco para

acreditar que já se passaram quarenta anos desde 1968, e

para onde aquele cavalo estava indo não havia nada além de

memória, nada além de lembranças, e nada de certezas, e

nada de desculpas.

Bruna tinha as chaves da casa de Filomena em suas

mãos, Quando ela percebeu o homem, chegou a pensar que

a olhava, mas devia estar errada, é o que pensava quando

Bernardinho tocou o seu braço. Não fique assim, por favor,

ouça-me. E declara mais uma vez o seu amor. Por um

momento ela não entende o que ele diz porque está muito

distraída pensando na sorte dos desabrigados. Mas logo se

dá conta. Se deixar que esses braços a envolvam, não terá

mais como escapar. As chaves ecoam do chão.

Page 325: LISBOA AGOSTO DE 1988

Na mochila não há documentos. Só cadernos e blocos

de notas: poemas, artigos, crônicas, diário e até o esboço de

um romance, manuscrito – incenso em um holocausto.

Chamada.

Esses estranhos mecanismos com que se reverte a

existência, pensou. Conhece Claudia e termina por se decidir,

acredita que realmente foi ali, ao se tornarem amigas, por se

convencer de que é necessário. Irá então ao Porto, não que

fizesse algum sentido mas talvez possa entender, sabe lá,

talvez aprender e se preparar. Mecanismos. Livros, filmes,

peças, músicas. Vida revivificada. Blandine assina os

documentos, fica com os pertences e sai do prédio.

– Você é a Filomena!

Passou duas semanas no Porto. Tornam-se amigas,

confidentes. Coisas assim acontecem. Talvez o

relacionamento de antemão condenado dê certo justamente

por essa expectativa. É verdade, disse Blandine, no tilintar

do almoço. Louça, pano, pés no assoalho e trânsito lá fora no

sentido de Lisboa. Foi Filomena quem indicou o amigo de seu

pai, dono de uma gráfica.

Vinte anos depois, coisas ainda são acrescentadas.

Bruna digita entre um cliente e outro.

Page 326: LISBOA AGOSTO DE 1988

Então um dia Blandine acompanhou o trânsito. Adeus!

Tchau, adeus! Fica com Deus!

Lisboa, as velhas casas de Alfama. Quase sem desvio se

chega à Costa do Sol. Blandine diz adeus em uma nota no

caderno.

No táxi para o cais. Confusa. O que realmente sentia? O

que entendia? O Tejo passa do lado esquerdo, se confunde

com a bruma, retira contornos, perde-se na transitoriedade

do motor e em sua pele o ar frio murmura – Quem é você?

Até onde é possível retornar às origens além da imagem do

senhor Jean levando chá quando ela estava acamada? até

onde a esperança poderia ter ido além da casinha com um

Andrei quase idoso mas ainda viril, doce mas de

imprevisíveis rompantes. Desperta. O taxista. Não cintila

mais, perde-se com o navio (ou a ponte ou que miragem) que

ficou para trás no caminho, adiante estará o seu, esperando.

Bruna, as mãozinhas de Bruna, desde quando mesmo seu

coração deixou de se apertar em seu peito, a partir de que

momento a morte de Andrei ou o fato de não ter sido

enterrado deixou de fragilizá-la ou seria melhor dizer

fortalecê-la para a fraqueza, ou quem sabe fortalecê-la

apenas – enfim, desde quando sobrevivia apenas, sem

atributos? O livro a ajudaria, estava cansada. O leitor – a

consciência de leitores, saber que existirão – a completaria.

Como se fosse um reflexo à luz da tarde nas águas do Tejo,

como se fosse a manhã no espelho fazendo surgir o seu

rosto. Agora descansaria, descansaria em casa. Os passos

saem com o bater da porta do carro.

Page 327: LISBOA AGOSTO DE 1988

O velho navio, reconfortante visão. Um carimbo.

Obrigado, senhorita.

Escreve a ultima anotação européia. Uma força além

dela continuará escrevendo por meio dela as palavras que se

escrevem a si mesmas.

