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r e v i s t a d e a r t e 00 ano I | mai - jul | 2012

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Ano I Mai | Jun | Jul 2012 Tema | Linhas

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r e v i s t a d e a r t e

00ano I | mai - jul | 2012

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í n d i c eDa Falsa Moral e do bom coração poema de Edmilson de Almeida Pereira obra de Leonilson 6Aquilo que se toca naquilo que se vêensaio de Nina Mello 23O espírito da tramatexto crítico de Cristiano Rodrigues 45 Ponto a pontoreportagem de Mauro Morais fotos de Nina Mello 50

O desbordamento de práticas invisíveis na arte contemporâneaensaio crítico de Andréa Senra 52Máquina do tempoensaio de Priscilla de Paula 55O tempo que se esculpe em pacientes mãos de crochêtexto crítico de Rosane Preciosa 60O tempo entre os excessosreportagem de Mauro Morais 70As muitas fronteiras dos trilhosreportagem de Mauro Morais 80

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EDIÇÃO 00 | MAI JUN JUL | 2012 | ANO 1

tema LINHAS

idealização ESPAÇO EXPERIMENTAL NINA MELLO edição de textos LILIAN PACE reportagem MAURO MORAIS

edição de fotografia NINA MELLO fotos NINA MELLO | MARINA COSTA

projeto gráfico e editoração eletrônica HELIANA QUEIROZ arte capa MÁRIO TARCITANO

colaboraçãoANDRÉA SENRA

CRISTIANO RODRIGUESEDIMILSON DE ALMEIDA PEREIRA

PRISCILLA DE PAULAROSANE PRECIOSA

agradecimentosANDRÉA ZOET

LOUISE FONSECAPROJETO LEONILSON

primeira capaNINA MELLOsegunda capa

PRISCILLA DE PAULA | FOTO MARINA COSTA

e x p e d i e n t e

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“Há momentos em que a arte atinge quase a dignidade de trabalho manual.” Oscar Wilde

A linha na agulha, a agulha na máquina e o motor a matraquear. Matraqueavam também as mulheres. Eram quatro, às vezes cinco – mãe, avó e tias. No quarto de costura, o cheiro dos panos, os sons abafados pelos panos e eu aprendendo a vida. Lá fora, a linha do trem e, na varanda, o avô me ensinava a contar, contando os vagões. Para escrever este editorial carecia distanciamento, mas como distanciar-se daquilo que emociona, de temas que são caros? Os sons, cheiros e gostos da infância no quarto de costura, perto da linha do trem, materializaram-se intensamente nas imagens de Nina Mello e Marina Costa e nas palavras de Mauro Morais sobre costureiras e alfaiates e sobre a linha férrea que corta Juiz de Fora. Então, sem distanciamento ou objetividade, vamos às apresentações. A revista Linha chega em formato eletrônico querendo ser lugar de crítica e reflexão sobre a arte que se faz, que se deseja, que se projeta. Não por acaso, ela surge como conseqüência dos 30 meses de intensa atividade do Espaço Experimental Nina Mello. Neste número de estreia, a colaboração luxuosa de Andrea Senra, Cristiano Rodrigues, Priscilla de Paula e Rosane Preciosa. Em todas, emoção e lirismo tomam corpo em letras e imagens só para depois, sob novos olhos, voltarem a virar emoção. Porque, afinal, como nos preveniu Gide, “a arte é a recaída de um fervor”.

Lilian Pace

A precisão da agulha e o matraquear do trem

ed

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Leonilson, 1957 - Fortaleza - 1993 , São Paulo

Da Falsa Moral, c. 1993ordado sobre camisa e pique costurado e cadeira de madeira

92,0 x 55,0 x 50cmFoto: Eduardo Brandão

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esta, capa que de siincerta, ajusta:a seu modo erra.

aquele, gêmeo queparte a corda. a seu modo emenda.

Estar ao lado não é estar a par. Nem sempre o braço que irmana é irmão. Tem, se puderes,o alforje pronto. A mão Apta

a ler no escuro osdocumentos.Quem vai ao lado,sopra nos pulmões a receitacontra os tiranos:o fino pó,o vidro que em

Da falsa moral, do bom coraçãoEdimilson de Almeida Pereira

alguma provínciamoeu-se. No entanto,contra todos a fineza

se arvora. Sem marcas,adesiva:“Um braçoao redor como uma

forca”. Tem, se puderes,uma cartana manga: a mãeteceu o berço,

a contrapelo,as fronteiras. Retrocedee saltaos diálogos

da conivência. Nãotensque permanecer ao ladoda estátua,

dentro do esquema.O coração,que nada mede,é o mundo.

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aquilo que toca, naquilo que sente

Entre panos e cores a difícil tarefa de traduzir em palavras aquilo que sinto.Em meio a tecidos que cobrem e tons que desnudam, percorro o interior

dessas lojas. Na infância, guiada pelas mãos quentes de minha mãe, espiava esse universo (quase fantástico) com o bailar das mãos e o revirar dos olhos. Penetrava essa exposição, desenrolava prateleiras e estendia as longas bancadas. Hoje, numa ação involuntária, percorre o meu olhar pelo visor da câmera. Enquadro esse inquietante mundo de lembranças e sensações.

A técnica não mais me enrijece, me desobriga. O que enquadro, necessariamente, não é o que vejo. É o que sinto. Cores, luzes e texturas se misturam e se traduzem em possibilidades. O tecido que molda, que cobre, que veste, que fantasia, que decifra, que orna e que liberta permeia a criança e a mulher. Transito entre o lúdico e o real. Em meio a farra, jogos e sonhos, nado em sedas, me enrolo em devorê e me escondo em tules. Chitas e viscoses dão o tom da brincadeira. O movimento flui. E na fluidez encontro meu pano de fundo.

Nina Mello

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o espírito da t r a m aCristiano Rodrigues

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Fui jovem no início dos anos 80 e minha geração herdou um desconforto com as normas e padrões sociais impostos por um consumo exacerbado e certa cultura ao individualismo. Lembro bem de uma ocasião em que um grande amigo largou tudo para viver em uma comunidade alternativa. Iniciativa que nós que ficamos, invejávamos e vibrávamos com tamanha coragem e desprendimento.

Em sua primeira visita a civilização ele contou emocionado que ao chegar à comunidade, o grupo que se iniciava nessa nova vida, tinha que deixar toda a sua bagagem no centro de uma roda e após orações e mantras no girar da grande roda, apanhavam apenas o que precisariam para viver. O restante era redirecionado a outros fins.

Pronto. Meu encantamento com a vida alternativa acabou naquele momento.

Recordo que a primeira pergunta que fiz a ele foi a seguinte:

– Como assim? E as suas roupas?

– São desnecessárias, posso viver com qualquer pano! – ele me respondeu feliz.

...

Ah não.... Para mim roupa é diálogo, é identidade, é discurso.Falo intensamente e profundamente através do que escolho para vestir. Nas entrelinhas do meu jeans e da minha camisa de malha está muito do que penso sobre o mundo e de como pretendo me relacionar com ele.

Os tecidos, as tramas, os cortes e modelos trazem em si uma infinidade de informações sobre um sujeito, uma época, um local, uma emoção... e é aí que entra o olhar do artista!

Em sua trajetória de descobrir nos meandros de tanta luz e

cor das intermináveis tramas de algodão, a fotógrafa Nina Melo nos desvenda a potência e a sutileza desses cortes, o espírito guardado que um dia vai cobrir ou revelar um corpo.

Como o alfabeto, que precisa da ação do homem para ganhar sentido nas palavras e orações, os tecidos aguardam ansiosos a destreza de uma mão para no corte e no modelo, na costura e no acabamento ganhar a forma e o sentido criado pela ação do homem e finalmente o tato e o afeto da pessoa que veste. Aí o ciclo é fechado. Finalmente a trama de algodão, cores e desenhos, ganha sabores e sentidos que nossa emoção e nossa cultura imprime... mas será que toda essa emoção já não estava lá guardada na pureza da matéria, no rolo descansando na prateleira ou na incansável busca do olhar por traz das lentes?... é essa pergunta que me envolve ao me deparar com a beleza e a força dessas imagens...

Nas fotos de Nina Mello, cada tecido nos remete a uma situação, a um clima, a uma vida... sem muita força, nossa imaginação consegue ver uma pessoa do nosso convívio que poderia perfeitamente estar vestida com um ou outro tecido. Por quê?...Talvez o olhar da artista, mais do que tecidos, nos traz o espírito por traz da trama, o desejo impresso nessas cores e formas cuidadosamente elaboradas pela criação humana.

O espírito presente nas tramas é tão potente, reforça tanto o poder do indivíduo que não é a toa que todo pensamento totalitário precisa de uniformes para eliminar a expressão individual. E o mais deslumbrante é que essa expressão individual vai sendo construída por diferentes pessoas e processos desde a colheita, passando pela tecelagem, pelo corte, pelo modelo, pela costura e finalmente pelo corpo de quem veste... todas essas humanidades estão presentes no ato de vestir (ou despir) e é essa humanidade que me salta aos olhos ao mirar a fluidez e o pano de fundo de Nina Melo.

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Ponto a pontoDo papel para o corpo, um trabalho de sensibilidade e precisão. Conhecemos o universo do corte e costura, ofício que alinhava novos caminhos na contemporaneidade.

