lins - babilonia ou a arte da superficie 2001

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  abilonia 2 o u rte d superflcie I S anto Forte nem tinha entrado e m cartaz quando Eduardo decidiu partir para urn novo projeto: filmar os dez ultimos dias do ano, incluindo a noite do dia 31 de deze mbro de 19 99 , em uma favela Foi nesse momento que conheci melhor 0 diretor. No infcio de outubro, on ranl- zei uma e x i b i ~ a o no Ce ntro Cultural Banco do Brasil de urn documentario que eu havia realizado no lnorro da Babilonia,l no Leme, bairro da zona suI do Rio de Janeiro, e Coutinho foi assistir. No final da p r o j e ~ a o conversamos rapidamente e me convidou para participar da pesqu isa de seu proximo filme. s favelas do Chapeu Mangueira e da Babilonia, vizinhas e situadas no morro da Babilonia, pareciam-lhe a ulocaC;ao ideal para urn filme a ser realizado na noite de Ano Novo: uma comunidade com cerca de quatro mil habitantes praticamente a beira-ma r, de on de se ve a multidao reunida na praia de C opac aban a para ass istir a mais celebre queima de fogos de artifkio do Rio de Janeiro. Ainda nao havia financiarnento algum a vista, e Coutinho ficou de me procurar semanas tnais tarde. Estavamos a menos de tres meses do dia 31 de dezembro, e nao havia tempo para tentar urn patrocfnio por meio de qualquer lei de incentivo cultural. 0 cineasta chegara a enviar 0 projeto para urn concurso do Ministerio da Cultura, mas nao foi aprovado: eIe nao havia inclufdo urn roteiro LLcom divisao de sequencias . E como poderia? So se fabricasse uma fic~ao e esse tipo de ficc;ao, previa ao filme decididamente nao 0 interessava. m dezembro Coutinho voltou a me ligar, dizendo que ainda nao tinha certeza se Faria .a filrne. De toda forma, j ~ o seriam mais dez dias de filma gem, mas no maximo tres. N es se meio tempo c onh ec eu 0 anglo-italiano Do nald Ranvaud, que por sua vez 0 aproximou do documentar ista Joao Moreira Sall es, urn dos s odos da Vide oFilmes. Ambos se dispuseram a co-produzir 0 documentario junto com 0 Cecip. A violencia polici al e do trafico de dro gas nao era questao a ser abordada diretamente no filme. Sua presenc;a era inevitavel, Coutinho sabia disso, mas em rneio s hist6rias pessoais. Tambem nao se tratava de perguntar es I 121 I ,1, Ii

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Babilonia 2000 ou a arte da superflcie I

Santo Forte nem tinha entrado em cartaz quando Eduardo

decidiu partir para urn novo projeto: filmar os dez ultimos dias do ano,

incluindo a noite do dia 31 de dezembro de 1999, em uma favela Foi

nesse momento que conheci melhor 0 diretor. No infcio de outubro, on;ranl-

zei uma e x i b i ~ a o no Centro Cultural Banco do Brasil de urn documentario

que eu havia realizado no lnorro da Babilonia,l no Leme, bairro da zona suI

do Rio de Janeiro, e Coutinho foi assistir. No final da p r o j e ~ a o conversamos

rapidamente e me convidou para participar da pesquisa de seu proximo

filme. As favelas do Chapeu Mangueira e da Babilonia, vizinhas e situadas

no morro da Babilonia, pareciam-lhe a ulocaC;ao" ideal para urn filme a ser

realizado na noite de Ano Novo: uma comunidade com cerca de quatro mil

habitantes praticamente a beira-mar, de on de se ve amultidao reunida na

praia de Copacabana para assistir amais celebre queima de fogos de artifkio

do Rio de Janeiro.Ainda nao havia financiarnento algum avista, e Coutinho ficou de me

procurar semanas tnais tarde. Estavamos a menos de tres meses do dia 31

de dezembro, e nao havia tempo para tentar urn patrocfnio por meio de

qualquer lei de incentivo cultural. 0 cineasta chegara a enviar 0 projeto para

urn concurso do Ministerio da Cultura, mas nao foi aprovado: eIe nao havia

inclufdo urn roteiro LLcom divisao de sequencias". E como poderia? So se

fabricasse uma f i c ~ a o , e esse tipo de ficc;ao, previa ao filme decididamente

nao 0 interessava.

Em dezembro Coutinho voltou a me ligar, dizendo que ainda nao tinha

certeza se Faria .a filrne. De toda forma, j a ~ a o seriam mais dez dias de filma

gem, mas no maximo tres. N esse meio tempo conheceu 0 anglo-italiano Do

nald Ranvaud, que por sua vez 0 aproximou do documentarista Joao Moreira

Salles, urn dos sodos da VideoFilmes. Ambos se dispuseram a co-produzir 0

documentario junto com 0 Cecip.

A violencia policial e do trafico de drogas nao era questao a ser abordada

diretamente no filme. Sua presenc;a era inevitavel, Coutinho sabia disso,

mas em rneio as hist6rias pessoais. Tambem nao se tratava de perguntar es-

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pecialmente sobre religiao, para nao voltar ao tema central de Santo Forte,

embora 0 assunto Fosse surgir. Uma das ideias do diretor naquele momento

era estabelecer conversas que estirnulassem urn "balanr;o de vida" dos mo-

radores, a partir das mesmas hist6rias contadas nos £lImes que faz, e tentH"

recolher uma especie de "teoria popular" sobre 0 Brasil, tendo como pretextoa passagem do ano, Depois das questoes em torno da vida pessoal, queria

chegar apergunta: liE 0 Brasil?",

Com uma ou outra excec;ao, 0 filIne acabou nao incluindo diretamen1e

essa questao, ate porque e1a era muito geral e inibia os entrevistados. De toda

maneira, em muitas narrativas individuais, 0 documentario nao deixa de nos

mostrar uma variedade de visoes populares a respeito do Brasi1.

