linguística folk : uma introdução

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Page 1: Linguística folk : uma introdução

Linguiacutestica folk uma introduccedilatildeo

Marie-Anne Paveau

Roberto Leiser BaronasTamires Cristina Bonani Conti

Julia Lourenccedilo Costa(Organizaccedilatildeo)

Linguiacutestica folk uma introduccedilatildeo

AraraquaraLetraria

2020

Linguiacutestica folk uma introduccedilatildeoProjeto editorialLetraria

RevisatildeoLetraria

Projeto graacutefico e diagramaccedilatildeoLetraria

CapaLetraria a partir de imagem cedida por Lauro Damasceno (UFSCar) e Michelle Thamiris Ramos Simotildees (UFSCar)

Ediccedilatildeo da imagem da capaEmely Larissa dos Santos (UEPG)

TradutoresasEacuterika de Moraes (UNESP)Fernando Curtti Gibin (UFSCar)Julia Lourenccedilo Costa (UFSCarFAPESP)Marco Antonio Almeida Ruiz (USP)Maria de Faacutetima Sopas Rocha (UFMA)Mariana Luz Pessoa de Barros (UFSCar)Mocircnica Magalhatildees Cavalcante (UFC)Paula Camila Mesti (UNESPARANPOLL)Phellipe Marcel da Silva Esteves (UFF)Roberto Leiser Baronas (UFSCar)Samuel Ponsoni (UEMG)Tamires Cristina Bonani Conti (UFSCarFAPESP)

PAVEAU Marie-Anne Linguiacutestica folk uma introduccedilatildeo Organizado por Roberto Leiser Baronas Tamires Cristina Bonani Conti e Julia Lourenccedilo Costa Araraquara Letraria 2020

CDD 410 LinguiacutesticaISBN 978-65-86562-30-9

Viacutecios na falaPara dizerem milho dizem mio

Para melhor dizem mioacutePara pior pioacute

Para telha dizem teiaPara telhado dizem teiado

E vatildeo fazendo telhados

(Oswald de Andrade Poesias reunidas In Obras completas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1978 p 47)

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SumaacuterioApresentaccedilatildeo 7

Parte I ndash Definiccedilotildees e conceitos 12

A linguiacutestica ldquofora do templordquo 13

Natildeo-linguistas fazem linguiacutestica 27

As normas perceptivas da linguiacutestica popular 44

O falar das classes dominantes linguiacutestica popular e dialetologia perceptiva 55

Parte II ndash Aplicaccedilotildees e perspectivas 73

Linguiacutestica popular e ensino de liacutengua categorias em comum 74

A liacutengua sem classes da gramaacutetica escolar 85

Imagens da liacutengua nos discursos escolares 96

As vozes do senso comum nos discursos sobre a escola 103

A linguiacutestica fora de si mesma em direccedilatildeo a uma poacutes-linguiacutestica 128

Sobre a autora oas organizadoras e osas tradutoresas 133

Bibliografia 139

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ApresentaccedilatildeoEacute com muita alegria que entregamos a todas todes e todos interessados em questotildees de

linguagem um conjunto de textos sobre linguiacutestica folk ou linguiacutestica popular da discursivista francesa Marie-Anne Paveau especialmente reunidos para uma ediccedilatildeo brasileira

Falar de linguiacutestica folk especialmente no que concerne ao contexto brasileiro eacute dissertar sobre um aparente paradoxo Com efeito se olharmos para as aacutereas que os grandes eventos da linguiacutestica brasileira consideram como fazendo parte do escopo das ciecircncias da linguagem1 ou mesmo o que as agecircncias de fomento consideram como aacutereas dignas de se obter financiamento para a pesquisa a linguiacutestica folk natildeo aparece como um desses campos Entretanto para ficar somente no que circula na miacutedia uma espiada mais detida em um site de notiacutecias qualquer levantaraacute quase diariamente um conjunto de textos ou mesmo comentaacuterios de internautas sobre questotildees de linguagem na maioria esmagadora das vezes produzidos por natildeo-especialistas em linguiacutestica Natildeo se trata somente de discussotildees de natureza prescritiva mas que abarcam tambeacutem outros tipos de praacuteticas tais como as descritivas intervencionistas e militantes Eacute justamente nesse sentido que afirmamos tratar-se de um aparente paradoxo pois embora a linguiacutestica folk natildeo esteja institucionalizada em termos de domiacutenio ou subdomiacutenio das ciecircncias da linguagem nos grandes eventos da linguiacutestica brasileira ou nas agecircncias de fomento ela estaacute muito viva e dinacircmica em outros contextos sobretudo na boca dosas falantes e nos teclados dosdas internautas

Este livro da pesquisadora francesa Marie-Anne Paveau (ineacutedito tanto no contexto francecircs quanto no brasileiro) completa uma espeacutecie de trilogia epistemoloacutegica e teoacuterico-metodoloacutegica iniciada pela autora com a publicaccedilatildeo de Os preacute-discursos sentido memoacuteria cogniccedilatildeo2 passando tambeacutem pela publicaccedilatildeo de Linguagem e moral uma eacutetica das virtudes discursivas3 Trata-se de abordagens distintas sobre a linguagem mas que no seu conjunto aleacutem de conectadas satildeo imprescindiacuteveis para a sustentaccedilatildeo epistemoloacutegica e teoacuterico-metodoloacutegica de um grande programa de pesquisa da autora acerca do digital ou dos tecnodiscursos materializado no livro Anaacutelise do discurso digital dicionaacuterio das formas e das praacuteticas4 Os trinta e um verbetes que compotildeem esse potente e ousado programa de pesquisa de Paveau tecircm como pano de fundo epistemoloacutegico e teoacuterico-metodoloacutegico a questatildeo dos preacute-discursos o problema da relaccedilatildeo entre linguagem e moral no que concerne agraves virtudes discursivas ou ainda as proposiccedilotildees formuladas no acircmbito da linguiacutestica folk Satildeo essas trecircs bases que sustentam toda a pavimentaccedilatildeo perquirida no acircmbito de uma Anaacutelise do Discurso Digital proposta por Marie-Anne Paveau

1 Referimo-nos basicamente agrave Associaccedilatildeo Brasileira de Linguiacutestica (ABRALIN) ao Grupo de Estudos Linguiacutesticos do Estado de Satildeo Paulo (GEL) e agrave Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-graduaccedilatildeo em Letras e Linguiacutestica (ANPOLL)

2 A ediccedilatildeo francesa Les preacutediscours sens meacutemoire cognition foi publicada em 2006 pela Presses Sorbonne nouvelle e a ediccedilatildeo brasileira pela Editora Pontes em 2013

3 A ediccedilatildeo francesa Langage et morale une eacutethique des vertus discursives foi publicada em 2013 pela Eacuteditions Lambert-Lucas e a brasileira pela Editora UNICAMP em 2015

4 A ediccedilatildeo francesa LrsquoAnalyse du discours numeacuterique dictionnaire des formes e des pratiques foi publicada em 2017 pela Eacuteditions Hermann e a brasileira organizada por dois de noacutes seraacute publicada pela Editora Pontes no iniacutecio de 2021

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Os nove capiacutetulos que compotildeem este livro embora jaacute tenham sido publicados individualmente em forma de artigo em diversos perioacutedicos franceses5 num periacuteodo que compreende uma vintena de anos nunca foram reunidos em um uacutenico suporte Coube a noacutes como organizadoras o trabalho de reunir e ao lado de diversosas discursivistas brasileirosas traduzir e dispor os textos de maneira que a linguiacutestica folk obtivesse estatuto proacuteprio para o ingresso no campo dos estudos da linguagem sendo natildeo apenas apresentada no contexto de liacutengua portuguesa como uma das possibilidades pertinentes e relevantes de se refletir sobre a linguagem com base nos metadiscursos dosas locutoresas questatildeo praticamente inexistente no que concerne agraves ciecircncias da linguagem mas tambeacutem como uma possibilidade concreta de discussatildeo da validade epistemoloacutegica e especialmente social desses saberes bem como a sua aplicaccedilatildeo praacutetica Aplicaccedilatildeo essa tanto no acircmbito dos mais diferentes domiacutenios e subdomiacutenios das ciecircncias da linguagem enquanto possibilidade de integraccedilatildeo quanto no que concerne ao ensino de liacutenguas

O recorte efetuado para a organizaccedilatildeo deste livro se deu a partir de dois grandes eixos que produzem coesatildeo epistemoloacutegica e teoacuterico-metodoloacutegica aos capiacutetulos aqui publicados o da definiccedilatildeo e conceitos da linguiacutestica folk e o da aplicaccedilatildeo e das perspectivas desse campo de estudos Esses dois eixos aleacutem de organizarem de alguma forma a leitura deixam menos opaco o projeto do livro introduzir a problemaacutetica da linguiacutestica folk no contexto da liacutengua portuguesa Cumpre destacar que embora esteja totalmente fora de nossos propoacutesitos qualquer tipo de cenografia que busque privilegiar o controle do leitor e dos sentidos acreditamos ser pertinente apresentar ndash mesmo que rapidamente ndash cada um dos capiacutetulos que compotildeem esta coletacircnea

No capiacutetulo inicial deste livro panoramicamente a autora apresenta o campo de estudos da linguiacutestica folk enfatizando num primeiro momento que a irrupccedilatildeo desse campo estaacute relacionada com um movimento maior que envolve praticamente todos os campos do conhecimento qual seja o da presenccedila de fenocircmenos jaacute relativamente conhecidos o aumento do niacutevel de conhecimento dos indiviacuteduos sobretudo em razatildeo do desenvolvimento das novas tecnologias de comunicaccedilatildeo o aumento da disponibilizaccedilatildeo dos saberes nas publicaccedilotildees tradicionais ou eletrocircnicas a expressiva difusatildeo da informaccedilatildeo em muacuteltiplos suportes especialmente os gratuitos Todos esses fenocircmenos (que concernem especialmente aos paiacuteses desenvolvidos) contribuem significativamente para o aumento dos saberes dos indiviacuteduos e para um apagamento das diferenccedilas entre profissionais do saber (os universitaacuterios por exemplo) e os detentores profanos de saberes ou de saberes profanos Na sequecircncia Paveau apresenta as geografias em que a linguiacutestica folk estaacute bem estabilizada e as suas muacuteltiplas dimensotildees epistemoloacutegica teoacuterica representacional e praacutetica

No segundo capiacutetulo a discursivista trata da questatildeo da linguiacutestica folk com base no trabalho dos natildeo-linguistas Ela examina primeiro a figura do linguista folk ou linguista popular apresentando uma tipologia em regime escalar e natildeo binaacuteria desde o linguista amador escritor

5 Agradecemos vivamente os Editores das revistas francesas (Pratiques Langage et Societeacute Eacutetudes de linguistique apliqueacutee Le Franccedilais aujourdrsquohui e Les carnets du Cediscor) em que os textos aqui reunidos foram originalmente publicados que gentilmente autorizaram a traduccedilatildeo e a publicaccedilatildeo em liacutengua portuguesa

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de livros didaacuteticos ao humorista produtor de jogos de palavras em cena passando pelos escritores juristas e outros locutores afetados pelas questotildees linguageiras Na sequecircncia a autora discute a validade dos saberes folk no acircmbito das ciecircncias da linguagem com base em duas posiccedilotildees possiacuteveis em filosofia das ciecircncias (o eliminativismo de P Churchland e o realismo doce de D Dennet) Por fim ela propotildee uma terceira postura epistemoloacutegica a qual designa ldquointegracionistardquo os conhecimentos populares satildeo saberes pertinentes e devem com efeito ser integrados agrave linguiacutestica que frequentemente desenvolve suas teorias somente baseada nas intuiccedilotildees dos linguistas profissionais

No capiacutetulo trecircs Paveau aborda a questatildeo das normas perceptivas mobilizadas por falantes comuns em suas praacuteticas linguiacutesticas Ela fala precisamente de praacuteticas linguiacutesticas e natildeo de praacuteticas linguageiras designando um campo bem identificado nos Estados Unidos a linguiacutestica folk e em menor medida na Alemanha (Volklinguistik) menos ainda no domiacutenio francoacutefono no qual muitos designadores com referentes um tanto vagos coexistem para designar esse conjunto de discursos natildeo eruditos natildeo especialistas sobre as formas e padrotildees da linguagem e do discurso linguiacutestica popular espontacircnea profana selvagem natildeo erudita A interrogaccedilatildeo da pesquisadora natildeo diz respeito agrave dimensatildeo prescritiva versus descritiva das normas assim produzidas mas concerne ao valor das percepccedilotildees na elaboraccedilatildeo de um discurso linguiacutestico popular e portanto agrave validade das teorias populares em relaccedilatildeo agraves teorias acadecircmicas teorias cientiacuteficas

Marie-Anne Paveau se debruccedila no quarto capiacutetulo sobre os pontos cegos ou impensados nos trabalhos de sociolinguiacutestica francesa de um lado nos planos praacutetico e metodoloacutegico o falar das classes dominantes como natildeo-objeto de pesquisa e de outro lado nos planos epistemoloacutegico e teoacuterico a natildeo-consideraccedilatildeo dos resultados da linguiacutestica popular (linguiacutestica folk) e dos paracircmetros perceptivos no estudo dos fenocircmenos linguageiros Ela propotildee inicialmente um balanccedilo sobre a noccedilatildeo de classe social na sociolinguiacutestica francesa e anglo-saxatilde e a descriccedilatildeo da notaacutevel assimetria que existe entre as classes comumente escolhidas pelas ciecircncias sociais como terreno de investigaccedilatildeo (trabalhadores povo excluiacutedos e em menor grau as classes meacutedias) e os pertencimentos reais ou imaginaacuterios dos indiviacuteduos (em que se encontram igualmente as classes dominantes as elites as aristocracias e as burguesias herdadas ou reconstruiacutedas) Na sequecircncia a autora examina numa perspectiva integracionista as formas e a validade dos resultados da linguiacutestica folk praacutetica analiacutetica antiga em especial sobre o falar das elites e dos bairros nobres Ela mostra tambeacutem em particular que os conceitos e meacutetodos da dialetologia perceptual norte-americana ainda pouco presentes nas pesquisas francesas permitem tratar esse tipo de corpus e fazer proposiccedilotildees linguiacutesticas sobre os falares de classe Por fim a discursivista propotildee uma primeira descriccedilatildeo do falar das classes dominantes com base na linguiacutestica folk enfatizando alguns de seus aspectos caracteriacutesticos pronuacutencia ldquoMarie-Chantalrdquo coacutedigo lexical e rituais pragmaacuteticos

No quinto capiacutetulo partindo da afirmaccedilatildeo de que o desenvolvimento da ciecircncia cognitiva e depois da etnometodologia fez emergir a questatildeo da ciecircncia espontacircnea dos sujeitos questatildeo natural para um campo que lida com o desenvolvimento do conhecimento das percepccedilotildees e das representaccedilotildees dos indiviacuteduos a autora explora este problema no campo da liacutengua

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francesa fazendo uma pergunta simples as categorias espontacircneas de alunos podem ser mobilizadas no ensino da liacutengua ou devem pelo contraacuterio ser desconstruiacutedas para dar lugar a categorias aprendidas Depois de definir o que se denomina ldquolinguiacutestica popularrdquo e sublinhar seu interesse pelo campo do ensino-aprendizagem da liacutengua ela busca responder a essa questatildeo por meio de trecircs exemplos de categorias a palavra a flexatildeo verbal e o gecircnero do discurso

No sexto capiacutetulo Marie-Anne Paveau com base no princiacutepio de que a representaccedilatildeo unitaacuteria da liacutengua tem uma funccedilatildeo social importante que natildeo deve ser obliterada por razotildees praacuteticas e tambeacutem didaacuteticas sociais e ateacute ideoloacutegicas ela assevera que eacute realmente o francecircs padratildeo que deve ser ensinado na escola No entanto para a autora isso natildeo implica a falta de abordagem e o silenciamento sobre a variaccedilatildeo social em particular ela questiona ainda se na liacutengua como em outras situaccedilotildees existem fenocircmenos de classe se existe um francecircs popular e um francecircs das classes dominantes e se as redes sociais os grupos e as comunidades que cruzam as classes de maneira complexa sem apagaacute-las tambeacutem se definem por suas formas de falar fortemente marcadas por determinismos sociais Eacute esta questatildeo da variaccedilatildeo social no sentido mais classista do termo que a discursivista aborda aqui comparando as gramaacuteticas escolares com base nos saberes linguiacutesticos chamados ldquoacadecircmicosrdquo e nos saberes da gramaacutetica espontacircnea ou gramaacutetica popular (ldquofolk gramarrdquo que adveacutem da linguiacutestica popular ldquofolk linguisticsrdquo) altamente desenvolvida nos Estados Unidos que integra o paracircmetro classista

No seacutetimo capiacutetulo a pesquisadora reflete sobre o discurso escolar Assim ao falar sobre esse tipo de discurso ela toca num problema metodoloacutegico importante o que se entende por ldquodiscurso escolarrdquo Identificado restritivamente como discurso da escola e ateacute mesmo agrave custa de uma reduccedilatildeo espacial como discurso na escola o discurso escolar natildeo eacute impedido por si mesmo de se relacionar com aqueles que se encontram fora do espaccedilo escolar ou da instituiccedilatildeo escolar Em outras palavras o discurso na escola natildeo eacute apenas os discursos da escola seria preciso portanto poder compartilhar o que eacute dos pais e da famiacutelia o que depende de paracircmetros sociais e culturais o que se capta no discurso da miacutedia o que emerge de uma crenccedila popular etc E esses proacuteprios discursos interpenetram-se e entrelaccedilam-se formando um universo discursivo que se organiza de maneira diferente de acordo com os tempos as crises e os acontecimentos Falar de imagens de liacutengua em discursos escolares natildeo pode assim ser feito sem levar em conta a polifonia essencial e essa tarefa eacute muito importante para ser realizada no acircmbito de um capiacutetulo Como em trabalhos anteriores ela aborda a questatildeo tanto fora quanto dentro da escola propondo aqui algumas respostas poreacutem sempre muito ldquomonofocircnicasrdquo reduzindo os discursos escolares aos que satildeo produzidos no acircmbito da escola pelos alunos pelos professores pelos livros e pelos textos oficiais

No oitavo capiacutetulo a partir de um corpus de ensaios do mainstream contemporacircneo sobre a escola Paveau propotildee uma concepccedilatildeo de senso comum ponderada pelas dimensotildees semacircntica e perceptual em uma abordagem em trecircs niacuteveis (preacute-discursivo metadiscursivo e discursivo) a partir da presenccedila de marcas no discurso O senso comum no discurso estaacute de fato ancorado no espaccedilo preacute-discursivo do conhecimento preacutevio compartilhado em uma

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comunidade discursiva se manifesta no niacutevel metadiscursivo por meio de comentaacuterios dos falantes explicando sua relaccedilatildeo com o senso comum (marcas de negaccedilatildeo ou captura de formas de senso comum destinada agrave validaccedilatildeo de enunciados) e eacute construiacuteda no niacutevel discursivo por meio de certo nuacutemero de arranjos lexicais enunciativos e frasais

No uacuteltimo capiacutetulo numa espeacutecie de conclusatildeo deste livro a autora defende que a renovaccedilatildeo dos estudos sobre a linguiacutestica popular por meio da consideraccedilatildeo dos pontos de vista dos locutoresas e de suas experiecircncias de vida se inscreve num amplo movimento mundial de descentramento que exaspera atualmente as ciecircncias humanas e sociais O questionamento dos grandes dualismos fundadores as indagaccedilotildees das abordagens poacutes-coloniais e as epistemologias militantes permitem abordagens poacutes-dualistas que podem ser mobilizadas em linguiacutestica A integraccedilatildeo dos metadiscursos das pessoas comuns no programa da linguiacutestica a conduz em direccedilatildeo a uma dimensatildeo ecoloacutegica que a pesquisadora qualifica de poacutes-linguiacutestica

Cumpre destacar uma vez mais que este livro de Marie-Anne Paveau sobre linguiacutestica folk natildeo vem corroborar os discursos negacionistas de variadas ordens que se inscrevem numa espeacutecie de sociologia da ignoracircncia tatildeo em voga atualmente e profundamente deleteacuteria para a ciecircncia em particular e para a toda a sociedade em geral mas vem para

Considerar no proacuteprio trabalho linguiacutestico os metadiscursos das pessoas comuns incorporando suas experiecircncias de vida seus pontos de vista suas posiccedilotildees morais suas situaccedilotildees poliacuteticas e tudo o que compotildee sua vida permitindo agrave linguiacutestica sair do logocentrismo que a priva da profundidade da vida dos sujeitos A plena integraccedilatildeo das condiccedilotildees de fala dosas locutoresas nas praacuteticas linguiacutesticas quer sejam elas dosas produtoresas dos corpora ou de seus analistas permite iniciar o programa de uma poacutes-linguiacutestica que respeita os ambientes das pessoas que falam e suas palavras (PAVEAU 2018)

Enfim este livro vem corroborar a necessidade premente do debate acerca da instauraccedilatildeo das novas partilhas do discurso acadecircmico Deixamos um agradecimento muito especial a autora Marie-Anne Paveau que prontamente acolheu a proposta desta coletacircnea e tambeacutem um muito obrigado afetuoso a todosas tradutoresas pelo seu esmerado trabalho Oacutetima leitura a todas todes e todos As sugestotildees e criacuteticas satildeo sempre muito bem-vindas

Satildeo Carlos UFSCar primavera de 2020Oas organizadoras

Parte I

Definiccedilotildees e conceitos

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A LINGUIacuteSTICA ldquoFORA DO TEMPLOrdquo6

1 Sobre a relevacircncia e a pertinecircncia em se discutir linguiacutestica popularEm 2008 a European Review of Philosophy publica uma ediccedilatildeo totalmente dedicada a

Folk Epistemology (HEINTZ POUSCOULOUS TARABORELLI 2008) Neste nuacutemero diversas questotildees abordadas pelos autores majoritariamente filoacutesofos recobrem exatamente as questotildees que pretendemos apresentar esquematicamente no capiacutetulo inicial deste livro Essas preocupaccedilotildees atestam que existe atualmente em diversos campos do conhecimento (filosofia epistemologia linguiacutestica psicologia neurociecircncias biologia e outros domiacutenios) uma robusta interrogaccedilatildeo sobre a natureza dos saberes sobre os modos de constituiccedilatildeo e de legitimaccedilatildeo dos conhecimentos ditos cientiacuteficos Neste nuacutemero a European Review of Philosophy propotildee ainda as seguintes questotildees

a) Qual eacute o domiacutenio adequado de um sistema de epistemologia popular

b) As avaliaccedilotildees epistecircmicas envolvem o pensamento consciente

c) As avaliaccedilotildees epistecircmicas satildeo especiacuteficas de humanos

d) Como a epistemologia popular contribui para o pensamento racional

e) Quais satildeo as relaccedilotildees (se houver) entre a epistemologia normativa a epistemologia do senso comum e a epistemologia popular

f) Como a epistemologia popular se relaciona com nossa compreensatildeo ingecircnua da verdade

g) Quais aspectos da cultura poderiam ser explicados com base em uma epistemologia popular

h) Os sujeitos compartilham as mesmas intuiccedilotildees epistemoloacutegicas entre culturas Ou as epistemologias variam entre culturas (HEINTZ POUSCOULOUS TARABORELLI 2008 p 34)

Neste livro de natureza introdutoacuteria natildeo temos espaccedilo para explicar pormenorizadamente a emergecircncia atual de todas essas questotildees Contentar-nos-emos em trazer agrave lembranccedila fenocircmenos bem conhecidos o aumento do niacutevel de conhecimento dos indiviacuteduos sobretudo em razatildeo do desenvolvimento das novas tecnologias de comunicaccedilatildeo o aumento da disponibilizaccedilatildeo dos saberes nas publicaccedilotildees tradicionais ou eletrocircnicas a expressiva difusatildeo da informaccedilatildeo em muacuteltiplos suportes especialmente os gratuitos Todos esses fenocircmenos (que concernem especialmente aos paiacuteses desenvolvidos) contribuem significativamente

6 Texto originalmente publicado em ACHARD-BAYLE G PAVEAU M-A Preacutesentation La linguistique laquo hors du temple raquo Pratiques p 01-15 2008 Traduccedilatildeo de Roberto Leiser Baronas (UFSCar) Tamires Cristina Bonani Conti (UFSCarFAPESP) e revisatildeo teacutecnica de Julia Lourenccedilo Costa (UFSCarFAPESP) Outra versatildeo deste texto foi publicada no Dossiecirc ldquoLinguiacutestica popularfolk linguistics e linguiacutestica cientiacutefica em vez do versus propomos a integraccedilatildeordquo na revista Foacuterum Linguiacutestico v 16 nuacutemero 4 2019 Disponiacutevel em httpsperiodicosufscbrindexphpforumarticleview1984-84122019v16n4p4257 A expressatildeo ldquofora do templordquo usada no tiacutetulo deste artigo foi emprestada do projeto que Ameacutelie Cure preparou para o nuacutemero sobre Linguiacutestica Popular publicado na revista Pratiques no nuacutemero anteriormente citado Essa expressatildeo faz eco agrave foacutermula ldquofora do cacircnonerdquo que designa a arte bruta a arte dos loucos das crianccedilas dos inexperientes dos natildeo artistas tambeacutem chamada de ldquoarte outsiderrdquo ou ldquofolk artrdquo

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para o aumento dos saberes dos indiviacuteduos e para um certo apagamento das diferenccedilas entre profissionais do saber (os universitaacuterios por exemplo) e os detentores profanos de saberes ou de saberes profanos7 Outros elementos mais confidenciais pois concernem agrave histoacuteria das ciecircncias podem ser desenvolvidos a reflexatildeo sobre as relaccedilotildees entre saber e crenccedila eacute tatildeo antiga quanto o proacuteprio pensamento assim como o valor do conhecimento do senso comum natildeo suscetiacutevel de verificaccedilatildeo loacutegica (COATES 1996 DASCAL 1999 MARKOVITTS 1999 DENNETT 1990 [1987] FISETTE POIRIER 2002) a emergecircncia de uma disciplina como a etnometodologia que trouxe a partir da segunda metade do seacuteculo XX novos objetos epistemoloacutegicos para as ciecircncias humanas tal como o ldquosaber dos participantesrdquo ou novos meacutetodos como a ldquocompreensatildeordquo em especial a partir das narrativas de vida

Enfim as ciecircncias cognitivas contrariamente agrave sulforosa reputaccedilatildeo positivista e naturalista foram as primeiras a se perguntar como os conhecimentos de qualquer natureza satildeo produzidos no ceacuterebro de todas as pessoas e natildeo somente nos mais cientiacuteficos Diante desse quadro nos pareceu pertinente e mesmo relativamente urgente que a linguiacutestica independentemente da histoacuteria e da geografia que a abrigue visto que ainda permanece um pouco distante desse questionamento epistemoloacutegico se interrogue e se deixe interrogar pela dimensatildeo folk dos saberes

Tomando como referecircncia um conjunto de artigos publicados inicialmente na revista Pratiques em 20088 que tratam especificamente de questotildees atinentes agrave linguiacutestica popular propomo-nos entatildeo a discutir neste capiacutetulo mesmo que de maneira natildeo exaustiva a questatildeo da linguiacutestica popular no interior das ciecircncias da linguagem Para tanto perseguiremos vaacuterios objetivos a) desejamos dar conta da ausecircncia no contexto francecircs de um campo identificado como ldquolinguiacutestica popularrdquo ou ldquolinguiacutestica folkrdquo em comparaccedilatildeo com os domiacutenios anglo-saxocircnico e alematildeo nos quais a linguiacutestica popular faz parte de um dos subdomiacutenios da linguiacutestica geral Nesses paiacuteses a folk linguistics ou a Volklinguistik estatildeo bem implantadas e satildeo muito dinacircmicas com publicaccedilotildees e manifestaccedilotildees cientiacuteficas consistentes nestes uacuteltimos anos que podem ser atestadas na bibliografia deste livro por exemplo b) desejamos igualmente explorar ou mesmo definir o que o campo da linguiacutestica pode sublinhar no domiacutenio francoacutefono em comparaccedilatildeo a domiacutenios conexos e problemaacuteticas afins como o purismo a gramaacutetica normativa o trabalho sobre as normas linguiacutesticas sobre a metalinguagem ou sobre a noccedilatildeo de epilinguiacutestica por exemplo c) pretendemos igualmente abrir uma reflexatildeo sobre a validade dos saberes profanos e por consequecircncia sobre os saberes ldquocientiacuteficosrdquo questatildeo que eacute muito especiacutefica em linguiacutestica na medida em que a reflexividade a introspecccedilatildeo a consciecircncia linguiacutestica e a epilinguiacutestica satildeo problemaacuteticas que definem a disciplina Qual eacute portanto a pertinecircncia das intuiccedilotildees dos locutores profanos em comparaccedilatildeo agraves elaboraccedilotildees cientiacuteficas dos linguistas Esses uacuteltimos natildeo satildeo tambeacutem locutores profanos Por fim nos parece necessaacuterio e de maneira premente questionar as relaccedilotildees e as contribuiccedilotildees da linguiacutestica popular agrave linguiacutestica geral agrave linguiacutestica aplicada e ao conhecimento e ao ensino-aprendizagem

7 Essa distinccedilatildeo natildeo eacute binaacuteria mas escalar vaacuterias categorias de detentoras do saber podem ser vistas como experts os estudantes os colecionadores os apaixonados por determinado assunto os eruditos ou especialistas de todas as ordens Para um aprofundamento dessa escala ver Schmale (2008) e Paveau (2008)

8 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1168

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de liacutengua materna em particular em um periacuteodo em que as orientaccedilotildees oficiais do ensino de liacutengua na escola e no coleacutegio especialmente no contexto francecircs promovem um tipo de gramaacutetica que reivindica uma espeacutecie de ldquosimplificaccedilatildeordquo e uma ldquoautenticidaderdquo que pode ser talvez muito proacutexima do que chamamos aqui de saberes profanos ou espontacircneos9 Eacute a razatildeo pela qual desejamos uma reflexatildeo sobre o lugar a validade e a eficaacutecia pedagoacutegica das praacuteticas reveladas mais ou menos conscientemente da linguiacutestica popular colocadas em cena tanto pelos alunos quanto por seus professores no ensino da liacutengua em todos os niacuteveis

2 O que eacute a linguiacutestica popularDebruccedilar-nos-emos aqui sobre os problemas de designaccedilatildeo e de categorizaccedilatildeo dos objetos

ou das questotildees relativas agrave linguiacutestica popular

21 Os termos e as categorias folk e popular

O termo linguiacutestica popular eacute um dos objetos de uma seacuterie de denominaccedilotildees anglo-saxocircnicas baseadas em folk nas quais esse termo eacute traduzido em francecircs por popular espontacircneo inexperiente profano ou ordinaacuterio (a lista de denominaccedilotildees permanece aberta como demonstram os poucos trabalhos na aacuterea) Falamos tambeacutem de linguiacutestica do senso comum e encontramos igualmente a expressatildeo linguiacutestica dos locutores profanos em que L Rosier assinala a presenccedila massiva na internet ldquoPode-se [] constatar a presenccedila do que nomeamos linguiacutestica dos locutores profanos na internet notadamente nos foacuteruns de discussatildeo []rdquo (ROSIER 2004 p 70)

No domiacutenio cientiacutefico anglo-saxocircnico (sobretudo norte-americano) encontramos estudos bastante numerosos sobre as folk theories folk psychology folk epistemology folk biology (folk taxonomy) folk linguistics (folk etymology e folk ou perceptual dialectology) e recentemente folk pragmatics No entanto o termo folk natildeo eacute uniacutevoco e o domiacutenio da folk psychology10 se subdivide por exemplo em dois subdomiacutenios de um lado a psicologia do senso comum (commonsense psycology) que descreve e explica o comportamento humano em termos de crenccedilas desejos intenccedilotildees expectativas esperanccedilas etc e de outro uma versatildeo filosoacutefica dessa psicologia do senso comum que propotildee uma interpretaccedilatildeo dessas explicaccedilotildees ordinaacuterias por meio de generalizaccedilotildees teoacutericas mobilizando os conceitos de crenccedila desejo etc Essa corrente eacute representada por exemplo pelos trabalhos de P Churchland D Dennett e W Sellars

As lexias construiacutedas a partir de folk estatildeo bem estabilizadas no campo anglo-saxocircnico Em nosso trabalho tentamos ao maacuteximo conservar a sua traduccedilatildeo da maneira mais literal possiacutevel No entanto o termo popular em francecircs - e tambeacutem em portuguecircs - eacute polissecircmico Falamos aqui de linguiacutestica popular11 Todavia como definir esse termo Propomos por enquanto

9 Ver em particular os seguintes textos Boletim oficial nuacutemero 0 20 fevereiro de 2008 Os novos programas da escola primaacuteria Projeto submetido agrave consulta puacuteblica Eacuteduscol dgesco abril de 2008 Coleacutegio Projeto de programa francecircs Relatoacuterio de missatildeo sobre ensino da gramaacutetica 2006 elaborado por A Bentolila E Orsenna e D Desmarchelier

10 Para ver a difusatildeo desses trabalhos norte-americanos no contexto francoacutefono ver por exemplo Fisette e Poirier (2002)

11 As reservas em torno desse termo satildeo ambiacuteguas e enganosas (ele designaria de maneira pejorativa a linguiacutestica do povo) fazendo com que alguns autores adotassem a lexia afrancesada folk linguistique NT No Brasil salvo melhor juiacutezo embora o sentido de popular possa ser pejorativo sobretudo enunciado por locutores que pertencem agraves classes mais abastadas da populaccedilatildeo poreacutem como a linguiacutestica popular ainda estaacute em gestaccedilatildeo tais sentidos ainda natildeo estatildeo apensos agrave expressatildeo linguiacutestica popular

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chamar popular o saber espontacircneo dos atores sociais sobre o mundo (depositado entre outros espaccedilos nos proveacuterbios e nos ditos populares por exemplo) que se diferencia do saber acadecircmico ou cientiacutefico da mesma maneira que o saber praacutetico se distingue do saber teoacuterico O saber espontacircneo eacute constituiacutedo de saberes empiacutericos natildeo suscetiacuteveis de verificaccedilatildeo loacutegica (o saber espontacircneo natildeo eacute verdadeiro nem falso visto que eacute um saber aproximativo como explica F Markovits) e tambeacutem de crenccedilas que constituem guias para a accedilatildeo dos atores sociais as lendas urbanas ou as influecircncias da lua sobre as plantaccedilotildees ou ainda se o ceacuteu estaacute mais ou menos nublado como possibilidade de chuva satildeo crenccedilas reveladas do saber espontacircneo As conotaccedilotildees pejorativas geralmente apensas ao termo popular (contrariamente a outros usos eufoacutericos do termo como educaccedilatildeo ou universidade ou artes e tradiccedilotildees popular(es) por exemplo) fazem parte do escopo dos estudos da linguiacutestica popular e podem se tornar um importante objeto de estudo para esse domiacutenio

22 Geografia da linguiacutestica popular

221 Folk linguistics

O domiacutenio anglo-saxocircnico da folk linguistics foi aberto nos anos 1960 do seacuteculo passado pelos trabalhos inaugurais de Hoenigswald (1960 1996) que reivindicou firmemente que se leve em conta os saberes espontacircneos na constituiccedilatildeo de toda a ciecircncia Todavia essa importante demanda natildeo encontrou muito eco agrave eacutepoca Foi preciso esperar os anos 2000 para que a obra seminal de N Niedzielski e D Preston retomasse a questatildeo sobre o conteuacutedo e a representatividade da linguiacutestica popular norte-americana atualmente Em seu trabalho N Niedzielski e D Preston (2000 p 8) precisam o sentido de folk em folk linguistics

[A palavra folk] refere-se agravequeles que natildeo satildeo profissionais qualificados na referida aacuterea [] Definitivamente natildeo usamos folk para nos referirmos a ruacutesticos ignorantes atrasados primitivos minoritaacuterios isolados marginalizados ou grupos e indiviacuteduos de status supostamente inferiores

Em seguida os autores enfatizam a importacircncia de se levar em conta os saberes populares para a constituiccedilatildeo dos corpora de saberes cientiacuteficos ldquoSeja para o propoacutesito puramente cientiacutefico de registraacute-lo ou para os propoacutesitos sociais de nos ajudar a entender melhor nossas atitudes muacutetuas sugerimos que o estudo [] dos traccedilos linguisticamente orientados eacute uma tarefa importanterdquo (NIEDZIELSKI PRESTON 2000 p 123)

Os nomes e as expressotildees abaixo que intitulam os capiacutetulos do livro de N Niedzielski e D Preston desenham claramente o mapa da folk linguistics norte-americana

a) Regionalismo

b) Fatores sociais

c) Aquisiccedilatildeo da linguagem e linguiacutestica aplicada

d) Linguiacutestica geral e linguiacutestica descritiva

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O exposto permite destacar alinhados a J R Dow (autor de uma resenha do livro de N Niedzielski e D Preston publicada no Journal of American Folklore em 2001) que a obra apresenta elementos de anaacutelise e de reflexatildeo nos seguintes domiacutenios da linguiacutestica norte-americana

A ethnography of language a social psychology of language (ou estudo das atitudes linguiacutesticas muitas vezes traduzidos por psicologia social da linguagem) general descriptive linguistics (linguiacutestica geral e descritiva) language variation and change (linguiacutestica variacionista) e applied linguistics (linguiacutestica aplicada)

Esses dados nos mostram que a folk linguistics no domiacutenio anglo-saxocircnico especialmente no norte americano constitui um importante campo para as ciecircncias da linguagem12

222 Volkslinguistik Laienlinguistik

No contexto germacircnico a Volkslinguistik agraves vezes chamada de Laienlinguistik embora os termos natildeo cubram as mesmas praacuteticas linguiacutesticas13 se apresenta como no domiacutenio anglo-saxocircnico isto eacute como um campo de estudos jaacute consolidado com muitas produccedilotildees cientiacuteficas eventos etc O pesquisador G Antos tem contribuiacutedo largamente para difundir essa abordagem que se situa no domiacutenio da formaccedilatildeo transitando entre a psicologia e a gestatildeo A Laienlinguistik eacute a linguiacutestica dos manuais de conversaccedilatildeo ou de expressatildeo oral destinados a melhorar a competecircncia linguiacutestica dos locutores na sua vida social e profissional Os trabalhos do que se denomina enquanto Volkslinguistik se concentram todavia sobre a dialetologia e adotam uma perspectiva que se poderia denominar geolinguiacutestica se debruccedilando por exemplo sobre a imagem da ldquobad languagerdquoldquoliacutengua ruimrdquo associada agraves variantes regionais14 Tambeacutem eacute esse uso geolinguiacutestico da noccedilatildeo de linguiacutestica espontacircnea popular que P Seacuteriot mobiliza na Suiacuteccedila no tiacutetulo de seu artigo de 1996 sobre a linguiacutestica espontacircnea dos marcadores de fronteiras15 e no trabalho coletivo publicado na revista Pratiques nuacutemero 139140

223 Linguiacutestica popular

No domiacutenio francecircs e francoacutefono os estudos que se inscrevem na linguiacutestica popular satildeo raros como sublinha J-C Beacco que alhures escolheu evitar o termo popular no tiacutetulo do nuacutemero 154 da revista Langages16 por ele dirigida acerca desse tema preferindo falar

12 NT No caso do Brasil ao se tomar como paracircmetro as aacutereas que compotildeem o campo de estudos da linguiacutestica a partir por exemplo do CNPq ou de um evento jaacute consolidado como o de uma associaccedilatildeo como o GEL ou mesmo os Grupos de Trabalho da ANPOLL a linguiacutestica popular sequer figura como um domiacutenio ou mesmo subdomiacutenio de estudos da linguagem

13 Para um aprofundamento desta questatildeo veja o artigo de Schmale e Stegu publicado em dezembro de 2008 na revista Pratiques linguistique litteacuterature e didactique nuacutemero 139140 O artigo pode ser acessado em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1168 Veja tambeacutem o artigo de Antos (1996)

14 Para um aprofundamento desta discussatildeo veja por exemplo Langer (2001) os trabalhos de W Davies e o projeto de pesquisa The history and current status of lsquobad languagersquo as a concept in German folk linguistics que pode ser acessado no site httpeisbrisacuk~gexnlresearchahrbhtml

15 NT A referecircncia completa do artigo mencionado eacute SERIOT P La linguistique spontaneacutee des traceurs de frontiegraveres In SERIOT P (eacuted) Langue et nation en Europe centrale et orientale du 18egraveme siegravecle agrave nos jours Cahiers de lrsquoILSL (Univ de Lausanne) n 8 p 277-304 1996

16 NT A iacutentegra desse nuacutemero intitulado Repreacutesentations meacutetalinguistiques ordinaires et discours sob a direccedilatildeo de Jean-Claude Beacco pode ser acessada em httpswwwperseefrissuelgge_0458-726x_2004_num_38_154

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sobre representaccedilotildees metalinguiacutesticas ordinaacuterias Eacute sobretudo a expressatildeo etimologia popular que eacute difundida na Franccedila Dentre as razotildees para a escolha dessa terminologia estaacute o fato de se tratar de um fenocircmeno linguiacutestico passiacutevel de descriccedilatildeo e suscetiacutevel de fornecer um objeto discreto para a linguiacutestica geral O texto de autoria de H E Brekle presente no tomo 1 do livro Histoacuteria das ideias linguiacutesticas organizado por Sylvain Auroux bem como o trabalho de J-C Beacco citado anteriormente fazem menccedilotildees expliacutecitas ao domiacutenio da linguiacutestica popular Tambeacutem Pierre Bourdieu desde o iniacutecio dos anos 1980 mas de maneira mais expliacutecita em seu trabalho de 2001 reclama a existecircncia de uma ldquociecircncia rigorosa da sociolinguiacutestica espontacircneardquo (BOURDIEU 2001 p 137) De maneira um pouco mais recente e programaacutetica vale mencionar os nossos trabalhos (Marie-Anne Paveau) sobre a necessidade de se levar em conta a linguiacutestica popular no ensino da liacutengua francesa na escola (2005) os que tratam da construccedilatildeo de objetos sociais nas abordagens sociolinguiacutesticas (2007 e 2008) e os que buscam renovar as teorias do discurso (2006) Alguns desses trabalhos satildeo objetos dos proacuteximos capiacutetulos deste livro Haacute ainda o trabalho de L Rosier sobre a questatildeo do purismo nos trabalhos acerca das normas da liacutengua francesa e a circulaccedilatildeo dos discursos (2003 2004 e 2006)

O que expusemos anteriormente natildeo significa que as questotildees aqui rapidamente apresentadas natildeo sejam tratadas na literatura Todavia esse tipo de tratamento eacute feito sob outras etiquetas terminoloacutegicas ou com base em outras orientaccedilotildees teoacutericas e temaacuteticas

Em primeiro lugar eacute sob a designaccedilatildeo ordinaacuterio que o discurso espontacircneo sobre a liacutengua eacute agraves vezes estudado17 sem que haja contudo uma discussatildeo sobre essa questatildeo no contexto francecircs cujo objetivo seria o da constituiccedilatildeo de um domiacutenio cientiacutefico que buscasse uma sistematizaccedilatildeo quer seja da ldquolinguiacutestica ordinaacuteriardquo ou do ldquoordinaacuteriordquo propriamente dito O termo ordinaacuterio eacute amplamente mobilizado em lexias como francecircs ordinaacuterio trocas linguiacutesticas ordinaacuterias ou discursos ordinaacuterios Essa problemaacutetica do termo ordinaacuterio se confunde frequentemente com a problemaacutetica do cotidiano agrave maneira que os etnometodoacutelogos tratam dessa questatildeo Em segundo lugar dois subdomiacutenios ou orientaccedilotildees teoacutericas e temaacuteticas satildeo intensamente atravessadas pelas questotildees da linguiacutestica popular

a) De uma parte o vasto domiacutenio dos estudos sobre o ldquometardquo que trata da linguiacutestica do sistema (REY-DEBOVE 1978 que faz uma distinccedilatildeo da ldquometalinguagem correnterdquo e ldquocientiacuteficardquo tanto da teoria da enunciaccedilatildeo e da reformulaccedilatildeo (AUTHIER-REVUZ 1995 e as aspas meta-enunciativas quanto de Julia (2001) que fala de uma ldquosemacircntica espontacircneardquo) ou da didaacutetica da liacutengua (por exemplo J-C BEACCO R BOUCHARD J DAVID e S TREacuteVISE)18

b) De outra parte um conjunto tambeacutem vasto de trabalhos que em sociolinguiacutestica (J-C BEACCO define a linguiacutestica popular como um desdobramento da sociolinguiacutestica) se ocupam das normas e das representaccedilotildees (BERRENDONNER 1982 GADET (2007 [2003])

17 Para constatar essa afirmaccedilatildeo veja o sumaacuterio do nuacutemero organizado por Jean-Claude Beacco na revista Langages em 2004 intitulado Repreacutesentations meacutetalinguistiques ordinaires et discours

18 Para uma siacutentese destes trabalhos ver Bouchard e Meyer (1995)

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HOUDEBINE (2002) LAFONTAINE (1986) E A BOYER N GUERNIER J-M KLINGEBERG e outros) frequentemente recobertas pela etiqueta das ldquoatitudes linguiacutesticasrdquo no quadro de uma psicologia social da linguagem

23 Praacuteticas de linguiacutesticas profanasComo acabamos de mostrar de certa maneira a linguiacutestica popular natildeo existe na Franccedila

como um campo constituiacutedo Neste caso pode parecer paradoxal querer definir seus objetos e os materiais de observaccedilatildeo O paradoxo se configura se nos propomos a considerar a linguiacutestica popular como uma estrutura para unificar os objetos e abordagens mencionadas ateacute agora centrada em torno do conceito de praacutetica

Para tanto perquirimos a seguinte proposiccedilatildeo o campo de investigaccedilatildeo da linguiacutestica popular incluiria o conjunto dos enunciados que podemos qualificar como praacuteticas linguiacutesticas profanas (isto eacute que natildeo vecircm de representantes da linguiacutestica como uma disciplina estabelecida os ldquonatildeo-linguistasrdquo assim chamados por N Niedzielski e D Preston) designando avaliando ou referindo-se aos fenocircmenos da linguagem para produzi-los (os dois primeiros itens satildeo retirados de Brekle 1989 e o terceiro proposto por noacutesMarie-Anne Paveau)

i Descriccedilotildees ou (preacute)teorizaccedilotildees linguiacutesticas por exemplo aquelas que se relacionam com a designaccedilatildeo (chamar um gato de gato ou as coisas por seu nome) ou sobre a hierarquia entre escrito e oral (palavras verbais falar como um livro colocar os pingos nos is dizer ao peacute da letra) ou ainda sobre a conformidade com as regras da liacutengua (agente vai e vocecirc estaacute afim ldquonatildeo satildeo portuguecircsrdquo19) Um exemplo de um trecho da linguiacutestica social popular derivado do corpus das obras tiacutepicas do ldquoespiacuterito francecircsrdquo que propotildee uma pequena teoria profana do patroniacutemico em um contexto intercultural (Turid a jovem companheira norueguesa do narrador faz o experimento sobre os usos do nome proacuteprio na administraccedilatildeo francesa)

Mas o segredo do nome tambeacutem se estende aos serviccedilos puacuteblicos Enquanto em muitos paiacuteses sabemos imediatamente com quem estamos lidando ndash nos escritoacuterios com um crachaacute com o nome do funcionaacuterio no telefone porque o funcionaacuterio foi nomeado ndash na Franccedila se Turid quer saber quem ela deveria chamar na prefeitura nas contribuiccedilotildees no Serviccedilo Social

- Senha 634

Se ela insiste em ter uma interlocutora que parecesse gentil com ela

- Pergunte Madame Yvette

O nome da famiacutelia continua sendo um segredo quase inviolaacutevel Eacute o mesmo no bistrocirc onde o chefe recebe constantemente mensagens codificadas

- Eu te deixo pelo Senhor Leacuteon Vocecirc vai dizer a ele que eacute do Sr Raymond (P DANINOS 1977 Made in France Paris Julliard p 23)

19 NT Aqui a autora usa dois exemplos de ldquoerros gramaticiaisrdquo em francecircs que adaptamos para o portuguecircs com o uso de agente no lugar de a gente e afim no lugar de a fim

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ii Prescriccedilotildees comportamentais que na maioria das vezes vecircm de um normativismo mais ou menos exacerbado sabemos que ldquoamantes da boa linguagemrdquo ou ldquocomerciantes de regrasrdquo nas palavras de G Philippe (2002) condenam facilmente os neologismos (inuacuteteis) os empreacutestimos (ameaccediladores) os adveacuterbios terminados em -mente (pesados) as palavras teacutecnicas (jargotildees) feminilizaccedilotildees (ridiacuteculas) etc (PAVEAU ROSIER 2008) As praacuteticas profanas entatildeo satildeo abarcadas pelo purismo como definido por L Rosier (2004 p 69)

Eacute caracterizada por uma forte axiologizaccedilatildeo performativa (o que eacute dito o que natildeo eacute dito) que une o bom uso e pretende respeitar uma estrita economia das trocas linguiacutesticas em que se avalia aquele que fala de acordo com seu domiacutenio da liacutengua sob o acircngulo de riqueza lexical e correccedilatildeo gramatical

iii Intervenccedilotildees espontacircneas sobre a liacutengua chamadas de ldquofalhasrdquo pelos gramaacuteticos e puristas mas que constituem uma praacutetica real de linguagem profana impliacutecita se considerarmos que a falta constitui um discurso sobre a linguagem A coisa eacute entendida pelas etimologias populares (cata-vento lt catar + vento) e as meta-anaacutelises ou ldquointerrupccedilotildeesrdquo (ocircnibus rarr autocarro panorama rarr diaporama) menos quando dizem respeito aos erros Mas sabemos poreacutem e desde haacute muito tempo (a intransponiacutevel Gramaacutetica das falhas de Frei data de 1928) que a maioria das falhas dos falantes grandes ou pequenas eacute explicada pelo princiacutepio da economia da linguagem a linguagem eacute assim regularizada (o famoso vocecirc faz) simplificado (o caso bem conhecido odiado pelos puristas emoccedilatildeo rarr emocionado ou o menos conhecido ele cobriu lido no Teacuteleacuterama semanaacuterio culto em julho de 2006) harmonizado (Centro de estudos espaciais tambeacutem no Teacuteleacuterama em setembro de 2006) As falhas do francecircs existem como D Leeman pergunta (1994) Tudo depende por quem para quem e por que fazer Mas as intervenccedilotildees tambeacutem dizem respeito a campos mais poliacuteticos que dizem respeito agraves realidades de territoacuterios e populaccedilotildees como mostra claramente o artigo de P Seacuteriot E Bulgakova A Herzen como jaacute mencionamos presente no nuacutemero 139140 da revista Pratiques Nomes de pessoas nomes de liacutenguas nomes de paiacuteses e rios trata-se aqui de uma linguiacutestica popular com alto grau de performatividade uma vez que as intervenccedilotildees linguiacutesticas tambeacutem satildeo prescriccedilotildees de identidade

iv Haacute ainda as praacuteticas militantes especialmente aquelas que se debruccedilam a questionar certos usos linguiacutesticos por conta de seu caraacuteter racista homofoacutebico machista enfim preconceituoso

Recapitulando com base no nosso entendimento diremos que a linguiacutestica popular reuacutene quatro tipos de praacuteticas linguiacutesticas descritiva (descrevemos a atividade da linguagem) normativa (prescrevemos comportamentos da linguagem) intervencionista (intervimos nos usos da linguagem) e militante (questionamos certos usos da linguagem por entendermos natildeo serem virtuosos preconceituosos machistas entre outros) Examinemos agora de acordo com os nossos objetivos quais questotildees a linguiacutestica popular deveria desenhar para a linguiacutestica e a didaacutetica da liacutengua

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3 As muacuteltiplas dimensotildees da linguiacutestica popularUma das razotildees pelas quais a linguiacutestica popular deveria ser um domiacutenio da linguiacutestica eacute

que ela diz respeito natildeo apenas agrave teoria linguiacutestica em sua constituiccedilatildeo sua validade e sua legitimidade (o que lhe confere uma dimensatildeo epistemoloacutegica e meta-teoacuterica) mas tambeacutem agraves praacuteticas linguageiras em suas dimensotildees sociais culturais e cognitivas (o que eacute caro agrave sociolinguiacutestica agrave psicologia social e agrave semacircntica cognitiva) bem como aos procedimentos de ensino-aprendizagem de liacutenguas (levando ao ensino de liacutenguas e agrave psicolinguiacutestica)

31 Epistemologia

A linguiacutestica popular propotildee entre outras questotildees um problema de fronteiras disciplinares e de concepccedilatildeo de ciecircncia Sobre esse ponto as questotildees se misturam quais satildeo as relaccedilotildees entre sociolinguiacutestica e linguiacutestica popular (integraccedilatildeo afinidade cruzamento) E acima de tudo entre a linguiacutestica popular e a chamada linguiacutestica acadecircmica ou cientiacutefica devemos permanecer em uma oposiccedilatildeo binaacuteria (uma versus a outra) em que os natildeo-linguistas natildeo tecircm nada a dizer sobre liacutengua e os linguistas satildeo os uacutenicos autorizados a fazecirc-lo ou de maneira mais razoaacutevel podemos colocar as coisas em termos de um continuum um gradiente de cientificidade ou espontaneidade As fronteiras satildeo claras entre o purismo e a linguiacutestica popular (o purismo finalmente eacute tatildeo profano quanto isso) E que jogo de estilos musicais se desenrola entre a gramaacutetica tradicional a linguiacutestica popular e a linguiacutestica cientiacutefica a gramaacutetica tradicional apresentando por meio da norma caracteriacutesticas em comum com a proacutepria linguiacutestica popular conectada com linguiacutestica aprendida Como definir o ldquopopularrdquo ou ldquoprofanordquo senatildeo de maneira relativa a um padratildeo de comparaccedilatildeo qual seria a cientificidade ela mesma suscetiacutevel de variaccedilotildees de acordo com os objetos os meacutetodos e os objetivos considerados

Eacute primeiramente D R Preston um dos iniciadores do campo e autor com N Niedzielski da primeira siacutentese sobre a linguiacutestica popular (2003 [2000]) que responde a essas questotildees demonstrando o interesse cientiacutefico de comentaacuterios linguiacutesticos de natildeo-linguistas No artigo ldquoQursquoest-ce que la linguistique populaire Une question drsquoimportancerdquo20 ele explica por que e como levar em conta a linguiacutestica folk e mostra de passagem algumas ideias recebidas sobre a questatildeo como a suposta pobreza dos conhecimentos populares por exemplo

No nuacutemero mencionado da revista Pratiques vaacuterios autores lidam com essa dimensatildeo epistemoloacutegica Por exemplo nesse nuacutemero haacute uma entrevista concedida pelo historiador Eacuteric Mension-Rigau21 na qual ele explica de maneira muito praacutetica como trata os dados linguiacutesticos com um meacutetodo ldquocombinadordquo de suas habilidades como leitor de literatura (ele eacute um historiador de formaccedilatildeo que se interessa pelas Letras) o que ele chama de sua intuiccedilatildeo e de suas faculdades de observaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo Para ele eacute um verdadeiro meacutetodo histoacuterico e como D Dennett o autor poderia dizer que ldquofuncionardquo porque na verdade produz resultados convincentes e reconhecidos

20 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1176

21 Referimo-nos ao texto ldquoEntretien avec un folk linguiste lrsquohistorien Eacuteric Mension-Rigaurdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1174

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Por sua vez G Achard-Bayle que especularmente escolheu uma forma ldquopopularrdquo para lidar com a questatildeo da linguiacutestica popular (ldquoTrivial Pursuit Alfabeto da identidade pop-folk para o uso de linguistasrdquo) mostra como as questotildees ligadas agrave referecircncia ao real e agrave identidade satildeo sempre suscetiacuteveis agrave teorizaccedilatildeo de regime muacuteltiplo de acordo com o senso comum ou a racionalidade cientiacutefica avanccedilam para ambos suscetiacuteveis de receberem definiccedilotildees relativas

G Schmale no texto intitulado Conceptions populaires de la conversation22 discute a questatildeo da situaccedilatildeo da Laienlinguistik em comparaccedilatildeo com outras praacuteticas algumas menos instruiacutedas outras mais sobre a conversaccedilatildeo Por fim numa perspectiva epistemoloacutegica mais generalista o pesquisador Martin Stegu no artigo Linguistique populaire language awareness linguistique appliqueacutee interrelations et transitions23 compara a linguiacutestica folk a Laienlinguistik a linguiacutestica acadecircmica ou ldquooficialrdquo e sua relaccedilatildeo com a linguiacutestica aplicada No entendimento de Stegu essa comparaccedilatildeo mostra por exemplo que a linguiacutestica aplicada eacute em muitos aspectos bem proacutexima da linguiacutestica popular porque ela proacutepria foi concebida pelos natildeo-linguistas O autor defende entatildeo uma concepccedilatildeo aberta e escalar da linguiacutestica aplicada popular e acadecircmica

32 Teoria

Em suma eacute a proacutepria questatildeo da teoria que a linguiacutestica popular revira ativando questotildees sobre a categorizaccedilatildeo e denominaccedilatildeo dos fenocircmenos estudados nas ciecircncias da linguagem o estudo das atividades metalinguiacutesticas comuns dos falantes vem da linguiacutestica popular A palavra corrente eacute sinocircnimo de popular E como tratar a famosa intuiccedilatildeo ou o sentimento da linguagem em que os proponentes de uma linguiacutestica da competecircncia estatildeo baseados Sabemos que o termo contra intuitivo eacute frequentemente mobilizado para provar a agramaticalidade desta ou daquela forma A intuiccedilatildeo estaacute incluiacuteda na categoria de ldquopopularrdquo A intuiccedilatildeo eacute profana

Tomando uma vez mais a revista Pratiques M-A Paveau oferece algumas respostas hipoteacuteticas a essas questotildees em seu texto Les non-linguistes font-ils de la linguistique Une approche anti-eacuteliminativiste des theacuteories folk24 No texto em questatildeo a autora defende uma abordagem integracionista isto eacute que integre dados considerados folk para a linguiacutestica acadecircmica sem que uma fronteira em termos de contrariedade (ldquoversusrdquo) seja colocada entre os dois tipos de fenocircmenos Eacute a questatildeo da intuiccedilatildeo que sustenta essa posiccedilatildeo antieliminatoacuteria na medida em que a linguiacutestica acadecircmica natildeo pode economizar em intuiccedilatildeo e introspecccedilatildeo por causa de sua dimensatildeo reflexiva irredutiacutevel

Nesse quesito a linguiacutestica eacute particularmente fraacutegil face a ambiccedilotildees objetivistas e idealistas derivadas do modelo cientiacutefico das ciecircncias exatas No campo da argumentaccedilatildeo o trabalho de Marianne Doury tambeacutem se questiona sobre a validade do raciociacutenio folk A autora mostra em seu artigo intitulado lsquoCe nrsquoest pas un argumentrsquo Sur quelques aspects des theacuteorisations spontaneacutees de lrsquoargumentation25 que natildeo haacute diferenccedila gritante em termos da validade dos

22 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1186

23 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1193

24 A traduccedilatildeo deste artigo para o portuguecircs estaacute publicada em Policromias Rio de Janeiro UFRJ v 2 n 3 p 21-45 dez 2018 Disponiacutevel em httpsrevistasufrjbrindexphppolicromiasissuedownload1175622 Acesso em 10 ago 2019

25 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1207

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argumentos entre as produccedilotildees espontacircneas e as produccedilotildees aprendidas Ela traz assim argumentos importantes para fundamentar a abordagem antieliminatoacuteria

Essa posiccedilatildeo integracionista pode ser encontrada ateacute mesmo dentro da proacutepria linguiacutestica acadecircmica como mostram as obras de F Recanati sobre o sentido literal e o sentido contextual sintetizado em seu livro Literal Meaning (RECANATI 2004) Eacute preciso que nos debrucemos um pouco sobre essa concepccedilatildeo do sentido diretamente relacionada ao problema do eliminatoacuterio versus integracionista F Recanati que produz linguiacutestica a partir da filosofia desenvolve uma concepccedilatildeo contextualista do sentido e portanto argumenta que uma teoria semacircntica baseada na noccedilatildeo de sentido literal natildeo pode funcionar No capiacutetulo 9 de seu livro o autor defende uma posiccedilatildeo que chama de Meaning Eliminatism (eliminar o sentido intriacutenseco) baseada na ideia de que o sentido pode ser desenvolvido sem uma concepccedilatildeo puramente linguiacutestica e natildeo-contextual do sentido

De acordo com WF [visatildeo Wrong Format ldquoFormato Erradordquo] o sentido expresso por uma expressatildeo deve sempre ser contextualmente construiacutedo com base no (excessivamente rico ou excessivamente abstrato) significado ou potencial semacircntico do tipo de palavra [] Nesse quadro ainda haacute um papel para o significado linguiacutestico dos tipos de palavras eacute a entrada (ou um dos insumos) para o processo de construccedilatildeo

A diferenccedila entre o Meaning Eliminativism (ME) e o WF eacute que de acordo com o ME natildeo precisamos de significados linguiacutesticos nem mesmo para servir como entrada para o processo de construccedilatildeo Os sentidos que satildeo as contribuiccedilotildees das palavras para os conteuacutedos satildeo construiacutedos mas a construccedilatildeo pode prosseguir sem a ajuda de significados de palavras convencionais independentes do contexto (RECANATI 2004 p 174-175)

O autor entatildeo considera que a teoria contextualista do sentido eacute uma teoria popular na medida em que se baseia em dados natildeo-linguiacutesticos isto eacute contextuais Portanto aqui estamos diante de uma teoria linguiacutestica elaborada com base em uma concepccedilatildeo ldquonatildeo-linguiacutesticardquo no sentido aprendido do termo do sentido F Recanati pode ser descrito como um filoacutesofo que faz linguiacutestica junto com a natildeo-linguiacutestica o que natildeo eacute do gosto de todos como R M Harnish (2005 p 397) mostra claramente resumindo assim a posiccedilatildeo do filoacutesofo francecircs

Assim Recanati parece natildeo apenas promover uma espeacutecie de ldquosemacircntica-pragmaacutetica folkrdquo mas tambeacutem negar a legitimidade (e o potencial valor psicoloacutegico) da tradicional (ldquocientiacuteficardquo) linguiacutestica semacircntica Ele parece estar apostando que a semacircntica-pragmaacutetica natildeo seguiraacute o caminho da sintaxe (e da fonologia) Isto eacute introspectiva a psicologia popular prevaleceraacute tanto sobre as intuiccedilotildees semacircnticas quanto sobre a metodologia tradicional de construccedilatildeo de teoria na semacircntica

Natildeo seria toda linguiacutestica uma linguiacutestica popular Isto eacute certamente mostrado por certas representaccedilotildees discursivas e certos imaginaacuterios linguiacutesticos

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33 Representaccedilotildees

A questatildeo da validade teoacuterica ou mais amplamente cientiacutefica tambeacutem surge para os estudos sobre as representaccedilotildees linguiacutesticas do imaginaacuterio linguiacutestico formulado por A-M Houdebine ateacute as mitologias linguiacutesticas estudadas por P Zoberman bem como a linguiacutestica fantaacutestica e imaginaacuteria evocada por M Yaguello o imaginaacuterio eacute popular a linguiacutestica fantaacutestica eacute profana De quais campos de quais categorias de qual campo disciplinar ou subdisciplina somos noacutes

As respostas satildeo fornecidas por J-C Beacco em seu artigo De la verve Agrave la recherche drsquoun ideacuteal discursif ordinaire26 quando ele propotildee analisar ldquoas concepccedilotildees circulantes sobre o que eacute o bom falar ou o que eacute o autecircntico bom escrever que responde a valores distintos ou opostos agravequeles que baseiam as normas dominantes ditas indiferentemente acadecircmicas oficiais escolares supervisionadas elegantes Neste texto o autor examina um corpus de artigos da imprensa esportiva (o jornal diaacuterio LrsquoEacutequipe) para descobrir definiccedilotildees espontacircneas do que eacute essa eloquecircncia autecircntica Em outra ordem de ideias mas ainda no campo das estruturas representacionais P Seacuteriot E Bulgakova e A Heržen mostram em La linguistique populaire et les pseudo-savants27 que o discurso da liacutengua constitui a base de um questionamento sobre as identidades coletivas e nacionais na Europa Oriental no primeiro dececircnio dos anos dois mil Eles destacam assim realidades culturais e discursivas pouco conhecidas como a fabricaccedilatildeo de identidades miacuteticas e origens fantaacutesticas por meio de um discurso linguiacutestico ldquopseudo-eruditordquo com uma forte intenccedilatildeo persuasiva As apostas satildeo altas porque se trata da definiccedilatildeo de povos e da delimitaccedilatildeo de fronteiras

34 Praacuteticas

Por fim a linguiacutestica popular levanta o problema do valor e da efetividade do conhecimento espontacircneo em um contexto de aprendizagem um discurso frequente eacute que na linguiacutestica como em outros lugares a demonstraccedilatildeo cientiacutefica na maioria das vezes contradiz a interpretaccedilatildeo espontacircnea (por exemplo a posiccedilatildeo de Jackendoff (2003) em relaccedilatildeo ao ldquoconhecimento popularrdquo) Esse discurso estaacute no entanto atualmente sendo minado por alguns filoacutesofos das ciecircncias que depois de ilustres antecessores como A Schutz ou P Feyerabend mostraram como as teorias espontacircneas agraves vezes estatildeo proacuteximas de resultados cientiacuteficos ou tecircm validade de uma outra ordem necessaacuteria no campo da vida em sociedade

Esta questatildeo parece crucial para noacutes na aula de francecircs do jardim de infacircncia agrave universidade Qual eacute o lugar do conhecimento profano dos alunos e professores em sala de aula (sabemos que a atividade metalinguiacutestica de ldquocrianccedilas gramaacuteticasrdquo eacute largamente explorada em preacute-aprendizagens no maternal e no ciclo 1) Um ldquoerro cientiacuteficordquo pode ter uma boa rentabilidade funcional no aprendizado Eacute este o caso de todas as atividades Para todos os niacuteveis de ensino (ldquoa crianccedila gramaacuteticardquo de Gleitman Gleitman e Shipley (1972) pode tornar-se um ldquoestudante gramaacuteticordquo) O ensino de francecircs deve privilegiar a eficaacutecia ou a precisatildeo cientiacutefica

26 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1214

27 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1220

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Sobre essas questotildees vale a pena voltar uma vez mais ao nuacutemero 139140 da revista Pratiques Em seu trabalho sobre Les explications meacutetagraphiques appliqueacutees aux premiegraveres eacutecritures enfantines28 J David se baseia em um grande corpus de textos escritos e especialmente em autoexplicaccedilotildees ou comentaacuterios metagraacuteficos produzidos por crianccedilas pequenas que satildeo aprendizes de escritores (5-7 anos) para mostrar como essas crianccedilas conseguem verbalizar o conhecimento emergente sobre o funcionamento da escrita Este conhecimento demonstra ter conexotildees por um lado com as propriedades das linguagens orais e por outro lado com os componentes da escrita (semioloacutegicos fonoloacutegicos morfoloacutegicos) gradualmente descobertos e integrados Um conhecimento espontacircneo e incontestaacutevel surge assim dos comentaacuterios metagraacuteficos das crianccedilas

Constataccedilotildees anaacutelogas satildeo feitas por referecircncia agraves grafias inventadas (invented spellings) por J-P Jaffre e M-F Morin Em sua reflexatildeo sobre Les activiteacutes preacute-orthographiques nature validiteacute et conceptions29 os autores mostram de fato que as crianccedilas pequenas possuem habilidades preacute-ortograacuteficas pois natildeo satildeo a princiacutepio cognitivamente sensiacuteveis agraves normas ortograacuteficas mas agraves funcionalidades subjacentes cuja uacutenica consideraccedilatildeo eacute avaliar suas primeiras produccedilotildees Eles concluem que escrever natildeo eacute mais uma questatildeo de (re)produzir normas ortograacuteficas mas de perceber princiacutepios graacuteficos baacutesicos e recorrentes ndash por exemplo o valor fonoloacutegico das letras na tradiccedilatildeo alfabeacutetica

Satildeo essas ldquocrianccedilas gramaacuteticasrdquo que satildeo o assunto dos comentaacuterios de M Laparra Em seu texto Lrsquoeacutelegraveve grammairien Lrsquoexemple de lrsquoapprentissage des marques graphiques du franccedilais30 a autora se pergunta qual eacute o valor do conhecimento espontacircneo que os alunos podem produzir em certas marcas morfoloacutegicas graacuteficas do francecircs Apesar de tudo a sala de aula continua sendo um espaccedilo interacional que constitui um verdadeiro reservatoacuterio onde se descobrem discursos agraves vezes preacute-fabricados furtivos ou ritualizados oriundos por vezes dos proacuteprios conhecimentos escolares derivados dos conhecimentos acadecircmicos Eacute isso que C Weber mostra em Les verbalisations ordinaires dans la classe objets furtifs ou variables encombrantes des sciences du langage31 Os vaacuterios modos comunicativos que se desenrolam na sala de aula datildeo lugar de fato em sua opiniatildeo a uma infinita variaccedilatildeo de produccedilotildees representaccedilotildees e raciociacutenios que estatildeo prestes a ser construiacutedos cuja forma e presenccedila satildeo ldquofurtivasrdquo mas que desempenham um papel decisivo nas praacuteticas escolares

O nosso primevo percurso acerca da linguiacutestica popular finda mencionando o artigo de F Capucho Ela propotildee uma abordagem ineacutedita em relaccedilatildeo a todos os trabalhos jaacute mencionados na medida em que opta por trabalhar no contexto do plurilinguismo e em uma noccedilatildeo pluridisciplinar (linguiacutestica filosofia psicologia social comunicaccedilatildeo) a intercompreensatildeo Em Lrsquointercompreacutehension est-elle une mode Du linguiste citoyen au citoyen plurilingue32 ela mostra que essa noccedilatildeo estrutura os comportamentos de falantes pluriliacutengues especialmente em condiccedilotildees

28 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1230

29 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1238

30 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1246

31 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1247

32 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1252

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com alto grau de estranheza como as viagens Em particular ela analisa os componentes emocionais e situacionais e mostra ateacute que ponto os locutores mobilizam espontaneamente quase ldquonaturalmenterdquo sua competecircncia intercompreensiva

4 Umas poucas palavras de fim Esperamos que as breves consideraccedilotildees que aqui realizamos possam orientar e talvez

iluminar uma aacuterea que ainda eacute um pouco obscura na Franccedila e pelo que nos consta a partir de nosso contato com os organizadores deste livro tambeacutem no Brasil Os levantamentos aqui apresentados podem contribuir para o tratamento da linguiacutestica popular a partir de questotildees de natureza epistemoloacutegica teoacuterica praacutetica e representacional que acreditamos serem necessaacuterias para que o campo da ciecircncia da linguagem seja mantido em um dinamismo seguro sem nenhum tipo de binarismos Esperamos que os percursos brevemente abertos ou aprofundados aqui favoreccedilam igualmente as colaboraccedilotildees de todos os interessados sobre a questatildeo da linguiacutestica popular e de um modo mais geral sobre a validade do conhecimento das ciecircncias humanas

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NAtildeO-LINGUISTAS FAZEM LINGUIacuteSTICA33

A linguiacutestica popular ou linguiacutestica folk (designaccedilatildeo afrancesada que adotei por dar conta da questatildeo da polissemia de popular e dos mal-entendidos que satildeo curiosamente associados agrave palavra)34 tem se apresentado ultimamente bem descrita e definida especialmente no contexto de trabalhos realizados sobre a questatildeo no exterior e depois na Franccedila jaacute haacute quinze anos35 A existecircncia de um conjunto de praacuteticas linguiacutesticas designaacuteveis como ldquofolkrdquo (ou melhor por todo outro adjetivo estabilizado que compartilhe o mesmo domiacutenio como profanas espontacircneas selvagens ingecircnuas leigas) natildeo deixa praticamente nenhuma duacutevida que um campo de investigaccedilatildeo particularmente fecundo se abriu para os linguistas que se preocupam com quaisquer produccedilotildees imaginaacuterias e representacionais dos falantes

Tais praacuteticas sobre as quais propus uma tipologia inicialmente tripartite em Paveau (2000) depois de Brekle (1989) (a saber 1 Descriccedilotildees 2 Prescriccedilotildees 3 Intervenccedilotildees) e mais modernamente quatripartite as praacuteticas militantes comeccedilam agora a ser bem compreendidas na diversidade dos lugares sociais em que se manifestam e na variedade de suas atividades com ou sobre a liacutengua imprensa escola foacuteruns de internet guias de conversaccedilatildeo conversa cotidiana etc Comeccedilamos assim a saber bem o que os natildeo-linguistas fazem bem como quando e onde Entretanto natildeo sabemos tatildeo bem quem exatamente eles satildeo e o que deseja sua teoria folk Eacute sobre esses dois pontos que me concentro aqui neste capiacutetulo Proporei inicialmente e a tiacutetulo heuriacutestico uma tipologia de natildeo-linguistas que a meu ver deve-se apresentar de maneira discreta ser um natildeo-linguista natildeo eacute um estado permanente mas uma atividade praticaacutevel num momento e num lugar determinados inclusive pelos proacuteprios linguistas haacute uma posiccedilatildeo de natildeo- linguista sempre cambiaacutevel com alguma outra Darei alguns exemplos de atividades cuja inscriccedilatildeo nessa linguiacutestica folk pode ser discutida exemplos que me serviratildeo para questionar as relaccedilotildees que possam existir entre as ldquoidentidadesrdquo dos natildeo-linguistas e a natureza de suas atividades Num segundo momento abordarei dando continuidade agrave reflexatildeo feita alhures em Paveau (2007 2008a) a difiacutecil questatildeo epistemoloacutegica e filosoacutefica da validade da linguiacutestica folk que evidentemente coaduna-se com as dificuldades de se pensar nas folk sciences em geral Retomarei em particular as noccedilotildees de saber e de consciecircncia epilinguiacutesticos que fornecem argumentos

33 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Les non-linguistes font-ils de la linguistique Une approche antieacuteliminativiste des theories folk Pratiques ed 139-140 p 93-110 2008 Uma versatildeo modificada deste texto foi publicada na Policromias ndash Revista de Estudos do Discurso Imagem e Som da UFRJ v 3 n 2 2018 Disponiacutevel em httpsrevistasufrjbrindexphppolicromiasarticleview21267 Traduccedilatildeo de Phellipe Marcel da Silva Esteves (UFF)

34 Ver detalhe em Paveau (2007) e nas observaccedilotildees de J-C Beacco feitas na ediccedilatildeo 139140 da Pratiques Conformo-me assim voluntariamente com um imperativo ideoloacutegico que natildeo ignoro ser definitoacuterio do discurso cientiacutefico mas nem sempre enxergo por que continuamos a atribuir a popular ldquoconotaccedilotildees pejorativasrdquo a natildeo ser para manter no exerciacutecio do discurso cientiacutefico discursos classistas que natildeo me parecem pertinentes a ele Os filoacutesofos anglicistas que traduzem hoje em dia folk psychology como psicologia popular (P Engel tradutor de Dennett (1990 [1987]) por exemplo) haacute geraccedilotildees natildeo fazem essa distinccedilatildeo incompreensiacutevel Popular como vulgar ou familiar e o conjunto do paradigma que designa ldquoo baixordquo satildeo polissecircmicos e eu me surpreendo que justamente os linguistas que satildeo alguns dos uacutenicos que sabem identificar e defender essa polissemia preocupem-se com esses efeitos

35 Ver Achard-Bayle e Paveau (2008b) Achard-Bayle e Lecolle (2009) Antos (1996) Beacco (2004 org) Brekle (1989) Niedzielski e Preston (2003 [1999]) Paveau (2000 2005 2007 2008a 2009) Paveau e Rosier (2008)

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para defender uma posiccedilatildeo integracionista36 ou seja antieliminativa os enunciados folk natildeo satildeo necessariamente crenccedilas falsas a serem eliminadas da ciecircncia Constituem ao contraacuterio saberes perceptivos subjetivos e incompletos a serem integrados aos dados cientiacuteficos da linguiacutestica

Quem satildeo os natildeo-linguistasA questatildeo da identidade ou da identificaccedilatildeo dos natildeo-linguistas eacute sem duacutevida uma das mais

difiacuteceis no domiacutenio da linguiacutestica folk Se a identificaccedilatildeo profissional dos linguistas eacute feita de modo relativamente faacutecil pela existecircncia de cursos diplomas especialidades universitaacuterias que correspondem na Franccedila a seccedilotildees do CNU e do CNRS (no Comitecirc Nacional tratam-se das seccedilotildees 7 9 e 34) e de uma literatura disciplinar relativamente bem circunscrita e balizada por dicionaacuterios a identificaccedilatildeo profissional dos natildeo-linguistas que lidam com atividades linguiacutesticas natildeo se baseia em nenhum criteacuterio mais institucional O escritor eacute um linguista folk E o revisor de textos das miacutedias escritas e das editoras E o jurista que analisa as palavras tatildeo detidamente quanto um lexicoacutelogo profissional Sim ficamos tentados a afirmar absolutamente mas a comparaccedilatildeo com o falante comum o ldquohomem das ruasrdquo que admira a beleza do leacutexico ou se lamenta quanto agrave degradaccedilatildeo da liacutengua (uma pessoa bem tiacutepica na Franccedila um paiacutes cuja liacutengua eacute constantemente objeto de polecircmicas inflamadas)37 relativiza imediatamente esse julgamento os trecircs primeiros parecem de todo modo mais ldquolinguistasrdquo que o uacuteltimo o falante comum que ocupa mais um espaccedilo verdadeiro de ldquolinguista de final de semanardquo uma figura meio ingecircnua e no fundo bem menos culta Entatildeo como identificar essa categoria de falantes que produzem enunciados avaliativos sobre a proacutepria liacutengua e a liacutengua dos outros metalinguiacutesticos e metadiscursivos a partir de posiccedilotildees subjetivas natildeo disciplinares e natildeo acadecircmicas

Posiccedilotildees discursivasComo em muitos domiacutenios do saber das ciecircncias humanas o pensamento cartesiano

binaacuterio (linguistas versus natildeo-linguistas como categorias discretas) nos leva diretamente agraves limitaccedilotildees do idealismo A meu ver eacute preferiacutevel adotar uma visatildeo escalar das coisas Seria melhor entatildeo mesmo se essa posiccedilatildeo se pareccedila iconoclasta para aqueles que creem na pureza e na objetividade da ciecircncia postular um continuum entre aqueles que fazem da linguiacutestica uma ciecircncia una e aqueles que natildeo Haveria dois polos que representariam os extremos teoacutericos de um lado o linguista ldquoestudadordquo ldquocientiacuteficordquo que manejaria os saberes ldquoexatosrdquo e de outro o linguista espontacircneo que produziria anaacutelises do tipo daquela destacada pela vendedora de loja de antiguidades ldquoEle nunca me diz o que me agradardquo

Recentemente Guumlnter Schmale (2008) fez uma primeira proposta analisando a linguiacutestica popular como lugar de cruzamento entre linguiacutestica cientiacutefica linguiacutestica amadora e para fins didaacuteticosde divulgaccedilatildeo Compartilho inteiramente dessa percepccedilatildeo Schmale eacute entatildeo levado

36 Ver Achard-Bayle e Paveau na introduccedilatildeo deste volume da Pratiques bem como Achard-Bayle e Lecolle (2009) Antos (1996) Beacco (2004 org) Brekle (1989) Niedzielski e Preston (2003 [l999]) Paveau (2000 2005 2007 2008a 2008b 2009) Paveau e Rosier (2008)

37 Ver Paveau e Rosier (2008)

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a propor uma breve tipologia dos linguistas espontacircneos no que tange agrave anaacutelise da conversa sobre um eixo cujos dois extremos satildeo uma ldquoausecircncia de conhecimentos sobre a conversardquo e ldquoconhecimentos perfeitos da organizaccedilatildeo conversacionalrdquo encontrar-se-iam gradativamente o falante comum o escritor o linguista ldquoamadorrdquo o linguista natildeo conversacionalista e o ldquoconversacionalistardquo (SCHMALE 2008) Gostaria aqui de fazer uma proposta mais global relacionada natildeo unicamente agrave anaacutelise da conversaccedilatildeo mas agrave liacutengua e agraves produccedilotildees verbais em francecircs em geral que responderia aos seguintes requisitos

[] dar conta o mais naturalmente possiacutevel da atividade ldquonatildeo-linguiacutesticardquo considerando natildeo identidades socialmente fixas (o escritor o jornalista o tipoacutegrafo) mas posiccedilotildees discursivas por definiccedilatildeo transitoacuterias e natildeo plenamente ajustadas agraves identidades sociais profissionais ou culturais Um gerente de bar inicia uma conversa por SMS com seus clientes um ministro de relaccedilotildees estrangeiras produz um texto sobre a degradaccedilatildeo do francecircs ou por que natildeo um linguista profissional produz um discurso natildeo-linguiacutestico sobre a liacutengua de natureza esteacutetica por exemplo (desgostar de alguma palavra por ela ldquosoarrdquo mal por fazer ldquodoerrdquo seus ouvidos) em virtude daquele famoso desencontro entre comportamento e introspecccedilatildeo sobre o qual em partes a sociolinguiacutestica laboviana eacute fundada e que foi quase definitivo para a dicotomia conceitual de seguranccedila versus inseguranccedila linguiacutestica (LABOV 2001 [1975])

questionar a integraccedilatildeo (ou natildeo integraccedilatildeo) das produccedilotildees considerando natildeo apenas o metalinguiacutestico mas tambeacutem o epilinguiacutestico ou seja uma competecircncia inconsciente portanto impliacutecita da liacutengua Relacionam-se aqui todos os tipos de jogos sobre as palavras os trava-liacutenguas os trocadilhos e confusotildees voluntaacuterias jogos de pronuacutencia (o ldquoQuando a mafagafa gafa gafam os sete mafagafinhosrdquo e o ldquotrecircs pratos de trigo para trecircs tigres tristesrdquo)38 brincadeiras sobre os significantes como a de ldquomonsieur et madame ont un filsrdquo39 histoacuterias bobas no substrato linguiacutestico imitaccedilotildees de sotaques e de maneiras de falar etc Chamo de ludolinguistas os falantes que adotam essa posiccedilatildeo ao mesmo tempo refletida e luacutedica sobre a liacutengua A questatildeo eacute de saber se essas produccedilotildees que repousam sobre uma competecircncia epilinguiacutestica extremamente sofisticada vecircm de atividade linguiacutestica Essas produccedilotildees satildeo sem duacutevidas dotadas de uma dimensatildeo didaacutetica expliacutecita Mas algo que pode nos confundir um bocado em nossa reflexatildeo eacute o fato de que elas se situam no limite entre atividades linguiacutesticas e atividades linguageiras entre atividades sobre a linguagem e atividades de linguagem

38 NT Realizamos uma adaptaccedilatildeo dos trava-liacutenguas em portuguecircs

39 NT Nesse ponto a autora acrescenta uma nota de rodapeacute afirmando que ldquoLes cinq filles de monsieur et madame Holl Jenny Lydia Beth Nicole et Esther eacute uma maravilhosa ilustraccedilatildeo da virtuosidade linguageira extrema no limite do domiacutenio teoacuterico dos ourives das palavras que fazem jogos com elasrdquo Essa sentenccedila em francecircs que se inicia com ldquoLes cinq fillesrdquo eacute uma brincadeira conhecida na liacutengua uma anedota Vai-se trocando o sobrenome da famiacutelia e a quantidade de filhos para se chegar a algum resultado que torne a leitura dos nomes dos filhos combinados ao sobrenome da famiacutelia a paroniacutemia de uma outra sentenccedilapalavra No caso da sentenccedila acima ldquoJrsquoai ni le diabegravete ni cholesterolrdquo [Natildeo tenho nem diabetes nem colesterol] se formam a partir de ldquoJenny Lydia Beth Nicole Esther Hollrdquo Para dar mais um exemplo ldquoMonsieur et Madame Oration ont une fille Ameacutelierdquo donde ldquoAmeacutelie Orationrdquo ldquoameacuteliorationrdquo [melhora] Um correlato fraco em liacutengua vernaacutecula mdash jaacute que natildeo se trata de uma famiacutelia de jogos epilinguiacutesticos mdash eacute a seguinte charada ldquoUma menina senta na sua cadeira da escola onde uma pessoa tinha colocado uma taxinha Qual eacute o nome da pessoa Na-taxa [Natasha]rdquo Embora natildeo forme uma famiacutelia esse tipo de charadas de ldquoQual eacute o nome da pessoardquo eacute muito comum no Brasil

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Uma proposta de tipologiaAssim proponho a seguinte tipologia elaborada a partir de trabalhos existentes sobre

a linguiacutestica folk ou as posiccedilotildees normativas as observaccedilotildees realizadas em meus trabalhos anteriores e em particular a partir do corpus reunido na obra La langue franccedilaise passions et poleacutemiques As posiccedilotildees satildeo classificadas por ldquocoeficienterdquo decrescente de detenccedilatildeo de um saber linguiacutestico e acompanhadas de uma categorizaccedilatildeo aproximada do tipo de praacuteticas executadas segundo a trilogia mencionada anteriormente

bull Linguistas profissionais que fornecem descriccedilotildees linguiacutesticas

bull Cientistas natildeo-linguistas (ldquohistoriador-linguistardquo como Eacuteric Mension-Rigau em seu Aristocrates et grands bourgeois Eacuteducation traditions valeurs ldquosocioacutelogo-linguistardquo como Pierre Bourdieu (em seu A distinccedilatildeo criacutetica social do julgamento) que propotildeem descriccedilotildees linguiacutesticas

bull Linguistas amadores (linguistas leigos acadecircmicos como Maurice Druon juristas como Geacuterard Cornu (autor de um manual de linguiacutestica juriacutedica ver Cornu 2005 [1990] e o subcapiacutetulo 131) que fornecem descriccedilotildees e prescriccedilotildees

bull Logoacutefilos glossomaniacuteacos40 e outros ldquoloucos da liacutenguardquo como Jean-Pierre Brisset ou George Orwell que frequentemente empreenderam intervenccedilotildees na liacutengua fosse por invenccedilatildeo fosse por deformaccedilatildeo

bull Preparadores-revisores-redatores (o lendaacuterio copidesque do Monde Jean-Pierre Collignon cujos sucessores produziram um discurso sobre sua atividade ldquolinguiacutesticardquo no blog ldquoLangue saucepiquanterdquo os especialistas de programas televisivos como o ldquoprofessorrdquo Capelovici e seus sucessores no programa Des chiffres et des lettres por exemplo) que sugerem descriccedilotildees e prescriccedilotildees (incluindo correccedilotildees)

bull Escritores ensaiacutestas (Proust Jean Paulhan Pierre Daninos Philippe Jullian Robert Beauvais) do lado da descriccedilatildeo e da prescriccedilatildeo

bull Ludolinguistas (humoristas imitadores autores de histoacuterias bobas autores de jogos sobre as palavras Thierry Le Luron fazendo imitaccedilotildees do poliacutetico Valeacutery Reneacute Marie Georges Giscard drsquoEstaing Sylvie Joly e sua personagem ldquoBourgeoiserdquo Florence Foresti e sua Anne-Sophie de la Coquillette Coluche e seu ldquobeaufrdquo [brutamontes homem grosseiro e machista]) que fazem descriccedilotildees-interpretaccedilotildees linguiacutesticas

bull Falantes engajados militantes ou apaixonados juristas em suas praacuteticas textuais e orais centrados na descriccedilatildeo e na intervenccedilatildeo

bull Falantes comuns (a vendedora da loja de antiguidades na Rue de la Chine os autores desconhecidos das colunas de leitores de jornais e revistas e as mensagens em blogs e foacuteruns os ldquodominantesrdquo citados por Jean-Claude Passeron que misturam sem duacutevida os trecircs tipos de praacuteticas

Tais posiccedilotildees natildeo satildeo evidentemente discretas mas porosas e ateacute mesmo transversais

40 O termo logoacutefilo eacute de Michel Pierssens (1976) e glossomaniacuteaco eacute uma palavra proposta por Umberto Eco (1994)

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podendo um falante passar de uma posiccedilatildeo a outra eacute bem isso que JRR Tolkien faz sendo filoacutelogo e lexicoacutegrafo professor de inglecircs medieval mas que ao mesmo tempo torna-se logoacutefilo ao inventar liacutenguas imaginaacuterias como o famoso eacutelfico e eacute bem assim tambeacutem com Saussure primeiro linguista profissional na teoria do signo glossomaniacuteaco beirando a posiccedilatildeo de ludolinguista em seus Anagramas

A porosidade das posiccedilotildees implica igualmente uma porosidade de saberes os saberes linguiacutesticos satildeo transmitidos para os da linguiacutestica folk e vice-versa A meu ver natildeo haacute com efeito isolamento possiacutevel das categorias nesse domiacutenio os saberes linguiacutesticos ditos ldquoestudadosrdquo ou ldquocientiacuteficosrdquo natildeo satildeo neutralizados da consciecircncia epilinguiacutestica dos falantes

Alguns exemplos juristas escritores logoacutefilos ludolinguistas e militantes

A linguiacutestica juriacutedica

O manual de linguiacutestica juriacutedica (ou ldquojurilinguiacutesticardquo) de Geacuterard Cornu (2005 [1990]) eacute um exemplo interessante de linguiacutestica folk na medida em que o autor se dedica meticulosamente a iniciar uma proposta sobre a ldquociecircncia da linguagemrdquo saussuriana embora mantendo incautamente sem duacutevidas os preacute-discursos profanos que parecem ldquoingecircnuosrdquo demais a um linguista profissional Por exemplo ele define a linguiacutestica juriacutedica como a ldquoaplicaccedilatildeo particular na linguagem do direito da fundamental ciecircncia da linguiacutestica geralrdquo e esclarece um pouco adiante que ldquosua esperanccedila eacute ao menos de ela ser reconhecida como uma linguiacutestica praacutetica do mesmo modo que a linguiacutestica aplicada agrave poesiardquo (CORNU 2005 [1990] p 25) Tal analogia entre direito e poesia eacute sustentada por uma referecircncia a Roman Jakobson cuja metodologia linguiacutestica para o estudo da poesia eacute diretamente aplicada ao direito Eacute daiacute que vem a equivalecircncia final ldquo[o] que eacute vaacutelido para o discurso poeacutetico deveria ser tambeacutem para o discurso juriacutedicordquo (CORNU 2005 [1990] p 25) Poderiacuteamos zombar dessa afirmaccedilatildeo mas essa analogia eacute interessante justamente por constituir uma das modalidades mais disseminadas do pensamento profano Temos aiacute um exemplo de uso de um meacutetodo profano para a elaboraccedilatildeo de um corpo de saber profano Mais agrave frente ele define o vocabulaacuterio juriacutedico como ldquoo reflexo do sistema juriacutedicordquo (Idem p 58) recuperando assim a concepccedilatildeo de liacutengua como reflexo E foi justamente contra essa concepccedilatildeo que a linguiacutestica cientiacutefica se constituiu Eu poderia ainda dar bem mais exemplos dessa linguiacutestica espontacircnea em embate com uma linguiacutestica acadecircmica que G Cornu apresenta para justificar o uso da linguagem em seu campo teoacuterico O essencial me parece ser que essa linguiacutestica folk ldquofuncionardquo como diria D Dennett quer dizer ela organiza com eficaacutecia os usos especializados da linguagem no campo juriacutedico

As ldquooutras liacutenguasrdquo de Antonin Artaud

ldquoEm fevereiro de 1947rdquo escreve Anne Tomiche (2002 p 141)

Antonin Artaud descreve essa lsquooutra liacutenguarsquo que ele nunca cessou de procurar como uma lsquocanccedilatildeo impostada [] entre negrochinecircsindiano e francecircs vulgarrsquo

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Ele enfatiza entatildeo natildeo apenas a dimensatildeo oral dessa liacutengua entre a canccedilatildeo e a impostaccedilatildeo mas tambeacutem a mistura de liacutenguas e mais precisamente uma mistura de liacutenguas associadas agraves transgressotildees sintaacuteticas e agrave inteligibilidade

Artaud fornece com efeito um exemplo de atividade linguiacutestica empreendida por um natildeo-linguista que eacute um escritor evidentemente dotado de um saber linguiacutestico epilinguiacutestico e plurilinguiacutestico (Artaud eacute familiarizado com muitas liacutenguas estrangeiras) largamente superior agrave meacutedia dos falantes Artaud se esforccedila entatildeo para elaborar outra liacutengua cujas caracteriacutesticas satildeo essencialmente a mistura e a transgressatildeo ao sistema Ele natildeo se contenta em criar e inventar formas linguageiras mas tambeacutem analisa-as no acircmbito de um discurso metalinguiacutestico Anne Tomiche daacute um exemplo bem representativo de uma posiccedilatildeo discursiva folk da parte de um escritor

Poderiacuteamos multiplicar os exemplos mas soacute falaremos de um particularmente interessante jaacute que Artaud natildeo se contenta em introduzir em uma frase em francecircs um termo o ldquoteacutetecircmerdquo que solda muitas liacutenguas ldquoNo sono a gente dorme de mim mesmo e de qualquer um soacute haacute o espectroa extraccedilatildeo do teacutetecircme do ser por outros seres (acordados por ora) disso que faz com que a gente seja um corpordquo Natildeo sem ironia ele continua em seguida com uma anaacutelise metalinguiacutestica da composiccedilatildeo do termo explicando que ldquoteacutetecircmerdquo mistura o eacutema grego (sangue) com a tecircte [cabeccedila testa] e com o theacute [chaacute] que reduplicado designa aquilo que repousa e que arde ldquoE o que eacute o teacutetecircme O sangue do corpo espalhado nesse momento e que adormece em seu sono Como o teacutetecircme eacute o sangue Pelo eacutema diante do t que repousa e que designa aquilo que repousa como o teacute veacute dos marselheses41 Porque o teacute [o chaacute] faz um barulho de cinza quando a liacutengua o encosta nos laacutebios em que ele queimaE Eacutema em grego quer dizer sangue E teacutetecircme duas vezes a cinza sobre a chama do coaacutegulo de sangue do inveterado coaacutegulo de sangue que eacute o corpo daquele que dorme e sonha Seria melhor que acordasserdquo(XIV 16)42 (TOMICHE 2002 p 144)

Logoacutefilos glossomaniacuteacos loucos da linguagemProacuteximo do escritor e de sua atividade folk mas distante do campo da literatura e de suas

aberturas ficcionais o apaixonado pela linguagem se entrega a atividades de invenccedilatildeo de liacutenguas imaginaacuterias O logoacutefilo eacute um tiacutepico linguista folk bem dentro do retrato que Marina Yaguello faz dele quando de seu estudo sobre aqueles que chama de ldquoloucos da linguagemrdquo

41 NT A expressatildeo ldquoTeacute veacuterdquo eacute tiacutepica da fala de Marselha significando algo como ldquoRepare soacuterdquo ldquoVejardquo ldquoOlherdquo No original a citaccedilatildeo inteira eacute ldquoOn pourrait multiplier les exemples mais on nrsquoen ajoutera qursquoun seul particuliegraverement inteacuteressant parce qursquoArtaud ne se contente pas drsquointroduire dans une phrase en franccedilais un terme le laquo teacutetecircme raquo qui brasse plusieurs langues laquo Dans le sommeil on dort il nrsquoy a pas de moi et personne que du spectre arrache- ment du teacutetecircme de lrsquoecirctre par drsquoautres ecirctres (agrave ce moment-lagrave eacuteveilleacutes) de ce qui fait que lrsquoon est un corps raquo Non sans ironie il procegravede ensuite agrave une analyse meacutetalinguistique de la composition du terme pour expliquer que le laquoteacutetecircmeraquo mecircle le eacutema grec (sang) agrave la tecircte et au laquotheacuteraquo qui redoubleacute deacutesigne ce qui se repose et qui bruumlle laquo Et qursquoest-ce que le teacutetecircme Le sang du corps agrave ce moment-lagrave allongeacute et qui sommeille car il dort Comment le teacutetecircme est-il le sang Par le eacutema devant qui le t se repose et deacutesigne ce qui se repose comme le teacute veacute des Marseillais Car le teacute fait un bruit de cendre lorsque la langue le deacutepose dans les legravevres ou il va fumer Et Eacutema en grec veut dire sang Et teacutetecircme deux fois la cendre sur la falamme du caillot de sang de caillot inveacuteteacutereacute de sang qursquoest le corps du dormeur qui recircve et ferait mieux de srsquoeacuteveiller

42 Fazemos referecircncia aqui agraves ediccedilotildees das obras completas de Artaud feitas pela Gallimard 1976-1994

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O inventor de liacutengua eacute um amador no duplo sentido do termo apaixonado pelas liacutenguas em geral desconhece absolutamente a ciecircncia da linguagem Mas ele tem antes de tudo uma preocupaccedilatildeo de natureza esteacutetica o desejo de produzir um tudo uma totalidade um conjunto fechado mas exaustivo dotado de uma simetria perfeita cujas engrenagens estatildeo besuntadas de oacuteleo onde nenhuma discordacircncia ou ambiguidade saberia se introduzir donde seriam banidos o equiacutevoco a extravagacircncia o mal-entendido (YAGUELLO 2006 p 45)

Sua posiccedilatildeo social e profissional o coloca em contato com os dados da cultura e ao contraacuterio dos pintores da arte bruta ou da arte ldquode fora da cacircnonerdquo que natildeo satildeo detentores de cultura ele estaacute no interior do universo letrado

Na maior parte das vezes eacute um escolaacutestico um professor ou um meacutedico ou seja justamente um homem de gabinete um homem de cavanhaque e de oacuteculos com armaccedilatildeo circular de metal como revela a galeria de retratos que estampa o livro de Monnerot-Dumaine uma das duas biacuteblias da interlinguiacutestica (YAGUELLO 2006 p 46)

Ele executa gestos profissionais que estatildeo proacuteximos daqueles empreendidos pela linguiacutestica acadecircmica universitaacuteria mesmo que natildeo disponha de seus saberes especializados Ainda assim de acordo com Marina Yaguello o trabalho do logoacutefilo consiste em

a) acumular dados

b) classificaacute-los

c) encontrar um princiacutepio explicativo imitaccedilatildeo dos sons da natureza ou ainda a correspondecircncia entre o sentido das palavras e sua realizaccedilatildeo acuacutestica ou articulatoacuteria

d) organizar os dados sob a forma de uma aacutervore genealoacutegica a liacutengua-matildee que daria agrave luz toda a prole de liacutenguas passadas e presentes da humanidade (YAGUELLO 2006 p 47)

LudolinguistasDefini anteriormente os ludolinguistas como especialistas na manipulaccedilatildeo luacutedica dos

significantes Aprofundo aqui com o exemplo dos imitadores especialmente aqueles de sotaques Todos os humoristas sejam imitadores profissionais ou natildeo dispotildeem em seu repertoacuterio da praacutetica de manipulaccedilatildeo de sotaques que repousa sobre uma teoria sociolinguiacutestica espontacircnea Os sotaques satildeo manifestaccedilotildees focircnicas da variaccedilatildeo regional nacional social eacutetnico-cultural de gecircnero ou de sexualidade etc O sotaque social eacute por exemplo bem representado nas imitaccedilotildees de Valeacuterie Lemercier no filme Os visitantes eles natildeo nasceram ontem de 1993 (o sotaque aristocraacutetico de ldquoBeacuteardquo de Montmirail ao ver seu ancestral ldquoHubrsquordquo chegar da Idade Meacutedia acompanhado de seu fiel serviccedilal Jacquouille la Fripouille) ou nas encenaccedilotildees de Sylvie Joly como ldquogrande burguesardquo em sua peccedila La cigale et la Joly [A cigarra e a Joly como parocircnimo de La cigale et la fourmi A cigarra e a formiga] (2006) ou ainda pelas entonaccedilotildees da atriz Mathilde Casadesus que conta com um forte registro cientiacutefico no documento sonoro mdash uma fita cassete mdash que acompanha a coletacircnea Les accents des franccedilais organizada por Pierre

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Leacuteon e colegas (LEacuteON et al 1983) Encontram-se realizaccedilotildees de sotaques eacutetnico-culturais nas imitaccedilotildees do sotaque ldquoafricanordquo pela dupla Omar e Fred no curto programa Le service apregraves-vente des eacutemissions atualmente transmitido no comeccedilo da noite no Canal+ ou com o tenista-cantor Yannick Noah que elaborou ao longo de suas intervenccedilotildees televisivas um tipo de imitaccedilatildeo antirracista do sotaque camaronecircs ou ainda com as interpretaccedilotildees magrebinas exageradas de Djamel Debbouze ou Mohand Saiacuted Fella (TERBOUCHE 2008)43 e enfim com as ecircnfases judaico-magrebinas dos humoristas Eacutelie Kakou e Gad Elmaleh Os sotaques regionais que entraram na moda no final dos anos 1990 na seacuterie de curtas televisivos Les Deschiens (uma famiacutelia que tem o sotaque rural do departamento francecircs de Sarthe v Pugniegravere 2006) e mais recentemente no filme A Riviera natildeo eacute aqui [Bienvenue chez les chrsquotis] de Dany Boon (2007) haacute muito tempo satildeo alvo de imitaccedilotildees mais ou menos pejorativas principalmente entre escritores como bem mostra a celebriacutessima cena do Dom Juan de Moliegravere dedicada aos camponeses Charlotte e Pierrot (ato II cena I) Os sotaques mais difiacuteceis de serem apreendidos e nomeados (dada a dificuldade de nomeaccedilatildeo eu proporia a terminologia sotaque de gecircnero ou sotaque de identidade sexual quem sabe ateacute de orientaccedilatildeo sexual) e mais estigmatizantes mdash como o sotaque ldquohomordquo (ldquogayrdquo) exemplificado pelas interpretaccedilotildees ldquoloucasrdquo de Michel Serrault na peccedila e no filme A Gaiola das Loucas ou de Gad Elmaleh no filme Xuxu de Merzak Allouache (2003) mdash satildeo testemunhos analogamente dessa extraordinaacuteria competecircncia linguiacutestica dos imitadores que repousa num treinamento fino apesar de natildeo cientiacutefico dos fenocircmenos foneacuteticos destacados

Eacute preciso reconhecer aleacutem de tudo que os linguistas profissionais se dedicam muito pouco aos sotaques em especiais aos sotaques do substrato eacutetnico cultural ldquode sexualidaderdquo ou comunidade haacute poucos trabalhos sobre o sotaque ldquohomossexualrdquo na sua versatildeo ldquoloucardquo ou em qualquer outra com exceccedilatildeo de um artigo de Gilles Siouffi intitulado ldquoLes homos parlent-ils comme les hommes ou comme les femmesrdquo de 1998 A questatildeo eacute abordada no acircmbito da dialetologia social estadunidense entre trabalhos sobre atitudes linguiacutesticas (PRESTON 1992 por exemplo) Os estudos satildeo entretanto escassos Em contrapartida os sotaques satildeo bem detectados por outros linguistas folk os socioacutelogos-linguistas por exemplo que consideram que eles tecircm uma funccedilatildeo de poderosos organizadores sociais Esses socioacutelogos-linguistas satildeo os protagonistas de atividades folk de uma terceira categoria dos linguistas folk as classes dominantes Com efeito Jean-Claude Passeron considera que as classes dominantes executam uma atividade linguiacutestica de intervenccedilatildeo a saber a divisatildeo social por meio dos sotaques

[] ao mesmo tempo que a linguiacutestica espontacircnea das classes dominantes constitui o sotaque dominante como a ausecircncia de sotaque sotaque zero mdash em relaccedilatildeo ao qual os sotaques regionais ou populares satildeo entendidos ou definidos como deformaccedilotildees mais ou menos pitorescas mdash a estiliacutestica espontacircnea dos modos de vida tende a considerar as marcas linguiacutesticas portadas pelas classes dominantes (determinantes concomitantemente da dominaccedilatildeo e das restriccedilotildees relacionadas ao exerciacutecio da

43 ldquoComment vous dire le costume Il eacutetait tellement petit que crsquoest un coustime [kustim]rdquo [Como o senhor diz o costume [traje] Era tatildeo pequeno que era um coustime [kustim cusrsquotam como pronunciado no espetaacuteculo mas morfologicamente um trajezinho]] (extraiacutedo do espetaacuteculo Cocktail Khorotv (literalmente Cocktail de mensonges) citado por Terbouche (2008 p 14)

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dominaccedilatildeo) como natildeo marcas a partir das quais se veem as de formaccedilotildees dos corpos e dos rostos populares (PASSERON 1999)

Os discursivistas folkConcluo essa enumeraccedilatildeo de exemplos com uma manifestaccedilatildeo militante da linguiacutestica folk

ou da anaacutelise do discurso folk nesse caso Trata-se de um ldquoateliecirc de anaacutelise e de criacutetica do discurso poliacuteticordquo intitulado antifrasticamente ldquoLe monde reacuteenchanteacute de Nicolas Sarkozyrdquo proposto em novembro de 2007 em Paris no 19e Distrito pela ldquoCoordination des Intermittents et Preacutecaires drsquoIle-de-Francerdquo A primeira sessatildeo foi apresentada assim

Primeira sessatildeo quarta-feira 31 de outubro de 2007 das 19h agraves 22h na CIPIDF

A ideia inicial eacute relativamente simples trata-se de fazer um trabalho coletivo de anaacutelise e de criacutetica do discurso poliacutetico no acircmbito de um ateliecirc aberto a todos

Em nossa opiniatildeo natildeo pode ser um grupo de reflexatildeo teoacuterica mdash porque aiacute seria necessaacuterio supor o domiacutenio de certas noccedilotildees e de algumas ferramentas o que restringiria de fato a acessibilidade do ateliecirc Noacutes o consideramos muito mais como um ateliecirc praacutetico ateacute mesmo poliacutetico se conseguimos vislumbrar daiacute sua finalidade desenvolver meios eficazes de combater os efeitos sobre noacutes mesmos e terceiros do discurso poliacutetico autorizado Poderiacuteamos dizer nesse sentido que se trata de um ateliecirc de autoformaccedilatildeo de criacutetica ideoloacutegica

Concretamente decidimos trabalhar sobre o discurso de Nicolas Sarkozy As discussotildees foram acaloradas quanto a esse assunto e ningueacutem saiu inteiramente satisfeito com a escolha Concordamos que o poder proveacutem de mais longe e que sua accedilatildeo vai aleacutem do campo ldquopoliacuteticordquo e que de certa maneira essa escolha significa sucumbir ao discurso ideoloacutegico procurando o poder precisamente onde gostariacuteamos de acreditar que ele se exerce exclusivamente Dito isso se o poder estaacute em todo lugar pouco importa onde o percebemos o importante para noacutes eacute concentrar nossa anaacutelise sobre um discurso que seja atual e endereccedilado a todos e cada um mdash cada um tem o direito e eis nossa convicccedilatildeo a capacidade de respondecirc-lo [anuacutencio recebido por e-mail outubro de 2007]

Essa passagem nos mostra que a teoria folk eacute uma teoria praacutetica ou uma teoria da praacutetica O objeto do Ateliecirc eacute o uso do discurso e seus efeitos sobre os indiviacuteduos natildeo a descriccedilatildeo de suas regras e regularidades por exemplo O saber profano eacute na maior parte das vezes um saber praacutetico um saber ldquouacutetilrdquo aos locutores para mudar a sociedade em que vivem

De que valem as teorias folkA linguiacutestica folk propotildee uma das questotildees epistemoloacutegicas mais difiacuteceis sobretudo no

domiacutenio das ciecircncias humanas e sociais qual eacute a validade das teorias (pseudo) cientiacuteficas Existem poucos trabalhos sobre essa questatildeo na Franccedila A linguiacutestica folk eacute majoritariamente traduzida em termos de posiccedilatildeo normativa ou de purismo (PAVEAU ROSIER 2008) Aleacutem disso

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o espectro cartesiano e as imagens positivas mdash talvez ateacute mesmo positivistas mdash da ciecircncia que circulam no paiacutes dificilmente favorecem esse tipo de questionamento Por outro lado a filosofia do espiacuterito e a filosofia das ciecircncias especialmente nos Estados Unidos propotildeem anaacutelises e respostas particularmente esclarecedoras sobre as folk sciences em geral ou sobre a linguiacutestica folk em particular Utilizo essas respostas em meu escrutiacutenio da validade das teorias espontacircneas sobre a liacutengua natildeo pretendendo aplicaacute-las de modo mecacircnico

Avaliaccedilotildees epistecircmicas da linguiacutestica folkQual eacute a validade das teorias folk Trecircs respostas satildeo possiacuteveis

A posiccedilatildeo eliminativaNa filosofia do espiacuterito a posiccedilatildeo dita eliminativa ou do materialismo eliminativo (P

Feyerabend R Rorty W Sellars Paul e Patricia Churchland S Laurence) estaacute fundada sobre a tese segundo a qual a compreensatildeo dos estados mentais pelas teorias do senso comum estaacute errada Isso porque ela natildeo corresponderia a nenhuma base cientiacutefica Com efeito essa compreensatildeo pode se apoiar sobre dados neuroloacutegicos Por exemplo natildeo haacute base neural para certas teorias sobre a intencionalidade ou mesmo a proacutepria consciecircncia noccedilotildees que satildeo as mais difiacuteceis para naturalizar Para o filoacutesofo Paul Churchland por exemplo (2002 [1981]) as teorias folk satildeo totalmente falsas e estatildeo aleacutem disso no processo de serem substituiacutedas (ldquoeliminadasrdquo) por demonstraccedilotildees irrefutaacuteveis concebidas pelas neurociecircncias Essa posiccedilatildeo eacute compartilhada pelo filoacutesofo S Laurence (2003) considerando que as teorias folk em qualquer ciecircncia estatildeo na maior parte do tempo erradas Laurence ainda acrescenta que a linguiacutestica apresenta uma vulnerabilidade muito forte jaacute que se trata de uma teoria jovem a publicaccedilatildeo do CLG data de 1916 pouco mais de 100 anos

Transposta para os resultados da linguiacutestica folk a teoria eliminativa diraacute entatildeo que ela se trata de uma teoria falsa por se basear em dados perceptivos intuitivos dotados de juiacutezos de valor (quem sabe ateacute mesmo imaginaacuterios) mas sem nenhum dado cientificamente verificaacutevel

Uma posiccedilatildeo intermediaacuteria ldquoo realismo suaverdquo de Daniel DennetO filoacutesofo D Dennett (1990 [1987] 2002 [1991]) defende uma posiccedilatildeo intermediaacuteria que ele

mesmo chama de ldquorealismo suaverdquo situado entre os dois extremos do ldquorealismo de forccedila industrialrdquo de J Fodor e do materialismo eliminativo dos Churchland Essa posiccedilatildeo diz respeito agrave psicologia popular (folk psychology) que ele descreve da seguinte maneira

[] as pessoas satildeo ainda menos previsiacuteveis que o tempo se tomadas face agraves teacutecnicas cientiacuteficas dos meteorologistas e mesmo dos bioacutelogos Mas haacute outra perspectiva que nos eacute conhecida desde a infacircncia e que utilizamos sem esforccedilo todos os dias que parece maravilhosamente capaz de fornecer um sentido a todas essas complexidades Chamamo-la comumente de psicologia popular Ela eacute a perspectiva que invoca a famiacutelia dos conceitos ldquomentalistasrdquo como os de crenccedila desejo conhecimento medo atenccedilatildeo

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intenccedilatildeo compreensatildeo sonho imaginaccedilatildeo consciecircncia de si e assim por diante (DENNETT 1990 [1987] p 17-18)

O realismo suave pode ser resumido assim o vocabulaacuterio e os conceitos ldquofolkrdquo satildeo operacionais e ateacute mesmo necessaacuterios para a vida social do homem e as percepccedilotildees espontacircneas satildeo estruturas (patterns) absolutamente fundamentais na vida humana

[] haacute nos assuntos humanos estruturas que se impotildeem por elas mesmas de uma maneira que natildeo eacute de modo algum inexoraacutevel mas que tecircm grande forccedila absorvendo perturbaccedilotildees e variaccedilotildees psiacutequicas que poderiacuteamos muito bem considerar como dadas ao mero acaso satildeo estruturas que caracterizariacuteamos em termos de crenccedilas desejos intenccedilotildees dos agentes racionais (DENNETT 1990 [1987] p 42)

Aleacutem do mais constata D Dennett a psicologia popular funciona (ldquoa estrateacutegia intencional funciona tatildeo bem quanto possiacutevelrdquo p 43) mesmo que esse funcionamento natildeo seja permanente A psicologia popular eacute com efeito uma teoria imperfeita incompleta e consequentemente natildeo generalizaacutevel mas ela eacute uma teoria valiosa em vaacuterios pontos de seu funcionamento Cito essa longa passagem em que D Dennett daacute uma definiccedilatildeo bastante completa da psicologia popular por conter um bom nuacutemero de elementos que podem contribuir para minha reflexatildeo quanto agrave teoria linguiacutestica

[] utilizamos a psicologia popular o tempo todo para explicar ou predizer reciprocamente nossos comportamentos atribuiacutemo-nos reciprocamente crenccedilas e desejos sem nos questionarmos muito espontaneamente e passamos um bom periacuteodo de nossas vidas conscientes formulando o mundo mdash assim como a noacutes mesmos mdash nesses termos A psicologia popular eacute quase tatildeo parte integrante de nossa segunda natureza quanto nossa fiacutesica popular dos objetos de tamanho meacutedio Ateacute que ponto essa psicologia popular eacute pertinente Se nos concentramos nos pontos fracos perceberemos que com frequecircncia somos incapazes de dar sentido a porccedilotildees particulares do comportamento humano (inclusive o nosso) em termos de crenccedilas e de desejos mesmo em retrospectiva com frequecircncia somos incapacitados de predizer o que uma pessoa faraacute ou em que momento ela agiraacute com frequecircncia natildeo conseguimos encontrar recursos teoacutericos para ajustar os desacordos relativos a certas atribuiccedilotildees de desejos e de crenccedilas Se nos concentramos nos pontos positivos descobrimos em primeiro lugar que haacute grandes setores em que essa teoria tem um poder de prediccedilatildeo extremamente confiaacutevel [] Em segundo lugar descobriremos que ela eacute uma teoria que tem um grande poder gerador e uma grande efetividade [] Em terceiro lugar descobriremos que ateacute mesmo as crianccedilas mais jovens adquirem facilmente a teoria em algum momento se natildeo o adquirem teratildeo uma experiecircncia muito limitada da atividade humana a partir da qual podem induzir uma teoria Em quarto lugar descobriremos que todos podemos utilizar a psicologia popular praticamente sem nada sabermos de como funciona o interior dos cabeccedilas das pessoas (DENNETT 1990 [1987] p 67-68)

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Transposta para a linguiacutestica folk essa anaacutelise nos levaria ao seguinte enunciado os dados da linguiacutestica folk satildeo aceitaacuteveis e integraacuteveis agrave teoria linguiacutestica porque fornecem descriccedilotildees perceptivas e organizacionais relevantes da linguagem mas natildeo podem servir de base para uma teoria geral da linguagem

A posiccedilatildeo integracionista os dados folk satildeo dados linguiacutesticosEssa posiccedilatildeo insiste sobre os saberes dos natildeo-linguistas saberes legiacutetimos e reconheciacuteveis

como tais D Preston e N Niedzielski (1999 p 10) o afirmam em sua siacutentese ldquoSe o povo fala sobre a linguagem ele deve claro saber (ou pelo menos acreditar que sabe) sobre issordquo A teoria linguiacutestica eacute entatildeo considerada sob os acircngulos de sua operacionalidade e de sua verdade praacutetica e natildeo mais no acircmbito de uma loacutegica cientiacutefica Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos psicoacutelogos sociais N Llewellyn e A Harrison (2006) em seus estudos sobre as percepccedilotildees das formas linguageiras e discursivas em documentos empresariais Eles mostram que os participantes de uma enquete por eles realizada comprovaram uma competecircncia linguiacutestica verdadeira no reconhecimento dos empregos do pronome nous (noacutesnos) ou na identificaccedilatildeo da transformaccedilatildeo passiva e da nominalizaccedilatildeo Acrescenta-se que essa competecircncia pode significar economia da metalinguagem e ateacute mesmo do aprendizado das expressotildees detectadas

Nessa perspectiva vale a pena enfatizar que categorias linguiacutesticas sonoras formais como as discutidas acima descrevem caracteriacutesticas mundanas do uso cotidiano da liacutengua Eacute perfeitamente possiacutevel que os indiviacuteduos faccedilam uso e identifiquem casos de ldquotransformaccedilatildeo passivardquo por exemplo sem nunca terem ouvido falar do termo (LLEWELYN HARRISON 2006 p 580 traduccedilatildeo nossa)44

Os autores compartilham quanto a isso a posiccedilatildeo de Sylvain Auroux que lembra em seus trabalhos sobre a gramatizaccedilatildeo que os saberes linguiacutesticos natildeo satildeo necessariamente distintos daqueles que fornecem a consciecircncia epilinguiacutestica

[] continuidade entre o epilinguiacutestico e o metalinguiacutestico pode ser comparada com a continuidade entre a percepccedilatildeo e a representaccedilatildeo fiacutesica nas ciecircncias da natureza Enquanto essas uacuteltimas romperam muito cedo com a percepccedilatildeo mdash desde a fiacutesica galileana para se distanciar dela cada vez mais mdash este saber linguiacutestico natildeo rompeu senatildeo esporadicamente com a consciecircncia epilinguiacutestica (AUROUX 1992 p 16)

O ldquorealismo ingecircnuordquo por exemplo (ACHARD-BAYLE 2008 p 34) que consiste em atribuir agraves entidades concretas do mundo fronteiras mais ou menos discretas que fazem com que coincidam com os nomes que as designam pode fazer saltar aos olhos um saber epilinguiacutestico natildeo consciente (ldquopau eacute pau pedra eacute pedrardquo diria sem hesitar minha vendedora de antiguidades)

44 NT As citaccedilotildees em inglecircs feitas no artigo foram traduzidas no texto mas mantidas conforme original em nota de rodapeacute ldquo[hellip] in this regard it is worth making the point that formal sounding linguistic categories such as those discussed above describe mundane features of everyday language use It is perfectly possible for individuals to deploy and identify instances of ldquopassive transformationrdquo for example without having heard of the termrdquo

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mas igualmente uma posiccedilatildeo semacircntico-filosoacutefica cientiacutefica e argumentada A noccedilatildeo de epilinguiacutestico eacute sem duacutevida uma das chaves para se compreender como e por quecirc ao exemplo da psicologia popular a linguiacutestica folk ldquofuncionardquo Com efeito a consciecircncia epilinguiacutestica eacute uma instacircncia que fornece dados linguiacutesticos da ordem da percepccedilatildeo Se numa perspectiva empiacuterica a linguiacutestica faz jus agraves dimensotildees experiencial e cultural da linguagem ou seja se o objeto da linguiacutestica integra os usos da liacutengua pelos sujeitos sociais e cognitivos entatildeo os dados perceptivos da linguiacutestica folk podem ser levados em conta como dados linguiacutesticos pura e simplesmente

As intuiccedilotildees dos locutores satildeo controlaacuteveisSe a linguiacutestica folk como a psicologia folk ldquofuncionardquo eacute por existir uma fonte de percepccedilotildees

de juiacutezos e de avaliaccedilotildees que pode fornecer resultados corretos essa fonte eacute em linguiacutestica a intuiccedilatildeo do dito ldquolocutor idealrdquo se tomamos a terminologia chomskiana ou a consciecircncia epilinguiacutestica se escolhemos a designaccedilatildeo do linguista francecircs Antoine Culioli45 Mas todos os locutores possuem a mesma intuiccedilatildeo Haacute diferenccedila entre a intuiccedilatildeo do locutor natildeo-linguista e a do linguista Natildeo responde o filoacutesofo M Devitt que considera que as intuiccedilotildees dos linguistas satildeo melhores que as dos linguistas folk porque as intuiccedilotildees natildeo satildeo contrariamente a uma ideia em circulaccedilatildeo inatas mas carregadas de teoria M Devitt (2006 p 483) propotildee de fato uma criacutetica bem robusta agrave intuiccedilatildeo chomskiana e propotildee uma teoria alternativa ldquoEssa teoria trata as intuiccedilotildees linguiacutesticas como opiniotildees resultantes de investigaccedilatildeo empiacuterica ordinaacuteria carregadas de teoria como todas as opiniotildees satildeordquo Ele conclui com a impossibilidade de considerar essa intuiccedilatildeo que seria bem pouco carregada cientificamente de teoria como fundaccedilatildeo da linguiacutestica

Vejo linguistas tendendo para duas perspectivas em seu tratamento dos juiacutezos intuitivos dos falantes Por um lado a visatildeo aceita eacute que os falantes representam a verdadeira teoria linguiacutestica de sua liacutengua e derivam seus juiacutezos intuitivos dessas representaccedilotildees Entatildeo esses juiacutezos intuitivos fazendo uso de termos retirados dessa teoria deveriam ser os dados primaacuterios para a teoria do linguista De outro lado haacute o pensamento atraente de que todos os juiacutezos que fazem uso desses termos satildeo dotados de uma teoria linguiacutestica empiacuterica Onde os juiacutezos satildeo do falante comum essa teoria seraacute a linguiacutestica folk Natildeo eacute regra usarmos como dados primaacuterios numa teoria juiacutezos populares carregados de teoria A linguiacutestica natildeo devia fazecirc-lo tambeacutem (DEVITT 2006 p 485 traduccedilatildeo nossa)46

45 Em vaacuterios aspectos essas duas noccedilotildees (a de intuiccedilatildeo do locutor e a de consciecircncia epilinguiacutestica uma de origem estadunidense e outra de origem francesa) se recobrem Ambas designam na verdade uma competecircncia natildeo objetivada natildeo formulada e natildeo formalizada dos locutores em relaccedilatildeo agraves suas produccedilotildees linguageiras O meacutetodo de introspecccedilatildeo faz essa faculdade evoluir para a metalinguagem seja espontacircnea seja formal

46 No original ldquoI see linguists as pulled two ways in their treatment of the intuitive judgments of speakers On the one hand the received view is that speakers represent the true linguistic theory of their language and derive their intuitive judgments from those representations So those intuitive judgments deploying terms drawn from that theory should be the primary data for the linguistrsquos theory On the other hand there is the attractive thought that all judgments deploying those terms are laden with an empirical linguistic theory Where the judgments are those of the ordinary speaker that theory will be folk linguistics We do not generally take theory-laden folk judgments as primary data for a theory So we should not do so in linguisticsrdquo

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Tal desconfianccedila quanto agrave noccedilatildeo de intuiccedilatildeo do locutor ideal e agrave ldquocontemplaccedilatildeo de seus proacuteprios idioletosrdquo pelos linguistas jaacute era denunciada por William Labov no final dos anos 1960 (1976 [1972] p 37) As intuiccedilotildees dos linguistas com efeito estatildeo longe de serem melhores do que as populares

O que aconteceria se um dado tipo de juiacutezo de linguistas sobre a gramaticalidade fosse submetido a uma populaccedilatildeo de origem diversa O estudo mais sistemaacutetico desse tipo foi levado a cabo por Spencer (1973) Ela testou 150 frases retiradas dos estudos sintaacuteticos de Perlmutter Carlotta Smith Postal Ross Rosenbaum e R Lakoff com 60 avaliadores 20 estudantes diplomados em linguiacutestica 20 outros estudantes diplomados e 20 pessoas da cidade do coleacutegio secundaacuterio []

Tendo em vista todos esses resultados ficou claro que nenhum linguista eacute melhor ou pior que os outros nessa questatildeo []

Atualmente nenhum resultado permite alimentar a esperanccedila de que os juiacutezos introspectivos dos linguistas sejam confiaacuteveis reproduziacuteveis ou generalizaacuteveis em sua aplicaccedilatildeo na linguagem da comunidade Eacute necessaacuterio entatildeo perguntarmos quais satildeo as consequecircncias desses fatos para as teorias linguiacutesticas fundadas sobre tais juiacutezos (LABOV 2001 [1975] p 32-33)

As intuiccedilotildees dos linguistas natildeo satildeo creditaacuteveis natildeo porque elas satildeo cultivadas e preteorizadas mdash posiccedilatildeo defendida por Devitt mdash mas por razotildees epistemoloacutegicas Segundo Labov (2001 [1975] p 41) a linguiacutestica natildeo deve repousar em intuiccedilotildees e evidecircncias incontroladas

[] jaacute que cada estudo conduzido ateacute hoje em dia sobre os juiacutezos intuitivos indica que encontra-se neles uma parte natildeo descartaacutevel de efeito do experimentador as intuiccedilotildees incontroladas dos linguistas devem ser consideradas com seacuterias duacutevidas Se essas intuiccedilotildees devem supostamente representar somente o idioleto do linguista entatildeo o valor de suas anaacutelises repousa sobre fundaccedilotildees muito incertas Deve-se submetecirc-los a outros estudos experimentais para que se possa testar a coerecircncia de seus juiacutezos []

Entatildeo devemos descartar os dados da intuiccedilatildeo Natildeo evidentemente mas a linguiacutestica deve integrar sua relatividade isso que Labov chama de ldquoefeito do experimentadorrdquo e aplicar certos princiacutepios

[] a soluccedilatildeo para o problema estabelecido anteriormente parece suficientemente clara Devemos (1) reconhecer o efeito do experimentador e (2) voltar agrave noccedilatildeo original de trabalho sobre os casos evidentes Poderiacuteamos entatildeo fazer nosso trabalho repousar sobre trecircs princiacutepios operacionais que oferecem uma base suficientemente soacutelida para a exploraccedilatildeo contiacutenua dos juiacutezos gramaticais I O princiacutepio do consenso se natildeo haacute motivo para pensar o contraacuterio supotildee-se que os juiacutezos de um locutor nativo sejam caracteriacutesticos ao conjunto dos locutores da liacutengua II O princiacutepio do experimentador se haacute qualquer um

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em discordacircncia quanto aos juiacutezos introspectivos os juiacutezos daqueles que satildeo familiares aos problemas teoacutericos natildeo deveriam se manter como provas III O princiacutepio dos casos evidentes os juiacutezos contestados deveriam ser reforccedilados pela presenccedila de pelo menos um padratildeo coerente na comunidade de locutores ou ser abandonados [] Eacute necessaacuterio ainda nomear um quarto princiacutepio o Princiacutepio da validade

IV Princiacutepio da validade quando o uso da linguagem se mostra mais coerente que os juiacutezos introspectivos uma descriccedilatildeo vaacutelida da linguagem privilegiaraacute o uso agrave introspecccedilatildeo (LABOV 2001 [1975] p 45 e 52)

Esses quatro princiacutepios mdash consenso experimentador casos evidentes e validade mdash levam a consequecircncias sobre as praacuteticas linguiacutesticas (reduzir a relatividade e a natildeo credibilidade dos dados extraiacutedos da intuiccedilatildeo qualquer que seja o tipo de locutor) mas igualmente sobre a proacutepria epistemologia da linguiacutestica a meu ver eles reforccedilam a ideia de um continuum entre as competecircncias dos linguistas e dos natildeo-linguistas porque racionalizam os dados intuitivos

Quando os natildeo-linguistas fabricam os objetos dos linguistas o caso das atitudes linguiacutesticasOs saberes linguiacutesticos folk constituem teorias sociais da linguagem apoiando-se mais

geralmente sobre as praacuteticas linguageiras pelo vieacutes de descriccedilotildees prescriccedilotildees e intervenccedilotildees as teorias folk fornecem os organizadores sociais que se constituem em corpo do saber social Assim a sociolinguiacutestica como linguiacutestica social as toma como objetos ou mais exatamente como metaobjetos (ou seja objetos que falam de objetos) chamando-as de atitudes ou representaccedilotildees

As praacuteticas linguageiras satildeo com efeito utilizadas pelos locutores profanos como um instrumento de descriccedilatildeo psicoloacutegica e social Em sua introduccedilatildeo a um nuacutemero do Journal of Language and Social psychology dedicado agraves atitudes linguiacutesticas D Preston e L Milroy mostram que os locutores fazem uma correspondecircncia entre aspectos psicoloacutegicos e aspectos linguageiros

Notadamente muitos estudos mostraram uma tendecircncia para avaliadores discriminarem entre de um lado dimensotildees de status como inteligecircncia ambiccedilatildeo e confianccedila e de outro lado dimensotildees relacionadas agrave solidariedade como atraccedilatildeo social amistosidade e generosidade Falantes-padratildeo tenderam a ser mais bem-avaliados no primeiro conjunto de aspectos e mal-avaliados no uacuteltimo e o contraacuterio foi vaacutelido para o juiacutezo de falantes natildeo padratildeo (p ex RYAN GILES SEBASTIAN 1982 p 9) (PRESTON MILROY 1999 p 4-5 traduccedilatildeo nossa)47

47 No original ldquo[hellip] notably several studies showed a tendency for judges to discriminate between on one hand status dimensions such as intelligence ambition and confidence and on the other solidarity-related dimensions such as social attractiveness friendliness and generosity Standard speakers have tended to be rated higher on the former set of traits and downgraded on the latter the converse being true of judgments of non standard speakers (eg Ryan Giles amp Sebastian 1982 p 9)rdquo

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R Van Bezooijen e C Gooskens constatam o mesmo em seu estudo sobre a percepccedilatildeo da variedade em locutores holandeses

Intraculturalmente (em ouvintes holandeses) bem como interculturalmente (em falantes britacircnicos quenianos mexicanos e japoneses) uma maneira de falar mais ldquoanimadardquo eacute fortemente associada com domiacutenio vontade poder e autoconfianccedila Como esperado a pronuacutencia que permite identificaccedilatildeo dialetal soacute desempenha um papel intraculturalmente (VAN BEZOOIJEN GOOSKENS 1999 p 31-32 traduccedilatildeo nossa)48

Conhecemos os resultados do ldquomeacutetodo Lambertrdquo (LAMBERT et al 1960) ndash com o desconhecimento dos sujeitos locutores biliacutengues registram versotildees de um mesmo texto em duas ou vaacuterias liacutenguas ou variedades linguiacutesticas de modo a suprimir o vieacutes da voz Espera-se que os sujeitos em seguida avaliem o locutor com a ajuda de uma escala constituiacuteda de adjetivos autoniacutemicos (o locutor eacute simpaacutetico x antipaacutetico confiaacutevel x suspeito doacutecil x violento etc) Esse meacutetodo permite que surjam resultados bem confiaacuteveis por exemplo um dos estudos realizados segundo esse protocolo mostra que os homens angloacutefonos percebem as mulheres mais favoravelmente se elas falam francecircs a essas os homens angloacutefonos produzem uma boa imagem jaacute que elas tecircm a visatildeo desses falantes de inglecircs melhor do que a dos falantes de outras liacutenguas

As percepccedilotildees natildeo cientiacuteficas carregadas de representaccedilotildees e de produccedilotildees imaginaacuterias constituem assim verdadeiras teorias espontacircneas da classificaccedilatildeo soacutecio-psicoloacutegica

Consideraccedilotildees finais os natildeo-linguistas como linguistas preciososQuis mostrar neste capiacutetulo que as informaccedilotildees geradas em praacuteticas disciplinares folk

satildeo plenamente integraacuteveis agrave anaacutelise linguiacutestica A linguiacutestica folk possui com efeito uma validade de ordem praacutetica e representacional e deve por isso ser considerada pela linguiacutestica cientiacutefica como uma reserva de dados que nenhum linguista profissional consegue reunir com o auxiacutelio dos meacutetodos ditos ldquocientiacuteficosrdquo

A enorme variedade das posiccedilotildees discursivas folk das praacuteticas correspondentes e dos dados assim recolhidos assim como a fragilidade cientiacutefica de um bom nuacutemero de observaccedilotildees cientiacuteficas (geradas de posiccedilotildees subjetivas frequentemente idioletais) deve sem duacutevidas provocar que o objeto da linguiacutestica seja repensado Eacute quase irracional mdash se pensamos junto com Pierre Bourdieu e tambeacutem com Sylvain Auroux ldquoa historicizaccedilatildeo do sujeito da historicizaccedilatildeordquo (BOURDIEU 2001) eacute uma necessidade epistemoloacutegica mdash que se continue a definir o objeto da linguiacutestica como Saussure o fez em 1916 Tal objeto foi profundamente afetado pelos saberes epilinguiacutesticos metalinguiacutesticos e metadiscursivos de que foi alvo e os saberes folk fazem parte dele Parece-me necessaacuterio entatildeo propor uma descriccedilatildeo renovada convincente e sobretudo cientificamente eficaz do objeto da linguiacutestica adotando uma posiccedilatildeo

48 No original ldquo[hellip] intraculturally (by Dutchlisteners) as well as cross-culturally (by British Kenyan Mexican and Japanese listeners) a laquo lively raquo manner of speaking is strongly asso- ciated with dominance will power and self-confidence As expected pronun- ciation allowing dialect identification only played a role intraculturallyrdquo

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antieliminativa que integre a escala dos saberes linguiacutesticos (do saber cientiacutefico mais ldquodurordquo ao saber folk mais ldquosuaverdquo)

Escolher o integracionismo significa ficar com o e em vez do ou o linguista e a vendedora o escritor e o especialista de programa de TV o glossomaniacuteaco e o militante poliacutetico O que natildeo significa de maneira alguma integrar-se ao anticientificismo ou ao negacionismo

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AS NORMAS PERCEPTIVAS DA LINGUIacuteSTICA POPULAR49

A questatildeo abordada neste capiacutetulo eacute a das normas perceptivas mobilizadas por falantes comuns em suas praacuteticas linguiacutesticas Falo precisamente de praacuteticas linguiacutesticas e natildeo de praacuteticas linguageiras o que designo um campo bem identificado nos Estados Unidos a linguiacutestica folk e em menor medida na Alemanha (Volklinguistik) menos ainda no domiacutenio francoacutefono no qual muitos designadores com referentes um tanto vagos coexistem para designar esse conjunto de discursos natildeo especializados sobre as formas e padrotildees da linguagem e do discurso linguiacutestica popular espontacircnea profana selvagem natildeo erudita

Minha interrogaccedilatildeo natildeo diz respeito agrave dimensatildeo prescritiva versus descritiva das normas assim produzidas mas concerne ao valor das percepccedilotildees na elaboraccedilatildeo de um discurso linguiacutestico popular e portanto agrave validade das teorias populares em relaccedilatildeo agraves teorias acadecircmicas Isso supotildee como veremos sair desse uacuteltimo binarismo (popular vs cientiacutefico) para pensar o coeficiente de cientificidade de um discurso de modo escalar que Madame Vauquer se equivoca ao corrigir Sylvie eacute uma evidecircncia cuja lembranccedila limitaria a reflexatildeo a uma perspectiva bastante pobre e me parece preferiacutevel pensar nas coisas em termos funcionais (funccedilatildeo desta observaccedilatildeo no acircmbito do discurso linguiacutestico espontacircneo) perceptivos (por que perceber patronminette como correto em relaccedilatildeo a patron-jacquette50) e sociais (que benefiacutecio social podemos derivar dessa atitude corretiva) Esses satildeo os acircngulos que nos permitem examinar os modos de validade das teorias populares sobre a liacutengua pois integram as dimensotildees linguiacutestica perceptiva e social ao dispositivo de observaccedilatildeo Portanto afastamo-nos da perspectiva externa impliacutecita na oposiccedilatildeo descriccedilatildeo vs prescriccedilatildeo para adotar uma perspectiva interna na qual o sujeito do discurso eacute tambeacutem o sujeito da ciecircncia

Apoacutes ter descrito a situaccedilatildeo da linguiacutestica popular nos Estados Unidos no campo mais amplo das ciecircncias folk e feito algumas observaccedilotildees sobre a ldquolinguiacutestica popularrdquo na Franccedila vou propor dois exemplos a semacircntica espontacircnea do nome proacuteprio e a sociolinguiacutestica popular das classes dominantes Eles serviratildeo como um mini-laboratoacuterio para delinear uma resposta provisoacuteria agrave questatildeo da validade teoacuterica da linguiacutestica popular

1 O domiacutenio ldquofolkrdquo uma questatildeo americanaAs disciplinas com a etiqueta folk satildeo cientiacutefica e institucionalmente reconhecidas nos

Estados Unidos e designam um verdadeiro paradigma cientiacutefico ao contraacuterio da Franccedila onde equivalentes instaacuteveis de folk sinalizam frequentemente abordagens desvalorizadas

49 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Les normes perceptives de la linguistique populaire Langage et socieacuteteacute 121 laquoLes normes pratiquesraquo mars Paris Eacuteditions de la MSH 2007 p 93-109 Traduccedilatildeo de Eacuterika de Moraes (UNESP - Universidade Estadual Paulista Faculdade de Arquitetura Artes e Comunicaccedilatildeo campus de Bauru e PPGEL IBILCE-UNESP S J do Rio Preto)

50 NT Referecircncia respectivamente agrave forma formal e agrave coloquialpopular de uma mesma expressatildeo francesa cujo significado remete a ldquomuito cedo pela manhatildemadrugadardquo (ldquoao cantar do galordquo)

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11 Disciplinas Folk Na deacutecada de 1950 um grupo de jovens etnoacutelogos de Yale propocircs o termo etnociecircncia para

designar uma nova etnologia que se baseia no estudo metoacutedico do conhecimento popular ou da ciecircncia popular Esse uacuteltimo termo surge portanto no contexto da criaccedilatildeo de um novo objeto constituiacutedo pelas classificaccedilotildees naturais e espontacircneas dos atores (BARRAU 1993) O elemento folk estaraacute como eacute importante relembrar no mesmo periacuteodo que assistiu ao nascimento das ciecircncias cognitivas associado a outras disciplinas em particular no acircmbito da filosofia interrogando sobre crenccedilas a filosofia da mente contribui de fato para desenhar o que pode parecer a principal disciplina folk a psicologia folk A partir da deacutecada de 1960 discutem-se duas grandes concepccedilotildees da mente uma correspondendo agrave ldquoimagem manifestardquo do mundo e outra agrave ldquoimagem cientiacuteficardquo (SELLARS 1993 [1963]) Apesar de suas diferenccedilas filoacutesofos como D Dennett J Searle D Davidson ou mesmo J Fodor consideram que a psicologia popular com base em nossas crenccedilas desejos e no conjunto de nossos estados mentais eacute necessaacuteria agrave teoria da mente A anaacutelise de P Churchland eacute particularmente interessante para o meu propoacutesito aqui ele considera que a psicologia popular eacute de fato uma teoria mas que eacute falsa Voltarei a essa posiccedilatildeo chamada eliminativista a propoacutesito da validade da linguiacutestica popular

Haacute portanto um domiacutenio de debate muito importante muito abastecido e atualmente muito feacutertil em pesquisas e avanccedilos cientiacuteficos51

12 Folk linguiacutestica atitudes e avaliaccedilotildeesOs primeiros a falarem de linguiacutestica folk ainda satildeo os filoacutesofos a propoacutesito do estatuto

da linguiacutestica em relaccedilatildeo agrave psicologia no quadro do debate sobre o chomskysmo Para M Devitt e K Sterelny por exemplo a linguiacutestica popular eacute uma ldquoteoria ou opiniatildeo popular ou ainda primitiva a sabedoria linguiacutestica de todos os temposrdquo (DEVITT STERELNY 1989 p 503)

De fato o campo da linguiacutestica folk foi explicitamente aberto sob essa etiqueta na deacutecada de 1960 por HM Hœnigswald (1966) que reivindica a consideraccedilatildeo dos saberes espontacircneos na constituiccedilatildeo de qualquer ciecircncia natildeo tendo seus propoacutesitos ouvidos agrave eacutepoca Podemos dizer no entanto que o campo eacute explorado implicitamente por W Labov a partir de seu trabalho de 1966 The Social Stratification of English in New York City e entatildeo mais ou menos desenvolvido no trabalho que ele iraacute suscitar nos campos da dialetologia social Mas como explica I Kauhanen desde W Labov todo o interesse dos sociolinguistas se concentrou nas comunidades de fala e natildeo nas normas estas uacuteltimas tendo sido sobretudo estudadas com o vieacutes da legitimidade escrita sem que o vernaacuteculo possa evitar ser definido a partir do padratildeo (KAUHANEN 2006) Seraacute preciso esperar o trabalho de N Niedzielski e D Preston publicado em 2000 Folk linguistics para que o vernaacuteculo fosse apreendido por meio das percepccedilotildees avaliaccedilotildees e atitudes dos locutores segundo uma abordagem etnograacutefica possibilitando

51 Agrave psicologia popular foram acrescentadas mais recentemente a biologia popular (sobre as classificaccedilotildees espontacircneas) a fiacutesica popular (sobre as explicaccedilotildees espontacircneas dos fenocircmenos fiacutesicos) e a mais recente de que temos conhecimento a neuropsicologia popular definida como o conjunto de anaacutelises populares do funcionamento da mente inspiradas pelos avanccedilos das neurociecircncias

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neutralizar os vieses do padratildeo devido a preconceitos de pesquisadores e pesquisados A linguiacutestica folk assim desenhada proveacutem de trabalhos anteriores de autores e outros linguistas no cruzamento da sociolinguiacutestica e da psicologia social que incorporam a maneira pela qual crenccedilas e expectativas socialmente construiacutedas informam a percepccedilatildeo que os locutores tecircm dos usos da liacutengua

O conteuacutedo da obra de Niedzielski e Preston fornece uma siacutentese bem completa da linguiacutestica folk americana atual Os autores especificam o uso de folk ldquoUsamos folk para nos referirmos agravequeles que natildeo satildeo profissionais formados na aacuterea em investigaccedilatildeo [] Definitivamente natildeo usamos folk para referir a grupos ou indiviacuteduos ruacutesticos ignorantes incultos atrasados primitivos minoritaacuterios isolados marginalizados ou de estatutos supostamente inferioresrdquo (NIEDZIELSKI PRESTON 2000 p viii) Eles utilizaratildeo entatildeo o termo natildeo-linguistas ao longo da obra para designar aqueles que possuem conhecimento popular da liacutengua Uma de suas teses principais eacute que o estudo do conhecimento popular eacute uma tarefa para a linguiacutestica seja de uma perspectiva puramente linguiacutestica ou mais amplamente social e eacute realmente essa tarefa que eles enfrentam em seu trabalho que traz elementos de anaacutelise e reflexatildeo para diversos campos da pesquisa linguiacutestica americana etnografia da linguagem psicologia social da linguagem linguiacutestica geral e descritiva variacionismo e linguiacutestica aplicada Eacute compreensiacutevel portanto que ao menos no campo americano a linguiacutestica folk constitua tanto um campo de investigaccedilatildeo quanto um desafio importante para as ciecircncias da linguagem

No domiacutenio germacircnico onde o Volklinguistik tambeacutem derivado da linguiacutestica folk americana (BREKLE 1989) constitui um campo de investigaccedilatildeo relativamente desenvolvido os trabalhos centram-se na dialectologia em particular na imagem da ldquolinguagem improacutepriardquo associada a variantes regionais52

2 Linguiacutestica popular abordagens francesas

21 Popular ou comum

No domiacutenio francecircs os trabalhos que se autoproclamam ldquolinguiacutesticas popularesrdquo satildeo quase inexistentes como especifica J-C Beacco que aliaacutes evita deliberadamente esta expressatildeo no tiacutetulo do nuacutemero de Langages que dirige sobre o tema optando por representaccedilotildees metalinguiacutesticas comuns expressatildeo que desloca um pouco a abordagem perceptiva americana (BEACCO 2004) Popular estaacute sobretudo estabilizado na Franccedila na etimologia popular sem duacutevida porque a expressatildeo nomeia mais um tipo de conhecimento do que uma percepccedilatildeo ou uma atitude e que corresponde a fenocircmenos linguiacutesticos descritiacuteveis (metanaacutelise lexicalizaccedilatildeo nivelamento analoacutegico) Mas a ldquolinguiacutestica popularrdquo e as abordagens que dela podem ser tiradas natildeo percorrem os corredores do conhecimento na Franccedila aleacutem do artigo de H Brekle em Histoacuteria das ideias linguiacutesticas dirigido por S Auroux e o trabalho recente de J-C Beacco encontramos uma variante da noccedilatildeo em P Bourdieu (2001 p 137) que jaacute em 1983 clama

52 Ver por exemplo Langer (2001) e os trabalhos de W Davies e o projeto ldquoA histoacuteria e o estado atual da lsquolinguagem improacutepriarsquo como um conceito na linguiacutestica popular alematilderdquo disponiacutevel em eisbrisacukgexnl researchahrbhtml

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por uma ldquociecircncia rigorosa da sociolinguiacutestica espontacircneardquo O campo estaacute presente na obra de L Rosier na necessidade de levar em conta o discurso purista (uma forma de linguiacutestica popular) nos trabalhos sobre os padrotildees da liacutengua e a circulaccedilatildeo dos discursos (2003 2004) bem como no estudo da linguiacutestica espontacircnea de juristas no tratamento da penalizaccedilatildeo da fala (2006) De minha parte proponho integrar a linguiacutestica popular no ensino da liacutengua (2005) como na renovaccedilatildeo das teorias do discurso uma ldquoanaacutelise folk do discursordquo me parece particularmente desejaacutevel em uma concepccedilatildeo de discurso levando em conta dados cognitivos e perceptivos (2006)

Isso natildeo quer dizer evidentemente que a questatildeo do conhecimento linguiacutestico espontacircneo seja ignorada na Franccedila mas eacute tratada de acordo com outras orientaccedilotildees Vimos que o discurso espontacircneo sobre a liacutengua agraves vezes eacute abordado sob a etiqueta comum sem que esse exame leve agrave constituiccedilatildeo de um campo cientiacutefico constituiacutedo (ldquolinguiacutestica ordinaacuteriardquo) Sendo o termo ordinaacuterio amplamente mobilizado por sintagmas como francecircs ordinaacuterio trocas comuns ou discursos ordinaacuterios a problemaacutetica do ordinaacuterio se confunde frequentemente com a da vida cotidiana no sentido etnometodoloacutegico Ao considerar uma breve visatildeo geral dos domiacutenios franceses podemos sugerir com a reduccedilatildeo e a simplicidade de qualquer panorama que existem dois campos que levam em consideraccedilatildeo as questotildees relativas agrave linguiacutestica popular (dada a amplitude desses campos as referecircncias satildeo apenas indicativas)

- o domiacutenio do ldquometardquo quer se trate da linguiacutestica do sistema (J Rey-Debove que distingue entre ldquometalinguagem correnterdquo e ldquocientiacuteficardquo) da teoria da enunciaccedilatildeo e da reformulaccedilatildeo (J Authier e os elementos metaenunciativos C Julia e a ldquosemacircntica espontacircneardquo) ou didaacutetica da liacutengua (J-C Beacco R Bouchard J David A Treacutevise)

- o conjunto de trabalhos que em sociolinguiacutestica (J-C Beacco define a linguiacutestica popular como um ramo da sociolinguiacutestica) ocupa-se das normas e representaccedilotildees (A Berrendonner H Boyer F Gadet que falam de ldquolocutores nativosrdquo N Gueunier A-M Houdebine J-M Klinkenberg D Lafontaine) agraves vezes sob a etiqueta de ldquoatitudes linguiacutesticasrdquo no quadro da psicologia social da linguagem

Todos esses trabalhos tecircm em comum o fato de se apoiarem nos conhecimentos linguiacutesticos espontacircneos dos locutores cuja existecircncia reconhecem plenamente Mas deixam em aberto a questatildeo dos lugares desse saber o que esconde um paradoxo se a linguiacutestica popular natildeo existe como campo cientiacutefico na Franccedila mas ela produz um conhecimento presente e disponiacutevel aos pesquisadores entatildeo onde ela se situa

22 Os recursos do ldquoespiacuterito francecircsrdquo a linguiacutestica social

Eacute em grande parte e eacute sem duacutevida uma especificidade francesa que explica sua ausecircncia no campo cientiacutefico em um conjunto tatildeo vasto quanto antigo de discursos sobre a liacutengua provenientes de ensaiacutestas sociais (P Daninos P Jullian) humoristas (A Allais P Dac) escritores (Proust Balzac Queneau) jornalistas (P Merle P Vandel) colunistas (J Cellard P Georges) observadores modernos (J Capelovici A Schifres) e autores de manuais de etiqueta e guias de correspondecircncia (Baronne Staffe Liselotte B Bernage N de Rothschild O Cechman)

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um conjunto completo de escritores que mantiveram por vaacuterios seacuteculos uma tradiccedilatildeo que eu clamo por falta de um melhor ldquoespiacuterito francecircsrdquo constituindo um grande corpus de linguiacutestica folk

Vou me concentrar aqui em um deles que me parece ter produzido a sociolinguiacutestica espontacircnea mais completa e refinada P Daninos (1913-2005) Ele eacute um jornalista e escritor universalmente conhecido pelos Cadernos do Major Thompson (1954) dos quais sem duacutevida havia um exemplar em todos os lares franceses dos anos 1950 e 1960 Conservador sem ser reacionaacuterio amante da liacutengua sem ser purista observador e promotor dos costumes burgueses sem se afastar inteiramente da distacircncia irocircnica e de certo senso do traacutegico P Daninos eacute um bom representante dessa literatura do espiacuterito francecircs um pouco elitista um pouco sexista um pouco ufanista mas bastante divertida muito difundida e lida na sociedade francesa do poacutes-guerra e dos gloriosos Anos Trinta Nas cerca de quarenta obras que produziu algumas atribuem particular importacircncia aos fatos linguiacutesticos aleacutem dos Cadernos mencionarei Sonia les autres et moi (os outros e eu) (1952) Vacances agrave tous prix (Feacuterias a todo preccedilo) (1958) Le jacassin novo tratado de ideias recebidas loucuras burguesas e automatismos (1962) Esnobiacutessimo ou O desejo de parecer (1964) O pijama (1972) e Made in France (1977) Cada uma dessas obras constitui por um lado uma espeacutecie de banco de dados linguageiros com uma dimensatildeo social que se assemelha muito a uma declaraccedilatildeo de um linguista profissional e por outro lado uma teoria espontacircnea fundada na percepccedilatildeo dos ldquomodos de falarrdquo do francecircs relacionados ao seu ambiente social Para ilustrar aqui estatildeo alguns tiacutetulos dos capiacutetulos

- O Francecircs como se fala (Cadernos)

- Pequeno leacutexico e receitas de feacuterias (Vacanceshellip)

- Vocabulaacuterio poliacutetico (Le jacassin)

- Esnobismo na linguagem cotidiana e de diversas profissotildees (Snobissimo)

- Maacutertires da ortografia burguesa (Made in France)

E para finalizar este trecho de Sonia les autres et moi (os outros e eu) no final do capiacutetulo intitulado ldquoElesrdquo que oferece uma interessante anaacutelise em linguiacutestica folk do emprego decircitico do pronome como instacircncia coletiva

Quem satildeo eles Todo mundo sem duacutevida e ningueacutem Com os alematildees foram os alematildees e seus asseclas Com nossos libertadores foram os libertadores Mas conosco somos noacutes O dicionaacuterio de francecircs baacutesico deveria indicar para eles

ldquoHidra social contra a qual o indiviacuteduo meacutedio parte cada dia em rebeliatildeo falada designa simultaneamente franceses e estrangeiros empregadores e trabalhadores o presidente e os conselheiros as autoridades fiscais os accedilougueiros a Seguranccedila Social o Estado enfim todo o universo exceto o oradorrdquo (THOMPSON 1952 p 105 itaacutelico do autor)

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23 Praacuteticas linguiacutesticas folk

Uma vez identificados os lugares do conhecimento linguiacutestico popular resta antes de examinar duas amostras propor uma definiccedilatildeo a tiacutetulo heuriacutestico e hipoteacutetico

Eu a vejo por ora como um arcabouccedilo teoacuterico e metodoloacutegico para unificar um conjunto de praacuteticas linguiacutesticas seculares baseadas em uma concepccedilatildeo perceptiva da norma que produz trecircs tipos de discurso sobre a liacutengua (eu adapto os dois primeiros de Brekle 1989 e proponho aqui um terceiro)

- descriccedilotildees linguiacutesticas e (preacute)teorizaccedilotildees das regras de funcionamento da liacutengua fortemente informadas por percepccedilotildees (veredictos do tipo ldquonatildeo eacute francecircsrdquo ou julgamentos de adequaccedilatildeo entre nomes e coisas)

- prescriccedilotildees concernentes aos usos muitas vezes decorrentes de um normativismo muscular que vai ateacute o purismo (condenaccedilatildeo de empreacutestimos de neologismos escaacuternio da feminizaccedilatildeo etc)

- intervenccedilotildees espontacircneas na liacutengua na maioria das vezes regularizantes (emocionar e ir no cabeleireiro apesar que etc) esses famosos ldquoerrosrdquo sobre os quais D Leeman (1994) se pergunta se realmente existem (para uma apresentaccedilatildeo detalhada desta tipologia ver Paveau 2005)

Para recapitular a linguiacutestica popular se constituiria de trecircs tipos de praacuteticas seculares com uma dimensatildeo perceptiva descriccedilotildees prescriccedilotildees intervenccedilotildees

3 Semacircntica secular e sociolinguiacutestica popularApresento aqui dois exemplos de linguiacutestica popular o primeiro concernente ao significado

do nome proacuteprio e o segundo ao proacuteprio linguiacutestico das classes dominantes