Texto Mauro MoraisFotos Nina Mello

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p r ó l o g o

Não há lembrança que, quando emocionalmente marcante, se permita esquecida. O ambiente, que se faz repleto de tecidos e retrozes de linha, habitado por mesas enormes e desenhos habilmente traçados, perigoso por suas grandes tesouras e pontudas agulhas, faz moradia na memória de muitos, num espaço entre o fabular e o real. De forma semelhante, não há palavra que não carregue consigo as referências de quem comanda a caneta, ou dedilha o teclado. Persiste, no imaginário coletivo, a pureza dos textos jornalísticos, porém, alguns temas são caros demais para se vender à objetividade e ao distanciamento. Exercício cruel abordar o ofício de costureiras e alfaiates, quando a própria história de quem reporta, alinhava os meandros do corte e da costura.

Ao escolher desenrolar o rolo tecido por essas histórias, memórias emocionadas se enovelaram às questões artísticas que permeiam trajetórias pessoais daqueles, que por ora, se desejavam coadjuvantes destas linhas. Das perguntas já respondidas à imagem intuitiva dos profissionais por trás das roupas, a reportagem se fez sozinha. Da escolha por perseguir o arriscado caminho das recordações mais íntimas se fez a certeza de que falar de costura é falar em primeira pessoa, mesmo que por trás dos panos.

“num delírio de arquivística,organizei a memória em alfabetoscomo quem conta carneiros e amansa”

(trecho de Contagem regressivo, de Ana Cristina César. In: Inéditos e dispersos)

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Após terminar o estudo primário, “do grupo”, Luiz Geraldo passou uma semana jogando bola, “numa vida boa danada”. Mal sabia ele, que diante de uma forçosa decisão instada pela mãe, teria a vida boa danada em todos os seus próximos dias. Luiz Geraldo, ou apenas L. Geraldo, como informa a etiqueta que insere em cada peça que faz, escolheu ser alfaiate. Nascido em Rio Novo, numa família de origem pobre, viu-se obrigado, ainda menino, a ter um ofício. “Era sábado e minha mãe sentou no banco e falou: Olha! Acabou sua mamata. Já conversei com um alfaiate, com o dono do armazém, pra você carregar caixote, sem futuro nenhum, e conversei com o sapateiro lá da praça. Você escolhe! Segunda-feira vai começar”, recorda-se, no alto de seus

77 anos e mais de meio século de carreira.Logo no primeiro dia de trabalho (ou de

aprendizado), o mestre amarrou o dedo do garoto e ensinou-lhe a arte das agulhas. Naquele dia Luiz ficou empurrando a agulha, sem linha, no pano. No segundo, utilizou a linha. A semana rendeu-lhe 15 cruzeiros. Três meses depois já arrematava paletó. E passado alguns anos, transferia-se para Juiz de Fora, a fim de trabalhar com profissionais renomados na região. Pelas bandas de cá, conheceu famosas alfaiatarias, como a de Damiance e Magalhães, no Edifício Sedan, a de Oscar Ribeiro, a de Vicente Rosa, a de Pacheco, a de Zanzoni, e a Londrina, dentre muitas outras que a memória lhe permite lembrar.

A precisão em cores sóbrias

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Luiz Geraldo, o senhor de cabelos brancos, óculos na ponta do nariz, e fino trato na camisa e calça sociais com que desfila pela casa, conheceu a efervescente era da alta costura no país. Mostras de uma elevada industrialização e dos interesses pela urbanização, as indústrias têxteis fixaram-se, prioritariamente, em Minas Gerais. Segundo as pesquisadoras Tânia Gonçalves e Flávia Calvano, no artigo intitulado Um olhar geográfico sobre a indústria têxtil em território juiz-forano, o baixo valor do algodão, favoreceu diretamente a implantação de fábricas de tecidos em território mineiro no século XIX. Com o desenvolvimento tecnológico e com a alta demanda, oriunda de imigrantes, que se fixavam na região para colaborar em projetos de urbanização, as indústrias ganharam força no início do século XX, deixando os tecidos como marca do estado.

No discurso do Seu Luiz: “Juiz de Fora era um celeiro de alfaiates. Aqui tinha tantas alfaiatarias, tudo profissional de primeira qualidade”. Somando-se à esse grupo, o já experiente rapaz fixou-se, em 1957, na Galeria Hallack, numa grande loja que carregava seu nome, tal qual as 5.000 etiquetas, produzidas à época e sobreviventes ao tempo. Cinco anos depois, transferiu-se para o Edifício Salzer, onde permaneceu por mais de duas décadas. Como numa peregrinação, ainda passou 11 anos nas três salas alugadas no Edifício Juiz de Fora para depois estabelecer-se onde trabalha até hoje, na própria casa. Inspirado, o endereço diz muito sobre o profissional: rua dos Artistas, bairro da Glória.

Nos tempos áureos, entregava por semana, contando com uma extensa equipe, cerca de cinco ternos completos e 20 calças. E olha que o ofício exige um complexo processo: Primeiro traça as medidas no corpo do freguês, que veste uma espécie de colete-molde. Dali, traça na fazenda (o pano!) – que hoje fica à cargo do cliente, mas

antigamente era oferecida por ele – e corta. Num preciso caminho, alinhava todo o projeto de terno, para em seguida fazer a prova. Assim, desmancha tudo, acerta o que há para consertar e, enfim, finaliza. “A profissão de alfaiate é uma engenharia”, diz aos risos, rememorando a época em que cada etapa era feita por um profissional, havia o cortador e montador (geralmente o alfaiate ficava com essa fase e delegava as outras aos assistentes), o provador e o acabador.

Hoje, Seu Luiz faz tudo e só delega a finalização das calças, que sempre ficaram à cargo de um calceiro. Remanescente de um ofício que movimentava o cotidiano da cidade, o alfaiate conta que ganhou muito dinheiro na profissão. Grande parte perdida numa vida de “farrista”, como ele mesmo diz. Mesmo debilitado, reunindo nos dedos das mãos os colegas que ainda persistem, continua a trabalhar para complementar a escassa quantia de sua aposentadoria, outrora farta. Tendo à vista a grossa agenda de clientes, ele vê as páginas aumentaram no mesmo vagar em que produz suas peças. “Hoje eu estou light”, afirma, no mesmo tom em que prenuncia: “Eu já estou no fim da carreira”.

Afeito aos cortes clássicos, ainda permite-se analisar: “O (terno de) dois botões nunca cai de moda”. E também alfineta: “Roupa pronta é tudo igual, só muda o cumprimento”. Entre a mansidão característica da idade avançada e a euforia das recordações, Seu Luiz Geraldo reconhece os novos rumos do ofício, que segundo ele, deve partir de um dom. Imerso nas cores sóbrias que ocupam seu pequeno ateliê, que do dedal furado à pesada e agigantada tesoura denuncia as diferenças do universo masculino, o alfaiate emociona-se ao certificar-se, após a resposta de sua pergunta retórica, que o que fez durante toda a vida é arte.

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Alva não permite que outros vejam, antes de suas freguesas, a roupa que deu por finalizada. Fiel às suas clientes, Alva guarda às sete chaves suas encomendas, como que a segredar algo que não é seu. Irônico, quando olhada as muitas janelas que a observam trabalhar no alto do Edifício Solar do Progresso, no coração de Juiz de Fora. Alva escolheu fixar sua máquina de costura bem abaixo da larga janela sem cortinas, da ampla sala no décimo andar do prédio. Certamente, a experiente costureira já se deu conta de que aquelas muitas janelinhas não conseguiriam captar os detalhes de sua artesania.

Natural de Descoberto, Alva Neves aprendeu o ofício de costureira aos 11 anos, com uma professora que atendia pelo apelido de Figeninha, um carinhoso diminutivo para Efigênia. Atenta à técnica do corte e costura e às mais variadas texturas e tramas dos tecidos, a jovem se entregou à prática bastante frequente em sua casa, se rendeu às afetivas lembranças de sua mãe e sua avó debruçadas em máquinas. Por dez anos permaneceu na terra natal, mas, no desejo de ampliar sua clientela e por consequência seus rendimentos, transferiu-se para a cidade que hoje criou raízes.

À convite de uma prima, veio provar

um vestido e por aqui ficou. “Fui tentando a sorte, saí da casa dela, morei em pensão, aluguei apartamento, fui crescendo”, enumera Alva, que, no início da profissão, montou uma confecção, mas, pelo caráter industrial e pouco meticuloso, desistiu e decidiu-se pela alta costura. Numa trajetória que completa 50 anos este ano, a costureira passou por diversos endereços, e, há oito anos, fixou-se no atual.

Trabalhando de segunda a sábado, ela segue o horário comercial, e como a desprezar o fato de ser sua própria patroa, preserva suas pontuais duas horas de almoço – “é sagrado!”. Num comportamento de visível distanciamento, é enfática ao explicar o porquê de seu ateliê não funcionar em sua residência: “Eu gosto de ter a minha privacidade”. Porém, derrama-se ao falar da profissão, apontando nos detalhes e no cuidado com a feitura de cada peça o próprio encantamento. “Grande parte da roupa é feita à mão, ponto a ponto. Esse é um diferencial”, reivindica a profissional, que no dia a dia veste blusa e calça cumprida, de preferência feitas em crepe, e compra pronta, apenas, calças jeans.