Elnbora BabilOnia 2000 esteja tao centrado na palavra quanto Santo

Forte, os dois se opoem diversas maneiras, Santo Forte coloca em cena 11

personagens se1ecionados previamente depois de longa pesquisa e e l n o n t ~ -do em longos depoimentos. Babi16nia 2000 reune quase 40 personagens,. a

maioria registrada de forma imprevista ao longo de urn dia de filn1agem, e foi

montado em telnpos bastante desiguais. Ra conversas que podem durar quasc

sete minutos e i n s e r ~ 5 e s brevlssimas de dez segundos. As d i f e r e n ~ a s entre ~ s processos de filmagem e lnontagem dos q.ois docurnentarios nos permitem,

para alem de urn julgamento de valor, perceber as qualidades de urn diretdr

que se permite tantas variar;oes em tao curto espac;o de tempo. Nao que tndo se

mova, mas ha permanencias em u d a n ~ a s

interessantes de serem apontadas.Em Santo Forte Coutinho mergulha profundamente no imaginario

religioso, e parte de lc;ituras especfficas e urn extenso trabalho de campp

anterior a r e a l i z a ~ a o ~ tenta organizar as filmagens. }ei em Babilonia 2000.,

conta bern mais com 0 irnponderavel, em funr;ao de urn tempo extremamente

limitado para filmar. Itverdade que as entrevistas de Coutinho foram rnarcadas

previamente e realizadas com a camera no tripe, nos moldes de Santo Forte:

Contudo, outras quatro equipes co-realizaram as filmagens do documentarip

e trabalharam com a camera quase sempre na mao, registrando ao acaso

sonagens e s i t u a ~ 5 e s . Nao se trata, pois, de urn corte em profuodidade, comovimos em Santo Forte, mas, ao contr:hio, de se manter na superffcie.

Urn corte em profundidade nao e necessarianlente mais revelador do

que a superffcie, plena de sinais de vida, dor, saude e d o e n ~ a . A radiografia

informa, mas urn born medico pode diagnosticar pela cor da pele, pelos olhos,

por efeitos na superffcie do corpo e tambem pelo que edito, pela linguagem .

"Estranho preconceito que valoriza cegamente a profundidade em detrimento

da superficie e que pretende que superficial significa, nao de vasta dimensa6,

mas de pouca profundidade, enquanto profundo significa, ao contrario, de

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grande profundidade, e nao de fraca superffcie", nos lembra 0 escritor Michel

Tournier.2 Esse era 0 maior desafio do filIne: captar a for<;;a da superffcie sem

resvalar para algo superficial.

A pesquisa e 0 dispositivo de filmagem

A pesquisa de Babilonia 2000 foi breve e come'5ou em meados de dezembro.

Eramos quatro pesquisadores Cristiana Grumbach, Daniel Coutinho,

Geraldo Pereira e eu -, e, durante dez dias, conversamos com quem foi

possivel. Como eu havia frequentado 0 morro de 1997 a 1999, tinha boa

familiaridade com a populaC;ao local e certo conhecimento do cotidiano das

duas comunidades. Conhecia bern pessoas que trabalhavam nas associac;6es de

moradores do Chapeu Mangueira e da Babilonia, e foram elas que garantiram

integralmente 0 nosso trabalho na pesquisa e na filmagem.

Em nenhum momento tivemos contato direto com os traficantes, ou a

obrigaC;ao de pedir autorizac;ao para filmar 0 "movimento". S6 houve tensao

desse tipo quando 0 pai de urn traficante, muito querido na comunidade, foi

assassinado, mas nos avisaram a tempo, e nesse dia n a ~ subimos 0 morro.

NUfica, nem na pesquisa nem na filmageln, nos deparamos com traficantes

armados.

Retomamos na pesquisa os metodos que Coutinho havia utilizado para

filmar Santo Forte: relat6ries escritos e alguns minutos de imagem. Mas 0,-J

traba1ho acabou rendendo pouco. Com 0 passar dos dias, uma certa afli<;;ao

tomou conta da equipe e de Coutinho, porque nao eram muitos as morado-

res selecionados, e ja nao havia mais como voltar atras. A pesquisa permitiu

essencialmente a quem nao conhecia 0 morro ganhar mais intimidade com

a geografia das duas comunidades, conhecer alguns moradores que vieram a

nos ajudar imensamente, e divulgar, para 0 maior numero de pessoas possivel,

a filmagem do dia 31 de dezembro.

Os encontros que tivemos com 0 diretor nos ultimos mas do ana servirampara que 0 dispositivo fosse definido mais claramente. Coutinho percebeu que

urn documentirio com tao pouco tempo de filmagern 56 teria condi'5oes de

dar certo se Fosse possive1 contar com mais de uma equipe. Logo chegou a

cinco equipes: a dele, uma equipe profissional que contava com 0 fot6grafo

Jacques Cheuiche (iniciando urna parceria que se repetiria nos filmes seguin-

tes do diretor); a de sua assistente Cristiana Grumbach) que fez a segunda

camera da equipe de Coutinho; e outras tres equipes, dirigidas pelos outros

pesquisadores) todas munidas de cameras digitais emprestadas, operadas por 123

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Eduardo Coutinho

e sua assistente

Cristiana Grumbach

durante as tilmagens

deBabi/6nia 2000,

fotografos com ponca ou praticament

nenhuma experiencia em documentari

(Jose Rafael Mamigonian, Ricardo Mehed

e Sergio Sbragia).

Jacques Cheuiche deu instru<;oes bascas as equipes, reconhecendo no entant() o

lilTIites da incumbencia. De toda maneira

aceitou trabalhar nessas condi<;oes. "Acd

tou" - como ressalta Coutinho - "0 risco d

misturar a fotografia dele com a de f o t o g r a f oamadores operando cameras piores; ele foi fantastico, assimilO

meus metodos e soube onviL"

Inicialmente estava previsto urn dia _ meio de filmagern

alem do ultimo dia do ano, a manha de 3 de janeiro, primeiro diutil do ana 2000; e Coutinho ainda contava com a possibilidad

de urn terceiro dia em abril, quando 0 Brasil comemoraria os 50

anos do Descobrimento

N esse £lIme, portanto, ao princfpio espacial da locm;Qo uni-c

(0 morro da Babilonia) sornaram-se urn princfpio temporal (realiz

o essencial das filmagens em menos de 24 horas) e urn prindpi

tecnico-economico (utilizar diferentes tecnologias digitais). Par

Coutinho, se houvesse fiIme, ele teria de surgir dessa limita<;a

espa<;o-temporal-tecnologica, desse dispositivo, 0 que implicO

tens6es e riscos. Sabfamos que serlalnos obrigados a contar com

sorte, porque, se 0 primeiro dia de qualquer filmagem e c o n t u r b ;do, neste filme nao terfamos muito mais do que isso. Olnateriq

rodado podia gerar urn curta, urn media ou urn longa-metragem

mas tambem poderia dar em nada.