Não se trata de talento, nem de posteridade. Morreria

se não escrevesse – ou, pelo menos, poderia morrer. Terá a

ver com resistir esse existir anônimo que depende das coisas

públicas? de privação e dor? Mal me lembro, se me lembro,

do que vivi. Agora há o silêncio, ou poderia dizer a essência

do vazio. Opõe-se a qualquer coisa ligada a bem-estar ou

mal-estar. Um outro sofrimento que não sei como chamar é

quase ausência de sofrimento, não espero que você me

entenda. A fraqueza humana – olho em volta os outros

desabrigados – pode ser pura força. Forca na fraqueza.

Como disse o médico.

É o senhor? Foi o senhor daquela vez, não é mesmo, ali

no metrô?

Sou eu.

Mas agora foi um pouco pior, estás a ver? Eu iria lhe

dever mais essa.

Parece mesmo que tenho algum tipo mórbido de prazer

em sobreviver aos furos e isso vale em muitos sentidos.

Shhh. Quietinho.

Foi assim. Não tive mais ânimo para ir a lugar algum.

Aqui e ali e quanto tempo? Eu podia ser meu pai.

Page 328: LISBOA AGOSTO DE 1988

Há no homem um tempo próprio, nem mais nem menos,

nem breve nem longo – não arrisque dizer eterno –, um

tempo simplesmente, sem significado, sem relação com o

espaço, real e irreal, limítrofe, subversivo, intenso. Sob a

marquise. Dá para ver a praça. Dá para vê-la.

A moça se levanta do banco de jardim e se afasta. Seu

caminhar decidido marca a distância entre silêncio e silêncio.

Não o esforço do desespero mas um comportamento

cotidiano. Ali, do lugar mais distante, é possível ter noção do

quão perto esteve. Ela sobe e desce a elevação da rua,

recorta em seu vulto a paisagem em chamas, leva para si

todo o corpo da ruína que sobre ele se abatera junto à

impenetrabilidade da noite que pontualmente desce do céu.

Abriu a porta. Pablo! Lembra-se de mim? A porta

entreaberta, um convite. Ele entra.

– Você sumiu e a cidade nunca mais foi a mesma.

Costumavam – lembra? – sair às noites e elas eram tão

iguais, tão agradáveis. Mas sabiam que não ia durar. – Você

não nasceu para a roça, Blandine.

Talvez tenha nascido para ele, para Pablo, não é?,

sugeriu, irônica. Riram. Talvez.

Para dezoito anos ele era; para vinte e dois, ela.

Agora a diferença é a mesma, mas é outra, dois anos e

tanto depois; não é?

Você continua o mesmo.

Saíram, lancharam, dançaram, dormiram no

Page 329: LISBOA AGOSTO DE 1988

apartamento de um amigo.

Era como se Andrei nunca. Aconteceu. Mas nunca

abandonei a esperança de. Acho que minha vida amorosa

acabou, querido amigo. O impacto nem foi o que ela disse

mas a franqueza com que soou. Pablo não sabia se tivera

uma, além de esperar que ela voltasse.

Definitivamente, continuava o mesmo.

Você me conta? como foram as coisas? - sabe como é,

você nasceu aqui, sabe como as coisas funcionam, não queria

essa história, mas a sua, de seus lábios, esses lábios.

Esses lábios assim não podem falar...

Então as lembranças. No dia em que conheceu Pablo,

Andrei partira dos cafezais há dois meses. Mais uma semana

até beijá-la. Dormiram juntos quando? Preâmbulo de nada.

Você iria, mais cedo ou mais tarde. Ainda ouço histórias

sobre teu pai e o quanto vocês se parecem. É, iria, ela

partiria sim.

– E fui.

E agora, amigos? Pablo! Foi com isso de amigos que

tudo começou. Riram de novo. Amigos, claro. Há quanto

tempo ela não ria?

Conta pra mim.

Contaria aos poucos. Tenho escrito, mas não sei.

Escrito? Pablo não poderia ajuda-la quanto a isso.

Detestava ler, escrever, estudar. Sou bom mesmo no trator,

como teu irmão.

É. Ela sabia do que ele gostava, no que ele era bom.