Numa rotina peculiar, Alva é cúmplice das misteriosas medidas das mulheres que a procuram, num processo que se

A delicadeza em tecidos finos

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inicia em bate-papo informal, na procura do melhor tecido e na decisão da mais justa metragem. Em seguida, com o pano comprado, e a peça montada, é feita a prova, que no caso de um vestido de noiva, especialidade da costureira, pode chegar a três visitas. As peças prontas são guardadas num grande armário, escondida em sacos e dispostas em cabides, à espera do primeiro olhar, que deverá ser daquela que aguarda.

Preocupada em registrar seu trabalho, ela fotografa cada roupa no corpo da cliente, o que auxilia as futuras indecisas e serve de arquivo da trajetória que, por vezes, se detém durante dois meses numa única peça. Definitivamente, o exercício dessa artesã das agulhas e linhas sugere dedicação, aspecto muitas vezes reconhecido pelas freguesas, que frequentemente lhe convidam para as cerimônias onde irão desvendar o segredo guardado por Alva.

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Luiz Geraldo e Alva apontam para uma nova configuração do ofício do corte e costura. Cada vez mais raros, costureiras e alfaiates não estão mais em pontos comerciais, com seus enormes ateliês e suas disputadas agendas. Esses profissionais, agora, se encontram por trás de um grande estilista, ou de uma marca de roupas feitas em larga escala. Seguiram os novos caminhos da moda e se dividem entre o universo convulso das confecções e a pompa do estilismo. De acordo com a professora do curso de moda da Faculdade Estácio de Sá, Selma Flutt, no site Criateria, saber mais do mundo em que habita é primordial. “Saber mesclar a moda com arte, filosofia, história, literatura, antropologia, e ainda perceber o hoje, é fundamental”, analisa, sugerindo que os novos caminhos da moda convergem no encontro de muitas áreas de conhecimento.

Performático em suas criações, que transitam entre a moda e as artes visuais, Marcelo Blade é alfaiate aos moldes contemporâneos. Filho de Hermano Alfaiate, o profissional investe em peças personalizadas, com novos cortes e estilo ousado. “O que mais me importa é transformar o tecido numa segunda pele, numa roupa apaixonante, que seja atemporal”, afirma. Expoente de uma geração prolífica da capital, onde se encontram nomes como os de Gustavo

Lins, Victor Dzenk e Ronaldo Fraga, Blade confirma, em suas peças, o trabalho artesanal como grande influência da moda produzida em Minas.

Poética em sua produção e atenta às novas tendências, a alta costura ganha vigor no estado e no país. Sai de cena a figura do mestre alfaiate e da professora de costura, que ensinavam o ofício aos futuros e às futuras assistentes, e entram em cena os ateliês voltados para jovens que desejam personalizar as próprias roupas, ou, até mesmo, produzir segundo seus gostos e desejos. “Misturar tecidos, aprender a usar a máquina, o barulho da tesoura cortando o tecido. Tudo isso é terapêutico”, avalia Patricia Casan, uma das sócias do ateliê Rainhas da Costura, que ultrapassou as fronteiras da própria sede em São Paulo e ganhou o mundo através da internet.

Segundo Patrícia, o ofício não acabou, mas ganha novos contornos. A nostalgia dos velhos espaços repletos de linha, agulha e tecidos, sobrevive na memória de quem as procura. “Ouvimos muito isso aqui no ateliê, as meninas contando que viam a avó costurando e fazendo as roupas que elas vestiam na infância. Hoje elas querem fazer as roupas para as filhas vestirem”, conta. “Acreditamos que a memória dá impulso para os desejos”, conclui.

A identidade em novos cortes

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Sortudo e esperto, o personagem principal de O alfaiate valente, conto dos Irmãos Grimm, se envolve em diversas aventuras, saindo-se bem em todas e vencendo vários desafios. Da fantasia ao mundo real, o ofício que envolve a produção do vestuário sempre esteve no imaginário das pessoas. Num momento em que se discute a moda como fator identitário, voltar-se ao artesanal processo da alta costura permite debater sobre a própria identidade brasileira, e, por consequência, a imagem que criamos do estado. Minas são muitas, como as recordações das colchas de retalhos que pendem sobre as janelas em cidades do interior. Seu Luiz e D. Alva representam o grande mar de montanhas. Mar costurado por mulheres e homens em seus trabalhos manuais. Mar construído ponto a ponto, e que entre o idealizado e a memória é vale.

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Grupo Matizes Dumont

Arte em novelo familiarNuma comunidade ribeirinha, às

margens do Rio São Francisco, na pequena cidade de Pirapora, norte de Minas Gerais, a família Diniz Dumont cresceu vendo a mãe, D. Antônia Zulma, fiar. Do cotidiano das imagens tecidas em linhas sobre o pano, os filhos Demóstenes, Ângela, Marilu, Martha e Sávia desenvolveram uma poética própria, que utiliza o bordado como expressão artística, experiência estética e potencial transformador social. No encanto do ponto matiz, ponto rococó, ponto areia, ponto folha, escama de peixe, ponto corrente, ponto cheio, ponto haste, ponto atrás, carocinho, alinhavos e pespontos, a família envolveu-se com a arte, recriando uma linguagem milenar.

Preservando os laços que ligam cada um, o grupo produz os trabalhos de forma coletiva. O irmão Demóstenes, artista plástico, realiza os desenhos. Em seguida, são repassados às irmãs que escolhem o fio – de seda ou de algodão, fino ou grosso – e vão, cada uma a seu modo e sob as influências de seus sentimentos, preenchendo o espaço do tecido. Assim, surgem fachadas de casas típicas do interior brasileiro, o bichinho feito de buriti, formas de sereia, carrancas, o galho torto da árvore de cerrado, e muitas outras imagens cheias de lirismo e emoção. “Nossos sonhos

ainda são povoados por pássaros, flores, borboletas, cavalinhos, meninos, barcas, bonecas de pano, carros de boi”, explica Marilu, sem esquecer-se do rio. Sempre o rio. Águas do São Francisco que marcou a vida dessa família, e hoje é perseguido no discurso poético, que tenta reproduzir em linhas o som das águas, o medo da correnteza e o amor pelo rio.

Numa clara paixão pelo ofício, a mãe e os irmãos já ilustraram obras de Ziraldo, Rubem Alves, Thiago de Mello, Manoel de Barros, Maria Bethânia e muitos outros artistas. Conquistaram a terceira geração, que agora, também se dedica aos bordados. E ainda fizeram mais: atuam na área social, assumindo o bordado como elemento de inclusão e reflexão. Em oficinas, palestras e encontros, o grupo discute a atividade como forma plena de expressão. Tecendo transformações subjetivas, apostam na arte como meio de se fazer e refazer a história. “O bordado como texto imagético e pictórico não é mera ilustração ou técnica. É experiência artística, estética e está sempre associado a outras expressões da arte. Percorre linhas, letras e corpo”, analisa Marilu. No exercício do grupo Dumont, os bordados criam pontos, fortalecem laços e, certamente, desenham o que deve ser família.

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rua josé lourenço kelmer, 1300são pedro . juiz de fora . mg

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Considerado não-trabalho, atividade não produtiva, “vil”, segundo Aristóteles, as tarefas manuais ou aquelas que deveriam utilizar a força das mãos eram contrárias à “virtude”. Para o filósofo, o “artesão” não poderia ser considerado um cidadão por exercer atividades consideradas mecânicas e essa herança de menoridade é sentida ainda hoje.

As mudanças nas formas de mercado no ocidente e, mais tarde, a produção industrial, levaram grande parte das práticas manuais a um confinamento no âmbito doméstico, sendo que este era majoritariamente dominado por mulheres. Pode-se falar, então, de uma “feminização” do artesanato, sendo atribuídas às mulheres as tarefas de tecer, bordar, fazer cerâmica, pintar natureza-morta, retratos, paisagens, entre outras atividades consideradas como trivialidades, dentro de uma ordem patriarcal imperante.

Cabe recordar que ao homem era permitido legalmente ser artista, enquanto a mulher precisava driblar a lei e as imposições sociais que restringiam seu diâmetro de ação no âmbito da arte até fins do século XIX. O conceito de “genialidade” estava diretamente relacionado à capacidade criadora própria de homens, os quais, segundo a teoria da época, teriam uma estrutura cerebral diferenciada, que lhes dava condições de inventar e criar artefatos, máquinas, ferramentas, objetos e arte. Cabia à mulher, a possibilidade de ser boa copista ou executora de “artes menores” como passatempo ocioso, além ser mãe e dona de casa. O que não significa que isso convenceu e contaminou a todas.

Mas é fato que uma maioria seguiu com suas atividades artísticas no âmbito doméstico, práticas que se tornaram invisíveis com o passar do tempo, o que leva a pensar o quão a ideia de artesanato, ainda hoje, está condicionada ao universo feminino como clichê de ociosidade, para enfeitar a casa, sem pretensões de valor no mercado e sem maiores ambições.

O desbordamento de práticas invisíveis na arte contemporâneaAndréa Senra Coutinho

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O desbordamento de práticas invisíveis na arte contemporâneaAndréa Senra Coutinho

Essa domesticação das atividades artesanais acabou por também contribuir em sua marginalização, que o processo de modernização da produção industrial nas sociedades capitalistas não poupou. No caso brasileiro, soma-se ao recorte de exclusão e marginalização apresentado, o fato do artesanato ter estado também relacionado ao trabalho escravo.