As equipes entraram em campo na manha do dia 31 de dezem

bro. Coutinho sentia-se particularmente tenso, mas nos, das outra

equipes, est:ivamos especialmente alegres de poder entrevistarcircular a vontade pe10 morro, e ao mesmo tempo participar d

urn projeto dirigido pelo cineasta. A produ<;ao do filme se instalo

em urn salao de festas da Associa<;ao de Moradores do Chape

Mangueira, onde foi tambem organizada uma "camera aberta" ao

moradores que quisessem falar sobre suas expectativas na virad

do ano. Filmamos das dez da manha as quatro da madrugada

com interrupc;5es para almoc;o, jantar e ceia. No dia 3 de janeiro

gravamos de manha ate a hora do almo<;o. Nesse momento, filma

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em abril ja tinha se tornado uma possibilidade remota, quase inexistente, mas

Coutinho ainda nao sabia se poderia associar 0 material das outras equipes ao

seu. Ter mais urn dia de filmagem significava uma ureserva de seguranQa", mais

psicologica do que concreta. Em ultimo caso, ele poderia vol tar e conversar

com quem ja havia entrevistado no reveillon, tendo como mote 0 aniversariodo Descobrimento do Brasil.

Com 0 material das cinco cameras decupado, 0 diretor percebeu que 0

filme ja estava ali, bastava encontrar a forma certa. 0 fio condutor da monta

gem estava dado pelo dispositivo de filmagem: a passagem do tempo no ultimo

dia do ano. 0 documentario comeQaria necessarialnente na manha do dia 31

de dezembro e terminaria na madrugada ou na manha do dia 3 de janeiro.

Esta foi uma o p ~ a o pelo presente da filmagem, do que havia sido registrado

no morro, excluindo qualquer imagem que tivesse funQao semelhante ados

espfritos da umbanda, como em Santo Forte. Na maior parte dos casos, osdepoimentos seriam inseridos na ordem em que.foram gravados. Tais decisoes

tornaram 0 processo de montagem bern mais simples - e mais divertido,

afirmam Coutinho e a montadora Jordana Berg - do que em Santo Forte.

Um filme e cinco equipes

A divisao da filmagem com ~ u t r a s equipes sugere, de saida, a seguinte pergunta:

o que se passa corn a autoria de urn documentario feito de imagens tecnicas

e esteticamente heterogeneas, com vozes e entonaQoes diferentes elaborando

questoes desiguais? 0 que faz essa diversidade ser, de toda maneira, urn £lIme

de Eduardo Coutinho? A maxima antropofagica - "s6 me interessa 0 que nao

emeu" - pode fornecer uma pista: registrar ~ u t r a s experiencias de ~ u n d o para alem das nossas, fihnar 0 outro, e 0 que desde sempre atraiu Coutinho

no cinema. Multiplicar as equipes, os pontos de vista sobre 0 mundo a ser

captado, interagir com os personagens de varios modos, mesmo que nada

disso tenha sido pensado a priori, tudo intensificou 0 movimento de sair desi, atingindo desta vez a pr6pria figura do diretor-autor, que se fragmentou,

descentralizando uma onipresens;a ate entao natural.

1sso nao quer dizer que, para a realizas;ao geral da obra, a p r e s e n ~ a de

Coutinho nao tenha sido absolutamente ativa e cruCial, e nao apenas na

montagem. E dele a o r g a n i z a ~ a o de urn dispositivo fflmico que criou con

diQoes para uma "materializaQao" nova de sua presenQa. Vern dele tambem

a i n s p i r a ~ a o etica e estetica de como deverfamos gravar no morro, embora

cada equipe tivesse uma compreensao propria dessa inspiraQao. A divisao 125

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das equipes nao foi gratuita, como vimos, nem fruto de urn desejo abstrato

e previo do diretor democratizar a Foi decidida na urgencia e

no contato com 0 universo a ser registrado, a partir de limita<;6es temporais

e economicas muito cIaras. Por isso mesmo esta tao intrinsecalnente ligada aconcep<;ao de cinema de Coutinho, uma concep<;ao inshlvel e aberta, que se

amplia, modifica e reorganiza no contato com 0 mundo.

o que vemos acontecer em Babi16nza 2000 ebastante inovador. Nao ape

nas na obra de Coutinho, mas na propria historia do documentario, sao rarqs Os

exemplos desse tipo de Urn certo cinema militante dos anos 60 tinha

como uma de suas bandeiras de luta a recusa da nO<;;:1o de autor em favor, da

dire<;;ao coletiva. A critica centrava-se no uindividualismo pequeno-burgues"

do termo "autor", Os filmes do News Reel - movimento da extrema-esquerda

norte-americana que realizou mais de 50 documentirios na segunda metade

da decada de 1960 foram em muitos casos experiencias de c r i a ~ : ' i o coletiva, nas quais a equipe se encontrava indiscriminadarnente dos dois lados

da camera. Autor born, naquele momento de radicalismos politicos, era autor

morto. J ean-Luc Godard, em sua maofsta mais empedernida, abdi¢.bll

do seu nome7ja e n t a ~ celebre, em prol do coletivo Dziga Vertov, para assipar

filmes dirigidos por ele e outros integrantes do grupo. 0 cinema direto utilizou

varios diretores em uma mesma obra - como Primary (1960), de R. Leacock,

A Maysles, Jt Drew e D.A Pennebaker -, mas sem maio res interferendas

no que esta:va sendo filmado, uma vez que a regra era nao estabelecer contata

explicito com 0 outro lado da camera.

A pratica cinematografica de Jean Rouch em muitos de seus documentariQs

e novamente uma referencia possIve1 a atitude de Coutinho em Babilonia 2000.