Mais uma vez. Rir era o estado natural de Blandine na

Page 330: LISBOA AGOSTO DE 1988

companhia de Pablo e isso a cativou definitivamente quando

percebeu que funcionava também com Bruna. E essa noite,

posso dormir aqui?

Quando voltava à noitinha para casa, os morcegos ao

redor, nuvem negra ante a magnitude do poente, tudo não

passou, pensava, da gestação dessas montanhas, desses

seixos entardecidos, sob a corrente do riacho ao lado da

casa. Europa.... Tudo aquilo nada além de um enfeitado e

mórbido vazio preenchido afinal graças a Deus pela pureza

de Bruna, pelo fogo de sua presença – sua meiguice cala o

terror noturno.

Todas as coisas em seus lugares, destino ou como se

queira chamar, vontade ou o quê. Trabalho talvez. Enfim.

Tudo se apresenta e se perde e adiante se reapresentará de

algum modo acrescido e todavia sempre igual. Estações.

Folhas. Vida frágil.

Decerto nem pensaria em questionar o tempo, ou

melhor o intervalo, os rumos que a gente toma, as escolhas

que faz. Estão aí e serão para sempre, a quem ama ou odeia

se dará motivos e assim se formará o futuro desconhecido e

raramente imaginado.

Quando despertava. O sol oblíquo parecia ter naqueles

raios novos um caminho traçado desde a janela sobre o berço

até além da porta. Se perdendo, dissipando, na ainda

penumbra da cozinha, sob a mesa, quase no fogão, junto à

lenha.

Page 331: LISBOA AGOSTO DE 1988

O livro.

Não houve sacrifício, não foi isso. O quê então? Às

vezes o via – não sempre, às vezes – e pensava no seu corpo,

no destino de seu corpo. A lâmpada acesa por causa do bebê

perdeu a função original, tornou-se a lâmpada do hotel,

quando poderiam ter ficado juntos, mas insisti e peguei o

avião, e agora a vida renasce no movimento entre os lençóis,

se tudo renascesse assim, ainda haveria você, me tocando

assim, me beijando assim, sim a manhã é a parte mais bonita

do dia, mas hoje não quero acordar, fica mais um pouquinho

comigo.

Pablo ficou até quase oito horas e saiu radiante. Ela

disse que ama!

Não há nisso nada de especial, só um sonho, um

despertar; pessoas e o mecanismo humano; lugares novos

que nem sempre diferem dos conhecidos ou, ao contrário,

habituais que se desconhecem.

A mãe é enfática. Diz que não sofra. Que sofrer a essa

altura apenas acrescentará uma dor inevitável à que se

podia evitar.

Mas era meu pai.

Ela nem se lembra direito daquele homem, do

desabrigado que costumava ficar perto da praça. Não se

lembra tão bem assim mas pode parecer um pouco com

aquele senhor que certa época freqüentou a lanhouse. E se

parecerão com algum homem com certa diferença de idade

Page 332: LISBOA AGOSTO DE 1988

que venha a conhecer amanhã. Cansada, Bruna liga a TV e

pára de pensar no assunto.

Lisboa. A destruição que precede a reconstrução.

Estava só, como sempre estive, cambaleante pelas

proximidades da posta-restante, entre as pessoas na

calçada. O pano de fundo do tráfego na Baixa ferida de

tapumes e escombros. Estive morto e renasci. Palavras serão

insuficientes, sábias que sejam, e não são; e não as sei. A

fluência não mais me auxilia. Há aqui um problema não

pequeno.

Havia uma hora que caminhava, envolto pela estranha

luz, não do sol ou de lâmpadas. Renasci apenas para morrer

outra vez?

Então a moça mais desejável do mundo cruzou o meu

caminho na musica da manhã urbana que não oferecia muito

a um estrangeiro sem lugar aonde ir, sem dinheiro e,

suprema falta de sorte, que viesse a tentar o suicídio com

remédios.

Agora procuro um lugar ideal para passar meus últimos

momentos. A cidade se recusa a oferece-lo para mim. A aura

lisboeta é uma aura boa, há generosidade nas pessoas,

comerciantes ou marginais. O cheiro de sopa se mistura ao

de haxixe. Pairam junto aos perfumados convites da noite.