A partir dos pontos de vista apresentados, é possível compreender melhor a naturalização e a associação de práticas ditas femininas como a tecelagem, o bordado, a cerâmica ou pintura em porcelana, desprestigiadas e invisibilizadas, com um tipo de trabalho menos intelectualizado, pouco inventivo, e, por conseguinte, não reconhecidas como arte.

Entretanto, com o advento das mudanças propostas no campo da arte, a partir dos anos 50/60 (séc. XX), o universo apelidado “feminino” é reabilitado com maior força por grupos de artistas, especialmente mulheres, interessadas em revisar paradigmas do passado. Ao lançar outros olhares sobre o mesmo, colocaram em crise o que se convencionou habitual.

Poéticas até então paralelas, passando às margens do circuito artístico oficial, anteriormente coadjuvantes e dadas como menos importantes, vêm à tona e passam a ocupar lugar de objeto de arte, estando incluídas aí as práticas da tecelagem, do bordado, do crochê, patchwork e demais artesanias.

The dinner party (1976/1979), da artista norte-

americana Judy Chigaco, pode ser considerada uma obra de arte emblemática e talvez a mais ambiciosa dentro desta abordagem arqueológica e interessada em dar visibilidade à produção de mulheres. Composta por uma mesa triangular com 39 lugares estão pratos exclusivos de porcelana e toalhas bordadas manualmente com motivos diferenciados, destacando os nomes de 39 mulheres artistas homenageadas. Nos azulejos que forram o chão estão pintados mais 999 nomes de mulheres meritórias - um grande monumento à genealogia do feminino.

A partir dessa mobilização artística, estética e política dos anos 70, ampliou-se a diversificação dos aparatos técnicos que rompiam com os limites da tradição, surgindo temas inesperados e fulgurantes no trabalho artístico realizado por mulheres. Neste roteiro poético, materiais não-artísticos como tecidos, rendas, agulhas, acessórios da estética feminina, tecelagens, vestidos, roupas íntimas, entre outros, foram introduzidos sem qualquer discriminação.

Atualmente, artistas como Rosana Paulino, Beth Moysés, Rosana Palazyan, Beatriz Milhazes, Faith Ringgold, Miriam Shapiro, Annette Messager, Louise Bourgeois, entre outras, bem como artistas homens como Tunga, Leonilson, citando alguns casos, são representantes do desbordamento subversivo que reabilitou tais práticas, dando não somente visibilidade, mas legitimidade ao que por longo tempo se impôs “vil”.

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A artesania do bordado, do crochê, da costura, imediatamente nos faz pensar em atributos e prendas femininos que em seu conjunto nos remetem a uma prática específica: o enxoval. Não é preciso explicar as origens ou funções que nossas avós, mães e nós mesmas atribuímos ao enxoval, desde antigamente aos dias atuais; o que me interessa aqui é marcar uma relação profunda deste conjunto de objetos construídos e colecionados com outro assunto ligado simbolicamente ao feminino: a espera. Não é por acaso que Penélope, para ganhar tempo e esperar por Ulisses, tecia. Porém tecia de dia e desmanchava de noite, de modo que sua renda nunca estava pronta e a espera era assim garantida e respaldada pelo trabalho. A paciência, a pausa, a espera me dizem muito sobre ser mulher e me remetem ao vazio, à lacuna, ao devir.

Certa vez, navegando (como um argonauta) pela internet, li num blog de artesanatos: “crochê é tempo”. Essa afirmação, tão simples, tão exata, me atravessou e comecei, a partir daí, a configurar um projeto poético cuja linha (há muito explorada em meu trabalho artístico) assumisse características que possibilitassem discutir sobre a espera em sua forma mais metafísica, ou seja, pensando sobre o tempo. Usei também os balões de ar, tão robustos em suas primeiras horas de vida e tão perturbadores no seu devir que é esvair-se. Quando olho o trabalho concluído gosto de pensar em coisas que são continentes, como um vestido que contém o corpo, uma bolsa que contém o segredo e o tempo que contém toda a dúvida.

Máquina do tempoPriscilla de PaulaFotos Marina Costa

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“O que é preciso para ser um artista hoje?” Essa pergunta foi feita por Franck Maubert ao pintor Francis Bacon, em entrevista publicada em seu livro Conversas com Francis Bacon. A resposta de Bacon foi a seguinte:

“Acho que é preciso estar totalmente em harmonia com seu tema. O tema deve nos absorver completamente. Senão, se você não tem um tema que o obceca e atormenta interiormente, você cai na decoração”.

Aliás, me recordo agora que, ainda nesta mesma entrevista, ao ser perguntado “O que é um artista”, o pintor responde de forma cortante: “Não convém um ego muito grande...”.

Para o filósofo Gilles Deleuze, que escreveu sobre a pintura de Bacon, é por necessidade que criamos, nunca por um capricho de um ego ávido em contar suas historinhas irrelevantes e sem sabor.

Alinham-se aqui duas ideias que se suplementam, a meu ver: a de Deleuze, para quem “um criador só faz aquilo de que tem absolutamente necessidade”, e a de Bacon, ao nos sugerir que um ego grande

O tempo que se esculpe em pacientes mãos de crochêRosane Preciosa

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“De tudo que existe, nada é mais incapturável, fisicamente falando, do que o tempo. Parece-me que para encontrá-lo,

precisamos entrar em sintonia com a sua ação.” Laymert Garcia dos Santos

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O tempo que se esculpe em pacientes mãos de crochê

encontra-se insulado, incapaz por isso mesmo de ser atraves-sado pelas forças do fora.

O que me interessa aqui é sublinhar essa ideia de criação artística menos afeita ao regojizo de um eu que deseja se mani-festar, se comunicar, e muito mais uma outra, em que um sujei-to pensa a si próprio e a existência como “uma sinuca de bico vital”, como diz, de maneira exemplar, o poeta Waly Salomão.

A criação é um modo de escapar dessa sinuca de bico. No entanto, isso não quer dizer que o artista vá sair à francesa, evadindo-se, simplesmente, do que lhe perturba. Ao contrário, tensionado, buscando decifrar os signos que o azucrinam, ele procura saltar para outro lugar, propõe deslocamentos, ex-perimenta outros roteiros. E o resultado disso é que, ao dar passagem a outros signos, os faz proliferar, os arremessa, e quem sabe talvez alguém recepcione essas novas formas de vida. Falo dos virtuais co-autores de sua obra que, por sua vez, amplificam essa rede de sentidos num fim sem fim.

De qualquer forma, o ato de criação, para Deleuze, é me-nos um ato voluntário, do que involuntário. Algum acaso, um encontro, força o artista a tornar de alguma forma tangível essa sensação, e talvez a gente possa dizer também que, cer-tamente, outro acaso será o responsável por fisgar o desejo de alguém ir ao encontro dessas formas que ele dissemina, con-vidando-o a nelas engatar de algum jeito. Misteriosa conexão essa que acontece, cujo nome próprio é um enigma.

Sob o signo de um misterioso chamamento, fui me aproximando da Máquina do Tempo da artista e performer Priscilla de Paula. Minha reação mais imediata foi de entrega tátil. O primeiro impulso era tocar aqueles volumes, percorrer com os dedos os arranjos caprichosamente variados em linhas e cores. Eu me vi diante de exuberantes e graciosas esculturas em crochê, extraviadas de seus habituais lugares domésticos, habitados pelo anonimato das muitas mãos femininas, cujas histórias são pulverizadas. Lembrei logo

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de minha casa e os mirabolantes arranjos em crochê de minha mãe, que ocupavam mudos o centro de uma mesa, e que, no entanto, eram tão eloquentes. Mas, certamente, ao mencionar minha mãe, estou falando também de gerações de mulheres que deixaram suas trajetórias gravadas em bordados, crochês, tricôs, costuras, todas elas confabulando seus modos de esculpir em fios o tempo de suas vidas e seus modos de gerir os desejos secretos exalando de seus corpos, desejos esses tomados como suspeitos, condenáveis, interditos, na maioria das vezes. E o que vemos proliferar dessas mãos são galáxias de formas, cores, riscos, traçados, nunca iguais, mas em ressonância sempre, e que, a meu ver, acabam por constituir uma espécie de épico de pequenos gestos leves, delicados, amorosos, um modo de subjetivação feminina, ainda que me incline não exatamente a identificá-los como predicados exclusivamente femininos, antes atos de resistência em tempos pouco sutis, e em que parecem reverberar tão pouco.

A artista se apropria dessa prática doméstica do crochê, que tradicionalmente traduz um universo privado de mulheres, portador de um testemunho, o de sua reclusão social, e expande essa prática de modo inesperado no espaço, onde ganha visibilidade, volume, vigor. O que nos é dado a ver, então, é a volúpia do incansável gesto de suas mãos. Chego quase a pensar numa desforra desse exercício solitário do crochê, que desborda dos limites da casa, alastra-se pelo exterior, exibindo com audácia a potência desse trabalho manual, quase sempre tomado por insignificante. Parece significativo o fato de ser exatamente pelas mãos de uma mulher artista que essa “arte menor” adentra o espaço expositivo. Não podemos nos esquecer de que no Brasil do século XIX uma mulher não se aproximava das Artes, e aquelas que se atreviam tinham que cavar a duras penas esse espaço.