Nao sao os mesmos procedimentos, mas ha certas convergencias e urn efeita

comum. Algumas entrevistas de Craniea de urn Venlo, por exernp]o, nao foran1

feitas pelos diretores Rouch e Morin, mas por personagens que se incorporaraJll

aequipe? ja com a filmagem em andamento. Em Jaguar e Eu, um Negro, a

n a r r a ~ a o foi feita quase essencialmente pelos personagens, posteriormente a

filmagem, ja na fase des o n o r i z a ~ a o ,

com uma fala improvisada por eles quando assistiram as imagens montadas. foram modos de filmar que Rouch

coIoeou em pratica, aberto as i n t e r v e n ~ 6 e s de quem tinha sido filmado, e q u ~ tiveram 0 efeito muito especffico de inventar uma outra forma ser autor.

Gines Deleuze chama esses personagens de Jean Rouch de "intercessores" do

cineasta, figuras por meio das quais 0 diretor conseguiu usair de sua civilizac;ao

dominante e ... alcan<;ar as premissas de outra identidade."3

No caso de BabilOnia 2000, nao foi com seus entrevistados que Coutinho

compartilhou a direC;ao. Mas a divisao entre cinco equipes permitiu a ele ex:-

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perimentar variac;oes na forma de abordar os moradores do morro. Fomos, de

urn outro jeito, seus intercessores, nos somamos aqueles que ficam do outro

lado da camera e com quem ele sempre trabalhou.

Descentralizei0

poder de forma como nuncatinha

feito; eu ja me descentralizo nos meus filmes, porque preciso do outro para me expressar, sem isso

eu nao tenho filme. Com as cinco cameras, ficou mais descentrado ainda; sao

multiplos pontos de vista dos dois lados da camera. )' . ~

o documenbirio £leou com 80 minutos. As imagens da camera que aeompa

nhou Coutinho imprimem ao filme uma certa estabilidade, uma qualidade

mais "apropriada". Ha, como em Santo Forie, poucos movimentos duranteas eonversas, embora algumas vezes assistamos a hegada da equipe nas casas

dos personagens, 0 que nao acontecia no documenbirio anterior. As imagens

realizadas pelas outras cameras sao perpassadas por uma instabilidade .de

base, estao sempre em movimento e perdem 0 foco em diversos momentos.

Diferenc;as tecnicas e est€ticas na maior parte dos casos imperceptfveis para

o espectador e que foram so1e{lemente desprezadas por Coutinho durante 0

processo de montagem. As imagens realizadas pela equipe do diretor, contudo,

estruturam Babi16nia 2000. E como se 0 filme, sem elas, Fosse por demais

tornado pela desordem do mundo, das vidas e situac;oes registradas.

Outro aspecto que tambem contribui para estruturar 0 documenhhio e

uma serie de cinco planas fixos da praia de Copacabana, feitos do ponto de

vista de quem esta no morro, com diferenc;as mfnimas de enquadramento, mas

com a luz de varios momentos do dia. De manha - a primeira imagem -,

a arde, ao entardecer e anoite, sem regularidade, as vezes urn plano seguido

do outro. Irrompem com 0 seu som original e duram urn certo tempo: sao

imagens do tempo passando. Euma serie que, de certa maneira, toma olugar

das irnagens ilustrativas da favela - varal de roupas] sapatinhos de crianc;asna janela, pipas no ceu. Nao ha nesse filme qualquer irnagem '{tipica", 0 que

Coutinho chama de 'lperfumaria visual", fruto na verdade de urn olhar de

fora que quer tlobjetivar" a favela. TambelTI nao existe praticamente qualquer

plano de cobertura, exceto na narraC;ao inicial do diretor, quarido ele apresenta

o filme. Esta foi feita em cima das imagens das equipes saindo da associac;ao

de llloradores - ea intensificaC;ao do processo iniciado ern Santo Forte.

o diretor chegou a fazer imagens de helic6ptero para produzir uma

compreensao mais clara da situa<;ao geografica das duas favelas, tal como em 127

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Santo Forte. Urna versao de Babilo11ia 2000 c o m e ~ a v a assim. Aconselhado por

Eduardo Escorel, contudo, 0 diretor remontou 0 filme, chegando a atrasar um

pouco a finaliza<;ao. 0 argumento nao podia ser mais justo: era uma image111

que estava en1 desacordo ~ o m 0 projeto do filrne; impunha uma distancia

eln relagao aguele universo, era un1 plano de fora para dentro, e e1e estava

tentando urn de dentro para fora.

'Voce COlnete enos toda hora e tern que ouvir os outros quando dizem algo

que revela coisas. E reciso radicalizar no pr6prio jogo." 0 que nao quer dizer que

Coutinho ;:mule a diferenc;a social entre ele e seus entrevistados: wl"'alvez por

saber que falo de fora para dentro e que posso falar de dentr9 para fora."

BabilOnia 2000 e tambern urn documentari 0 e x h ~ e m a l n e n t e economico

de imagens "puras" pIanos em qu e nao C011versas au pessoas cantando.

o que 11aO impede de ser mais movimeotado do que Santo Forte, eln fUD<;ao

da instabilidade das imagens das ouiIas equipes que comp6em beln mais c1ametade do filme. Mesmo nas entrevistas rnais longas, as cameras estao sempre

11amao, acompanhando as personagens. "Perto de Santo Forte, Babil6nia 2000

parece urn Titanic", diz Coutinho.

A lingua reinventada

Sao muitos as aspectos que imprimem uma marca especffica a BabilOnia 2000.

Primeiro, a facilidade com que as conversas acontecem, se;am elas breves

ou nao, em casa, no quintal, 110S becos, na janela, oa praia. Em seguida) a

gentileza com que os moraclores, todos eles, pesquisados ou nao, recebeln as

equipes, abrem suas casas e of recern toda sorte de bebida e comida: cafe,

refrigerante) ceroeja, agua de coco, a mousse que foi feita para a noite. Depois,

a consciencia intuitiva de muitos entrevistados de que vivemos em urn mundo

onde 0 que eonta sao as imagens; e a perturba<;ao que sentem corn as imagens

produzidas de quem mora oa favela. E ainda uma certa reflexividade presente

em muitos depoimentos, ampliando os tipos de referenciaar e a l i z a ~ a o comuns

nas obras Coutinho, que sao geralmente atitudes do diretor na filmagem

depois inseridas na tnontagem regishos da equipe, pagamento de caches.