31 O nome proacuteprio designador flexiacutevel

Quando P Siblot propocircs em 1987 os primeiros delineamentos teoacutericos da ldquosignificacircnciardquo do nome proacuteprio a partir das anaacutelises de Weinreich (ldquoa hipersemanticidaderdquo do nome proacuteprio) ou de Barthes (sua ldquoespessura semacircnticardquo) ele se opocircs de forma inovadora em linguiacutestica ao paradigma dominante do assemantismo do nome proacuteprio considerado como um designador riacutegido Os pesquisadores que admitem as propriedades semacircnticas do nome proacuteprio constituiacuteram entatildeo o que chamo de paradigma do designador flexiacutevel a partir de variadas proposiccedilotildees terminoloacutegicas e teoacutericas ldquohalos positivos e negativosrdquo (M Wilmet) ldquoevocaccedilotildees simboacutelicasrdquo (P Charaudeau) ldquoheterorreferencialidaderdquo e ldquoomnisignificadordquo (G Cislaru) Mas esse tipo de abordagem haacute muito se estabilizou no discurso linguiacutestico secular em particular entre os escritores mas tambeacutem entre os autores dessa tradiccedilatildeo do espiacuterito francecircs descrito acima Sabemos por exemplo que para Proust os significados plurais do nome proacuteprio satildeo uma evidecircncia tomando emprestados os canais da memoacuteria voluntaacuteria e a metaacutefora da cor Eacute o que testemunham numerosas passagens do Cocircteacute de Guermantes que se relacionam com as praacuteticas linguiacutesticas seculares

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E o nome de Guermantes na eacutepoca eacute tambeacutem como um daqueles pequenos balotildees nos quais se prendem oxigecircnio ou outro gaacutes quando consigo estouraacute-lo ao soltar o que ele conteacutem respiro o ar de Combray daquele ano daquele dia misturado com um cheiro a espinheiro agitado pelo vento da esquina da praccedila [hellip] Mas mesmo fora dos raros minutos como estes nos quais bruscamente sentimos a entidade original estremecer e retomar sua forma e sua perseguiccedilatildeo dentro das siacutelabas mortas de hoje se neste redemoinho vertiginoso da vida cotidiana onde eles tecircm apenas um uso inteiramente praacutetico os nomes perderam toda a cor como um sinal prismaacutetico [] por outro lado quando em devaneio refletimos procuramos voltar ao passado desacelerar suspender o movimento perpeacutetuo no qual estamos envolvidos pouco a pouco vemos reaparecer justapostos mas inteiramente distintos um dos outros os tons que o curso de nossa existecircncia nos apresenta sucessivamente com um mesmo nome (PROUST 1954 [1920] p 13)

O nome proacuteprio eacute considerado aqui como um reservatoacuterio de sentido que pode ser ativado de acordo com os contextos espaciais e temporais intimamente dependentes da percepccedilatildeo memoacuteria e atividade cognitiva do sujeito Ele possui uma dimensatildeo cognitivo-discursiva constituindo um verdadeiro ldquonome de memoacuteriardquo cujo significado precisa ser analisado em um contexto ampliado agrave histoacuteria agrave cultura e ao ambiente material Em uma abordagem cognitivo-discursiva diremos que eacute um preacute-discurso isto eacute um quadro preacute-discursivo coletivo que contribui para a elaboraccedilatildeo do discurso ao ativar um conjunto de conhecimentos crenccedilas e praacuteticas (esta abordagem do nome proacuteprio eacute desenvolvida em Paveau 2006) Eacute esse tipo de anaacutelise que encontramos em P Daninos

E se aquele agente duplo [Mata Hari] fosse de pouca envergadura Seu apelido permaneceraacute inscrito na histoacuteria ela termina mal mas soa bem Quem sabe o que teria acontecido com ela sob seu nome verdadeiro de Gertrude Zelle Talvez rentista em Monte-Carlo inscrita na Seguridade Social para a qual os espiotildees contribuem assim como os outros [] No domiacutenio dos nomes proacuteprios a seleccedilatildeo se opera [] com crueldade Existem alguns ndash Richelieu Voltaire La Fayette ndash que resistem a todos os empregos ceacutedulas telefone galerias Outros esmagados pelo metrocirc quantas pessoas a quem foi dito cem vezes ldquoDesccedila em Barbegravesrdquo morrem sem jamais ter voltado ao passado deste poliacutetico Alguns nomes como Chardon-Lagache natildeo dizem mais nada Outros como Pegravere-Lachaise natildeo dizem nada de valor (DANINOS 1972 p 82)

O nome proacuteprio eacute descrito como um categorizador de tipo social (coeficiente de prestiacutegio do antropocircnimo) e cultural (conservaccedilatildeo dos valores histoacutericos e literaacuterios de certos nomes) Ele propotildee uma folha de memorial que pode ser ativada de diferentes maneiras conforme percepccedilotildees dos usuaacuterios enquanto Richelieu manteacutem sua dimensatildeo histoacuterica Pegravere-Lachaise passou por uma mudanccedila semacircntica restritiva

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32 Uma sociolinguiacutestica popular a fala das classes dominantes

Quer se trate de histoacuteria sociologia ou linguiacutestica poucas ciecircncias humanas se ocuparam ateacute agora das ldquoclasses dominantesrdquo que M Pinccedilon e M Pinccedilon-Charlot explicam por ausecircncia de contratos propostos pelo Estado as escolhas posturais dos socioacutelogos que evitam enfrentar uma dissimetria social em seu prejuiacutezo e o clima poliacutetico e intelectual poacutes-1968 (PINCcedilON PINCcedilON-CHARLOT 2005 [1997]) Seja como for eacute patente que os trabalhos publicados em linguiacutestica no campo da variaccedilatildeo social satildeo majoritariamente consagrados ao francecircs popular com ou sem esse roacutetulo sem que um ldquo(grande) falante burguecircsrdquo ou um ldquofrancecircs aristocraacuteticordquo natildeo seja considerado (tambeacutem satildeo possiacuteveis outra questatildeo) Acontece poreacutem que a sociolinguiacutestica popular que aqui me interessa trata amplamente dessa questatildeo sob diferentes etiquetagens (liacutengua burguesa fala esnobe linguagem mundana boa fala) por meio da figura recorrente de Marie-Chantal que representa para a fala das classes dominantes o que Franccediloise de Proust eacute para o francecircs popular Marie-Chantal adquiriu suas marcas linguajeiras como as joias de famiacutelia por heranccedila familiar Esta eacute a anaacutelise que Proust faz a propoacutesito de Albertine

Natildeo que Albertine jaacute natildeo tivesse quando estive em Balbec um lote muito variado dessas expressotildees que revelam de imediato que se vem de famiacutelia abastada e que ano apoacutes ano uma matildee abandona sua filha do mesmo modo que outra lhe daacute na medida em que cresce em circunstacircncias importantes suas proacuteprias joias (PROUST 1954 [1920] p 64)

A literatura popular cita em seu lazer essas expressotildees ldquomuito variadasrdquo que o historiador Eacute Mension-Rigau chama de ldquoexpressotildees de intimidaderdquo e que muitas vezes se relacionam com a vida social e relaccedilotildees interpessoais Alguns exemplos dessas palavras de classe analisadas no interior de uma sociolexicologia popular

1 M de Chaudenay escreve em seu glossaacuterio que ldquoum membro do Jockey Club digno desse nome natildeo tem mamatildee nem papai nem filho nem famiacutelia nem carro nem castelo nem hotel Ele natildeo come natildeo toma aperitivos natildeo vai a espetaacuteculo nem a reuniotildees festivasrdquo E eacute verdade que o pobre homem mesmo sendo dono de Chambord seraacute

reduzido pelo bom tom de dizer-lhe Venha jantar em casa Vocecirc tem que ser o uacuteltimo dos arrivistas para falar de um castelo ou o Diretoacuterio para dizer HP (nota abreviatura para hotel privado) (DANINOS 1964 p 87)

2 De Neuilly a Passy natildeo ldquose comerdquo se almoccedila ou janta (VANDEL 1993 p 152)

3 Fui ensinado que natildeo comemos Almoccedilamos lanchamos ou jantamos (homem 1934) [hellip] Noacutes natildeo andamos a cavalo noacutes montamos Um dia eu disse desisti Aprendi a expressatildeo no internato Meu avocirc me disse isso natildeo se diz Dizemos vomitamos mas natildeo desistimos (homem 1934) (MENSION-RIGAU 1994 p 201 e 209)

Eacute difiacutecil desenvolver as anaacutelises por falta de espaccedilo (encontraremos desdobramentos adicionais em Paveau e Rosier 2007) mas eacute preciso notar que esse tipo de descriccedilatildeo lexicoloacutegica

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estaacute integrado em um sistema perceptivo mais amplo como indica Eacute Mension-Rigau (1994 p 209)

Para designar essas expressotildees rejeitadas por serem utilizadas por classes sociais que natildeo pertencem agrave mesma esfera ou ao mesmo mundo os respondentes utilizam todo um conjunto de qualificativos dizem que satildeo muito comuns muito vulgar muito ordinaacuterio comum como patildeo de cevada [arroz de festa no portuguecircs] muito corriqueiro do povo de gente pequena de todo mundo de garccedilom cabeleireiro fornecedor ou porteiro []

Encontramos portanto nesses discursos linguiacutesticos folk um corpus e teorias espontacircneas baseadas na maneira como os usuaacuterios recebem-percebem os valores sociais do leacutexico

4 A questatildeo da validade das teorias popularesA questatildeo mais interessante colocada pela linguiacutestica folk a de sua validade53 tem sido

objeto de pouco trabalho exceto pelas reflexotildees dos americanos sobre filosofia da mente e filosofia da ciecircncia Eacute um problema difiacutecil sem duacutevida porque a doxa da falsidade dos conhecimentos populares estaacute fortemente ancorada na Franccedila em particular onde se fala muito rapidamente em ldquopseudociecircnciardquo mas ainda mais porque a utilizaccedilatildeo que a linguiacutestica faz da noccedilatildeo de intuiccedilatildeo natildeo eacute esclarecida

41 Verdade cientiacutefica ou aproximada

As teorias populares satildeo verdadeiras ou falsas Existem para ser breve trecircs respostas possiacuteveis

bull As teorias populares satildeo falsas

O materialismo eliminativista agrave moda de P Churchland como vimos responde satildeo totalmente falsas aliaacutes seratildeo substituiacutedas por demonstraccedilotildees sem apelo resultantes das neurociecircncias esta posiccedilatildeo eacute tambeacutem a do filoacutesofo S Laurence (2003) que considera que as teorias correntes em qualquer ciecircncia satildeo frequentemente falsas e que o fato de a linguiacutestica ser recente a torna ainda mais vulneraacutevel

bull As teorias populares satildeo falsas mas sua existecircncia eacute necessaacuteria

O ldquorealismo suaverdquo de D Dennett por exemplo (1990 [1987]) responderia de maneira mais matizada os resultados cientiacuteficos satildeo falsos porque os qualia (experiecircncias conscientes) satildeo falsos mas o vocabulaacuterio ldquofolkrdquo eacute perfeitamente operacional e mesmo necessaacuterio para a relaccedilatildeo do homem com a linguagem em outras palavras as percepccedilotildees espontacircneas satildeo organizadores (padrotildees) necessaacuterios A linguiacutestica popular seria entatildeo admissiacutevel como uma descriccedilatildeo perceptiva e organizadora da linguagem mas natildeo como uma teoria da linguagem

bull As teorias populares satildeo verdadeiras mas os ldquonatildeo-linguistasrdquo possuem saberes sobre as liacutenguas

53 No capiacutetulo anterior realizamos uma discussatildeo mais detalhada sobre a validade das teorias folk

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D Preston e N Niedzielski (1999 p 10) colocam desta forma ldquoSe o povo fala sobre linguagem eles devem eacute claro saber (ou pelo menos acreditar que sabem) sobre elardquo Passamos a uma concepccedilatildeo praacutetica e natildeo mais loacutegica da verdade haacute um conhecimento linguiacutestico que independe de suas propriedades cientiacuteficas e esse conhecimento tem um tipo de operacionalidade Esta eacute a posiccedilatildeo de N Llewellyn e A Harrison que estudam o modo como um grupo de falantes percebe formas de liacutengua e de discurso em documentos corporativos

Em um niacutevel baacutesico o presente capiacutetulo mesmo que brevemente mostrou que as competecircncias linguiacutesticas folk dos participantes se estendem muito longe Os participantes demonstraram habilidade de distinguir entre usos inclusivos e exclusivos da primeira pessoa do plural transformaccedilatildeo passiva nominalizaccedilatildeo eles foram capazes de criticar o uso de abstraccedilotildees como sujeitos de verbos identificar possiacuteveis instacircncias da segunda pessoa disfarccedilada e assim por diante (PAVEAU 2006)

Essa resposta se fundamenta em uma abordagem anti-chomskyana da cogniccedilatildeo na qual a linguiacutestica explica as dimensotildees experiencial e cultural da linguagem Em outras palavras se o objeto da linguiacutestica permanece apesar de todos os desenvolvimentos a liacutengua por ela mesma entatildeo a linguiacutestica popular tem poucas chances se o objeto da linguiacutestica se estende aos usos da linguagem por sujeitos sociais e cognitivos entatildeo o conhecimento popular qualquer que seja seu status epistecircmico entra por pleno direito na teoria o que mostra ao que parece as duas ldquoteoriasrdquo populares apresentadas acima

42 Intuiccedilatildeo percepccedilatildeo verdade

Pode-se pensar que em uacuteltima anaacutelise todas as teorias linguiacutesticas satildeo populares uma vez que se baseiem na intuiccedilatildeo dos locutores Mas de que intuiccedilatildeo se trata exatamente A intuiccedilatildeo dos linguistas amplamente informada pela teoria (conhecemos a piada de que apenas um informante chomskyano pode admitir teorias chomskyanas) natildeo eacute a mesma que a dos locutores comuns Esta eacute a posiccedilatildeo defendida por Devitt em sua criacutetica anti-representacionista que aliaacutes fornece um meio de tratar a verdade das teorias populares

As intuiccedilotildees de falantes comuns podem parecer mais presentes do que realmente satildeo porque os linguistas consideram suas proacuteprias intuiccedilotildees representativas Sem duacutevida muitas vezes satildeo representativas E onde natildeo satildeo seriam se o falante comum tivesse a vantagem de uma educaccedilatildeo em linguiacutestica (DEVITT 2006 p 496)

Vemos como a questatildeo da verdade se desloca para a da percepccedilatildeo se as informaccedilotildees dadas pela intuiccedilatildeo satildeo verdadeiras porque satildeo informadas pela teoria entatildeo eacute de uma verdade relativa que se trata e podemos igualmente falar de verdade por intuiccedilotildees ldquofalsasrdquo que satildeo verdadeiras em relaccedilatildeo aos quadros natildeo teoacutericos dos indiviacuteduos Esses quadros satildeo os da sociedade da cultura e isso eacute o que mostra por exemplo o trabalho de N Niedzielski sobre a natureza social da percepccedilatildeo das variaacuteveis sociolinguiacutesticas (1999)

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ConclusatildeoAbordar a questatildeo da linguiacutestica folk envolveu deslocar a abordagem habitualmente binaacuteria

da norma (descritiva versus prescritiva) para propor um terceiro termo a percepccedilatildeo A ldquoverdaderdquo da linguiacutestica popular deve de fato ser pensada em termos perceptivos metadiscursivos e natildeo loacutegicos o que tambeacutem implica substituir outra oposiccedilatildeo binaacuteria cientiacutefica versus popular um contiacutenuo que leva em consideraccedilatildeo os dois objetos examinados54 e o coeficiente de informaccedilatildeo social e cultural dos conhecimentos produzidos Esses uacuteltimos satildeo justificaacuteveis para um estudo especiacutefico em linguiacutestica natildeo como uma cartilha ingecircnua sobre a qual fundar a ciecircncia mas como uma possiacutevel versatildeo da teoria da linguagem Daninos e Labov Proust e Weinreich

54 N Llewellyn e A Harrison (2006) mostram por exemplo que falantes comuns tecircm conhecimento linguiacutestico preciso sobre pronomes e neologismos mas satildeo menos confiantes quanto a problemas complexos das praacuteticas textuais

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O FALAR DAS CLASSES DOMINANTES LINGUIacuteSTICA POPULAR E DIALETOLOGIA PERCEPTIVA55

A questatildeo das identidades linguageiras e discursivas eacute crucial para uma ciecircncia da linguagem considerar a realidade das trocas sociais e os contextos da vida em sociedade Eacute o proacuteprio sistema das relaccedilotildees sociais que eacute estruturado quando as identidades satildeo postas em causa nos dois sentidos do termo lanccediladas na arena das trocas mas tambeacutem com base nas imagens de si e do outro elaboradas por si mesmo e pelo outro Os locutores adaptam os modos de falar ao mesmo tempo em que produzem anaacutelises espontacircneas elaborando e administrando simultaneamente suas imagens linguageiras Sujeitos de observaccedilatildeo para os linguistas (especializados) eles satildeo propriamente linguistas no quadro de uma linguiacutestica popular

Nesse capiacutetulo me proponho investigar as identidades linguageiras de classe56 isto eacute os modos que os locutores tecircm de mostrar o seu pertencimento a determinada classe e sua posiccedilatildeo nas relaccedilotildees sociais Desejo examinar particularmente a hipoacutetese de um falar das classes dominantes57 estudo ateacute entatildeo ausente nos trabalhos sociolinguiacutesticos franceses e que propotildee questotildees histoacutericas epistemoloacutegicas e empiacutericas pertinentes agrave linguiacutestica social

Descreverei inicialmente o estatuto da noccedilatildeo de classe social na sociolinguiacutestica francesa e anglo-saxatilde bem como a assimetria que existe entre os objetos frequentemente escolhidos pelas ciecircncias sociais (classe trabalhadora povo excluiacutedos e em menor grau as classes meacutedias) e os pertencimentos reais ou imaginaacuterios dos indiviacuteduos (em que se encontram igualmente as classes dominantes as elites as burguesias) Examinarei na sequecircncia as formas e a validade dos resultados da linguiacutestica folk (haacute uma sociolinguiacutestica espontacircnea e antiga e muito desenvolvida na Franccedila sobre o falar das elites e dos bairros nobres) mostrarei que os conceitos e os meacutetodos da dialetologia perceptual norte-americana satildeo particularmente pertinentes para dar conta desse objeto Terminarei o texto propondo uma primeira descriccedilatildeo linguiacutestica folk do falar das classes dominantes insistindo sobre alguns de seus traccedilos caracteriacutesticos (pronuacutencia leacutexico e pragmaacutetica)

1 A apreensatildeo linguiacutestica das categorias sociaisAs categorias mobilizadas pelas linguiacutesticas atentas ao humano e ao social natildeo satildeo

imanentes mas diretamente informadas pela histoacuteria das ciecircncias e das ideologias Isso eacute particularmente verdadeiro para a categoria ldquoclasse socialrdquo

55 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Le parler des classes dominantes objet linguistiquement incorrect Dialectologie perceptive et linguistique populaire Eacutetudes de linguistique appliqueacutee p 137-156 2008 Traduccedilatildeo de Roberto Leiser Baronas (UFSCar) e Julia Lourenccedilo Costa (UFSCarFAPESP)

56 Escolhi a acepccedilatildeo mais marxista do termo falo das classes ldquoda luta de classesrdquo e das ldquorelaccedilotildees sociais de produccedilatildeordquo conforme explicarei a seguir em 1

57 No momento a designaccedilatildeo tem apenas valor heuriacutestico

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11 Agrave procura da classe perdida

Natildeo falamos mais (em absoluto) de classe social especialmente em linguiacutestica como antes Tanto o termo como a noccedilatildeo parecem ter desaparecido do discurso dos socioacutelogos como mostra R Pfefferkorn em um trabalho de 2007 que reintegra o ldquojargatildeordquo marxista relaccedilatildeo social

Em linguiacutestica francesa e mais particularmente em sociolinguiacutestica o termo classe eacute substituiacutedo por posiccedilatildeo e por rede Em La variation sociale en franccedilais (2003) Franccediloise Gadet emprega ldquolocutores favorecidosrdquo e ldquodesfavorecidosrdquo (p 9) a metaacutefora da escala (o ldquoalto e o baixo dos degraus da escala socialrdquo p 10 e 68) ou o termo posiccedilatildeo em ldquoposiccedilatildeo social favorecidardquo por exemplo (p 16) Ela sublinha mais agrave frente (no capiacutetulo IV) que a classe (trabalhadora meacutedia e superior) como ferramenta de anaacutelise eacute muito formal e redutora e explica que a sociolinguiacutestica explora a noccedilatildeo de rede para melhor dar conta das diferentes articulaccedilotildees das relaccedilotildees sociais em niacutevel global e local tomando como exemplo a ldquorede operaacuteriardquo tal como eacute analisada por L Milroy (1980) O capiacutetulo IV eacute inclusive intitulado ldquoO diastraacuteticordquo termo teacutecnico perfeitamente naturalizado em linguiacutestica mas denotativo quase ciruacutergico que busca apagar as dimensotildees conflituosas eou poliacuteticas presentes na palavra classe

Todavia no decorrer deste mesmo capiacutetulo IV o termo classe social reaparece quase naturalmente o quadro que recapitula os usos sociais do natildeo da negaccedilatildeo apresenta a trilogia classe operaacuteria classe meacutedia e classe superior sendo a ldquoclasse socialrdquo apresentada como um criteacuterio igual ao de idade ou sexo e o autor menciona sem comentaacuterio especiacutefico ldquoa estratificaccedilatildeo em classes sociaisrdquo (GADET 2003 p 68)

Podemos portanto sustentar que tanto a leitura de F Gadet quanto a L Milroy bem como a de outros autores sobre a noccedilatildeo de classe sustentada na noccedilatildeo de relaccedilatildeo social natildeo apresenta diferenccedila expressiva em relaccedilatildeo agrave de rede Classe operaacuteria rede operaacuteria Se nos reportamos agraves anaacutelises de R Pfefferkorn que estima que a noccedilatildeo de classe foi paradoxalmente escamoteada pelos socioacutelogos franceses e britacircnicos nos anos 1970 e 1980 do seacuteculo passado (paradoxalmente porque a virada liberal fortaleceu sobretudo as classes dominantes) compreendemos que haacute outros elementos nesse desaparecimento e que eacute sem duacutevida por serem noccedilotildees marxistas e natildeo porque satildeo imprecisas que as abordagens em termos de classe e relaccedilatildeo social foram progressivamente descartadas

Alain Rey natildeo hesita em falar de classe em 1972 (encontramos o enunciado ldquoo pertencimento de classe dos locutoresrdquo em seu artigo publicado na revista Langue Franccedilaise no nuacutemero dedicado agrave norma p 14) e F Franccedilois emprega ainda o termo em 1983 propondo aleacutem disso uma descriccedilatildeo fina das relaccedilotildees da linguagem segundo os pertencimentos de classe

Em primeiro lugar eacute certo que a divisatildeo em classes sociais eacute acompanhada de uma divisatildeo entre aqueles que mais numerosos agem no tema sobretudo com gestos e aqueles que menos numerosos agem sobre os homens principalmente falando Ainda que as coisas sejam um pouco mais complicadas se o teacutecnico em eletrocircnica ou o

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cirurgiatildeo natildeo satildeo ldquofalantes purosrdquo satildeo as ldquoclasses meacutediasrdquo que desse ponto de vista se tornam a maioria Fica ainda mais claro se considerarmos a escrita satildeo poucos os homens para os quais escrever eacute a ocupaccedilatildeo principal (FRANCcedilOIS 1983 p 11)

Sabemos evidentemente que P Bourdieu jamais ocultou essa dimensatildeo em particular nos seus trabalhos consagrados agrave linguagem como nos mostra por exemplo o Ce que parler veut dire (1982)58 e o artigo Vous avez dit populaire (1983)59 que usa abundantemente a terminologia do conflito e da hierarquizaccedilatildeo (dominantes dominados restriccedilatildeo oposiccedilatildeo hierarquia etc)60 No entanto eacute tambeacutem verdadeiro que ateacute recentemente os estudos socioloacutegicos e sociolinguiacutesticos main stream ou tradicionais evitam a todo custo a noccedilatildeo de classe que todavia comeccedila a reaparecer com forccedila na cena intelectual a partir dos anos 2000 (numerosas obras e vaacuterias ediccedilotildees de revistas satildeo consagradas agraves desigualdades sociais e a um questionamento renovado do aparelho teoacuterico marxista ndash consultar por exemplo a primeira parte da obra de R Pfefferkorn) O bom senso nos diz que a partir do momento que a sociedade natildeo aparece como um todo socialmente pacificado eacute mais pertinente usar ferramentas de anaacutelises classistas

Nos Estados Unidos e mais tipicamente no mundo anglo-saxatildeo natildeo parece que seja produtivo semelhante tipo de apagamento ainda que a sociologia tenha passado pelas mesmas evoluccedilotildees A obra de B Bersnstein Class Codes and Control publicada em 1971 favoreceu durante uma quinzena de anos pesquisas emolduradas pela categoria de classe (o termo e a noccedilatildeo de class no mundo anglo-saxatildeo natildeo coincidem exatamente com o conceito de classe social no contexto francecircs) Categorias como a comunidade ou grupo (eacutetnico social cultural sexual geracional etc) ou a noccedilatildeo de ldquosocial networkrdquo introduzida rapidamente por Milroy (1980) que poderia ser uma alternativa agrave noccedilatildeo de classe natildeo a apagou L Milroy por exemplo trabalha ao mesmo tempo com os termos social network e class Os termos dialeto de classe ou dialeto social de classe satildeo empregados na sociolinguiacutestica americana mesmo natildeo sendo uma categoria de primeiro plano enquanto em francecircs eacute mais usado socioleto ou dialeto social noccedilotildees mais amplas natildeo conformadas ao social propriamente dito pois elas recobrem por exemplo os falares comunitaacuterios (a liacutengua das cidades ou dos jovens) etnogeograacuteficos (os dialetos crioulos por exemplo) ou geograacuteficos (os dialetos regionais)

12 Um socioleto mais elevado

Chamemos de classe redes ou grupos esses conjuntos de indiviacuteduos interligados pelos modos de ser e de falar pelas invariantes na representaccedilatildeo de si nos sentimentos de pertencimento e nos comportamentos econocircmicos satildeo estudados de modo desigual pelas ciecircncias sociais e em particular pela (soacutecio)linguiacutestica Se os trabalhos satildeo numerosos tanto na Franccedila quanto na Gratilde-Bretanha ou nos Estados Unidos sobre a classe operaacuteria ou rede operaacuteria ou classe popular ou meios desfavorecidos ou povo ou classe trabalhadora etc (a

58 NT BOURDIEU P O que falar quer dizer e economia das trocas simboacutelicas Traduccedilatildeo de Vanda Anastaacutecio Satildeo Paulo Editora Difel 1998

59 NT BOURDIEU P Vocecirc disse popular Traduccedilatildeo de Denice Barbara Catani Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 1 p 16-26 1996

60 O questionamento da categoria de popular para caracterizar um socioleto ou das maneiras de falar parece assim participar do esfacelamento da noccedilatildeo de classe em linguiacutestica Para uma anaacutelise detalhada consultar F Gadet (2002) e Abecassis (2003)

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terminologia eacute vasta61) os estudos sobre as classes dominantes ou ldquofavorecidasrdquo (burguesia grande burguesia e aristocracia) satildeo singularmente raros se natildeo inexistentes

Na Franccedila esses trabalhos satildeo rariacutessimos62 Pierre Bourdieu tem conduzido desde 1963 as pesquisas de campo sobre ldquoas classes superioresrdquo francesas (1979 p 588) cujos resultados satildeo apresentados em La distinction em 197963 Ele isola alguns marcadores de classe sem todavia propor uma anaacutelise linguiacutestica Os socioacutelogos M Pinccedilon-Charlot e M Charlot trabalham haacute quase vinte anos sobre as elites francesas e adquiriram por isso uma notoriedade fora da universidade sobre essa questatildeo que eles natildeo teriam conhecido quando estudavam essas questotildees nos anos 197064 (por exemplo 1989 1996 1997 e sua uacuteltima obra Les ghettos du Gotha publicada em 2007) Eles abordam poucos aspectos linguageiros mas destacam por exemplo a matriz discursiva de suas investigaccedilotildees Mais recentemente o historiador Eacute Mension-Rigau publicou o livro Aristocrates e grand-bourgeois (1994) ateacute entatildeo uacutenico estudo sobre as classes dominantes francesas contemporacircneas que o coloca em um lugar significativo sobre as maneiras de falar sobretudo porque os entrevistados comumente abordam eles proacuteprios como veremos mais adiante neste texto Na Beacutelgica haacute uma obra da socioacuteloga V DrsquoAlkemade intitulada La haute publicada em 2004

Do lado da linguiacutestica encontramos o estudo de O Mettas publicado em 1979 sobre a pronuacutencia parisiense La prononciation parisienne aspects phoniques drsquoun sociolecte parisien (du faubourg Saint-Germain agrave la Muette) Como anuncia o tiacutetulo o trabalho analisa o socioleto da aristocracia e da alta burguesia por meio de uma amostra de 39 locutoras A anaacutelise proposta por Mettas se concentra sobre a dimensatildeo foneacutetica (a ldquopronuacutencia refinadardquo) mas termina em uma ampliaccedilatildeo da anaacutelise de outros niacuteveis linguiacutesticos que defende a existecircncia de um falar social especiacutefico Podemos tambeacutem escutar uma amostra do sotaque do ldquosocioleto da alta burguesiardquo na gravaccedilatildeo de uma atriz que interpreta ldquouma pessoa esnobe da aristocraciardquo65 na obra Les accents des franccedilais livro-cassete publicado em 1983 e transferido para a internet66 Esse material propotildee uma lista de caracteriacutesticas focircnicas especiacuteficas Os trabalhos recentes que desenvolvi ainda programaacuteticos sobre o falar das classes dominantes tentam cercear esse objeto explicando a sua ausecircncia tanto no campo da sociolinguiacutestica quanto no das ciecircncias sociais favorecendo uma abordagem que considere nos dados linguiacutesticos as percepccedilotildees e as representaccedilotildees espontacircneas dos locutores (PAVEAU 2008 PAVEAU ROSIER 2008 capiacutetulo 8 ldquoStyles sociaux classes classements deacuteclassementsrdquo67)

61 A lista seria longa e tediosa para uma bibliografia ver Gadet (1992 2003) Calvet Mathieu (2003) Petitjean Privat (2007) e Paveau Rosier (2008)

62 Refiro-me aos trabalhos sobre as elites enquanto elites e natildeo aos estudos sobre a alta funccedilatildeo puacuteblica diplomaacutetica ou mesmo os bispos que existem na histoacuteria por exemplo e que dizem respeito a profissotildees ou posiccedilotildees de poder institucional

63 NT BOURDIEU P A distinccedilatildeo Criacutetica social do julgamento Traduccedilatildeo de Daniela Kern e Guilherme J F Teixeira Satildeo Paulo EdUSP 2007

64 O Diaacuterio de investigaccedilatildeo deles conteacutem comentaacuterios tatildeo interessantes que discorrem sobre a aacutecida recepccedilatildeo desses trabalhos pelos seus colegas prova de que se necessaacuterio os objetos cientiacuteficos possuem uma forte dimensatildeo ideoloacutegica e institucional (1996)

65 A assimilaccedilatildeo entre a alta burguesia e a aristocracia que faria qualquer aristocrata se assustar e alguns historiadores franzir a testa parece atestar a estranheza dessa categoria social para os autores da pesquisa

66 NT Disponiacutevel em httpaccentsdefrancefreefr Acesso em 17 out 2020

67 NT In PAVEAU M-A ROSIER L La langue franccedilaise passions et poleacutemiques Paris Eacuteditions Vuibert 2008

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A sociolinguiacutestica popular em contrapartida dispotildee de muitos pequenos tratados espontacircneos ou observaccedilotildees raacutepidas geralmente humoriacutesticas ou irocircnicas sobre o falar das classes dominantes por parte de observadores externos e tambeacutem por membros da aristocracia da grande burguesia ou dos ldquobons meios sociaisrdquo Esse corpus eacute constituiacutedo de ensaios para o puacuteblico em geral sobre o que denomino ldquoo espiacuterito francecircsrdquo (P Daninos P Jullian J Chazot) correspondendo a uma vasto material que abrange guias de correspondecircncia e de boas maneiras esquetes humoriacutesticas (S Joly C de Turkheim F Foresti) artigos de revista sobre os meios sociais com interpretaccedilotildees dos tiques comportamentais do ldquobobordquo68 do ldquobeauf69rdquo do ldquoaristo70rdquo ou do ldquoplouc71rdquo de dicionaacuterios de ldquocriacutetica irocircnicardquo (expressatildeo criada por L Rosier) como o Dico franccedilais-franccedilais de P Vandel (1992) ou o seu ancestral Le Jacassin de P Daninos (1962) ou ainda as obras de sociologia ldquosuaverdquo como Nous les bourgeoises de V Hanotel e M-L de Leacuteotard (1991) ou o Guide du squatteur mondain de J-F Duhauvelle (1994) Detalharei mais agrave frente neste texto os dados linguiacutesticos apresentados nesses materiais todavia eacute importante fazer uma primeira constataccedilatildeo sobre essa questatildeo existe uma assimetria notaacutevel entre os estudos linguiacutesticos ldquocientiacuteficosrdquo (rariacutessimos) e o grande nuacutemero de apreciaccedilotildees folk linguiacutesticas sobre o falar das elites sociais Essa constataccedilatildeo estaacute na origem do questionamento teoacuterico e epistemoloacutegico que discute a validade da linguiacutestica popular e as contribuiccedilotildees da dialetologia perceptiva para a linguiacutestica cientiacutefica

2 Linguiacutestica perceptiva linguiacutestica popular (folk linguiacutestica)Nos anos 1970 A Rey (1972 p 16) e outros pesquisadores reivindicaram o que chamo

de uma ldquolinguiacutestica dos valoresrdquo isto eacute um ldquoestudo sistemaacutetico das atitudes metalinguiacutesticas [] que poderia constituir uma ciecircncia social relacionada agraves teorias dos valores (teoria do direito da moral objetiva etc)rdquo ldquoEnquanto os trabalhos de soacutecio e de etnolinguiacutestica no que se refere agraves variedades de uso agraves normas objetivas satildeo atualmente muito numerosos [] os estudos relativos agrave apreciaccedilatildeo subjetiva dos usos satildeo raros e mais frequentes em inglecircsrdquo constata Rey no mesmo artigo (1972 p 15) Mais de trinta anos depois o que aconteceu Os campos norte-americanos da dialetologia social da dialetologia perceptiva da folk linguistics colaboraram voluntariamente com a psicologia social e tecircm amplamente explorado as atitudes linguiacutesticas as percepccedilotildees as avaliaccedilotildees os julgamentos de valores etc Parece se tratar de uma linguiacutestica dos valores

68 NT Abreviaccedilatildeo de bourgeois bohemian ou burguecircs boecircmio

69 NT ldquoA personagem do lsquobeaufrsquo ndash abreviaccedilatildeo de beau fregraverecunhado ndash nasceu no poacutes-maio de 68 do laacutepis de Cabu cartunista do Hara-Kiri e do Charlie Hebdo ldquoEle era o dono do bistrocirc com o pastor alematildeo o bigode e a camisetardquo explica o socioacutelogo Paul Yonnet autor de Travail Loisir (Gallimard) Havia portanto uma rejeiccedilatildeo do modo de vida e haacutebitos da classe trabalhadora da qual natildeo mais se poderia esperar a regeneraccedilatildeo da sociedaderdquo Disponiacutevel em httpswwwlexpressfrinformationsles-nouveaux-beaufs_636908html Acesso em 17 out 2020

70 NT ldquoAristo (substantivo masculino) 1 (pejorativo) pessoa que pertence a uma classe de nascimento privilegiada e que possui tiacutetulos e cargos hereditaacuterios 2 (pejorativo) aristocratardquo Disponiacutevel em httpdictionnairesensagentleparisienfraristofr-fr Acesso em 17 out 2020

71 NT ldquoQue tem a aparecircncia desajeitada de um camponecircs em sua melhor roupa de domingo que ignora os costumesrdquo comumente relacionado agrave regiatildeo francesa Bretagne Poderia ser traduzido como caipira em portuguecircs Disponiacutevel em httpswwwlaroussefrdictionnairesfrancaisplouc61755 Acesso em 17 out 2020

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Na Franccedila os dados metalinguiacutesticos satildeo estudados mas mais frequentemente segundo abordagens ldquoobjetivasrdquo (por exemplo as glosas metagraacuteficas no campo da aquisiccedilatildeo as natildeo-coincidecircncias do dizer na enunciaccedilatildeo e no discurso Para uma observaccedilatildeo em detalhe a esse respeito consultar a introduccedilatildeo de Achard-Bayle e Paveau na revista Pratiques 13914072) A questatildeo do ldquoimaginaacuterio linguiacutesticordquo eacute evidente nos trabalhos de A-M Houdebine e Socircnia Branca mas os dados propriamente perceptivos natildeo satildeo escolhidos como tais para um trabalho em linguiacutestica Haacute algumas exceccedilotildees como o estudo conduzido por A Meillet V Lucci e J Billiez publicado em 1990 com o tiacutetulo Orthographe mon amour (Grenoble PUG) que eacute no meu entendimento um raro e autecircntico trabalho no contexto francecircs de dialetologia perceptiva e de folk linguiacutestica sem que as categorias desse campo sejam efetivamente nominadas Minha hipoacutetese eacute que uma folk linguiacutestica amplamente articulada sobre uma dialetologia perceptiva pode realizar o projeto esboccedilado por A Rey de uma linguiacutestica dos valores Para sustentar essa hipoacutetese examino a validade da folk linguiacutestica e o estatuto da percepccedilatildeo na anaacutelise linguiacutestica

21 O problema da validade das disciplinas ldquofolkrdquo abordagem eliminativa versus integracionista

Como outras disciplinas ldquofolkrdquo (psicologia folk biologia folk e mais recentemente as neurociecircncias folk) a folk linguiacutestica parece por natureza desprovida de qualquer validade cientiacutefica Se de fato a ciecircncia se constroacutei sob a objetividade entatildeo as avaliaccedilotildees subjetivas e os dados perceptivos da linguiacutestica espontacircnea dos natildeo-linguistas soacute podem ser constituiacutedos de erros refutaacuteveis ou ficccedilotildees linguiacutesticas Para passar rapidamente pela questatildeo73 e tomando de empreacutestimo da filosofia do espiacuterito os termos de seu debate sobre os estados mentais existe do ponto de vista da linguiacutestica espontacircnea uma posiccedilatildeo ldquoeliminativistardquo que contesta as realidades construiacutedas por essa linguiacutestica ou que reconhece essa uacuteltima como uma teoria mas falsa Essa eacute a posiccedilatildeo geralmente adotada pelos linguistas ao se defrontarem com as opiniotildees do senso comum sobre a liacutengua (a liacutengua reflete o mundo os burgueses possuem uma linguagem mais rica do que os trabalhadores a subordinaccedilatildeo eacute um iacutendice de elaboraccedilatildeo do pensamento superior ao independente a gramaacutetica da liacutengua oral eacute passiva de erros etc) Essa eacute uma maneira binaacuteria de colocar as coisas linguiacutestica cientiacutefica versus folk linguiacutestica

Todavia existe igualmente uma posiccedilatildeo que chamarei de ldquointegracionistardquo uma vez que ela prefere integrar os dados avaliativos e perceptivos da folk linguiacutestica aos da linguiacutestica cientiacutefica ela postula que as anaacutelise dos natildeo-linguistas natildeo estatildeo muito longe daquelas dos linguistas ou podem agraves vezes forjaacute-las (os inuacutemeros trabalhos norte-americanos em dialetologia social mostram que os locutores percebem as variedades sociodialetais de maneira diferente que os linguistas profissionais o que coloca o problema da natureza do objeto) que as avaliaccedilotildees subjetivas constituem um filtro representacional essencial para compreender o funcionamento da comunicaccedilatildeo e os dados folk constituem o ponto de partida do trabalho

72 NT Linguiacutestica popular - a linguiacutestica ldquofora do templordquo Definiccedilatildeo geografia e dimensotildees Disponiacutevel em httpsperiodicosufscbrindexphpforumarticleview1984-84122019v16n4p4257

73 Sobre esta questatildeo da validade dos dados da folk linguiacutestica consultar Niedzielski (1999) Preston e Niedzielski (2000) Paveau (2007) Achard-Bayle e Paveau (2008)

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do linguista cientiacutefico bem como seu histoacuterico cognitivo74 Trata-se de uma posiccedilatildeo escalar entre dois polos extremos da linguiacutestica cientiacutefica e da folk linguiacutestica existe um continuum no qual as categorias estatildeo em contato e as anaacutelises podem ser mais ou menos cientiacuteficas ou mais ou menos espontacircneas Essa posiccedilatildeo eacute defendida pelos fundadores e praticantes da folk linguistics nos Estados Unidos (NIEDZIELSKI PRESTON 2000) vindos geralmente da dialetologia social (PRESTON 1989 WOLFRAM 1991) as duas correntes sendo derivadas do labovismo em sua primeira forma (LABOV 1966) Essa posiccedilatildeo integracionista eacute a que defendo neste texto O integracionismo natildeo foi desenvolvido na Franccedila onde como jaacute dissemos a reflexatildeo sobre a ldquoquestatildeo folkrdquo praticamente natildeo existe em linguiacutestica

Essa reflexatildeo implica que examinemos o estatuto da percepccedilatildeo e dos dados perceptivos em linguiacutestica o que naturalmente nos obriga a olhar de perto para a espinhosa noccedilatildeo de intuiccedilatildeo dos locutores

22 O estatuto linguiacutestico da percepccedilatildeo e a questatildeo da intuiccedilatildeo

Os primeiros trabalhos de W Labov nos anos 1960 sobre os falares nova-iorquinos estavam fundamentados no meacutetodo dos testes de reaccedilatildeo subjetiva de onde derivam os protocolos das entrevistas colocados em praacutetica a partir dos anos 1990 em dialetologia social e em folk linguiacutestica A questatildeo da subjetividade eacute entatildeo agrave eacutepoca plenamente de direito e totalmente integrada na construccedilatildeo da ciecircncia ldquoobjetivardquo no campo da sociolinguiacutestica norte-americana

221 Percepccedilatildeo e variaccedilatildeo

Os diferentes campos teoacutericos e metodoloacutegicos do variacionismo norte-americano verdadeiramente instalaram a noccedilatildeo de percepccedilatildeo no seu dispositivo teoacuterico e metodoloacutegico e natildeo apresentam nenhum receio em dialogar com disciplinas fora do campo da linguiacutestica como a psicologia social por exemplo Desse modo a dialetologia social e seu componente perceptivo (dialetologia perceptiva) tem mostrado que os julgamentos avaliativos dos locutores os estereoacutetipos que participam de suas representaccedilotildees em particular no domiacutenio do oral (percepccedilatildeo da fala) isto eacute o conjunto das atitudes linguiacutesticas influenciam a percepccedilatildeo das proacuteprias formas da linguagem na sua dimensatildeo mais fiacutesica (sinal fiacutesico) Dessa maneira Nancy Niedzielski defende a ideia que os sujeitos usam informaccedilotildees sociais variadas para identificar os dialetos sociais no seu componente foneacutetico As informaccedilotildees visuais como o movimento dos laacutebios as ldquoinformaccedilotildees de vozrdquo o gecircnero feminino ou masculino ou as informaccedilotildees de segundo plano do dialeto contribuem para a identificaccedilatildeo das variedades

Pesquisas em ambos os campos da sociolinguiacutestica e da psicologia social sugeriram que os estereoacutetipos sobre os grupos sociais dos quais os falantes satildeo membros (ou acreditam que satildeo membros) tecircm uma influecircncia na forma como as suas variedades linguiacutesticas satildeo percebidas [] O objetivo do estudo apresentado foi determinar em que medida os ouvintes usam informaccedilotildees sociais sobre um falante na construccedilatildeo do espaccedilo fonoloacutegico desse falante (NIEDZIELSKI 1999 p 62-63)

74 No campo da filosofia da linguagem sobre a questatildeo semacircntica eacute a posiccedilatildeo defendida por F Recanati em Literal Meaning (RECANATI 2004) contra o ldquoliteralismordquo ele defende um ldquocontextualismordquo que leva em consideraccedilatildeo as ldquorestriccedilotildees psicoloacutegicas popularesrdquo

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J Edwards (1999 p 102) a partir da psicologia social formula de maneira mais geral

A variaccedilatildeo encontrada nos estudos de avaliaccedilatildeo da fala reflete as percepccedilotildees sociais dos falantes de determinadas variedades e natildeo tem nada a acrescentar sobre quaisquer qualidades intriacutensecas ndash loacutegicas ou esteacuteticas ndash da proacutepria linguagem ou dialeto Assim ouvir determinada variedade eacute geralmente considerado um gatilho ou estiacutemulo que evoca atitudes (ou preconceitos ou estereoacutetipos) sobre a comunidade de fala considerada

Compreendemos por conseguinte que eacute a questatildeo da apreensatildeo do objeto que se coloca de maneira crucial sendo os linguistas tanto quanto os outros sujeitos perceptivos de que liacutengua eles falam entatildeo quais variedades satildeo identificadas e sobretudo como satildeo identificadas Na perspectiva norte-americana haacute certamente um lugar atribuiacutedo agrave subjetividade nas elaboraccedilotildees cientiacuteficas que comumente satildeo compreendidas como elaboraccedilotildees objetivas Na Franccedila e nos estudos francoacutefonos as coerccedilotildees objetivistas satildeo ainda mais fortes e essa questatildeo da percepccedilatildeo e mais amplamente da subjetividade eacute pouco abordada especialmente no que concerne agrave sua dimensatildeo social Alguns linguistas nos anos 1970 se preocuparam com essa questatildeo como A Rey (1972 p 8)

[] a recusa em considerar o uso de modo diferente que como objeto fiacutesico observaacutevel e analisaacutevel alheio a qualquer julgamento (da verdade do valor etc) facilmente leva a uma confusatildeo oposta agrave cometida por Vaugelas a teoria (sistema de regras de leis constituiacuteda como modelo de regras objetivas) eacute entatildeo considerada como intervencionismo disfarccedilado e qualquer reconhecimento de uma norma social como defesa do normativismo o que natildeo tem sentido []

Todavia natildeo parece que as respostas foram dadas por trabalhos fortes que integrem a dimensatildeo subjetiva Essa distinccedilatildeo entre uso-objeto e uso-valor orienta de fato profundamente os trabalhos franceses que tanto em linguiacutestica como em outras aacutereas satildeo fortemente enquadrados pelos requisitos disciplinares fazer linguiacutestica com algo diferente do linguiacutestico explicar o social com algo diferente do social natildeo eacute ainda uma postura acadecircmica habitual e bem admitida na Franccedila A distinccedilatildeo objeto versus valores realmente cruza a oposiccedilatildeo entre linguiacutestica e extralinguiacutestica ou como chama F Gadet a oposiccedilatildeo entre interno e externo ldquoSeraacute que apenas o interno explica o interno ou ainda seraacute que correlacionar a fatores mensuraacuteveis ou natildeo de natureza natildeo-linguageira (pelo menos enquanto a linguagem for reconhecida como puramente linguiacutestica) pode questionar o fundamento da variaccedilatildeo explicaacute-lordquo pergunta-se Gadet em um artigobalanccedilo sobre a sociolinguiacutestica na Franccedila (2008 p 4 itaacutelico da autora) Essa eacute sem duacutevida uma das razotildees pelas quais os trabalhos franceses ou francoacutefonos sobre as percepccedilotildees e as atitudes satildeo pouco numerosos e aleacutem disso concentrados sobre domiacutenios muito particulares as imagens da liacutengua em contexto de aprendizagem (por exemplo Fontaine 1983 Ledegen 2000) e em contexto interlinguiacutestico (por exemplo Apotheacuteloz Bysaeth 1981 Atienza (org) 2006) O domiacutenio das marcas sociais dificilmente eacute representado o que eacute talvez um efeito perverso de uma concepccedilatildeo desatada da sociolinguiacutestica defendida por exemplo por F Gadet em nome de uma ldquodialinguiacutesticardquo permitindo

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[] representar a linguagem sem fechaacute-la na alternativa de formalizaccedilatildeo versus exuberacircncia variacional com o objetivo de moldar um objeto reconhecido como conjunto muito complexo de invariacircncia e de variaccedilatildeo que se manifesta na forma do diverso do heterogecircneo do impreciso do hiacutebrido do emergente (mas tambeacutem persistente ao longo do tempo) (GADET 2008 p 5)

A ldquodialinguiacutesticardquo se pretende realmente aberta buscando substituir uma sociolinguiacutestica reduzida ao social E entatildeo o social eacute menos considerado No entanto ele constitui uma dimensatildeo incontestaacutevel e como outros tipos de variaccedilatildeo sua apreensatildeo dificilmente parece possiacutevel sem considerar os exteriores da liacutengua e dos usos inclusive as percepccedilotildees e os valores

O lugar restrito atribuiacutedo agrave noccedilatildeo de percepccedilatildeo nos trabalhos sobre a variaccedilatildeo social no contexto francecircs estaacute sem duacutevida relacionado com o enfraquecimento das reflexotildees engajadas sobre a noccedilatildeo de intuiccedilatildeo (do locutor nativo) ou do sentimento linguiacutestico

222 Percepccedilatildeo e intuiccedilatildeo

A noccedilatildeo de intuiccedilatildeo diretamente relacionada com a de percepccedilatildeo mas sem a recobrir eacute raramente objeto de questionamento e funciona como um impliacutecito ratificado pela comunidade dos linguistas Na Franccedila a noccedilatildeo eacute geralmente justificada e mobilizada em particular na sintaxe ou ainda na semacircntica assim como o seu antocircnimo adjetival contra-intuitivo No entanto tal noccedilatildeo eacute raramente descrita como operador ou ferramenta conceitual para as ciecircncias da linguagem O Glossaire bibliographique des sciences du langage de F Gobert sintomaticamente apresenta apenas uma entrada para Intuiccedilatildeo (um artigo de Jean Dubois sobre a gramaacutetica gerativa na liacutengua francesa em 1969) uma segunda entrada intitulada Intuiccedilatildeo (do locutor nativo) eacute apresentada pela definiccedilatildeo compilada e didaacutetica feita por M Yaguello em seu Catalogue des ideacutees reccedilues sur la langue em 1988 O dicionaacuterio de linguiacutestica de Jean Dubois et al publicado pela Larousse em 2001 define da mesma maneira e em poucas linhas intuiccedilatildeo e sentimento linguiacutestico como a capacidade dos sujeitos de formular julgamentos de aceitabilidade e de gramaticalidade As entradas estatildeo ausentes no Dictionnaire des sciences du langage75 de F Neveu publicado pela A Colin em 2003 Jacqueline Authier e A Meunier sublinham desde 1972 ldquoa pobreza dos conhecimentos linguiacutesticos atuais nesse domiacutenio [da intuiccedilatildeo e do sentimento linguiacutestico]rdquo (p 53)

O filoacutesofo M Devitt propotildee anaacutelises esclarecedoras sobre essa noccedilatildeo que fornecem argumentos em favor da integraccedilatildeo de saberes descrita anteriormente neste texto O autor explica que a definiccedilatildeo corrente de intuiccedilatildeo tal como eacute proposta pela gramaacutetica chomskyana (a Tese Representacional) que pode ser vantajosamente substituiacuteda por uma teoria alternativa ldquoEsta teoria trata as intuiccedilotildees linguiacutesticas como opiniotildees resultantes de investigaccedilatildeo empiacuterica comum consideradas pela teoria da maneira como todas essas opiniotildees satildeordquo (DEVITT 2006 p 485) Quando a intituiccedilatildeo do locutor nativo eacute definida como um conjunto de opiniotildees eacute isso que provoca uma mudanccedila de terreno especialmente se continua M Devitt elas embasam a

75 NT NEVEU F Dicionaacuterio das ciecircncias da linguagem Petroacutepolis Editora Vozes 2008

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intuiccedilatildeo do proacuteprio linguista ldquoEmbora as intuiccedilotildees discutidas provavelmente estejam certas as intuiccedilotildees nas quais a linguiacutestica deveria confiar satildeo aquelas dos proacuteprios linguistas pois esses uacuteltimos satildeo os mais experientesrdquo (p 494) Em uacuteltima instacircncia as intuiccedilotildees frequentemente mobilizadas pelos linguistas satildeo as suas proacuteprias intuiccedilotildees cujo aspecto espontacircneo e ingecircnuo natildeo eacute garantido uma vez que estes profissionais satildeo muito conscientes da teoria linguiacutestica

As intuiccedilotildees de falantes comuns podem parecer mais presentes do que realmente satildeo visto que os linguistas consideram as suas proacuteprias intuiccedilotildees como representativas Sem duacutevida elas muito frequentemente satildeo representativas E onde natildeo satildeo seriam se o orador comum tivesse a vantagem de uma educaccedilatildeo em linguiacutestica (DEVITT 2006 p 496)

A intuiccedilatildeo pode ser compreendida como um conjunto de atitudes Poderiacuteamos concordar com essa proposiccedilatildeo e isso nos levaria a repensar a natureza do objeto da linguiacutestica um objeto certamente subjetivo a liacutengua constituiacuteda por variantes de si mesma essas variantes natildeo sendo identificadas da mesma maneira pelos locutores Estamos longe do fantasma cientiacutefico do objeto homogecircneo ideal nem mesmo heuriacutestico e as riacutegidas distinccedilotildees habituais interno versus externo linguiacutestica versus extralinguiacutestica percepccedilatildeo versus objetivaccedilatildeo e linguistas versus natildeo-linguistas se dissolvem sendo muito mais coerente pensarmos em termos de continuum

23 Quem satildeo os natildeo-linguistas

Dessa perspectiva se coloca a delicada questatildeo da identificaccedilatildeo dos ldquonatildeo-linguistasrdquo como D Preston os designa Quem satildeo esses sujeitos Pode-se colocar num mesmo plano no que se refere ao conhecimento da liacutengua um escritor e um esportista Sim e natildeo aqui minha resposta seraacute mais escalar que binaacuteria Em vez de opor de maneira idealista os linguistas aos natildeo-linguistas me parece mais adequado colocar um continuum com esses dois polos extremos de um lado o linguista profissional isto eacute o especialista em ciecircncias da linguagem enquanto disciplina cientiacutefica e de outro o locutor comum cuja cultura e praacuteticas sociais natildeo incluem conhecimentos especiacuteficos sobre a liacutengua Entre os dois a massa de natildeo-linguistas agraves vezes mais proacutexima dos saberes cientiacuteficos (escritores corretores professores acadecircmicos de outras disciplinas como os historiadores os socioacutelogos citados anteriormente alguns jornalistas) agraves vezes longe desses mesmos saberes adotando atitudes metalinguiacutesticas menos conscientes linguisticamente que os anteriores (humoristas observadores da vida social alguns jornalistas locutores comuns) Para complicar as coisas o linguista profissional tambeacutem pode produzir comentaacuterios espontacircneos que natildeo dependem de sua atividade profissional podendo ser tambeacutem um natildeo-linguista Essa eacute uma questatildeo de posiccedilatildeo discursiva e natildeo de ontologia

Chamaremos pois de natildeo-linguista o locutor que produz discursos metalinguiacutesticos sem se fundamentar na linguiacutestica cientiacutefica Isso natildeo significa que seja desprovido de saberes culturais Proust eacute um natildeo-linguista da mesma maneira que D Debbouze mas suas anaacutelises folk linguiacutesticas de falares sociais natildeo adveacutem dos mesmos quadros culturais e de saberes Um ensaiacutesta como P Daninos por exemplo eacute um natildeo-linguista que tangencia a linguiacutestica

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mencionando diversos trabalhos em ciecircncias da linguagem (sobre o francecircs fundamental por exemplo) Nesse sentido a categoria do natildeo-linguista eacute definida de maneira mais prototiacutepica do que componencial e natildeo se confunde com categorias proacuteximas tais como ldquoorador eruditordquo ou ldquocultordquo

Abordo na sequecircncia os dados perceptivos que permitem postular a categoria do falar das classes dominantes

3 Classes sociais e identidades linguageirasNatildeo estaacute em questatildeo aqui (re)propor um paralelo redutor entre falar e classe social as

variaccedilotildees de estilo dos locutores de acordo com as situaccedilotildees sociais e suas posiccedilotildees nas relaccedilotildees estatildeo no escopo do trabalho Em vez disso trata-se de perguntar se os repertoacuterios estiliacutesticos e discursivos dos locutores natildeo estatildeo sustentados por algumas constantes estaacuteveis que seriam diretamente ligadas agrave classe social entendida como um conjunto de comportamentos de valores e de maneiras de ser que produzem pertencimento e ateacute mesmo atribuiccedilatildeo social

31 Um socioleto impensado o falar das classes dominantes

Uma lista de locutores proposta por A Rey para exemplificar os usos natildeo padratildeo nos mostra jaacute em 1972 que a marcaccedilatildeo foi concebida essencialmente como fazendo parte das classes populares ou do meio operaacuterio

Je ne vais pas au docteur je vais pas au docteur76 e com outro material lexical jrsquovais agrave lrsquopecircq ldquoagrave la pecirccherdquo77 que poderiacuteamos ficar tentados a descartar como agramaticais satildeo compatiacuteveis com os usos sociais do francecircs eles devem portanto pertencer ao sistema de liacutengua senatildeo sua gramaacutetica natildeo produziria todas as frases julgadas aceitaacuteveis pelos ldquofalantes nativosrdquo (a menos que vocecirc admita que o trabalhador de Calais o entregador de jornais normando ou a lojista de Toulouse satildeo menos ldquonativosrdquo do que o professor digamos parisiense e natildeo tem o direito de contribuir para a constituiccedilatildeo do ldquofalante idealrdquo) (REY 1972 p 13)

A questatildeo da marcaccedilatildeo da classe dos falantes natildeo pode ser colocada fora da liacutengua culta inclusive F Gadet lembra que ela eacute definida de forma negativa por exclusatildeo das formas vernaculares sem mencionar um eventual falar das classes dominantes (2003 p 80) Franccediloise Gadet tambeacutem fornece uma lista de exemplos ilustrando ldquoo alto e o baixo na escada socialrdquo incluindo quatro dados relacionados ao uso dos subjuntivos e das inversotildees ldquoNatildeo haacute nome para os exemplos de 13 a 16 explica a pesquisadora talvez isso se decirc por conta do impliacutecito a saber o ldquobom francecircsrdquo ou mesmo para alguns soacute francecircsrdquo (2003 p 10) No entanto na lista o enunciado 14 (eu natildeo gostaria que vocecirc me culpasse por esse erro) me parece bem mais

76 NT Em portuguecircs os dois enunciados satildeo traduzidos da mesma maneira Eu natildeo vou ao meacutedico Optamos por manter o exemplo em francecircs pois somente em liacutengua francesa a diferenccedila entre os dois enunciados fica evidente A primeira frase estaacute mais de acordo com a norma padratildeo de formaccedilatildeo da negaccedilatildeo em francecircs enquanto na segunda haacute supressatildeo do ne que juntamente com o pas formam a negaccedilatildeo

77 NT Algo como a variaccedilatildeo pescaacute para o verbo ldquopescarrdquo na norma padratildeo do portuguecircs

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marcado do que os outros (o 15 por exemplo nosso colaborador ele jaacute deu um passo nesse sentido)78 Marcado ou mais exatamente estigmatizado uma vez que produz o efeito de ridicularizaccedilatildeo tiacutepica dos enunciados ditos ldquoesnobesrdquo

Nancy Niedzielski (1999 p 82) retoma uma interessante hipoacutetese formulada por W Wolfram ldquoUma quarta hipoacutetese eacute baseada em uma proposta na qual Wolfram (1991) avanccedila O pesquisador sugere que quaisquer variantes de linguagem que natildeo sejam estigmatizadas sejam consideradas padratildeordquo Acontece que o falar das classes dominantes eacute amplamente estigmatizado em um corpus folk descrito anteriormente e tambeacutem no humor francecircs para mim Marie-Chantal e Anne-Sophie de la Coquillette (personagem da humorista F Foresti) natildeo falam um francecircs padratildeo D de Villepin e J DrsquoOrmesson tambeacutem natildeo

No entanto como abordar essa marcaccedilatildeo ldquodo melhorrdquo A partir do quadro integracionista proposto anteriormente e tambeacutem com base nos meacutetodos da dialetologia perceptiva escolho abordar as entradas avaliativas e perceptivas

331 Avaliaccedilotildees linguiacutesticas externas do estereoacutetipo agrave caricatura

Designo como avaliaccedilotildees linguiacutesticas externas as avaliaccedilotildees de locutores sem sentimento ou discurso de pertencimento agraves classes dominantes que estigmatizam um falar considerado como pertencente agrave alta burguesia agrave aristocracia da ldquoalta sociedaderdquo etc independentemente do vocabulaacuterio adotado Poderia ser uma avaliaccedilatildeo espontacircnea num discurso de entrevista por exemplo aquela feita por J-M Marconot (1990 p 69) em um bairro de classe meacutedia79 em Nicircmes ldquo[] um ou talvez dois que devem falar assim na ndash na burguesia certamente [] sim eu conheccedilo uma mulher que fala [] ela usa expressotildees que vocecirc acreditaria serem de Lagarde e Michard do seacuteculo XVIrdquo

Encontramos igualmente construccedilotildees ficcionais humoriacutesticas cujo diaacutelogo a seguir eacute um bom exemplo

- Apresento-lhe a senhora minha condessa troveja o Gravos que esquecendo seu traje dolorido recupera seu rosto radiante

- Meu amigo protesta a senhora parece que vocecirc ainda natildeo estudou no seu manual o capiacutetulo de apresentaccedilotildees Senatildeo vocecirc saberia que uma senhora somente deve ser apresentada a um cavalheiro quando a senhora eacute muito jovem e o cavalheiro muito velho

Sua Majestade fica corada

- Viu meu companheiro percebeu Consequentemente tenho a honra de apresentar a vocecirc Comissaacuterio San-Antonio em carne e osso com todos os seus dentes e sua pele de pecircssego

78 NT F Gadet nos exemplos que oferece afirma que em (14) haacute um imperfeito do subjuntivo e em (15) uma interrogaccedilatildeo por inversatildeo complexa GADET F La variation sociale en franccedilais Paris Ophrys 2007 p 16

79 NT A autora usa a sigla HLM para se referir ao bairro Ela significa Habitation agrave Loyer Modereacute Habitaccedilatildeo de Aluguel Moderado Optamos por traduzi-la como classe meacutedia

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Entatildeo voltando-se para mim

- Assim tenho a honra e a vantagem de fazecirc-lo impulsivamente aqui novamente entatildeo a Condessa Troussal de Trousseau amigo Como vocecirc pode perceber natildeo eacute um precircmio para reivindicar mas uma mulher de classe educada em todos os lugares Vocecirc espreitou a reaccedilatildeo da Senhora nesse momento Ah a etiqueta ela natildeo as cola em seus potes de doce eu juro a vocecirc (SAN ANTONIO 1965 p 40-41)80

Trecircs caracteriacutesticas do falar das classes dominantes satildeo propostas por F Dard por meio da personagem Beacuterurier o emprego do subjuntivo jaacute destacado por F Gadet em seus trabalhos a pronuacutencia aberta e aspirada (Mahame no lugar de Madame) e as formas pragmaacuteticas de apresentaccedilatildeo Caracteriacutesticas que podem ser encontradas no Dico francecircs-francecircs de P Vandel especificamente no capiacutetulo intitulado ldquoComo falar igual agrave Neuilly Auteuil Passyrdquo (1993 p 147 e seguintes)

Citaremos igualmente humoristas ou personagens do cinema ou do teatro S Joly (os esquetes ldquoo esnobismordquo e ldquoCanccedilatildeo esnoberdquo em La Cigale et la Joly espetaacuteculo de 1999) F Foresti e a personagem Anne-Sophie de la Coquillette (apresentada no Canal France 2) e ldquoBeacuteardquo (Beacuteatrice de Montmirail) interpretada por V Lemercier em Les Visiteurs 1 (1993)

312 Avaliaccedilotildees linguiacutesticas internas uma atividade metalinguiacutestica constante

Haacute igualmente numerosas avaliaccedilotildees internas sendo a atividade metalinguiacutestica uma das praacuteticas conversacionais das classes dominantes como bem exemplificam as entrevistas de Eacute Mension-Rigau e os corpora internos folk

O estudo de Eacute Mension-Rigau no meu entendimento se apresenta ateacute o momento como o uacutenico levantamento histoacuterico da aristocracia e da grande burguesia que leva em conta dados linguageiros Encontramos em particular nas anaacutelises do ldquoembelezamentordquo das palavras os tons de voz e da praacutetica da conversa fiada dados ineacuteditos e preciosos para os propoacutesitos deste texto

Embelezar a fala se traduz na preocupaccedilatildeo de evitar epiacutetetos mordazes palavras contundentes as palavras duras as entonaccedilotildees violentas e pelo respeito agraves conexotildees que datildeo agrave linguagem mais docilidade e maior fluidez Gritar ou rir alto satildeo consideradas atitudes muito vulgares

Nunca levante a voz natildeo importa o que aconteccedila (homem 1934) Ser comum eacute ser barulhento (mulher 1925) (MENSION-RIGAU 1994 p 202)

Em particular o historiador descreve a relaccedilatildeo que os aristocratas tecircm com o falar e sotaque regional informaccedilatildeo essa geralmente ausente nos estudos sobre os falares regionais

80 Beacuterurier protoacutetipo do homem do povo manteacutem relaccedilatildeo com a condessa Troussal du Trousseau a quem apresenta o comissaacuterio San-Antonio

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O sotaque regional reconhecidamente muito raro entre os entrevistados se apresenta menos desvalorizado do que nas famiacutelias pequeno-burguesas uma vez que provavelmente elas satildeo mais riacutegidas porque sentem a sua identidade mais fraacutegil e ldquoameaccediladardquo [] Na linguagem dos entrevistados uma relativa ruralidade agraves vezes ainda persiste de forma discreta (MENSION-RIGAU 1994 p 194)

Essa ruralidade ainda presente atualmente (as famiacutelias da aristocracia tecircm com efeito uma praacutetica de falares locais em particular o dialeto local francecircs chamado patois) eacute muito bem relatada em Le cocircteacute de Guermantes por Proust descrevendo as maneiras de falar da Senhora de Villeparisis

Senhor eu acho que vocecirc quer escrever algo sobre a Duquesa de Montmorency disse a Sra de Villeparisis ao historiador da Fronde com aquele ar rabugento que sem saber sua grande bondade foi recolhida pelos cachos mal-humorados o aborrecimento fisioloacutegico da velhice bem como a tarefa de imitar o tom quase camponecircs da velha aristocracia Eu vou te mostrar o retrato dele o original da coacutepia que estaacute no Louvre (PROUST 1954 [1920] p 240)

O pesquisador Eacute Mension-Rigau (1994 p 195)81 analisa esse fenocircmeno como ldquouma maneira mais ou menos inconsciente de exprimir seu apego ao passado sendo o conservadorismo linguiacutestico projetado como um reflexo do conservadorismo poliacutetico e socialrdquo

Essa consciecircncia metalinguiacutestica eacute encontrada tambeacutem em outros documentos do corpus folk os manuais de etiqueta da aristocracia apresentam muitas prescriccedilotildees e proibiccedilotildees foneacuteticas prosoacutedicas lexicais sintaacuteticas e pragmaacuteticas Marie-Chantal de J Chazot ornamenta seu discurso com marcas linguiacutesticas os ensaios mundanos colocam em cena personagens que sempre realizam atividades metalinguiacutesticas Trata-se de uma hipoacutetese ainda a ser verificada por meio de entrevistas mais profundas mas parece que a atividade metalinguiacutestica eacute ela proacutepria um aspecto do falar das classes dominantes

32 Alguns aspectos do falar das classes dominantesApresento aqui alguns aspectos do falar das classes dominantes a partir de descriccedilotildees da

linguiacutestica folk e de avaliaccedilotildees perceptivas (para uma descriccedilatildeo completa consultar Paveau 2008 Paveau e Rosier 2008) depois de ter mencionado duas anaacutelises gerais que confirmam a hipoacutetese do falar especiacutefico das classes dominantes

321 Descriccedilotildees globais do socioleto

No capiacutetulo que dedica aos bairros nobres no seu Dico francecircs-francecircs (1993) P Vandel propotildee uma descriccedilatildeo do falar das classes dominantes praticamente em todos os niacuteveis da anaacutelise linguiacutestica Para ele se apresentam marcados os usos relativos ao vocabulaacuterio (chatear para exasperar suar para defecar casebre para castelo os peacutes entre duas coisas para a bunda

81 Os entrevistados pronunciam por exemplo [pikoslash] e natildeo [pikoer] a palavra piqueur designando o criado que cuida do grupo em uma caccedilada

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entre duas cadeiras) a pronuacutencia dos nomes proacuteprios (Broglie La Treacutemoille Schneider e outras armadilhas culturais mundanas) a esteacutetica dos nomes (Marie-Clotilde em vez de Juanita e Pierre-Henri em vez de Robert) as convenccedilotildees pragmaacuteticas (mentiras e polidez) e a sintaxe (negaccedilatildeo completa quarta pessoa uso da condicional) P Daninos apresenta no Snobissimo (1964 p 66-67) uma amostra desses usos de sua ldquoespeleologia socialrdquo propondo o discurso de um ldquoesnobe realrdquo onde encontrariacuteamos dentre outras coisas inversotildees interrogativas marcadas (eu vejo quem estaacute entrando) empregos de giacuterias (a velha duquesa de Uzegraves que grita82) apoios conversacionais (sim vocecirc com certeza conhece vocecirc engraccedilado o que resumindo eu passo para vocecirc o resto vocecirc percebe um pouco) A mesma enumeraccedilatildeo sistemaacutetica eacute encontrada no Dictionnaire du snobisme de P Jullian e em alguns guias de boas maneiras

Contrariamente agrave ideia predominante entre os linguistas ldquoprofissionaisrdquo isto eacute que as classes dominantes finalmente apenas respeitariam o bom uso da liacutengua com uma especificidade reduzida agrave pronuacutencia83 parece todavia de acordo com os folk linguistas que marcas especiacuteficas afetam todo o sistema da liacutengua

322 Pronuacutencia e entonaccedilatildeo

A famosa pronuacutencia esnobe ou burguesa natildeo eacute um mito e eacute possiacutevel escutaacute-la nos bairros nobres ou nos endereccedilos certos para identificar essas formas Essa descriccedilatildeo folk de P Jullian (1992 p 197) corresponde agraves avaliaccedilotildees empiacutericas que um ouvido atento eacute capaz de escutar

A entonaccedilatildeo a voz dos homens eacute agraves vezes abafada ligeiramente anasalada eacute frequentemente as pessoas do Quai dacuteOrsay (exceto o ministro claro) e da Alta Sociedade Protestante ldquoParisrdquo torna-se ldquoPegraverisrdquo arrastando um pouco mas sem excesso caso contraacuterio se tornaria o ldquoPeacuterisrdquo com o ldquorrdquo pronunciado gruturalmente do ldquomenino parisienserdquo Na mulher do mundo a voz se estende desproporcionalmente ldquoadoraacuteaacutevelrdquo ou eacute colocado muito alto no nariz muito longe do natural

Tal avaliaccedilatildeo corresponde tambeacutem agrave descriccedilatildeo foneacutetica proposta por P Leacuteon et al em Les accents des Franccedilais Os trecircs sotaques (ldquovulgarrdquo ldquoesnoberdquo ldquoneutrordquo) satildeo classificados pelos autores segundo as ldquoetiquetas sociaisrdquo (popular aristocraacutetico e alta ou meacutedia burguesia) O sotaque esnobe estaacute presente assim como aquele dos ldquoantigos ricos e nobresrdquo e eacute ilustrado por um registro artificial

Registro ndeg 3

A informante eacute uma atriz Mathilde Casadesus que interpreta o papel de uma esnobe da aristocracia parisiense que estaacute visitando um de seus amigos (registro N deg LDM ndash 4024 Chant do Monde)

Apesar da natureza artificial da gravaccedilatildeo este eacute um documento identificado como uma representaccedilatildeo autecircntica do socioleto da alta burguesia parisiense O aspecto

82 NT Nesse exemplo em francecircs o verbo crier (gritar) eacute substituiacutedo pela giacuteria gueuler

83 No entanto essa interpretaccedilatildeo estaacute sujeita a questionamento como mostra a anaacutelise de A Kroch considerando que o afrouxamento da articulaccedilatildeo eacute a norma e que satildeo os grupos dominantes que o inibem (mencionado por Gadet 2003 p 52)

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caricatural natildeo estaacute aqui qualitativamente mas quantitativamente Eacute o acuacutemulo de certos fenocircmenos que daacute ao excerto seu caraacuteter especial do estilo esnobe (httpaccentsdefrancefreefr)

Os aspectos identificados satildeo os seguintes realizaccedilatildeo extrema da articulaccedilatildeo vocaacutelica e consonacircntica consoantes muito fortes e aspiradas ou ao contraacuterio fracas (o exemplo dado eacute madame que encontramos em Beacuterurier) ldquoO R eacute geralmente desvozeado ele se assemelha a um som rouco como o do jota em espanhol ou do achlaut84 alematildeo de Bachrdquo especificam os autores identificando a descriccedilatildeo balzaquiana ou proustiana do [r] aristocraacutetico As vogais satildeo alongadas (adoraacuteaacuteaacutevel como em P Jullian) ou ao contraacuterio muito breves ldquoo ritmo muito raacutepido ou muito lentordquo os acentos de insistecircncia muito numerosos e sustentados por uma forte ampliaccedilatildeo meloacutedica

323 Leacutexico e niacutevel de liacutengua

Os usos lexicais no falar das classes dominantes apresentam duas caracteriacutesticas bem distintas e reconhecidas nos corpora folk os deslizamentos semacircnticos geralmente eufemismos e empregos de giacuterias ou ditos ldquopopularesrdquo

Os exemplos de palavras com significado codificado proliferam nos ldquobons meios sociaisrdquo em todas as obras dos corpora folk e satildeo destacados por Eacute Mension-Rigau como um aspecto saliente da linguagem dos aristocratas e dos grandes burgueses Entre eles casa por exemplo assim como comenta P Daninos (1964 p 87-88)

Casa por exemplo pode ser depreciativo Um representante que coloca eletrodomeacutesticos em Seine-et-Oise ou em Seine-et-Marne iraacute perguntar ldquoVocecirc estaacute no chaleacuterdquo ou ldquoVocecirc estaacute na cidaderdquo - mas evitaraacute a palavra casa onde se faz sopa

A esse propoacutesito o ouviriacuteamos dizer Vocecirc estaacute na casa

P Vandel (1993) propotildee um mini-dicionaacuterio desses usos linguiacutesticos comunitaacuterios

A segunda caracteriacutestica eacute apresentada tanto nesses ensaios mundanos quanto nas avaliaccedilotildees metalinguiacutesticas dos locutores P Daninos (1964 p 17) descreve assim o falar burguecircs ldquodecaiacutedordquo

Natildeo quero me precipitar em generalizar mas o esnobismo se tornou mais democraacutetico Enquanto que nos graus mais baixos da escala os atrasados tentam desajeitadamente subir acreditando fazer bem e se tornar elegante no topo as pessoas chegam a decair seu vocabulaacuterio pensando fazer bem em se passar pelo povo [] Mas certas locuccedilotildees que na minha juventude teriam classificado seu homem ndash como se diz quando se trata de rebaixamento ndash agora passam completamente despercebidas [] Jaacute falei desse modo proacuteprio de algumas mulheres da alta burguesia de dizer meu homem ao falar sobre seus maridos

84 NT Fonema gutural x (a fricativa velar muda) da liacutengua alematilde

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Meu homem estaacute quase fazendo seus dezoito buracos natildeo eacute ruim Vaacute se alimentar (em Maximrsquos) tambeacutem natildeo eacute ruim quem teria imaginado isso antes da guerra Da mesma forma Tem cara de maluca que haacute trinta anos parecia muito ousada floresce na boca dos mais sagrados

O ldquodecaimento lexicalrdquo natildeo eacute um aspecto puramente linguiacutestico mas um discurso sobre pertencimento social uma vez que um socioleto se utiliza de uma marca de um outro socioleto para se constituir Natildeo eacute somente em relaccedilatildeo ao falar normativo que se marca o falar das classes dominantes mas em relaccedilatildeo ao proacuteprio falar ldquopopularrdquo em uma identificaccedilatildeo dialeacutetica complexa Eacute preciso fazer uma interpretaccedilatildeo que passa pelo imaginaacuterio social como propotildee Eacute Mension-Rigau (1994 p 227)

Na verdade eles usam como contra-referecircncia um vocabulaacuterio parcialmente inventado ndash aquele que ouvem quando vatildeo ao mercado ou em pequenas lojas ndash que eacute apenas uma parte de seu universo exterior Seu discurso alimentado por uma visatildeo simplista da sociedade de certa forma constroacutei um mundo fantaacutestico ou desaparecido confundido com a faixa mais ldquopopularrdquo do povo ndash que tambeacutem era antigamente aquela de seus dependentes ndash dos quais eacute muito faacutecil para eles se destacarem

Eacute digno de nota que o aspecto natildeo eacute simeacutetrico o falar dito ldquopopularrdquo ou os vernaculares do lado dos dominantes ou das classes menos favorecidas natildeo constroem dessa maneira apoios identitaacuterios Eacute um fenocircmeno proacuteprio sustentar a hipoacutetese de um falar das classes dominantes

324 Interaccedilotildees conversacionais

Terminamos essa pequena amostragem pelos aspectos pragmaacuteticos Enquanto a conversacionalizaccedilatildeo analisada por N Fairclough pretende fazer desaparecer as marcas de hierarquia em particular nos apelativos as formas e foacutermulas de polidez satildeo mantidas nos meios aristocraacuteticos e na grande burguesia Os manuais de boas maneiras dos uacuteltimos vinte anos natildeo repercutem mais a conversacionalizaccedilatildeo e suas prescriccedilotildees natildeo podem mais ser assimiladas a um coacutedigo social ldquopadratildeordquo Uma esposa se ldquocategorizarrdquo se endereccedilando ao seu marido com pronomes de tratamento de segunda pessoa ou obrigando os seus filhos a utilizarem esses pronomes com os seus avocircs pode parecer imaturo Natildeo eacute ldquomenos comumrdquo escreveu P Daninos no livro Snobissimo (p 87) Se essa praacutetica eacute rarefeita ela existe ainda como evidenciam certas entrevistas de Eacute Mension-Rigau e minhas proacuteprias observaccedilotildees pessoais Da mesma forma a menccedilatildeo dos apelativos tiacutetulos e funccedilotildees agora aparece como marcaccedilotildees sociais natildeo mais como um modelo universal de polidez

ConclusatildeoNo final desse capiacutetulo gostaria de formular algumas conclusotildees provisoacuterias que satildeo

na verdade proposiccedilotildees para exploraccedilotildees futuras algumas delas discutidas nos capiacutetulos seguintes

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- A assimetria das anaacutelises sobre a questatildeo dos falares sociais O exame da literatura cientiacutefica e folk mostra uma assimetria notaacutevel entre os numerosos comentaacuterios espontacircneos sobre as classes dominantes e a quase inexistecircncia de anaacutelise linguiacutestica cientiacutefica sobre um falar das classes dominantes enquanto o falar dito ldquopopularrdquo eacute objeto de mais anaacutelises cientiacuteficas que de comentaacuterios folk

- O integracionismo As informaccedilotildees provenientes de corpora folk podem ser consideradas na anaacutelise linguiacutestica pois a folk linguiacutestica possui uma validade e pode ser integrada na linguiacutestica cientiacutefica O exame do corpus folk relativo agraves classes dominantes parece sustentar essa proposiccedilatildeo

- A entrada perceptiva na dimensatildeo social da liacutengua em particular a partir das teorias e meacutetodos da dialetologia perceptiva eacute capaz de modificar o olhar dos linguistas sobre seu objeto e por conseguinte o proacuteprio objeto85

85 Agradeccedilo a Franccediloise Gadet que me permitiu enriquecer minha reflexatildeo sobre a questatildeo do socioleto das classes dominantes e tambeacutem por me oferecer preciosas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Parte II

Aplicaccedilotildees e perspectivas

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LINGUIacuteSTICA POPULAR E ENSINO DE LIacuteNGUA CATEGORIAS EM COMUM86

mdash Diga-me Zidore se eacute francecircs por que tem de se preocupar nesse momento mdash Porque pode haver guerra senhorita Beacutecassine

mdash A guerra Com quem

mdash Com todos os Boches e Bochies87

mdash Ah faz Beacutecassine

[] Rapidamente ela sobe ateacute o quarto de Yvonne lembrando que ela tem um atlas sobre a mesa Olha por muito tempo os mapas a tabela de letras do alfabeto natildeo haacute Boches nem Bochie Entretanto Melle Yvonne lhe disse que todos os povos do mundo tecircm seus nomes marcados ali Entatildeo seu rosto se ilumina e ela corre para a sala Patrotildees e trabalhadores domeacutesticos estatildeo reunidos ali muito emocionados ldquoEacute uma guerra diz Bertrand que retorna do vilarejo exibindo o cartaz da mobilizaccedilatildeo Eu parto amanhatilderdquo

mdash Eu Eu vou me alistar grita Zidore

Madame de Grand-Air chora baixinho Sua dor entristece Beacutecassine mas ela a acalma Ela caminha ateacute a patroa e sussurra em seu ouvido ldquoMadame natildeo deve ser tatildeo ruim assim Talvez haja guerra mas como eacute com gente que natildeo existe dificilmente eacute um riscordquo (CAUMERY PINCHON 1915 p 32)

A personagem Beacutecassine nos expocircs aqui brevemente uma teoria popular sobre a referecircncia se as palavras natildeo existem entatildeo tambeacutem natildeo existem as coisas um princiacutepio derivado com toda a inocecircncia sem duacutevida por parte de nossa Bretatilde do naturalismo mais maciccedilo as palavras representam diretamente coisas elas contecircm a substacircncia das coisas

A questatildeo colocada por este tipo de teoria espontacircnea natildeo eacute tanto a da sua verdade mas na perspectiva que adotamos a de sua articulaccedilatildeo com uma teoria desenvolvida cientificamente numa palavra ldquomais eruditardquo ou ldquomenos popularrdquo como quiser 1915 eacute a Grande Guerra eacute claro mas tambeacutem eacute o momento em que a linguiacutestica moderna comeccedila a mostrar que a linguagem natildeo eacute uma nomenclatura e que natildeo haacute relaccedilatildeo direta entre o signo e o referente a palavra catildeo natildeo late e visivelmente na visatildeo de mundo de Beacutecassine a palavra Bochie tambeacutem natildeo

O desenvolvimento da ciecircncia cognitiva e depois da etnometodologia fez emergir esta questatildeo da ciecircncia espontacircnea dos sujeitos questatildeo natural para um campo que lida com o desenvolvimento do conhecimento das percepccedilotildees e das representaccedilotildees dos indiviacuteduos

86 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Linguistique populaire et enseignement de la langue des cateacutegories communes Le Franccedilais aujourdrsquohui 151 Paris AFEF-Armand Colin 2005 p 95-107 Traduccedilatildeo de Samuel Ponsoni (UEMG - Unidade Passos) e Paula Camila Mesti (UNESPARANPOLL)

87 NT No artigo de origem aparece Boches e Bochie satildeo aqui traduzidos como Alematildees e Alemanha respectivamente Cabe esclarecer que Boches se trata de um termo pejorativo para alematildees germacircnicos teutos e todas as outras designaccedilotildees gentiacutelicas desse grupo etnocultural

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Gostariacuteamos de explorar este problema no campo da liacutengua francesa fazendo uma pergunta simples as categorias espontacircneas dos alunos podem ser mobilizadas no ensino da liacutengua ou devem pelo contraacuterio ser desconstruiacutedas para dar lugar a categorias aprendidas

Depois de definir o que se denomina ldquolinguiacutestica popularrdquo e sublinhar seu interesse pelo campo do ensino-aprendizagem da liacutengua tentaremos responder a essa questatildeo atraveacutes de trecircs exemplos de categorias a palavra a flexatildeo verbal e o gecircnero do discurso

A linguiacutestica popularConforme jaacute enunciamos o termo linguiacutestica popular eacute o rastro de uma seacuterie de nomes

anglo-saxotildees baseados em folk (como psicologia folk ou como teoria folk por exemplo) em que folk eacute traduzido para o francecircs e para o portuguecircs como popular espontacircneo ou ingecircnuo Podemos falar tambeacutem de linguiacutestica de senso comum e igualmente a expressatildeo linguiacutestica de leigos cuja sinalizaccedilatildeo de L Rosier (2004 p 70) aponta para um sem-nuacutemero de casos na internet ldquoPodemos [] acrescentar o que chamamos de lsquoLinguiacutestica dos leigosrsquo particularmente visiacutevel na Internet em particular no contexto dos foacuteruns de discussatildeo []rdquo

Chamamos portanto de ldquopopularrdquo o saber espontacircneo de atores sobre o mundo (depositado em proveacuterbios ou ditados por exemplo) que se distingue do saber acadecircmico ou cientiacutefico como um saber-fazer que diferencia saber cientiacutefico do ldquosaber querdquo e do senso comum Este saber espontacircneo eacute constituiacutedo por saberes empiacutericos natildeo passiacuteveis de verificaccedilatildeo loacutegica (o saber espontacircneo natildeo eacute verdadeiro nem falso falamos entatildeo de ldquoconhecimento aproximativordquo) e de crenccedilas que constituem guias para accedilatildeo as lendas urbanas ou as influecircncias da lua no crescimento das plantas satildeo crenccedilas que surgem do saber espontacircneo

As praacuteticas linguiacutesticas espontacircneasDevemos falar aqui de praacuteticas linguiacutesticas e natildeo linguageiras o termo linguiacutestica indica

que haacute uma atividade reflexiva que pode levar a resultados ldquocientiacuteficosrdquo que advecircm da ciecircncia espontacircnea enquanto linguageiro simplesmente descreve os usos que os falantes fazem da liacutengua

A terminologia linguiacutestica integrou a distinccedilatildeo feita por A Culioli entre epilinguiacutestica que designa o saber espontacircneo e inconsciente sobre a liacutengua (ldquoatividade linguiacutestica inconscienterdquo nas palavras de A Culioli) de falantes e metalinguiacutestica que designa praacuteticas reflexivas conscientes e bastante racionalizadas ldquoO verdadeiro saber linguiacutestico eacute metalinguiacutestico ou seja representado construiacutedo e manipulado como tal com a ajuda de uma metalinguagemrdquo (AUROUX 1995 p 10) No entanto devemos distinguir no campo metalinguiacutestico o que vem de uma atividade espontacircnea natildeo especializada e natildeo formalizada sobre a liacutengua daquilo que vem da construccedilatildeo de um discurso cientiacutefico sobre a liacutengua J Rey-Debove (1978 p 22) propotildee falar de ldquometalinguagem atualrdquo para o primeiro caso e de ldquometalinguagem cientiacuteficadidaacuteticardquo para o segundo

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No modo didaacutetico-cientiacutefico a metalinguagem corresponde ao discurso do linguista (linguiacutestica) e agravequilo que ele aprende ensina de uma liacutengua ou se acha interessado nela como especialista Eacute natural ou parcialmente formalizado ou simbolizado ou mesmo totalmente axiomatizado e formalizado Jaacute o modo atual corresponde ao discurso do usuaacuterio de uma liacutengua discurso muitas vezes confundido com o enunciado apresentado ao mesmo tempo de uma consciecircncia metalinguiacutestica inferior em termos de conteuacutedo e expressatildeo e uma maior liberdade uma vez que os enunciados produzidos natildeo pertencem mais ao discurso cientiacutefico sobre a liacutengua

Obtemos assim uma distinccedilatildeo tripartida que aqui manteremos atividade epilinguiacutestica metalinguagem natural e metalinguagem formalizada

Eacute notaacutevel que a linguiacutestica popular seja pouquiacutessimo desenvolvida na Franccedila enquanto na cultura anglo-saxocircnica ela integra totalmente as ldquodisciplinas folkrdquo pertencentes ao campo cientiacutefico O tomo I do livro LrsquoHistoire des ideacutees linguistiques organizado por Sylvain Auroux inicia-se com um capiacutetulo de H E Brekle intitulado ldquoA linguiacutestica popularrdquo (volkslinguistik em alematildeo traduccedilatildeo do inglecircs folk linguistics) Ele explica que em linguiacutestica o saber espontacircneo dos falantes pode ser formulado em termos de naturalidade

De maneira provisoacuteria podemos dizer que o campo da linguiacutestica popular inclui todos os enunciados que podem ser qualificados como expressotildees naturais (ou seja que natildeo vecircm dos representantes da linguiacutestica como disciplina estabelecida) designando ou referindo-se a fenocircmenos linguiacutesticos ou operando no niacutevel da metacomunicaccedilatildeo A isso devem ser adicionados os enunciados em que as qualidades foneacuteticas semacircnticas etc satildeo usadas expliacutecita ou implicitamente como unidades de uma liacutengua para produzir resultados relevantes para a regulamentaccedilatildeo do comportamento social de um indiviacuteduo ou grupo social (BREKLE 1989 p 39)

Em filigranas H E Brekle define aqui dois tipos de praacuteticas linguiacutesticas populares

- descriccedilotildees ou teorizaccedilotildees metalinguiacutesticas por exemplo aquelas relacionadas agrave designaccedilatildeo (chamar um gato de gato ou chamar as coisas pelo que seus nomes sugerem) ou na hierarquia entre o escrito e o oral (contentar-se com palavras palavras verbais as palavras se dissipam falar como um livro) A pequena teoria da referecircncia de Beacutecassine se enquadra nessa categoria

- prescriccedilotildees comportamentais que recaem em um purismo na maioria das vezes sabemos que os ldquoamantes da bela linguagemrdquo tecircm uma lista proibida de palavras feias (adveacuterbios terminados em -mente termos excessivamente teacutecnicos etc) interditas de se usar sob pena de se passar por um vulgarismo da liacutengua Tem-se entatildeo a imagem da norma da liacutengua como predominante88 Trata-se assim dos vereditos sobre a liacutengua ditos vs natildeo ditos isso se diz vs isso natildeo se diz Dessa maneira o purismo entra em uma verdadeira ldquoeconomia das trocas linguiacutesticasrdquo como sublinha L Rosier (2004 p 69)

88 Sobre as imagens dominantes da liacutengua no discurso escolar ver Paveau (1998)

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Ela eacute caracterizada por uma forte axiologizaccedilatildeo performativa (o que se diz o que natildeo se diz) que atende ao bom uso e que pretende respeitar uma economia estrita de trocas linguiacutesticas em que o falante eacute avaliado de acordo com seu domiacutenio da liacutengua sob o acircngulo da riqueza lexical e correccedilatildeo gramatical

Adicionaremos uma terceira categoria da praacutetica linguiacutestica popular as intervenccedilotildees sobre a liacutengua Sabemos que a maioria dos erros dos falantes em particular das crianccedilas natildeo o satildeo realmente em uma oacutetica linguiacutestica O tiacutetulo de uma obra de D Leeman Existem erros em francecircs89 (LEEMAN 1994) eacute emblemaacutetico dessa posiccedilatildeo que segue a tradiccedilatildeo de A Gramaacutetica das Falhas90 de H Frei (1928) nesta perspectiva aller au coiffeur e eacutemotionner91 natildeo satildeo erros mas sim intervenccedilotildees regularizadoras sobre a liacutengua Os falantes racionalizam sua liacutengua a arrumam e a organizam como um ambiente onde a ordem e a harmonia satildeo necessaacuterias

Para recapitular dissemos que a linguiacutestica popular reuacutene trecircs tipos de praacuteticas linguiacutesticas descritivas (descrevemos a atividade da linguagem) normativas (prescrevemos comportamentos linguageiros) e intervencionistas (intervimos nos usos da liacutengua)

A linguiacutestica popular eacute uma linguiacutesticaPodemos dar duas explicaccedilotildees para a ausecircncia virtual da linguiacutestica popular como campo

de pesquisa na Franccedila por um lado a veneraccedilatildeo francesa dos saberes ldquosegurosrdquo (um campo das ditas ciecircncias duras ou exatas) e o desprezo pelos saberes aproximativos (domiacutenios ditos de opiniatildeo comum ou relativizada) herdado das concepccedilotildees platocircnicas e da tradiccedilatildeo cartesiana por outro lado a ocupaccedilatildeo do que poderia ser o campo da linguiacutestica popular pelo estudo dos discursos puristas das manifestaccedilotildees da norma e das consequecircncias psicossociais das concepccedilotildees normativas (por exemplo a inseguranccedila linguiacutestica) fenocircmenos esses considerados na Franccedila como pertencente agrave sociolinguiacutestica Eacute o que J-C Beacco (2004 p 109) coordenador de uma ediccedilatildeo da revista Langages diz sobre a questatildeo das ldquorepresentaccedilotildees metalinguiacutesticas ordinaacuteriasrdquo em relaccedilatildeo aos gecircneros discursivos

[] pode-se examinar a noccedilatildeo de gecircnero discursivo pelo que originalmente eacute uma categorizaccedilatildeo ordinaacuteria intrinsecamente imprecisa mas que pode ser objetivada da comunicaccedilatildeo verbal Como tal eacute baseada em vaacuterios pontos de vista teoacutericos

1) da ldquolinguiacutestica popularrdquo (ou folk linguistics) campo da sociolinguiacutestica gecircnero discursivo eacute uma forma de representaccedilatildeo metalinguiacutestica ordinaacuteria da comunicaccedilatildeo entrando no saber comum []

89 N T o tiacutetulo da obra em liacutengua francesa Les fautes de franccedilais existent-elles

90 NT o tiacutetulo da obra em liacutengua francesa La Grammaire des Faults

91 NT por natildeo encontrar correlatos precisos na liacutengua portuguesa deixamos os exemplos em francecircs Cabe-nos entatildeo explicar que a maneira adequada de se dizer ldquoaller au coiffeurrdquo eacute ldquoaller chez le coiffeurrdquo cuja traduccedilatildeo eacute ldquoir ao cabeleireirordquo No outro exemplo temos ldquoeacutemotionnerrdquo em vez de ldquoenthousiasmerrdquo para o verbo ldquoemocionarrdquo Nesse caso explicamos que natildeo existe a palavra ldquoeacutemotionnerrdquo em francecircs apesar de existirem ldquoeacutemotionrdquo (emoccedilatildeo) e ldquoeacutemotionnelrdquo (emocional) A autora usou um terceiro exemplo ldquoapregraves qursquoil aitrdquo para o qual uma traduccedilatildeo mais adequada parece ser ldquodepois que ele temrdquo

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Nossa posiccedilatildeo eacute outra consideramos que a linguiacutestica popular deve constituir um campo da linguiacutestica porque diz respeito natildeo apenas agraves praacuteticas sociais linguageiras (no sentido da sociolinguiacutestica) mas igualmente aos procedimentos de ensino-aprendizagem de liacutengua (no sentido da didaacutetica de liacutengua e psicolinguiacutestica)92

Na verdade a linguiacutestica popular natildeo deve ser reduzida ao seu componente aproximativo descritivo ou simplesmente luacutedico A questatildeo mais interessante na folk linguistics eacute sua validade como teoria Haacute muitos trabalhos desse tipo em folk psychology (FISETTE POIRIER 2002) o que oferece vaacuterias respostas a essa pergunta O filoacutesofo D Dennett (1990) por exemplo pensa que na maioria das vezes a psicologia popular funciona e tem uma verdade praacutetica E as teorias populares da linguagem L Rosier faz uma proposta interessante a esse respeito em um trabalho que ela denomina de ldquodicionaacuterios de criacuteticas irocircnicasrdquo (os de P Merle por exemplo que apontam tiques de linguagem e de modos)

Esses ldquodicionaacuteriosrdquo tecircm a particularidade de apresentar os tipos sociais por meio de suas especificidades linguiacutesticas realizando reconhecidamente de forma caricatural um dos projetos da anaacutelise do discurso o viacutenculo entre classes sociais e as praacuteticas discursivas Eles se ldquorelacionamrdquo por estigmatizaccedilatildeo fictiacutecia e os termos e as expressotildees devem figurar como citaccedilotildees ou seja ao lecirc-los deve-se dizer a si mesmo eacute assim mesmo que ldquoelesrdquo falam (eles designa os esnobes os jornalistas os poliacuteticos os jovens os velhos os de grande valor de acordo com as subcategorizaccedilotildees sociais explicitadas pelos proacuteprios autores) (ROSIER 2003 p 63-64)

Obviamente pensamos no M Jourdain de Moliegravere em sua prosa ldquosem o saberrdquo e em muitas outras personagens literaacuterias que sem duacutevida se beneficiariam em serem analisadas em sala de aula pelo prisma sociocriacutetico dessa linguiacutestica espontacircnea Eacute portanto a questatildeo da validade da descriccedilatildeo popular que se coloca aqui do ponto de vista de uma anaacutelise do funcionamento social da linguagem

A crianccedila gramaacuteticaMas a linguiacutestica popular tambeacutem eacute e sobretudo de grande interesse no ensino-aprendizagem

da liacutengua mas com outro nome a competecircncia metalinguiacutestica

As atividades metalinguiacutesticas O estudo empiacuterico pioneiro de L Gleitman et al em 1972 mostrou que crianccedilas de dois anos

jaacute apresentam reaccedilotildees metalinguiacutesticas rudimentares satildeo pequenos gramaacuteticos O trabalho sobre o ldquometa-rdquo (comentaacuterios e manipulaccedilotildees metagraacuteficas metagramaticais metalexicais etc) tem sido amplamente desenvolvido nas pesquisas93 A atividade metalinguiacutestica do aluno

92 Eacute uma posiccedilatildeo que concorda entre outras com as de M Yaguello (1981) e de H E Brekle (1989) Mas eacute difiacutecil encontrar ao menos na Franccedila trabalhos que se relacionam diretamente com as praacuteticas linguiacutesticas espontacircneas dos locutores fora do acircmbito da aprendizagem

93 Veja alguns elementos na bibliografia com um lanccedilamento em grupo em 1994-1995 o no 9 da Repegraveres o coloacutequio da DFLM sobre metalinguagens o livro de D Leeman sobre as falhas

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eacute uma atividade de aprendizagem que ocorre na aula o que o faz produzir comentaacuterios sobre liacutengua discurso comunicaccedilatildeo e o faz utilizar procedimentos de classificaccedilatildeo nomenclatura ou argumentaccedilatildeo M Brigaudiot (1994 p 92-93) define o ldquosurpreendente comportamento reflexivordquo de jovens gramaacuteticos da seguinte forma

Definimos atividade metalinguiacutestica como o fato de um aluno se deparar com um problema linguiacutestico de entrar em um questionamento em busca de pistas de fazer provas de verificar Dizer que o problema eacute de ordem linguiacutestica eacute considerar que os objetos sobre os quais se relaciona satildeo de ordem linguiacutestica que se relacionam ao coacutedigo agrave frase ao texto ou ao discurso agrave leitura ao escrever

G Ducancel (1994) mostra que os comentaacuterios metalinguiacutesticos ligados agrave coesatildeo textual bem como aos conhecimentos metaprocessuais surgem a partir do primeiro ciclo escolar em duas formas principais

- as formulaccedilotildees e reformulaccedilotildees ldquosecasrdquo ou seja sem comentaacuterios

- a convocaccedilatildeo de uma metalinguagem para esclarecer analisar fazer comentaacuterios e dar explicaccedilotildees

Poderiacuteamos citar tambeacutem a obra de C Fabre (1990) que no campo da escrita mostrou a importacircncia da atividade metalinguiacutestica a partir do estudo dos rascunhos escolares para ela esse tal procedimento se trata de uma verdadeira entrada na escrita o que natildeo eacute pouca coisa

A partir daiacute pode ser estabelecido um contrato didaacutetico entre o professor e os alunos para a aprendizagem metalinguiacutestica No entanto uma distinccedilatildeo baacutesica deve ser feita entre atividade metalinguiacutestica espontacircnea e atividade metalinguiacutestica ldquosolicitadardquo para aprendizagem (DELAMOTTE-LEGRAND 1995) Em princiacutepio porque na praacutetica seria obviamente muito difiacutecil distinguir entre reflexotildees ldquonaturaisrdquo e ldquoartificiaisrdquo em crianccedilas

O ldquometa-rdquo reservado agraves crianccedilasEntretanto levar em consideraccedilatildeo a competecircncia metalinguiacutestica nas atividades de sala de

aula parece estar confinado ao ensino primaacuterio94 Com efeito natildeo se tem a inspiraccedilatildeo dessas praacuteticas pedagoacutegicas para professores nem as indicaccedilotildees dos programas oficiais do coleacutegio de ensino fundamental e do ensino meacutedio Nos uacuteltimos programas da faculdade apenas o ldquoo domiacutenio impliacutecito da gramaacuteticardquo aparece nas especificaccedilotildees para as praacuteticas linguageiras espontacircneas mas pode-se perguntar se a expressatildeo natildeo se deve mais agrave competecircncia linguiacutestica de um Chomsky do que agrave competecircncia metalinguiacutestica destacada pelo trabalho sobre a reflexividade das atividades linguageiras dos alunos

Sempre abordado no acircmbito da impregnaccedilatildeo das estruturas do francecircs e vinculado a diversas atividades orais e escritas a aprendizagem das ferramentas da liacutengua eacute modesta

94 Embora M Brigaudiot destaque em 1994 que as praacuteticas de ensino relacionadas agraves atividades metalinguiacutesticas das crianccedilas natildeo fazem parte da tradiccedilatildeo das escolas primaacuterias francesas

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no 6o Com base no domiacutenio impliacutecito da gramaacutetica o professor vai esclarecendo ao longo do ano alguns elementos essenciais da metalinguagem gramatical (PROGRAMA DA SEXTA SEacuteRIE 1996 p 18)

Eacute como se a competecircncia metalinguiacutestica pudesse funcionar apenas para a aquisiccedilatildeo e para a aprendizagem mas perdesse a importacircncia para aprendizagens relacionadas ao uso da liacutengua ao uso do discurso e agraves atividades de reflexatildeo criaccedilatildeo de interpretaccedilatildeo de invenccedilatildeo Deixemos o ldquometa-rdquo espontacircneo do ensino fundamental e do ensino meacutedio95 e natildeo falemos da universidade onde a categoria do popular espontacircneo ingecircnuo qualquer que seja o seu nome eacute firmemente convidada a ficar agrave porta da ciecircncia legiacutetima por exemplo qualquer reuniatildeo de respeito sobre o Curso de Linguiacutestica Geral de Saussure passaraacute por uma destruiccedilatildeo adequada da imagem da liacutengua como nomenclatura poreacutem ela eacute massivamente difundida entre os alunos servindo-lhes de saber-fazer para seu comportamento social

Sobre esse ponto a linguiacutestica se priva de ser uma poderosa alavanca para seu ensino e portanto para sua difusatildeo e manutenccedilatildeo nas ciecircncias humanas e sociais E o ensino parece ignorar um importante campo de pesquisa internacional nos uacuteltimos dez anos o das emoccedilotildees A pragmaacutetica as ciecircncias cognitivas em particular a psicologia e a neurologia mas tambeacutem a ergonomia a filosofia as ciecircncias da informaccedilatildeo e da comunicaccedilatildeo enfim todas elas realizaram pesquisas em torno do papel das emoccedilotildees no desenvolvimento e no comportamento do indiviacuteduo A psicologia cognitiva tem sido capaz de mostrar por exemplo em que medida o funcionamento da memoacuteria eacute governado pelas emoccedilotildees o que sem duacutevida tem alguma importacircncia na aquisiccedilatildeo e aprendizagem do francecircs

Algumas categorias suscetiacuteveis a um tratamento da linguiacutestica popular

A palavra uma categoria um pouco imprecisa mas operacional

A definiccedilatildeo da palavra palavra eacute um claacutessico da distinccedilatildeo entre o saber erudito e o saber popular em linguiacutestica Muito abrangente muito vaga polissecircmica e incapaz de distinguir certas segmentaccedilotildees palavra eacute geralmente proscrita por linguistas em favor de uma unidade lexical ou de acordo com o contexto de um vocaacutebulo considerado mais claro e monossecircmico Mas acontece que palavra eacute a palavra mais oacutebvia para todos os falantes independentemente da idade para designar esta unidade que eacute uma ilha graacutefica e semacircntica e suporte de representaccedilotildees mais difundidas da liacutengua para a maioria das pessoas a liacutengua estaacute associada ao leacutexico (a esse respeito ver Paveau (2000) em trabalho sobre a riqueza lexical) Isso explica porque certos linguistas levando em consideraccedilatildeo as praacuteticas espontacircneas dos falantes ou apegados a uma escrita legiacutevel de sua disciplina usam a palavra o lexicoacutelogo B Habert por exemplo chama palavra em vaacuterias palavras o que outros chamam de unidades fraseoloacutegicas ou locuccedilotildees fixas ou congeladas M Tournier sempre usou palavra no laboratoacuterio lexicomeacutetrico que dirigiu em Saint-Cloud bem como no tiacutetulo da revista que fundou Palavras as linguagens da poliacutetica96

95 NT Consultar o artigo de S Obadia sobre a categoria do registro como antiacutedoto para uma leitura de textos a partir das ldquoprimeiras reaccedilotildeesrdquo dos alunos Disponiacutevel em httpswwwcairninforevue-le-francais-aujourd-hui-2005-4-page-69htm

96 NT Em francecircs Mots les langages du politique Para saber mais sobre essa revista cientiacutefica acesse httpsjournalsopeneditionorgmots Acesso em 27 set 2020

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A terminologia gramatical de 1997 tambeacutem usa este termo na lista de noccedilotildees gerais (palavras e classes de palavras p 7) tal como nos termos sob o tiacutetulo ldquoleacutexico e semacircnticardquo (histoacuteria e construccedilatildeo de palavras famiacutelias de palavras palavras compostas palavras derivadas paacuteginas 29 e 30)

O termo palavra como ferramenta de aprendizagem ou anaacutelise eacute interessante para questionar a relevacircncia das categorias populares e acadecircmicas Os dados satildeo os seguintes

- Apesar de sua imprecisa definiccedilatildeo enfatizada em toda parte o termo palavra eacute amplamente utilizado em programas gramaacuteticas livros didaacuteticos por professores e alunos especialmente nos ensinos primaacuterio e fundamental (niacuteveis para os quais submetemos estudos e pesquisas o que natildeo eacute o caso do ensino meacutedio e menos ainda da universidade)

- A imprecisatildeo da definiccedilatildeo em questatildeo parece ser parcialmente reduzida pela elaboraccedilatildeo de um paradigma recentemente estudado por Sonia Branca e Corinne Gomila (2004) em relaccedilatildeo CP97 o qual fala de ldquometaliacutengua de transiccedilatildeordquo ou ldquotermos de transiccedilatildeordquo pedaccedilos de palavras pequenas palavras pequenas palavras iniciais outras palavras (sinocircnimos) elas indicam a funccedilatildeo de resoluccedilatildeo desses termos em particular pequenas palavras

A categoria abrangente de pequenas palavras permite que vocecirc adie a terminologia abundante para mais tarde Tambeacutem eacute usado para ldquoresolverrdquo outros problemas A unidade prevista pode portanto ser considerada pequena em comparaccedilatildeo com um todo abrangente (BRANCA GOMILA 2004 p 120)

Geralmente elas satildeo entretanto criacuteticas do uso dessa metaliacutengua de transiccedilatildeo agrave qual fazem as criacuteticas tradicionalmente dirigidas agrave categoria da palavra

Nosso ponto de vista natildeo eacute prescritivo De qualquer forma natildeo queremos denunciar a subdeterminaccedilatildeo desses termos em grande parte invisiacuteveis para aqueles que os usam ad hoc No entanto tais termos polissecircmicos encorajam um entendimento global muito vago o que dificulta a estabilizaccedilatildeo de algumas propriedades (BRANCA GOMILA 2004 p 120)

Muitas vezes encontramos a mesma posiccedilatildeo sobre a questatildeo na literatura dedicada agrave palavra e ao seu ensino-aprendizagem no coletivo liderado por M-J Beacuteguelin em 2000 a palavra eacute qualificada como uma noccedilatildeo imprecisa (p 43) poreacutem lemos nas filigranas do capiacutetulo dedicado agrave noccedilatildeo de palavra que ela eacute uma categoria popular devido agrave imprecisatildeo e agrave indeterminaccedilatildeo que carrega mas que eacute usada no ensino o que acaba servindo como soluccedilatildeo para descriccedilotildees difiacuteceis e definiccedilotildees complexas

Eacute uma pena que a eficaacutecia das categorias do senso comum natildeo seja mais profundamente questionada neste trabalho devido a uma abertura sobre a histoacuteria e sobre a epistemologia da ciecircncia Na verdade sabemos que eacute a linguagem do senso comum que permite que os

97 NT CP refere-se a um curso preparatoacuterio dos niacuteveis e das preparaccedilotildees da Eacutecole Eacuteleacutementaire francesa Le cycle 2 ou cycle des apprentissages fondamentaux comprend le cours preacuteparatoire (CP) O ciclo 2 ou ciclo das aprendizagens fundamentais compreende o curso preparatoacuterio (CP) Para saber mais acesse httpswwweducationgouvfrl-ecole-elementaire-9668 Acesso em 27 set 2020

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conhecimentos sejam fixados Sobre isso ainda E Nagel (1961) defende por exemplo a ideia de que a imprecisatildeo da liacutengua do senso comum permite que as crenccedilas persistam (por causa de ou graccedilas agrave dificuldade de controle experimental) quando o destino das teorias eacute morrer precocemente Obviamente natildeo se trata de aplicar este programa ao peacute da letra e sim de medir a eficaacutecia das praacuteticas linguiacutesticas espontacircneas em comparaccedilatildeo com as baseadas em meacutetodos cientiacuteficos

As conjugaccedilotildees fantasiosas erros de liacutengua ou soluccedilatildeo praacuteticaO erro de conjugaccedilatildeo eacute um estereoacutetipo do discurso sobre a liacutengua na Franccedila um reservatoacuterio

inesgotaacutevel de trocadilhos (Cafeacute bouillu cafeacute foutu)98 e um instrumento eficaz de discriminaccedilatildeo cultural99 Essa categoria morfoloacutegica da desinecircncia (ou terminaccedilatildeo em uma traduccedilatildeo mais tradicional e mais ldquoingenuamenterdquo descritiva) constitui-se de uma espeacutecie de lugar normativo que cristaliza a paixatildeo francesa pela liacutengua

Todos noacutes temos nosso repertoacuterio de erros de conjugaccedilatildeo desde os mais infantis (je suitais disse Ceacutesar aos quatro anos il disa disse um aluno citado por D Leeman100) aos mais literaacuterios como mostram M Savelli et al (2002) especificando que um certo nuacutemero de erros de passado simples aparecem entre os melhores autores srsquoenfuyegraverent dissolva couris mouresis eacutetranglis aperceva demandis vivegraverent101 Que essas formas satildeo defeituosas eacute indiscutiacutevel mas o que natildeo se pode fazer eacute uma interpretaccedilatildeo axioloacutegica delas e culpar os falantes por sua ignoracircncia por inferioridade linguiacutestica ou ainda pior por uma inferioridade social e impor as formas ortodoxas sem outra forma de processo

Embora os erros em francecircs existam eles tecircm uma racionalidade que o simples bom senso basta para descobrir do ponto de vista funcional natildeo haacute razatildeo para que se diga nada Entatildeo em je suitais e il disa haacute algo sobre o sistema de conjugaccedilatildeo e principalmente sobre o comportamento linguiacutestico dos desordeiros de conjugaccedilatildeo tratam-se de intervenccedilotildees sobre a liacutengua a terceira das praacuteticas linguiacutesticas populares identificadas alhures destinadas a regularizar um sistema que agraves vezes eacute muito erraacutetico O que se segue eacute muito bem explicado pela analogia com outros verbos frequentemente problemaacuteticos cuja base imperfeita termina em [t] je mens je mentais je pars je partais je suis je suitais102 (CQFD) Quanto a il disa deixemos D Leeman explicar a gecircnese da falha devido a um fenocircmeno de hipercorreccedilatildeo103

98 NT Mais uma vez optamos por usar os exemplos originais em liacutengua francesa porque a traduccedilatildeo natildeo seria suficientemente precisa para exemplificar as situaccedilotildees descritas pela autora Neste caso ldquocafeacute bouillurdquo estaacute sendo usado no lugar de ldquocafeacute bouillirdquo (cafeacute fervido) e ldquocafeacute fouturdquo no lugar de ldquocafeacute fichurdquo (cafeacute maldito) Ressaltamos que esses mesmos fenocircmenos de falha na terminaccedilatildeo de verbos irregulares e hipercorreccedilatildeo podem tambeacutem ser encontrados em liacutengua portuguesa

99 NT ldquoNatildeo diga sobretudo Eles tecircm que me acreditar ou Eles tecircm que me verrdquo (MORHANGE-BEacuteGUEacute 1995 p 12) No original Il faut qursquoils me croivent e Il faut qursquoils me voyent

100 NT Je suitais no lugar de je suis (eu sou) e il disa inveacutes de il dit (ele disse)

101 srsquoenfuyegraverent (je me suis enfui = eu fugi) dissolva (ce dissous = isto dissolveu) couris (jrsquoai couru = eu corri) mouresis (je suis mort = eu morri) eacutetranglis (jrsquoai eacutetrangle = eu estrangulei) aperceva (jrsquoai realize = eu percebi) demandis (jrsquoai demandeacute = eu perguntei) vivegraverent (ils veacutecurent = eles viveram)

102 NT Para que seja possiacutevel a comparaccedilatildeo trazemos aqui a traduccedilatildeo dos pares de verbos je mens (eu minto) je mentais (eu menti) je pars (eu saio) je partais (eu saiacute) je suis (eu sou) je suitais (natildeo existe deveria ser jrsquoeacutetais)

103 A hipercorreccedilatildeo eacute uma ldquobusca de atitude social de prestiacutegiordquo marcada pelo ldquoexcesso na aplicaccedilatildeo de uma regrardquo (GADET 2003 p 125) e que implica por parte do falante que ele estaacute ciente de uma caracteriacutestica de sua liacutengua (frequentemente foneacutetica) percebida de forma positiva socialmente e igualmente percebida em relaccedilatildeo a outras de forma negativa pela comunidade linguiacutestica na qual ele estaacute inserido A hipercorreccedilatildeo eacute entatildeo uma reconstruccedilatildeo defeituosa de uma forma de aparecircncia correta

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A forma il dit eacute comum no presente e no passado simples daiacute o constrangimento que pode suscitar uma histoacuteria como ldquoIl prit son manteau se coiffa drsquoun beacuteret et se preacutecipita vers la porte Avant de sortir il ditrdquo104 O revisor natildeo vai acreditar que estamos usando um presente incorretamente O aluno que escreve il disa pode sentir a necessidade de empregar uma forma claramente marcada para compensar a ambiguidade na liacutengua (LEEMAN-BOUIX 1994 p 125)

Poderiacuteamos multiplicar os exemplos e sua explicaccedilatildeo racional cujas anaacutelises podem ser encontradas em Meleuc e Fauchart (1999) e David e Laborde-Milaa (2002) por exemplo

Lembremos que este tipo de intervenccedilatildeo sobre uma categoria morfoloacutegica aparentemente muito ldquocientiacuteficardquo estabelecida (nada mais semelhante de fato ao conhecimento ldquodurordquo das ciecircncias exatas do que as tabelas de conjugaccedilatildeo105 constitui uma tentativa espontacircnea de regularizaccedilatildeo do sistema o falante entatildeo adota um comportamento linguiacutestico que lhe permite evitar o embaraccedilo psicoloacutegico e o esforccedilo cognitivo da irregularidade e ao mesmo tempo facilita seu registro de memoacuteria porque a memoacuteria semacircntica estaacute aqui diretamente relacionada e essas intervenccedilotildees espontacircneas devem ser consideradas como tentativas de gerenciamento da memoacuteria Por isso levar em consideraccedilatildeo as operaccedilotildees linguiacutesticas espontacircneas dos alunos na aprendizagem de liacutenguas eacute de certo interesse desde que os professores recebam uma formaccedilatildeo adequada ldquoAs anaacutelises [dos dados escritos e orais] e as hipoacuteteses evocadas nas regularizaccedilotildees poderiam servir de reflexatildeo para um ensino no qual seria sem duacutevida necessaacuterio repensar o que eacute regra e o que eacute memoacuteriardquo (SAVELLI et al 2002 p 47)

O gecircnero de discurso uma categorizaccedilatildeo impossiacutevelSabemos que o conceito de gecircnero estaacute muito presente nos uacuteltimos curriacuteculos das

faculdades e do ensino meacutedio e portanto nos livros didaacuteticos e nas atividades de ensino Isso ocorre porque a categoria de gecircnero eacute antiga e haacute muito tempo teorizada e debatida eacute tambeacutem porque as ciecircncias da linguagem se apoderaram da noccedilatildeo haacute cerca de quinze anos produzindo muitas reflexotildees sobre os modos de categorizaccedilatildeo de textos e discursos fenocircmenos cujos rastros podem ser percebidos nos programas que se baseiam na articulaccedilatildeo entre gecircneros de texto e formas de discurso106 Precisamente o gecircnero de texto se refere antes

104 NT Para mantermos os exemplos em francecircs trazemos nessa nota a traduccedilatildeo ldquoPegou o casaco colocou uma boina e correu para a porta Antes de sair ele dissehelliprdquo

105 Serge Meleuc (2002 p 49) oferece uma interpretaccedilatildeo da tabela de conjugaccedilatildeo para a aprendizagem ldquo[] o que eacute apenas uma forma de apresentaccedilatildeo tende a transbordar seu espaccedilo legiacutetimo e a se transformar em uma espeacutecie de modelo obrigatoacuterio da proacutepria praacutetica de ensino-aprendizagem do verbo rdquo

106 Acompanhamento da aula 6 (1996) ldquoA abordagem dos gecircneros textuais estaacute vinculada agraves formas de discurso os gecircneros satildeo realidades histoacutericas e culturais que codificam as praacuteticas discursivas Se a noccedilatildeo eacute complexa e muitas vezes difusa o gecircnero eacute facilmente identificaacutevel pela presenccedila dos dominantes discursivos o romance o conto a novela por exemplo satildeo caracterizados pela narrativa dominante (possivelmente com importantes elementos de descriccedilatildeo) Portanto eacute loacutegico associar os primeiros elementos de seu estudo ao das formas de discurso Natildeo podemos limitar a questatildeo dos gecircneros a dos gecircneros literaacuterios aleacutem desses coacutedigos particulares eles governam toda sorte de tipos de textos A carta eacute um gecircnero literaacuterio mas eacute tambeacutem uma forma de produccedilatildeo textual da vida cotidiana O diaacutelogo eacute um gecircnero ao mesmo tempo literaacuterio e algo que natildeo poderia ser mais banal a cada dia A histoacuteria eacute romacircntica mas tambeacutem eacute notiacutecia do tipo fait-divers etc Os gecircneros satildeo portanto descobertos pelos alunos e analisados a partir de toda sorte de textos de todos os gecircneros antigos e contemporacircneos em conexatildeo com as formas discursivas estudadas Temos portanto a preocupaccedilatildeo durante os estudos universitaacuterios de perceber claramente as semelhanccedilas e diferenccedilas entre os gecircneros em geral e os gecircneros literaacuterios em particular

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agrave categorizaccedilatildeo dos gecircneros literaacuterios (sem se limitar a isso) e forma de discurso se refere ao que a gramaacutetica do texto chamou de tipos ou protoacutetipos (narraccedilatildeo descriccedilatildeo explicaccedilatildeo etc) e ao que Mikhail Bakhtin iniciou em 1929 (em Marxismo e Filosofia da Linguagem) com o nome de gecircnero do discurso Posteriormente esse autor nos mostra em Esteacutetica da Criaccedilatildeo Verbal (1979) que os falantes possuem um repertoacuterio espontacircneo de gecircneros desenvolvidos em interaccedilotildees orais e denominados ldquogecircneros primaacuteriosrdquo ou ldquotipos elementaresrdquo Essas satildeo formas estaacuteveis107 que se reconfiguram e se combinam nos gecircneros de discurso conhecidos como ldquogecircneros secundaacuteriosrdquo ou ldquotipos secundaacuteriosrdquo presentes nas produccedilotildees construiacutedas dos falantes por exemplo em textos escritos em particular os textos literaacuterios

Isso significa que a categorizaccedilatildeo de gecircnero eacute uma atividade espontacircnea que pode ser tratada pela linguiacutestica popular Com efeito a simples observaccedilatildeo das classificaccedilotildees espontacircneas dos falantes verdadeira praacutetica cultural e social mostra que eles participam ativamente das versotildees do mundo construiacutedas pelo discurso Citemos por exemplo os gecircneros de cinema que participam da identidade dos filmes (talvez mais do que o gecircnero do discurso participa da identidade das produccedilotildees verbais) e que ao influenciar a escolha dos espectadores cumprem verdadeiramente uma funccedilatildeo de organizaccedilatildeo de mundo como aponta C Kerbrat-Orecchioni (2003 on-line)

Classificamos os textos mas tambeacutem os filmes (Lyon-Poche admite por exemplo as seguintes categorias ldquocomeacutediardquo ldquocomeacutedia dramaacuteticardquo ldquocomeacutedia de accedilatildeordquo ldquocomeacutedia policialrdquo ldquothrillerrdquo ldquopsicodeacutelicordquo ldquoaventurardquo ldquosuspenserdquo ldquodramardquo ldquodrama psiacutequicordquo ldquoaventurardquo ldquolendardquo ldquocrocircnicardquo ldquoguerrardquo ldquodocumentaacuteriordquo ldquoretratordquo ldquoeroacuteticordquo ldquofantaacutesticordquo ldquoterrorrdquo ldquoficccedilatildeo cientiacuteficardquo ldquocartoonrdquo etc) Poreacutem se a classificaccedilatildeo do gecircnero tem uma vida dura eacute porque deve ter uma certa relevacircncia para os usuaacuterios dessas revistas e devem desempenhar um papel mais ou menos determinante na escolha do filme a que se refere e que estatildeo se preparando para ver

Em conclusatildeo parece-nos portanto razoaacutevel pleitear com vistas a uma efetiva aprendizagem dos gecircneros do discurso (ou gecircneros de textos e formas de discurso de acordo com os programas) uma abordagem relativa ao que J-C Beacco (2004 p 111) denomina uma ldquociecircncia selvagemrdquo da linguagem

Os gecircneros discursivos constituem a forma imediata em que a liacutengua eacute dominada pelos falantes eles satildeo capazes de usaacute-los e identificaacute-los Para os falantes o proacuteprio material discursivo eacute um objeto de referecircncia Essa capacidade de os falantes categorizarem o discurso decorre de uma elaboraccedilatildeo metalinguiacutestica comum da qual os uacutenicos elementos emergentes satildeo os nomes dos gecircneros Todos os nomes de gecircneros natildeo procedem dessa atividade ordinaacuteria de categorizaccedilatildeo mas a noccedilatildeo de gecircnero do discurso parece pertencer a essa atividade classificatoacuteria antes de qualquer classificaccedilatildeo cientiacutefica Dessa ldquociecircncia selvagemrdquo da linguagem a temos como prova de que a noccedilatildeo de gecircnero eacute desenvolvida e ativa desde o alvorecer da reflexatildeo linguiacutestica

107 NT No original ldquoce sont des formes stablesrdquo

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A LIacuteNGUA SEM CLASSES DA GRAMAacuteTICA ESCOLAR108

Sabemos que uma das especificidades da Franccedila na sua relaccedilatildeo com a liacutengua eacute o sentimento de unidade a liacutengua francesa una e indivisiacutevel como a Naccedilatildeo ndash eis uma representaccedilatildeo que parece resistir a todas as misturas a todas as multiculturalidades e a todos os cruzamentos raciais e no niacutevel estritamente linguiacutestico a todas as variaccedilotildees e as mudanccedilas O francecircs padratildeo ou a representaccedilatildeo que dele se constroacutei eacute na verdade a base de todo o ensino do maternal agrave universidade mas tambeacutem da maior parte dos trabalhos dos pesquisadores em linguiacutestica francesa Sozinho - ou mais ou menos sozinho - o campo da sociolinguiacutestica enfrenta a difiacutecil questatildeo da variaccedilatildeo difiacutecil do ponto de vista metodoloacutegico (coleta de dados identificaccedilatildeo das variantes) e do ponto de vista cientiacutefico (como dar conta sinteticamente do funcionamento do sistema da liacutengua a partir de dados heterogecircneos)

Esta representaccedilatildeo unitaacuteria tem obviamente uma funccedilatildeo social importante que natildeo deve ser questionada por razotildees praacuteticas e tambeacutem didaacuteticas sociais e ateacute ideoloacutegicas eacute realmente o francecircs padratildeo que deve ser ensinado na escola Mas seraacute que isso implica que nada deve ser dito sobre a variaccedilatildeo social em particular e que deve ser silenciado o fato de que na liacutengua como em outras situaccedilotildees existem fenocircmenos de classe Que existe um francecircs popular e um francecircs das classes dominantes Que as redes sociais (MILROY 1987 GADET 2007) os grupos e as comunidades que cruzam as classes de maneira complexa sem apagaacute-las tambeacutem se definem por suas formas de falar fortemente marcadas por determinismos sociais

Eacute esta questatildeo da variaccedilatildeo social no sentido mais classista do termo109 que gostaria de abordar aqui comparando as gramaacuteticas escolares com base nos saberes linguiacutesticos chamados ldquoacadecircmicosrdquo e nos saberes da gramaacutetica espontacircnea ou gramaacutetica popular (folk gramar como dizem os anglo-saxotildees) que adveacutem da linguiacutestica popular (folk linguistics) altamente desenvolvida nos Estados Unidos (BREKLE 1989 PRESTON NIEDZIELSKI 2000) mas apenas em sua infacircncia na Franccedila (PAVEAU 2005 2007 2008 PAVEAU ROSIER 2008) que integra totalmente o paracircmetro classista

Para onde foram as classes sociaisNatildeo poderemos deixar de enfatizar o bastante que as categorias adotadas pelas linguiacutesticas

empiacutericas e sociais natildeo satildeo imanentes mas diretamente alimentadas pela histoacuteria das ciecircncias e das ideologias Isso eacute particularmente verdadeiro para o conceito de classe social que foi quase eliminado do discurso das ciecircncias sociais como mostra R Pfefferkorn em um trabalho recente que retoma a noccedilatildeo marxista de relaccedilatildeo social (2007)

108 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A La langue sans classes de la grammaire scolaire Le franccedilais aujourdrsquohui 162 J David M- M Bertucci (org) Descriptions de la langue et enseignement 2008 p 29-40 Traduccedilatildeo de Mocircnica Magalhatildees Cavalcante (UFC) e Maria de Faacutetima Sopas Rocha (UFMA)

109 Eu uso o termo classista no sentido de ldquosocial com estratificaccedilatildeo em classesrdquo

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Classes sem classeNas ciecircncias sociais e consequentemente na sociolinguiacutestica o termo classe foi substituiacutedo

pelos de posiccedilatildeo e rede Em La variation sociale en franccedilais (2ordf ediccedilatildeo 2007) Gadet evita o termo e fala de ldquolocutores favorecidosrdquo e ldquodesfavorecidosrdquo mencionando ldquoo topo e a base da escala socialrdquo e usando o termo posiccedilatildeo social Ela ressalta que a classe (operaacuteria meacutedia alta) como ferramenta de anaacutelise eacute muito formal e redutora e explica que a sociolinguiacutestica em vez disso explora a noccedilatildeo de rede dando o exemplo da ldquorede de trabalhadoresrdquo tal como eacute analisada por exemplo por Milroy (1987) Os sociolinguistas falam sem problema de variaccedilatildeo diastraacutetica110 um termo teacutecnico que desfaz a dimensatildeo ideoloacutegica ou mesmo poliacutetica de classe

Mas ao mesmo tempo o termo classe social persiste e encontramos por exemplo classe trabalhadora classe meacutedia e classe alta na apresentaccedilatildeo do uso do ne (natildeo) de negaccedilatildeo para Gadet (2007) Entatildeo classe ou rede Como observa Pfefferkorn (2007) o desaparecimento da noccedilatildeo pode ter sido mais um escamoteamento ideoloacutegico do que uma necessidade cientiacutefica real e seu retorno aos trabalhos dos jovens socioacutelogos atuais sobre as desigualdades sociais que propotildeem um novo questionamento do aparelho teoacuterico marxista tenderia a provaacute-lo111

Seja como for quer sob a forma de classe de rede de comunidade ou de grupo de pares a estratificaccedilatildeo social da linguagem dificilmente aparece na gramaacutetica escolar o que constitui ao mesmo tempo um fato oacutebvio jaacute que estamos muito acostumados com a unidade legiacutetima do padratildeo e com uma inacreditaacutevel separaccedilatildeo entre a liacutengua aprendida e a liacutengua falada quer seja a dos alunos quer seja a de seus professores112

ldquoRicos e pobres de linguagemrdquoEacute um princiacutepio antigo que a escola natildeo deve ficar ligada agrave vida comum e que a linguagem

da escola natildeo eacute a da experiecircncia ordinaacuteria e natildeo eacute o caso de colocar isso em questatildeo natildeo eu natildeo ensino meus alunos em francecircs falado comum e meus colegas do ensino fundamental ou do ensino meacutedio tambeacutem natildeo Sim as manipulaccedilotildees da linguagem e a aprendizagem lexical e sintaacutetica realizada na escola natildeo tecircm como objetivo ldquoservirrdquo diretamente ao cotidiano mas sim construir uma base de saber linguageiro com a qual o aluno possa jogar no sentido teacutecnico do termo na sua praacutetica da liacutengua A divertida sessatildeo sobre o subjuntivo imperfeito pusse113 do filme Entre les Murs de L Cantet (Palma de Ouro em Cannes em 2008) bem o diz mas o que vocecirc quer que eu faccedila com ldquopusserdquo ndash disse uma aluna em siacutentese vocecirc me vecirc

110 A tipologia usual de variaccedilatildeo em sociolinguiacutestica inclui cinco criteacuterios diacrocircnico (de acordo com a eacutepoca) diastraacutetico (de acordo com as classes ou as redes sociais) diafaacutesico (de acordo com as situaccedilotildees de interlocuccedilatildeo eacute aqui que se situam os niacuteveis de linguagem) diatoacutepico (de acordo com as aacutereas geograacuteficas os dialetos por exemplo) e diameacutesicos (de acordo com a escolha do canal oral ou escrito)

111 Falamos muito em linguiacutestica nas aulas ateacute os anos 1980 por exemplo para Rey (1972) Gardin e Marcellesi (1974) Franccedilois (1983) e para Bourdieu evidentemente cujo artigo laquo Vous avez dit populaire raquo de 1983 publicado recentemente em Langage et pouvoir symbolique eacute frequentemente citado em obras contemporacircneas (2001) Para uma anaacutelise detalhada desta questatildeo e para uma comparaccedilatildeo com o emprego das noccedilotildees de classe de dialeto social ou dialeto de classe na sociolinguiacutestica americana ver Paveau (2008)

112 Os trabalhos e as reflexotildees sobre o ensino-aprendizagem da liacutengua na sua maioria apenas mencionam a liacutengua falada pelos alunos e haacute muito que me pergunto o que seria de seus professores que ao contraacuterio do que pensam os autores dos livros didaacuteticos e dos programas nem todos falam como Voltaire ou mesmo como Duras

113 NT O imperfeito do subjuntivo natildeo eacute mais usado na liacutengua francesa atual eacute defendido apenas pelos puristas que ateacute criam associaccedilotildees de seus defensores

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dizendo para minha matildee ldquoque je pusserdquo Natildeo obviamente pusse seraacute usado para outra coisa por exemplo para se apropriar do sistema da liacutengua

Mas parece-me que se deve fazer algo a respeito dessa questatildeo eminentemente social (classista) na minha casa diz a aluna natildeo soacute natildeo falamos pusse como nunca ouvimos falar estaacute fora da minha experiecircncia Ela eacute desinibida mas natildeo eacute o caso dos entrevistados de Marconot habitantes da ZUP ao norte de Nicircmes

bull bem todos noacutes falamos mal de qualquer maneira [] o verdadeiro francecircs natildeo haacute mais quem o fale hein

bull natildeo eacute uma liacutengua muito rebuscada [] digamos que as pessoas satildeo garotos ndash que vecircm da classe trabalhadora ou de outra bom bem ndash isso

bull o operaacuterio por si mesmo natildeo tem que ndash falar corretamente ah basta que ele se faccedila compreender

bull pessoas de origem muito muito popular [] que falam francecircs como ndash como eu diria ndash bem como como falam os proletaacuterios eh agraves vezes uma linguagem muito pouco trabalhada [] expressotildees grosseiras [] uma linguagem um pouco rude ( MARCONOT 1990 p 69)

Existem portanto ldquopobres e ricos de linguagemrdquo como diz Bentolila (2001 Rapport sur lrsquoillettrisme on-line) em seu leacutexico um tanto espetacular que atende a uma argumentaccedilatildeo a qual natildeo eacute a minha aqui

Os lsquoricos de linguagemrsquo se aviltam linguisticamente sem risco e com a melhor consciecircncia do mundo Mas seraacute que aqueles cujo vocabulaacuterio eacute limitado e impreciso tecircm mesmo um real poder linguiacutestico Natildeo eles satildeo os lsquopobres da linguagemrsquo condenados a se comunicar apenas no imediato e nas proximidades

Mostrarei mais adiante sem muita dificuldade visto que o assunto eacute tatildeo visiacutevel a olho nu que esses dados sociais classistas natildeo aparecem na gramaacutetica escolar nem aliaacutes na maioria das vezes na gramaacutetica universitaacuteria exceto como opccedilatildeo variacionista declarada

A dimensatildeo social em corpus escolar e em corpus popularA situaccedilatildeo sobre a qual eu proponho refletir eacute a seguinte

- nas classes encontram-se misturadas (em um ideal de mistura social) ou reunidas (na realidade das EPZs e dos estabelecimentos de ldquobairros difiacuteceisrdquo) competecircncias linguageiras socialmente desiguais em que se encontram (ou natildeo) ricos e pobres da linguagem burgueses e proletaacuterios do leacutexico priacutencipes e operaacuterios da ortografia

- na gramaacutetica escolar e nos programas que a determinam apenas a norma padratildeo estaacute presente com base em uma liacutengua ldquodesclassificadardquo ldquodessocializadardquo conforme o indica a observaccedilatildeo das gramaacuteticas contemporacircneas do ensino fundamental e do meacutedio ou

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o conteuacutedo dos novos programas de 2008114 Mesmo que os programas incorporem a dimensatildeo enunciativa ou proponham uma gramaacutetica fraacutestica mais tradicional a ausecircncia da variaccedilatildeo social eacute de fato a mesma

Sem questionar mais uma vez a funcionalidade do ensino da norma parece-me importante compreender os desafios e as consequecircncias do ensino de uma liacutengua agraves vezes pouco relacionado agraves praacuteticas correntes dos alunos e refletir sobre a integraccedilatildeo da dimensatildeo social da liacutengua no ensino Essa reflexatildeo tem sido liderada haacute muito tempo pela linguiacutestica popular que pode fornecer aos professores estruturas para construir praacuteticas pedagoacutegicas que incluam a variaccedilatildeo

A linguiacutestica popular corpus e dados115

A linguiacutestica popular eacute uma linguiacutestica praticada por natildeo-linguistas ou seja por locutores que natildeo adotam uma visatildeo cientiacutefica da liacutengua116 As anaacutelises do popular consistem em descriccedilotildees linguiacutesticas profanas (em relaccedilatildeo ao fenocircmeno da designaccedilatildeo e da relaccedilatildeo entre a liacutengua e o mundo agrave hierarquia entre escrito e oral agrave conformidade agraves regras da liacutengua etc) muitas vezes consistem em prescriccedilotildees comportamentais frequentemente normativas ou ateacute puristas (dizer vs natildeo dizer) e em intervenccedilotildees na liacutengua por intermeacutedio de usos defeituosos ou de neologismos que se tornam normas porque oferecem soluccedilotildees para dificuldades linguageiras (por exemplo verbos terminados em ndashtionner) Dentre essas praacuteticas a classificaccedilatildeo social eacute muito presente tipologia das palavras ldquovulgaresrdquo ou ldquoelegantesrdquo proibiccedilotildees lexicais ou sintaacuteticas condenando o ldquopopularrdquo declaraccedilotildees irocircnicas de expressotildees ldquoesnobesrdquo ou pronuacutencias abertas que identificam as classes dominantes

A partir de 1983 em um artigo muito famoso e frequentemente citado ldquoVocecirc disse popularrdquo Bourdieu (2001 p 137) clamava por uma ldquociecircncia rigorosa da sociolinguiacutestica espontacircneardquo que fazia eco aliaacutes agrave ldquoestiliacutestica espontacircneardquo que ele mencionava em Ce que parler veut dire em 1981 Essa sociolinguiacutestica espontacircnea eacute a linguiacutestica popular em suas dimensotildees sociais que se desenvolve em muacuteltiplos lugares de fala em conversas orais espontacircneas eacute claro mas tambeacutem nos muacuteltiplos blogs e foacuteruns sobre a liacutengua francesa (bem como em outras liacutenguas) nos guias de boas maneiras nas obras normativas e puristas sobre o bom francecircs aquelas que vecircm da ldquoalma francesardquo constituindo o conjunto uma verdadeira histoacuteria dos costumes linguageiros franceses

O ponto em comum dos elementos desse corpus eacute que eles oferecem comentaacuterios metalinguiacutesticos que colocam em jogo a subjetividade dos falantes Trecircs categorias de dados subjetivos estatildeo envolvidas as intuiccedilotildees as percepccedilotildees e os sentimentos linguiacutesticos Essas categorias de observaccedilatildeo permitem aos natildeo-linguistas construir observaacuteveis entre os quais escolhi examinar aqui as normas sociais da linguagem (correto vs incorreto) os marcadores

114 O corpus do estudo eacute apresentado no final do capiacutetulo As gramaacuteticas satildeo mencionadas por siglas no texto

115 Como a traduccedilatildeo do termo popular apresenta problemas de polissemia integrei o termo inglecircs ao francecircs e falo a partir de agora de linguiacutestica folk ou de gramaacutetica folk (PAVEAU 2008)

116 Para uma definiccedilatildeo detalhada consulte Brekle (1989) nosso artigo no n 151 de Franccedilais aujourdrsquohui (PAVEAU 2005) e para vaacuterios exemplos de todos os niacuteveis de anaacutelise linguiacutestica ver Paveau e Rosier (2008)

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sociais da linguagem (as categorias ldquopopularrdquo ldquoburguecircsrdquoldquoesnoberdquo etc concernentes agraves ldquoclassesrdquo mas tambeacutem agraves redes sociais ndash jovens comunidades profissionais geograacuteficas sociogeograacuteficas) e enfim as vozessocialmente descritas por acentos timbres e tipos de articulaccedilatildeo O meacutetodo eacute comparativo observo o que o corpus escolar e o que o corpus popular dizem sobre esses trecircs fenocircmenos linguageiros

A norma social a evidecircncia do francecircs padratildeoToda a complexidade e o interesse pela questatildeo da norma linguageira eacute por sua duplicidade

ou seja o conjunto de relaccedilotildees por vezes muito complexas que existem entre a norma social e a norma linguiacutestica Nas gramaacuteticas escolares consultadas natildeo haacute problema deste tipo a questatildeo da norma nunca eacute posta e a norma eacute pro(im)posta sem questionamento sem reflexatildeo sobre o erro e ateacute sem exerciacutecios a partir dos erros ldquoO ensino da gramaacutetica tem por finalidade favorecer a compreensatildeo dos textos lidos e ouvidos melhorar a expressatildeo de forma a garantir a justeza a correccedilatildeo sintaacutetica e ortograacuteficardquo informam os novos programas do ensino fundamental para CE2 e CM (p 14) Sim mas de que correccedilatildeo se trata A variaccedilatildeo social natildeo eacute mencionada e a giacuteria por exemplo que poderia fornecer recursos interessantes para a manipulaccedilatildeo da linguagem estaacute ausente ldquoA escola natildeo questiona o significado que o padratildeo tem para a crianccedila dando por certo que ela deseja adquiri-lo sem dizer por que eacute desejaacutevelrdquo (GADET 2007 p 105)117

Esse aspecto desejaacutevel do padratildeo e do correto por outro lado encontramos jaacute abundantemente descrito no corpus popular falar corretamente eacute desejaacutevel porque eacute falar como os que tecircm poder eacute dominar os coacutedigos sociais e ganhar poder ou conquistar um lugar na sociedade Todos os guias de etiqueta e todas as obras sobre o bom francecircs contecircm esse discurso mesmo que seja prescritivo e por vezes severamente conservador (Le Bon franccedilais de M Druon publicado em 1999 eacute um bom exemplo) O padratildeo eacute motivado por eles Isso pode ser visto por exemplo nestes comentaacuterios sobre o excesso de acentos circunflexos encontrados no site httplangue-frnet (ortografia preservada)

Tirem o chapeacuteu

Eacute o que se chama ldquoerro por hipercorreccedilatildeordquo exagerando vocecirc acrescenta acentos circunflexos onde natildeo deveria

TF1 gosta do circunflexo

- O nobre AmphigouriX (21 Pradaria do ano CCVIII 9 de junho de 2000 dc-dcg)

- Visto em Pernaut-13h [NDEacute telejornal da primeira emissora nacional francesa] uma jovem se preparando para a opccedilatildeo ldquobascardquo no bacharelado seu nome no subtiacutetulo seguido de future bacirccheliegravere Schtroumpf dizia ldquoVocecirc vecirc como as pessoas amam o circunflexo eles o colocam em todo lugarrdquo

117 Natildeo tenho espaccedilo para desenvolver este ponto mas como abordar a multiplicidade de textos literaacuterios franceses muitas vezes perfeitamente canocircnicos que encenam falares populares ou socialmente marcados sem introduzir em um momento ou outro da aprendizagem linguiacutestica a ideia de uma marcaccedilatildeo social da liacutengua

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- Maximilien (9-6-2000) ndash Eacute para ser mais seacuterio E funciona parece mais seacuterio Bem agrave primeira vista jaacute que de fato parece mais negligenciado que outra coisa

- Schtroumpfix (9-6-2000) ndash Bachotage et rabacircchage satildeo os dois seios do futuro bacharelado

- Cleacutement-Noeumll Douady (10-6-2000) ndash Previacuteamos que ela ia perder o bacharelado e entrar em uma faacutebrica de produzir lonas (nova moda boina basca em lona)

Mas o que eacute interessante eacute que o natildeo padratildeo o vernacular ou a giacuteria tambeacutem o satildeo a tradiccedilatildeo purista sempre ambiacutegua abre espaccedilo para a lsquotruculecircnciardquo da giacuteria para o prazer de xingar para o gozo da fala vulgar (PAVEAU ROSIER 2008 cap 8) Trata-se de uma visatildeo de liacutengua obviamente menos cientiacutefica mas muito mais rica a meu ver do que a das gramaacuteticas escolares

O risco imediato dessa constataccedilatildeo eacute alimentar os ensinos subjetivos esteacuteticos e natildeo ldquocientiacuteficosrdquo e ir na direccedilatildeo das propostas governamentais francesas dos uacuteltimos anos que reorientam a aprendizagem de liacutenguas para um normativismo tradicional mais apreciativo do que objetivo (Relatoacuterio de Gramaacutetica de 2006 programa de ensino fundamental 2008 programa de faculdade em consulta 2008) Embora o termo tradicional precise ser ressignificado os velhos Soucheacute e Grunenwald de minha infacircncia ndash para falar o dialeto orsenniano ndash propunha uma coluna de exerciacutecios irregulares intitulada ldquoBom usordquo Tinha por exemplo um exerciacutecio na forma de ldquonatildeo diga vs digardquo sobre o emprego do auxiliar avoir ou ecirctre (1961 p 61) No entanto esta questatildeo eacute estritamente social e histoacuterica como mostra C Blanche-Benveniste em um trabalho intitulado ldquoJrsquoai descendu dans mon jardinrdquo em que descobrimos que Littreacute admitia perfeitamente ldquojrsquoai resteacute un an agrave Grenoblerdquo credenciando assim o francecircs falado conhecido como ldquoerradordquo pelos trabalhadores da faacutebrica da Opel (BLANCHE-BENVENISTE 2003 p 319) Assim a norma mudou e o social influenciou a proacutepria sintaxe tantas vezes apresentada como uma estrutura intangiacutevel Uma excelente oportunidade a meu ver para integrar o diastraacutetico e o diacrocircnico no ensino-aprendizagem do francecircs com todas as adaptaccedilotildees necessaacuterias ao niacutevel dos alunos

A honestidade cientiacutefica nos obriga a tomar posiccedilotildees matizadas e difiacuteceis a questatildeo importante natildeo eacute nem a da riqueza da abordagem nem a do ensino a marcaccedilatildeo social da liacutengua eacute ensinada rigorosamente Acho que sim Impede o aprendizado fundamental do sistema linguiacutestico Acho que natildeo Entatildeo sim ao enriquecimento do repertoacuterio social dos alunos e natildeo ao abandono de criteacuterios racionais para o ensino da liacutengua os uacutenicos garantidores de seu ensino

Os ldquoniacuteveis de linguagemrdquo uma categoria mal definidaSe natildeo encontramos nenhum dado diastraacutetico em nossas gramaacuteticas por outro lado o

niacutevel diafaacutesico estaacute sistematicamente presente na forma de um esquema ou de uma paacutegina intitulada ldquoOs niacuteveis de linguagemrdquo em que a linguagem natildeo eacute realmente definida mas apresentada como relacionada a situaccedilotildees de interaccedilatildeo

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Na NGC no sexto niacutevel trecircs niacuteveis satildeo apresentados com exemplos coloquial boulot corrente travail formal labeur (p 314) A apresentaccedilatildeo eacute seguida de um desenvolvimento proscritivo ldquoComo evitar a linguagem coloquialrdquo em que se aprende que o niacutevel coloquial soacute pode ser usado na oralidade (retorno da velha confusatildeo entre oral e popular) e em que vaacuterias dicas satildeo dadas para aperfeiccediloar seu vocabulaacuterio (p 314 e segs)

- evitando o verlan118 as giacuterias as abreviaccedilotildees

Ufa Vocecirc viu o dinheiro que ele tem Vocecirc eacute louco Vocecirc estaacute ciente de sua fortuna

- evitando supressotildees de siacutelabas repeticcedilotildees

Ele tem uma boa scootrsquo Ele tem uma bela scooter

- usando nous em vez de on

A gente fez uma boa caminhada Demos uma boa caminhada

Atenccedilatildeo

Natildeo empregue nous e a gente na mesma frase Nous on ne bougera pas -gt Nous nous ne bougerons pas

Um pouco mais adiante dicas com exemplos tambeacutem satildeo dadas para ldquoevitar o relaxamentordquo

- A negaccedilatildeo completa e a pontuaccedilatildeo119

Jrsquote raconte pas la beacutecane Je nrsquoose pas te deacutecrire ce scooter

- A pergunta

Daacute para acreditar Vocecirc acredita no que ele estaacute dizendo

- A supressatildeo de verbos vicaacuterios como fazer

Tem que fazer isso de novo Vocecirc quer que eu explique para vocecirc de novo

Por fim explicamos ao aluno como escrever na linguagem formal ldquoA linguagem rebuscadardquo eacute usada na escrita e na oralidade nos textos literaacuterios nos discursos

- O vocabulaacuterio eacute rebuscado e as frases satildeo complexas Eu ignorava que vocecirc tinha adquirido uma motocicleta

- A gramaacutetica eacute sempre respeitada e utiliza certos modos verbais como o subjuntivo Eu deveria ter podido falar com vocecirc sobre isso

Eu natildeo gostaria de cair na facilidade do comentaacuterio irocircnico o leitor apreciaraacute a qualidade das ldquotraduccedilotildeesrdquo de um niacutevel para outro mas natildeo sem antes fazer as seguintes perguntas

118 Verlan eacute um tipo de giacuteria em que se invertem as siacutelabas ou as letras Vem de lacuteenvers que significa o inverso

119 O francecircs faz a negaccedilatildeo com dois elementos ndash ne e pas ndash e a linguagem popular tende a suprimir o ne

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- sobre a definiccedilatildeo de situaccedilatildeo quais satildeo as situaccedilotildees que requerem a substituiccedilatildeo por exemplo de moto por motocicleta Como eles satildeo identificados ou avaliados pelos alunos O paracircmetro social no sentido classista estaacute realmente ausente A quinta GPLE propunha mais ou menos a mesma coisa afirmando ldquoComo a situaccedilatildeo exigerdquo (tiacutetulo da paacutegina) e ldquoDe acordo com a situaccedilatildeo de enunciaccedilatildeordquo (tiacutetulo do paraacutegrafo)

- sobre a classificaccedilatildeo dos niacuteveis para onde passou o niacutevel da giacuteria chamado popularmente de vulgar grosseiro etc Os merde e os bordel e os trou du cul estatildeo fora dos dicionaacuterios Surpreendentemente eacute nos curriacuteculos do ensino fundamental que eles satildeo encontrados ldquoSaber o que eacute um registro de linguagem durante as trocas orais transpor qualquer enunciado espontacircneo de registros familiares giacuterias ou palavras baixas em um enunciado pertencente ao francecircs padratildeordquo (CM1 p 29) Evitadas mas ainda mencionadas as palavras ldquobaixasrdquo

A linguiacutestica popular natildeo tem esses pudores ou esses irrealismos como se gostaria A giacuteria eacute frequentemente analisada em seus corpora e natildeo faltam comentaacuterios sutis sobre os usos Assim P Daninos (1964 p 18-19) em Snobissimo menciona as alternacircncias diafaacutesicas das pessoas comuns

Eacute sem duacutevida nessas partes que a dosagem (vocabulaacuterio aviltado) de que falei alhures ndash do tipo Era divino tinha um daqueles avoacutes aiacute velhinho eacute muito simples o nascimento de Vecircnus pra melhor Acho que aquele desgraccedilado do Rubi ganhou um ingresso com ela engraccedilado ndash eacute o mais saacutebio

E os editores do Le Monde pertencentes agrave brilhante tradiccedilatildeo dos tipoacutegrafos franceses natildeo-linguistas apresentam regularmente anaacutelises de giacuterias presidenciais das quais aqui estaacute um exemplo

Sarkozy ou a loucura dos preguiccedilosos

Como uma estrela vinda de seu firmamento rodeada por seus sateacutelites ministeriais e prefeiturais o presidente da repuacuteblica derreteu na manhatilde do dia 22 de janeiro numa terccedila-feira junto a um grande grupo em Sartrouville natildeo longe de Paris para proferir suas palavras doutrinais Ouvidas estas poucas palavras veiculadas pela imprensa audiovisual durante uma breve interaccedilatildeo com os ldquojovensrdquo presentes no local e bastante maravilhados o seu ldquoplano de subuacuterbiordquo vai dar-lhes a oportunidade de trabalhar e de ter uma formaccedilatildeo ldquoporque a vida natildeo eacute para preguiccedilarrdquo Natildeo comentaremos sobre a sintaxe do presidente nem sobre a penetraccedilatildeo de seu pensamento mas apenas sobre o ldquoglanderrdquo verbo de rara elegacircncia que se tornou decididamente um carro-chefe do vocabulaacuterio governamental

O ldquoglandrdquo eacute antes de tudo o fruto do carvalho natildeo nos esqueccedilamos e esta palavra nos vem do latim glans glandis e muito antes disso de fato os linguistas a relacionavam com a raiz indo-europeacuteia gwele [hellip] O significado atual ldquoesperar em vatildeordquo soacute eacute atestado em 1941 (com forte conotaccedilatildeo sexual como ldquopunhetardquo) e glandouiller outro paradigma

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do verbo governamental dataria de 1938 Deixaremos de lado glandage glandule e glanduleux que existem mas ainda natildeo foram incorporadas ao discurso do Eliseu

Em conclusatildeo diremos que um novo direito do povo estaacute na mira do poder o ldquodireito de vadiarrdquo Mas que os jovens possam sempre responder com soberba ao presidente parafraseando F Mauriac ldquoO verdadeiro glandeur ignora as ofensas dos pequenosrdquo

(httpcorrecteursbloglemondefrcorrectors 24012008)

A mim parece que a gramaacutetica escolar poderia valer-se do fundo da linguiacutestica popular para apresentar uma visatildeo enriquecida da liacutengua notadamente por meio de marcadores sociais

As vozes uma gramaacutetica sem vozEsta observaccedilatildeo tambeacutem diz respeito agraves vozes Por voz entendo natildeo soacute o oral mas

todos os fenocircmenos marcados que o caracterizam acentos sociais timbres e articulaccedilotildees A sociolinguiacutestica acadecircmica leva em conta a oralidade e suas marcaccedilotildees sociais mas basicamente nas constataccedilotildees foneacuteticas

As falhas de ligaccedilatildeo mais comumente percebidas expressas na frase coloquial ldquoligaccedilatildeo incorretardquo satildeo os chamados erros ldquopataquegravesrdquo que conotam um discurso muito pejorativamente Satildeo chamados para os mais recorrentes de couro (fico muito confortaacutevel com isso) e de veludo (eu tambeacutem) (GADET 1989 p 78)

No corpus consultado a gramaacutetica escolar natildeo leva em consideraccedilatildeo o oral o que significa que natildeo compreendemos de forma efetiva ou de forma indireta as vozes do francecircs nos manuais didaacuteticos exceto a voz do professor e a dos alunos Uma uacutenica gramaacutetica a terceira DTP oferece um CD de aacuteudio com o livro do professor que serve para exerciacutecios regularmente propostos no manual Por exemplo