Essas mulheres são misericordiosas. Mas as ruas jamais

deixam de ser hostis.

Há algo de experiência, de ensinamento. As coisas

Page 333: LISBOA AGOSTO DE 1988

corriqueiras estão permeadas de ridículo e superfluidade. É

que a gente se acostuma. Enxergo o bem e mal apequenados

com olhos de lágrimas contidas. Diante de mim o bem

supremo. Quisera tê-lo reconhecido antes.

Ela parou, se virou, me olhou com ternura. A energia

que emanava de suas feições, num louco ceticismo, atribui

aos comprimidos que tomara. Hoje sei que me esperava. Por

isso tardou a abrir a porta do edifício.

Por que eu a deveria chamar? Dizer que tinha uma

aparência etérea? Que eu precisava de um lugar onde morrer

em paz? Como eu não decidia entre conquista ou morte, ela

falou comigo. Venha.

Possuía um apartamento naquele prédio. Não acredito

que disse tal coisa. Os contornos são difusos. O contato das

mãos é cálido.

O tempo continua passando, mais curto se torna o meu

tempo. Morri talvez e entrei em outra dimensão. Talvez seja

o espírito designado para me receber. Se não, era questão

de talvez uma hora, não mais.

Ela sabia. Como?

Blandine ter voltado para o marido deixou de ser a

lancinante dor de sempre, o vazio que o fogo de Nastácia não

mais pode preencher. O que ela está dizendo agora? Fala

com um outro de mim. E o que lhe responde?

Um choro, um choro de recém-nascido. Disse-me então

que vivesse. Impossível, o veneno já está em meu sangue.

Não durma. Eu poderia ficar o quanto precisasse, poderíamos

fazer o que eu quisesse. Desde que você não se deixe vencer

pelo sono, Andrei.

Page 334: LISBOA AGOSTO DE 1988

Como sabe meu sono, quero dizer, meu nome? Seria

uma tortura, uma verdadeira tortura não dormir, eu estava

morrendo de sono. A luz traz seu corpo entre os vapores do

vestido e entre os sons da noite se destaca sua voz suave.

Não meu querido: você está apenas morrendo.

Não sei o que é isso em seus olhos, sentimento? Amor?

É possível? com licença um momento, disse ela. Sorriu. Não

se esqueça –

Não esqueceria. Não, não dormirei.

Pus-me a esquadrinhar o apartamento. Passáramos o

vestíbulo ao entrar e agora eu estava sentado num sofá na

sala, forrado dum tecido semelhante à hulha, verde, se assim

posso dizer, bastante confortável e inadequado para alguém

que, morrendo de sono, tem a determinação de não dormir;

e, acrescento, não sonhar com rios e cursos de água – e se ao

adormecer fixasse o olhar nas listras do sofá, listras brancas

de hulha, seriam quedas dágua e cachoeiras, e além um arco-

íris. Paredes azuis. Flores na mesa de centro. Um coração

taquicárdico. A janela é grande, dá para horizontes

concretos, cinzas, com algum recorte de copas e eventuais

pássaros do equilíbrio, de asas aquosas e penas iluminadas.

Há abandono e recuperação de estados líquidos, discerníveis

nas estrelas: parecem folhas a brilhar.

As portas estão abertas, a do quarto e a do banheiro,

de um e de outro nascendo as suaves luzes foliáceas.

Adaptam-se à penumbra da sala. Um velho conta estórias

para seus netos, que escutam enquanto esperam pela idade.

O tapete felpudo, após cada passo meu, retornava a seu

estado anterior, a seu descanso, e as aves levam a canção do

tempo também presente nas raízes entrelaçadas no solo.

O lugar era tão aconchegante que praticamente me

esqueci que morria ou – pensamento que não me abandonara

Page 335: LISBOA AGOSTO DE 1988

de todo – estava morto. Eu me movia com o lugar,

alimentava-me dele, em perfeita simbiose. Aproximei-me do

parapeito. Meu querido...

Quem sou? De onde vinha aquele cheiro, e aquele grito,

e aquele sino? Para onde vai esse silêncio?