. Babil6nia) os pr6prios personagens nos lembram muitas vezes de

que estamos no .cinema. Depois de enxugar as lagrimas, uma moradora

indaga: aS6 que eu nao queria fechar assim. Ficou born?". Vma outra

pergunta, no meio de uma frase: "'EstOll falando muito alto?", e urn pouco

depois: "Ficou bonito?". Uma mo<.;a que canta para Coutinho no infcio

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roa? 0 que 0 coroa achou? gostou?". Comentarios

como esses nao nos remetem a ilmagem como

tambern destacam 0 fa to de que ha uma autoconstru<;,:ao

dos personagens no momento da fala.

No entanto, 0 que mais salta aos oIhos e aos ouvidosao longo do filme e a aptidao narrativa dos personagens

e 0 usa que fazem da lfngua portuguesa. 1sso ediferente

dos personagens de Santo Forte? Digamos que os ta

lentos narrativos colocados em pratica sao diferentes.

A evolu<;,:ao das conversas em Santo Forte tinha como fio

condutor 0 imaginario popular religioso. Mesrno que por

rneio da reIigiao se tivesse falado da vida cotidiana, havia

urn campo tematico mais delirnitad07

de onde' partiu a

maioria das perguntas de Coutinho, e uma trajetoria

dentro desse calnpo a ser rnais 611 menos identificada.

Ern Babilonia 2000, a pergunta em torno das expec

tativas para 0 ano 2000 eapenas urn infcio de conversa,

uma forma de aproxima<;ao, uma vez que a maior parte

dos entrevistados se prepara de aIgum modo para a festa.

Parte-se quase sempre ao presente7da situa<;ao em que se encon

tram os moradores no infcio da entrevista; registra-se a hora e

pergunta-se 0 que eles vao fazer ate a meia-noite.

Se, par urn lado, podemos dizer que 0 teor uficcional" dos

depoimentos diminui, ha, por outro, uma amplia<;,:ao dos temas

abordados, e a for<;,:a criativa no uso da 1fngua se fez mais evidente.

E isso e0 que rna s surpreende no filme: diante de vidas precarias,

atravessadas por uma enorme violencia, nos deparamos com uma

fala vigorosa que inventa sentidos, cria vocabulos, mistura termos

de diferentes origens, que tenta escrever, enfim, sua propria grama

tica. Urn portugues upersonalizado", que e como os personagens

filmados respondem a urn mundo que se manifesta na linguagemdominante (regras de gramatica, sintaxe, comportamentos sociais,

conveniencia, boa educac;;ao, culhIra geral). Essa lfngua particular

desvenda tanto opress5es a que estao submetidos quanto m ~ c r o r r e -sistencias a esse estado de coisas.

Muitas vezes, nos, espectadores, rimos do que e dito, porque

ficamos surpresos com essa possibilidade de cria<;ao em setores da

p o p u l a ~ a o bombardeados por uma multiplicidade de discursos;

com a transformar;;ao em urn campo de batalha contra 0

Dona C o n c e i ~ a o , rezadeira do morro

da Babilonia, recebe

uma das equipes em

casa. Declara que esra

esperando pela morte

e nao entende por que

ninguem volta para Ihe

contar como edepois

que Sf morre.

129

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[em uma

participac;:ao breve,

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[ade de falar presente

em varios depoimenros

de Babil6nia 2000.

130

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horror de nao poeler comunicar; com esse prazer pela expressao

que surge nos desvaos e nas falhas da linguagern. Unl riso solto nos

acomete quando aguelas pessoas se revclam com tarnanha energia,

ao sermos surpreendidos por reaQoes inusitadas diante de situaQoes

durfssin1as. 0 hun10r surge justamente em l11ornentos muitas vezes

eferl1cros de ucrise cla linguagelTI", eln que ha pequenas vitorias

contra a opressao cIa fala.

Sempre gostei dessa palavra people. Nunca de chamar as

pessoas peIo nome. Naquela epoca, tempos idos, tinha aqueIe ne

gocio de chamar [lfulano", e a po]fcia estava perto, entao eu preferia

chamar assim people . ... E a1 todo mundo me chamava de People,

porque raramente me chamam de Doacir. Inclusive, po, gosto de

conversar, p a r e ~ o aqueles homens da caverna, entendeu? Nao sei

se as homens da caverna eram assim, que ficam dentro da sua toea

e quando vem conversar come'.;am "bla bla bla bhi". Tem que sair7mas nao conseguem paraI.

Esse pequeno depoimento, pleno de grac;;a e de astucia, ar

ticula express5es de poueo usa atualmente como l(tempos idos",

_para relatar uma estrategia de defesa contra a polfcia pelo emprego

da palavra inglesa people. Ao mesrno tempo traduz aperfcic;;ao a

alegria de falar, que 0 entrevistado sup5e ser consciente de que

pode nao ter sido bern assirn - a do hornem das cavernas quando

saia da toea.

o carater social da. fala

Essa habilidade narrativa pertence a quase todos os personagens

do filme. Nao se trata de poueos e longos depoimentos, como

ern Boca de Lixo e Santo Forie, mas de uma rede extensa e va-

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riada, em que falas curtas, medias ou longas deslizam umas sabre as outras,

imprimindo variac;5es e modulas;6es a ingua portuguesa, fazendo 0 idioma

dominante trabalhar. Nao sao organizadas pelo tema, como em Santa Marta,

nern se referern, como ja vimos, a urn assunto preponderante. A montagem

prioriza a expressao dos personagens, 0 fluxo das palavras e a que e narrado,e tern a temporalidade como fio condutor.

Se a participac;ao do personagem e curta, como no caso de People,

o que e1e nos diz faz ressoar algo fundamental ao filme inteiro) que e a

vontade de falar e a engenhosidade no trato com a lingua. People nao fOl

ali inserido para completar qualquer ideia exposta por outro morador ou

para falar de urn tema especffico. Qutros depoimentos breves vinculam

mais concretamente 0 filme a passagem do ano, dao a ele uma conexao

com 0 presente, a atualidade e a contingencia da filmagem. Uma especie

de lembrete: trata-se de urn documentario gravado em urn dia especffico,em meio a urn acontecimento que envolve todo ITlundo. Seria diferente se

- 0 momento Fosse outro.