- Ouccedila com atenccedilatildeo esta conversa entre duas amigas Lou acaba de apresentar Julien uma jovem atraente mas vaidosa agrave sua melhor amiga Eacutemerance Usando o estilo indireto e a narrativa de falas relate em apenas algumas linhas o que as duas amigas estatildeo dizendo uma agrave outra Seu texto comeccedilaraacute da seguinte maneira Nesta passagem Lou pergunta a Eacutemerance se (2003 p 108 ao inserir letras em um texto)

- Em uma primeira audiccedilatildeo observe as subordinadas relativas nas passagens que vocecirc ouviraacute Em uma segunda audiccedilatildeo principalmente com a ajuda das pausas especifique quais satildeo os epiacutetetos e quais satildeo os apostos (DTP 3ordf 2003 p 185 sobre a relativa)

- O apresentador da estaccedilatildeo de raacutedio ldquoSOS solituderdquo que vocecirc vai ouvir agraves vezes tem uma maneira um tanto abrupta de falar com seus interlocutores Formule de maneira atenuada seus conselhos ou pedidos usando o condicional ou o imperfeito (DTP 3ordf p 145 sobre os modos e os valores modais)

Embora a questatildeo social natildeo seja colocada os alunos podem ter a oportunidade de atentar para sotaques regionais ou acentos sociais que os familiarizem com a variaccedilatildeo A gramaacutetica

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escolar atualmente em construccedilatildeo propotildee uma concepccedilatildeo bastante teatral do oral preocupada mais com a teacutecnica do que com a marcaccedilatildeo social

Consciente de que o oral deve ser ensinado o professor elabora exerciacutecios variados e progressivos que permitem aos alunos trabalhar a voz os gestos e a ocupaccedilatildeo do espaccedilo Eacute neste contexto que se realizam em particular a recitaccedilatildeo (em articulaccedilatildeo com os textos estudados) a leitura em voz alta a exposiccedilatildeo oral o relato as interaccedilotildees organizadas (Programme de collegravege en consultation 2008 p 7)

No lado popular abundam as notaccedilotildees classistas desde as vozes muito ldquoGuermantesrdquo descritas por Proust aos sotaques populares encenados por Fallet passando pelas excessivas aberturas de Marie-Chantal as vozes seus timbres e suas articulaccedilotildees satildeo frequentemente fixados Dois exemplos

- A proacutepria entonaccedilatildeo diferenciada parece hoje de tom ruim senatildeo ateacute duvidosa Natildeo eacute mais culpa de algumas locutoras de raacutedio cujas palavras parecem salpicadas de strass [] Quanto ao madhacircme que tantas vezes precedia minhas homenagens no tempo em que os a soacute saiacuteam de bocas bem feitas enchapelados com um acento circunflexo tornou-se prerrogativa das damas de companhia ou das companhias aeacutereas (Daninos 1964 p 16)

- Evitar tambeacutem ligaccedilotildees acentuadas demais Agraves vezes ateacute satildeo suprimidas ldquoCommen(t) allez-vousrdquo substituiu ldquoCommen-t-allez-vous rdquo Algueacutem que olhasse para o reloacutegio e dissesse ldquoJe mrsquoen vais il est troi-z et demierdquo seria um pouco ridiacuteculo no mundo e pedante laacute fora

Finalmente uma articulaccedilatildeo clara e uma leve gagueira muito ldquooxonianardquo (natildeo dizer ldquooxfordianardquo) eacute de uso para contar uma anedota ou uma histoacuteria de caccedila (JULLIAN 1992 p 197)

Quando ensinamos em lugares socialmente mistos ou nos chamados bairros difiacuteceis ou mesmo em aacutereas de alta imigraccedilatildeo como na minha Universidade Paris XIII em Villetaneuse soacute conseguimos ouvir um francecircs muito marcado por sotaques diversos para os quais categorias especiacuteficas nem sempre satildeo adequadas o famoso sotaque suburbano acompanhado do discurso de metralhadora eacute ao mesmo tempo social eacutetnico e geracional Os adultos que trabalham em um ambiente profissional o perdem

Que a gramaacutetica do francecircs seja confinada a uma escrita estranha parece-me representar o problema da realidade da liacutengua aqui de natureza social

ConclusatildeoOs materiais fornecidos pela linguiacutestica popular satildeo inestimaacuteveis e agraves vezes exclusivos

com os ldquolinguistas dominicaisrdquo realizando um trabalho em especial sobre as falas de classe que os profissionais nem sempre fazem (para uma apresentaccedilatildeo detalhada desse fenocircmeno ver Paveau e Rosier 2008)

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A abordagem social da liacutengua em sala de aula me parece necessaacuteria por razotildees linguiacutesticas (o francecircs padratildeo natildeo eacute o francecircs) mas tambeacutem por razotildees didaacuteticas (ensinar o padratildeo eacute necessaacuterio mas natildeo o suficiente) e eacuteticas (a escola natildeo precisa mentir sobre a natureza profundamente discriminatoacuteria do poder simboacutelico da linguagem) Tambeacutem eacute uma faca de dois gumes uma vez que se oferece agraves ideologizaccedilotildees do ensino do francecircs que se baseiam em avaliaccedilotildees normativas estiliacutesticas e ateacute pseudorreligiosas (a ldquomissatildeordquo da gramaacutetica amplamente descrita no relatoacuterio de novembro de 2006) Como sempre apenas uma formaccedilatildeo soacutelida de professores incorporando um discurso reflexivo sobre sua proacutepria variedade sem negaccedilatildeo ou desprezo permite manter uma posiccedilatildeo cientificamente rigorosa e pedagogicamente eficaz

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IMAGENS DA LIacuteNGUA NOS DISCURSOS ESCOLARES120

Ao falarmos sobre o discurso escolar tocamos num problema metodoloacutegico importante o que se entende por ldquodiscurso escolarrdquo Identificado restritivamente como discurso da escola e ateacute mesmo agrave custa de uma reduccedilatildeo espacial como discurso na escola o discurso escolar natildeo eacute impedido por si mesmo de se relacionar com aqueles que se encontram fora do espaccedilo escolar ou da instituiccedilatildeo escolar Em outras palavras o discurso na escola natildeo eacute apenas os discursos da escola seria preciso portanto poder compartilhar o que eacute dos pais e da famiacutelia o que depende de paracircmetros sociais e culturais o que se capta no discurso da miacutedia o que emerge de uma crenccedila popular etc E esses proacuteprios discursos interpenetram-se e entrelaccedilam-se formando um universo discursivo que se organiza de maneira diferente de acordo com os tempos as crises e os acontecimentos Falar de imagens de liacutengua em discursos escolares natildeo pode assim ser feito sem levar em conta essa polifonia essencial e a tarefa eacute muito importante para ser realizada no acircmbito de um capiacutetulo

Muitos trabalhos jaacute abordaram isso tanto fora quanto dentro da escola proporemos aqui algumas respostas poreacutem sempre muito ldquomonofocircnicasrdquo reduzindo os discursos escolares aos que satildeo produzidos no acircmbito da escola pelos alunos pelos professores pelos livros e pelos textos oficiais

Das representaccedilotildees complexas muacuteltiplas e impliacutecitasQuestionar as imagens da liacutengua eacute tentar identificar quais satildeo os traccedilos por meio dos quais

cada um traccedila um retrato mais ou menos preciso mais ou menos fixo e mais ou menos ciente de um sistema comum a todos esses traccedilos podem ser funccedilotildees valores ou propriedades Essas imagens satildeo portanto complexas porque deslizam vaacuterios paracircmetros de natureza diferente e muacuteltiplos porque pode haver tantas representaccedilotildees quantos satildeo os sujeitos falantes (ou grupos comunidades etc) na maioria das vezes no entanto eles estatildeo impliacutecitos porque este natildeo eacute nem de conhecimentos nem de saberes objetivaacuteveis mas sim de representaccedilotildees estruturantes Nas situaccedilotildees de ensino de uma disciplina como o francecircs as questotildees tornam-se ainda mais difiacuteceis pois essas representaccedilotildees estatildeo por natureza em constante circulaccedilatildeo

Discurso sobre a liacutengua e reflexividadeDiante da complexidade do fenocircmeno adotamos um meacutetodo indireto reunimos um conjunto

de trabalhos e pesquisas realizadas sobre questotildees de liacutengua na escola e procuramos ver o que elas revelavam em vatildeo e por inferecircncia dessas imagens difiacuteceis de alcanccedilar por um meacutetodo de investigaccedilatildeo direta Isso nos permitiu ampliar o campo de investigaccedilatildeo mas permanecendo dentro do acircmbito das fontes mencionadas anteriormente

120 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Images de la langue dans les discours scolaires Le Franccedilais aujourdrsquohui 125 Images et repreacutesentations de la langue Paris AFEF 1998 p 52-60 Traduccedilatildeo de Fernando Curtti Gibin (UFSCar) e Marco Antonio Almeida Ruiz (USP)

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Em relaccedilatildeo ao estatuto do curso de francecircs natildeo podemos repetir eacute irredutivelmente singular pois a liacutengua eacute reflexiva ldquoum indiviacuteduo seja aprendiz ou natildeo natildeo usa a liacutengua como instrumento de accedilatildeo sobre o mundo Tampouco se comunica por meio de um instrumento que seria essa liacutengua [] Ele pode evocar a realidade no uso de uma liacutengua e expressar seus pensamentos nessa liacutengua []rdquo(DAVID 1997 p 5) Ou seja o aluno natildeo analisa a liacutengua mas sim a sua liacutengua ele natildeo lecirc o texto de um autor que usa a liacutengua mas resolve na sua liacutengua a produccedilatildeo de quem fala a sua liacutengua As imagens da liacutengua estatildeo portanto intimamente relacionadas agraves imagens dos proacuteprios sujeitos

Quatro imagens dominantes emergem com bastante clareza de todo o discurso veiculado no campo escolar hoje (por volta dos anos noventa) Sua apresentaccedilatildeo sucessiva natildeo deve ocultar o fato de que muitas vezes manteacutem relaccedilotildees iacutentimas e que o todo forma em uacuteltima instacircncia uma macroimagem relativamente coerente da liacutengua Tampouco deve sua predominacircncia nos fazer esquecer de que outras imagens embora possam ser minoria ou indetectaacuteveis ainda existem de modo que podem com o tempo tornar-se dominantes

A liacutengua-mundo

Speculum mundi

A antiquiacutessima concepccedilatildeo de espelho da liacutengua do mundo estaacute muito presente nos alunos para os quais a liacutengua eacute usada para dizer o mundo a realidade a verdade das coisas Conforme Eacute Bautier (1995 p 184) ldquoas palavras parecem ter importacircncia apenas na medida em que para o aluno traduzem melhor a sua experiecircncia o que ele quer dizer sobre ela [] A linguagem escrita como a fala eacute lsquofeita pararsquo falar o lsquoverdadeirorsquo o que eacute o que aconteceurdquo Todos os professores de francecircs conseguem identificar essa ldquoposturardquo segundo Eacute Bautier nos vaacuterios exerciacutecios da disciplina nomeadamente na leitura e na produccedilatildeo de textos narrativos Essa aproximaccedilatildeo entre a liacutengua e a realidade entre o textual e o real tambeacutem se realiza na leitura de textos poeacuteticos que natildeo satildeo diretamente referenciais No acircmbito de uma obra sobre ldquopoesia vivardquo uma aluna do segundo ano justifica assim a escolha do poema ldquoMatildeerdquo de J Darras ldquoPorque amo as matildeesrdquo outro descarta um poema de W Cliff sobre a Beacutelgica explicando ldquoEu natildeo sou belgardquo e outro finalmente confessa que ldquoBeacutelgica e batatas fritas isso tem um aspecto pesado e desinteressanterdquo (PAVEAU PEacuteCHEYRAN-HERNU JOUVENCEAU 1997 p 84-85) A mesma postura eacute encontrada no trabalho de argumentaccedilatildeo no segundo e primeiro anos jaacute que os alunos agraves vezes resistem fortemente em defender pontos de vista dos quais natildeo compartilham que natildeo correspondem para eles agrave ldquoverdade das coisasrdquo a uma realidade que seria deles

Transmissatildeo e circularidadeOs professores franceses interessados na questatildeo conhecem bem essa representaccedilatildeo

resultante de um realismo tatildeo antigo quanto contiacutenuo121 Eacute uma questatildeo saliente para os

121 Lembramos que a querela entre nominalismo e realismo (para dizer as coisas rapidamente) eacute uma constante para especialistas da liacutengua da Antiguidade do seacuteculo XVIII Aleacutem disso ao agruparmos a ideia da liacutengua-mundo vemos a sua predominacircncia na linguiacutestica espontacircnea de locutores (Cf por exemplo BREKLE 1989)

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alunos e apresenta dificuldades em todas as aprendizagens relacionadas com a disciplina se a liacutengua natildeo reflete o mundo entatildeo o que eacute um texto um discurso um argumento De que ordem dependem o som a palavra a frase E acima de tudo o que eacute essa ordem mundial repentinamente privada de seu espelho Poreacutem o significado e a durabilidade dessa imagem que eacute obviamente o produto de vaacuterios legados escolares e extracurriculares natildeo satildeo explicitamente (suficientemente) levados em consideraccedilatildeo na forma de uma obra real e de um real questionamento sobre representaccedilotildees sobre o que jaacute se sabe dos alunos na formaccedilatildeo dos professores e no proacuteprio ensino De repente essa imagem persiste quando os alunos entram no Ensino Superior ouve-se por exemplo de alunos do segundo ano de Letras Modernas colocados em situaccedilatildeo de produzir um argumento o mesmo discurso do Ensino Meacutedio122 E quando esses alunos satildeo futuros professores a liacutengua-mundo escapando agraves perguntas ainda se espreita na prova oral de explicaccedilatildeo do texto da CAPES de Letras Modernas os candidatos muitas vezes confundem liacutengua e realidade em suas anaacutelises lexicais123 Dessa forma esta representaccedilatildeo repete-se de forma circular nos diferentes lugares e tempos de ensino e formaccedilatildeo Haacute neste campo das imagens da liacutengua um siacutetio a ser aberto e natildeo apenas em termos de validade cientiacutefica natildeo se trata de substituir com autoridade uma imagem cientificamente invalidada por outra legitimada pelo recurso agraves ciecircncias da linguagem Seria antes uma questatildeo de compreender qual eacute o lugar e a funccedilatildeo da liacutengua-mundo no universo das representaccedilotildees escolares de onde vem a legitimidade que confere a essa imagem uma longevidade tatildeo notaacutevel e sobretudo qual tipo de ensino permite e natildeo permite

A liacutengua-norma

A correccedilatildeo da liacutengua

Se a liacutengua eacute usada para dizer a verdade das coisas para os alunos parece que se deve dizecirc-la especialmente bem para os professores De acordo com os resultados da pesquisa realizada em 1993-1995 por Elalouf Benoit e Tomassone (1997 p 83) entre os futuros professores do segundo ano do IUFM eacute possiacutevel descrever o perfil do

formando-tipo de letras modernas que pode ser considerado a maioria entre os formandos [] Esse perfil eacute caracterizado por opiniotildees tradicionais sobre o ensino da liacutengua Para esses estagiaacuterios ensinar a liacutengua eacute ensinar a norma as expressotildees oral e escrita corretas [] o ensino gramatical eacute usado principalmente para dominar as expressotildees oral e escrita []

A imagem estatisticamente dominante na amostra determinada por essa pesquisa (274 estagiaacuterios dos IUFMs em Rennes Reims e Versailles) eacute portanto a de uma liacutengua padratildeo uma imagem que tambeacutem pode coexistir com a anterior

122 Essa marcaccedilatildeo reflete somente a nossa proacutepria experiecircncia e demandaria uma pesquisa para ser confirmada

123 Um exemplo entre outros sobre ldquoLe leacutezard amouroeuxrdquo [O lagarto apaixonado] de R Char um candidato indica que o poeta utiliza agraves vezes ldquopalavras simplesrdquo ldquopalavras do cotidianordquo dando como exemplo o cambalear [titube em francecircs] Interrogado sobre esses criteacuterios de apreciaccedilatildeo ele afirma que ldquoo cambalear natildeo eacute tatildeo estimado como atitude cambaleamos quando estamos embriagados por exemplordquo (seccedilatildeo 1998)

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A liacutengua restritaAqui novamente natildeo se trata de deplorar ou denunciar as concepccedilotildees tradicionais ou

gramaticais da liacutengua mas de se medirem os riscos do ensino do francecircs e de se compreender melhor o que o aluno pode fazer com a sua liacutengua quando ele recebe um ensino constituiacutedo por essa imagem para isso eacute uacutetil perguntar que padratildeo eacute esse exatamente e apreender o padratildeo escolar em seu funcionamento pedagoacutegico como fazem Founier e Veck (1995 p 53-58) em um artigo sobre ldquonoccedilotildees em francecircsrdquo Eles estudam as anotaccedilotildees das coacutepias dos alunos feitas por seus professores observando os usos imperfeitos sancionados na margem O estudo mostra que a norma escolar eacute especiacutefica na medida em que restringe o uso da liacutengua

[] a avaliaccedilatildeo dos enunciados dos alunos sobre os quais as anotaccedilotildees se referem mostra que na grande maioria dos casos os usos imperfeitos observaacuteveis nas coacutepias dos alunos natildeo constituem em si falhas Logo a escola autoriza apenas uma parte dos usos possiacuteveis A implementaccedilatildeo de noccedilotildees de gramaacutetica em uma praacutetica a avaliaccedilatildeo da escrita escolar conduz agrave constituiccedilatildeo de um padratildeo e nesse caso agrave limitaccedilatildeo dos usos e possiacuteveis efeitos de sentido (ibid p 54)

Essa restriccedilatildeo natildeo diz respeito apenas agraves formas sintaacuteticas mas se estende a todos os usos linguiacutesticos em um estudo sobre o estilo dos alunos Fournier e Allardi (1996 p 38) mostram que ldquoo exerciacutecio de redaccedilatildeo constitui como padratildeo uma categoria de enunciados determinados por criteacuterios mais seletivos do que aceitaacuteveisrdquo Com efeito as produccedilotildees dos alunos sancionadas por foacutermulas como ldquomal escritordquo ldquodesajeitadordquo ou ldquoevitarrdquo satildeo de fato enunciados corretos ao niacutevel linguiacutestico ldquoO padratildeo produzido pela escola surge assim como uma norma reforccedilada em relaccedilatildeo ao que eacute produzido por outras instituiccedilotildeesrdquo (em particular o dicionaacuterio) concluem os autores que acrescentam que nessas condiccedilotildees ldquoo aluno natildeo escreve a sua liacutengua em plena liberdaderdquo (ibidem p 39 ) Uma imagem da liacutengua baseada em padrotildees escolares de correccedilatildeo portanto apresenta problemas que vatildeo aleacutem de simples consideraccedilotildees axioloacutegicas ou esteacuteticas eacute o uso de sua liacutengua pelo aluno que estaacute em causa e ao final sua constituiccedilatildeo como sujeito sua relaccedilatildeo com o mundo e com o outro

A liacutengua invariaacutevelSe a liacutengua-norma eacute uma liacutengua limitada ela eacute tambeacutem fundamentalmente uma liacutengua

invariaacutevel uma ldquomonoliacutenguardquo exclusiva que fala somente de uma uacutenica e boa maneira Essa evidecircncia aparentemente simples eacute de fato como podemos observar problemaacutetica nos aspectos do ensino do francecircs na escola

A escrita a unicidade impliacutecita do modeloA norma escolar impotildee nos trabalhos escritos dos alunos particularmente na composiccedilatildeo

francesa do ensino fundamental uma maneira de escrita uacutenica um conjunto de estilos prototiacutepicos o que implica a rejeiccedilatildeo de outras formas de escrita Ateacute o momento nada que

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natildeo possa se justificar em especial pela necessidade de pedir emprestado para produzir um objeto normatizado no campo escolar (em outros tempos falariacuteamos da formaccedilatildeo discursiva) ou seja a composiccedilatildeo um estilo adequado a esse objeto Todavia a presenccedila dessa norma uacutenica coloca dois problemas importantes em questatildeo analisados por Veck (1996) em seu trabalho sobre as anotaccedilotildees de coacutepias dos alunos Em primeiro lugar segundo o autor a imposiccedilatildeo de um protoacutetipo estiliacutestico uacutenico da composiccedilatildeo parece arbitraacuterio em relaccedilatildeo agrave praacutetica dos alunos apoacutes ter identificado os estilos proibidos ele observa que

[] todas as maneiras de escrita rejeitadas pelo francecircs escolar natildeo satildeo descritas e nem listadas nos manuais os estilos jornaliacutesticos ou ldquoliteraacuteriosrdquo ou ldquocientiacuteficosrdquo satildeo reconhecidos intuitivamente pelo professor mas natildeo satildeo treinados pelos alunos para os distinguir nem para os praticar como conhecimento de causa Eacute porque se trata de uma questatildeo de praacutetica que se coloca a partir da observaccedilatildeo dessas anotaccedilotildees Eacute possiacutevel aprender o estilo dissertativo sem o situar em relaccedilatildeo a outros (VECK 1996 p 46)

Essa situaccedilatildeo natildeo realizada representa para ele um conjunto de bloqueios na evoluccedilatildeo da disciplina ldquoEacute por uma abordagem complexa discursiva realizada tanto por um plano reflexivo quanto para praacuteticas diversificadas que a disciplina poderia sem duacutevidas escapar da acusaccedilatildeo frequente promovida pelo encontro de atividades limitadas e esclerosantesrdquo (ibid p 46)

O oral clareza e distinccedilatildeoAs mesmas exclusotildees se produzem em relaccedilatildeo agraves produccedilotildees orais dos alunos Tomar a

oralidade e a diversidade dos usos eacute de certo modo uma atividade presente nas Instruccedilotildees oficiais recentes contudo a diversidade de usos eacute ainda considerada sobre o acircngulo de niacuteveis de liacutengua e de sua ldquomeacutetrica124rdquo e a norma escolar continua sendo a uacutenica jaacute que se trata para os alunos como um produto de uma fala ldquoaudiacutevel clara ordenada e regularrdquo (MEN 1997 p 8) Ou como afirma E Nonnon a oralidade natildeo eacute nem invariaacutevel nem linear ldquoporque trata de uma organizaccedilatildeo que se elabora passo a passo por aproximaccedilotildees na atividade produzida pela fala no qual noacutes nos corrigimos por ajustes sucessivos e regulamos por modalizaccedilotildees ou reajustes retrospectivos levando em consideraccedilatildeo a participaccedilatildeo de interlocutores para construir um espaccedilo de compreensatildeo comum Essa emergecircncia de significaccedilotildees na atividade conduzida pela enunciaccedilatildeo essa temporalidade sempre prospectiva e retrospectiva de ajustes para outras formas entram em conflito com a linearidade da linguagem em que vai e vem essa repeticcedilatildeo e esses curtos-circuitos que caracterizam a fala espontacircneardquo (NONNON 1996 p 59) Ela acrescenta que em tudo isso haacute dificilmente sentidos do falar da oralidade ao singular (natildeo mais que na escrita) porque ldquonatildeo haacute muacuteltiplas formas de atividade oralrdquo (ibid p 59) ela precisa que essas formas satildeo as vezes proacuteximas de certas atividades escritas que de forma contraacuteria podem apresentar caracteriacutesticas do discurso oral

124 ldquoEssa situaccedilatildeo (oral) qualquer que seja impotildee a cada vez suas proacuteprias normas e implica assim como consequecircncia uma meacutetrica progressiva de niacuteveis da liacutengua As variedades do francecircs mostram que existem diversos lsquobons usosrsquo que convivem e dominam os coacutedigos para participar plenamente da vida socialrdquo (MEN 1997 p 8)

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As variaccedilotildees da liacutengua o caso dos regionalismosldquoFalar a liacutengua do outro de forma livrerdquo como afirmam os escritores Fournier e Allardi eacute para o

aluno ser assegurado de natildeo incorrer em sanccedilotildees (no seio riacutegido da rejeiccedilatildeo natildeo explicitamente justificada) quando ele se inscreve nos usos da liacutengua que natildeo correspondem agrave norma escolar pois elas constituem variaccedilotildees em relaccedilatildeo aos usos legiacutetimos no exterior seria dessa forma promover uma sanccedilatildeo no tema e sobretudo nas operaccedilotildees realizadas para resolver de maneira individual os problemas linguiacutesticos Os trabalhos dos sociolinguistas mostram que dessa maneira eacute principalmente a concepccedilatildeo ldquomonolinguiacutesticardquo invariaacutevel que domina o lado dos professores e da instituiccedilatildeo e que as variaccedilotildees regionais satildeo insuficientemente consideradas porque satildeo desconhecidas Blanchet mostra por exemplo por meio de suas pesquisas sobre os documentos oficiais os manuais escolares e as representaccedilotildees de professores que ldquoa educaccedilatildeo fica majoritariamente normativa (um uacutenico coacutedigo) agraves vezes plurinormativa (vaacuterios coacutedigos) longe de proposiccedilotildees plurinormalistas (usos de vaacuterios coacutedigos) resultado do estudo cientiacutefico dos fatos linguageirosrdquo (FOURNIER ALLARDI 1995 p 49) Essa importante imagem de uma liacutengua invariaacutevel tem por ela mesma graves consequecircncias ldquoeacute uma distorccedilatildeo grave da educaccedilatildeo francesa tanto em relaccedilatildeo ao plano de conteuacutedos errocircneos quanto para a ideologia da exclusatildeo que ele instiga125rdquo (ibid p 49)

A liacutengua-silecircncio

O ldquodiaacutelogo magistralrdquo

Essa expressatildeo aplicada no padratildeo da reparticcedilatildeo da fala em aula por Daunay Marguet e Sauvage (1996 p 102) designa um tipo de troca em curso no qual ldquoa fala do aluno eacute essencialmente a resposta de solicitaccedilotildeesrdquo e tambeacutem satildeo ldquoas uacutenicas que alguns alunos sabem compreender sobre o seu localrdquo Ou seja nessa ldquocomunicaccedilatildeo desigualrdquo os outros permanecem em silecircncio Esse silecircncio dos alunos (trata-se do silecircncio que os impede de falar e natildeo de um silecircncio positivo escolhido pelo escutar e pela troca por exemplo) eacute tambeacutem o indiacutecio de uma imagem da liacutengua Para esses alunos a liacutengua eacute uma liacutengua-silecircncio e eacute composta pela constituiccedilatildeo do tema no campo escolar assim como a noccedilatildeo de aprendizagem na escola que se encontra afetada Eacute um conjunto de diversos professores colocando em discussatildeo dispositivos que lhes permitem passar do diaacutelogo magistral ao diaacutelogo mais curto se o modo da didaacutetica da oralidade eacute de fato largamente aberto o que constata que ldquoo problema das crianccedilas silenciosasrdquo eacute sempre aquele que os professores relevam majoritariamente quando os interroga sobre suas praacuteticas da oralidade (LE CUNFF 1994 p 21 sobre o primaacuterio)

O risco da liacutenguaEssa imagem da liacutengua em que os alunos mergulham representa um silecircncio que eacute bem

descrito por M Rispail (1995) isto eacute que coleta junto dos alunos informaccedilotildees mostrando

125 Para um tratamento mais aprofundado sobre essa questatildeo e para compreender como satildeo constituiacutedas na Franccedila as ldquoideologias diglossicasrdquo (diglossia) consulte Boyer (1990)

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que a imagem da liacutengua-silecircncio eacute parcialmente uma produccedilatildeo de representaccedilotildees nas quais falamos mais alto em particular a liacutengua-norma e a liacutengua invariaacutevel eles dizem por exemplo sobre a impossibilidade de produzir uma fala natildeo preparada e a oralidade descrita no IO do coleacutegio eacute a fala invariavelmente ldquoaudiacutevel clara ordenada regularrdquo que exclui o que D Bucheton (1996 p 6) chama de ldquorascunhos verbaisrdquo eles exprimem tambeacutem o medo da sanccedilatildeo dos professores e dos colegas de sala o medo de natildeo impor a ldquoboa falardquo o que eacute adequado ao campo escolar Eacute preciso para prolongar essa exploraccedilatildeo poder mesurar o degrau da violecircncia desse silecircncio dos alunos violecircncia dirigida contra a instituiccedilatildeo e seus representantes o silecircncio dos alunos pode tambeacutem constituir uma reversatildeo de valores da instituiccedilatildeo escolar lugar da ldquomeacutetrica da liacutenguardquo por excelecircncia Eacute preciso tambeacutem poder compreender o que diz a ldquofala sufocadardquo do sujeito silencioso Frequentemente colocado sobre a conta das famosas lacunas e dificuldades acumuladas ao longo do curso escolar o silecircncio sempre se constitui todavia como um discurso sobre o modo em que o sujeito institui sua autonomia em relaccedilatildeo agrave outra parente colega de classe ou professor Entretanto essa abordagem supotildee o inverso ao sujeito e natildeo como uma ferramenta exterior em que eacute preciso adquirir uma ilusatildeo sobre a ldquomeacutetricardquo

Funcionalidade das imagens da liacutenguaLiacutengua-mundo liacutengua-norma liacutengua invariaacutevel e liacutengua-silecircncio satildeo imagens de liacutengua

dominantes em que noacutes natildeo podemos nos contentar de fazer um uacutenico objeto de contestaccedilatildeo ou um uso simplesmente explicativo Se sua identificaccedilatildeo permite explicar certos passos linguiacutesticos dos alunos e dos professores satildeo levadas em consideraccedilatildeo suas ldquofunccedilotildeesrdquo no campo escolar que promove uma verdadeira reflexatildeo sobre a liacutengua Funccedilatildeo econocircmica da imagem da liacutengua-mundo em que a conservaccedilatildeo salva os custos e em especial o que eacute uma verdadeira questatildeo sobre a reflexividade da linguagem e das modificaccedilotildees que ela implica na abordagem de textos literaacuterios sobretudo funccedilatildeo unificadora tambeacutem porque a representaccedilatildeo da liacutengua como espelho do mundo aparece na doxa da linguiacutestica espontacircnea que une um conjunto e usuaacuterios de uma liacutengua Funccedilatildeo ideoloacutegica das imagens da liacutengua-norma e da liacutengua invariaacutevel de muitas maneiras interdependentes impor o aspecto polido da liacutengua eacute apagaacute-la fazendo com que a instituiccedilatildeo corra o risco de todas as grosseiras Enfim funccedilatildeo de defesa da liacutengua-silecircncio defesa de um sujeito em que o relatoacuterio doloroso em relaccedilatildeo agrave liacutengua diz com abundacircncia a dificuldade de ldquotomar um lugarrdquo

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AS VOZES DO SENSO COMUM NOS DISCURSOS SOBRE A ESCOLA126

Senso comum ldquoManeira de julgar de agir comum a todos os homens (que equivale ao bom senso)rdquo A definiccedilatildeo do Petit Robert eacute uma definiccedilatildeo de senso comum (doravante SC) uma vez que o dicionaacuterio de liacutengua eacute o lugar de registro dos sentidos comumente aceitos por uma sociedade num dado momento de sua histoacuteria Ela eacute circular (comum) analoacutegica (que equivale ao bom senso) extensiva (ausecircncia de estabelecimento de criteacuterios) e perceptivo-comportamental (julgar e agir) Trata-se de uma primeira aproximaccedilatildeo possiacutevel da noccedilatildeo que completaremos ao integrar a dimensatildeo semacircntica do termo senso o SC teraacute para noacutes uma dupla dimensatildeo linguageira e perceptiva

O SC eacute o que podemos chamar de uma noccedilatildeo vaga que escapa agrave verificaccedilatildeo pelo verdadeiro e falso porque apresenta diversos graus de verdade a categoria ldquoSCrdquo integra mais ou menos certos elementos segundo a escala de apreciaccedilatildeo dos locutores sendo que esta uacuteltima se baseia na escala do que eacute comum ou natildeo Por exemplo determinado proveacuterbio bem naturalizado nos usos caberaacute plenamente na categoria enquanto determinada representaccedilatildeo de uma profissatildeo ou de uma nacionalidade seraacute sentida como mais ou menos partilhada Isso ocorre pois o SC eacute tambeacutem uma noccedilatildeo silenciosa fundada sobre o compartilhamento de referecircncias e conveniecircncias no momento seraacute definido de maneira heuriacutestica como um conjunto de percepccedilotildees e produccedilotildees verbais marcadas pelos traccedilos coletivo estabilizado aceito e silencioso

Esse acordo de ldquotodos os homensrdquo como diz o Petit Robert funda a nosso ver a construccedilatildeo e a circulaccedilatildeo do sentido em discurso eacute a condiccedilatildeo de sua eficaacutecia e mesmo de sua existecircncia Eacute como tal que gostariacuteamos de explorar aqui seu funcionamento depois de ter situado o SC no largo paradigma das noccedilotildees que nomeiam as partilhas silenciosas explicaremos por que ele nos parece um conceito central e operacional em anaacutelise do discurso aplicando-o num corpus de ensaios para o grande puacuteblico sobre a escola

1 Pequeno percurso do SC e das noccedilotildees vizinhas

11 Os dois paradigmas

Os fenocircmenos dotados dos traccedilos propostos acima podem ser classificados em dois paradigmas

126 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Les voix du sens commun dans les discours sur lrsquoeacutecole Pratiques 117-118 Metz CRESEF p 29-50 2003 Traduccedilatildeo de Mariana Luz Pessoa de Barros (UFSCar) e Tamires Bonani Conti (UFSCarFAPESP) Este artigo adota as retificaccedilotildees ortograacuteficas propostas pelo Conselho Superior da liacutengua francesa (JO 06121990) inclusive nas citaccedilotildees

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111 O paradigma linguageiro

Reuacutene produccedilotildees verbais como o clichecirc a ideia preconcebida o chavatildeo o lugar-comum o estereoacutetipo o toacutepos (identificaacutevel no plano do enunciado) a forma fixa o proveacuterbio a liacutengua de madeira a ldquofrase feitardquo (identificaacutevel no plano enunciativo)127

Todas essas manifestaccedilotildees estatildeo assentadas numa estabilizaccedilatildeo linguageira mais ou menos completa que permite uma coconstruccedilatildeo eficaz do sentido e uma circulaccedilatildeo faacutecil das produccedilotildees discursivas Natildeo satildeo essas as produccedilotildees que nos interessam aqui a natildeo ser por formas definitivamente estabilizadas e registradas como proveacuterbios o estabelecimento dos criteacuterios de identificaccedilatildeo eacute sempre forccedilado pois as formas fixas o satildeo relativamente agraves eacutepocas aos corpora agraves comunidades ideoloacutegicas culturais Ao localizar os clichecircs os lugares-comuns etc trabalhamos muitas vezes com o desconhecido dessas produccedilotildees e de seus produtores conforme o que eacute determinado pelos referenciais proacuteprios ao pesquisador De fato a forma fixa recortada na mateacuteria do discurso natildeo diz nada sobre seus traccedilos de SC Preferimos ouvir o que os proacuteprios discursos dizem sobre sua relaccedilatildeo com o SC e ver como os locutores constroem sua relaccedilatildeo com o silecircncio das partilhas semacircnticas

112 O paradigma perceptivo-cognitivo

Ao mesmo tempo perceptivo (representaccedilatildeo pelo espiacuterito de objetos exteriores) e cognitivo (construccedilatildeo das crenccedilas e aquisiccedilotildees do saber) esse paradigma engloba numerosas noccedilotildees frequentemente imprecisas algumas vezes concorrentes e variadas quanto a suas origens disciplinares Em suma um labirinto terminoloacutegico e conceitual atraveacutes do qual procuraremos traccedilar uma trajetoacuteria do SC a partir de trecircs espaccedilos disciplinares

A filosofiaA filosofia fala de doxa ou de opiniatildeo comum (CAUQUELIN 1999) de SC (uma ceacutelebre

controveacutersia opotildee Moore e Wittgenstein sobre esse ponto) de crenccedila (JACQUES 1979 DENNETT 1990) de prejulgamento (DASCAL 1999) Detenhamo-nos por um instante sobre as origens filosoacuteficas da doxa e do senso comum noccedilotildees salientes na disciplina Doxa palavra grega eacute estabelecida como noccedilatildeo por Platatildeo particularmente em A Repuacuteblica Existe uma excelente arqueologia do termo e da noccedilatildeo em Cauquelin (1999) A autora lembra a composiccedilatildeo das duas ldquotriacuteadesrdquo platocircnicas

- a triacuteade superior do Belo (fundando a esteacutetica) do Bem (fundando a eacutetica) e do Verdadeiro (fundando a loacutegica) formulada pelo discurso filosoacutefico o Logos discurso unitaacuterio dos princiacutepios que se desdobram no domiacutenio da teoria lugar da permanecircncia das Ideias

- a triacuteade inferior da Tekhnegrave (a teacutecnica ou seja o uacutetil e agradaacutevel da arte) a Doxa (conjunto de ldquoregras ou receitas para um comportamento eficaz que possa ser conveniente agrave maioriardquo p 28) e a Verossimilhanccedila (resultante da dispersatildeo do Verdadeiro em verdades particulares e contingentes) Esse ldquotrio enganador que corresponde ao trio sublimerdquo (p 28) coloca-nos no

127 A lista eacute aberta Os trabalhos abundam nesse domiacutenio por exemplo Amossy (1991) Amossy e Herschberg-Pierrot (1997) Dascal (1999) Goyet (1996) Perrin-Naffakh (1985) Plantin (1993) e Schapira (1999)

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domiacutenio da praacutetica da accedilatildeo e da variaccedilatildeo ele eacute formulado pelo discurso doacutexico a partir do nome de um dos trecircs elementos

Eacute este o primeiro traccedilo importante da doxa eacute tanto a forma degradada do Bem dentro da ldquotriacuteade inferiorrdquo quanto o regime de fala apropriado a essa triacuteade Nesse sentido a sofiacutestica eacute uma linguagem doacutexica pois o sofista eacute para Platatildeo um teacutecnico da palavra Isso significa que a ambiguidade pesa sobre a noccedilatildeo desde suas origens entre regras de comportamento e atitudes linguageiras

A partir daiacute eacute tecida uma tradiccedilatildeo filosoacutefica um pouco subterracircnea constituiacuteda explica Cauquelin (que aliaacutes assimila senso comum e doxa) por ldquotodos esses que sentiram que alguma coisa acontecia do lado do SC da fala ordinaacuteria ou da argumentaccedilatildeo baseada em hipoacuteteses inverificaacuteveisrdquo (p 34) Antifonte Goacutergias Filoacutestrato Quintiliano E mais perto de noacutes Nietzsche Wittgenstei os filoacutesofos da linguagem os autores da Nova Retoacuterica os pragmaticistas os socioacutelogos do cotidiano os epistemoacutelogos

O SC aparece em diferentes contextos filosoacuteficos

G-Eacute Sarfati em seu Preacutecis de pragmatique (2000a cap 6 ldquoLrsquoideacutee drsquoune pragmatique des normesrdquo) lembra que o senso comum eacute a traduccedilatildeo de koinegrave aesthegravesis estabelecido em Da alma por Aristoacuteteles como uma ldquofaculdade [que] permite operar uma siacutentese entre os perceptos dos cinco sentidosrdquo (p 101) A partir daiacute G-Eacute Sarfati distingue ldquoduas filiaccedilotildees de uma epistemologia do conceito de senso comumrdquo (p 101) uma que a toma por uma ldquoracionalidade comumrdquo e a outra que a leva para o lado da eficaacutecia das crenccedilas e da constituiccedilatildeo das opiniotildees (problema da ideologia) Eacute sobre a primeira filiaccedilatildeo que nos debruccedilaremos aqui a que constroacutei o SC como uma ldquoracionalidade comum antes de mais nada organizadora dos dados da percepccedilatildeordquo (p 100) Ela estabelece uma teoria do conhecimento Podemos dar como exemplo a controveacutersia MooreWittgenstein A posiccedilatildeo de G E Moore sobre os traccedilos daquilo que ele chama de ldquoa concepccedilatildeo do mundo oferecida pelo senso comumrdquo pode se resumir a essa declaraccedilatildeo128

[] se sabemos que satildeo caracteriacutesticas da ldquoconcepccedilatildeo de mundo oferecida pelo senso comumrdquo logo elas satildeo verdadeiras eacute contraditoacuterio defender que sabemos que satildeo traccedilos da ldquoconcepccedilatildeo de mundo oferecida pelo senso comumrdquo e que no entanto natildeo satildeo verdadeiras (MOORE 1985 [1925] p 146 grifos do autor)

A partir de sua criacutetica vigorosa da ldquocompulsatildeo filosoacuteficardquo (i e a ilusatildeo da posiccedilatildeo de destaque do filoacutesofo a partir da qual ele crecirc poder enunciar a verdade) L Wittgenstein critica G E Moore por dar agraves verdades do SC um valor absoluto agrave maneira da triacuteade platocircnica superior podemos dizer L Wittgenstein encontra-se de fato ao lado de um relativismo integral (para ele a dimensatildeo pronominal da verdade eacute o Noacutes) e as evidecircncias do SC estatildeo na praacutetica da linguagem no fluxo da vida Ele acusa G E Moore (para quem a dimensatildeo pronominal da verdade eacute o Eu) de realismo dogmaacutetico e metafiacutesico

128 Exceto quando mencionado todos os itaacutelicos nas citaccedilotildees foram feitos por noacutes

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A filosofia das ciecircnciasO SC eacute um objeto de reflexatildeo importante Para Popper (1972) as opiniotildees e crenccedilas

comumente aceitas constituem o ponto de partida universal do saber mesmo que as teorias propostas devam ser submetidas agrave criacutetica Os filoacutesofos das ciecircncias datildeo uma atenccedilatildeo especial agrave linguagem desenvolvem a ideia de que a experiecircncia do SC expressa na linguagem cotidiana deve servir de base para o discurso cientiacutefico teoacuterico de fato o valor de verdade dos enunciados da linguagem cotidiana eacute superior (em seu reconhecimento) agravequele dos enunciados da linguagem cientiacutefica (SCHUTZ 1987) Encontramos mesmo em Nagel (1961) a ideia de que a imprecisatildeo da liacutengua do SC permite a perduraccedilatildeo das crenccedilas (por causa ou graccedilas agrave dificuldade do controle experimental) enquanto o destino das teorias eacute morrer precocemente por falta de imprecisatildeo podemos dizer

As ciecircncias da linguagemAs ciecircncias da linguagem constroem outras abordagens de acordo com as subdisciplinas

do campo

ndash Na anaacutelise do discurso a noccedilatildeo de preacute-construiacutedo extraiacuteda de Henry (1974 1975) por Pecirccheux e Fuchs (1975) eacute o ponto de partida da problemaacutetica do interdiscurso

ndash Do lado da semacircntica integrada eacute traccedilada uma linha de pesquisa que trata da estereotipia na liacutengua teoria dos topoi (ASCOMBRE DUCROT 1983 ASCOMBRE 1995) teoria dos estereoacutetipos (ASCOMBRE 2001) teoria dos blocos semacircnticos e do paradoxo (CAREL DUCROT 1999)

As referecircncias anteriores mostram que nas ciecircncias da linguagem a questatildeo do SC eacute posta nos domiacutenios que integram segundo graus variados diversos paracircmetros extralinguiacutesticos (produccedilatildeo social cultural recepccedilatildeo etc)129 No entanto o SC como tal e com esse nome constitui raramente um objeto expliacutecito de anaacutelise Podemos citar os trabalhos de Sarfati de Larsson e nossa proacutepria abordagem que seraacute desenvolvida em 2

Sarfati trabalhando numa teoria das relaccedilotildees entre texto discurso e doxa propotildee uma ldquopragmaacutetica das normasrdquo (2002a) por meio de uma teoria linguiacutestica da doxa (2002b) Considerando o SC como um ldquoregulador ateacute mesmo um meacutedium semacircntico-pragmaacuteticordquo (2002b p 102) ele o define como ldquoo conjunto das representaccedilotildees simboacutelicas distintivas de uma formaccedilatildeo socialrdquo dito de outro modo uma ldquotoacutepica socialrdquo (p 103) Propotildee uma abordagem em quatro dimensotildees os dispositivos institucionais (dimensatildeo 1) vinculados a textos canocircnicos (dimensatildeo 2) determinam a toacutepica de uma sociedade (o SC dimensatildeo 3) que eacute composta por sua vez por uma ou vaacuterias doxas estruturadas em topoi ou ldquodispositivos de opiniatildeordquo (dimensatildeo 4) O postulado de partida dessa teorizaccedilatildeo eacute de que o sentido (objeto da semacircntica e da pragmaacutetica) se constitui a partir do SC (objeto de uma teoria da percepccedilatildeo)

Numa orientaccedilatildeo mais semacircntica Larsson (1997) traz a questatildeo do sentido para o centro do debate entre relativistas e objetivistas Para ele o sentido eacute equivalente ao SC que ele nomeia

129 Agrave exceccedilatildeo daqueles que remetem agrave semacircntica integrada

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ldquobomrdquo senso comum livrando-o de seus ouropeis pejorativos Propotildee uma ldquoconcepccedilatildeo do sentido como cogniccedilatildeo intersubjetivardquo (LARSSON 1997 p 287) que implica uma epistemologia da relaccedilatildeo

Da concepccedilatildeo do sentido como propriedade emergente tanto intersubjetiva quanto puacuteblica decorre entatildeo uma epistemologia que natildeo eacute nem aquela da introspecccedilatildeo nem aquela da observaccedilatildeo exterior A epistemologia do sentido podemos afirmar natildeo eacute nem uma epistemologia do eu nem uma epistemologia do eleela ou eleselas Eacute uma epistemologia do noacutes ou seja uma epistemologia do conhecimento interacional (Mead) da observaccedilatildeo participante (Boas Jakobson Bakhtin) da experimentaccedilatildeo dialoacutegica (Vygotsky Harreacute amp Gillet) e da pragmaacutetica transcendental (Appel Habermas) (LARSSON 1997 p 287-288)

2 O SC um conceito para a anaacutelise do discursoDe nossa parte frequentar os discursos de instituiccedilotildees (exeacutercito 2000 escola 2002

literatura 2001 2003) levou-nos a propor uma concepccedilatildeo de SC deliberadamente assentada em suas duas dimensotildees semacircntica e perceptivo-cognitiva a dimensatildeo semacircntica eacute a da coconstruccedilatildeo do sentido em discurso fundada num acordo silencioso cujo funcionamento procuramos entender a partir da articulaccedilatildeo da linguagem e da preacute-linguagem a dimensatildeo perceptiva eacute a dos quadros de crenccedila e de saber que configuram e prefiguram a experiecircncia humana e que informam profundamente os discursos dos locutores

21 Definiccedilatildeo

Definimos o SC como um conjunto de quadros de saberes e de crenccedilas que fornecem instruccedilotildees para a produccedilatildeo e a interpretaccedilatildeo do sentido em discurso Esses quadros possuem seis caracteriacutesticas

211 Compartilhamento coletivo e apropriaccedilatildeo individual

Os saberes e as crenccedilas do SC pertencem tanto agrave coletividade quanto ao indiviacuteduo Todo locutor pode se apropriar num Eu do sentido admitido na comunidade Em sua ceacutelebre ldquoApologie du sens communrdquo Moore (1925) explica que as verdades afirmadas em nome da ldquoconcepccedilatildeo do mundo oferecida pelo senso comumrdquo (por exemplo eu nasci um dia) podem ser apropriadas por diferentes locutores sem que sejam fixadas numa forma particular de enunciado pois satildeo formuladas em formas que ele chama de homoloacutegicas

212 Transmissibilidade

Essa propriedade eacute uma condiccedilatildeo de possibilidade da precedente para que esse vai e vem entre coletivo e individual possa existir eacute preciso haver possibilidades de transmissatildeo universal de saberes e crenccedilas Essa aptidatildeo para a transmissatildeo caracteriacutestica do SC eacute chamada de comunicabilidade por Kant que aliaacutes em Criacutetica da faculdade do juiacutezo faz dela uma prova da existecircncia do SC

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Conhecimentos e juiacutezos juntamente com a convicccedilatildeo que os acompanha tecircm que poder comunicar-se universalmente pois do contraacuterio eles natildeo alcanccedilariam nenhuma concordacircncia com o objeto [] Se poreacutem conhecimentos devem poder comunicar-se entatildeo tambeacutem o estado de acircnimo isto eacute a disposiccedilatildeo das faculdades de conhecimento para um conhecimento em geral [] porque sem esta condiccedilatildeo subjetiva do conhecer o conhecimento como efeito natildeo poderia surgir [] Ora visto que esta proacutepria disposiccedilatildeo tem que poder comunicar-se universalmente e por conseguinte tambeacutem o sentimento da mesma (em uma representaccedilatildeo dada) mas visto que a comunicabilidade universal de um sentimento pressupotildee um sentido comum assim este poderaacute ser admitido com razatildeo e na verdade sem neste caso se apoiar em observaccedilotildees psicoloacutegicas mas como a condiccedilatildeo necessaacuteria da comunicabilidade universal de nosso conhecimento a qual tem que ser pressuposta em toda loacutegica e em todo princiacutepio dos conhecimentos que natildeo seja ceacutetico (KANT 1993 [1790] sect 21 ldquoSe se pode com razatildeo pressupor um sentido comumrdquo)130

213 Virtualidade

Trataremos da virtualidade para enfatizar a dimensatildeo natildeo ou preacute-linguageira (de todo modo silenciosa isto eacute sem palavras expliacutecitas) do SC Se aprofundamos essa ideia do acordo impliacutecito sobre o sentido dos enunciados futuros e portanto sobre os conteuacutedos informativos preacutevios (crenccedilas e saberes) deparamo-nos com o espinhoso problema da natureza das proposiccedilotildees Dennett trabalhando sobre as crenccedilas em La strateacutegie de lrsquointerpregravete fornece uma boa siacutentese das diferentes concepccedilotildees de proposiccedilotildees

Existem de fato trecircs tipos de definiccedilotildees gerais de proposiccedilotildees na literatura

(1) As proposiccedilotildees satildeo entidades comparaacuteveis a sentenccedilas que possuem partes segundo certa sintaxe []

(2) As proposiccedilotildees satildeo conjuntos de mundos possiacuteveis Duas sentenccedilas exprimem a mesma proposiccedilatildeo somente se forem verdadeiras exatamente nos mesmos conjuntos de mundos possiacuteveis []

(3) As proposiccedilotildees satildeo como coleccedilotildees ou arranjos de objetos ou de propriedades no mundo (DENNET 1990 p 161-162)

Ele considera que todas essas posiccedilotildees apresentam o mesmo problema ldquoeacute esse fundo de intuiccedilatildeo que existe em relaccedilatildeo agrave possibilidade de uma apreensatildeo das proposiccedilotildeesrdquo (Ibid p 270) Sua abordagem eacute inteiramente diferente

Desde que reconheccedilamos que falar de proposiccedilotildees eacute apenas um colchatildeo heuriacutestico (Dennett 1969 p 80) uma aproximaccedilatildeo uacutetil (ainda que agraves vezes infiel) que eacute sistematicamente impossiacutevel tornar precisa podemos nos livrar daquilo que eacute essencialmente falso que

130 KANT Immanuel Criacutetica da Faculdade do Juiacutezo Traduccedilatildeo de Valeacuterio Rohden e Antoacutenio Marques Rio de Janeiro Editora Forense Universitaacuteria 1993

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consiste em dizer que toda informaccedilatildeo pode ser modelada a partir do fato de dizer ndash enviar um dictum de A a B [] (Ibid p 270 grifos do autor)

Isso o leva a formular uma definiccedilatildeo analoacutegica da proposiccedilatildeo que se adeacutequa bem agrave vagueza da noccedilatildeo de SC ldquoAs proposiccedilotildees entendidas como formas de ldquomedirrdquo a informaccedilatildeo semacircntica revelam-se mais parecidas com doacutelares que com nuacutemeros [] Natildeo haacute unidades reais naturais universais nem do valor econocircmico nem da informaccedilatildeo semacircntica (Ibid p 271 grifos do autor)

Diziacuteamos na introduccedilatildeo que a categoria ldquoSCrdquo integrava mais ou menos certos elementos a partir de uma escala de apreciaccedilatildeo relativa Os conteuacutedos proposicionais de SC tecircm a nosso ver as mesmas caracteriacutesticas que essa moeda da qual fala Dennett definida por sua virtualidade A questatildeo ldquoEsse enunciado pertence ao SCrdquo pode na verdade receber a mesma resposta que aquela dada por Dennet ao final de sua demonstraccedilatildeo ldquoO que vale uma vida de cabra Ou ainda onde e quandordquo (Ibid p 273)

214 Organizaccedilatildeo experiencial

Os saberes e crenccedilas do SC organizam a percepccedilatildeo individual do mundo e a construccedilatildeo dos conhecimentos Estabelecem a ligaccedilatildeo entre o interior e o exterior dado que configuram a percepccedilatildeo e o conhecimento do mundo para o sujeito Como aponta Goodman (1992 p 32) os mundos satildeo feitos tanto quanto encontrados ldquoSe [] os mundos satildeo feitos tanto quanto encontrados entatildeo conhecer eacute tanto fazer quanto dar conta [] Descobrir as leis implica redigi-las Reconhecer padrotildees consiste sobretudo em inventaacute-los e aplicaacute-los Compreensatildeo e criaccedilatildeo caminham juntasrdquo

A hipoacutetese do SC nos leva a adotar a posiccedilatildeo de um construtivismo moderado entre relativismo e objetivismo

215 Aproximaccedilatildeo

As crenccedilas e saberes de SC natildeo se submetem ao criteacuterio de verdade loacutegica agrave verificaccedilatildeo por demonstraccedilatildeo Remetem a uma verdade aproximativa Sua erradicaccedilatildeo que vem de uma longa tradiccedilatildeo na Franccedila das instruccedilotildees platocircnicas (Logos contra Doxa) ao espiacuterito do Iluminismo (luta contra os preconceitos) passando pela taacutebula rasa cartesiana pode ser equiparada agrave ldquoilusatildeo cartesianardquo como assinala Dascal (1999 p 115)

O preconceito sobre o preconceito impliacutecito nessa posiccedilatildeo eacute a crenccedila de que eacute possiacutevel com a ajuda de um meacutetodo satisfatoacuterio eliminar completamente os preconceitos pensar e argumentar a partir de digamos assim um grau zero de preacute-julgamentos e de preconceitos

216 Discursividade

O SC pode ser manifestado em discurso por meio de marcas epimetalinguiacutesticas e linguiacutesticas De fato os sujeitos constroem uma relaccedilatildeo com o SC em seus discursos com modalidades diferentes segundo as formaccedilotildees discursivas Nossa concepccedilatildeo de SC reencontra

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aqui parcialmente aquela de preacute-construiacutedo noccedilatildeo fundadora da anaacutelise do discurso francesa que Pecirccheux (1971 apud MALDIDIER 1990 p 153) seguindo Henry elaborava no comeccedilo dos anos 70 ldquo[] o ldquosujeito falanterdquo toma posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves representaccedilotildees das quais eacute suporte sendo que essas representaccedilotildees se encontram realizadas pelo ldquopreacute-construiacutedordquo linguisticamente analisaacutevelrdquo

A noccedilatildeo de preacute-construiacutedo estaacute intimamente articulada a um contexto epistemoloacutegico e poliacutetico especiacutefico (marxismo althusseriano inspiraccedilatildeo lacaniana) mas essa discursividade anterior agrave linguagem essa presenccedila do preacute-linguageiro no linguageiro nos parece uma propriedade partilhada pelo SC tal como o entendemos aqui

22 Manifestaccedilotildees discursivas

2211 A relaccedilatildeo com o SC uma praacutetica discursiva

Nossa questatildeo eacute a da relaccedilatildeo com o SC construiacuteda no discurso Nosso trabalho visa a contribuir com uma teoria da praacutetica discursiva dimensatildeo inserida na origem da anaacutelise do discurso (em particular por Pecirccheux) e relativamente apagada a nosso ver na anaacutelise do discurso atual131

Os discursos de fato constroem o sentido a partir de dados experienciais natildeo linguageiros (costumes haacutebitos crenccedilas quadros perceptivos e cognitivos) Esses dados satildeo taacutecitos eles natildeo precisam ser expliacutecitos e de qualquer forma natildeo estatildeo abertos agrave explicitaccedilatildeo (a possibilidade da explicitaccedilatildeo eacute segundo Dennett o que diferencia o taacutecito do impliacutecito)

Natildeo seraacute portanto o caso de ldquotraduzirrdquo as proposiccedilotildees que constituem os saberes e crenccedilas de SC mesmo a tiacutetulo heuriacutestico O que nos interessa eacute ao contraacuterio seu estado virtual e preacute-linguageiro na medida em que informa os discursos que permanecem prioritariamente nosso objeto Em conformidade com a nossa definiccedilatildeo buscaremos ver como as instruccedilotildees do SC se manifestam discursivamente

222 Os dois SC

Na perspectiva de estudo sobre corpus a noccedilatildeo de SC eacute construiacuteda por dois discursos portanto por duas visotildees diferentes

ndash Discurso 1 o discurso ldquocientiacuteficordquo do pesquisador que adota uma perspectiva funcional visando agrave anaacutelise a partir de um SC1 definido anteriormente no seio de uma elaboraccedilatildeo teoacuterica

ndash Discurso 2 o discurso dos locutores do corpus que se baseiam num SC2 cuja definiccedilatildeo eacute elaborada na praacutetica do discurso

131 A publicaccedilatildeo recente de dois dicionaacuterios de anaacutelise do discurso (DEacuteTRIE et al 2001 MAINGUENEAU CHARAUDEAU 2002) parece-nos o signo cientiacutefico e institucional de um posicionamento atual dos discursivistas no campo da ldquoteoria da teoriardquo

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O fenocircmeno interessante eacute que esse discurso 2 costuma se apresentar (e eacute particularmente o caso dos ensaios para grande puacuteblico sobre a escola escritos majoritariamente por filoacutesofos) com a ldquocientificidaderdquo do discurso 1 Acreditamos que haja duas consequecircncias decorrentes disso

ndash Do ponto de vista metodoloacutegico o risco de confundir os dois discursos eacute grande O trabalho do analista deve entatildeo conservar a profundidade do campo traccedilada pelas duas concepccedilotildees do SC e evitar confundir os dois niacuteveis sob pena de projetar um sobre o outro

ndash Do ponto de vista teoacuterico eacute interessante entender a pretensatildeo cientiacutefica do discurso 2 como a formulaccedilatildeo de uma teoria popular do SC Popular aqui quer dizer ldquoespontacircneardquo no sentido em que falamos de uma linguiacutestica ou de uma fiacutesica ou de uma psicologia popular Se como explicam os filoacutesofos das ciecircncias a experiecircncia do SC eacute o ponto de partida da teoria cientiacutefica entatildeo a teoria popular do SC que os corpora constroem parece-nos um bom ponto de partida para uma teorizaccedilatildeo linguiacutestica do SC

223 Os trecircs patamares de anaacutelise

Propomos uma aproximaccedilatildeo em trecircs niacuteveis (preacute-discursivo metadiscursivo discursivo) fundada na presenccedila de marcas no discurso

ndash Niacutevel preacute-discursivo O SC discursivizado estaacute ancorado no espaccedilo preacute-discursivo dos conhecimentos preacutevios partilhados por uma comunidade discursiva (as ldquoproposiccedilotildeesrdquo)

ndash Niacutevel metadiscursivo Os comentaacuterios dos locutores sobre a natureza de seu discurso (plano autodiscursivo) ou daquele do outro (plano alterdiscursivo) explicitam sua relaccedilatildeo com o SC

ndash Niacutevel discursivo A relaccedilatildeo com o SC se constroacutei a partir de certo nuacutemero de agenciamentos formas do jaacute-laacute convocaccedilatildeo da liacutengua manifestaccedilotildees enunciativas elaboraccedilotildees cognitivo-textuais

3 Os discursos sobre a escolaExploramos aqui uma parte dos ensaios sobre a escola publicados na volta agraves aulas de

1999 Retivemos nove dos trinta publicados a partir de um criteacuterio de representatividade relativa (e muito aproximativa) satildeo os que tiveram a maior repercussatildeo midiaacutetica O quadro dos debates eacute bem conhecido e goza de uma boa permanecircncia desde os anos 70 (reforma Haby) de forma breve a estrutura profunda eacute aquela da disputa entre Antigos e Modernos e as estruturas de superfiacutecie evoluem com as condiccedilotildees histoacutericas e sociais (PAVEAU 1999 2001) Em 1999 assumem a forma de uma oposiccedilatildeo entre ldquoRepublicanosrdquo (defensores da Escola da Repuacuteblica) e ldquoReformadoresrdquo (partidaacuterios de uma evoluccedilatildeo da escola) oposiccedilatildeo formulada pelos ldquoRepublicanosrdquo132 O corpus eacute o seguinte

132 A grande maioria dos ensaios para grande puacuteblico sobre a escola contesta as reformas e as estruturas educacionais atuais Isso indica que a origem da fala puacuteblica sobre a escola eacute no geral protestadora e contestadora Isso significa tambeacutem a nosso ver que o discurso do SC sobre a escola na Franccedila eacute informado por essa criacutetica permanente Com exceccedilatildeo de raras figuras midiaacuteticas como P Meirieu os ldquoReformadoresrdquo produzem preferencialmente obras cientiacuteficas oriundas de trabalhos universitaacuterios de difusatildeo evidentemente menos massiva que os ensaios para o grande puacuteblico

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COUTEL C Que vive lrsquoeacutecole reacutepublicaine Entretien avec P Petit Textuel ldquoConversation pour demainrdquo 120 p

JAFFRO L RAUZY J-B Lrsquoeacutecole deacutesœuvreacutee La nouvelle querelle scolaire Flammarion 269 p

MICHEacuteA J C LrsquoEnseignement de lrsquoignorance et ses conditions modernes Castelnau Climats 144 p

MILNER P A bas les eacutelegraveves Albin Michel 189 p

MOLINIER G La gestion des stocks lyceacuteens Ideacuteologies pratiques scolaires et interdit de penser LrsquoHarmattan 232 p

MOREL G TUAL -LOIZEAU D Horreur peacutedagogique Parole de profs et veacuteriteacute des copies Ramsay 253 p

MORIN E La Tecircte bien faite Repenser la reacuteforme reacuteformer la penseacutee Seuil ldquoLrsquohistoire immeacutediaterdquo 156 p

PENA-RUIZ H LrsquoEacutecole Flammarion ldquoDominosrdquo 128 p

REY M La chute de la maison Ferry Arleacutea 142 p

Pudemos mostrar num outro trabalho sobre o mesmo corpus (2002) que esses discursos construiacuteam uma relaccedilatildeo negativa com o SC escritos majoritariamente por filoacutesofos de tradiccedilatildeo ldquoplatocircnicardquo esses textos ancoram-se no que M Dascal nomeia ldquoilusatildeo cartesianardquo e formulam de maneira redundante uma vontade daquilo que chamamos de ldquolimpeza cognitivardquo fazer taacutebula rasa das verdades aproximativas logicamente falsas expressas de um modo doacutexico para construir o discurso da verdade veiculada pelo logos Essa postura eacute formulada no niacutevel metadiscursivo em particular por caracterizaccedilotildees autodiscursivas (negaccedilatildeo da convocaccedilatildeo do SC e reivindicaccedilatildeo do discurso loacutegico) e alterdiscursivas (acusaccedilatildeo da convocaccedilatildeo do SC no discurso do outro) Haviacuteamos no entanto apontado brevemente que esses discursos natildeo mantinham as posiccedilotildees declaradas pelos metadiscursos os processos de validaccedilatildeo metaenunciativos do SC (expressotildees adverbiais como ldquonaturalmenterdquo ldquoevidentementerdquo etc) e o recurso frequente ao etimologismo mostravam que a legitimidade desses discursos tambeacutem estava fundada na convocaccedilatildeo do SC

31 As formas do jaacute-laacute

O discurso diz o jaacute-laacute exterior ao sujeito sem seu conhecimento declarando-se mestre de seu discurso (em termos althusserianos falariacuteamos do indiviacuteduo interpelado em sujeito) o locutor mascara tudo ao convocar os saberes e crenccedilas do SC Eacute o caso da questatildeo geneacuterica e da negaccedilatildeo natildeomais

311 A questatildeo geneacuterica

A questatildeo geneacuterica que a retoacuterica claacutessica chama de interrogaccedilatildeo oratoacuteria eacute uma forma que registra essa postura dupla do locutor assunccedilatildeo individual e apoio no SC M Ali Bouacha

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formula muito claramente essa posiccedilatildeo na qual podemos reconhecer aliaacutes o discurso de Moore sobre as verdades do SC que podem ser apropriadas por cada um

[] o enunciado geneacuterico acumula essa propriedade dupla e agrave primeira vista contraditoacuteria de expressar um engajamento e de permitir um desengajamento Engajamento pois buscamos impor uma proposiccedilatildeo contra outra proposiccedilatildeo que lhe preexiste de uma forma ou de outra Desengajamento pois agimos como se natildeo enunciaacutessemos nossa opiniatildeo pessoal mas a de todo mundo ou melhor ainda uma verdade fundada num ldquocogitamus racionalrdquo dito de outra maneira no que ldquoobriga a pensar de acordordquo (Bachelard) (ALI BOUACHA 1993 p 285)

As formas da questatildeo geneacuterica satildeo variadas mas todas tecircm em comum o fato de instalarem uma atmosfera de duacutevida a proposiccedilatildeo avanccedilada eacute imediatamente posta em debate em nome da evidecircncia do SC que instrui uma resposta impliacutecita Nos exemplos seguintes a criaccedilatildeo da duacutevida ocorre por meio da negaccedilatildeo do futuro e da negaccedilatildeo da consequecircncia133

Interro-negaccedilatildeo

ndash Cou 40 Informar-se e formar-se satildeo a princiacutepio incompatiacuteveis para ser vocecirc mesmo natildeo seria preciso dar um passo para traacutes e para cima (o que diz a palavra ldquoalunordquo)134

ndash Rey 9 Ele [P Meirieu] natildeo eacute funcionaacuterio O que o libera entatildeo da obrigaccedilatildeo de sigilo

Que+futuro

ndash Jaf 13 Quem acreditaraacute que hoje eacute realmente importante declarar a qual campo pertencemos ao clube dos que tecircm uma visatildeo moderna e ldquoinovadorardquo de escola ou ao sindicato dos corporativistas dos saudosistas e ldquoantiquadosrdquo

ndash Rey 33 Mas quem vai querer se ver reduzido agrave categoria de repetidor natildeo podendo transmitir mais que uma iacutenfima parte de um saber amado de um saber taxado de enciclopedismo e paradoxalmente definido como o inimigo do conhecimento Quem entatildeo vai querer ndash a menos que seja levado a isso pelo medo do desemprego ndash se resignar agrave polivalecircncia Quem entatildeo vai querer submeter-se agrave vigilacircncia dos delegados de classe e ao militarismo da administraccedilatildeo

Consequecircncia negada

ndash Morel 29 Acreditamos que nossos alunos estejam suficientemente armados para praticar a ginaacutestica intelectual dos sofistas

ndash Morel 130 Quem pode ser tatildeo cego a ponto de natildeo ver que a aprendizagem da verbalizaccedilatildeo passa pelo gesto tanto quanto pelo ceacuterebro

133 As referecircncias primeiras letras do nome do autor e paacuteginas (exceto no caso de Morel e Morin)

134 NT O autor retoma a relaccedilatildeo de ldquoeacuteleacuteverdquo traduzido por ldquoalunordquo com ldquoeacuteleverrdquo que pode ser traduzido por ldquoelevarrdquo ldquolevantarrdquo entre outros Natildeo conseguimos manter essa relaccedilatildeo na traduccedilatildeo

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Outras formulaccedilotildees satildeo de ordem leacutexico- ou retoacuterico-sintaacutetica eacute a combinaccedilatildeo da interrogaccedilatildeo com a expressatildeo expliacutecita de uma soluccedilatildeo alternativa impossiacutevel que produz o efeito geneacuterico

ndash Cou 27 De que outra forma explicar essa virada educativa e de exaltaccedilatildeo da juventude que leva agrave mudanccedila do nome do ministeacuterio em 1932 []

ndash Jaf 13 Adotar certa posiccedilatildeo sobre as questotildees de poliacutetica educativa eacute simplesmente escolher entre o coacutedigo Morse e o celular

ndash Rey 32 No entanto esse prolongamento eacute em essecircncia antidemocraacutetico que famiacutelias podem manter seus filhos nos estudos por quatro a cinco anos depois do vestibular

Nesses enunciados a combinaccedilatildeo se faz com o adveacuterbio distintamente a comparaccedilatildeo teacutecnica (coacutedigo Morse e celular) e o emprego de manter conduzido pela asserccedilatildeo precedente sendo que ela mesma se apoia no SC via a expressatildeo em essecircncia

312 A negaccedilatildeo em natildeo mais

A forma natildeo mais por definiccedilatildeo soacute pode ser construiacuteda a partir do caraacuteter partilhado de um enunciado afirmativo anterior Aleacutem disso a natureza da foraclusatildeo inscreve o enunciado na temporalidade o acordo anterior remete ao passado o que explica por que essa estrutura tambeacutem participa de uma estrutura transfraacutestica e polecircmica mais ampla o mito da decadecircncia ou mito do tempo anterior bem explorado por M Angenot por exemplo (1982) e que constitui uma das crenccedilas do SC dos discursos sobre a escola Alguns exemplos

ndash Cou 40 Se a escola natildeo transmite mais a sociedade corre risco de se repetir e de natildeo mais progredir

ndash Jaf 126 Na escola de hoje a maior parte dos aprendizados que passam necessariamente pela repeticcedilatildeo dos mesmos exerciacutecios ou que dependem da memoacuteria natildeo estaacute mais garantida

ndash Morel 127 Natildeo aprender mais nada Piada triste

ndash Pen 83 [] medimos a amplitude de uma renuacutencia assim programada da Escola frente agraves desigualdades sociais que natildeo satildeo mais combatidas []

ndash Rey 33 Agrave escola natildeo se coloca mais o objetivo de enriquecer o humano mas de tornaacute-lo consumiacutevel

32 O apelo agrave liacutengua

O apelo para o SC eacute frequentemente em nosso corpus um apelo para a proacutepria liacutengua que entatildeo aparece como o lugar mais consensual de acordo com o sentido das palavras (geralmente de uma perspectiva nomenclatural) Qualquer modificaccedilatildeo de significantes ou da relaccedilatildeo significante-significado eacute entatildeo considerada como uma mudanccedila da ordem natural

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e oacutebvia do senso ldquooficialmenterdquo comum Essa eacute a ortodoxia do SC que entatildeo serve como um argumento de peso em debates sobre a escola Encontramos vaacuterias manifestaccedilotildees desse apelo agrave ortodoxia da liacutengua aqui vamos lidar com a rejeiccedilatildeo o comentaacuterio lexicoloacutegico e a definiccedilatildeo lexicograacutefica espontacircnea135

321 A rejeiccedilatildeo

Fenocircmeno de natildeo coincidecircncia do discurso consigo mesmo segundo J Authier (1995) a rejeiccedilatildeo de um segmento (na maioria das vezes uma unidade lexical) por meio de aspas ou comentaacuterios como ldquoo que chamamosrdquo ou ldquocomo dizemosrdquo aqui sinaliza uma natildeo coincidecircncia do discurso com uma concepccedilatildeo de discurso ancorada na normatividade do SC o da liacutengua As rejeiccedilotildees do corpus geralmente se relacionam com as palavras atribuiacutedas aos reformadores pedagogia ciecircncias da educaccedilatildeo profissionalizaccedilatildeo formadores Exiladas num alhures ilegiacutetimo do discurso elas satildeo de fato marcadas com um desvio das normas preacute-discursivas compartilhadas e dominantes

Rejeiccedilotildees tipograacuteficas citaccedilotildees

- Cou 8 O que vocecirc precisa saber para ensinar eacute ldquopedagogiardquo e natildeo a mateacuteria que vocecirc estaacute ensinando

- Jaf 23 Natildeo eacute incomum encontrar na abundante literatura das ldquociecircncias da educaccedilatildeordquo essa mesma escansatildeo da histoacuteria de nosso sistema educacional

- Jaf 60 No estado atual das coisas os ldquoformadoresrdquo da IUFM natildeo podem ser professores experientes

- Morel 172 Sem falar na confusatildeo que impera na terminologia [] Entre a identificaccedilatildeo de ldquocapacidadesrdquo que pressupotildeem o domiacutenio de ldquohabilidadesrdquo por sua vez detalhadas em ldquocomponentesrdquo haacute como se confundir

Combinaccedilatildeo de citaccedilotildees + comentaacuterios

- Jaf 45 Se aleacutem disso a formaccedilatildeo contiacutenua que recebem sob a forma de estaacutegios ao longo da carreira eacute mais uma vez consagrada agrave ldquoprofissatildeo docenterdquo como dizemos complacentemente e nunca ao conteuacutedo do conhecimento transmitido entatildeo eles seratildeo sem duacutevida maus professores incapazes de ensinar completamente com clareza e distinccedilatildeo os primeiros elementos

- Jaf 79 O tipo de dissimulaccedilatildeo da dimensatildeo comercial de certos ldquoprodutos culturaisrdquo como satildeo chamados eacute uma das caracteriacutesticas mais surpreendentes de nossos Modernos

135 (9) Natildeo vamos voltar ao etimologismo tratado em Paveau (2002 p 170-172)

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322 O comentaacuterio lexicoloacutegico

Trata-se de enunciados que fazem comentaacuterios criacuteticos sobre os usos lexicais do campo oposto O outro eacute acusado de se utilizar da liacutengua uma liacutengua equivocada como instrumento de dominaccedilatildeo A explicaccedilatildeo do processo eacute clara no seguinte exemplo

- Cou 13 [Pergunta] O que vocecirc chama de ldquoretoacuterica pedagoacutegicardquo [Resposta] Este eacute o conjunto de processos pelos quais os educadores oficiais especialmente Philippe Meirieu conseguem oficializar seu leacutexico e portanto sua visatildeo das instituiccedilotildees de ensino e do homem em geral [] A liacutengua dos pedagogos muitas vezes eacute repetitiva amneacutesica e autoniacutemica (ou seja confundir o nome da coisa e a proacutepria coisa) [] Eacute a essa liacutengua que eacute conveniente resistir Os tempos democraacuteticos tambeacutem satildeo favoraacuteveis a essas linguagens que satildeo consensuais sem explicaccedilatildeo Essa eacute a consequecircncia do igualitarismo um desvio da igualdade As palavras parecem verdadeiras pelo simples fato de serem usadas

Esse tipo de comentaacuterio eacute baseado em uma representaccedilatildeo ideal de liacutengua ou seja uma ldquoboardquo liacutengua liacutengua perfeita que fala a verdade do mundo representaccedilatildeo ideoloacutegica eacute claro agrave qual se apegam outros esquemas representativos

- Cou8 [Prefaacutecio de P Petit] Palavras Seria errado natildeo ter cuidado com o vocabulaacuterio que alguns usam para transmitir seus pontos de vista O dispositivo de linguagem dos atuais renovadores eacute uma maacutequina de guerra contra as escolas seculares e a educaccedilatildeo puacuteblica [] Um sistema no qual ldquoalunosrdquo se transformam em ldquojovensrdquo as ldquoaulasrdquo se transformam em ldquoatividadesrdquo a ldquodisciplina escolarrdquo se transforma em ldquoconhecimentordquo Como natildeo levar a seacuterio essa revoluccedilatildeo linguageira que a ldquopedagogia contemporacircneardquo promoveu Cabe a Charles Coutel [] ter chamado nossa atenccedilatildeo [] sobre este novo obscurantismo de palavras e valores que eacute o trampolim principal da revoluccedilatildeo cultural em curso liderada por novos pedagogos

Revoluccedilatildeo linguageira obscurantismo revoluccedilatildeo cultural a ruptura da ordem natural e oacutebvia da liacutengua eacute uma transformaccedilatildeo da ordem do mundo Os comentaacuterios lexicograacuteficos denunciam de fato uma tentativa de imposiccedilatildeo de um ldquomaurdquo SC substituindo o ldquobomrdquo no qual se baseia a liacutengua da verdade educativa ldquoTomar gato por lebre mudar pouco a pouco o sentido das palavrasrdquo como diz P Rey (p 14) Eacute a identidade do SC consigo mesmo que eacute entatildeo ameaccedilada com o SC estamos no mesmo nesta coletividade que pode ser apropriada e transmitida pelo indiviacuteduo Modificar as palavras do SC eacute colocar o outro o estrangeiro na liacutengua E a seguinte observaccedilatildeo do mesmo autor aponta bem essa ameaccedila de alteridade

- Cou 13 Trata-se antes de mais nada de tornar a escola alheia a si mesma por meio de um esvaziamento as palavras se apagam pura e simplesmente a pretexto de que ldquoenvelheceramrdquo ou de que eles satildeo muito ldquotradicionaisrdquo [] Resistir a isso eacute lembrar o sentido das palavras reprimidas ldquoinstituirrdquo significa estabelecer e instruir Esquecer

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um termo como este eacute correr o risco de esquecer toda uma seacuterie de outras palavras instituiccedilatildeo instruccedilatildeo O esquecimento mais seacuterio atualmente incide sobre as palavras ldquoeducaccedilatildeo puacuteblicardquo

Encontramos em outros autores muitas notaccedilotildees anaacutelogas

- Jaf 163 A distinccedilatildeo entre ldquoconhecimento acadecircmicordquo e ldquoconhecimento escolarrdquo poderia ser considerada como uma das muitas curiosidades que estatildeo florescendo atualmente na nova linguagem dos reformadores

- Mol 58 Assim os exerciacutecios viraram liccedilatildeo de casa entatildeo transformamos um movimento envolvendo todo o corpo [] na obrigatoriedade de realizaccedilatildeo de trabalho duro imposto de fora [] Os exerciacutecios realizados em sala de aula satildeo chamados de controles verdadeira instituiccedilatildeo dentro da instituiccedilatildeo obsessatildeo de todos os alunos Da mesma forma o aprendizado se reduz agrave obtenccedilatildeo de notas

ndash Pen 82 O vocabulaacuterio do mercado ou do espetaacuteculo natildeo tem lugar na Escola No entanto ele laacute se introduz um pouco mais a cada dia Toda uma terminologia o confirma que se encontra tanto nos textos oficiais quanto nos discursos ambientais sobre a escola confirma isso Os alunos constituiriam os ldquonovos puacuteblicosrdquo ldquousuaacuteriosrdquo ateacute mesmo ldquoconsumidores de conhecimentordquo teriam uma ldquodemandardquo que deveria ser atendida por uma ldquooferta formativardquo escolas de segundo grau deveriam ser ldquoadministradasrdquo como ldquoempresas de educaccedilatildeordquo provavelmente com ldquoparceirosrdquo etc

- Rey 15 Perversatildeo da linguagem Reforma natildeo eacute abandono Reformar natildeo eacute vender suprimir ou destruir Reformar o correio natildeo eacute transformaacute-lo agraves escondidas em um banco [] Reformar o sistema de sauacutede natildeo significa fechar uns oitenta hospitais nas pequenas cidades [] Natildeo reformar eacute melhorar []

33 A construccedilatildeo semacircntico-lexical do SC

Se os autores denunciam esses ataques agrave ortodoxia da liacutengua eles portanto implicitamente se apresentam como os detentores e possivelmente os fiadores Diversos processos discursivos contribuem para a construccedilatildeo-restauraccedilatildeo do SC perdido

331 A definiccedilatildeo lexicograacutefica espontacircnea

Chamamos de definiccedilatildeo lexicograacutefica espontacircnea a construccedilatildeo em discurso de uma definiccedilatildeo subjetiva que natildeo se refere a uma ferramenta lexicograacutefica ou a um aparato teoacuterico e que portanto remete a uma lexicografia popular Trata-se de uma remediaccedilatildeo agraves deficiecircncias de linguagem mencionadas anteriormente os locutores se empenham na restauraccedilatildeo do SC das palavras aquele que eles acreditam que deve servir de base para uma verdadeira educaccedilatildeo Eggs (1994 p 114) sublinha a dimensatildeo coletiva e generalizante da forma da definiccedilatildeo que constitui um dos lugares mais eficazes da retoacuterica ao dotaacute-la de um poder de ldquotipizaccedilatildeordquo

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Uma definiccedilatildeo eacute uma foacutermula que expressa uma ou mais tipizaccedilotildees que se tornaram quase necessaacuterias Neste caso eacute uma questatildeo de habilidade e utilidade retoacuterica apresentar seu argumento evocando implicitamente a respectiva tipizaccedilatildeo ou para interpelar argumentativamente o auditoacuterio mencionando explicitamente a ldquotipizaccedilatildeo definitivardquo como no texto de Aristoacuteteles ldquoHomens desregrados ndash todos concordariam ndash natildeo se contentam com os favores de uma soacute mulherrdquo

Este ldquotodos concordariamrdquo constitui o natildeo dito e a forccedila argumentativa da definiccedilatildeo lexicograacutefica espontacircnea que estabelece um continuum entre a opiniatildeo (o aprofundamento do conhecimento) e a definiccedilatildeo (a fixaccedilatildeo do conhecimento) O enunciado definidor eacute particularmente adequado agraves realidades sociais que admitem maior convencionalidade do que as realidades naturais Isso explica por que o processo eacute frequente em nosso corpus As formas natildeo satildeo muito variadas sendo classificadas em duas categorias principais as definiccedilotildees que explicam a atividade definitiva do falante (modelo ldquoE chamo de Xrdquo) e aquelas que apresentam apenas uma predicaccedilatildeo (modelo ldquoX eacute rdquo) Os exemplos a seguir mostram como o quadro da definiccedilatildeo fixa por tipizaccedilatildeo um conteuacutedo argumentativo (polecircmico ou ideoloacutegico) servindo em suma como uma pequena faacutebrica do SC

Eu chamo de X

- Cou 12 Atualmente reina o pedagogismo chamo de ldquopedagogismordquo a arte de multiplicar os preacute-requisitos desnecessaacuterios para o ato de aprender e para o ato de ensinar

- Jaf 16 Examinamos portanto todos os conceitos administrativo-educacionais que estatildeo a cargo da escola que denominamos ldquoideologia escolarrdquo

- Mic 14 Entenderemos aqui por ldquoprogresso da ignoracircnciardquo menos o desaparecimento de conhecimentos essenciais no sentido em que costuma ser lamentado (e muitas vezes com razatildeo) do que o decliacutenio regular da inteligecircncia criacutetica []

- Mol 26 Eu chamo de ideologia escolar todas as falsas perguntas feitas falsos problemas tratados falsas respostas dadas a problemas reais e atuais na educaccedilatildeo que satildeo tambeacutem pistas para verdadeiras questotildees poliacuteticas pedagoacutegicas e eacuteticas e mesmo antropoloacutegicas enfim todas aquelas que dizem respeito agrave formaccedilatildeo do cidadatildeo e do homem para uma profissatildeo

X eacute ou X

- Cou 15 Da mesma forma ldquoaprendizagem fundamentalrdquo agora substitui ldquoconhecimento elementarrdquo sendo que aprendizagem eacute o domiacutenio de um simples saber-fazer e ldquofundamentalrdquo eacute um termo subjetivo que natildeo se refere a nenhuma objetividade transmissiacutevel Natildeo eacute a mesma coisa de forma alguma

- Cou 81 A Repuacuteblica portanto tinha por vontade natildeo educar mas instruir Quando a relaccedilatildeo entre esses dois termos eacute elucidada o ato de ensinar torna-se faacutecil de definir eacute a arte de indicar (signare ldquoindicarrdquo) conhecimento para mentes racionais ansiosas por aprender por si mesmas

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- Jaf 166 ldquoCultura cientiacuteficardquo eacute um discurso sobre a ciecircncia o que se obteacutem quando todo o conhecimento natildeo eacute internalizado mas apenas mencionado Uma metaciecircncia

- Morel 107 [Tiacutetulo do capiacutetulo] Cultura o que resta quando vocecirc natildeo aprendeu nada

- Morin 59 A filosofia natildeo eacute uma disciplina eacute um poder de interrogaccedilatildeo e reflexatildeo que incide natildeo soacute sobre o saber e sobre a condiccedilatildeo humana mas tambeacutem sobre os grandes problemas da vida

Um dos autores aliaacutes leva a praacutetica ateacute o fim ou seja a tipizaccedilatildeo ateacute o registro em dicionaacuterio

- Mol 36 Em breve em sua nova ediccedilatildeo Le Petit Robert escreveraacute na letra A Acadeacutemie ldquo1 ant escola fundada por Platatildeo 2 mod local de conviacutevio onde procuramos amar uns aos outrosrdquo

332 A derivaccedilatildeo em de- e re-

Sabe-se que a derivaccedilatildeo repetitiva em de- privativo eacute um dos processos do discurso panfletaacuterio (ANGENOT 1982) ou reacionaacuterio (ARNOLD et al 1995) Eacute acompanhada em nosso corpus por uma prefixaccedilatildeo em re- simeacutetrica agrave primeira esperada nesse discurso ancorado no mito da decadecircncia que quer que o tempo avance regredindo e que re-accedilotildees em re- sejam necessaacuterias Aleacutem disso o processo eacute saliente em dois dos tiacutetulos do nosso corpus A escola desocupada e A cabeccedila bem feita Repensar a reforma reformar o pensamento

Este tipo de derivaccedilatildeo nos parece revelar o apelo ao SC por trecircs razotildees semacircntica morfoloacutegica e estatiacutestica

Dimensatildeo semacircnticaComo a forma em natildeo mais a forma em de- logicamente eacute construiacuteda pela pressuposiccedilatildeo

da existecircncia da unidade natildeo derivada e de seu sentido positivo (de qualquer forma natildeo negativo) mesmo que se trate frequentemente de um efeito analoacutegico pois na realidade o circuito morfoloacutegico eacute mais complexo (10)136 O raciociacutenio eacute exportaacutevel para re- Os exemplos a seguir (entre as centenas de ocorrecircncias identificadas por cada forma de- e re-) constroem os saberes e as crenccedilas do SC irrigadas pela ideologia crepuscular (PAVEAU 1999)

De-

- Jaf 90 O primeiro e principal efeito do descontentamento com o meacuterito na escola

- Mic 11 A crise do que se costumava chamar de ldquoEscola Republicanardquo [] obviamente participa do mesmo movimento histoacuterico que aliaacutes desfaz as famiacutelias decompotildee a existecircncia material e social das vilas e bairros e em geral gradualmente leva consigo

136 (10) Ainda que decompor por exemplo seja construiacutedo a partir de compor deriva desvio decadecircncia descontente etc natildeo resultam de prefixaccedilatildeo direta (a palavra natildeo prefixada desapareceu ou nunca existiu em francecircs œuvreacute) N T A observaccedilatildeo diz respeito ao termo ldquodeacutesoeuvreacuteerdquo (ociosa) que traduzimos com o objetivo de manter o prefixo de que trata a autora por ldquodesocupadardquo

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todas as formas de civilidade que haacute algumas deacutecadas ainda marcavam uma parte importante das relaccedilotildees humanas

- Mol 159 Encontramos na escrita o mesmo fenocircmeno de deslocamento e desarticulaccedilatildeo do corpo e da liacutengua Temos que ler corpos de escritos sem esqueleto a-morfos que testemunham por escrito o colapso do corpo como uma relaccedilatildeo consigo mesmo com os outros e com as coisas

- Morel 99 Falta de domiacutenio da liacutengua dificuldades de compreensatildeo falta de retrospectiva e desconstruccedilatildeo do conhecimento satildeo os principais problemas observados

- Morin 20 Consequentemente o despojamento do conhecimento muito mal compensado pela vulgarizaccedilatildeo da miacutedia coloca o problema histoacuterico agora capital da necessidade de democracia cognitiva

- Pen 96 Tendecircncia perigosa porque a deslegitimaccedilatildeo dos mestres soacute pode desencorajaacute-los ainda um pouco mais

- Rey 16 Por vinte anos e mais temos trabalhado de forma aberta ciacutenica e implacaacutevel para degradar as condiccedilotildees sociais e morais de existecircncia para destruir os serviccedilos puacuteblicos

Re-

- Cou 93 A repeticcedilatildeo seria restaurada [] Esta medida chocaria alguns mas quando constataacutessemos que ela (re) colocava os alunos para trabalhar seria amplamente aprovada

- Jaf 52 Em vez de continuar na via escolhida seria preferiacutevel tentar retroceder ndash com cautela ndash a certos preconceitos entre os mais nocivos da ideologia escolar restabelecendo a merecida confianccedila dos atores do sistema e a seriedade e o rigor que sua formaccedilatildeo exige

- Morin 46 Ela [a literatura] deve restaurar sua plena virtude

- Pen 122 Revalorizar o amor pelo conhecimento contra os desvios formalistas e pedagoacutegicos parece essencial a este respeito inclusive na luta contra as novas formas de obscurantismo e irracionalismo

- Rey 41 [] todos aqueles que pensam que um sistema educacional soacute pode ser salvo mudando os meacutetodos de ensino e evitando uma restauraccedilatildeo moral

Dimensatildeo morfoloacutegicaQuando a derivaccedilatildeo eacute neoloacutegica e o neologismo aparece em uso (salvo aspas excepcionais)

em uma frase assertiva e se inscreve num grande paradigma de termos em de- bem registrados na liacutengua isso produz um efeito de naturalizaccedilatildeo da unidade inscrita de fato nas estruturas preacute-discursivas dos destinataacuterios do discurso (algo semelhante pode ser dito da derivaccedilatildeo

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em re-) Identificamos oito neologismos que satildeo ou especiacuteficos de um autor ou retomados de um livro no outro (um caso de desritualizaccedilatildeo tirado de M Gauchet)

- Cou 37 [] as raiacutezes da desinformaccedilatildeo puacuteblica nos uacuteltimos anos

- Cou 62 Como reconstruir esse poder espiritual nas democracias modernas Eacute oacutebvio que isso requer um (re)estabelecimento da virtude poliacutetica entre cidadatildeos [] mas tambeacutem uma (re) instituiccedilatildeo escolar

- Cou 71 Os republicanos portanto correm o risco de ldquose deslaicizarrdquo sem perceber

- Jaf 118 [] tanto se tornou evidente o risco de uma marginalizaccedilatildeo coletiva de setores inteiros da juventude

- Mol 133 [] o que estamos testemunhando hoje eacute uma desinstitucionalizaccedilatildeo do corpo no sentido de que o corpo eacute desmembrado deslocado incapaz de se sustentar incapaz de se sustentar no lugar incapaz de sustentar em seu lugar

- Mol 160 Haacute uma espeacutecie de desritualizaccedilatildeo da aprendizagem (leitura escrita contagem)

- Pena 119 A (re) legitimaccedilatildeo da Escola eacute claramente urgente

Dimensatildeo estatiacutesticaA alta frequecircncia de uso dessas unidades produz um efeito de naturalizaccedilatildeo por repeticcedilatildeo

Satildeo em nossa opiniatildeo ferramentas do que Moore chama de enunciados homoloacutegicos adequados para a apropriaccedilatildeo individual das verdades de SC aqui a verdade da decadecircncia e a necessidade de um despertar reparador repeticcedilatildeo coletiva da forma [de- ou re- + X] apropriaccedilatildeo individual do segmento X

333 A derivaccedilatildeo em ndash ismo o exemplo de pedagogismo

Pedagogismo eacute um neologismo agora instalado nos usos em todo caso aqueles que testemunham os discursos do nosso corpus A sufixaccedilatildeo em -ismo produz em certos contextos unidades afetadas pela desvalorizaccedilatildeo eacute entatildeo a ideia de um sistema fechado (poliacutetico ideoloacutegico etc) mais ou menos autoritaacuterio e intencional que emerge desse sufixo tornando-se um subjetivema Todos os empregos de pedagogismo em nosso corpus satildeo marcados negativamente no contexto como mostram os exemplos a seguir

- Cou 15 O pedagogismo tambeacutem tem a perigosa ambiccedilatildeo de mudar a sociedade mudando a escola

- Cou 57 A resposta de Philippe Meirieu concentra todas as confusotildees do pedagogismo

- Jaf 100 [] a desconstruccedilatildeo do ldquocurso magistralrdquo recentemente associado ao elitismo a fragmentaccedilatildeo do grupo e a individualizaccedilatildeo dos percursos enfim tudo o que faz a reivindicaccedilatildeo atual do pedagogismo eacute justificado pela criacutetica social da escola

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- Morel 116 Voltaremos a esta noccedilatildeo de competecircncia bem como a estes novos apoacutestolos dos ldquomeacutetodosrdquo armados de certezas que datildeo aula de boa vontade adeptos de uma religiatildeo pedagogista cujo credo se resume em um slogan tatildeo pretensioso quanto destrutivo aprender a aprender

- Pen 74 As derivas sociais que potildeem em perigo a realidade especiacutefica da Escola parecem agora bem mais ameaccediladoras agrave medida que satildeo veiculadas dentro da proacutepria Escola por um discurso pedagogista muito sistematizado

Natildeo encontramos nenhuma ocorrecircncia neutra ou beneacutefica a proacutepria unidade eacute marcada pela subjetividade Como as derivaccedilotildees precedentes pedagogismo aparece em nosso corpus em enunciados assertivos determinados pelo definido generalizante o que implica uma pressuposiccedilatildeo de existecircncia e de identificaccedilatildeo O uso da palavra portanto inscreve a noccedilatildeo nas evidecircncias compartilhadas do SC como evidenciado por duas passagens interessantes A primeira constitui uma espeacutecie de arqueologia nosoloacutegica da pedagogia construindo entatildeo a noccedilatildeo como uma corrente constituiacuteda dotada de intencionalidade negativa

- Cou 26-27 [] o pedagogismo contemporacircneo detectaacutevel a partir dos anos 1920 com certos movimentos de nova educaccedilatildeo [] Um fato tambeacutem deve ser observado o fasciacutenio exercido pela Itaacutelia fascista e depois pela Alemanha nazista sobre certas mentes De que outra forma explicar essa virada educativa e de exaltaccedilatildeo da juventude que leva agrave mudanccedila do nome do ministeacuterio em 1932 ldquoEducaccedilatildeo puacuteblicardquo passou a ser ldquoEducaccedilatildeo nacionalrdquo (como na Itaacutelia) Nasceu o Estado educador e logo o pedagogo [] Este pedagogismo oficial triunfou com a lei de julho de 1989 que iria impor sob o ministeacuterio de Jospin o Estado pedagogo

A segunda atesta a mesma postura em relaccedilatildeo agrave palavra e agrave noccedilatildeo ao propor uma anaacutelise do ldquodiscurso pedagogistardquo apresentado de fato como um corpo de enunciados constituiacutedo e coerente O pedagogismo se torna quase uma formaccedilatildeo discursiva

- Jaf 177 O discurso pedagogista Pedagogia eacute um termo equiacutevoco Refere-se tanto agrave arte de ensinar quanto agrave concepccedilatildeo de educaccedilatildeo e ensino na qual essa arte se baseia Quanto ao pedagogismo existe uma concepccedilatildeo particular de ensino segundo a qual o essencial estaacute na arte de ensinar O pedagogismo eacute necessariamente polecircmico pois sua forccedila principal consiste em afirmar que a preocupaccedilatildeo com a pedagogia deve prevalecer sobre a do saber Mas ldquoa arte de ensinarrdquo tambeacutem eacute uma expressatildeo equiacutevoca Podemos compreendecirc-la como todas as praacuteticas e teacutecnicas utilizadas mais ou menos conscientemente pelo professor se forem inteiramente relativas agrave disciplina ensinada por exemplo matemaacutetica a pedagogia eacute dita especial e em nada difere da ldquodidaacuteticardquo Eacute que entendemos como ldquopedagogiardquo sobretudo um conjunto de teacutecnicas e meacutetodos cujo valor e relevacircncia sujeitos a algumas variaccedilotildees satildeo independentes das disciplinas particulares Nesse sentido a pedagogia eacute geral e se assemelha muito ao ideal loacutegico-teoloacutegico de um filoacutesofo medieval que trabalhou para inventar uma

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maacutequina para converter automaticamente os infieacuteis Tem como premissa a existecircncia de procedimentos gerais de ensino e aprendizagem que devem ser estudados promovidos e aplicados por si proacuteprios A pedagogia seria o Meacutetodo

Pedagogismo eacute um bom exemplo da construccedilatildeo discursiva do outro antagonista no discurso polecircmico a argumentaccedilatildeo requer um adversaacuterio e a eficaacutecia do discurso eacute aumentada pela existecircncia e pela identificaccedilatildeo preacutevias desse adversaacuterio Pedagogismo por meio de seu sufixo sistematizador eacute entatildeo uma palavra que concordando com N Goodman podemos dizer que eacute tanto feita tanto quanto encontrada eacute construiacuteda neologicamente no discurso ao mesmo tempo em que se articula a partir de saberes anteriores

34 A construccedilatildeo cognitivo-textual do SC

Chamamos de construccedilatildeo cognitivo-textual do SC um tipo de arranjo discursivo estabilizado que se baseia em um compartilhamento preacutevio de saberes eou crenccedilas Eacute o caso das ligaccedilotildees analoacutegicas que induzem no receptor uma transferecircncia de conhecimentos sobre um domiacutenio supostamente conhecido e partilhado que acreditamos ser do acircmbito do SC Dentre essas comparaccedilotildees estaacute obviamente a metaacutefora e retomamos as famosas hipoacuteteses de Lakoff e Johnson (1985) para quem a atividade metafoacuterica eacute natural para a expressatildeo do pensamento e da accedilatildeo Douay-Soublin (1987) fala de ldquoreconciliaccedilatildeo explicativardquo e noacutes a seguimos quando ela a torna uma macrocategoria que ignora as diferenccedilas tradicionalmente estabelecidas entre vaacuterias figuras bem estabilizadas na histoacuteria da retoacuterica

Para esta mesma forma e suas variantes a tradiccedilatildeo retoacuterica disse alternadamente paraacutebola similitude paralelo comparaccedilatildeo equivalecircncia correspondecircncia transposiccedilatildeo metaacutefora ou coloquialmente aproximaccedilatildeo ou mesmo imagem Que importa o roacutetulo desde que tenhamos a forma com o GTA [Grupo de Trabalho sobre Analogia] digo analogia para essa transferecircncia explicativa cujas condiccedilotildees de uma boa formaccedilatildeo importam mais para mim do que o nome (DOUAY-SOUBLIN 1987 on-line)

As conexotildees analoacutegicas entre X e Y satildeo suportadas pelas seguintes quatro teses

- Existem semelhanccedilas entre X e Y

- Apesar dessas semelhanccedilas X e Y satildeo diferentes de outras maneiras

- Podemos descrever ou explicar X do ponto de vista de Y usando formas de pensar que satildeo apropriadas a Y mas que natildeo teriacuteamos espontaneamente associado a X

- A comparaccedilatildeo analoacutegica permite entender melhor X porque Y eacute mais familiar e mais faacutecil de entender ou representar do que X

Note-se que a analogia tem sido tradicionalmente objeto de certo desprezo nos discursos que defendem a expressatildeo direta do conhecimento Como Douay-Soublin (1987 on-line) aponta

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[] endereccedilada pelo saacutebio ao ignorante a analogia natildeo visa ao conhecimento em todos os seus desdobramentos mas apenas a uma primeira aproximaccedilatildeo uma esquematizaccedilatildeo que leva do natildeo conhecimento ao semiconhecimento a analogia precisa de um ignorante como aacutelibi

A relaccedilatildeo analoacutegica convoca de fato um tipo de saber aproximativo natildeo loacutegico que contorna o Logos por meio dos caminhos da Doxa

Falaremos aqui da analogia proporcional e da metaacutefora sem condicionar suas diferenccedilas formais mas examinando o que as une o apelo ao CS que elas estabelecem e supotildeem

341 A analogia proporcional

A analogia oferece ao receptor um novo saber mediado por um saber compartilhado o que Douay-Soublin (1987 on-line) chama de ldquotransferecircncia de conhecimentordquo

Eacute esse efeito de suacutebita e muitas vezes duradoura elucidaccedilatildeo da representaccedilatildeo produzida por uma comparaccedilatildeo ldquoiluminadorardquo uma imagem ldquojustardquo que chamo de clique analoacutegico e me sentiria tentado na praacutetica a conceder o status de acbf (analogia cognitivamente bem formada) a todas as formas simboacutelicas que realmente desencadeiam essa transferecircncia de conhecimento qualquer que seja o nome que lhes seja dado pela tradiccedilatildeo

Nos exemplos a seguir a transferecircncia de conhecimento ocorre de um domiacutenio supostamente desconhecido ou mal conhecido para um domiacutenio conhecido cujos quadros servem de suporte para a explicaccedilatildeo Essas analogias satildeo consideradas proporcionais agrave medida que os autores comparam as proporccedilotildees

- Cou 52 A histoacuteria das ideias eacute para a filosofia o que um inseto morto eacute para o voo de um inseto Eacute uma tentaccedilatildeo formidaacutevel acreditar que esta histoacuteria das ideias prepara os alunos para o pensamento descrever um pensamento natildeo eacute pensar

- Jaf 35 O jogo dos coloacutequios e encontros pedagoacutegicos atinge em pouco tempo na escala das sociedades eruditas o que a seleccedilatildeo produz em vaacuterios milhotildees de anos no mundo dos vivos cada um quer ter sua palavra todos se alinham a um padratildeo virtual que parece nunca ter sido imposto por ningueacutem mas que acaba se tornando a regra

- Jaf 85 O meacuterito era para a poliacutetica do conhecimento o que o secularismo foi para a diversidade dos cultos uma forma bastante sofisticada de neutralidade []

- Jaf 111 Ideoloacutegica tem sido a forma de utilizar a empresa para dar um efeito de realidade ao universo fictiacutecio em que mantemos crianccedilas e professores A empresa eacute para os nossos contemporacircneos o que era a natureza no seacuteculo XVIII ou mais precisamente o mundo rural para os petainistas

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Mundo animal seleccedilatildeo natural secularismo natureza domiacutenios secundaacuterios satildeo mencionados dentro das configuraccedilotildees textuais para fins cognitivos convocando os quadros preacute-discursivos dos receptores

343 A metaacutefora

As metaacuteforas baseiam-se como especifica Aristoacuteteles em seacuteries constituiacutedas ou seja o conhecimento anterior ao discurso que organiza as representaccedilotildees

Aristoacuteteles ao mesmo tempo que insiste nas correlaccedilotildees entre seacuteries produzidas por uma estrutura idecircntica [] de fato repousa o edifiacutecio analoacutegico na existecircncia preacutevia de seacuteries jaacute constituiacutedas partes do corpo espeacutecies animais a lista de emblemas o Panteatildeo dos deuses [] Essas seacuteries que existem na memoacuteria coletiva agraves vezes satildeo longas ateacute indefinidas os nuacutemeros as cores a flora a fauna os ofiacutecios [] outras satildeo limitadas as 22 a 26 letras do alfabeto os doze trabalhos de Heacutercules os doze apoacutestolos os doze signos do zodiacuteaco os dez mandamentos [] (DOUAY-SOUBLIN 1987 on-line)

Os diferentes discursos estabelecem relaccedilotildees privilegiadas com esta ou aquela seacuterie Sabemos que o discurso da educaccedilatildeo se baseia em metaacuteforas recorrentes como aponta Charbonnel (1993) que daacute a seguinte lista viagens alimentaccedilatildeo preenchimento escultura combate luz arquitetura vida animal crescimento vegetal estabelecida com base em um estudo de textos que vatildeo da Antiguidade ao seacuteculo XIX Os discursos contemporacircneos sobre a escola (que satildeo organizados no quadro argumentativo da controveacutersia ao contraacuterio do corpus de Charbonnel) se baseiam em algumas dessas metaacuteforas estruturantes (em particular alimentaccedilatildeo e vida animal) mas oferecem outras amplamente utilizadas Escolhemos aqui falar sobre doenccedilas e militares Natildeo satildeo especiacuteficos ao nosso corpus do ano de 1999 mas organizam todos os discursos da ldquocontroveacutersia escolarrdquo que estudamos desde 1975 (PAVEAU 1999) Satildeo tambeacutem metaacuteforas estruturantes do debate polecircmico em geral que podem ser encontradas no discurso poliacutetico por exemplo

A metaacutefora meacutedicaEacute uma descriccedilatildeo analoacutegica da crise escolar que permite vaacuterias tipizaccedilotildees esclarecedoras

das quais daremos dois exemplos

- A associaccedilatildeo ldquoReformadoresrdquomaus meacutedicos e ldquoRepublicanosrdquobons meacutedicos

- Jaf 15 A poliacutetica educativa consulta os especialistas em didaacutetica e em pedagogia pede-lhes remeacutedios dirigiu-se aos piores meacutedicos pois a didaacutetica e a pedagogia por muito tempo anteciparam na teoria essa renuacutencia agrave transmissatildeo e em vez de curar a doenccedila optaram por apressar seu fim

- Rey 29 Vamos reformar o ensino meacutedio jaacute que abandonamos a faculdade Mais tarde vamos reformar a Universidade Gangrena e amputaccedilatildeo

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- Confusatildeo entre remeacutedio (boa reforma escolar) e veneno (maacute reforma)

- Jaf 33 Condenamo-nos a curar uma doenccedila que eacute proibido diagnosticar publicamente por meio de remeacutedios que sabemos infligir mal

- Rey 38 Este truque de passa-passa [] permite [] sob o pretexto de tratar a paciente acabar com ela E vai acabar com ela com a cumplicidade das mesmas pessoas que tecircm mais interesse pela sua sobrevivecircncia os pais dos alunos e os alunos as classes meacutedias e as classes trabalhadoras

- Rey 50 Tornar a escola uma das causas do desemprego alivia os empregadores e as empresas de sua imensa parcela de responsabilidades Eacute apresentar o remeacutedio como o veneno e o veneno como o remeacutedio

A metaacutefora militarEacute usada de duas maneiras A maneira melhorativa que vai ao encontro do que Charbonnel

chama de ldquoo combaterdquo associa ensino e bravura de guerra

- Pen 78 [] quem tem que trabalhar na linha de frente ndash professores no geral e professores da escola primaacuteria e natildeo pedagogos profissionais que jaacute natildeo ensinam ndash pode ser vencido pelo desacircnimo

- Rey 9 A vida nas trincheiras [tiacutetulo do capiacutetulo]

- Mil 11 [tiacutetulos dos capiacutetulos] 1 Os objetivos da guerra ndash 2 O teatro de operaccedilotildees ndash 3 As forccedilas opostas ndash 4 Suas taacuteticas [dos alunos] ndash 7 Os ardis da guerra ndash 8 A intendecircncia e as bases da retaguarda ndash 9 As alegrias do esquadratildeo

O ponto de vista polecircmico apela sobretudo para a desvalorizaccedilatildeo da atividade militar que entatildeo serve de comparaccedilatildeo com o funcionamento atual da escola

- Mol 27 Esses meacutetodos satildeo mais parecidos com os meacutetodos de gestatildeo de estoques de mercadorias [] do que com meacutetodos de instruccedilatildeo e se queremos manter o uacuteltimo termo eacute mais uma questatildeo de instruccedilatildeo militar do que instruccedilatildeo intelectual isto eacute um aprendizado da submissatildeo e da aprendizagem cega

- Mol 86 A escola de gestatildeo deve treinar seus oficiais subalternos [tiacutetulo do capiacutetulo]

- Morel 122 Algumas exceccedilotildees significativas poreacutem nesta ofensiva generalizada contra a memoacuteria e os procedimentos de aprendizagem o jogador de futebol ou tecircnis o virtuoso artista de concerto e ateacute o candidato agrave carteira de motorista

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ConclusatildeoAo final deste trabalho gostariacuteamos de fazer duas observaccedilotildees

- Levar em consideraccedilatildeo o SC requer um trabalho sobre a presenccedila de crenccedilas e saberes compartilhados na proacutepria materialidade do discurso o SC eacute uma realidade representacional que exige um discurso de atestaccedilatildeo Na ausecircncia dessa comprovaccedilatildeo discursiva o trabalho sobre o SC eacute limitado pela subjetividade do analista e enviesado por seus proacuteprios saberes e crenccedilas

- O discurso sobre a escola privilegia formas ldquointelectuaisrdquo de apelo ao SC determinadas pela formaccedilatildeo discursiva originaacuteria consideraccedilatildeo constante da liacutengua reflexatildeo sobre o sentido uso de figuras retoacutericas Os outros corpora constroem o apelo ao SC de forma diferente (os militares favorecem as formas praacuteticas e os jornalistas favorecem as formas culturais)

As formas de convocaccedilatildeo do SC constroem assim a identidade dos locutores nos discursos e sua consideraccedilatildeo depende integralmente de uma teoria das praacuteticas discursivas

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A LINGUIacuteSTICA FORA DE SI MESMA EM DIRECcedilAtildeO A UMAPOacuteS-LINGUIacuteSTICA137

No nuacutemero 139140 da revista Pratiques sobre linguiacutestica popular publicado haacute pouco mais de dez anos a introduccedilatildeo se intitulava ldquoA linguiacutestica lsquofora do templorsquordquo (ACHARD-BAYLE PAVEAU 2008) Essa expressatildeo refletia outras formulaccedilotildees de uma lacuna em relaccedilatildeo agraves normas que definiam e obrigavam as ciecircncias (ciecircncia selvagem ciecircncia popular ciecircncia profana e mesmo pseudociecircncia) mas tambeacutem a arte (arte bruta fora dos muros arte inocente arte outsider) a medicina (medicinas alternativas medicinas doces138) e muitas outras praacuteticas sociais A linguiacutestica popular eacute de fato alinhada aos colecionadoresas apaixonadosas dos inventores de teorias sem academia dos curandeiros e das bruxas dos saacutebios e xamatildes dosdas artistas loucosas dosdas criadoresas ociososas Essa linguiacutestica estaacute alinhada agraves pessoas que falam sem elaboraccedilatildeo cientiacutefica nem construccedilatildeo teoacuterica cientiacutefica sobre o que falam e o que os outros comentam

Haacute dez anos eu pensava de modo ainda um pouco binaacuterio essa fronteira entre o que eacute cientiacutefico-acadecircmico e o que natildeo eacute ainda que a tipologia dos natildeo-linguistas proposta no texto ldquoOs natildeo-linguistas fazem linguiacutesticardquo139 propusesse um continuum numa perspectiva jaacute poacutes-dualista (PAVEAU 2008) Esta forma de colocar as coisas me parece hoje ultrapassada e pouco defensaacutevel embora ela seja a regra na linguiacutestica acadecircmica Os artigos agrupados nesse nuacutemero da revista Carnets du Cediscor (onde este texto foi originalmente publicado) parece ir em direccedilatildeo a um pensamento escalar em ruptura com o binarismo fundador da ciecircncia linguiacutestica a linguiacutestica popular constituiacuteda pelos metadiscursos dos natildeo-linguistas contribui de fato a situar a linguiacutestica natildeo somente fora do templo mas tambeacutem fora de si mesma isto eacute fora de seus periacutemetros disciplinares imaginaacuterios e normativos e fora dos seus criteacuterios de legitimidade Essa evoluccedilatildeo estaacute tambeacutem ancorada nas mudanccedilas pelas quais passam atualmente todos os discursos tanto aqueles do mundo quanto os da ciecircncia e numa perspectiva internacional Ela estaacute articulada essencialmente em torno da derrota dos dualismos fundadores e do surgimento dos lugares de fala digitais que podem ser apropriados por todos

Os natildeo-linguistas natildeo existem eu osas encontreiDurante os uacuteltimos anos o pensamento poacutes-dualista traccedilou seu percurso e as propostas

para pensar o mundo de maneira ecoloacutegica satildeo felizmente desenvolvidas nutrindo agora muitos trabalhos questionamento da divisatildeo entre natureza e cultura (LATOUR 1991 DESCOLA 2006) a hierarquizaccedilatildeo dos seres e das coisas que colocava o humano no topo da

137 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A La linguistique hors drsquoelle mecircme Vers une postlinguistique Les Carnets du Cediscor 142018 on-line Disponiacutevel em httpjournalsopeneditionorgcediscor1478 Traduccedilatildeo de Julia Lourenccedilo Costa (UFSCarFAPESP)

138 NT Terapias que vatildeo da homeopatia agrave acupuntura e agrave fitoterapia Disponiacutevel em httpswww1folhauolcombrfspcotidianff2909200119htm Acesso em 10 out 2020

139 NT O texto faz parte deste livro

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piracircmide (SCHAEFFER 2007) a concepccedilatildeo internalista do espiacuterito (DENNET 1990) tambeacutem o distanciamento do antropocentrismo (BODDICE 2011) e do eurocentrismo (CHAKRABARTY 2009) Nesses diferentes campos o questionamento das distinccedilotildees dualistas enriquece os resultados das pesquisas e mais amplamente enriquece os pontos de vista pensamos melhor fora dos muros das divisotildees categoriais geograacuteficas e ideoloacutegicas do que no interior dos periacutemetros forccedilados e fechados Da derrota desses binarismos encenada atualmente emerge tambeacutem a invalidez de uma separaccedilatildeo clara entre o que seria cientiacutefico e o que natildeo seria principalmente no que se refere ao conhecimento sobre a linguagem Nancy Niedzielski e Dennis Preston demonstraram na siacutentese que fizeram em 2000 que no centro das atividades linguiacutesticas profissionais os linguistas adotavam atitudes profanas e que reciprocamente diversas descobertas linguiacutesticas profanas se revelaram perfeitamente precisas e verificaacuteveis140 Eu mesma apelei em 2008 por uma perspectiva integracionista dos saberes populares contra um eliminativismo que ainda funda a definiccedilatildeo de ciecircncia (eliminaccedilatildeo dos saberes do senso comum) Levar em consideraccedilatildeo e ateacute mesmo respeitar os resultados da linguiacutestica popular eacute portanto um enriquecimento da proacutepria linguiacutestica e eacute difiacutecil entender porquecirc os linguistas deveriam se privar dela Eacute o que explica Catherine Ruchon no seu artigo sobre a atividade de definiccedilatildeo do discurso animal ldquoAs teorias populares fornecem caminhos de acesso aos processos de semiotizaccedilatildeordquo (RUCHON no mesmo nuacutemero da revista onde o original foi publicado141)

Ela daacute o exemplo da palavra carne do ponto de vista dos carniacutevoros que natildeo evoca ou natildeo evoca mais o sema da animalidade que eacute o que o militantismo animal faz ldquoAs teorias populares podem portantordquo ela conclui ldquoalimentar a pesquisa sobre a relaccedilatildeo entre o leacutexico a referecircncia e as representaccedilotildees mostrando como as categorizaccedilotildees leacutexico-semacircnticas populares satildeo formadas e quais satildeo as representaccedilotildees axioloacutegicas associadasrdquo (Ibidem) Essa integraccedilatildeo dos pontos de vista e em uacuteltima instacircncia das experiecircncias dosdas locutoresas em detrimento da abordagem usual e logocentrada de suas proacuteprias produccedilotildees compete plenamente a uma perspectiva poacutes-dualista

Anne-Charlotte Husson vai mais longe na integraccedilatildeo dos pontos de vista dosdas locutoresas ao propor uma elaboraccedilatildeo teoacuterica que articula a linguiacutestica popular e a epistemologia do ponto de vista (a standpoint epistemologyepistemologia do ponto de vista feminista norte-americana) Essa articulaccedilatildeo permite que ela integre na anaacutelise dos fenocircmenos linguageiros e discursivos os dados eacuteticos e poliacuteticos dos ambientes produtores de discurso (HUSSON no mesmo nuacutemero da revista onde o original foi publicado142) Eis portanto a linguiacutestica popular descrita como linguiacutestica natildeo binaacuteria que funciona de maneira ecoloacutegica baseada em uma episteme poacutes-dualista Natildeo foi esse o caso do coletivo de 2008 que ainda assim reuniu

140 Lembremos que as primeiras proposiccedilotildees da linguiacutestica popular foram feitas nos Estados Unidos por Hœnigswald em 1966 quando as versotildees contextualistas da linguiacutestica estavam se desenvolvendo de acordo com o trabalho de Harris em particular (HARRIS 1969 HŒNIGSWALD 1966) Isso significa que a linguiacutestica popular eacute contemporacircnea ao nascimento da linguiacutestica contextual entendida como uma superaccedilatildeo linguiacutestica fraacutestica internalista tornada emblemaacutetica pelas Estruturas Sintaacuteticas de Chomsky (CHOMSKY 1962)

141 NT ldquoLexique cateacutegorisation et repreacutesentation les reformulations meacutetalinguistiques dans le discours animalisterdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1226

142 NT ldquoLa contribution des theacuteories feacuteministes du standpoint Pour une version forte de la perspective folkrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1324

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quinze artigos entretanto se inserem nessa perspectiva poacutes-dualista natildeo apenas as propostas ecoloacutegicas de antropoacutelogos filosoacuteficos como Philippe Descola mas tambeacutem os estudos de gecircnero finalmente instalados na Franccedila e surgidos da ironia um tanto desdenhosa que as ciecircncias humanas e sociais francesas que haacute muito reservaram aos estudos culturais seus objetos sujos Tambeacutem a chegada de uma nova geraccedilatildeo de pesquisadoresas que puderam se apropriar desses legados de maneira lucrativa e muitas vezes com alegria como evidencia esta ediccedilatildeo143 e tambeacutem o presente livro

Parecia-me possiacutevel em 2008 dizer que os natildeo-linguistas eram valiososas linguistas Eu diria hoje que natildeo existem natildeo-linguistas uma vez que a linguiacutestica eacute praticada de forma plural a partir de posiccedilotildees variadas e mutaacuteveis os natildeo-linguistas natildeo existem pois estatildeo em toda parte e ser linguista constitui uma posiccedilatildeo e uma construccedilatildeo discursiva Isso eacute claramente demonstrado pelo artigo de Judith Visser sobre liacutenguas regionais144 nesta questatildeo de fato a distinccedilatildeo linguista versus natildeo-linguista eacute particularmente inoperante na medida em que o conhecimento sobre os dialetos por exemplo eacute inacessiacutevel aos linguistas profissionais Portanto prefiro dizer hoje que os linguistas quaisquer que sejam seu status sua atividade e sua legitimidade social satildeo poacutes-linguistas valiososas no bom sentido do termo145 Por poacutes-linguista quero dizer uma pesquisadora equipadoa epistemologicamente ciente da natureza mais institucional que cientiacutefica das fronteiras disciplinares das ciecircncias da linguagem integrando plenamente contextos (realia146 e pontos de vista) em seu trabalho sobre as mateacuterias linguageiras e discursivas em uma abordagem ecoloacutegica que evita o logocentrismo antropocentrismo e eurocentrismo

OsAs amadoresas no terreno da web falar de pessoas que falamA web eacute um fator determinante para a implantaccedilatildeo de uma praacutetica poacutes-linguiacutestica Nos

uacuteltimos dez anos esse espaccedilo de fala se desenvolveu consideravelmente e mudou as praacuteticas sociais inclusive as linguiacutesticas a web 20 um dos serviccedilos de internet mais usados devido suas possibilidades conversacionais colaborativas e participativas de fato permite que o discurso linguiacutestico dosas amadoresas seja expresso de forma ilimitada tanto nos espaccedilos puacuteblicos quanto nos privados Retomo o termo amadora de Patrice Flichy (2010) que em Le sacre de lrsquoamateur (A consagraccedilatildeo do amador) descreve essa apropriaccedilatildeo das possibilidades da web por pessoas comuns que fazem o que antes estava reservado aos profissionais fotografia filme arte escrita criacutetica venda tantas praacuteticas que a acessibilidade aos espaccedilos e agraves ferramentas facilitaram muito O mesmo acontece com as praacuteticas linguiacutesticas que encontram na web conversacional lugares de formulaccedilatildeo e recepccedilatildeo os espaccedilos de escrita e

143 NT O nuacutemero 14 de 2018 da revista Les Carnets du Cediscor intitulado ldquoLes meacutetadiscours des non-linguistesrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1089

144 NT ldquoLinguiste ou non-linguiste Reacuteflexions sur une dichotomie controverseacutee agrave partir de lrsquoanalyse de meacutetadiscours sur les langues reacutegionalesrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1384

145 Acrescento esse esclarecimento pensando na carga atualmente muito depreciativa da palavra poacutes-verdade e nas conotaccedilotildees frequentemente criacuteticas de outros termos em poacutes- como poacutes-humanismo por exemplo

146 NT ldquoEm traduccedilatildeo os realia satildeo palavras que denotam objetos conceitos e fenocircmenos exclusivos de uma determinada cultura Por natildeo possuiacuterem correspondecircncias precisas em outras culturas representam muitas vezes um desafio para o tradutorrdquo Disponiacutevel em httpsptwikipediaorgwikiRealia Acesso em 10 out 2020

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discussatildeo on-line (espaccedilos para escrever blogs dispositivos tecnodiscursivos dos comentaacuterios formatos de discussatildeo das redes sociais) favorecem a produccedilatildeo de locutoresas comuns sobre a liacutengua mas tambeacutem a permitem no sentido simboacutelico do termo aquilo que eacute uma novidade em relaccedilatildeo aos lugares de expressatildeo preacute-digital

Em seu artigo sobre dicionaacuterios colaborativos147 Kaja Dolar enfatiza algo que a linguiacutestica natildeo estaacute habituada a abordar as ldquoexperiecircncias pessoaisrdquo dos linguistas que fundam seus saberes lexicograacuteficos Este campo dos dicionaacuterios colaborativos on-line eacute particularmente interessante para a observaccedilatildeo das praacuteticas linguiacutesticas porque natildeo se trata apenas de colaboraccedilatildeo mas tambeacutem da ampliaccedilatildeo enunciativa (os sujeitos da enunciaccedilatildeo satildeo perpetuamente tecidos pelas livres contribuiccedilotildees dos internautas) da relacionalidade (as definiccedilotildees propostas satildeo colocadas em relaccedilatildeo com outros documentos por meio de links hipertextuais) e inumerabilidade (ao contraacuterio do diagrama lexicograacutefico tradicional que inclui apenas uma definiccedilatildeo mesmo longa os dicionaacuterios colaborativos podem oferecer vaacuterias dezenas de definiccedilotildees como pode ser visto em alguns artigos do The Urban Dictionary por exemplo) Os criteacuterios de validade dos metadiscursos produzidos satildeo portanto dos trabalhos lexicograacuteficos habituais onde eacute a expertise do enunciador que fundamenta sua legitimidade on-line eacute o controle colaborativo e a negociaccedilatildeo intersubjetiva muitas vezes anocircnima que valida as definiccedilotildees ou as descriccedilotildees como na Wikipeacutedia por exemplo Eacute por isso que a questatildeo aqui colocada por Dietmar Osthus sobre a captaccedilatildeo das produccedilotildees dosas locutoresas comuns148 na maior parte do tempo indescritiacutevel eacute crucial invisibilizadosas e tornadoas imperceptiacuteveis pela ldquoespiral do silecircnciordquo149 estesas uacuteltimosas produzem uma massa de discurso que afeta a sociedade mas natildeo eacute reconhecida ldquoO desafio que se apresenta para as pesquisas futuras em linguiacutestica popularrdquo enfatiza Dietmar Osthus (no mesmo nuacutemero da revista onde o original foi publicado) ldquoseraacute coletar as fontes de lsquofalantes comunsrsquo fora dos espaccedilos de discussatildeo ou de publicaccedilatildeo explicitamente metalinguiacutesticosrdquo

Em um contexto natildeo digital parece que esse desafio tambeacutem eacute assumido por Franccedilois Labatut que mostra que as atividades metalinguiacutesticas estatildeo em accedilatildeo em um determinado tipo de discurso150 o amicus brief texto no qual o cidadatildeo ou cidadatilde americanoa comum podem fornecer evidecircncias ao juiz no contexto de um julgamento Com efeito Franccedilois Labatut mostra que neste tipo de texto que natildeo tem vocaccedilatildeo metalinguiacutestica os ajustes metalinguiacutesticos satildeo numerosos destinados a servir a uma das partes envolvidas no processo Voltando agrave web seus espaccedilos de escrita natildeo modificam simplesmente o conteuacutedo dos metadiscursos e a proacutepria concepccedilatildeo de lexicografia como indica Kaja Dolar mas a ecologia inteira da praacutetica linguiacutestica suas formas seus objetos seus criteacuterios de reconhecimento e legitimidade seus espaccedilos Eacute tambeacutem nisso que a linguiacutestica se torna poacutes-linguiacutestica os terrenos da web e

147 NT ldquoLes dictionnaires collaboratifs en ligne des objets meacutetalinguistiques profanesrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1161

148 NT ldquoAgrave la recherche du lsquolocuteur ordinairersquo vers une cateacutegorisation des meacutetadiscoursrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1124

149 Dietmar Osthus retoma aqui a noccedilatildeo desenvolvida nos anos 1970 por Eacutelisabeth Noeumllle-Neumann para descrever o funcionamento da opiniatildeo puacuteblica consultar a referecircncia em seu artigo

150 NT ldquoEacutenonceacutes deacutefinitoires et subjectiviteacute dans les deacutebats sur lrsquoeacutevolution du mariage aux Eacutetats-Unisrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1268

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mais amplamente da internet pressionam a linguiacutestica para fora de seus templos e para fora de si mesma forccedilando-a nas abordagens ecoloacutegicas sob a ameaccedila de perder a dinacircmica da construccedilatildeo do sentido e a vida da mateacuteria linguageira

Provincializar a linguiacutestica por uma ecologia do discursoA linguiacutestica popular ou os metadiscursos de pessoas que falam provincializam a linguiacutestica

no sentido que Dipesh Chakrabarty emprega esse termo Em Provincialiser lrsquoEurope la penseacutee postcoloniale et la diffeacuterence historique (Provincializar a Europa pensamento poacutes-colonial) e diferenccedila histoacuterica (CHAKRABARTY 2009) ele se propotildee a pensar a histoacuteria dos paiacuteses natildeo ocidentais natildeo mais a partir do centro europeu e eurocecircntrico mas a partir das margens Ele preconiza um descentramento das epistemes ocidentais uma viagem para fora de si mesmas e em certa medida de modo a adotar abordagens mais globais e respeitosas em relaccedilatildeo agraves realidades singulares das aacutereas geograacuteficas implicadas A provincializaccedilatildeo eacute portanto uma saiacuteda do centro levando em conta as margens o que consequentemente implica o apagamento desta distinccedilatildeo dualista centromargens Para Dipesh Chakrabarty (2009 p 92) trata-se de ldquoimaginar a heterogeneidade radical do mundordquo A provincializaccedilatildeo eacute uma abordagem poacutes-dualista e nos meus termos ecoloacutegica Mais recentemente Eduardo Kohn retoma essa noccedilatildeo para aplicaacute-la diretamente agrave linguagem No famoso ensaio Comment pensent les focircrets (Como as florestas pensam) ele compreende que os signos linguiacutesticos natildeo satildeo os uacutenicos elementos de significaccedilatildeo linguageira a serem considerados e que tambeacutem devemos estar atentos aos iacutecones e indiacutecios usados pelos agentes natildeo humanos animais aacutervores e plantas para representar ldquo[] os outros modos de representaccedilatildeo tecircm propriedades bastante diferentes daquelas demonstradas pelas modalidades simboacutelicas das quais a linguagem depende Em suma se interessar pelos tipos de signos que emergem e circulam para aleacutem do simboacutelico permite convencer-nos da necessidade de lsquoprovincializarrsquo a linguagemrdquo (KOHN 2017 p 68)

Continuo a tecer a metaacutefora de minha parte desejando uma provincializaccedilatildeo natildeo apenas da linguagem mas da proacutepria linguiacutestica que me parece bem iniciada pelas praacuteticas da linguiacutestica popular Considerar no proacuteprio trabalho linguiacutestico os metadiscursos das pessoas comuns incorporando suas experiecircncias de vida seus pontos de vista suas posiccedilotildees morais suas situaccedilotildees poliacuteticas e tudo o que compotildee sua vida permite agrave linguiacutestica sair do logocentrismo que a priva da profundidade da vida dos sujeitos (a linguiacutestica da enunciaccedilatildeo por exemplo permanece nas margens de suas vidas) A plena integraccedilatildeo das condiccedilotildees de fala dosas locutoresas nas praacuteticas linguiacutesticas quer sejam elas dosas produtoresas dos corpora ou de seus analistas permite iniciar o programa de uma poacutes-linguiacutestica que respeita tanto os ambientes das pessoas que falam quanto suas palavras

Sobre a autora oas organizadorase osas tradutoresas

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Marie-Anne Paveau eacute professora e pesquisadora na Universiteacute Paris XIII ndash Sorbonne Paris Nord Trabalha na teoria do discurso com uma abordagem transdisciplinar (filosofia ciecircncias sociais SIC pesquisa sobre Internet estudo acerca de animais e plantas) Desenvolve uma anaacutelise do discurso que integra ambientes natildeo humanos de natureza tecnoloacutegica corporal animal e vegetal na produccedilatildeo do discurso em uma perspectiva poacutes-dualista e

ecoloacutegica Atualmente trabalha na articulaccedilatildeo entre discurso gecircnero e raccedila em uma perspectiva decolonial Grupos e colaboraccedilotildees Anaacutelise do discurso digital (AD2I) grupo franco-brasileiro de pesquisa ndash Universidades de Campinas e Paris 13 e Feminilidades Discurso e Sexualidade grupo franco-brasileiro de pesquisa ndash Universidades de Campinas Paris 13 e ENS Lyon Publicaccedilotildees recentes LrsquoAnalyse du discours numeacuterique Dictionnaire des formes et des pratiques (Hermann 2017) Le discours pornographique (La Musardine 2014) Langage et morale Une eacutethique des vertus discursives (Lambert-Lucas 2013) La langue franccedilaise Passions et poleacutemiques (VUIBERT ROSIER 2008) Les preacutediscours Sens meacutemoire cognition (Presses Sorbonne Nouvelle 2006) Les grandes theacuteories de la linguistique (COLIN SAFARTI 2003)

E-mail mapaveauorangefr

Fonte httpspleiadeuniv-paris13frprofilmarie-annepaveau

Eacuterika de Moraes eacute docente na Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo (UNESP) vinculada agrave Faculdade de Arquitetura Artes e Comunicaccedilatildeo campus de Bauru e ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Estudos Linguiacutesticos do IBILCE-UNESP Satildeo Joseacute do Rio Preto Com poacutes-doutoramento pela Universiteacute Paris-Sorbonne (Paris IV) sob supervisatildeo do professor Dr Dominique Maingueneau realizado em 2017 Doutora e Mestre em Linguiacutestica pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas IELUNICAMP com ecircnfase em Anaacutelise do Discurso de linha francesa Graduada em Comunicaccedilatildeo Social Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo (UNESP) e em Letras pela Universidade do Sagrado Coraccedilatildeo Liacuteder do grupo de Pesquisa DisCo21 ndash Discurso e Comunicaccedilatildeo no Seacuteculo XXI e membro do FEsTA ndash Foacutermulas e Estereoacutetipos Teoria e Anaacutelise

E-mail erikademoraesuolcombrLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr7422887152634157

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Fernando Curtti Gibin eacute doutorando e mestre em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) e eacute bacharel em Letras com Habilitaccedilatildeo de Tradutor pela Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo (UNESP) e em Direito pelo Centro Universitaacuterio de Rio Preto (UNIRP) No que concerne agrave vida profissional atua como produtor de conteuacutedo revisor de textos professor de liacutengua portuguesa e advogado Agrave luz dos estudos linguiacutesticos apresenta especialidade na aacuterea de Linguiacutestica com ecircnfase em Linguiacutestica Textual e em Anaacutelise do Discurso Nas aacuteguas dos estudos juriacutedicos eacute poacutes-graduando em Direito Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD)

E-mail fernandocurttihotmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr2951925118571459

Julia Lourenccedilo Costa eacute pesquisadora de Poacutes-doutorado com apoio da Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa do Estado de Satildeo Paulo na Universidade Federal de Satildeo Carlos (FAPESPUFSCar 201712792-0) sob a supervisatildeo de Roberto Leiser Baronas Realizou estaacutegio de pesquisa na Universidade Paris 13 Nord (FAPESP 201818860-0) sob a supervisatildeo de Marie-Anne Paveau Doutora em Linguiacutestica (2017) pela Universidade de Satildeo Paulo (USP) com periacuteodo de estaacutegio de pesquisa na Universidade Paris-Sorbonne IV sob a supervisatildeo de Dominique Maingueneau Mestra em Linguiacutestica (2013) pela USP e graduada em Letras (2011) pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) Eacute membro do Laboratoacuterio de Estudos Epistemoloacutegicos e Discursividades Multimodais (LEEDiMUFSCar) e do Grupo de Estudos Semioacuteticos da Universidade de Satildeo Paulo (GES-USP) Eacute editora assistente da revista Linguasagem (PPGLUFSCar) e da revista da ANPOLL Sua pesquisa tem como foco a Anaacutelise do discurso francesa a Semioacutetica greimasiana e a Comunicaccedilatildeo nas diversas interfaces com os feminismos E-mail juliajlcgmailcom Link para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr5592296124389416

Marco Antonio Almeida Ruiz eacute Bacharel Mestre e Doutor em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) Eacute Doutor em Sociologia pela Eacutecole des Hautes Eacutetudes en Sciences Sociales (EHESS) de Paris e poacutes-doutorando em estudos linguiacutesticos pela Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras da USP de Ribeiratildeo Preto E-mail marcoalmeidaruizgmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr4613888575492521

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Maria de Faacutetima Sopas Rocha eacute Professora Associada aposentada da Universidade Federal do Maranhatildeo Eacute doutora em linguiacutestica pela Universidade Federal do Cearaacute Participou como pesquisadora dentre outros dos projetos Atlas Linguiacutestico do Maranhatildeo ndash AliMA Atlas Linguiacutestico do Brasil ndash AliB e Tesouro do Leacutexico Patrimonial Galego e Portuguecircs Foi fundadora e Professora Permanente do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Letras ndash Mestrado Acadecircmico Participou como autora ou organizou em coautoria dentre outras as seguintes obras A diversidade do portuguecircs falado no Maranhatildeo o Atlas Linguiacutestico do Maranhatildeo em foco (2006) O portuguecircs falado no Maranhatildeo estudos preliminares (2010) O portuguecircs falado no Maranhatildeo muacuteltiplos olhares Pelos caminhos da Dialetologia e da Sociolinguiacutestica entrelaccedilando saberes e vidas (2010) Dicionaacuterio da obra de Domingos Vieira Filho (2015) E-mail fsopasyahoocombrLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr6600718231861371

Mariana Luz Pessoa de Barros possui bacharelado e licenciatura em Liacutengua Portuguesa (USP) mestrado (2006) e doutorado (2011) em Semioacutetica e Linguiacutestica Geral (USP) e Poacutes-Doutorado em Linguiacutestica (2016) pela USP Realizou estaacutegio de doutorado-sanduiacuteche na Universiteacute Paris 8 Atuou como professora de liacutengua portuguesa no Ensino Fundamental II e no Ensino Meacutedio (ensino regular e EJA) Foi coordenadora do Foacuterum de Atualizaccedilatildeo em Pesquisas Semioacuteticas (FAPS Ges-Usp) e coeditora da Revista Estudos Semioacuteticos (USP) Atualmente eacute professora adjunta do Departamento de Letras da Universidade Federal de Satildeo Carlos vice-presidenta do Grupo de Estudos Linguiacutesticos do Estado de Satildeo Paulo (2019-2021) e liacuteder do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Semioacutetica da UFSCar (PISCar) Suas publicaccedilotildees envolvem os seguintes temas estudos do texto e do discurso semioacutetica autobiografia memoacuteria tempo anaacutelise do discurso poliacutetico e ensino de liacutengua portuguesa E-mail maluzpessoagmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr4830505244404566

Mocircnica Magalhatildees Cavalcante eacute doutora em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Pernambuco com poacutes-doutoramento pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Coordena o grupo de pesquisa Protexto na Universidade Federal do Cearaacute onde atua ainda hoje como Professora Associada Dentre as obras que produziu ou organizou citam-se as seguintes Referenciaccedilatildeo (2003) Os sentidos do texto (2012) Intertextualidade ndash diaacutelogos possiacuteveis (2007) Referenciaccedilatildeo (2013) Coerecircncia referenciaccedilatildeo e ensino (2014) Eacute organizadora das traduccedilotildees Apologia da polecircmica (2017) de Ruth Amossy e O texto ndash tipos e protoacutetipos de Jean-Michel Adam (2019) E-mail monicamc02gmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr5088972912048247

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Paula Camila Mesti possui graduaccedilatildeo em Letras ndash Licenciatura em Portuguecircs-Inglecircs (2007) e mestrado em Letras (2010) pela Universidade Estadual de Maringaacute (2010) e doutorado em Linguiacutestica (2017) pela Universidade Federal de Satildeo Carlos Com apoio de bolsa BEPEFAPESP fez doutorado sanduiacuteche na Sorbonne ndash Paris IV em Paris ndash Franccedila sob a supervisatildeo do Professor Dominique Maingueneau no periacuteodo de setembro2014 a junho2015 Nos anos de 2011 e 2012 foi professora colaboradora da Universidade Estadual do Mato Grosso ndash campus de Tangaraacute da Serra-MT Atualmente eacute secretaacuteria executiva da Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-graduaccedilatildeo e Pesquisa em Letras e Linguiacutestica e professora colaboradora da Universidade Estadual do Paranaacute ndash campus de Campo Mouratildeo Eacute membro do Laboratoacuterio de Estudos Epistemoloacutegicos e de Discursividades Multimodais ndash LEEDiM ndash UFSCarCNPq desde 2013 E-mail paulamestihotmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr8453392455009320

Phellipe Marcel da Silva Esteves possui bacharelado em Comunicaccedilatildeo Social (Jornalismo) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007) licenciatura em Liacutengua Portuguesa pela Universidade Candido Mendes (2008) mestrado em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2010) doutorado em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal Fluminense (2014) e residecircncia em pesquisa na Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional (2014-2016) Atualmente eacute professor adjunto da UFF aleacutem de exercer os ofiacutecios de ediccedilatildeo e traduccedilatildeo Tem experiecircncia na aacuterea de Letras com ecircnfase em Anaacutelise do Discurso atuando principalmente nos seguintes temas anaacutelise do discurso histoacuteria das ideias linguiacutesticas histoacuteria do livro linguiacutestica aplicada e linguiacutestica O materialismo histoacuterico como princiacutepio a paternidade como vida a revoluccedilatildeo dos trabalhadores como horizonteE-mail phellipemarcelyahoocombr Link para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr6384597108585900

Roberto Leiser Baronas eacute professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) e no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Estudos da Linguagem da UFMT Graduado em Letras (1994) pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e Doutor em Linguiacutestica e Liacutengua Portuguesa (2003) pela Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo (UNESP) Durante o ano de 2003 fez seu doutorado ldquosanduiacutecherdquo na Universidade Paris Est - Creacuteteil - Val de Marne - Franccedila no Centro de Estudos de Discursos Imagens Textos Escritos e Comunicaccedilatildeo - CEacuteDITEC (2003) Poacutes-doutorado no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Linguiacutestica Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL) na Faculdade de Filosofia Comunicaccedilatildeo Artes e Letras da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP) Eacute um dos coordenadores do Laboratoacuterio de Estudos Epistemoloacutegicos e Discursividades Multimodais (LEEDiMUFSCar) Editor chefe da revista Linguasagem - Revista Eletrocircnica de Popularizaccedilatildeo Cientiacutefica em Ciecircncias da Linguagem (PPGLUFSCar) Seus estudos tecircm como foco a anaacutelise do discurso a linguiacutestica popularfolk linguistics o discurso poliacutetico e a epistemologia e a histoacuteria da linguiacutestica brasileira E-mail baronasuolcombr Link para o Lattes httplattescnpqbr4613001301744682

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Samuel Ponsoni eacute Graduado em Letras Mestre e Doutor em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Satildeo Carlos ndash UFSCar (2015) Atualmente eacute professor Designado na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) Unidade Passos Coordena nessa mesma universidade o laboratoacuterio de estudos e pesquisas intitulado Laboratoacuterio Interdisciplinar de Comunicaccedilatildeo Discurso Acontecimento e Memoacuteria (LABIAM ndash UEMGCNPq) E-mail samuelponsoniuemgbrLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr6739815431846441

Tamires Cristina Bonani Conti atualmente eacute doutoranda no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Linguiacutestica da UFSCar Desenvolveu pesquisa de mestrado na mesma universidade Fez parte deste mestrado (sanduiacuteche) na Universiteacute Sorbonne Nouvelle ndash Paris 3 sob supervisatildeo de Dominique Legallois Eacute formada em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) (2014) Fez intercacircmbio acadecircmico de graduaccedilatildeo na Universidad de Buenos Aires (20131) Foi bolsista de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica da FAPESP (2011-2012) e tambeacutem do CNPq (2014) Eacute integrante do Grupo de Estudos ldquoLaboratoacuterio de Estudos Epistemoloacutegicos e de Discursividades Multimodaisrdquo (LEEDiM UFSCar) E-mail tamy_bonanihotmailcom Link para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr3442362906177938

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Page 2: Linguística folk : uma introdução

Marie-Anne Paveau

Roberto Leiser BaronasTamires Cristina Bonani Conti

Julia Lourenccedilo Costa(Organizaccedilatildeo)

Linguiacutestica folk uma introduccedilatildeo

AraraquaraLetraria

2020

Linguiacutestica folk uma introduccedilatildeoProjeto editorialLetraria

RevisatildeoLetraria

Projeto graacutefico e diagramaccedilatildeoLetraria

CapaLetraria a partir de imagem cedida por Lauro Damasceno (UFSCar) e Michelle Thamiris Ramos Simotildees (UFSCar)

Ediccedilatildeo da imagem da capaEmely Larissa dos Santos (UEPG)

TradutoresasEacuterika de Moraes (UNESP)Fernando Curtti Gibin (UFSCar)Julia Lourenccedilo Costa (UFSCarFAPESP)Marco Antonio Almeida Ruiz (USP)Maria de Faacutetima Sopas Rocha (UFMA)Mariana Luz Pessoa de Barros (UFSCar)Mocircnica Magalhatildees Cavalcante (UFC)Paula Camila Mesti (UNESPARANPOLL)Phellipe Marcel da Silva Esteves (UFF)Roberto Leiser Baronas (UFSCar)Samuel Ponsoni (UEMG)Tamires Cristina Bonani Conti (UFSCarFAPESP)

PAVEAU Marie-Anne Linguiacutestica folk uma introduccedilatildeo Organizado por Roberto Leiser Baronas Tamires Cristina Bonani Conti e Julia Lourenccedilo Costa Araraquara Letraria 2020

CDD 410 LinguiacutesticaISBN 978-65-86562-30-9

Viacutecios na falaPara dizerem milho dizem mio

Para melhor dizem mioacutePara pior pioacute

Para telha dizem teiaPara telhado dizem teiado

E vatildeo fazendo telhados

(Oswald de Andrade Poesias reunidas In Obras completas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1978 p 47)

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SumaacuterioApresentaccedilatildeo 7

Parte I ndash Definiccedilotildees e conceitos 12

A linguiacutestica ldquofora do templordquo 13

Natildeo-linguistas fazem linguiacutestica 27

As normas perceptivas da linguiacutestica popular 44

O falar das classes dominantes linguiacutestica popular e dialetologia perceptiva 55

Parte II ndash Aplicaccedilotildees e perspectivas 73

Linguiacutestica popular e ensino de liacutengua categorias em comum 74

A liacutengua sem classes da gramaacutetica escolar 85

Imagens da liacutengua nos discursos escolares 96

As vozes do senso comum nos discursos sobre a escola 103

A linguiacutestica fora de si mesma em direccedilatildeo a uma poacutes-linguiacutestica 128

Sobre a autora oas organizadoras e osas tradutoresas 133

Bibliografia 139

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ApresentaccedilatildeoEacute com muita alegria que entregamos a todas todes e todos interessados em questotildees de

linguagem um conjunto de textos sobre linguiacutestica folk ou linguiacutestica popular da discursivista francesa Marie-Anne Paveau especialmente reunidos para uma ediccedilatildeo brasileira

Falar de linguiacutestica folk especialmente no que concerne ao contexto brasileiro eacute dissertar sobre um aparente paradoxo Com efeito se olharmos para as aacutereas que os grandes eventos da linguiacutestica brasileira consideram como fazendo parte do escopo das ciecircncias da linguagem1 ou mesmo o que as agecircncias de fomento consideram como aacutereas dignas de se obter financiamento para a pesquisa a linguiacutestica folk natildeo aparece como um desses campos Entretanto para ficar somente no que circula na miacutedia uma espiada mais detida em um site de notiacutecias qualquer levantaraacute quase diariamente um conjunto de textos ou mesmo comentaacuterios de internautas sobre questotildees de linguagem na maioria esmagadora das vezes produzidos por natildeo-especialistas em linguiacutestica Natildeo se trata somente de discussotildees de natureza prescritiva mas que abarcam tambeacutem outros tipos de praacuteticas tais como as descritivas intervencionistas e militantes Eacute justamente nesse sentido que afirmamos tratar-se de um aparente paradoxo pois embora a linguiacutestica folk natildeo esteja institucionalizada em termos de domiacutenio ou subdomiacutenio das ciecircncias da linguagem nos grandes eventos da linguiacutestica brasileira ou nas agecircncias de fomento ela estaacute muito viva e dinacircmica em outros contextos sobretudo na boca dosas falantes e nos teclados dosdas internautas

Este livro da pesquisadora francesa Marie-Anne Paveau (ineacutedito tanto no contexto francecircs quanto no brasileiro) completa uma espeacutecie de trilogia epistemoloacutegica e teoacuterico-metodoloacutegica iniciada pela autora com a publicaccedilatildeo de Os preacute-discursos sentido memoacuteria cogniccedilatildeo2 passando tambeacutem pela publicaccedilatildeo de Linguagem e moral uma eacutetica das virtudes discursivas3 Trata-se de abordagens distintas sobre a linguagem mas que no seu conjunto aleacutem de conectadas satildeo imprescindiacuteveis para a sustentaccedilatildeo epistemoloacutegica e teoacuterico-metodoloacutegica de um grande programa de pesquisa da autora acerca do digital ou dos tecnodiscursos materializado no livro Anaacutelise do discurso digital dicionaacuterio das formas e das praacuteticas4 Os trinta e um verbetes que compotildeem esse potente e ousado programa de pesquisa de Paveau tecircm como pano de fundo epistemoloacutegico e teoacuterico-metodoloacutegico a questatildeo dos preacute-discursos o problema da relaccedilatildeo entre linguagem e moral no que concerne agraves virtudes discursivas ou ainda as proposiccedilotildees formuladas no acircmbito da linguiacutestica folk Satildeo essas trecircs bases que sustentam toda a pavimentaccedilatildeo perquirida no acircmbito de uma Anaacutelise do Discurso Digital proposta por Marie-Anne Paveau

1 Referimo-nos basicamente agrave Associaccedilatildeo Brasileira de Linguiacutestica (ABRALIN) ao Grupo de Estudos Linguiacutesticos do Estado de Satildeo Paulo (GEL) e agrave Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-graduaccedilatildeo em Letras e Linguiacutestica (ANPOLL)

2 A ediccedilatildeo francesa Les preacutediscours sens meacutemoire cognition foi publicada em 2006 pela Presses Sorbonne nouvelle e a ediccedilatildeo brasileira pela Editora Pontes em 2013

3 A ediccedilatildeo francesa Langage et morale une eacutethique des vertus discursives foi publicada em 2013 pela Eacuteditions Lambert-Lucas e a brasileira pela Editora UNICAMP em 2015

4 A ediccedilatildeo francesa LrsquoAnalyse du discours numeacuterique dictionnaire des formes e des pratiques foi publicada em 2017 pela Eacuteditions Hermann e a brasileira organizada por dois de noacutes seraacute publicada pela Editora Pontes no iniacutecio de 2021

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Os nove capiacutetulos que compotildeem este livro embora jaacute tenham sido publicados individualmente em forma de artigo em diversos perioacutedicos franceses5 num periacuteodo que compreende uma vintena de anos nunca foram reunidos em um uacutenico suporte Coube a noacutes como organizadoras o trabalho de reunir e ao lado de diversosas discursivistas brasileirosas traduzir e dispor os textos de maneira que a linguiacutestica folk obtivesse estatuto proacuteprio para o ingresso no campo dos estudos da linguagem sendo natildeo apenas apresentada no contexto de liacutengua portuguesa como uma das possibilidades pertinentes e relevantes de se refletir sobre a linguagem com base nos metadiscursos dosas locutoresas questatildeo praticamente inexistente no que concerne agraves ciecircncias da linguagem mas tambeacutem como uma possibilidade concreta de discussatildeo da validade epistemoloacutegica e especialmente social desses saberes bem como a sua aplicaccedilatildeo praacutetica Aplicaccedilatildeo essa tanto no acircmbito dos mais diferentes domiacutenios e subdomiacutenios das ciecircncias da linguagem enquanto possibilidade de integraccedilatildeo quanto no que concerne ao ensino de liacutenguas

O recorte efetuado para a organizaccedilatildeo deste livro se deu a partir de dois grandes eixos que produzem coesatildeo epistemoloacutegica e teoacuterico-metodoloacutegica aos capiacutetulos aqui publicados o da definiccedilatildeo e conceitos da linguiacutestica folk e o da aplicaccedilatildeo e das perspectivas desse campo de estudos Esses dois eixos aleacutem de organizarem de alguma forma a leitura deixam menos opaco o projeto do livro introduzir a problemaacutetica da linguiacutestica folk no contexto da liacutengua portuguesa Cumpre destacar que embora esteja totalmente fora de nossos propoacutesitos qualquer tipo de cenografia que busque privilegiar o controle do leitor e dos sentidos acreditamos ser pertinente apresentar ndash mesmo que rapidamente ndash cada um dos capiacutetulos que compotildeem esta coletacircnea

No capiacutetulo inicial deste livro panoramicamente a autora apresenta o campo de estudos da linguiacutestica folk enfatizando num primeiro momento que a irrupccedilatildeo desse campo estaacute relacionada com um movimento maior que envolve praticamente todos os campos do conhecimento qual seja o da presenccedila de fenocircmenos jaacute relativamente conhecidos o aumento do niacutevel de conhecimento dos indiviacuteduos sobretudo em razatildeo do desenvolvimento das novas tecnologias de comunicaccedilatildeo o aumento da disponibilizaccedilatildeo dos saberes nas publicaccedilotildees tradicionais ou eletrocircnicas a expressiva difusatildeo da informaccedilatildeo em muacuteltiplos suportes especialmente os gratuitos Todos esses fenocircmenos (que concernem especialmente aos paiacuteses desenvolvidos) contribuem significativamente para o aumento dos saberes dos indiviacuteduos e para um apagamento das diferenccedilas entre profissionais do saber (os universitaacuterios por exemplo) e os detentores profanos de saberes ou de saberes profanos Na sequecircncia Paveau apresenta as geografias em que a linguiacutestica folk estaacute bem estabilizada e as suas muacuteltiplas dimensotildees epistemoloacutegica teoacuterica representacional e praacutetica

No segundo capiacutetulo a discursivista trata da questatildeo da linguiacutestica folk com base no trabalho dos natildeo-linguistas Ela examina primeiro a figura do linguista folk ou linguista popular apresentando uma tipologia em regime escalar e natildeo binaacuteria desde o linguista amador escritor

5 Agradecemos vivamente os Editores das revistas francesas (Pratiques Langage et Societeacute Eacutetudes de linguistique apliqueacutee Le Franccedilais aujourdrsquohui e Les carnets du Cediscor) em que os textos aqui reunidos foram originalmente publicados que gentilmente autorizaram a traduccedilatildeo e a publicaccedilatildeo em liacutengua portuguesa

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de livros didaacuteticos ao humorista produtor de jogos de palavras em cena passando pelos escritores juristas e outros locutores afetados pelas questotildees linguageiras Na sequecircncia a autora discute a validade dos saberes folk no acircmbito das ciecircncias da linguagem com base em duas posiccedilotildees possiacuteveis em filosofia das ciecircncias (o eliminativismo de P Churchland e o realismo doce de D Dennet) Por fim ela propotildee uma terceira postura epistemoloacutegica a qual designa ldquointegracionistardquo os conhecimentos populares satildeo saberes pertinentes e devem com efeito ser integrados agrave linguiacutestica que frequentemente desenvolve suas teorias somente baseada nas intuiccedilotildees dos linguistas profissionais

No capiacutetulo trecircs Paveau aborda a questatildeo das normas perceptivas mobilizadas por falantes comuns em suas praacuteticas linguiacutesticas Ela fala precisamente de praacuteticas linguiacutesticas e natildeo de praacuteticas linguageiras designando um campo bem identificado nos Estados Unidos a linguiacutestica folk e em menor medida na Alemanha (Volklinguistik) menos ainda no domiacutenio francoacutefono no qual muitos designadores com referentes um tanto vagos coexistem para designar esse conjunto de discursos natildeo eruditos natildeo especialistas sobre as formas e padrotildees da linguagem e do discurso linguiacutestica popular espontacircnea profana selvagem natildeo erudita A interrogaccedilatildeo da pesquisadora natildeo diz respeito agrave dimensatildeo prescritiva versus descritiva das normas assim produzidas mas concerne ao valor das percepccedilotildees na elaboraccedilatildeo de um discurso linguiacutestico popular e portanto agrave validade das teorias populares em relaccedilatildeo agraves teorias acadecircmicas teorias cientiacuteficas