No horizonte, um espaço de camadas superpostas. Não

tem a ver comigo. É uma visão, que não perdura nem deve

na verdade perdurar. Porque toda vida provém de uma vida

anterior.

Então quem era aquele no reflexo do vidro,

modificando-se a partir de meus movimentos e dos

movimentos da janela? A imagem de um homem cujo perfil

assinala estilo; na face, calor e engenho. Nada indica

angústia. Ansiedade, só a espera de alguém que fora se

trocar e logo, logo voltaria.

A presença daquela que eu acabara de conhecer,

embora eu não a visse, se fez forte num fluxo contínuo que

me atravessava e ganhava os ares, a cidade, o rio, o

horizonte e além, e os trazia de volta. Quando a vi, era

prisioneiro; a cela se abriu. Ao conhece-la morria, estava

morto. E agora –

A lua está cheia.

O tempo passou e vi a manhã chegar da janela do

apartamento de minha amiga, sem que ela tivesse voltado à

sala. O sono se fazia insuportável. Porém de algum modo o

alimento que o sono traz com o descanso, a substituição do

que está gasto, a renovação da vida, todas essas coisas –

parecia – mesmo sem o sono haviam se processado. Então

entendi que, desde que absorvera o veneno, quando tomei

os comprimidos na saída da clinica, em meio ao desconforto

abdominal pela ferida (lembrei ao rever o grande relógio do

Page 336: LISBOA AGOSTO DE 1988

saguão), já tinham se passado vinte e quatro horas.

Desde então foi a peregrinação em busca de um banco

de praça, de um gramado, para o escuro Sim. Num domingo,

em plena manhã de um domingo, isso não foi possível. Deitei

dezenas de vezes e fui outro tanto impedido de adormecer

pela cena lisboeta. Sentei em diversas praças, para ser

mexido e puxado pelas crianças. Antes de encontrá-la.

Não durma.

Dentro desse espaço-tempo ou o que, fui – acho -

reconstruído, invertendo os processos segundo a luz.

Gestação. O sono afinal.

Acordei encharcado de suor, na parte mais alta da

encosta, ali onde fica a igreja, de onde se vê, silenciosa e

distante, a torre. Estava eu portanto no local que observava

da janela durante a noite. Vestia uma blusa de lã e um

sobretudo.

Como fora parar ali, me perguntei; mas a questão era

outra: onde estava a janela de onde eu via este lugar?

Seguindo a orientação débil de meus sentidos recém-

despertos, localizei o sítio do prédio. Naturalmente, não

havia prédio algum. Uma questão com que não estava

acostumado a lidar. Vida onde soluções dramáticas.

Aliás, não havia prédios por ali.

Meus olhos ardem, doem na verdade. Não é a mesma

coisa. O corpo está formigando. Não tenho qualquer

saudade. Pode-se dizer. Feliz.

Subitamente, a ausência percebida daquela a quem

conhecera na noite anterior se tornou sua presença. Lisboa é

um espectro de si mesma. Vi pela janela de uma montra, uma

Page 337: LISBOA AGOSTO DE 1988

menina que cantava. Sissel Kirkjebo, diz a legenda. A musica

em meus olhos. Estremeço. Talvez como os pastores frente

aos anjos.

Ela está aqui, sentada nesse calafrio ao longo de minha

coluna. Acredita em mim, me escuta. O que mais posso

querer? O sentido de direção não voltou, embora eu já esteja

bem desperto. Não sei como dizer isso.

Sem problema.

Não foi preciso muito tempo para que Beatrice sentisse

a falta dele. Sabia que não iria partir. Quando Isabelle

contava que ainda estava em Lisboa, ela mal ouvia, apenas

pensava numa forma de ajudá-lo. Sentiu-se culpada, sabia

que iria se sentir. Ele não voltou para o Brasil porque eu o

abandonei com essa responsabilidade, minha filha. Porque o

amor é assim, partilhamos a fraqueza da pessoa amada e nos

fazemos fracos, admira-se as poucas virtudes com a

intensidade com que se condescende com os muitos defeitos.

Não pensava noutra coisa. Deve ser masoquismo, essas

escolhas erradas.