E neste filme que Coutinho renova e complexifica a rela<;,:ao entre 0

singular e 0 coletivo, ou 0 particular e 0 geral, por meio da explora<;ao do que

podemos chamar de "carMer social da fala". Na trama tecida pelos varios dis

cursos, Babilonia 2000 traz asuperffcie, a inguagem, ao que edito, os efeitos

das misturas ocorridas "em profundidade", ~ o longo do tempo, ao longo da

vida daqueles moradores. Ha sem duvida urn campo social comum a todos

eles e tudo 0 que dizem esta encharcado das condic;6es sociais e do contexto

historico em que se encontram. E efetivamente urn portugues personaliza

do, mas nao fruto de urn ato criativo individuaL Nao pode ser explicado por

condic;6es especfficas e exclusivas daquele que se expressa.

Vimos em Santo Forte que e no contato com Coutinho, com 0 tipo de

escuta que ele coldca em campo, que as ideias dos seus personagens van

tomando forma. A fala deles emerge em funS;ao da intera<;,:ao com as palavras

do cineasta. Essa emergencia nao se limita, porem, a situa<;,:ao imediata da

entrevista. E arnbem afetada par urn universo mais amplo, que e a horizontesocial do entrevistado, a the fornecer experiencias e urn estoque de palavras

a serem usadas. Portanto ena propria fala, no que e dito, nas palavras usadas,

nessas manifestac;5es visiveis e audfveis, "de superficie", que se torna possivel

entrever a vida desses moradores de forma abrangente, e ao _mesmo tempo de

forma intima e pessoal.

Sao inumeros os exemplos, em Babilonia, de falas com essas caracteris

ticas, povoadas par vozes alheias, marcadas par uma variedade de discursos

de diferentes origens. A comec;ar peIo depoimento de Fatima, conhecida no 131

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Fatima, conhecida como

Janis Joplin, e a primeira

entrevistada do dia 31

de dezembro de 1999.

Fatima canta "Me

an d Bobby McGuee",

sucesso da cantora

norte-americana Jan is

Joplin, demonstrando

total desembaras:o

diante da camera.

morro como Janis Joplin, prilneira entre

vistada da manha: do dia 31 de dezembro.

Ela estava pintando 0 cabelo quando a '

equipe de Coutinho chegou. I(Nao e

porqUe a gente e pobre que tern que serrelaxada. A aparencia e fundamental na

vida ('0 ser humano", diz, ja injetando em

uma ufrase feita" uma energia inusitada.

Conta em seguida que ol1viu muito a Jo-

vern Guarda nos anos 60, que foi hippie

nos 70, leu Hern1an Hesse e adorava Janis Joplin. Diz ainda que

perdeu 0 filho Sidarta e 0 marido no trafico de drogas; ambos foram

2;ssassinados. Fala tambcm de satanas e exp5e uma visao a p o c a l i p ~ tico-tecnologica do final dos tempos. "0 satanas vai vir por meioda internet e vai marcar as pessoas com urn chip na testa." Ha lin

guagens especfficas de determinadas gera<;6es e grupos sociais, nas

quais e POSSIVeI identificar obediencia e submissao a certas regras

(da lfngua, da religiao etc.), mas tambem indisciplina, reheliao,

oposi<;ao, vias de escape. Linguagens inesperadas na boca de uma

moradora da favela e sem possibilidade de sfntese (ex-hippie, leitora

de Hesse, evangclica e viuva de traficante) que perturbam de ime

diato qualquer imagem de lifavelado" que tivessemos em mente.

Dona Djanira veio de Minas Gerais aos 14 anos de idade para

ser empregada domestica. Foi "praticando cozinheira" e acabou

trabalhando no triplex de uma famIlia amiga de Juscelino Ku

bitschek. Nas entrelinhas, sugere que 0 ex-presidente era amante

da dona da casa. "Ninguem tinha coragem de pegar ele la fora.

Quem colocava ele dentro do apartamento era eu, porque todo

mundo tinha vergonha de busca-lo. Eu ia Ia na avenida Atlantica,

... assobiava para ele e ele vinha todo de presidentinho."

As palavras de Dona Djanira indicanl mundos peIos quais elapasson e fazem vislumbrar contextos de outras epocas. "Juscelino

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era mulherengo! Era bonitao, simpati

co, mas ea doen<;;a do homem" ruz ela,

1embrando que a mae ('engomava" 0 pai

para ir para farra, pois "0 homem e da

rua, e a mulher, de dentro casa", emuma aparente aceitac;ao desse machismo

abrasileira: Acrescenta porem que com

e1a, nao. Nao aceitaria uma situa<;ao

assim, " n a n a ~ n i n a - n a o , porque tern de

haver respeito, mulher nao e cachorro".

A £lha, Cida, professora no morro, tern a mesma vitalidade

da mae ao conversar com Coutinho e e uma exfmia inventora de

express5es. Diverte-se em explorar a capacidade que as palavras

tern de significar coisas diferentes do esperado. Fez Uteatro do

oprimido" com Augusto Boal durante cinco anos. 0 pai, que se

chamava seu Antonio, morreu; "gente finfssima, da alta respon

sabilidade, esta no andar de cima". 0 irmao) urn policial militar,

foi morto por urn colega, em uma queilna de arquivo: '(Modestia

aparte, meu irmao era 0 Sidney Poi tier do Brasil, do

Rio de Janeiro." Em quase todos os depoimentos, ha .

relatos de morte vio1enta na familia, seja em fun<;ao do

trafico, de conflitos com a polfcia ou de balas perdidas.

Contrariamente a essas personagens que se expres

sam as maravilhas, ha no filme urn jovem que exprime na

propria fala boa parte da opressao que so:&e no mundo.

A s o c ~ d a d e ve a gente de outra forma porque a gente tern rna

aparencia. Porque mora em morro pensa que a gente epericuloso,

mas a gente nao epericuloso, ja falei, somos humildes e simp]es.

A pobreza que fez a assim, nao foi a que quis ser assirn.