Marie-Anne Paveau se debruccedila no quarto capiacutetulo sobre os pontos cegos ou impensados nos trabalhos de sociolinguiacutestica francesa de um lado nos planos praacutetico e metodoloacutegico o falar das classes dominantes como natildeo-objeto de pesquisa e de outro lado nos planos epistemoloacutegico e teoacuterico a natildeo-consideraccedilatildeo dos resultados da linguiacutestica popular (linguiacutestica folk) e dos paracircmetros perceptivos no estudo dos fenocircmenos linguageiros Ela propotildee inicialmente um balanccedilo sobre a noccedilatildeo de classe social na sociolinguiacutestica francesa e anglo-saxatilde e a descriccedilatildeo da notaacutevel assimetria que existe entre as classes comumente escolhidas pelas ciecircncias sociais como terreno de investigaccedilatildeo (trabalhadores povo excluiacutedos e em menor grau as classes meacutedias) e os pertencimentos reais ou imaginaacuterios dos indiviacuteduos (em que se encontram igualmente as classes dominantes as elites as aristocracias e as burguesias herdadas ou reconstruiacutedas) Na sequecircncia a autora examina numa perspectiva integracionista as formas e a validade dos resultados da linguiacutestica folk praacutetica analiacutetica antiga em especial sobre o falar das elites e dos bairros nobres Ela mostra tambeacutem em particular que os conceitos e meacutetodos da dialetologia perceptual norte-americana ainda pouco presentes nas pesquisas francesas permitem tratar esse tipo de corpus e fazer proposiccedilotildees linguiacutesticas sobre os falares de classe Por fim a discursivista propotildee uma primeira descriccedilatildeo do falar das classes dominantes com base na linguiacutestica folk enfatizando alguns de seus aspectos caracteriacutesticos pronuacutencia ldquoMarie-Chantalrdquo coacutedigo lexical e rituais pragmaacuteticos

No quinto capiacutetulo partindo da afirmaccedilatildeo de que o desenvolvimento da ciecircncia cognitiva e depois da etnometodologia fez emergir a questatildeo da ciecircncia espontacircnea dos sujeitos questatildeo natural para um campo que lida com o desenvolvimento do conhecimento das percepccedilotildees e das representaccedilotildees dos indiviacuteduos a autora explora este problema no campo da liacutengua

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francesa fazendo uma pergunta simples as categorias espontacircneas de alunos podem ser mobilizadas no ensino da liacutengua ou devem pelo contraacuterio ser desconstruiacutedas para dar lugar a categorias aprendidas Depois de definir o que se denomina ldquolinguiacutestica popularrdquo e sublinhar seu interesse pelo campo do ensino-aprendizagem da liacutengua ela busca responder a essa questatildeo por meio de trecircs exemplos de categorias a palavra a flexatildeo verbal e o gecircnero do discurso

No sexto capiacutetulo Marie-Anne Paveau com base no princiacutepio de que a representaccedilatildeo unitaacuteria da liacutengua tem uma funccedilatildeo social importante que natildeo deve ser obliterada por razotildees praacuteticas e tambeacutem didaacuteticas sociais e ateacute ideoloacutegicas ela assevera que eacute realmente o francecircs padratildeo que deve ser ensinado na escola No entanto para a autora isso natildeo implica a falta de abordagem e o silenciamento sobre a variaccedilatildeo social em particular ela questiona ainda se na liacutengua como em outras situaccedilotildees existem fenocircmenos de classe se existe um francecircs popular e um francecircs das classes dominantes e se as redes sociais os grupos e as comunidades que cruzam as classes de maneira complexa sem apagaacute-las tambeacutem se definem por suas formas de falar fortemente marcadas por determinismos sociais Eacute esta questatildeo da variaccedilatildeo social no sentido mais classista do termo que a discursivista aborda aqui comparando as gramaacuteticas escolares com base nos saberes linguiacutesticos chamados ldquoacadecircmicosrdquo e nos saberes da gramaacutetica espontacircnea ou gramaacutetica popular (ldquofolk gramarrdquo que adveacutem da linguiacutestica popular ldquofolk linguisticsrdquo) altamente desenvolvida nos Estados Unidos que integra o paracircmetro classista

No seacutetimo capiacutetulo a pesquisadora reflete sobre o discurso escolar Assim ao falar sobre esse tipo de discurso ela toca num problema metodoloacutegico importante o que se entende por ldquodiscurso escolarrdquo Identificado restritivamente como discurso da escola e ateacute mesmo agrave custa de uma reduccedilatildeo espacial como discurso na escola o discurso escolar natildeo eacute impedido por si mesmo de se relacionar com aqueles que se encontram fora do espaccedilo escolar ou da instituiccedilatildeo escolar Em outras palavras o discurso na escola natildeo eacute apenas os discursos da escola seria preciso portanto poder compartilhar o que eacute dos pais e da famiacutelia o que depende de paracircmetros sociais e culturais o que se capta no discurso da miacutedia o que emerge de uma crenccedila popular etc E esses proacuteprios discursos interpenetram-se e entrelaccedilam-se formando um universo discursivo que se organiza de maneira diferente de acordo com os tempos as crises e os acontecimentos Falar de imagens de liacutengua em discursos escolares natildeo pode assim ser feito sem levar em conta a polifonia essencial e essa tarefa eacute muito importante para ser realizada no acircmbito de um capiacutetulo Como em trabalhos anteriores ela aborda a questatildeo tanto fora quanto dentro da escola propondo aqui algumas respostas poreacutem sempre muito ldquomonofocircnicasrdquo reduzindo os discursos escolares aos que satildeo produzidos no acircmbito da escola pelos alunos pelos professores pelos livros e pelos textos oficiais

No oitavo capiacutetulo a partir de um corpus de ensaios do mainstream contemporacircneo sobre a escola Paveau propotildee uma concepccedilatildeo de senso comum ponderada pelas dimensotildees semacircntica e perceptual em uma abordagem em trecircs niacuteveis (preacute-discursivo metadiscursivo e discursivo) a partir da presenccedila de marcas no discurso O senso comum no discurso estaacute de fato ancorado no espaccedilo preacute-discursivo do conhecimento preacutevio compartilhado em uma

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comunidade discursiva se manifesta no niacutevel metadiscursivo por meio de comentaacuterios dos falantes explicando sua relaccedilatildeo com o senso comum (marcas de negaccedilatildeo ou captura de formas de senso comum destinada agrave validaccedilatildeo de enunciados) e eacute construiacuteda no niacutevel discursivo por meio de certo nuacutemero de arranjos lexicais enunciativos e frasais

No uacuteltimo capiacutetulo numa espeacutecie de conclusatildeo deste livro a autora defende que a renovaccedilatildeo dos estudos sobre a linguiacutestica popular por meio da consideraccedilatildeo dos pontos de vista dos locutoresas e de suas experiecircncias de vida se inscreve num amplo movimento mundial de descentramento que exaspera atualmente as ciecircncias humanas e sociais O questionamento dos grandes dualismos fundadores as indagaccedilotildees das abordagens poacutes-coloniais e as epistemologias militantes permitem abordagens poacutes-dualistas que podem ser mobilizadas em linguiacutestica A integraccedilatildeo dos metadiscursos das pessoas comuns no programa da linguiacutestica a conduz em direccedilatildeo a uma dimensatildeo ecoloacutegica que a pesquisadora qualifica de poacutes-linguiacutestica

Cumpre destacar uma vez mais que este livro de Marie-Anne Paveau sobre linguiacutestica folk natildeo vem corroborar os discursos negacionistas de variadas ordens que se inscrevem numa espeacutecie de sociologia da ignoracircncia tatildeo em voga atualmente e profundamente deleteacuteria para a ciecircncia em particular e para a toda a sociedade em geral mas vem para

Considerar no proacuteprio trabalho linguiacutestico os metadiscursos das pessoas comuns incorporando suas experiecircncias de vida seus pontos de vista suas posiccedilotildees morais suas situaccedilotildees poliacuteticas e tudo o que compotildee sua vida permitindo agrave linguiacutestica sair do logocentrismo que a priva da profundidade da vida dos sujeitos A plena integraccedilatildeo das condiccedilotildees de fala dosas locutoresas nas praacuteticas linguiacutesticas quer sejam elas dosas produtoresas dos corpora ou de seus analistas permite iniciar o programa de uma poacutes-linguiacutestica que respeita os ambientes das pessoas que falam e suas palavras (PAVEAU 2018)

Enfim este livro vem corroborar a necessidade premente do debate acerca da instauraccedilatildeo das novas partilhas do discurso acadecircmico Deixamos um agradecimento muito especial a autora Marie-Anne Paveau que prontamente acolheu a proposta desta coletacircnea e tambeacutem um muito obrigado afetuoso a todosas tradutoresas pelo seu esmerado trabalho Oacutetima leitura a todas todes e todos As sugestotildees e criacuteticas satildeo sempre muito bem-vindas

Satildeo Carlos UFSCar primavera de 2020Oas organizadoras

Parte I

Definiccedilotildees e conceitos

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A LINGUIacuteSTICA ldquoFORA DO TEMPLOrdquo6

1 Sobre a relevacircncia e a pertinecircncia em se discutir linguiacutestica popularEm 2008 a European Review of Philosophy publica uma ediccedilatildeo totalmente dedicada a

Folk Epistemology (HEINTZ POUSCOULOUS TARABORELLI 2008) Neste nuacutemero diversas questotildees abordadas pelos autores majoritariamente filoacutesofos recobrem exatamente as questotildees que pretendemos apresentar esquematicamente no capiacutetulo inicial deste livro Essas preocupaccedilotildees atestam que existe atualmente em diversos campos do conhecimento (filosofia epistemologia linguiacutestica psicologia neurociecircncias biologia e outros domiacutenios) uma robusta interrogaccedilatildeo sobre a natureza dos saberes sobre os modos de constituiccedilatildeo e de legitimaccedilatildeo dos conhecimentos ditos cientiacuteficos Neste nuacutemero a European Review of Philosophy propotildee ainda as seguintes questotildees

a) Qual eacute o domiacutenio adequado de um sistema de epistemologia popular

b) As avaliaccedilotildees epistecircmicas envolvem o pensamento consciente

c) As avaliaccedilotildees epistecircmicas satildeo especiacuteficas de humanos

d) Como a epistemologia popular contribui para o pensamento racional

e) Quais satildeo as relaccedilotildees (se houver) entre a epistemologia normativa a epistemologia do senso comum e a epistemologia popular

f) Como a epistemologia popular se relaciona com nossa compreensatildeo ingecircnua da verdade

g) Quais aspectos da cultura poderiam ser explicados com base em uma epistemologia popular

h) Os sujeitos compartilham as mesmas intuiccedilotildees epistemoloacutegicas entre culturas Ou as epistemologias variam entre culturas (HEINTZ POUSCOULOUS TARABORELLI 2008 p 34)

Neste livro de natureza introdutoacuteria natildeo temos espaccedilo para explicar pormenorizadamente a emergecircncia atual de todas essas questotildees Contentar-nos-emos em trazer agrave lembranccedila fenocircmenos bem conhecidos o aumento do niacutevel de conhecimento dos indiviacuteduos sobretudo em razatildeo do desenvolvimento das novas tecnologias de comunicaccedilatildeo o aumento da disponibilizaccedilatildeo dos saberes nas publicaccedilotildees tradicionais ou eletrocircnicas a expressiva difusatildeo da informaccedilatildeo em muacuteltiplos suportes especialmente os gratuitos Todos esses fenocircmenos (que concernem especialmente aos paiacuteses desenvolvidos) contribuem significativamente

6 Texto originalmente publicado em ACHARD-BAYLE G PAVEAU M-A Preacutesentation La linguistique laquo hors du temple raquo Pratiques p 01-15 2008 Traduccedilatildeo de Roberto Leiser Baronas (UFSCar) Tamires Cristina Bonani Conti (UFSCarFAPESP) e revisatildeo teacutecnica de Julia Lourenccedilo Costa (UFSCarFAPESP) Outra versatildeo deste texto foi publicada no Dossiecirc ldquoLinguiacutestica popularfolk linguistics e linguiacutestica cientiacutefica em vez do versus propomos a integraccedilatildeordquo na revista Foacuterum Linguiacutestico v 16 nuacutemero 4 2019 Disponiacutevel em httpsperiodicosufscbrindexphpforumarticleview1984-84122019v16n4p4257 A expressatildeo ldquofora do templordquo usada no tiacutetulo deste artigo foi emprestada do projeto que Ameacutelie Cure preparou para o nuacutemero sobre Linguiacutestica Popular publicado na revista Pratiques no nuacutemero anteriormente citado Essa expressatildeo faz eco agrave foacutermula ldquofora do cacircnonerdquo que designa a arte bruta a arte dos loucos das crianccedilas dos inexperientes dos natildeo artistas tambeacutem chamada de ldquoarte outsiderrdquo ou ldquofolk artrdquo

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para o aumento dos saberes dos indiviacuteduos e para um certo apagamento das diferenccedilas entre profissionais do saber (os universitaacuterios por exemplo) e os detentores profanos de saberes ou de saberes profanos7 Outros elementos mais confidenciais pois concernem agrave histoacuteria das ciecircncias podem ser desenvolvidos a reflexatildeo sobre as relaccedilotildees entre saber e crenccedila eacute tatildeo antiga quanto o proacuteprio pensamento assim como o valor do conhecimento do senso comum natildeo suscetiacutevel de verificaccedilatildeo loacutegica (COATES 1996 DASCAL 1999 MARKOVITTS 1999 DENNETT 1990 [1987] FISETTE POIRIER 2002) a emergecircncia de uma disciplina como a etnometodologia que trouxe a partir da segunda metade do seacuteculo XX novos objetos epistemoloacutegicos para as ciecircncias humanas tal como o ldquosaber dos participantesrdquo ou novos meacutetodos como a ldquocompreensatildeordquo em especial a partir das narrativas de vida

Enfim as ciecircncias cognitivas contrariamente agrave sulforosa reputaccedilatildeo positivista e naturalista foram as primeiras a se perguntar como os conhecimentos de qualquer natureza satildeo produzidos no ceacuterebro de todas as pessoas e natildeo somente nos mais cientiacuteficos Diante desse quadro nos pareceu pertinente e mesmo relativamente urgente que a linguiacutestica independentemente da histoacuteria e da geografia que a abrigue visto que ainda permanece um pouco distante desse questionamento epistemoloacutegico se interrogue e se deixe interrogar pela dimensatildeo folk dos saberes

Tomando como referecircncia um conjunto de artigos publicados inicialmente na revista Pratiques em 20088 que tratam especificamente de questotildees atinentes agrave linguiacutestica popular propomo-nos entatildeo a discutir neste capiacutetulo mesmo que de maneira natildeo exaustiva a questatildeo da linguiacutestica popular no interior das ciecircncias da linguagem Para tanto perseguiremos vaacuterios objetivos a) desejamos dar conta da ausecircncia no contexto francecircs de um campo identificado como ldquolinguiacutestica popularrdquo ou ldquolinguiacutestica folkrdquo em comparaccedilatildeo com os domiacutenios anglo-saxocircnico e alematildeo nos quais a linguiacutestica popular faz parte de um dos subdomiacutenios da linguiacutestica geral Nesses paiacuteses a folk linguistics ou a Volklinguistik estatildeo bem implantadas e satildeo muito dinacircmicas com publicaccedilotildees e manifestaccedilotildees cientiacuteficas consistentes nestes uacuteltimos anos que podem ser atestadas na bibliografia deste livro por exemplo b) desejamos igualmente explorar ou mesmo definir o que o campo da linguiacutestica pode sublinhar no domiacutenio francoacutefono em comparaccedilatildeo a domiacutenios conexos e problemaacuteticas afins como o purismo a gramaacutetica normativa o trabalho sobre as normas linguiacutesticas sobre a metalinguagem ou sobre a noccedilatildeo de epilinguiacutestica por exemplo c) pretendemos igualmente abrir uma reflexatildeo sobre a validade dos saberes profanos e por consequecircncia sobre os saberes ldquocientiacuteficosrdquo questatildeo que eacute muito especiacutefica em linguiacutestica na medida em que a reflexividade a introspecccedilatildeo a consciecircncia linguiacutestica e a epilinguiacutestica satildeo problemaacuteticas que definem a disciplina Qual eacute portanto a pertinecircncia das intuiccedilotildees dos locutores profanos em comparaccedilatildeo agraves elaboraccedilotildees cientiacuteficas dos linguistas Esses uacuteltimos natildeo satildeo tambeacutem locutores profanos Por fim nos parece necessaacuterio e de maneira premente questionar as relaccedilotildees e as contribuiccedilotildees da linguiacutestica popular agrave linguiacutestica geral agrave linguiacutestica aplicada e ao conhecimento e ao ensino-aprendizagem

7 Essa distinccedilatildeo natildeo eacute binaacuteria mas escalar vaacuterias categorias de detentoras do saber podem ser vistas como experts os estudantes os colecionadores os apaixonados por determinado assunto os eruditos ou especialistas de todas as ordens Para um aprofundamento dessa escala ver Schmale (2008) e Paveau (2008)

8 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1168

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de liacutengua materna em particular em um periacuteodo em que as orientaccedilotildees oficiais do ensino de liacutengua na escola e no coleacutegio especialmente no contexto francecircs promovem um tipo de gramaacutetica que reivindica uma espeacutecie de ldquosimplificaccedilatildeordquo e uma ldquoautenticidaderdquo que pode ser talvez muito proacutexima do que chamamos aqui de saberes profanos ou espontacircneos9 Eacute a razatildeo pela qual desejamos uma reflexatildeo sobre o lugar a validade e a eficaacutecia pedagoacutegica das praacuteticas reveladas mais ou menos conscientemente da linguiacutestica popular colocadas em cena tanto pelos alunos quanto por seus professores no ensino da liacutengua em todos os niacuteveis

2 O que eacute a linguiacutestica popularDebruccedilar-nos-emos aqui sobre os problemas de designaccedilatildeo e de categorizaccedilatildeo dos objetos

ou das questotildees relativas agrave linguiacutestica popular

21 Os termos e as categorias folk e popular

O termo linguiacutestica popular eacute um dos objetos de uma seacuterie de denominaccedilotildees anglo-saxocircnicas baseadas em folk nas quais esse termo eacute traduzido em francecircs por popular espontacircneo inexperiente profano ou ordinaacuterio (a lista de denominaccedilotildees permanece aberta como demonstram os poucos trabalhos na aacuterea) Falamos tambeacutem de linguiacutestica do senso comum e encontramos igualmente a expressatildeo linguiacutestica dos locutores profanos em que L Rosier assinala a presenccedila massiva na internet ldquoPode-se [] constatar a presenccedila do que nomeamos linguiacutestica dos locutores profanos na internet notadamente nos foacuteruns de discussatildeo []rdquo (ROSIER 2004 p 70)

No domiacutenio cientiacutefico anglo-saxocircnico (sobretudo norte-americano) encontramos estudos bastante numerosos sobre as folk theories folk psychology folk epistemology folk biology (folk taxonomy) folk linguistics (folk etymology e folk ou perceptual dialectology) e recentemente folk pragmatics No entanto o termo folk natildeo eacute uniacutevoco e o domiacutenio da folk psychology10 se subdivide por exemplo em dois subdomiacutenios de um lado a psicologia do senso comum (commonsense psycology) que descreve e explica o comportamento humano em termos de crenccedilas desejos intenccedilotildees expectativas esperanccedilas etc e de outro uma versatildeo filosoacutefica dessa psicologia do senso comum que propotildee uma interpretaccedilatildeo dessas explicaccedilotildees ordinaacuterias por meio de generalizaccedilotildees teoacutericas mobilizando os conceitos de crenccedila desejo etc Essa corrente eacute representada por exemplo pelos trabalhos de P Churchland D Dennett e W Sellars

As lexias construiacutedas a partir de folk estatildeo bem estabilizadas no campo anglo-saxocircnico Em nosso trabalho tentamos ao maacuteximo conservar a sua traduccedilatildeo da maneira mais literal possiacutevel No entanto o termo popular em francecircs - e tambeacutem em portuguecircs - eacute polissecircmico Falamos aqui de linguiacutestica popular11 Todavia como definir esse termo Propomos por enquanto

9 Ver em particular os seguintes textos Boletim oficial nuacutemero 0 20 fevereiro de 2008 Os novos programas da escola primaacuteria Projeto submetido agrave consulta puacuteblica Eacuteduscol dgesco abril de 2008 Coleacutegio Projeto de programa francecircs Relatoacuterio de missatildeo sobre ensino da gramaacutetica 2006 elaborado por A Bentolila E Orsenna e D Desmarchelier

10 Para ver a difusatildeo desses trabalhos norte-americanos no contexto francoacutefono ver por exemplo Fisette e Poirier (2002)

11 As reservas em torno desse termo satildeo ambiacuteguas e enganosas (ele designaria de maneira pejorativa a linguiacutestica do povo) fazendo com que alguns autores adotassem a lexia afrancesada folk linguistique NT No Brasil salvo melhor juiacutezo embora o sentido de popular possa ser pejorativo sobretudo enunciado por locutores que pertencem agraves classes mais abastadas da populaccedilatildeo poreacutem como a linguiacutestica popular ainda estaacute em gestaccedilatildeo tais sentidos ainda natildeo estatildeo apensos agrave expressatildeo linguiacutestica popular

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chamar popular o saber espontacircneo dos atores sociais sobre o mundo (depositado entre outros espaccedilos nos proveacuterbios e nos ditos populares por exemplo) que se diferencia do saber acadecircmico ou cientiacutefico da mesma maneira que o saber praacutetico se distingue do saber teoacuterico O saber espontacircneo eacute constituiacutedo de saberes empiacutericos natildeo suscetiacuteveis de verificaccedilatildeo loacutegica (o saber espontacircneo natildeo eacute verdadeiro nem falso visto que eacute um saber aproximativo como explica F Markovits) e tambeacutem de crenccedilas que constituem guias para a accedilatildeo dos atores sociais as lendas urbanas ou as influecircncias da lua sobre as plantaccedilotildees ou ainda se o ceacuteu estaacute mais ou menos nublado como possibilidade de chuva satildeo crenccedilas reveladas do saber espontacircneo As conotaccedilotildees pejorativas geralmente apensas ao termo popular (contrariamente a outros usos eufoacutericos do termo como educaccedilatildeo ou universidade ou artes e tradiccedilotildees popular(es) por exemplo) fazem parte do escopo dos estudos da linguiacutestica popular e podem se tornar um importante objeto de estudo para esse domiacutenio

22 Geografia da linguiacutestica popular

221 Folk linguistics

O domiacutenio anglo-saxocircnico da folk linguistics foi aberto nos anos 1960 do seacuteculo passado pelos trabalhos inaugurais de Hoenigswald (1960 1996) que reivindicou firmemente que se leve em conta os saberes espontacircneos na constituiccedilatildeo de toda a ciecircncia Todavia essa importante demanda natildeo encontrou muito eco agrave eacutepoca Foi preciso esperar os anos 2000 para que a obra seminal de N Niedzielski e D Preston retomasse a questatildeo sobre o conteuacutedo e a representatividade da linguiacutestica popular norte-americana atualmente Em seu trabalho N Niedzielski e D Preston (2000 p 8) precisam o sentido de folk em folk linguistics

[A palavra folk] refere-se agravequeles que natildeo satildeo profissionais qualificados na referida aacuterea [] Definitivamente natildeo usamos folk para nos referirmos a ruacutesticos ignorantes atrasados primitivos minoritaacuterios isolados marginalizados ou grupos e indiviacuteduos de status supostamente inferiores

Em seguida os autores enfatizam a importacircncia de se levar em conta os saberes populares para a constituiccedilatildeo dos corpora de saberes cientiacuteficos ldquoSeja para o propoacutesito puramente cientiacutefico de registraacute-lo ou para os propoacutesitos sociais de nos ajudar a entender melhor nossas atitudes muacutetuas sugerimos que o estudo [] dos traccedilos linguisticamente orientados eacute uma tarefa importanterdquo (NIEDZIELSKI PRESTON 2000 p 123)

Os nomes e as expressotildees abaixo que intitulam os capiacutetulos do livro de N Niedzielski e D Preston desenham claramente o mapa da folk linguistics norte-americana

a) Regionalismo

b) Fatores sociais

c) Aquisiccedilatildeo da linguagem e linguiacutestica aplicada

d) Linguiacutestica geral e linguiacutestica descritiva

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O exposto permite destacar alinhados a J R Dow (autor de uma resenha do livro de N Niedzielski e D Preston publicada no Journal of American Folklore em 2001) que a obra apresenta elementos de anaacutelise e de reflexatildeo nos seguintes domiacutenios da linguiacutestica norte-americana

A ethnography of language a social psychology of language (ou estudo das atitudes linguiacutesticas muitas vezes traduzidos por psicologia social da linguagem) general descriptive linguistics (linguiacutestica geral e descritiva) language variation and change (linguiacutestica variacionista) e applied linguistics (linguiacutestica aplicada)

Esses dados nos mostram que a folk linguistics no domiacutenio anglo-saxocircnico especialmente no norte americano constitui um importante campo para as ciecircncias da linguagem12

222 Volkslinguistik Laienlinguistik

No contexto germacircnico a Volkslinguistik agraves vezes chamada de Laienlinguistik embora os termos natildeo cubram as mesmas praacuteticas linguiacutesticas13 se apresenta como no domiacutenio anglo-saxocircnico isto eacute como um campo de estudos jaacute consolidado com muitas produccedilotildees cientiacuteficas eventos etc O pesquisador G Antos tem contribuiacutedo largamente para difundir essa abordagem que se situa no domiacutenio da formaccedilatildeo transitando entre a psicologia e a gestatildeo A Laienlinguistik eacute a linguiacutestica dos manuais de conversaccedilatildeo ou de expressatildeo oral destinados a melhorar a competecircncia linguiacutestica dos locutores na sua vida social e profissional Os trabalhos do que se denomina enquanto Volkslinguistik se concentram todavia sobre a dialetologia e adotam uma perspectiva que se poderia denominar geolinguiacutestica se debruccedilando por exemplo sobre a imagem da ldquobad languagerdquoldquoliacutengua ruimrdquo associada agraves variantes regionais14 Tambeacutem eacute esse uso geolinguiacutestico da noccedilatildeo de linguiacutestica espontacircnea popular que P Seacuteriot mobiliza na Suiacuteccedila no tiacutetulo de seu artigo de 1996 sobre a linguiacutestica espontacircnea dos marcadores de fronteiras15 e no trabalho coletivo publicado na revista Pratiques nuacutemero 139140

223 Linguiacutestica popular

No domiacutenio francecircs e francoacutefono os estudos que se inscrevem na linguiacutestica popular satildeo raros como sublinha J-C Beacco que alhures escolheu evitar o termo popular no tiacutetulo do nuacutemero 154 da revista Langages16 por ele dirigida acerca desse tema preferindo falar

12 NT No caso do Brasil ao se tomar como paracircmetro as aacutereas que compotildeem o campo de estudos da linguiacutestica a partir por exemplo do CNPq ou de um evento jaacute consolidado como o de uma associaccedilatildeo como o GEL ou mesmo os Grupos de Trabalho da ANPOLL a linguiacutestica popular sequer figura como um domiacutenio ou mesmo subdomiacutenio de estudos da linguagem

13 Para um aprofundamento desta questatildeo veja o artigo de Schmale e Stegu publicado em dezembro de 2008 na revista Pratiques linguistique litteacuterature e didactique nuacutemero 139140 O artigo pode ser acessado em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1168 Veja tambeacutem o artigo de Antos (1996)

14 Para um aprofundamento desta discussatildeo veja por exemplo Langer (2001) os trabalhos de W Davies e o projeto de pesquisa The history and current status of lsquobad languagersquo as a concept in German folk linguistics que pode ser acessado no site httpeisbrisacuk~gexnlresearchahrbhtml

15 NT A referecircncia completa do artigo mencionado eacute SERIOT P La linguistique spontaneacutee des traceurs de frontiegraveres In SERIOT P (eacuted) Langue et nation en Europe centrale et orientale du 18egraveme siegravecle agrave nos jours Cahiers de lrsquoILSL (Univ de Lausanne) n 8 p 277-304 1996

16 NT A iacutentegra desse nuacutemero intitulado Repreacutesentations meacutetalinguistiques ordinaires et discours sob a direccedilatildeo de Jean-Claude Beacco pode ser acessada em httpswwwperseefrissuelgge_0458-726x_2004_num_38_154

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sobre representaccedilotildees metalinguiacutesticas ordinaacuterias Eacute sobretudo a expressatildeo etimologia popular que eacute difundida na Franccedila Dentre as razotildees para a escolha dessa terminologia estaacute o fato de se tratar de um fenocircmeno linguiacutestico passiacutevel de descriccedilatildeo e suscetiacutevel de fornecer um objeto discreto para a linguiacutestica geral O texto de autoria de H E Brekle presente no tomo 1 do livro Histoacuteria das ideias linguiacutesticas organizado por Sylvain Auroux bem como o trabalho de J-C Beacco citado anteriormente fazem menccedilotildees expliacutecitas ao domiacutenio da linguiacutestica popular Tambeacutem Pierre Bourdieu desde o iniacutecio dos anos 1980 mas de maneira mais expliacutecita em seu trabalho de 2001 reclama a existecircncia de uma ldquociecircncia rigorosa da sociolinguiacutestica espontacircneardquo (BOURDIEU 2001 p 137) De maneira um pouco mais recente e programaacutetica vale mencionar os nossos trabalhos (Marie-Anne Paveau) sobre a necessidade de se levar em conta a linguiacutestica popular no ensino da liacutengua francesa na escola (2005) os que tratam da construccedilatildeo de objetos sociais nas abordagens sociolinguiacutesticas (2007 e 2008) e os que buscam renovar as teorias do discurso (2006) Alguns desses trabalhos satildeo objetos dos proacuteximos capiacutetulos deste livro Haacute ainda o trabalho de L Rosier sobre a questatildeo do purismo nos trabalhos acerca das normas da liacutengua francesa e a circulaccedilatildeo dos discursos (2003 2004 e 2006)

O que expusemos anteriormente natildeo significa que as questotildees aqui rapidamente apresentadas natildeo sejam tratadas na literatura Todavia esse tipo de tratamento eacute feito sob outras etiquetas terminoloacutegicas ou com base em outras orientaccedilotildees teoacutericas e temaacuteticas

Em primeiro lugar eacute sob a designaccedilatildeo ordinaacuterio que o discurso espontacircneo sobre a liacutengua eacute agraves vezes estudado17 sem que haja contudo uma discussatildeo sobre essa questatildeo no contexto francecircs cujo objetivo seria o da constituiccedilatildeo de um domiacutenio cientiacutefico que buscasse uma sistematizaccedilatildeo quer seja da ldquolinguiacutestica ordinaacuteriardquo ou do ldquoordinaacuteriordquo propriamente dito O termo ordinaacuterio eacute amplamente mobilizado em lexias como francecircs ordinaacuterio trocas linguiacutesticas ordinaacuterias ou discursos ordinaacuterios Essa problemaacutetica do termo ordinaacuterio se confunde frequentemente com a problemaacutetica do cotidiano agrave maneira que os etnometodoacutelogos tratam dessa questatildeo Em segundo lugar dois subdomiacutenios ou orientaccedilotildees teoacutericas e temaacuteticas satildeo intensamente atravessadas pelas questotildees da linguiacutestica popular

a) De uma parte o vasto domiacutenio dos estudos sobre o ldquometardquo que trata da linguiacutestica do sistema (REY-DEBOVE 1978 que faz uma distinccedilatildeo da ldquometalinguagem correnterdquo e ldquocientiacuteficardquo tanto da teoria da enunciaccedilatildeo e da reformulaccedilatildeo (AUTHIER-REVUZ 1995 e as aspas meta-enunciativas quanto de Julia (2001) que fala de uma ldquosemacircntica espontacircneardquo) ou da didaacutetica da liacutengua (por exemplo J-C BEACCO R BOUCHARD J DAVID e S TREacuteVISE)18

b) De outra parte um conjunto tambeacutem vasto de trabalhos que em sociolinguiacutestica (J-C BEACCO define a linguiacutestica popular como um desdobramento da sociolinguiacutestica) se ocupam das normas e das representaccedilotildees (BERRENDONNER 1982 GADET (2007 [2003])

17 Para constatar essa afirmaccedilatildeo veja o sumaacuterio do nuacutemero organizado por Jean-Claude Beacco na revista Langages em 2004 intitulado Repreacutesentations meacutetalinguistiques ordinaires et discours

18 Para uma siacutentese destes trabalhos ver Bouchard e Meyer (1995)

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HOUDEBINE (2002) LAFONTAINE (1986) E A BOYER N GUERNIER J-M KLINGEBERG e outros) frequentemente recobertas pela etiqueta das ldquoatitudes linguiacutesticasrdquo no quadro de uma psicologia social da linguagem

23 Praacuteticas de linguiacutesticas profanasComo acabamos de mostrar de certa maneira a linguiacutestica popular natildeo existe na Franccedila

como um campo constituiacutedo Neste caso pode parecer paradoxal querer definir seus objetos e os materiais de observaccedilatildeo O paradoxo se configura se nos propomos a considerar a linguiacutestica popular como uma estrutura para unificar os objetos e abordagens mencionadas ateacute agora centrada em torno do conceito de praacutetica

Para tanto perquirimos a seguinte proposiccedilatildeo o campo de investigaccedilatildeo da linguiacutestica popular incluiria o conjunto dos enunciados que podemos qualificar como praacuteticas linguiacutesticas profanas (isto eacute que natildeo vecircm de representantes da linguiacutestica como uma disciplina estabelecida os ldquonatildeo-linguistasrdquo assim chamados por N Niedzielski e D Preston) designando avaliando ou referindo-se aos fenocircmenos da linguagem para produzi-los (os dois primeiros itens satildeo retirados de Brekle 1989 e o terceiro proposto por noacutesMarie-Anne Paveau)

i Descriccedilotildees ou (preacute)teorizaccedilotildees linguiacutesticas por exemplo aquelas que se relacionam com a designaccedilatildeo (chamar um gato de gato ou as coisas por seu nome) ou sobre a hierarquia entre escrito e oral (palavras verbais falar como um livro colocar os pingos nos is dizer ao peacute da letra) ou ainda sobre a conformidade com as regras da liacutengua (agente vai e vocecirc estaacute afim ldquonatildeo satildeo portuguecircsrdquo19) Um exemplo de um trecho da linguiacutestica social popular derivado do corpus das obras tiacutepicas do ldquoespiacuterito francecircsrdquo que propotildee uma pequena teoria profana do patroniacutemico em um contexto intercultural (Turid a jovem companheira norueguesa do narrador faz o experimento sobre os usos do nome proacuteprio na administraccedilatildeo francesa)

Mas o segredo do nome tambeacutem se estende aos serviccedilos puacuteblicos Enquanto em muitos paiacuteses sabemos imediatamente com quem estamos lidando ndash nos escritoacuterios com um crachaacute com o nome do funcionaacuterio no telefone porque o funcionaacuterio foi nomeado ndash na Franccedila se Turid quer saber quem ela deveria chamar na prefeitura nas contribuiccedilotildees no Serviccedilo Social

- Senha 634

Se ela insiste em ter uma interlocutora que parecesse gentil com ela

- Pergunte Madame Yvette

O nome da famiacutelia continua sendo um segredo quase inviolaacutevel Eacute o mesmo no bistrocirc onde o chefe recebe constantemente mensagens codificadas

- Eu te deixo pelo Senhor Leacuteon Vocecirc vai dizer a ele que eacute do Sr Raymond (P DANINOS 1977 Made in France Paris Julliard p 23)

19 NT Aqui a autora usa dois exemplos de ldquoerros gramaticiaisrdquo em francecircs que adaptamos para o portuguecircs com o uso de agente no lugar de a gente e afim no lugar de a fim

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ii Prescriccedilotildees comportamentais que na maioria das vezes vecircm de um normativismo mais ou menos exacerbado sabemos que ldquoamantes da boa linguagemrdquo ou ldquocomerciantes de regrasrdquo nas palavras de G Philippe (2002) condenam facilmente os neologismos (inuacuteteis) os empreacutestimos (ameaccediladores) os adveacuterbios terminados em -mente (pesados) as palavras teacutecnicas (jargotildees) feminilizaccedilotildees (ridiacuteculas) etc (PAVEAU ROSIER 2008) As praacuteticas profanas entatildeo satildeo abarcadas pelo purismo como definido por L Rosier (2004 p 69)

Eacute caracterizada por uma forte axiologizaccedilatildeo performativa (o que eacute dito o que natildeo eacute dito) que une o bom uso e pretende respeitar uma estrita economia das trocas linguiacutesticas em que se avalia aquele que fala de acordo com seu domiacutenio da liacutengua sob o acircngulo de riqueza lexical e correccedilatildeo gramatical

iii Intervenccedilotildees espontacircneas sobre a liacutengua chamadas de ldquofalhasrdquo pelos gramaacuteticos e puristas mas que constituem uma praacutetica real de linguagem profana impliacutecita se considerarmos que a falta constitui um discurso sobre a linguagem A coisa eacute entendida pelas etimologias populares (cata-vento lt catar + vento) e as meta-anaacutelises ou ldquointerrupccedilotildeesrdquo (ocircnibus rarr autocarro panorama rarr diaporama) menos quando dizem respeito aos erros Mas sabemos poreacutem e desde haacute muito tempo (a intransponiacutevel Gramaacutetica das falhas de Frei data de 1928) que a maioria das falhas dos falantes grandes ou pequenas eacute explicada pelo princiacutepio da economia da linguagem a linguagem eacute assim regularizada (o famoso vocecirc faz) simplificado (o caso bem conhecido odiado pelos puristas emoccedilatildeo rarr emocionado ou o menos conhecido ele cobriu lido no Teacuteleacuterama semanaacuterio culto em julho de 2006) harmonizado (Centro de estudos espaciais tambeacutem no Teacuteleacuterama em setembro de 2006) As falhas do francecircs existem como D Leeman pergunta (1994) Tudo depende por quem para quem e por que fazer Mas as intervenccedilotildees tambeacutem dizem respeito a campos mais poliacuteticos que dizem respeito agraves realidades de territoacuterios e populaccedilotildees como mostra claramente o artigo de P Seacuteriot E Bulgakova A Herzen como jaacute mencionamos presente no nuacutemero 139140 da revista Pratiques Nomes de pessoas nomes de liacutenguas nomes de paiacuteses e rios trata-se aqui de uma linguiacutestica popular com alto grau de performatividade uma vez que as intervenccedilotildees linguiacutesticas tambeacutem satildeo prescriccedilotildees de identidade

iv Haacute ainda as praacuteticas militantes especialmente aquelas que se debruccedilam a questionar certos usos linguiacutesticos por conta de seu caraacuteter racista homofoacutebico machista enfim preconceituoso

Recapitulando com base no nosso entendimento diremos que a linguiacutestica popular reuacutene quatro tipos de praacuteticas linguiacutesticas descritiva (descrevemos a atividade da linguagem) normativa (prescrevemos comportamentos da linguagem) intervencionista (intervimos nos usos da linguagem) e militante (questionamos certos usos da linguagem por entendermos natildeo serem virtuosos preconceituosos machistas entre outros) Examinemos agora de acordo com os nossos objetivos quais questotildees a linguiacutestica popular deveria desenhar para a linguiacutestica e a didaacutetica da liacutengua

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3 As muacuteltiplas dimensotildees da linguiacutestica popularUma das razotildees pelas quais a linguiacutestica popular deveria ser um domiacutenio da linguiacutestica eacute

que ela diz respeito natildeo apenas agrave teoria linguiacutestica em sua constituiccedilatildeo sua validade e sua legitimidade (o que lhe confere uma dimensatildeo epistemoloacutegica e meta-teoacuterica) mas tambeacutem agraves praacuteticas linguageiras em suas dimensotildees sociais culturais e cognitivas (o que eacute caro agrave sociolinguiacutestica agrave psicologia social e agrave semacircntica cognitiva) bem como aos procedimentos de ensino-aprendizagem de liacutenguas (levando ao ensino de liacutenguas e agrave psicolinguiacutestica)

31 Epistemologia

A linguiacutestica popular propotildee entre outras questotildees um problema de fronteiras disciplinares e de concepccedilatildeo de ciecircncia Sobre esse ponto as questotildees se misturam quais satildeo as relaccedilotildees entre sociolinguiacutestica e linguiacutestica popular (integraccedilatildeo afinidade cruzamento) E acima de tudo entre a linguiacutestica popular e a chamada linguiacutestica acadecircmica ou cientiacutefica devemos permanecer em uma oposiccedilatildeo binaacuteria (uma versus a outra) em que os natildeo-linguistas natildeo tecircm nada a dizer sobre liacutengua e os linguistas satildeo os uacutenicos autorizados a fazecirc-lo ou de maneira mais razoaacutevel podemos colocar as coisas em termos de um continuum um gradiente de cientificidade ou espontaneidade As fronteiras satildeo claras entre o purismo e a linguiacutestica popular (o purismo finalmente eacute tatildeo profano quanto isso) E que jogo de estilos musicais se desenrola entre a gramaacutetica tradicional a linguiacutestica popular e a linguiacutestica cientiacutefica a gramaacutetica tradicional apresentando por meio da norma caracteriacutesticas em comum com a proacutepria linguiacutestica popular conectada com linguiacutestica aprendida Como definir o ldquopopularrdquo ou ldquoprofanordquo senatildeo de maneira relativa a um padratildeo de comparaccedilatildeo qual seria a cientificidade ela mesma suscetiacutevel de variaccedilotildees de acordo com os objetos os meacutetodos e os objetivos considerados

Eacute primeiramente D R Preston um dos iniciadores do campo e autor com N Niedzielski da primeira siacutentese sobre a linguiacutestica popular (2003 [2000]) que responde a essas questotildees demonstrando o interesse cientiacutefico de comentaacuterios linguiacutesticos de natildeo-linguistas No artigo ldquoQursquoest-ce que la linguistique populaire Une question drsquoimportancerdquo20 ele explica por que e como levar em conta a linguiacutestica folk e mostra de passagem algumas ideias recebidas sobre a questatildeo como a suposta pobreza dos conhecimentos populares por exemplo

No nuacutemero mencionado da revista Pratiques vaacuterios autores lidam com essa dimensatildeo epistemoloacutegica Por exemplo nesse nuacutemero haacute uma entrevista concedida pelo historiador Eacuteric Mension-Rigau21 na qual ele explica de maneira muito praacutetica como trata os dados linguiacutesticos com um meacutetodo ldquocombinadordquo de suas habilidades como leitor de literatura (ele eacute um historiador de formaccedilatildeo que se interessa pelas Letras) o que ele chama de sua intuiccedilatildeo e de suas faculdades de observaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo Para ele eacute um verdadeiro meacutetodo histoacuterico e como D Dennett o autor poderia dizer que ldquofuncionardquo porque na verdade produz resultados convincentes e reconhecidos

20 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1176

21 Referimo-nos ao texto ldquoEntretien avec un folk linguiste lrsquohistorien Eacuteric Mension-Rigaurdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1174

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Por sua vez G Achard-Bayle que especularmente escolheu uma forma ldquopopularrdquo para lidar com a questatildeo da linguiacutestica popular (ldquoTrivial Pursuit Alfabeto da identidade pop-folk para o uso de linguistasrdquo) mostra como as questotildees ligadas agrave referecircncia ao real e agrave identidade satildeo sempre suscetiacuteveis agrave teorizaccedilatildeo de regime muacuteltiplo de acordo com o senso comum ou a racionalidade cientiacutefica avanccedilam para ambos suscetiacuteveis de receberem definiccedilotildees relativas

G Schmale no texto intitulado Conceptions populaires de la conversation22 discute a questatildeo da situaccedilatildeo da Laienlinguistik em comparaccedilatildeo com outras praacuteticas algumas menos instruiacutedas outras mais sobre a conversaccedilatildeo Por fim numa perspectiva epistemoloacutegica mais generalista o pesquisador Martin Stegu no artigo Linguistique populaire language awareness linguistique appliqueacutee interrelations et transitions23 compara a linguiacutestica folk a Laienlinguistik a linguiacutestica acadecircmica ou ldquooficialrdquo e sua relaccedilatildeo com a linguiacutestica aplicada No entendimento de Stegu essa comparaccedilatildeo mostra por exemplo que a linguiacutestica aplicada eacute em muitos aspectos bem proacutexima da linguiacutestica popular porque ela proacutepria foi concebida pelos natildeo-linguistas O autor defende entatildeo uma concepccedilatildeo aberta e escalar da linguiacutestica aplicada popular e acadecircmica

32 Teoria

Em suma eacute a proacutepria questatildeo da teoria que a linguiacutestica popular revira ativando questotildees sobre a categorizaccedilatildeo e denominaccedilatildeo dos fenocircmenos estudados nas ciecircncias da linguagem o estudo das atividades metalinguiacutesticas comuns dos falantes vem da linguiacutestica popular A palavra corrente eacute sinocircnimo de popular E como tratar a famosa intuiccedilatildeo ou o sentimento da linguagem em que os proponentes de uma linguiacutestica da competecircncia estatildeo baseados Sabemos que o termo contra intuitivo eacute frequentemente mobilizado para provar a agramaticalidade desta ou daquela forma A intuiccedilatildeo estaacute incluiacuteda na categoria de ldquopopularrdquo A intuiccedilatildeo eacute profana

Tomando uma vez mais a revista Pratiques M-A Paveau oferece algumas respostas hipoteacuteticas a essas questotildees em seu texto Les non-linguistes font-ils de la linguistique Une approche anti-eacuteliminativiste des theacuteories folk24 No texto em questatildeo a autora defende uma abordagem integracionista isto eacute que integre dados considerados folk para a linguiacutestica acadecircmica sem que uma fronteira em termos de contrariedade (ldquoversusrdquo) seja colocada entre os dois tipos de fenocircmenos Eacute a questatildeo da intuiccedilatildeo que sustenta essa posiccedilatildeo antieliminatoacuteria na medida em que a linguiacutestica acadecircmica natildeo pode economizar em intuiccedilatildeo e introspecccedilatildeo por causa de sua dimensatildeo reflexiva irredutiacutevel

Nesse quesito a linguiacutestica eacute particularmente fraacutegil face a ambiccedilotildees objetivistas e idealistas derivadas do modelo cientiacutefico das ciecircncias exatas No campo da argumentaccedilatildeo o trabalho de Marianne Doury tambeacutem se questiona sobre a validade do raciociacutenio folk A autora mostra em seu artigo intitulado lsquoCe nrsquoest pas un argumentrsquo Sur quelques aspects des theacuteorisations spontaneacutees de lrsquoargumentation25 que natildeo haacute diferenccedila gritante em termos da validade dos

22 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1186

23 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1193

24 A traduccedilatildeo deste artigo para o portuguecircs estaacute publicada em Policromias Rio de Janeiro UFRJ v 2 n 3 p 21-45 dez 2018 Disponiacutevel em httpsrevistasufrjbrindexphppolicromiasissuedownload1175622 Acesso em 10 ago 2019

25 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1207

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argumentos entre as produccedilotildees espontacircneas e as produccedilotildees aprendidas Ela traz assim argumentos importantes para fundamentar a abordagem antieliminatoacuteria

Essa posiccedilatildeo integracionista pode ser encontrada ateacute mesmo dentro da proacutepria linguiacutestica acadecircmica como mostram as obras de F Recanati sobre o sentido literal e o sentido contextual sintetizado em seu livro Literal Meaning (RECANATI 2004) Eacute preciso que nos debrucemos um pouco sobre essa concepccedilatildeo do sentido diretamente relacionada ao problema do eliminatoacuterio versus integracionista F Recanati que produz linguiacutestica a partir da filosofia desenvolve uma concepccedilatildeo contextualista do sentido e portanto argumenta que uma teoria semacircntica baseada na noccedilatildeo de sentido literal natildeo pode funcionar No capiacutetulo 9 de seu livro o autor defende uma posiccedilatildeo que chama de Meaning Eliminatism (eliminar o sentido intriacutenseco) baseada na ideia de que o sentido pode ser desenvolvido sem uma concepccedilatildeo puramente linguiacutestica e natildeo-contextual do sentido

De acordo com WF [visatildeo Wrong Format ldquoFormato Erradordquo] o sentido expresso por uma expressatildeo deve sempre ser contextualmente construiacutedo com base no (excessivamente rico ou excessivamente abstrato) significado ou potencial semacircntico do tipo de palavra [] Nesse quadro ainda haacute um papel para o significado linguiacutestico dos tipos de palavras eacute a entrada (ou um dos insumos) para o processo de construccedilatildeo

A diferenccedila entre o Meaning Eliminativism (ME) e o WF eacute que de acordo com o ME natildeo precisamos de significados linguiacutesticos nem mesmo para servir como entrada para o processo de construccedilatildeo Os sentidos que satildeo as contribuiccedilotildees das palavras para os conteuacutedos satildeo construiacutedos mas a construccedilatildeo pode prosseguir sem a ajuda de significados de palavras convencionais independentes do contexto (RECANATI 2004 p 174-175)

O autor entatildeo considera que a teoria contextualista do sentido eacute uma teoria popular na medida em que se baseia em dados natildeo-linguiacutesticos isto eacute contextuais Portanto aqui estamos diante de uma teoria linguiacutestica elaborada com base em uma concepccedilatildeo ldquonatildeo-linguiacutesticardquo no sentido aprendido do termo do sentido F Recanati pode ser descrito como um filoacutesofo que faz linguiacutestica junto com a natildeo-linguiacutestica o que natildeo eacute do gosto de todos como R M Harnish (2005 p 397) mostra claramente resumindo assim a posiccedilatildeo do filoacutesofo francecircs

Assim Recanati parece natildeo apenas promover uma espeacutecie de ldquosemacircntica-pragmaacutetica folkrdquo mas tambeacutem negar a legitimidade (e o potencial valor psicoloacutegico) da tradicional (ldquocientiacuteficardquo) linguiacutestica semacircntica Ele parece estar apostando que a semacircntica-pragmaacutetica natildeo seguiraacute o caminho da sintaxe (e da fonologia) Isto eacute introspectiva a psicologia popular prevaleceraacute tanto sobre as intuiccedilotildees semacircnticas quanto sobre a metodologia tradicional de construccedilatildeo de teoria na semacircntica

Natildeo seria toda linguiacutestica uma linguiacutestica popular Isto eacute certamente mostrado por certas representaccedilotildees discursivas e certos imaginaacuterios linguiacutesticos

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33 Representaccedilotildees

A questatildeo da validade teoacuterica ou mais amplamente cientiacutefica tambeacutem surge para os estudos sobre as representaccedilotildees linguiacutesticas do imaginaacuterio linguiacutestico formulado por A-M Houdebine ateacute as mitologias linguiacutesticas estudadas por P Zoberman bem como a linguiacutestica fantaacutestica e imaginaacuteria evocada por M Yaguello o imaginaacuterio eacute popular a linguiacutestica fantaacutestica eacute profana De quais campos de quais categorias de qual campo disciplinar ou subdisciplina somos noacutes

As respostas satildeo fornecidas por J-C Beacco em seu artigo De la verve Agrave la recherche drsquoun ideacuteal discursif ordinaire26 quando ele propotildee analisar ldquoas concepccedilotildees circulantes sobre o que eacute o bom falar ou o que eacute o autecircntico bom escrever que responde a valores distintos ou opostos agravequeles que baseiam as normas dominantes ditas indiferentemente acadecircmicas oficiais escolares supervisionadas elegantes Neste texto o autor examina um corpus de artigos da imprensa esportiva (o jornal diaacuterio LrsquoEacutequipe) para descobrir definiccedilotildees espontacircneas do que eacute essa eloquecircncia autecircntica Em outra ordem de ideias mas ainda no campo das estruturas representacionais P Seacuteriot E Bulgakova e A Heržen mostram em La linguistique populaire et les pseudo-savants27 que o discurso da liacutengua constitui a base de um questionamento sobre as identidades coletivas e nacionais na Europa Oriental no primeiro dececircnio dos anos dois mil Eles destacam assim realidades culturais e discursivas pouco conhecidas como a fabricaccedilatildeo de identidades miacuteticas e origens fantaacutesticas por meio de um discurso linguiacutestico ldquopseudo-eruditordquo com uma forte intenccedilatildeo persuasiva As apostas satildeo altas porque se trata da definiccedilatildeo de povos e da delimitaccedilatildeo de fronteiras

34 Praacuteticas

Por fim a linguiacutestica popular levanta o problema do valor e da efetividade do conhecimento espontacircneo em um contexto de aprendizagem um discurso frequente eacute que na linguiacutestica como em outros lugares a demonstraccedilatildeo cientiacutefica na maioria das vezes contradiz a interpretaccedilatildeo espontacircnea (por exemplo a posiccedilatildeo de Jackendoff (2003) em relaccedilatildeo ao ldquoconhecimento popularrdquo) Esse discurso estaacute no entanto atualmente sendo minado por alguns filoacutesofos das ciecircncias que depois de ilustres antecessores como A Schutz ou P Feyerabend mostraram como as teorias espontacircneas agraves vezes estatildeo proacuteximas de resultados cientiacuteficos ou tecircm validade de uma outra ordem necessaacuteria no campo da vida em sociedade

Esta questatildeo parece crucial para noacutes na aula de francecircs do jardim de infacircncia agrave universidade Qual eacute o lugar do conhecimento profano dos alunos e professores em sala de aula (sabemos que a atividade metalinguiacutestica de ldquocrianccedilas gramaacuteticasrdquo eacute largamente explorada em preacute-aprendizagens no maternal e no ciclo 1) Um ldquoerro cientiacuteficordquo pode ter uma boa rentabilidade funcional no aprendizado Eacute este o caso de todas as atividades Para todos os niacuteveis de ensino (ldquoa crianccedila gramaacuteticardquo de Gleitman Gleitman e Shipley (1972) pode tornar-se um ldquoestudante gramaacuteticordquo) O ensino de francecircs deve privilegiar a eficaacutecia ou a precisatildeo cientiacutefica

26 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1214

27 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1220

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Sobre essas questotildees vale a pena voltar uma vez mais ao nuacutemero 139140 da revista Pratiques Em seu trabalho sobre Les explications meacutetagraphiques appliqueacutees aux premiegraveres eacutecritures enfantines28 J David se baseia em um grande corpus de textos escritos e especialmente em autoexplicaccedilotildees ou comentaacuterios metagraacuteficos produzidos por crianccedilas pequenas que satildeo aprendizes de escritores (5-7 anos) para mostrar como essas crianccedilas conseguem verbalizar o conhecimento emergente sobre o funcionamento da escrita Este conhecimento demonstra ter conexotildees por um lado com as propriedades das linguagens orais e por outro lado com os componentes da escrita (semioloacutegicos fonoloacutegicos morfoloacutegicos) gradualmente descobertos e integrados Um conhecimento espontacircneo e incontestaacutevel surge assim dos comentaacuterios metagraacuteficos das crianccedilas

Constataccedilotildees anaacutelogas satildeo feitas por referecircncia agraves grafias inventadas (invented spellings) por J-P Jaffre e M-F Morin Em sua reflexatildeo sobre Les activiteacutes preacute-orthographiques nature validiteacute et conceptions29 os autores mostram de fato que as crianccedilas pequenas possuem habilidades preacute-ortograacuteficas pois natildeo satildeo a princiacutepio cognitivamente sensiacuteveis agraves normas ortograacuteficas mas agraves funcionalidades subjacentes cuja uacutenica consideraccedilatildeo eacute avaliar suas primeiras produccedilotildees Eles concluem que escrever natildeo eacute mais uma questatildeo de (re)produzir normas ortograacuteficas mas de perceber princiacutepios graacuteficos baacutesicos e recorrentes ndash por exemplo o valor fonoloacutegico das letras na tradiccedilatildeo alfabeacutetica

Satildeo essas ldquocrianccedilas gramaacuteticasrdquo que satildeo o assunto dos comentaacuterios de M Laparra Em seu texto Lrsquoeacutelegraveve grammairien Lrsquoexemple de lrsquoapprentissage des marques graphiques du franccedilais30 a autora se pergunta qual eacute o valor do conhecimento espontacircneo que os alunos podem produzir em certas marcas morfoloacutegicas graacuteficas do francecircs Apesar de tudo a sala de aula continua sendo um espaccedilo interacional que constitui um verdadeiro reservatoacuterio onde se descobrem discursos agraves vezes preacute-fabricados furtivos ou ritualizados oriundos por vezes dos proacuteprios conhecimentos escolares derivados dos conhecimentos acadecircmicos Eacute isso que C Weber mostra em Les verbalisations ordinaires dans la classe objets furtifs ou variables encombrantes des sciences du langage31 Os vaacuterios modos comunicativos que se desenrolam na sala de aula datildeo lugar de fato em sua opiniatildeo a uma infinita variaccedilatildeo de produccedilotildees representaccedilotildees e raciociacutenios que estatildeo prestes a ser construiacutedos cuja forma e presenccedila satildeo ldquofurtivasrdquo mas que desempenham um papel decisivo nas praacuteticas escolares

O nosso primevo percurso acerca da linguiacutestica popular finda mencionando o artigo de F Capucho Ela propotildee uma abordagem ineacutedita em relaccedilatildeo a todos os trabalhos jaacute mencionados na medida em que opta por trabalhar no contexto do plurilinguismo e em uma noccedilatildeo pluridisciplinar (linguiacutestica filosofia psicologia social comunicaccedilatildeo) a intercompreensatildeo Em Lrsquointercompreacutehension est-elle une mode Du linguiste citoyen au citoyen plurilingue32 ela mostra que essa noccedilatildeo estrutura os comportamentos de falantes pluriliacutengues especialmente em condiccedilotildees

28 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1230

29 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1238

30 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1246

31 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1247

32 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1252

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com alto grau de estranheza como as viagens Em particular ela analisa os componentes emocionais e situacionais e mostra ateacute que ponto os locutores mobilizam espontaneamente quase ldquonaturalmenterdquo sua competecircncia intercompreensiva

4 Umas poucas palavras de fim Esperamos que as breves consideraccedilotildees que aqui realizamos possam orientar e talvez

iluminar uma aacuterea que ainda eacute um pouco obscura na Franccedila e pelo que nos consta a partir de nosso contato com os organizadores deste livro tambeacutem no Brasil Os levantamentos aqui apresentados podem contribuir para o tratamento da linguiacutestica popular a partir de questotildees de natureza epistemoloacutegica teoacuterica praacutetica e representacional que acreditamos serem necessaacuterias para que o campo da ciecircncia da linguagem seja mantido em um dinamismo seguro sem nenhum tipo de binarismos Esperamos que os percursos brevemente abertos ou aprofundados aqui favoreccedilam igualmente as colaboraccedilotildees de todos os interessados sobre a questatildeo da linguiacutestica popular e de um modo mais geral sobre a validade do conhecimento das ciecircncias humanas

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NAtildeO-LINGUISTAS FAZEM LINGUIacuteSTICA33

A linguiacutestica popular ou linguiacutestica folk (designaccedilatildeo afrancesada que adotei por dar conta da questatildeo da polissemia de popular e dos mal-entendidos que satildeo curiosamente associados agrave palavra)34 tem se apresentado ultimamente bem descrita e definida especialmente no contexto de trabalhos realizados sobre a questatildeo no exterior e depois na Franccedila jaacute haacute quinze anos35 A existecircncia de um conjunto de praacuteticas linguiacutesticas designaacuteveis como ldquofolkrdquo (ou melhor por todo outro adjetivo estabilizado que compartilhe o mesmo domiacutenio como profanas espontacircneas selvagens ingecircnuas leigas) natildeo deixa praticamente nenhuma duacutevida que um campo de investigaccedilatildeo particularmente fecundo se abriu para os linguistas que se preocupam com quaisquer produccedilotildees imaginaacuterias e representacionais dos falantes

Tais praacuteticas sobre as quais propus uma tipologia inicialmente tripartite em Paveau (2000) depois de Brekle (1989) (a saber 1 Descriccedilotildees 2 Prescriccedilotildees 3 Intervenccedilotildees) e mais modernamente quatripartite as praacuteticas militantes comeccedilam agora a ser bem compreendidas na diversidade dos lugares sociais em que se manifestam e na variedade de suas atividades com ou sobre a liacutengua imprensa escola foacuteruns de internet guias de conversaccedilatildeo conversa cotidiana etc Comeccedilamos assim a saber bem o que os natildeo-linguistas fazem bem como quando e onde Entretanto natildeo sabemos tatildeo bem quem exatamente eles satildeo e o que deseja sua teoria folk Eacute sobre esses dois pontos que me concentro aqui neste capiacutetulo Proporei inicialmente e a tiacutetulo heuriacutestico uma tipologia de natildeo-linguistas que a meu ver deve-se apresentar de maneira discreta ser um natildeo-linguista natildeo eacute um estado permanente mas uma atividade praticaacutevel num momento e num lugar determinados inclusive pelos proacuteprios linguistas haacute uma posiccedilatildeo de natildeo- linguista sempre cambiaacutevel com alguma outra Darei alguns exemplos de atividades cuja inscriccedilatildeo nessa linguiacutestica folk pode ser discutida exemplos que me serviratildeo para questionar as relaccedilotildees que possam existir entre as ldquoidentidadesrdquo dos natildeo-linguistas e a natureza de suas atividades Num segundo momento abordarei dando continuidade agrave reflexatildeo feita alhures em Paveau (2007 2008a) a difiacutecil questatildeo epistemoloacutegica e filosoacutefica da validade da linguiacutestica folk que evidentemente coaduna-se com as dificuldades de se pensar nas folk sciences em geral Retomarei em particular as noccedilotildees de saber e de consciecircncia epilinguiacutesticos que fornecem argumentos

33 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Les non-linguistes font-ils de la linguistique Une approche antieacuteliminativiste des theories folk Pratiques ed 139-140 p 93-110 2008 Uma versatildeo modificada deste texto foi publicada na Policromias ndash Revista de Estudos do Discurso Imagem e Som da UFRJ v 3 n 2 2018 Disponiacutevel em httpsrevistasufrjbrindexphppolicromiasarticleview21267 Traduccedilatildeo de Phellipe Marcel da Silva Esteves (UFF)

34 Ver detalhe em Paveau (2007) e nas observaccedilotildees de J-C Beacco feitas na ediccedilatildeo 139140 da Pratiques Conformo-me assim voluntariamente com um imperativo ideoloacutegico que natildeo ignoro ser definitoacuterio do discurso cientiacutefico mas nem sempre enxergo por que continuamos a atribuir a popular ldquoconotaccedilotildees pejorativasrdquo a natildeo ser para manter no exerciacutecio do discurso cientiacutefico discursos classistas que natildeo me parecem pertinentes a ele Os filoacutesofos anglicistas que traduzem hoje em dia folk psychology como psicologia popular (P Engel tradutor de Dennett (1990 [1987]) por exemplo) haacute geraccedilotildees natildeo fazem essa distinccedilatildeo incompreensiacutevel Popular como vulgar ou familiar e o conjunto do paradigma que designa ldquoo baixordquo satildeo polissecircmicos e eu me surpreendo que justamente os linguistas que satildeo alguns dos uacutenicos que sabem identificar e defender essa polissemia preocupem-se com esses efeitos

35 Ver Achard-Bayle e Paveau (2008b) Achard-Bayle e Lecolle (2009) Antos (1996) Beacco (2004 org) Brekle (1989) Niedzielski e Preston (2003 [1999]) Paveau (2000 2005 2007 2008a 2009) Paveau e Rosier (2008)

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para defender uma posiccedilatildeo integracionista36 ou seja antieliminativa os enunciados folk natildeo satildeo necessariamente crenccedilas falsas a serem eliminadas da ciecircncia Constituem ao contraacuterio saberes perceptivos subjetivos e incompletos a serem integrados aos dados cientiacuteficos da linguiacutestica

Quem satildeo os natildeo-linguistasA questatildeo da identidade ou da identificaccedilatildeo dos natildeo-linguistas eacute sem duacutevida uma das mais

difiacuteceis no domiacutenio da linguiacutestica folk Se a identificaccedilatildeo profissional dos linguistas eacute feita de modo relativamente faacutecil pela existecircncia de cursos diplomas especialidades universitaacuterias que correspondem na Franccedila a seccedilotildees do CNU e do CNRS (no Comitecirc Nacional tratam-se das seccedilotildees 7 9 e 34) e de uma literatura disciplinar relativamente bem circunscrita e balizada por dicionaacuterios a identificaccedilatildeo profissional dos natildeo-linguistas que lidam com atividades linguiacutesticas natildeo se baseia em nenhum criteacuterio mais institucional O escritor eacute um linguista folk E o revisor de textos das miacutedias escritas e das editoras E o jurista que analisa as palavras tatildeo detidamente quanto um lexicoacutelogo profissional Sim ficamos tentados a afirmar absolutamente mas a comparaccedilatildeo com o falante comum o ldquohomem das ruasrdquo que admira a beleza do leacutexico ou se lamenta quanto agrave degradaccedilatildeo da liacutengua (uma pessoa bem tiacutepica na Franccedila um paiacutes cuja liacutengua eacute constantemente objeto de polecircmicas inflamadas)37 relativiza imediatamente esse julgamento os trecircs primeiros parecem de todo modo mais ldquolinguistasrdquo que o uacuteltimo o falante comum que ocupa mais um espaccedilo verdadeiro de ldquolinguista de final de semanardquo uma figura meio ingecircnua e no fundo bem menos culta Entatildeo como identificar essa categoria de falantes que produzem enunciados avaliativos sobre a proacutepria liacutengua e a liacutengua dos outros metalinguiacutesticos e metadiscursivos a partir de posiccedilotildees subjetivas natildeo disciplinares e natildeo acadecircmicas

Posiccedilotildees discursivasComo em muitos domiacutenios do saber das ciecircncias humanas o pensamento cartesiano

binaacuterio (linguistas versus natildeo-linguistas como categorias discretas) nos leva diretamente agraves limitaccedilotildees do idealismo A meu ver eacute preferiacutevel adotar uma visatildeo escalar das coisas Seria melhor entatildeo mesmo se essa posiccedilatildeo se pareccedila iconoclasta para aqueles que creem na pureza e na objetividade da ciecircncia postular um continuum entre aqueles que fazem da linguiacutestica uma ciecircncia una e aqueles que natildeo Haveria dois polos que representariam os extremos teoacutericos de um lado o linguista ldquoestudadordquo ldquocientiacuteficordquo que manejaria os saberes ldquoexatosrdquo e de outro o linguista espontacircneo que produziria anaacutelises do tipo daquela destacada pela vendedora de loja de antiguidades ldquoEle nunca me diz o que me agradardquo

Recentemente Guumlnter Schmale (2008) fez uma primeira proposta analisando a linguiacutestica popular como lugar de cruzamento entre linguiacutestica cientiacutefica linguiacutestica amadora e para fins didaacuteticosde divulgaccedilatildeo Compartilho inteiramente dessa percepccedilatildeo Schmale eacute entatildeo levado

36 Ver Achard-Bayle e Paveau na introduccedilatildeo deste volume da Pratiques bem como Achard-Bayle e Lecolle (2009) Antos (1996) Beacco (2004 org) Brekle (1989) Niedzielski e Preston (2003 [l999]) Paveau (2000 2005 2007 2008a 2008b 2009) Paveau e Rosier (2008)

37 Ver Paveau e Rosier (2008)

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a propor uma breve tipologia dos linguistas espontacircneos no que tange agrave anaacutelise da conversa sobre um eixo cujos dois extremos satildeo uma ldquoausecircncia de conhecimentos sobre a conversardquo e ldquoconhecimentos perfeitos da organizaccedilatildeo conversacionalrdquo encontrar-se-iam gradativamente o falante comum o escritor o linguista ldquoamadorrdquo o linguista natildeo conversacionalista e o ldquoconversacionalistardquo (SCHMALE 2008) Gostaria aqui de fazer uma proposta mais global relacionada natildeo unicamente agrave anaacutelise da conversaccedilatildeo mas agrave liacutengua e agraves produccedilotildees verbais em francecircs em geral que responderia aos seguintes requisitos

[] dar conta o mais naturalmente possiacutevel da atividade ldquonatildeo-linguiacutesticardquo considerando natildeo identidades socialmente fixas (o escritor o jornalista o tipoacutegrafo) mas posiccedilotildees discursivas por definiccedilatildeo transitoacuterias e natildeo plenamente ajustadas agraves identidades sociais profissionais ou culturais Um gerente de bar inicia uma conversa por SMS com seus clientes um ministro de relaccedilotildees estrangeiras produz um texto sobre a degradaccedilatildeo do francecircs ou por que natildeo um linguista profissional produz um discurso natildeo-linguiacutestico sobre a liacutengua de natureza esteacutetica por exemplo (desgostar de alguma palavra por ela ldquosoarrdquo mal por fazer ldquodoerrdquo seus ouvidos) em virtude daquele famoso desencontro entre comportamento e introspecccedilatildeo sobre o qual em partes a sociolinguiacutestica laboviana eacute fundada e que foi quase definitivo para a dicotomia conceitual de seguranccedila versus inseguranccedila linguiacutestica (LABOV 2001 [1975])

questionar a integraccedilatildeo (ou natildeo integraccedilatildeo) das produccedilotildees considerando natildeo apenas o metalinguiacutestico mas tambeacutem o epilinguiacutestico ou seja uma competecircncia inconsciente portanto impliacutecita da liacutengua Relacionam-se aqui todos os tipos de jogos sobre as palavras os trava-liacutenguas os trocadilhos e confusotildees voluntaacuterias jogos de pronuacutencia (o ldquoQuando a mafagafa gafa gafam os sete mafagafinhosrdquo e o ldquotrecircs pratos de trigo para trecircs tigres tristesrdquo)38 brincadeiras sobre os significantes como a de ldquomonsieur et madame ont un filsrdquo39 histoacuterias bobas no substrato linguiacutestico imitaccedilotildees de sotaques e de maneiras de falar etc Chamo de ludolinguistas os falantes que adotam essa posiccedilatildeo ao mesmo tempo refletida e luacutedica sobre a liacutengua A questatildeo eacute de saber se essas produccedilotildees que repousam sobre uma competecircncia epilinguiacutestica extremamente sofisticada vecircm de atividade linguiacutestica Essas produccedilotildees satildeo sem duacutevidas dotadas de uma dimensatildeo didaacutetica expliacutecita Mas algo que pode nos confundir um bocado em nossa reflexatildeo eacute o fato de que elas se situam no limite entre atividades linguiacutesticas e atividades linguageiras entre atividades sobre a linguagem e atividades de linguagem

38 NT Realizamos uma adaptaccedilatildeo dos trava-liacutenguas em portuguecircs

39 NT Nesse ponto a autora acrescenta uma nota de rodapeacute afirmando que ldquoLes cinq filles de monsieur et madame Holl Jenny Lydia Beth Nicole et Esther eacute uma maravilhosa ilustraccedilatildeo da virtuosidade linguageira extrema no limite do domiacutenio teoacuterico dos ourives das palavras que fazem jogos com elasrdquo Essa sentenccedila em francecircs que se inicia com ldquoLes cinq fillesrdquo eacute uma brincadeira conhecida na liacutengua uma anedota Vai-se trocando o sobrenome da famiacutelia e a quantidade de filhos para se chegar a algum resultado que torne a leitura dos nomes dos filhos combinados ao sobrenome da famiacutelia a paroniacutemia de uma outra sentenccedilapalavra No caso da sentenccedila acima ldquoJrsquoai ni le diabegravete ni cholesterolrdquo [Natildeo tenho nem diabetes nem colesterol] se formam a partir de ldquoJenny Lydia Beth Nicole Esther Hollrdquo Para dar mais um exemplo ldquoMonsieur et Madame Oration ont une fille Ameacutelierdquo donde ldquoAmeacutelie Orationrdquo ldquoameacuteliorationrdquo [melhora] Um correlato fraco em liacutengua vernaacutecula mdash jaacute que natildeo se trata de uma famiacutelia de jogos epilinguiacutesticos mdash eacute a seguinte charada ldquoUma menina senta na sua cadeira da escola onde uma pessoa tinha colocado uma taxinha Qual eacute o nome da pessoa Na-taxa [Natasha]rdquo Embora natildeo forme uma famiacutelia esse tipo de charadas de ldquoQual eacute o nome da pessoardquo eacute muito comum no Brasil

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Uma proposta de tipologiaAssim proponho a seguinte tipologia elaborada a partir de trabalhos existentes sobre

a linguiacutestica folk ou as posiccedilotildees normativas as observaccedilotildees realizadas em meus trabalhos anteriores e em particular a partir do corpus reunido na obra La langue franccedilaise passions et poleacutemiques As posiccedilotildees satildeo classificadas por ldquocoeficienterdquo decrescente de detenccedilatildeo de um saber linguiacutestico e acompanhadas de uma categorizaccedilatildeo aproximada do tipo de praacuteticas executadas segundo a trilogia mencionada anteriormente

bull Linguistas profissionais que fornecem descriccedilotildees linguiacutesticas

bull Cientistas natildeo-linguistas (ldquohistoriador-linguistardquo como Eacuteric Mension-Rigau em seu Aristocrates et grands bourgeois Eacuteducation traditions valeurs ldquosocioacutelogo-linguistardquo como Pierre Bourdieu (em seu A distinccedilatildeo criacutetica social do julgamento) que propotildeem descriccedilotildees linguiacutesticas

bull Linguistas amadores (linguistas leigos acadecircmicos como Maurice Druon juristas como Geacuterard Cornu (autor de um manual de linguiacutestica juriacutedica ver Cornu 2005 [1990] e o subcapiacutetulo 131) que fornecem descriccedilotildees e prescriccedilotildees

bull Logoacutefilos glossomaniacuteacos40 e outros ldquoloucos da liacutenguardquo como Jean-Pierre Brisset ou George Orwell que frequentemente empreenderam intervenccedilotildees na liacutengua fosse por invenccedilatildeo fosse por deformaccedilatildeo

bull Preparadores-revisores-redatores (o lendaacuterio copidesque do Monde Jean-Pierre Collignon cujos sucessores produziram um discurso sobre sua atividade ldquolinguiacutesticardquo no blog ldquoLangue saucepiquanterdquo os especialistas de programas televisivos como o ldquoprofessorrdquo Capelovici e seus sucessores no programa Des chiffres et des lettres por exemplo) que sugerem descriccedilotildees e prescriccedilotildees (incluindo correccedilotildees)

bull Escritores ensaiacutestas (Proust Jean Paulhan Pierre Daninos Philippe Jullian Robert Beauvais) do lado da descriccedilatildeo e da prescriccedilatildeo

bull Ludolinguistas (humoristas imitadores autores de histoacuterias bobas autores de jogos sobre as palavras Thierry Le Luron fazendo imitaccedilotildees do poliacutetico Valeacutery Reneacute Marie Georges Giscard drsquoEstaing Sylvie Joly e sua personagem ldquoBourgeoiserdquo Florence Foresti e sua Anne-Sophie de la Coquillette Coluche e seu ldquobeaufrdquo [brutamontes homem grosseiro e machista]) que fazem descriccedilotildees-interpretaccedilotildees linguiacutesticas

bull Falantes engajados militantes ou apaixonados juristas em suas praacuteticas textuais e orais centrados na descriccedilatildeo e na intervenccedilatildeo

bull Falantes comuns (a vendedora da loja de antiguidades na Rue de la Chine os autores desconhecidos das colunas de leitores de jornais e revistas e as mensagens em blogs e foacuteruns os ldquodominantesrdquo citados por Jean-Claude Passeron que misturam sem duacutevida os trecircs tipos de praacuteticas

Tais posiccedilotildees natildeo satildeo evidentemente discretas mas porosas e ateacute mesmo transversais

40 O termo logoacutefilo eacute de Michel Pierssens (1976) e glossomaniacuteaco eacute uma palavra proposta por Umberto Eco (1994)

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podendo um falante passar de uma posiccedilatildeo a outra eacute bem isso que JRR Tolkien faz sendo filoacutelogo e lexicoacutegrafo professor de inglecircs medieval mas que ao mesmo tempo torna-se logoacutefilo ao inventar liacutenguas imaginaacuterias como o famoso eacutelfico e eacute bem assim tambeacutem com Saussure primeiro linguista profissional na teoria do signo glossomaniacuteaco beirando a posiccedilatildeo de ludolinguista em seus Anagramas

A porosidade das posiccedilotildees implica igualmente uma porosidade de saberes os saberes linguiacutesticos satildeo transmitidos para os da linguiacutestica folk e vice-versa A meu ver natildeo haacute com efeito isolamento possiacutevel das categorias nesse domiacutenio os saberes linguiacutesticos ditos ldquoestudadosrdquo ou ldquocientiacuteficosrdquo natildeo satildeo neutralizados da consciecircncia epilinguiacutestica dos falantes

Alguns exemplos juristas escritores logoacutefilos ludolinguistas e militantes

A linguiacutestica juriacutedica

O manual de linguiacutestica juriacutedica (ou ldquojurilinguiacutesticardquo) de Geacuterard Cornu (2005 [1990]) eacute um exemplo interessante de linguiacutestica folk na medida em que o autor se dedica meticulosamente a iniciar uma proposta sobre a ldquociecircncia da linguagemrdquo saussuriana embora mantendo incautamente sem duacutevidas os preacute-discursos profanos que parecem ldquoingecircnuosrdquo demais a um linguista profissional Por exemplo ele define a linguiacutestica juriacutedica como a ldquoaplicaccedilatildeo particular na linguagem do direito da fundamental ciecircncia da linguiacutestica geralrdquo e esclarece um pouco adiante que ldquosua esperanccedila eacute ao menos de ela ser reconhecida como uma linguiacutestica praacutetica do mesmo modo que a linguiacutestica aplicada agrave poesiardquo (CORNU 2005 [1990] p 25) Tal analogia entre direito e poesia eacute sustentada por uma referecircncia a Roman Jakobson cuja metodologia linguiacutestica para o estudo da poesia eacute diretamente aplicada ao direito Eacute daiacute que vem a equivalecircncia final ldquo[o] que eacute vaacutelido para o discurso poeacutetico deveria ser tambeacutem para o discurso juriacutedicordquo (CORNU 2005 [1990] p 25) Poderiacuteamos zombar dessa afirmaccedilatildeo mas essa analogia eacute interessante justamente por constituir uma das modalidades mais disseminadas do pensamento profano Temos aiacute um exemplo de uso de um meacutetodo profano para a elaboraccedilatildeo de um corpo de saber profano Mais agrave frente ele define o vocabulaacuterio juriacutedico como ldquoo reflexo do sistema juriacutedicordquo (Idem p 58) recuperando assim a concepccedilatildeo de liacutengua como reflexo E foi justamente contra essa concepccedilatildeo que a linguiacutestica cientiacutefica se constituiu Eu poderia ainda dar bem mais exemplos dessa linguiacutestica espontacircnea em embate com uma linguiacutestica acadecircmica que G Cornu apresenta para justificar o uso da linguagem em seu campo teoacuterico O essencial me parece ser que essa linguiacutestica folk ldquofuncionardquo como diria D Dennett quer dizer ela organiza com eficaacutecia os usos especializados da linguagem no campo juriacutedico

As ldquooutras liacutenguasrdquo de Antonin Artaud

ldquoEm fevereiro de 1947rdquo escreve Anne Tomiche (2002 p 141)

Antonin Artaud descreve essa lsquooutra liacutenguarsquo que ele nunca cessou de procurar como uma lsquocanccedilatildeo impostada [] entre negrochinecircsindiano e francecircs vulgarrsquo

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Ele enfatiza entatildeo natildeo apenas a dimensatildeo oral dessa liacutengua entre a canccedilatildeo e a impostaccedilatildeo mas tambeacutem a mistura de liacutenguas e mais precisamente uma mistura de liacutenguas associadas agraves transgressotildees sintaacuteticas e agrave inteligibilidade

Artaud fornece com efeito um exemplo de atividade linguiacutestica empreendida por um natildeo-linguista que eacute um escritor evidentemente dotado de um saber linguiacutestico epilinguiacutestico e plurilinguiacutestico (Artaud eacute familiarizado com muitas liacutenguas estrangeiras) largamente superior agrave meacutedia dos falantes Artaud se esforccedila entatildeo para elaborar outra liacutengua cujas caracteriacutesticas satildeo essencialmente a mistura e a transgressatildeo ao sistema Ele natildeo se contenta em criar e inventar formas linguageiras mas tambeacutem analisa-as no acircmbito de um discurso metalinguiacutestico Anne Tomiche daacute um exemplo bem representativo de uma posiccedilatildeo discursiva folk da parte de um escritor

Poderiacuteamos multiplicar os exemplos mas soacute falaremos de um particularmente interessante jaacute que Artaud natildeo se contenta em introduzir em uma frase em francecircs um termo o ldquoteacutetecircmerdquo que solda muitas liacutenguas ldquoNo sono a gente dorme de mim mesmo e de qualquer um soacute haacute o espectroa extraccedilatildeo do teacutetecircme do ser por outros seres (acordados por ora) disso que faz com que a gente seja um corpordquo Natildeo sem ironia ele continua em seguida com uma anaacutelise metalinguiacutestica da composiccedilatildeo do termo explicando que ldquoteacutetecircmerdquo mistura o eacutema grego (sangue) com a tecircte [cabeccedila testa] e com o theacute [chaacute] que reduplicado designa aquilo que repousa e que arde ldquoE o que eacute o teacutetecircme O sangue do corpo espalhado nesse momento e que adormece em seu sono Como o teacutetecircme eacute o sangue Pelo eacutema diante do t que repousa e que designa aquilo que repousa como o teacute veacute dos marselheses41 Porque o teacute [o chaacute] faz um barulho de cinza quando a liacutengua o encosta nos laacutebios em que ele queimaE Eacutema em grego quer dizer sangue E teacutetecircme duas vezes a cinza sobre a chama do coaacutegulo de sangue do inveterado coaacutegulo de sangue que eacute o corpo daquele que dorme e sonha Seria melhor que acordasserdquo(XIV 16)42 (TOMICHE 2002 p 144)

Logoacutefilos glossomaniacuteacos loucos da linguagemProacuteximo do escritor e de sua atividade folk mas distante do campo da literatura e de suas

aberturas ficcionais o apaixonado pela linguagem se entrega a atividades de invenccedilatildeo de liacutenguas imaginaacuterias O logoacutefilo eacute um tiacutepico linguista folk bem dentro do retrato que Marina Yaguello faz dele quando de seu estudo sobre aqueles que chama de ldquoloucos da linguagemrdquo

41 NT A expressatildeo ldquoTeacute veacuterdquo eacute tiacutepica da fala de Marselha significando algo como ldquoRepare soacuterdquo ldquoVejardquo ldquoOlherdquo No original a citaccedilatildeo inteira eacute ldquoOn pourrait multiplier les exemples mais on nrsquoen ajoutera qursquoun seul particuliegraverement inteacuteressant parce qursquoArtaud ne se contente pas drsquointroduire dans une phrase en franccedilais un terme le laquo teacutetecircme raquo qui brasse plusieurs langues laquo Dans le sommeil on dort il nrsquoy a pas de moi et personne que du spectre arrache- ment du teacutetecircme de lrsquoecirctre par drsquoautres ecirctres (agrave ce moment-lagrave eacuteveilleacutes) de ce qui fait que lrsquoon est un corps raquo Non sans ironie il procegravede ensuite agrave une analyse meacutetalinguistique de la composition du terme pour expliquer que le laquoteacutetecircmeraquo mecircle le eacutema grec (sang) agrave la tecircte et au laquotheacuteraquo qui redoubleacute deacutesigne ce qui se repose et qui bruumlle laquo Et qursquoest-ce que le teacutetecircme Le sang du corps agrave ce moment-lagrave allongeacute et qui sommeille car il dort Comment le teacutetecircme est-il le sang Par le eacutema devant qui le t se repose et deacutesigne ce qui se repose comme le teacute veacute des Marseillais Car le teacute fait un bruit de cendre lorsque la langue le deacutepose dans les legravevres ou il va fumer Et Eacutema en grec veut dire sang Et teacutetecircme deux fois la cendre sur la falamme du caillot de sang de caillot inveacuteteacutereacute de sang qursquoest le corps du dormeur qui recircve et ferait mieux de srsquoeacuteveiller

42 Fazemos referecircncia aqui agraves ediccedilotildees das obras completas de Artaud feitas pela Gallimard 1976-1994

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O inventor de liacutengua eacute um amador no duplo sentido do termo apaixonado pelas liacutenguas em geral desconhece absolutamente a ciecircncia da linguagem Mas ele tem antes de tudo uma preocupaccedilatildeo de natureza esteacutetica o desejo de produzir um tudo uma totalidade um conjunto fechado mas exaustivo dotado de uma simetria perfeita cujas engrenagens estatildeo besuntadas de oacuteleo onde nenhuma discordacircncia ou ambiguidade saberia se introduzir donde seriam banidos o equiacutevoco a extravagacircncia o mal-entendido (YAGUELLO 2006 p 45)

Sua posiccedilatildeo social e profissional o coloca em contato com os dados da cultura e ao contraacuterio dos pintores da arte bruta ou da arte ldquode fora da cacircnonerdquo que natildeo satildeo detentores de cultura ele estaacute no interior do universo letrado

Na maior parte das vezes eacute um escolaacutestico um professor ou um meacutedico ou seja justamente um homem de gabinete um homem de cavanhaque e de oacuteculos com armaccedilatildeo circular de metal como revela a galeria de retratos que estampa o livro de Monnerot-Dumaine uma das duas biacuteblias da interlinguiacutestica (YAGUELLO 2006 p 46)

Ele executa gestos profissionais que estatildeo proacuteximos daqueles empreendidos pela linguiacutestica acadecircmica universitaacuteria mesmo que natildeo disponha de seus saberes especializados Ainda assim de acordo com Marina Yaguello o trabalho do logoacutefilo consiste em

a) acumular dados

b) classificaacute-los

c) encontrar um princiacutepio explicativo imitaccedilatildeo dos sons da natureza ou ainda a correspondecircncia entre o sentido das palavras e sua realizaccedilatildeo acuacutestica ou articulatoacuteria

d) organizar os dados sob a forma de uma aacutervore genealoacutegica a liacutengua-matildee que daria agrave luz toda a prole de liacutenguas passadas e presentes da humanidade (YAGUELLO 2006 p 47)

LudolinguistasDefini anteriormente os ludolinguistas como especialistas na manipulaccedilatildeo luacutedica dos

significantes Aprofundo aqui com o exemplo dos imitadores especialmente aqueles de sotaques Todos os humoristas sejam imitadores profissionais ou natildeo dispotildeem em seu repertoacuterio da praacutetica de manipulaccedilatildeo de sotaques que repousa sobre uma teoria sociolinguiacutestica espontacircnea Os sotaques satildeo manifestaccedilotildees focircnicas da variaccedilatildeo regional nacional social eacutetnico-cultural de gecircnero ou de sexualidade etc O sotaque social eacute por exemplo bem representado nas imitaccedilotildees de Valeacuterie Lemercier no filme Os visitantes eles natildeo nasceram ontem de 1993 (o sotaque aristocraacutetico de ldquoBeacuteardquo de Montmirail ao ver seu ancestral ldquoHubrsquordquo chegar da Idade Meacutedia acompanhado de seu fiel serviccedilal Jacquouille la Fripouille) ou nas encenaccedilotildees de Sylvie Joly como ldquogrande burguesardquo em sua peccedila La cigale et la Joly [A cigarra e a Joly como parocircnimo de La cigale et la fourmi A cigarra e a formiga] (2006) ou ainda pelas entonaccedilotildees da atriz Mathilde Casadesus que conta com um forte registro cientiacutefico no documento sonoro mdash uma fita cassete mdash que acompanha a coletacircnea Les accents des franccedilais organizada por Pierre

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Leacuteon e colegas (LEacuteON et al 1983) Encontram-se realizaccedilotildees de sotaques eacutetnico-culturais nas imitaccedilotildees do sotaque ldquoafricanordquo pela dupla Omar e Fred no curto programa Le service apregraves-vente des eacutemissions atualmente transmitido no comeccedilo da noite no Canal+ ou com o tenista-cantor Yannick Noah que elaborou ao longo de suas intervenccedilotildees televisivas um tipo de imitaccedilatildeo antirracista do sotaque camaronecircs ou ainda com as interpretaccedilotildees magrebinas exageradas de Djamel Debbouze ou Mohand Saiacuted Fella (TERBOUCHE 2008)43 e enfim com as ecircnfases judaico-magrebinas dos humoristas Eacutelie Kakou e Gad Elmaleh Os sotaques regionais que entraram na moda no final dos anos 1990 na seacuterie de curtas televisivos Les Deschiens (uma famiacutelia que tem o sotaque rural do departamento francecircs de Sarthe v Pugniegravere 2006) e mais recentemente no filme A Riviera natildeo eacute aqui [Bienvenue chez les chrsquotis] de Dany Boon (2007) haacute muito tempo satildeo alvo de imitaccedilotildees mais ou menos pejorativas principalmente entre escritores como bem mostra a celebriacutessima cena do Dom Juan de Moliegravere dedicada aos camponeses Charlotte e Pierrot (ato II cena I) Os sotaques mais difiacuteceis de serem apreendidos e nomeados (dada a dificuldade de nomeaccedilatildeo eu proporia a terminologia sotaque de gecircnero ou sotaque de identidade sexual quem sabe ateacute de orientaccedilatildeo sexual) e mais estigmatizantes mdash como o sotaque ldquohomordquo (ldquogayrdquo) exemplificado pelas interpretaccedilotildees ldquoloucasrdquo de Michel Serrault na peccedila e no filme A Gaiola das Loucas ou de Gad Elmaleh no filme Xuxu de Merzak Allouache (2003) mdash satildeo testemunhos analogamente dessa extraordinaacuteria competecircncia linguiacutestica dos imitadores que repousa num treinamento fino apesar de natildeo cientiacutefico dos fenocircmenos foneacuteticos destacados

Eacute preciso reconhecer aleacutem de tudo que os linguistas profissionais se dedicam muito pouco aos sotaques em especiais aos sotaques do substrato eacutetnico cultural ldquode sexualidaderdquo ou comunidade haacute poucos trabalhos sobre o sotaque ldquohomossexualrdquo na sua versatildeo ldquoloucardquo ou em qualquer outra com exceccedilatildeo de um artigo de Gilles Siouffi intitulado ldquoLes homos parlent-ils comme les hommes ou comme les femmesrdquo de 1998 A questatildeo eacute abordada no acircmbito da dialetologia social estadunidense entre trabalhos sobre atitudes linguiacutesticas (PRESTON 1992 por exemplo) Os estudos satildeo entretanto escassos Em contrapartida os sotaques satildeo bem detectados por outros linguistas folk os socioacutelogos-linguistas por exemplo que consideram que eles tecircm uma funccedilatildeo de poderosos organizadores sociais Esses socioacutelogos-linguistas satildeo os protagonistas de atividades folk de uma terceira categoria dos linguistas folk as classes dominantes Com efeito Jean-Claude Passeron considera que as classes dominantes executam uma atividade linguiacutestica de intervenccedilatildeo a saber a divisatildeo social por meio dos sotaques

[] ao mesmo tempo que a linguiacutestica espontacircnea das classes dominantes constitui o sotaque dominante como a ausecircncia de sotaque sotaque zero mdash em relaccedilatildeo ao qual os sotaques regionais ou populares satildeo entendidos ou definidos como deformaccedilotildees mais ou menos pitorescas mdash a estiliacutestica espontacircnea dos modos de vida tende a considerar as marcas linguiacutesticas portadas pelas classes dominantes (determinantes concomitantemente da dominaccedilatildeo e das restriccedilotildees relacionadas ao exerciacutecio da

43 ldquoComment vous dire le costume Il eacutetait tellement petit que crsquoest un coustime [kustim]rdquo [Como o senhor diz o costume [traje] Era tatildeo pequeno que era um coustime [kustim cusrsquotam como pronunciado no espetaacuteculo mas morfologicamente um trajezinho]] (extraiacutedo do espetaacuteculo Cocktail Khorotv (literalmente Cocktail de mensonges) citado por Terbouche (2008 p 14)

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dominaccedilatildeo) como natildeo marcas a partir das quais se veem as de formaccedilotildees dos corpos e dos rostos populares (PASSERON 1999)

Os discursivistas folkConcluo essa enumeraccedilatildeo de exemplos com uma manifestaccedilatildeo militante da linguiacutestica folk

ou da anaacutelise do discurso folk nesse caso Trata-se de um ldquoateliecirc de anaacutelise e de criacutetica do discurso poliacuteticordquo intitulado antifrasticamente ldquoLe monde reacuteenchanteacute de Nicolas Sarkozyrdquo proposto em novembro de 2007 em Paris no 19e Distrito pela ldquoCoordination des Intermittents et Preacutecaires drsquoIle-de-Francerdquo A primeira sessatildeo foi apresentada assim

Primeira sessatildeo quarta-feira 31 de outubro de 2007 das 19h agraves 22h na CIPIDF

A ideia inicial eacute relativamente simples trata-se de fazer um trabalho coletivo de anaacutelise e de criacutetica do discurso poliacutetico no acircmbito de um ateliecirc aberto a todos

Em nossa opiniatildeo natildeo pode ser um grupo de reflexatildeo teoacuterica mdash porque aiacute seria necessaacuterio supor o domiacutenio de certas noccedilotildees e de algumas ferramentas o que restringiria de fato a acessibilidade do ateliecirc Noacutes o consideramos muito mais como um ateliecirc praacutetico ateacute mesmo poliacutetico se conseguimos vislumbrar daiacute sua finalidade desenvolver meios eficazes de combater os efeitos sobre noacutes mesmos e terceiros do discurso poliacutetico autorizado Poderiacuteamos dizer nesse sentido que se trata de um ateliecirc de autoformaccedilatildeo de criacutetica ideoloacutegica

Concretamente decidimos trabalhar sobre o discurso de Nicolas Sarkozy As discussotildees foram acaloradas quanto a esse assunto e ningueacutem saiu inteiramente satisfeito com a escolha Concordamos que o poder proveacutem de mais longe e que sua accedilatildeo vai aleacutem do campo ldquopoliacuteticordquo e que de certa maneira essa escolha significa sucumbir ao discurso ideoloacutegico procurando o poder precisamente onde gostariacuteamos de acreditar que ele se exerce exclusivamente Dito isso se o poder estaacute em todo lugar pouco importa onde o percebemos o importante para noacutes eacute concentrar nossa anaacutelise sobre um discurso que seja atual e endereccedilado a todos e cada um mdash cada um tem o direito e eis nossa convicccedilatildeo a capacidade de respondecirc-lo [anuacutencio recebido por e-mail outubro de 2007]

Essa passagem nos mostra que a teoria folk eacute uma teoria praacutetica ou uma teoria da praacutetica O objeto do Ateliecirc eacute o uso do discurso e seus efeitos sobre os indiviacuteduos natildeo a descriccedilatildeo de suas regras e regularidades por exemplo O saber profano eacute na maior parte das vezes um saber praacutetico um saber ldquouacutetilrdquo aos locutores para mudar a sociedade em que vivem

De que valem as teorias folkA linguiacutestica folk propotildee uma das questotildees epistemoloacutegicas mais difiacuteceis sobretudo no

domiacutenio das ciecircncias humanas e sociais qual eacute a validade das teorias (pseudo) cientiacuteficas Existem poucos trabalhos sobre essa questatildeo na Franccedila A linguiacutestica folk eacute majoritariamente traduzida em termos de posiccedilatildeo normativa ou de purismo (PAVEAU ROSIER 2008) Aleacutem disso

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o espectro cartesiano e as imagens positivas mdash talvez ateacute mesmo positivistas mdash da ciecircncia que circulam no paiacutes dificilmente favorecem esse tipo de questionamento Por outro lado a filosofia do espiacuterito e a filosofia das ciecircncias especialmente nos Estados Unidos propotildeem anaacutelises e respostas particularmente esclarecedoras sobre as folk sciences em geral ou sobre a linguiacutestica folk em particular Utilizo essas respostas em meu escrutiacutenio da validade das teorias espontacircneas sobre a liacutengua natildeo pretendendo aplicaacute-las de modo mecacircnico

Avaliaccedilotildees epistecircmicas da linguiacutestica folkQual eacute a validade das teorias folk Trecircs respostas satildeo possiacuteveis

A posiccedilatildeo eliminativaNa filosofia do espiacuterito a posiccedilatildeo dita eliminativa ou do materialismo eliminativo (P

Feyerabend R Rorty W Sellars Paul e Patricia Churchland S Laurence) estaacute fundada sobre a tese segundo a qual a compreensatildeo dos estados mentais pelas teorias do senso comum estaacute errada Isso porque ela natildeo corresponderia a nenhuma base cientiacutefica Com efeito essa compreensatildeo pode se apoiar sobre dados neuroloacutegicos Por exemplo natildeo haacute base neural para certas teorias sobre a intencionalidade ou mesmo a proacutepria consciecircncia noccedilotildees que satildeo as mais difiacuteceis para naturalizar Para o filoacutesofo Paul Churchland por exemplo (2002 [1981]) as teorias folk satildeo totalmente falsas e estatildeo aleacutem disso no processo de serem substituiacutedas (ldquoeliminadasrdquo) por demonstraccedilotildees irrefutaacuteveis concebidas pelas neurociecircncias Essa posiccedilatildeo eacute compartilhada pelo filoacutesofo S Laurence (2003) considerando que as teorias folk em qualquer ciecircncia estatildeo na maior parte do tempo erradas Laurence ainda acrescenta que a linguiacutestica apresenta uma vulnerabilidade muito forte jaacute que se trata de uma teoria jovem a publicaccedilatildeo do CLG data de 1916 pouco mais de 100 anos

Transposta para os resultados da linguiacutestica folk a teoria eliminativa diraacute entatildeo que ela se trata de uma teoria falsa por se basear em dados perceptivos intuitivos dotados de juiacutezos de valor (quem sabe ateacute mesmo imaginaacuterios) mas sem nenhum dado cientificamente verificaacutevel

Uma posiccedilatildeo intermediaacuteria ldquoo realismo suaverdquo de Daniel DennetO filoacutesofo D Dennett (1990 [1987] 2002 [1991]) defende uma posiccedilatildeo intermediaacuteria que ele

mesmo chama de ldquorealismo suaverdquo situado entre os dois extremos do ldquorealismo de forccedila industrialrdquo de J Fodor e do materialismo eliminativo dos Churchland Essa posiccedilatildeo diz respeito agrave psicologia popular (folk psychology) que ele descreve da seguinte maneira

[] as pessoas satildeo ainda menos previsiacuteveis que o tempo se tomadas face agraves teacutecnicas cientiacuteficas dos meteorologistas e mesmo dos bioacutelogos Mas haacute outra perspectiva que nos eacute conhecida desde a infacircncia e que utilizamos sem esforccedilo todos os dias que parece maravilhosamente capaz de fornecer um sentido a todas essas complexidades Chamamo-la comumente de psicologia popular Ela eacute a perspectiva que invoca a famiacutelia dos conceitos ldquomentalistasrdquo como os de crenccedila desejo conhecimento medo atenccedilatildeo

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intenccedilatildeo compreensatildeo sonho imaginaccedilatildeo consciecircncia de si e assim por diante (DENNETT 1990 [1987] p 17-18)

O realismo suave pode ser resumido assim o vocabulaacuterio e os conceitos ldquofolkrdquo satildeo operacionais e ateacute mesmo necessaacuterios para a vida social do homem e as percepccedilotildees espontacircneas satildeo estruturas (patterns) absolutamente fundamentais na vida humana

[] haacute nos assuntos humanos estruturas que se impotildeem por elas mesmas de uma maneira que natildeo eacute de modo algum inexoraacutevel mas que tecircm grande forccedila absorvendo perturbaccedilotildees e variaccedilotildees psiacutequicas que poderiacuteamos muito bem considerar como dadas ao mero acaso satildeo estruturas que caracterizariacuteamos em termos de crenccedilas desejos intenccedilotildees dos agentes racionais (DENNETT 1990 [1987] p 42)

Aleacutem do mais constata D Dennett a psicologia popular funciona (ldquoa estrateacutegia intencional funciona tatildeo bem quanto possiacutevelrdquo p 43) mesmo que esse funcionamento natildeo seja permanente A psicologia popular eacute com efeito uma teoria imperfeita incompleta e consequentemente natildeo generalizaacutevel mas ela eacute uma teoria valiosa em vaacuterios pontos de seu funcionamento Cito essa longa passagem em que D Dennett daacute uma definiccedilatildeo bastante completa da psicologia popular por conter um bom nuacutemero de elementos que podem contribuir para minha reflexatildeo quanto agrave teoria linguiacutestica

[] utilizamos a psicologia popular o tempo todo para explicar ou predizer reciprocamente nossos comportamentos atribuiacutemo-nos reciprocamente crenccedilas e desejos sem nos questionarmos muito espontaneamente e passamos um bom periacuteodo de nossas vidas conscientes formulando o mundo mdash assim como a noacutes mesmos mdash nesses termos A psicologia popular eacute quase tatildeo parte integrante de nossa segunda natureza quanto nossa fiacutesica popular dos objetos de tamanho meacutedio Ateacute que ponto essa psicologia popular eacute pertinente Se nos concentramos nos pontos fracos perceberemos que com frequecircncia somos incapazes de dar sentido a porccedilotildees particulares do comportamento humano (inclusive o nosso) em termos de crenccedilas e de desejos mesmo em retrospectiva com frequecircncia somos incapacitados de predizer o que uma pessoa faraacute ou em que momento ela agiraacute com frequecircncia natildeo conseguimos encontrar recursos teoacutericos para ajustar os desacordos relativos a certas atribuiccedilotildees de desejos e de crenccedilas Se nos concentramos nos pontos positivos descobrimos em primeiro lugar que haacute grandes setores em que essa teoria tem um poder de prediccedilatildeo extremamente confiaacutevel [] Em segundo lugar descobriremos que ela eacute uma teoria que tem um grande poder gerador e uma grande efetividade [] Em terceiro lugar descobriremos que ateacute mesmo as crianccedilas mais jovens adquirem facilmente a teoria em algum momento se natildeo o adquirem teratildeo uma experiecircncia muito limitada da atividade humana a partir da qual podem induzir uma teoria Em quarto lugar descobriremos que todos podemos utilizar a psicologia popular praticamente sem nada sabermos de como funciona o interior dos cabeccedilas das pessoas (DENNETT 1990 [1987] p 67-68)

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Transposta para a linguiacutestica folk essa anaacutelise nos levaria ao seguinte enunciado os dados da linguiacutestica folk satildeo aceitaacuteveis e integraacuteveis agrave teoria linguiacutestica porque fornecem descriccedilotildees perceptivas e organizacionais relevantes da linguagem mas natildeo podem servir de base para uma teoria geral da linguagem

A posiccedilatildeo integracionista os dados folk satildeo dados linguiacutesticosEssa posiccedilatildeo insiste sobre os saberes dos natildeo-linguistas saberes legiacutetimos e reconheciacuteveis

como tais D Preston e N Niedzielski (1999 p 10) o afirmam em sua siacutentese ldquoSe o povo fala sobre a linguagem ele deve claro saber (ou pelo menos acreditar que sabe) sobre issordquo A teoria linguiacutestica eacute entatildeo considerada sob os acircngulos de sua operacionalidade e de sua verdade praacutetica e natildeo mais no acircmbito de uma loacutegica cientiacutefica Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos psicoacutelogos sociais N Llewellyn e A Harrison (2006) em seus estudos sobre as percepccedilotildees das formas linguageiras e discursivas em documentos empresariais Eles mostram que os participantes de uma enquete por eles realizada comprovaram uma competecircncia linguiacutestica verdadeira no reconhecimento dos empregos do pronome nous (noacutesnos) ou na identificaccedilatildeo da transformaccedilatildeo passiva e da nominalizaccedilatildeo Acrescenta-se que essa competecircncia pode significar economia da metalinguagem e ateacute mesmo do aprendizado das expressotildees detectadas

Nessa perspectiva vale a pena enfatizar que categorias linguiacutesticas sonoras formais como as discutidas acima descrevem caracteriacutesticas mundanas do uso cotidiano da liacutengua Eacute perfeitamente possiacutevel que os indiviacuteduos faccedilam uso e identifiquem casos de ldquotransformaccedilatildeo passivardquo por exemplo sem nunca terem ouvido falar do termo (LLEWELYN HARRISON 2006 p 580 traduccedilatildeo nossa)44

Os autores compartilham quanto a isso a posiccedilatildeo de Sylvain Auroux que lembra em seus trabalhos sobre a gramatizaccedilatildeo que os saberes linguiacutesticos natildeo satildeo necessariamente distintos daqueles que fornecem a consciecircncia epilinguiacutestica

[] continuidade entre o epilinguiacutestico e o metalinguiacutestico pode ser comparada com a continuidade entre a percepccedilatildeo e a representaccedilatildeo fiacutesica nas ciecircncias da natureza Enquanto essas uacuteltimas romperam muito cedo com a percepccedilatildeo mdash desde a fiacutesica galileana para se distanciar dela cada vez mais mdash este saber linguiacutestico natildeo rompeu senatildeo esporadicamente com a consciecircncia epilinguiacutestica (AUROUX 1992 p 16)

O ldquorealismo ingecircnuordquo por exemplo (ACHARD-BAYLE 2008 p 34) que consiste em atribuir agraves entidades concretas do mundo fronteiras mais ou menos discretas que fazem com que coincidam com os nomes que as designam pode fazer saltar aos olhos um saber epilinguiacutestico natildeo consciente (ldquopau eacute pau pedra eacute pedrardquo diria sem hesitar minha vendedora de antiguidades)

44 NT As citaccedilotildees em inglecircs feitas no artigo foram traduzidas no texto mas mantidas conforme original em nota de rodapeacute ldquo[hellip] in this regard it is worth making the point that formal sounding linguistic categories such as those discussed above describe mundane features of everyday language use It is perfectly possible for individuals to deploy and identify instances of ldquopassive transformationrdquo for example without having heard of the termrdquo

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mas igualmente uma posiccedilatildeo semacircntico-filosoacutefica cientiacutefica e argumentada A noccedilatildeo de epilinguiacutestico eacute sem duacutevida uma das chaves para se compreender como e por quecirc ao exemplo da psicologia popular a linguiacutestica folk ldquofuncionardquo Com efeito a consciecircncia epilinguiacutestica eacute uma instacircncia que fornece dados linguiacutesticos da ordem da percepccedilatildeo Se numa perspectiva empiacuterica a linguiacutestica faz jus agraves dimensotildees experiencial e cultural da linguagem ou seja se o objeto da linguiacutestica integra os usos da liacutengua pelos sujeitos sociais e cognitivos entatildeo os dados perceptivos da linguiacutestica folk podem ser levados em conta como dados linguiacutesticos pura e simplesmente

As intuiccedilotildees dos locutores satildeo controlaacuteveisSe a linguiacutestica folk como a psicologia folk ldquofuncionardquo eacute por existir uma fonte de percepccedilotildees

de juiacutezos e de avaliaccedilotildees que pode fornecer resultados corretos essa fonte eacute em linguiacutestica a intuiccedilatildeo do dito ldquolocutor idealrdquo se tomamos a terminologia chomskiana ou a consciecircncia epilinguiacutestica se escolhemos a designaccedilatildeo do linguista francecircs Antoine Culioli45 Mas todos os locutores possuem a mesma intuiccedilatildeo Haacute diferenccedila entre a intuiccedilatildeo do locutor natildeo-linguista e a do linguista Natildeo responde o filoacutesofo M Devitt que considera que as intuiccedilotildees dos linguistas satildeo melhores que as dos linguistas folk porque as intuiccedilotildees natildeo satildeo contrariamente a uma ideia em circulaccedilatildeo inatas mas carregadas de teoria M Devitt (2006 p 483) propotildee de fato uma criacutetica bem robusta agrave intuiccedilatildeo chomskiana e propotildee uma teoria alternativa ldquoEssa teoria trata as intuiccedilotildees linguiacutesticas como opiniotildees resultantes de investigaccedilatildeo empiacuterica ordinaacuteria carregadas de teoria como todas as opiniotildees satildeordquo Ele conclui com a impossibilidade de considerar essa intuiccedilatildeo que seria bem pouco carregada cientificamente de teoria como fundaccedilatildeo da linguiacutestica

Vejo linguistas tendendo para duas perspectivas em seu tratamento dos juiacutezos intuitivos dos falantes Por um lado a visatildeo aceita eacute que os falantes representam a verdadeira teoria linguiacutestica de sua liacutengua e derivam seus juiacutezos intuitivos dessas representaccedilotildees Entatildeo esses juiacutezos intuitivos fazendo uso de termos retirados dessa teoria deveriam ser os dados primaacuterios para a teoria do linguista De outro lado haacute o pensamento atraente de que todos os juiacutezos que fazem uso desses termos satildeo dotados de uma teoria linguiacutestica empiacuterica Onde os juiacutezos satildeo do falante comum essa teoria seraacute a linguiacutestica folk Natildeo eacute regra usarmos como dados primaacuterios numa teoria juiacutezos populares carregados de teoria A linguiacutestica natildeo devia fazecirc-lo tambeacutem (DEVITT 2006 p 485 traduccedilatildeo nossa)46

45 Em vaacuterios aspectos essas duas noccedilotildees (a de intuiccedilatildeo do locutor e a de consciecircncia epilinguiacutestica uma de origem estadunidense e outra de origem francesa) se recobrem Ambas designam na verdade uma competecircncia natildeo objetivada natildeo formulada e natildeo formalizada dos locutores em relaccedilatildeo agraves suas produccedilotildees linguageiras O meacutetodo de introspecccedilatildeo faz essa faculdade evoluir para a metalinguagem seja espontacircnea seja formal

46 No original ldquoI see linguists as pulled two ways in their treatment of the intuitive judgments of speakers On the one hand the received view is that speakers represent the true linguistic theory of their language and derive their intuitive judgments from those representations So those intuitive judgments deploying terms drawn from that theory should be the primary data for the linguistrsquos theory On the other hand there is the attractive thought that all judgments deploying those terms are laden with an empirical linguistic theory Where the judgments are those of the ordinary speaker that theory will be folk linguistics We do not generally take theory-laden folk judgments as primary data for a theory So we should not do so in linguisticsrdquo

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Tal desconfianccedila quanto agrave noccedilatildeo de intuiccedilatildeo do locutor ideal e agrave ldquocontemplaccedilatildeo de seus proacuteprios idioletosrdquo pelos linguistas jaacute era denunciada por William Labov no final dos anos 1960 (1976 [1972] p 37) As intuiccedilotildees dos linguistas com efeito estatildeo longe de serem melhores do que as populares

O que aconteceria se um dado tipo de juiacutezo de linguistas sobre a gramaticalidade fosse submetido a uma populaccedilatildeo de origem diversa O estudo mais sistemaacutetico desse tipo foi levado a cabo por Spencer (1973) Ela testou 150 frases retiradas dos estudos sintaacuteticos de Perlmutter Carlotta Smith Postal Ross Rosenbaum e R Lakoff com 60 avaliadores 20 estudantes diplomados em linguiacutestica 20 outros estudantes diplomados e 20 pessoas da cidade do coleacutegio secundaacuterio []

Tendo em vista todos esses resultados ficou claro que nenhum linguista eacute melhor ou pior que os outros nessa questatildeo []

Atualmente nenhum resultado permite alimentar a esperanccedila de que os juiacutezos introspectivos dos linguistas sejam confiaacuteveis reproduziacuteveis ou generalizaacuteveis em sua aplicaccedilatildeo na linguagem da comunidade Eacute necessaacuterio entatildeo perguntarmos quais satildeo as consequecircncias desses fatos para as teorias linguiacutesticas fundadas sobre tais juiacutezos (LABOV 2001 [1975] p 32-33)

As intuiccedilotildees dos linguistas natildeo satildeo creditaacuteveis natildeo porque elas satildeo cultivadas e preteorizadas mdash posiccedilatildeo defendida por Devitt mdash mas por razotildees epistemoloacutegicas Segundo Labov (2001 [1975] p 41) a linguiacutestica natildeo deve repousar em intuiccedilotildees e evidecircncias incontroladas

[] jaacute que cada estudo conduzido ateacute hoje em dia sobre os juiacutezos intuitivos indica que encontra-se neles uma parte natildeo descartaacutevel de efeito do experimentador as intuiccedilotildees incontroladas dos linguistas devem ser consideradas com seacuterias duacutevidas Se essas intuiccedilotildees devem supostamente representar somente o idioleto do linguista entatildeo o valor de suas anaacutelises repousa sobre fundaccedilotildees muito incertas Deve-se submetecirc-los a outros estudos experimentais para que se possa testar a coerecircncia de seus juiacutezos []

Entatildeo devemos descartar os dados da intuiccedilatildeo Natildeo evidentemente mas a linguiacutestica deve integrar sua relatividade isso que Labov chama de ldquoefeito do experimentadorrdquo e aplicar certos princiacutepios

[] a soluccedilatildeo para o problema estabelecido anteriormente parece suficientemente clara Devemos (1) reconhecer o efeito do experimentador e (2) voltar agrave noccedilatildeo original de trabalho sobre os casos evidentes Poderiacuteamos entatildeo fazer nosso trabalho repousar sobre trecircs princiacutepios operacionais que oferecem uma base suficientemente soacutelida para a exploraccedilatildeo contiacutenua dos juiacutezos gramaticais I O princiacutepio do consenso se natildeo haacute motivo para pensar o contraacuterio supotildee-se que os juiacutezos de um locutor nativo sejam caracteriacutesticos ao conjunto dos locutores da liacutengua II O princiacutepio do experimentador se haacute qualquer um

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em discordacircncia quanto aos juiacutezos introspectivos os juiacutezos daqueles que satildeo familiares aos problemas teoacutericos natildeo deveriam se manter como provas III O princiacutepio dos casos evidentes os juiacutezos contestados deveriam ser reforccedilados pela presenccedila de pelo menos um padratildeo coerente na comunidade de locutores ou ser abandonados [] Eacute necessaacuterio ainda nomear um quarto princiacutepio o Princiacutepio da validade

IV Princiacutepio da validade quando o uso da linguagem se mostra mais coerente que os juiacutezos introspectivos uma descriccedilatildeo vaacutelida da linguagem privilegiaraacute o uso agrave introspecccedilatildeo (LABOV 2001 [1975] p 45 e 52)

Esses quatro princiacutepios mdash consenso experimentador casos evidentes e validade mdash levam a consequecircncias sobre as praacuteticas linguiacutesticas (reduzir a relatividade e a natildeo credibilidade dos dados extraiacutedos da intuiccedilatildeo qualquer que seja o tipo de locutor) mas igualmente sobre a proacutepria epistemologia da linguiacutestica a meu ver eles reforccedilam a ideia de um continuum entre as competecircncias dos linguistas e dos natildeo-linguistas porque racionalizam os dados intuitivos

Quando os natildeo-linguistas fabricam os objetos dos linguistas o caso das atitudes linguiacutesticasOs saberes linguiacutesticos folk constituem teorias sociais da linguagem apoiando-se mais

geralmente sobre as praacuteticas linguageiras pelo vieacutes de descriccedilotildees prescriccedilotildees e intervenccedilotildees as teorias folk fornecem os organizadores sociais que se constituem em corpo do saber social Assim a sociolinguiacutestica como linguiacutestica social as toma como objetos ou mais exatamente como metaobjetos (ou seja objetos que falam de objetos) chamando-as de atitudes ou representaccedilotildees

As praacuteticas linguageiras satildeo com efeito utilizadas pelos locutores profanos como um instrumento de descriccedilatildeo psicoloacutegica e social Em sua introduccedilatildeo a um nuacutemero do Journal of Language and Social psychology dedicado agraves atitudes linguiacutesticas D Preston e L Milroy mostram que os locutores fazem uma correspondecircncia entre aspectos psicoloacutegicos e aspectos linguageiros

Notadamente muitos estudos mostraram uma tendecircncia para avaliadores discriminarem entre de um lado dimensotildees de status como inteligecircncia ambiccedilatildeo e confianccedila e de outro lado dimensotildees relacionadas agrave solidariedade como atraccedilatildeo social amistosidade e generosidade Falantes-padratildeo tenderam a ser mais bem-avaliados no primeiro conjunto de aspectos e mal-avaliados no uacuteltimo e o contraacuterio foi vaacutelido para o juiacutezo de falantes natildeo padratildeo (p ex RYAN GILES SEBASTIAN 1982 p 9) (PRESTON MILROY 1999 p 4-5 traduccedilatildeo nossa)47

47 No original ldquo[hellip] notably several studies showed a tendency for judges to discriminate between on one hand status dimensions such as intelligence ambition and confidence and on the other solidarity-related dimensions such as social attractiveness friendliness and generosity Standard speakers have tended to be rated higher on the former set of traits and downgraded on the latter the converse being true of judgments of non standard speakers (eg Ryan Giles amp Sebastian 1982 p 9)rdquo

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R Van Bezooijen e C Gooskens constatam o mesmo em seu estudo sobre a percepccedilatildeo da variedade em locutores holandeses

Intraculturalmente (em ouvintes holandeses) bem como interculturalmente (em falantes britacircnicos quenianos mexicanos e japoneses) uma maneira de falar mais ldquoanimadardquo eacute fortemente associada com domiacutenio vontade poder e autoconfianccedila Como esperado a pronuacutencia que permite identificaccedilatildeo dialetal soacute desempenha um papel intraculturalmente (VAN BEZOOIJEN GOOSKENS 1999 p 31-32 traduccedilatildeo nossa)48

Conhecemos os resultados do ldquomeacutetodo Lambertrdquo (LAMBERT et al 1960) ndash com o desconhecimento dos sujeitos locutores biliacutengues registram versotildees de um mesmo texto em duas ou vaacuterias liacutenguas ou variedades linguiacutesticas de modo a suprimir o vieacutes da voz Espera-se que os sujeitos em seguida avaliem o locutor com a ajuda de uma escala constituiacuteda de adjetivos autoniacutemicos (o locutor eacute simpaacutetico x antipaacutetico confiaacutevel x suspeito doacutecil x violento etc) Esse meacutetodo permite que surjam resultados bem confiaacuteveis por exemplo um dos estudos realizados segundo esse protocolo mostra que os homens angloacutefonos percebem as mulheres mais favoravelmente se elas falam francecircs a essas os homens angloacutefonos produzem uma boa imagem jaacute que elas tecircm a visatildeo desses falantes de inglecircs melhor do que a dos falantes de outras liacutenguas

As percepccedilotildees natildeo cientiacuteficas carregadas de representaccedilotildees e de produccedilotildees imaginaacuterias constituem assim verdadeiras teorias espontacircneas da classificaccedilatildeo soacutecio-psicoloacutegica

Consideraccedilotildees finais os natildeo-linguistas como linguistas preciososQuis mostrar neste capiacutetulo que as informaccedilotildees geradas em praacuteticas disciplinares folk

satildeo plenamente integraacuteveis agrave anaacutelise linguiacutestica A linguiacutestica folk possui com efeito uma validade de ordem praacutetica e representacional e deve por isso ser considerada pela linguiacutestica cientiacutefica como uma reserva de dados que nenhum linguista profissional consegue reunir com o auxiacutelio dos meacutetodos ditos ldquocientiacuteficosrdquo

A enorme variedade das posiccedilotildees discursivas folk das praacuteticas correspondentes e dos dados assim recolhidos assim como a fragilidade cientiacutefica de um bom nuacutemero de observaccedilotildees cientiacuteficas (geradas de posiccedilotildees subjetivas frequentemente idioletais) deve sem duacutevidas provocar que o objeto da linguiacutestica seja repensado Eacute quase irracional mdash se pensamos junto com Pierre Bourdieu e tambeacutem com Sylvain Auroux ldquoa historicizaccedilatildeo do sujeito da historicizaccedilatildeordquo (BOURDIEU 2001) eacute uma necessidade epistemoloacutegica mdash que se continue a definir o objeto da linguiacutestica como Saussure o fez em 1916 Tal objeto foi profundamente afetado pelos saberes epilinguiacutesticos metalinguiacutesticos e metadiscursivos de que foi alvo e os saberes folk fazem parte dele Parece-me necessaacuterio entatildeo propor uma descriccedilatildeo renovada convincente e sobretudo cientificamente eficaz do objeto da linguiacutestica adotando uma posiccedilatildeo

48 No original ldquo[hellip] intraculturally (by Dutchlisteners) as well as cross-culturally (by British Kenyan Mexican and Japanese listeners) a laquo lively raquo manner of speaking is strongly asso- ciated with dominance will power and self-confidence As expected pronun- ciation allowing dialect identification only played a role intraculturallyrdquo

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antieliminativa que integre a escala dos saberes linguiacutesticos (do saber cientiacutefico mais ldquodurordquo ao saber folk mais ldquosuaverdquo)

Escolher o integracionismo significa ficar com o e em vez do ou o linguista e a vendedora o escritor e o especialista de programa de TV o glossomaniacuteaco e o militante poliacutetico O que natildeo significa de maneira alguma integrar-se ao anticientificismo ou ao negacionismo

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AS NORMAS PERCEPTIVAS DA LINGUIacuteSTICA POPULAR49

A questatildeo abordada neste capiacutetulo eacute a das normas perceptivas mobilizadas por falantes comuns em suas praacuteticas linguiacutesticas Falo precisamente de praacuteticas linguiacutesticas e natildeo de praacuteticas linguageiras o que designo um campo bem identificado nos Estados Unidos a linguiacutestica folk e em menor medida na Alemanha (Volklinguistik) menos ainda no domiacutenio francoacutefono no qual muitos designadores com referentes um tanto vagos coexistem para designar esse conjunto de discursos natildeo especializados sobre as formas e padrotildees da linguagem e do discurso linguiacutestica popular espontacircnea profana selvagem natildeo erudita

Minha interrogaccedilatildeo natildeo diz respeito agrave dimensatildeo prescritiva versus descritiva das normas assim produzidas mas concerne ao valor das percepccedilotildees na elaboraccedilatildeo de um discurso linguiacutestico popular e portanto agrave validade das teorias populares em relaccedilatildeo agraves teorias acadecircmicas Isso supotildee como veremos sair desse uacuteltimo binarismo (popular vs cientiacutefico) para pensar o coeficiente de cientificidade de um discurso de modo escalar que Madame Vauquer se equivoca ao corrigir Sylvie eacute uma evidecircncia cuja lembranccedila limitaria a reflexatildeo a uma perspectiva bastante pobre e me parece preferiacutevel pensar nas coisas em termos funcionais (funccedilatildeo desta observaccedilatildeo no acircmbito do discurso linguiacutestico espontacircneo) perceptivos (por que perceber patronminette como correto em relaccedilatildeo a patron-jacquette50) e sociais (que benefiacutecio social podemos derivar dessa atitude corretiva) Esses satildeo os acircngulos que nos permitem examinar os modos de validade das teorias populares sobre a liacutengua pois integram as dimensotildees linguiacutestica perceptiva e social ao dispositivo de observaccedilatildeo Portanto afastamo-nos da perspectiva externa impliacutecita na oposiccedilatildeo descriccedilatildeo vs prescriccedilatildeo para adotar uma perspectiva interna na qual o sujeito do discurso eacute tambeacutem o sujeito da ciecircncia

Apoacutes ter descrito a situaccedilatildeo da linguiacutestica popular nos Estados Unidos no campo mais amplo das ciecircncias folk e feito algumas observaccedilotildees sobre a ldquolinguiacutestica popularrdquo na Franccedila vou propor dois exemplos a semacircntica espontacircnea do nome proacuteprio e a sociolinguiacutestica popular das classes dominantes Eles serviratildeo como um mini-laboratoacuterio para delinear uma resposta provisoacuteria agrave questatildeo da validade teoacuterica da linguiacutestica popular

1 O domiacutenio ldquofolkrdquo uma questatildeo americanaAs disciplinas com a etiqueta folk satildeo cientiacutefica e institucionalmente reconhecidas nos

Estados Unidos e designam um verdadeiro paradigma cientiacutefico ao contraacuterio da Franccedila onde equivalentes instaacuteveis de folk sinalizam frequentemente abordagens desvalorizadas

49 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Les normes perceptives de la linguistique populaire Langage et socieacuteteacute 121 laquoLes normes pratiquesraquo mars Paris Eacuteditions de la MSH 2007 p 93-109 Traduccedilatildeo de Eacuterika de Moraes (UNESP - Universidade Estadual Paulista Faculdade de Arquitetura Artes e Comunicaccedilatildeo campus de Bauru e PPGEL IBILCE-UNESP S J do Rio Preto)

50 NT Referecircncia respectivamente agrave forma formal e agrave coloquialpopular de uma mesma expressatildeo francesa cujo significado remete a ldquomuito cedo pela manhatildemadrugadardquo (ldquoao cantar do galordquo)

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11 Disciplinas Folk Na deacutecada de 1950 um grupo de jovens etnoacutelogos de Yale propocircs o termo etnociecircncia para

designar uma nova etnologia que se baseia no estudo metoacutedico do conhecimento popular ou da ciecircncia popular Esse uacuteltimo termo surge portanto no contexto da criaccedilatildeo de um novo objeto constituiacutedo pelas classificaccedilotildees naturais e espontacircneas dos atores (BARRAU 1993) O elemento folk estaraacute como eacute importante relembrar no mesmo periacuteodo que assistiu ao nascimento das ciecircncias cognitivas associado a outras disciplinas em particular no acircmbito da filosofia interrogando sobre crenccedilas a filosofia da mente contribui de fato para desenhar o que pode parecer a principal disciplina folk a psicologia folk A partir da deacutecada de 1960 discutem-se duas grandes concepccedilotildees da mente uma correspondendo agrave ldquoimagem manifestardquo do mundo e outra agrave ldquoimagem cientiacuteficardquo (SELLARS 1993 [1963]) Apesar de suas diferenccedilas filoacutesofos como D Dennett J Searle D Davidson ou mesmo J Fodor consideram que a psicologia popular com base em nossas crenccedilas desejos e no conjunto de nossos estados mentais eacute necessaacuteria agrave teoria da mente A anaacutelise de P Churchland eacute particularmente interessante para o meu propoacutesito aqui ele considera que a psicologia popular eacute de fato uma teoria mas que eacute falsa Voltarei a essa posiccedilatildeo chamada eliminativista a propoacutesito da validade da linguiacutestica popular

Haacute portanto um domiacutenio de debate muito importante muito abastecido e atualmente muito feacutertil em pesquisas e avanccedilos cientiacuteficos51

12 Folk linguiacutestica atitudes e avaliaccedilotildeesOs primeiros a falarem de linguiacutestica folk ainda satildeo os filoacutesofos a propoacutesito do estatuto

da linguiacutestica em relaccedilatildeo agrave psicologia no quadro do debate sobre o chomskysmo Para M Devitt e K Sterelny por exemplo a linguiacutestica popular eacute uma ldquoteoria ou opiniatildeo popular ou ainda primitiva a sabedoria linguiacutestica de todos os temposrdquo (DEVITT STERELNY 1989 p 503)

De fato o campo da linguiacutestica folk foi explicitamente aberto sob essa etiqueta na deacutecada de 1960 por HM Hœnigswald (1966) que reivindica a consideraccedilatildeo dos saberes espontacircneos na constituiccedilatildeo de qualquer ciecircncia natildeo tendo seus propoacutesitos ouvidos agrave eacutepoca Podemos dizer no entanto que o campo eacute explorado implicitamente por W Labov a partir de seu trabalho de 1966 The Social Stratification of English in New York City e entatildeo mais ou menos desenvolvido no trabalho que ele iraacute suscitar nos campos da dialetologia social Mas como explica I Kauhanen desde W Labov todo o interesse dos sociolinguistas se concentrou nas comunidades de fala e natildeo nas normas estas uacuteltimas tendo sido sobretudo estudadas com o vieacutes da legitimidade escrita sem que o vernaacuteculo possa evitar ser definido a partir do padratildeo (KAUHANEN 2006) Seraacute preciso esperar o trabalho de N Niedzielski e D Preston publicado em 2000 Folk linguistics para que o vernaacuteculo fosse apreendido por meio das percepccedilotildees avaliaccedilotildees e atitudes dos locutores segundo uma abordagem etnograacutefica possibilitando

51 Agrave psicologia popular foram acrescentadas mais recentemente a biologia popular (sobre as classificaccedilotildees espontacircneas) a fiacutesica popular (sobre as explicaccedilotildees espontacircneas dos fenocircmenos fiacutesicos) e a mais recente de que temos conhecimento a neuropsicologia popular definida como o conjunto de anaacutelises populares do funcionamento da mente inspiradas pelos avanccedilos das neurociecircncias

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neutralizar os vieses do padratildeo devido a preconceitos de pesquisadores e pesquisados A linguiacutestica folk assim desenhada proveacutem de trabalhos anteriores de autores e outros linguistas no cruzamento da sociolinguiacutestica e da psicologia social que incorporam a maneira pela qual crenccedilas e expectativas socialmente construiacutedas informam a percepccedilatildeo que os locutores tecircm dos usos da liacutengua

O conteuacutedo da obra de Niedzielski e Preston fornece uma siacutentese bem completa da linguiacutestica folk americana atual Os autores especificam o uso de folk ldquoUsamos folk para nos referirmos agravequeles que natildeo satildeo profissionais formados na aacuterea em investigaccedilatildeo [] Definitivamente natildeo usamos folk para referir a grupos ou indiviacuteduos ruacutesticos ignorantes incultos atrasados primitivos minoritaacuterios isolados marginalizados ou de estatutos supostamente inferioresrdquo (NIEDZIELSKI PRESTON 2000 p viii) Eles utilizaratildeo entatildeo o termo natildeo-linguistas ao longo da obra para designar aqueles que possuem conhecimento popular da liacutengua Uma de suas teses principais eacute que o estudo do conhecimento popular eacute uma tarefa para a linguiacutestica seja de uma perspectiva puramente linguiacutestica ou mais amplamente social e eacute realmente essa tarefa que eles enfrentam em seu trabalho que traz elementos de anaacutelise e reflexatildeo para diversos campos da pesquisa linguiacutestica americana etnografia da linguagem psicologia social da linguagem linguiacutestica geral e descritiva variacionismo e linguiacutestica aplicada Eacute compreensiacutevel portanto que ao menos no campo americano a linguiacutestica folk constitua tanto um campo de investigaccedilatildeo quanto um desafio importante para as ciecircncias da linguagem

No domiacutenio germacircnico onde o Volklinguistik tambeacutem derivado da linguiacutestica folk americana (BREKLE 1989) constitui um campo de investigaccedilatildeo relativamente desenvolvido os trabalhos centram-se na dialectologia em particular na imagem da ldquolinguagem improacutepriardquo associada a variantes regionais52

2 Linguiacutestica popular abordagens francesas

21 Popular ou comum

No domiacutenio francecircs os trabalhos que se autoproclamam ldquolinguiacutesticas popularesrdquo satildeo quase inexistentes como especifica J-C Beacco que aliaacutes evita deliberadamente esta expressatildeo no tiacutetulo do nuacutemero de Langages que dirige sobre o tema optando por representaccedilotildees metalinguiacutesticas comuns expressatildeo que desloca um pouco a abordagem perceptiva americana (BEACCO 2004) Popular estaacute sobretudo estabilizado na Franccedila na etimologia popular sem duacutevida porque a expressatildeo nomeia mais um tipo de conhecimento do que uma percepccedilatildeo ou uma atitude e que corresponde a fenocircmenos linguiacutesticos descritiacuteveis (metanaacutelise lexicalizaccedilatildeo nivelamento analoacutegico) Mas a ldquolinguiacutestica popularrdquo e as abordagens que dela podem ser tiradas natildeo percorrem os corredores do conhecimento na Franccedila aleacutem do artigo de H Brekle em Histoacuteria das ideias linguiacutesticas dirigido por S Auroux e o trabalho recente de J-C Beacco encontramos uma variante da noccedilatildeo em P Bourdieu (2001 p 137) que jaacute em 1983 clama

52 Ver por exemplo Langer (2001) e os trabalhos de W Davies e o projeto ldquoA histoacuteria e o estado atual da lsquolinguagem improacutepriarsquo como um conceito na linguiacutestica popular alematilderdquo disponiacutevel em eisbrisacukgexnl researchahrbhtml

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por uma ldquociecircncia rigorosa da sociolinguiacutestica espontacircneardquo O campo estaacute presente na obra de L Rosier na necessidade de levar em conta o discurso purista (uma forma de linguiacutestica popular) nos trabalhos sobre os padrotildees da liacutengua e a circulaccedilatildeo dos discursos (2003 2004) bem como no estudo da linguiacutestica espontacircnea de juristas no tratamento da penalizaccedilatildeo da fala (2006) De minha parte proponho integrar a linguiacutestica popular no ensino da liacutengua (2005) como na renovaccedilatildeo das teorias do discurso uma ldquoanaacutelise folk do discursordquo me parece particularmente desejaacutevel em uma concepccedilatildeo de discurso levando em conta dados cognitivos e perceptivos (2006)

Isso natildeo quer dizer evidentemente que a questatildeo do conhecimento linguiacutestico espontacircneo seja ignorada na Franccedila mas eacute tratada de acordo com outras orientaccedilotildees Vimos que o discurso espontacircneo sobre a liacutengua agraves vezes eacute abordado sob a etiqueta comum sem que esse exame leve agrave constituiccedilatildeo de um campo cientiacutefico constituiacutedo (ldquolinguiacutestica ordinaacuteriardquo) Sendo o termo ordinaacuterio amplamente mobilizado por sintagmas como francecircs ordinaacuterio trocas comuns ou discursos ordinaacuterios a problemaacutetica do ordinaacuterio se confunde frequentemente com a da vida cotidiana no sentido etnometodoloacutegico Ao considerar uma breve visatildeo geral dos domiacutenios franceses podemos sugerir com a reduccedilatildeo e a simplicidade de qualquer panorama que existem dois campos que levam em consideraccedilatildeo as questotildees relativas agrave linguiacutestica popular (dada a amplitude desses campos as referecircncias satildeo apenas indicativas)

- o domiacutenio do ldquometardquo quer se trate da linguiacutestica do sistema (J Rey-Debove que distingue entre ldquometalinguagem correnterdquo e ldquocientiacuteficardquo) da teoria da enunciaccedilatildeo e da reformulaccedilatildeo (J Authier e os elementos metaenunciativos C Julia e a ldquosemacircntica espontacircneardquo) ou didaacutetica da liacutengua (J-C Beacco R Bouchard J David A Treacutevise)

- o conjunto de trabalhos que em sociolinguiacutestica (J-C Beacco define a linguiacutestica popular como um ramo da sociolinguiacutestica) ocupa-se das normas e representaccedilotildees (A Berrendonner H Boyer F Gadet que falam de ldquolocutores nativosrdquo N Gueunier A-M Houdebine J-M Klinkenberg D Lafontaine) agraves vezes sob a etiqueta de ldquoatitudes linguiacutesticasrdquo no quadro da psicologia social da linguagem

Todos esses trabalhos tecircm em comum o fato de se apoiarem nos conhecimentos linguiacutesticos espontacircneos dos locutores cuja existecircncia reconhecem plenamente Mas deixam em aberto a questatildeo dos lugares desse saber o que esconde um paradoxo se a linguiacutestica popular natildeo existe como campo cientiacutefico na Franccedila mas ela produz um conhecimento presente e disponiacutevel aos pesquisadores entatildeo onde ela se situa

22 Os recursos do ldquoespiacuterito francecircsrdquo a linguiacutestica social

Eacute em grande parte e eacute sem duacutevida uma especificidade francesa que explica sua ausecircncia no campo cientiacutefico em um conjunto tatildeo vasto quanto antigo de discursos sobre a liacutengua provenientes de ensaiacutestas sociais (P Daninos P Jullian) humoristas (A Allais P Dac) escritores (Proust Balzac Queneau) jornalistas (P Merle P Vandel) colunistas (J Cellard P Georges) observadores modernos (J Capelovici A Schifres) e autores de manuais de etiqueta e guias de correspondecircncia (Baronne Staffe Liselotte B Bernage N de Rothschild O Cechman)

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um conjunto completo de escritores que mantiveram por vaacuterios seacuteculos uma tradiccedilatildeo que eu clamo por falta de um melhor ldquoespiacuterito francecircsrdquo constituindo um grande corpus de linguiacutestica folk

Vou me concentrar aqui em um deles que me parece ter produzido a sociolinguiacutestica espontacircnea mais completa e refinada P Daninos (1913-2005) Ele eacute um jornalista e escritor universalmente conhecido pelos Cadernos do Major Thompson (1954) dos quais sem duacutevida havia um exemplar em todos os lares franceses dos anos 1950 e 1960 Conservador sem ser reacionaacuterio amante da liacutengua sem ser purista observador e promotor dos costumes burgueses sem se afastar inteiramente da distacircncia irocircnica e de certo senso do traacutegico P Daninos eacute um bom representante dessa literatura do espiacuterito francecircs um pouco elitista um pouco sexista um pouco ufanista mas bastante divertida muito difundida e lida na sociedade francesa do poacutes-guerra e dos gloriosos Anos Trinta Nas cerca de quarenta obras que produziu algumas atribuem particular importacircncia aos fatos linguiacutesticos aleacutem dos Cadernos mencionarei Sonia les autres et moi (os outros e eu) (1952) Vacances agrave tous prix (Feacuterias a todo preccedilo) (1958) Le jacassin novo tratado de ideias recebidas loucuras burguesas e automatismos (1962) Esnobiacutessimo ou O desejo de parecer (1964) O pijama (1972) e Made in France (1977) Cada uma dessas obras constitui por um lado uma espeacutecie de banco de dados linguageiros com uma dimensatildeo social que se assemelha muito a uma declaraccedilatildeo de um linguista profissional e por outro lado uma teoria espontacircnea fundada na percepccedilatildeo dos ldquomodos de falarrdquo do francecircs relacionados ao seu ambiente social Para ilustrar aqui estatildeo alguns tiacutetulos dos capiacutetulos

- O Francecircs como se fala (Cadernos)

- Pequeno leacutexico e receitas de feacuterias (Vacanceshellip)

- Vocabulaacuterio poliacutetico (Le jacassin)

- Esnobismo na linguagem cotidiana e de diversas profissotildees (Snobissimo)

- Maacutertires da ortografia burguesa (Made in France)

E para finalizar este trecho de Sonia les autres et moi (os outros e eu) no final do capiacutetulo intitulado ldquoElesrdquo que oferece uma interessante anaacutelise em linguiacutestica folk do emprego decircitico do pronome como instacircncia coletiva

Quem satildeo eles Todo mundo sem duacutevida e ningueacutem Com os alematildees foram os alematildees e seus asseclas Com nossos libertadores foram os libertadores Mas conosco somos noacutes O dicionaacuterio de francecircs baacutesico deveria indicar para eles

ldquoHidra social contra a qual o indiviacuteduo meacutedio parte cada dia em rebeliatildeo falada designa simultaneamente franceses e estrangeiros empregadores e trabalhadores o presidente e os conselheiros as autoridades fiscais os accedilougueiros a Seguranccedila Social o Estado enfim todo o universo exceto o oradorrdquo (THOMPSON 1952 p 105 itaacutelico do autor)

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23 Praacuteticas linguiacutesticas folk

Uma vez identificados os lugares do conhecimento linguiacutestico popular resta antes de examinar duas amostras propor uma definiccedilatildeo a tiacutetulo heuriacutestico e hipoteacutetico

Eu a vejo por ora como um arcabouccedilo teoacuterico e metodoloacutegico para unificar um conjunto de praacuteticas linguiacutesticas seculares baseadas em uma concepccedilatildeo perceptiva da norma que produz trecircs tipos de discurso sobre a liacutengua (eu adapto os dois primeiros de Brekle 1989 e proponho aqui um terceiro)

- descriccedilotildees linguiacutesticas e (preacute)teorizaccedilotildees das regras de funcionamento da liacutengua fortemente informadas por percepccedilotildees (veredictos do tipo ldquonatildeo eacute francecircsrdquo ou julgamentos de adequaccedilatildeo entre nomes e coisas)

- prescriccedilotildees concernentes aos usos muitas vezes decorrentes de um normativismo muscular que vai ateacute o purismo (condenaccedilatildeo de empreacutestimos de neologismos escaacuternio da feminizaccedilatildeo etc)

- intervenccedilotildees espontacircneas na liacutengua na maioria das vezes regularizantes (emocionar e ir no cabeleireiro apesar que etc) esses famosos ldquoerrosrdquo sobre os quais D Leeman (1994) se pergunta se realmente existem (para uma apresentaccedilatildeo detalhada desta tipologia ver Paveau 2005)

Para recapitular a linguiacutestica popular se constituiria de trecircs tipos de praacuteticas seculares com uma dimensatildeo perceptiva descriccedilotildees prescriccedilotildees intervenccedilotildees

3 Semacircntica secular e sociolinguiacutestica popularApresento aqui dois exemplos de linguiacutestica popular o primeiro concernente ao significado

do nome proacuteprio e o segundo ao proacuteprio linguiacutestico das classes dominantes

31 O nome proacuteprio designador flexiacutevel

Quando P Siblot propocircs em 1987 os primeiros delineamentos teoacutericos da ldquosignificacircnciardquo do nome proacuteprio a partir das anaacutelises de Weinreich (ldquoa hipersemanticidaderdquo do nome proacuteprio) ou de Barthes (sua ldquoespessura semacircnticardquo) ele se opocircs de forma inovadora em linguiacutestica ao paradigma dominante do assemantismo do nome proacuteprio considerado como um designador riacutegido Os pesquisadores que admitem as propriedades semacircnticas do nome proacuteprio constituiacuteram entatildeo o que chamo de paradigma do designador flexiacutevel a partir de variadas proposiccedilotildees terminoloacutegicas e teoacutericas ldquohalos positivos e negativosrdquo (M Wilmet) ldquoevocaccedilotildees simboacutelicasrdquo (P Charaudeau) ldquoheterorreferencialidaderdquo e ldquoomnisignificadordquo (G Cislaru) Mas esse tipo de abordagem haacute muito se estabilizou no discurso linguiacutestico secular em particular entre os escritores mas tambeacutem entre os autores dessa tradiccedilatildeo do espiacuterito francecircs descrito acima Sabemos por exemplo que para Proust os significados plurais do nome proacuteprio satildeo uma evidecircncia tomando emprestados os canais da memoacuteria voluntaacuteria e a metaacutefora da cor Eacute o que testemunham numerosas passagens do Cocircteacute de Guermantes que se relacionam com as praacuteticas linguiacutesticas seculares

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E o nome de Guermantes na eacutepoca eacute tambeacutem como um daqueles pequenos balotildees nos quais se prendem oxigecircnio ou outro gaacutes quando consigo estouraacute-lo ao soltar o que ele conteacutem respiro o ar de Combray daquele ano daquele dia misturado com um cheiro a espinheiro agitado pelo vento da esquina da praccedila [hellip] Mas mesmo fora dos raros minutos como estes nos quais bruscamente sentimos a entidade original estremecer e retomar sua forma e sua perseguiccedilatildeo dentro das siacutelabas mortas de hoje se neste redemoinho vertiginoso da vida cotidiana onde eles tecircm apenas um uso inteiramente praacutetico os nomes perderam toda a cor como um sinal prismaacutetico [] por outro lado quando em devaneio refletimos procuramos voltar ao passado desacelerar suspender o movimento perpeacutetuo no qual estamos envolvidos pouco a pouco vemos reaparecer justapostos mas inteiramente distintos um dos outros os tons que o curso de nossa existecircncia nos apresenta sucessivamente com um mesmo nome (PROUST 1954 [1920] p 13)

O nome proacuteprio eacute considerado aqui como um reservatoacuterio de sentido que pode ser ativado de acordo com os contextos espaciais e temporais intimamente dependentes da percepccedilatildeo memoacuteria e atividade cognitiva do sujeito Ele possui uma dimensatildeo cognitivo-discursiva constituindo um verdadeiro ldquonome de memoacuteriardquo cujo significado precisa ser analisado em um contexto ampliado agrave histoacuteria agrave cultura e ao ambiente material Em uma abordagem cognitivo-discursiva diremos que eacute um preacute-discurso isto eacute um quadro preacute-discursivo coletivo que contribui para a elaboraccedilatildeo do discurso ao ativar um conjunto de conhecimentos crenccedilas e praacuteticas (esta abordagem do nome proacuteprio eacute desenvolvida em Paveau 2006) Eacute esse tipo de anaacutelise que encontramos em P Daninos

E se aquele agente duplo [Mata Hari] fosse de pouca envergadura Seu apelido permaneceraacute inscrito na histoacuteria ela termina mal mas soa bem Quem sabe o que teria acontecido com ela sob seu nome verdadeiro de Gertrude Zelle Talvez rentista em Monte-Carlo inscrita na Seguridade Social para a qual os espiotildees contribuem assim como os outros [] No domiacutenio dos nomes proacuteprios a seleccedilatildeo se opera [] com crueldade Existem alguns ndash Richelieu Voltaire La Fayette ndash que resistem a todos os empregos ceacutedulas telefone galerias Outros esmagados pelo metrocirc quantas pessoas a quem foi dito cem vezes ldquoDesccedila em Barbegravesrdquo morrem sem jamais ter voltado ao passado deste poliacutetico Alguns nomes como Chardon-Lagache natildeo dizem mais nada Outros como Pegravere-Lachaise natildeo dizem nada de valor (DANINOS 1972 p 82)

O nome proacuteprio eacute descrito como um categorizador de tipo social (coeficiente de prestiacutegio do antropocircnimo) e cultural (conservaccedilatildeo dos valores histoacutericos e literaacuterios de certos nomes) Ele propotildee uma folha de memorial que pode ser ativada de diferentes maneiras conforme percepccedilotildees dos usuaacuterios enquanto Richelieu manteacutem sua dimensatildeo histoacuterica Pegravere-Lachaise passou por uma mudanccedila semacircntica restritiva

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32 Uma sociolinguiacutestica popular a fala das classes dominantes

Quer se trate de histoacuteria sociologia ou linguiacutestica poucas ciecircncias humanas se ocuparam ateacute agora das ldquoclasses dominantesrdquo que M Pinccedilon e M Pinccedilon-Charlot explicam por ausecircncia de contratos propostos pelo Estado as escolhas posturais dos socioacutelogos que evitam enfrentar uma dissimetria social em seu prejuiacutezo e o clima poliacutetico e intelectual poacutes-1968 (PINCcedilON PINCcedilON-CHARLOT 2005 [1997]) Seja como for eacute patente que os trabalhos publicados em linguiacutestica no campo da variaccedilatildeo social satildeo majoritariamente consagrados ao francecircs popular com ou sem esse roacutetulo sem que um ldquo(grande) falante burguecircsrdquo ou um ldquofrancecircs aristocraacuteticordquo natildeo seja considerado (tambeacutem satildeo possiacuteveis outra questatildeo) Acontece poreacutem que a sociolinguiacutestica popular que aqui me interessa trata amplamente dessa questatildeo sob diferentes etiquetagens (liacutengua burguesa fala esnobe linguagem mundana boa fala) por meio da figura recorrente de Marie-Chantal que representa para a fala das classes dominantes o que Franccediloise de Proust eacute para o francecircs popular Marie-Chantal adquiriu suas marcas linguajeiras como as joias de famiacutelia por heranccedila familiar Esta eacute a anaacutelise que Proust faz a propoacutesito de Albertine

Natildeo que Albertine jaacute natildeo tivesse quando estive em Balbec um lote muito variado dessas expressotildees que revelam de imediato que se vem de famiacutelia abastada e que ano apoacutes ano uma matildee abandona sua filha do mesmo modo que outra lhe daacute na medida em que cresce em circunstacircncias importantes suas proacuteprias joias (PROUST 1954 [1920] p 64)

A literatura popular cita em seu lazer essas expressotildees ldquomuito variadasrdquo que o historiador Eacute Mension-Rigau chama de ldquoexpressotildees de intimidaderdquo e que muitas vezes se relacionam com a vida social e relaccedilotildees interpessoais Alguns exemplos dessas palavras de classe analisadas no interior de uma sociolexicologia popular

1 M de Chaudenay escreve em seu glossaacuterio que ldquoum membro do Jockey Club digno desse nome natildeo tem mamatildee nem papai nem filho nem famiacutelia nem carro nem castelo nem hotel Ele natildeo come natildeo toma aperitivos natildeo vai a espetaacuteculo nem a reuniotildees festivasrdquo E eacute verdade que o pobre homem mesmo sendo dono de Chambord seraacute

reduzido pelo bom tom de dizer-lhe Venha jantar em casa Vocecirc tem que ser o uacuteltimo dos arrivistas para falar de um castelo ou o Diretoacuterio para dizer HP (nota abreviatura para hotel privado) (DANINOS 1964 p 87)

2 De Neuilly a Passy natildeo ldquose comerdquo se almoccedila ou janta (VANDEL 1993 p 152)

3 Fui ensinado que natildeo comemos Almoccedilamos lanchamos ou jantamos (homem 1934) [hellip] Noacutes natildeo andamos a cavalo noacutes montamos Um dia eu disse desisti Aprendi a expressatildeo no internato Meu avocirc me disse isso natildeo se diz Dizemos vomitamos mas natildeo desistimos (homem 1934) (MENSION-RIGAU 1994 p 201 e 209)

Eacute difiacutecil desenvolver as anaacutelises por falta de espaccedilo (encontraremos desdobramentos adicionais em Paveau e Rosier 2007) mas eacute preciso notar que esse tipo de descriccedilatildeo lexicoloacutegica

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estaacute integrado em um sistema perceptivo mais amplo como indica Eacute Mension-Rigau (1994 p 209)

Para designar essas expressotildees rejeitadas por serem utilizadas por classes sociais que natildeo pertencem agrave mesma esfera ou ao mesmo mundo os respondentes utilizam todo um conjunto de qualificativos dizem que satildeo muito comuns muito vulgar muito ordinaacuterio comum como patildeo de cevada [arroz de festa no portuguecircs] muito corriqueiro do povo de gente pequena de todo mundo de garccedilom cabeleireiro fornecedor ou porteiro []

Encontramos portanto nesses discursos linguiacutesticos folk um corpus e teorias espontacircneas baseadas na maneira como os usuaacuterios recebem-percebem os valores sociais do leacutexico

4 A questatildeo da validade das teorias popularesA questatildeo mais interessante colocada pela linguiacutestica folk a de sua validade53 tem sido

objeto de pouco trabalho exceto pelas reflexotildees dos americanos sobre filosofia da mente e filosofia da ciecircncia Eacute um problema difiacutecil sem duacutevida porque a doxa da falsidade dos conhecimentos populares estaacute fortemente ancorada na Franccedila em particular onde se fala muito rapidamente em ldquopseudociecircnciardquo mas ainda mais porque a utilizaccedilatildeo que a linguiacutestica faz da noccedilatildeo de intuiccedilatildeo natildeo eacute esclarecida

41 Verdade cientiacutefica ou aproximada

As teorias populares satildeo verdadeiras ou falsas Existem para ser breve trecircs respostas possiacuteveis

bull As teorias populares satildeo falsas

O materialismo eliminativista agrave moda de P Churchland como vimos responde satildeo totalmente falsas aliaacutes seratildeo substituiacutedas por demonstraccedilotildees sem apelo resultantes das neurociecircncias esta posiccedilatildeo eacute tambeacutem a do filoacutesofo S Laurence (2003) que considera que as teorias correntes em qualquer ciecircncia satildeo frequentemente falsas e que o fato de a linguiacutestica ser recente a torna ainda mais vulneraacutevel

bull As teorias populares satildeo falsas mas sua existecircncia eacute necessaacuteria

O ldquorealismo suaverdquo de D Dennett por exemplo (1990 [1987]) responderia de maneira mais matizada os resultados cientiacuteficos satildeo falsos porque os qualia (experiecircncias conscientes) satildeo falsos mas o vocabulaacuterio ldquofolkrdquo eacute perfeitamente operacional e mesmo necessaacuterio para a relaccedilatildeo do homem com a linguagem em outras palavras as percepccedilotildees espontacircneas satildeo organizadores (padrotildees) necessaacuterios A linguiacutestica popular seria entatildeo admissiacutevel como uma descriccedilatildeo perceptiva e organizadora da linguagem mas natildeo como uma teoria da linguagem

bull As teorias populares satildeo verdadeiras mas os ldquonatildeo-linguistasrdquo possuem saberes sobre as liacutenguas

53 No capiacutetulo anterior realizamos uma discussatildeo mais detalhada sobre a validade das teorias folk

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D Preston e N Niedzielski (1999 p 10) colocam desta forma ldquoSe o povo fala sobre linguagem eles devem eacute claro saber (ou pelo menos acreditar que sabem) sobre elardquo Passamos a uma concepccedilatildeo praacutetica e natildeo mais loacutegica da verdade haacute um conhecimento linguiacutestico que independe de suas propriedades cientiacuteficas e esse conhecimento tem um tipo de operacionalidade Esta eacute a posiccedilatildeo de N Llewellyn e A Harrison que estudam o modo como um grupo de falantes percebe formas de liacutengua e de discurso em documentos corporativos

Em um niacutevel baacutesico o presente capiacutetulo mesmo que brevemente mostrou que as competecircncias linguiacutesticas folk dos participantes se estendem muito longe Os participantes demonstraram habilidade de distinguir entre usos inclusivos e exclusivos da primeira pessoa do plural transformaccedilatildeo passiva nominalizaccedilatildeo eles foram capazes de criticar o uso de abstraccedilotildees como sujeitos de verbos identificar possiacuteveis instacircncias da segunda pessoa disfarccedilada e assim por diante (PAVEAU 2006)

Essa resposta se fundamenta em uma abordagem anti-chomskyana da cogniccedilatildeo na qual a linguiacutestica explica as dimensotildees experiencial e cultural da linguagem Em outras palavras se o objeto da linguiacutestica permanece apesar de todos os desenvolvimentos a liacutengua por ela mesma entatildeo a linguiacutestica popular tem poucas chances se o objeto da linguiacutestica se estende aos usos da linguagem por sujeitos sociais e cognitivos entatildeo o conhecimento popular qualquer que seja seu status epistecircmico entra por pleno direito na teoria o que mostra ao que parece as duas ldquoteoriasrdquo populares apresentadas acima