Priscilla diz que “o crochê é tempo, paciência,

espera e coragem”. Sua Máquina do Tempo adere a essa experiência íntima que o crochê instaura, cuja força maior reside justamente em sua frágil tenacidade. Feito de linhas, afinal, cujos pontos podem se desmanchar, semelhante a vidas, que, pacientemente, são esculpidas e, de repente, nos deparamos com fios que se soltam, afrouxam-se, rompem-se, apodrecem. Cumprem assim seu ciclo vital de fazimentos, desfazimentos e refazimentos.

Importante, me parece, assinalar a potência performativa instaurada por esses crochês, sobretudo por se configurarem como ações que podem desencadear no outro o desejo de desdobrá-las em outras tantas. Nesse sentido, Priscilla expande a própria condição de artista, e convida qualquer um a fazer proliferar territórios de existência como estes. Permitam-me fazer aqui uma analogia com os Estudos de Cildo Meirelles, de 1969, proposições que buscavam liberar a obra de arte dos artistas patenteados, sugerindo antes um “estado de arte”, que não se restringe ao mundo artístico.

Acredito que certas práticas artísticas na atualidade nos interessam na medida mesmo em que acabam funcionando como possíveis laboratórios de intervenções éticas e estéticas. Refiro-me a ações propositivas, que, de alguma forma, ativam outros modos de viver, pensar, amar menos pasmos e conformados, que nos forçam na direção de uma existência mais livre, mais potente, mais indisciplinada. Nesse sentido, Nicolas Bourriaud nos oferece um interessante diagnóstico sobre a arte contemporânea, que parece ir ao encontro do que acabo de dizer: “(...) a arte não tenta mais imaginar utopias, e sim construir espaços concretos”. Nesses espaços, dirá Bourriaud, estão implicadas experiências relacionais, experimentações que de fato criam modos de existência que engendram outros modos de convivência tão fundamentais para todos nós.

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O tempo entre os excessosDas dobras dos tecidos aos fios de cabelo, a sedução através da obra da artista plástica Andréa Facchini

texto Mauro Morais fotos cortesia da artista

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O tempo entre os excessosDas dobras dos tecidos aos fios de cabelo, a sedução através da obra da artista plástica Andréa Facchini

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Por tramas entende-se emaranhado. Dos fios, dos de-sejos e dos questionamentos, o drama. No espaço sub-jetivo das imagens projetadas por Andréa Facchini, suas tramas rompem o campo ficcional para se aproximar do drama, que em seu fazer apresenta-se como desenvoltu-ra para contar histórias. No impacto criado pela profusão de cores e pela destreza nos detalhes, um fio condutor versando sobre o tempo e seus personagens. O mesmo tempo que envolve nos desenhos em nanquim de Pas de deux – órbitas instáveis em pequenos espaço gravitacio-nais – onde fios de cabelo servem como elo, fruto do femi-nino – está presente nas pinturas da série Sobrelinho, que em torções de tecidos se multiplicam indefinidamente aos olhos do espectador. O tempo, ora disperso, ora retraído, duela em protagonismo com os excessos dessa mineira, que nascida em Cataguases, escolheu a Baía de Guanaba-ra, nos domínios de Niterói, para fixar moradia.

Terra de Humberto Mauro, pioneiro no cinema brasilei-ro, e berço do Movimento Verde – servindo como abrigo de importantes obras da arte e da arquitetura modernistas –, Cataguases transita com desenvoltura entre o vanguar-dismo, preservando aspectos interioranos do estado. Nes-

se cenário, tendo a “arte como elemento da paisagem”, Andréa construiu seus gostos. Formou-se em Comunica-ção Visual pela Escola de Belas Artes da Universidade Fe-deral do Rio de Janeiro (UFRJ), em 1980, e em Licenciatura em Artes Plásticas pela Universidade Salgado de Oliveira, em 1997 , complementando sua formação, nos cursos li-vres da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Somando experiências como ilustradora e arte educadora, decidiu--se pelas artes plásticas e a perseguiu em cursos ministra-dos por figuras como Anna Letycia, Charles Watson, Anna Bella Geiger, João Magalhães, Fernando Cocchiaralle, Da-niel Senise, Ivair Reinaldim, Luís Ernesto, Daniela Labra, João Weslley, entre outros e Lydio Bandeira de Mello. Da compreensão da forma à sua plena representação em li-nhas, a artista se firmou no cenário nacional, tendo expos-to em importantes espaços – dentre eles o Centro Cultural Correios e o Centro Cultural da Justiça Federal, a Galeria do IBEU e a EAV do Parque Lage, todos no Rio de Janeiro, o Museu de Arte Contemporânea, em Niterói, o MARP, Mu-seu de Arte de Ribeirão Preto, Museu de Arte do Pará, em renomadas Galerias de Arte – e integrado relevantes feiras de arte, como a SP Arte e a Arte BA.

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Da Cataguases dos tempos de jovem, a recordação dos tecidos, matéria-prima para as mulheres da família, a maioria constituída por costureiras ou bordadeiras. “As bancas de tecidos, assim como a mesa de costura de minha mãe, avó e tia, sempre me pareceram pai-sagens, como as montanhas e rios de Minas. Os rolos expostos nas lojas pareciam mágicos, e suas estampas sugeriam história”, lembra-se. Assim, na revolução de seus pincéis e de suas memórias, Andréa desenvolveu trabalhos em grandes dimensões nas quais reproduz as dobras, as torções desses panos, que aparecem, ainda, amarrados uns aos outros, em grandes tranças. Subtraindo-lhes o fundo, e sobrepondo a tinta ao li-nho – a tela, agora, é um tecido – a artista deteve-se nas estampas, nos padrões, nos arabescos, nas flores que pulsam dos panos. Em texto crítico, datado de 2009, o historiador e crítico de arte Guilherme Bue-no analisa a força de intenções da série Sobrelinhos: “Mesmo os espaços deixados vazios conspiram a fa-vor deste avizinhar-se de uma pintura quase infinita,

que anseia prosseguir indefinidamente por aquelas brechas”, defende, para em seguida constatar que na limpidez também há uma potência.

Entre o realismo das cordas feitas de tecidos amarrados uns aos outros, conhecidas popularmen-te como Tereza, às fantasias das tranças de Rapun-zel, personagem criada pelos Irmãos Grimm, Andréa compôs o trabalho Entre Tereza e Rapunzel. A corda de fuga, rica em detalhes e habilmente colorida, de-nota o apuro técnico da artista, que extrai a poesia da experiência estética pela qual trafega. Nos desdo-bramentos, surgem novas “Rapunzéis”, nas quais se percebe com clareza a tinta a escorrer, e, por conse-quência, a fuga a se desmanchar. À personagem do conto acrescem as próprias tranças dos tempos de infância para dar vazão a outras linhas, que nitida-mente, realizam o movimento rumo ao campo ficcio-nal. Da pintura ao desenho, da cor ao preto e branco, a artista se rendeu a outros desejos – aos Desejantes.

Memória afetiva

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Fios de cabelos que, em trama, envolvem como um ovo. Como que fecundado, os fios geram. E, por fim, num ciclo rígido, de fios mais espessos e enérgicos, a imortalidade no invólucro. Os sem tempo, de Andréa Facchini, versam sobre o tempo utilizando como objeto uma das partes “eternas” do humano. A linha, antes utilizada como artíficio para a saída, apresenta-se como elo, como cordão umbilical, como encontro. “Os fios são mais intrincados que os tecidos, mais primitivos, mais ancestrais. Imagino que isto tenha conduzido minhas imagens, pela própria natureza do assunto, a se tornarem mais arquetípicas”, aponta a artista. Segundo Bueno, as “linhas vão se multiplicando e enovelando uma narrativa, uma ‘história da linha’, que perpassa e se mescla com motivos sugestivos de uma dimensão íntima ali contida e traduzida em figuras submersas naquela trama”.

Munidos de uma dramaticidade pouco óbvia, os trabalhos da série Desejantes, reúnem fuga e confluência, em imagens de maõs e pés envoltos em fios de cabelo – em alguns trabalhos a artista inseriu os próprios fios – como que a buscar outros limites. Já nos trabalhos da série Envolventes, o tempo é esfacelado em fios que se desprendem e perdem a materialidade, como nas colagens de livros e revistas da série Fuga, em que mãos parecem resistir ao novelo dos cabelos. Talvez

pela sutileza dos traços, ou pelos excessos de detalhe, ou até mesmo pelas temáticas, que circundam um universo muito próprio da artista – sem resvalar no excesso de intimidade – a obra de Andréa transita pelo feminino. “A subjetividade feminina como traço diferenciador é algo caro à artista, embora não levante uma discussão estratificada sobre gêneros”, propõe a curadora independente e crítica de arte, Daniela Labra, em texto para a exposição Outras margens, de 2009.