Em 2008, no dia de seu aniversário, tão logo desligou a

ligação da filha, o telefone tocou. Quem? Naquele instante

um casal sob a lâmpada da rua. Uma aura sobre eles. Você?

Não é possível. Mas reconhecia a voz, se reconhecia junto

dela. E quem fala um inglês tão peculiar? Uma vez teve

quase certeza que o vira, mas sabe como é. A comoção era

Page 338: LISBOA AGOSTO DE 1988

violenta demais, as lagrimas azuis rompiam como há vinte

anos naquela plataforma.

Ouvi dizer que você tinha morrido naquele dia trágico,

mas na verdade ela jamais acreditou nisso. Quisera ter a

alegria de revê-lo.

Vosges. Ele não vê ninguém, é todo a espera. As

pedrinhas no chão declamam a chegada dela, mais perto

cada vez, mais perto cada vez. É permitido sentar na grama.

Irá sentir o toque da mão em seu ombro e depois levantará

para acompanhá-la. A noite desce no frio de dezembro, a

praça agora vazia é linda assim iluminada. Não precisa dizer

nada, disse Beatrice na rue de Turenne, quase em casa. Por

que alguém diria alguma coisa depois de escrever um livro?

Não percebem o quanto andaram, ou percebem, mas passam

muito pelo prédio, estão quase na ponte. Ela só queria

mostrar a beleza da vista do rio ao anoitecer, e foi o cenário

esperado.

Ele realmente nada disse, não dizia na verdade há vinte

anos.

O calor das lembranças vivifica os pés de café, na luz do

dia pleno cintilando, rios verdes que sombreiam as ruas de

café à frente. Do desvario europeu se originou essa realidade

de que seus olhos podem ser editores, mas também cada flor

invisível na mata possui um aroma, uma beleza e um

significado. Na ultima curva da volta, é permitida a visão da

luz enquadrada na janela ao longe. A terra exala cheiros de

amada satisfeita. Outros pingos tamborilam no telhado a

percussão de uma cantiga remota. Um sentimento fecundo

se reflete nas poças e no riacho – as águas, as águas – as

Page 339: LISBOA AGOSTO DE 1988

águas correndo límpidas entre a florescência. Levam, como

se fosse uma folha, do bosque para a cidade, a sagração de

uma luz noturna: um dia, a circunstancia eterna da ausência

há de consentir numa sinfonia que não há.

O vento leva o que se vê e verá o vento quando não

mais for possível – quando as folhas secas, partidas,

misturarem-se ao pó. E a vida gesticulará em ciclos como

notas de suítes assistidas pelo tempo. E o tempo caminhará

largo para a eternidade, vendo a vida como a vê um adágio.

Os apanhadores de café subiam na carreta engatada ao

trator, prontos para mais um dia de espalharem-se pela

terra, em meio à algazarra com que zombavam da faina

diária. Ao avistarem a mulher e sua filha, calaram-se. Depois

que passaram, até não mais que –

pontos no pó da estrada

– emaranharam-se num crescendo os mexericos.

Uma lenda se fizera em torno da mulher, por causa de

seu isolamento desde que voltara com uma criança de sua

misteriosa viagem e fora viver na chácara de seu pai –

sozinha, exceto pela filhinha e os animais.

Com sua loucura.

Sua historia, os camponeses adaptavam à própria

capacidade de compreensão, o que multifacetava a lenda.

Mas em nenhuma versão se achava a verdadeira historia.

E fossem os jovens ou os velhos, os nativos ou os

aventureiros do café, os que pensavam de modo ou de outro

Page 340: LISBOA AGOSTO DE 1988

e falavam de diferentes maneiras – todos intimamente

concordavam em que havia naquela mulher solitária uma

aura terrível e fulgente como uma pérola.

O trator começa a se deslocar e nas conversas outros

temas se entrecruzam, e a luz da manhã se derrama na

bruma sobre os cafezais – a manhã se derrama, como todas

as manhãs.

E todas as águas – todos os oceanos do mundo e todos

os riachos do bosque –, todas as águas sobre a face da terra

entendiam.

E o universo.