42 Intuiccedilatildeo percepccedilatildeo verdade

Pode-se pensar que em uacuteltima anaacutelise todas as teorias linguiacutesticas satildeo populares uma vez que se baseiem na intuiccedilatildeo dos locutores Mas de que intuiccedilatildeo se trata exatamente A intuiccedilatildeo dos linguistas amplamente informada pela teoria (conhecemos a piada de que apenas um informante chomskyano pode admitir teorias chomskyanas) natildeo eacute a mesma que a dos locutores comuns Esta eacute a posiccedilatildeo defendida por Devitt em sua criacutetica anti-representacionista que aliaacutes fornece um meio de tratar a verdade das teorias populares

As intuiccedilotildees de falantes comuns podem parecer mais presentes do que realmente satildeo porque os linguistas consideram suas proacuteprias intuiccedilotildees representativas Sem duacutevida muitas vezes satildeo representativas E onde natildeo satildeo seriam se o falante comum tivesse a vantagem de uma educaccedilatildeo em linguiacutestica (DEVITT 2006 p 496)

Vemos como a questatildeo da verdade se desloca para a da percepccedilatildeo se as informaccedilotildees dadas pela intuiccedilatildeo satildeo verdadeiras porque satildeo informadas pela teoria entatildeo eacute de uma verdade relativa que se trata e podemos igualmente falar de verdade por intuiccedilotildees ldquofalsasrdquo que satildeo verdadeiras em relaccedilatildeo aos quadros natildeo teoacutericos dos indiviacuteduos Esses quadros satildeo os da sociedade da cultura e isso eacute o que mostra por exemplo o trabalho de N Niedzielski sobre a natureza social da percepccedilatildeo das variaacuteveis sociolinguiacutesticas (1999)

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ConclusatildeoAbordar a questatildeo da linguiacutestica folk envolveu deslocar a abordagem habitualmente binaacuteria

da norma (descritiva versus prescritiva) para propor um terceiro termo a percepccedilatildeo A ldquoverdaderdquo da linguiacutestica popular deve de fato ser pensada em termos perceptivos metadiscursivos e natildeo loacutegicos o que tambeacutem implica substituir outra oposiccedilatildeo binaacuteria cientiacutefica versus popular um contiacutenuo que leva em consideraccedilatildeo os dois objetos examinados54 e o coeficiente de informaccedilatildeo social e cultural dos conhecimentos produzidos Esses uacuteltimos satildeo justificaacuteveis para um estudo especiacutefico em linguiacutestica natildeo como uma cartilha ingecircnua sobre a qual fundar a ciecircncia mas como uma possiacutevel versatildeo da teoria da linguagem Daninos e Labov Proust e Weinreich

54 N Llewellyn e A Harrison (2006) mostram por exemplo que falantes comuns tecircm conhecimento linguiacutestico preciso sobre pronomes e neologismos mas satildeo menos confiantes quanto a problemas complexos das praacuteticas textuais

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O FALAR DAS CLASSES DOMINANTES LINGUIacuteSTICA POPULAR E DIALETOLOGIA PERCEPTIVA55

A questatildeo das identidades linguageiras e discursivas eacute crucial para uma ciecircncia da linguagem considerar a realidade das trocas sociais e os contextos da vida em sociedade Eacute o proacuteprio sistema das relaccedilotildees sociais que eacute estruturado quando as identidades satildeo postas em causa nos dois sentidos do termo lanccediladas na arena das trocas mas tambeacutem com base nas imagens de si e do outro elaboradas por si mesmo e pelo outro Os locutores adaptam os modos de falar ao mesmo tempo em que produzem anaacutelises espontacircneas elaborando e administrando simultaneamente suas imagens linguageiras Sujeitos de observaccedilatildeo para os linguistas (especializados) eles satildeo propriamente linguistas no quadro de uma linguiacutestica popular

Nesse capiacutetulo me proponho investigar as identidades linguageiras de classe56 isto eacute os modos que os locutores tecircm de mostrar o seu pertencimento a determinada classe e sua posiccedilatildeo nas relaccedilotildees sociais Desejo examinar particularmente a hipoacutetese de um falar das classes dominantes57 estudo ateacute entatildeo ausente nos trabalhos sociolinguiacutesticos franceses e que propotildee questotildees histoacutericas epistemoloacutegicas e empiacutericas pertinentes agrave linguiacutestica social

Descreverei inicialmente o estatuto da noccedilatildeo de classe social na sociolinguiacutestica francesa e anglo-saxatilde bem como a assimetria que existe entre os objetos frequentemente escolhidos pelas ciecircncias sociais (classe trabalhadora povo excluiacutedos e em menor grau as classes meacutedias) e os pertencimentos reais ou imaginaacuterios dos indiviacuteduos (em que se encontram igualmente as classes dominantes as elites as burguesias) Examinarei na sequecircncia as formas e a validade dos resultados da linguiacutestica folk (haacute uma sociolinguiacutestica espontacircnea e antiga e muito desenvolvida na Franccedila sobre o falar das elites e dos bairros nobres) mostrarei que os conceitos e os meacutetodos da dialetologia perceptual norte-americana satildeo particularmente pertinentes para dar conta desse objeto Terminarei o texto propondo uma primeira descriccedilatildeo linguiacutestica folk do falar das classes dominantes insistindo sobre alguns de seus traccedilos caracteriacutesticos (pronuacutencia leacutexico e pragmaacutetica)

1 A apreensatildeo linguiacutestica das categorias sociaisAs categorias mobilizadas pelas linguiacutesticas atentas ao humano e ao social natildeo satildeo

imanentes mas diretamente informadas pela histoacuteria das ciecircncias e das ideologias Isso eacute particularmente verdadeiro para a categoria ldquoclasse socialrdquo

55 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Le parler des classes dominantes objet linguistiquement incorrect Dialectologie perceptive et linguistique populaire Eacutetudes de linguistique appliqueacutee p 137-156 2008 Traduccedilatildeo de Roberto Leiser Baronas (UFSCar) e Julia Lourenccedilo Costa (UFSCarFAPESP)

56 Escolhi a acepccedilatildeo mais marxista do termo falo das classes ldquoda luta de classesrdquo e das ldquorelaccedilotildees sociais de produccedilatildeordquo conforme explicarei a seguir em 1

57 No momento a designaccedilatildeo tem apenas valor heuriacutestico

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11 Agrave procura da classe perdida

Natildeo falamos mais (em absoluto) de classe social especialmente em linguiacutestica como antes Tanto o termo como a noccedilatildeo parecem ter desaparecido do discurso dos socioacutelogos como mostra R Pfefferkorn em um trabalho de 2007 que reintegra o ldquojargatildeordquo marxista relaccedilatildeo social

Em linguiacutestica francesa e mais particularmente em sociolinguiacutestica o termo classe eacute substituiacutedo por posiccedilatildeo e por rede Em La variation sociale en franccedilais (2003) Franccediloise Gadet emprega ldquolocutores favorecidosrdquo e ldquodesfavorecidosrdquo (p 9) a metaacutefora da escala (o ldquoalto e o baixo dos degraus da escala socialrdquo p 10 e 68) ou o termo posiccedilatildeo em ldquoposiccedilatildeo social favorecidardquo por exemplo (p 16) Ela sublinha mais agrave frente (no capiacutetulo IV) que a classe (trabalhadora meacutedia e superior) como ferramenta de anaacutelise eacute muito formal e redutora e explica que a sociolinguiacutestica explora a noccedilatildeo de rede para melhor dar conta das diferentes articulaccedilotildees das relaccedilotildees sociais em niacutevel global e local tomando como exemplo a ldquorede operaacuteriardquo tal como eacute analisada por L Milroy (1980) O capiacutetulo IV eacute inclusive intitulado ldquoO diastraacuteticordquo termo teacutecnico perfeitamente naturalizado em linguiacutestica mas denotativo quase ciruacutergico que busca apagar as dimensotildees conflituosas eou poliacuteticas presentes na palavra classe

Todavia no decorrer deste mesmo capiacutetulo IV o termo classe social reaparece quase naturalmente o quadro que recapitula os usos sociais do natildeo da negaccedilatildeo apresenta a trilogia classe operaacuteria classe meacutedia e classe superior sendo a ldquoclasse socialrdquo apresentada como um criteacuterio igual ao de idade ou sexo e o autor menciona sem comentaacuterio especiacutefico ldquoa estratificaccedilatildeo em classes sociaisrdquo (GADET 2003 p 68)

Podemos portanto sustentar que tanto a leitura de F Gadet quanto a L Milroy bem como a de outros autores sobre a noccedilatildeo de classe sustentada na noccedilatildeo de relaccedilatildeo social natildeo apresenta diferenccedila expressiva em relaccedilatildeo agrave de rede Classe operaacuteria rede operaacuteria Se nos reportamos agraves anaacutelises de R Pfefferkorn que estima que a noccedilatildeo de classe foi paradoxalmente escamoteada pelos socioacutelogos franceses e britacircnicos nos anos 1970 e 1980 do seacuteculo passado (paradoxalmente porque a virada liberal fortaleceu sobretudo as classes dominantes) compreendemos que haacute outros elementos nesse desaparecimento e que eacute sem duacutevida por serem noccedilotildees marxistas e natildeo porque satildeo imprecisas que as abordagens em termos de classe e relaccedilatildeo social foram progressivamente descartadas

Alain Rey natildeo hesita em falar de classe em 1972 (encontramos o enunciado ldquoo pertencimento de classe dos locutoresrdquo em seu artigo publicado na revista Langue Franccedilaise no nuacutemero dedicado agrave norma p 14) e F Franccedilois emprega ainda o termo em 1983 propondo aleacutem disso uma descriccedilatildeo fina das relaccedilotildees da linguagem segundo os pertencimentos de classe

Em primeiro lugar eacute certo que a divisatildeo em classes sociais eacute acompanhada de uma divisatildeo entre aqueles que mais numerosos agem no tema sobretudo com gestos e aqueles que menos numerosos agem sobre os homens principalmente falando Ainda que as coisas sejam um pouco mais complicadas se o teacutecnico em eletrocircnica ou o

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cirurgiatildeo natildeo satildeo ldquofalantes purosrdquo satildeo as ldquoclasses meacutediasrdquo que desse ponto de vista se tornam a maioria Fica ainda mais claro se considerarmos a escrita satildeo poucos os homens para os quais escrever eacute a ocupaccedilatildeo principal (FRANCcedilOIS 1983 p 11)

Sabemos evidentemente que P Bourdieu jamais ocultou essa dimensatildeo em particular nos seus trabalhos consagrados agrave linguagem como nos mostra por exemplo o Ce que parler veut dire (1982)58 e o artigo Vous avez dit populaire (1983)59 que usa abundantemente a terminologia do conflito e da hierarquizaccedilatildeo (dominantes dominados restriccedilatildeo oposiccedilatildeo hierarquia etc)60 No entanto eacute tambeacutem verdadeiro que ateacute recentemente os estudos socioloacutegicos e sociolinguiacutesticos main stream ou tradicionais evitam a todo custo a noccedilatildeo de classe que todavia comeccedila a reaparecer com forccedila na cena intelectual a partir dos anos 2000 (numerosas obras e vaacuterias ediccedilotildees de revistas satildeo consagradas agraves desigualdades sociais e a um questionamento renovado do aparelho teoacuterico marxista ndash consultar por exemplo a primeira parte da obra de R Pfefferkorn) O bom senso nos diz que a partir do momento que a sociedade natildeo aparece como um todo socialmente pacificado eacute mais pertinente usar ferramentas de anaacutelises classistas

Nos Estados Unidos e mais tipicamente no mundo anglo-saxatildeo natildeo parece que seja produtivo semelhante tipo de apagamento ainda que a sociologia tenha passado pelas mesmas evoluccedilotildees A obra de B Bersnstein Class Codes and Control publicada em 1971 favoreceu durante uma quinzena de anos pesquisas emolduradas pela categoria de classe (o termo e a noccedilatildeo de class no mundo anglo-saxatildeo natildeo coincidem exatamente com o conceito de classe social no contexto francecircs) Categorias como a comunidade ou grupo (eacutetnico social cultural sexual geracional etc) ou a noccedilatildeo de ldquosocial networkrdquo introduzida rapidamente por Milroy (1980) que poderia ser uma alternativa agrave noccedilatildeo de classe natildeo a apagou L Milroy por exemplo trabalha ao mesmo tempo com os termos social network e class Os termos dialeto de classe ou dialeto social de classe satildeo empregados na sociolinguiacutestica americana mesmo natildeo sendo uma categoria de primeiro plano enquanto em francecircs eacute mais usado socioleto ou dialeto social noccedilotildees mais amplas natildeo conformadas ao social propriamente dito pois elas recobrem por exemplo os falares comunitaacuterios (a liacutengua das cidades ou dos jovens) etnogeograacuteficos (os dialetos crioulos por exemplo) ou geograacuteficos (os dialetos regionais)

12 Um socioleto mais elevado

Chamemos de classe redes ou grupos esses conjuntos de indiviacuteduos interligados pelos modos de ser e de falar pelas invariantes na representaccedilatildeo de si nos sentimentos de pertencimento e nos comportamentos econocircmicos satildeo estudados de modo desigual pelas ciecircncias sociais e em particular pela (soacutecio)linguiacutestica Se os trabalhos satildeo numerosos tanto na Franccedila quanto na Gratilde-Bretanha ou nos Estados Unidos sobre a classe operaacuteria ou rede operaacuteria ou classe popular ou meios desfavorecidos ou povo ou classe trabalhadora etc (a

58 NT BOURDIEU P O que falar quer dizer e economia das trocas simboacutelicas Traduccedilatildeo de Vanda Anastaacutecio Satildeo Paulo Editora Difel 1998

59 NT BOURDIEU P Vocecirc disse popular Traduccedilatildeo de Denice Barbara Catani Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 1 p 16-26 1996

60 O questionamento da categoria de popular para caracterizar um socioleto ou das maneiras de falar parece assim participar do esfacelamento da noccedilatildeo de classe em linguiacutestica Para uma anaacutelise detalhada consultar F Gadet (2002) e Abecassis (2003)

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terminologia eacute vasta61) os estudos sobre as classes dominantes ou ldquofavorecidasrdquo (burguesia grande burguesia e aristocracia) satildeo singularmente raros se natildeo inexistentes

Na Franccedila esses trabalhos satildeo rariacutessimos62 Pierre Bourdieu tem conduzido desde 1963 as pesquisas de campo sobre ldquoas classes superioresrdquo francesas (1979 p 588) cujos resultados satildeo apresentados em La distinction em 197963 Ele isola alguns marcadores de classe sem todavia propor uma anaacutelise linguiacutestica Os socioacutelogos M Pinccedilon-Charlot e M Charlot trabalham haacute quase vinte anos sobre as elites francesas e adquiriram por isso uma notoriedade fora da universidade sobre essa questatildeo que eles natildeo teriam conhecido quando estudavam essas questotildees nos anos 197064 (por exemplo 1989 1996 1997 e sua uacuteltima obra Les ghettos du Gotha publicada em 2007) Eles abordam poucos aspectos linguageiros mas destacam por exemplo a matriz discursiva de suas investigaccedilotildees Mais recentemente o historiador Eacute Mension-Rigau publicou o livro Aristocrates e grand-bourgeois (1994) ateacute entatildeo uacutenico estudo sobre as classes dominantes francesas contemporacircneas que o coloca em um lugar significativo sobre as maneiras de falar sobretudo porque os entrevistados comumente abordam eles proacuteprios como veremos mais adiante neste texto Na Beacutelgica haacute uma obra da socioacuteloga V DrsquoAlkemade intitulada La haute publicada em 2004

Do lado da linguiacutestica encontramos o estudo de O Mettas publicado em 1979 sobre a pronuacutencia parisiense La prononciation parisienne aspects phoniques drsquoun sociolecte parisien (du faubourg Saint-Germain agrave la Muette) Como anuncia o tiacutetulo o trabalho analisa o socioleto da aristocracia e da alta burguesia por meio de uma amostra de 39 locutoras A anaacutelise proposta por Mettas se concentra sobre a dimensatildeo foneacutetica (a ldquopronuacutencia refinadardquo) mas termina em uma ampliaccedilatildeo da anaacutelise de outros niacuteveis linguiacutesticos que defende a existecircncia de um falar social especiacutefico Podemos tambeacutem escutar uma amostra do sotaque do ldquosocioleto da alta burguesiardquo na gravaccedilatildeo de uma atriz que interpreta ldquouma pessoa esnobe da aristocraciardquo65 na obra Les accents des franccedilais livro-cassete publicado em 1983 e transferido para a internet66 Esse material propotildee uma lista de caracteriacutesticas focircnicas especiacuteficas Os trabalhos recentes que desenvolvi ainda programaacuteticos sobre o falar das classes dominantes tentam cercear esse objeto explicando a sua ausecircncia tanto no campo da sociolinguiacutestica quanto no das ciecircncias sociais favorecendo uma abordagem que considere nos dados linguiacutesticos as percepccedilotildees e as representaccedilotildees espontacircneas dos locutores (PAVEAU 2008 PAVEAU ROSIER 2008 capiacutetulo 8 ldquoStyles sociaux classes classements deacuteclassementsrdquo67)

61 A lista seria longa e tediosa para uma bibliografia ver Gadet (1992 2003) Calvet Mathieu (2003) Petitjean Privat (2007) e Paveau Rosier (2008)

62 Refiro-me aos trabalhos sobre as elites enquanto elites e natildeo aos estudos sobre a alta funccedilatildeo puacuteblica diplomaacutetica ou mesmo os bispos que existem na histoacuteria por exemplo e que dizem respeito a profissotildees ou posiccedilotildees de poder institucional

63 NT BOURDIEU P A distinccedilatildeo Criacutetica social do julgamento Traduccedilatildeo de Daniela Kern e Guilherme J F Teixeira Satildeo Paulo EdUSP 2007

64 O Diaacuterio de investigaccedilatildeo deles conteacutem comentaacuterios tatildeo interessantes que discorrem sobre a aacutecida recepccedilatildeo desses trabalhos pelos seus colegas prova de que se necessaacuterio os objetos cientiacuteficos possuem uma forte dimensatildeo ideoloacutegica e institucional (1996)

65 A assimilaccedilatildeo entre a alta burguesia e a aristocracia que faria qualquer aristocrata se assustar e alguns historiadores franzir a testa parece atestar a estranheza dessa categoria social para os autores da pesquisa

66 NT Disponiacutevel em httpaccentsdefrancefreefr Acesso em 17 out 2020

67 NT In PAVEAU M-A ROSIER L La langue franccedilaise passions et poleacutemiques Paris Eacuteditions Vuibert 2008

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A sociolinguiacutestica popular em contrapartida dispotildee de muitos pequenos tratados espontacircneos ou observaccedilotildees raacutepidas geralmente humoriacutesticas ou irocircnicas sobre o falar das classes dominantes por parte de observadores externos e tambeacutem por membros da aristocracia da grande burguesia ou dos ldquobons meios sociaisrdquo Esse corpus eacute constituiacutedo de ensaios para o puacuteblico em geral sobre o que denomino ldquoo espiacuterito francecircsrdquo (P Daninos P Jullian J Chazot) correspondendo a uma vasto material que abrange guias de correspondecircncia e de boas maneiras esquetes humoriacutesticas (S Joly C de Turkheim F Foresti) artigos de revista sobre os meios sociais com interpretaccedilotildees dos tiques comportamentais do ldquobobordquo68 do ldquobeauf69rdquo do ldquoaristo70rdquo ou do ldquoplouc71rdquo de dicionaacuterios de ldquocriacutetica irocircnicardquo (expressatildeo criada por L Rosier) como o Dico franccedilais-franccedilais de P Vandel (1992) ou o seu ancestral Le Jacassin de P Daninos (1962) ou ainda as obras de sociologia ldquosuaverdquo como Nous les bourgeoises de V Hanotel e M-L de Leacuteotard (1991) ou o Guide du squatteur mondain de J-F Duhauvelle (1994) Detalharei mais agrave frente neste texto os dados linguiacutesticos apresentados nesses materiais todavia eacute importante fazer uma primeira constataccedilatildeo sobre essa questatildeo existe uma assimetria notaacutevel entre os estudos linguiacutesticos ldquocientiacuteficosrdquo (rariacutessimos) e o grande nuacutemero de apreciaccedilotildees folk linguiacutesticas sobre o falar das elites sociais Essa constataccedilatildeo estaacute na origem do questionamento teoacuterico e epistemoloacutegico que discute a validade da linguiacutestica popular e as contribuiccedilotildees da dialetologia perceptiva para a linguiacutestica cientiacutefica

2 Linguiacutestica perceptiva linguiacutestica popular (folk linguiacutestica)Nos anos 1970 A Rey (1972 p 16) e outros pesquisadores reivindicaram o que chamo

de uma ldquolinguiacutestica dos valoresrdquo isto eacute um ldquoestudo sistemaacutetico das atitudes metalinguiacutesticas [] que poderia constituir uma ciecircncia social relacionada agraves teorias dos valores (teoria do direito da moral objetiva etc)rdquo ldquoEnquanto os trabalhos de soacutecio e de etnolinguiacutestica no que se refere agraves variedades de uso agraves normas objetivas satildeo atualmente muito numerosos [] os estudos relativos agrave apreciaccedilatildeo subjetiva dos usos satildeo raros e mais frequentes em inglecircsrdquo constata Rey no mesmo artigo (1972 p 15) Mais de trinta anos depois o que aconteceu Os campos norte-americanos da dialetologia social da dialetologia perceptiva da folk linguistics colaboraram voluntariamente com a psicologia social e tecircm amplamente explorado as atitudes linguiacutesticas as percepccedilotildees as avaliaccedilotildees os julgamentos de valores etc Parece se tratar de uma linguiacutestica dos valores

68 NT Abreviaccedilatildeo de bourgeois bohemian ou burguecircs boecircmio

69 NT ldquoA personagem do lsquobeaufrsquo ndash abreviaccedilatildeo de beau fregraverecunhado ndash nasceu no poacutes-maio de 68 do laacutepis de Cabu cartunista do Hara-Kiri e do Charlie Hebdo ldquoEle era o dono do bistrocirc com o pastor alematildeo o bigode e a camisetardquo explica o socioacutelogo Paul Yonnet autor de Travail Loisir (Gallimard) Havia portanto uma rejeiccedilatildeo do modo de vida e haacutebitos da classe trabalhadora da qual natildeo mais se poderia esperar a regeneraccedilatildeo da sociedaderdquo Disponiacutevel em httpswwwlexpressfrinformationsles-nouveaux-beaufs_636908html Acesso em 17 out 2020

70 NT ldquoAristo (substantivo masculino) 1 (pejorativo) pessoa que pertence a uma classe de nascimento privilegiada e que possui tiacutetulos e cargos hereditaacuterios 2 (pejorativo) aristocratardquo Disponiacutevel em httpdictionnairesensagentleparisienfraristofr-fr Acesso em 17 out 2020

71 NT ldquoQue tem a aparecircncia desajeitada de um camponecircs em sua melhor roupa de domingo que ignora os costumesrdquo comumente relacionado agrave regiatildeo francesa Bretagne Poderia ser traduzido como caipira em portuguecircs Disponiacutevel em httpswwwlaroussefrdictionnairesfrancaisplouc61755 Acesso em 17 out 2020

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Na Franccedila os dados metalinguiacutesticos satildeo estudados mas mais frequentemente segundo abordagens ldquoobjetivasrdquo (por exemplo as glosas metagraacuteficas no campo da aquisiccedilatildeo as natildeo-coincidecircncias do dizer na enunciaccedilatildeo e no discurso Para uma observaccedilatildeo em detalhe a esse respeito consultar a introduccedilatildeo de Achard-Bayle e Paveau na revista Pratiques 13914072) A questatildeo do ldquoimaginaacuterio linguiacutesticordquo eacute evidente nos trabalhos de A-M Houdebine e Socircnia Branca mas os dados propriamente perceptivos natildeo satildeo escolhidos como tais para um trabalho em linguiacutestica Haacute algumas exceccedilotildees como o estudo conduzido por A Meillet V Lucci e J Billiez publicado em 1990 com o tiacutetulo Orthographe mon amour (Grenoble PUG) que eacute no meu entendimento um raro e autecircntico trabalho no contexto francecircs de dialetologia perceptiva e de folk linguiacutestica sem que as categorias desse campo sejam efetivamente nominadas Minha hipoacutetese eacute que uma folk linguiacutestica amplamente articulada sobre uma dialetologia perceptiva pode realizar o projeto esboccedilado por A Rey de uma linguiacutestica dos valores Para sustentar essa hipoacutetese examino a validade da folk linguiacutestica e o estatuto da percepccedilatildeo na anaacutelise linguiacutestica

21 O problema da validade das disciplinas ldquofolkrdquo abordagem eliminativa versus integracionista

Como outras disciplinas ldquofolkrdquo (psicologia folk biologia folk e mais recentemente as neurociecircncias folk) a folk linguiacutestica parece por natureza desprovida de qualquer validade cientiacutefica Se de fato a ciecircncia se constroacutei sob a objetividade entatildeo as avaliaccedilotildees subjetivas e os dados perceptivos da linguiacutestica espontacircnea dos natildeo-linguistas soacute podem ser constituiacutedos de erros refutaacuteveis ou ficccedilotildees linguiacutesticas Para passar rapidamente pela questatildeo73 e tomando de empreacutestimo da filosofia do espiacuterito os termos de seu debate sobre os estados mentais existe do ponto de vista da linguiacutestica espontacircnea uma posiccedilatildeo ldquoeliminativistardquo que contesta as realidades construiacutedas por essa linguiacutestica ou que reconhece essa uacuteltima como uma teoria mas falsa Essa eacute a posiccedilatildeo geralmente adotada pelos linguistas ao se defrontarem com as opiniotildees do senso comum sobre a liacutengua (a liacutengua reflete o mundo os burgueses possuem uma linguagem mais rica do que os trabalhadores a subordinaccedilatildeo eacute um iacutendice de elaboraccedilatildeo do pensamento superior ao independente a gramaacutetica da liacutengua oral eacute passiva de erros etc) Essa eacute uma maneira binaacuteria de colocar as coisas linguiacutestica cientiacutefica versus folk linguiacutestica

Todavia existe igualmente uma posiccedilatildeo que chamarei de ldquointegracionistardquo uma vez que ela prefere integrar os dados avaliativos e perceptivos da folk linguiacutestica aos da linguiacutestica cientiacutefica ela postula que as anaacutelise dos natildeo-linguistas natildeo estatildeo muito longe daquelas dos linguistas ou podem agraves vezes forjaacute-las (os inuacutemeros trabalhos norte-americanos em dialetologia social mostram que os locutores percebem as variedades sociodialetais de maneira diferente que os linguistas profissionais o que coloca o problema da natureza do objeto) que as avaliaccedilotildees subjetivas constituem um filtro representacional essencial para compreender o funcionamento da comunicaccedilatildeo e os dados folk constituem o ponto de partida do trabalho

72 NT Linguiacutestica popular - a linguiacutestica ldquofora do templordquo Definiccedilatildeo geografia e dimensotildees Disponiacutevel em httpsperiodicosufscbrindexphpforumarticleview1984-84122019v16n4p4257

73 Sobre esta questatildeo da validade dos dados da folk linguiacutestica consultar Niedzielski (1999) Preston e Niedzielski (2000) Paveau (2007) Achard-Bayle e Paveau (2008)

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do linguista cientiacutefico bem como seu histoacuterico cognitivo74 Trata-se de uma posiccedilatildeo escalar entre dois polos extremos da linguiacutestica cientiacutefica e da folk linguiacutestica existe um continuum no qual as categorias estatildeo em contato e as anaacutelises podem ser mais ou menos cientiacuteficas ou mais ou menos espontacircneas Essa posiccedilatildeo eacute defendida pelos fundadores e praticantes da folk linguistics nos Estados Unidos (NIEDZIELSKI PRESTON 2000) vindos geralmente da dialetologia social (PRESTON 1989 WOLFRAM 1991) as duas correntes sendo derivadas do labovismo em sua primeira forma (LABOV 1966) Essa posiccedilatildeo integracionista eacute a que defendo neste texto O integracionismo natildeo foi desenvolvido na Franccedila onde como jaacute dissemos a reflexatildeo sobre a ldquoquestatildeo folkrdquo praticamente natildeo existe em linguiacutestica

Essa reflexatildeo implica que examinemos o estatuto da percepccedilatildeo e dos dados perceptivos em linguiacutestica o que naturalmente nos obriga a olhar de perto para a espinhosa noccedilatildeo de intuiccedilatildeo dos locutores

22 O estatuto linguiacutestico da percepccedilatildeo e a questatildeo da intuiccedilatildeo

Os primeiros trabalhos de W Labov nos anos 1960 sobre os falares nova-iorquinos estavam fundamentados no meacutetodo dos testes de reaccedilatildeo subjetiva de onde derivam os protocolos das entrevistas colocados em praacutetica a partir dos anos 1990 em dialetologia social e em folk linguiacutestica A questatildeo da subjetividade eacute entatildeo agrave eacutepoca plenamente de direito e totalmente integrada na construccedilatildeo da ciecircncia ldquoobjetivardquo no campo da sociolinguiacutestica norte-americana

221 Percepccedilatildeo e variaccedilatildeo

Os diferentes campos teoacutericos e metodoloacutegicos do variacionismo norte-americano verdadeiramente instalaram a noccedilatildeo de percepccedilatildeo no seu dispositivo teoacuterico e metodoloacutegico e natildeo apresentam nenhum receio em dialogar com disciplinas fora do campo da linguiacutestica como a psicologia social por exemplo Desse modo a dialetologia social e seu componente perceptivo (dialetologia perceptiva) tem mostrado que os julgamentos avaliativos dos locutores os estereoacutetipos que participam de suas representaccedilotildees em particular no domiacutenio do oral (percepccedilatildeo da fala) isto eacute o conjunto das atitudes linguiacutesticas influenciam a percepccedilatildeo das proacuteprias formas da linguagem na sua dimensatildeo mais fiacutesica (sinal fiacutesico) Dessa maneira Nancy Niedzielski defende a ideia que os sujeitos usam informaccedilotildees sociais variadas para identificar os dialetos sociais no seu componente foneacutetico As informaccedilotildees visuais como o movimento dos laacutebios as ldquoinformaccedilotildees de vozrdquo o gecircnero feminino ou masculino ou as informaccedilotildees de segundo plano do dialeto contribuem para a identificaccedilatildeo das variedades

Pesquisas em ambos os campos da sociolinguiacutestica e da psicologia social sugeriram que os estereoacutetipos sobre os grupos sociais dos quais os falantes satildeo membros (ou acreditam que satildeo membros) tecircm uma influecircncia na forma como as suas variedades linguiacutesticas satildeo percebidas [] O objetivo do estudo apresentado foi determinar em que medida os ouvintes usam informaccedilotildees sociais sobre um falante na construccedilatildeo do espaccedilo fonoloacutegico desse falante (NIEDZIELSKI 1999 p 62-63)

74 No campo da filosofia da linguagem sobre a questatildeo semacircntica eacute a posiccedilatildeo defendida por F Recanati em Literal Meaning (RECANATI 2004) contra o ldquoliteralismordquo ele defende um ldquocontextualismordquo que leva em consideraccedilatildeo as ldquorestriccedilotildees psicoloacutegicas popularesrdquo

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J Edwards (1999 p 102) a partir da psicologia social formula de maneira mais geral

A variaccedilatildeo encontrada nos estudos de avaliaccedilatildeo da fala reflete as percepccedilotildees sociais dos falantes de determinadas variedades e natildeo tem nada a acrescentar sobre quaisquer qualidades intriacutensecas ndash loacutegicas ou esteacuteticas ndash da proacutepria linguagem ou dialeto Assim ouvir determinada variedade eacute geralmente considerado um gatilho ou estiacutemulo que evoca atitudes (ou preconceitos ou estereoacutetipos) sobre a comunidade de fala considerada

Compreendemos por conseguinte que eacute a questatildeo da apreensatildeo do objeto que se coloca de maneira crucial sendo os linguistas tanto quanto os outros sujeitos perceptivos de que liacutengua eles falam entatildeo quais variedades satildeo identificadas e sobretudo como satildeo identificadas Na perspectiva norte-americana haacute certamente um lugar atribuiacutedo agrave subjetividade nas elaboraccedilotildees cientiacuteficas que comumente satildeo compreendidas como elaboraccedilotildees objetivas Na Franccedila e nos estudos francoacutefonos as coerccedilotildees objetivistas satildeo ainda mais fortes e essa questatildeo da percepccedilatildeo e mais amplamente da subjetividade eacute pouco abordada especialmente no que concerne agrave sua dimensatildeo social Alguns linguistas nos anos 1970 se preocuparam com essa questatildeo como A Rey (1972 p 8)

[] a recusa em considerar o uso de modo diferente que como objeto fiacutesico observaacutevel e analisaacutevel alheio a qualquer julgamento (da verdade do valor etc) facilmente leva a uma confusatildeo oposta agrave cometida por Vaugelas a teoria (sistema de regras de leis constituiacuteda como modelo de regras objetivas) eacute entatildeo considerada como intervencionismo disfarccedilado e qualquer reconhecimento de uma norma social como defesa do normativismo o que natildeo tem sentido []

Todavia natildeo parece que as respostas foram dadas por trabalhos fortes que integrem a dimensatildeo subjetiva Essa distinccedilatildeo entre uso-objeto e uso-valor orienta de fato profundamente os trabalhos franceses que tanto em linguiacutestica como em outras aacutereas satildeo fortemente enquadrados pelos requisitos disciplinares fazer linguiacutestica com algo diferente do linguiacutestico explicar o social com algo diferente do social natildeo eacute ainda uma postura acadecircmica habitual e bem admitida na Franccedila A distinccedilatildeo objeto versus valores realmente cruza a oposiccedilatildeo entre linguiacutestica e extralinguiacutestica ou como chama F Gadet a oposiccedilatildeo entre interno e externo ldquoSeraacute que apenas o interno explica o interno ou ainda seraacute que correlacionar a fatores mensuraacuteveis ou natildeo de natureza natildeo-linguageira (pelo menos enquanto a linguagem for reconhecida como puramente linguiacutestica) pode questionar o fundamento da variaccedilatildeo explicaacute-lordquo pergunta-se Gadet em um artigobalanccedilo sobre a sociolinguiacutestica na Franccedila (2008 p 4 itaacutelico da autora) Essa eacute sem duacutevida uma das razotildees pelas quais os trabalhos franceses ou francoacutefonos sobre as percepccedilotildees e as atitudes satildeo pouco numerosos e aleacutem disso concentrados sobre domiacutenios muito particulares as imagens da liacutengua em contexto de aprendizagem (por exemplo Fontaine 1983 Ledegen 2000) e em contexto interlinguiacutestico (por exemplo Apotheacuteloz Bysaeth 1981 Atienza (org) 2006) O domiacutenio das marcas sociais dificilmente eacute representado o que eacute talvez um efeito perverso de uma concepccedilatildeo desatada da sociolinguiacutestica defendida por exemplo por F Gadet em nome de uma ldquodialinguiacutesticardquo permitindo

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[] representar a linguagem sem fechaacute-la na alternativa de formalizaccedilatildeo versus exuberacircncia variacional com o objetivo de moldar um objeto reconhecido como conjunto muito complexo de invariacircncia e de variaccedilatildeo que se manifesta na forma do diverso do heterogecircneo do impreciso do hiacutebrido do emergente (mas tambeacutem persistente ao longo do tempo) (GADET 2008 p 5)

A ldquodialinguiacutesticardquo se pretende realmente aberta buscando substituir uma sociolinguiacutestica reduzida ao social E entatildeo o social eacute menos considerado No entanto ele constitui uma dimensatildeo incontestaacutevel e como outros tipos de variaccedilatildeo sua apreensatildeo dificilmente parece possiacutevel sem considerar os exteriores da liacutengua e dos usos inclusive as percepccedilotildees e os valores

O lugar restrito atribuiacutedo agrave noccedilatildeo de percepccedilatildeo nos trabalhos sobre a variaccedilatildeo social no contexto francecircs estaacute sem duacutevida relacionado com o enfraquecimento das reflexotildees engajadas sobre a noccedilatildeo de intuiccedilatildeo (do locutor nativo) ou do sentimento linguiacutestico

222 Percepccedilatildeo e intuiccedilatildeo

A noccedilatildeo de intuiccedilatildeo diretamente relacionada com a de percepccedilatildeo mas sem a recobrir eacute raramente objeto de questionamento e funciona como um impliacutecito ratificado pela comunidade dos linguistas Na Franccedila a noccedilatildeo eacute geralmente justificada e mobilizada em particular na sintaxe ou ainda na semacircntica assim como o seu antocircnimo adjetival contra-intuitivo No entanto tal noccedilatildeo eacute raramente descrita como operador ou ferramenta conceitual para as ciecircncias da linguagem O Glossaire bibliographique des sciences du langage de F Gobert sintomaticamente apresenta apenas uma entrada para Intuiccedilatildeo (um artigo de Jean Dubois sobre a gramaacutetica gerativa na liacutengua francesa em 1969) uma segunda entrada intitulada Intuiccedilatildeo (do locutor nativo) eacute apresentada pela definiccedilatildeo compilada e didaacutetica feita por M Yaguello em seu Catalogue des ideacutees reccedilues sur la langue em 1988 O dicionaacuterio de linguiacutestica de Jean Dubois et al publicado pela Larousse em 2001 define da mesma maneira e em poucas linhas intuiccedilatildeo e sentimento linguiacutestico como a capacidade dos sujeitos de formular julgamentos de aceitabilidade e de gramaticalidade As entradas estatildeo ausentes no Dictionnaire des sciences du langage75 de F Neveu publicado pela A Colin em 2003 Jacqueline Authier e A Meunier sublinham desde 1972 ldquoa pobreza dos conhecimentos linguiacutesticos atuais nesse domiacutenio [da intuiccedilatildeo e do sentimento linguiacutestico]rdquo (p 53)

O filoacutesofo M Devitt propotildee anaacutelises esclarecedoras sobre essa noccedilatildeo que fornecem argumentos em favor da integraccedilatildeo de saberes descrita anteriormente neste texto O autor explica que a definiccedilatildeo corrente de intuiccedilatildeo tal como eacute proposta pela gramaacutetica chomskyana (a Tese Representacional) que pode ser vantajosamente substituiacuteda por uma teoria alternativa ldquoEsta teoria trata as intuiccedilotildees linguiacutesticas como opiniotildees resultantes de investigaccedilatildeo empiacuterica comum consideradas pela teoria da maneira como todas essas opiniotildees satildeordquo (DEVITT 2006 p 485) Quando a intituiccedilatildeo do locutor nativo eacute definida como um conjunto de opiniotildees eacute isso que provoca uma mudanccedila de terreno especialmente se continua M Devitt elas embasam a

75 NT NEVEU F Dicionaacuterio das ciecircncias da linguagem Petroacutepolis Editora Vozes 2008

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intuiccedilatildeo do proacuteprio linguista ldquoEmbora as intuiccedilotildees discutidas provavelmente estejam certas as intuiccedilotildees nas quais a linguiacutestica deveria confiar satildeo aquelas dos proacuteprios linguistas pois esses uacuteltimos satildeo os mais experientesrdquo (p 494) Em uacuteltima instacircncia as intuiccedilotildees frequentemente mobilizadas pelos linguistas satildeo as suas proacuteprias intuiccedilotildees cujo aspecto espontacircneo e ingecircnuo natildeo eacute garantido uma vez que estes profissionais satildeo muito conscientes da teoria linguiacutestica

As intuiccedilotildees de falantes comuns podem parecer mais presentes do que realmente satildeo visto que os linguistas consideram as suas proacuteprias intuiccedilotildees como representativas Sem duacutevida elas muito frequentemente satildeo representativas E onde natildeo satildeo seriam se o orador comum tivesse a vantagem de uma educaccedilatildeo em linguiacutestica (DEVITT 2006 p 496)

A intuiccedilatildeo pode ser compreendida como um conjunto de atitudes Poderiacuteamos concordar com essa proposiccedilatildeo e isso nos levaria a repensar a natureza do objeto da linguiacutestica um objeto certamente subjetivo a liacutengua constituiacuteda por variantes de si mesma essas variantes natildeo sendo identificadas da mesma maneira pelos locutores Estamos longe do fantasma cientiacutefico do objeto homogecircneo ideal nem mesmo heuriacutestico e as riacutegidas distinccedilotildees habituais interno versus externo linguiacutestica versus extralinguiacutestica percepccedilatildeo versus objetivaccedilatildeo e linguistas versus natildeo-linguistas se dissolvem sendo muito mais coerente pensarmos em termos de continuum

23 Quem satildeo os natildeo-linguistas

Dessa perspectiva se coloca a delicada questatildeo da identificaccedilatildeo dos ldquonatildeo-linguistasrdquo como D Preston os designa Quem satildeo esses sujeitos Pode-se colocar num mesmo plano no que se refere ao conhecimento da liacutengua um escritor e um esportista Sim e natildeo aqui minha resposta seraacute mais escalar que binaacuteria Em vez de opor de maneira idealista os linguistas aos natildeo-linguistas me parece mais adequado colocar um continuum com esses dois polos extremos de um lado o linguista profissional isto eacute o especialista em ciecircncias da linguagem enquanto disciplina cientiacutefica e de outro o locutor comum cuja cultura e praacuteticas sociais natildeo incluem conhecimentos especiacuteficos sobre a liacutengua Entre os dois a massa de natildeo-linguistas agraves vezes mais proacutexima dos saberes cientiacuteficos (escritores corretores professores acadecircmicos de outras disciplinas como os historiadores os socioacutelogos citados anteriormente alguns jornalistas) agraves vezes longe desses mesmos saberes adotando atitudes metalinguiacutesticas menos conscientes linguisticamente que os anteriores (humoristas observadores da vida social alguns jornalistas locutores comuns) Para complicar as coisas o linguista profissional tambeacutem pode produzir comentaacuterios espontacircneos que natildeo dependem de sua atividade profissional podendo ser tambeacutem um natildeo-linguista Essa eacute uma questatildeo de posiccedilatildeo discursiva e natildeo de ontologia

Chamaremos pois de natildeo-linguista o locutor que produz discursos metalinguiacutesticos sem se fundamentar na linguiacutestica cientiacutefica Isso natildeo significa que seja desprovido de saberes culturais Proust eacute um natildeo-linguista da mesma maneira que D Debbouze mas suas anaacutelises folk linguiacutesticas de falares sociais natildeo adveacutem dos mesmos quadros culturais e de saberes Um ensaiacutesta como P Daninos por exemplo eacute um natildeo-linguista que tangencia a linguiacutestica

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mencionando diversos trabalhos em ciecircncias da linguagem (sobre o francecircs fundamental por exemplo) Nesse sentido a categoria do natildeo-linguista eacute definida de maneira mais prototiacutepica do que componencial e natildeo se confunde com categorias proacuteximas tais como ldquoorador eruditordquo ou ldquocultordquo

Abordo na sequecircncia os dados perceptivos que permitem postular a categoria do falar das classes dominantes

3 Classes sociais e identidades linguageirasNatildeo estaacute em questatildeo aqui (re)propor um paralelo redutor entre falar e classe social as

variaccedilotildees de estilo dos locutores de acordo com as situaccedilotildees sociais e suas posiccedilotildees nas relaccedilotildees estatildeo no escopo do trabalho Em vez disso trata-se de perguntar se os repertoacuterios estiliacutesticos e discursivos dos locutores natildeo estatildeo sustentados por algumas constantes estaacuteveis que seriam diretamente ligadas agrave classe social entendida como um conjunto de comportamentos de valores e de maneiras de ser que produzem pertencimento e ateacute mesmo atribuiccedilatildeo social

31 Um socioleto impensado o falar das classes dominantes

Uma lista de locutores proposta por A Rey para exemplificar os usos natildeo padratildeo nos mostra jaacute em 1972 que a marcaccedilatildeo foi concebida essencialmente como fazendo parte das classes populares ou do meio operaacuterio

Je ne vais pas au docteur je vais pas au docteur76 e com outro material lexical jrsquovais agrave lrsquopecircq ldquoagrave la pecirccherdquo77 que poderiacuteamos ficar tentados a descartar como agramaticais satildeo compatiacuteveis com os usos sociais do francecircs eles devem portanto pertencer ao sistema de liacutengua senatildeo sua gramaacutetica natildeo produziria todas as frases julgadas aceitaacuteveis pelos ldquofalantes nativosrdquo (a menos que vocecirc admita que o trabalhador de Calais o entregador de jornais normando ou a lojista de Toulouse satildeo menos ldquonativosrdquo do que o professor digamos parisiense e natildeo tem o direito de contribuir para a constituiccedilatildeo do ldquofalante idealrdquo) (REY 1972 p 13)

A questatildeo da marcaccedilatildeo da classe dos falantes natildeo pode ser colocada fora da liacutengua culta inclusive F Gadet lembra que ela eacute definida de forma negativa por exclusatildeo das formas vernaculares sem mencionar um eventual falar das classes dominantes (2003 p 80) Franccediloise Gadet tambeacutem fornece uma lista de exemplos ilustrando ldquoo alto e o baixo na escada socialrdquo incluindo quatro dados relacionados ao uso dos subjuntivos e das inversotildees ldquoNatildeo haacute nome para os exemplos de 13 a 16 explica a pesquisadora talvez isso se decirc por conta do impliacutecito a saber o ldquobom francecircsrdquo ou mesmo para alguns soacute francecircsrdquo (2003 p 10) No entanto na lista o enunciado 14 (eu natildeo gostaria que vocecirc me culpasse por esse erro) me parece bem mais

76 NT Em portuguecircs os dois enunciados satildeo traduzidos da mesma maneira Eu natildeo vou ao meacutedico Optamos por manter o exemplo em francecircs pois somente em liacutengua francesa a diferenccedila entre os dois enunciados fica evidente A primeira frase estaacute mais de acordo com a norma padratildeo de formaccedilatildeo da negaccedilatildeo em francecircs enquanto na segunda haacute supressatildeo do ne que juntamente com o pas formam a negaccedilatildeo

77 NT Algo como a variaccedilatildeo pescaacute para o verbo ldquopescarrdquo na norma padratildeo do portuguecircs

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marcado do que os outros (o 15 por exemplo nosso colaborador ele jaacute deu um passo nesse sentido)78 Marcado ou mais exatamente estigmatizado uma vez que produz o efeito de ridicularizaccedilatildeo tiacutepica dos enunciados ditos ldquoesnobesrdquo

Nancy Niedzielski (1999 p 82) retoma uma interessante hipoacutetese formulada por W Wolfram ldquoUma quarta hipoacutetese eacute baseada em uma proposta na qual Wolfram (1991) avanccedila O pesquisador sugere que quaisquer variantes de linguagem que natildeo sejam estigmatizadas sejam consideradas padratildeordquo Acontece que o falar das classes dominantes eacute amplamente estigmatizado em um corpus folk descrito anteriormente e tambeacutem no humor francecircs para mim Marie-Chantal e Anne-Sophie de la Coquillette (personagem da humorista F Foresti) natildeo falam um francecircs padratildeo D de Villepin e J DrsquoOrmesson tambeacutem natildeo

No entanto como abordar essa marcaccedilatildeo ldquodo melhorrdquo A partir do quadro integracionista proposto anteriormente e tambeacutem com base nos meacutetodos da dialetologia perceptiva escolho abordar as entradas avaliativas e perceptivas

331 Avaliaccedilotildees linguiacutesticas externas do estereoacutetipo agrave caricatura

Designo como avaliaccedilotildees linguiacutesticas externas as avaliaccedilotildees de locutores sem sentimento ou discurso de pertencimento agraves classes dominantes que estigmatizam um falar considerado como pertencente agrave alta burguesia agrave aristocracia da ldquoalta sociedaderdquo etc independentemente do vocabulaacuterio adotado Poderia ser uma avaliaccedilatildeo espontacircnea num discurso de entrevista por exemplo aquela feita por J-M Marconot (1990 p 69) em um bairro de classe meacutedia79 em Nicircmes ldquo[] um ou talvez dois que devem falar assim na ndash na burguesia certamente [] sim eu conheccedilo uma mulher que fala [] ela usa expressotildees que vocecirc acreditaria serem de Lagarde e Michard do seacuteculo XVIrdquo

Encontramos igualmente construccedilotildees ficcionais humoriacutesticas cujo diaacutelogo a seguir eacute um bom exemplo

- Apresento-lhe a senhora minha condessa troveja o Gravos que esquecendo seu traje dolorido recupera seu rosto radiante

- Meu amigo protesta a senhora parece que vocecirc ainda natildeo estudou no seu manual o capiacutetulo de apresentaccedilotildees Senatildeo vocecirc saberia que uma senhora somente deve ser apresentada a um cavalheiro quando a senhora eacute muito jovem e o cavalheiro muito velho

Sua Majestade fica corada

- Viu meu companheiro percebeu Consequentemente tenho a honra de apresentar a vocecirc Comissaacuterio San-Antonio em carne e osso com todos os seus dentes e sua pele de pecircssego

78 NT F Gadet nos exemplos que oferece afirma que em (14) haacute um imperfeito do subjuntivo e em (15) uma interrogaccedilatildeo por inversatildeo complexa GADET F La variation sociale en franccedilais Paris Ophrys 2007 p 16

79 NT A autora usa a sigla HLM para se referir ao bairro Ela significa Habitation agrave Loyer Modereacute Habitaccedilatildeo de Aluguel Moderado Optamos por traduzi-la como classe meacutedia

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Entatildeo voltando-se para mim

- Assim tenho a honra e a vantagem de fazecirc-lo impulsivamente aqui novamente entatildeo a Condessa Troussal de Trousseau amigo Como vocecirc pode perceber natildeo eacute um precircmio para reivindicar mas uma mulher de classe educada em todos os lugares Vocecirc espreitou a reaccedilatildeo da Senhora nesse momento Ah a etiqueta ela natildeo as cola em seus potes de doce eu juro a vocecirc (SAN ANTONIO 1965 p 40-41)80

Trecircs caracteriacutesticas do falar das classes dominantes satildeo propostas por F Dard por meio da personagem Beacuterurier o emprego do subjuntivo jaacute destacado por F Gadet em seus trabalhos a pronuacutencia aberta e aspirada (Mahame no lugar de Madame) e as formas pragmaacuteticas de apresentaccedilatildeo Caracteriacutesticas que podem ser encontradas no Dico francecircs-francecircs de P Vandel especificamente no capiacutetulo intitulado ldquoComo falar igual agrave Neuilly Auteuil Passyrdquo (1993 p 147 e seguintes)

Citaremos igualmente humoristas ou personagens do cinema ou do teatro S Joly (os esquetes ldquoo esnobismordquo e ldquoCanccedilatildeo esnoberdquo em La Cigale et la Joly espetaacuteculo de 1999) F Foresti e a personagem Anne-Sophie de la Coquillette (apresentada no Canal France 2) e ldquoBeacuteardquo (Beacuteatrice de Montmirail) interpretada por V Lemercier em Les Visiteurs 1 (1993)

312 Avaliaccedilotildees linguiacutesticas internas uma atividade metalinguiacutestica constante

Haacute igualmente numerosas avaliaccedilotildees internas sendo a atividade metalinguiacutestica uma das praacuteticas conversacionais das classes dominantes como bem exemplificam as entrevistas de Eacute Mension-Rigau e os corpora internos folk

O estudo de Eacute Mension-Rigau no meu entendimento se apresenta ateacute o momento como o uacutenico levantamento histoacuterico da aristocracia e da grande burguesia que leva em conta dados linguageiros Encontramos em particular nas anaacutelises do ldquoembelezamentordquo das palavras os tons de voz e da praacutetica da conversa fiada dados ineacuteditos e preciosos para os propoacutesitos deste texto

Embelezar a fala se traduz na preocupaccedilatildeo de evitar epiacutetetos mordazes palavras contundentes as palavras duras as entonaccedilotildees violentas e pelo respeito agraves conexotildees que datildeo agrave linguagem mais docilidade e maior fluidez Gritar ou rir alto satildeo consideradas atitudes muito vulgares

Nunca levante a voz natildeo importa o que aconteccedila (homem 1934) Ser comum eacute ser barulhento (mulher 1925) (MENSION-RIGAU 1994 p 202)

Em particular o historiador descreve a relaccedilatildeo que os aristocratas tecircm com o falar e sotaque regional informaccedilatildeo essa geralmente ausente nos estudos sobre os falares regionais

80 Beacuterurier protoacutetipo do homem do povo manteacutem relaccedilatildeo com a condessa Troussal du Trousseau a quem apresenta o comissaacuterio San-Antonio

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O sotaque regional reconhecidamente muito raro entre os entrevistados se apresenta menos desvalorizado do que nas famiacutelias pequeno-burguesas uma vez que provavelmente elas satildeo mais riacutegidas porque sentem a sua identidade mais fraacutegil e ldquoameaccediladardquo [] Na linguagem dos entrevistados uma relativa ruralidade agraves vezes ainda persiste de forma discreta (MENSION-RIGAU 1994 p 194)

Essa ruralidade ainda presente atualmente (as famiacutelias da aristocracia tecircm com efeito uma praacutetica de falares locais em particular o dialeto local francecircs chamado patois) eacute muito bem relatada em Le cocircteacute de Guermantes por Proust descrevendo as maneiras de falar da Senhora de Villeparisis

Senhor eu acho que vocecirc quer escrever algo sobre a Duquesa de Montmorency disse a Sra de Villeparisis ao historiador da Fronde com aquele ar rabugento que sem saber sua grande bondade foi recolhida pelos cachos mal-humorados o aborrecimento fisioloacutegico da velhice bem como a tarefa de imitar o tom quase camponecircs da velha aristocracia Eu vou te mostrar o retrato dele o original da coacutepia que estaacute no Louvre (PROUST 1954 [1920] p 240)

O pesquisador Eacute Mension-Rigau (1994 p 195)81 analisa esse fenocircmeno como ldquouma maneira mais ou menos inconsciente de exprimir seu apego ao passado sendo o conservadorismo linguiacutestico projetado como um reflexo do conservadorismo poliacutetico e socialrdquo

Essa consciecircncia metalinguiacutestica eacute encontrada tambeacutem em outros documentos do corpus folk os manuais de etiqueta da aristocracia apresentam muitas prescriccedilotildees e proibiccedilotildees foneacuteticas prosoacutedicas lexicais sintaacuteticas e pragmaacuteticas Marie-Chantal de J Chazot ornamenta seu discurso com marcas linguiacutesticas os ensaios mundanos colocam em cena personagens que sempre realizam atividades metalinguiacutesticas Trata-se de uma hipoacutetese ainda a ser verificada por meio de entrevistas mais profundas mas parece que a atividade metalinguiacutestica eacute ela proacutepria um aspecto do falar das classes dominantes

32 Alguns aspectos do falar das classes dominantesApresento aqui alguns aspectos do falar das classes dominantes a partir de descriccedilotildees da

linguiacutestica folk e de avaliaccedilotildees perceptivas (para uma descriccedilatildeo completa consultar Paveau 2008 Paveau e Rosier 2008) depois de ter mencionado duas anaacutelises gerais que confirmam a hipoacutetese do falar especiacutefico das classes dominantes

321 Descriccedilotildees globais do socioleto

No capiacutetulo que dedica aos bairros nobres no seu Dico francecircs-francecircs (1993) P Vandel propotildee uma descriccedilatildeo do falar das classes dominantes praticamente em todos os niacuteveis da anaacutelise linguiacutestica Para ele se apresentam marcados os usos relativos ao vocabulaacuterio (chatear para exasperar suar para defecar casebre para castelo os peacutes entre duas coisas para a bunda

81 Os entrevistados pronunciam por exemplo [pikoslash] e natildeo [pikoer] a palavra piqueur designando o criado que cuida do grupo em uma caccedilada

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entre duas cadeiras) a pronuacutencia dos nomes proacuteprios (Broglie La Treacutemoille Schneider e outras armadilhas culturais mundanas) a esteacutetica dos nomes (Marie-Clotilde em vez de Juanita e Pierre-Henri em vez de Robert) as convenccedilotildees pragmaacuteticas (mentiras e polidez) e a sintaxe (negaccedilatildeo completa quarta pessoa uso da condicional) P Daninos apresenta no Snobissimo (1964 p 66-67) uma amostra desses usos de sua ldquoespeleologia socialrdquo propondo o discurso de um ldquoesnobe realrdquo onde encontrariacuteamos dentre outras coisas inversotildees interrogativas marcadas (eu vejo quem estaacute entrando) empregos de giacuterias (a velha duquesa de Uzegraves que grita82) apoios conversacionais (sim vocecirc com certeza conhece vocecirc engraccedilado o que resumindo eu passo para vocecirc o resto vocecirc percebe um pouco) A mesma enumeraccedilatildeo sistemaacutetica eacute encontrada no Dictionnaire du snobisme de P Jullian e em alguns guias de boas maneiras

Contrariamente agrave ideia predominante entre os linguistas ldquoprofissionaisrdquo isto eacute que as classes dominantes finalmente apenas respeitariam o bom uso da liacutengua com uma especificidade reduzida agrave pronuacutencia83 parece todavia de acordo com os folk linguistas que marcas especiacuteficas afetam todo o sistema da liacutengua

322 Pronuacutencia e entonaccedilatildeo

A famosa pronuacutencia esnobe ou burguesa natildeo eacute um mito e eacute possiacutevel escutaacute-la nos bairros nobres ou nos endereccedilos certos para identificar essas formas Essa descriccedilatildeo folk de P Jullian (1992 p 197) corresponde agraves avaliaccedilotildees empiacutericas que um ouvido atento eacute capaz de escutar

A entonaccedilatildeo a voz dos homens eacute agraves vezes abafada ligeiramente anasalada eacute frequentemente as pessoas do Quai dacuteOrsay (exceto o ministro claro) e da Alta Sociedade Protestante ldquoParisrdquo torna-se ldquoPegraverisrdquo arrastando um pouco mas sem excesso caso contraacuterio se tornaria o ldquoPeacuterisrdquo com o ldquorrdquo pronunciado gruturalmente do ldquomenino parisienserdquo Na mulher do mundo a voz se estende desproporcionalmente ldquoadoraacuteaacutevelrdquo ou eacute colocado muito alto no nariz muito longe do natural

Tal avaliaccedilatildeo corresponde tambeacutem agrave descriccedilatildeo foneacutetica proposta por P Leacuteon et al em Les accents des Franccedilais Os trecircs sotaques (ldquovulgarrdquo ldquoesnoberdquo ldquoneutrordquo) satildeo classificados pelos autores segundo as ldquoetiquetas sociaisrdquo (popular aristocraacutetico e alta ou meacutedia burguesia) O sotaque esnobe estaacute presente assim como aquele dos ldquoantigos ricos e nobresrdquo e eacute ilustrado por um registro artificial

Registro ndeg 3

A informante eacute uma atriz Mathilde Casadesus que interpreta o papel de uma esnobe da aristocracia parisiense que estaacute visitando um de seus amigos (registro N deg LDM ndash 4024 Chant do Monde)

Apesar da natureza artificial da gravaccedilatildeo este eacute um documento identificado como uma representaccedilatildeo autecircntica do socioleto da alta burguesia parisiense O aspecto

82 NT Nesse exemplo em francecircs o verbo crier (gritar) eacute substituiacutedo pela giacuteria gueuler

83 No entanto essa interpretaccedilatildeo estaacute sujeita a questionamento como mostra a anaacutelise de A Kroch considerando que o afrouxamento da articulaccedilatildeo eacute a norma e que satildeo os grupos dominantes que o inibem (mencionado por Gadet 2003 p 52)

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caricatural natildeo estaacute aqui qualitativamente mas quantitativamente Eacute o acuacutemulo de certos fenocircmenos que daacute ao excerto seu caraacuteter especial do estilo esnobe (httpaccentsdefrancefreefr)

Os aspectos identificados satildeo os seguintes realizaccedilatildeo extrema da articulaccedilatildeo vocaacutelica e consonacircntica consoantes muito fortes e aspiradas ou ao contraacuterio fracas (o exemplo dado eacute madame que encontramos em Beacuterurier) ldquoO R eacute geralmente desvozeado ele se assemelha a um som rouco como o do jota em espanhol ou do achlaut84 alematildeo de Bachrdquo especificam os autores identificando a descriccedilatildeo balzaquiana ou proustiana do [r] aristocraacutetico As vogais satildeo alongadas (adoraacuteaacuteaacutevel como em P Jullian) ou ao contraacuterio muito breves ldquoo ritmo muito raacutepido ou muito lentordquo os acentos de insistecircncia muito numerosos e sustentados por uma forte ampliaccedilatildeo meloacutedica

323 Leacutexico e niacutevel de liacutengua

Os usos lexicais no falar das classes dominantes apresentam duas caracteriacutesticas bem distintas e reconhecidas nos corpora folk os deslizamentos semacircnticos geralmente eufemismos e empregos de giacuterias ou ditos ldquopopularesrdquo

Os exemplos de palavras com significado codificado proliferam nos ldquobons meios sociaisrdquo em todas as obras dos corpora folk e satildeo destacados por Eacute Mension-Rigau como um aspecto saliente da linguagem dos aristocratas e dos grandes burgueses Entre eles casa por exemplo assim como comenta P Daninos (1964 p 87-88)

Casa por exemplo pode ser depreciativo Um representante que coloca eletrodomeacutesticos em Seine-et-Oise ou em Seine-et-Marne iraacute perguntar ldquoVocecirc estaacute no chaleacuterdquo ou ldquoVocecirc estaacute na cidaderdquo - mas evitaraacute a palavra casa onde se faz sopa

A esse propoacutesito o ouviriacuteamos dizer Vocecirc estaacute na casa

P Vandel (1993) propotildee um mini-dicionaacuterio desses usos linguiacutesticos comunitaacuterios

A segunda caracteriacutestica eacute apresentada tanto nesses ensaios mundanos quanto nas avaliaccedilotildees metalinguiacutesticas dos locutores P Daninos (1964 p 17) descreve assim o falar burguecircs ldquodecaiacutedordquo

Natildeo quero me precipitar em generalizar mas o esnobismo se tornou mais democraacutetico Enquanto que nos graus mais baixos da escala os atrasados tentam desajeitadamente subir acreditando fazer bem e se tornar elegante no topo as pessoas chegam a decair seu vocabulaacuterio pensando fazer bem em se passar pelo povo [] Mas certas locuccedilotildees que na minha juventude teriam classificado seu homem ndash como se diz quando se trata de rebaixamento ndash agora passam completamente despercebidas [] Jaacute falei desse modo proacuteprio de algumas mulheres da alta burguesia de dizer meu homem ao falar sobre seus maridos

84 NT Fonema gutural x (a fricativa velar muda) da liacutengua alematilde

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Meu homem estaacute quase fazendo seus dezoito buracos natildeo eacute ruim Vaacute se alimentar (em Maximrsquos) tambeacutem natildeo eacute ruim quem teria imaginado isso antes da guerra Da mesma forma Tem cara de maluca que haacute trinta anos parecia muito ousada floresce na boca dos mais sagrados

O ldquodecaimento lexicalrdquo natildeo eacute um aspecto puramente linguiacutestico mas um discurso sobre pertencimento social uma vez que um socioleto se utiliza de uma marca de um outro socioleto para se constituir Natildeo eacute somente em relaccedilatildeo ao falar normativo que se marca o falar das classes dominantes mas em relaccedilatildeo ao proacuteprio falar ldquopopularrdquo em uma identificaccedilatildeo dialeacutetica complexa Eacute preciso fazer uma interpretaccedilatildeo que passa pelo imaginaacuterio social como propotildee Eacute Mension-Rigau (1994 p 227)

Na verdade eles usam como contra-referecircncia um vocabulaacuterio parcialmente inventado ndash aquele que ouvem quando vatildeo ao mercado ou em pequenas lojas ndash que eacute apenas uma parte de seu universo exterior Seu discurso alimentado por uma visatildeo simplista da sociedade de certa forma constroacutei um mundo fantaacutestico ou desaparecido confundido com a faixa mais ldquopopularrdquo do povo ndash que tambeacutem era antigamente aquela de seus dependentes ndash dos quais eacute muito faacutecil para eles se destacarem

Eacute digno de nota que o aspecto natildeo eacute simeacutetrico o falar dito ldquopopularrdquo ou os vernaculares do lado dos dominantes ou das classes menos favorecidas natildeo constroem dessa maneira apoios identitaacuterios Eacute um fenocircmeno proacuteprio sustentar a hipoacutetese de um falar das classes dominantes

324 Interaccedilotildees conversacionais

Terminamos essa pequena amostragem pelos aspectos pragmaacuteticos Enquanto a conversacionalizaccedilatildeo analisada por N Fairclough pretende fazer desaparecer as marcas de hierarquia em particular nos apelativos as formas e foacutermulas de polidez satildeo mantidas nos meios aristocraacuteticos e na grande burguesia Os manuais de boas maneiras dos uacuteltimos vinte anos natildeo repercutem mais a conversacionalizaccedilatildeo e suas prescriccedilotildees natildeo podem mais ser assimiladas a um coacutedigo social ldquopadratildeordquo Uma esposa se ldquocategorizarrdquo se endereccedilando ao seu marido com pronomes de tratamento de segunda pessoa ou obrigando os seus filhos a utilizarem esses pronomes com os seus avocircs pode parecer imaturo Natildeo eacute ldquomenos comumrdquo escreveu P Daninos no livro Snobissimo (p 87) Se essa praacutetica eacute rarefeita ela existe ainda como evidenciam certas entrevistas de Eacute Mension-Rigau e minhas proacuteprias observaccedilotildees pessoais Da mesma forma a menccedilatildeo dos apelativos tiacutetulos e funccedilotildees agora aparece como marcaccedilotildees sociais natildeo mais como um modelo universal de polidez

ConclusatildeoNo final desse capiacutetulo gostaria de formular algumas conclusotildees provisoacuterias que satildeo

na verdade proposiccedilotildees para exploraccedilotildees futuras algumas delas discutidas nos capiacutetulos seguintes

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- A assimetria das anaacutelises sobre a questatildeo dos falares sociais O exame da literatura cientiacutefica e folk mostra uma assimetria notaacutevel entre os numerosos comentaacuterios espontacircneos sobre as classes dominantes e a quase inexistecircncia de anaacutelise linguiacutestica cientiacutefica sobre um falar das classes dominantes enquanto o falar dito ldquopopularrdquo eacute objeto de mais anaacutelises cientiacuteficas que de comentaacuterios folk

- O integracionismo As informaccedilotildees provenientes de corpora folk podem ser consideradas na anaacutelise linguiacutestica pois a folk linguiacutestica possui uma validade e pode ser integrada na linguiacutestica cientiacutefica O exame do corpus folk relativo agraves classes dominantes parece sustentar essa proposiccedilatildeo

- A entrada perceptiva na dimensatildeo social da liacutengua em particular a partir das teorias e meacutetodos da dialetologia perceptiva eacute capaz de modificar o olhar dos linguistas sobre seu objeto e por conseguinte o proacuteprio objeto85

85 Agradeccedilo a Franccediloise Gadet que me permitiu enriquecer minha reflexatildeo sobre a questatildeo do socioleto das classes dominantes e tambeacutem por me oferecer preciosas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Parte II

Aplicaccedilotildees e perspectivas

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LINGUIacuteSTICA POPULAR E ENSINO DE LIacuteNGUA CATEGORIAS EM COMUM86

mdash Diga-me Zidore se eacute francecircs por que tem de se preocupar nesse momento mdash Porque pode haver guerra senhorita Beacutecassine

mdash A guerra Com quem

mdash Com todos os Boches e Bochies87

mdash Ah faz Beacutecassine

[] Rapidamente ela sobe ateacute o quarto de Yvonne lembrando que ela tem um atlas sobre a mesa Olha por muito tempo os mapas a tabela de letras do alfabeto natildeo haacute Boches nem Bochie Entretanto Melle Yvonne lhe disse que todos os povos do mundo tecircm seus nomes marcados ali Entatildeo seu rosto se ilumina e ela corre para a sala Patrotildees e trabalhadores domeacutesticos estatildeo reunidos ali muito emocionados ldquoEacute uma guerra diz Bertrand que retorna do vilarejo exibindo o cartaz da mobilizaccedilatildeo Eu parto amanhatilderdquo

mdash Eu Eu vou me alistar grita Zidore

Madame de Grand-Air chora baixinho Sua dor entristece Beacutecassine mas ela a acalma Ela caminha ateacute a patroa e sussurra em seu ouvido ldquoMadame natildeo deve ser tatildeo ruim assim Talvez haja guerra mas como eacute com gente que natildeo existe dificilmente eacute um riscordquo (CAUMERY PINCHON 1915 p 32)

A personagem Beacutecassine nos expocircs aqui brevemente uma teoria popular sobre a referecircncia se as palavras natildeo existem entatildeo tambeacutem natildeo existem as coisas um princiacutepio derivado com toda a inocecircncia sem duacutevida por parte de nossa Bretatilde do naturalismo mais maciccedilo as palavras representam diretamente coisas elas contecircm a substacircncia das coisas

A questatildeo colocada por este tipo de teoria espontacircnea natildeo eacute tanto a da sua verdade mas na perspectiva que adotamos a de sua articulaccedilatildeo com uma teoria desenvolvida cientificamente numa palavra ldquomais eruditardquo ou ldquomenos popularrdquo como quiser 1915 eacute a Grande Guerra eacute claro mas tambeacutem eacute o momento em que a linguiacutestica moderna comeccedila a mostrar que a linguagem natildeo eacute uma nomenclatura e que natildeo haacute relaccedilatildeo direta entre o signo e o referente a palavra catildeo natildeo late e visivelmente na visatildeo de mundo de Beacutecassine a palavra Bochie tambeacutem natildeo

O desenvolvimento da ciecircncia cognitiva e depois da etnometodologia fez emergir esta questatildeo da ciecircncia espontacircnea dos sujeitos questatildeo natural para um campo que lida com o desenvolvimento do conhecimento das percepccedilotildees e das representaccedilotildees dos indiviacuteduos

86 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Linguistique populaire et enseignement de la langue des cateacutegories communes Le Franccedilais aujourdrsquohui 151 Paris AFEF-Armand Colin 2005 p 95-107 Traduccedilatildeo de Samuel Ponsoni (UEMG - Unidade Passos) e Paula Camila Mesti (UNESPARANPOLL)

87 NT No artigo de origem aparece Boches e Bochie satildeo aqui traduzidos como Alematildees e Alemanha respectivamente Cabe esclarecer que Boches se trata de um termo pejorativo para alematildees germacircnicos teutos e todas as outras designaccedilotildees gentiacutelicas desse grupo etnocultural

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Gostariacuteamos de explorar este problema no campo da liacutengua francesa fazendo uma pergunta simples as categorias espontacircneas dos alunos podem ser mobilizadas no ensino da liacutengua ou devem pelo contraacuterio ser desconstruiacutedas para dar lugar a categorias aprendidas

Depois de definir o que se denomina ldquolinguiacutestica popularrdquo e sublinhar seu interesse pelo campo do ensino-aprendizagem da liacutengua tentaremos responder a essa questatildeo atraveacutes de trecircs exemplos de categorias a palavra a flexatildeo verbal e o gecircnero do discurso

A linguiacutestica popularConforme jaacute enunciamos o termo linguiacutestica popular eacute o rastro de uma seacuterie de nomes

anglo-saxotildees baseados em folk (como psicologia folk ou como teoria folk por exemplo) em que folk eacute traduzido para o francecircs e para o portuguecircs como popular espontacircneo ou ingecircnuo Podemos falar tambeacutem de linguiacutestica de senso comum e igualmente a expressatildeo linguiacutestica de leigos cuja sinalizaccedilatildeo de L Rosier (2004 p 70) aponta para um sem-nuacutemero de casos na internet ldquoPodemos [] acrescentar o que chamamos de lsquoLinguiacutestica dos leigosrsquo particularmente visiacutevel na Internet em particular no contexto dos foacuteruns de discussatildeo []rdquo

Chamamos portanto de ldquopopularrdquo o saber espontacircneo de atores sobre o mundo (depositado em proveacuterbios ou ditados por exemplo) que se distingue do saber acadecircmico ou cientiacutefico como um saber-fazer que diferencia saber cientiacutefico do ldquosaber querdquo e do senso comum Este saber espontacircneo eacute constituiacutedo por saberes empiacutericos natildeo passiacuteveis de verificaccedilatildeo loacutegica (o saber espontacircneo natildeo eacute verdadeiro nem falso falamos entatildeo de ldquoconhecimento aproximativordquo) e de crenccedilas que constituem guias para accedilatildeo as lendas urbanas ou as influecircncias da lua no crescimento das plantas satildeo crenccedilas que surgem do saber espontacircneo

As praacuteticas linguiacutesticas espontacircneasDevemos falar aqui de praacuteticas linguiacutesticas e natildeo linguageiras o termo linguiacutestica indica

que haacute uma atividade reflexiva que pode levar a resultados ldquocientiacuteficosrdquo que advecircm da ciecircncia espontacircnea enquanto linguageiro simplesmente descreve os usos que os falantes fazem da liacutengua

A terminologia linguiacutestica integrou a distinccedilatildeo feita por A Culioli entre epilinguiacutestica que designa o saber espontacircneo e inconsciente sobre a liacutengua (ldquoatividade linguiacutestica inconscienterdquo nas palavras de A Culioli) de falantes e metalinguiacutestica que designa praacuteticas reflexivas conscientes e bastante racionalizadas ldquoO verdadeiro saber linguiacutestico eacute metalinguiacutestico ou seja representado construiacutedo e manipulado como tal com a ajuda de uma metalinguagemrdquo (AUROUX 1995 p 10) No entanto devemos distinguir no campo metalinguiacutestico o que vem de uma atividade espontacircnea natildeo especializada e natildeo formalizada sobre a liacutengua daquilo que vem da construccedilatildeo de um discurso cientiacutefico sobre a liacutengua J Rey-Debove (1978 p 22) propotildee falar de ldquometalinguagem atualrdquo para o primeiro caso e de ldquometalinguagem cientiacuteficadidaacuteticardquo para o segundo

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No modo didaacutetico-cientiacutefico a metalinguagem corresponde ao discurso do linguista (linguiacutestica) e agravequilo que ele aprende ensina de uma liacutengua ou se acha interessado nela como especialista Eacute natural ou parcialmente formalizado ou simbolizado ou mesmo totalmente axiomatizado e formalizado Jaacute o modo atual corresponde ao discurso do usuaacuterio de uma liacutengua discurso muitas vezes confundido com o enunciado apresentado ao mesmo tempo de uma consciecircncia metalinguiacutestica inferior em termos de conteuacutedo e expressatildeo e uma maior liberdade uma vez que os enunciados produzidos natildeo pertencem mais ao discurso cientiacutefico sobre a liacutengua

Obtemos assim uma distinccedilatildeo tripartida que aqui manteremos atividade epilinguiacutestica metalinguagem natural e metalinguagem formalizada

Eacute notaacutevel que a linguiacutestica popular seja pouquiacutessimo desenvolvida na Franccedila enquanto na cultura anglo-saxocircnica ela integra totalmente as ldquodisciplinas folkrdquo pertencentes ao campo cientiacutefico O tomo I do livro LrsquoHistoire des ideacutees linguistiques organizado por Sylvain Auroux inicia-se com um capiacutetulo de H E Brekle intitulado ldquoA linguiacutestica popularrdquo (volkslinguistik em alematildeo traduccedilatildeo do inglecircs folk linguistics) Ele explica que em linguiacutestica o saber espontacircneo dos falantes pode ser formulado em termos de naturalidade

De maneira provisoacuteria podemos dizer que o campo da linguiacutestica popular inclui todos os enunciados que podem ser qualificados como expressotildees naturais (ou seja que natildeo vecircm dos representantes da linguiacutestica como disciplina estabelecida) designando ou referindo-se a fenocircmenos linguiacutesticos ou operando no niacutevel da metacomunicaccedilatildeo A isso devem ser adicionados os enunciados em que as qualidades foneacuteticas semacircnticas etc satildeo usadas expliacutecita ou implicitamente como unidades de uma liacutengua para produzir resultados relevantes para a regulamentaccedilatildeo do comportamento social de um indiviacuteduo ou grupo social (BREKLE 1989 p 39)

Em filigranas H E Brekle define aqui dois tipos de praacuteticas linguiacutesticas populares

- descriccedilotildees ou teorizaccedilotildees metalinguiacutesticas por exemplo aquelas relacionadas agrave designaccedilatildeo (chamar um gato de gato ou chamar as coisas pelo que seus nomes sugerem) ou na hierarquia entre o escrito e o oral (contentar-se com palavras palavras verbais as palavras se dissipam falar como um livro) A pequena teoria da referecircncia de Beacutecassine se enquadra nessa categoria

- prescriccedilotildees comportamentais que recaem em um purismo na maioria das vezes sabemos que os ldquoamantes da bela linguagemrdquo tecircm uma lista proibida de palavras feias (adveacuterbios terminados em -mente termos excessivamente teacutecnicos etc) interditas de se usar sob pena de se passar por um vulgarismo da liacutengua Tem-se entatildeo a imagem da norma da liacutengua como predominante88 Trata-se assim dos vereditos sobre a liacutengua ditos vs natildeo ditos isso se diz vs isso natildeo se diz Dessa maneira o purismo entra em uma verdadeira ldquoeconomia das trocas linguiacutesticasrdquo como sublinha L Rosier (2004 p 69)

88 Sobre as imagens dominantes da liacutengua no discurso escolar ver Paveau (1998)

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Ela eacute caracterizada por uma forte axiologizaccedilatildeo performativa (o que se diz o que natildeo se diz) que atende ao bom uso e que pretende respeitar uma economia estrita de trocas linguiacutesticas em que o falante eacute avaliado de acordo com seu domiacutenio da liacutengua sob o acircngulo da riqueza lexical e correccedilatildeo gramatical

Adicionaremos uma terceira categoria da praacutetica linguiacutestica popular as intervenccedilotildees sobre a liacutengua Sabemos que a maioria dos erros dos falantes em particular das crianccedilas natildeo o satildeo realmente em uma oacutetica linguiacutestica O tiacutetulo de uma obra de D Leeman Existem erros em francecircs89 (LEEMAN 1994) eacute emblemaacutetico dessa posiccedilatildeo que segue a tradiccedilatildeo de A Gramaacutetica das Falhas90 de H Frei (1928) nesta perspectiva aller au coiffeur e eacutemotionner91 natildeo satildeo erros mas sim intervenccedilotildees regularizadoras sobre a liacutengua Os falantes racionalizam sua liacutengua a arrumam e a organizam como um ambiente onde a ordem e a harmonia satildeo necessaacuterias

Para recapitular dissemos que a linguiacutestica popular reuacutene trecircs tipos de praacuteticas linguiacutesticas descritivas (descrevemos a atividade da linguagem) normativas (prescrevemos comportamentos linguageiros) e intervencionistas (intervimos nos usos da liacutengua)

A linguiacutestica popular eacute uma linguiacutesticaPodemos dar duas explicaccedilotildees para a ausecircncia virtual da linguiacutestica popular como campo

de pesquisa na Franccedila por um lado a veneraccedilatildeo francesa dos saberes ldquosegurosrdquo (um campo das ditas ciecircncias duras ou exatas) e o desprezo pelos saberes aproximativos (domiacutenios ditos de opiniatildeo comum ou relativizada) herdado das concepccedilotildees platocircnicas e da tradiccedilatildeo cartesiana por outro lado a ocupaccedilatildeo do que poderia ser o campo da linguiacutestica popular pelo estudo dos discursos puristas das manifestaccedilotildees da norma e das consequecircncias psicossociais das concepccedilotildees normativas (por exemplo a inseguranccedila linguiacutestica) fenocircmenos esses considerados na Franccedila como pertencente agrave sociolinguiacutestica Eacute o que J-C Beacco (2004 p 109) coordenador de uma ediccedilatildeo da revista Langages diz sobre a questatildeo das ldquorepresentaccedilotildees metalinguiacutesticas ordinaacuteriasrdquo em relaccedilatildeo aos gecircneros discursivos

[] pode-se examinar a noccedilatildeo de gecircnero discursivo pelo que originalmente eacute uma categorizaccedilatildeo ordinaacuteria intrinsecamente imprecisa mas que pode ser objetivada da comunicaccedilatildeo verbal Como tal eacute baseada em vaacuterios pontos de vista teoacutericos

1) da ldquolinguiacutestica popularrdquo (ou folk linguistics) campo da sociolinguiacutestica gecircnero discursivo eacute uma forma de representaccedilatildeo metalinguiacutestica ordinaacuteria da comunicaccedilatildeo entrando no saber comum []

89 N T o tiacutetulo da obra em liacutengua francesa Les fautes de franccedilais existent-elles

90 NT o tiacutetulo da obra em liacutengua francesa La Grammaire des Faults

91 NT por natildeo encontrar correlatos precisos na liacutengua portuguesa deixamos os exemplos em francecircs Cabe-nos entatildeo explicar que a maneira adequada de se dizer ldquoaller au coiffeurrdquo eacute ldquoaller chez le coiffeurrdquo cuja traduccedilatildeo eacute ldquoir ao cabeleireirordquo No outro exemplo temos ldquoeacutemotionnerrdquo em vez de ldquoenthousiasmerrdquo para o verbo ldquoemocionarrdquo Nesse caso explicamos que natildeo existe a palavra ldquoeacutemotionnerrdquo em francecircs apesar de existirem ldquoeacutemotionrdquo (emoccedilatildeo) e ldquoeacutemotionnelrdquo (emocional) A autora usou um terceiro exemplo ldquoapregraves qursquoil aitrdquo para o qual uma traduccedilatildeo mais adequada parece ser ldquodepois que ele temrdquo

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Nossa posiccedilatildeo eacute outra consideramos que a linguiacutestica popular deve constituir um campo da linguiacutestica porque diz respeito natildeo apenas agraves praacuteticas sociais linguageiras (no sentido da sociolinguiacutestica) mas igualmente aos procedimentos de ensino-aprendizagem de liacutengua (no sentido da didaacutetica de liacutengua e psicolinguiacutestica)92

Na verdade a linguiacutestica popular natildeo deve ser reduzida ao seu componente aproximativo descritivo ou simplesmente luacutedico A questatildeo mais interessante na folk linguistics eacute sua validade como teoria Haacute muitos trabalhos desse tipo em folk psychology (FISETTE POIRIER 2002) o que oferece vaacuterias respostas a essa pergunta O filoacutesofo D Dennett (1990) por exemplo pensa que na maioria das vezes a psicologia popular funciona e tem uma verdade praacutetica E as teorias populares da linguagem L Rosier faz uma proposta interessante a esse respeito em um trabalho que ela denomina de ldquodicionaacuterios de criacuteticas irocircnicasrdquo (os de P Merle por exemplo que apontam tiques de linguagem e de modos)

Esses ldquodicionaacuteriosrdquo tecircm a particularidade de apresentar os tipos sociais por meio de suas especificidades linguiacutesticas realizando reconhecidamente de forma caricatural um dos projetos da anaacutelise do discurso o viacutenculo entre classes sociais e as praacuteticas discursivas Eles se ldquorelacionamrdquo por estigmatizaccedilatildeo fictiacutecia e os termos e as expressotildees devem figurar como citaccedilotildees ou seja ao lecirc-los deve-se dizer a si mesmo eacute assim mesmo que ldquoelesrdquo falam (eles designa os esnobes os jornalistas os poliacuteticos os jovens os velhos os de grande valor de acordo com as subcategorizaccedilotildees sociais explicitadas pelos proacuteprios autores) (ROSIER 2003 p 63-64)

Obviamente pensamos no M Jourdain de Moliegravere em sua prosa ldquosem o saberrdquo e em muitas outras personagens literaacuterias que sem duacutevida se beneficiariam em serem analisadas em sala de aula pelo prisma sociocriacutetico dessa linguiacutestica espontacircnea Eacute portanto a questatildeo da validade da descriccedilatildeo popular que se coloca aqui do ponto de vista de uma anaacutelise do funcionamento social da linguagem

A crianccedila gramaacuteticaMas a linguiacutestica popular tambeacutem eacute e sobretudo de grande interesse no ensino-aprendizagem

da liacutengua mas com outro nome a competecircncia metalinguiacutestica

As atividades metalinguiacutesticas O estudo empiacuterico pioneiro de L Gleitman et al em 1972 mostrou que crianccedilas de dois anos

jaacute apresentam reaccedilotildees metalinguiacutesticas rudimentares satildeo pequenos gramaacuteticos O trabalho sobre o ldquometa-rdquo (comentaacuterios e manipulaccedilotildees metagraacuteficas metagramaticais metalexicais etc) tem sido amplamente desenvolvido nas pesquisas93 A atividade metalinguiacutestica do aluno

92 Eacute uma posiccedilatildeo que concorda entre outras com as de M Yaguello (1981) e de H E Brekle (1989) Mas eacute difiacutecil encontrar ao menos na Franccedila trabalhos que se relacionam diretamente com as praacuteticas linguiacutesticas espontacircneas dos locutores fora do acircmbito da aprendizagem

93 Veja alguns elementos na bibliografia com um lanccedilamento em grupo em 1994-1995 o no 9 da Repegraveres o coloacutequio da DFLM sobre metalinguagens o livro de D Leeman sobre as falhas

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eacute uma atividade de aprendizagem que ocorre na aula o que o faz produzir comentaacuterios sobre liacutengua discurso comunicaccedilatildeo e o faz utilizar procedimentos de classificaccedilatildeo nomenclatura ou argumentaccedilatildeo M Brigaudiot (1994 p 92-93) define o ldquosurpreendente comportamento reflexivordquo de jovens gramaacuteticos da seguinte forma

Definimos atividade metalinguiacutestica como o fato de um aluno se deparar com um problema linguiacutestico de entrar em um questionamento em busca de pistas de fazer provas de verificar Dizer que o problema eacute de ordem linguiacutestica eacute considerar que os objetos sobre os quais se relaciona satildeo de ordem linguiacutestica que se relacionam ao coacutedigo agrave frase ao texto ou ao discurso agrave leitura ao escrever

G Ducancel (1994) mostra que os comentaacuterios metalinguiacutesticos ligados agrave coesatildeo textual bem como aos conhecimentos metaprocessuais surgem a partir do primeiro ciclo escolar em duas formas principais

- as formulaccedilotildees e reformulaccedilotildees ldquosecasrdquo ou seja sem comentaacuterios

- a convocaccedilatildeo de uma metalinguagem para esclarecer analisar fazer comentaacuterios e dar explicaccedilotildees

Poderiacuteamos citar tambeacutem a obra de C Fabre (1990) que no campo da escrita mostrou a importacircncia da atividade metalinguiacutestica a partir do estudo dos rascunhos escolares para ela esse tal procedimento se trata de uma verdadeira entrada na escrita o que natildeo eacute pouca coisa

A partir daiacute pode ser estabelecido um contrato didaacutetico entre o professor e os alunos para a aprendizagem metalinguiacutestica No entanto uma distinccedilatildeo baacutesica deve ser feita entre atividade metalinguiacutestica espontacircnea e atividade metalinguiacutestica ldquosolicitadardquo para aprendizagem (DELAMOTTE-LEGRAND 1995) Em princiacutepio porque na praacutetica seria obviamente muito difiacutecil distinguir entre reflexotildees ldquonaturaisrdquo e ldquoartificiaisrdquo em crianccedilas

O ldquometa-rdquo reservado agraves crianccedilasEntretanto levar em consideraccedilatildeo a competecircncia metalinguiacutestica nas atividades de sala de

aula parece estar confinado ao ensino primaacuterio94 Com efeito natildeo se tem a inspiraccedilatildeo dessas praacuteticas pedagoacutegicas para professores nem as indicaccedilotildees dos programas oficiais do coleacutegio de ensino fundamental e do ensino meacutedio Nos uacuteltimos programas da faculdade apenas o ldquoo domiacutenio impliacutecito da gramaacuteticardquo aparece nas especificaccedilotildees para as praacuteticas linguageiras espontacircneas mas pode-se perguntar se a expressatildeo natildeo se deve mais agrave competecircncia linguiacutestica de um Chomsky do que agrave competecircncia metalinguiacutestica destacada pelo trabalho sobre a reflexividade das atividades linguageiras dos alunos

Sempre abordado no acircmbito da impregnaccedilatildeo das estruturas do francecircs e vinculado a diversas atividades orais e escritas a aprendizagem das ferramentas da liacutengua eacute modesta

94 Embora M Brigaudiot destaque em 1994 que as praacuteticas de ensino relacionadas agraves atividades metalinguiacutesticas das crianccedilas natildeo fazem parte da tradiccedilatildeo das escolas primaacuterias francesas

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no 6o Com base no domiacutenio impliacutecito da gramaacutetica o professor vai esclarecendo ao longo do ano alguns elementos essenciais da metalinguagem gramatical (PROGRAMA DA SEXTA SEacuteRIE 1996 p 18)

Eacute como se a competecircncia metalinguiacutestica pudesse funcionar apenas para a aquisiccedilatildeo e para a aprendizagem mas perdesse a importacircncia para aprendizagens relacionadas ao uso da liacutengua ao uso do discurso e agraves atividades de reflexatildeo criaccedilatildeo de interpretaccedilatildeo de invenccedilatildeo Deixemos o ldquometa-rdquo espontacircneo do ensino fundamental e do ensino meacutedio95 e natildeo falemos da universidade onde a categoria do popular espontacircneo ingecircnuo qualquer que seja o seu nome eacute firmemente convidada a ficar agrave porta da ciecircncia legiacutetima por exemplo qualquer reuniatildeo de respeito sobre o Curso de Linguiacutestica Geral de Saussure passaraacute por uma destruiccedilatildeo adequada da imagem da liacutengua como nomenclatura poreacutem ela eacute massivamente difundida entre os alunos servindo-lhes de saber-fazer para seu comportamento social

Sobre esse ponto a linguiacutestica se priva de ser uma poderosa alavanca para seu ensino e portanto para sua difusatildeo e manutenccedilatildeo nas ciecircncias humanas e sociais E o ensino parece ignorar um importante campo de pesquisa internacional nos uacuteltimos dez anos o das emoccedilotildees A pragmaacutetica as ciecircncias cognitivas em particular a psicologia e a neurologia mas tambeacutem a ergonomia a filosofia as ciecircncias da informaccedilatildeo e da comunicaccedilatildeo enfim todas elas realizaram pesquisas em torno do papel das emoccedilotildees no desenvolvimento e no comportamento do indiviacuteduo A psicologia cognitiva tem sido capaz de mostrar por exemplo em que medida o funcionamento da memoacuteria eacute governado pelas emoccedilotildees o que sem duacutevida tem alguma importacircncia na aquisiccedilatildeo e aprendizagem do francecircs

Algumas categorias suscetiacuteveis a um tratamento da linguiacutestica popular

A palavra uma categoria um pouco imprecisa mas operacional

A definiccedilatildeo da palavra palavra eacute um claacutessico da distinccedilatildeo entre o saber erudito e o saber popular em linguiacutestica Muito abrangente muito vaga polissecircmica e incapaz de distinguir certas segmentaccedilotildees palavra eacute geralmente proscrita por linguistas em favor de uma unidade lexical ou de acordo com o contexto de um vocaacutebulo considerado mais claro e monossecircmico Mas acontece que palavra eacute a palavra mais oacutebvia para todos os falantes independentemente da idade para designar esta unidade que eacute uma ilha graacutefica e semacircntica e suporte de representaccedilotildees mais difundidas da liacutengua para a maioria das pessoas a liacutengua estaacute associada ao leacutexico (a esse respeito ver Paveau (2000) em trabalho sobre a riqueza lexical) Isso explica porque certos linguistas levando em consideraccedilatildeo as praacuteticas espontacircneas dos falantes ou apegados a uma escrita legiacutevel de sua disciplina usam a palavra o lexicoacutelogo B Habert por exemplo chama palavra em vaacuterias palavras o que outros chamam de unidades fraseoloacutegicas ou locuccedilotildees fixas ou congeladas M Tournier sempre usou palavra no laboratoacuterio lexicomeacutetrico que dirigiu em Saint-Cloud bem como no tiacutetulo da revista que fundou Palavras as linguagens da poliacutetica96

95 NT Consultar o artigo de S Obadia sobre a categoria do registro como antiacutedoto para uma leitura de textos a partir das ldquoprimeiras reaccedilotildeesrdquo dos alunos Disponiacutevel em httpswwwcairninforevue-le-francais-aujourd-hui-2005-4-page-69htm

96 NT Em francecircs Mots les langages du politique Para saber mais sobre essa revista cientiacutefica acesse httpsjournalsopeneditionorgmots Acesso em 27 set 2020

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A terminologia gramatical de 1997 tambeacutem usa este termo na lista de noccedilotildees gerais (palavras e classes de palavras p 7) tal como nos termos sob o tiacutetulo ldquoleacutexico e semacircnticardquo (histoacuteria e construccedilatildeo de palavras famiacutelias de palavras palavras compostas palavras derivadas paacuteginas 29 e 30)

O termo palavra como ferramenta de aprendizagem ou anaacutelise eacute interessante para questionar a relevacircncia das categorias populares e acadecircmicas Os dados satildeo os seguintes

- Apesar de sua imprecisa definiccedilatildeo enfatizada em toda parte o termo palavra eacute amplamente utilizado em programas gramaacuteticas livros didaacuteticos por professores e alunos especialmente nos ensinos primaacuterio e fundamental (niacuteveis para os quais submetemos estudos e pesquisas o que natildeo eacute o caso do ensino meacutedio e menos ainda da universidade)

- A imprecisatildeo da definiccedilatildeo em questatildeo parece ser parcialmente reduzida pela elaboraccedilatildeo de um paradigma recentemente estudado por Sonia Branca e Corinne Gomila (2004) em relaccedilatildeo CP97 o qual fala de ldquometaliacutengua de transiccedilatildeordquo ou ldquotermos de transiccedilatildeordquo pedaccedilos de palavras pequenas palavras pequenas palavras iniciais outras palavras (sinocircnimos) elas indicam a funccedilatildeo de resoluccedilatildeo desses termos em particular pequenas palavras

A categoria abrangente de pequenas palavras permite que vocecirc adie a terminologia abundante para mais tarde Tambeacutem eacute usado para ldquoresolverrdquo outros problemas A unidade prevista pode portanto ser considerada pequena em comparaccedilatildeo com um todo abrangente (BRANCA GOMILA 2004 p 120)

Geralmente elas satildeo entretanto criacuteticas do uso dessa metaliacutengua de transiccedilatildeo agrave qual fazem as criacuteticas tradicionalmente dirigidas agrave categoria da palavra

Nosso ponto de vista natildeo eacute prescritivo De qualquer forma natildeo queremos denunciar a subdeterminaccedilatildeo desses termos em grande parte invisiacuteveis para aqueles que os usam ad hoc No entanto tais termos polissecircmicos encorajam um entendimento global muito vago o que dificulta a estabilizaccedilatildeo de algumas propriedades (BRANCA GOMILA 2004 p 120)

Muitas vezes encontramos a mesma posiccedilatildeo sobre a questatildeo na literatura dedicada agrave palavra e ao seu ensino-aprendizagem no coletivo liderado por M-J Beacuteguelin em 2000 a palavra eacute qualificada como uma noccedilatildeo imprecisa (p 43) poreacutem lemos nas filigranas do capiacutetulo dedicado agrave noccedilatildeo de palavra que ela eacute uma categoria popular devido agrave imprecisatildeo e agrave indeterminaccedilatildeo que carrega mas que eacute usada no ensino o que acaba servindo como soluccedilatildeo para descriccedilotildees difiacuteceis e definiccedilotildees complexas

Eacute uma pena que a eficaacutecia das categorias do senso comum natildeo seja mais profundamente questionada neste trabalho devido a uma abertura sobre a histoacuteria e sobre a epistemologia da ciecircncia Na verdade sabemos que eacute a linguagem do senso comum que permite que os

97 NT CP refere-se a um curso preparatoacuterio dos niacuteveis e das preparaccedilotildees da Eacutecole Eacuteleacutementaire francesa Le cycle 2 ou cycle des apprentissages fondamentaux comprend le cours preacuteparatoire (CP) O ciclo 2 ou ciclo das aprendizagens fundamentais compreende o curso preparatoacuterio (CP) Para saber mais acesse httpswwweducationgouvfrl-ecole-elementaire-9668 Acesso em 27 set 2020

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conhecimentos sejam fixados Sobre isso ainda E Nagel (1961) defende por exemplo a ideia de que a imprecisatildeo da liacutengua do senso comum permite que as crenccedilas persistam (por causa de ou graccedilas agrave dificuldade de controle experimental) quando o destino das teorias eacute morrer precocemente Obviamente natildeo se trata de aplicar este programa ao peacute da letra e sim de medir a eficaacutecia das praacuteticas linguiacutesticas espontacircneas em comparaccedilatildeo com as baseadas em meacutetodos cientiacuteficos

As conjugaccedilotildees fantasiosas erros de liacutengua ou soluccedilatildeo praacuteticaO erro de conjugaccedilatildeo eacute um estereoacutetipo do discurso sobre a liacutengua na Franccedila um reservatoacuterio

inesgotaacutevel de trocadilhos (Cafeacute bouillu cafeacute foutu)98 e um instrumento eficaz de discriminaccedilatildeo cultural99 Essa categoria morfoloacutegica da desinecircncia (ou terminaccedilatildeo em uma traduccedilatildeo mais tradicional e mais ldquoingenuamenterdquo descritiva) constitui-se de uma espeacutecie de lugar normativo que cristaliza a paixatildeo francesa pela liacutengua

Todos noacutes temos nosso repertoacuterio de erros de conjugaccedilatildeo desde os mais infantis (je suitais disse Ceacutesar aos quatro anos il disa disse um aluno citado por D Leeman100) aos mais literaacuterios como mostram M Savelli et al (2002) especificando que um certo nuacutemero de erros de passado simples aparecem entre os melhores autores srsquoenfuyegraverent dissolva couris mouresis eacutetranglis aperceva demandis vivegraverent101 Que essas formas satildeo defeituosas eacute indiscutiacutevel mas o que natildeo se pode fazer eacute uma interpretaccedilatildeo axioloacutegica delas e culpar os falantes por sua ignoracircncia por inferioridade linguiacutestica ou ainda pior por uma inferioridade social e impor as formas ortodoxas sem outra forma de processo

Embora os erros em francecircs existam eles tecircm uma racionalidade que o simples bom senso basta para descobrir do ponto de vista funcional natildeo haacute razatildeo para que se diga nada Entatildeo em je suitais e il disa haacute algo sobre o sistema de conjugaccedilatildeo e principalmente sobre o comportamento linguiacutestico dos desordeiros de conjugaccedilatildeo tratam-se de intervenccedilotildees sobre a liacutengua a terceira das praacuteticas linguiacutesticas populares identificadas alhures destinadas a regularizar um sistema que agraves vezes eacute muito erraacutetico O que se segue eacute muito bem explicado pela analogia com outros verbos frequentemente problemaacuteticos cuja base imperfeita termina em [t] je mens je mentais je pars je partais je suis je suitais102 (CQFD) Quanto a il disa deixemos D Leeman explicar a gecircnese da falha devido a um fenocircmeno de hipercorreccedilatildeo103

98 NT Mais uma vez optamos por usar os exemplos originais em liacutengua francesa porque a traduccedilatildeo natildeo seria suficientemente precisa para exemplificar as situaccedilotildees descritas pela autora Neste caso ldquocafeacute bouillurdquo estaacute sendo usado no lugar de ldquocafeacute bouillirdquo (cafeacute fervido) e ldquocafeacute fouturdquo no lugar de ldquocafeacute fichurdquo (cafeacute maldito) Ressaltamos que esses mesmos fenocircmenos de falha na terminaccedilatildeo de verbos irregulares e hipercorreccedilatildeo podem tambeacutem ser encontrados em liacutengua portuguesa

99 NT ldquoNatildeo diga sobretudo Eles tecircm que me acreditar ou Eles tecircm que me verrdquo (MORHANGE-BEacuteGUEacute 1995 p 12) No original Il faut qursquoils me croivent e Il faut qursquoils me voyent

100 NT Je suitais no lugar de je suis (eu sou) e il disa inveacutes de il dit (ele disse)

101 srsquoenfuyegraverent (je me suis enfui = eu fugi) dissolva (ce dissous = isto dissolveu) couris (jrsquoai couru = eu corri) mouresis (je suis mort = eu morri) eacutetranglis (jrsquoai eacutetrangle = eu estrangulei) aperceva (jrsquoai realize = eu percebi) demandis (jrsquoai demandeacute = eu perguntei) vivegraverent (ils veacutecurent = eles viveram)

102 NT Para que seja possiacutevel a comparaccedilatildeo trazemos aqui a traduccedilatildeo dos pares de verbos je mens (eu minto) je mentais (eu menti) je pars (eu saio) je partais (eu saiacute) je suis (eu sou) je suitais (natildeo existe deveria ser jrsquoeacutetais)

103 A hipercorreccedilatildeo eacute uma ldquobusca de atitude social de prestiacutegiordquo marcada pelo ldquoexcesso na aplicaccedilatildeo de uma regrardquo (GADET 2003 p 125) e que implica por parte do falante que ele estaacute ciente de uma caracteriacutestica de sua liacutengua (frequentemente foneacutetica) percebida de forma positiva socialmente e igualmente percebida em relaccedilatildeo a outras de forma negativa pela comunidade linguiacutestica na qual ele estaacute inserido A hipercorreccedilatildeo eacute entatildeo uma reconstruccedilatildeo defeituosa de uma forma de aparecircncia correta

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A forma il dit eacute comum no presente e no passado simples daiacute o constrangimento que pode suscitar uma histoacuteria como ldquoIl prit son manteau se coiffa drsquoun beacuteret et se preacutecipita vers la porte Avant de sortir il ditrdquo104 O revisor natildeo vai acreditar que estamos usando um presente incorretamente O aluno que escreve il disa pode sentir a necessidade de empregar uma forma claramente marcada para compensar a ambiguidade na liacutengua (LEEMAN-BOUIX 1994 p 125)

Poderiacuteamos multiplicar os exemplos e sua explicaccedilatildeo racional cujas anaacutelises podem ser encontradas em Meleuc e Fauchart (1999) e David e Laborde-Milaa (2002) por exemplo

Lembremos que este tipo de intervenccedilatildeo sobre uma categoria morfoloacutegica aparentemente muito ldquocientiacuteficardquo estabelecida (nada mais semelhante de fato ao conhecimento ldquodurordquo das ciecircncias exatas do que as tabelas de conjugaccedilatildeo105 constitui uma tentativa espontacircnea de regularizaccedilatildeo do sistema o falante entatildeo adota um comportamento linguiacutestico que lhe permite evitar o embaraccedilo psicoloacutegico e o esforccedilo cognitivo da irregularidade e ao mesmo tempo facilita seu registro de memoacuteria porque a memoacuteria semacircntica estaacute aqui diretamente relacionada e essas intervenccedilotildees espontacircneas devem ser consideradas como tentativas de gerenciamento da memoacuteria Por isso levar em consideraccedilatildeo as operaccedilotildees linguiacutesticas espontacircneas dos alunos na aprendizagem de liacutenguas eacute de certo interesse desde que os professores recebam uma formaccedilatildeo adequada ldquoAs anaacutelises [dos dados escritos e orais] e as hipoacuteteses evocadas nas regularizaccedilotildees poderiam servir de reflexatildeo para um ensino no qual seria sem duacutevida necessaacuterio repensar o que eacute regra e o que eacute memoacuteriardquo (SAVELLI et al 2002 p 47)

O gecircnero de discurso uma categorizaccedilatildeo impossiacutevelSabemos que o conceito de gecircnero estaacute muito presente nos uacuteltimos curriacuteculos das

faculdades e do ensino meacutedio e portanto nos livros didaacuteticos e nas atividades de ensino Isso ocorre porque a categoria de gecircnero eacute antiga e haacute muito tempo teorizada e debatida eacute tambeacutem porque as ciecircncias da linguagem se apoderaram da noccedilatildeo haacute cerca de quinze anos produzindo muitas reflexotildees sobre os modos de categorizaccedilatildeo de textos e discursos fenocircmenos cujos rastros podem ser percebidos nos programas que se baseiam na articulaccedilatildeo entre gecircneros de texto e formas de discurso106 Precisamente o gecircnero de texto se refere antes

104 NT Para mantermos os exemplos em francecircs trazemos nessa nota a traduccedilatildeo ldquoPegou o casaco colocou uma boina e correu para a porta Antes de sair ele dissehelliprdquo

105 Serge Meleuc (2002 p 49) oferece uma interpretaccedilatildeo da tabela de conjugaccedilatildeo para a aprendizagem ldquo[] o que eacute apenas uma forma de apresentaccedilatildeo tende a transbordar seu espaccedilo legiacutetimo e a se transformar em uma espeacutecie de modelo obrigatoacuterio da proacutepria praacutetica de ensino-aprendizagem do verbo rdquo

106 Acompanhamento da aula 6 (1996) ldquoA abordagem dos gecircneros textuais estaacute vinculada agraves formas de discurso os gecircneros satildeo realidades histoacutericas e culturais que codificam as praacuteticas discursivas Se a noccedilatildeo eacute complexa e muitas vezes difusa o gecircnero eacute facilmente identificaacutevel pela presenccedila dos dominantes discursivos o romance o conto a novela por exemplo satildeo caracterizados pela narrativa dominante (possivelmente com importantes elementos de descriccedilatildeo) Portanto eacute loacutegico associar os primeiros elementos de seu estudo ao das formas de discurso Natildeo podemos limitar a questatildeo dos gecircneros a dos gecircneros literaacuterios aleacutem desses coacutedigos particulares eles governam toda sorte de tipos de textos A carta eacute um gecircnero literaacuterio mas eacute tambeacutem uma forma de produccedilatildeo textual da vida cotidiana O diaacutelogo eacute um gecircnero ao mesmo tempo literaacuterio e algo que natildeo poderia ser mais banal a cada dia A histoacuteria eacute romacircntica mas tambeacutem eacute notiacutecia do tipo fait-divers etc Os gecircneros satildeo portanto descobertos pelos alunos e analisados a partir de toda sorte de textos de todos os gecircneros antigos e contemporacircneos em conexatildeo com as formas discursivas estudadas Temos portanto a preocupaccedilatildeo durante os estudos universitaacuterios de perceber claramente as semelhanccedilas e diferenccedilas entre os gecircneros em geral e os gecircneros literaacuterios em particular

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agrave categorizaccedilatildeo dos gecircneros literaacuterios (sem se limitar a isso) e forma de discurso se refere ao que a gramaacutetica do texto chamou de tipos ou protoacutetipos (narraccedilatildeo descriccedilatildeo explicaccedilatildeo etc) e ao que Mikhail Bakhtin iniciou em 1929 (em Marxismo e Filosofia da Linguagem) com o nome de gecircnero do discurso Posteriormente esse autor nos mostra em Esteacutetica da Criaccedilatildeo Verbal (1979) que os falantes possuem um repertoacuterio espontacircneo de gecircneros desenvolvidos em interaccedilotildees orais e denominados ldquogecircneros primaacuteriosrdquo ou ldquotipos elementaresrdquo Essas satildeo formas estaacuteveis107 que se reconfiguram e se combinam nos gecircneros de discurso conhecidos como ldquogecircneros secundaacuteriosrdquo ou ldquotipos secundaacuteriosrdquo presentes nas produccedilotildees construiacutedas dos falantes por exemplo em textos escritos em particular os textos literaacuterios

Isso significa que a categorizaccedilatildeo de gecircnero eacute uma atividade espontacircnea que pode ser tratada pela linguiacutestica popular Com efeito a simples observaccedilatildeo das classificaccedilotildees espontacircneas dos falantes verdadeira praacutetica cultural e social mostra que eles participam ativamente das versotildees do mundo construiacutedas pelo discurso Citemos por exemplo os gecircneros de cinema que participam da identidade dos filmes (talvez mais do que o gecircnero do discurso participa da identidade das produccedilotildees verbais) e que ao influenciar a escolha dos espectadores cumprem verdadeiramente uma funccedilatildeo de organizaccedilatildeo de mundo como aponta C Kerbrat-Orecchioni (2003 on-line)

Classificamos os textos mas tambeacutem os filmes (Lyon-Poche admite por exemplo as seguintes categorias ldquocomeacutediardquo ldquocomeacutedia dramaacuteticardquo ldquocomeacutedia de accedilatildeordquo ldquocomeacutedia policialrdquo ldquothrillerrdquo ldquopsicodeacutelicordquo ldquoaventurardquo ldquosuspenserdquo ldquodramardquo ldquodrama psiacutequicordquo ldquoaventurardquo ldquolendardquo ldquocrocircnicardquo ldquoguerrardquo ldquodocumentaacuteriordquo ldquoretratordquo ldquoeroacuteticordquo ldquofantaacutesticordquo ldquoterrorrdquo ldquoficccedilatildeo cientiacuteficardquo ldquocartoonrdquo etc) Poreacutem se a classificaccedilatildeo do gecircnero tem uma vida dura eacute porque deve ter uma certa relevacircncia para os usuaacuterios dessas revistas e devem desempenhar um papel mais ou menos determinante na escolha do filme a que se refere e que estatildeo se preparando para ver

Em conclusatildeo parece-nos portanto razoaacutevel pleitear com vistas a uma efetiva aprendizagem dos gecircneros do discurso (ou gecircneros de textos e formas de discurso de acordo com os programas) uma abordagem relativa ao que J-C Beacco (2004 p 111) denomina uma ldquociecircncia selvagemrdquo da linguagem

Os gecircneros discursivos constituem a forma imediata em que a liacutengua eacute dominada pelos falantes eles satildeo capazes de usaacute-los e identificaacute-los Para os falantes o proacuteprio material discursivo eacute um objeto de referecircncia Essa capacidade de os falantes categorizarem o discurso decorre de uma elaboraccedilatildeo metalinguiacutestica comum da qual os uacutenicos elementos emergentes satildeo os nomes dos gecircneros Todos os nomes de gecircneros natildeo procedem dessa atividade ordinaacuteria de categorizaccedilatildeo mas a noccedilatildeo de gecircnero do discurso parece pertencer a essa atividade classificatoacuteria antes de qualquer classificaccedilatildeo cientiacutefica Dessa ldquociecircncia selvagemrdquo da linguagem a temos como prova de que a noccedilatildeo de gecircnero eacute desenvolvida e ativa desde o alvorecer da reflexatildeo linguiacutestica

107 NT No original ldquoce sont des formes stablesrdquo

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A LIacuteNGUA SEM CLASSES DA GRAMAacuteTICA ESCOLAR108

Sabemos que uma das especificidades da Franccedila na sua relaccedilatildeo com a liacutengua eacute o sentimento de unidade a liacutengua francesa una e indivisiacutevel como a Naccedilatildeo ndash eis uma representaccedilatildeo que parece resistir a todas as misturas a todas as multiculturalidades e a todos os cruzamentos raciais e no niacutevel estritamente linguiacutestico a todas as variaccedilotildees e as mudanccedilas O francecircs padratildeo ou a representaccedilatildeo que dele se constroacutei eacute na verdade a base de todo o ensino do maternal agrave universidade mas tambeacutem da maior parte dos trabalhos dos pesquisadores em linguiacutestica francesa Sozinho - ou mais ou menos sozinho - o campo da sociolinguiacutestica enfrenta a difiacutecil questatildeo da variaccedilatildeo difiacutecil do ponto de vista metodoloacutegico (coleta de dados identificaccedilatildeo das variantes) e do ponto de vista cientiacutefico (como dar conta sinteticamente do funcionamento do sistema da liacutengua a partir de dados heterogecircneos)

Esta representaccedilatildeo unitaacuteria tem obviamente uma funccedilatildeo social importante que natildeo deve ser questionada por razotildees praacuteticas e tambeacutem didaacuteticas sociais e ateacute ideoloacutegicas eacute realmente o francecircs padratildeo que deve ser ensinado na escola Mas seraacute que isso implica que nada deve ser dito sobre a variaccedilatildeo social em particular e que deve ser silenciado o fato de que na liacutengua como em outras situaccedilotildees existem fenocircmenos de classe Que existe um francecircs popular e um francecircs das classes dominantes Que as redes sociais (MILROY 1987 GADET 2007) os grupos e as comunidades que cruzam as classes de maneira complexa sem apagaacute-las tambeacutem se definem por suas formas de falar fortemente marcadas por determinismos sociais

Eacute esta questatildeo da variaccedilatildeo social no sentido mais classista do termo109 que gostaria de abordar aqui comparando as gramaacuteticas escolares com base nos saberes linguiacutesticos chamados ldquoacadecircmicosrdquo e nos saberes da gramaacutetica espontacircnea ou gramaacutetica popular (folk gramar como dizem os anglo-saxotildees) que adveacutem da linguiacutestica popular (folk linguistics) altamente desenvolvida nos Estados Unidos (BREKLE 1989 PRESTON NIEDZIELSKI 2000) mas apenas em sua infacircncia na Franccedila (PAVEAU 2005 2007 2008 PAVEAU ROSIER 2008) que integra totalmente o paracircmetro classista

Para onde foram as classes sociaisNatildeo poderemos deixar de enfatizar o bastante que as categorias adotadas pelas linguiacutesticas

empiacutericas e sociais natildeo satildeo imanentes mas diretamente alimentadas pela histoacuteria das ciecircncias e das ideologias Isso eacute particularmente verdadeiro para o conceito de classe social que foi quase eliminado do discurso das ciecircncias sociais como mostra R Pfefferkorn em um trabalho recente que retoma a noccedilatildeo marxista de relaccedilatildeo social (2007)

108 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A La langue sans classes de la grammaire scolaire Le franccedilais aujourdrsquohui 162 J David M- M Bertucci (org) Descriptions de la langue et enseignement 2008 p 29-40 Traduccedilatildeo de Mocircnica Magalhatildees Cavalcante (UFC) e Maria de Faacutetima Sopas Rocha (UFMA)

109 Eu uso o termo classista no sentido de ldquosocial com estratificaccedilatildeo em classesrdquo

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Classes sem classeNas ciecircncias sociais e consequentemente na sociolinguiacutestica o termo classe foi substituiacutedo

pelos de posiccedilatildeo e rede Em La variation sociale en franccedilais (2ordf ediccedilatildeo 2007) Gadet evita o termo e fala de ldquolocutores favorecidosrdquo e ldquodesfavorecidosrdquo mencionando ldquoo topo e a base da escala socialrdquo e usando o termo posiccedilatildeo social Ela ressalta que a classe (operaacuteria meacutedia alta) como ferramenta de anaacutelise eacute muito formal e redutora e explica que a sociolinguiacutestica em vez disso explora a noccedilatildeo de rede dando o exemplo da ldquorede de trabalhadoresrdquo tal como eacute analisada por exemplo por Milroy (1987) Os sociolinguistas falam sem problema de variaccedilatildeo diastraacutetica110 um termo teacutecnico que desfaz a dimensatildeo ideoloacutegica ou mesmo poliacutetica de classe

Mas ao mesmo tempo o termo classe social persiste e encontramos por exemplo classe trabalhadora classe meacutedia e classe alta na apresentaccedilatildeo do uso do ne (natildeo) de negaccedilatildeo para Gadet (2007) Entatildeo classe ou rede Como observa Pfefferkorn (2007) o desaparecimento da noccedilatildeo pode ter sido mais um escamoteamento ideoloacutegico do que uma necessidade cientiacutefica real e seu retorno aos trabalhos dos jovens socioacutelogos atuais sobre as desigualdades sociais que propotildeem um novo questionamento do aparelho teoacuterico marxista tenderia a provaacute-lo111

Seja como for quer sob a forma de classe de rede de comunidade ou de grupo de pares a estratificaccedilatildeo social da linguagem dificilmente aparece na gramaacutetica escolar o que constitui ao mesmo tempo um fato oacutebvio jaacute que estamos muito acostumados com a unidade legiacutetima do padratildeo e com uma inacreditaacutevel separaccedilatildeo entre a liacutengua aprendida e a liacutengua falada quer seja a dos alunos quer seja a de seus professores112

ldquoRicos e pobres de linguagemrdquoEacute um princiacutepio antigo que a escola natildeo deve ficar ligada agrave vida comum e que a linguagem

da escola natildeo eacute a da experiecircncia ordinaacuteria e natildeo eacute o caso de colocar isso em questatildeo natildeo eu natildeo ensino meus alunos em francecircs falado comum e meus colegas do ensino fundamental ou do ensino meacutedio tambeacutem natildeo Sim as manipulaccedilotildees da linguagem e a aprendizagem lexical e sintaacutetica realizada na escola natildeo tecircm como objetivo ldquoservirrdquo diretamente ao cotidiano mas sim construir uma base de saber linguageiro com a qual o aluno possa jogar no sentido teacutecnico do termo na sua praacutetica da liacutengua A divertida sessatildeo sobre o subjuntivo imperfeito pusse113 do filme Entre les Murs de L Cantet (Palma de Ouro em Cannes em 2008) bem o diz mas o que vocecirc quer que eu faccedila com ldquopusserdquo ndash disse uma aluna em siacutentese vocecirc me vecirc

110 A tipologia usual de variaccedilatildeo em sociolinguiacutestica inclui cinco criteacuterios diacrocircnico (de acordo com a eacutepoca) diastraacutetico (de acordo com as classes ou as redes sociais) diafaacutesico (de acordo com as situaccedilotildees de interlocuccedilatildeo eacute aqui que se situam os niacuteveis de linguagem) diatoacutepico (de acordo com as aacutereas geograacuteficas os dialetos por exemplo) e diameacutesicos (de acordo com a escolha do canal oral ou escrito)

111 Falamos muito em linguiacutestica nas aulas ateacute os anos 1980 por exemplo para Rey (1972) Gardin e Marcellesi (1974) Franccedilois (1983) e para Bourdieu evidentemente cujo artigo laquo Vous avez dit populaire raquo de 1983 publicado recentemente em Langage et pouvoir symbolique eacute frequentemente citado em obras contemporacircneas (2001) Para uma anaacutelise detalhada desta questatildeo e para uma comparaccedilatildeo com o emprego das noccedilotildees de classe de dialeto social ou dialeto de classe na sociolinguiacutestica americana ver Paveau (2008)

112 Os trabalhos e as reflexotildees sobre o ensino-aprendizagem da liacutengua na sua maioria apenas mencionam a liacutengua falada pelos alunos e haacute muito que me pergunto o que seria de seus professores que ao contraacuterio do que pensam os autores dos livros didaacuteticos e dos programas nem todos falam como Voltaire ou mesmo como Duras

113 NT O imperfeito do subjuntivo natildeo eacute mais usado na liacutengua francesa atual eacute defendido apenas pelos puristas que ateacute criam associaccedilotildees de seus defensores

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dizendo para minha matildee ldquoque je pusserdquo Natildeo obviamente pusse seraacute usado para outra coisa por exemplo para se apropriar do sistema da liacutengua

Mas parece-me que se deve fazer algo a respeito dessa questatildeo eminentemente social (classista) na minha casa diz a aluna natildeo soacute natildeo falamos pusse como nunca ouvimos falar estaacute fora da minha experiecircncia Ela eacute desinibida mas natildeo eacute o caso dos entrevistados de Marconot habitantes da ZUP ao norte de Nicircmes

bull bem todos noacutes falamos mal de qualquer maneira [] o verdadeiro francecircs natildeo haacute mais quem o fale hein

bull natildeo eacute uma liacutengua muito rebuscada [] digamos que as pessoas satildeo garotos ndash que vecircm da classe trabalhadora ou de outra bom bem ndash isso

bull o operaacuterio por si mesmo natildeo tem que ndash falar corretamente ah basta que ele se faccedila compreender

bull pessoas de origem muito muito popular [] que falam francecircs como ndash como eu diria ndash bem como como falam os proletaacuterios eh agraves vezes uma linguagem muito pouco trabalhada [] expressotildees grosseiras [] uma linguagem um pouco rude ( MARCONOT 1990 p 69)

Existem portanto ldquopobres e ricos de linguagemrdquo como diz Bentolila (2001 Rapport sur lrsquoillettrisme on-line) em seu leacutexico um tanto espetacular que atende a uma argumentaccedilatildeo a qual natildeo eacute a minha aqui

Os lsquoricos de linguagemrsquo se aviltam linguisticamente sem risco e com a melhor consciecircncia do mundo Mas seraacute que aqueles cujo vocabulaacuterio eacute limitado e impreciso tecircm mesmo um real poder linguiacutestico Natildeo eles satildeo os lsquopobres da linguagemrsquo condenados a se comunicar apenas no imediato e nas proximidades

Mostrarei mais adiante sem muita dificuldade visto que o assunto eacute tatildeo visiacutevel a olho nu que esses dados sociais classistas natildeo aparecem na gramaacutetica escolar nem aliaacutes na maioria das vezes na gramaacutetica universitaacuteria exceto como opccedilatildeo variacionista declarada

A dimensatildeo social em corpus escolar e em corpus popularA situaccedilatildeo sobre a qual eu proponho refletir eacute a seguinte

- nas classes encontram-se misturadas (em um ideal de mistura social) ou reunidas (na realidade das EPZs e dos estabelecimentos de ldquobairros difiacuteceisrdquo) competecircncias linguageiras socialmente desiguais em que se encontram (ou natildeo) ricos e pobres da linguagem burgueses e proletaacuterios do leacutexico priacutencipes e operaacuterios da ortografia

- na gramaacutetica escolar e nos programas que a determinam apenas a norma padratildeo estaacute presente com base em uma liacutengua ldquodesclassificadardquo ldquodessocializadardquo conforme o indica a observaccedilatildeo das gramaacuteticas contemporacircneas do ensino fundamental e do meacutedio ou

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o conteuacutedo dos novos programas de 2008114 Mesmo que os programas incorporem a dimensatildeo enunciativa ou proponham uma gramaacutetica fraacutestica mais tradicional a ausecircncia da variaccedilatildeo social eacute de fato a mesma

Sem questionar mais uma vez a funcionalidade do ensino da norma parece-me importante compreender os desafios e as consequecircncias do ensino de uma liacutengua agraves vezes pouco relacionado agraves praacuteticas correntes dos alunos e refletir sobre a integraccedilatildeo da dimensatildeo social da liacutengua no ensino Essa reflexatildeo tem sido liderada haacute muito tempo pela linguiacutestica popular que pode fornecer aos professores estruturas para construir praacuteticas pedagoacutegicas que incluam a variaccedilatildeo

A linguiacutestica popular corpus e dados115

A linguiacutestica popular eacute uma linguiacutestica praticada por natildeo-linguistas ou seja por locutores que natildeo adotam uma visatildeo cientiacutefica da liacutengua116 As anaacutelises do popular consistem em descriccedilotildees linguiacutesticas profanas (em relaccedilatildeo ao fenocircmeno da designaccedilatildeo e da relaccedilatildeo entre a liacutengua e o mundo agrave hierarquia entre escrito e oral agrave conformidade agraves regras da liacutengua etc) muitas vezes consistem em prescriccedilotildees comportamentais frequentemente normativas ou ateacute puristas (dizer vs natildeo dizer) e em intervenccedilotildees na liacutengua por intermeacutedio de usos defeituosos ou de neologismos que se tornam normas porque oferecem soluccedilotildees para dificuldades linguageiras (por exemplo verbos terminados em ndashtionner) Dentre essas praacuteticas a classificaccedilatildeo social eacute muito presente tipologia das palavras ldquovulgaresrdquo ou ldquoelegantesrdquo proibiccedilotildees lexicais ou sintaacuteticas condenando o ldquopopularrdquo declaraccedilotildees irocircnicas de expressotildees ldquoesnobesrdquo ou pronuacutencias abertas que identificam as classes dominantes

A partir de 1983 em um artigo muito famoso e frequentemente citado ldquoVocecirc disse popularrdquo Bourdieu (2001 p 137) clamava por uma ldquociecircncia rigorosa da sociolinguiacutestica espontacircneardquo que fazia eco aliaacutes agrave ldquoestiliacutestica espontacircneardquo que ele mencionava em Ce que parler veut dire em 1981 Essa sociolinguiacutestica espontacircnea eacute a linguiacutestica popular em suas dimensotildees sociais que se desenvolve em muacuteltiplos lugares de fala em conversas orais espontacircneas eacute claro mas tambeacutem nos muacuteltiplos blogs e foacuteruns sobre a liacutengua francesa (bem como em outras liacutenguas) nos guias de boas maneiras nas obras normativas e puristas sobre o bom francecircs aquelas que vecircm da ldquoalma francesardquo constituindo o conjunto uma verdadeira histoacuteria dos costumes linguageiros franceses

O ponto em comum dos elementos desse corpus eacute que eles oferecem comentaacuterios metalinguiacutesticos que colocam em jogo a subjetividade dos falantes Trecircs categorias de dados subjetivos estatildeo envolvidas as intuiccedilotildees as percepccedilotildees e os sentimentos linguiacutesticos Essas categorias de observaccedilatildeo permitem aos natildeo-linguistas construir observaacuteveis entre os quais escolhi examinar aqui as normas sociais da linguagem (correto vs incorreto) os marcadores

114 O corpus do estudo eacute apresentado no final do capiacutetulo As gramaacuteticas satildeo mencionadas por siglas no texto

115 Como a traduccedilatildeo do termo popular apresenta problemas de polissemia integrei o termo inglecircs ao francecircs e falo a partir de agora de linguiacutestica folk ou de gramaacutetica folk (PAVEAU 2008)

116 Para uma definiccedilatildeo detalhada consulte Brekle (1989) nosso artigo no n 151 de Franccedilais aujourdrsquohui (PAVEAU 2005) e para vaacuterios exemplos de todos os niacuteveis de anaacutelise linguiacutestica ver Paveau e Rosier (2008)

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sociais da linguagem (as categorias ldquopopularrdquo ldquoburguecircsrdquoldquoesnoberdquo etc concernentes agraves ldquoclassesrdquo mas tambeacutem agraves redes sociais ndash jovens comunidades profissionais geograacuteficas sociogeograacuteficas) e enfim as vozessocialmente descritas por acentos timbres e tipos de articulaccedilatildeo O meacutetodo eacute comparativo observo o que o corpus escolar e o que o corpus popular dizem sobre esses trecircs fenocircmenos linguageiros

A norma social a evidecircncia do francecircs padratildeoToda a complexidade e o interesse pela questatildeo da norma linguageira eacute por sua duplicidade

ou seja o conjunto de relaccedilotildees por vezes muito complexas que existem entre a norma social e a norma linguiacutestica Nas gramaacuteticas escolares consultadas natildeo haacute problema deste tipo a questatildeo da norma nunca eacute posta e a norma eacute pro(im)posta sem questionamento sem reflexatildeo sobre o erro e ateacute sem exerciacutecios a partir dos erros ldquoO ensino da gramaacutetica tem por finalidade favorecer a compreensatildeo dos textos lidos e ouvidos melhorar a expressatildeo de forma a garantir a justeza a correccedilatildeo sintaacutetica e ortograacuteficardquo informam os novos programas do ensino fundamental para CE2 e CM (p 14) Sim mas de que correccedilatildeo se trata A variaccedilatildeo social natildeo eacute mencionada e a giacuteria por exemplo que poderia fornecer recursos interessantes para a manipulaccedilatildeo da linguagem estaacute ausente ldquoA escola natildeo questiona o significado que o padratildeo tem para a crianccedila dando por certo que ela deseja adquiri-lo sem dizer por que eacute desejaacutevelrdquo (GADET 2007 p 105)117

Esse aspecto desejaacutevel do padratildeo e do correto por outro lado encontramos jaacute abundantemente descrito no corpus popular falar corretamente eacute desejaacutevel porque eacute falar como os que tecircm poder eacute dominar os coacutedigos sociais e ganhar poder ou conquistar um lugar na sociedade Todos os guias de etiqueta e todas as obras sobre o bom francecircs contecircm esse discurso mesmo que seja prescritivo e por vezes severamente conservador (Le Bon franccedilais de M Druon publicado em 1999 eacute um bom exemplo) O padratildeo eacute motivado por eles Isso pode ser visto por exemplo nestes comentaacuterios sobre o excesso de acentos circunflexos encontrados no site httplangue-frnet (ortografia preservada)

Tirem o chapeacuteu

Eacute o que se chama ldquoerro por hipercorreccedilatildeordquo exagerando vocecirc acrescenta acentos circunflexos onde natildeo deveria

TF1 gosta do circunflexo

- O nobre AmphigouriX (21 Pradaria do ano CCVIII 9 de junho de 2000 dc-dcg)

- Visto em Pernaut-13h [NDEacute telejornal da primeira emissora nacional francesa] uma jovem se preparando para a opccedilatildeo ldquobascardquo no bacharelado seu nome no subtiacutetulo seguido de future bacirccheliegravere Schtroumpf dizia ldquoVocecirc vecirc como as pessoas amam o circunflexo eles o colocam em todo lugarrdquo

117 Natildeo tenho espaccedilo para desenvolver este ponto mas como abordar a multiplicidade de textos literaacuterios franceses muitas vezes perfeitamente canocircnicos que encenam falares populares ou socialmente marcados sem introduzir em um momento ou outro da aprendizagem linguiacutestica a ideia de uma marcaccedilatildeo social da liacutengua

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- Maximilien (9-6-2000) ndash Eacute para ser mais seacuterio E funciona parece mais seacuterio Bem agrave primeira vista jaacute que de fato parece mais negligenciado que outra coisa

- Schtroumpfix (9-6-2000) ndash Bachotage et rabacircchage satildeo os dois seios do futuro bacharelado

- Cleacutement-Noeumll Douady (10-6-2000) ndash Previacuteamos que ela ia perder o bacharelado e entrar em uma faacutebrica de produzir lonas (nova moda boina basca em lona)

Mas o que eacute interessante eacute que o natildeo padratildeo o vernacular ou a giacuteria tambeacutem o satildeo a tradiccedilatildeo purista sempre ambiacutegua abre espaccedilo para a lsquotruculecircnciardquo da giacuteria para o prazer de xingar para o gozo da fala vulgar (PAVEAU ROSIER 2008 cap 8) Trata-se de uma visatildeo de liacutengua obviamente menos cientiacutefica mas muito mais rica a meu ver do que a das gramaacuteticas escolares

O risco imediato dessa constataccedilatildeo eacute alimentar os ensinos subjetivos esteacuteticos e natildeo ldquocientiacuteficosrdquo e ir na direccedilatildeo das propostas governamentais francesas dos uacuteltimos anos que reorientam a aprendizagem de liacutenguas para um normativismo tradicional mais apreciativo do que objetivo (Relatoacuterio de Gramaacutetica de 2006 programa de ensino fundamental 2008 programa de faculdade em consulta 2008) Embora o termo tradicional precise ser ressignificado os velhos Soucheacute e Grunenwald de minha infacircncia ndash para falar o dialeto orsenniano ndash propunha uma coluna de exerciacutecios irregulares intitulada ldquoBom usordquo Tinha por exemplo um exerciacutecio na forma de ldquonatildeo diga vs digardquo sobre o emprego do auxiliar avoir ou ecirctre (1961 p 61) No entanto esta questatildeo eacute estritamente social e histoacuterica como mostra C Blanche-Benveniste em um trabalho intitulado ldquoJrsquoai descendu dans mon jardinrdquo em que descobrimos que Littreacute admitia perfeitamente ldquojrsquoai resteacute un an agrave Grenoblerdquo credenciando assim o francecircs falado conhecido como ldquoerradordquo pelos trabalhadores da faacutebrica da Opel (BLANCHE-BENVENISTE 2003 p 319) Assim a norma mudou e o social influenciou a proacutepria sintaxe tantas vezes apresentada como uma estrutura intangiacutevel Uma excelente oportunidade a meu ver para integrar o diastraacutetico e o diacrocircnico no ensino-aprendizagem do francecircs com todas as adaptaccedilotildees necessaacuterias ao niacutevel dos alunos

A honestidade cientiacutefica nos obriga a tomar posiccedilotildees matizadas e difiacuteceis a questatildeo importante natildeo eacute nem a da riqueza da abordagem nem a do ensino a marcaccedilatildeo social da liacutengua eacute ensinada rigorosamente Acho que sim Impede o aprendizado fundamental do sistema linguiacutestico Acho que natildeo Entatildeo sim ao enriquecimento do repertoacuterio social dos alunos e natildeo ao abandono de criteacuterios racionais para o ensino da liacutengua os uacutenicos garantidores de seu ensino

Os ldquoniacuteveis de linguagemrdquo uma categoria mal definidaSe natildeo encontramos nenhum dado diastraacutetico em nossas gramaacuteticas por outro lado o

niacutevel diafaacutesico estaacute sistematicamente presente na forma de um esquema ou de uma paacutegina intitulada ldquoOs niacuteveis de linguagemrdquo em que a linguagem natildeo eacute realmente definida mas apresentada como relacionada a situaccedilotildees de interaccedilatildeo

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Na NGC no sexto niacutevel trecircs niacuteveis satildeo apresentados com exemplos coloquial boulot corrente travail formal labeur (p 314) A apresentaccedilatildeo eacute seguida de um desenvolvimento proscritivo ldquoComo evitar a linguagem coloquialrdquo em que se aprende que o niacutevel coloquial soacute pode ser usado na oralidade (retorno da velha confusatildeo entre oral e popular) e em que vaacuterias dicas satildeo dadas para aperfeiccediloar seu vocabulaacuterio (p 314 e segs)

- evitando o verlan118 as giacuterias as abreviaccedilotildees

Ufa Vocecirc viu o dinheiro que ele tem Vocecirc eacute louco Vocecirc estaacute ciente de sua fortuna

- evitando supressotildees de siacutelabas repeticcedilotildees

Ele tem uma boa scootrsquo Ele tem uma bela scooter

- usando nous em vez de on

A gente fez uma boa caminhada Demos uma boa caminhada

Atenccedilatildeo

Natildeo empregue nous e a gente na mesma frase Nous on ne bougera pas -gt Nous nous ne bougerons pas

Um pouco mais adiante dicas com exemplos tambeacutem satildeo dadas para ldquoevitar o relaxamentordquo

- A negaccedilatildeo completa e a pontuaccedilatildeo119

Jrsquote raconte pas la beacutecane Je nrsquoose pas te deacutecrire ce scooter

- A pergunta

Daacute para acreditar Vocecirc acredita no que ele estaacute dizendo

- A supressatildeo de verbos vicaacuterios como fazer

Tem que fazer isso de novo Vocecirc quer que eu explique para vocecirc de novo

Por fim explicamos ao aluno como escrever na linguagem formal ldquoA linguagem rebuscadardquo eacute usada na escrita e na oralidade nos textos literaacuterios nos discursos

- O vocabulaacuterio eacute rebuscado e as frases satildeo complexas Eu ignorava que vocecirc tinha adquirido uma motocicleta

- A gramaacutetica eacute sempre respeitada e utiliza certos modos verbais como o subjuntivo Eu deveria ter podido falar com vocecirc sobre isso

Eu natildeo gostaria de cair na facilidade do comentaacuterio irocircnico o leitor apreciaraacute a qualidade das ldquotraduccedilotildeesrdquo de um niacutevel para outro mas natildeo sem antes fazer as seguintes perguntas

118 Verlan eacute um tipo de giacuteria em que se invertem as siacutelabas ou as letras Vem de lacuteenvers que significa o inverso

119 O francecircs faz a negaccedilatildeo com dois elementos ndash ne e pas ndash e a linguagem popular tende a suprimir o ne

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- sobre a definiccedilatildeo de situaccedilatildeo quais satildeo as situaccedilotildees que requerem a substituiccedilatildeo por exemplo de moto por motocicleta Como eles satildeo identificados ou avaliados pelos alunos O paracircmetro social no sentido classista estaacute realmente ausente A quinta GPLE propunha mais ou menos a mesma coisa afirmando ldquoComo a situaccedilatildeo exigerdquo (tiacutetulo da paacutegina) e ldquoDe acordo com a situaccedilatildeo de enunciaccedilatildeordquo (tiacutetulo do paraacutegrafo)

- sobre a classificaccedilatildeo dos niacuteveis para onde passou o niacutevel da giacuteria chamado popularmente de vulgar grosseiro etc Os merde e os bordel e os trou du cul estatildeo fora dos dicionaacuterios Surpreendentemente eacute nos curriacuteculos do ensino fundamental que eles satildeo encontrados ldquoSaber o que eacute um registro de linguagem durante as trocas orais transpor qualquer enunciado espontacircneo de registros familiares giacuterias ou palavras baixas em um enunciado pertencente ao francecircs padratildeordquo (CM1 p 29) Evitadas mas ainda mencionadas as palavras ldquobaixasrdquo

A linguiacutestica popular natildeo tem esses pudores ou esses irrealismos como se gostaria A giacuteria eacute frequentemente analisada em seus corpora e natildeo faltam comentaacuterios sutis sobre os usos Assim P Daninos (1964 p 18-19) em Snobissimo menciona as alternacircncias diafaacutesicas das pessoas comuns

Eacute sem duacutevida nessas partes que a dosagem (vocabulaacuterio aviltado) de que falei alhures ndash do tipo Era divino tinha um daqueles avoacutes aiacute velhinho eacute muito simples o nascimento de Vecircnus pra melhor Acho que aquele desgraccedilado do Rubi ganhou um ingresso com ela engraccedilado ndash eacute o mais saacutebio

E os editores do Le Monde pertencentes agrave brilhante tradiccedilatildeo dos tipoacutegrafos franceses natildeo-linguistas apresentam regularmente anaacutelises de giacuterias presidenciais das quais aqui estaacute um exemplo

Sarkozy ou a loucura dos preguiccedilosos

Como uma estrela vinda de seu firmamento rodeada por seus sateacutelites ministeriais e prefeiturais o presidente da repuacuteblica derreteu na manhatilde do dia 22 de janeiro numa terccedila-feira junto a um grande grupo em Sartrouville natildeo longe de Paris para proferir suas palavras doutrinais Ouvidas estas poucas palavras veiculadas pela imprensa audiovisual durante uma breve interaccedilatildeo com os ldquojovensrdquo presentes no local e bastante maravilhados o seu ldquoplano de subuacuterbiordquo vai dar-lhes a oportunidade de trabalhar e de ter uma formaccedilatildeo ldquoporque a vida natildeo eacute para preguiccedilarrdquo Natildeo comentaremos sobre a sintaxe do presidente nem sobre a penetraccedilatildeo de seu pensamento mas apenas sobre o ldquoglanderrdquo verbo de rara elegacircncia que se tornou decididamente um carro-chefe do vocabulaacuterio governamental

O ldquoglandrdquo eacute antes de tudo o fruto do carvalho natildeo nos esqueccedilamos e esta palavra nos vem do latim glans glandis e muito antes disso de fato os linguistas a relacionavam com a raiz indo-europeacuteia gwele [hellip] O significado atual ldquoesperar em vatildeordquo soacute eacute atestado em 1941 (com forte conotaccedilatildeo sexual como ldquopunhetardquo) e glandouiller outro paradigma

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do verbo governamental dataria de 1938 Deixaremos de lado glandage glandule e glanduleux que existem mas ainda natildeo foram incorporadas ao discurso do Eliseu

Em conclusatildeo diremos que um novo direito do povo estaacute na mira do poder o ldquodireito de vadiarrdquo Mas que os jovens possam sempre responder com soberba ao presidente parafraseando F Mauriac ldquoO verdadeiro glandeur ignora as ofensas dos pequenosrdquo

(httpcorrecteursbloglemondefrcorrectors 24012008)

A mim parece que a gramaacutetica escolar poderia valer-se do fundo da linguiacutestica popular para apresentar uma visatildeo enriquecida da liacutengua notadamente por meio de marcadores sociais

As vozes uma gramaacutetica sem vozEsta observaccedilatildeo tambeacutem diz respeito agraves vozes Por voz entendo natildeo soacute o oral mas

todos os fenocircmenos marcados que o caracterizam acentos sociais timbres e articulaccedilotildees A sociolinguiacutestica acadecircmica leva em conta a oralidade e suas marcaccedilotildees sociais mas basicamente nas constataccedilotildees foneacuteticas

As falhas de ligaccedilatildeo mais comumente percebidas expressas na frase coloquial ldquoligaccedilatildeo incorretardquo satildeo os chamados erros ldquopataquegravesrdquo que conotam um discurso muito pejorativamente Satildeo chamados para os mais recorrentes de couro (fico muito confortaacutevel com isso) e de veludo (eu tambeacutem) (GADET 1989 p 78)

No corpus consultado a gramaacutetica escolar natildeo leva em consideraccedilatildeo o oral o que significa que natildeo compreendemos de forma efetiva ou de forma indireta as vozes do francecircs nos manuais didaacuteticos exceto a voz do professor e a dos alunos Uma uacutenica gramaacutetica a terceira DTP oferece um CD de aacuteudio com o livro do professor que serve para exerciacutecios regularmente propostos no manual Por exemplo

- Ouccedila com atenccedilatildeo esta conversa entre duas amigas Lou acaba de apresentar Julien uma jovem atraente mas vaidosa agrave sua melhor amiga Eacutemerance Usando o estilo indireto e a narrativa de falas relate em apenas algumas linhas o que as duas amigas estatildeo dizendo uma agrave outra Seu texto comeccedilaraacute da seguinte maneira Nesta passagem Lou pergunta a Eacutemerance se (2003 p 108 ao inserir letras em um texto)

- Em uma primeira audiccedilatildeo observe as subordinadas relativas nas passagens que vocecirc ouviraacute Em uma segunda audiccedilatildeo principalmente com a ajuda das pausas especifique quais satildeo os epiacutetetos e quais satildeo os apostos (DTP 3ordf 2003 p 185 sobre a relativa)

- O apresentador da estaccedilatildeo de raacutedio ldquoSOS solituderdquo que vocecirc vai ouvir agraves vezes tem uma maneira um tanto abrupta de falar com seus interlocutores Formule de maneira atenuada seus conselhos ou pedidos usando o condicional ou o imperfeito (DTP 3ordf p 145 sobre os modos e os valores modais)

Embora a questatildeo social natildeo seja colocada os alunos podem ter a oportunidade de atentar para sotaques regionais ou acentos sociais que os familiarizem com a variaccedilatildeo A gramaacutetica

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escolar atualmente em construccedilatildeo propotildee uma concepccedilatildeo bastante teatral do oral preocupada mais com a teacutecnica do que com a marcaccedilatildeo social

Consciente de que o oral deve ser ensinado o professor elabora exerciacutecios variados e progressivos que permitem aos alunos trabalhar a voz os gestos e a ocupaccedilatildeo do espaccedilo Eacute neste contexto que se realizam em particular a recitaccedilatildeo (em articulaccedilatildeo com os textos estudados) a leitura em voz alta a exposiccedilatildeo oral o relato as interaccedilotildees organizadas (Programme de collegravege en consultation 2008 p 7)

No lado popular abundam as notaccedilotildees classistas desde as vozes muito ldquoGuermantesrdquo descritas por Proust aos sotaques populares encenados por Fallet passando pelas excessivas aberturas de Marie-Chantal as vozes seus timbres e suas articulaccedilotildees satildeo frequentemente fixados Dois exemplos

- A proacutepria entonaccedilatildeo diferenciada parece hoje de tom ruim senatildeo ateacute duvidosa Natildeo eacute mais culpa de algumas locutoras de raacutedio cujas palavras parecem salpicadas de strass [] Quanto ao madhacircme que tantas vezes precedia minhas homenagens no tempo em que os a soacute saiacuteam de bocas bem feitas enchapelados com um acento circunflexo tornou-se prerrogativa das damas de companhia ou das companhias aeacutereas (Daninos 1964 p 16)

- Evitar tambeacutem ligaccedilotildees acentuadas demais Agraves vezes ateacute satildeo suprimidas ldquoCommen(t) allez-vousrdquo substituiu ldquoCommen-t-allez-vous rdquo Algueacutem que olhasse para o reloacutegio e dissesse ldquoJe mrsquoen vais il est troi-z et demierdquo seria um pouco ridiacuteculo no mundo e pedante laacute fora

Finalmente uma articulaccedilatildeo clara e uma leve gagueira muito ldquooxonianardquo (natildeo dizer ldquooxfordianardquo) eacute de uso para contar uma anedota ou uma histoacuteria de caccedila (JULLIAN 1992 p 197)

Quando ensinamos em lugares socialmente mistos ou nos chamados bairros difiacuteceis ou mesmo em aacutereas de alta imigraccedilatildeo como na minha Universidade Paris XIII em Villetaneuse soacute conseguimos ouvir um francecircs muito marcado por sotaques diversos para os quais categorias especiacuteficas nem sempre satildeo adequadas o famoso sotaque suburbano acompanhado do discurso de metralhadora eacute ao mesmo tempo social eacutetnico e geracional Os adultos que trabalham em um ambiente profissional o perdem

Que a gramaacutetica do francecircs seja confinada a uma escrita estranha parece-me representar o problema da realidade da liacutengua aqui de natureza social

ConclusatildeoOs materiais fornecidos pela linguiacutestica popular satildeo inestimaacuteveis e agraves vezes exclusivos

com os ldquolinguistas dominicaisrdquo realizando um trabalho em especial sobre as falas de classe que os profissionais nem sempre fazem (para uma apresentaccedilatildeo detalhada desse fenocircmeno ver Paveau e Rosier 2008)

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A abordagem social da liacutengua em sala de aula me parece necessaacuteria por razotildees linguiacutesticas (o francecircs padratildeo natildeo eacute o francecircs) mas tambeacutem por razotildees didaacuteticas (ensinar o padratildeo eacute necessaacuterio mas natildeo o suficiente) e eacuteticas (a escola natildeo precisa mentir sobre a natureza profundamente discriminatoacuteria do poder simboacutelico da linguagem) Tambeacutem eacute uma faca de dois gumes uma vez que se oferece agraves ideologizaccedilotildees do ensino do francecircs que se baseiam em avaliaccedilotildees normativas estiliacutesticas e ateacute pseudorreligiosas (a ldquomissatildeordquo da gramaacutetica amplamente descrita no relatoacuterio de novembro de 2006) Como sempre apenas uma formaccedilatildeo soacutelida de professores incorporando um discurso reflexivo sobre sua proacutepria variedade sem negaccedilatildeo ou desprezo permite manter uma posiccedilatildeo cientificamente rigorosa e pedagogicamente eficaz

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IMAGENS DA LIacuteNGUA NOS DISCURSOS ESCOLARES120

Ao falarmos sobre o discurso escolar tocamos num problema metodoloacutegico importante o que se entende por ldquodiscurso escolarrdquo Identificado restritivamente como discurso da escola e ateacute mesmo agrave custa de uma reduccedilatildeo espacial como discurso na escola o discurso escolar natildeo eacute impedido por si mesmo de se relacionar com aqueles que se encontram fora do espaccedilo escolar ou da instituiccedilatildeo escolar Em outras palavras o discurso na escola natildeo eacute apenas os discursos da escola seria preciso portanto poder compartilhar o que eacute dos pais e da famiacutelia o que depende de paracircmetros sociais e culturais o que se capta no discurso da miacutedia o que emerge de uma crenccedila popular etc E esses proacuteprios discursos interpenetram-se e entrelaccedilam-se formando um universo discursivo que se organiza de maneira diferente de acordo com os tempos as crises e os acontecimentos Falar de imagens de liacutengua em discursos escolares natildeo pode assim ser feito sem levar em conta essa polifonia essencial e a tarefa eacute muito importante para ser realizada no acircmbito de um capiacutetulo

Muitos trabalhos jaacute abordaram isso tanto fora quanto dentro da escola proporemos aqui algumas respostas poreacutem sempre muito ldquomonofocircnicasrdquo reduzindo os discursos escolares aos que satildeo produzidos no acircmbito da escola pelos alunos pelos professores pelos livros e pelos textos oficiais

Das representaccedilotildees complexas muacuteltiplas e impliacutecitasQuestionar as imagens da liacutengua eacute tentar identificar quais satildeo os traccedilos por meio dos quais

cada um traccedila um retrato mais ou menos preciso mais ou menos fixo e mais ou menos ciente de um sistema comum a todos esses traccedilos podem ser funccedilotildees valores ou propriedades Essas imagens satildeo portanto complexas porque deslizam vaacuterios paracircmetros de natureza diferente e muacuteltiplos porque pode haver tantas representaccedilotildees quantos satildeo os sujeitos falantes (ou grupos comunidades etc) na maioria das vezes no entanto eles estatildeo impliacutecitos porque este natildeo eacute nem de conhecimentos nem de saberes objetivaacuteveis mas sim de representaccedilotildees estruturantes Nas situaccedilotildees de ensino de uma disciplina como o francecircs as questotildees tornam-se ainda mais difiacuteceis pois essas representaccedilotildees estatildeo por natureza em constante circulaccedilatildeo

Discurso sobre a liacutengua e reflexividadeDiante da complexidade do fenocircmeno adotamos um meacutetodo indireto reunimos um conjunto

de trabalhos e pesquisas realizadas sobre questotildees de liacutengua na escola e procuramos ver o que elas revelavam em vatildeo e por inferecircncia dessas imagens difiacuteceis de alcanccedilar por um meacutetodo de investigaccedilatildeo direta Isso nos permitiu ampliar o campo de investigaccedilatildeo mas permanecendo dentro do acircmbito das fontes mencionadas anteriormente

120 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Images de la langue dans les discours scolaires Le Franccedilais aujourdrsquohui 125 Images et repreacutesentations de la langue Paris AFEF 1998 p 52-60 Traduccedilatildeo de Fernando Curtti Gibin (UFSCar) e Marco Antonio Almeida Ruiz (USP)

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Em relaccedilatildeo ao estatuto do curso de francecircs natildeo podemos repetir eacute irredutivelmente singular pois a liacutengua eacute reflexiva ldquoum indiviacuteduo seja aprendiz ou natildeo natildeo usa a liacutengua como instrumento de accedilatildeo sobre o mundo Tampouco se comunica por meio de um instrumento que seria essa liacutengua [] Ele pode evocar a realidade no uso de uma liacutengua e expressar seus pensamentos nessa liacutengua []rdquo(DAVID 1997 p 5) Ou seja o aluno natildeo analisa a liacutengua mas sim a sua liacutengua ele natildeo lecirc o texto de um autor que usa a liacutengua mas resolve na sua liacutengua a produccedilatildeo de quem fala a sua liacutengua As imagens da liacutengua estatildeo portanto intimamente relacionadas agraves imagens dos proacuteprios sujeitos

Quatro imagens dominantes emergem com bastante clareza de todo o discurso veiculado no campo escolar hoje (por volta dos anos noventa) Sua apresentaccedilatildeo sucessiva natildeo deve ocultar o fato de que muitas vezes manteacutem relaccedilotildees iacutentimas e que o todo forma em uacuteltima instacircncia uma macroimagem relativamente coerente da liacutengua Tampouco deve sua predominacircncia nos fazer esquecer de que outras imagens embora possam ser minoria ou indetectaacuteveis ainda existem de modo que podem com o tempo tornar-se dominantes

A liacutengua-mundo

Speculum mundi

A antiquiacutessima concepccedilatildeo de espelho da liacutengua do mundo estaacute muito presente nos alunos para os quais a liacutengua eacute usada para dizer o mundo a realidade a verdade das coisas Conforme Eacute Bautier (1995 p 184) ldquoas palavras parecem ter importacircncia apenas na medida em que para o aluno traduzem melhor a sua experiecircncia o que ele quer dizer sobre ela [] A linguagem escrita como a fala eacute lsquofeita pararsquo falar o lsquoverdadeirorsquo o que eacute o que aconteceurdquo Todos os professores de francecircs conseguem identificar essa ldquoposturardquo segundo Eacute Bautier nos vaacuterios exerciacutecios da disciplina nomeadamente na leitura e na produccedilatildeo de textos narrativos Essa aproximaccedilatildeo entre a liacutengua e a realidade entre o textual e o real tambeacutem se realiza na leitura de textos poeacuteticos que natildeo satildeo diretamente referenciais No acircmbito de uma obra sobre ldquopoesia vivardquo uma aluna do segundo ano justifica assim a escolha do poema ldquoMatildeerdquo de J Darras ldquoPorque amo as matildeesrdquo outro descarta um poema de W Cliff sobre a Beacutelgica explicando ldquoEu natildeo sou belgardquo e outro finalmente confessa que ldquoBeacutelgica e batatas fritas isso tem um aspecto pesado e desinteressanterdquo (PAVEAU PEacuteCHEYRAN-HERNU JOUVENCEAU 1997 p 84-85) A mesma postura eacute encontrada no trabalho de argumentaccedilatildeo no segundo e primeiro anos jaacute que os alunos agraves vezes resistem fortemente em defender pontos de vista dos quais natildeo compartilham que natildeo correspondem para eles agrave ldquoverdade das coisasrdquo a uma realidade que seria deles

Transmissatildeo e circularidadeOs professores franceses interessados na questatildeo conhecem bem essa representaccedilatildeo

resultante de um realismo tatildeo antigo quanto contiacutenuo121 Eacute uma questatildeo saliente para os

121 Lembramos que a querela entre nominalismo e realismo (para dizer as coisas rapidamente) eacute uma constante para especialistas da liacutengua da Antiguidade do seacuteculo XVIII Aleacutem disso ao agruparmos a ideia da liacutengua-mundo vemos a sua predominacircncia na linguiacutestica espontacircnea de locutores (Cf por exemplo BREKLE 1989)