Segundo o pensador britânico Raymond Williams, em seu Drama em cena (ed. Cosac Naify), a coincidência nas acepções da palavra drama, que pode significar tanto uma obra literária, quanto sua representação cênica, não é acidental. “O drama, como forma literária, é uma obra destinada à cena”, explica. Tendo como base os estudos do norte-americano Michael Archer, em Arte Contemporânea: Uma história concisa (Ed. Martins Fontes), que explana a aproximação entre as artes plásticas e o teatro na formação da linguagem contemporânea das artes visuais, percebe-se a obra de Andréa Facchini perseguindo esse espaço dramático, em que suas tramas se destinam, num movimento semelhante ao apontado por Williams, à cena, ao contato com o público. Os excessos dessa artista urgem o tempo em que estarão defrontes a outros olhares. Esses excessos, na verdade, nunca estão demasiado completos.

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(Os sem) tempo

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No detalhamento dos desenhos e das pinturas e na profusão de cores em seu trabalho, percebemos uma opção pelo excesso, o qual o crítico Guilherme Bueno defende como a busca pelo esplendor. Entre a intuição e o domínio técnico, como surgem suas obras?A minha estética é mesmo a do excesso. O resultado disso, certamente, é uma tensão causada pelo descompasso entre a profusão imagética e o rigor na fatura do trabalho. O fazer elaborado, com certo virtuosismo, não é um maneirismo. Tem uma questão conceitual, que o potencializa. Interessa-me o tempo exigido do olhar, o comprometimento da atenção do espectador na fruição e a ambição de que ele perceba o grau de investimento e proximidade do corpo do artista. Nesta época tecnológica e de negação de autorias, ainda é relevante a presença da mão do artista? É uma tentadora questão! Neste momento, em Londres, Damien Hirst e David Hockner, dois grandes, se debatem nesta polêmica. O desejo do trabalho nasce da intuição, de um questionamento

existencial, alguma preocupação que vai se configurando, tanto por pensamentos, como por imagens. Não há a procura, a priori, por um tema ou projeto. No fazer, não existe uma preocupação com a técnica. Ela corresponderia ao meu vocabulário e caligrafia na minha escrita sobre o assunto. Coisas que já estão incorporadas. Não sei se existe, precisamente, uma busca pelo esplendor como menciona o crítico, mas mesmo que não exista como objetivo, isto pode ser observado no resultado, no sentido da exuberância da cor, da forma, do detalhamento e até da escala de muitos trabalhos. A minha poética, dialoga com a estética barroca. A alma mineira! Faz parte da minha concepção a instabilidade sinuosa da construção das composições em diagonal, as conexões, envolvimentos, voltas e revoltas, torções, tensões, sensualidade e excesso, os fluxos constantes que aparecem em todo o meu trabalho, conduzindo e unificando o universo que crio e ofereço, com imagens em permanente expansão, para além do suporte.

e n t r e

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v i s t a

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Constante em sua obra, as narrativas permeiam diversos trabalhos. Há uma preocupação em contar histórias?Não há esta preocupação. Na verdade, o que desejo é produzir uma imagem que provoque no espectador um desejo de narrativa. Proponho hipóteses, nenhuma afirmação ou conclusão. Procuro com as imagens dos trabalhos mais recentes, intrigar e instigar, mesmo sendo as imagens realistas e numa situação que pareça cotidiana, diferentemente dos desenhos. É uma cena que ofereço. Algo de levemente estranho no familiar, talvez dúbio. Um trecho de uma narrativa aberta, que possa ser contada de diferentes formas pelo espectador. Fluida. Algo que está se dando, e onde qualquer desfecho pode se dar. Ou nenhum. E há também um clima de fantasia naquela realidade. Uma realidade subjetiva.

Entre a colagem, o desenho, a pintura, passando, ainda, pelos objetos, projeções e fotografias, você tem perseguido diversos suportes, por isso, define-se como artista plástica, sem maiores classificações. Essa é uma questão bastante contemporânea - apesar de não ser nova, visto o livre trânsito em diferentes linguagens, já percebido em artistas como Da Vinci – e natural no circuito de arte. Em seu processo de criação o discurso se sobrepõe ao

suporte? Como isso funciona em seu trabalho?Acredito que o importante é o pensamento, o universo do artista. Alguns meios como a pintura, tem uma problematização maior, por já vir impregnada de toda uma tradição, uma história. Mas, no meu caso, o assunto e as questões, acontecem ao mesmo tempo em que tenho um direcionamento, meio intuitivo, de como serão expressos. Não digo que não haja um nível de racionalização, é lógico que penso sobre a adequação do meio, mas a motivação é de

outra esfera. A própria natureza do meio, carrega em si muitas significações, e às vezes, esta compreensão “cola” no próprio assunto e já se apresenta como ideia, um em função do outro. O pensamento crítico, a análise da adequação ou não, vem posteriormente. Às vezes, um determinado conceito que me preocupa, surge em minha mente já como uma imagem,

e o desejo de materializá-la, vêm com o desejo da cor, da movimentação da pintura, outras vezes, da proximidade física que o desenho exige. Mas existem situações em que o desejo de pintar pelo ato em si, ou de riscar linhas, sentindo o lápis ou a pena sobre o papel, ou registrar imagens fotograficamente e manipulá-las, ou recortar e compor novas imagens existem como uma necessidade, independente do assunto.

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“O FAZER ELABORADO, COM CERTO VIRTUOSISMO, NÃO É UM MANEIRISMO. TEM UMA QUESTÃO CONCEITUAL, QUE O POTENCIALIZA”

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A série Pequenas revoluções e Sobrelinho a trazem à Minas, em especial à sua terra natal, Cataguases, um pólo na tecelagem. Há Minas em sua obra?Nossas vivências nos constituem, fazendo a obra de um artista ser única, singular. A infância e adolescência em Cataguases foram fundamentais na formação da minha poética. Muito me influenciou conviver com a arte e arquitetura modernistas, como elemento da paisagem da cidade pelo seu rico acervo de obras públicas e privadas. O reconhecimento desse valor se integrou ao meu imaginário e aos projetos de vida, o que fez com que, cursar Belas Artes fosse um caminho desejado e natural. Também trago Minas na minha obra, na temática dos tecidos, já que as mulheres da família mais próxima eram, em geral, costureiras e bordadeiras. Minha mãe sempre esteve envolvida em panos e eu a acompanhava na compra de tecidos e linhas, na cidade ou em Juiz de Fora. Os rolos expostos nas lojas pareciam mágicos, e suas estampas, sugeriam histórias. Minha avó confeccionava meus vestidos, moldando-os e cortando-os no meu próprio corpo, o que também me motivou para que a artesania fosse um componente da minha criação. Nas pinturas os tecidos parecem dotados de vida, tensões, sendo eles mesmos

corpos. As estampas se desprendem dos panos e se movimentam, flutuam. Minha alma mineira, também contribuiu para que a minha estética mantivesse um diálogo com a estética barroca.A construção da identidade feminina também se inscreve aí. Também parece que tem bastante mineiridade, o realismo sempre subjetivo, o território psicológico, com questões existenciais. Como no trabalho mais atual onde, em cenas aparentemente familiares, as figuras humanas

sugerem introversões, questões e tensões. Mas não é um trabalho que fale especificamente de Minas. Apenas mantenho um “so-taque” mineiro.

A crítica e curadora indepen-dente Daniela Labra defende uma subjetividade feminina em sua obra, apesar de apontar que não discuta questões de

gênero. Esse caminho foi natural? Como o percebe em seus trabalhos? A partir desse histórico, da minha vivência em Minas, abordo o contexto que fez com que questões relativas à construção de uma identidade feminina fossem algo tão forte no meu trabalho.O próprio gosto pelo detalhe, pelo ornamental, uma sensualidade sutil, o lúdico, o território psicológico e fantasioso, conferem uma forma

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“MINHA ALMA MINEIRA, TAMBÉM CONTRIBUIU PARA QUE A MINHA ESTÉTICA MANTIVESSE UM DIÁLOGO COM A ESTÉTICA BARROCA”

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feminina de materializar questões, o que não significa que as questões abordadas sejam apenas do feminino, pois são do âmbito da condição humana. Apenas vistas sobre uma ótica feminina. Aliás, é importante frisar, sem levantar uma bandeira feminista, que a história da arte, é uma história escrita pelos homens.

Seu trabalho, caracteristicamente artesanal e complexo revela ao espectador o intricado processo do fazer artístico. Você se percebe como artista romântica? É verdade que eu procuro proporcionar certo encantamento, oferecer uma experiência pelo detalhamento e profusão de formas, pela cor, que seduza o olhar. Também procuro, cada vez mais, que as imagens insinuem um acontecimento ou narrativa e que tenha um conteúdo psicológico. Nesse sentido, e pelo descompasso entre o tempo do mundo contemporâneo e o exigido por essa artesania, acho que guardo um romantismo, por mais anacrônico que isso possa parecer.

Seguindo narrativas, a série Os sem tempo e Desejantes versam sobre o tempo. De que

forma esse tema surgiu em sua criação? E como o desenvolve? Acho que há em todo o meu trabalho, de alguma forma, uma relação espaço/tempo. Também, existe algo que origina e permeia todo o meu processo, do pensamento, antes mesmo da criação, até o momento em que o trabalho me diz que está concluído, que é a memória. Ele só existe por conta das minhas vivências, do meu universo afetivo.