Como cidadao sirnplesmehte vou pagar urn banho, as dez horas

vou estar arrumado, quando cler meia-noite vou ver as fogos. Eu

nao bebo nenhum tipo de bebida, so refrigerante) agua e vitamina,

de beterraba e cenoura) como ;a falei, e pretendo ver os fogos e

voltar pra cama. Ja f>3lei pra voce que puxei uma cadeia e agora

me entreguei asociedade. Estou sendo digno dela, da sociedade,

estou trabalhando, de tres em tres meses estou assinando direiti

nho, estou sendo urn novo cidadao. Como ja era antes, quando

urn policial me jogou no xadrez, cheio de vagabundo que eu nao

Dona Djanira relata

como era encarregada

de receber Juscelino

Kubitschek na casa

onde trabalhava

como domestica.

Cida, professora no

morro da Babilonia,

epossuidora de uma

fala vigorosa, cheia de

express6es pr6prias.

133

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LuizCarlos exprime

na fala parte da

opressao que Ihe eimposta pelo mundo.

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conhec;o, cheio de medo, foi passando, foi passando, quase fi-

quei meio maluco cla cabec;a. Mas eu superei isso tudo e estou

novamente na sociedade. E, como cliz 0 ditado, yOU cumprir a

lei ate a minha morte.

Esse e urn personagem que encontra na linguagem

urn inimigo, urn conjunto de regras que 0 humilha e ern

relaQao ao qual nao consegue com liberdade algu

rna ou impor qualquer oposiQao. Trata-se de uma fala

atravessada pelos cliches do nosso tempo, que fornecem

a ele as palavras corn as quais exprime penosamente uma

desarticulada visao de mundo. Nela, uma profusao de

referencias t r ~ l n c a d a s e sem ritmo revela universos corn

os quais teve e tern contato vocabulario policiaI, expressoes daprisao (pagar urn banho"), [arrapos de urn discurso da cidaq,a

nia. Uma fala tra.gica, amea<;;ada de sucurnbir ao silencio, q1.,le

emerge da angustia de nao poder comunicar e deixa entrev7r

que 0 desamparo e a opressao dos pobres nao se rnanifestaql

apenas no "conteudo" da vida que levam e daquilo que dizelll,

mas se instalam na propria forma de dizer 0 mundo.

Do rnesmo modo que com esses entrevistados, a nossa [ala

tambem esta repleta de palavras dos outros que assimilamos

tuitivarnente com mais ou menos engenhosidade, com maior bh

menor sujeigao, com rnais ou menos alterac;6es e reestrutura<;;oes:.

Somos urn amontoado de praticas discursivas, falamos sempi'e

a partir de urn sem-numero discursos, a maio ria dos quais

ignoramos. No morro da BabiJonia, tal como 9 vemos no f i l m · e ~ . a a s s i m i l a ~ a o e reorganizac;ao dessas prMicas sao feitas em geral

com imensa criatividade.

Dificilmente escutaremos urn termo do universo da sociologia

ser utilizado na fala cotidiana com a destreza de Roseli, ao descre-"ver sua re1ac;ao com a comunidade: "Nos fomos criadas aqui, nos.

nascemos aqui, nos nao somos mais produtos do meio, Inas f o m o ~ ' criadas no meio e nao esquecemos a meio. Agente nao vive mais nd:

meio, eu e ela, mas Ineus pais moraln aqui." A e n t o n a ~ a o que ela

daao termo e a vivacidade com que 0 articula fazem com que

o sentido da palavra ameio" se exaspere, ganhe novas v i b r a ~ 6 e s , longe dos cliches da linguagem academica. Uma palavra que

caiu na vida de Roseli em algum momento, se misturando a sua

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propria hist6ria, e que agora ela devolve ao mundo mais colorida,

fazendo circular de frase em frase, abrindo brechas e jogando ar

fresco numa suposta ordem entre as palavras e as coisas.

Rimos novamente desse jogo de cintura, dessa liberdade;

rimos ao constatar que Roseh encontra linhas de fuga elll meio

a submissao imposta pela linguagem dominante e homogenea.

E evidente que foi bus car intuitivamente essa palavra, que sabe

pertencer a uma fala mais cultivada, em algum lugar perdido da

men10ria, por causa da entrevista,.para nos "impressionar". Assim

como Herman Hesse e Juscelino foram «convocados" para compor

ouiros auto-retratos do filme. Nao importa. 0 que conta e 0 fato

eles terem essas referencias e se apropriarem delas de modo

extremamente original.

A fala cotidiana sofre nos filmes de Coutinho, e especificamente

ern Babilonia 2000, uma transformac;ao no sentido de uma fala

de dimensao e s t t ~ t i c a . Ao captar a complexidade e a variedade de

modu1ac;6es da lingua portuguesa no uso que dela fazem os mo

radores do morro da Babilonia, 0 documentirio nos faz ver uma

"arte do desvio" ~ como diria Michel de Certeau. N ele esta' em

questao urn retorno a nvenc;ao e ao prazer de falar. f A entonac;ao

e a escolha de palavras por parte dos moradores sao fundamentaispara imprimir uma dimensao Uautoral" a essa fala cotidiana. Nao

sem razao Coutinho da especial impOltancia a esse aspecto nos

documentarios que realiza. A entonac;ao e, dentre todos os aspectos,

o que articula mafs fortemente 0 material que preexiste, repetivel

(vocabulario, gramatica, sintaxe), a uma sihlac;aO nova e unica em

que uma fala acontece. Enche de vida tudo 0 que emeramente

lingtifstico e amplia a capacidade das palavras adquirirem novos

ou inesperados sentidos.5

Roseli se revela uma

"especialista" na r e l a ~ a o com as imagens. Diz

ao diretor: ({Voce quer

pobreza mesmo?", "Ah,

sei, comunidade .. ".