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alunos e apresenta dificuldades em todas as aprendizagens relacionadas com a disciplina se a liacutengua natildeo reflete o mundo entatildeo o que eacute um texto um discurso um argumento De que ordem dependem o som a palavra a frase E acima de tudo o que eacute essa ordem mundial repentinamente privada de seu espelho Poreacutem o significado e a durabilidade dessa imagem que eacute obviamente o produto de vaacuterios legados escolares e extracurriculares natildeo satildeo explicitamente (suficientemente) levados em consideraccedilatildeo na forma de uma obra real e de um real questionamento sobre representaccedilotildees sobre o que jaacute se sabe dos alunos na formaccedilatildeo dos professores e no proacuteprio ensino De repente essa imagem persiste quando os alunos entram no Ensino Superior ouve-se por exemplo de alunos do segundo ano de Letras Modernas colocados em situaccedilatildeo de produzir um argumento o mesmo discurso do Ensino Meacutedio122 E quando esses alunos satildeo futuros professores a liacutengua-mundo escapando agraves perguntas ainda se espreita na prova oral de explicaccedilatildeo do texto da CAPES de Letras Modernas os candidatos muitas vezes confundem liacutengua e realidade em suas anaacutelises lexicais123 Dessa forma esta representaccedilatildeo repete-se de forma circular nos diferentes lugares e tempos de ensino e formaccedilatildeo Haacute neste campo das imagens da liacutengua um siacutetio a ser aberto e natildeo apenas em termos de validade cientiacutefica natildeo se trata de substituir com autoridade uma imagem cientificamente invalidada por outra legitimada pelo recurso agraves ciecircncias da linguagem Seria antes uma questatildeo de compreender qual eacute o lugar e a funccedilatildeo da liacutengua-mundo no universo das representaccedilotildees escolares de onde vem a legitimidade que confere a essa imagem uma longevidade tatildeo notaacutevel e sobretudo qual tipo de ensino permite e natildeo permite

A liacutengua-norma

A correccedilatildeo da liacutengua

Se a liacutengua eacute usada para dizer a verdade das coisas para os alunos parece que se deve dizecirc-la especialmente bem para os professores De acordo com os resultados da pesquisa realizada em 1993-1995 por Elalouf Benoit e Tomassone (1997 p 83) entre os futuros professores do segundo ano do IUFM eacute possiacutevel descrever o perfil do

formando-tipo de letras modernas que pode ser considerado a maioria entre os formandos [] Esse perfil eacute caracterizado por opiniotildees tradicionais sobre o ensino da liacutengua Para esses estagiaacuterios ensinar a liacutengua eacute ensinar a norma as expressotildees oral e escrita corretas [] o ensino gramatical eacute usado principalmente para dominar as expressotildees oral e escrita []

A imagem estatisticamente dominante na amostra determinada por essa pesquisa (274 estagiaacuterios dos IUFMs em Rennes Reims e Versailles) eacute portanto a de uma liacutengua padratildeo uma imagem que tambeacutem pode coexistir com a anterior

122 Essa marcaccedilatildeo reflete somente a nossa proacutepria experiecircncia e demandaria uma pesquisa para ser confirmada

123 Um exemplo entre outros sobre ldquoLe leacutezard amouroeuxrdquo [O lagarto apaixonado] de R Char um candidato indica que o poeta utiliza agraves vezes ldquopalavras simplesrdquo ldquopalavras do cotidianordquo dando como exemplo o cambalear [titube em francecircs] Interrogado sobre esses criteacuterios de apreciaccedilatildeo ele afirma que ldquoo cambalear natildeo eacute tatildeo estimado como atitude cambaleamos quando estamos embriagados por exemplordquo (seccedilatildeo 1998)

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A liacutengua restritaAqui novamente natildeo se trata de deplorar ou denunciar as concepccedilotildees tradicionais ou

gramaticais da liacutengua mas de se medirem os riscos do ensino do francecircs e de se compreender melhor o que o aluno pode fazer com a sua liacutengua quando ele recebe um ensino constituiacutedo por essa imagem para isso eacute uacutetil perguntar que padratildeo eacute esse exatamente e apreender o padratildeo escolar em seu funcionamento pedagoacutegico como fazem Founier e Veck (1995 p 53-58) em um artigo sobre ldquonoccedilotildees em francecircsrdquo Eles estudam as anotaccedilotildees das coacutepias dos alunos feitas por seus professores observando os usos imperfeitos sancionados na margem O estudo mostra que a norma escolar eacute especiacutefica na medida em que restringe o uso da liacutengua

[] a avaliaccedilatildeo dos enunciados dos alunos sobre os quais as anotaccedilotildees se referem mostra que na grande maioria dos casos os usos imperfeitos observaacuteveis nas coacutepias dos alunos natildeo constituem em si falhas Logo a escola autoriza apenas uma parte dos usos possiacuteveis A implementaccedilatildeo de noccedilotildees de gramaacutetica em uma praacutetica a avaliaccedilatildeo da escrita escolar conduz agrave constituiccedilatildeo de um padratildeo e nesse caso agrave limitaccedilatildeo dos usos e possiacuteveis efeitos de sentido (ibid p 54)

Essa restriccedilatildeo natildeo diz respeito apenas agraves formas sintaacuteticas mas se estende a todos os usos linguiacutesticos em um estudo sobre o estilo dos alunos Fournier e Allardi (1996 p 38) mostram que ldquoo exerciacutecio de redaccedilatildeo constitui como padratildeo uma categoria de enunciados determinados por criteacuterios mais seletivos do que aceitaacuteveisrdquo Com efeito as produccedilotildees dos alunos sancionadas por foacutermulas como ldquomal escritordquo ldquodesajeitadordquo ou ldquoevitarrdquo satildeo de fato enunciados corretos ao niacutevel linguiacutestico ldquoO padratildeo produzido pela escola surge assim como uma norma reforccedilada em relaccedilatildeo ao que eacute produzido por outras instituiccedilotildeesrdquo (em particular o dicionaacuterio) concluem os autores que acrescentam que nessas condiccedilotildees ldquoo aluno natildeo escreve a sua liacutengua em plena liberdaderdquo (ibidem p 39 ) Uma imagem da liacutengua baseada em padrotildees escolares de correccedilatildeo portanto apresenta problemas que vatildeo aleacutem de simples consideraccedilotildees axioloacutegicas ou esteacuteticas eacute o uso de sua liacutengua pelo aluno que estaacute em causa e ao final sua constituiccedilatildeo como sujeito sua relaccedilatildeo com o mundo e com o outro

A liacutengua invariaacutevelSe a liacutengua-norma eacute uma liacutengua limitada ela eacute tambeacutem fundamentalmente uma liacutengua

invariaacutevel uma ldquomonoliacutenguardquo exclusiva que fala somente de uma uacutenica e boa maneira Essa evidecircncia aparentemente simples eacute de fato como podemos observar problemaacutetica nos aspectos do ensino do francecircs na escola

A escrita a unicidade impliacutecita do modeloA norma escolar impotildee nos trabalhos escritos dos alunos particularmente na composiccedilatildeo

francesa do ensino fundamental uma maneira de escrita uacutenica um conjunto de estilos prototiacutepicos o que implica a rejeiccedilatildeo de outras formas de escrita Ateacute o momento nada que

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natildeo possa se justificar em especial pela necessidade de pedir emprestado para produzir um objeto normatizado no campo escolar (em outros tempos falariacuteamos da formaccedilatildeo discursiva) ou seja a composiccedilatildeo um estilo adequado a esse objeto Todavia a presenccedila dessa norma uacutenica coloca dois problemas importantes em questatildeo analisados por Veck (1996) em seu trabalho sobre as anotaccedilotildees de coacutepias dos alunos Em primeiro lugar segundo o autor a imposiccedilatildeo de um protoacutetipo estiliacutestico uacutenico da composiccedilatildeo parece arbitraacuterio em relaccedilatildeo agrave praacutetica dos alunos apoacutes ter identificado os estilos proibidos ele observa que

[] todas as maneiras de escrita rejeitadas pelo francecircs escolar natildeo satildeo descritas e nem listadas nos manuais os estilos jornaliacutesticos ou ldquoliteraacuteriosrdquo ou ldquocientiacuteficosrdquo satildeo reconhecidos intuitivamente pelo professor mas natildeo satildeo treinados pelos alunos para os distinguir nem para os praticar como conhecimento de causa Eacute porque se trata de uma questatildeo de praacutetica que se coloca a partir da observaccedilatildeo dessas anotaccedilotildees Eacute possiacutevel aprender o estilo dissertativo sem o situar em relaccedilatildeo a outros (VECK 1996 p 46)

Essa situaccedilatildeo natildeo realizada representa para ele um conjunto de bloqueios na evoluccedilatildeo da disciplina ldquoEacute por uma abordagem complexa discursiva realizada tanto por um plano reflexivo quanto para praacuteticas diversificadas que a disciplina poderia sem duacutevidas escapar da acusaccedilatildeo frequente promovida pelo encontro de atividades limitadas e esclerosantesrdquo (ibid p 46)

O oral clareza e distinccedilatildeoAs mesmas exclusotildees se produzem em relaccedilatildeo agraves produccedilotildees orais dos alunos Tomar a

oralidade e a diversidade dos usos eacute de certo modo uma atividade presente nas Instruccedilotildees oficiais recentes contudo a diversidade de usos eacute ainda considerada sobre o acircngulo de niacuteveis de liacutengua e de sua ldquomeacutetrica124rdquo e a norma escolar continua sendo a uacutenica jaacute que se trata para os alunos como um produto de uma fala ldquoaudiacutevel clara ordenada e regularrdquo (MEN 1997 p 8) Ou como afirma E Nonnon a oralidade natildeo eacute nem invariaacutevel nem linear ldquoporque trata de uma organizaccedilatildeo que se elabora passo a passo por aproximaccedilotildees na atividade produzida pela fala no qual noacutes nos corrigimos por ajustes sucessivos e regulamos por modalizaccedilotildees ou reajustes retrospectivos levando em consideraccedilatildeo a participaccedilatildeo de interlocutores para construir um espaccedilo de compreensatildeo comum Essa emergecircncia de significaccedilotildees na atividade conduzida pela enunciaccedilatildeo essa temporalidade sempre prospectiva e retrospectiva de ajustes para outras formas entram em conflito com a linearidade da linguagem em que vai e vem essa repeticcedilatildeo e esses curtos-circuitos que caracterizam a fala espontacircneardquo (NONNON 1996 p 59) Ela acrescenta que em tudo isso haacute dificilmente sentidos do falar da oralidade ao singular (natildeo mais que na escrita) porque ldquonatildeo haacute muacuteltiplas formas de atividade oralrdquo (ibid p 59) ela precisa que essas formas satildeo as vezes proacuteximas de certas atividades escritas que de forma contraacuteria podem apresentar caracteriacutesticas do discurso oral

124 ldquoEssa situaccedilatildeo (oral) qualquer que seja impotildee a cada vez suas proacuteprias normas e implica assim como consequecircncia uma meacutetrica progressiva de niacuteveis da liacutengua As variedades do francecircs mostram que existem diversos lsquobons usosrsquo que convivem e dominam os coacutedigos para participar plenamente da vida socialrdquo (MEN 1997 p 8)

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As variaccedilotildees da liacutengua o caso dos regionalismosldquoFalar a liacutengua do outro de forma livrerdquo como afirmam os escritores Fournier e Allardi eacute para o

aluno ser assegurado de natildeo incorrer em sanccedilotildees (no seio riacutegido da rejeiccedilatildeo natildeo explicitamente justificada) quando ele se inscreve nos usos da liacutengua que natildeo correspondem agrave norma escolar pois elas constituem variaccedilotildees em relaccedilatildeo aos usos legiacutetimos no exterior seria dessa forma promover uma sanccedilatildeo no tema e sobretudo nas operaccedilotildees realizadas para resolver de maneira individual os problemas linguiacutesticos Os trabalhos dos sociolinguistas mostram que dessa maneira eacute principalmente a concepccedilatildeo ldquomonolinguiacutesticardquo invariaacutevel que domina o lado dos professores e da instituiccedilatildeo e que as variaccedilotildees regionais satildeo insuficientemente consideradas porque satildeo desconhecidas Blanchet mostra por exemplo por meio de suas pesquisas sobre os documentos oficiais os manuais escolares e as representaccedilotildees de professores que ldquoa educaccedilatildeo fica majoritariamente normativa (um uacutenico coacutedigo) agraves vezes plurinormativa (vaacuterios coacutedigos) longe de proposiccedilotildees plurinormalistas (usos de vaacuterios coacutedigos) resultado do estudo cientiacutefico dos fatos linguageirosrdquo (FOURNIER ALLARDI 1995 p 49) Essa importante imagem de uma liacutengua invariaacutevel tem por ela mesma graves consequecircncias ldquoeacute uma distorccedilatildeo grave da educaccedilatildeo francesa tanto em relaccedilatildeo ao plano de conteuacutedos errocircneos quanto para a ideologia da exclusatildeo que ele instiga125rdquo (ibid p 49)

A liacutengua-silecircncio

O ldquodiaacutelogo magistralrdquo

Essa expressatildeo aplicada no padratildeo da reparticcedilatildeo da fala em aula por Daunay Marguet e Sauvage (1996 p 102) designa um tipo de troca em curso no qual ldquoa fala do aluno eacute essencialmente a resposta de solicitaccedilotildeesrdquo e tambeacutem satildeo ldquoas uacutenicas que alguns alunos sabem compreender sobre o seu localrdquo Ou seja nessa ldquocomunicaccedilatildeo desigualrdquo os outros permanecem em silecircncio Esse silecircncio dos alunos (trata-se do silecircncio que os impede de falar e natildeo de um silecircncio positivo escolhido pelo escutar e pela troca por exemplo) eacute tambeacutem o indiacutecio de uma imagem da liacutengua Para esses alunos a liacutengua eacute uma liacutengua-silecircncio e eacute composta pela constituiccedilatildeo do tema no campo escolar assim como a noccedilatildeo de aprendizagem na escola que se encontra afetada Eacute um conjunto de diversos professores colocando em discussatildeo dispositivos que lhes permitem passar do diaacutelogo magistral ao diaacutelogo mais curto se o modo da didaacutetica da oralidade eacute de fato largamente aberto o que constata que ldquoo problema das crianccedilas silenciosasrdquo eacute sempre aquele que os professores relevam majoritariamente quando os interroga sobre suas praacuteticas da oralidade (LE CUNFF 1994 p 21 sobre o primaacuterio)

O risco da liacutenguaEssa imagem da liacutengua em que os alunos mergulham representa um silecircncio que eacute bem

descrito por M Rispail (1995) isto eacute que coleta junto dos alunos informaccedilotildees mostrando

125 Para um tratamento mais aprofundado sobre essa questatildeo e para compreender como satildeo constituiacutedas na Franccedila as ldquoideologias diglossicasrdquo (diglossia) consulte Boyer (1990)

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que a imagem da liacutengua-silecircncio eacute parcialmente uma produccedilatildeo de representaccedilotildees nas quais falamos mais alto em particular a liacutengua-norma e a liacutengua invariaacutevel eles dizem por exemplo sobre a impossibilidade de produzir uma fala natildeo preparada e a oralidade descrita no IO do coleacutegio eacute a fala invariavelmente ldquoaudiacutevel clara ordenada regularrdquo que exclui o que D Bucheton (1996 p 6) chama de ldquorascunhos verbaisrdquo eles exprimem tambeacutem o medo da sanccedilatildeo dos professores e dos colegas de sala o medo de natildeo impor a ldquoboa falardquo o que eacute adequado ao campo escolar Eacute preciso para prolongar essa exploraccedilatildeo poder mesurar o degrau da violecircncia desse silecircncio dos alunos violecircncia dirigida contra a instituiccedilatildeo e seus representantes o silecircncio dos alunos pode tambeacutem constituir uma reversatildeo de valores da instituiccedilatildeo escolar lugar da ldquomeacutetrica da liacutenguardquo por excelecircncia Eacute preciso tambeacutem poder compreender o que diz a ldquofala sufocadardquo do sujeito silencioso Frequentemente colocado sobre a conta das famosas lacunas e dificuldades acumuladas ao longo do curso escolar o silecircncio sempre se constitui todavia como um discurso sobre o modo em que o sujeito institui sua autonomia em relaccedilatildeo agrave outra parente colega de classe ou professor Entretanto essa abordagem supotildee o inverso ao sujeito e natildeo como uma ferramenta exterior em que eacute preciso adquirir uma ilusatildeo sobre a ldquomeacutetricardquo

Funcionalidade das imagens da liacutenguaLiacutengua-mundo liacutengua-norma liacutengua invariaacutevel e liacutengua-silecircncio satildeo imagens de liacutengua

dominantes em que noacutes natildeo podemos nos contentar de fazer um uacutenico objeto de contestaccedilatildeo ou um uso simplesmente explicativo Se sua identificaccedilatildeo permite explicar certos passos linguiacutesticos dos alunos e dos professores satildeo levadas em consideraccedilatildeo suas ldquofunccedilotildeesrdquo no campo escolar que promove uma verdadeira reflexatildeo sobre a liacutengua Funccedilatildeo econocircmica da imagem da liacutengua-mundo em que a conservaccedilatildeo salva os custos e em especial o que eacute uma verdadeira questatildeo sobre a reflexividade da linguagem e das modificaccedilotildees que ela implica na abordagem de textos literaacuterios sobretudo funccedilatildeo unificadora tambeacutem porque a representaccedilatildeo da liacutengua como espelho do mundo aparece na doxa da linguiacutestica espontacircnea que une um conjunto e usuaacuterios de uma liacutengua Funccedilatildeo ideoloacutegica das imagens da liacutengua-norma e da liacutengua invariaacutevel de muitas maneiras interdependentes impor o aspecto polido da liacutengua eacute apagaacute-la fazendo com que a instituiccedilatildeo corra o risco de todas as grosseiras Enfim funccedilatildeo de defesa da liacutengua-silecircncio defesa de um sujeito em que o relatoacuterio doloroso em relaccedilatildeo agrave liacutengua diz com abundacircncia a dificuldade de ldquotomar um lugarrdquo

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AS VOZES DO SENSO COMUM NOS DISCURSOS SOBRE A ESCOLA126

Senso comum ldquoManeira de julgar de agir comum a todos os homens (que equivale ao bom senso)rdquo A definiccedilatildeo do Petit Robert eacute uma definiccedilatildeo de senso comum (doravante SC) uma vez que o dicionaacuterio de liacutengua eacute o lugar de registro dos sentidos comumente aceitos por uma sociedade num dado momento de sua histoacuteria Ela eacute circular (comum) analoacutegica (que equivale ao bom senso) extensiva (ausecircncia de estabelecimento de criteacuterios) e perceptivo-comportamental (julgar e agir) Trata-se de uma primeira aproximaccedilatildeo possiacutevel da noccedilatildeo que completaremos ao integrar a dimensatildeo semacircntica do termo senso o SC teraacute para noacutes uma dupla dimensatildeo linguageira e perceptiva

O SC eacute o que podemos chamar de uma noccedilatildeo vaga que escapa agrave verificaccedilatildeo pelo verdadeiro e falso porque apresenta diversos graus de verdade a categoria ldquoSCrdquo integra mais ou menos certos elementos segundo a escala de apreciaccedilatildeo dos locutores sendo que esta uacuteltima se baseia na escala do que eacute comum ou natildeo Por exemplo determinado proveacuterbio bem naturalizado nos usos caberaacute plenamente na categoria enquanto determinada representaccedilatildeo de uma profissatildeo ou de uma nacionalidade seraacute sentida como mais ou menos partilhada Isso ocorre pois o SC eacute tambeacutem uma noccedilatildeo silenciosa fundada sobre o compartilhamento de referecircncias e conveniecircncias no momento seraacute definido de maneira heuriacutestica como um conjunto de percepccedilotildees e produccedilotildees verbais marcadas pelos traccedilos coletivo estabilizado aceito e silencioso

Esse acordo de ldquotodos os homensrdquo como diz o Petit Robert funda a nosso ver a construccedilatildeo e a circulaccedilatildeo do sentido em discurso eacute a condiccedilatildeo de sua eficaacutecia e mesmo de sua existecircncia Eacute como tal que gostariacuteamos de explorar aqui seu funcionamento depois de ter situado o SC no largo paradigma das noccedilotildees que nomeiam as partilhas silenciosas explicaremos por que ele nos parece um conceito central e operacional em anaacutelise do discurso aplicando-o num corpus de ensaios para o grande puacuteblico sobre a escola

1 Pequeno percurso do SC e das noccedilotildees vizinhas

11 Os dois paradigmas

Os fenocircmenos dotados dos traccedilos propostos acima podem ser classificados em dois paradigmas

126 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Les voix du sens commun dans les discours sur lrsquoeacutecole Pratiques 117-118 Metz CRESEF p 29-50 2003 Traduccedilatildeo de Mariana Luz Pessoa de Barros (UFSCar) e Tamires Bonani Conti (UFSCarFAPESP) Este artigo adota as retificaccedilotildees ortograacuteficas propostas pelo Conselho Superior da liacutengua francesa (JO 06121990) inclusive nas citaccedilotildees

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111 O paradigma linguageiro

Reuacutene produccedilotildees verbais como o clichecirc a ideia preconcebida o chavatildeo o lugar-comum o estereoacutetipo o toacutepos (identificaacutevel no plano do enunciado) a forma fixa o proveacuterbio a liacutengua de madeira a ldquofrase feitardquo (identificaacutevel no plano enunciativo)127

Todas essas manifestaccedilotildees estatildeo assentadas numa estabilizaccedilatildeo linguageira mais ou menos completa que permite uma coconstruccedilatildeo eficaz do sentido e uma circulaccedilatildeo faacutecil das produccedilotildees discursivas Natildeo satildeo essas as produccedilotildees que nos interessam aqui a natildeo ser por formas definitivamente estabilizadas e registradas como proveacuterbios o estabelecimento dos criteacuterios de identificaccedilatildeo eacute sempre forccedilado pois as formas fixas o satildeo relativamente agraves eacutepocas aos corpora agraves comunidades ideoloacutegicas culturais Ao localizar os clichecircs os lugares-comuns etc trabalhamos muitas vezes com o desconhecido dessas produccedilotildees e de seus produtores conforme o que eacute determinado pelos referenciais proacuteprios ao pesquisador De fato a forma fixa recortada na mateacuteria do discurso natildeo diz nada sobre seus traccedilos de SC Preferimos ouvir o que os proacuteprios discursos dizem sobre sua relaccedilatildeo com o SC e ver como os locutores constroem sua relaccedilatildeo com o silecircncio das partilhas semacircnticas

112 O paradigma perceptivo-cognitivo

Ao mesmo tempo perceptivo (representaccedilatildeo pelo espiacuterito de objetos exteriores) e cognitivo (construccedilatildeo das crenccedilas e aquisiccedilotildees do saber) esse paradigma engloba numerosas noccedilotildees frequentemente imprecisas algumas vezes concorrentes e variadas quanto a suas origens disciplinares Em suma um labirinto terminoloacutegico e conceitual atraveacutes do qual procuraremos traccedilar uma trajetoacuteria do SC a partir de trecircs espaccedilos disciplinares

A filosofiaA filosofia fala de doxa ou de opiniatildeo comum (CAUQUELIN 1999) de SC (uma ceacutelebre

controveacutersia opotildee Moore e Wittgenstein sobre esse ponto) de crenccedila (JACQUES 1979 DENNETT 1990) de prejulgamento (DASCAL 1999) Detenhamo-nos por um instante sobre as origens filosoacuteficas da doxa e do senso comum noccedilotildees salientes na disciplina Doxa palavra grega eacute estabelecida como noccedilatildeo por Platatildeo particularmente em A Repuacuteblica Existe uma excelente arqueologia do termo e da noccedilatildeo em Cauquelin (1999) A autora lembra a composiccedilatildeo das duas ldquotriacuteadesrdquo platocircnicas

- a triacuteade superior do Belo (fundando a esteacutetica) do Bem (fundando a eacutetica) e do Verdadeiro (fundando a loacutegica) formulada pelo discurso filosoacutefico o Logos discurso unitaacuterio dos princiacutepios que se desdobram no domiacutenio da teoria lugar da permanecircncia das Ideias

- a triacuteade inferior da Tekhnegrave (a teacutecnica ou seja o uacutetil e agradaacutevel da arte) a Doxa (conjunto de ldquoregras ou receitas para um comportamento eficaz que possa ser conveniente agrave maioriardquo p 28) e a Verossimilhanccedila (resultante da dispersatildeo do Verdadeiro em verdades particulares e contingentes) Esse ldquotrio enganador que corresponde ao trio sublimerdquo (p 28) coloca-nos no

127 A lista eacute aberta Os trabalhos abundam nesse domiacutenio por exemplo Amossy (1991) Amossy e Herschberg-Pierrot (1997) Dascal (1999) Goyet (1996) Perrin-Naffakh (1985) Plantin (1993) e Schapira (1999)

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domiacutenio da praacutetica da accedilatildeo e da variaccedilatildeo ele eacute formulado pelo discurso doacutexico a partir do nome de um dos trecircs elementos

Eacute este o primeiro traccedilo importante da doxa eacute tanto a forma degradada do Bem dentro da ldquotriacuteade inferiorrdquo quanto o regime de fala apropriado a essa triacuteade Nesse sentido a sofiacutestica eacute uma linguagem doacutexica pois o sofista eacute para Platatildeo um teacutecnico da palavra Isso significa que a ambiguidade pesa sobre a noccedilatildeo desde suas origens entre regras de comportamento e atitudes linguageiras

A partir daiacute eacute tecida uma tradiccedilatildeo filosoacutefica um pouco subterracircnea constituiacuteda explica Cauquelin (que aliaacutes assimila senso comum e doxa) por ldquotodos esses que sentiram que alguma coisa acontecia do lado do SC da fala ordinaacuteria ou da argumentaccedilatildeo baseada em hipoacuteteses inverificaacuteveisrdquo (p 34) Antifonte Goacutergias Filoacutestrato Quintiliano E mais perto de noacutes Nietzsche Wittgenstei os filoacutesofos da linguagem os autores da Nova Retoacuterica os pragmaticistas os socioacutelogos do cotidiano os epistemoacutelogos

O SC aparece em diferentes contextos filosoacuteficos

G-Eacute Sarfati em seu Preacutecis de pragmatique (2000a cap 6 ldquoLrsquoideacutee drsquoune pragmatique des normesrdquo) lembra que o senso comum eacute a traduccedilatildeo de koinegrave aesthegravesis estabelecido em Da alma por Aristoacuteteles como uma ldquofaculdade [que] permite operar uma siacutentese entre os perceptos dos cinco sentidosrdquo (p 101) A partir daiacute G-Eacute Sarfati distingue ldquoduas filiaccedilotildees de uma epistemologia do conceito de senso comumrdquo (p 101) uma que a toma por uma ldquoracionalidade comumrdquo e a outra que a leva para o lado da eficaacutecia das crenccedilas e da constituiccedilatildeo das opiniotildees (problema da ideologia) Eacute sobre a primeira filiaccedilatildeo que nos debruccedilaremos aqui a que constroacutei o SC como uma ldquoracionalidade comum antes de mais nada organizadora dos dados da percepccedilatildeordquo (p 100) Ela estabelece uma teoria do conhecimento Podemos dar como exemplo a controveacutersia MooreWittgenstein A posiccedilatildeo de G E Moore sobre os traccedilos daquilo que ele chama de ldquoa concepccedilatildeo do mundo oferecida pelo senso comumrdquo pode se resumir a essa declaraccedilatildeo128

[] se sabemos que satildeo caracteriacutesticas da ldquoconcepccedilatildeo de mundo oferecida pelo senso comumrdquo logo elas satildeo verdadeiras eacute contraditoacuterio defender que sabemos que satildeo traccedilos da ldquoconcepccedilatildeo de mundo oferecida pelo senso comumrdquo e que no entanto natildeo satildeo verdadeiras (MOORE 1985 [1925] p 146 grifos do autor)

A partir de sua criacutetica vigorosa da ldquocompulsatildeo filosoacuteficardquo (i e a ilusatildeo da posiccedilatildeo de destaque do filoacutesofo a partir da qual ele crecirc poder enunciar a verdade) L Wittgenstein critica G E Moore por dar agraves verdades do SC um valor absoluto agrave maneira da triacuteade platocircnica superior podemos dizer L Wittgenstein encontra-se de fato ao lado de um relativismo integral (para ele a dimensatildeo pronominal da verdade eacute o Noacutes) e as evidecircncias do SC estatildeo na praacutetica da linguagem no fluxo da vida Ele acusa G E Moore (para quem a dimensatildeo pronominal da verdade eacute o Eu) de realismo dogmaacutetico e metafiacutesico

128 Exceto quando mencionado todos os itaacutelicos nas citaccedilotildees foram feitos por noacutes

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A filosofia das ciecircnciasO SC eacute um objeto de reflexatildeo importante Para Popper (1972) as opiniotildees e crenccedilas

comumente aceitas constituem o ponto de partida universal do saber mesmo que as teorias propostas devam ser submetidas agrave criacutetica Os filoacutesofos das ciecircncias datildeo uma atenccedilatildeo especial agrave linguagem desenvolvem a ideia de que a experiecircncia do SC expressa na linguagem cotidiana deve servir de base para o discurso cientiacutefico teoacuterico de fato o valor de verdade dos enunciados da linguagem cotidiana eacute superior (em seu reconhecimento) agravequele dos enunciados da linguagem cientiacutefica (SCHUTZ 1987) Encontramos mesmo em Nagel (1961) a ideia de que a imprecisatildeo da liacutengua do SC permite a perduraccedilatildeo das crenccedilas (por causa ou graccedilas agrave dificuldade do controle experimental) enquanto o destino das teorias eacute morrer precocemente por falta de imprecisatildeo podemos dizer

As ciecircncias da linguagemAs ciecircncias da linguagem constroem outras abordagens de acordo com as subdisciplinas

do campo

ndash Na anaacutelise do discurso a noccedilatildeo de preacute-construiacutedo extraiacuteda de Henry (1974 1975) por Pecirccheux e Fuchs (1975) eacute o ponto de partida da problemaacutetica do interdiscurso

ndash Do lado da semacircntica integrada eacute traccedilada uma linha de pesquisa que trata da estereotipia na liacutengua teoria dos topoi (ASCOMBRE DUCROT 1983 ASCOMBRE 1995) teoria dos estereoacutetipos (ASCOMBRE 2001) teoria dos blocos semacircnticos e do paradoxo (CAREL DUCROT 1999)

As referecircncias anteriores mostram que nas ciecircncias da linguagem a questatildeo do SC eacute posta nos domiacutenios que integram segundo graus variados diversos paracircmetros extralinguiacutesticos (produccedilatildeo social cultural recepccedilatildeo etc)129 No entanto o SC como tal e com esse nome constitui raramente um objeto expliacutecito de anaacutelise Podemos citar os trabalhos de Sarfati de Larsson e nossa proacutepria abordagem que seraacute desenvolvida em 2

Sarfati trabalhando numa teoria das relaccedilotildees entre texto discurso e doxa propotildee uma ldquopragmaacutetica das normasrdquo (2002a) por meio de uma teoria linguiacutestica da doxa (2002b) Considerando o SC como um ldquoregulador ateacute mesmo um meacutedium semacircntico-pragmaacuteticordquo (2002b p 102) ele o define como ldquoo conjunto das representaccedilotildees simboacutelicas distintivas de uma formaccedilatildeo socialrdquo dito de outro modo uma ldquotoacutepica socialrdquo (p 103) Propotildee uma abordagem em quatro dimensotildees os dispositivos institucionais (dimensatildeo 1) vinculados a textos canocircnicos (dimensatildeo 2) determinam a toacutepica de uma sociedade (o SC dimensatildeo 3) que eacute composta por sua vez por uma ou vaacuterias doxas estruturadas em topoi ou ldquodispositivos de opiniatildeordquo (dimensatildeo 4) O postulado de partida dessa teorizaccedilatildeo eacute de que o sentido (objeto da semacircntica e da pragmaacutetica) se constitui a partir do SC (objeto de uma teoria da percepccedilatildeo)

Numa orientaccedilatildeo mais semacircntica Larsson (1997) traz a questatildeo do sentido para o centro do debate entre relativistas e objetivistas Para ele o sentido eacute equivalente ao SC que ele nomeia

129 Agrave exceccedilatildeo daqueles que remetem agrave semacircntica integrada

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ldquobomrdquo senso comum livrando-o de seus ouropeis pejorativos Propotildee uma ldquoconcepccedilatildeo do sentido como cogniccedilatildeo intersubjetivardquo (LARSSON 1997 p 287) que implica uma epistemologia da relaccedilatildeo

Da concepccedilatildeo do sentido como propriedade emergente tanto intersubjetiva quanto puacuteblica decorre entatildeo uma epistemologia que natildeo eacute nem aquela da introspecccedilatildeo nem aquela da observaccedilatildeo exterior A epistemologia do sentido podemos afirmar natildeo eacute nem uma epistemologia do eu nem uma epistemologia do eleela ou eleselas Eacute uma epistemologia do noacutes ou seja uma epistemologia do conhecimento interacional (Mead) da observaccedilatildeo participante (Boas Jakobson Bakhtin) da experimentaccedilatildeo dialoacutegica (Vygotsky Harreacute amp Gillet) e da pragmaacutetica transcendental (Appel Habermas) (LARSSON 1997 p 287-288)

2 O SC um conceito para a anaacutelise do discursoDe nossa parte frequentar os discursos de instituiccedilotildees (exeacutercito 2000 escola 2002

literatura 2001 2003) levou-nos a propor uma concepccedilatildeo de SC deliberadamente assentada em suas duas dimensotildees semacircntica e perceptivo-cognitiva a dimensatildeo semacircntica eacute a da coconstruccedilatildeo do sentido em discurso fundada num acordo silencioso cujo funcionamento procuramos entender a partir da articulaccedilatildeo da linguagem e da preacute-linguagem a dimensatildeo perceptiva eacute a dos quadros de crenccedila e de saber que configuram e prefiguram a experiecircncia humana e que informam profundamente os discursos dos locutores

21 Definiccedilatildeo

Definimos o SC como um conjunto de quadros de saberes e de crenccedilas que fornecem instruccedilotildees para a produccedilatildeo e a interpretaccedilatildeo do sentido em discurso Esses quadros possuem seis caracteriacutesticas

211 Compartilhamento coletivo e apropriaccedilatildeo individual

Os saberes e as crenccedilas do SC pertencem tanto agrave coletividade quanto ao indiviacuteduo Todo locutor pode se apropriar num Eu do sentido admitido na comunidade Em sua ceacutelebre ldquoApologie du sens communrdquo Moore (1925) explica que as verdades afirmadas em nome da ldquoconcepccedilatildeo do mundo oferecida pelo senso comumrdquo (por exemplo eu nasci um dia) podem ser apropriadas por diferentes locutores sem que sejam fixadas numa forma particular de enunciado pois satildeo formuladas em formas que ele chama de homoloacutegicas

212 Transmissibilidade

Essa propriedade eacute uma condiccedilatildeo de possibilidade da precedente para que esse vai e vem entre coletivo e individual possa existir eacute preciso haver possibilidades de transmissatildeo universal de saberes e crenccedilas Essa aptidatildeo para a transmissatildeo caracteriacutestica do SC eacute chamada de comunicabilidade por Kant que aliaacutes em Criacutetica da faculdade do juiacutezo faz dela uma prova da existecircncia do SC

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Conhecimentos e juiacutezos juntamente com a convicccedilatildeo que os acompanha tecircm que poder comunicar-se universalmente pois do contraacuterio eles natildeo alcanccedilariam nenhuma concordacircncia com o objeto [] Se poreacutem conhecimentos devem poder comunicar-se entatildeo tambeacutem o estado de acircnimo isto eacute a disposiccedilatildeo das faculdades de conhecimento para um conhecimento em geral [] porque sem esta condiccedilatildeo subjetiva do conhecer o conhecimento como efeito natildeo poderia surgir [] Ora visto que esta proacutepria disposiccedilatildeo tem que poder comunicar-se universalmente e por conseguinte tambeacutem o sentimento da mesma (em uma representaccedilatildeo dada) mas visto que a comunicabilidade universal de um sentimento pressupotildee um sentido comum assim este poderaacute ser admitido com razatildeo e na verdade sem neste caso se apoiar em observaccedilotildees psicoloacutegicas mas como a condiccedilatildeo necessaacuteria da comunicabilidade universal de nosso conhecimento a qual tem que ser pressuposta em toda loacutegica e em todo princiacutepio dos conhecimentos que natildeo seja ceacutetico (KANT 1993 [1790] sect 21 ldquoSe se pode com razatildeo pressupor um sentido comumrdquo)130

213 Virtualidade

Trataremos da virtualidade para enfatizar a dimensatildeo natildeo ou preacute-linguageira (de todo modo silenciosa isto eacute sem palavras expliacutecitas) do SC Se aprofundamos essa ideia do acordo impliacutecito sobre o sentido dos enunciados futuros e portanto sobre os conteuacutedos informativos preacutevios (crenccedilas e saberes) deparamo-nos com o espinhoso problema da natureza das proposiccedilotildees Dennett trabalhando sobre as crenccedilas em La strateacutegie de lrsquointerpregravete fornece uma boa siacutentese das diferentes concepccedilotildees de proposiccedilotildees

Existem de fato trecircs tipos de definiccedilotildees gerais de proposiccedilotildees na literatura

(1) As proposiccedilotildees satildeo entidades comparaacuteveis a sentenccedilas que possuem partes segundo certa sintaxe []

(2) As proposiccedilotildees satildeo conjuntos de mundos possiacuteveis Duas sentenccedilas exprimem a mesma proposiccedilatildeo somente se forem verdadeiras exatamente nos mesmos conjuntos de mundos possiacuteveis []

(3) As proposiccedilotildees satildeo como coleccedilotildees ou arranjos de objetos ou de propriedades no mundo (DENNET 1990 p 161-162)

Ele considera que todas essas posiccedilotildees apresentam o mesmo problema ldquoeacute esse fundo de intuiccedilatildeo que existe em relaccedilatildeo agrave possibilidade de uma apreensatildeo das proposiccedilotildeesrdquo (Ibid p 270) Sua abordagem eacute inteiramente diferente

Desde que reconheccedilamos que falar de proposiccedilotildees eacute apenas um colchatildeo heuriacutestico (Dennett 1969 p 80) uma aproximaccedilatildeo uacutetil (ainda que agraves vezes infiel) que eacute sistematicamente impossiacutevel tornar precisa podemos nos livrar daquilo que eacute essencialmente falso que

130 KANT Immanuel Criacutetica da Faculdade do Juiacutezo Traduccedilatildeo de Valeacuterio Rohden e Antoacutenio Marques Rio de Janeiro Editora Forense Universitaacuteria 1993

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consiste em dizer que toda informaccedilatildeo pode ser modelada a partir do fato de dizer ndash enviar um dictum de A a B [] (Ibid p 270 grifos do autor)

Isso o leva a formular uma definiccedilatildeo analoacutegica da proposiccedilatildeo que se adeacutequa bem agrave vagueza da noccedilatildeo de SC ldquoAs proposiccedilotildees entendidas como formas de ldquomedirrdquo a informaccedilatildeo semacircntica revelam-se mais parecidas com doacutelares que com nuacutemeros [] Natildeo haacute unidades reais naturais universais nem do valor econocircmico nem da informaccedilatildeo semacircntica (Ibid p 271 grifos do autor)

Diziacuteamos na introduccedilatildeo que a categoria ldquoSCrdquo integrava mais ou menos certos elementos a partir de uma escala de apreciaccedilatildeo relativa Os conteuacutedos proposicionais de SC tecircm a nosso ver as mesmas caracteriacutesticas que essa moeda da qual fala Dennett definida por sua virtualidade A questatildeo ldquoEsse enunciado pertence ao SCrdquo pode na verdade receber a mesma resposta que aquela dada por Dennet ao final de sua demonstraccedilatildeo ldquoO que vale uma vida de cabra Ou ainda onde e quandordquo (Ibid p 273)

214 Organizaccedilatildeo experiencial

Os saberes e crenccedilas do SC organizam a percepccedilatildeo individual do mundo e a construccedilatildeo dos conhecimentos Estabelecem a ligaccedilatildeo entre o interior e o exterior dado que configuram a percepccedilatildeo e o conhecimento do mundo para o sujeito Como aponta Goodman (1992 p 32) os mundos satildeo feitos tanto quanto encontrados ldquoSe [] os mundos satildeo feitos tanto quanto encontrados entatildeo conhecer eacute tanto fazer quanto dar conta [] Descobrir as leis implica redigi-las Reconhecer padrotildees consiste sobretudo em inventaacute-los e aplicaacute-los Compreensatildeo e criaccedilatildeo caminham juntasrdquo

A hipoacutetese do SC nos leva a adotar a posiccedilatildeo de um construtivismo moderado entre relativismo e objetivismo

215 Aproximaccedilatildeo

As crenccedilas e saberes de SC natildeo se submetem ao criteacuterio de verdade loacutegica agrave verificaccedilatildeo por demonstraccedilatildeo Remetem a uma verdade aproximativa Sua erradicaccedilatildeo que vem de uma longa tradiccedilatildeo na Franccedila das instruccedilotildees platocircnicas (Logos contra Doxa) ao espiacuterito do Iluminismo (luta contra os preconceitos) passando pela taacutebula rasa cartesiana pode ser equiparada agrave ldquoilusatildeo cartesianardquo como assinala Dascal (1999 p 115)

O preconceito sobre o preconceito impliacutecito nessa posiccedilatildeo eacute a crenccedila de que eacute possiacutevel com a ajuda de um meacutetodo satisfatoacuterio eliminar completamente os preconceitos pensar e argumentar a partir de digamos assim um grau zero de preacute-julgamentos e de preconceitos

216 Discursividade

O SC pode ser manifestado em discurso por meio de marcas epimetalinguiacutesticas e linguiacutesticas De fato os sujeitos constroem uma relaccedilatildeo com o SC em seus discursos com modalidades diferentes segundo as formaccedilotildees discursivas Nossa concepccedilatildeo de SC reencontra

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aqui parcialmente aquela de preacute-construiacutedo noccedilatildeo fundadora da anaacutelise do discurso francesa que Pecirccheux (1971 apud MALDIDIER 1990 p 153) seguindo Henry elaborava no comeccedilo dos anos 70 ldquo[] o ldquosujeito falanterdquo toma posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves representaccedilotildees das quais eacute suporte sendo que essas representaccedilotildees se encontram realizadas pelo ldquopreacute-construiacutedordquo linguisticamente analisaacutevelrdquo

A noccedilatildeo de preacute-construiacutedo estaacute intimamente articulada a um contexto epistemoloacutegico e poliacutetico especiacutefico (marxismo althusseriano inspiraccedilatildeo lacaniana) mas essa discursividade anterior agrave linguagem essa presenccedila do preacute-linguageiro no linguageiro nos parece uma propriedade partilhada pelo SC tal como o entendemos aqui

22 Manifestaccedilotildees discursivas

2211 A relaccedilatildeo com o SC uma praacutetica discursiva

Nossa questatildeo eacute a da relaccedilatildeo com o SC construiacuteda no discurso Nosso trabalho visa a contribuir com uma teoria da praacutetica discursiva dimensatildeo inserida na origem da anaacutelise do discurso (em particular por Pecirccheux) e relativamente apagada a nosso ver na anaacutelise do discurso atual131

Os discursos de fato constroem o sentido a partir de dados experienciais natildeo linguageiros (costumes haacutebitos crenccedilas quadros perceptivos e cognitivos) Esses dados satildeo taacutecitos eles natildeo precisam ser expliacutecitos e de qualquer forma natildeo estatildeo abertos agrave explicitaccedilatildeo (a possibilidade da explicitaccedilatildeo eacute segundo Dennett o que diferencia o taacutecito do impliacutecito)

Natildeo seraacute portanto o caso de ldquotraduzirrdquo as proposiccedilotildees que constituem os saberes e crenccedilas de SC mesmo a tiacutetulo heuriacutestico O que nos interessa eacute ao contraacuterio seu estado virtual e preacute-linguageiro na medida em que informa os discursos que permanecem prioritariamente nosso objeto Em conformidade com a nossa definiccedilatildeo buscaremos ver como as instruccedilotildees do SC se manifestam discursivamente

222 Os dois SC

Na perspectiva de estudo sobre corpus a noccedilatildeo de SC eacute construiacuteda por dois discursos portanto por duas visotildees diferentes

ndash Discurso 1 o discurso ldquocientiacuteficordquo do pesquisador que adota uma perspectiva funcional visando agrave anaacutelise a partir de um SC1 definido anteriormente no seio de uma elaboraccedilatildeo teoacuterica

ndash Discurso 2 o discurso dos locutores do corpus que se baseiam num SC2 cuja definiccedilatildeo eacute elaborada na praacutetica do discurso

131 A publicaccedilatildeo recente de dois dicionaacuterios de anaacutelise do discurso (DEacuteTRIE et al 2001 MAINGUENEAU CHARAUDEAU 2002) parece-nos o signo cientiacutefico e institucional de um posicionamento atual dos discursivistas no campo da ldquoteoria da teoriardquo

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O fenocircmeno interessante eacute que esse discurso 2 costuma se apresentar (e eacute particularmente o caso dos ensaios para grande puacuteblico sobre a escola escritos majoritariamente por filoacutesofos) com a ldquocientificidaderdquo do discurso 1 Acreditamos que haja duas consequecircncias decorrentes disso

ndash Do ponto de vista metodoloacutegico o risco de confundir os dois discursos eacute grande O trabalho do analista deve entatildeo conservar a profundidade do campo traccedilada pelas duas concepccedilotildees do SC e evitar confundir os dois niacuteveis sob pena de projetar um sobre o outro

ndash Do ponto de vista teoacuterico eacute interessante entender a pretensatildeo cientiacutefica do discurso 2 como a formulaccedilatildeo de uma teoria popular do SC Popular aqui quer dizer ldquoespontacircneardquo no sentido em que falamos de uma linguiacutestica ou de uma fiacutesica ou de uma psicologia popular Se como explicam os filoacutesofos das ciecircncias a experiecircncia do SC eacute o ponto de partida da teoria cientiacutefica entatildeo a teoria popular do SC que os corpora constroem parece-nos um bom ponto de partida para uma teorizaccedilatildeo linguiacutestica do SC

223 Os trecircs patamares de anaacutelise

Propomos uma aproximaccedilatildeo em trecircs niacuteveis (preacute-discursivo metadiscursivo discursivo) fundada na presenccedila de marcas no discurso

ndash Niacutevel preacute-discursivo O SC discursivizado estaacute ancorado no espaccedilo preacute-discursivo dos conhecimentos preacutevios partilhados por uma comunidade discursiva (as ldquoproposiccedilotildeesrdquo)

ndash Niacutevel metadiscursivo Os comentaacuterios dos locutores sobre a natureza de seu discurso (plano autodiscursivo) ou daquele do outro (plano alterdiscursivo) explicitam sua relaccedilatildeo com o SC

ndash Niacutevel discursivo A relaccedilatildeo com o SC se constroacutei a partir de certo nuacutemero de agenciamentos formas do jaacute-laacute convocaccedilatildeo da liacutengua manifestaccedilotildees enunciativas elaboraccedilotildees cognitivo-textuais

3 Os discursos sobre a escolaExploramos aqui uma parte dos ensaios sobre a escola publicados na volta agraves aulas de

1999 Retivemos nove dos trinta publicados a partir de um criteacuterio de representatividade relativa (e muito aproximativa) satildeo os que tiveram a maior repercussatildeo midiaacutetica O quadro dos debates eacute bem conhecido e goza de uma boa permanecircncia desde os anos 70 (reforma Haby) de forma breve a estrutura profunda eacute aquela da disputa entre Antigos e Modernos e as estruturas de superfiacutecie evoluem com as condiccedilotildees histoacutericas e sociais (PAVEAU 1999 2001) Em 1999 assumem a forma de uma oposiccedilatildeo entre ldquoRepublicanosrdquo (defensores da Escola da Repuacuteblica) e ldquoReformadoresrdquo (partidaacuterios de uma evoluccedilatildeo da escola) oposiccedilatildeo formulada pelos ldquoRepublicanosrdquo132 O corpus eacute o seguinte

132 A grande maioria dos ensaios para grande puacuteblico sobre a escola contesta as reformas e as estruturas educacionais atuais Isso indica que a origem da fala puacuteblica sobre a escola eacute no geral protestadora e contestadora Isso significa tambeacutem a nosso ver que o discurso do SC sobre a escola na Franccedila eacute informado por essa criacutetica permanente Com exceccedilatildeo de raras figuras midiaacuteticas como P Meirieu os ldquoReformadoresrdquo produzem preferencialmente obras cientiacuteficas oriundas de trabalhos universitaacuterios de difusatildeo evidentemente menos massiva que os ensaios para o grande puacuteblico

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COUTEL C Que vive lrsquoeacutecole reacutepublicaine Entretien avec P Petit Textuel ldquoConversation pour demainrdquo 120 p

JAFFRO L RAUZY J-B Lrsquoeacutecole deacutesœuvreacutee La nouvelle querelle scolaire Flammarion 269 p

MICHEacuteA J C LrsquoEnseignement de lrsquoignorance et ses conditions modernes Castelnau Climats 144 p

MILNER P A bas les eacutelegraveves Albin Michel 189 p

MOLINIER G La gestion des stocks lyceacuteens Ideacuteologies pratiques scolaires et interdit de penser LrsquoHarmattan 232 p

MOREL G TUAL -LOIZEAU D Horreur peacutedagogique Parole de profs et veacuteriteacute des copies Ramsay 253 p

MORIN E La Tecircte bien faite Repenser la reacuteforme reacuteformer la penseacutee Seuil ldquoLrsquohistoire immeacutediaterdquo 156 p

PENA-RUIZ H LrsquoEacutecole Flammarion ldquoDominosrdquo 128 p

REY M La chute de la maison Ferry Arleacutea 142 p

Pudemos mostrar num outro trabalho sobre o mesmo corpus (2002) que esses discursos construiacuteam uma relaccedilatildeo negativa com o SC escritos majoritariamente por filoacutesofos de tradiccedilatildeo ldquoplatocircnicardquo esses textos ancoram-se no que M Dascal nomeia ldquoilusatildeo cartesianardquo e formulam de maneira redundante uma vontade daquilo que chamamos de ldquolimpeza cognitivardquo fazer taacutebula rasa das verdades aproximativas logicamente falsas expressas de um modo doacutexico para construir o discurso da verdade veiculada pelo logos Essa postura eacute formulada no niacutevel metadiscursivo em particular por caracterizaccedilotildees autodiscursivas (negaccedilatildeo da convocaccedilatildeo do SC e reivindicaccedilatildeo do discurso loacutegico) e alterdiscursivas (acusaccedilatildeo da convocaccedilatildeo do SC no discurso do outro) Haviacuteamos no entanto apontado brevemente que esses discursos natildeo mantinham as posiccedilotildees declaradas pelos metadiscursos os processos de validaccedilatildeo metaenunciativos do SC (expressotildees adverbiais como ldquonaturalmenterdquo ldquoevidentementerdquo etc) e o recurso frequente ao etimologismo mostravam que a legitimidade desses discursos tambeacutem estava fundada na convocaccedilatildeo do SC

31 As formas do jaacute-laacute

O discurso diz o jaacute-laacute exterior ao sujeito sem seu conhecimento declarando-se mestre de seu discurso (em termos althusserianos falariacuteamos do indiviacuteduo interpelado em sujeito) o locutor mascara tudo ao convocar os saberes e crenccedilas do SC Eacute o caso da questatildeo geneacuterica e da negaccedilatildeo natildeomais

311 A questatildeo geneacuterica

A questatildeo geneacuterica que a retoacuterica claacutessica chama de interrogaccedilatildeo oratoacuteria eacute uma forma que registra essa postura dupla do locutor assunccedilatildeo individual e apoio no SC M Ali Bouacha

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formula muito claramente essa posiccedilatildeo na qual podemos reconhecer aliaacutes o discurso de Moore sobre as verdades do SC que podem ser apropriadas por cada um

[] o enunciado geneacuterico acumula essa propriedade dupla e agrave primeira vista contraditoacuteria de expressar um engajamento e de permitir um desengajamento Engajamento pois buscamos impor uma proposiccedilatildeo contra outra proposiccedilatildeo que lhe preexiste de uma forma ou de outra Desengajamento pois agimos como se natildeo enunciaacutessemos nossa opiniatildeo pessoal mas a de todo mundo ou melhor ainda uma verdade fundada num ldquocogitamus racionalrdquo dito de outra maneira no que ldquoobriga a pensar de acordordquo (Bachelard) (ALI BOUACHA 1993 p 285)

As formas da questatildeo geneacuterica satildeo variadas mas todas tecircm em comum o fato de instalarem uma atmosfera de duacutevida a proposiccedilatildeo avanccedilada eacute imediatamente posta em debate em nome da evidecircncia do SC que instrui uma resposta impliacutecita Nos exemplos seguintes a criaccedilatildeo da duacutevida ocorre por meio da negaccedilatildeo do futuro e da negaccedilatildeo da consequecircncia133

Interro-negaccedilatildeo

ndash Cou 40 Informar-se e formar-se satildeo a princiacutepio incompatiacuteveis para ser vocecirc mesmo natildeo seria preciso dar um passo para traacutes e para cima (o que diz a palavra ldquoalunordquo)134

ndash Rey 9 Ele [P Meirieu] natildeo eacute funcionaacuterio O que o libera entatildeo da obrigaccedilatildeo de sigilo

Que+futuro

ndash Jaf 13 Quem acreditaraacute que hoje eacute realmente importante declarar a qual campo pertencemos ao clube dos que tecircm uma visatildeo moderna e ldquoinovadorardquo de escola ou ao sindicato dos corporativistas dos saudosistas e ldquoantiquadosrdquo

ndash Rey 33 Mas quem vai querer se ver reduzido agrave categoria de repetidor natildeo podendo transmitir mais que uma iacutenfima parte de um saber amado de um saber taxado de enciclopedismo e paradoxalmente definido como o inimigo do conhecimento Quem entatildeo vai querer ndash a menos que seja levado a isso pelo medo do desemprego ndash se resignar agrave polivalecircncia Quem entatildeo vai querer submeter-se agrave vigilacircncia dos delegados de classe e ao militarismo da administraccedilatildeo

Consequecircncia negada

ndash Morel 29 Acreditamos que nossos alunos estejam suficientemente armados para praticar a ginaacutestica intelectual dos sofistas

ndash Morel 130 Quem pode ser tatildeo cego a ponto de natildeo ver que a aprendizagem da verbalizaccedilatildeo passa pelo gesto tanto quanto pelo ceacuterebro

133 As referecircncias primeiras letras do nome do autor e paacuteginas (exceto no caso de Morel e Morin)

134 NT O autor retoma a relaccedilatildeo de ldquoeacuteleacuteverdquo traduzido por ldquoalunordquo com ldquoeacuteleverrdquo que pode ser traduzido por ldquoelevarrdquo ldquolevantarrdquo entre outros Natildeo conseguimos manter essa relaccedilatildeo na traduccedilatildeo

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Outras formulaccedilotildees satildeo de ordem leacutexico- ou retoacuterico-sintaacutetica eacute a combinaccedilatildeo da interrogaccedilatildeo com a expressatildeo expliacutecita de uma soluccedilatildeo alternativa impossiacutevel que produz o efeito geneacuterico

ndash Cou 27 De que outra forma explicar essa virada educativa e de exaltaccedilatildeo da juventude que leva agrave mudanccedila do nome do ministeacuterio em 1932 []

ndash Jaf 13 Adotar certa posiccedilatildeo sobre as questotildees de poliacutetica educativa eacute simplesmente escolher entre o coacutedigo Morse e o celular

ndash Rey 32 No entanto esse prolongamento eacute em essecircncia antidemocraacutetico que famiacutelias podem manter seus filhos nos estudos por quatro a cinco anos depois do vestibular

Nesses enunciados a combinaccedilatildeo se faz com o adveacuterbio distintamente a comparaccedilatildeo teacutecnica (coacutedigo Morse e celular) e o emprego de manter conduzido pela asserccedilatildeo precedente sendo que ela mesma se apoia no SC via a expressatildeo em essecircncia

312 A negaccedilatildeo em natildeo mais

A forma natildeo mais por definiccedilatildeo soacute pode ser construiacuteda a partir do caraacuteter partilhado de um enunciado afirmativo anterior Aleacutem disso a natureza da foraclusatildeo inscreve o enunciado na temporalidade o acordo anterior remete ao passado o que explica por que essa estrutura tambeacutem participa de uma estrutura transfraacutestica e polecircmica mais ampla o mito da decadecircncia ou mito do tempo anterior bem explorado por M Angenot por exemplo (1982) e que constitui uma das crenccedilas do SC dos discursos sobre a escola Alguns exemplos

ndash Cou 40 Se a escola natildeo transmite mais a sociedade corre risco de se repetir e de natildeo mais progredir

ndash Jaf 126 Na escola de hoje a maior parte dos aprendizados que passam necessariamente pela repeticcedilatildeo dos mesmos exerciacutecios ou que dependem da memoacuteria natildeo estaacute mais garantida

ndash Morel 127 Natildeo aprender mais nada Piada triste

ndash Pen 83 [] medimos a amplitude de uma renuacutencia assim programada da Escola frente agraves desigualdades sociais que natildeo satildeo mais combatidas []

ndash Rey 33 Agrave escola natildeo se coloca mais o objetivo de enriquecer o humano mas de tornaacute-lo consumiacutevel

32 O apelo agrave liacutengua

O apelo para o SC eacute frequentemente em nosso corpus um apelo para a proacutepria liacutengua que entatildeo aparece como o lugar mais consensual de acordo com o sentido das palavras (geralmente de uma perspectiva nomenclatural) Qualquer modificaccedilatildeo de significantes ou da relaccedilatildeo significante-significado eacute entatildeo considerada como uma mudanccedila da ordem natural

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e oacutebvia do senso ldquooficialmenterdquo comum Essa eacute a ortodoxia do SC que entatildeo serve como um argumento de peso em debates sobre a escola Encontramos vaacuterias manifestaccedilotildees desse apelo agrave ortodoxia da liacutengua aqui vamos lidar com a rejeiccedilatildeo o comentaacuterio lexicoloacutegico e a definiccedilatildeo lexicograacutefica espontacircnea135

321 A rejeiccedilatildeo

Fenocircmeno de natildeo coincidecircncia do discurso consigo mesmo segundo J Authier (1995) a rejeiccedilatildeo de um segmento (na maioria das vezes uma unidade lexical) por meio de aspas ou comentaacuterios como ldquoo que chamamosrdquo ou ldquocomo dizemosrdquo aqui sinaliza uma natildeo coincidecircncia do discurso com uma concepccedilatildeo de discurso ancorada na normatividade do SC o da liacutengua As rejeiccedilotildees do corpus geralmente se relacionam com as palavras atribuiacutedas aos reformadores pedagogia ciecircncias da educaccedilatildeo profissionalizaccedilatildeo formadores Exiladas num alhures ilegiacutetimo do discurso elas satildeo de fato marcadas com um desvio das normas preacute-discursivas compartilhadas e dominantes

Rejeiccedilotildees tipograacuteficas citaccedilotildees

- Cou 8 O que vocecirc precisa saber para ensinar eacute ldquopedagogiardquo e natildeo a mateacuteria que vocecirc estaacute ensinando

- Jaf 23 Natildeo eacute incomum encontrar na abundante literatura das ldquociecircncias da educaccedilatildeordquo essa mesma escansatildeo da histoacuteria de nosso sistema educacional

- Jaf 60 No estado atual das coisas os ldquoformadoresrdquo da IUFM natildeo podem ser professores experientes

- Morel 172 Sem falar na confusatildeo que impera na terminologia [] Entre a identificaccedilatildeo de ldquocapacidadesrdquo que pressupotildeem o domiacutenio de ldquohabilidadesrdquo por sua vez detalhadas em ldquocomponentesrdquo haacute como se confundir

Combinaccedilatildeo de citaccedilotildees + comentaacuterios

- Jaf 45 Se aleacutem disso a formaccedilatildeo contiacutenua que recebem sob a forma de estaacutegios ao longo da carreira eacute mais uma vez consagrada agrave ldquoprofissatildeo docenterdquo como dizemos complacentemente e nunca ao conteuacutedo do conhecimento transmitido entatildeo eles seratildeo sem duacutevida maus professores incapazes de ensinar completamente com clareza e distinccedilatildeo os primeiros elementos

- Jaf 79 O tipo de dissimulaccedilatildeo da dimensatildeo comercial de certos ldquoprodutos culturaisrdquo como satildeo chamados eacute uma das caracteriacutesticas mais surpreendentes de nossos Modernos

135 (9) Natildeo vamos voltar ao etimologismo tratado em Paveau (2002 p 170-172)

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322 O comentaacuterio lexicoloacutegico

Trata-se de enunciados que fazem comentaacuterios criacuteticos sobre os usos lexicais do campo oposto O outro eacute acusado de se utilizar da liacutengua uma liacutengua equivocada como instrumento de dominaccedilatildeo A explicaccedilatildeo do processo eacute clara no seguinte exemplo

- Cou 13 [Pergunta] O que vocecirc chama de ldquoretoacuterica pedagoacutegicardquo [Resposta] Este eacute o conjunto de processos pelos quais os educadores oficiais especialmente Philippe Meirieu conseguem oficializar seu leacutexico e portanto sua visatildeo das instituiccedilotildees de ensino e do homem em geral [] A liacutengua dos pedagogos muitas vezes eacute repetitiva amneacutesica e autoniacutemica (ou seja confundir o nome da coisa e a proacutepria coisa) [] Eacute a essa liacutengua que eacute conveniente resistir Os tempos democraacuteticos tambeacutem satildeo favoraacuteveis a essas linguagens que satildeo consensuais sem explicaccedilatildeo Essa eacute a consequecircncia do igualitarismo um desvio da igualdade As palavras parecem verdadeiras pelo simples fato de serem usadas

Esse tipo de comentaacuterio eacute baseado em uma representaccedilatildeo ideal de liacutengua ou seja uma ldquoboardquo liacutengua liacutengua perfeita que fala a verdade do mundo representaccedilatildeo ideoloacutegica eacute claro agrave qual se apegam outros esquemas representativos

- Cou8 [Prefaacutecio de P Petit] Palavras Seria errado natildeo ter cuidado com o vocabulaacuterio que alguns usam para transmitir seus pontos de vista O dispositivo de linguagem dos atuais renovadores eacute uma maacutequina de guerra contra as escolas seculares e a educaccedilatildeo puacuteblica [] Um sistema no qual ldquoalunosrdquo se transformam em ldquojovensrdquo as ldquoaulasrdquo se transformam em ldquoatividadesrdquo a ldquodisciplina escolarrdquo se transforma em ldquoconhecimentordquo Como natildeo levar a seacuterio essa revoluccedilatildeo linguageira que a ldquopedagogia contemporacircneardquo promoveu Cabe a Charles Coutel [] ter chamado nossa atenccedilatildeo [] sobre este novo obscurantismo de palavras e valores que eacute o trampolim principal da revoluccedilatildeo cultural em curso liderada por novos pedagogos

Revoluccedilatildeo linguageira obscurantismo revoluccedilatildeo cultural a ruptura da ordem natural e oacutebvia da liacutengua eacute uma transformaccedilatildeo da ordem do mundo Os comentaacuterios lexicograacuteficos denunciam de fato uma tentativa de imposiccedilatildeo de um ldquomaurdquo SC substituindo o ldquobomrdquo no qual se baseia a liacutengua da verdade educativa ldquoTomar gato por lebre mudar pouco a pouco o sentido das palavrasrdquo como diz P Rey (p 14) Eacute a identidade do SC consigo mesmo que eacute entatildeo ameaccedilada com o SC estamos no mesmo nesta coletividade que pode ser apropriada e transmitida pelo indiviacuteduo Modificar as palavras do SC eacute colocar o outro o estrangeiro na liacutengua E a seguinte observaccedilatildeo do mesmo autor aponta bem essa ameaccedila de alteridade

- Cou 13 Trata-se antes de mais nada de tornar a escola alheia a si mesma por meio de um esvaziamento as palavras se apagam pura e simplesmente a pretexto de que ldquoenvelheceramrdquo ou de que eles satildeo muito ldquotradicionaisrdquo [] Resistir a isso eacute lembrar o sentido das palavras reprimidas ldquoinstituirrdquo significa estabelecer e instruir Esquecer

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um termo como este eacute correr o risco de esquecer toda uma seacuterie de outras palavras instituiccedilatildeo instruccedilatildeo O esquecimento mais seacuterio atualmente incide sobre as palavras ldquoeducaccedilatildeo puacuteblicardquo

Encontramos em outros autores muitas notaccedilotildees anaacutelogas

- Jaf 163 A distinccedilatildeo entre ldquoconhecimento acadecircmicordquo e ldquoconhecimento escolarrdquo poderia ser considerada como uma das muitas curiosidades que estatildeo florescendo atualmente na nova linguagem dos reformadores

- Mol 58 Assim os exerciacutecios viraram liccedilatildeo de casa entatildeo transformamos um movimento envolvendo todo o corpo [] na obrigatoriedade de realizaccedilatildeo de trabalho duro imposto de fora [] Os exerciacutecios realizados em sala de aula satildeo chamados de controles verdadeira instituiccedilatildeo dentro da instituiccedilatildeo obsessatildeo de todos os alunos Da mesma forma o aprendizado se reduz agrave obtenccedilatildeo de notas

ndash Pen 82 O vocabulaacuterio do mercado ou do espetaacuteculo natildeo tem lugar na Escola No entanto ele laacute se introduz um pouco mais a cada dia Toda uma terminologia o confirma que se encontra tanto nos textos oficiais quanto nos discursos ambientais sobre a escola confirma isso Os alunos constituiriam os ldquonovos puacuteblicosrdquo ldquousuaacuteriosrdquo ateacute mesmo ldquoconsumidores de conhecimentordquo teriam uma ldquodemandardquo que deveria ser atendida por uma ldquooferta formativardquo escolas de segundo grau deveriam ser ldquoadministradasrdquo como ldquoempresas de educaccedilatildeordquo provavelmente com ldquoparceirosrdquo etc

- Rey 15 Perversatildeo da linguagem Reforma natildeo eacute abandono Reformar natildeo eacute vender suprimir ou destruir Reformar o correio natildeo eacute transformaacute-lo agraves escondidas em um banco [] Reformar o sistema de sauacutede natildeo significa fechar uns oitenta hospitais nas pequenas cidades [] Natildeo reformar eacute melhorar []

33 A construccedilatildeo semacircntico-lexical do SC

Se os autores denunciam esses ataques agrave ortodoxia da liacutengua eles portanto implicitamente se apresentam como os detentores e possivelmente os fiadores Diversos processos discursivos contribuem para a construccedilatildeo-restauraccedilatildeo do SC perdido

331 A definiccedilatildeo lexicograacutefica espontacircnea

Chamamos de definiccedilatildeo lexicograacutefica espontacircnea a construccedilatildeo em discurso de uma definiccedilatildeo subjetiva que natildeo se refere a uma ferramenta lexicograacutefica ou a um aparato teoacuterico e que portanto remete a uma lexicografia popular Trata-se de uma remediaccedilatildeo agraves deficiecircncias de linguagem mencionadas anteriormente os locutores se empenham na restauraccedilatildeo do SC das palavras aquele que eles acreditam que deve servir de base para uma verdadeira educaccedilatildeo Eggs (1994 p 114) sublinha a dimensatildeo coletiva e generalizante da forma da definiccedilatildeo que constitui um dos lugares mais eficazes da retoacuterica ao dotaacute-la de um poder de ldquotipizaccedilatildeordquo

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Uma definiccedilatildeo eacute uma foacutermula que expressa uma ou mais tipizaccedilotildees que se tornaram quase necessaacuterias Neste caso eacute uma questatildeo de habilidade e utilidade retoacuterica apresentar seu argumento evocando implicitamente a respectiva tipizaccedilatildeo ou para interpelar argumentativamente o auditoacuterio mencionando explicitamente a ldquotipizaccedilatildeo definitivardquo como no texto de Aristoacuteteles ldquoHomens desregrados ndash todos concordariam ndash natildeo se contentam com os favores de uma soacute mulherrdquo

Este ldquotodos concordariamrdquo constitui o natildeo dito e a forccedila argumentativa da definiccedilatildeo lexicograacutefica espontacircnea que estabelece um continuum entre a opiniatildeo (o aprofundamento do conhecimento) e a definiccedilatildeo (a fixaccedilatildeo do conhecimento) O enunciado definidor eacute particularmente adequado agraves realidades sociais que admitem maior convencionalidade do que as realidades naturais Isso explica por que o processo eacute frequente em nosso corpus As formas natildeo satildeo muito variadas sendo classificadas em duas categorias principais as definiccedilotildees que explicam a atividade definitiva do falante (modelo ldquoE chamo de Xrdquo) e aquelas que apresentam apenas uma predicaccedilatildeo (modelo ldquoX eacute rdquo) Os exemplos a seguir mostram como o quadro da definiccedilatildeo fixa por tipizaccedilatildeo um conteuacutedo argumentativo (polecircmico ou ideoloacutegico) servindo em suma como uma pequena faacutebrica do SC

Eu chamo de X

- Cou 12 Atualmente reina o pedagogismo chamo de ldquopedagogismordquo a arte de multiplicar os preacute-requisitos desnecessaacuterios para o ato de aprender e para o ato de ensinar

- Jaf 16 Examinamos portanto todos os conceitos administrativo-educacionais que estatildeo a cargo da escola que denominamos ldquoideologia escolarrdquo

- Mic 14 Entenderemos aqui por ldquoprogresso da ignoracircnciardquo menos o desaparecimento de conhecimentos essenciais no sentido em que costuma ser lamentado (e muitas vezes com razatildeo) do que o decliacutenio regular da inteligecircncia criacutetica []

- Mol 26 Eu chamo de ideologia escolar todas as falsas perguntas feitas falsos problemas tratados falsas respostas dadas a problemas reais e atuais na educaccedilatildeo que satildeo tambeacutem pistas para verdadeiras questotildees poliacuteticas pedagoacutegicas e eacuteticas e mesmo antropoloacutegicas enfim todas aquelas que dizem respeito agrave formaccedilatildeo do cidadatildeo e do homem para uma profissatildeo

X eacute ou X

- Cou 15 Da mesma forma ldquoaprendizagem fundamentalrdquo agora substitui ldquoconhecimento elementarrdquo sendo que aprendizagem eacute o domiacutenio de um simples saber-fazer e ldquofundamentalrdquo eacute um termo subjetivo que natildeo se refere a nenhuma objetividade transmissiacutevel Natildeo eacute a mesma coisa de forma alguma

- Cou 81 A Repuacuteblica portanto tinha por vontade natildeo educar mas instruir Quando a relaccedilatildeo entre esses dois termos eacute elucidada o ato de ensinar torna-se faacutecil de definir eacute a arte de indicar (signare ldquoindicarrdquo) conhecimento para mentes racionais ansiosas por aprender por si mesmas

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- Jaf 166 ldquoCultura cientiacuteficardquo eacute um discurso sobre a ciecircncia o que se obteacutem quando todo o conhecimento natildeo eacute internalizado mas apenas mencionado Uma metaciecircncia

- Morel 107 [Tiacutetulo do capiacutetulo] Cultura o que resta quando vocecirc natildeo aprendeu nada

- Morin 59 A filosofia natildeo eacute uma disciplina eacute um poder de interrogaccedilatildeo e reflexatildeo que incide natildeo soacute sobre o saber e sobre a condiccedilatildeo humana mas tambeacutem sobre os grandes problemas da vida

Um dos autores aliaacutes leva a praacutetica ateacute o fim ou seja a tipizaccedilatildeo ateacute o registro em dicionaacuterio

- Mol 36 Em breve em sua nova ediccedilatildeo Le Petit Robert escreveraacute na letra A Acadeacutemie ldquo1 ant escola fundada por Platatildeo 2 mod local de conviacutevio onde procuramos amar uns aos outrosrdquo

332 A derivaccedilatildeo em de- e re-

Sabe-se que a derivaccedilatildeo repetitiva em de- privativo eacute um dos processos do discurso panfletaacuterio (ANGENOT 1982) ou reacionaacuterio (ARNOLD et al 1995) Eacute acompanhada em nosso corpus por uma prefixaccedilatildeo em re- simeacutetrica agrave primeira esperada nesse discurso ancorado no mito da decadecircncia que quer que o tempo avance regredindo e que re-accedilotildees em re- sejam necessaacuterias Aleacutem disso o processo eacute saliente em dois dos tiacutetulos do nosso corpus A escola desocupada e A cabeccedila bem feita Repensar a reforma reformar o pensamento

Este tipo de derivaccedilatildeo nos parece revelar o apelo ao SC por trecircs razotildees semacircntica morfoloacutegica e estatiacutestica

Dimensatildeo semacircnticaComo a forma em natildeo mais a forma em de- logicamente eacute construiacuteda pela pressuposiccedilatildeo

da existecircncia da unidade natildeo derivada e de seu sentido positivo (de qualquer forma natildeo negativo) mesmo que se trate frequentemente de um efeito analoacutegico pois na realidade o circuito morfoloacutegico eacute mais complexo (10)136 O raciociacutenio eacute exportaacutevel para re- Os exemplos a seguir (entre as centenas de ocorrecircncias identificadas por cada forma de- e re-) constroem os saberes e as crenccedilas do SC irrigadas pela ideologia crepuscular (PAVEAU 1999)

De-

- Jaf 90 O primeiro e principal efeito do descontentamento com o meacuterito na escola

- Mic 11 A crise do que se costumava chamar de ldquoEscola Republicanardquo [] obviamente participa do mesmo movimento histoacuterico que aliaacutes desfaz as famiacutelias decompotildee a existecircncia material e social das vilas e bairros e em geral gradualmente leva consigo

136 (10) Ainda que decompor por exemplo seja construiacutedo a partir de compor deriva desvio decadecircncia descontente etc natildeo resultam de prefixaccedilatildeo direta (a palavra natildeo prefixada desapareceu ou nunca existiu em francecircs œuvreacute) N T A observaccedilatildeo diz respeito ao termo ldquodeacutesoeuvreacuteerdquo (ociosa) que traduzimos com o objetivo de manter o prefixo de que trata a autora por ldquodesocupadardquo

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todas as formas de civilidade que haacute algumas deacutecadas ainda marcavam uma parte importante das relaccedilotildees humanas

- Mol 159 Encontramos na escrita o mesmo fenocircmeno de deslocamento e desarticulaccedilatildeo do corpo e da liacutengua Temos que ler corpos de escritos sem esqueleto a-morfos que testemunham por escrito o colapso do corpo como uma relaccedilatildeo consigo mesmo com os outros e com as coisas

- Morel 99 Falta de domiacutenio da liacutengua dificuldades de compreensatildeo falta de retrospectiva e desconstruccedilatildeo do conhecimento satildeo os principais problemas observados

- Morin 20 Consequentemente o despojamento do conhecimento muito mal compensado pela vulgarizaccedilatildeo da miacutedia coloca o problema histoacuterico agora capital da necessidade de democracia cognitiva

- Pen 96 Tendecircncia perigosa porque a deslegitimaccedilatildeo dos mestres soacute pode desencorajaacute-los ainda um pouco mais

- Rey 16 Por vinte anos e mais temos trabalhado de forma aberta ciacutenica e implacaacutevel para degradar as condiccedilotildees sociais e morais de existecircncia para destruir os serviccedilos puacuteblicos

Re-

- Cou 93 A repeticcedilatildeo seria restaurada [] Esta medida chocaria alguns mas quando constataacutessemos que ela (re) colocava os alunos para trabalhar seria amplamente aprovada

- Jaf 52 Em vez de continuar na via escolhida seria preferiacutevel tentar retroceder ndash com cautela ndash a certos preconceitos entre os mais nocivos da ideologia escolar restabelecendo a merecida confianccedila dos atores do sistema e a seriedade e o rigor que sua formaccedilatildeo exige

- Morin 46 Ela [a literatura] deve restaurar sua plena virtude

- Pen 122 Revalorizar o amor pelo conhecimento contra os desvios formalistas e pedagoacutegicos parece essencial a este respeito inclusive na luta contra as novas formas de obscurantismo e irracionalismo

- Rey 41 [] todos aqueles que pensam que um sistema educacional soacute pode ser salvo mudando os meacutetodos de ensino e evitando uma restauraccedilatildeo moral

Dimensatildeo morfoloacutegicaQuando a derivaccedilatildeo eacute neoloacutegica e o neologismo aparece em uso (salvo aspas excepcionais)

em uma frase assertiva e se inscreve num grande paradigma de termos em de- bem registrados na liacutengua isso produz um efeito de naturalizaccedilatildeo da unidade inscrita de fato nas estruturas preacute-discursivas dos destinataacuterios do discurso (algo semelhante pode ser dito da derivaccedilatildeo

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em re-) Identificamos oito neologismos que satildeo ou especiacuteficos de um autor ou retomados de um livro no outro (um caso de desritualizaccedilatildeo tirado de M Gauchet)

- Cou 37 [] as raiacutezes da desinformaccedilatildeo puacuteblica nos uacuteltimos anos

- Cou 62 Como reconstruir esse poder espiritual nas democracias modernas Eacute oacutebvio que isso requer um (re)estabelecimento da virtude poliacutetica entre cidadatildeos [] mas tambeacutem uma (re) instituiccedilatildeo escolar

- Cou 71 Os republicanos portanto correm o risco de ldquose deslaicizarrdquo sem perceber

- Jaf 118 [] tanto se tornou evidente o risco de uma marginalizaccedilatildeo coletiva de setores inteiros da juventude

- Mol 133 [] o que estamos testemunhando hoje eacute uma desinstitucionalizaccedilatildeo do corpo no sentido de que o corpo eacute desmembrado deslocado incapaz de se sustentar incapaz de se sustentar no lugar incapaz de sustentar em seu lugar

- Mol 160 Haacute uma espeacutecie de desritualizaccedilatildeo da aprendizagem (leitura escrita contagem)

- Pena 119 A (re) legitimaccedilatildeo da Escola eacute claramente urgente

Dimensatildeo estatiacutesticaA alta frequecircncia de uso dessas unidades produz um efeito de naturalizaccedilatildeo por repeticcedilatildeo

Satildeo em nossa opiniatildeo ferramentas do que Moore chama de enunciados homoloacutegicos adequados para a apropriaccedilatildeo individual das verdades de SC aqui a verdade da decadecircncia e a necessidade de um despertar reparador repeticcedilatildeo coletiva da forma [de- ou re- + X] apropriaccedilatildeo individual do segmento X

333 A derivaccedilatildeo em ndash ismo o exemplo de pedagogismo

Pedagogismo eacute um neologismo agora instalado nos usos em todo caso aqueles que testemunham os discursos do nosso corpus A sufixaccedilatildeo em -ismo produz em certos contextos unidades afetadas pela desvalorizaccedilatildeo eacute entatildeo a ideia de um sistema fechado (poliacutetico ideoloacutegico etc) mais ou menos autoritaacuterio e intencional que emerge desse sufixo tornando-se um subjetivema Todos os empregos de pedagogismo em nosso corpus satildeo marcados negativamente no contexto como mostram os exemplos a seguir

- Cou 15 O pedagogismo tambeacutem tem a perigosa ambiccedilatildeo de mudar a sociedade mudando a escola

- Cou 57 A resposta de Philippe Meirieu concentra todas as confusotildees do pedagogismo

- Jaf 100 [] a desconstruccedilatildeo do ldquocurso magistralrdquo recentemente associado ao elitismo a fragmentaccedilatildeo do grupo e a individualizaccedilatildeo dos percursos enfim tudo o que faz a reivindicaccedilatildeo atual do pedagogismo eacute justificado pela criacutetica social da escola

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- Morel 116 Voltaremos a esta noccedilatildeo de competecircncia bem como a estes novos apoacutestolos dos ldquomeacutetodosrdquo armados de certezas que datildeo aula de boa vontade adeptos de uma religiatildeo pedagogista cujo credo se resume em um slogan tatildeo pretensioso quanto destrutivo aprender a aprender

- Pen 74 As derivas sociais que potildeem em perigo a realidade especiacutefica da Escola parecem agora bem mais ameaccediladoras agrave medida que satildeo veiculadas dentro da proacutepria Escola por um discurso pedagogista muito sistematizado

Natildeo encontramos nenhuma ocorrecircncia neutra ou beneacutefica a proacutepria unidade eacute marcada pela subjetividade Como as derivaccedilotildees precedentes pedagogismo aparece em nosso corpus em enunciados assertivos determinados pelo definido generalizante o que implica uma pressuposiccedilatildeo de existecircncia e de identificaccedilatildeo O uso da palavra portanto inscreve a noccedilatildeo nas evidecircncias compartilhadas do SC como evidenciado por duas passagens interessantes A primeira constitui uma espeacutecie de arqueologia nosoloacutegica da pedagogia construindo entatildeo a noccedilatildeo como uma corrente constituiacuteda dotada de intencionalidade negativa

- Cou 26-27 [] o pedagogismo contemporacircneo detectaacutevel a partir dos anos 1920 com certos movimentos de nova educaccedilatildeo [] Um fato tambeacutem deve ser observado o fasciacutenio exercido pela Itaacutelia fascista e depois pela Alemanha nazista sobre certas mentes De que outra forma explicar essa virada educativa e de exaltaccedilatildeo da juventude que leva agrave mudanccedila do nome do ministeacuterio em 1932 ldquoEducaccedilatildeo puacuteblicardquo passou a ser ldquoEducaccedilatildeo nacionalrdquo (como na Itaacutelia) Nasceu o Estado educador e logo o pedagogo [] Este pedagogismo oficial triunfou com a lei de julho de 1989 que iria impor sob o ministeacuterio de Jospin o Estado pedagogo

A segunda atesta a mesma postura em relaccedilatildeo agrave palavra e agrave noccedilatildeo ao propor uma anaacutelise do ldquodiscurso pedagogistardquo apresentado de fato como um corpo de enunciados constituiacutedo e coerente O pedagogismo se torna quase uma formaccedilatildeo discursiva

- Jaf 177 O discurso pedagogista Pedagogia eacute um termo equiacutevoco Refere-se tanto agrave arte de ensinar quanto agrave concepccedilatildeo de educaccedilatildeo e ensino na qual essa arte se baseia Quanto ao pedagogismo existe uma concepccedilatildeo particular de ensino segundo a qual o essencial estaacute na arte de ensinar O pedagogismo eacute necessariamente polecircmico pois sua forccedila principal consiste em afirmar que a preocupaccedilatildeo com a pedagogia deve prevalecer sobre a do saber Mas ldquoa arte de ensinarrdquo tambeacutem eacute uma expressatildeo equiacutevoca Podemos compreendecirc-la como todas as praacuteticas e teacutecnicas utilizadas mais ou menos conscientemente pelo professor se forem inteiramente relativas agrave disciplina ensinada por exemplo matemaacutetica a pedagogia eacute dita especial e em nada difere da ldquodidaacuteticardquo Eacute que entendemos como ldquopedagogiardquo sobretudo um conjunto de teacutecnicas e meacutetodos cujo valor e relevacircncia sujeitos a algumas variaccedilotildees satildeo independentes das disciplinas particulares Nesse sentido a pedagogia eacute geral e se assemelha muito ao ideal loacutegico-teoloacutegico de um filoacutesofo medieval que trabalhou para inventar uma

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maacutequina para converter automaticamente os infieacuteis Tem como premissa a existecircncia de procedimentos gerais de ensino e aprendizagem que devem ser estudados promovidos e aplicados por si proacuteprios A pedagogia seria o Meacutetodo

Pedagogismo eacute um bom exemplo da construccedilatildeo discursiva do outro antagonista no discurso polecircmico a argumentaccedilatildeo requer um adversaacuterio e a eficaacutecia do discurso eacute aumentada pela existecircncia e pela identificaccedilatildeo preacutevias desse adversaacuterio Pedagogismo por meio de seu sufixo sistematizador eacute entatildeo uma palavra que concordando com N Goodman podemos dizer que eacute tanto feita tanto quanto encontrada eacute construiacuteda neologicamente no discurso ao mesmo tempo em que se articula a partir de saberes anteriores

34 A construccedilatildeo cognitivo-textual do SC

Chamamos de construccedilatildeo cognitivo-textual do SC um tipo de arranjo discursivo estabilizado que se baseia em um compartilhamento preacutevio de saberes eou crenccedilas Eacute o caso das ligaccedilotildees analoacutegicas que induzem no receptor uma transferecircncia de conhecimentos sobre um domiacutenio supostamente conhecido e partilhado que acreditamos ser do acircmbito do SC Dentre essas comparaccedilotildees estaacute obviamente a metaacutefora e retomamos as famosas hipoacuteteses de Lakoff e Johnson (1985) para quem a atividade metafoacuterica eacute natural para a expressatildeo do pensamento e da accedilatildeo Douay-Soublin (1987) fala de ldquoreconciliaccedilatildeo explicativardquo e noacutes a seguimos quando ela a torna uma macrocategoria que ignora as diferenccedilas tradicionalmente estabelecidas entre vaacuterias figuras bem estabilizadas na histoacuteria da retoacuterica

Para esta mesma forma e suas variantes a tradiccedilatildeo retoacuterica disse alternadamente paraacutebola similitude paralelo comparaccedilatildeo equivalecircncia correspondecircncia transposiccedilatildeo metaacutefora ou coloquialmente aproximaccedilatildeo ou mesmo imagem Que importa o roacutetulo desde que tenhamos a forma com o GTA [Grupo de Trabalho sobre Analogia] digo analogia para essa transferecircncia explicativa cujas condiccedilotildees de uma boa formaccedilatildeo importam mais para mim do que o nome (DOUAY-SOUBLIN 1987 on-line)

As conexotildees analoacutegicas entre X e Y satildeo suportadas pelas seguintes quatro teses

- Existem semelhanccedilas entre X e Y

- Apesar dessas semelhanccedilas X e Y satildeo diferentes de outras maneiras

- Podemos descrever ou explicar X do ponto de vista de Y usando formas de pensar que satildeo apropriadas a Y mas que natildeo teriacuteamos espontaneamente associado a X

- A comparaccedilatildeo analoacutegica permite entender melhor X porque Y eacute mais familiar e mais faacutecil de entender ou representar do que X

Note-se que a analogia tem sido tradicionalmente objeto de certo desprezo nos discursos que defendem a expressatildeo direta do conhecimento Como Douay-Soublin (1987 on-line) aponta

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[] endereccedilada pelo saacutebio ao ignorante a analogia natildeo visa ao conhecimento em todos os seus desdobramentos mas apenas a uma primeira aproximaccedilatildeo uma esquematizaccedilatildeo que leva do natildeo conhecimento ao semiconhecimento a analogia precisa de um ignorante como aacutelibi

A relaccedilatildeo analoacutegica convoca de fato um tipo de saber aproximativo natildeo loacutegico que contorna o Logos por meio dos caminhos da Doxa

Falaremos aqui da analogia proporcional e da metaacutefora sem condicionar suas diferenccedilas formais mas examinando o que as une o apelo ao CS que elas estabelecem e supotildeem

341 A analogia proporcional

A analogia oferece ao receptor um novo saber mediado por um saber compartilhado o que Douay-Soublin (1987 on-line) chama de ldquotransferecircncia de conhecimentordquo

Eacute esse efeito de suacutebita e muitas vezes duradoura elucidaccedilatildeo da representaccedilatildeo produzida por uma comparaccedilatildeo ldquoiluminadorardquo uma imagem ldquojustardquo que chamo de clique analoacutegico e me sentiria tentado na praacutetica a conceder o status de acbf (analogia cognitivamente bem formada) a todas as formas simboacutelicas que realmente desencadeiam essa transferecircncia de conhecimento qualquer que seja o nome que lhes seja dado pela tradiccedilatildeo

Nos exemplos a seguir a transferecircncia de conhecimento ocorre de um domiacutenio supostamente desconhecido ou mal conhecido para um domiacutenio conhecido cujos quadros servem de suporte para a explicaccedilatildeo Essas analogias satildeo consideradas proporcionais agrave medida que os autores comparam as proporccedilotildees

- Cou 52 A histoacuteria das ideias eacute para a filosofia o que um inseto morto eacute para o voo de um inseto Eacute uma tentaccedilatildeo formidaacutevel acreditar que esta histoacuteria das ideias prepara os alunos para o pensamento descrever um pensamento natildeo eacute pensar

- Jaf 35 O jogo dos coloacutequios e encontros pedagoacutegicos atinge em pouco tempo na escala das sociedades eruditas o que a seleccedilatildeo produz em vaacuterios milhotildees de anos no mundo dos vivos cada um quer ter sua palavra todos se alinham a um padratildeo virtual que parece nunca ter sido imposto por ningueacutem mas que acaba se tornando a regra

- Jaf 85 O meacuterito era para a poliacutetica do conhecimento o que o secularismo foi para a diversidade dos cultos uma forma bastante sofisticada de neutralidade []

- Jaf 111 Ideoloacutegica tem sido a forma de utilizar a empresa para dar um efeito de realidade ao universo fictiacutecio em que mantemos crianccedilas e professores A empresa eacute para os nossos contemporacircneos o que era a natureza no seacuteculo XVIII ou mais precisamente o mundo rural para os petainistas

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Mundo animal seleccedilatildeo natural secularismo natureza domiacutenios secundaacuterios satildeo mencionados dentro das configuraccedilotildees textuais para fins cognitivos convocando os quadros preacute-discursivos dos receptores

343 A metaacutefora

As metaacuteforas baseiam-se como especifica Aristoacuteteles em seacuteries constituiacutedas ou seja o conhecimento anterior ao discurso que organiza as representaccedilotildees

Aristoacuteteles ao mesmo tempo que insiste nas correlaccedilotildees entre seacuteries produzidas por uma estrutura idecircntica [] de fato repousa o edifiacutecio analoacutegico na existecircncia preacutevia de seacuteries jaacute constituiacutedas partes do corpo espeacutecies animais a lista de emblemas o Panteatildeo dos deuses [] Essas seacuteries que existem na memoacuteria coletiva agraves vezes satildeo longas ateacute indefinidas os nuacutemeros as cores a flora a fauna os ofiacutecios [] outras satildeo limitadas as 22 a 26 letras do alfabeto os doze trabalhos de Heacutercules os doze apoacutestolos os doze signos do zodiacuteaco os dez mandamentos [] (DOUAY-SOUBLIN 1987 on-line)

Os diferentes discursos estabelecem relaccedilotildees privilegiadas com esta ou aquela seacuterie Sabemos que o discurso da educaccedilatildeo se baseia em metaacuteforas recorrentes como aponta Charbonnel (1993) que daacute a seguinte lista viagens alimentaccedilatildeo preenchimento escultura combate luz arquitetura vida animal crescimento vegetal estabelecida com base em um estudo de textos que vatildeo da Antiguidade ao seacuteculo XIX Os discursos contemporacircneos sobre a escola (que satildeo organizados no quadro argumentativo da controveacutersia ao contraacuterio do corpus de Charbonnel) se baseiam em algumas dessas metaacuteforas estruturantes (em particular alimentaccedilatildeo e vida animal) mas oferecem outras amplamente utilizadas Escolhemos aqui falar sobre doenccedilas e militares Natildeo satildeo especiacuteficos ao nosso corpus do ano de 1999 mas organizam todos os discursos da ldquocontroveacutersia escolarrdquo que estudamos desde 1975 (PAVEAU 1999) Satildeo tambeacutem metaacuteforas estruturantes do debate polecircmico em geral que podem ser encontradas no discurso poliacutetico por exemplo

A metaacutefora meacutedicaEacute uma descriccedilatildeo analoacutegica da crise escolar que permite vaacuterias tipizaccedilotildees esclarecedoras

das quais daremos dois exemplos

- A associaccedilatildeo ldquoReformadoresrdquomaus meacutedicos e ldquoRepublicanosrdquobons meacutedicos

- Jaf 15 A poliacutetica educativa consulta os especialistas em didaacutetica e em pedagogia pede-lhes remeacutedios dirigiu-se aos piores meacutedicos pois a didaacutetica e a pedagogia por muito tempo anteciparam na teoria essa renuacutencia agrave transmissatildeo e em vez de curar a doenccedila optaram por apressar seu fim

- Rey 29 Vamos reformar o ensino meacutedio jaacute que abandonamos a faculdade Mais tarde vamos reformar a Universidade Gangrena e amputaccedilatildeo

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- Confusatildeo entre remeacutedio (boa reforma escolar) e veneno (maacute reforma)

- Jaf 33 Condenamo-nos a curar uma doenccedila que eacute proibido diagnosticar publicamente por meio de remeacutedios que sabemos infligir mal

- Rey 38 Este truque de passa-passa [] permite [] sob o pretexto de tratar a paciente acabar com ela E vai acabar com ela com a cumplicidade das mesmas pessoas que tecircm mais interesse pela sua sobrevivecircncia os pais dos alunos e os alunos as classes meacutedias e as classes trabalhadoras

- Rey 50 Tornar a escola uma das causas do desemprego alivia os empregadores e as empresas de sua imensa parcela de responsabilidades Eacute apresentar o remeacutedio como o veneno e o veneno como o remeacutedio

A metaacutefora militarEacute usada de duas maneiras A maneira melhorativa que vai ao encontro do que Charbonnel

chama de ldquoo combaterdquo associa ensino e bravura de guerra

- Pen 78 [] quem tem que trabalhar na linha de frente ndash professores no geral e professores da escola primaacuteria e natildeo pedagogos profissionais que jaacute natildeo ensinam ndash pode ser vencido pelo desacircnimo

- Rey 9 A vida nas trincheiras [tiacutetulo do capiacutetulo]

- Mil 11 [tiacutetulos dos capiacutetulos] 1 Os objetivos da guerra ndash 2 O teatro de operaccedilotildees ndash 3 As forccedilas opostas ndash 4 Suas taacuteticas [dos alunos] ndash 7 Os ardis da guerra ndash 8 A intendecircncia e as bases da retaguarda ndash 9 As alegrias do esquadratildeo

O ponto de vista polecircmico apela sobretudo para a desvalorizaccedilatildeo da atividade militar que entatildeo serve de comparaccedilatildeo com o funcionamento atual da escola

- Mol 27 Esses meacutetodos satildeo mais parecidos com os meacutetodos de gestatildeo de estoques de mercadorias [] do que com meacutetodos de instruccedilatildeo e se queremos manter o uacuteltimo termo eacute mais uma questatildeo de instruccedilatildeo militar do que instruccedilatildeo intelectual isto eacute um aprendizado da submissatildeo e da aprendizagem cega

- Mol 86 A escola de gestatildeo deve treinar seus oficiais subalternos [tiacutetulo do capiacutetulo]

- Morel 122 Algumas exceccedilotildees significativas poreacutem nesta ofensiva generalizada contra a memoacuteria e os procedimentos de aprendizagem o jogador de futebol ou tecircnis o virtuoso artista de concerto e ateacute o candidato agrave carteira de motorista

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ConclusatildeoAo final deste trabalho gostariacuteamos de fazer duas observaccedilotildees

- Levar em consideraccedilatildeo o SC requer um trabalho sobre a presenccedila de crenccedilas e saberes compartilhados na proacutepria materialidade do discurso o SC eacute uma realidade representacional que exige um discurso de atestaccedilatildeo Na ausecircncia dessa comprovaccedilatildeo discursiva o trabalho sobre o SC eacute limitado pela subjetividade do analista e enviesado por seus proacuteprios saberes e crenccedilas

- O discurso sobre a escola privilegia formas ldquointelectuaisrdquo de apelo ao SC determinadas pela formaccedilatildeo discursiva originaacuteria consideraccedilatildeo constante da liacutengua reflexatildeo sobre o sentido uso de figuras retoacutericas Os outros corpora constroem o apelo ao SC de forma diferente (os militares favorecem as formas praacuteticas e os jornalistas favorecem as formas culturais)

As formas de convocaccedilatildeo do SC constroem assim a identidade dos locutores nos discursos e sua consideraccedilatildeo depende integralmente de uma teoria das praacuteticas discursivas

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A LINGUIacuteSTICA FORA DE SI MESMA EM DIRECcedilAtildeO A UMAPOacuteS-LINGUIacuteSTICA137

No nuacutemero 139140 da revista Pratiques sobre linguiacutestica popular publicado haacute pouco mais de dez anos a introduccedilatildeo se intitulava ldquoA linguiacutestica lsquofora do templorsquordquo (ACHARD-BAYLE PAVEAU 2008) Essa expressatildeo refletia outras formulaccedilotildees de uma lacuna em relaccedilatildeo agraves normas que definiam e obrigavam as ciecircncias (ciecircncia selvagem ciecircncia popular ciecircncia profana e mesmo pseudociecircncia) mas tambeacutem a arte (arte bruta fora dos muros arte inocente arte outsider) a medicina (medicinas alternativas medicinas doces138) e muitas outras praacuteticas sociais A linguiacutestica popular eacute de fato alinhada aos colecionadoresas apaixonadosas dos inventores de teorias sem academia dos curandeiros e das bruxas dos saacutebios e xamatildes dosdas artistas loucosas dosdas criadoresas ociososas Essa linguiacutestica estaacute alinhada agraves pessoas que falam sem elaboraccedilatildeo cientiacutefica nem construccedilatildeo teoacuterica cientiacutefica sobre o que falam e o que os outros comentam

Haacute dez anos eu pensava de modo ainda um pouco binaacuterio essa fronteira entre o que eacute cientiacutefico-acadecircmico e o que natildeo eacute ainda que a tipologia dos natildeo-linguistas proposta no texto ldquoOs natildeo-linguistas fazem linguiacutesticardquo139 propusesse um continuum numa perspectiva jaacute poacutes-dualista (PAVEAU 2008) Esta forma de colocar as coisas me parece hoje ultrapassada e pouco defensaacutevel embora ela seja a regra na linguiacutestica acadecircmica Os artigos agrupados nesse nuacutemero da revista Carnets du Cediscor (onde este texto foi originalmente publicado) parece ir em direccedilatildeo a um pensamento escalar em ruptura com o binarismo fundador da ciecircncia linguiacutestica a linguiacutestica popular constituiacuteda pelos metadiscursos dos natildeo-linguistas contribui de fato a situar a linguiacutestica natildeo somente fora do templo mas tambeacutem fora de si mesma isto eacute fora de seus periacutemetros disciplinares imaginaacuterios e normativos e fora dos seus criteacuterios de legitimidade Essa evoluccedilatildeo estaacute tambeacutem ancorada nas mudanccedilas pelas quais passam atualmente todos os discursos tanto aqueles do mundo quanto os da ciecircncia e numa perspectiva internacional Ela estaacute articulada essencialmente em torno da derrota dos dualismos fundadores e do surgimento dos lugares de fala digitais que podem ser apropriados por todos

Os natildeo-linguistas natildeo existem eu osas encontreiDurante os uacuteltimos anos o pensamento poacutes-dualista traccedilou seu percurso e as propostas

para pensar o mundo de maneira ecoloacutegica satildeo felizmente desenvolvidas nutrindo agora muitos trabalhos questionamento da divisatildeo entre natureza e cultura (LATOUR 1991 DESCOLA 2006) a hierarquizaccedilatildeo dos seres e das coisas que colocava o humano no topo da

137 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A La linguistique hors drsquoelle mecircme Vers une postlinguistique Les Carnets du Cediscor 142018 on-line Disponiacutevel em httpjournalsopeneditionorgcediscor1478 Traduccedilatildeo de Julia Lourenccedilo Costa (UFSCarFAPESP)

138 NT Terapias que vatildeo da homeopatia agrave acupuntura e agrave fitoterapia Disponiacutevel em httpswww1folhauolcombrfspcotidianff2909200119htm Acesso em 10 out 2020

139 NT O texto faz parte deste livro

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piracircmide (SCHAEFFER 2007) a concepccedilatildeo internalista do espiacuterito (DENNET 1990) tambeacutem o distanciamento do antropocentrismo (BODDICE 2011) e do eurocentrismo (CHAKRABARTY 2009) Nesses diferentes campos o questionamento das distinccedilotildees dualistas enriquece os resultados das pesquisas e mais amplamente enriquece os pontos de vista pensamos melhor fora dos muros das divisotildees categoriais geograacuteficas e ideoloacutegicas do que no interior dos periacutemetros forccedilados e fechados Da derrota desses binarismos encenada atualmente emerge tambeacutem a invalidez de uma separaccedilatildeo clara entre o que seria cientiacutefico e o que natildeo seria principalmente no que se refere ao conhecimento sobre a linguagem Nancy Niedzielski e Dennis Preston demonstraram na siacutentese que fizeram em 2000 que no centro das atividades linguiacutesticas profissionais os linguistas adotavam atitudes profanas e que reciprocamente diversas descobertas linguiacutesticas profanas se revelaram perfeitamente precisas e verificaacuteveis140 Eu mesma apelei em 2008 por uma perspectiva integracionista dos saberes populares contra um eliminativismo que ainda funda a definiccedilatildeo de ciecircncia (eliminaccedilatildeo dos saberes do senso comum) Levar em consideraccedilatildeo e ateacute mesmo respeitar os resultados da linguiacutestica popular eacute portanto um enriquecimento da proacutepria linguiacutestica e eacute difiacutecil entender porquecirc os linguistas deveriam se privar dela Eacute o que explica Catherine Ruchon no seu artigo sobre a atividade de definiccedilatildeo do discurso animal ldquoAs teorias populares fornecem caminhos de acesso aos processos de semiotizaccedilatildeordquo (RUCHON no mesmo nuacutemero da revista onde o original foi publicado141)

Ela daacute o exemplo da palavra carne do ponto de vista dos carniacutevoros que natildeo evoca ou natildeo evoca mais o sema da animalidade que eacute o que o militantismo animal faz ldquoAs teorias populares podem portantordquo ela conclui ldquoalimentar a pesquisa sobre a relaccedilatildeo entre o leacutexico a referecircncia e as representaccedilotildees mostrando como as categorizaccedilotildees leacutexico-semacircnticas populares satildeo formadas e quais satildeo as representaccedilotildees axioloacutegicas associadasrdquo (Ibidem) Essa integraccedilatildeo dos pontos de vista e em uacuteltima instacircncia das experiecircncias dosdas locutoresas em detrimento da abordagem usual e logocentrada de suas proacuteprias produccedilotildees compete plenamente a uma perspectiva poacutes-dualista

Anne-Charlotte Husson vai mais longe na integraccedilatildeo dos pontos de vista dosdas locutoresas ao propor uma elaboraccedilatildeo teoacuterica que articula a linguiacutestica popular e a epistemologia do ponto de vista (a standpoint epistemologyepistemologia do ponto de vista feminista norte-americana) Essa articulaccedilatildeo permite que ela integre na anaacutelise dos fenocircmenos linguageiros e discursivos os dados eacuteticos e poliacuteticos dos ambientes produtores de discurso (HUSSON no mesmo nuacutemero da revista onde o original foi publicado142) Eis portanto a linguiacutestica popular descrita como linguiacutestica natildeo binaacuteria que funciona de maneira ecoloacutegica baseada em uma episteme poacutes-dualista Natildeo foi esse o caso do coletivo de 2008 que ainda assim reuniu

140 Lembremos que as primeiras proposiccedilotildees da linguiacutestica popular foram feitas nos Estados Unidos por Hœnigswald em 1966 quando as versotildees contextualistas da linguiacutestica estavam se desenvolvendo de acordo com o trabalho de Harris em particular (HARRIS 1969 HŒNIGSWALD 1966) Isso significa que a linguiacutestica popular eacute contemporacircnea ao nascimento da linguiacutestica contextual entendida como uma superaccedilatildeo linguiacutestica fraacutestica internalista tornada emblemaacutetica pelas Estruturas Sintaacuteticas de Chomsky (CHOMSKY 1962)

141 NT ldquoLexique cateacutegorisation et repreacutesentation les reformulations meacutetalinguistiques dans le discours animalisterdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1226

142 NT ldquoLa contribution des theacuteories feacuteministes du standpoint Pour une version forte de la perspective folkrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1324

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quinze artigos entretanto se inserem nessa perspectiva poacutes-dualista natildeo apenas as propostas ecoloacutegicas de antropoacutelogos filosoacuteficos como Philippe Descola mas tambeacutem os estudos de gecircnero finalmente instalados na Franccedila e surgidos da ironia um tanto desdenhosa que as ciecircncias humanas e sociais francesas que haacute muito reservaram aos estudos culturais seus objetos sujos Tambeacutem a chegada de uma nova geraccedilatildeo de pesquisadoresas que puderam se apropriar desses legados de maneira lucrativa e muitas vezes com alegria como evidencia esta ediccedilatildeo143 e tambeacutem o presente livro

Parecia-me possiacutevel em 2008 dizer que os natildeo-linguistas eram valiososas linguistas Eu diria hoje que natildeo existem natildeo-linguistas uma vez que a linguiacutestica eacute praticada de forma plural a partir de posiccedilotildees variadas e mutaacuteveis os natildeo-linguistas natildeo existem pois estatildeo em toda parte e ser linguista constitui uma posiccedilatildeo e uma construccedilatildeo discursiva Isso eacute claramente demonstrado pelo artigo de Judith Visser sobre liacutenguas regionais144 nesta questatildeo de fato a distinccedilatildeo linguista versus natildeo-linguista eacute particularmente inoperante na medida em que o conhecimento sobre os dialetos por exemplo eacute inacessiacutevel aos linguistas profissionais Portanto prefiro dizer hoje que os linguistas quaisquer que sejam seu status sua atividade e sua legitimidade social satildeo poacutes-linguistas valiososas no bom sentido do termo145 Por poacutes-linguista quero dizer uma pesquisadora equipadoa epistemologicamente ciente da natureza mais institucional que cientiacutefica das fronteiras disciplinares das ciecircncias da linguagem integrando plenamente contextos (realia146 e pontos de vista) em seu trabalho sobre as mateacuterias linguageiras e discursivas em uma abordagem ecoloacutegica que evita o logocentrismo antropocentrismo e eurocentrismo

OsAs amadoresas no terreno da web falar de pessoas que falamA web eacute um fator determinante para a implantaccedilatildeo de uma praacutetica poacutes-linguiacutestica Nos

uacuteltimos dez anos esse espaccedilo de fala se desenvolveu consideravelmente e mudou as praacuteticas sociais inclusive as linguiacutesticas a web 20 um dos serviccedilos de internet mais usados devido suas possibilidades conversacionais colaborativas e participativas de fato permite que o discurso linguiacutestico dosas amadoresas seja expresso de forma ilimitada tanto nos espaccedilos puacuteblicos quanto nos privados Retomo o termo amadora de Patrice Flichy (2010) que em Le sacre de lrsquoamateur (A consagraccedilatildeo do amador) descreve essa apropriaccedilatildeo das possibilidades da web por pessoas comuns que fazem o que antes estava reservado aos profissionais fotografia filme arte escrita criacutetica venda tantas praacuteticas que a acessibilidade aos espaccedilos e agraves ferramentas facilitaram muito O mesmo acontece com as praacuteticas linguiacutesticas que encontram na web conversacional lugares de formulaccedilatildeo e recepccedilatildeo os espaccedilos de escrita e

143 NT O nuacutemero 14 de 2018 da revista Les Carnets du Cediscor intitulado ldquoLes meacutetadiscours des non-linguistesrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1089

144 NT ldquoLinguiste ou non-linguiste Reacuteflexions sur une dichotomie controverseacutee agrave partir de lrsquoanalyse de meacutetadiscours sur les langues reacutegionalesrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1384

145 Acrescento esse esclarecimento pensando na carga atualmente muito depreciativa da palavra poacutes-verdade e nas conotaccedilotildees frequentemente criacuteticas de outros termos em poacutes- como poacutes-humanismo por exemplo

146 NT ldquoEm traduccedilatildeo os realia satildeo palavras que denotam objetos conceitos e fenocircmenos exclusivos de uma determinada cultura Por natildeo possuiacuterem correspondecircncias precisas em outras culturas representam muitas vezes um desafio para o tradutorrdquo Disponiacutevel em httpsptwikipediaorgwikiRealia Acesso em 10 out 2020

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discussatildeo on-line (espaccedilos para escrever blogs dispositivos tecnodiscursivos dos comentaacuterios formatos de discussatildeo das redes sociais) favorecem a produccedilatildeo de locutoresas comuns sobre a liacutengua mas tambeacutem a permitem no sentido simboacutelico do termo aquilo que eacute uma novidade em relaccedilatildeo aos lugares de expressatildeo preacute-digital

Em seu artigo sobre dicionaacuterios colaborativos147 Kaja Dolar enfatiza algo que a linguiacutestica natildeo estaacute habituada a abordar as ldquoexperiecircncias pessoaisrdquo dos linguistas que fundam seus saberes lexicograacuteficos Este campo dos dicionaacuterios colaborativos on-line eacute particularmente interessante para a observaccedilatildeo das praacuteticas linguiacutesticas porque natildeo se trata apenas de colaboraccedilatildeo mas tambeacutem da ampliaccedilatildeo enunciativa (os sujeitos da enunciaccedilatildeo satildeo perpetuamente tecidos pelas livres contribuiccedilotildees dos internautas) da relacionalidade (as definiccedilotildees propostas satildeo colocadas em relaccedilatildeo com outros documentos por meio de links hipertextuais) e inumerabilidade (ao contraacuterio do diagrama lexicograacutefico tradicional que inclui apenas uma definiccedilatildeo mesmo longa os dicionaacuterios colaborativos podem oferecer vaacuterias dezenas de definiccedilotildees como pode ser visto em alguns artigos do The Urban Dictionary por exemplo) Os criteacuterios de validade dos metadiscursos produzidos satildeo portanto dos trabalhos lexicograacuteficos habituais onde eacute a expertise do enunciador que fundamenta sua legitimidade on-line eacute o controle colaborativo e a negociaccedilatildeo intersubjetiva muitas vezes anocircnima que valida as definiccedilotildees ou as descriccedilotildees como na Wikipeacutedia por exemplo Eacute por isso que a questatildeo aqui colocada por Dietmar Osthus sobre a captaccedilatildeo das produccedilotildees dosas locutoresas comuns148 na maior parte do tempo indescritiacutevel eacute crucial invisibilizadosas e tornadoas imperceptiacuteveis pela ldquoespiral do silecircnciordquo149 estesas uacuteltimosas produzem uma massa de discurso que afeta a sociedade mas natildeo eacute reconhecida ldquoO desafio que se apresenta para as pesquisas futuras em linguiacutestica popularrdquo enfatiza Dietmar Osthus (no mesmo nuacutemero da revista onde o original foi publicado) ldquoseraacute coletar as fontes de lsquofalantes comunsrsquo fora dos espaccedilos de discussatildeo ou de publicaccedilatildeo explicitamente metalinguiacutesticosrdquo

Em um contexto natildeo digital parece que esse desafio tambeacutem eacute assumido por Franccedilois Labatut que mostra que as atividades metalinguiacutesticas estatildeo em accedilatildeo em um determinado tipo de discurso150 o amicus brief texto no qual o cidadatildeo ou cidadatilde americanoa comum podem fornecer evidecircncias ao juiz no contexto de um julgamento Com efeito Franccedilois Labatut mostra que neste tipo de texto que natildeo tem vocaccedilatildeo metalinguiacutestica os ajustes metalinguiacutesticos satildeo numerosos destinados a servir a uma das partes envolvidas no processo Voltando agrave web seus espaccedilos de escrita natildeo modificam simplesmente o conteuacutedo dos metadiscursos e a proacutepria concepccedilatildeo de lexicografia como indica Kaja Dolar mas a ecologia inteira da praacutetica linguiacutestica suas formas seus objetos seus criteacuterios de reconhecimento e legitimidade seus espaccedilos Eacute tambeacutem nisso que a linguiacutestica se torna poacutes-linguiacutestica os terrenos da web e

147 NT ldquoLes dictionnaires collaboratifs en ligne des objets meacutetalinguistiques profanesrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1161

148 NT ldquoAgrave la recherche du lsquolocuteur ordinairersquo vers une cateacutegorisation des meacutetadiscoursrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1124

149 Dietmar Osthus retoma aqui a noccedilatildeo desenvolvida nos anos 1970 por Eacutelisabeth Noeumllle-Neumann para descrever o funcionamento da opiniatildeo puacuteblica consultar a referecircncia em seu artigo

150 NT ldquoEacutenonceacutes deacutefinitoires et subjectiviteacute dans les deacutebats sur lrsquoeacutevolution du mariage aux Eacutetats-Unisrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1268

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mais amplamente da internet pressionam a linguiacutestica para fora de seus templos e para fora de si mesma forccedilando-a nas abordagens ecoloacutegicas sob a ameaccedila de perder a dinacircmica da construccedilatildeo do sentido e a vida da mateacuteria linguageira

Provincializar a linguiacutestica por uma ecologia do discursoA linguiacutestica popular ou os metadiscursos de pessoas que falam provincializam a linguiacutestica

no sentido que Dipesh Chakrabarty emprega esse termo Em Provincialiser lrsquoEurope la penseacutee postcoloniale et la diffeacuterence historique (Provincializar a Europa pensamento poacutes-colonial) e diferenccedila histoacuterica (CHAKRABARTY 2009) ele se propotildee a pensar a histoacuteria dos paiacuteses natildeo ocidentais natildeo mais a partir do centro europeu e eurocecircntrico mas a partir das margens Ele preconiza um descentramento das epistemes ocidentais uma viagem para fora de si mesmas e em certa medida de modo a adotar abordagens mais globais e respeitosas em relaccedilatildeo agraves realidades singulares das aacutereas geograacuteficas implicadas A provincializaccedilatildeo eacute portanto uma saiacuteda do centro levando em conta as margens o que consequentemente implica o apagamento desta distinccedilatildeo dualista centromargens Para Dipesh Chakrabarty (2009 p 92) trata-se de ldquoimaginar a heterogeneidade radical do mundordquo A provincializaccedilatildeo eacute uma abordagem poacutes-dualista e nos meus termos ecoloacutegica Mais recentemente Eduardo Kohn retoma essa noccedilatildeo para aplicaacute-la diretamente agrave linguagem No famoso ensaio Comment pensent les focircrets (Como as florestas pensam) ele compreende que os signos linguiacutesticos natildeo satildeo os uacutenicos elementos de significaccedilatildeo linguageira a serem considerados e que tambeacutem devemos estar atentos aos iacutecones e indiacutecios usados pelos agentes natildeo humanos animais aacutervores e plantas para representar ldquo[] os outros modos de representaccedilatildeo tecircm propriedades bastante diferentes daquelas demonstradas pelas modalidades simboacutelicas das quais a linguagem depende Em suma se interessar pelos tipos de signos que emergem e circulam para aleacutem do simboacutelico permite convencer-nos da necessidade de lsquoprovincializarrsquo a linguagemrdquo (KOHN 2017 p 68)

Continuo a tecer a metaacutefora de minha parte desejando uma provincializaccedilatildeo natildeo apenas da linguagem mas da proacutepria linguiacutestica que me parece bem iniciada pelas praacuteticas da linguiacutestica popular Considerar no proacuteprio trabalho linguiacutestico os metadiscursos das pessoas comuns incorporando suas experiecircncias de vida seus pontos de vista suas posiccedilotildees morais suas situaccedilotildees poliacuteticas e tudo o que compotildee sua vida permite agrave linguiacutestica sair do logocentrismo que a priva da profundidade da vida dos sujeitos (a linguiacutestica da enunciaccedilatildeo por exemplo permanece nas margens de suas vidas) A plena integraccedilatildeo das condiccedilotildees de fala dosas locutoresas nas praacuteticas linguiacutesticas quer sejam elas dosas produtoresas dos corpora ou de seus analistas permite iniciar o programa de uma poacutes-linguiacutestica que respeita tanto os ambientes das pessoas que falam quanto suas palavras

Sobre a autora oas organizadorase osas tradutoresas

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Marie-Anne Paveau eacute professora e pesquisadora na Universiteacute Paris XIII ndash Sorbonne Paris Nord Trabalha na teoria do discurso com uma abordagem transdisciplinar (filosofia ciecircncias sociais SIC pesquisa sobre Internet estudo acerca de animais e plantas) Desenvolve uma anaacutelise do discurso que integra ambientes natildeo humanos de natureza tecnoloacutegica corporal animal e vegetal na produccedilatildeo do discurso em uma perspectiva poacutes-dualista e

ecoloacutegica Atualmente trabalha na articulaccedilatildeo entre discurso gecircnero e raccedila em uma perspectiva decolonial Grupos e colaboraccedilotildees Anaacutelise do discurso digital (AD2I) grupo franco-brasileiro de pesquisa ndash Universidades de Campinas e Paris 13 e Feminilidades Discurso e Sexualidade grupo franco-brasileiro de pesquisa ndash Universidades de Campinas Paris 13 e ENS Lyon Publicaccedilotildees recentes LrsquoAnalyse du discours numeacuterique Dictionnaire des formes et des pratiques (Hermann 2017) Le discours pornographique (La Musardine 2014) Langage et morale Une eacutethique des vertus discursives (Lambert-Lucas 2013) La langue franccedilaise Passions et poleacutemiques (VUIBERT ROSIER 2008) Les preacutediscours Sens meacutemoire cognition (Presses Sorbonne Nouvelle 2006) Les grandes theacuteories de la linguistique (COLIN SAFARTI 2003)

E-mail mapaveauorangefr

Fonte httpspleiadeuniv-paris13frprofilmarie-annepaveau

Eacuterika de Moraes eacute docente na Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo (UNESP) vinculada agrave Faculdade de Arquitetura Artes e Comunicaccedilatildeo campus de Bauru e ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Estudos Linguiacutesticos do IBILCE-UNESP Satildeo Joseacute do Rio Preto Com poacutes-doutoramento pela Universiteacute Paris-Sorbonne (Paris IV) sob supervisatildeo do professor Dr Dominique Maingueneau realizado em 2017 Doutora e Mestre em Linguiacutestica pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas IELUNICAMP com ecircnfase em Anaacutelise do Discurso de linha francesa Graduada em Comunicaccedilatildeo Social Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo (UNESP) e em Letras pela Universidade do Sagrado Coraccedilatildeo Liacuteder do grupo de Pesquisa DisCo21 ndash Discurso e Comunicaccedilatildeo no Seacuteculo XXI e membro do FEsTA ndash Foacutermulas e Estereoacutetipos Teoria e Anaacutelise

E-mail erikademoraesuolcombrLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr7422887152634157

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Fernando Curtti Gibin eacute doutorando e mestre em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) e eacute bacharel em Letras com Habilitaccedilatildeo de Tradutor pela Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo (UNESP) e em Direito pelo Centro Universitaacuterio de Rio Preto (UNIRP) No que concerne agrave vida profissional atua como produtor de conteuacutedo revisor de textos professor de liacutengua portuguesa e advogado Agrave luz dos estudos linguiacutesticos apresenta especialidade na aacuterea de Linguiacutestica com ecircnfase em Linguiacutestica Textual e em Anaacutelise do Discurso Nas aacuteguas dos estudos juriacutedicos eacute poacutes-graduando em Direito Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD)

E-mail fernandocurttihotmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr2951925118571459

Julia Lourenccedilo Costa eacute pesquisadora de Poacutes-doutorado com apoio da Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa do Estado de Satildeo Paulo na Universidade Federal de Satildeo Carlos (FAPESPUFSCar 201712792-0) sob a supervisatildeo de Roberto Leiser Baronas Realizou estaacutegio de pesquisa na Universidade Paris 13 Nord (FAPESP 201818860-0) sob a supervisatildeo de Marie-Anne Paveau Doutora em Linguiacutestica (2017) pela Universidade de Satildeo Paulo (USP) com periacuteodo de estaacutegio de pesquisa na Universidade Paris-Sorbonne IV sob a supervisatildeo de Dominique Maingueneau Mestra em Linguiacutestica (2013) pela USP e graduada em Letras (2011) pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) Eacute membro do Laboratoacuterio de Estudos Epistemoloacutegicos e Discursividades Multimodais (LEEDiMUFSCar) e do Grupo de Estudos Semioacuteticos da Universidade de Satildeo Paulo (GES-USP) Eacute editora assistente da revista Linguasagem (PPGLUFSCar) e da revista da ANPOLL Sua pesquisa tem como foco a Anaacutelise do discurso francesa a Semioacutetica greimasiana e a Comunicaccedilatildeo nas diversas interfaces com os feminismos E-mail juliajlcgmailcom Link para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr5592296124389416

Marco Antonio Almeida Ruiz eacute Bacharel Mestre e Doutor em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) Eacute Doutor em Sociologia pela Eacutecole des Hautes Eacutetudes en Sciences Sociales (EHESS) de Paris e poacutes-doutorando em estudos linguiacutesticos pela Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras da USP de Ribeiratildeo Preto E-mail marcoalmeidaruizgmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr4613888575492521

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Maria de Faacutetima Sopas Rocha eacute Professora Associada aposentada da Universidade Federal do Maranhatildeo Eacute doutora em linguiacutestica pela Universidade Federal do Cearaacute Participou como pesquisadora dentre outros dos projetos Atlas Linguiacutestico do Maranhatildeo ndash AliMA Atlas Linguiacutestico do Brasil ndash AliB e Tesouro do Leacutexico Patrimonial Galego e Portuguecircs Foi fundadora e Professora Permanente do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Letras ndash Mestrado Acadecircmico Participou como autora ou organizou em coautoria dentre outras as seguintes obras A diversidade do portuguecircs falado no Maranhatildeo o Atlas Linguiacutestico do Maranhatildeo em foco (2006) O portuguecircs falado no Maranhatildeo estudos preliminares (2010) O portuguecircs falado no Maranhatildeo muacuteltiplos olhares Pelos caminhos da Dialetologia e da Sociolinguiacutestica entrelaccedilando saberes e vidas (2010) Dicionaacuterio da obra de Domingos Vieira Filho (2015) E-mail fsopasyahoocombrLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr6600718231861371

Mariana Luz Pessoa de Barros possui bacharelado e licenciatura em Liacutengua Portuguesa (USP) mestrado (2006) e doutorado (2011) em Semioacutetica e Linguiacutestica Geral (USP) e Poacutes-Doutorado em Linguiacutestica (2016) pela USP Realizou estaacutegio de doutorado-sanduiacuteche na Universiteacute Paris 8 Atuou como professora de liacutengua portuguesa no Ensino Fundamental II e no Ensino Meacutedio (ensino regular e EJA) Foi coordenadora do Foacuterum de Atualizaccedilatildeo em Pesquisas Semioacuteticas (FAPS Ges-Usp) e coeditora da Revista Estudos Semioacuteticos (USP) Atualmente eacute professora adjunta do Departamento de Letras da Universidade Federal de Satildeo Carlos vice-presidenta do Grupo de Estudos Linguiacutesticos do Estado de Satildeo Paulo (2019-2021) e liacuteder do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Semioacutetica da UFSCar (PISCar) Suas publicaccedilotildees envolvem os seguintes temas estudos do texto e do discurso semioacutetica autobiografia memoacuteria tempo anaacutelise do discurso poliacutetico e ensino de liacutengua portuguesa E-mail maluzpessoagmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr4830505244404566

Mocircnica Magalhatildees Cavalcante eacute doutora em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Pernambuco com poacutes-doutoramento pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Coordena o grupo de pesquisa Protexto na Universidade Federal do Cearaacute onde atua ainda hoje como Professora Associada Dentre as obras que produziu ou organizou citam-se as seguintes Referenciaccedilatildeo (2003) Os sentidos do texto (2012) Intertextualidade ndash diaacutelogos possiacuteveis (2007) Referenciaccedilatildeo (2013) Coerecircncia referenciaccedilatildeo e ensino (2014) Eacute organizadora das traduccedilotildees Apologia da polecircmica (2017) de Ruth Amossy e O texto ndash tipos e protoacutetipos de Jean-Michel Adam (2019) E-mail monicamc02gmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr5088972912048247

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Paula Camila Mesti possui graduaccedilatildeo em Letras ndash Licenciatura em Portuguecircs-Inglecircs (2007) e mestrado em Letras (2010) pela Universidade Estadual de Maringaacute (2010) e doutorado em Linguiacutestica (2017) pela Universidade Federal de Satildeo Carlos Com apoio de bolsa BEPEFAPESP fez doutorado sanduiacuteche na Sorbonne ndash Paris IV em Paris ndash Franccedila sob a supervisatildeo do Professor Dominique Maingueneau no periacuteodo de setembro2014 a junho2015 Nos anos de 2011 e 2012 foi professora colaboradora da Universidade Estadual do Mato Grosso ndash campus de Tangaraacute da Serra-MT Atualmente eacute secretaacuteria executiva da Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-graduaccedilatildeo e Pesquisa em Letras e Linguiacutestica e professora colaboradora da Universidade Estadual do Paranaacute ndash campus de Campo Mouratildeo Eacute membro do Laboratoacuterio de Estudos Epistemoloacutegicos e de Discursividades Multimodais ndash LEEDiM ndash UFSCarCNPq desde 2013 E-mail paulamestihotmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr8453392455009320

Phellipe Marcel da Silva Esteves possui bacharelado em Comunicaccedilatildeo Social (Jornalismo) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007) licenciatura em Liacutengua Portuguesa pela Universidade Candido Mendes (2008) mestrado em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2010) doutorado em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal Fluminense (2014) e residecircncia em pesquisa na Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional (2014-2016) Atualmente eacute professor adjunto da UFF aleacutem de exercer os ofiacutecios de ediccedilatildeo e traduccedilatildeo Tem experiecircncia na aacuterea de Letras com ecircnfase em Anaacutelise do Discurso atuando principalmente nos seguintes temas anaacutelise do discurso histoacuteria das ideias linguiacutesticas histoacuteria do livro linguiacutestica aplicada e linguiacutestica O materialismo histoacuterico como princiacutepio a paternidade como vida a revoluccedilatildeo dos trabalhadores como horizonteE-mail phellipemarcelyahoocombr Link para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr6384597108585900

Roberto Leiser Baronas eacute professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) e no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Estudos da Linguagem da UFMT Graduado em Letras (1994) pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e Doutor em Linguiacutestica e Liacutengua Portuguesa (2003) pela Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo (UNESP) Durante o ano de 2003 fez seu doutorado ldquosanduiacutecherdquo na Universidade Paris Est - Creacuteteil - Val de Marne - Franccedila no Centro de Estudos de Discursos Imagens Textos Escritos e Comunicaccedilatildeo - CEacuteDITEC (2003) Poacutes-doutorado no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Linguiacutestica Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL) na Faculdade de Filosofia Comunicaccedilatildeo Artes e Letras da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP) Eacute um dos coordenadores do Laboratoacuterio de Estudos Epistemoloacutegicos e Discursividades Multimodais (LEEDiMUFSCar) Editor chefe da revista Linguasagem - Revista Eletrocircnica de Popularizaccedilatildeo Cientiacutefica em Ciecircncias da Linguagem (PPGLUFSCar) Seus estudos tecircm como foco a anaacutelise do discurso a linguiacutestica popularfolk linguistics o discurso poliacutetico e a epistemologia e a histoacuteria da linguiacutestica brasileira E-mail baronasuolcombr Link para o Lattes httplattescnpqbr4613001301744682

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Samuel Ponsoni eacute Graduado em Letras Mestre e Doutor em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Satildeo Carlos ndash UFSCar (2015) Atualmente eacute professor Designado na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) Unidade Passos Coordena nessa mesma universidade o laboratoacuterio de estudos e pesquisas intitulado Laboratoacuterio Interdisciplinar de Comunicaccedilatildeo Discurso Acontecimento e Memoacuteria (LABIAM ndash UEMGCNPq) E-mail samuelponsoniuemgbrLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr6739815431846441

Tamires Cristina Bonani Conti atualmente eacute doutoranda no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Linguiacutestica da UFSCar Desenvolveu pesquisa de mestrado na mesma universidade Fez parte deste mestrado (sanduiacuteche) na Universiteacute Sorbonne Nouvelle ndash Paris 3 sob supervisatildeo de Dominique Legallois Eacute formada em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) (2014) Fez intercacircmbio acadecircmico de graduaccedilatildeo na Universidad de Buenos Aires (20131) Foi bolsista de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica da FAPESP (2011-2012) e tambeacutem do CNPq (2014) Eacute integrante do Grupo de Estudos ldquoLaboratoacuterio de Estudos Epistemoloacutegicos e de Discursividades Multimodaisrdquo (LEEDiM UFSCar) E-mail tamy_bonanihotmailcom Link para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr3442362906177938

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Page 3: Linguística folk : uma introdução

Linguiacutestica folk uma introduccedilatildeoProjeto editorialLetraria

RevisatildeoLetraria

Projeto graacutefico e diagramaccedilatildeoLetraria

CapaLetraria a partir de imagem cedida por Lauro Damasceno (UFSCar) e Michelle Thamiris Ramos Simotildees (UFSCar)

Ediccedilatildeo da imagem da capaEmely Larissa dos Santos (UEPG)

TradutoresasEacuterika de Moraes (UNESP)Fernando Curtti Gibin (UFSCar)Julia Lourenccedilo Costa (UFSCarFAPESP)Marco Antonio Almeida Ruiz (USP)Maria de Faacutetima Sopas Rocha (UFMA)Mariana Luz Pessoa de Barros (UFSCar)Mocircnica Magalhatildees Cavalcante (UFC)Paula Camila Mesti (UNESPARANPOLL)Phellipe Marcel da Silva Esteves (UFF)Roberto Leiser Baronas (UFSCar)Samuel Ponsoni (UEMG)Tamires Cristina Bonani Conti (UFSCarFAPESP)

PAVEAU Marie-Anne Linguiacutestica folk uma introduccedilatildeo Organizado por Roberto Leiser Baronas Tamires Cristina Bonani Conti e Julia Lourenccedilo Costa Araraquara Letraria 2020

CDD 410 LinguiacutesticaISBN 978-65-86562-30-9

Viacutecios na falaPara dizerem milho dizem mio

Para melhor dizem mioacutePara pior pioacute

Para telha dizem teiaPara telhado dizem teiado

E vatildeo fazendo telhados

(Oswald de Andrade Poesias reunidas In Obras completas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1978 p 47)

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SumaacuterioApresentaccedilatildeo 7

Parte I ndash Definiccedilotildees e conceitos 12

A linguiacutestica ldquofora do templordquo 13

Natildeo-linguistas fazem linguiacutestica 27

As normas perceptivas da linguiacutestica popular 44

O falar das classes dominantes linguiacutestica popular e dialetologia perceptiva 55

Parte II ndash Aplicaccedilotildees e perspectivas 73

Linguiacutestica popular e ensino de liacutengua categorias em comum 74

A liacutengua sem classes da gramaacutetica escolar 85

Imagens da liacutengua nos discursos escolares 96

As vozes do senso comum nos discursos sobre a escola 103

A linguiacutestica fora de si mesma em direccedilatildeo a uma poacutes-linguiacutestica 128

Sobre a autora oas organizadoras e osas tradutoresas 133

Bibliografia 139

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ApresentaccedilatildeoEacute com muita alegria que entregamos a todas todes e todos interessados em questotildees de

linguagem um conjunto de textos sobre linguiacutestica folk ou linguiacutestica popular da discursivista francesa Marie-Anne Paveau especialmente reunidos para uma ediccedilatildeo brasileira

Falar de linguiacutestica folk especialmente no que concerne ao contexto brasileiro eacute dissertar sobre um aparente paradoxo Com efeito se olharmos para as aacutereas que os grandes eventos da linguiacutestica brasileira consideram como fazendo parte do escopo das ciecircncias da linguagem1 ou mesmo o que as agecircncias de fomento consideram como aacutereas dignas de se obter financiamento para a pesquisa a linguiacutestica folk natildeo aparece como um desses campos Entretanto para ficar somente no que circula na miacutedia uma espiada mais detida em um site de notiacutecias qualquer levantaraacute quase diariamente um conjunto de textos ou mesmo comentaacuterios de internautas sobre questotildees de linguagem na maioria esmagadora das vezes produzidos por natildeo-especialistas em linguiacutestica Natildeo se trata somente de discussotildees de natureza prescritiva mas que abarcam tambeacutem outros tipos de praacuteticas tais como as descritivas intervencionistas e militantes Eacute justamente nesse sentido que afirmamos tratar-se de um aparente paradoxo pois embora a linguiacutestica folk natildeo esteja institucionalizada em termos de domiacutenio ou subdomiacutenio das ciecircncias da linguagem nos grandes eventos da linguiacutestica brasileira ou nas agecircncias de fomento ela estaacute muito viva e dinacircmica em outros contextos sobretudo na boca dosas falantes e nos teclados dosdas internautas

Este livro da pesquisadora francesa Marie-Anne Paveau (ineacutedito tanto no contexto francecircs quanto no brasileiro) completa uma espeacutecie de trilogia epistemoloacutegica e teoacuterico-metodoloacutegica iniciada pela autora com a publicaccedilatildeo de Os preacute-discursos sentido memoacuteria cogniccedilatildeo2 passando tambeacutem pela publicaccedilatildeo de Linguagem e moral uma eacutetica das virtudes discursivas3 Trata-se de abordagens distintas sobre a linguagem mas que no seu conjunto aleacutem de conectadas satildeo imprescindiacuteveis para a sustentaccedilatildeo epistemoloacutegica e teoacuterico-metodoloacutegica de um grande programa de pesquisa da autora acerca do digital ou dos tecnodiscursos materializado no livro Anaacutelise do discurso digital dicionaacuterio das formas e das praacuteticas4 Os trinta e um verbetes que compotildeem esse potente e ousado programa de pesquisa de Paveau tecircm como pano de fundo epistemoloacutegico e teoacuterico-metodoloacutegico a questatildeo dos preacute-discursos o problema da relaccedilatildeo entre linguagem e moral no que concerne agraves virtudes discursivas ou ainda as proposiccedilotildees formuladas no acircmbito da linguiacutestica folk Satildeo essas trecircs bases que sustentam toda a pavimentaccedilatildeo perquirida no acircmbito de uma Anaacutelise do Discurso Digital proposta por Marie-Anne Paveau

1 Referimo-nos basicamente agrave Associaccedilatildeo Brasileira de Linguiacutestica (ABRALIN) ao Grupo de Estudos Linguiacutesticos do Estado de Satildeo Paulo (GEL) e agrave Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-graduaccedilatildeo em Letras e Linguiacutestica (ANPOLL)

2 A ediccedilatildeo francesa Les preacutediscours sens meacutemoire cognition foi publicada em 2006 pela Presses Sorbonne nouvelle e a ediccedilatildeo brasileira pela Editora Pontes em 2013

3 A ediccedilatildeo francesa Langage et morale une eacutethique des vertus discursives foi publicada em 2013 pela Eacuteditions Lambert-Lucas e a brasileira pela Editora UNICAMP em 2015

4 A ediccedilatildeo francesa LrsquoAnalyse du discours numeacuterique dictionnaire des formes e des pratiques foi publicada em 2017 pela Eacuteditions Hermann e a brasileira organizada por dois de noacutes seraacute publicada pela Editora Pontes no iniacutecio de 2021

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Os nove capiacutetulos que compotildeem este livro embora jaacute tenham sido publicados individualmente em forma de artigo em diversos perioacutedicos franceses5 num periacuteodo que compreende uma vintena de anos nunca foram reunidos em um uacutenico suporte Coube a noacutes como organizadoras o trabalho de reunir e ao lado de diversosas discursivistas brasileirosas traduzir e dispor os textos de maneira que a linguiacutestica folk obtivesse estatuto proacuteprio para o ingresso no campo dos estudos da linguagem sendo natildeo apenas apresentada no contexto de liacutengua portuguesa como uma das possibilidades pertinentes e relevantes de se refletir sobre a linguagem com base nos metadiscursos dosas locutoresas questatildeo praticamente inexistente no que concerne agraves ciecircncias da linguagem mas tambeacutem como uma possibilidade concreta de discussatildeo da validade epistemoloacutegica e especialmente social desses saberes bem como a sua aplicaccedilatildeo praacutetica Aplicaccedilatildeo essa tanto no acircmbito dos mais diferentes domiacutenios e subdomiacutenios das ciecircncias da linguagem enquanto possibilidade de integraccedilatildeo quanto no que concerne ao ensino de liacutenguas

O recorte efetuado para a organizaccedilatildeo deste livro se deu a partir de dois grandes eixos que produzem coesatildeo epistemoloacutegica e teoacuterico-metodoloacutegica aos capiacutetulos aqui publicados o da definiccedilatildeo e conceitos da linguiacutestica folk e o da aplicaccedilatildeo e das perspectivas desse campo de estudos Esses dois eixos aleacutem de organizarem de alguma forma a leitura deixam menos opaco o projeto do livro introduzir a problemaacutetica da linguiacutestica folk no contexto da liacutengua portuguesa Cumpre destacar que embora esteja totalmente fora de nossos propoacutesitos qualquer tipo de cenografia que busque privilegiar o controle do leitor e dos sentidos acreditamos ser pertinente apresentar ndash mesmo que rapidamente ndash cada um dos capiacutetulos que compotildeem esta coletacircnea

No capiacutetulo inicial deste livro panoramicamente a autora apresenta o campo de estudos da linguiacutestica folk enfatizando num primeiro momento que a irrupccedilatildeo desse campo estaacute relacionada com um movimento maior que envolve praticamente todos os campos do conhecimento qual seja o da presenccedila de fenocircmenos jaacute relativamente conhecidos o aumento do niacutevel de conhecimento dos indiviacuteduos sobretudo em razatildeo do desenvolvimento das novas tecnologias de comunicaccedilatildeo o aumento da disponibilizaccedilatildeo dos saberes nas publicaccedilotildees tradicionais ou eletrocircnicas a expressiva difusatildeo da informaccedilatildeo em muacuteltiplos suportes especialmente os gratuitos Todos esses fenocircmenos (que concernem especialmente aos paiacuteses desenvolvidos) contribuem significativamente para o aumento dos saberes dos indiviacuteduos e para um apagamento das diferenccedilas entre profissionais do saber (os universitaacuterios por exemplo) e os detentores profanos de saberes ou de saberes profanos Na sequecircncia Paveau apresenta as geografias em que a linguiacutestica folk estaacute bem estabilizada e as suas muacuteltiplas dimensotildees epistemoloacutegica teoacuterica representacional e praacutetica

No segundo capiacutetulo a discursivista trata da questatildeo da linguiacutestica folk com base no trabalho dos natildeo-linguistas Ela examina primeiro a figura do linguista folk ou linguista popular apresentando uma tipologia em regime escalar e natildeo binaacuteria desde o linguista amador escritor

5 Agradecemos vivamente os Editores das revistas francesas (Pratiques Langage et Societeacute Eacutetudes de linguistique apliqueacutee Le Franccedilais aujourdrsquohui e Les carnets du Cediscor) em que os textos aqui reunidos foram originalmente publicados que gentilmente autorizaram a traduccedilatildeo e a publicaccedilatildeo em liacutengua portuguesa

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de livros didaacuteticos ao humorista produtor de jogos de palavras em cena passando pelos escritores juristas e outros locutores afetados pelas questotildees linguageiras Na sequecircncia a autora discute a validade dos saberes folk no acircmbito das ciecircncias da linguagem com base em duas posiccedilotildees possiacuteveis em filosofia das ciecircncias (o eliminativismo de P Churchland e o realismo doce de D Dennet) Por fim ela propotildee uma terceira postura epistemoloacutegica a qual designa ldquointegracionistardquo os conhecimentos populares satildeo saberes pertinentes e devem com efeito ser integrados agrave linguiacutestica que frequentemente desenvolve suas teorias somente baseada nas intuiccedilotildees dos linguistas profissionais

No capiacutetulo trecircs Paveau aborda a questatildeo das normas perceptivas mobilizadas por falantes comuns em suas praacuteticas linguiacutesticas Ela fala precisamente de praacuteticas linguiacutesticas e natildeo de praacuteticas linguageiras designando um campo bem identificado nos Estados Unidos a linguiacutestica folk e em menor medida na Alemanha (Volklinguistik) menos ainda no domiacutenio francoacutefono no qual muitos designadores com referentes um tanto vagos coexistem para designar esse conjunto de discursos natildeo eruditos natildeo especialistas sobre as formas e padrotildees da linguagem e do discurso linguiacutestica popular espontacircnea profana selvagem natildeo erudita A interrogaccedilatildeo da pesquisadora natildeo diz respeito agrave dimensatildeo prescritiva versus descritiva das normas assim produzidas mas concerne ao valor das percepccedilotildees na elaboraccedilatildeo de um discurso linguiacutestico popular e portanto agrave validade das teorias populares em relaccedilatildeo agraves teorias acadecircmicas teorias cientiacuteficas

Marie-Anne Paveau se debruccedila no quarto capiacutetulo sobre os pontos cegos ou impensados nos trabalhos de sociolinguiacutestica francesa de um lado nos planos praacutetico e metodoloacutegico o falar das classes dominantes como natildeo-objeto de pesquisa e de outro lado nos planos epistemoloacutegico e teoacuterico a natildeo-consideraccedilatildeo dos resultados da linguiacutestica popular (linguiacutestica folk) e dos paracircmetros perceptivos no estudo dos fenocircmenos linguageiros Ela propotildee inicialmente um balanccedilo sobre a noccedilatildeo de classe social na sociolinguiacutestica francesa e anglo-saxatilde e a descriccedilatildeo da notaacutevel assimetria que existe entre as classes comumente escolhidas pelas ciecircncias sociais como terreno de investigaccedilatildeo (trabalhadores povo excluiacutedos e em menor grau as classes meacutedias) e os pertencimentos reais ou imaginaacuterios dos indiviacuteduos (em que se encontram igualmente as classes dominantes as elites as aristocracias e as burguesias herdadas ou reconstruiacutedas) Na sequecircncia a autora examina numa perspectiva integracionista as formas e a validade dos resultados da linguiacutestica folk praacutetica analiacutetica antiga em especial sobre o falar das elites e dos bairros nobres Ela mostra tambeacutem em particular que os conceitos e meacutetodos da dialetologia perceptual norte-americana ainda pouco presentes nas pesquisas francesas permitem tratar esse tipo de corpus e fazer proposiccedilotildees linguiacutesticas sobre os falares de classe Por fim a discursivista propotildee uma primeira descriccedilatildeo do falar das classes dominantes com base na linguiacutestica folk enfatizando alguns de seus aspectos caracteriacutesticos pronuacutencia ldquoMarie-Chantalrdquo coacutedigo lexical e rituais pragmaacuteticos

No quinto capiacutetulo partindo da afirmaccedilatildeo de que o desenvolvimento da ciecircncia cognitiva e depois da etnometodologia fez emergir a questatildeo da ciecircncia espontacircnea dos sujeitos questatildeo natural para um campo que lida com o desenvolvimento do conhecimento das percepccedilotildees e das representaccedilotildees dos indiviacuteduos a autora explora este problema no campo da liacutengua

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francesa fazendo uma pergunta simples as categorias espontacircneas de alunos podem ser mobilizadas no ensino da liacutengua ou devem pelo contraacuterio ser desconstruiacutedas para dar lugar a categorias aprendidas Depois de definir o que se denomina ldquolinguiacutestica popularrdquo e sublinhar seu interesse pelo campo do ensino-aprendizagem da liacutengua ela busca responder a essa questatildeo por meio de trecircs exemplos de categorias a palavra a flexatildeo verbal e o gecircnero do discurso

No sexto capiacutetulo Marie-Anne Paveau com base no princiacutepio de que a representaccedilatildeo unitaacuteria da liacutengua tem uma funccedilatildeo social importante que natildeo deve ser obliterada por razotildees praacuteticas e tambeacutem didaacuteticas sociais e ateacute ideoloacutegicas ela assevera que eacute realmente o francecircs padratildeo que deve ser ensinado na escola No entanto para a autora isso natildeo implica a falta de abordagem e o silenciamento sobre a variaccedilatildeo social em particular ela questiona ainda se na liacutengua como em outras situaccedilotildees existem fenocircmenos de classe se existe um francecircs popular e um francecircs das classes dominantes e se as redes sociais os grupos e as comunidades que cruzam as classes de maneira complexa sem apagaacute-las tambeacutem se definem por suas formas de falar fortemente marcadas por determinismos sociais Eacute esta questatildeo da variaccedilatildeo social no sentido mais classista do termo que a discursivista aborda aqui comparando as gramaacuteticas escolares com base nos saberes linguiacutesticos chamados ldquoacadecircmicosrdquo e nos saberes da gramaacutetica espontacircnea ou gramaacutetica popular (ldquofolk gramarrdquo que adveacutem da linguiacutestica popular ldquofolk linguisticsrdquo) altamente desenvolvida nos Estados Unidos que integra o paracircmetro classista

No seacutetimo capiacutetulo a pesquisadora reflete sobre o discurso escolar Assim ao falar sobre esse tipo de discurso ela toca num problema metodoloacutegico importante o que se entende por ldquodiscurso escolarrdquo Identificado restritivamente como discurso da escola e ateacute mesmo agrave custa de uma reduccedilatildeo espacial como discurso na escola o discurso escolar natildeo eacute impedido por si mesmo de se relacionar com aqueles que se encontram fora do espaccedilo escolar ou da instituiccedilatildeo escolar Em outras palavras o discurso na escola natildeo eacute apenas os discursos da escola seria preciso portanto poder compartilhar o que eacute dos pais e da famiacutelia o que depende de paracircmetros sociais e culturais o que se capta no discurso da miacutedia o que emerge de uma crenccedila popular etc E esses proacuteprios discursos interpenetram-se e entrelaccedilam-se formando um universo discursivo que se organiza de maneira diferente de acordo com os tempos as crises e os acontecimentos Falar de imagens de liacutengua em discursos escolares natildeo pode assim ser feito sem levar em conta a polifonia essencial e essa tarefa eacute muito importante para ser realizada no acircmbito de um capiacutetulo Como em trabalhos anteriores ela aborda a questatildeo tanto fora quanto dentro da escola propondo aqui algumas respostas poreacutem sempre muito ldquomonofocircnicasrdquo reduzindo os discursos escolares aos que satildeo produzidos no acircmbito da escola pelos alunos pelos professores pelos livros e pelos textos oficiais

No oitavo capiacutetulo a partir de um corpus de ensaios do mainstream contemporacircneo sobre a escola Paveau propotildee uma concepccedilatildeo de senso comum ponderada pelas dimensotildees semacircntica e perceptual em uma abordagem em trecircs niacuteveis (preacute-discursivo metadiscursivo e discursivo) a partir da presenccedila de marcas no discurso O senso comum no discurso estaacute de fato ancorado no espaccedilo preacute-discursivo do conhecimento preacutevio compartilhado em uma

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comunidade discursiva se manifesta no niacutevel metadiscursivo por meio de comentaacuterios dos falantes explicando sua relaccedilatildeo com o senso comum (marcas de negaccedilatildeo ou captura de formas de senso comum destinada agrave validaccedilatildeo de enunciados) e eacute construiacuteda no niacutevel discursivo por meio de certo nuacutemero de arranjos lexicais enunciativos e frasais

No uacuteltimo capiacutetulo numa espeacutecie de conclusatildeo deste livro a autora defende que a renovaccedilatildeo dos estudos sobre a linguiacutestica popular por meio da consideraccedilatildeo dos pontos de vista dos locutoresas e de suas experiecircncias de vida se inscreve num amplo movimento mundial de descentramento que exaspera atualmente as ciecircncias humanas e sociais O questionamento dos grandes dualismos fundadores as indagaccedilotildees das abordagens poacutes-coloniais e as epistemologias militantes permitem abordagens poacutes-dualistas que podem ser mobilizadas em linguiacutestica A integraccedilatildeo dos metadiscursos das pessoas comuns no programa da linguiacutestica a conduz em direccedilatildeo a uma dimensatildeo ecoloacutegica que a pesquisadora qualifica de poacutes-linguiacutestica

Cumpre destacar uma vez mais que este livro de Marie-Anne Paveau sobre linguiacutestica folk natildeo vem corroborar os discursos negacionistas de variadas ordens que se inscrevem numa espeacutecie de sociologia da ignoracircncia tatildeo em voga atualmente e profundamente deleteacuteria para a ciecircncia em particular e para a toda a sociedade em geral mas vem para

Considerar no proacuteprio trabalho linguiacutestico os metadiscursos das pessoas comuns incorporando suas experiecircncias de vida seus pontos de vista suas posiccedilotildees morais suas situaccedilotildees poliacuteticas e tudo o que compotildee sua vida permitindo agrave linguiacutestica sair do logocentrismo que a priva da profundidade da vida dos sujeitos A plena integraccedilatildeo das condiccedilotildees de fala dosas locutoresas nas praacuteticas linguiacutesticas quer sejam elas dosas produtoresas dos corpora ou de seus analistas permite iniciar o programa de uma poacutes-linguiacutestica que respeita os ambientes das pessoas que falam e suas palavras (PAVEAU 2018)

Enfim este livro vem corroborar a necessidade premente do debate acerca da instauraccedilatildeo das novas partilhas do discurso acadecircmico Deixamos um agradecimento muito especial a autora Marie-Anne Paveau que prontamente acolheu a proposta desta coletacircnea e tambeacutem um muito obrigado afetuoso a todosas tradutoresas pelo seu esmerado trabalho Oacutetima leitura a todas todes e todos As sugestotildees e criacuteticas satildeo sempre muito bem-vindas

Satildeo Carlos UFSCar primavera de 2020Oas organizadoras

Parte I

Definiccedilotildees e conceitos

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A LINGUIacuteSTICA ldquoFORA DO TEMPLOrdquo6

1 Sobre a relevacircncia e a pertinecircncia em se discutir linguiacutestica popularEm 2008 a European Review of Philosophy publica uma ediccedilatildeo totalmente dedicada a

Folk Epistemology (HEINTZ POUSCOULOUS TARABORELLI 2008) Neste nuacutemero diversas questotildees abordadas pelos autores majoritariamente filoacutesofos recobrem exatamente as questotildees que pretendemos apresentar esquematicamente no capiacutetulo inicial deste livro Essas preocupaccedilotildees atestam que existe atualmente em diversos campos do conhecimento (filosofia epistemologia linguiacutestica psicologia neurociecircncias biologia e outros domiacutenios) uma robusta interrogaccedilatildeo sobre a natureza dos saberes sobre os modos de constituiccedilatildeo e de legitimaccedilatildeo dos conhecimentos ditos cientiacuteficos Neste nuacutemero a European Review of Philosophy propotildee ainda as seguintes questotildees

a) Qual eacute o domiacutenio adequado de um sistema de epistemologia popular

b) As avaliaccedilotildees epistecircmicas envolvem o pensamento consciente

c) As avaliaccedilotildees epistecircmicas satildeo especiacuteficas de humanos

d) Como a epistemologia popular contribui para o pensamento racional

e) Quais satildeo as relaccedilotildees (se houver) entre a epistemologia normativa a epistemologia do senso comum e a epistemologia popular

f) Como a epistemologia popular se relaciona com nossa compreensatildeo ingecircnua da verdade

g) Quais aspectos da cultura poderiam ser explicados com base em uma epistemologia popular

h) Os sujeitos compartilham as mesmas intuiccedilotildees epistemoloacutegicas entre culturas Ou as epistemologias variam entre culturas (HEINTZ POUSCOULOUS TARABORELLI 2008 p 34)

Neste livro de natureza introdutoacuteria natildeo temos espaccedilo para explicar pormenorizadamente a emergecircncia atual de todas essas questotildees Contentar-nos-emos em trazer agrave lembranccedila fenocircmenos bem conhecidos o aumento do niacutevel de conhecimento dos indiviacuteduos sobretudo em razatildeo do desenvolvimento das novas tecnologias de comunicaccedilatildeo o aumento da disponibilizaccedilatildeo dos saberes nas publicaccedilotildees tradicionais ou eletrocircnicas a expressiva difusatildeo da informaccedilatildeo em muacuteltiplos suportes especialmente os gratuitos Todos esses fenocircmenos (que concernem especialmente aos paiacuteses desenvolvidos) contribuem significativamente

6 Texto originalmente publicado em ACHARD-BAYLE G PAVEAU M-A Preacutesentation La linguistique laquo hors du temple raquo Pratiques p 01-15 2008 Traduccedilatildeo de Roberto Leiser Baronas (UFSCar) Tamires Cristina Bonani Conti (UFSCarFAPESP) e revisatildeo teacutecnica de Julia Lourenccedilo Costa (UFSCarFAPESP) Outra versatildeo deste texto foi publicada no Dossiecirc ldquoLinguiacutestica popularfolk linguistics e linguiacutestica cientiacutefica em vez do versus propomos a integraccedilatildeordquo na revista Foacuterum Linguiacutestico v 16 nuacutemero 4 2019 Disponiacutevel em httpsperiodicosufscbrindexphpforumarticleview1984-84122019v16n4p4257 A expressatildeo ldquofora do templordquo usada no tiacutetulo deste artigo foi emprestada do projeto que Ameacutelie Cure preparou para o nuacutemero sobre Linguiacutestica Popular publicado na revista Pratiques no nuacutemero anteriormente citado Essa expressatildeo faz eco agrave foacutermula ldquofora do cacircnonerdquo que designa a arte bruta a arte dos loucos das crianccedilas dos inexperientes dos natildeo artistas tambeacutem chamada de ldquoarte outsiderrdquo ou ldquofolk artrdquo

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para o aumento dos saberes dos indiviacuteduos e para um certo apagamento das diferenccedilas entre profissionais do saber (os universitaacuterios por exemplo) e os detentores profanos de saberes ou de saberes profanos7 Outros elementos mais confidenciais pois concernem agrave histoacuteria das ciecircncias podem ser desenvolvidos a reflexatildeo sobre as relaccedilotildees entre saber e crenccedila eacute tatildeo antiga quanto o proacuteprio pensamento assim como o valor do conhecimento do senso comum natildeo suscetiacutevel de verificaccedilatildeo loacutegica (COATES 1996 DASCAL 1999 MARKOVITTS 1999 DENNETT 1990 [1987] FISETTE POIRIER 2002) a emergecircncia de uma disciplina como a etnometodologia que trouxe a partir da segunda metade do seacuteculo XX novos objetos epistemoloacutegicos para as ciecircncias humanas tal como o ldquosaber dos participantesrdquo ou novos meacutetodos como a ldquocompreensatildeordquo em especial a partir das narrativas de vida