Entre Tereza e Rapunzel você vai do real (Tereza) à fantasia (Rapunzel). Há uma preocupação em equilibrar ambas as questões em sua obra? Embora o repertório de imagens da minha pintura fossem panos e seus padrões, eram as questões que me ocupavam naquele momento que os originavam e havia uma série de conceitos que o permeava. Têm algo de alegórico. O prender e o soltar, laços e amarras, tensões, torções, a ilusão de volume, estimulação ótica, envolvimento, flutuação, sensualidade da cor e forma, e as imagens que parecem, num fluxo, continuar além da tela. Produzia um mundo pictórico, movediço e às vezes lisérgico. Quando estes elementos me levaram a produzir um trabalho, onde os tecidos trançados pareciam uma corda de fuga, uma “Tereza”, isso me

“PELO DESCOMPASSO ENTRE O TEMPO DO MUNDO CONTEMPORÂNEO E O EXIGIDO POR ESSA ARTESANIA, ACHO QUE GUARDO UM ROMANTISMO, POR MAIS ANACRÔNICO QUE ISTO POSSA PARECER”

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conectou imediatamente com a Rapunzel, personagem com o qual me identificava na infância, por ter longas tranças. Dei ao trabalho o título de “Entre Tereza e Rapunzel”. A semelhança e antagonismo dos nomes me interessavam. A partir daí, a ideia da Rapunzel originada na trança de tecidos, evocava os cabelos, o que foi se tornando uma constante para mim. Qualquer que fosse o pensamento que me mobilizava, a imagem se traduzia em fios e tranças. Foi um período em que a pintura cedeu lugar ao desenho e a cor, ao preto e branco.

Do cabelo ao tecido, o fio se estabelece como veículo de integração, porém, ambos são frágeis e podem desfazer-se. Como estabeleceu poeticamente suas linhas? Como construiu sua poesia?O tecido é um produto cultural, e os cabelos representa a natureza, são mais frágeis, embora símbolo de força e sedução em muitas culturas. Os fios são mais intrincados que os tecidos, mais primitivos, mais ancestrais. Imagino que isso tenha conduzido minhas imagens, pela própria natureza do assunto, a se tornarem mais arquetípicas. Junto com os cabelos, apareceram figuras, sem materialidade, só linhas, fora do tempo. Na continuidade, o

desenho foi para outro caminho. Como um deslocamento da ancestralidade, para uma infância mais recente, mas também situada em um mundo atemporal, agora, de contos de fadas. Desta forma, em 2011, a última série de desenhos produzida, se dá num registro de fábulas. Os cabelos se misturam ou se transformam em raízes, que constroem mundinhos, que flutuam e prendem seus personagens, crianças ou pássaros. São desenhos muito intimistas e lúdicos, onde, presumo, tenha assumido mais a fantasia. Hoje, no trabalho que estou produzindo, trago nas

imagens, figuras humanas que se misturam mais à realidade cotidiana. São telas, com o prazer de pintar e a cor exuberante de antes. As figuras agora têm uma carnalidade e apontam para coisas do mundo, embora haja sempre algo muito sutil de fantasia. São cenas que poderiam ser familiares, com personagens e também panos. Estas cenas, com cortes abruptos, são fragmentos, há quase sempre alguma tensão e ambiguidade. Estão num território psicológico. Mais que mostrar um acontecimento, mostram um “clima”. Também há o detalhamento excessivo, principalmente nos panos e cabelos. A imagem produzida parece mais realista, mas de um realismo subjetivo e permanece no tereno da fantasia

“AS FIGURAS AGORA TÊM UMA CARNALIDADE E APONTAM PARA COISAS DO MUNDO, EMBORA HAJA SEMPRE ALGO MUITO SUTIL DE FANTASIA. SÃO CENAS QUE PODERIAM SER FAMILIARES, COM PERSONAGENS”

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As muitasfronteiras dos trilhosNa linha em que corre o trem, pulsa a cidade partida. O apito que o anuncia, marca com precisão o tempo. De norte a sul, um dos caminhos da urbe capaz de revelar histórias e inspirações

texto Mauro Moraisfotos Marina Costa

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“Café com pão, café com pão, café com pão”, ritmou o recifense Manuel Bandeira, para quem o trem era passagem. Guilherme de Almei-da, paulista, ouvia nos apitos apenas “um silvo no ar”. Ainda que “coisa mecânica”, para Adélia Prado, mineira de Divinópolis, o trem de ferro, ao atravessar sua vida, “virou sentimento”. Da Itabi-ra, quase vizinha, o trem é lembrança triste para Drummond: “Leva meu tempo, minha infância, minha vida”. O mesmo trem que para Lô Borges em tom de azul é saudades, para o poeta juiz-fo-rano Fernando Fábio Fiorese Furtado, “é coisa de se medir com mar”.

Distante das ondas, imerso numa paisagem formada por mares de morros, os mineiros fize-ram do conjunto de vagões a medida do que não se consegue apalpar. “Ê trem bão!”, diria o jeca, o qual não mais corresponde à realidade movi-mentada e excentricamente urbana das Minas

Gerais. Resquício de um período em que riquezas eram transportadas sobre trilhos, os trens de fer-ro permanecem ainda hoje para contar histórias, fazer surgir muitas outras, despertar nostalgia, e, porque não, continuar a deslocar minérios.

Em Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira, a linha, que faz trepidar movimentadas avenidas quando da passagem dos vagões, é elo do nor-te com o sul. Na mesma medida, é corte, que divide o espaço urbano e delimita claramente o que é nobre. Da estação do Barão do Retiro, ou simplesmente Retiro, à estação de Benfica, os trilhos radiografam a cidade, percebendo a periferia e suas fragilidades e a região central, em sua efervescência cotidiana. Utilizando a inspirada metáfora dos versos de Manoel de Barros, nessa pequena-grande urbe, o trem de ferro também anda nos trilhos, enquanto toda a gente corre como água entre pedras.

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“Não vejo qualquer poesia na via férrea atual, apenas a pro-sa mais prosaica e banal”, assevera o escritor Fernando Fábio Fiorese Furtado, autor do poema-livro “Um dia, o trem” (Nankin Editorial/Funalfa, 2008), no qual versa sobre a infância ferroviá-ria, anunciada na epígrafe extraída de uma crônica do mineiro Paulo Mendes Campos: “A infância é ferroviária”. Nascido em Pirapetinga, na Zona da Mata, Fiorese tinha os trilhos à vista, apenas em seus períodos de férias, passadas em Recreio, mu-nicípio vizinho onde moravam os parentes maternos. Da cidade natal, recorda-se das “ruínas da estação, adornada de um cúmu-lo de dormentes, trilhos e vagões carcomidos”.

O poema, construído em quinze seções, percebe na imagem do trem a metáfora para o amadurecimento do menino, que so-breleva aquela visão à figura paterna, como se a representação mítica do conjunto de vagões, estabelece-se no campo do sagra-do. “Para usar uma das mais belas palavras da língua portugue-sa, trata-se do alumbramento diante da matéria do mundo, na medida em que afirmamos com o corpo a força e a beleza das coisas e dos acontecimentos. Neste sentido, pode-se dizer que o trem é sagrado, pois, na sua materialidade, desvela ao pai e ao filho novos modos de estar-no-mundo”, pontua o poeta.

Em meio às vozes do adulto e da criança, que nos versos se apresentam em estado de passagem – numa percepção que enleva o pai às sensações infantis, e o menino, às impressões da trajetória futura –, a ferrovia é utilizada, também, como ob-jeto da metalinguagem. “A linha do trem me fornece imagens da precisão e do acidente, as quais resumem o fazer poético”, explana Fiorese, que retoma um trem imaginário, o qual trafega no campo da memória, bem distante do comboio de carga que alinhava a cidade de agora.

Foi um rio que passou em minha vida

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O lirismo da imagem do trem encontra ressonâncias em diversos outros artistas mineiros, de variadas lingua-gens. Por ser um estado onde, historicamente, a ferrovia se consolidou, tendo as estações como ponto de partida para a fundação de muitas cidades no interior, Minas Ge-rais carrega os trilhos como importante identidade. “Sin-to um amor romântico pelos trens”, sintetiza o pintor Car-los Bracher, que ao longo de sua carreira transpôs para a tela diversos momentos e sensações dos vagões sobre os

trilhos. Natural de Juiz de Fora, Bracher cresceu no Bairro Fá-

brica e, por isso, ao lado das linhas do trem e do rio. Além da proximidade física, os trens representam o elo com o restante da família, que na infância morava em Belo Ho-rizonte. Juntos, os Bracher seguiam, duas vezes por ano – no período de férias –, para a capital mineira, percor-rendo a ferrovia que serviria de inspiração para a família de artistas. “É uma epopeia mística entrar no trem, ver a

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fumaça, os pontilhões, a paisagem, a fagulha nos trilhos”, recorda. Dono de pinceladas vigorosas e fiel aos temas memorialísticos, Bracher diz não se encantar pelos ônibus dos tempos atuais, principais meios de transporte coleti-vo no país. “O ônibus não traduz e não induz a poesia. Eles são monótonos, são estéreis”, reflete.

Residente em Ouro Preto, Patrimônio Histórico e Cul-tural da Humanidade, na região metropolitana de Belo Horizonte, Carlos Bracher vê com tristeza a extinção dos

trens de passageiros – chamados, por ele, de “grandes fá-bulas” –, os quais lhe remetem, de imediato, à terra natal. “São poesias que vão se esfacelando. É uma pena. Hoje é só minério, não carrega mais os mistérios”, lamenta, para em seguida declarar: “Juiz de Fora é minha existência.” Perseguindo esse sentido, o compositor e cantor mineiro Milton Nascimento, resume o clima nostálgico que envol-ve os trilhos: o trem, para Milton, é imagem de chegadas e partidas. A estação é metáfora para a vida.