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:It tambem por essa aten<;ao adimensao autoral das falas dos personagens que

seus £lImes resistem ao tempo com tanto vigor. Sao relatos inruviduais em que

se inscrevem - tanto na uforma71

quanto no l< conteudo" pequenas alegrias,

pequenas liberdades, ruminutas r e a ~ 6 e s das camadas populares brasileiras e lima

soma inimaginavel de sofTimento; feridas nao cicatrizadas ou sequer c u i d a ~ a s perseguic;;ao politica, m i g r a ~ a o fon;ada;> trabalho domestico, violencia, ma-

chismo, racismo - a nos lembrar que toda fala esempre de natureza social;

singular, sem dlivida, mas individual e coletiva ao lnesmo tempo.

o autor demiurgo

A divisao entre varias equipes, 0 fato de llma boa par te das entre vistas nag

ter sido feita por Coutinho, esse deslocamento da autoridade do diretor nas'

£llmagens provocou reac;;5es variadas. "A ideia de urn sujeito criador unicg

ainda e muito cara para os crfticos", diz ele. Poucas reflex5es foram feitas Cl

respeito dessa questao no entanto central no £lIme. Era como se isso na(f

contasse efetivamente para 0 document-irio, Fosse apenas urn detalhe, ou pioT"

atrapalhasse 0 £lIme. As perguntas que nao eram c1aramente de Coutinho

foram criticadas em alguns artigos. Em urn dos debates que se seguiram ~ projec;;ao de BabilOnia 2000, uma jovem estudante, urn tanto revoltada, quis

saber por que ele assinava 0 documentario, ja que DaO estava 0 tempo todo

na imagem, expressando urn descontentamento com a presenc;;a de outros'

entrevistadores.

, - , A questao da autoria talvez seja urn dos pontos crrticos que esse filme :

tcoloca. Eu assino 0 filme, mas a partir de ene pessoas que me deram coisas,

como ja acontecia de certa maneira nos rneus outros filmes.... No fundo, tantO -

a questao da auto ria quanto do custo baixo e a do acaso abrem caminho para a .

dessacralizas:ao da Arte com A maiusculo. E sem deixar de ser criativo. , , 6

Com esse £lJme, mas talnbem em toda a sua trajetoria, 0 que Coutinho faz einventar dispositivos para fazer seus filmes, mas indiretamente abre urn campo

de possibilidades para outras r e a l i z a < ; 6 ~ s . 0 que nao significa absolutamente

que ele cleva ser repeticlo como dogma de referenciaJ

assim como nao deve

determinar as interpretac;;oes de suas obras. Coutinho Ian<,;a flechas em muitas

dire<;6es. "E se ele e ealmente autor, e grande, nao esta imune as suas proprias

flechadas. 0 texto 0 ultrapassa e 0 trai, e essa ea realiza<,;ao do autor".7

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Amontagem de BabilOnia 2000 durou menos de tres meses.

Com os textos das falas e 0 material visto, Cou-

tinho entroll em processo de e d i ~ a o em m a r ~ o de 2000.

Embora trabalhasse na montagem apenas com Jordana

Berg, fez varias reuni6es com quem tinha participado dofilme para assistir as vers5es que foram surgindo e debate

las. As angiistias de Santo Forte haviam sido deixadas para

tras. llO fato de ter tido varias pessoas filmando, dirigindo,

deu ao Coutinho uma como se ele nao fosse res

ponsavel. Obvio que e responsavel pelo que entrou, mas

tinha uma leveza muito grande. Manuseava 0 material sem

dar, sem culpa, como urn editor, como eu", conta Jordana.

Decidiu inserir na imagem 0 horario em que as

entrevistas foram realizadas, permitindo ao espectador

acornpanhar a passagem do tempo e esperar tambem

pela meia-noite. Em um a das ultimas versoes, 0 in

clufa ainda cenas gravadas na manha do dia 3 de Ic;;LU .... ~ ~ V . o diretor nao queria terminar com as fogos de artiffcio,

uma o p ~ a o , segundo "obscena", que suge'riria algo

como "todos somos iguais, unidos na festa1 t.

Ja virn?s em outros filmes do diretor que 0 final e sempre

uma questao importante, avesso que ele e a qualquer conclusao

que cristalize urn deterrninado sentido ou apazigue 0 espectador.

Santo Forte termina com urn plano sequencia do quarto de dona

Thereza, onde os netos dela dormem. Vemos detalhes da "deco

r a ~ a o » e urn pequeno altar. Urn plano expressivo da vida daquela

personagem, mas sem qualquer ideia de fechamento.

Em Babilonia2000 0 acaso favoreceu 0 diretor. No material de

filmagem encontrou um a conversa ocorrida urn POllCO depois da

queima de fogos, entre Geraldo Pereira, diretor uma das equipes,

e urn grupo de moradores, em que e etomada uma questao quepercorre todo a filme: 0 estigma da favela. "Eu convido a socieda

de para curtir urn Ano Novo aqui no morro. 0 morro esta aberto,

fazem mau jUlzo da gente, nao enada disso que eles pensam,

que 0 morro s6 cria bandido. 1sso aqui euma casa de amigos." No

final, urn deles diz i/acabou a reportagern", chama a equipe para

urn churrasco, vira para a camera e ordena: UCorta!". Ou seja, nao

ha uma conclusao, mas uma interrup<;.:ao do filme pela fala e pelo

gesto de urn personagem - confirmada depois pela montagem.

Planas feitos do ponto

de vista de quem esta

no morro, marcando a

passagem do tempo. Em

BabilOnia 2000 a favelajamais evista de fora.

137

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Vma finalizac;ao arbitraria que evoca a impossibilidade de "conduir" uma obra,

de definir 0 que acabamos de ver.

Ao eontrario da filmagem e da montagem, a finaliza<;Jo de Babilonia 2000

foi muito longa. Fez-se a kinescopagem em Nova York, porque 0 processo no

Brasil ainda nao tinha a qualidade desejada.0

filme fieou pronto em dezembrode 2000, e sua primeira exibi9ao foi no morro da Babilonia, no dia 31, exata

mente urn ana depois das grava90es. No processo de montagem, finaliza930 e

transferencia do vIdeo para a pelfcula, 0 documentario nao chegou a 400 mil

reais, custo medio das outras produc;5es do diretor. Babilonia 2000 estreou nQ

dia 5de janeiro de 2001, no Rio de Janeiro.

Notas

1. 0 documentario chama-se Chapeu Mangueira e BabilOnia, Hist6rias do Morro (1999, 52 min.).

2. Gilles De1euze, L6gica do sentido, p.325.

3. GiBes Deleuze, A imagem-tempo, p.l85.

4. Michel de Certeau, A inveru,;fio do cotidiano, p.90.

5. Mikhail Bakhtin enfatiza a entonac;;ao como aquilo que marca a dimensao autoral no 110SS0 dialog6'

corn°mundo.

6. Eduardo Coutinho, entrevista a Claudia Mesquita, p.9.

7. Olandina Pacheco, Sujeito e singularidade, p.82.