Enfim as ciecircncias cognitivas contrariamente agrave sulforosa reputaccedilatildeo positivista e naturalista foram as primeiras a se perguntar como os conhecimentos de qualquer natureza satildeo produzidos no ceacuterebro de todas as pessoas e natildeo somente nos mais cientiacuteficos Diante desse quadro nos pareceu pertinente e mesmo relativamente urgente que a linguiacutestica independentemente da histoacuteria e da geografia que a abrigue visto que ainda permanece um pouco distante desse questionamento epistemoloacutegico se interrogue e se deixe interrogar pela dimensatildeo folk dos saberes

Tomando como referecircncia um conjunto de artigos publicados inicialmente na revista Pratiques em 20088 que tratam especificamente de questotildees atinentes agrave linguiacutestica popular propomo-nos entatildeo a discutir neste capiacutetulo mesmo que de maneira natildeo exaustiva a questatildeo da linguiacutestica popular no interior das ciecircncias da linguagem Para tanto perseguiremos vaacuterios objetivos a) desejamos dar conta da ausecircncia no contexto francecircs de um campo identificado como ldquolinguiacutestica popularrdquo ou ldquolinguiacutestica folkrdquo em comparaccedilatildeo com os domiacutenios anglo-saxocircnico e alematildeo nos quais a linguiacutestica popular faz parte de um dos subdomiacutenios da linguiacutestica geral Nesses paiacuteses a folk linguistics ou a Volklinguistik estatildeo bem implantadas e satildeo muito dinacircmicas com publicaccedilotildees e manifestaccedilotildees cientiacuteficas consistentes nestes uacuteltimos anos que podem ser atestadas na bibliografia deste livro por exemplo b) desejamos igualmente explorar ou mesmo definir o que o campo da linguiacutestica pode sublinhar no domiacutenio francoacutefono em comparaccedilatildeo a domiacutenios conexos e problemaacuteticas afins como o purismo a gramaacutetica normativa o trabalho sobre as normas linguiacutesticas sobre a metalinguagem ou sobre a noccedilatildeo de epilinguiacutestica por exemplo c) pretendemos igualmente abrir uma reflexatildeo sobre a validade dos saberes profanos e por consequecircncia sobre os saberes ldquocientiacuteficosrdquo questatildeo que eacute muito especiacutefica em linguiacutestica na medida em que a reflexividade a introspecccedilatildeo a consciecircncia linguiacutestica e a epilinguiacutestica satildeo problemaacuteticas que definem a disciplina Qual eacute portanto a pertinecircncia das intuiccedilotildees dos locutores profanos em comparaccedilatildeo agraves elaboraccedilotildees cientiacuteficas dos linguistas Esses uacuteltimos natildeo satildeo tambeacutem locutores profanos Por fim nos parece necessaacuterio e de maneira premente questionar as relaccedilotildees e as contribuiccedilotildees da linguiacutestica popular agrave linguiacutestica geral agrave linguiacutestica aplicada e ao conhecimento e ao ensino-aprendizagem

7 Essa distinccedilatildeo natildeo eacute binaacuteria mas escalar vaacuterias categorias de detentoras do saber podem ser vistas como experts os estudantes os colecionadores os apaixonados por determinado assunto os eruditos ou especialistas de todas as ordens Para um aprofundamento dessa escala ver Schmale (2008) e Paveau (2008)

8 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1168

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de liacutengua materna em particular em um periacuteodo em que as orientaccedilotildees oficiais do ensino de liacutengua na escola e no coleacutegio especialmente no contexto francecircs promovem um tipo de gramaacutetica que reivindica uma espeacutecie de ldquosimplificaccedilatildeordquo e uma ldquoautenticidaderdquo que pode ser talvez muito proacutexima do que chamamos aqui de saberes profanos ou espontacircneos9 Eacute a razatildeo pela qual desejamos uma reflexatildeo sobre o lugar a validade e a eficaacutecia pedagoacutegica das praacuteticas reveladas mais ou menos conscientemente da linguiacutestica popular colocadas em cena tanto pelos alunos quanto por seus professores no ensino da liacutengua em todos os niacuteveis

2 O que eacute a linguiacutestica popularDebruccedilar-nos-emos aqui sobre os problemas de designaccedilatildeo e de categorizaccedilatildeo dos objetos

ou das questotildees relativas agrave linguiacutestica popular

21 Os termos e as categorias folk e popular

O termo linguiacutestica popular eacute um dos objetos de uma seacuterie de denominaccedilotildees anglo-saxocircnicas baseadas em folk nas quais esse termo eacute traduzido em francecircs por popular espontacircneo inexperiente profano ou ordinaacuterio (a lista de denominaccedilotildees permanece aberta como demonstram os poucos trabalhos na aacuterea) Falamos tambeacutem de linguiacutestica do senso comum e encontramos igualmente a expressatildeo linguiacutestica dos locutores profanos em que L Rosier assinala a presenccedila massiva na internet ldquoPode-se [] constatar a presenccedila do que nomeamos linguiacutestica dos locutores profanos na internet notadamente nos foacuteruns de discussatildeo []rdquo (ROSIER 2004 p 70)

No domiacutenio cientiacutefico anglo-saxocircnico (sobretudo norte-americano) encontramos estudos bastante numerosos sobre as folk theories folk psychology folk epistemology folk biology (folk taxonomy) folk linguistics (folk etymology e folk ou perceptual dialectology) e recentemente folk pragmatics No entanto o termo folk natildeo eacute uniacutevoco e o domiacutenio da folk psychology10 se subdivide por exemplo em dois subdomiacutenios de um lado a psicologia do senso comum (commonsense psycology) que descreve e explica o comportamento humano em termos de crenccedilas desejos intenccedilotildees expectativas esperanccedilas etc e de outro uma versatildeo filosoacutefica dessa psicologia do senso comum que propotildee uma interpretaccedilatildeo dessas explicaccedilotildees ordinaacuterias por meio de generalizaccedilotildees teoacutericas mobilizando os conceitos de crenccedila desejo etc Essa corrente eacute representada por exemplo pelos trabalhos de P Churchland D Dennett e W Sellars

As lexias construiacutedas a partir de folk estatildeo bem estabilizadas no campo anglo-saxocircnico Em nosso trabalho tentamos ao maacuteximo conservar a sua traduccedilatildeo da maneira mais literal possiacutevel No entanto o termo popular em francecircs - e tambeacutem em portuguecircs - eacute polissecircmico Falamos aqui de linguiacutestica popular11 Todavia como definir esse termo Propomos por enquanto

9 Ver em particular os seguintes textos Boletim oficial nuacutemero 0 20 fevereiro de 2008 Os novos programas da escola primaacuteria Projeto submetido agrave consulta puacuteblica Eacuteduscol dgesco abril de 2008 Coleacutegio Projeto de programa francecircs Relatoacuterio de missatildeo sobre ensino da gramaacutetica 2006 elaborado por A Bentolila E Orsenna e D Desmarchelier

10 Para ver a difusatildeo desses trabalhos norte-americanos no contexto francoacutefono ver por exemplo Fisette e Poirier (2002)

11 As reservas em torno desse termo satildeo ambiacuteguas e enganosas (ele designaria de maneira pejorativa a linguiacutestica do povo) fazendo com que alguns autores adotassem a lexia afrancesada folk linguistique NT No Brasil salvo melhor juiacutezo embora o sentido de popular possa ser pejorativo sobretudo enunciado por locutores que pertencem agraves classes mais abastadas da populaccedilatildeo poreacutem como a linguiacutestica popular ainda estaacute em gestaccedilatildeo tais sentidos ainda natildeo estatildeo apensos agrave expressatildeo linguiacutestica popular

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chamar popular o saber espontacircneo dos atores sociais sobre o mundo (depositado entre outros espaccedilos nos proveacuterbios e nos ditos populares por exemplo) que se diferencia do saber acadecircmico ou cientiacutefico da mesma maneira que o saber praacutetico se distingue do saber teoacuterico O saber espontacircneo eacute constituiacutedo de saberes empiacutericos natildeo suscetiacuteveis de verificaccedilatildeo loacutegica (o saber espontacircneo natildeo eacute verdadeiro nem falso visto que eacute um saber aproximativo como explica F Markovits) e tambeacutem de crenccedilas que constituem guias para a accedilatildeo dos atores sociais as lendas urbanas ou as influecircncias da lua sobre as plantaccedilotildees ou ainda se o ceacuteu estaacute mais ou menos nublado como possibilidade de chuva satildeo crenccedilas reveladas do saber espontacircneo As conotaccedilotildees pejorativas geralmente apensas ao termo popular (contrariamente a outros usos eufoacutericos do termo como educaccedilatildeo ou universidade ou artes e tradiccedilotildees popular(es) por exemplo) fazem parte do escopo dos estudos da linguiacutestica popular e podem se tornar um importante objeto de estudo para esse domiacutenio

22 Geografia da linguiacutestica popular

221 Folk linguistics

O domiacutenio anglo-saxocircnico da folk linguistics foi aberto nos anos 1960 do seacuteculo passado pelos trabalhos inaugurais de Hoenigswald (1960 1996) que reivindicou firmemente que se leve em conta os saberes espontacircneos na constituiccedilatildeo de toda a ciecircncia Todavia essa importante demanda natildeo encontrou muito eco agrave eacutepoca Foi preciso esperar os anos 2000 para que a obra seminal de N Niedzielski e D Preston retomasse a questatildeo sobre o conteuacutedo e a representatividade da linguiacutestica popular norte-americana atualmente Em seu trabalho N Niedzielski e D Preston (2000 p 8) precisam o sentido de folk em folk linguistics

[A palavra folk] refere-se agravequeles que natildeo satildeo profissionais qualificados na referida aacuterea [] Definitivamente natildeo usamos folk para nos referirmos a ruacutesticos ignorantes atrasados primitivos minoritaacuterios isolados marginalizados ou grupos e indiviacuteduos de status supostamente inferiores

Em seguida os autores enfatizam a importacircncia de se levar em conta os saberes populares para a constituiccedilatildeo dos corpora de saberes cientiacuteficos ldquoSeja para o propoacutesito puramente cientiacutefico de registraacute-lo ou para os propoacutesitos sociais de nos ajudar a entender melhor nossas atitudes muacutetuas sugerimos que o estudo [] dos traccedilos linguisticamente orientados eacute uma tarefa importanterdquo (NIEDZIELSKI PRESTON 2000 p 123)

Os nomes e as expressotildees abaixo que intitulam os capiacutetulos do livro de N Niedzielski e D Preston desenham claramente o mapa da folk linguistics norte-americana

a) Regionalismo

b) Fatores sociais

c) Aquisiccedilatildeo da linguagem e linguiacutestica aplicada

d) Linguiacutestica geral e linguiacutestica descritiva

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O exposto permite destacar alinhados a J R Dow (autor de uma resenha do livro de N Niedzielski e D Preston publicada no Journal of American Folklore em 2001) que a obra apresenta elementos de anaacutelise e de reflexatildeo nos seguintes domiacutenios da linguiacutestica norte-americana

A ethnography of language a social psychology of language (ou estudo das atitudes linguiacutesticas muitas vezes traduzidos por psicologia social da linguagem) general descriptive linguistics (linguiacutestica geral e descritiva) language variation and change (linguiacutestica variacionista) e applied linguistics (linguiacutestica aplicada)

Esses dados nos mostram que a folk linguistics no domiacutenio anglo-saxocircnico especialmente no norte americano constitui um importante campo para as ciecircncias da linguagem12

222 Volkslinguistik Laienlinguistik

No contexto germacircnico a Volkslinguistik agraves vezes chamada de Laienlinguistik embora os termos natildeo cubram as mesmas praacuteticas linguiacutesticas13 se apresenta como no domiacutenio anglo-saxocircnico isto eacute como um campo de estudos jaacute consolidado com muitas produccedilotildees cientiacuteficas eventos etc O pesquisador G Antos tem contribuiacutedo largamente para difundir essa abordagem que se situa no domiacutenio da formaccedilatildeo transitando entre a psicologia e a gestatildeo A Laienlinguistik eacute a linguiacutestica dos manuais de conversaccedilatildeo ou de expressatildeo oral destinados a melhorar a competecircncia linguiacutestica dos locutores na sua vida social e profissional Os trabalhos do que se denomina enquanto Volkslinguistik se concentram todavia sobre a dialetologia e adotam uma perspectiva que se poderia denominar geolinguiacutestica se debruccedilando por exemplo sobre a imagem da ldquobad languagerdquoldquoliacutengua ruimrdquo associada agraves variantes regionais14 Tambeacutem eacute esse uso geolinguiacutestico da noccedilatildeo de linguiacutestica espontacircnea popular que P Seacuteriot mobiliza na Suiacuteccedila no tiacutetulo de seu artigo de 1996 sobre a linguiacutestica espontacircnea dos marcadores de fronteiras15 e no trabalho coletivo publicado na revista Pratiques nuacutemero 139140

223 Linguiacutestica popular

No domiacutenio francecircs e francoacutefono os estudos que se inscrevem na linguiacutestica popular satildeo raros como sublinha J-C Beacco que alhures escolheu evitar o termo popular no tiacutetulo do nuacutemero 154 da revista Langages16 por ele dirigida acerca desse tema preferindo falar

12 NT No caso do Brasil ao se tomar como paracircmetro as aacutereas que compotildeem o campo de estudos da linguiacutestica a partir por exemplo do CNPq ou de um evento jaacute consolidado como o de uma associaccedilatildeo como o GEL ou mesmo os Grupos de Trabalho da ANPOLL a linguiacutestica popular sequer figura como um domiacutenio ou mesmo subdomiacutenio de estudos da linguagem

13 Para um aprofundamento desta questatildeo veja o artigo de Schmale e Stegu publicado em dezembro de 2008 na revista Pratiques linguistique litteacuterature e didactique nuacutemero 139140 O artigo pode ser acessado em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1168 Veja tambeacutem o artigo de Antos (1996)

14 Para um aprofundamento desta discussatildeo veja por exemplo Langer (2001) os trabalhos de W Davies e o projeto de pesquisa The history and current status of lsquobad languagersquo as a concept in German folk linguistics que pode ser acessado no site httpeisbrisacuk~gexnlresearchahrbhtml

15 NT A referecircncia completa do artigo mencionado eacute SERIOT P La linguistique spontaneacutee des traceurs de frontiegraveres In SERIOT P (eacuted) Langue et nation en Europe centrale et orientale du 18egraveme siegravecle agrave nos jours Cahiers de lrsquoILSL (Univ de Lausanne) n 8 p 277-304 1996

16 NT A iacutentegra desse nuacutemero intitulado Repreacutesentations meacutetalinguistiques ordinaires et discours sob a direccedilatildeo de Jean-Claude Beacco pode ser acessada em httpswwwperseefrissuelgge_0458-726x_2004_num_38_154

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sobre representaccedilotildees metalinguiacutesticas ordinaacuterias Eacute sobretudo a expressatildeo etimologia popular que eacute difundida na Franccedila Dentre as razotildees para a escolha dessa terminologia estaacute o fato de se tratar de um fenocircmeno linguiacutestico passiacutevel de descriccedilatildeo e suscetiacutevel de fornecer um objeto discreto para a linguiacutestica geral O texto de autoria de H E Brekle presente no tomo 1 do livro Histoacuteria das ideias linguiacutesticas organizado por Sylvain Auroux bem como o trabalho de J-C Beacco citado anteriormente fazem menccedilotildees expliacutecitas ao domiacutenio da linguiacutestica popular Tambeacutem Pierre Bourdieu desde o iniacutecio dos anos 1980 mas de maneira mais expliacutecita em seu trabalho de 2001 reclama a existecircncia de uma ldquociecircncia rigorosa da sociolinguiacutestica espontacircneardquo (BOURDIEU 2001 p 137) De maneira um pouco mais recente e programaacutetica vale mencionar os nossos trabalhos (Marie-Anne Paveau) sobre a necessidade de se levar em conta a linguiacutestica popular no ensino da liacutengua francesa na escola (2005) os que tratam da construccedilatildeo de objetos sociais nas abordagens sociolinguiacutesticas (2007 e 2008) e os que buscam renovar as teorias do discurso (2006) Alguns desses trabalhos satildeo objetos dos proacuteximos capiacutetulos deste livro Haacute ainda o trabalho de L Rosier sobre a questatildeo do purismo nos trabalhos acerca das normas da liacutengua francesa e a circulaccedilatildeo dos discursos (2003 2004 e 2006)

O que expusemos anteriormente natildeo significa que as questotildees aqui rapidamente apresentadas natildeo sejam tratadas na literatura Todavia esse tipo de tratamento eacute feito sob outras etiquetas terminoloacutegicas ou com base em outras orientaccedilotildees teoacutericas e temaacuteticas

Em primeiro lugar eacute sob a designaccedilatildeo ordinaacuterio que o discurso espontacircneo sobre a liacutengua eacute agraves vezes estudado17 sem que haja contudo uma discussatildeo sobre essa questatildeo no contexto francecircs cujo objetivo seria o da constituiccedilatildeo de um domiacutenio cientiacutefico que buscasse uma sistematizaccedilatildeo quer seja da ldquolinguiacutestica ordinaacuteriardquo ou do ldquoordinaacuteriordquo propriamente dito O termo ordinaacuterio eacute amplamente mobilizado em lexias como francecircs ordinaacuterio trocas linguiacutesticas ordinaacuterias ou discursos ordinaacuterios Essa problemaacutetica do termo ordinaacuterio se confunde frequentemente com a problemaacutetica do cotidiano agrave maneira que os etnometodoacutelogos tratam dessa questatildeo Em segundo lugar dois subdomiacutenios ou orientaccedilotildees teoacutericas e temaacuteticas satildeo intensamente atravessadas pelas questotildees da linguiacutestica popular

a) De uma parte o vasto domiacutenio dos estudos sobre o ldquometardquo que trata da linguiacutestica do sistema (REY-DEBOVE 1978 que faz uma distinccedilatildeo da ldquometalinguagem correnterdquo e ldquocientiacuteficardquo tanto da teoria da enunciaccedilatildeo e da reformulaccedilatildeo (AUTHIER-REVUZ 1995 e as aspas meta-enunciativas quanto de Julia (2001) que fala de uma ldquosemacircntica espontacircneardquo) ou da didaacutetica da liacutengua (por exemplo J-C BEACCO R BOUCHARD J DAVID e S TREacuteVISE)18

b) De outra parte um conjunto tambeacutem vasto de trabalhos que em sociolinguiacutestica (J-C BEACCO define a linguiacutestica popular como um desdobramento da sociolinguiacutestica) se ocupam das normas e das representaccedilotildees (BERRENDONNER 1982 GADET (2007 [2003])

17 Para constatar essa afirmaccedilatildeo veja o sumaacuterio do nuacutemero organizado por Jean-Claude Beacco na revista Langages em 2004 intitulado Repreacutesentations meacutetalinguistiques ordinaires et discours

18 Para uma siacutentese destes trabalhos ver Bouchard e Meyer (1995)

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HOUDEBINE (2002) LAFONTAINE (1986) E A BOYER N GUERNIER J-M KLINGEBERG e outros) frequentemente recobertas pela etiqueta das ldquoatitudes linguiacutesticasrdquo no quadro de uma psicologia social da linguagem

23 Praacuteticas de linguiacutesticas profanasComo acabamos de mostrar de certa maneira a linguiacutestica popular natildeo existe na Franccedila

como um campo constituiacutedo Neste caso pode parecer paradoxal querer definir seus objetos e os materiais de observaccedilatildeo O paradoxo se configura se nos propomos a considerar a linguiacutestica popular como uma estrutura para unificar os objetos e abordagens mencionadas ateacute agora centrada em torno do conceito de praacutetica

Para tanto perquirimos a seguinte proposiccedilatildeo o campo de investigaccedilatildeo da linguiacutestica popular incluiria o conjunto dos enunciados que podemos qualificar como praacuteticas linguiacutesticas profanas (isto eacute que natildeo vecircm de representantes da linguiacutestica como uma disciplina estabelecida os ldquonatildeo-linguistasrdquo assim chamados por N Niedzielski e D Preston) designando avaliando ou referindo-se aos fenocircmenos da linguagem para produzi-los (os dois primeiros itens satildeo retirados de Brekle 1989 e o terceiro proposto por noacutesMarie-Anne Paveau)

i Descriccedilotildees ou (preacute)teorizaccedilotildees linguiacutesticas por exemplo aquelas que se relacionam com a designaccedilatildeo (chamar um gato de gato ou as coisas por seu nome) ou sobre a hierarquia entre escrito e oral (palavras verbais falar como um livro colocar os pingos nos is dizer ao peacute da letra) ou ainda sobre a conformidade com as regras da liacutengua (agente vai e vocecirc estaacute afim ldquonatildeo satildeo portuguecircsrdquo19) Um exemplo de um trecho da linguiacutestica social popular derivado do corpus das obras tiacutepicas do ldquoespiacuterito francecircsrdquo que propotildee uma pequena teoria profana do patroniacutemico em um contexto intercultural (Turid a jovem companheira norueguesa do narrador faz o experimento sobre os usos do nome proacuteprio na administraccedilatildeo francesa)

Mas o segredo do nome tambeacutem se estende aos serviccedilos puacuteblicos Enquanto em muitos paiacuteses sabemos imediatamente com quem estamos lidando ndash nos escritoacuterios com um crachaacute com o nome do funcionaacuterio no telefone porque o funcionaacuterio foi nomeado ndash na Franccedila se Turid quer saber quem ela deveria chamar na prefeitura nas contribuiccedilotildees no Serviccedilo Social

- Senha 634

Se ela insiste em ter uma interlocutora que parecesse gentil com ela

- Pergunte Madame Yvette

O nome da famiacutelia continua sendo um segredo quase inviolaacutevel Eacute o mesmo no bistrocirc onde o chefe recebe constantemente mensagens codificadas

- Eu te deixo pelo Senhor Leacuteon Vocecirc vai dizer a ele que eacute do Sr Raymond (P DANINOS 1977 Made in France Paris Julliard p 23)

19 NT Aqui a autora usa dois exemplos de ldquoerros gramaticiaisrdquo em francecircs que adaptamos para o portuguecircs com o uso de agente no lugar de a gente e afim no lugar de a fim

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ii Prescriccedilotildees comportamentais que na maioria das vezes vecircm de um normativismo mais ou menos exacerbado sabemos que ldquoamantes da boa linguagemrdquo ou ldquocomerciantes de regrasrdquo nas palavras de G Philippe (2002) condenam facilmente os neologismos (inuacuteteis) os empreacutestimos (ameaccediladores) os adveacuterbios terminados em -mente (pesados) as palavras teacutecnicas (jargotildees) feminilizaccedilotildees (ridiacuteculas) etc (PAVEAU ROSIER 2008) As praacuteticas profanas entatildeo satildeo abarcadas pelo purismo como definido por L Rosier (2004 p 69)

Eacute caracterizada por uma forte axiologizaccedilatildeo performativa (o que eacute dito o que natildeo eacute dito) que une o bom uso e pretende respeitar uma estrita economia das trocas linguiacutesticas em que se avalia aquele que fala de acordo com seu domiacutenio da liacutengua sob o acircngulo de riqueza lexical e correccedilatildeo gramatical

iii Intervenccedilotildees espontacircneas sobre a liacutengua chamadas de ldquofalhasrdquo pelos gramaacuteticos e puristas mas que constituem uma praacutetica real de linguagem profana impliacutecita se considerarmos que a falta constitui um discurso sobre a linguagem A coisa eacute entendida pelas etimologias populares (cata-vento lt catar + vento) e as meta-anaacutelises ou ldquointerrupccedilotildeesrdquo (ocircnibus rarr autocarro panorama rarr diaporama) menos quando dizem respeito aos erros Mas sabemos poreacutem e desde haacute muito tempo (a intransponiacutevel Gramaacutetica das falhas de Frei data de 1928) que a maioria das falhas dos falantes grandes ou pequenas eacute explicada pelo princiacutepio da economia da linguagem a linguagem eacute assim regularizada (o famoso vocecirc faz) simplificado (o caso bem conhecido odiado pelos puristas emoccedilatildeo rarr emocionado ou o menos conhecido ele cobriu lido no Teacuteleacuterama semanaacuterio culto em julho de 2006) harmonizado (Centro de estudos espaciais tambeacutem no Teacuteleacuterama em setembro de 2006) As falhas do francecircs existem como D Leeman pergunta (1994) Tudo depende por quem para quem e por que fazer Mas as intervenccedilotildees tambeacutem dizem respeito a campos mais poliacuteticos que dizem respeito agraves realidades de territoacuterios e populaccedilotildees como mostra claramente o artigo de P Seacuteriot E Bulgakova A Herzen como jaacute mencionamos presente no nuacutemero 139140 da revista Pratiques Nomes de pessoas nomes de liacutenguas nomes de paiacuteses e rios trata-se aqui de uma linguiacutestica popular com alto grau de performatividade uma vez que as intervenccedilotildees linguiacutesticas tambeacutem satildeo prescriccedilotildees de identidade

iv Haacute ainda as praacuteticas militantes especialmente aquelas que se debruccedilam a questionar certos usos linguiacutesticos por conta de seu caraacuteter racista homofoacutebico machista enfim preconceituoso

Recapitulando com base no nosso entendimento diremos que a linguiacutestica popular reuacutene quatro tipos de praacuteticas linguiacutesticas descritiva (descrevemos a atividade da linguagem) normativa (prescrevemos comportamentos da linguagem) intervencionista (intervimos nos usos da linguagem) e militante (questionamos certos usos da linguagem por entendermos natildeo serem virtuosos preconceituosos machistas entre outros) Examinemos agora de acordo com os nossos objetivos quais questotildees a linguiacutestica popular deveria desenhar para a linguiacutestica e a didaacutetica da liacutengua

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3 As muacuteltiplas dimensotildees da linguiacutestica popularUma das razotildees pelas quais a linguiacutestica popular deveria ser um domiacutenio da linguiacutestica eacute

que ela diz respeito natildeo apenas agrave teoria linguiacutestica em sua constituiccedilatildeo sua validade e sua legitimidade (o que lhe confere uma dimensatildeo epistemoloacutegica e meta-teoacuterica) mas tambeacutem agraves praacuteticas linguageiras em suas dimensotildees sociais culturais e cognitivas (o que eacute caro agrave sociolinguiacutestica agrave psicologia social e agrave semacircntica cognitiva) bem como aos procedimentos de ensino-aprendizagem de liacutenguas (levando ao ensino de liacutenguas e agrave psicolinguiacutestica)

31 Epistemologia

A linguiacutestica popular propotildee entre outras questotildees um problema de fronteiras disciplinares e de concepccedilatildeo de ciecircncia Sobre esse ponto as questotildees se misturam quais satildeo as relaccedilotildees entre sociolinguiacutestica e linguiacutestica popular (integraccedilatildeo afinidade cruzamento) E acima de tudo entre a linguiacutestica popular e a chamada linguiacutestica acadecircmica ou cientiacutefica devemos permanecer em uma oposiccedilatildeo binaacuteria (uma versus a outra) em que os natildeo-linguistas natildeo tecircm nada a dizer sobre liacutengua e os linguistas satildeo os uacutenicos autorizados a fazecirc-lo ou de maneira mais razoaacutevel podemos colocar as coisas em termos de um continuum um gradiente de cientificidade ou espontaneidade As fronteiras satildeo claras entre o purismo e a linguiacutestica popular (o purismo finalmente eacute tatildeo profano quanto isso) E que jogo de estilos musicais se desenrola entre a gramaacutetica tradicional a linguiacutestica popular e a linguiacutestica cientiacutefica a gramaacutetica tradicional apresentando por meio da norma caracteriacutesticas em comum com a proacutepria linguiacutestica popular conectada com linguiacutestica aprendida Como definir o ldquopopularrdquo ou ldquoprofanordquo senatildeo de maneira relativa a um padratildeo de comparaccedilatildeo qual seria a cientificidade ela mesma suscetiacutevel de variaccedilotildees de acordo com os objetos os meacutetodos e os objetivos considerados

Eacute primeiramente D R Preston um dos iniciadores do campo e autor com N Niedzielski da primeira siacutentese sobre a linguiacutestica popular (2003 [2000]) que responde a essas questotildees demonstrando o interesse cientiacutefico de comentaacuterios linguiacutesticos de natildeo-linguistas No artigo ldquoQursquoest-ce que la linguistique populaire Une question drsquoimportancerdquo20 ele explica por que e como levar em conta a linguiacutestica folk e mostra de passagem algumas ideias recebidas sobre a questatildeo como a suposta pobreza dos conhecimentos populares por exemplo

No nuacutemero mencionado da revista Pratiques vaacuterios autores lidam com essa dimensatildeo epistemoloacutegica Por exemplo nesse nuacutemero haacute uma entrevista concedida pelo historiador Eacuteric Mension-Rigau21 na qual ele explica de maneira muito praacutetica como trata os dados linguiacutesticos com um meacutetodo ldquocombinadordquo de suas habilidades como leitor de literatura (ele eacute um historiador de formaccedilatildeo que se interessa pelas Letras) o que ele chama de sua intuiccedilatildeo e de suas faculdades de observaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo Para ele eacute um verdadeiro meacutetodo histoacuterico e como D Dennett o autor poderia dizer que ldquofuncionardquo porque na verdade produz resultados convincentes e reconhecidos

20 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1176

21 Referimo-nos ao texto ldquoEntretien avec un folk linguiste lrsquohistorien Eacuteric Mension-Rigaurdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1174

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Por sua vez G Achard-Bayle que especularmente escolheu uma forma ldquopopularrdquo para lidar com a questatildeo da linguiacutestica popular (ldquoTrivial Pursuit Alfabeto da identidade pop-folk para o uso de linguistasrdquo) mostra como as questotildees ligadas agrave referecircncia ao real e agrave identidade satildeo sempre suscetiacuteveis agrave teorizaccedilatildeo de regime muacuteltiplo de acordo com o senso comum ou a racionalidade cientiacutefica avanccedilam para ambos suscetiacuteveis de receberem definiccedilotildees relativas

G Schmale no texto intitulado Conceptions populaires de la conversation22 discute a questatildeo da situaccedilatildeo da Laienlinguistik em comparaccedilatildeo com outras praacuteticas algumas menos instruiacutedas outras mais sobre a conversaccedilatildeo Por fim numa perspectiva epistemoloacutegica mais generalista o pesquisador Martin Stegu no artigo Linguistique populaire language awareness linguistique appliqueacutee interrelations et transitions23 compara a linguiacutestica folk a Laienlinguistik a linguiacutestica acadecircmica ou ldquooficialrdquo e sua relaccedilatildeo com a linguiacutestica aplicada No entendimento de Stegu essa comparaccedilatildeo mostra por exemplo que a linguiacutestica aplicada eacute em muitos aspectos bem proacutexima da linguiacutestica popular porque ela proacutepria foi concebida pelos natildeo-linguistas O autor defende entatildeo uma concepccedilatildeo aberta e escalar da linguiacutestica aplicada popular e acadecircmica

32 Teoria

Em suma eacute a proacutepria questatildeo da teoria que a linguiacutestica popular revira ativando questotildees sobre a categorizaccedilatildeo e denominaccedilatildeo dos fenocircmenos estudados nas ciecircncias da linguagem o estudo das atividades metalinguiacutesticas comuns dos falantes vem da linguiacutestica popular A palavra corrente eacute sinocircnimo de popular E como tratar a famosa intuiccedilatildeo ou o sentimento da linguagem em que os proponentes de uma linguiacutestica da competecircncia estatildeo baseados Sabemos que o termo contra intuitivo eacute frequentemente mobilizado para provar a agramaticalidade desta ou daquela forma A intuiccedilatildeo estaacute incluiacuteda na categoria de ldquopopularrdquo A intuiccedilatildeo eacute profana

Tomando uma vez mais a revista Pratiques M-A Paveau oferece algumas respostas hipoteacuteticas a essas questotildees em seu texto Les non-linguistes font-ils de la linguistique Une approche anti-eacuteliminativiste des theacuteories folk24 No texto em questatildeo a autora defende uma abordagem integracionista isto eacute que integre dados considerados folk para a linguiacutestica acadecircmica sem que uma fronteira em termos de contrariedade (ldquoversusrdquo) seja colocada entre os dois tipos de fenocircmenos Eacute a questatildeo da intuiccedilatildeo que sustenta essa posiccedilatildeo antieliminatoacuteria na medida em que a linguiacutestica acadecircmica natildeo pode economizar em intuiccedilatildeo e introspecccedilatildeo por causa de sua dimensatildeo reflexiva irredutiacutevel

Nesse quesito a linguiacutestica eacute particularmente fraacutegil face a ambiccedilotildees objetivistas e idealistas derivadas do modelo cientiacutefico das ciecircncias exatas No campo da argumentaccedilatildeo o trabalho de Marianne Doury tambeacutem se questiona sobre a validade do raciociacutenio folk A autora mostra em seu artigo intitulado lsquoCe nrsquoest pas un argumentrsquo Sur quelques aspects des theacuteorisations spontaneacutees de lrsquoargumentation25 que natildeo haacute diferenccedila gritante em termos da validade dos

22 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1186

23 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1193

24 A traduccedilatildeo deste artigo para o portuguecircs estaacute publicada em Policromias Rio de Janeiro UFRJ v 2 n 3 p 21-45 dez 2018 Disponiacutevel em httpsrevistasufrjbrindexphppolicromiasissuedownload1175622 Acesso em 10 ago 2019

25 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1207

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argumentos entre as produccedilotildees espontacircneas e as produccedilotildees aprendidas Ela traz assim argumentos importantes para fundamentar a abordagem antieliminatoacuteria

Essa posiccedilatildeo integracionista pode ser encontrada ateacute mesmo dentro da proacutepria linguiacutestica acadecircmica como mostram as obras de F Recanati sobre o sentido literal e o sentido contextual sintetizado em seu livro Literal Meaning (RECANATI 2004) Eacute preciso que nos debrucemos um pouco sobre essa concepccedilatildeo do sentido diretamente relacionada ao problema do eliminatoacuterio versus integracionista F Recanati que produz linguiacutestica a partir da filosofia desenvolve uma concepccedilatildeo contextualista do sentido e portanto argumenta que uma teoria semacircntica baseada na noccedilatildeo de sentido literal natildeo pode funcionar No capiacutetulo 9 de seu livro o autor defende uma posiccedilatildeo que chama de Meaning Eliminatism (eliminar o sentido intriacutenseco) baseada na ideia de que o sentido pode ser desenvolvido sem uma concepccedilatildeo puramente linguiacutestica e natildeo-contextual do sentido

De acordo com WF [visatildeo Wrong Format ldquoFormato Erradordquo] o sentido expresso por uma expressatildeo deve sempre ser contextualmente construiacutedo com base no (excessivamente rico ou excessivamente abstrato) significado ou potencial semacircntico do tipo de palavra [] Nesse quadro ainda haacute um papel para o significado linguiacutestico dos tipos de palavras eacute a entrada (ou um dos insumos) para o processo de construccedilatildeo

A diferenccedila entre o Meaning Eliminativism (ME) e o WF eacute que de acordo com o ME natildeo precisamos de significados linguiacutesticos nem mesmo para servir como entrada para o processo de construccedilatildeo Os sentidos que satildeo as contribuiccedilotildees das palavras para os conteuacutedos satildeo construiacutedos mas a construccedilatildeo pode prosseguir sem a ajuda de significados de palavras convencionais independentes do contexto (RECANATI 2004 p 174-175)

O autor entatildeo considera que a teoria contextualista do sentido eacute uma teoria popular na medida em que se baseia em dados natildeo-linguiacutesticos isto eacute contextuais Portanto aqui estamos diante de uma teoria linguiacutestica elaborada com base em uma concepccedilatildeo ldquonatildeo-linguiacutesticardquo no sentido aprendido do termo do sentido F Recanati pode ser descrito como um filoacutesofo que faz linguiacutestica junto com a natildeo-linguiacutestica o que natildeo eacute do gosto de todos como R M Harnish (2005 p 397) mostra claramente resumindo assim a posiccedilatildeo do filoacutesofo francecircs

Assim Recanati parece natildeo apenas promover uma espeacutecie de ldquosemacircntica-pragmaacutetica folkrdquo mas tambeacutem negar a legitimidade (e o potencial valor psicoloacutegico) da tradicional (ldquocientiacuteficardquo) linguiacutestica semacircntica Ele parece estar apostando que a semacircntica-pragmaacutetica natildeo seguiraacute o caminho da sintaxe (e da fonologia) Isto eacute introspectiva a psicologia popular prevaleceraacute tanto sobre as intuiccedilotildees semacircnticas quanto sobre a metodologia tradicional de construccedilatildeo de teoria na semacircntica

Natildeo seria toda linguiacutestica uma linguiacutestica popular Isto eacute certamente mostrado por certas representaccedilotildees discursivas e certos imaginaacuterios linguiacutesticos

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33 Representaccedilotildees

A questatildeo da validade teoacuterica ou mais amplamente cientiacutefica tambeacutem surge para os estudos sobre as representaccedilotildees linguiacutesticas do imaginaacuterio linguiacutestico formulado por A-M Houdebine ateacute as mitologias linguiacutesticas estudadas por P Zoberman bem como a linguiacutestica fantaacutestica e imaginaacuteria evocada por M Yaguello o imaginaacuterio eacute popular a linguiacutestica fantaacutestica eacute profana De quais campos de quais categorias de qual campo disciplinar ou subdisciplina somos noacutes

As respostas satildeo fornecidas por J-C Beacco em seu artigo De la verve Agrave la recherche drsquoun ideacuteal discursif ordinaire26 quando ele propotildee analisar ldquoas concepccedilotildees circulantes sobre o que eacute o bom falar ou o que eacute o autecircntico bom escrever que responde a valores distintos ou opostos agravequeles que baseiam as normas dominantes ditas indiferentemente acadecircmicas oficiais escolares supervisionadas elegantes Neste texto o autor examina um corpus de artigos da imprensa esportiva (o jornal diaacuterio LrsquoEacutequipe) para descobrir definiccedilotildees espontacircneas do que eacute essa eloquecircncia autecircntica Em outra ordem de ideias mas ainda no campo das estruturas representacionais P Seacuteriot E Bulgakova e A Heržen mostram em La linguistique populaire et les pseudo-savants27 que o discurso da liacutengua constitui a base de um questionamento sobre as identidades coletivas e nacionais na Europa Oriental no primeiro dececircnio dos anos dois mil Eles destacam assim realidades culturais e discursivas pouco conhecidas como a fabricaccedilatildeo de identidades miacuteticas e origens fantaacutesticas por meio de um discurso linguiacutestico ldquopseudo-eruditordquo com uma forte intenccedilatildeo persuasiva As apostas satildeo altas porque se trata da definiccedilatildeo de povos e da delimitaccedilatildeo de fronteiras

34 Praacuteticas

Por fim a linguiacutestica popular levanta o problema do valor e da efetividade do conhecimento espontacircneo em um contexto de aprendizagem um discurso frequente eacute que na linguiacutestica como em outros lugares a demonstraccedilatildeo cientiacutefica na maioria das vezes contradiz a interpretaccedilatildeo espontacircnea (por exemplo a posiccedilatildeo de Jackendoff (2003) em relaccedilatildeo ao ldquoconhecimento popularrdquo) Esse discurso estaacute no entanto atualmente sendo minado por alguns filoacutesofos das ciecircncias que depois de ilustres antecessores como A Schutz ou P Feyerabend mostraram como as teorias espontacircneas agraves vezes estatildeo proacuteximas de resultados cientiacuteficos ou tecircm validade de uma outra ordem necessaacuteria no campo da vida em sociedade

Esta questatildeo parece crucial para noacutes na aula de francecircs do jardim de infacircncia agrave universidade Qual eacute o lugar do conhecimento profano dos alunos e professores em sala de aula (sabemos que a atividade metalinguiacutestica de ldquocrianccedilas gramaacuteticasrdquo eacute largamente explorada em preacute-aprendizagens no maternal e no ciclo 1) Um ldquoerro cientiacuteficordquo pode ter uma boa rentabilidade funcional no aprendizado Eacute este o caso de todas as atividades Para todos os niacuteveis de ensino (ldquoa crianccedila gramaacuteticardquo de Gleitman Gleitman e Shipley (1972) pode tornar-se um ldquoestudante gramaacuteticordquo) O ensino de francecircs deve privilegiar a eficaacutecia ou a precisatildeo cientiacutefica

26 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1214

27 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1220

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Sobre essas questotildees vale a pena voltar uma vez mais ao nuacutemero 139140 da revista Pratiques Em seu trabalho sobre Les explications meacutetagraphiques appliqueacutees aux premiegraveres eacutecritures enfantines28 J David se baseia em um grande corpus de textos escritos e especialmente em autoexplicaccedilotildees ou comentaacuterios metagraacuteficos produzidos por crianccedilas pequenas que satildeo aprendizes de escritores (5-7 anos) para mostrar como essas crianccedilas conseguem verbalizar o conhecimento emergente sobre o funcionamento da escrita Este conhecimento demonstra ter conexotildees por um lado com as propriedades das linguagens orais e por outro lado com os componentes da escrita (semioloacutegicos fonoloacutegicos morfoloacutegicos) gradualmente descobertos e integrados Um conhecimento espontacircneo e incontestaacutevel surge assim dos comentaacuterios metagraacuteficos das crianccedilas

Constataccedilotildees anaacutelogas satildeo feitas por referecircncia agraves grafias inventadas (invented spellings) por J-P Jaffre e M-F Morin Em sua reflexatildeo sobre Les activiteacutes preacute-orthographiques nature validiteacute et conceptions29 os autores mostram de fato que as crianccedilas pequenas possuem habilidades preacute-ortograacuteficas pois natildeo satildeo a princiacutepio cognitivamente sensiacuteveis agraves normas ortograacuteficas mas agraves funcionalidades subjacentes cuja uacutenica consideraccedilatildeo eacute avaliar suas primeiras produccedilotildees Eles concluem que escrever natildeo eacute mais uma questatildeo de (re)produzir normas ortograacuteficas mas de perceber princiacutepios graacuteficos baacutesicos e recorrentes ndash por exemplo o valor fonoloacutegico das letras na tradiccedilatildeo alfabeacutetica

Satildeo essas ldquocrianccedilas gramaacuteticasrdquo que satildeo o assunto dos comentaacuterios de M Laparra Em seu texto Lrsquoeacutelegraveve grammairien Lrsquoexemple de lrsquoapprentissage des marques graphiques du franccedilais30 a autora se pergunta qual eacute o valor do conhecimento espontacircneo que os alunos podem produzir em certas marcas morfoloacutegicas graacuteficas do francecircs Apesar de tudo a sala de aula continua sendo um espaccedilo interacional que constitui um verdadeiro reservatoacuterio onde se descobrem discursos agraves vezes preacute-fabricados furtivos ou ritualizados oriundos por vezes dos proacuteprios conhecimentos escolares derivados dos conhecimentos acadecircmicos Eacute isso que C Weber mostra em Les verbalisations ordinaires dans la classe objets furtifs ou variables encombrantes des sciences du langage31 Os vaacuterios modos comunicativos que se desenrolam na sala de aula datildeo lugar de fato em sua opiniatildeo a uma infinita variaccedilatildeo de produccedilotildees representaccedilotildees e raciociacutenios que estatildeo prestes a ser construiacutedos cuja forma e presenccedila satildeo ldquofurtivasrdquo mas que desempenham um papel decisivo nas praacuteticas escolares

O nosso primevo percurso acerca da linguiacutestica popular finda mencionando o artigo de F Capucho Ela propotildee uma abordagem ineacutedita em relaccedilatildeo a todos os trabalhos jaacute mencionados na medida em que opta por trabalhar no contexto do plurilinguismo e em uma noccedilatildeo pluridisciplinar (linguiacutestica filosofia psicologia social comunicaccedilatildeo) a intercompreensatildeo Em Lrsquointercompreacutehension est-elle une mode Du linguiste citoyen au citoyen plurilingue32 ela mostra que essa noccedilatildeo estrutura os comportamentos de falantes pluriliacutengues especialmente em condiccedilotildees

28 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1230

29 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1238

30 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1246

31 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1247

32 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1252

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com alto grau de estranheza como as viagens Em particular ela analisa os componentes emocionais e situacionais e mostra ateacute que ponto os locutores mobilizam espontaneamente quase ldquonaturalmenterdquo sua competecircncia intercompreensiva

4 Umas poucas palavras de fim Esperamos que as breves consideraccedilotildees que aqui realizamos possam orientar e talvez

iluminar uma aacuterea que ainda eacute um pouco obscura na Franccedila e pelo que nos consta a partir de nosso contato com os organizadores deste livro tambeacutem no Brasil Os levantamentos aqui apresentados podem contribuir para o tratamento da linguiacutestica popular a partir de questotildees de natureza epistemoloacutegica teoacuterica praacutetica e representacional que acreditamos serem necessaacuterias para que o campo da ciecircncia da linguagem seja mantido em um dinamismo seguro sem nenhum tipo de binarismos Esperamos que os percursos brevemente abertos ou aprofundados aqui favoreccedilam igualmente as colaboraccedilotildees de todos os interessados sobre a questatildeo da linguiacutestica popular e de um modo mais geral sobre a validade do conhecimento das ciecircncias humanas

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NAtildeO-LINGUISTAS FAZEM LINGUIacuteSTICA33

A linguiacutestica popular ou linguiacutestica folk (designaccedilatildeo afrancesada que adotei por dar conta da questatildeo da polissemia de popular e dos mal-entendidos que satildeo curiosamente associados agrave palavra)34 tem se apresentado ultimamente bem descrita e definida especialmente no contexto de trabalhos realizados sobre a questatildeo no exterior e depois na Franccedila jaacute haacute quinze anos35 A existecircncia de um conjunto de praacuteticas linguiacutesticas designaacuteveis como ldquofolkrdquo (ou melhor por todo outro adjetivo estabilizado que compartilhe o mesmo domiacutenio como profanas espontacircneas selvagens ingecircnuas leigas) natildeo deixa praticamente nenhuma duacutevida que um campo de investigaccedilatildeo particularmente fecundo se abriu para os linguistas que se preocupam com quaisquer produccedilotildees imaginaacuterias e representacionais dos falantes

Tais praacuteticas sobre as quais propus uma tipologia inicialmente tripartite em Paveau (2000) depois de Brekle (1989) (a saber 1 Descriccedilotildees 2 Prescriccedilotildees 3 Intervenccedilotildees) e mais modernamente quatripartite as praacuteticas militantes comeccedilam agora a ser bem compreendidas na diversidade dos lugares sociais em que se manifestam e na variedade de suas atividades com ou sobre a liacutengua imprensa escola foacuteruns de internet guias de conversaccedilatildeo conversa cotidiana etc Comeccedilamos assim a saber bem o que os natildeo-linguistas fazem bem como quando e onde Entretanto natildeo sabemos tatildeo bem quem exatamente eles satildeo e o que deseja sua teoria folk Eacute sobre esses dois pontos que me concentro aqui neste capiacutetulo Proporei inicialmente e a tiacutetulo heuriacutestico uma tipologia de natildeo-linguistas que a meu ver deve-se apresentar de maneira discreta ser um natildeo-linguista natildeo eacute um estado permanente mas uma atividade praticaacutevel num momento e num lugar determinados inclusive pelos proacuteprios linguistas haacute uma posiccedilatildeo de natildeo- linguista sempre cambiaacutevel com alguma outra Darei alguns exemplos de atividades cuja inscriccedilatildeo nessa linguiacutestica folk pode ser discutida exemplos que me serviratildeo para questionar as relaccedilotildees que possam existir entre as ldquoidentidadesrdquo dos natildeo-linguistas e a natureza de suas atividades Num segundo momento abordarei dando continuidade agrave reflexatildeo feita alhures em Paveau (2007 2008a) a difiacutecil questatildeo epistemoloacutegica e filosoacutefica da validade da linguiacutestica folk que evidentemente coaduna-se com as dificuldades de se pensar nas folk sciences em geral Retomarei em particular as noccedilotildees de saber e de consciecircncia epilinguiacutesticos que fornecem argumentos

33 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Les non-linguistes font-ils de la linguistique Une approche antieacuteliminativiste des theories folk Pratiques ed 139-140 p 93-110 2008 Uma versatildeo modificada deste texto foi publicada na Policromias ndash Revista de Estudos do Discurso Imagem e Som da UFRJ v 3 n 2 2018 Disponiacutevel em httpsrevistasufrjbrindexphppolicromiasarticleview21267 Traduccedilatildeo de Phellipe Marcel da Silva Esteves (UFF)

34 Ver detalhe em Paveau (2007) e nas observaccedilotildees de J-C Beacco feitas na ediccedilatildeo 139140 da Pratiques Conformo-me assim voluntariamente com um imperativo ideoloacutegico que natildeo ignoro ser definitoacuterio do discurso cientiacutefico mas nem sempre enxergo por que continuamos a atribuir a popular ldquoconotaccedilotildees pejorativasrdquo a natildeo ser para manter no exerciacutecio do discurso cientiacutefico discursos classistas que natildeo me parecem pertinentes a ele Os filoacutesofos anglicistas que traduzem hoje em dia folk psychology como psicologia popular (P Engel tradutor de Dennett (1990 [1987]) por exemplo) haacute geraccedilotildees natildeo fazem essa distinccedilatildeo incompreensiacutevel Popular como vulgar ou familiar e o conjunto do paradigma que designa ldquoo baixordquo satildeo polissecircmicos e eu me surpreendo que justamente os linguistas que satildeo alguns dos uacutenicos que sabem identificar e defender essa polissemia preocupem-se com esses efeitos

35 Ver Achard-Bayle e Paveau (2008b) Achard-Bayle e Lecolle (2009) Antos (1996) Beacco (2004 org) Brekle (1989) Niedzielski e Preston (2003 [1999]) Paveau (2000 2005 2007 2008a 2009) Paveau e Rosier (2008)

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para defender uma posiccedilatildeo integracionista36 ou seja antieliminativa os enunciados folk natildeo satildeo necessariamente crenccedilas falsas a serem eliminadas da ciecircncia Constituem ao contraacuterio saberes perceptivos subjetivos e incompletos a serem integrados aos dados cientiacuteficos da linguiacutestica

Quem satildeo os natildeo-linguistasA questatildeo da identidade ou da identificaccedilatildeo dos natildeo-linguistas eacute sem duacutevida uma das mais

difiacuteceis no domiacutenio da linguiacutestica folk Se a identificaccedilatildeo profissional dos linguistas eacute feita de modo relativamente faacutecil pela existecircncia de cursos diplomas especialidades universitaacuterias que correspondem na Franccedila a seccedilotildees do CNU e do CNRS (no Comitecirc Nacional tratam-se das seccedilotildees 7 9 e 34) e de uma literatura disciplinar relativamente bem circunscrita e balizada por dicionaacuterios a identificaccedilatildeo profissional dos natildeo-linguistas que lidam com atividades linguiacutesticas natildeo se baseia em nenhum criteacuterio mais institucional O escritor eacute um linguista folk E o revisor de textos das miacutedias escritas e das editoras E o jurista que analisa as palavras tatildeo detidamente quanto um lexicoacutelogo profissional Sim ficamos tentados a afirmar absolutamente mas a comparaccedilatildeo com o falante comum o ldquohomem das ruasrdquo que admira a beleza do leacutexico ou se lamenta quanto agrave degradaccedilatildeo da liacutengua (uma pessoa bem tiacutepica na Franccedila um paiacutes cuja liacutengua eacute constantemente objeto de polecircmicas inflamadas)37 relativiza imediatamente esse julgamento os trecircs primeiros parecem de todo modo mais ldquolinguistasrdquo que o uacuteltimo o falante comum que ocupa mais um espaccedilo verdadeiro de ldquolinguista de final de semanardquo uma figura meio ingecircnua e no fundo bem menos culta Entatildeo como identificar essa categoria de falantes que produzem enunciados avaliativos sobre a proacutepria liacutengua e a liacutengua dos outros metalinguiacutesticos e metadiscursivos a partir de posiccedilotildees subjetivas natildeo disciplinares e natildeo acadecircmicas

Posiccedilotildees discursivasComo em muitos domiacutenios do saber das ciecircncias humanas o pensamento cartesiano

binaacuterio (linguistas versus natildeo-linguistas como categorias discretas) nos leva diretamente agraves limitaccedilotildees do idealismo A meu ver eacute preferiacutevel adotar uma visatildeo escalar das coisas Seria melhor entatildeo mesmo se essa posiccedilatildeo se pareccedila iconoclasta para aqueles que creem na pureza e na objetividade da ciecircncia postular um continuum entre aqueles que fazem da linguiacutestica uma ciecircncia una e aqueles que natildeo Haveria dois polos que representariam os extremos teoacutericos de um lado o linguista ldquoestudadordquo ldquocientiacuteficordquo que manejaria os saberes ldquoexatosrdquo e de outro o linguista espontacircneo que produziria anaacutelises do tipo daquela destacada pela vendedora de loja de antiguidades ldquoEle nunca me diz o que me agradardquo

Recentemente Guumlnter Schmale (2008) fez uma primeira proposta analisando a linguiacutestica popular como lugar de cruzamento entre linguiacutestica cientiacutefica linguiacutestica amadora e para fins didaacuteticosde divulgaccedilatildeo Compartilho inteiramente dessa percepccedilatildeo Schmale eacute entatildeo levado

36 Ver Achard-Bayle e Paveau na introduccedilatildeo deste volume da Pratiques bem como Achard-Bayle e Lecolle (2009) Antos (1996) Beacco (2004 org) Brekle (1989) Niedzielski e Preston (2003 [l999]) Paveau (2000 2005 2007 2008a 2008b 2009) Paveau e Rosier (2008)

37 Ver Paveau e Rosier (2008)

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a propor uma breve tipologia dos linguistas espontacircneos no que tange agrave anaacutelise da conversa sobre um eixo cujos dois extremos satildeo uma ldquoausecircncia de conhecimentos sobre a conversardquo e ldquoconhecimentos perfeitos da organizaccedilatildeo conversacionalrdquo encontrar-se-iam gradativamente o falante comum o escritor o linguista ldquoamadorrdquo o linguista natildeo conversacionalista e o ldquoconversacionalistardquo (SCHMALE 2008) Gostaria aqui de fazer uma proposta mais global relacionada natildeo unicamente agrave anaacutelise da conversaccedilatildeo mas agrave liacutengua e agraves produccedilotildees verbais em francecircs em geral que responderia aos seguintes requisitos

[] dar conta o mais naturalmente possiacutevel da atividade ldquonatildeo-linguiacutesticardquo considerando natildeo identidades socialmente fixas (o escritor o jornalista o tipoacutegrafo) mas posiccedilotildees discursivas por definiccedilatildeo transitoacuterias e natildeo plenamente ajustadas agraves identidades sociais profissionais ou culturais Um gerente de bar inicia uma conversa por SMS com seus clientes um ministro de relaccedilotildees estrangeiras produz um texto sobre a degradaccedilatildeo do francecircs ou por que natildeo um linguista profissional produz um discurso natildeo-linguiacutestico sobre a liacutengua de natureza esteacutetica por exemplo (desgostar de alguma palavra por ela ldquosoarrdquo mal por fazer ldquodoerrdquo seus ouvidos) em virtude daquele famoso desencontro entre comportamento e introspecccedilatildeo sobre o qual em partes a sociolinguiacutestica laboviana eacute fundada e que foi quase definitivo para a dicotomia conceitual de seguranccedila versus inseguranccedila linguiacutestica (LABOV 2001 [1975])

questionar a integraccedilatildeo (ou natildeo integraccedilatildeo) das produccedilotildees considerando natildeo apenas o metalinguiacutestico mas tambeacutem o epilinguiacutestico ou seja uma competecircncia inconsciente portanto impliacutecita da liacutengua Relacionam-se aqui todos os tipos de jogos sobre as palavras os trava-liacutenguas os trocadilhos e confusotildees voluntaacuterias jogos de pronuacutencia (o ldquoQuando a mafagafa gafa gafam os sete mafagafinhosrdquo e o ldquotrecircs pratos de trigo para trecircs tigres tristesrdquo)38 brincadeiras sobre os significantes como a de ldquomonsieur et madame ont un filsrdquo39 histoacuterias bobas no substrato linguiacutestico imitaccedilotildees de sotaques e de maneiras de falar etc Chamo de ludolinguistas os falantes que adotam essa posiccedilatildeo ao mesmo tempo refletida e luacutedica sobre a liacutengua A questatildeo eacute de saber se essas produccedilotildees que repousam sobre uma competecircncia epilinguiacutestica extremamente sofisticada vecircm de atividade linguiacutestica Essas produccedilotildees satildeo sem duacutevidas dotadas de uma dimensatildeo didaacutetica expliacutecita Mas algo que pode nos confundir um bocado em nossa reflexatildeo eacute o fato de que elas se situam no limite entre atividades linguiacutesticas e atividades linguageiras entre atividades sobre a linguagem e atividades de linguagem

38 NT Realizamos uma adaptaccedilatildeo dos trava-liacutenguas em portuguecircs

39 NT Nesse ponto a autora acrescenta uma nota de rodapeacute afirmando que ldquoLes cinq filles de monsieur et madame Holl Jenny Lydia Beth Nicole et Esther eacute uma maravilhosa ilustraccedilatildeo da virtuosidade linguageira extrema no limite do domiacutenio teoacuterico dos ourives das palavras que fazem jogos com elasrdquo Essa sentenccedila em francecircs que se inicia com ldquoLes cinq fillesrdquo eacute uma brincadeira conhecida na liacutengua uma anedota Vai-se trocando o sobrenome da famiacutelia e a quantidade de filhos para se chegar a algum resultado que torne a leitura dos nomes dos filhos combinados ao sobrenome da famiacutelia a paroniacutemia de uma outra sentenccedilapalavra No caso da sentenccedila acima ldquoJrsquoai ni le diabegravete ni cholesterolrdquo [Natildeo tenho nem diabetes nem colesterol] se formam a partir de ldquoJenny Lydia Beth Nicole Esther Hollrdquo Para dar mais um exemplo ldquoMonsieur et Madame Oration ont une fille Ameacutelierdquo donde ldquoAmeacutelie Orationrdquo ldquoameacuteliorationrdquo [melhora] Um correlato fraco em liacutengua vernaacutecula mdash jaacute que natildeo se trata de uma famiacutelia de jogos epilinguiacutesticos mdash eacute a seguinte charada ldquoUma menina senta na sua cadeira da escola onde uma pessoa tinha colocado uma taxinha Qual eacute o nome da pessoa Na-taxa [Natasha]rdquo Embora natildeo forme uma famiacutelia esse tipo de charadas de ldquoQual eacute o nome da pessoardquo eacute muito comum no Brasil

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Uma proposta de tipologiaAssim proponho a seguinte tipologia elaborada a partir de trabalhos existentes sobre

a linguiacutestica folk ou as posiccedilotildees normativas as observaccedilotildees realizadas em meus trabalhos anteriores e em particular a partir do corpus reunido na obra La langue franccedilaise passions et poleacutemiques As posiccedilotildees satildeo classificadas por ldquocoeficienterdquo decrescente de detenccedilatildeo de um saber linguiacutestico e acompanhadas de uma categorizaccedilatildeo aproximada do tipo de praacuteticas executadas segundo a trilogia mencionada anteriormente

bull Linguistas profissionais que fornecem descriccedilotildees linguiacutesticas

bull Cientistas natildeo-linguistas (ldquohistoriador-linguistardquo como Eacuteric Mension-Rigau em seu Aristocrates et grands bourgeois Eacuteducation traditions valeurs ldquosocioacutelogo-linguistardquo como Pierre Bourdieu (em seu A distinccedilatildeo criacutetica social do julgamento) que propotildeem descriccedilotildees linguiacutesticas

bull Linguistas amadores (linguistas leigos acadecircmicos como Maurice Druon juristas como Geacuterard Cornu (autor de um manual de linguiacutestica juriacutedica ver Cornu 2005 [1990] e o subcapiacutetulo 131) que fornecem descriccedilotildees e prescriccedilotildees

bull Logoacutefilos glossomaniacuteacos40 e outros ldquoloucos da liacutenguardquo como Jean-Pierre Brisset ou George Orwell que frequentemente empreenderam intervenccedilotildees na liacutengua fosse por invenccedilatildeo fosse por deformaccedilatildeo

bull Preparadores-revisores-redatores (o lendaacuterio copidesque do Monde Jean-Pierre Collignon cujos sucessores produziram um discurso sobre sua atividade ldquolinguiacutesticardquo no blog ldquoLangue saucepiquanterdquo os especialistas de programas televisivos como o ldquoprofessorrdquo Capelovici e seus sucessores no programa Des chiffres et des lettres por exemplo) que sugerem descriccedilotildees e prescriccedilotildees (incluindo correccedilotildees)

bull Escritores ensaiacutestas (Proust Jean Paulhan Pierre Daninos Philippe Jullian Robert Beauvais) do lado da descriccedilatildeo e da prescriccedilatildeo

bull Ludolinguistas (humoristas imitadores autores de histoacuterias bobas autores de jogos sobre as palavras Thierry Le Luron fazendo imitaccedilotildees do poliacutetico Valeacutery Reneacute Marie Georges Giscard drsquoEstaing Sylvie Joly e sua personagem ldquoBourgeoiserdquo Florence Foresti e sua Anne-Sophie de la Coquillette Coluche e seu ldquobeaufrdquo [brutamontes homem grosseiro e machista]) que fazem descriccedilotildees-interpretaccedilotildees linguiacutesticas

bull Falantes engajados militantes ou apaixonados juristas em suas praacuteticas textuais e orais centrados na descriccedilatildeo e na intervenccedilatildeo

bull Falantes comuns (a vendedora da loja de antiguidades na Rue de la Chine os autores desconhecidos das colunas de leitores de jornais e revistas e as mensagens em blogs e foacuteruns os ldquodominantesrdquo citados por Jean-Claude Passeron que misturam sem duacutevida os trecircs tipos de praacuteticas

Tais posiccedilotildees natildeo satildeo evidentemente discretas mas porosas e ateacute mesmo transversais

40 O termo logoacutefilo eacute de Michel Pierssens (1976) e glossomaniacuteaco eacute uma palavra proposta por Umberto Eco (1994)

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podendo um falante passar de uma posiccedilatildeo a outra eacute bem isso que JRR Tolkien faz sendo filoacutelogo e lexicoacutegrafo professor de inglecircs medieval mas que ao mesmo tempo torna-se logoacutefilo ao inventar liacutenguas imaginaacuterias como o famoso eacutelfico e eacute bem assim tambeacutem com Saussure primeiro linguista profissional na teoria do signo glossomaniacuteaco beirando a posiccedilatildeo de ludolinguista em seus Anagramas

A porosidade das posiccedilotildees implica igualmente uma porosidade de saberes os saberes linguiacutesticos satildeo transmitidos para os da linguiacutestica folk e vice-versa A meu ver natildeo haacute com efeito isolamento possiacutevel das categorias nesse domiacutenio os saberes linguiacutesticos ditos ldquoestudadosrdquo ou ldquocientiacuteficosrdquo natildeo satildeo neutralizados da consciecircncia epilinguiacutestica dos falantes

Alguns exemplos juristas escritores logoacutefilos ludolinguistas e militantes

A linguiacutestica juriacutedica

O manual de linguiacutestica juriacutedica (ou ldquojurilinguiacutesticardquo) de Geacuterard Cornu (2005 [1990]) eacute um exemplo interessante de linguiacutestica folk na medida em que o autor se dedica meticulosamente a iniciar uma proposta sobre a ldquociecircncia da linguagemrdquo saussuriana embora mantendo incautamente sem duacutevidas os preacute-discursos profanos que parecem ldquoingecircnuosrdquo demais a um linguista profissional Por exemplo ele define a linguiacutestica juriacutedica como a ldquoaplicaccedilatildeo particular na linguagem do direito da fundamental ciecircncia da linguiacutestica geralrdquo e esclarece um pouco adiante que ldquosua esperanccedila eacute ao menos de ela ser reconhecida como uma linguiacutestica praacutetica do mesmo modo que a linguiacutestica aplicada agrave poesiardquo (CORNU 2005 [1990] p 25) Tal analogia entre direito e poesia eacute sustentada por uma referecircncia a Roman Jakobson cuja metodologia linguiacutestica para o estudo da poesia eacute diretamente aplicada ao direito Eacute daiacute que vem a equivalecircncia final ldquo[o] que eacute vaacutelido para o discurso poeacutetico deveria ser tambeacutem para o discurso juriacutedicordquo (CORNU 2005 [1990] p 25) Poderiacuteamos zombar dessa afirmaccedilatildeo mas essa analogia eacute interessante justamente por constituir uma das modalidades mais disseminadas do pensamento profano Temos aiacute um exemplo de uso de um meacutetodo profano para a elaboraccedilatildeo de um corpo de saber profano Mais agrave frente ele define o vocabulaacuterio juriacutedico como ldquoo reflexo do sistema juriacutedicordquo (Idem p 58) recuperando assim a concepccedilatildeo de liacutengua como reflexo E foi justamente contra essa concepccedilatildeo que a linguiacutestica cientiacutefica se constituiu Eu poderia ainda dar bem mais exemplos dessa linguiacutestica espontacircnea em embate com uma linguiacutestica acadecircmica que G Cornu apresenta para justificar o uso da linguagem em seu campo teoacuterico O essencial me parece ser que essa linguiacutestica folk ldquofuncionardquo como diria D Dennett quer dizer ela organiza com eficaacutecia os usos especializados da linguagem no campo juriacutedico

As ldquooutras liacutenguasrdquo de Antonin Artaud

ldquoEm fevereiro de 1947rdquo escreve Anne Tomiche (2002 p 141)

Antonin Artaud descreve essa lsquooutra liacutenguarsquo que ele nunca cessou de procurar como uma lsquocanccedilatildeo impostada [] entre negrochinecircsindiano e francecircs vulgarrsquo

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Ele enfatiza entatildeo natildeo apenas a dimensatildeo oral dessa liacutengua entre a canccedilatildeo e a impostaccedilatildeo mas tambeacutem a mistura de liacutenguas e mais precisamente uma mistura de liacutenguas associadas agraves transgressotildees sintaacuteticas e agrave inteligibilidade

Artaud fornece com efeito um exemplo de atividade linguiacutestica empreendida por um natildeo-linguista que eacute um escritor evidentemente dotado de um saber linguiacutestico epilinguiacutestico e plurilinguiacutestico (Artaud eacute familiarizado com muitas liacutenguas estrangeiras) largamente superior agrave meacutedia dos falantes Artaud se esforccedila entatildeo para elaborar outra liacutengua cujas caracteriacutesticas satildeo essencialmente a mistura e a transgressatildeo ao sistema Ele natildeo se contenta em criar e inventar formas linguageiras mas tambeacutem analisa-as no acircmbito de um discurso metalinguiacutestico Anne Tomiche daacute um exemplo bem representativo de uma posiccedilatildeo discursiva folk da parte de um escritor

Poderiacuteamos multiplicar os exemplos mas soacute falaremos de um particularmente interessante jaacute que Artaud natildeo se contenta em introduzir em uma frase em francecircs um termo o ldquoteacutetecircmerdquo que solda muitas liacutenguas ldquoNo sono a gente dorme de mim mesmo e de qualquer um soacute haacute o espectroa extraccedilatildeo do teacutetecircme do ser por outros seres (acordados por ora) disso que faz com que a gente seja um corpordquo Natildeo sem ironia ele continua em seguida com uma anaacutelise metalinguiacutestica da composiccedilatildeo do termo explicando que ldquoteacutetecircmerdquo mistura o eacutema grego (sangue) com a tecircte [cabeccedila testa] e com o theacute [chaacute] que reduplicado designa aquilo que repousa e que arde ldquoE o que eacute o teacutetecircme O sangue do corpo espalhado nesse momento e que adormece em seu sono Como o teacutetecircme eacute o sangue Pelo eacutema diante do t que repousa e que designa aquilo que repousa como o teacute veacute dos marselheses41 Porque o teacute [o chaacute] faz um barulho de cinza quando a liacutengua o encosta nos laacutebios em que ele queimaE Eacutema em grego quer dizer sangue E teacutetecircme duas vezes a cinza sobre a chama do coaacutegulo de sangue do inveterado coaacutegulo de sangue que eacute o corpo daquele que dorme e sonha Seria melhor que acordasserdquo(XIV 16)42 (TOMICHE 2002 p 144)

Logoacutefilos glossomaniacuteacos loucos da linguagemProacuteximo do escritor e de sua atividade folk mas distante do campo da literatura e de suas

aberturas ficcionais o apaixonado pela linguagem se entrega a atividades de invenccedilatildeo de liacutenguas imaginaacuterias O logoacutefilo eacute um tiacutepico linguista folk bem dentro do retrato que Marina Yaguello faz dele quando de seu estudo sobre aqueles que chama de ldquoloucos da linguagemrdquo

41 NT A expressatildeo ldquoTeacute veacuterdquo eacute tiacutepica da fala de Marselha significando algo como ldquoRepare soacuterdquo ldquoVejardquo ldquoOlherdquo No original a citaccedilatildeo inteira eacute ldquoOn pourrait multiplier les exemples mais on nrsquoen ajoutera qursquoun seul particuliegraverement inteacuteressant parce qursquoArtaud ne se contente pas drsquointroduire dans une phrase en franccedilais un terme le laquo teacutetecircme raquo qui brasse plusieurs langues laquo Dans le sommeil on dort il nrsquoy a pas de moi et personne que du spectre arrache- ment du teacutetecircme de lrsquoecirctre par drsquoautres ecirctres (agrave ce moment-lagrave eacuteveilleacutes) de ce qui fait que lrsquoon est un corps raquo Non sans ironie il procegravede ensuite agrave une analyse meacutetalinguistique de la composition du terme pour expliquer que le laquoteacutetecircmeraquo mecircle le eacutema grec (sang) agrave la tecircte et au laquotheacuteraquo qui redoubleacute deacutesigne ce qui se repose et qui bruumlle laquo Et qursquoest-ce que le teacutetecircme Le sang du corps agrave ce moment-lagrave allongeacute et qui sommeille car il dort Comment le teacutetecircme est-il le sang Par le eacutema devant qui le t se repose et deacutesigne ce qui se repose comme le teacute veacute des Marseillais Car le teacute fait un bruit de cendre lorsque la langue le deacutepose dans les legravevres ou il va fumer Et Eacutema en grec veut dire sang Et teacutetecircme deux fois la cendre sur la falamme du caillot de sang de caillot inveacuteteacutereacute de sang qursquoest le corps du dormeur qui recircve et ferait mieux de srsquoeacuteveiller

42 Fazemos referecircncia aqui agraves ediccedilotildees das obras completas de Artaud feitas pela Gallimard 1976-1994

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O inventor de liacutengua eacute um amador no duplo sentido do termo apaixonado pelas liacutenguas em geral desconhece absolutamente a ciecircncia da linguagem Mas ele tem antes de tudo uma preocupaccedilatildeo de natureza esteacutetica o desejo de produzir um tudo uma totalidade um conjunto fechado mas exaustivo dotado de uma simetria perfeita cujas engrenagens estatildeo besuntadas de oacuteleo onde nenhuma discordacircncia ou ambiguidade saberia se introduzir donde seriam banidos o equiacutevoco a extravagacircncia o mal-entendido (YAGUELLO 2006 p 45)

Sua posiccedilatildeo social e profissional o coloca em contato com os dados da cultura e ao contraacuterio dos pintores da arte bruta ou da arte ldquode fora da cacircnonerdquo que natildeo satildeo detentores de cultura ele estaacute no interior do universo letrado

Na maior parte das vezes eacute um escolaacutestico um professor ou um meacutedico ou seja justamente um homem de gabinete um homem de cavanhaque e de oacuteculos com armaccedilatildeo circular de metal como revela a galeria de retratos que estampa o livro de Monnerot-Dumaine uma das duas biacuteblias da interlinguiacutestica (YAGUELLO 2006 p 46)

Ele executa gestos profissionais que estatildeo proacuteximos daqueles empreendidos pela linguiacutestica acadecircmica universitaacuteria mesmo que natildeo disponha de seus saberes especializados Ainda assim de acordo com Marina Yaguello o trabalho do logoacutefilo consiste em

a) acumular dados

b) classificaacute-los

c) encontrar um princiacutepio explicativo imitaccedilatildeo dos sons da natureza ou ainda a correspondecircncia entre o sentido das palavras e sua realizaccedilatildeo acuacutestica ou articulatoacuteria

d) organizar os dados sob a forma de uma aacutervore genealoacutegica a liacutengua-matildee que daria agrave luz toda a prole de liacutenguas passadas e presentes da humanidade (YAGUELLO 2006 p 47)

LudolinguistasDefini anteriormente os ludolinguistas como especialistas na manipulaccedilatildeo luacutedica dos

significantes Aprofundo aqui com o exemplo dos imitadores especialmente aqueles de sotaques Todos os humoristas sejam imitadores profissionais ou natildeo dispotildeem em seu repertoacuterio da praacutetica de manipulaccedilatildeo de sotaques que repousa sobre uma teoria sociolinguiacutestica espontacircnea Os sotaques satildeo manifestaccedilotildees focircnicas da variaccedilatildeo regional nacional social eacutetnico-cultural de gecircnero ou de sexualidade etc O sotaque social eacute por exemplo bem representado nas imitaccedilotildees de Valeacuterie Lemercier no filme Os visitantes eles natildeo nasceram ontem de 1993 (o sotaque aristocraacutetico de ldquoBeacuteardquo de Montmirail ao ver seu ancestral ldquoHubrsquordquo chegar da Idade Meacutedia acompanhado de seu fiel serviccedilal Jacquouille la Fripouille) ou nas encenaccedilotildees de Sylvie Joly como ldquogrande burguesardquo em sua peccedila La cigale et la Joly [A cigarra e a Joly como parocircnimo de La cigale et la fourmi A cigarra e a formiga] (2006) ou ainda pelas entonaccedilotildees da atriz Mathilde Casadesus que conta com um forte registro cientiacutefico no documento sonoro mdash uma fita cassete mdash que acompanha a coletacircnea Les accents des franccedilais organizada por Pierre

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Leacuteon e colegas (LEacuteON et al 1983) Encontram-se realizaccedilotildees de sotaques eacutetnico-culturais nas imitaccedilotildees do sotaque ldquoafricanordquo pela dupla Omar e Fred no curto programa Le service apregraves-vente des eacutemissions atualmente transmitido no comeccedilo da noite no Canal+ ou com o tenista-cantor Yannick Noah que elaborou ao longo de suas intervenccedilotildees televisivas um tipo de imitaccedilatildeo antirracista do sotaque camaronecircs ou ainda com as interpretaccedilotildees magrebinas exageradas de Djamel Debbouze ou Mohand Saiacuted Fella (TERBOUCHE 2008)43 e enfim com as ecircnfases judaico-magrebinas dos humoristas Eacutelie Kakou e Gad Elmaleh Os sotaques regionais que entraram na moda no final dos anos 1990 na seacuterie de curtas televisivos Les Deschiens (uma famiacutelia que tem o sotaque rural do departamento francecircs de Sarthe v Pugniegravere 2006) e mais recentemente no filme A Riviera natildeo eacute aqui [Bienvenue chez les chrsquotis] de Dany Boon (2007) haacute muito tempo satildeo alvo de imitaccedilotildees mais ou menos pejorativas principalmente entre escritores como bem mostra a celebriacutessima cena do Dom Juan de Moliegravere dedicada aos camponeses Charlotte e Pierrot (ato II cena I) Os sotaques mais difiacuteceis de serem apreendidos e nomeados (dada a dificuldade de nomeaccedilatildeo eu proporia a terminologia sotaque de gecircnero ou sotaque de identidade sexual quem sabe ateacute de orientaccedilatildeo sexual) e mais estigmatizantes mdash como o sotaque ldquohomordquo (ldquogayrdquo) exemplificado pelas interpretaccedilotildees ldquoloucasrdquo de Michel Serrault na peccedila e no filme A Gaiola das Loucas ou de Gad Elmaleh no filme Xuxu de Merzak Allouache (2003) mdash satildeo testemunhos analogamente dessa extraordinaacuteria competecircncia linguiacutestica dos imitadores que repousa num treinamento fino apesar de natildeo cientiacutefico dos fenocircmenos foneacuteticos destacados

Eacute preciso reconhecer aleacutem de tudo que os linguistas profissionais se dedicam muito pouco aos sotaques em especiais aos sotaques do substrato eacutetnico cultural ldquode sexualidaderdquo ou comunidade haacute poucos trabalhos sobre o sotaque ldquohomossexualrdquo na sua versatildeo ldquoloucardquo ou em qualquer outra com exceccedilatildeo de um artigo de Gilles Siouffi intitulado ldquoLes homos parlent-ils comme les hommes ou comme les femmesrdquo de 1998 A questatildeo eacute abordada no acircmbito da dialetologia social estadunidense entre trabalhos sobre atitudes linguiacutesticas (PRESTON 1992 por exemplo) Os estudos satildeo entretanto escassos Em contrapartida os sotaques satildeo bem detectados por outros linguistas folk os socioacutelogos-linguistas por exemplo que consideram que eles tecircm uma funccedilatildeo de poderosos organizadores sociais Esses socioacutelogos-linguistas satildeo os protagonistas de atividades folk de uma terceira categoria dos linguistas folk as classes dominantes Com efeito Jean-Claude Passeron considera que as classes dominantes executam uma atividade linguiacutestica de intervenccedilatildeo a saber a divisatildeo social por meio dos sotaques

[] ao mesmo tempo que a linguiacutestica espontacircnea das classes dominantes constitui o sotaque dominante como a ausecircncia de sotaque sotaque zero mdash em relaccedilatildeo ao qual os sotaques regionais ou populares satildeo entendidos ou definidos como deformaccedilotildees mais ou menos pitorescas mdash a estiliacutestica espontacircnea dos modos de vida tende a considerar as marcas linguiacutesticas portadas pelas classes dominantes (determinantes concomitantemente da dominaccedilatildeo e das restriccedilotildees relacionadas ao exerciacutecio da

43 ldquoComment vous dire le costume Il eacutetait tellement petit que crsquoest un coustime [kustim]rdquo [Como o senhor diz o costume [traje] Era tatildeo pequeno que era um coustime [kustim cusrsquotam como pronunciado no espetaacuteculo mas morfologicamente um trajezinho]] (extraiacutedo do espetaacuteculo Cocktail Khorotv (literalmente Cocktail de mensonges) citado por Terbouche (2008 p 14)

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dominaccedilatildeo) como natildeo marcas a partir das quais se veem as de formaccedilotildees dos corpos e dos rostos populares (PASSERON 1999)

Os discursivistas folkConcluo essa enumeraccedilatildeo de exemplos com uma manifestaccedilatildeo militante da linguiacutestica folk

ou da anaacutelise do discurso folk nesse caso Trata-se de um ldquoateliecirc de anaacutelise e de criacutetica do discurso poliacuteticordquo intitulado antifrasticamente ldquoLe monde reacuteenchanteacute de Nicolas Sarkozyrdquo proposto em novembro de 2007 em Paris no 19e Distrito pela ldquoCoordination des Intermittents et Preacutecaires drsquoIle-de-Francerdquo A primeira sessatildeo foi apresentada assim

Primeira sessatildeo quarta-feira 31 de outubro de 2007 das 19h agraves 22h na CIPIDF

A ideia inicial eacute relativamente simples trata-se de fazer um trabalho coletivo de anaacutelise e de criacutetica do discurso poliacutetico no acircmbito de um ateliecirc aberto a todos

Em nossa opiniatildeo natildeo pode ser um grupo de reflexatildeo teoacuterica mdash porque aiacute seria necessaacuterio supor o domiacutenio de certas noccedilotildees e de algumas ferramentas o que restringiria de fato a acessibilidade do ateliecirc Noacutes o consideramos muito mais como um ateliecirc praacutetico ateacute mesmo poliacutetico se conseguimos vislumbrar daiacute sua finalidade desenvolver meios eficazes de combater os efeitos sobre noacutes mesmos e terceiros do discurso poliacutetico autorizado Poderiacuteamos dizer nesse sentido que se trata de um ateliecirc de autoformaccedilatildeo de criacutetica ideoloacutegica

Concretamente decidimos trabalhar sobre o discurso de Nicolas Sarkozy As discussotildees foram acaloradas quanto a esse assunto e ningueacutem saiu inteiramente satisfeito com a escolha Concordamos que o poder proveacutem de mais longe e que sua accedilatildeo vai aleacutem do campo ldquopoliacuteticordquo e que de certa maneira essa escolha significa sucumbir ao discurso ideoloacutegico procurando o poder precisamente onde gostariacuteamos de acreditar que ele se exerce exclusivamente Dito isso se o poder estaacute em todo lugar pouco importa onde o percebemos o importante para noacutes eacute concentrar nossa anaacutelise sobre um discurso que seja atual e endereccedilado a todos e cada um mdash cada um tem o direito e eis nossa convicccedilatildeo a capacidade de respondecirc-lo [anuacutencio recebido por e-mail outubro de 2007]

Essa passagem nos mostra que a teoria folk eacute uma teoria praacutetica ou uma teoria da praacutetica O objeto do Ateliecirc eacute o uso do discurso e seus efeitos sobre os indiviacuteduos natildeo a descriccedilatildeo de suas regras e regularidades por exemplo O saber profano eacute na maior parte das vezes um saber praacutetico um saber ldquouacutetilrdquo aos locutores para mudar a sociedade em que vivem

De que valem as teorias folkA linguiacutestica folk propotildee uma das questotildees epistemoloacutegicas mais difiacuteceis sobretudo no

domiacutenio das ciecircncias humanas e sociais qual eacute a validade das teorias (pseudo) cientiacuteficas Existem poucos trabalhos sobre essa questatildeo na Franccedila A linguiacutestica folk eacute majoritariamente traduzida em termos de posiccedilatildeo normativa ou de purismo (PAVEAU ROSIER 2008) Aleacutem disso

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o espectro cartesiano e as imagens positivas mdash talvez ateacute mesmo positivistas mdash da ciecircncia que circulam no paiacutes dificilmente favorecem esse tipo de questionamento Por outro lado a filosofia do espiacuterito e a filosofia das ciecircncias especialmente nos Estados Unidos propotildeem anaacutelises e respostas particularmente esclarecedoras sobre as folk sciences em geral ou sobre a linguiacutestica folk em particular Utilizo essas respostas em meu escrutiacutenio da validade das teorias espontacircneas sobre a liacutengua natildeo pretendendo aplicaacute-las de modo mecacircnico

Avaliaccedilotildees epistecircmicas da linguiacutestica folkQual eacute a validade das teorias folk Trecircs respostas satildeo possiacuteveis

A posiccedilatildeo eliminativaNa filosofia do espiacuterito a posiccedilatildeo dita eliminativa ou do materialismo eliminativo (P

Feyerabend R Rorty W Sellars Paul e Patricia Churchland S Laurence) estaacute fundada sobre a tese segundo a qual a compreensatildeo dos estados mentais pelas teorias do senso comum estaacute errada Isso porque ela natildeo corresponderia a nenhuma base cientiacutefica Com efeito essa compreensatildeo pode se apoiar sobre dados neuroloacutegicos Por exemplo natildeo haacute base neural para certas teorias sobre a intencionalidade ou mesmo a proacutepria consciecircncia noccedilotildees que satildeo as mais difiacuteceis para naturalizar Para o filoacutesofo Paul Churchland por exemplo (2002 [1981]) as teorias folk satildeo totalmente falsas e estatildeo aleacutem disso no processo de serem substituiacutedas (ldquoeliminadasrdquo) por demonstraccedilotildees irrefutaacuteveis concebidas pelas neurociecircncias Essa posiccedilatildeo eacute compartilhada pelo filoacutesofo S Laurence (2003) considerando que as teorias folk em qualquer ciecircncia estatildeo na maior parte do tempo erradas Laurence ainda acrescenta que a linguiacutestica apresenta uma vulnerabilidade muito forte jaacute que se trata de uma teoria jovem a publicaccedilatildeo do CLG data de 1916 pouco mais de 100 anos

Transposta para os resultados da linguiacutestica folk a teoria eliminativa diraacute entatildeo que ela se trata de uma teoria falsa por se basear em dados perceptivos intuitivos dotados de juiacutezos de valor (quem sabe ateacute mesmo imaginaacuterios) mas sem nenhum dado cientificamente verificaacutevel

Uma posiccedilatildeo intermediaacuteria ldquoo realismo suaverdquo de Daniel DennetO filoacutesofo D Dennett (1990 [1987] 2002 [1991]) defende uma posiccedilatildeo intermediaacuteria que ele

mesmo chama de ldquorealismo suaverdquo situado entre os dois extremos do ldquorealismo de forccedila industrialrdquo de J Fodor e do materialismo eliminativo dos Churchland Essa posiccedilatildeo diz respeito agrave psicologia popular (folk psychology) que ele descreve da seguinte maneira

[] as pessoas satildeo ainda menos previsiacuteveis que o tempo se tomadas face agraves teacutecnicas cientiacuteficas dos meteorologistas e mesmo dos bioacutelogos Mas haacute outra perspectiva que nos eacute conhecida desde a infacircncia e que utilizamos sem esforccedilo todos os dias que parece maravilhosamente capaz de fornecer um sentido a todas essas complexidades Chamamo-la comumente de psicologia popular Ela eacute a perspectiva que invoca a famiacutelia dos conceitos ldquomentalistasrdquo como os de crenccedila desejo conhecimento medo atenccedilatildeo

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intenccedilatildeo compreensatildeo sonho imaginaccedilatildeo consciecircncia de si e assim por diante (DENNETT 1990 [1987] p 17-18)

O realismo suave pode ser resumido assim o vocabulaacuterio e os conceitos ldquofolkrdquo satildeo operacionais e ateacute mesmo necessaacuterios para a vida social do homem e as percepccedilotildees espontacircneas satildeo estruturas (patterns) absolutamente fundamentais na vida humana

[] haacute nos assuntos humanos estruturas que se impotildeem por elas mesmas de uma maneira que natildeo eacute de modo algum inexoraacutevel mas que tecircm grande forccedila absorvendo perturbaccedilotildees e variaccedilotildees psiacutequicas que poderiacuteamos muito bem considerar como dadas ao mero acaso satildeo estruturas que caracterizariacuteamos em termos de crenccedilas desejos intenccedilotildees dos agentes racionais (DENNETT 1990 [1987] p 42)

Aleacutem do mais constata D Dennett a psicologia popular funciona (ldquoa estrateacutegia intencional funciona tatildeo bem quanto possiacutevelrdquo p 43) mesmo que esse funcionamento natildeo seja permanente A psicologia popular eacute com efeito uma teoria imperfeita incompleta e consequentemente natildeo generalizaacutevel mas ela eacute uma teoria valiosa em vaacuterios pontos de seu funcionamento Cito essa longa passagem em que D Dennett daacute uma definiccedilatildeo bastante completa da psicologia popular por conter um bom nuacutemero de elementos que podem contribuir para minha reflexatildeo quanto agrave teoria linguiacutestica

[] utilizamos a psicologia popular o tempo todo para explicar ou predizer reciprocamente nossos comportamentos atribuiacutemo-nos reciprocamente crenccedilas e desejos sem nos questionarmos muito espontaneamente e passamos um bom periacuteodo de nossas vidas conscientes formulando o mundo mdash assim como a noacutes mesmos mdash nesses termos A psicologia popular eacute quase tatildeo parte integrante de nossa segunda natureza quanto nossa fiacutesica popular dos objetos de tamanho meacutedio Ateacute que ponto essa psicologia popular eacute pertinente Se nos concentramos nos pontos fracos perceberemos que com frequecircncia somos incapazes de dar sentido a porccedilotildees particulares do comportamento humano (inclusive o nosso) em termos de crenccedilas e de desejos mesmo em retrospectiva com frequecircncia somos incapacitados de predizer o que uma pessoa faraacute ou em que momento ela agiraacute com frequecircncia natildeo conseguimos encontrar recursos teoacutericos para ajustar os desacordos relativos a certas atribuiccedilotildees de desejos e de crenccedilas Se nos concentramos nos pontos positivos descobrimos em primeiro lugar que haacute grandes setores em que essa teoria tem um poder de prediccedilatildeo extremamente confiaacutevel [] Em segundo lugar descobriremos que ela eacute uma teoria que tem um grande poder gerador e uma grande efetividade [] Em terceiro lugar descobriremos que ateacute mesmo as crianccedilas mais jovens adquirem facilmente a teoria em algum momento se natildeo o adquirem teratildeo uma experiecircncia muito limitada da atividade humana a partir da qual podem induzir uma teoria Em quarto lugar descobriremos que todos podemos utilizar a psicologia popular praticamente sem nada sabermos de como funciona o interior dos cabeccedilas das pessoas (DENNETT 1990 [1987] p 67-68)

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Transposta para a linguiacutestica folk essa anaacutelise nos levaria ao seguinte enunciado os dados da linguiacutestica folk satildeo aceitaacuteveis e integraacuteveis agrave teoria linguiacutestica porque fornecem descriccedilotildees perceptivas e organizacionais relevantes da linguagem mas natildeo podem servir de base para uma teoria geral da linguagem

A posiccedilatildeo integracionista os dados folk satildeo dados linguiacutesticosEssa posiccedilatildeo insiste sobre os saberes dos natildeo-linguistas saberes legiacutetimos e reconheciacuteveis

como tais D Preston e N Niedzielski (1999 p 10) o afirmam em sua siacutentese ldquoSe o povo fala sobre a linguagem ele deve claro saber (ou pelo menos acreditar que sabe) sobre issordquo A teoria linguiacutestica eacute entatildeo considerada sob os acircngulos de sua operacionalidade e de sua verdade praacutetica e natildeo mais no acircmbito de uma loacutegica cientiacutefica Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos psicoacutelogos sociais N Llewellyn e A Harrison (2006) em seus estudos sobre as percepccedilotildees das formas linguageiras e discursivas em documentos empresariais Eles mostram que os participantes de uma enquete por eles realizada comprovaram uma competecircncia linguiacutestica verdadeira no reconhecimento dos empregos do pronome nous (noacutesnos) ou na identificaccedilatildeo da transformaccedilatildeo passiva e da nominalizaccedilatildeo Acrescenta-se que essa competecircncia pode significar economia da metalinguagem e ateacute mesmo do aprendizado das expressotildees detectadas

Nessa perspectiva vale a pena enfatizar que categorias linguiacutesticas sonoras formais como as discutidas acima descrevem caracteriacutesticas mundanas do uso cotidiano da liacutengua Eacute perfeitamente possiacutevel que os indiviacuteduos faccedilam uso e identifiquem casos de ldquotransformaccedilatildeo passivardquo por exemplo sem nunca terem ouvido falar do termo (LLEWELYN HARRISON 2006 p 580 traduccedilatildeo nossa)44

Os autores compartilham quanto a isso a posiccedilatildeo de Sylvain Auroux que lembra em seus trabalhos sobre a gramatizaccedilatildeo que os saberes linguiacutesticos natildeo satildeo necessariamente distintos daqueles que fornecem a consciecircncia epilinguiacutestica

[] continuidade entre o epilinguiacutestico e o metalinguiacutestico pode ser comparada com a continuidade entre a percepccedilatildeo e a representaccedilatildeo fiacutesica nas ciecircncias da natureza Enquanto essas uacuteltimas romperam muito cedo com a percepccedilatildeo mdash desde a fiacutesica galileana para se distanciar dela cada vez mais mdash este saber linguiacutestico natildeo rompeu senatildeo esporadicamente com a consciecircncia epilinguiacutestica (AUROUX 1992 p 16)

O ldquorealismo ingecircnuordquo por exemplo (ACHARD-BAYLE 2008 p 34) que consiste em atribuir agraves entidades concretas do mundo fronteiras mais ou menos discretas que fazem com que coincidam com os nomes que as designam pode fazer saltar aos olhos um saber epilinguiacutestico natildeo consciente (ldquopau eacute pau pedra eacute pedrardquo diria sem hesitar minha vendedora de antiguidades)

44 NT As citaccedilotildees em inglecircs feitas no artigo foram traduzidas no texto mas mantidas conforme original em nota de rodapeacute ldquo[hellip] in this regard it is worth making the point that formal sounding linguistic categories such as those discussed above describe mundane features of everyday language use It is perfectly possible for individuals to deploy and identify instances of ldquopassive transformationrdquo for example without having heard of the termrdquo

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mas igualmente uma posiccedilatildeo semacircntico-filosoacutefica cientiacutefica e argumentada A noccedilatildeo de epilinguiacutestico eacute sem duacutevida uma das chaves para se compreender como e por quecirc ao exemplo da psicologia popular a linguiacutestica folk ldquofuncionardquo Com efeito a consciecircncia epilinguiacutestica eacute uma instacircncia que fornece dados linguiacutesticos da ordem da percepccedilatildeo Se numa perspectiva empiacuterica a linguiacutestica faz jus agraves dimensotildees experiencial e cultural da linguagem ou seja se o objeto da linguiacutestica integra os usos da liacutengua pelos sujeitos sociais e cognitivos entatildeo os dados perceptivos da linguiacutestica folk podem ser levados em conta como dados linguiacutesticos pura e simplesmente

As intuiccedilotildees dos locutores satildeo controlaacuteveisSe a linguiacutestica folk como a psicologia folk ldquofuncionardquo eacute por existir uma fonte de percepccedilotildees

de juiacutezos e de avaliaccedilotildees que pode fornecer resultados corretos essa fonte eacute em linguiacutestica a intuiccedilatildeo do dito ldquolocutor idealrdquo se tomamos a terminologia chomskiana ou a consciecircncia epilinguiacutestica se escolhemos a designaccedilatildeo do linguista francecircs Antoine Culioli45 Mas todos os locutores possuem a mesma intuiccedilatildeo Haacute diferenccedila entre a intuiccedilatildeo do locutor natildeo-linguista e a do linguista Natildeo responde o filoacutesofo M Devitt que considera que as intuiccedilotildees dos linguistas satildeo melhores que as dos linguistas folk porque as intuiccedilotildees natildeo satildeo contrariamente a uma ideia em circulaccedilatildeo inatas mas carregadas de teoria M Devitt (2006 p 483) propotildee de fato uma criacutetica bem robusta agrave intuiccedilatildeo chomskiana e propotildee uma teoria alternativa ldquoEssa teoria trata as intuiccedilotildees linguiacutesticas como opiniotildees resultantes de investigaccedilatildeo empiacuterica ordinaacuteria carregadas de teoria como todas as opiniotildees satildeordquo Ele conclui com a impossibilidade de considerar essa intuiccedilatildeo que seria bem pouco carregada cientificamente de teoria como fundaccedilatildeo da linguiacutestica

Vejo linguistas tendendo para duas perspectivas em seu tratamento dos juiacutezos intuitivos dos falantes Por um lado a visatildeo aceita eacute que os falantes representam a verdadeira teoria linguiacutestica de sua liacutengua e derivam seus juiacutezos intuitivos dessas representaccedilotildees Entatildeo esses juiacutezos intuitivos fazendo uso de termos retirados dessa teoria deveriam ser os dados primaacuterios para a teoria do linguista De outro lado haacute o pensamento atraente de que todos os juiacutezos que fazem uso desses termos satildeo dotados de uma teoria linguiacutestica empiacuterica Onde os juiacutezos satildeo do falante comum essa teoria seraacute a linguiacutestica folk Natildeo eacute regra usarmos como dados primaacuterios numa teoria juiacutezos populares carregados de teoria A linguiacutestica natildeo devia fazecirc-lo tambeacutem (DEVITT 2006 p 485 traduccedilatildeo nossa)46

45 Em vaacuterios aspectos essas duas noccedilotildees (a de intuiccedilatildeo do locutor e a de consciecircncia epilinguiacutestica uma de origem estadunidense e outra de origem francesa) se recobrem Ambas designam na verdade uma competecircncia natildeo objetivada natildeo formulada e natildeo formalizada dos locutores em relaccedilatildeo agraves suas produccedilotildees linguageiras O meacutetodo de introspecccedilatildeo faz essa faculdade evoluir para a metalinguagem seja espontacircnea seja formal

46 No original ldquoI see linguists as pulled two ways in their treatment of the intuitive judgments of speakers On the one hand the received view is that speakers represent the true linguistic theory of their language and derive their intuitive judgments from those representations So those intuitive judgments deploying terms drawn from that theory should be the primary data for the linguistrsquos theory On the other hand there is the attractive thought that all judgments deploying those terms are laden with an empirical linguistic theory Where the judgments are those of the ordinary speaker that theory will be folk linguistics We do not generally take theory-laden folk judgments as primary data for a theory So we should not do so in linguisticsrdquo

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Tal desconfianccedila quanto agrave noccedilatildeo de intuiccedilatildeo do locutor ideal e agrave ldquocontemplaccedilatildeo de seus proacuteprios idioletosrdquo pelos linguistas jaacute era denunciada por William Labov no final dos anos 1960 (1976 [1972] p 37) As intuiccedilotildees dos linguistas com efeito estatildeo longe de serem melhores do que as populares

O que aconteceria se um dado tipo de juiacutezo de linguistas sobre a gramaticalidade fosse submetido a uma populaccedilatildeo de origem diversa O estudo mais sistemaacutetico desse tipo foi levado a cabo por Spencer (1973) Ela testou 150 frases retiradas dos estudos sintaacuteticos de Perlmutter Carlotta Smith Postal Ross Rosenbaum e R Lakoff com 60 avaliadores 20 estudantes diplomados em linguiacutestica 20 outros estudantes diplomados e 20 pessoas da cidade do coleacutegio secundaacuterio []

Tendo em vista todos esses resultados ficou claro que nenhum linguista eacute melhor ou pior que os outros nessa questatildeo []

Atualmente nenhum resultado permite alimentar a esperanccedila de que os juiacutezos introspectivos dos linguistas sejam confiaacuteveis reproduziacuteveis ou generalizaacuteveis em sua aplicaccedilatildeo na linguagem da comunidade Eacute necessaacuterio entatildeo perguntarmos quais satildeo as consequecircncias desses fatos para as teorias linguiacutesticas fundadas sobre tais juiacutezos (LABOV 2001 [1975] p 32-33)

As intuiccedilotildees dos linguistas natildeo satildeo creditaacuteveis natildeo porque elas satildeo cultivadas e preteorizadas mdash posiccedilatildeo defendida por Devitt mdash mas por razotildees epistemoloacutegicas Segundo Labov (2001 [1975] p 41) a linguiacutestica natildeo deve repousar em intuiccedilotildees e evidecircncias incontroladas

[] jaacute que cada estudo conduzido ateacute hoje em dia sobre os juiacutezos intuitivos indica que encontra-se neles uma parte natildeo descartaacutevel de efeito do experimentador as intuiccedilotildees incontroladas dos linguistas devem ser consideradas com seacuterias duacutevidas Se essas intuiccedilotildees devem supostamente representar somente o idioleto do linguista entatildeo o valor de suas anaacutelises repousa sobre fundaccedilotildees muito incertas Deve-se submetecirc-los a outros estudos experimentais para que se possa testar a coerecircncia de seus juiacutezos []

Entatildeo devemos descartar os dados da intuiccedilatildeo Natildeo evidentemente mas a linguiacutestica deve integrar sua relatividade isso que Labov chama de ldquoefeito do experimentadorrdquo e aplicar certos princiacutepios

[] a soluccedilatildeo para o problema estabelecido anteriormente parece suficientemente clara Devemos (1) reconhecer o efeito do experimentador e (2) voltar agrave noccedilatildeo original de trabalho sobre os casos evidentes Poderiacuteamos entatildeo fazer nosso trabalho repousar sobre trecircs princiacutepios operacionais que oferecem uma base suficientemente soacutelida para a exploraccedilatildeo contiacutenua dos juiacutezos gramaticais I O princiacutepio do consenso se natildeo haacute motivo para pensar o contraacuterio supotildee-se que os juiacutezos de um locutor nativo sejam caracteriacutesticos ao conjunto dos locutores da liacutengua II O princiacutepio do experimentador se haacute qualquer um

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em discordacircncia quanto aos juiacutezos introspectivos os juiacutezos daqueles que satildeo familiares aos problemas teoacutericos natildeo deveriam se manter como provas III O princiacutepio dos casos evidentes os juiacutezos contestados deveriam ser reforccedilados pela presenccedila de pelo menos um padratildeo coerente na comunidade de locutores ou ser abandonados [] Eacute necessaacuterio ainda nomear um quarto princiacutepio o Princiacutepio da validade

IV Princiacutepio da validade quando o uso da linguagem se mostra mais coerente que os juiacutezos introspectivos uma descriccedilatildeo vaacutelida da linguagem privilegiaraacute o uso agrave introspecccedilatildeo (LABOV 2001 [1975] p 45 e 52)

Esses quatro princiacutepios mdash consenso experimentador casos evidentes e validade mdash levam a consequecircncias sobre as praacuteticas linguiacutesticas (reduzir a relatividade e a natildeo credibilidade dos dados extraiacutedos da intuiccedilatildeo qualquer que seja o tipo de locutor) mas igualmente sobre a proacutepria epistemologia da linguiacutestica a meu ver eles reforccedilam a ideia de um continuum entre as competecircncias dos linguistas e dos natildeo-linguistas porque racionalizam os dados intuitivos

Quando os natildeo-linguistas fabricam os objetos dos linguistas o caso das atitudes linguiacutesticasOs saberes linguiacutesticos folk constituem teorias sociais da linguagem apoiando-se mais

geralmente sobre as praacuteticas linguageiras pelo vieacutes de descriccedilotildees prescriccedilotildees e intervenccedilotildees as teorias folk fornecem os organizadores sociais que se constituem em corpo do saber social Assim a sociolinguiacutestica como linguiacutestica social as toma como objetos ou mais exatamente como metaobjetos (ou seja objetos que falam de objetos) chamando-as de atitudes ou representaccedilotildees

As praacuteticas linguageiras satildeo com efeito utilizadas pelos locutores profanos como um instrumento de descriccedilatildeo psicoloacutegica e social Em sua introduccedilatildeo a um nuacutemero do Journal of Language and Social psychology dedicado agraves atitudes linguiacutesticas D Preston e L Milroy mostram que os locutores fazem uma correspondecircncia entre aspectos psicoloacutegicos e aspectos linguageiros

Notadamente muitos estudos mostraram uma tendecircncia para avaliadores discriminarem entre de um lado dimensotildees de status como inteligecircncia ambiccedilatildeo e confianccedila e de outro lado dimensotildees relacionadas agrave solidariedade como atraccedilatildeo social amistosidade e generosidade Falantes-padratildeo tenderam a ser mais bem-avaliados no primeiro conjunto de aspectos e mal-avaliados no uacuteltimo e o contraacuterio foi vaacutelido para o juiacutezo de falantes natildeo padratildeo (p ex RYAN GILES SEBASTIAN 1982 p 9) (PRESTON MILROY 1999 p 4-5 traduccedilatildeo nossa)47

47 No original ldquo[hellip] notably several studies showed a tendency for judges to discriminate between on one hand status dimensions such as intelligence ambition and confidence and on the other solidarity-related dimensions such as social attractiveness friendliness and generosity Standard speakers have tended to be rated higher on the former set of traits and downgraded on the latter the converse being true of judgments of non standard speakers (eg Ryan Giles amp Sebastian 1982 p 9)rdquo

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R Van Bezooijen e C Gooskens constatam o mesmo em seu estudo sobre a percepccedilatildeo da variedade em locutores holandeses

Intraculturalmente (em ouvintes holandeses) bem como interculturalmente (em falantes britacircnicos quenianos mexicanos e japoneses) uma maneira de falar mais ldquoanimadardquo eacute fortemente associada com domiacutenio vontade poder e autoconfianccedila Como esperado a pronuacutencia que permite identificaccedilatildeo dialetal soacute desempenha um papel intraculturalmente (VAN BEZOOIJEN GOOSKENS 1999 p 31-32 traduccedilatildeo nossa)48

Conhecemos os resultados do ldquomeacutetodo Lambertrdquo (LAMBERT et al 1960) ndash com o desconhecimento dos sujeitos locutores biliacutengues registram versotildees de um mesmo texto em duas ou vaacuterias liacutenguas ou variedades linguiacutesticas de modo a suprimir o vieacutes da voz Espera-se que os sujeitos em seguida avaliem o locutor com a ajuda de uma escala constituiacuteda de adjetivos autoniacutemicos (o locutor eacute simpaacutetico x antipaacutetico confiaacutevel x suspeito doacutecil x violento etc) Esse meacutetodo permite que surjam resultados bem confiaacuteveis por exemplo um dos estudos realizados segundo esse protocolo mostra que os homens angloacutefonos percebem as mulheres mais favoravelmente se elas falam francecircs a essas os homens angloacutefonos produzem uma boa imagem jaacute que elas tecircm a visatildeo desses falantes de inglecircs melhor do que a dos falantes de outras liacutenguas

As percepccedilotildees natildeo cientiacuteficas carregadas de representaccedilotildees e de produccedilotildees imaginaacuterias constituem assim verdadeiras teorias espontacircneas da classificaccedilatildeo soacutecio-psicoloacutegica

Consideraccedilotildees finais os natildeo-linguistas como linguistas preciososQuis mostrar neste capiacutetulo que as informaccedilotildees geradas em praacuteticas disciplinares folk

satildeo plenamente integraacuteveis agrave anaacutelise linguiacutestica A linguiacutestica folk possui com efeito uma validade de ordem praacutetica e representacional e deve por isso ser considerada pela linguiacutestica cientiacutefica como uma reserva de dados que nenhum linguista profissional consegue reunir com o auxiacutelio dos meacutetodos ditos ldquocientiacuteficosrdquo

A enorme variedade das posiccedilotildees discursivas folk das praacuteticas correspondentes e dos dados assim recolhidos assim como a fragilidade cientiacutefica de um bom nuacutemero de observaccedilotildees cientiacuteficas (geradas de posiccedilotildees subjetivas frequentemente idioletais) deve sem duacutevidas provocar que o objeto da linguiacutestica seja repensado Eacute quase irracional mdash se pensamos junto com Pierre Bourdieu e tambeacutem com Sylvain Auroux ldquoa historicizaccedilatildeo do sujeito da historicizaccedilatildeordquo (BOURDIEU 2001) eacute uma necessidade epistemoloacutegica mdash que se continue a definir o objeto da linguiacutestica como Saussure o fez em 1916 Tal objeto foi profundamente afetado pelos saberes epilinguiacutesticos metalinguiacutesticos e metadiscursivos de que foi alvo e os saberes folk fazem parte dele Parece-me necessaacuterio entatildeo propor uma descriccedilatildeo renovada convincente e sobretudo cientificamente eficaz do objeto da linguiacutestica adotando uma posiccedilatildeo

48 No original ldquo[hellip] intraculturally (by Dutchlisteners) as well as cross-culturally (by British Kenyan Mexican and Japanese listeners) a laquo lively raquo manner of speaking is strongly asso- ciated with dominance will power and self-confidence As expected pronun- ciation allowing dialect identification only played a role intraculturallyrdquo

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antieliminativa que integre a escala dos saberes linguiacutesticos (do saber cientiacutefico mais ldquodurordquo ao saber folk mais ldquosuaverdquo)

Escolher o integracionismo significa ficar com o e em vez do ou o linguista e a vendedora o escritor e o especialista de programa de TV o glossomaniacuteaco e o militante poliacutetico O que natildeo significa de maneira alguma integrar-se ao anticientificismo ou ao negacionismo

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AS NORMAS PERCEPTIVAS DA LINGUIacuteSTICA POPULAR49

A questatildeo abordada neste capiacutetulo eacute a das normas perceptivas mobilizadas por falantes comuns em suas praacuteticas linguiacutesticas Falo precisamente de praacuteticas linguiacutesticas e natildeo de praacuteticas linguageiras o que designo um campo bem identificado nos Estados Unidos a linguiacutestica folk e em menor medida na Alemanha (Volklinguistik) menos ainda no domiacutenio francoacutefono no qual muitos designadores com referentes um tanto vagos coexistem para designar esse conjunto de discursos natildeo especializados sobre as formas e padrotildees da linguagem e do discurso linguiacutestica popular espontacircnea profana selvagem natildeo erudita

Minha interrogaccedilatildeo natildeo diz respeito agrave dimensatildeo prescritiva versus descritiva das normas assim produzidas mas concerne ao valor das percepccedilotildees na elaboraccedilatildeo de um discurso linguiacutestico popular e portanto agrave validade das teorias populares em relaccedilatildeo agraves teorias acadecircmicas Isso supotildee como veremos sair desse uacuteltimo binarismo (popular vs cientiacutefico) para pensar o coeficiente de cientificidade de um discurso de modo escalar que Madame Vauquer se equivoca ao corrigir Sylvie eacute uma evidecircncia cuja lembranccedila limitaria a reflexatildeo a uma perspectiva bastante pobre e me parece preferiacutevel pensar nas coisas em termos funcionais (funccedilatildeo desta observaccedilatildeo no acircmbito do discurso linguiacutestico espontacircneo) perceptivos (por que perceber patronminette como correto em relaccedilatildeo a patron-jacquette50) e sociais (que benefiacutecio social podemos derivar dessa atitude corretiva) Esses satildeo os acircngulos que nos permitem examinar os modos de validade das teorias populares sobre a liacutengua pois integram as dimensotildees linguiacutestica perceptiva e social ao dispositivo de observaccedilatildeo Portanto afastamo-nos da perspectiva externa impliacutecita na oposiccedilatildeo descriccedilatildeo vs prescriccedilatildeo para adotar uma perspectiva interna na qual o sujeito do discurso eacute tambeacutem o sujeito da ciecircncia

Apoacutes ter descrito a situaccedilatildeo da linguiacutestica popular nos Estados Unidos no campo mais amplo das ciecircncias folk e feito algumas observaccedilotildees sobre a ldquolinguiacutestica popularrdquo na Franccedila vou propor dois exemplos a semacircntica espontacircnea do nome proacuteprio e a sociolinguiacutestica popular das classes dominantes Eles serviratildeo como um mini-laboratoacuterio para delinear uma resposta provisoacuteria agrave questatildeo da validade teoacuterica da linguiacutestica popular

1 O domiacutenio ldquofolkrdquo uma questatildeo americanaAs disciplinas com a etiqueta folk satildeo cientiacutefica e institucionalmente reconhecidas nos

Estados Unidos e designam um verdadeiro paradigma cientiacutefico ao contraacuterio da Franccedila onde equivalentes instaacuteveis de folk sinalizam frequentemente abordagens desvalorizadas

49 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Les normes perceptives de la linguistique populaire Langage et socieacuteteacute 121 laquoLes normes pratiquesraquo mars Paris Eacuteditions de la MSH 2007 p 93-109 Traduccedilatildeo de Eacuterika de Moraes (UNESP - Universidade Estadual Paulista Faculdade de Arquitetura Artes e Comunicaccedilatildeo campus de Bauru e PPGEL IBILCE-UNESP S J do Rio Preto)

50 NT Referecircncia respectivamente agrave forma formal e agrave coloquialpopular de uma mesma expressatildeo francesa cujo significado remete a ldquomuito cedo pela manhatildemadrugadardquo (ldquoao cantar do galordquo)

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11 Disciplinas Folk Na deacutecada de 1950 um grupo de jovens etnoacutelogos de Yale propocircs o termo etnociecircncia para

designar uma nova etnologia que se baseia no estudo metoacutedico do conhecimento popular ou da ciecircncia popular Esse uacuteltimo termo surge portanto no contexto da criaccedilatildeo de um novo objeto constituiacutedo pelas classificaccedilotildees naturais e espontacircneas dos atores (BARRAU 1993) O elemento folk estaraacute como eacute importante relembrar no mesmo periacuteodo que assistiu ao nascimento das ciecircncias cognitivas associado a outras disciplinas em particular no acircmbito da filosofia interrogando sobre crenccedilas a filosofia da mente contribui de fato para desenhar o que pode parecer a principal disciplina folk a psicologia folk A partir da deacutecada de 1960 discutem-se duas grandes concepccedilotildees da mente uma correspondendo agrave ldquoimagem manifestardquo do mundo e outra agrave ldquoimagem cientiacuteficardquo (SELLARS 1993 [1963]) Apesar de suas diferenccedilas filoacutesofos como D Dennett J Searle D Davidson ou mesmo J Fodor consideram que a psicologia popular com base em nossas crenccedilas desejos e no conjunto de nossos estados mentais eacute necessaacuteria agrave teoria da mente A anaacutelise de P Churchland eacute particularmente interessante para o meu propoacutesito aqui ele considera que a psicologia popular eacute de fato uma teoria mas que eacute falsa Voltarei a essa posiccedilatildeo chamada eliminativista a propoacutesito da validade da linguiacutestica popular

Haacute portanto um domiacutenio de debate muito importante muito abastecido e atualmente muito feacutertil em pesquisas e avanccedilos cientiacuteficos51

12 Folk linguiacutestica atitudes e avaliaccedilotildeesOs primeiros a falarem de linguiacutestica folk ainda satildeo os filoacutesofos a propoacutesito do estatuto

da linguiacutestica em relaccedilatildeo agrave psicologia no quadro do debate sobre o chomskysmo Para M Devitt e K Sterelny por exemplo a linguiacutestica popular eacute uma ldquoteoria ou opiniatildeo popular ou ainda primitiva a sabedoria linguiacutestica de todos os temposrdquo (DEVITT STERELNY 1989 p 503)

De fato o campo da linguiacutestica folk foi explicitamente aberto sob essa etiqueta na deacutecada de 1960 por HM Hœnigswald (1966) que reivindica a consideraccedilatildeo dos saberes espontacircneos na constituiccedilatildeo de qualquer ciecircncia natildeo tendo seus propoacutesitos ouvidos agrave eacutepoca Podemos dizer no entanto que o campo eacute explorado implicitamente por W Labov a partir de seu trabalho de 1966 The Social Stratification of English in New York City e entatildeo mais ou menos desenvolvido no trabalho que ele iraacute suscitar nos campos da dialetologia social Mas como explica I Kauhanen desde W Labov todo o interesse dos sociolinguistas se concentrou nas comunidades de fala e natildeo nas normas estas uacuteltimas tendo sido sobretudo estudadas com o vieacutes da legitimidade escrita sem que o vernaacuteculo possa evitar ser definido a partir do padratildeo (KAUHANEN 2006) Seraacute preciso esperar o trabalho de N Niedzielski e D Preston publicado em 2000 Folk linguistics para que o vernaacuteculo fosse apreendido por meio das percepccedilotildees avaliaccedilotildees e atitudes dos locutores segundo uma abordagem etnograacutefica possibilitando

51 Agrave psicologia popular foram acrescentadas mais recentemente a biologia popular (sobre as classificaccedilotildees espontacircneas) a fiacutesica popular (sobre as explicaccedilotildees espontacircneas dos fenocircmenos fiacutesicos) e a mais recente de que temos conhecimento a neuropsicologia popular definida como o conjunto de anaacutelises populares do funcionamento da mente inspiradas pelos avanccedilos das neurociecircncias

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neutralizar os vieses do padratildeo devido a preconceitos de pesquisadores e pesquisados A linguiacutestica folk assim desenhada proveacutem de trabalhos anteriores de autores e outros linguistas no cruzamento da sociolinguiacutestica e da psicologia social que incorporam a maneira pela qual crenccedilas e expectativas socialmente construiacutedas informam a percepccedilatildeo que os locutores tecircm dos usos da liacutengua

O conteuacutedo da obra de Niedzielski e Preston fornece uma siacutentese bem completa da linguiacutestica folk americana atual Os autores especificam o uso de folk ldquoUsamos folk para nos referirmos agravequeles que natildeo satildeo profissionais formados na aacuterea em investigaccedilatildeo [] Definitivamente natildeo usamos folk para referir a grupos ou indiviacuteduos ruacutesticos ignorantes incultos atrasados primitivos minoritaacuterios isolados marginalizados ou de estatutos supostamente inferioresrdquo (NIEDZIELSKI PRESTON 2000 p viii) Eles utilizaratildeo entatildeo o termo natildeo-linguistas ao longo da obra para designar aqueles que possuem conhecimento popular da liacutengua Uma de suas teses principais eacute que o estudo do conhecimento popular eacute uma tarefa para a linguiacutestica seja de uma perspectiva puramente linguiacutestica ou mais amplamente social e eacute realmente essa tarefa que eles enfrentam em seu trabalho que traz elementos de anaacutelise e reflexatildeo para diversos campos da pesquisa linguiacutestica americana etnografia da linguagem psicologia social da linguagem linguiacutestica geral e descritiva variacionismo e linguiacutestica aplicada Eacute compreensiacutevel portanto que ao menos no campo americano a linguiacutestica folk constitua tanto um campo de investigaccedilatildeo quanto um desafio importante para as ciecircncias da linguagem

No domiacutenio germacircnico onde o Volklinguistik tambeacutem derivado da linguiacutestica folk americana (BREKLE 1989) constitui um campo de investigaccedilatildeo relativamente desenvolvido os trabalhos centram-se na dialectologia em particular na imagem da ldquolinguagem improacutepriardquo associada a variantes regionais52

2 Linguiacutestica popular abordagens francesas

21 Popular ou comum

No domiacutenio francecircs os trabalhos que se autoproclamam ldquolinguiacutesticas popularesrdquo satildeo quase inexistentes como especifica J-C Beacco que aliaacutes evita deliberadamente esta expressatildeo no tiacutetulo do nuacutemero de Langages que dirige sobre o tema optando por representaccedilotildees metalinguiacutesticas comuns expressatildeo que desloca um pouco a abordagem perceptiva americana (BEACCO 2004) Popular estaacute sobretudo estabilizado na Franccedila na etimologia popular sem duacutevida porque a expressatildeo nomeia mais um tipo de conhecimento do que uma percepccedilatildeo ou uma atitude e que corresponde a fenocircmenos linguiacutesticos descritiacuteveis (metanaacutelise lexicalizaccedilatildeo nivelamento analoacutegico) Mas a ldquolinguiacutestica popularrdquo e as abordagens que dela podem ser tiradas natildeo percorrem os corredores do conhecimento na Franccedila aleacutem do artigo de H Brekle em Histoacuteria das ideias linguiacutesticas dirigido por S Auroux e o trabalho recente de J-C Beacco encontramos uma variante da noccedilatildeo em P Bourdieu (2001 p 137) que jaacute em 1983 clama

52 Ver por exemplo Langer (2001) e os trabalhos de W Davies e o projeto ldquoA histoacuteria e o estado atual da lsquolinguagem improacutepriarsquo como um conceito na linguiacutestica popular alematilderdquo disponiacutevel em eisbrisacukgexnl researchahrbhtml

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por uma ldquociecircncia rigorosa da sociolinguiacutestica espontacircneardquo O campo estaacute presente na obra de L Rosier na necessidade de levar em conta o discurso purista (uma forma de linguiacutestica popular) nos trabalhos sobre os padrotildees da liacutengua e a circulaccedilatildeo dos discursos (2003 2004) bem como no estudo da linguiacutestica espontacircnea de juristas no tratamento da penalizaccedilatildeo da fala (2006) De minha parte proponho integrar a linguiacutestica popular no ensino da liacutengua (2005) como na renovaccedilatildeo das teorias do discurso uma ldquoanaacutelise folk do discursordquo me parece particularmente desejaacutevel em uma concepccedilatildeo de discurso levando em conta dados cognitivos e perceptivos (2006)

Isso natildeo quer dizer evidentemente que a questatildeo do conhecimento linguiacutestico espontacircneo seja ignorada na Franccedila mas eacute tratada de acordo com outras orientaccedilotildees Vimos que o discurso espontacircneo sobre a liacutengua agraves vezes eacute abordado sob a etiqueta comum sem que esse exame leve agrave constituiccedilatildeo de um campo cientiacutefico constituiacutedo (ldquolinguiacutestica ordinaacuteriardquo) Sendo o termo ordinaacuterio amplamente mobilizado por sintagmas como francecircs ordinaacuterio trocas comuns ou discursos ordinaacuterios a problemaacutetica do ordinaacuterio se confunde frequentemente com a da vida cotidiana no sentido etnometodoloacutegico Ao considerar uma breve visatildeo geral dos domiacutenios franceses podemos sugerir com a reduccedilatildeo e a simplicidade de qualquer panorama que existem dois campos que levam em consideraccedilatildeo as questotildees relativas agrave linguiacutestica popular (dada a amplitude desses campos as referecircncias satildeo apenas indicativas)

- o domiacutenio do ldquometardquo quer se trate da linguiacutestica do sistema (J Rey-Debove que distingue entre ldquometalinguagem correnterdquo e ldquocientiacuteficardquo) da teoria da enunciaccedilatildeo e da reformulaccedilatildeo (J Authier e os elementos metaenunciativos C Julia e a ldquosemacircntica espontacircneardquo) ou didaacutetica da liacutengua (J-C Beacco R Bouchard J David A Treacutevise)

- o conjunto de trabalhos que em sociolinguiacutestica (J-C Beacco define a linguiacutestica popular como um ramo da sociolinguiacutestica) ocupa-se das normas e representaccedilotildees (A Berrendonner H Boyer F Gadet que falam de ldquolocutores nativosrdquo N Gueunier A-M Houdebine J-M Klinkenberg D Lafontaine) agraves vezes sob a etiqueta de ldquoatitudes linguiacutesticasrdquo no quadro da psicologia social da linguagem

Todos esses trabalhos tecircm em comum o fato de se apoiarem nos conhecimentos linguiacutesticos espontacircneos dos locutores cuja existecircncia reconhecem plenamente Mas deixam em aberto a questatildeo dos lugares desse saber o que esconde um paradoxo se a linguiacutestica popular natildeo existe como campo cientiacutefico na Franccedila mas ela produz um conhecimento presente e disponiacutevel aos pesquisadores entatildeo onde ela se situa

22 Os recursos do ldquoespiacuterito francecircsrdquo a linguiacutestica social

Eacute em grande parte e eacute sem duacutevida uma especificidade francesa que explica sua ausecircncia no campo cientiacutefico em um conjunto tatildeo vasto quanto antigo de discursos sobre a liacutengua provenientes de ensaiacutestas sociais (P Daninos P Jullian) humoristas (A Allais P Dac) escritores (Proust Balzac Queneau) jornalistas (P Merle P Vandel) colunistas (J Cellard P Georges) observadores modernos (J Capelovici A Schifres) e autores de manuais de etiqueta e guias de correspondecircncia (Baronne Staffe Liselotte B Bernage N de Rothschild O Cechman)

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um conjunto completo de escritores que mantiveram por vaacuterios seacuteculos uma tradiccedilatildeo que eu clamo por falta de um melhor ldquoespiacuterito francecircsrdquo constituindo um grande corpus de linguiacutestica folk

Vou me concentrar aqui em um deles que me parece ter produzido a sociolinguiacutestica espontacircnea mais completa e refinada P Daninos (1913-2005) Ele eacute um jornalista e escritor universalmente conhecido pelos Cadernos do Major Thompson (1954) dos quais sem duacutevida havia um exemplar em todos os lares franceses dos anos 1950 e 1960 Conservador sem ser reacionaacuterio amante da liacutengua sem ser purista observador e promotor dos costumes burgueses sem se afastar inteiramente da distacircncia irocircnica e de certo senso do traacutegico P Daninos eacute um bom representante dessa literatura do espiacuterito francecircs um pouco elitista um pouco sexista um pouco ufanista mas bastante divertida muito difundida e lida na sociedade francesa do poacutes-guerra e dos gloriosos Anos Trinta Nas cerca de quarenta obras que produziu algumas atribuem particular importacircncia aos fatos linguiacutesticos aleacutem dos Cadernos mencionarei Sonia les autres et moi (os outros e eu) (1952) Vacances agrave tous prix (Feacuterias a todo preccedilo) (1958) Le jacassin novo tratado de ideias recebidas loucuras burguesas e automatismos (1962) Esnobiacutessimo ou O desejo de parecer (1964) O pijama (1972) e Made in France (1977) Cada uma dessas obras constitui por um lado uma espeacutecie de banco de dados linguageiros com uma dimensatildeo social que se assemelha muito a uma declaraccedilatildeo de um linguista profissional e por outro lado uma teoria espontacircnea fundada na percepccedilatildeo dos ldquomodos de falarrdquo do francecircs relacionados ao seu ambiente social Para ilustrar aqui estatildeo alguns tiacutetulos dos capiacutetulos

- O Francecircs como se fala (Cadernos)

- Pequeno leacutexico e receitas de feacuterias (Vacanceshellip)

- Vocabulaacuterio poliacutetico (Le jacassin)

- Esnobismo na linguagem cotidiana e de diversas profissotildees (Snobissimo)

- Maacutertires da ortografia burguesa (Made in France)

E para finalizar este trecho de Sonia les autres et moi (os outros e eu) no final do capiacutetulo intitulado ldquoElesrdquo que oferece uma interessante anaacutelise em linguiacutestica folk do emprego decircitico do pronome como instacircncia coletiva

Quem satildeo eles Todo mundo sem duacutevida e ningueacutem Com os alematildees foram os alematildees e seus asseclas Com nossos libertadores foram os libertadores Mas conosco somos noacutes O dicionaacuterio de francecircs baacutesico deveria indicar para eles

ldquoHidra social contra a qual o indiviacuteduo meacutedio parte cada dia em rebeliatildeo falada designa simultaneamente franceses e estrangeiros empregadores e trabalhadores o presidente e os conselheiros as autoridades fiscais os accedilougueiros a Seguranccedila Social o Estado enfim todo o universo exceto o oradorrdquo (THOMPSON 1952 p 105 itaacutelico do autor)

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23 Praacuteticas linguiacutesticas folk

Uma vez identificados os lugares do conhecimento linguiacutestico popular resta antes de examinar duas amostras propor uma definiccedilatildeo a tiacutetulo heuriacutestico e hipoteacutetico

Eu a vejo por ora como um arcabouccedilo teoacuterico e metodoloacutegico para unificar um conjunto de praacuteticas linguiacutesticas seculares baseadas em uma concepccedilatildeo perceptiva da norma que produz trecircs tipos de discurso sobre a liacutengua (eu adapto os dois primeiros de Brekle 1989 e proponho aqui um terceiro)

- descriccedilotildees linguiacutesticas e (preacute)teorizaccedilotildees das regras de funcionamento da liacutengua fortemente informadas por percepccedilotildees (veredictos do tipo ldquonatildeo eacute francecircsrdquo ou julgamentos de adequaccedilatildeo entre nomes e coisas)

- prescriccedilotildees concernentes aos usos muitas vezes decorrentes de um normativismo muscular que vai ateacute o purismo (condenaccedilatildeo de empreacutestimos de neologismos escaacuternio da feminizaccedilatildeo etc)

- intervenccedilotildees espontacircneas na liacutengua na maioria das vezes regularizantes (emocionar e ir no cabeleireiro apesar que etc) esses famosos ldquoerrosrdquo sobre os quais D Leeman (1994) se pergunta se realmente existem (para uma apresentaccedilatildeo detalhada desta tipologia ver Paveau 2005)

Para recapitular a linguiacutestica popular se constituiria de trecircs tipos de praacuteticas seculares com uma dimensatildeo perceptiva descriccedilotildees prescriccedilotildees intervenccedilotildees

3 Semacircntica secular e sociolinguiacutestica popularApresento aqui dois exemplos de linguiacutestica popular o primeiro concernente ao significado

do nome proacuteprio e o segundo ao proacuteprio linguiacutestico das classes dominantes

31 O nome proacuteprio designador flexiacutevel

Quando P Siblot propocircs em 1987 os primeiros delineamentos teoacutericos da ldquosignificacircnciardquo do nome proacuteprio a partir das anaacutelises de Weinreich (ldquoa hipersemanticidaderdquo do nome proacuteprio) ou de Barthes (sua ldquoespessura semacircnticardquo) ele se opocircs de forma inovadora em linguiacutestica ao paradigma dominante do assemantismo do nome proacuteprio considerado como um designador riacutegido Os pesquisadores que admitem as propriedades semacircnticas do nome proacuteprio constituiacuteram entatildeo o que chamo de paradigma do designador flexiacutevel a partir de variadas proposiccedilotildees terminoloacutegicas e teoacutericas ldquohalos positivos e negativosrdquo (M Wilmet) ldquoevocaccedilotildees simboacutelicasrdquo (P Charaudeau) ldquoheterorreferencialidaderdquo e ldquoomnisignificadordquo (G Cislaru) Mas esse tipo de abordagem haacute muito se estabilizou no discurso linguiacutestico secular em particular entre os escritores mas tambeacutem entre os autores dessa tradiccedilatildeo do espiacuterito francecircs descrito acima Sabemos por exemplo que para Proust os significados plurais do nome proacuteprio satildeo uma evidecircncia tomando emprestados os canais da memoacuteria voluntaacuteria e a metaacutefora da cor Eacute o que testemunham numerosas passagens do Cocircteacute de Guermantes que se relacionam com as praacuteticas linguiacutesticas seculares

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E o nome de Guermantes na eacutepoca eacute tambeacutem como um daqueles pequenos balotildees nos quais se prendem oxigecircnio ou outro gaacutes quando consigo estouraacute-lo ao soltar o que ele conteacutem respiro o ar de Combray daquele ano daquele dia misturado com um cheiro a espinheiro agitado pelo vento da esquina da praccedila [hellip] Mas mesmo fora dos raros minutos como estes nos quais bruscamente sentimos a entidade original estremecer e retomar sua forma e sua perseguiccedilatildeo dentro das siacutelabas mortas de hoje se neste redemoinho vertiginoso da vida cotidiana onde eles tecircm apenas um uso inteiramente praacutetico os nomes perderam toda a cor como um sinal prismaacutetico [] por outro lado quando em devaneio refletimos procuramos voltar ao passado desacelerar suspender o movimento perpeacutetuo no qual estamos envolvidos pouco a pouco vemos reaparecer justapostos mas inteiramente distintos um dos outros os tons que o curso de nossa existecircncia nos apresenta sucessivamente com um mesmo nome (PROUST 1954 [1920] p 13)

O nome proacuteprio eacute considerado aqui como um reservatoacuterio de sentido que pode ser ativado de acordo com os contextos espaciais e temporais intimamente dependentes da percepccedilatildeo memoacuteria e atividade cognitiva do sujeito Ele possui uma dimensatildeo cognitivo-discursiva constituindo um verdadeiro ldquonome de memoacuteriardquo cujo significado precisa ser analisado em um contexto ampliado agrave histoacuteria agrave cultura e ao ambiente material Em uma abordagem cognitivo-discursiva diremos que eacute um preacute-discurso isto eacute um quadro preacute-discursivo coletivo que contribui para a elaboraccedilatildeo do discurso ao ativar um conjunto de conhecimentos crenccedilas e praacuteticas (esta abordagem do nome proacuteprio eacute desenvolvida em Paveau 2006) Eacute esse tipo de anaacutelise que encontramos em P Daninos

E se aquele agente duplo [Mata Hari] fosse de pouca envergadura Seu apelido permaneceraacute inscrito na histoacuteria ela termina mal mas soa bem Quem sabe o que teria acontecido com ela sob seu nome verdadeiro de Gertrude Zelle Talvez rentista em Monte-Carlo inscrita na Seguridade Social para a qual os espiotildees contribuem assim como os outros [] No domiacutenio dos nomes proacuteprios a seleccedilatildeo se opera [] com crueldade Existem alguns ndash Richelieu Voltaire La Fayette ndash que resistem a todos os empregos ceacutedulas telefone galerias Outros esmagados pelo metrocirc quantas pessoas a quem foi dito cem vezes ldquoDesccedila em Barbegravesrdquo morrem sem jamais ter voltado ao passado deste poliacutetico Alguns nomes como Chardon-Lagache natildeo dizem mais nada Outros como Pegravere-Lachaise natildeo dizem nada de valor (DANINOS 1972 p 82)

O nome proacuteprio eacute descrito como um categorizador de tipo social (coeficiente de prestiacutegio do antropocircnimo) e cultural (conservaccedilatildeo dos valores histoacutericos e literaacuterios de certos nomes) Ele propotildee uma folha de memorial que pode ser ativada de diferentes maneiras conforme percepccedilotildees dos usuaacuterios enquanto Richelieu manteacutem sua dimensatildeo histoacuterica Pegravere-Lachaise passou por uma mudanccedila semacircntica restritiva

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32 Uma sociolinguiacutestica popular a fala das classes dominantes

Quer se trate de histoacuteria sociologia ou linguiacutestica poucas ciecircncias humanas se ocuparam ateacute agora das ldquoclasses dominantesrdquo que M Pinccedilon e M Pinccedilon-Charlot explicam por ausecircncia de contratos propostos pelo Estado as escolhas posturais dos socioacutelogos que evitam enfrentar uma dissimetria social em seu prejuiacutezo e o clima poliacutetico e intelectual poacutes-1968 (PINCcedilON PINCcedilON-CHARLOT 2005 [1997]) Seja como for eacute patente que os trabalhos publicados em linguiacutestica no campo da variaccedilatildeo social satildeo majoritariamente consagrados ao francecircs popular com ou sem esse roacutetulo sem que um ldquo(grande) falante burguecircsrdquo ou um ldquofrancecircs aristocraacuteticordquo natildeo seja considerado (tambeacutem satildeo possiacuteveis outra questatildeo) Acontece poreacutem que a sociolinguiacutestica popular que aqui me interessa trata amplamente dessa questatildeo sob diferentes etiquetagens (liacutengua burguesa fala esnobe linguagem mundana boa fala) por meio da figura recorrente de Marie-Chantal que representa para a fala das classes dominantes o que Franccediloise de Proust eacute para o francecircs popular Marie-Chantal adquiriu suas marcas linguajeiras como as joias de famiacutelia por heranccedila familiar Esta eacute a anaacutelise que Proust faz a propoacutesito de Albertine

Natildeo que Albertine jaacute natildeo tivesse quando estive em Balbec um lote muito variado dessas expressotildees que revelam de imediato que se vem de famiacutelia abastada e que ano apoacutes ano uma matildee abandona sua filha do mesmo modo que outra lhe daacute na medida em que cresce em circunstacircncias importantes suas proacuteprias joias (PROUST 1954 [1920] p 64)

A literatura popular cita em seu lazer essas expressotildees ldquomuito variadasrdquo que o historiador Eacute Mension-Rigau chama de ldquoexpressotildees de intimidaderdquo e que muitas vezes se relacionam com a vida social e relaccedilotildees interpessoais Alguns exemplos dessas palavras de classe analisadas no interior de uma sociolexicologia popular

1 M de Chaudenay escreve em seu glossaacuterio que ldquoum membro do Jockey Club digno desse nome natildeo tem mamatildee nem papai nem filho nem famiacutelia nem carro nem castelo nem hotel Ele natildeo come natildeo toma aperitivos natildeo vai a espetaacuteculo nem a reuniotildees festivasrdquo E eacute verdade que o pobre homem mesmo sendo dono de Chambord seraacute

reduzido pelo bom tom de dizer-lhe Venha jantar em casa Vocecirc tem que ser o uacuteltimo dos arrivistas para falar de um castelo ou o Diretoacuterio para dizer HP (nota abreviatura para hotel privado) (DANINOS 1964 p 87)

2 De Neuilly a Passy natildeo ldquose comerdquo se almoccedila ou janta (VANDEL 1993 p 152)

3 Fui ensinado que natildeo comemos Almoccedilamos lanchamos ou jantamos (homem 1934) [hellip] Noacutes natildeo andamos a cavalo noacutes montamos Um dia eu disse desisti Aprendi a expressatildeo no internato Meu avocirc me disse isso natildeo se diz Dizemos vomitamos mas natildeo desistimos (homem 1934) (MENSION-RIGAU 1994 p 201 e 209)

Eacute difiacutecil desenvolver as anaacutelises por falta de espaccedilo (encontraremos desdobramentos adicionais em Paveau e Rosier 2007) mas eacute preciso notar que esse tipo de descriccedilatildeo lexicoloacutegica

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estaacute integrado em um sistema perceptivo mais amplo como indica Eacute Mension-Rigau (1994 p 209)

Para designar essas expressotildees rejeitadas por serem utilizadas por classes sociais que natildeo pertencem agrave mesma esfera ou ao mesmo mundo os respondentes utilizam todo um conjunto de qualificativos dizem que satildeo muito comuns muito vulgar muito ordinaacuterio comum como patildeo de cevada [arroz de festa no portuguecircs] muito corriqueiro do povo de gente pequena de todo mundo de garccedilom cabeleireiro fornecedor ou porteiro []

Encontramos portanto nesses discursos linguiacutesticos folk um corpus e teorias espontacircneas baseadas na maneira como os usuaacuterios recebem-percebem os valores sociais do leacutexico

4 A questatildeo da validade das teorias popularesA questatildeo mais interessante colocada pela linguiacutestica folk a de sua validade53 tem sido

objeto de pouco trabalho exceto pelas reflexotildees dos americanos sobre filosofia da mente e filosofia da ciecircncia Eacute um problema difiacutecil sem duacutevida porque a doxa da falsidade dos conhecimentos populares estaacute fortemente ancorada na Franccedila em particular onde se fala muito rapidamente em ldquopseudociecircnciardquo mas ainda mais porque a utilizaccedilatildeo que a linguiacutestica faz da noccedilatildeo de intuiccedilatildeo natildeo eacute esclarecida

41 Verdade cientiacutefica ou aproximada

As teorias populares satildeo verdadeiras ou falsas Existem para ser breve trecircs respostas possiacuteveis

bull As teorias populares satildeo falsas

O materialismo eliminativista agrave moda de P Churchland como vimos responde satildeo totalmente falsas aliaacutes seratildeo substituiacutedas por demonstraccedilotildees sem apelo resultantes das neurociecircncias esta posiccedilatildeo eacute tambeacutem a do filoacutesofo S Laurence (2003) que considera que as teorias correntes em qualquer ciecircncia satildeo frequentemente falsas e que o fato de a linguiacutestica ser recente a torna ainda mais vulneraacutevel

bull As teorias populares satildeo falsas mas sua existecircncia eacute necessaacuteria

O ldquorealismo suaverdquo de D Dennett por exemplo (1990 [1987]) responderia de maneira mais matizada os resultados cientiacuteficos satildeo falsos porque os qualia (experiecircncias conscientes) satildeo falsos mas o vocabulaacuterio ldquofolkrdquo eacute perfeitamente operacional e mesmo necessaacuterio para a relaccedilatildeo do homem com a linguagem em outras palavras as percepccedilotildees espontacircneas satildeo organizadores (padrotildees) necessaacuterios A linguiacutestica popular seria entatildeo admissiacutevel como uma descriccedilatildeo perceptiva e organizadora da linguagem mas natildeo como uma teoria da linguagem

bull As teorias populares satildeo verdadeiras mas os ldquonatildeo-linguistasrdquo possuem saberes sobre as liacutenguas

53 No capiacutetulo anterior realizamos uma discussatildeo mais detalhada sobre a validade das teorias folk

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D Preston e N Niedzielski (1999 p 10) colocam desta forma ldquoSe o povo fala sobre linguagem eles devem eacute claro saber (ou pelo menos acreditar que sabem) sobre elardquo Passamos a uma concepccedilatildeo praacutetica e natildeo mais loacutegica da verdade haacute um conhecimento linguiacutestico que independe de suas propriedades cientiacuteficas e esse conhecimento tem um tipo de operacionalidade Esta eacute a posiccedilatildeo de N Llewellyn e A Harrison que estudam o modo como um grupo de falantes percebe formas de liacutengua e de discurso em documentos corporativos

Em um niacutevel baacutesico o presente capiacutetulo mesmo que brevemente mostrou que as competecircncias linguiacutesticas folk dos participantes se estendem muito longe Os participantes demonstraram habilidade de distinguir entre usos inclusivos e exclusivos da primeira pessoa do plural transformaccedilatildeo passiva nominalizaccedilatildeo eles foram capazes de criticar o uso de abstraccedilotildees como sujeitos de verbos identificar possiacuteveis instacircncias da segunda pessoa disfarccedilada e assim por diante (PAVEAU 2006)

Essa resposta se fundamenta em uma abordagem anti-chomskyana da cogniccedilatildeo na qual a linguiacutestica explica as dimensotildees experiencial e cultural da linguagem Em outras palavras se o objeto da linguiacutestica permanece apesar de todos os desenvolvimentos a liacutengua por ela mesma entatildeo a linguiacutestica popular tem poucas chances se o objeto da linguiacutestica se estende aos usos da linguagem por sujeitos sociais e cognitivos entatildeo o conhecimento popular qualquer que seja seu status epistecircmico entra por pleno direito na teoria o que mostra ao que parece as duas ldquoteoriasrdquo populares apresentadas acima

42 Intuiccedilatildeo percepccedilatildeo verdade

Pode-se pensar que em uacuteltima anaacutelise todas as teorias linguiacutesticas satildeo populares uma vez que se baseiem na intuiccedilatildeo dos locutores Mas de que intuiccedilatildeo se trata exatamente A intuiccedilatildeo dos linguistas amplamente informada pela teoria (conhecemos a piada de que apenas um informante chomskyano pode admitir teorias chomskyanas) natildeo eacute a mesma que a dos locutores comuns Esta eacute a posiccedilatildeo defendida por Devitt em sua criacutetica anti-representacionista que aliaacutes fornece um meio de tratar a verdade das teorias populares

As intuiccedilotildees de falantes comuns podem parecer mais presentes do que realmente satildeo porque os linguistas consideram suas proacuteprias intuiccedilotildees representativas Sem duacutevida muitas vezes satildeo representativas E onde natildeo satildeo seriam se o falante comum tivesse a vantagem de uma educaccedilatildeo em linguiacutestica (DEVITT 2006 p 496)

Vemos como a questatildeo da verdade se desloca para a da percepccedilatildeo se as informaccedilotildees dadas pela intuiccedilatildeo satildeo verdadeiras porque satildeo informadas pela teoria entatildeo eacute de uma verdade relativa que se trata e podemos igualmente falar de verdade por intuiccedilotildees ldquofalsasrdquo que satildeo verdadeiras em relaccedilatildeo aos quadros natildeo teoacutericos dos indiviacuteduos Esses quadros satildeo os da sociedade da cultura e isso eacute o que mostra por exemplo o trabalho de N Niedzielski sobre a natureza social da percepccedilatildeo das variaacuteveis sociolinguiacutesticas (1999)

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ConclusatildeoAbordar a questatildeo da linguiacutestica folk envolveu deslocar a abordagem habitualmente binaacuteria

da norma (descritiva versus prescritiva) para propor um terceiro termo a percepccedilatildeo A ldquoverdaderdquo da linguiacutestica popular deve de fato ser pensada em termos perceptivos metadiscursivos e natildeo loacutegicos o que tambeacutem implica substituir outra oposiccedilatildeo binaacuteria cientiacutefica versus popular um contiacutenuo que leva em consideraccedilatildeo os dois objetos examinados54 e o coeficiente de informaccedilatildeo social e cultural dos conhecimentos produzidos Esses uacuteltimos satildeo justificaacuteveis para um estudo especiacutefico em linguiacutestica natildeo como uma cartilha ingecircnua sobre a qual fundar a ciecircncia mas como uma possiacutevel versatildeo da teoria da linguagem Daninos e Labov Proust e Weinreich

54 N Llewellyn e A Harrison (2006) mostram por exemplo que falantes comuns tecircm conhecimento linguiacutestico preciso sobre pronomes e neologismos mas satildeo menos confiantes quanto a problemas complexos das praacuteticas textuais

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O FALAR DAS CLASSES DOMINANTES LINGUIacuteSTICA POPULAR E DIALETOLOGIA PERCEPTIVA55

A questatildeo das identidades linguageiras e discursivas eacute crucial para uma ciecircncia da linguagem considerar a realidade das trocas sociais e os contextos da vida em sociedade Eacute o proacuteprio sistema das relaccedilotildees sociais que eacute estruturado quando as identidades satildeo postas em causa nos dois sentidos do termo lanccediladas na arena das trocas mas tambeacutem com base nas imagens de si e do outro elaboradas por si mesmo e pelo outro Os locutores adaptam os modos de falar ao mesmo tempo em que produzem anaacutelises espontacircneas elaborando e administrando simultaneamente suas imagens linguageiras Sujeitos de observaccedilatildeo para os linguistas (especializados) eles satildeo propriamente linguistas no quadro de uma linguiacutestica popular

Nesse capiacutetulo me proponho investigar as identidades linguageiras de classe56 isto eacute os modos que os locutores tecircm de mostrar o seu pertencimento a determinada classe e sua posiccedilatildeo nas relaccedilotildees sociais Desejo examinar particularmente a hipoacutetese de um falar das classes dominantes57 estudo ateacute entatildeo ausente nos trabalhos sociolinguiacutesticos franceses e que propotildee questotildees histoacutericas epistemoloacutegicas e empiacutericas pertinentes agrave linguiacutestica social

Descreverei inicialmente o estatuto da noccedilatildeo de classe social na sociolinguiacutestica francesa e anglo-saxatilde bem como a assimetria que existe entre os objetos frequentemente escolhidos pelas ciecircncias sociais (classe trabalhadora povo excluiacutedos e em menor grau as classes meacutedias) e os pertencimentos reais ou imaginaacuterios dos indiviacuteduos (em que se encontram igualmente as classes dominantes as elites as burguesias) Examinarei na sequecircncia as formas e a validade dos resultados da linguiacutestica folk (haacute uma sociolinguiacutestica espontacircnea e antiga e muito desenvolvida na Franccedila sobre o falar das elites e dos bairros nobres) mostrarei que os conceitos e os meacutetodos da dialetologia perceptual norte-americana satildeo particularmente pertinentes para dar conta desse objeto Terminarei o texto propondo uma primeira descriccedilatildeo linguiacutestica folk do falar das classes dominantes insistindo sobre alguns de seus traccedilos caracteriacutesticos (pronuacutencia leacutexico e pragmaacutetica)

1 A apreensatildeo linguiacutestica das categorias sociaisAs categorias mobilizadas pelas linguiacutesticas atentas ao humano e ao social natildeo satildeo

imanentes mas diretamente informadas pela histoacuteria das ciecircncias e das ideologias Isso eacute particularmente verdadeiro para a categoria ldquoclasse socialrdquo

55 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Le parler des classes dominantes objet linguistiquement incorrect Dialectologie perceptive et linguistique populaire Eacutetudes de linguistique appliqueacutee p 137-156 2008 Traduccedilatildeo de Roberto Leiser Baronas (UFSCar) e Julia Lourenccedilo Costa (UFSCarFAPESP)

56 Escolhi a acepccedilatildeo mais marxista do termo falo das classes ldquoda luta de classesrdquo e das ldquorelaccedilotildees sociais de produccedilatildeordquo conforme explicarei a seguir em 1

57 No momento a designaccedilatildeo tem apenas valor heuriacutestico

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11 Agrave procura da classe perdida

Natildeo falamos mais (em absoluto) de classe social especialmente em linguiacutestica como antes Tanto o termo como a noccedilatildeo parecem ter desaparecido do discurso dos socioacutelogos como mostra R Pfefferkorn em um trabalho de 2007 que reintegra o ldquojargatildeordquo marxista relaccedilatildeo social

Em linguiacutestica francesa e mais particularmente em sociolinguiacutestica o termo classe eacute substituiacutedo por posiccedilatildeo e por rede Em La variation sociale en franccedilais (2003) Franccediloise Gadet emprega ldquolocutores favorecidosrdquo e ldquodesfavorecidosrdquo (p 9) a metaacutefora da escala (o ldquoalto e o baixo dos degraus da escala socialrdquo p 10 e 68) ou o termo posiccedilatildeo em ldquoposiccedilatildeo social favorecidardquo por exemplo (p 16) Ela sublinha mais agrave frente (no capiacutetulo IV) que a classe (trabalhadora meacutedia e superior) como ferramenta de anaacutelise eacute muito formal e redutora e explica que a sociolinguiacutestica explora a noccedilatildeo de rede para melhor dar conta das diferentes articulaccedilotildees das relaccedilotildees sociais em niacutevel global e local tomando como exemplo a ldquorede operaacuteriardquo tal como eacute analisada por L Milroy (1980) O capiacutetulo IV eacute inclusive intitulado ldquoO diastraacuteticordquo termo teacutecnico perfeitamente naturalizado em linguiacutestica mas denotativo quase ciruacutergico que busca apagar as dimensotildees conflituosas eou poliacuteticas presentes na palavra classe

Todavia no decorrer deste mesmo capiacutetulo IV o termo classe social reaparece quase naturalmente o quadro que recapitula os usos sociais do natildeo da negaccedilatildeo apresenta a trilogia classe operaacuteria classe meacutedia e classe superior sendo a ldquoclasse socialrdquo apresentada como um criteacuterio igual ao de idade ou sexo e o autor menciona sem comentaacuterio especiacutefico ldquoa estratificaccedilatildeo em classes sociaisrdquo (GADET 2003 p 68)

Podemos portanto sustentar que tanto a leitura de F Gadet quanto a L Milroy bem como a de outros autores sobre a noccedilatildeo de classe sustentada na noccedilatildeo de relaccedilatildeo social natildeo apresenta diferenccedila expressiva em relaccedilatildeo agrave de rede Classe operaacuteria rede operaacuteria Se nos reportamos agraves anaacutelises de R Pfefferkorn que estima que a noccedilatildeo de classe foi paradoxalmente escamoteada pelos socioacutelogos franceses e britacircnicos nos anos 1970 e 1980 do seacuteculo passado (paradoxalmente porque a virada liberal fortaleceu sobretudo as classes dominantes) compreendemos que haacute outros elementos nesse desaparecimento e que eacute sem duacutevida por serem noccedilotildees marxistas e natildeo porque satildeo imprecisas que as abordagens em termos de classe e relaccedilatildeo social foram progressivamente descartadas

Alain Rey natildeo hesita em falar de classe em 1972 (encontramos o enunciado ldquoo pertencimento de classe dos locutoresrdquo em seu artigo publicado na revista Langue Franccedilaise no nuacutemero dedicado agrave norma p 14) e F Franccedilois emprega ainda o termo em 1983 propondo aleacutem disso uma descriccedilatildeo fina das relaccedilotildees da linguagem segundo os pertencimentos de classe

Em primeiro lugar eacute certo que a divisatildeo em classes sociais eacute acompanhada de uma divisatildeo entre aqueles que mais numerosos agem no tema sobretudo com gestos e aqueles que menos numerosos agem sobre os homens principalmente falando Ainda que as coisas sejam um pouco mais complicadas se o teacutecnico em eletrocircnica ou o

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cirurgiatildeo natildeo satildeo ldquofalantes purosrdquo satildeo as ldquoclasses meacutediasrdquo que desse ponto de vista se tornam a maioria Fica ainda mais claro se considerarmos a escrita satildeo poucos os homens para os quais escrever eacute a ocupaccedilatildeo principal (FRANCcedilOIS 1983 p 11)

Sabemos evidentemente que P Bourdieu jamais ocultou essa dimensatildeo em particular nos seus trabalhos consagrados agrave linguagem como nos mostra por exemplo o Ce que parler veut dire (1982)58 e o artigo Vous avez dit populaire (1983)59 que usa abundantemente a terminologia do conflito e da hierarquizaccedilatildeo (dominantes dominados restriccedilatildeo oposiccedilatildeo hierarquia etc)60 No entanto eacute tambeacutem verdadeiro que ateacute recentemente os estudos socioloacutegicos e sociolinguiacutesticos main stream ou tradicionais evitam a todo custo a noccedilatildeo de classe que todavia comeccedila a reaparecer com forccedila na cena intelectual a partir dos anos 2000 (numerosas obras e vaacuterias ediccedilotildees de revistas satildeo consagradas agraves desigualdades sociais e a um questionamento renovado do aparelho teoacuterico marxista ndash consultar por exemplo a primeira parte da obra de R Pfefferkorn) O bom senso nos diz que a partir do momento que a sociedade natildeo aparece como um todo socialmente pacificado eacute mais pertinente usar ferramentas de anaacutelises classistas

Nos Estados Unidos e mais tipicamente no mundo anglo-saxatildeo natildeo parece que seja produtivo semelhante tipo de apagamento ainda que a sociologia tenha passado pelas mesmas evoluccedilotildees A obra de B Bersnstein Class Codes and Control publicada em 1971 favoreceu durante uma quinzena de anos pesquisas emolduradas pela categoria de classe (o termo e a noccedilatildeo de class no mundo anglo-saxatildeo natildeo coincidem exatamente com o conceito de classe social no contexto francecircs) Categorias como a comunidade ou grupo (eacutetnico social cultural sexual geracional etc) ou a noccedilatildeo de ldquosocial networkrdquo introduzida rapidamente por Milroy (1980) que poderia ser uma alternativa agrave noccedilatildeo de classe natildeo a apagou L Milroy por exemplo trabalha ao mesmo tempo com os termos social network e class Os termos dialeto de classe ou dialeto social de classe satildeo empregados na sociolinguiacutestica americana mesmo natildeo sendo uma categoria de primeiro plano enquanto em francecircs eacute mais usado socioleto ou dialeto social noccedilotildees mais amplas natildeo conformadas ao social propriamente dito pois elas recobrem por exemplo os falares comunitaacuterios (a liacutengua das cidades ou dos jovens) etnogeograacuteficos (os dialetos crioulos por exemplo) ou geograacuteficos (os dialetos regionais)

12 Um socioleto mais elevado

Chamemos de classe redes ou grupos esses conjuntos de indiviacuteduos interligados pelos modos de ser e de falar pelas invariantes na representaccedilatildeo de si nos sentimentos de pertencimento e nos comportamentos econocircmicos satildeo estudados de modo desigual pelas ciecircncias sociais e em particular pela (soacutecio)linguiacutestica Se os trabalhos satildeo numerosos tanto na Franccedila quanto na Gratilde-Bretanha ou nos Estados Unidos sobre a classe operaacuteria ou rede operaacuteria ou classe popular ou meios desfavorecidos ou povo ou classe trabalhadora etc (a

58 NT BOURDIEU P O que falar quer dizer e economia das trocas simboacutelicas Traduccedilatildeo de Vanda Anastaacutecio Satildeo Paulo Editora Difel 1998

59 NT BOURDIEU P Vocecirc disse popular Traduccedilatildeo de Denice Barbara Catani Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 1 p 16-26 1996