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C i d a d e p a r t i d a Em 1956, já com alguns problemas estruturais, as es-

tradas de ferro de posse do estado foram incorporadas à Rede Ferroviária Federal S/A, a RFFSA. Iniciava-se, então, uma nova era administrativa, que se viu obrigada a lidar com a nova dinâmica política e econômica do Brasil. Incor-porada ao Plano Nacional de Desestatização, o PND, a rede foi privatizada em 1996. A Região Sudeste teve sua malha concedida a MRS Logística S/A, que até hoje administra as linhas, principais rotas de acesso aos portos brasileiros. “Na contramão das políticas adotadas para o transporte da maioria dos países, os sistemas de transporte no Brasil não tinham articulação entre si e adequação ao seu uso, sendo que a implantação do sistema rodoviário se fez em detri-mento do ferroviário”, explica Monastirsky em seu estudo.

Do luxo corroborado por passageiros ilustres, como os presidentes Arthur Bernardes e Getúlio Vargas, a estação de Juiz de Fora demarca, hoje, a cisão trazida pelos trilhos e imposta à cidade por antigas políticas públicas que favo-receram apenas um lado da linha. Apesar de habitada, logo no início, em sua fatia leste, às margens do Caminho Novo, a cidade foi lentamente se fortalecendo no outro lado. Cor-rendo próximo às águas do Rio Paraibuna, os trens deixa-ram, por onde passaram e ainda passam, uma zona de de-gradação.

Hoje em dia, o trecho de aproximadamente 20 quilôme-tros vê passar cerca de 30 composições diárias, cada uma medindo mais de um quilômetro de cumprimento em seus mais de 130 vagões com suas muitas dezenas de toneladas. A 25 quilômetros por hora, os trens não deixam apenas um ruído quase ensurdecedor, mas a poeira de suas cargas e a vibração de seu peso. De acordo com o arquiteto e ur-banista Rogério Mascarenhas, o trem como equipamento nocivo ao ambiente urbano, pelo barulho e pelo pó, aca-bou desvalorizando seu entorno. “A ferrovia acabou crian-do uma área sem consolidação urbana”, avalia, destacando que a degradação do rio e da estrada de ferro fez com que essa região perdesse interesse imobiliário na cidade.

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A Zona Norte de Juiz de Fora, uma das mais prejudicadas nessa cisão, configura-se como área de alto potencial imobiliário, tan-to pela qualidade de seu solo, quanto pela superfície plana que cobre praticamente toda sua extensão. “Hoje o mercado imobi-liário procura a cidade alta, a área urbana já está saturada”, aponta Mascarenhas, que acredita na possibilidade de a “cidade pa-rar de subir morros”, a partir da utilização da região norte. Segundo o arquiteto, po-deriam ser construídos grandes conjuntos habitacionais, que contemplassem todas as classes e gostos.

Contudo, essa chamada “requalifi-cação radical da cidade”, nas palavras de Mascarenhas, depende da transformação da realidade atual da ferrovia e do rio. Po-lêmica antiga, a retirada da linha férrea da área urbana é a melhor alternativa na opi-nião do arquiteto e urbanista, que sugere sua transposição para as margens leste ou oeste da cidade. Contrário a essa medida, o professor da Faculdade de História da Uni-versidade Federal de Juiz de Fora e presi-dente do núcleo juiz-forano do Instituto de Arquitetos do Brasil, Marcos Ollender, de-fende o isolamento da ferrovia em períme-tro urbano, citando o Rio de Janeiro como experiência de sucesso na prática. “É muito mais barato isolar a linha e inserir viadutos, mergulhões e passarelas, do que removê--la. Em termos de gastos públicos, isso é muito melhor”, ressalta Ollender.

A linha do horizonte

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Orçada na casa dos milhões, a transposição da ferrovia ultrapassaria os limites orçamentários do go-verno municipal e seria, então, de responsabilidade da União. Contudo, sua utilização para um transporte coletivo mais eficiente é um dos grandes entraves. Consenso entre os dois profissionais, o aproveita-mento da linha no transporte público poderia reor-ganizar a cidade, criando outra dinâmica entre seus moradores e, até mesmo, em seu trânsito. “Assim teríamos um desafogamento das vias de tráfego que hoje se encontram extremamente saturadas, além de termos um atendimento muito mais eficiente aos mo-radores da cidade, principalmente aos da Zona Nor-te”, analisa Ollender.

Segundo Mascarenhas, “a prioridade deve ser dada ao transporte coletivo, seja ele sobre trilhos ou até um sistema troncalizado de ônibus em faixa ex-clusiva”. Contendo trechos bastante estreitos, como

o espaço em que passa pelo Bairro Mariano Procópio, a linha não suportaria tornar-se uma larga avenida, onde pudesse servir aos veículos particulares. “Exis-te essa possibilidade de fazer uma grande operação urbana a partir dessa transformação”, aposta o ar-quiteto e urbanista, que também destaca a imediata atração imobiliária que esse processo desencadearia.

Cartão-postal de Juiz de Fora, a praça da estação seria um dos alvos dessa revitalização, retomando, enfim, seu valor histórico e seu caráter simbólico para a identidade local. Nas projeções de Mascarenhas, a permanência e consequente adaptação das atuais es-tações serviriam às novas paradas da rede de trans-porte coletivo. “Eu não vejo romantismo nenhum em ver o trem interrompendo o tráfego e a mobilidade urbana. E, principalmente, desvalorizando uma área que deve ser de aproximadamente 20% da área urba-na de Juiz de Fora”, conclui o arquiteto e urbanista.

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Recém-criada, em 1856, a cidade de Juiz de Fora, até então integrada ao munícipio de Barbacena, recebeu, em 1875, uma das primeiras esta-ções da Estrada de Ferro D. Pedro II. Pai das ferrovias no país, Cristiano Be-nedito Ottoni foi designado pelo imperador D. Pedro II diretor do grande projeto que visava integrar a capital federal (Rio de Janeiro) ao restante do país, por meio de uma intrincada rede de trilhos. Inicialmente soman-do cinco estações, todas no domínio fluminense, a linha, a partir de 1860, voltou-se para uma ampliação, cujo objetivo era transpor a cadeia monta-nhosa da Serra do Mar e conquistar as Minas Gerais.

Ao encontrar a Estrada União e Indústria, a ferrovia firmou-se como importante eixo entre a capital e o fecundo interior mineiro. No auge da produção cafeeira, a linha serviu como principal rota para escoamento e difusão do café no restante do país. A estação de Juiz de Fora, cujo retor-no financeiro era um dos maiores, contribuiu de forma substancial para a industrialização local e, por consequência, serviu como uma das responsá-veis pela alcunha de Manchester Mineira, dada à Juiz de Fora, que à época estabelecia-se como uma das maiores economias do estado.

Somando um significativo fluxo de pessoas e cargas, a estação fez de-senvolver todo o seu entorno, que ganhou hotéis, restaurantes, e outros tipos de comércio. Símbolo do progresso, a Praça da Estação exalava luxo e respirava os primeiros ares da agitação. Hoje, em meio ao conturbado espaço de uma cidade com seu pouco mais de meio milhão de habitantes, a estação preserva a história, numa resistência conflituosa entre passado e presente.

Em artigo intitulado “Velhos trilhos: transporte de massa e preser-vação do patrimônio cultural ferroviário” – premiado no 6º concurso de monografias da Companhia Brasileira de Trens Urbanos, em 2010 – o pes-quisador Leonel Brizolla Monastirsky destaca a importância dos avanços técnicos no imaginário popular, justificada pela estreita relação entre a história e as novas tecnologias. “A ferrovia, mesmo com a diminuição da participação do transporte ferroviário, transformou-se em um mito - uma ideia arraigada no inconsciente coletivo que perdura até hoje -, especial-mente na memória das pessoas mais velhas, sobretudo dos trabalhadores ferroviários (patrimônios vivos da nossa sociedade)”, disserta, apontando para um fenômeno que ocorre em todo o país, inclusive nos domínios da nossa estação.

História

Primeira parada: Estação Juiz de Fora

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Andréa Senra Coutinho é professora no Colégio de Aplicação João XXIII. Doutora em Estudos da Criança – Comunicação Visu-al e Expressão Plástica, pela Universidade do Minho (Portugal).

Cristiano Rodrigues é professor do Departamento de televisão e rádio da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (Facom/UFJF).

Edimilson de Almeida Pereira é escritor e professor da Facul-dade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora. Autor dos livros O menino de caracóis na cabeça (Santa Clara, 2001), As coisas arcas (Ed. Mazza/Funalfa Edições, 2003), Lugares ares (Ed. Mazza, 2003), dentre outros.

Priscilla de Paula é artista visual e professora no Instituto de Ar-tes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora (IAD/UFJF)

Rosane Preciosa é professora do Instituto de Artes e Design da UFJF, autora do livro Rumores Discretos da Subjetividade (Edi-tora Sulina/ UFRGS, 2010).

C o l a b o r a d o r e s

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ARTE POR OUTRAS VIAS

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00ano I | mai - jul | 2012