60 O questionamento da categoria de popular para caracterizar um socioleto ou das maneiras de falar parece assim participar do esfacelamento da noccedilatildeo de classe em linguiacutestica Para uma anaacutelise detalhada consultar F Gadet (2002) e Abecassis (2003)

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terminologia eacute vasta61) os estudos sobre as classes dominantes ou ldquofavorecidasrdquo (burguesia grande burguesia e aristocracia) satildeo singularmente raros se natildeo inexistentes

Na Franccedila esses trabalhos satildeo rariacutessimos62 Pierre Bourdieu tem conduzido desde 1963 as pesquisas de campo sobre ldquoas classes superioresrdquo francesas (1979 p 588) cujos resultados satildeo apresentados em La distinction em 197963 Ele isola alguns marcadores de classe sem todavia propor uma anaacutelise linguiacutestica Os socioacutelogos M Pinccedilon-Charlot e M Charlot trabalham haacute quase vinte anos sobre as elites francesas e adquiriram por isso uma notoriedade fora da universidade sobre essa questatildeo que eles natildeo teriam conhecido quando estudavam essas questotildees nos anos 197064 (por exemplo 1989 1996 1997 e sua uacuteltima obra Les ghettos du Gotha publicada em 2007) Eles abordam poucos aspectos linguageiros mas destacam por exemplo a matriz discursiva de suas investigaccedilotildees Mais recentemente o historiador Eacute Mension-Rigau publicou o livro Aristocrates e grand-bourgeois (1994) ateacute entatildeo uacutenico estudo sobre as classes dominantes francesas contemporacircneas que o coloca em um lugar significativo sobre as maneiras de falar sobretudo porque os entrevistados comumente abordam eles proacuteprios como veremos mais adiante neste texto Na Beacutelgica haacute uma obra da socioacuteloga V DrsquoAlkemade intitulada La haute publicada em 2004

Do lado da linguiacutestica encontramos o estudo de O Mettas publicado em 1979 sobre a pronuacutencia parisiense La prononciation parisienne aspects phoniques drsquoun sociolecte parisien (du faubourg Saint-Germain agrave la Muette) Como anuncia o tiacutetulo o trabalho analisa o socioleto da aristocracia e da alta burguesia por meio de uma amostra de 39 locutoras A anaacutelise proposta por Mettas se concentra sobre a dimensatildeo foneacutetica (a ldquopronuacutencia refinadardquo) mas termina em uma ampliaccedilatildeo da anaacutelise de outros niacuteveis linguiacutesticos que defende a existecircncia de um falar social especiacutefico Podemos tambeacutem escutar uma amostra do sotaque do ldquosocioleto da alta burguesiardquo na gravaccedilatildeo de uma atriz que interpreta ldquouma pessoa esnobe da aristocraciardquo65 na obra Les accents des franccedilais livro-cassete publicado em 1983 e transferido para a internet66 Esse material propotildee uma lista de caracteriacutesticas focircnicas especiacuteficas Os trabalhos recentes que desenvolvi ainda programaacuteticos sobre o falar das classes dominantes tentam cercear esse objeto explicando a sua ausecircncia tanto no campo da sociolinguiacutestica quanto no das ciecircncias sociais favorecendo uma abordagem que considere nos dados linguiacutesticos as percepccedilotildees e as representaccedilotildees espontacircneas dos locutores (PAVEAU 2008 PAVEAU ROSIER 2008 capiacutetulo 8 ldquoStyles sociaux classes classements deacuteclassementsrdquo67)

61 A lista seria longa e tediosa para uma bibliografia ver Gadet (1992 2003) Calvet Mathieu (2003) Petitjean Privat (2007) e Paveau Rosier (2008)

62 Refiro-me aos trabalhos sobre as elites enquanto elites e natildeo aos estudos sobre a alta funccedilatildeo puacuteblica diplomaacutetica ou mesmo os bispos que existem na histoacuteria por exemplo e que dizem respeito a profissotildees ou posiccedilotildees de poder institucional

63 NT BOURDIEU P A distinccedilatildeo Criacutetica social do julgamento Traduccedilatildeo de Daniela Kern e Guilherme J F Teixeira Satildeo Paulo EdUSP 2007

64 O Diaacuterio de investigaccedilatildeo deles conteacutem comentaacuterios tatildeo interessantes que discorrem sobre a aacutecida recepccedilatildeo desses trabalhos pelos seus colegas prova de que se necessaacuterio os objetos cientiacuteficos possuem uma forte dimensatildeo ideoloacutegica e institucional (1996)

65 A assimilaccedilatildeo entre a alta burguesia e a aristocracia que faria qualquer aristocrata se assustar e alguns historiadores franzir a testa parece atestar a estranheza dessa categoria social para os autores da pesquisa

66 NT Disponiacutevel em httpaccentsdefrancefreefr Acesso em 17 out 2020

67 NT In PAVEAU M-A ROSIER L La langue franccedilaise passions et poleacutemiques Paris Eacuteditions Vuibert 2008

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A sociolinguiacutestica popular em contrapartida dispotildee de muitos pequenos tratados espontacircneos ou observaccedilotildees raacutepidas geralmente humoriacutesticas ou irocircnicas sobre o falar das classes dominantes por parte de observadores externos e tambeacutem por membros da aristocracia da grande burguesia ou dos ldquobons meios sociaisrdquo Esse corpus eacute constituiacutedo de ensaios para o puacuteblico em geral sobre o que denomino ldquoo espiacuterito francecircsrdquo (P Daninos P Jullian J Chazot) correspondendo a uma vasto material que abrange guias de correspondecircncia e de boas maneiras esquetes humoriacutesticas (S Joly C de Turkheim F Foresti) artigos de revista sobre os meios sociais com interpretaccedilotildees dos tiques comportamentais do ldquobobordquo68 do ldquobeauf69rdquo do ldquoaristo70rdquo ou do ldquoplouc71rdquo de dicionaacuterios de ldquocriacutetica irocircnicardquo (expressatildeo criada por L Rosier) como o Dico franccedilais-franccedilais de P Vandel (1992) ou o seu ancestral Le Jacassin de P Daninos (1962) ou ainda as obras de sociologia ldquosuaverdquo como Nous les bourgeoises de V Hanotel e M-L de Leacuteotard (1991) ou o Guide du squatteur mondain de J-F Duhauvelle (1994) Detalharei mais agrave frente neste texto os dados linguiacutesticos apresentados nesses materiais todavia eacute importante fazer uma primeira constataccedilatildeo sobre essa questatildeo existe uma assimetria notaacutevel entre os estudos linguiacutesticos ldquocientiacuteficosrdquo (rariacutessimos) e o grande nuacutemero de apreciaccedilotildees folk linguiacutesticas sobre o falar das elites sociais Essa constataccedilatildeo estaacute na origem do questionamento teoacuterico e epistemoloacutegico que discute a validade da linguiacutestica popular e as contribuiccedilotildees da dialetologia perceptiva para a linguiacutestica cientiacutefica

2 Linguiacutestica perceptiva linguiacutestica popular (folk linguiacutestica)Nos anos 1970 A Rey (1972 p 16) e outros pesquisadores reivindicaram o que chamo

de uma ldquolinguiacutestica dos valoresrdquo isto eacute um ldquoestudo sistemaacutetico das atitudes metalinguiacutesticas [] que poderia constituir uma ciecircncia social relacionada agraves teorias dos valores (teoria do direito da moral objetiva etc)rdquo ldquoEnquanto os trabalhos de soacutecio e de etnolinguiacutestica no que se refere agraves variedades de uso agraves normas objetivas satildeo atualmente muito numerosos [] os estudos relativos agrave apreciaccedilatildeo subjetiva dos usos satildeo raros e mais frequentes em inglecircsrdquo constata Rey no mesmo artigo (1972 p 15) Mais de trinta anos depois o que aconteceu Os campos norte-americanos da dialetologia social da dialetologia perceptiva da folk linguistics colaboraram voluntariamente com a psicologia social e tecircm amplamente explorado as atitudes linguiacutesticas as percepccedilotildees as avaliaccedilotildees os julgamentos de valores etc Parece se tratar de uma linguiacutestica dos valores

68 NT Abreviaccedilatildeo de bourgeois bohemian ou burguecircs boecircmio

69 NT ldquoA personagem do lsquobeaufrsquo ndash abreviaccedilatildeo de beau fregraverecunhado ndash nasceu no poacutes-maio de 68 do laacutepis de Cabu cartunista do Hara-Kiri e do Charlie Hebdo ldquoEle era o dono do bistrocirc com o pastor alematildeo o bigode e a camisetardquo explica o socioacutelogo Paul Yonnet autor de Travail Loisir (Gallimard) Havia portanto uma rejeiccedilatildeo do modo de vida e haacutebitos da classe trabalhadora da qual natildeo mais se poderia esperar a regeneraccedilatildeo da sociedaderdquo Disponiacutevel em httpswwwlexpressfrinformationsles-nouveaux-beaufs_636908html Acesso em 17 out 2020

70 NT ldquoAristo (substantivo masculino) 1 (pejorativo) pessoa que pertence a uma classe de nascimento privilegiada e que possui tiacutetulos e cargos hereditaacuterios 2 (pejorativo) aristocratardquo Disponiacutevel em httpdictionnairesensagentleparisienfraristofr-fr Acesso em 17 out 2020

71 NT ldquoQue tem a aparecircncia desajeitada de um camponecircs em sua melhor roupa de domingo que ignora os costumesrdquo comumente relacionado agrave regiatildeo francesa Bretagne Poderia ser traduzido como caipira em portuguecircs Disponiacutevel em httpswwwlaroussefrdictionnairesfrancaisplouc61755 Acesso em 17 out 2020

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Na Franccedila os dados metalinguiacutesticos satildeo estudados mas mais frequentemente segundo abordagens ldquoobjetivasrdquo (por exemplo as glosas metagraacuteficas no campo da aquisiccedilatildeo as natildeo-coincidecircncias do dizer na enunciaccedilatildeo e no discurso Para uma observaccedilatildeo em detalhe a esse respeito consultar a introduccedilatildeo de Achard-Bayle e Paveau na revista Pratiques 13914072) A questatildeo do ldquoimaginaacuterio linguiacutesticordquo eacute evidente nos trabalhos de A-M Houdebine e Socircnia Branca mas os dados propriamente perceptivos natildeo satildeo escolhidos como tais para um trabalho em linguiacutestica Haacute algumas exceccedilotildees como o estudo conduzido por A Meillet V Lucci e J Billiez publicado em 1990 com o tiacutetulo Orthographe mon amour (Grenoble PUG) que eacute no meu entendimento um raro e autecircntico trabalho no contexto francecircs de dialetologia perceptiva e de folk linguiacutestica sem que as categorias desse campo sejam efetivamente nominadas Minha hipoacutetese eacute que uma folk linguiacutestica amplamente articulada sobre uma dialetologia perceptiva pode realizar o projeto esboccedilado por A Rey de uma linguiacutestica dos valores Para sustentar essa hipoacutetese examino a validade da folk linguiacutestica e o estatuto da percepccedilatildeo na anaacutelise linguiacutestica

21 O problema da validade das disciplinas ldquofolkrdquo abordagem eliminativa versus integracionista

Como outras disciplinas ldquofolkrdquo (psicologia folk biologia folk e mais recentemente as neurociecircncias folk) a folk linguiacutestica parece por natureza desprovida de qualquer validade cientiacutefica Se de fato a ciecircncia se constroacutei sob a objetividade entatildeo as avaliaccedilotildees subjetivas e os dados perceptivos da linguiacutestica espontacircnea dos natildeo-linguistas soacute podem ser constituiacutedos de erros refutaacuteveis ou ficccedilotildees linguiacutesticas Para passar rapidamente pela questatildeo73 e tomando de empreacutestimo da filosofia do espiacuterito os termos de seu debate sobre os estados mentais existe do ponto de vista da linguiacutestica espontacircnea uma posiccedilatildeo ldquoeliminativistardquo que contesta as realidades construiacutedas por essa linguiacutestica ou que reconhece essa uacuteltima como uma teoria mas falsa Essa eacute a posiccedilatildeo geralmente adotada pelos linguistas ao se defrontarem com as opiniotildees do senso comum sobre a liacutengua (a liacutengua reflete o mundo os burgueses possuem uma linguagem mais rica do que os trabalhadores a subordinaccedilatildeo eacute um iacutendice de elaboraccedilatildeo do pensamento superior ao independente a gramaacutetica da liacutengua oral eacute passiva de erros etc) Essa eacute uma maneira binaacuteria de colocar as coisas linguiacutestica cientiacutefica versus folk linguiacutestica

Todavia existe igualmente uma posiccedilatildeo que chamarei de ldquointegracionistardquo uma vez que ela prefere integrar os dados avaliativos e perceptivos da folk linguiacutestica aos da linguiacutestica cientiacutefica ela postula que as anaacutelise dos natildeo-linguistas natildeo estatildeo muito longe daquelas dos linguistas ou podem agraves vezes forjaacute-las (os inuacutemeros trabalhos norte-americanos em dialetologia social mostram que os locutores percebem as variedades sociodialetais de maneira diferente que os linguistas profissionais o que coloca o problema da natureza do objeto) que as avaliaccedilotildees subjetivas constituem um filtro representacional essencial para compreender o funcionamento da comunicaccedilatildeo e os dados folk constituem o ponto de partida do trabalho

72 NT Linguiacutestica popular - a linguiacutestica ldquofora do templordquo Definiccedilatildeo geografia e dimensotildees Disponiacutevel em httpsperiodicosufscbrindexphpforumarticleview1984-84122019v16n4p4257

73 Sobre esta questatildeo da validade dos dados da folk linguiacutestica consultar Niedzielski (1999) Preston e Niedzielski (2000) Paveau (2007) Achard-Bayle e Paveau (2008)

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do linguista cientiacutefico bem como seu histoacuterico cognitivo74 Trata-se de uma posiccedilatildeo escalar entre dois polos extremos da linguiacutestica cientiacutefica e da folk linguiacutestica existe um continuum no qual as categorias estatildeo em contato e as anaacutelises podem ser mais ou menos cientiacuteficas ou mais ou menos espontacircneas Essa posiccedilatildeo eacute defendida pelos fundadores e praticantes da folk linguistics nos Estados Unidos (NIEDZIELSKI PRESTON 2000) vindos geralmente da dialetologia social (PRESTON 1989 WOLFRAM 1991) as duas correntes sendo derivadas do labovismo em sua primeira forma (LABOV 1966) Essa posiccedilatildeo integracionista eacute a que defendo neste texto O integracionismo natildeo foi desenvolvido na Franccedila onde como jaacute dissemos a reflexatildeo sobre a ldquoquestatildeo folkrdquo praticamente natildeo existe em linguiacutestica

Essa reflexatildeo implica que examinemos o estatuto da percepccedilatildeo e dos dados perceptivos em linguiacutestica o que naturalmente nos obriga a olhar de perto para a espinhosa noccedilatildeo de intuiccedilatildeo dos locutores

22 O estatuto linguiacutestico da percepccedilatildeo e a questatildeo da intuiccedilatildeo

Os primeiros trabalhos de W Labov nos anos 1960 sobre os falares nova-iorquinos estavam fundamentados no meacutetodo dos testes de reaccedilatildeo subjetiva de onde derivam os protocolos das entrevistas colocados em praacutetica a partir dos anos 1990 em dialetologia social e em folk linguiacutestica A questatildeo da subjetividade eacute entatildeo agrave eacutepoca plenamente de direito e totalmente integrada na construccedilatildeo da ciecircncia ldquoobjetivardquo no campo da sociolinguiacutestica norte-americana

221 Percepccedilatildeo e variaccedilatildeo

Os diferentes campos teoacutericos e metodoloacutegicos do variacionismo norte-americano verdadeiramente instalaram a noccedilatildeo de percepccedilatildeo no seu dispositivo teoacuterico e metodoloacutegico e natildeo apresentam nenhum receio em dialogar com disciplinas fora do campo da linguiacutestica como a psicologia social por exemplo Desse modo a dialetologia social e seu componente perceptivo (dialetologia perceptiva) tem mostrado que os julgamentos avaliativos dos locutores os estereoacutetipos que participam de suas representaccedilotildees em particular no domiacutenio do oral (percepccedilatildeo da fala) isto eacute o conjunto das atitudes linguiacutesticas influenciam a percepccedilatildeo das proacuteprias formas da linguagem na sua dimensatildeo mais fiacutesica (sinal fiacutesico) Dessa maneira Nancy Niedzielski defende a ideia que os sujeitos usam informaccedilotildees sociais variadas para identificar os dialetos sociais no seu componente foneacutetico As informaccedilotildees visuais como o movimento dos laacutebios as ldquoinformaccedilotildees de vozrdquo o gecircnero feminino ou masculino ou as informaccedilotildees de segundo plano do dialeto contribuem para a identificaccedilatildeo das variedades

Pesquisas em ambos os campos da sociolinguiacutestica e da psicologia social sugeriram que os estereoacutetipos sobre os grupos sociais dos quais os falantes satildeo membros (ou acreditam que satildeo membros) tecircm uma influecircncia na forma como as suas variedades linguiacutesticas satildeo percebidas [] O objetivo do estudo apresentado foi determinar em que medida os ouvintes usam informaccedilotildees sociais sobre um falante na construccedilatildeo do espaccedilo fonoloacutegico desse falante (NIEDZIELSKI 1999 p 62-63)

74 No campo da filosofia da linguagem sobre a questatildeo semacircntica eacute a posiccedilatildeo defendida por F Recanati em Literal Meaning (RECANATI 2004) contra o ldquoliteralismordquo ele defende um ldquocontextualismordquo que leva em consideraccedilatildeo as ldquorestriccedilotildees psicoloacutegicas popularesrdquo

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J Edwards (1999 p 102) a partir da psicologia social formula de maneira mais geral

A variaccedilatildeo encontrada nos estudos de avaliaccedilatildeo da fala reflete as percepccedilotildees sociais dos falantes de determinadas variedades e natildeo tem nada a acrescentar sobre quaisquer qualidades intriacutensecas ndash loacutegicas ou esteacuteticas ndash da proacutepria linguagem ou dialeto Assim ouvir determinada variedade eacute geralmente considerado um gatilho ou estiacutemulo que evoca atitudes (ou preconceitos ou estereoacutetipos) sobre a comunidade de fala considerada

Compreendemos por conseguinte que eacute a questatildeo da apreensatildeo do objeto que se coloca de maneira crucial sendo os linguistas tanto quanto os outros sujeitos perceptivos de que liacutengua eles falam entatildeo quais variedades satildeo identificadas e sobretudo como satildeo identificadas Na perspectiva norte-americana haacute certamente um lugar atribuiacutedo agrave subjetividade nas elaboraccedilotildees cientiacuteficas que comumente satildeo compreendidas como elaboraccedilotildees objetivas Na Franccedila e nos estudos francoacutefonos as coerccedilotildees objetivistas satildeo ainda mais fortes e essa questatildeo da percepccedilatildeo e mais amplamente da subjetividade eacute pouco abordada especialmente no que concerne agrave sua dimensatildeo social Alguns linguistas nos anos 1970 se preocuparam com essa questatildeo como A Rey (1972 p 8)

[] a recusa em considerar o uso de modo diferente que como objeto fiacutesico observaacutevel e analisaacutevel alheio a qualquer julgamento (da verdade do valor etc) facilmente leva a uma confusatildeo oposta agrave cometida por Vaugelas a teoria (sistema de regras de leis constituiacuteda como modelo de regras objetivas) eacute entatildeo considerada como intervencionismo disfarccedilado e qualquer reconhecimento de uma norma social como defesa do normativismo o que natildeo tem sentido []

Todavia natildeo parece que as respostas foram dadas por trabalhos fortes que integrem a dimensatildeo subjetiva Essa distinccedilatildeo entre uso-objeto e uso-valor orienta de fato profundamente os trabalhos franceses que tanto em linguiacutestica como em outras aacutereas satildeo fortemente enquadrados pelos requisitos disciplinares fazer linguiacutestica com algo diferente do linguiacutestico explicar o social com algo diferente do social natildeo eacute ainda uma postura acadecircmica habitual e bem admitida na Franccedila A distinccedilatildeo objeto versus valores realmente cruza a oposiccedilatildeo entre linguiacutestica e extralinguiacutestica ou como chama F Gadet a oposiccedilatildeo entre interno e externo ldquoSeraacute que apenas o interno explica o interno ou ainda seraacute que correlacionar a fatores mensuraacuteveis ou natildeo de natureza natildeo-linguageira (pelo menos enquanto a linguagem for reconhecida como puramente linguiacutestica) pode questionar o fundamento da variaccedilatildeo explicaacute-lordquo pergunta-se Gadet em um artigobalanccedilo sobre a sociolinguiacutestica na Franccedila (2008 p 4 itaacutelico da autora) Essa eacute sem duacutevida uma das razotildees pelas quais os trabalhos franceses ou francoacutefonos sobre as percepccedilotildees e as atitudes satildeo pouco numerosos e aleacutem disso concentrados sobre domiacutenios muito particulares as imagens da liacutengua em contexto de aprendizagem (por exemplo Fontaine 1983 Ledegen 2000) e em contexto interlinguiacutestico (por exemplo Apotheacuteloz Bysaeth 1981 Atienza (org) 2006) O domiacutenio das marcas sociais dificilmente eacute representado o que eacute talvez um efeito perverso de uma concepccedilatildeo desatada da sociolinguiacutestica defendida por exemplo por F Gadet em nome de uma ldquodialinguiacutesticardquo permitindo

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[] representar a linguagem sem fechaacute-la na alternativa de formalizaccedilatildeo versus exuberacircncia variacional com o objetivo de moldar um objeto reconhecido como conjunto muito complexo de invariacircncia e de variaccedilatildeo que se manifesta na forma do diverso do heterogecircneo do impreciso do hiacutebrido do emergente (mas tambeacutem persistente ao longo do tempo) (GADET 2008 p 5)

A ldquodialinguiacutesticardquo se pretende realmente aberta buscando substituir uma sociolinguiacutestica reduzida ao social E entatildeo o social eacute menos considerado No entanto ele constitui uma dimensatildeo incontestaacutevel e como outros tipos de variaccedilatildeo sua apreensatildeo dificilmente parece possiacutevel sem considerar os exteriores da liacutengua e dos usos inclusive as percepccedilotildees e os valores

O lugar restrito atribuiacutedo agrave noccedilatildeo de percepccedilatildeo nos trabalhos sobre a variaccedilatildeo social no contexto francecircs estaacute sem duacutevida relacionado com o enfraquecimento das reflexotildees engajadas sobre a noccedilatildeo de intuiccedilatildeo (do locutor nativo) ou do sentimento linguiacutestico

222 Percepccedilatildeo e intuiccedilatildeo

A noccedilatildeo de intuiccedilatildeo diretamente relacionada com a de percepccedilatildeo mas sem a recobrir eacute raramente objeto de questionamento e funciona como um impliacutecito ratificado pela comunidade dos linguistas Na Franccedila a noccedilatildeo eacute geralmente justificada e mobilizada em particular na sintaxe ou ainda na semacircntica assim como o seu antocircnimo adjetival contra-intuitivo No entanto tal noccedilatildeo eacute raramente descrita como operador ou ferramenta conceitual para as ciecircncias da linguagem O Glossaire bibliographique des sciences du langage de F Gobert sintomaticamente apresenta apenas uma entrada para Intuiccedilatildeo (um artigo de Jean Dubois sobre a gramaacutetica gerativa na liacutengua francesa em 1969) uma segunda entrada intitulada Intuiccedilatildeo (do locutor nativo) eacute apresentada pela definiccedilatildeo compilada e didaacutetica feita por M Yaguello em seu Catalogue des ideacutees reccedilues sur la langue em 1988 O dicionaacuterio de linguiacutestica de Jean Dubois et al publicado pela Larousse em 2001 define da mesma maneira e em poucas linhas intuiccedilatildeo e sentimento linguiacutestico como a capacidade dos sujeitos de formular julgamentos de aceitabilidade e de gramaticalidade As entradas estatildeo ausentes no Dictionnaire des sciences du langage75 de F Neveu publicado pela A Colin em 2003 Jacqueline Authier e A Meunier sublinham desde 1972 ldquoa pobreza dos conhecimentos linguiacutesticos atuais nesse domiacutenio [da intuiccedilatildeo e do sentimento linguiacutestico]rdquo (p 53)

O filoacutesofo M Devitt propotildee anaacutelises esclarecedoras sobre essa noccedilatildeo que fornecem argumentos em favor da integraccedilatildeo de saberes descrita anteriormente neste texto O autor explica que a definiccedilatildeo corrente de intuiccedilatildeo tal como eacute proposta pela gramaacutetica chomskyana (a Tese Representacional) que pode ser vantajosamente substituiacuteda por uma teoria alternativa ldquoEsta teoria trata as intuiccedilotildees linguiacutesticas como opiniotildees resultantes de investigaccedilatildeo empiacuterica comum consideradas pela teoria da maneira como todas essas opiniotildees satildeordquo (DEVITT 2006 p 485) Quando a intituiccedilatildeo do locutor nativo eacute definida como um conjunto de opiniotildees eacute isso que provoca uma mudanccedila de terreno especialmente se continua M Devitt elas embasam a

75 NT NEVEU F Dicionaacuterio das ciecircncias da linguagem Petroacutepolis Editora Vozes 2008

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intuiccedilatildeo do proacuteprio linguista ldquoEmbora as intuiccedilotildees discutidas provavelmente estejam certas as intuiccedilotildees nas quais a linguiacutestica deveria confiar satildeo aquelas dos proacuteprios linguistas pois esses uacuteltimos satildeo os mais experientesrdquo (p 494) Em uacuteltima instacircncia as intuiccedilotildees frequentemente mobilizadas pelos linguistas satildeo as suas proacuteprias intuiccedilotildees cujo aspecto espontacircneo e ingecircnuo natildeo eacute garantido uma vez que estes profissionais satildeo muito conscientes da teoria linguiacutestica

As intuiccedilotildees de falantes comuns podem parecer mais presentes do que realmente satildeo visto que os linguistas consideram as suas proacuteprias intuiccedilotildees como representativas Sem duacutevida elas muito frequentemente satildeo representativas E onde natildeo satildeo seriam se o orador comum tivesse a vantagem de uma educaccedilatildeo em linguiacutestica (DEVITT 2006 p 496)

A intuiccedilatildeo pode ser compreendida como um conjunto de atitudes Poderiacuteamos concordar com essa proposiccedilatildeo e isso nos levaria a repensar a natureza do objeto da linguiacutestica um objeto certamente subjetivo a liacutengua constituiacuteda por variantes de si mesma essas variantes natildeo sendo identificadas da mesma maneira pelos locutores Estamos longe do fantasma cientiacutefico do objeto homogecircneo ideal nem mesmo heuriacutestico e as riacutegidas distinccedilotildees habituais interno versus externo linguiacutestica versus extralinguiacutestica percepccedilatildeo versus objetivaccedilatildeo e linguistas versus natildeo-linguistas se dissolvem sendo muito mais coerente pensarmos em termos de continuum

23 Quem satildeo os natildeo-linguistas

Dessa perspectiva se coloca a delicada questatildeo da identificaccedilatildeo dos ldquonatildeo-linguistasrdquo como D Preston os designa Quem satildeo esses sujeitos Pode-se colocar num mesmo plano no que se refere ao conhecimento da liacutengua um escritor e um esportista Sim e natildeo aqui minha resposta seraacute mais escalar que binaacuteria Em vez de opor de maneira idealista os linguistas aos natildeo-linguistas me parece mais adequado colocar um continuum com esses dois polos extremos de um lado o linguista profissional isto eacute o especialista em ciecircncias da linguagem enquanto disciplina cientiacutefica e de outro o locutor comum cuja cultura e praacuteticas sociais natildeo incluem conhecimentos especiacuteficos sobre a liacutengua Entre os dois a massa de natildeo-linguistas agraves vezes mais proacutexima dos saberes cientiacuteficos (escritores corretores professores acadecircmicos de outras disciplinas como os historiadores os socioacutelogos citados anteriormente alguns jornalistas) agraves vezes longe desses mesmos saberes adotando atitudes metalinguiacutesticas menos conscientes linguisticamente que os anteriores (humoristas observadores da vida social alguns jornalistas locutores comuns) Para complicar as coisas o linguista profissional tambeacutem pode produzir comentaacuterios espontacircneos que natildeo dependem de sua atividade profissional podendo ser tambeacutem um natildeo-linguista Essa eacute uma questatildeo de posiccedilatildeo discursiva e natildeo de ontologia

Chamaremos pois de natildeo-linguista o locutor que produz discursos metalinguiacutesticos sem se fundamentar na linguiacutestica cientiacutefica Isso natildeo significa que seja desprovido de saberes culturais Proust eacute um natildeo-linguista da mesma maneira que D Debbouze mas suas anaacutelises folk linguiacutesticas de falares sociais natildeo adveacutem dos mesmos quadros culturais e de saberes Um ensaiacutesta como P Daninos por exemplo eacute um natildeo-linguista que tangencia a linguiacutestica

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mencionando diversos trabalhos em ciecircncias da linguagem (sobre o francecircs fundamental por exemplo) Nesse sentido a categoria do natildeo-linguista eacute definida de maneira mais prototiacutepica do que componencial e natildeo se confunde com categorias proacuteximas tais como ldquoorador eruditordquo ou ldquocultordquo

Abordo na sequecircncia os dados perceptivos que permitem postular a categoria do falar das classes dominantes

3 Classes sociais e identidades linguageirasNatildeo estaacute em questatildeo aqui (re)propor um paralelo redutor entre falar e classe social as

variaccedilotildees de estilo dos locutores de acordo com as situaccedilotildees sociais e suas posiccedilotildees nas relaccedilotildees estatildeo no escopo do trabalho Em vez disso trata-se de perguntar se os repertoacuterios estiliacutesticos e discursivos dos locutores natildeo estatildeo sustentados por algumas constantes estaacuteveis que seriam diretamente ligadas agrave classe social entendida como um conjunto de comportamentos de valores e de maneiras de ser que produzem pertencimento e ateacute mesmo atribuiccedilatildeo social

31 Um socioleto impensado o falar das classes dominantes

Uma lista de locutores proposta por A Rey para exemplificar os usos natildeo padratildeo nos mostra jaacute em 1972 que a marcaccedilatildeo foi concebida essencialmente como fazendo parte das classes populares ou do meio operaacuterio

Je ne vais pas au docteur je vais pas au docteur76 e com outro material lexical jrsquovais agrave lrsquopecircq ldquoagrave la pecirccherdquo77 que poderiacuteamos ficar tentados a descartar como agramaticais satildeo compatiacuteveis com os usos sociais do francecircs eles devem portanto pertencer ao sistema de liacutengua senatildeo sua gramaacutetica natildeo produziria todas as frases julgadas aceitaacuteveis pelos ldquofalantes nativosrdquo (a menos que vocecirc admita que o trabalhador de Calais o entregador de jornais normando ou a lojista de Toulouse satildeo menos ldquonativosrdquo do que o professor digamos parisiense e natildeo tem o direito de contribuir para a constituiccedilatildeo do ldquofalante idealrdquo) (REY 1972 p 13)

A questatildeo da marcaccedilatildeo da classe dos falantes natildeo pode ser colocada fora da liacutengua culta inclusive F Gadet lembra que ela eacute definida de forma negativa por exclusatildeo das formas vernaculares sem mencionar um eventual falar das classes dominantes (2003 p 80) Franccediloise Gadet tambeacutem fornece uma lista de exemplos ilustrando ldquoo alto e o baixo na escada socialrdquo incluindo quatro dados relacionados ao uso dos subjuntivos e das inversotildees ldquoNatildeo haacute nome para os exemplos de 13 a 16 explica a pesquisadora talvez isso se decirc por conta do impliacutecito a saber o ldquobom francecircsrdquo ou mesmo para alguns soacute francecircsrdquo (2003 p 10) No entanto na lista o enunciado 14 (eu natildeo gostaria que vocecirc me culpasse por esse erro) me parece bem mais

76 NT Em portuguecircs os dois enunciados satildeo traduzidos da mesma maneira Eu natildeo vou ao meacutedico Optamos por manter o exemplo em francecircs pois somente em liacutengua francesa a diferenccedila entre os dois enunciados fica evidente A primeira frase estaacute mais de acordo com a norma padratildeo de formaccedilatildeo da negaccedilatildeo em francecircs enquanto na segunda haacute supressatildeo do ne que juntamente com o pas formam a negaccedilatildeo

77 NT Algo como a variaccedilatildeo pescaacute para o verbo ldquopescarrdquo na norma padratildeo do portuguecircs

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marcado do que os outros (o 15 por exemplo nosso colaborador ele jaacute deu um passo nesse sentido)78 Marcado ou mais exatamente estigmatizado uma vez que produz o efeito de ridicularizaccedilatildeo tiacutepica dos enunciados ditos ldquoesnobesrdquo

Nancy Niedzielski (1999 p 82) retoma uma interessante hipoacutetese formulada por W Wolfram ldquoUma quarta hipoacutetese eacute baseada em uma proposta na qual Wolfram (1991) avanccedila O pesquisador sugere que quaisquer variantes de linguagem que natildeo sejam estigmatizadas sejam consideradas padratildeordquo Acontece que o falar das classes dominantes eacute amplamente estigmatizado em um corpus folk descrito anteriormente e tambeacutem no humor francecircs para mim Marie-Chantal e Anne-Sophie de la Coquillette (personagem da humorista F Foresti) natildeo falam um francecircs padratildeo D de Villepin e J DrsquoOrmesson tambeacutem natildeo

No entanto como abordar essa marcaccedilatildeo ldquodo melhorrdquo A partir do quadro integracionista proposto anteriormente e tambeacutem com base nos meacutetodos da dialetologia perceptiva escolho abordar as entradas avaliativas e perceptivas

331 Avaliaccedilotildees linguiacutesticas externas do estereoacutetipo agrave caricatura

Designo como avaliaccedilotildees linguiacutesticas externas as avaliaccedilotildees de locutores sem sentimento ou discurso de pertencimento agraves classes dominantes que estigmatizam um falar considerado como pertencente agrave alta burguesia agrave aristocracia da ldquoalta sociedaderdquo etc independentemente do vocabulaacuterio adotado Poderia ser uma avaliaccedilatildeo espontacircnea num discurso de entrevista por exemplo aquela feita por J-M Marconot (1990 p 69) em um bairro de classe meacutedia79 em Nicircmes ldquo[] um ou talvez dois que devem falar assim na ndash na burguesia certamente [] sim eu conheccedilo uma mulher que fala [] ela usa expressotildees que vocecirc acreditaria serem de Lagarde e Michard do seacuteculo XVIrdquo

Encontramos igualmente construccedilotildees ficcionais humoriacutesticas cujo diaacutelogo a seguir eacute um bom exemplo

- Apresento-lhe a senhora minha condessa troveja o Gravos que esquecendo seu traje dolorido recupera seu rosto radiante

- Meu amigo protesta a senhora parece que vocecirc ainda natildeo estudou no seu manual o capiacutetulo de apresentaccedilotildees Senatildeo vocecirc saberia que uma senhora somente deve ser apresentada a um cavalheiro quando a senhora eacute muito jovem e o cavalheiro muito velho

Sua Majestade fica corada

- Viu meu companheiro percebeu Consequentemente tenho a honra de apresentar a vocecirc Comissaacuterio San-Antonio em carne e osso com todos os seus dentes e sua pele de pecircssego

78 NT F Gadet nos exemplos que oferece afirma que em (14) haacute um imperfeito do subjuntivo e em (15) uma interrogaccedilatildeo por inversatildeo complexa GADET F La variation sociale en franccedilais Paris Ophrys 2007 p 16

79 NT A autora usa a sigla HLM para se referir ao bairro Ela significa Habitation agrave Loyer Modereacute Habitaccedilatildeo de Aluguel Moderado Optamos por traduzi-la como classe meacutedia

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Entatildeo voltando-se para mim

- Assim tenho a honra e a vantagem de fazecirc-lo impulsivamente aqui novamente entatildeo a Condessa Troussal de Trousseau amigo Como vocecirc pode perceber natildeo eacute um precircmio para reivindicar mas uma mulher de classe educada em todos os lugares Vocecirc espreitou a reaccedilatildeo da Senhora nesse momento Ah a etiqueta ela natildeo as cola em seus potes de doce eu juro a vocecirc (SAN ANTONIO 1965 p 40-41)80

Trecircs caracteriacutesticas do falar das classes dominantes satildeo propostas por F Dard por meio da personagem Beacuterurier o emprego do subjuntivo jaacute destacado por F Gadet em seus trabalhos a pronuacutencia aberta e aspirada (Mahame no lugar de Madame) e as formas pragmaacuteticas de apresentaccedilatildeo Caracteriacutesticas que podem ser encontradas no Dico francecircs-francecircs de P Vandel especificamente no capiacutetulo intitulado ldquoComo falar igual agrave Neuilly Auteuil Passyrdquo (1993 p 147 e seguintes)

Citaremos igualmente humoristas ou personagens do cinema ou do teatro S Joly (os esquetes ldquoo esnobismordquo e ldquoCanccedilatildeo esnoberdquo em La Cigale et la Joly espetaacuteculo de 1999) F Foresti e a personagem Anne-Sophie de la Coquillette (apresentada no Canal France 2) e ldquoBeacuteardquo (Beacuteatrice de Montmirail) interpretada por V Lemercier em Les Visiteurs 1 (1993)

312 Avaliaccedilotildees linguiacutesticas internas uma atividade metalinguiacutestica constante

Haacute igualmente numerosas avaliaccedilotildees internas sendo a atividade metalinguiacutestica uma das praacuteticas conversacionais das classes dominantes como bem exemplificam as entrevistas de Eacute Mension-Rigau e os corpora internos folk

O estudo de Eacute Mension-Rigau no meu entendimento se apresenta ateacute o momento como o uacutenico levantamento histoacuterico da aristocracia e da grande burguesia que leva em conta dados linguageiros Encontramos em particular nas anaacutelises do ldquoembelezamentordquo das palavras os tons de voz e da praacutetica da conversa fiada dados ineacuteditos e preciosos para os propoacutesitos deste texto

Embelezar a fala se traduz na preocupaccedilatildeo de evitar epiacutetetos mordazes palavras contundentes as palavras duras as entonaccedilotildees violentas e pelo respeito agraves conexotildees que datildeo agrave linguagem mais docilidade e maior fluidez Gritar ou rir alto satildeo consideradas atitudes muito vulgares

Nunca levante a voz natildeo importa o que aconteccedila (homem 1934) Ser comum eacute ser barulhento (mulher 1925) (MENSION-RIGAU 1994 p 202)

Em particular o historiador descreve a relaccedilatildeo que os aristocratas tecircm com o falar e sotaque regional informaccedilatildeo essa geralmente ausente nos estudos sobre os falares regionais

80 Beacuterurier protoacutetipo do homem do povo manteacutem relaccedilatildeo com a condessa Troussal du Trousseau a quem apresenta o comissaacuterio San-Antonio

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O sotaque regional reconhecidamente muito raro entre os entrevistados se apresenta menos desvalorizado do que nas famiacutelias pequeno-burguesas uma vez que provavelmente elas satildeo mais riacutegidas porque sentem a sua identidade mais fraacutegil e ldquoameaccediladardquo [] Na linguagem dos entrevistados uma relativa ruralidade agraves vezes ainda persiste de forma discreta (MENSION-RIGAU 1994 p 194)

Essa ruralidade ainda presente atualmente (as famiacutelias da aristocracia tecircm com efeito uma praacutetica de falares locais em particular o dialeto local francecircs chamado patois) eacute muito bem relatada em Le cocircteacute de Guermantes por Proust descrevendo as maneiras de falar da Senhora de Villeparisis

Senhor eu acho que vocecirc quer escrever algo sobre a Duquesa de Montmorency disse a Sra de Villeparisis ao historiador da Fronde com aquele ar rabugento que sem saber sua grande bondade foi recolhida pelos cachos mal-humorados o aborrecimento fisioloacutegico da velhice bem como a tarefa de imitar o tom quase camponecircs da velha aristocracia Eu vou te mostrar o retrato dele o original da coacutepia que estaacute no Louvre (PROUST 1954 [1920] p 240)

O pesquisador Eacute Mension-Rigau (1994 p 195)81 analisa esse fenocircmeno como ldquouma maneira mais ou menos inconsciente de exprimir seu apego ao passado sendo o conservadorismo linguiacutestico projetado como um reflexo do conservadorismo poliacutetico e socialrdquo

Essa consciecircncia metalinguiacutestica eacute encontrada tambeacutem em outros documentos do corpus folk os manuais de etiqueta da aristocracia apresentam muitas prescriccedilotildees e proibiccedilotildees foneacuteticas prosoacutedicas lexicais sintaacuteticas e pragmaacuteticas Marie-Chantal de J Chazot ornamenta seu discurso com marcas linguiacutesticas os ensaios mundanos colocam em cena personagens que sempre realizam atividades metalinguiacutesticas Trata-se de uma hipoacutetese ainda a ser verificada por meio de entrevistas mais profundas mas parece que a atividade metalinguiacutestica eacute ela proacutepria um aspecto do falar das classes dominantes

32 Alguns aspectos do falar das classes dominantesApresento aqui alguns aspectos do falar das classes dominantes a partir de descriccedilotildees da

linguiacutestica folk e de avaliaccedilotildees perceptivas (para uma descriccedilatildeo completa consultar Paveau 2008 Paveau e Rosier 2008) depois de ter mencionado duas anaacutelises gerais que confirmam a hipoacutetese do falar especiacutefico das classes dominantes

321 Descriccedilotildees globais do socioleto

No capiacutetulo que dedica aos bairros nobres no seu Dico francecircs-francecircs (1993) P Vandel propotildee uma descriccedilatildeo do falar das classes dominantes praticamente em todos os niacuteveis da anaacutelise linguiacutestica Para ele se apresentam marcados os usos relativos ao vocabulaacuterio (chatear para exasperar suar para defecar casebre para castelo os peacutes entre duas coisas para a bunda

81 Os entrevistados pronunciam por exemplo [pikoslash] e natildeo [pikoer] a palavra piqueur designando o criado que cuida do grupo em uma caccedilada

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entre duas cadeiras) a pronuacutencia dos nomes proacuteprios (Broglie La Treacutemoille Schneider e outras armadilhas culturais mundanas) a esteacutetica dos nomes (Marie-Clotilde em vez de Juanita e Pierre-Henri em vez de Robert) as convenccedilotildees pragmaacuteticas (mentiras e polidez) e a sintaxe (negaccedilatildeo completa quarta pessoa uso da condicional) P Daninos apresenta no Snobissimo (1964 p 66-67) uma amostra desses usos de sua ldquoespeleologia socialrdquo propondo o discurso de um ldquoesnobe realrdquo onde encontrariacuteamos dentre outras coisas inversotildees interrogativas marcadas (eu vejo quem estaacute entrando) empregos de giacuterias (a velha duquesa de Uzegraves que grita82) apoios conversacionais (sim vocecirc com certeza conhece vocecirc engraccedilado o que resumindo eu passo para vocecirc o resto vocecirc percebe um pouco) A mesma enumeraccedilatildeo sistemaacutetica eacute encontrada no Dictionnaire du snobisme de P Jullian e em alguns guias de boas maneiras

Contrariamente agrave ideia predominante entre os linguistas ldquoprofissionaisrdquo isto eacute que as classes dominantes finalmente apenas respeitariam o bom uso da liacutengua com uma especificidade reduzida agrave pronuacutencia83 parece todavia de acordo com os folk linguistas que marcas especiacuteficas afetam todo o sistema da liacutengua

322 Pronuacutencia e entonaccedilatildeo

A famosa pronuacutencia esnobe ou burguesa natildeo eacute um mito e eacute possiacutevel escutaacute-la nos bairros nobres ou nos endereccedilos certos para identificar essas formas Essa descriccedilatildeo folk de P Jullian (1992 p 197) corresponde agraves avaliaccedilotildees empiacutericas que um ouvido atento eacute capaz de escutar

A entonaccedilatildeo a voz dos homens eacute agraves vezes abafada ligeiramente anasalada eacute frequentemente as pessoas do Quai dacuteOrsay (exceto o ministro claro) e da Alta Sociedade Protestante ldquoParisrdquo torna-se ldquoPegraverisrdquo arrastando um pouco mas sem excesso caso contraacuterio se tornaria o ldquoPeacuterisrdquo com o ldquorrdquo pronunciado gruturalmente do ldquomenino parisienserdquo Na mulher do mundo a voz se estende desproporcionalmente ldquoadoraacuteaacutevelrdquo ou eacute colocado muito alto no nariz muito longe do natural

Tal avaliaccedilatildeo corresponde tambeacutem agrave descriccedilatildeo foneacutetica proposta por P Leacuteon et al em Les accents des Franccedilais Os trecircs sotaques (ldquovulgarrdquo ldquoesnoberdquo ldquoneutrordquo) satildeo classificados pelos autores segundo as ldquoetiquetas sociaisrdquo (popular aristocraacutetico e alta ou meacutedia burguesia) O sotaque esnobe estaacute presente assim como aquele dos ldquoantigos ricos e nobresrdquo e eacute ilustrado por um registro artificial

Registro ndeg 3

A informante eacute uma atriz Mathilde Casadesus que interpreta o papel de uma esnobe da aristocracia parisiense que estaacute visitando um de seus amigos (registro N deg LDM ndash 4024 Chant do Monde)

Apesar da natureza artificial da gravaccedilatildeo este eacute um documento identificado como uma representaccedilatildeo autecircntica do socioleto da alta burguesia parisiense O aspecto

82 NT Nesse exemplo em francecircs o verbo crier (gritar) eacute substituiacutedo pela giacuteria gueuler

83 No entanto essa interpretaccedilatildeo estaacute sujeita a questionamento como mostra a anaacutelise de A Kroch considerando que o afrouxamento da articulaccedilatildeo eacute a norma e que satildeo os grupos dominantes que o inibem (mencionado por Gadet 2003 p 52)

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caricatural natildeo estaacute aqui qualitativamente mas quantitativamente Eacute o acuacutemulo de certos fenocircmenos que daacute ao excerto seu caraacuteter especial do estilo esnobe (httpaccentsdefrancefreefr)

Os aspectos identificados satildeo os seguintes realizaccedilatildeo extrema da articulaccedilatildeo vocaacutelica e consonacircntica consoantes muito fortes e aspiradas ou ao contraacuterio fracas (o exemplo dado eacute madame que encontramos em Beacuterurier) ldquoO R eacute geralmente desvozeado ele se assemelha a um som rouco como o do jota em espanhol ou do achlaut84 alematildeo de Bachrdquo especificam os autores identificando a descriccedilatildeo balzaquiana ou proustiana do [r] aristocraacutetico As vogais satildeo alongadas (adoraacuteaacuteaacutevel como em P Jullian) ou ao contraacuterio muito breves ldquoo ritmo muito raacutepido ou muito lentordquo os acentos de insistecircncia muito numerosos e sustentados por uma forte ampliaccedilatildeo meloacutedica

323 Leacutexico e niacutevel de liacutengua

Os usos lexicais no falar das classes dominantes apresentam duas caracteriacutesticas bem distintas e reconhecidas nos corpora folk os deslizamentos semacircnticos geralmente eufemismos e empregos de giacuterias ou ditos ldquopopularesrdquo

Os exemplos de palavras com significado codificado proliferam nos ldquobons meios sociaisrdquo em todas as obras dos corpora folk e satildeo destacados por Eacute Mension-Rigau como um aspecto saliente da linguagem dos aristocratas e dos grandes burgueses Entre eles casa por exemplo assim como comenta P Daninos (1964 p 87-88)

Casa por exemplo pode ser depreciativo Um representante que coloca eletrodomeacutesticos em Seine-et-Oise ou em Seine-et-Marne iraacute perguntar ldquoVocecirc estaacute no chaleacuterdquo ou ldquoVocecirc estaacute na cidaderdquo - mas evitaraacute a palavra casa onde se faz sopa

A esse propoacutesito o ouviriacuteamos dizer Vocecirc estaacute na casa

P Vandel (1993) propotildee um mini-dicionaacuterio desses usos linguiacutesticos comunitaacuterios

A segunda caracteriacutestica eacute apresentada tanto nesses ensaios mundanos quanto nas avaliaccedilotildees metalinguiacutesticas dos locutores P Daninos (1964 p 17) descreve assim o falar burguecircs ldquodecaiacutedordquo

Natildeo quero me precipitar em generalizar mas o esnobismo se tornou mais democraacutetico Enquanto que nos graus mais baixos da escala os atrasados tentam desajeitadamente subir acreditando fazer bem e se tornar elegante no topo as pessoas chegam a decair seu vocabulaacuterio pensando fazer bem em se passar pelo povo [] Mas certas locuccedilotildees que na minha juventude teriam classificado seu homem ndash como se diz quando se trata de rebaixamento ndash agora passam completamente despercebidas [] Jaacute falei desse modo proacuteprio de algumas mulheres da alta burguesia de dizer meu homem ao falar sobre seus maridos

84 NT Fonema gutural x (a fricativa velar muda) da liacutengua alematilde

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Meu homem estaacute quase fazendo seus dezoito buracos natildeo eacute ruim Vaacute se alimentar (em Maximrsquos) tambeacutem natildeo eacute ruim quem teria imaginado isso antes da guerra Da mesma forma Tem cara de maluca que haacute trinta anos parecia muito ousada floresce na boca dos mais sagrados

O ldquodecaimento lexicalrdquo natildeo eacute um aspecto puramente linguiacutestico mas um discurso sobre pertencimento social uma vez que um socioleto se utiliza de uma marca de um outro socioleto para se constituir Natildeo eacute somente em relaccedilatildeo ao falar normativo que se marca o falar das classes dominantes mas em relaccedilatildeo ao proacuteprio falar ldquopopularrdquo em uma identificaccedilatildeo dialeacutetica complexa Eacute preciso fazer uma interpretaccedilatildeo que passa pelo imaginaacuterio social como propotildee Eacute Mension-Rigau (1994 p 227)

Na verdade eles usam como contra-referecircncia um vocabulaacuterio parcialmente inventado ndash aquele que ouvem quando vatildeo ao mercado ou em pequenas lojas ndash que eacute apenas uma parte de seu universo exterior Seu discurso alimentado por uma visatildeo simplista da sociedade de certa forma constroacutei um mundo fantaacutestico ou desaparecido confundido com a faixa mais ldquopopularrdquo do povo ndash que tambeacutem era antigamente aquela de seus dependentes ndash dos quais eacute muito faacutecil para eles se destacarem

Eacute digno de nota que o aspecto natildeo eacute simeacutetrico o falar dito ldquopopularrdquo ou os vernaculares do lado dos dominantes ou das classes menos favorecidas natildeo constroem dessa maneira apoios identitaacuterios Eacute um fenocircmeno proacuteprio sustentar a hipoacutetese de um falar das classes dominantes

324 Interaccedilotildees conversacionais

Terminamos essa pequena amostragem pelos aspectos pragmaacuteticos Enquanto a conversacionalizaccedilatildeo analisada por N Fairclough pretende fazer desaparecer as marcas de hierarquia em particular nos apelativos as formas e foacutermulas de polidez satildeo mantidas nos meios aristocraacuteticos e na grande burguesia Os manuais de boas maneiras dos uacuteltimos vinte anos natildeo repercutem mais a conversacionalizaccedilatildeo e suas prescriccedilotildees natildeo podem mais ser assimiladas a um coacutedigo social ldquopadratildeordquo Uma esposa se ldquocategorizarrdquo se endereccedilando ao seu marido com pronomes de tratamento de segunda pessoa ou obrigando os seus filhos a utilizarem esses pronomes com os seus avocircs pode parecer imaturo Natildeo eacute ldquomenos comumrdquo escreveu P Daninos no livro Snobissimo (p 87) Se essa praacutetica eacute rarefeita ela existe ainda como evidenciam certas entrevistas de Eacute Mension-Rigau e minhas proacuteprias observaccedilotildees pessoais Da mesma forma a menccedilatildeo dos apelativos tiacutetulos e funccedilotildees agora aparece como marcaccedilotildees sociais natildeo mais como um modelo universal de polidez

ConclusatildeoNo final desse capiacutetulo gostaria de formular algumas conclusotildees provisoacuterias que satildeo

na verdade proposiccedilotildees para exploraccedilotildees futuras algumas delas discutidas nos capiacutetulos seguintes

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- A assimetria das anaacutelises sobre a questatildeo dos falares sociais O exame da literatura cientiacutefica e folk mostra uma assimetria notaacutevel entre os numerosos comentaacuterios espontacircneos sobre as classes dominantes e a quase inexistecircncia de anaacutelise linguiacutestica cientiacutefica sobre um falar das classes dominantes enquanto o falar dito ldquopopularrdquo eacute objeto de mais anaacutelises cientiacuteficas que de comentaacuterios folk

- O integracionismo As informaccedilotildees provenientes de corpora folk podem ser consideradas na anaacutelise linguiacutestica pois a folk linguiacutestica possui uma validade e pode ser integrada na linguiacutestica cientiacutefica O exame do corpus folk relativo agraves classes dominantes parece sustentar essa proposiccedilatildeo

- A entrada perceptiva na dimensatildeo social da liacutengua em particular a partir das teorias e meacutetodos da dialetologia perceptiva eacute capaz de modificar o olhar dos linguistas sobre seu objeto e por conseguinte o proacuteprio objeto85

85 Agradeccedilo a Franccediloise Gadet que me permitiu enriquecer minha reflexatildeo sobre a questatildeo do socioleto das classes dominantes e tambeacutem por me oferecer preciosas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Parte II

Aplicaccedilotildees e perspectivas

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LINGUIacuteSTICA POPULAR E ENSINO DE LIacuteNGUA CATEGORIAS EM COMUM86

mdash Diga-me Zidore se eacute francecircs por que tem de se preocupar nesse momento mdash Porque pode haver guerra senhorita Beacutecassine

mdash A guerra Com quem

mdash Com todos os Boches e Bochies87

mdash Ah faz Beacutecassine

[] Rapidamente ela sobe ateacute o quarto de Yvonne lembrando que ela tem um atlas sobre a mesa Olha por muito tempo os mapas a tabela de letras do alfabeto natildeo haacute Boches nem Bochie Entretanto Melle Yvonne lhe disse que todos os povos do mundo tecircm seus nomes marcados ali Entatildeo seu rosto se ilumina e ela corre para a sala Patrotildees e trabalhadores domeacutesticos estatildeo reunidos ali muito emocionados ldquoEacute uma guerra diz Bertrand que retorna do vilarejo exibindo o cartaz da mobilizaccedilatildeo Eu parto amanhatilderdquo

mdash Eu Eu vou me alistar grita Zidore

Madame de Grand-Air chora baixinho Sua dor entristece Beacutecassine mas ela a acalma Ela caminha ateacute a patroa e sussurra em seu ouvido ldquoMadame natildeo deve ser tatildeo ruim assim Talvez haja guerra mas como eacute com gente que natildeo existe dificilmente eacute um riscordquo (CAUMERY PINCHON 1915 p 32)

A personagem Beacutecassine nos expocircs aqui brevemente uma teoria popular sobre a referecircncia se as palavras natildeo existem entatildeo tambeacutem natildeo existem as coisas um princiacutepio derivado com toda a inocecircncia sem duacutevida por parte de nossa Bretatilde do naturalismo mais maciccedilo as palavras representam diretamente coisas elas contecircm a substacircncia das coisas

A questatildeo colocada por este tipo de teoria espontacircnea natildeo eacute tanto a da sua verdade mas na perspectiva que adotamos a de sua articulaccedilatildeo com uma teoria desenvolvida cientificamente numa palavra ldquomais eruditardquo ou ldquomenos popularrdquo como quiser 1915 eacute a Grande Guerra eacute claro mas tambeacutem eacute o momento em que a linguiacutestica moderna comeccedila a mostrar que a linguagem natildeo eacute uma nomenclatura e que natildeo haacute relaccedilatildeo direta entre o signo e o referente a palavra catildeo natildeo late e visivelmente na visatildeo de mundo de Beacutecassine a palavra Bochie tambeacutem natildeo

O desenvolvimento da ciecircncia cognitiva e depois da etnometodologia fez emergir esta questatildeo da ciecircncia espontacircnea dos sujeitos questatildeo natural para um campo que lida com o desenvolvimento do conhecimento das percepccedilotildees e das representaccedilotildees dos indiviacuteduos

86 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Linguistique populaire et enseignement de la langue des cateacutegories communes Le Franccedilais aujourdrsquohui 151 Paris AFEF-Armand Colin 2005 p 95-107 Traduccedilatildeo de Samuel Ponsoni (UEMG - Unidade Passos) e Paula Camila Mesti (UNESPARANPOLL)

87 NT No artigo de origem aparece Boches e Bochie satildeo aqui traduzidos como Alematildees e Alemanha respectivamente Cabe esclarecer que Boches se trata de um termo pejorativo para alematildees germacircnicos teutos e todas as outras designaccedilotildees gentiacutelicas desse grupo etnocultural

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Gostariacuteamos de explorar este problema no campo da liacutengua francesa fazendo uma pergunta simples as categorias espontacircneas dos alunos podem ser mobilizadas no ensino da liacutengua ou devem pelo contraacuterio ser desconstruiacutedas para dar lugar a categorias aprendidas

Depois de definir o que se denomina ldquolinguiacutestica popularrdquo e sublinhar seu interesse pelo campo do ensino-aprendizagem da liacutengua tentaremos responder a essa questatildeo atraveacutes de trecircs exemplos de categorias a palavra a flexatildeo verbal e o gecircnero do discurso

A linguiacutestica popularConforme jaacute enunciamos o termo linguiacutestica popular eacute o rastro de uma seacuterie de nomes

anglo-saxotildees baseados em folk (como psicologia folk ou como teoria folk por exemplo) em que folk eacute traduzido para o francecircs e para o portuguecircs como popular espontacircneo ou ingecircnuo Podemos falar tambeacutem de linguiacutestica de senso comum e igualmente a expressatildeo linguiacutestica de leigos cuja sinalizaccedilatildeo de L Rosier (2004 p 70) aponta para um sem-nuacutemero de casos na internet ldquoPodemos [] acrescentar o que chamamos de lsquoLinguiacutestica dos leigosrsquo particularmente visiacutevel na Internet em particular no contexto dos foacuteruns de discussatildeo []rdquo

Chamamos portanto de ldquopopularrdquo o saber espontacircneo de atores sobre o mundo (depositado em proveacuterbios ou ditados por exemplo) que se distingue do saber acadecircmico ou cientiacutefico como um saber-fazer que diferencia saber cientiacutefico do ldquosaber querdquo e do senso comum Este saber espontacircneo eacute constituiacutedo por saberes empiacutericos natildeo passiacuteveis de verificaccedilatildeo loacutegica (o saber espontacircneo natildeo eacute verdadeiro nem falso falamos entatildeo de ldquoconhecimento aproximativordquo) e de crenccedilas que constituem guias para accedilatildeo as lendas urbanas ou as influecircncias da lua no crescimento das plantas satildeo crenccedilas que surgem do saber espontacircneo

As praacuteticas linguiacutesticas espontacircneasDevemos falar aqui de praacuteticas linguiacutesticas e natildeo linguageiras o termo linguiacutestica indica

que haacute uma atividade reflexiva que pode levar a resultados ldquocientiacuteficosrdquo que advecircm da ciecircncia espontacircnea enquanto linguageiro simplesmente descreve os usos que os falantes fazem da liacutengua

A terminologia linguiacutestica integrou a distinccedilatildeo feita por A Culioli entre epilinguiacutestica que designa o saber espontacircneo e inconsciente sobre a liacutengua (ldquoatividade linguiacutestica inconscienterdquo nas palavras de A Culioli) de falantes e metalinguiacutestica que designa praacuteticas reflexivas conscientes e bastante racionalizadas ldquoO verdadeiro saber linguiacutestico eacute metalinguiacutestico ou seja representado construiacutedo e manipulado como tal com a ajuda de uma metalinguagemrdquo (AUROUX 1995 p 10) No entanto devemos distinguir no campo metalinguiacutestico o que vem de uma atividade espontacircnea natildeo especializada e natildeo formalizada sobre a liacutengua daquilo que vem da construccedilatildeo de um discurso cientiacutefico sobre a liacutengua J Rey-Debove (1978 p 22) propotildee falar de ldquometalinguagem atualrdquo para o primeiro caso e de ldquometalinguagem cientiacuteficadidaacuteticardquo para o segundo

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No modo didaacutetico-cientiacutefico a metalinguagem corresponde ao discurso do linguista (linguiacutestica) e agravequilo que ele aprende ensina de uma liacutengua ou se acha interessado nela como especialista Eacute natural ou parcialmente formalizado ou simbolizado ou mesmo totalmente axiomatizado e formalizado Jaacute o modo atual corresponde ao discurso do usuaacuterio de uma liacutengua discurso muitas vezes confundido com o enunciado apresentado ao mesmo tempo de uma consciecircncia metalinguiacutestica inferior em termos de conteuacutedo e expressatildeo e uma maior liberdade uma vez que os enunciados produzidos natildeo pertencem mais ao discurso cientiacutefico sobre a liacutengua

Obtemos assim uma distinccedilatildeo tripartida que aqui manteremos atividade epilinguiacutestica metalinguagem natural e metalinguagem formalizada

Eacute notaacutevel que a linguiacutestica popular seja pouquiacutessimo desenvolvida na Franccedila enquanto na cultura anglo-saxocircnica ela integra totalmente as ldquodisciplinas folkrdquo pertencentes ao campo cientiacutefico O tomo I do livro LrsquoHistoire des ideacutees linguistiques organizado por Sylvain Auroux inicia-se com um capiacutetulo de H E Brekle intitulado ldquoA linguiacutestica popularrdquo (volkslinguistik em alematildeo traduccedilatildeo do inglecircs folk linguistics) Ele explica que em linguiacutestica o saber espontacircneo dos falantes pode ser formulado em termos de naturalidade

De maneira provisoacuteria podemos dizer que o campo da linguiacutestica popular inclui todos os enunciados que podem ser qualificados como expressotildees naturais (ou seja que natildeo vecircm dos representantes da linguiacutestica como disciplina estabelecida) designando ou referindo-se a fenocircmenos linguiacutesticos ou operando no niacutevel da metacomunicaccedilatildeo A isso devem ser adicionados os enunciados em que as qualidades foneacuteticas semacircnticas etc satildeo usadas expliacutecita ou implicitamente como unidades de uma liacutengua para produzir resultados relevantes para a regulamentaccedilatildeo do comportamento social de um indiviacuteduo ou grupo social (BREKLE 1989 p 39)

Em filigranas H E Brekle define aqui dois tipos de praacuteticas linguiacutesticas populares

- descriccedilotildees ou teorizaccedilotildees metalinguiacutesticas por exemplo aquelas relacionadas agrave designaccedilatildeo (chamar um gato de gato ou chamar as coisas pelo que seus nomes sugerem) ou na hierarquia entre o escrito e o oral (contentar-se com palavras palavras verbais as palavras se dissipam falar como um livro) A pequena teoria da referecircncia de Beacutecassine se enquadra nessa categoria

- prescriccedilotildees comportamentais que recaem em um purismo na maioria das vezes sabemos que os ldquoamantes da bela linguagemrdquo tecircm uma lista proibida de palavras feias (adveacuterbios terminados em -mente termos excessivamente teacutecnicos etc) interditas de se usar sob pena de se passar por um vulgarismo da liacutengua Tem-se entatildeo a imagem da norma da liacutengua como predominante88 Trata-se assim dos vereditos sobre a liacutengua ditos vs natildeo ditos isso se diz vs isso natildeo se diz Dessa maneira o purismo entra em uma verdadeira ldquoeconomia das trocas linguiacutesticasrdquo como sublinha L Rosier (2004 p 69)

88 Sobre as imagens dominantes da liacutengua no discurso escolar ver Paveau (1998)

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Ela eacute caracterizada por uma forte axiologizaccedilatildeo performativa (o que se diz o que natildeo se diz) que atende ao bom uso e que pretende respeitar uma economia estrita de trocas linguiacutesticas em que o falante eacute avaliado de acordo com seu domiacutenio da liacutengua sob o acircngulo da riqueza lexical e correccedilatildeo gramatical

Adicionaremos uma terceira categoria da praacutetica linguiacutestica popular as intervenccedilotildees sobre a liacutengua Sabemos que a maioria dos erros dos falantes em particular das crianccedilas natildeo o satildeo realmente em uma oacutetica linguiacutestica O tiacutetulo de uma obra de D Leeman Existem erros em francecircs89 (LEEMAN 1994) eacute emblemaacutetico dessa posiccedilatildeo que segue a tradiccedilatildeo de A Gramaacutetica das Falhas90 de H Frei (1928) nesta perspectiva aller au coiffeur e eacutemotionner91 natildeo satildeo erros mas sim intervenccedilotildees regularizadoras sobre a liacutengua Os falantes racionalizam sua liacutengua a arrumam e a organizam como um ambiente onde a ordem e a harmonia satildeo necessaacuterias

Para recapitular dissemos que a linguiacutestica popular reuacutene trecircs tipos de praacuteticas linguiacutesticas descritivas (descrevemos a atividade da linguagem) normativas (prescrevemos comportamentos linguageiros) e intervencionistas (intervimos nos usos da liacutengua)

A linguiacutestica popular eacute uma linguiacutesticaPodemos dar duas explicaccedilotildees para a ausecircncia virtual da linguiacutestica popular como campo

de pesquisa na Franccedila por um lado a veneraccedilatildeo francesa dos saberes ldquosegurosrdquo (um campo das ditas ciecircncias duras ou exatas) e o desprezo pelos saberes aproximativos (domiacutenios ditos de opiniatildeo comum ou relativizada) herdado das concepccedilotildees platocircnicas e da tradiccedilatildeo cartesiana por outro lado a ocupaccedilatildeo do que poderia ser o campo da linguiacutestica popular pelo estudo dos discursos puristas das manifestaccedilotildees da norma e das consequecircncias psicossociais das concepccedilotildees normativas (por exemplo a inseguranccedila linguiacutestica) fenocircmenos esses considerados na Franccedila como pertencente agrave sociolinguiacutestica Eacute o que J-C Beacco (2004 p 109) coordenador de uma ediccedilatildeo da revista Langages diz sobre a questatildeo das ldquorepresentaccedilotildees metalinguiacutesticas ordinaacuteriasrdquo em relaccedilatildeo aos gecircneros discursivos

[] pode-se examinar a noccedilatildeo de gecircnero discursivo pelo que originalmente eacute uma categorizaccedilatildeo ordinaacuteria intrinsecamente imprecisa mas que pode ser objetivada da comunicaccedilatildeo verbal Como tal eacute baseada em vaacuterios pontos de vista teoacutericos

1) da ldquolinguiacutestica popularrdquo (ou folk linguistics) campo da sociolinguiacutestica gecircnero discursivo eacute uma forma de representaccedilatildeo metalinguiacutestica ordinaacuteria da comunicaccedilatildeo entrando no saber comum []

89 N T o tiacutetulo da obra em liacutengua francesa Les fautes de franccedilais existent-elles

90 NT o tiacutetulo da obra em liacutengua francesa La Grammaire des Faults

91 NT por natildeo encontrar correlatos precisos na liacutengua portuguesa deixamos os exemplos em francecircs Cabe-nos entatildeo explicar que a maneira adequada de se dizer ldquoaller au coiffeurrdquo eacute ldquoaller chez le coiffeurrdquo cuja traduccedilatildeo eacute ldquoir ao cabeleireirordquo No outro exemplo temos ldquoeacutemotionnerrdquo em vez de ldquoenthousiasmerrdquo para o verbo ldquoemocionarrdquo Nesse caso explicamos que natildeo existe a palavra ldquoeacutemotionnerrdquo em francecircs apesar de existirem ldquoeacutemotionrdquo (emoccedilatildeo) e ldquoeacutemotionnelrdquo (emocional) A autora usou um terceiro exemplo ldquoapregraves qursquoil aitrdquo para o qual uma traduccedilatildeo mais adequada parece ser ldquodepois que ele temrdquo

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Nossa posiccedilatildeo eacute outra consideramos que a linguiacutestica popular deve constituir um campo da linguiacutestica porque diz respeito natildeo apenas agraves praacuteticas sociais linguageiras (no sentido da sociolinguiacutestica) mas igualmente aos procedimentos de ensino-aprendizagem de liacutengua (no sentido da didaacutetica de liacutengua e psicolinguiacutestica)92

Na verdade a linguiacutestica popular natildeo deve ser reduzida ao seu componente aproximativo descritivo ou simplesmente luacutedico A questatildeo mais interessante na folk linguistics eacute sua validade como teoria Haacute muitos trabalhos desse tipo em folk psychology (FISETTE POIRIER 2002) o que oferece vaacuterias respostas a essa pergunta O filoacutesofo D Dennett (1990) por exemplo pensa que na maioria das vezes a psicologia popular funciona e tem uma verdade praacutetica E as teorias populares da linguagem L Rosier faz uma proposta interessante a esse respeito em um trabalho que ela denomina de ldquodicionaacuterios de criacuteticas irocircnicasrdquo (os de P Merle por exemplo que apontam tiques de linguagem e de modos)

Esses ldquodicionaacuteriosrdquo tecircm a particularidade de apresentar os tipos sociais por meio de suas especificidades linguiacutesticas realizando reconhecidamente de forma caricatural um dos projetos da anaacutelise do discurso o viacutenculo entre classes sociais e as praacuteticas discursivas Eles se ldquorelacionamrdquo por estigmatizaccedilatildeo fictiacutecia e os termos e as expressotildees devem figurar como citaccedilotildees ou seja ao lecirc-los deve-se dizer a si mesmo eacute assim mesmo que ldquoelesrdquo falam (eles designa os esnobes os jornalistas os poliacuteticos os jovens os velhos os de grande valor de acordo com as subcategorizaccedilotildees sociais explicitadas pelos proacuteprios autores) (ROSIER 2003 p 63-64)

Obviamente pensamos no M Jourdain de Moliegravere em sua prosa ldquosem o saberrdquo e em muitas outras personagens literaacuterias que sem duacutevida se beneficiariam em serem analisadas em sala de aula pelo prisma sociocriacutetico dessa linguiacutestica espontacircnea Eacute portanto a questatildeo da validade da descriccedilatildeo popular que se coloca aqui do ponto de vista de uma anaacutelise do funcionamento social da linguagem

A crianccedila gramaacuteticaMas a linguiacutestica popular tambeacutem eacute e sobretudo de grande interesse no ensino-aprendizagem

da liacutengua mas com outro nome a competecircncia metalinguiacutestica

As atividades metalinguiacutesticas O estudo empiacuterico pioneiro de L Gleitman et al em 1972 mostrou que crianccedilas de dois anos

jaacute apresentam reaccedilotildees metalinguiacutesticas rudimentares satildeo pequenos gramaacuteticos O trabalho sobre o ldquometa-rdquo (comentaacuterios e manipulaccedilotildees metagraacuteficas metagramaticais metalexicais etc) tem sido amplamente desenvolvido nas pesquisas93 A atividade metalinguiacutestica do aluno

92 Eacute uma posiccedilatildeo que concorda entre outras com as de M Yaguello (1981) e de H E Brekle (1989) Mas eacute difiacutecil encontrar ao menos na Franccedila trabalhos que se relacionam diretamente com as praacuteticas linguiacutesticas espontacircneas dos locutores fora do acircmbito da aprendizagem

93 Veja alguns elementos na bibliografia com um lanccedilamento em grupo em 1994-1995 o no 9 da Repegraveres o coloacutequio da DFLM sobre metalinguagens o livro de D Leeman sobre as falhas

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eacute uma atividade de aprendizagem que ocorre na aula o que o faz produzir comentaacuterios sobre liacutengua discurso comunicaccedilatildeo e o faz utilizar procedimentos de classificaccedilatildeo nomenclatura ou argumentaccedilatildeo M Brigaudiot (1994 p 92-93) define o ldquosurpreendente comportamento reflexivordquo de jovens gramaacuteticos da seguinte forma

Definimos atividade metalinguiacutestica como o fato de um aluno se deparar com um problema linguiacutestico de entrar em um questionamento em busca de pistas de fazer provas de verificar Dizer que o problema eacute de ordem linguiacutestica eacute considerar que os objetos sobre os quais se relaciona satildeo de ordem linguiacutestica que se relacionam ao coacutedigo agrave frase ao texto ou ao discurso agrave leitura ao escrever

G Ducancel (1994) mostra que os comentaacuterios metalinguiacutesticos ligados agrave coesatildeo textual bem como aos conhecimentos metaprocessuais surgem a partir do primeiro ciclo escolar em duas formas principais

- as formulaccedilotildees e reformulaccedilotildees ldquosecasrdquo ou seja sem comentaacuterios

- a convocaccedilatildeo de uma metalinguagem para esclarecer analisar fazer comentaacuterios e dar explicaccedilotildees

Poderiacuteamos citar tambeacutem a obra de C Fabre (1990) que no campo da escrita mostrou a importacircncia da atividade metalinguiacutestica a partir do estudo dos rascunhos escolares para ela esse tal procedimento se trata de uma verdadeira entrada na escrita o que natildeo eacute pouca coisa

A partir daiacute pode ser estabelecido um contrato didaacutetico entre o professor e os alunos para a aprendizagem metalinguiacutestica No entanto uma distinccedilatildeo baacutesica deve ser feita entre atividade metalinguiacutestica espontacircnea e atividade metalinguiacutestica ldquosolicitadardquo para aprendizagem (DELAMOTTE-LEGRAND 1995) Em princiacutepio porque na praacutetica seria obviamente muito difiacutecil distinguir entre reflexotildees ldquonaturaisrdquo e ldquoartificiaisrdquo em crianccedilas

O ldquometa-rdquo reservado agraves crianccedilasEntretanto levar em consideraccedilatildeo a competecircncia metalinguiacutestica nas atividades de sala de

aula parece estar confinado ao ensino primaacuterio94 Com efeito natildeo se tem a inspiraccedilatildeo dessas praacuteticas pedagoacutegicas para professores nem as indicaccedilotildees dos programas oficiais do coleacutegio de ensino fundamental e do ensino meacutedio Nos uacuteltimos programas da faculdade apenas o ldquoo domiacutenio impliacutecito da gramaacuteticardquo aparece nas especificaccedilotildees para as praacuteticas linguageiras espontacircneas mas pode-se perguntar se a expressatildeo natildeo se deve mais agrave competecircncia linguiacutestica de um Chomsky do que agrave competecircncia metalinguiacutestica destacada pelo trabalho sobre a reflexividade das atividades linguageiras dos alunos

Sempre abordado no acircmbito da impregnaccedilatildeo das estruturas do francecircs e vinculado a diversas atividades orais e escritas a aprendizagem das ferramentas da liacutengua eacute modesta

94 Embora M Brigaudiot destaque em 1994 que as praacuteticas de ensino relacionadas agraves atividades metalinguiacutesticas das crianccedilas natildeo fazem parte da tradiccedilatildeo das escolas primaacuterias francesas

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no 6o Com base no domiacutenio impliacutecito da gramaacutetica o professor vai esclarecendo ao longo do ano alguns elementos essenciais da metalinguagem gramatical (PROGRAMA DA SEXTA SEacuteRIE 1996 p 18)

Eacute como se a competecircncia metalinguiacutestica pudesse funcionar apenas para a aquisiccedilatildeo e para a aprendizagem mas perdesse a importacircncia para aprendizagens relacionadas ao uso da liacutengua ao uso do discurso e agraves atividades de reflexatildeo criaccedilatildeo de interpretaccedilatildeo de invenccedilatildeo Deixemos o ldquometa-rdquo espontacircneo do ensino fundamental e do ensino meacutedio95 e natildeo falemos da universidade onde a categoria do popular espontacircneo ingecircnuo qualquer que seja o seu nome eacute firmemente convidada a ficar agrave porta da ciecircncia legiacutetima por exemplo qualquer reuniatildeo de respeito sobre o Curso de Linguiacutestica Geral de Saussure passaraacute por uma destruiccedilatildeo adequada da imagem da liacutengua como nomenclatura poreacutem ela eacute massivamente difundida entre os alunos servindo-lhes de saber-fazer para seu comportamento social

Sobre esse ponto a linguiacutestica se priva de ser uma poderosa alavanca para seu ensino e portanto para sua difusatildeo e manutenccedilatildeo nas ciecircncias humanas e sociais E o ensino parece ignorar um importante campo de pesquisa internacional nos uacuteltimos dez anos o das emoccedilotildees A pragmaacutetica as ciecircncias cognitivas em particular a psicologia e a neurologia mas tambeacutem a ergonomia a filosofia as ciecircncias da informaccedilatildeo e da comunicaccedilatildeo enfim todas elas realizaram pesquisas em torno do papel das emoccedilotildees no desenvolvimento e no comportamento do indiviacuteduo A psicologia cognitiva tem sido capaz de mostrar por exemplo em que medida o funcionamento da memoacuteria eacute governado pelas emoccedilotildees o que sem duacutevida tem alguma importacircncia na aquisiccedilatildeo e aprendizagem do francecircs

Algumas categorias suscetiacuteveis a um tratamento da linguiacutestica popular

A palavra uma categoria um pouco imprecisa mas operacional

A definiccedilatildeo da palavra palavra eacute um claacutessico da distinccedilatildeo entre o saber erudito e o saber popular em linguiacutestica Muito abrangente muito vaga polissecircmica e incapaz de distinguir certas segmentaccedilotildees palavra eacute geralmente proscrita por linguistas em favor de uma unidade lexical ou de acordo com o contexto de um vocaacutebulo considerado mais claro e monossecircmico Mas acontece que palavra eacute a palavra mais oacutebvia para todos os falantes independentemente da idade para designar esta unidade que eacute uma ilha graacutefica e semacircntica e suporte de representaccedilotildees mais difundidas da liacutengua para a maioria das pessoas a liacutengua estaacute associada ao leacutexico (a esse respeito ver Paveau (2000) em trabalho sobre a riqueza lexical) Isso explica porque certos linguistas levando em consideraccedilatildeo as praacuteticas espontacircneas dos falantes ou apegados a uma escrita legiacutevel de sua disciplina usam a palavra o lexicoacutelogo B Habert por exemplo chama palavra em vaacuterias palavras o que outros chamam de unidades fraseoloacutegicas ou locuccedilotildees fixas ou congeladas M Tournier sempre usou palavra no laboratoacuterio lexicomeacutetrico que dirigiu em Saint-Cloud bem como no tiacutetulo da revista que fundou Palavras as linguagens da poliacutetica96

95 NT Consultar o artigo de S Obadia sobre a categoria do registro como antiacutedoto para uma leitura de textos a partir das ldquoprimeiras reaccedilotildeesrdquo dos alunos Disponiacutevel em httpswwwcairninforevue-le-francais-aujourd-hui-2005-4-page-69htm

96 NT Em francecircs Mots les langages du politique Para saber mais sobre essa revista cientiacutefica acesse httpsjournalsopeneditionorgmots Acesso em 27 set 2020

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A terminologia gramatical de 1997 tambeacutem usa este termo na lista de noccedilotildees gerais (palavras e classes de palavras p 7) tal como nos termos sob o tiacutetulo ldquoleacutexico e semacircnticardquo (histoacuteria e construccedilatildeo de palavras famiacutelias de palavras palavras compostas palavras derivadas paacuteginas 29 e 30)

O termo palavra como ferramenta de aprendizagem ou anaacutelise eacute interessante para questionar a relevacircncia das categorias populares e acadecircmicas Os dados satildeo os seguintes

- Apesar de sua imprecisa definiccedilatildeo enfatizada em toda parte o termo palavra eacute amplamente utilizado em programas gramaacuteticas livros didaacuteticos por professores e alunos especialmente nos ensinos primaacuterio e fundamental (niacuteveis para os quais submetemos estudos e pesquisas o que natildeo eacute o caso do ensino meacutedio e menos ainda da universidade)

- A imprecisatildeo da definiccedilatildeo em questatildeo parece ser parcialmente reduzida pela elaboraccedilatildeo de um paradigma recentemente estudado por Sonia Branca e Corinne Gomila (2004) em relaccedilatildeo CP97 o qual fala de ldquometaliacutengua de transiccedilatildeordquo ou ldquotermos de transiccedilatildeordquo pedaccedilos de palavras pequenas palavras pequenas palavras iniciais outras palavras (sinocircnimos) elas indicam a funccedilatildeo de resoluccedilatildeo desses termos em particular pequenas palavras

A categoria abrangente de pequenas palavras permite que vocecirc adie a terminologia abundante para mais tarde Tambeacutem eacute usado para ldquoresolverrdquo outros problemas A unidade prevista pode portanto ser considerada pequena em comparaccedilatildeo com um todo abrangente (BRANCA GOMILA 2004 p 120)

Geralmente elas satildeo entretanto criacuteticas do uso dessa metaliacutengua de transiccedilatildeo agrave qual fazem as criacuteticas tradicionalmente dirigidas agrave categoria da palavra

Nosso ponto de vista natildeo eacute prescritivo De qualquer forma natildeo queremos denunciar a subdeterminaccedilatildeo desses termos em grande parte invisiacuteveis para aqueles que os usam ad hoc No entanto tais termos polissecircmicos encorajam um entendimento global muito vago o que dificulta a estabilizaccedilatildeo de algumas propriedades (BRANCA GOMILA 2004 p 120)

Muitas vezes encontramos a mesma posiccedilatildeo sobre a questatildeo na literatura dedicada agrave palavra e ao seu ensino-aprendizagem no coletivo liderado por M-J Beacuteguelin em 2000 a palavra eacute qualificada como uma noccedilatildeo imprecisa (p 43) poreacutem lemos nas filigranas do capiacutetulo dedicado agrave noccedilatildeo de palavra que ela eacute uma categoria popular devido agrave imprecisatildeo e agrave indeterminaccedilatildeo que carrega mas que eacute usada no ensino o que acaba servindo como soluccedilatildeo para descriccedilotildees difiacuteceis e definiccedilotildees complexas

Eacute uma pena que a eficaacutecia das categorias do senso comum natildeo seja mais profundamente questionada neste trabalho devido a uma abertura sobre a histoacuteria e sobre a epistemologia da ciecircncia Na verdade sabemos que eacute a linguagem do senso comum que permite que os

97 NT CP refere-se a um curso preparatoacuterio dos niacuteveis e das preparaccedilotildees da Eacutecole Eacuteleacutementaire francesa Le cycle 2 ou cycle des apprentissages fondamentaux comprend le cours preacuteparatoire (CP) O ciclo 2 ou ciclo das aprendizagens fundamentais compreende o curso preparatoacuterio (CP) Para saber mais acesse httpswwweducationgouvfrl-ecole-elementaire-9668 Acesso em 27 set 2020

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conhecimentos sejam fixados Sobre isso ainda E Nagel (1961) defende por exemplo a ideia de que a imprecisatildeo da liacutengua do senso comum permite que as crenccedilas persistam (por causa de ou graccedilas agrave dificuldade de controle experimental) quando o destino das teorias eacute morrer precocemente Obviamente natildeo se trata de aplicar este programa ao peacute da letra e sim de medir a eficaacutecia das praacuteticas linguiacutesticas espontacircneas em comparaccedilatildeo com as baseadas em meacutetodos cientiacuteficos

As conjugaccedilotildees fantasiosas erros de liacutengua ou soluccedilatildeo praacuteticaO erro de conjugaccedilatildeo eacute um estereoacutetipo do discurso sobre a liacutengua na Franccedila um reservatoacuterio

inesgotaacutevel de trocadilhos (Cafeacute bouillu cafeacute foutu)98 e um instrumento eficaz de discriminaccedilatildeo cultural99 Essa categoria morfoloacutegica da desinecircncia (ou terminaccedilatildeo em uma traduccedilatildeo mais tradicional e mais ldquoingenuamenterdquo descritiva) constitui-se de uma espeacutecie de lugar normativo que cristaliza a paixatildeo francesa pela liacutengua

Todos noacutes temos nosso repertoacuterio de erros de conjugaccedilatildeo desde os mais infantis (je suitais disse Ceacutesar aos quatro anos il disa disse um aluno citado por D Leeman100) aos mais literaacuterios como mostram M Savelli et al (2002) especificando que um certo nuacutemero de erros de passado simples aparecem entre os melhores autores srsquoenfuyegraverent dissolva couris mouresis eacutetranglis aperceva demandis vivegraverent101 Que essas formas satildeo defeituosas eacute indiscutiacutevel mas o que natildeo se pode fazer eacute uma interpretaccedilatildeo axioloacutegica delas e culpar os falantes por sua ignoracircncia por inferioridade linguiacutestica ou ainda pior por uma inferioridade social e impor as formas ortodoxas sem outra forma de processo

Embora os erros em francecircs existam eles tecircm uma racionalidade que o simples bom senso basta para descobrir do ponto de vista funcional natildeo haacute razatildeo para que se diga nada Entatildeo em je suitais e il disa haacute algo sobre o sistema de conjugaccedilatildeo e principalmente sobre o comportamento linguiacutestico dos desordeiros de conjugaccedilatildeo tratam-se de intervenccedilotildees sobre a liacutengua a terceira das praacuteticas linguiacutesticas populares identificadas alhures destinadas a regularizar um sistema que agraves vezes eacute muito erraacutetico O que se segue eacute muito bem explicado pela analogia com outros verbos frequentemente problemaacuteticos cuja base imperfeita termina em [t] je mens je mentais je pars je partais je suis je suitais102 (CQFD) Quanto a il disa deixemos D Leeman explicar a gecircnese da falha devido a um fenocircmeno de hipercorreccedilatildeo103

98 NT Mais uma vez optamos por usar os exemplos originais em liacutengua francesa porque a traduccedilatildeo natildeo seria suficientemente precisa para exemplificar as situaccedilotildees descritas pela autora Neste caso ldquocafeacute bouillurdquo estaacute sendo usado no lugar de ldquocafeacute bouillirdquo (cafeacute fervido) e ldquocafeacute fouturdquo no lugar de ldquocafeacute fichurdquo (cafeacute maldito) Ressaltamos que esses mesmos fenocircmenos de falha na terminaccedilatildeo de verbos irregulares e hipercorreccedilatildeo podem tambeacutem ser encontrados em liacutengua portuguesa

99 NT ldquoNatildeo diga sobretudo Eles tecircm que me acreditar ou Eles tecircm que me verrdquo (MORHANGE-BEacuteGUEacute 1995 p 12) No original Il faut qursquoils me croivent e Il faut qursquoils me voyent

100 NT Je suitais no lugar de je suis (eu sou) e il disa inveacutes de il dit (ele disse)

101 srsquoenfuyegraverent (je me suis enfui = eu fugi) dissolva (ce dissous = isto dissolveu) couris (jrsquoai couru = eu corri) mouresis (je suis mort = eu morri) eacutetranglis (jrsquoai eacutetrangle = eu estrangulei) aperceva (jrsquoai realize = eu percebi) demandis (jrsquoai demandeacute = eu perguntei) vivegraverent (ils veacutecurent = eles viveram)

102 NT Para que seja possiacutevel a comparaccedilatildeo trazemos aqui a traduccedilatildeo dos pares de verbos je mens (eu minto) je mentais (eu menti) je pars (eu saio) je partais (eu saiacute) je suis (eu sou) je suitais (natildeo existe deveria ser jrsquoeacutetais)

103 A hipercorreccedilatildeo eacute uma ldquobusca de atitude social de prestiacutegiordquo marcada pelo ldquoexcesso na aplicaccedilatildeo de uma regrardquo (GADET 2003 p 125) e que implica por parte do falante que ele estaacute ciente de uma caracteriacutestica de sua liacutengua (frequentemente foneacutetica) percebida de forma positiva socialmente e igualmente percebida em relaccedilatildeo a outras de forma negativa pela comunidade linguiacutestica na qual ele estaacute inserido A hipercorreccedilatildeo eacute entatildeo uma reconstruccedilatildeo defeituosa de uma forma de aparecircncia correta

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A forma il dit eacute comum no presente e no passado simples daiacute o constrangimento que pode suscitar uma histoacuteria como ldquoIl prit son manteau se coiffa drsquoun beacuteret et se preacutecipita vers la porte Avant de sortir il ditrdquo104 O revisor natildeo vai acreditar que estamos usando um presente incorretamente O aluno que escreve il disa pode sentir a necessidade de empregar uma forma claramente marcada para compensar a ambiguidade na liacutengua (LEEMAN-BOUIX 1994 p 125)

Poderiacuteamos multiplicar os exemplos e sua explicaccedilatildeo racional cujas anaacutelises podem ser encontradas em Meleuc e Fauchart (1999) e David e Laborde-Milaa (2002) por exemplo

Lembremos que este tipo de intervenccedilatildeo sobre uma categoria morfoloacutegica aparentemente muito ldquocientiacuteficardquo estabelecida (nada mais semelhante de fato ao conhecimento ldquodurordquo das ciecircncias exatas do que as tabelas de conjugaccedilatildeo105 constitui uma tentativa espontacircnea de regularizaccedilatildeo do sistema o falante entatildeo adota um comportamento linguiacutestico que lhe permite evitar o embaraccedilo psicoloacutegico e o esforccedilo cognitivo da irregularidade e ao mesmo tempo facilita seu registro de memoacuteria porque a memoacuteria semacircntica estaacute aqui diretamente relacionada e essas intervenccedilotildees espontacircneas devem ser consideradas como tentativas de gerenciamento da memoacuteria Por isso levar em consideraccedilatildeo as operaccedilotildees linguiacutesticas espontacircneas dos alunos na aprendizagem de liacutenguas eacute de certo interesse desde que os professores recebam uma formaccedilatildeo adequada ldquoAs anaacutelises [dos dados escritos e orais] e as hipoacuteteses evocadas nas regularizaccedilotildees poderiam servir de reflexatildeo para um ensino no qual seria sem duacutevida necessaacuterio repensar o que eacute regra e o que eacute memoacuteriardquo (SAVELLI et al 2002 p 47)

O gecircnero de discurso uma categorizaccedilatildeo impossiacutevelSabemos que o conceito de gecircnero estaacute muito presente nos uacuteltimos curriacuteculos das

faculdades e do ensino meacutedio e portanto nos livros didaacuteticos e nas atividades de ensino Isso ocorre porque a categoria de gecircnero eacute antiga e haacute muito tempo teorizada e debatida eacute tambeacutem porque as ciecircncias da linguagem se apoderaram da noccedilatildeo haacute cerca de quinze anos produzindo muitas reflexotildees sobre os modos de categorizaccedilatildeo de textos e discursos fenocircmenos cujos rastros podem ser percebidos nos programas que se baseiam na articulaccedilatildeo entre gecircneros de texto e formas de discurso106 Precisamente o gecircnero de texto se refere antes

104 NT Para mantermos os exemplos em francecircs trazemos nessa nota a traduccedilatildeo ldquoPegou o casaco colocou uma boina e correu para a porta Antes de sair ele dissehelliprdquo

105 Serge Meleuc (2002 p 49) oferece uma interpretaccedilatildeo da tabela de conjugaccedilatildeo para a aprendizagem ldquo[] o que eacute apenas uma forma de apresentaccedilatildeo tende a transbordar seu espaccedilo legiacutetimo e a se transformar em uma espeacutecie de modelo obrigatoacuterio da proacutepria praacutetica de ensino-aprendizagem do verbo rdquo

106 Acompanhamento da aula 6 (1996) ldquoA abordagem dos gecircneros textuais estaacute vinculada agraves formas de discurso os gecircneros satildeo realidades histoacutericas e culturais que codificam as praacuteticas discursivas Se a noccedilatildeo eacute complexa e muitas vezes difusa o gecircnero eacute facilmente identificaacutevel pela presenccedila dos dominantes discursivos o romance o conto a novela por exemplo satildeo caracterizados pela narrativa dominante (possivelmente com importantes elementos de descriccedilatildeo) Portanto eacute loacutegico associar os primeiros elementos de seu estudo ao das formas de discurso Natildeo podemos limitar a questatildeo dos gecircneros a dos gecircneros literaacuterios aleacutem desses coacutedigos particulares eles governam toda sorte de tipos de textos A carta eacute um gecircnero literaacuterio mas eacute tambeacutem uma forma de produccedilatildeo textual da vida cotidiana O diaacutelogo eacute um gecircnero ao mesmo tempo literaacuterio e algo que natildeo poderia ser mais banal a cada dia A histoacuteria eacute romacircntica mas tambeacutem eacute notiacutecia do tipo fait-divers etc Os gecircneros satildeo portanto descobertos pelos alunos e analisados a partir de toda sorte de textos de todos os gecircneros antigos e contemporacircneos em conexatildeo com as formas discursivas estudadas Temos portanto a preocupaccedilatildeo durante os estudos universitaacuterios de perceber claramente as semelhanccedilas e diferenccedilas entre os gecircneros em geral e os gecircneros literaacuterios em particular

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agrave categorizaccedilatildeo dos gecircneros literaacuterios (sem se limitar a isso) e forma de discurso se refere ao que a gramaacutetica do texto chamou de tipos ou protoacutetipos (narraccedilatildeo descriccedilatildeo explicaccedilatildeo etc) e ao que Mikhail Bakhtin iniciou em 1929 (em Marxismo e Filosofia da Linguagem) com o nome de gecircnero do discurso Posteriormente esse autor nos mostra em Esteacutetica da Criaccedilatildeo Verbal (1979) que os falantes possuem um repertoacuterio espontacircneo de gecircneros desenvolvidos em interaccedilotildees orais e denominados ldquogecircneros primaacuteriosrdquo ou ldquotipos elementaresrdquo Essas satildeo formas estaacuteveis107 que se reconfiguram e se combinam nos gecircneros de discurso conhecidos como ldquogecircneros secundaacuteriosrdquo ou ldquotipos secundaacuteriosrdquo presentes nas produccedilotildees construiacutedas dos falantes por exemplo em textos escritos em particular os textos literaacuterios

Isso significa que a categorizaccedilatildeo de gecircnero eacute uma atividade espontacircnea que pode ser tratada pela linguiacutestica popular Com efeito a simples observaccedilatildeo das classificaccedilotildees espontacircneas dos falantes verdadeira praacutetica cultural e social mostra que eles participam ativamente das versotildees do mundo construiacutedas pelo discurso Citemos por exemplo os gecircneros de cinema que participam da identidade dos filmes (talvez mais do que o gecircnero do discurso participa da identidade das produccedilotildees verbais) e que ao influenciar a escolha dos espectadores cumprem verdadeiramente uma funccedilatildeo de organizaccedilatildeo de mundo como aponta C Kerbrat-Orecchioni (2003 on-line)

Classificamos os textos mas tambeacutem os filmes (Lyon-Poche admite por exemplo as seguintes categorias ldquocomeacutediardquo ldquocomeacutedia dramaacuteticardquo ldquocomeacutedia de accedilatildeordquo ldquocomeacutedia policialrdquo ldquothrillerrdquo ldquopsicodeacutelicordquo ldquoaventurardquo ldquosuspenserdquo ldquodramardquo ldquodrama psiacutequicordquo ldquoaventurardquo ldquolendardquo ldquocrocircnicardquo ldquoguerrardquo ldquodocumentaacuteriordquo ldquoretratordquo ldquoeroacuteticordquo ldquofantaacutesticordquo ldquoterrorrdquo ldquoficccedilatildeo cientiacuteficardquo ldquocartoonrdquo etc) Poreacutem se a classificaccedilatildeo do gecircnero tem uma vida dura eacute porque deve ter uma certa relevacircncia para os usuaacuterios dessas revistas e devem desempenhar um papel mais ou menos determinante na escolha do filme a que se refere e que estatildeo se preparando para ver

Em conclusatildeo parece-nos portanto razoaacutevel pleitear com vistas a uma efetiva aprendizagem dos gecircneros do discurso (ou gecircneros de textos e formas de discurso de acordo com os programas) uma abordagem relativa ao que J-C Beacco (2004 p 111) denomina uma ldquociecircncia selvagemrdquo da linguagem

Os gecircneros discursivos constituem a forma imediata em que a liacutengua eacute dominada pelos falantes eles satildeo capazes de usaacute-los e identificaacute-los Para os falantes o proacuteprio material discursivo eacute um objeto de referecircncia Essa capacidade de os falantes categorizarem o discurso decorre de uma elaboraccedilatildeo metalinguiacutestica comum da qual os uacutenicos elementos emergentes satildeo os nomes dos gecircneros Todos os nomes de gecircneros natildeo procedem dessa atividade ordinaacuteria de categorizaccedilatildeo mas a noccedilatildeo de gecircnero do discurso parece pertencer a essa atividade classificatoacuteria antes de qualquer classificaccedilatildeo cientiacutefica Dessa ldquociecircncia selvagemrdquo da linguagem a temos como prova de que a noccedilatildeo de gecircnero eacute desenvolvida e ativa desde o alvorecer da reflexatildeo linguiacutestica

107 NT No original ldquoce sont des formes stablesrdquo

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A LIacuteNGUA SEM CLASSES DA GRAMAacuteTICA ESCOLAR108

Sabemos que uma das especificidades da Franccedila na sua relaccedilatildeo com a liacutengua eacute o sentimento de unidade a liacutengua francesa una e indivisiacutevel como a Naccedilatildeo ndash eis uma representaccedilatildeo que parece resistir a todas as misturas a todas as multiculturalidades e a todos os cruzamentos raciais e no niacutevel estritamente linguiacutestico a todas as variaccedilotildees e as mudanccedilas O francecircs padratildeo ou a representaccedilatildeo que dele se constroacutei eacute na verdade a base de todo o ensino do maternal agrave universidade mas tambeacutem da maior parte dos trabalhos dos pesquisadores em linguiacutestica francesa Sozinho - ou mais ou menos sozinho - o campo da sociolinguiacutestica enfrenta a difiacutecil questatildeo da variaccedilatildeo difiacutecil do ponto de vista metodoloacutegico (coleta de dados identificaccedilatildeo das variantes) e do ponto de vista cientiacutefico (como dar conta sinteticamente do funcionamento do sistema da liacutengua a partir de dados heterogecircneos)

Esta representaccedilatildeo unitaacuteria tem obviamente uma funccedilatildeo social importante que natildeo deve ser questionada por razotildees praacuteticas e tambeacutem didaacuteticas sociais e ateacute ideoloacutegicas eacute realmente o francecircs padratildeo que deve ser ensinado na escola Mas seraacute que isso implica que nada deve ser dito sobre a variaccedilatildeo social em particular e que deve ser silenciado o fato de que na liacutengua como em outras situaccedilotildees existem fenocircmenos de classe Que existe um francecircs popular e um francecircs das classes dominantes Que as redes sociais (MILROY 1987 GADET 2007) os grupos e as comunidades que cruzam as classes de maneira complexa sem apagaacute-las tambeacutem se definem por suas formas de falar fortemente marcadas por determinismos sociais

Eacute esta questatildeo da variaccedilatildeo social no sentido mais classista do termo109 que gostaria de abordar aqui comparando as gramaacuteticas escolares com base nos saberes linguiacutesticos chamados ldquoacadecircmicosrdquo e nos saberes da gramaacutetica espontacircnea ou gramaacutetica popular (folk gramar como dizem os anglo-saxotildees) que adveacutem da linguiacutestica popular (folk linguistics) altamente desenvolvida nos Estados Unidos (BREKLE 1989 PRESTON NIEDZIELSKI 2000) mas apenas em sua infacircncia na Franccedila (PAVEAU 2005 2007 2008 PAVEAU ROSIER 2008) que integra totalmente o paracircmetro classista

Para onde foram as classes sociaisNatildeo poderemos deixar de enfatizar o bastante que as categorias adotadas pelas linguiacutesticas

empiacutericas e sociais natildeo satildeo imanentes mas diretamente alimentadas pela histoacuteria das ciecircncias e das ideologias Isso eacute particularmente verdadeiro para o conceito de classe social que foi quase eliminado do discurso das ciecircncias sociais como mostra R Pfefferkorn em um trabalho recente que retoma a noccedilatildeo marxista de relaccedilatildeo social (2007)

108 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A La langue sans classes de la grammaire scolaire Le franccedilais aujourdrsquohui 162 J David M- M Bertucci (org) Descriptions de la langue et enseignement 2008 p 29-40 Traduccedilatildeo de Mocircnica Magalhatildees Cavalcante (UFC) e Maria de Faacutetima Sopas Rocha (UFMA)

109 Eu uso o termo classista no sentido de ldquosocial com estratificaccedilatildeo em classesrdquo

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Classes sem classeNas ciecircncias sociais e consequentemente na sociolinguiacutestica o termo classe foi substituiacutedo

pelos de posiccedilatildeo e rede Em La variation sociale en franccedilais (2ordf ediccedilatildeo 2007) Gadet evita o termo e fala de ldquolocutores favorecidosrdquo e ldquodesfavorecidosrdquo mencionando ldquoo topo e a base da escala socialrdquo e usando o termo posiccedilatildeo social Ela ressalta que a classe (operaacuteria meacutedia alta) como ferramenta de anaacutelise eacute muito formal e redutora e explica que a sociolinguiacutestica em vez disso explora a noccedilatildeo de rede dando o exemplo da ldquorede de trabalhadoresrdquo tal como eacute analisada por exemplo por Milroy (1987) Os sociolinguistas falam sem problema de variaccedilatildeo diastraacutetica110 um termo teacutecnico que desfaz a dimensatildeo ideoloacutegica ou mesmo poliacutetica de classe

Mas ao mesmo tempo o termo classe social persiste e encontramos por exemplo classe trabalhadora classe meacutedia e classe alta na apresentaccedilatildeo do uso do ne (natildeo) de negaccedilatildeo para Gadet (2007) Entatildeo classe ou rede Como observa Pfefferkorn (2007) o desaparecimento da noccedilatildeo pode ter sido mais um escamoteamento ideoloacutegico do que uma necessidade cientiacutefica real e seu retorno aos trabalhos dos jovens socioacutelogos atuais sobre as desigualdades sociais que propotildeem um novo questionamento do aparelho teoacuterico marxista tenderia a provaacute-lo111

Seja como for quer sob a forma de classe de rede de comunidade ou de grupo de pares a estratificaccedilatildeo social da linguagem dificilmente aparece na gramaacutetica escolar o que constitui ao mesmo tempo um fato oacutebvio jaacute que estamos muito acostumados com a unidade legiacutetima do padratildeo e com uma inacreditaacutevel separaccedilatildeo entre a liacutengua aprendida e a liacutengua falada quer seja a dos alunos quer seja a de seus professores112

ldquoRicos e pobres de linguagemrdquoEacute um princiacutepio antigo que a escola natildeo deve ficar ligada agrave vida comum e que a linguagem

da escola natildeo eacute a da experiecircncia ordinaacuteria e natildeo eacute o caso de colocar isso em questatildeo natildeo eu natildeo ensino meus alunos em francecircs falado comum e meus colegas do ensino fundamental ou do ensino meacutedio tambeacutem natildeo Sim as manipulaccedilotildees da linguagem e a aprendizagem lexical e sintaacutetica realizada na escola natildeo tecircm como objetivo ldquoservirrdquo diretamente ao cotidiano mas sim construir uma base de saber linguageiro com a qual o aluno possa jogar no sentido teacutecnico do termo na sua praacutetica da liacutengua A divertida sessatildeo sobre o subjuntivo imperfeito pusse113 do filme Entre les Murs de L Cantet (Palma de Ouro em Cannes em 2008) bem o diz mas o que vocecirc quer que eu faccedila com ldquopusserdquo ndash disse uma aluna em siacutentese vocecirc me vecirc

110 A tipologia usual de variaccedilatildeo em sociolinguiacutestica inclui cinco criteacuterios diacrocircnico (de acordo com a eacutepoca) diastraacutetico (de acordo com as classes ou as redes sociais) diafaacutesico (de acordo com as situaccedilotildees de interlocuccedilatildeo eacute aqui que se situam os niacuteveis de linguagem) diatoacutepico (de acordo com as aacutereas geograacuteficas os dialetos por exemplo) e diameacutesicos (de acordo com a escolha do canal oral ou escrito)

111 Falamos muito em linguiacutestica nas aulas ateacute os anos 1980 por exemplo para Rey (1972) Gardin e Marcellesi (1974) Franccedilois (1983) e para Bourdieu evidentemente cujo artigo laquo Vous avez dit populaire raquo de 1983 publicado recentemente em Langage et pouvoir symbolique eacute frequentemente citado em obras contemporacircneas (2001) Para uma anaacutelise detalhada desta questatildeo e para uma comparaccedilatildeo com o emprego das noccedilotildees de classe de dialeto social ou dialeto de classe na sociolinguiacutestica americana ver Paveau (2008)

112 Os trabalhos e as reflexotildees sobre o ensino-aprendizagem da liacutengua na sua maioria apenas mencionam a liacutengua falada pelos alunos e haacute muito que me pergunto o que seria de seus professores que ao contraacuterio do que pensam os autores dos livros didaacuteticos e dos programas nem todos falam como Voltaire ou mesmo como Duras

113 NT O imperfeito do subjuntivo natildeo eacute mais usado na liacutengua francesa atual eacute defendido apenas pelos puristas que ateacute criam associaccedilotildees de seus defensores

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dizendo para minha matildee ldquoque je pusserdquo Natildeo obviamente pusse seraacute usado para outra coisa por exemplo para se apropriar do sistema da liacutengua

Mas parece-me que se deve fazer algo a respeito dessa questatildeo eminentemente social (classista) na minha casa diz a aluna natildeo soacute natildeo falamos pusse como nunca ouvimos falar estaacute fora da minha experiecircncia Ela eacute desinibida mas natildeo eacute o caso dos entrevistados de Marconot habitantes da ZUP ao norte de Nicircmes

bull bem todos noacutes falamos mal de qualquer maneira [] o verdadeiro francecircs natildeo haacute mais quem o fale hein

bull natildeo eacute uma liacutengua muito rebuscada [] digamos que as pessoas satildeo garotos ndash que vecircm da classe trabalhadora ou de outra bom bem ndash isso

bull o operaacuterio por si mesmo natildeo tem que ndash falar corretamente ah basta que ele se faccedila compreender

bull pessoas de origem muito muito popular [] que falam francecircs como ndash como eu diria ndash bem como como falam os proletaacuterios eh agraves vezes uma linguagem muito pouco trabalhada [] expressotildees grosseiras [] uma linguagem um pouco rude ( MARCONOT 1990 p 69)

Existem portanto ldquopobres e ricos de linguagemrdquo como diz Bentolila (2001 Rapport sur lrsquoillettrisme on-line) em seu leacutexico um tanto espetacular que atende a uma argumentaccedilatildeo a qual natildeo eacute a minha aqui

Os lsquoricos de linguagemrsquo se aviltam linguisticamente sem risco e com a melhor consciecircncia do mundo Mas seraacute que aqueles cujo vocabulaacuterio eacute limitado e impreciso tecircm mesmo um real poder linguiacutestico Natildeo eles satildeo os lsquopobres da linguagemrsquo condenados a se comunicar apenas no imediato e nas proximidades

Mostrarei mais adiante sem muita dificuldade visto que o assunto eacute tatildeo visiacutevel a olho nu que esses dados sociais classistas natildeo aparecem na gramaacutetica escolar nem aliaacutes na maioria das vezes na gramaacutetica universitaacuteria exceto como opccedilatildeo variacionista declarada

A dimensatildeo social em corpus escolar e em corpus popularA situaccedilatildeo sobre a qual eu proponho refletir eacute a seguinte

- nas classes encontram-se misturadas (em um ideal de mistura social) ou reunidas (na realidade das EPZs e dos estabelecimentos de ldquobairros difiacuteceisrdquo) competecircncias linguageiras socialmente desiguais em que se encontram (ou natildeo) ricos e pobres da linguagem burgueses e proletaacuterios do leacutexico priacutencipes e operaacuterios da ortografia

- na gramaacutetica escolar e nos programas que a determinam apenas a norma padratildeo estaacute presente com base em uma liacutengua ldquodesclassificadardquo ldquodessocializadardquo conforme o indica a observaccedilatildeo das gramaacuteticas contemporacircneas do ensino fundamental e do meacutedio ou

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o conteuacutedo dos novos programas de 2008114 Mesmo que os programas incorporem a dimensatildeo enunciativa ou proponham uma gramaacutetica fraacutestica mais tradicional a ausecircncia da variaccedilatildeo social eacute de fato a mesma

Sem questionar mais uma vez a funcionalidade do ensino da norma parece-me importante compreender os desafios e as consequecircncias do ensino de uma liacutengua agraves vezes pouco relacionado agraves praacuteticas correntes dos alunos e refletir sobre a integraccedilatildeo da dimensatildeo social da liacutengua no ensino Essa reflexatildeo tem sido liderada haacute muito tempo pela linguiacutestica popular que pode fornecer aos professores estruturas para construir praacuteticas pedagoacutegicas que incluam a variaccedilatildeo

A linguiacutestica popular corpus e dados115

A linguiacutestica popular eacute uma linguiacutestica praticada por natildeo-linguistas ou seja por locutores que natildeo adotam uma visatildeo cientiacutefica da liacutengua116 As anaacutelises do popular consistem em descriccedilotildees linguiacutesticas profanas (em relaccedilatildeo ao fenocircmeno da designaccedilatildeo e da relaccedilatildeo entre a liacutengua e o mundo agrave hierarquia entre escrito e oral agrave conformidade agraves regras da liacutengua etc) muitas vezes consistem em prescriccedilotildees comportamentais frequentemente normativas ou ateacute puristas (dizer vs natildeo dizer) e em intervenccedilotildees na liacutengua por intermeacutedio de usos defeituosos ou de neologismos que se tornam normas porque oferecem soluccedilotildees para dificuldades linguageiras (por exemplo verbos terminados em ndashtionner) Dentre essas praacuteticas a classificaccedilatildeo social eacute muito presente tipologia das palavras ldquovulgaresrdquo ou ldquoelegantesrdquo proibiccedilotildees lexicais ou sintaacuteticas condenando o ldquopopularrdquo declaraccedilotildees irocircnicas de expressotildees ldquoesnobesrdquo ou pronuacutencias abertas que identificam as classes dominantes

A partir de 1983 em um artigo muito famoso e frequentemente citado ldquoVocecirc disse popularrdquo Bourdieu (2001 p 137) clamava por uma ldquociecircncia rigorosa da sociolinguiacutestica espontacircneardquo que fazia eco aliaacutes agrave ldquoestiliacutestica espontacircneardquo que ele mencionava em Ce que parler veut dire em 1981 Essa sociolinguiacutestica espontacircnea eacute a linguiacutestica popular em suas dimensotildees sociais que se desenvolve em muacuteltiplos lugares de fala em conversas orais espontacircneas eacute claro mas tambeacutem nos muacuteltiplos blogs e foacuteruns sobre a liacutengua francesa (bem como em outras liacutenguas) nos guias de boas maneiras nas obras normativas e puristas sobre o bom francecircs aquelas que vecircm da ldquoalma francesardquo constituindo o conjunto uma verdadeira histoacuteria dos costumes linguageiros franceses

O ponto em comum dos elementos desse corpus eacute que eles oferecem comentaacuterios metalinguiacutesticos que colocam em jogo a subjetividade dos falantes Trecircs categorias de dados subjetivos estatildeo envolvidas as intuiccedilotildees as percepccedilotildees e os sentimentos linguiacutesticos Essas categorias de observaccedilatildeo permitem aos natildeo-linguistas construir observaacuteveis entre os quais escolhi examinar aqui as normas sociais da linguagem (correto vs incorreto) os marcadores

114 O corpus do estudo eacute apresentado no final do capiacutetulo As gramaacuteticas satildeo mencionadas por siglas no texto

115 Como a traduccedilatildeo do termo popular apresenta problemas de polissemia integrei o termo inglecircs ao francecircs e falo a partir de agora de linguiacutestica folk ou de gramaacutetica folk (PAVEAU 2008)

116 Para uma definiccedilatildeo detalhada consulte Brekle (1989) nosso artigo no n 151 de Franccedilais aujourdrsquohui (PAVEAU 2005) e para vaacuterios exemplos de todos os niacuteveis de anaacutelise linguiacutestica ver Paveau e Rosier (2008)

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sociais da linguagem (as categorias ldquopopularrdquo ldquoburguecircsrdquoldquoesnoberdquo etc concernentes agraves ldquoclassesrdquo mas tambeacutem agraves redes sociais ndash jovens comunidades profissionais geograacuteficas sociogeograacuteficas) e enfim as vozessocialmente descritas por acentos timbres e tipos de articulaccedilatildeo O meacutetodo eacute comparativo observo o que o corpus escolar e o que o corpus popular dizem sobre esses trecircs fenocircmenos linguageiros

A norma social a evidecircncia do francecircs padratildeoToda a complexidade e o interesse pela questatildeo da norma linguageira eacute por sua duplicidade

ou seja o conjunto de relaccedilotildees por vezes muito complexas que existem entre a norma social e a norma linguiacutestica Nas gramaacuteticas escolares consultadas natildeo haacute problema deste tipo a questatildeo da norma nunca eacute posta e a norma eacute pro(im)posta sem questionamento sem reflexatildeo sobre o erro e ateacute sem exerciacutecios a partir dos erros ldquoO ensino da gramaacutetica tem por finalidade favorecer a compreensatildeo dos textos lidos e ouvidos melhorar a expressatildeo de forma a garantir a justeza a correccedilatildeo sintaacutetica e ortograacuteficardquo informam os novos programas do ensino fundamental para CE2 e CM (p 14) Sim mas de que correccedilatildeo se trata A variaccedilatildeo social natildeo eacute mencionada e a giacuteria por exemplo que poderia fornecer recursos interessantes para a manipulaccedilatildeo da linguagem estaacute ausente ldquoA escola natildeo questiona o significado que o padratildeo tem para a crianccedila dando por certo que ela deseja adquiri-lo sem dizer por que eacute desejaacutevelrdquo (GADET 2007 p 105)117

Esse aspecto desejaacutevel do padratildeo e do correto por outro lado encontramos jaacute abundantemente descrito no corpus popular falar corretamente eacute desejaacutevel porque eacute falar como os que tecircm poder eacute dominar os coacutedigos sociais e ganhar poder ou conquistar um lugar na sociedade Todos os guias de etiqueta e todas as obras sobre o bom francecircs contecircm esse discurso mesmo que seja prescritivo e por vezes severamente conservador (Le Bon franccedilais de M Druon publicado em 1999 eacute um bom exemplo) O padratildeo eacute motivado por eles Isso pode ser visto por exemplo nestes comentaacuterios sobre o excesso de acentos circunflexos encontrados no site httplangue-frnet (ortografia preservada)

Tirem o chapeacuteu

Eacute o que se chama ldquoerro por hipercorreccedilatildeordquo exagerando vocecirc acrescenta acentos circunflexos onde natildeo deveria

TF1 gosta do circunflexo

- O nobre AmphigouriX (21 Pradaria do ano CCVIII 9 de junho de 2000 dc-dcg)

- Visto em Pernaut-13h [NDEacute telejornal da primeira emissora nacional francesa] uma jovem se preparando para a opccedilatildeo ldquobascardquo no bacharelado seu nome no subtiacutetulo seguido de future bacirccheliegravere Schtroumpf dizia ldquoVocecirc vecirc como as pessoas amam o circunflexo eles o colocam em todo lugarrdquo

117 Natildeo tenho espaccedilo para desenvolver este ponto mas como abordar a multiplicidade de textos literaacuterios franceses muitas vezes perfeitamente canocircnicos que encenam falares populares ou socialmente marcados sem introduzir em um momento ou outro da aprendizagem linguiacutestica a ideia de uma marcaccedilatildeo social da liacutengua

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- Maximilien (9-6-2000) ndash Eacute para ser mais seacuterio E funciona parece mais seacuterio Bem agrave primeira vista jaacute que de fato parece mais negligenciado que outra coisa

- Schtroumpfix (9-6-2000) ndash Bachotage et rabacircchage satildeo os dois seios do futuro bacharelado

- Cleacutement-Noeumll Douady (10-6-2000) ndash Previacuteamos que ela ia perder o bacharelado e entrar em uma faacutebrica de produzir lonas (nova moda boina basca em lona)

Mas o que eacute interessante eacute que o natildeo padratildeo o vernacular ou a giacuteria tambeacutem o satildeo a tradiccedilatildeo purista sempre ambiacutegua abre espaccedilo para a lsquotruculecircnciardquo da giacuteria para o prazer de xingar para o gozo da fala vulgar (PAVEAU ROSIER 2008 cap 8) Trata-se de uma visatildeo de liacutengua obviamente menos cientiacutefica mas muito mais rica a meu ver do que a das gramaacuteticas escolares

O risco imediato dessa constataccedilatildeo eacute alimentar os ensinos subjetivos esteacuteticos e natildeo ldquocientiacuteficosrdquo e ir na direccedilatildeo das propostas governamentais francesas dos uacuteltimos anos que reorientam a aprendizagem de liacutenguas para um normativismo tradicional mais apreciativo do que objetivo (Relatoacuterio de Gramaacutetica de 2006 programa de ensino fundamental 2008 programa de faculdade em consulta 2008) Embora o termo tradicional precise ser ressignificado os velhos Soucheacute e Grunenwald de minha infacircncia ndash para falar o dialeto orsenniano ndash propunha uma coluna de exerciacutecios irregulares intitulada ldquoBom usordquo Tinha por exemplo um exerciacutecio na forma de ldquonatildeo diga vs digardquo sobre o emprego do auxiliar avoir ou ecirctre (1961 p 61) No entanto esta questatildeo eacute estritamente social e histoacuterica como mostra C Blanche-Benveniste em um trabalho intitulado ldquoJrsquoai descendu dans mon jardinrdquo em que descobrimos que Littreacute admitia perfeitamente ldquojrsquoai resteacute un an agrave Grenoblerdquo credenciando assim o francecircs falado conhecido como ldquoerradordquo pelos trabalhadores da faacutebrica da Opel (BLANCHE-BENVENISTE 2003 p 319) Assim a norma mudou e o social influenciou a proacutepria sintaxe tantas vezes apresentada como uma estrutura intangiacutevel Uma excelente oportunidade a meu ver para integrar o diastraacutetico e o diacrocircnico no ensino-aprendizagem do francecircs com todas as adaptaccedilotildees necessaacuterias ao niacutevel dos alunos

A honestidade cientiacutefica nos obriga a tomar posiccedilotildees matizadas e difiacuteceis a questatildeo importante natildeo eacute nem a da riqueza da abordagem nem a do ensino a marcaccedilatildeo social da liacutengua eacute ensinada rigorosamente Acho que sim Impede o aprendizado fundamental do sistema linguiacutestico Acho que natildeo Entatildeo sim ao enriquecimento do repertoacuterio social dos alunos e natildeo ao abandono de criteacuterios racionais para o ensino da liacutengua os uacutenicos garantidores de seu ensino

Os ldquoniacuteveis de linguagemrdquo uma categoria mal definidaSe natildeo encontramos nenhum dado diastraacutetico em nossas gramaacuteticas por outro lado o

niacutevel diafaacutesico estaacute sistematicamente presente na forma de um esquema ou de uma paacutegina intitulada ldquoOs niacuteveis de linguagemrdquo em que a linguagem natildeo eacute realmente definida mas apresentada como relacionada a situaccedilotildees de interaccedilatildeo

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Na NGC no sexto niacutevel trecircs niacuteveis satildeo apresentados com exemplos coloquial boulot corrente travail formal labeur (p 314) A apresentaccedilatildeo eacute seguida de um desenvolvimento proscritivo ldquoComo evitar a linguagem coloquialrdquo em que se aprende que o niacutevel coloquial soacute pode ser usado na oralidade (retorno da velha confusatildeo entre oral e popular) e em que vaacuterias dicas satildeo dadas para aperfeiccediloar seu vocabulaacuterio (p 314 e segs)

- evitando o verlan118 as giacuterias as abreviaccedilotildees

Ufa Vocecirc viu o dinheiro que ele tem Vocecirc eacute louco Vocecirc estaacute ciente de sua fortuna

- evitando supressotildees de siacutelabas repeticcedilotildees

Ele tem uma boa scootrsquo Ele tem uma bela scooter

- usando nous em vez de on

A gente fez uma boa caminhada Demos uma boa caminhada

Atenccedilatildeo

Natildeo empregue nous e a gente na mesma frase Nous on ne bougera pas -gt Nous nous ne bougerons pas

Um pouco mais adiante dicas com exemplos tambeacutem satildeo dadas para ldquoevitar o relaxamentordquo

- A negaccedilatildeo completa e a pontuaccedilatildeo119

Jrsquote raconte pas la beacutecane Je nrsquoose pas te deacutecrire ce scooter

- A pergunta

Daacute para acreditar Vocecirc acredita no que ele estaacute dizendo

- A supressatildeo de verbos vicaacuterios como fazer

Tem que fazer isso de novo Vocecirc quer que eu explique para vocecirc de novo

Por fim explicamos ao aluno como escrever na linguagem formal ldquoA linguagem rebuscadardquo eacute usada na escrita e na oralidade nos textos literaacuterios nos discursos

- O vocabulaacuterio eacute rebuscado e as frases satildeo complexas Eu ignorava que vocecirc tinha adquirido uma motocicleta

- A gramaacutetica eacute sempre respeitada e utiliza certos modos verbais como o subjuntivo Eu deveria ter podido falar com vocecirc sobre isso

Eu natildeo gostaria de cair na facilidade do comentaacuterio irocircnico o leitor apreciaraacute a qualidade das ldquotraduccedilotildeesrdquo de um niacutevel para outro mas natildeo sem antes fazer as seguintes perguntas

118 Verlan eacute um tipo de giacuteria em que se invertem as siacutelabas ou as letras Vem de lacuteenvers que significa o inverso

119 O francecircs faz a negaccedilatildeo com dois elementos ndash ne e pas ndash e a linguagem popular tende a suprimir o ne

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- sobre a definiccedilatildeo de situaccedilatildeo quais satildeo as situaccedilotildees que requerem a substituiccedilatildeo por exemplo de moto por motocicleta Como eles satildeo identificados ou avaliados pelos alunos O paracircmetro social no sentido classista estaacute realmente ausente A quinta GPLE propunha mais ou menos a mesma coisa afirmando ldquoComo a situaccedilatildeo exigerdquo (tiacutetulo da paacutegina) e ldquoDe acordo com a situaccedilatildeo de enunciaccedilatildeordquo (tiacutetulo do paraacutegrafo)

- sobre a classificaccedilatildeo dos niacuteveis para onde passou o niacutevel da giacuteria chamado popularmente de vulgar grosseiro etc Os merde e os bordel e os trou du cul estatildeo fora dos dicionaacuterios Surpreendentemente eacute nos curriacuteculos do ensino fundamental que eles satildeo encontrados ldquoSaber o que eacute um registro de linguagem durante as trocas orais transpor qualquer enunciado espontacircneo de registros familiares giacuterias ou palavras baixas em um enunciado pertencente ao francecircs padratildeordquo (CM1 p 29) Evitadas mas ainda mencionadas as palavras ldquobaixasrdquo

A linguiacutestica popular natildeo tem esses pudores ou esses irrealismos como se gostaria A giacuteria eacute frequentemente analisada em seus corpora e natildeo faltam comentaacuterios sutis sobre os usos Assim P Daninos (1964 p 18-19) em Snobissimo menciona as alternacircncias diafaacutesicas das pessoas comuns

Eacute sem duacutevida nessas partes que a dosagem (vocabulaacuterio aviltado) de que falei alhures ndash do tipo Era divino tinha um daqueles avoacutes aiacute velhinho eacute muito simples o nascimento de Vecircnus pra melhor Acho que aquele desgraccedilado do Rubi ganhou um ingresso com ela engraccedilado ndash eacute o mais saacutebio

E os editores do Le Monde pertencentes agrave brilhante tradiccedilatildeo dos tipoacutegrafos franceses natildeo-linguistas apresentam regularmente anaacutelises de giacuterias presidenciais das quais aqui estaacute um exemplo

Sarkozy ou a loucura dos preguiccedilosos

Como uma estrela vinda de seu firmamento rodeada por seus sateacutelites ministeriais e prefeiturais o presidente da repuacuteblica derreteu na manhatilde do dia 22 de janeiro numa terccedila-feira junto a um grande grupo em Sartrouville natildeo longe de Paris para proferir suas palavras doutrinais Ouvidas estas poucas palavras veiculadas pela imprensa audiovisual durante uma breve interaccedilatildeo com os ldquojovensrdquo presentes no local e bastante maravilhados o seu ldquoplano de subuacuterbiordquo vai dar-lhes a oportunidade de trabalhar e de ter uma formaccedilatildeo ldquoporque a vida natildeo eacute para preguiccedilarrdquo Natildeo comentaremos sobre a sintaxe do presidente nem sobre a penetraccedilatildeo de seu pensamento mas apenas sobre o ldquoglanderrdquo verbo de rara elegacircncia que se tornou decididamente um carro-chefe do vocabulaacuterio governamental

O ldquoglandrdquo eacute antes de tudo o fruto do carvalho natildeo nos esqueccedilamos e esta palavra nos vem do latim glans glandis e muito antes disso de fato os linguistas a relacionavam com a raiz indo-europeacuteia gwele [hellip] O significado atual ldquoesperar em vatildeordquo soacute eacute atestado em 1941 (com forte conotaccedilatildeo sexual como ldquopunhetardquo) e glandouiller outro paradigma

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do verbo governamental dataria de 1938 Deixaremos de lado glandage glandule e glanduleux que existem mas ainda natildeo foram incorporadas ao discurso do Eliseu

Em conclusatildeo diremos que um novo direito do povo estaacute na mira do poder o ldquodireito de vadiarrdquo Mas que os jovens possam sempre responder com soberba ao presidente parafraseando F Mauriac ldquoO verdadeiro glandeur ignora as ofensas dos pequenosrdquo

(httpcorrecteursbloglemondefrcorrectors 24012008)

A mim parece que a gramaacutetica escolar poderia valer-se do fundo da linguiacutestica popular para apresentar uma visatildeo enriquecida da liacutengua notadamente por meio de marcadores sociais

As vozes uma gramaacutetica sem vozEsta observaccedilatildeo tambeacutem diz respeito agraves vozes Por voz entendo natildeo soacute o oral mas

todos os fenocircmenos marcados que o caracterizam acentos sociais timbres e articulaccedilotildees A sociolinguiacutestica acadecircmica leva em conta a oralidade e suas marcaccedilotildees sociais mas basicamente nas constataccedilotildees foneacuteticas

As falhas de ligaccedilatildeo mais comumente percebidas expressas na frase coloquial ldquoligaccedilatildeo incorretardquo satildeo os chamados erros ldquopataquegravesrdquo que conotam um discurso muito pejorativamente Satildeo chamados para os mais recorrentes de couro (fico muito confortaacutevel com isso) e de veludo (eu tambeacutem) (GADET 1989 p 78)

No corpus consultado a gramaacutetica escolar natildeo leva em consideraccedilatildeo o oral o que significa que natildeo compreendemos de forma efetiva ou de forma indireta as vozes do francecircs nos manuais didaacuteticos exceto a voz do professor e a dos alunos Uma uacutenica gramaacutetica a terceira DTP oferece um CD de aacuteudio com o livro do professor que serve para exerciacutecios regularmente propostos no manual Por exemplo

- Ouccedila com atenccedilatildeo esta conversa entre duas amigas Lou acaba de apresentar Julien uma jovem atraente mas vaidosa agrave sua melhor amiga Eacutemerance Usando o estilo indireto e a narrativa de falas relate em apenas algumas linhas o que as duas amigas estatildeo dizendo uma agrave outra Seu texto comeccedilaraacute da seguinte maneira Nesta passagem Lou pergunta a Eacutemerance se (2003 p 108 ao inserir letras em um texto)

- Em uma primeira audiccedilatildeo observe as subordinadas relativas nas passagens que vocecirc ouviraacute Em uma segunda audiccedilatildeo principalmente com a ajuda das pausas especifique quais satildeo os epiacutetetos e quais satildeo os apostos (DTP 3ordf 2003 p 185 sobre a relativa)

- O apresentador da estaccedilatildeo de raacutedio ldquoSOS solituderdquo que vocecirc vai ouvir agraves vezes tem uma maneira um tanto abrupta de falar com seus interlocutores Formule de maneira atenuada seus conselhos ou pedidos usando o condicional ou o imperfeito (DTP 3ordf p 145 sobre os modos e os valores modais)

Embora a questatildeo social natildeo seja colocada os alunos podem ter a oportunidade de atentar para sotaques regionais ou acentos sociais que os familiarizem com a variaccedilatildeo A gramaacutetica

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escolar atualmente em construccedilatildeo propotildee uma concepccedilatildeo bastante teatral do oral preocupada mais com a teacutecnica do que com a marcaccedilatildeo social

Consciente de que o oral deve ser ensinado o professor elabora exerciacutecios variados e progressivos que permitem aos alunos trabalhar a voz os gestos e a ocupaccedilatildeo do espaccedilo Eacute neste contexto que se realizam em particular a recitaccedilatildeo (em articulaccedilatildeo com os textos estudados) a leitura em voz alta a exposiccedilatildeo oral o relato as interaccedilotildees organizadas (Programme de collegravege en consultation 2008 p 7)

No lado popular abundam as notaccedilotildees classistas desde as vozes muito ldquoGuermantesrdquo descritas por Proust aos sotaques populares encenados por Fallet passando pelas excessivas aberturas de Marie-Chantal as vozes seus timbres e suas articulaccedilotildees satildeo frequentemente fixados Dois exemplos

- A proacutepria entonaccedilatildeo diferenciada parece hoje de tom ruim senatildeo ateacute duvidosa Natildeo eacute mais culpa de algumas locutoras de raacutedio cujas palavras parecem salpicadas de strass [] Quanto ao madhacircme que tantas vezes precedia minhas homenagens no tempo em que os a soacute saiacuteam de bocas bem feitas enchapelados com um acento circunflexo tornou-se prerrogativa das damas de companhia ou das companhias aeacutereas (Daninos 1964 p 16)

- Evitar tambeacutem ligaccedilotildees acentuadas demais Agraves vezes ateacute satildeo suprimidas ldquoCommen(t) allez-vousrdquo substituiu ldquoCommen-t-allez-vous rdquo Algueacutem que olhasse para o reloacutegio e dissesse ldquoJe mrsquoen vais il est troi-z et demierdquo seria um pouco ridiacuteculo no mundo e pedante laacute fora

Finalmente uma articulaccedilatildeo clara e uma leve gagueira muito ldquooxonianardquo (natildeo dizer ldquooxfordianardquo) eacute de uso para contar uma anedota ou uma histoacuteria de caccedila (JULLIAN 1992 p 197)

Quando ensinamos em lugares socialmente mistos ou nos chamados bairros difiacuteceis ou mesmo em aacutereas de alta imigraccedilatildeo como na minha Universidade Paris XIII em Villetaneuse soacute conseguimos ouvir um francecircs muito marcado por sotaques diversos para os quais categorias especiacuteficas nem sempre satildeo adequadas o famoso sotaque suburbano acompanhado do discurso de metralhadora eacute ao mesmo tempo social eacutetnico e geracional Os adultos que trabalham em um ambiente profissional o perdem

Que a gramaacutetica do francecircs seja confinada a uma escrita estranha parece-me representar o problema da realidade da liacutengua aqui de natureza social

ConclusatildeoOs materiais fornecidos pela linguiacutestica popular satildeo inestimaacuteveis e agraves vezes exclusivos

com os ldquolinguistas dominicaisrdquo realizando um trabalho em especial sobre as falas de classe que os profissionais nem sempre fazem (para uma apresentaccedilatildeo detalhada desse fenocircmeno ver Paveau e Rosier 2008)

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A abordagem social da liacutengua em sala de aula me parece necessaacuteria por razotildees linguiacutesticas (o francecircs padratildeo natildeo eacute o francecircs) mas tambeacutem por razotildees didaacuteticas (ensinar o padratildeo eacute necessaacuterio mas natildeo o suficiente) e eacuteticas (a escola natildeo precisa mentir sobre a natureza profundamente discriminatoacuteria do poder simboacutelico da linguagem) Tambeacutem eacute uma faca de dois gumes uma vez que se oferece agraves ideologizaccedilotildees do ensino do francecircs que se baseiam em avaliaccedilotildees normativas estiliacutesticas e ateacute pseudorreligiosas (a ldquomissatildeordquo da gramaacutetica amplamente descrita no relatoacuterio de novembro de 2006) Como sempre apenas uma formaccedilatildeo soacutelida de professores incorporando um discurso reflexivo sobre sua proacutepria variedade sem negaccedilatildeo ou desprezo permite manter uma posiccedilatildeo cientificamente rigorosa e pedagogicamente eficaz

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IMAGENS DA LIacuteNGUA NOS DISCURSOS ESCOLARES120

Ao falarmos sobre o discurso escolar tocamos num problema metodoloacutegico importante o que se entende por ldquodiscurso escolarrdquo Identificado restritivamente como discurso da escola e ateacute mesmo agrave custa de uma reduccedilatildeo espacial como discurso na escola o discurso escolar natildeo eacute impedido por si mesmo de se relacionar com aqueles que se encontram fora do espaccedilo escolar ou da instituiccedilatildeo escolar Em outras palavras o discurso na escola natildeo eacute apenas os discursos da escola seria preciso portanto poder compartilhar o que eacute dos pais e da famiacutelia o que depende de paracircmetros sociais e culturais o que se capta no discurso da miacutedia o que emerge de uma crenccedila popular etc E esses proacuteprios discursos interpenetram-se e entrelaccedilam-se formando um universo discursivo que se organiza de maneira diferente de acordo com os tempos as crises e os acontecimentos Falar de imagens de liacutengua em discursos escolares natildeo pode assim ser feito sem levar em conta essa polifonia essencial e a tarefa eacute muito importante para ser realizada no acircmbito de um capiacutetulo

Muitos trabalhos jaacute abordaram isso tanto fora quanto dentro da escola proporemos aqui algumas respostas poreacutem sempre muito ldquomonofocircnicasrdquo reduzindo os discursos escolares aos que satildeo produzidos no acircmbito da escola pelos alunos pelos professores pelos livros e pelos textos oficiais

Das representaccedilotildees complexas muacuteltiplas e impliacutecitasQuestionar as imagens da liacutengua eacute tentar identificar quais satildeo os traccedilos por meio dos quais

cada um traccedila um retrato mais ou menos preciso mais ou menos fixo e mais ou menos ciente de um sistema comum a todos esses traccedilos podem ser funccedilotildees valores ou propriedades Essas imagens satildeo portanto complexas porque deslizam vaacuterios paracircmetros de natureza diferente e muacuteltiplos porque pode haver tantas representaccedilotildees quantos satildeo os sujeitos falantes (ou grupos comunidades etc) na maioria das vezes no entanto eles estatildeo impliacutecitos porque este natildeo eacute nem de conhecimentos nem de saberes objetivaacuteveis mas sim de representaccedilotildees estruturantes Nas situaccedilotildees de ensino de uma disciplina como o francecircs as questotildees tornam-se ainda mais difiacuteceis pois essas representaccedilotildees estatildeo por natureza em constante circulaccedilatildeo

Discurso sobre a liacutengua e reflexividadeDiante da complexidade do fenocircmeno adotamos um meacutetodo indireto reunimos um conjunto

de trabalhos e pesquisas realizadas sobre questotildees de liacutengua na escola e procuramos ver o que elas revelavam em vatildeo e por inferecircncia dessas imagens difiacuteceis de alcanccedilar por um meacutetodo de investigaccedilatildeo direta Isso nos permitiu ampliar o campo de investigaccedilatildeo mas permanecendo dentro do acircmbito das fontes mencionadas anteriormente

120 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Images de la langue dans les discours scolaires Le Franccedilais aujourdrsquohui 125 Images et repreacutesentations de la langue Paris AFEF 1998 p 52-60 Traduccedilatildeo de Fernando Curtti Gibin (UFSCar) e Marco Antonio Almeida Ruiz (USP)

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Em relaccedilatildeo ao estatuto do curso de francecircs natildeo podemos repetir eacute irredutivelmente singular pois a liacutengua eacute reflexiva ldquoum indiviacuteduo seja aprendiz ou natildeo natildeo usa a liacutengua como instrumento de accedilatildeo sobre o mundo Tampouco se comunica por meio de um instrumento que seria essa liacutengua [] Ele pode evocar a realidade no uso de uma liacutengua e expressar seus pensamentos nessa liacutengua []rdquo(DAVID 1997 p 5) Ou seja o aluno natildeo analisa a liacutengua mas sim a sua liacutengua ele natildeo lecirc o texto de um autor que usa a liacutengua mas resolve na sua liacutengua a produccedilatildeo de quem fala a sua liacutengua As imagens da liacutengua estatildeo portanto intimamente relacionadas agraves imagens dos proacuteprios sujeitos

Quatro imagens dominantes emergem com bastante clareza de todo o discurso veiculado no campo escolar hoje (por volta dos anos noventa) Sua apresentaccedilatildeo sucessiva natildeo deve ocultar o fato de que muitas vezes manteacutem relaccedilotildees iacutentimas e que o todo forma em uacuteltima instacircncia uma macroimagem relativamente coerente da liacutengua Tampouco deve sua predominacircncia nos fazer esquecer de que outras imagens embora possam ser minoria ou indetectaacuteveis ainda existem de modo que podem com o tempo tornar-se dominantes

A liacutengua-mundo

Speculum mundi

A antiquiacutessima concepccedilatildeo de espelho da liacutengua do mundo estaacute muito presente nos alunos para os quais a liacutengua eacute usada para dizer o mundo a realidade a verdade das coisas Conforme Eacute Bautier (1995 p 184) ldquoas palavras parecem ter importacircncia apenas na medida em que para o aluno traduzem melhor a sua experiecircncia o que ele quer dizer sobre ela [] A linguagem escrita como a fala eacute lsquofeita pararsquo falar o lsquoverdadeirorsquo o que eacute o que aconteceurdquo Todos os professores de francecircs conseguem identificar essa ldquoposturardquo segundo Eacute Bautier nos vaacuterios exerciacutecios da disciplina nomeadamente na leitura e na produccedilatildeo de textos narrativos Essa aproximaccedilatildeo entre a liacutengua e a realidade entre o textual e o real tambeacutem se realiza na leitura de textos poeacuteticos que natildeo satildeo diretamente referenciais No acircmbito de uma obra sobre ldquopoesia vivardquo uma aluna do segundo ano justifica assim a escolha do poema ldquoMatildeerdquo de J Darras ldquoPorque amo as matildeesrdquo outro descarta um poema de W Cliff sobre a Beacutelgica explicando ldquoEu natildeo sou belgardquo e outro finalmente confessa que ldquoBeacutelgica e batatas fritas isso tem um aspecto pesado e desinteressanterdquo (PAVEAU PEacuteCHEYRAN-HERNU JOUVENCEAU 1997 p 84-85) A mesma postura eacute encontrada no trabalho de argumentaccedilatildeo no segundo e primeiro anos jaacute que os alunos agraves vezes resistem fortemente em defender pontos de vista dos quais natildeo compartilham que natildeo correspondem para eles agrave ldquoverdade das coisasrdquo a uma realidade que seria deles

Transmissatildeo e circularidadeOs professores franceses interessados na questatildeo conhecem bem essa representaccedilatildeo

resultante de um realismo tatildeo antigo quanto contiacutenuo121 Eacute uma questatildeo saliente para os

121 Lembramos que a querela entre nominalismo e realismo (para dizer as coisas rapidamente) eacute uma constante para especialistas da liacutengua da Antiguidade do seacuteculo XVIII Aleacutem disso ao agruparmos a ideia da liacutengua-mundo vemos a sua predominacircncia na linguiacutestica espontacircnea de locutores (Cf por exemplo BREKLE 1989)

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alunos e apresenta dificuldades em todas as aprendizagens relacionadas com a disciplina se a liacutengua natildeo reflete o mundo entatildeo o que eacute um texto um discurso um argumento De que ordem dependem o som a palavra a frase E acima de tudo o que eacute essa ordem mundial repentinamente privada de seu espelho Poreacutem o significado e a durabilidade dessa imagem que eacute obviamente o produto de vaacuterios legados escolares e extracurriculares natildeo satildeo explicitamente (suficientemente) levados em consideraccedilatildeo na forma de uma obra real e de um real questionamento sobre representaccedilotildees sobre o que jaacute se sabe dos alunos na formaccedilatildeo dos professores e no proacuteprio ensino De repente essa imagem persiste quando os alunos entram no Ensino Superior ouve-se por exemplo de alunos do segundo ano de Letras Modernas colocados em situaccedilatildeo de produzir um argumento o mesmo discurso do Ensino Meacutedio122 E quando esses alunos satildeo futuros professores a liacutengua-mundo escapando agraves perguntas ainda se espreita na prova oral de explicaccedilatildeo do texto da CAPES de Letras Modernas os candidatos muitas vezes confundem liacutengua e realidade em suas anaacutelises lexicais123 Dessa forma esta representaccedilatildeo repete-se de forma circular nos diferentes lugares e tempos de ensino e formaccedilatildeo Haacute neste campo das imagens da liacutengua um siacutetio a ser aberto e natildeo apenas em termos de validade cientiacutefica natildeo se trata de substituir com autoridade uma imagem cientificamente invalidada por outra legitimada pelo recurso agraves ciecircncias da linguagem Seria antes uma questatildeo de compreender qual eacute o lugar e a funccedilatildeo da liacutengua-mundo no universo das representaccedilotildees escolares de onde vem a legitimidade que confere a essa imagem uma longevidade tatildeo notaacutevel e sobretudo qual tipo de ensino permite e natildeo permite

A liacutengua-norma

A correccedilatildeo da liacutengua

Se a liacutengua eacute usada para dizer a verdade das coisas para os alunos parece que se deve dizecirc-la especialmente bem para os professores De acordo com os resultados da pesquisa realizada em 1993-1995 por Elalouf Benoit e Tomassone (1997 p 83) entre os futuros professores do segundo ano do IUFM eacute possiacutevel descrever o perfil do

formando-tipo de letras modernas que pode ser considerado a maioria entre os formandos [] Esse perfil eacute caracterizado por opiniotildees tradicionais sobre o ensino da liacutengua Para esses estagiaacuterios ensinar a liacutengua eacute ensinar a norma as expressotildees oral e escrita corretas [] o ensino gramatical eacute usado principalmente para dominar as expressotildees oral e escrita []

A imagem estatisticamente dominante na amostra determinada por essa pesquisa (274 estagiaacuterios dos IUFMs em Rennes Reims e Versailles) eacute portanto a de uma liacutengua padratildeo uma imagem que tambeacutem pode coexistir com a anterior

122 Essa marcaccedilatildeo reflete somente a nossa proacutepria experiecircncia e demandaria uma pesquisa para ser confirmada

123 Um exemplo entre outros sobre ldquoLe leacutezard amouroeuxrdquo [O lagarto apaixonado] de R Char um candidato indica que o poeta utiliza agraves vezes ldquopalavras simplesrdquo ldquopalavras do cotidianordquo dando como exemplo o cambalear [titube em francecircs] Interrogado sobre esses criteacuterios de apreciaccedilatildeo ele afirma que ldquoo cambalear natildeo eacute tatildeo estimado como atitude cambaleamos quando estamos embriagados por exemplordquo (seccedilatildeo 1998)

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A liacutengua restritaAqui novamente natildeo se trata de deplorar ou denunciar as concepccedilotildees tradicionais ou

gramaticais da liacutengua mas de se medirem os riscos do ensino do francecircs e de se compreender melhor o que o aluno pode fazer com a sua liacutengua quando ele recebe um ensino constituiacutedo por essa imagem para isso eacute uacutetil perguntar que padratildeo eacute esse exatamente e apreender o padratildeo escolar em seu funcionamento pedagoacutegico como fazem Founier e Veck (1995 p 53-58) em um artigo sobre ldquonoccedilotildees em francecircsrdquo Eles estudam as anotaccedilotildees das coacutepias dos alunos feitas por seus professores observando os usos imperfeitos sancionados na margem O estudo mostra que a norma escolar eacute especiacutefica na medida em que restringe o uso da liacutengua

[] a avaliaccedilatildeo dos enunciados dos alunos sobre os quais as anotaccedilotildees se referem mostra que na grande maioria dos casos os usos imperfeitos observaacuteveis nas coacutepias dos alunos natildeo constituem em si falhas Logo a escola autoriza apenas uma parte dos usos possiacuteveis A implementaccedilatildeo de noccedilotildees de gramaacutetica em uma praacutetica a avaliaccedilatildeo da escrita escolar conduz agrave constituiccedilatildeo de um padratildeo e nesse caso agrave limitaccedilatildeo dos usos e possiacuteveis efeitos de sentido (ibid p 54)

Essa restriccedilatildeo natildeo diz respeito apenas agraves formas sintaacuteticas mas se estende a todos os usos linguiacutesticos em um estudo sobre o estilo dos alunos Fournier e Allardi (1996 p 38) mostram que ldquoo exerciacutecio de redaccedilatildeo constitui como padratildeo uma categoria de enunciados determinados por criteacuterios mais seletivos do que aceitaacuteveisrdquo Com efeito as produccedilotildees dos alunos sancionadas por foacutermulas como ldquomal escritordquo ldquodesajeitadordquo ou ldquoevitarrdquo satildeo de fato enunciados corretos ao niacutevel linguiacutestico ldquoO padratildeo produzido pela escola surge assim como uma norma reforccedilada em relaccedilatildeo ao que eacute produzido por outras instituiccedilotildeesrdquo (em particular o dicionaacuterio) concluem os autores que acrescentam que nessas condiccedilotildees ldquoo aluno natildeo escreve a sua liacutengua em plena liberdaderdquo (ibidem p 39 ) Uma imagem da liacutengua baseada em padrotildees escolares de correccedilatildeo portanto apresenta problemas que vatildeo aleacutem de simples consideraccedilotildees axioloacutegicas ou esteacuteticas eacute o uso de sua liacutengua pelo aluno que estaacute em causa e ao final sua constituiccedilatildeo como sujeito sua relaccedilatildeo com o mundo e com o outro

A liacutengua invariaacutevelSe a liacutengua-norma eacute uma liacutengua limitada ela eacute tambeacutem fundamentalmente uma liacutengua

invariaacutevel uma ldquomonoliacutenguardquo exclusiva que fala somente de uma uacutenica e boa maneira Essa evidecircncia aparentemente simples eacute de fato como podemos observar problemaacutetica nos aspectos do ensino do francecircs na escola

A escrita a unicidade impliacutecita do modeloA norma escolar impotildee nos trabalhos escritos dos alunos particularmente na composiccedilatildeo

francesa do ensino fundamental uma maneira de escrita uacutenica um conjunto de estilos prototiacutepicos o que implica a rejeiccedilatildeo de outras formas de escrita Ateacute o momento nada que

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natildeo possa se justificar em especial pela necessidade de pedir emprestado para produzir um objeto normatizado no campo escolar (em outros tempos falariacuteamos da formaccedilatildeo discursiva) ou seja a composiccedilatildeo um estilo adequado a esse objeto Todavia a presenccedila dessa norma uacutenica coloca dois problemas importantes em questatildeo analisados por Veck (1996) em seu trabalho sobre as anotaccedilotildees de coacutepias dos alunos Em primeiro lugar segundo o autor a imposiccedilatildeo de um protoacutetipo estiliacutestico uacutenico da composiccedilatildeo parece arbitraacuterio em relaccedilatildeo agrave praacutetica dos alunos apoacutes ter identificado os estilos proibidos ele observa que

[] todas as maneiras de escrita rejeitadas pelo francecircs escolar natildeo satildeo descritas e nem listadas nos manuais os estilos jornaliacutesticos ou ldquoliteraacuteriosrdquo ou ldquocientiacuteficosrdquo satildeo reconhecidos intuitivamente pelo professor mas natildeo satildeo treinados pelos alunos para os distinguir nem para os praticar como conhecimento de causa Eacute porque se trata de uma questatildeo de praacutetica que se coloca a partir da observaccedilatildeo dessas anotaccedilotildees Eacute possiacutevel aprender o estilo dissertativo sem o situar em relaccedilatildeo a outros (VECK 1996 p 46)

Essa situaccedilatildeo natildeo realizada representa para ele um conjunto de bloqueios na evoluccedilatildeo da disciplina ldquoEacute por uma abordagem complexa discursiva realizada tanto por um plano reflexivo quanto para praacuteticas diversificadas que a disciplina poderia sem duacutevidas escapar da acusaccedilatildeo frequente promovida pelo encontro de atividades limitadas e esclerosantesrdquo (ibid p 46)

O oral clareza e distinccedilatildeoAs mesmas exclusotildees se produzem em relaccedilatildeo agraves produccedilotildees orais dos alunos Tomar a

oralidade e a diversidade dos usos eacute de certo modo uma atividade presente nas Instruccedilotildees oficiais recentes contudo a diversidade de usos eacute ainda considerada sobre o acircngulo de niacuteveis de liacutengua e de sua ldquomeacutetrica124rdquo e a norma escolar continua sendo a uacutenica jaacute que se trata para os alunos como um produto de uma fala ldquoaudiacutevel clara ordenada e regularrdquo (MEN 1997 p 8) Ou como afirma E Nonnon a oralidade natildeo eacute nem invariaacutevel nem linear ldquoporque trata de uma organizaccedilatildeo que se elabora passo a passo por aproximaccedilotildees na atividade produzida pela fala no qual noacutes nos corrigimos por ajustes sucessivos e regulamos por modalizaccedilotildees ou reajustes retrospectivos levando em consideraccedilatildeo a participaccedilatildeo de interlocutores para construir um espaccedilo de compreensatildeo comum Essa emergecircncia de significaccedilotildees na atividade conduzida pela enunciaccedilatildeo essa temporalidade sempre prospectiva e retrospectiva de ajustes para outras formas entram em conflito com a linearidade da linguagem em que vai e vem essa repeticcedilatildeo e esses curtos-circuitos que caracterizam a fala espontacircneardquo (NONNON 1996 p 59) Ela acrescenta que em tudo isso haacute dificilmente sentidos do falar da oralidade ao singular (natildeo mais que na escrita) porque ldquonatildeo haacute muacuteltiplas formas de atividade oralrdquo (ibid p 59) ela precisa que essas formas satildeo as vezes proacuteximas de certas atividades escritas que de forma contraacuteria podem apresentar caracteriacutesticas do discurso oral

124 ldquoEssa situaccedilatildeo (oral) qualquer que seja impotildee a cada vez suas proacuteprias normas e implica assim como consequecircncia uma meacutetrica progressiva de niacuteveis da liacutengua As variedades do francecircs mostram que existem diversos lsquobons usosrsquo que convivem e dominam os coacutedigos para participar plenamente da vida socialrdquo (MEN 1997 p 8)

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As variaccedilotildees da liacutengua o caso dos regionalismosldquoFalar a liacutengua do outro de forma livrerdquo como afirmam os escritores Fournier e Allardi eacute para o

aluno ser assegurado de natildeo incorrer em sanccedilotildees (no seio riacutegido da rejeiccedilatildeo natildeo explicitamente justificada) quando ele se inscreve nos usos da liacutengua que natildeo correspondem agrave norma escolar pois elas constituem variaccedilotildees em relaccedilatildeo aos usos legiacutetimos no exterior seria dessa forma promover uma sanccedilatildeo no tema e sobretudo nas operaccedilotildees realizadas para resolver de maneira individual os problemas linguiacutesticos Os trabalhos dos sociolinguistas mostram que dessa maneira eacute principalmente a concepccedilatildeo ldquomonolinguiacutesticardquo invariaacutevel que domina o lado dos professores e da instituiccedilatildeo e que as variaccedilotildees regionais satildeo insuficientemente consideradas porque satildeo desconhecidas Blanchet mostra por exemplo por meio de suas pesquisas sobre os documentos oficiais os manuais escolares e as representaccedilotildees de professores que ldquoa educaccedilatildeo fica majoritariamente normativa (um uacutenico coacutedigo) agraves vezes plurinormativa (vaacuterios coacutedigos) longe de proposiccedilotildees plurinormalistas (usos de vaacuterios coacutedigos) resultado do estudo cientiacutefico dos fatos linguageirosrdquo (FOURNIER ALLARDI 1995 p 49) Essa importante imagem de uma liacutengua invariaacutevel tem por ela mesma graves consequecircncias ldquoeacute uma distorccedilatildeo grave da educaccedilatildeo francesa tanto em relaccedilatildeo ao plano de conteuacutedos errocircneos quanto para a ideologia da exclusatildeo que ele instiga125rdquo (ibid p 49)

A liacutengua-silecircncio

O ldquodiaacutelogo magistralrdquo

Essa expressatildeo aplicada no padratildeo da reparticcedilatildeo da fala em aula por Daunay Marguet e Sauvage (1996 p 102) designa um tipo de troca em curso no qual ldquoa fala do aluno eacute essencialmente a resposta de solicitaccedilotildeesrdquo e tambeacutem satildeo ldquoas uacutenicas que alguns alunos sabem compreender sobre o seu localrdquo Ou seja nessa ldquocomunicaccedilatildeo desigualrdquo os outros permanecem em silecircncio Esse silecircncio dos alunos (trata-se do silecircncio que os impede de falar e natildeo de um silecircncio positivo escolhido pelo escutar e pela troca por exemplo) eacute tambeacutem o indiacutecio de uma imagem da liacutengua Para esses alunos a liacutengua eacute uma liacutengua-silecircncio e eacute composta pela constituiccedilatildeo do tema no campo escolar assim como a noccedilatildeo de aprendizagem na escola que se encontra afetada Eacute um conjunto de diversos professores colocando em discussatildeo dispositivos que lhes permitem passar do diaacutelogo magistral ao diaacutelogo mais curto se o modo da didaacutetica da oralidade eacute de fato largamente aberto o que constata que ldquoo problema das crianccedilas silenciosasrdquo eacute sempre aquele que os professores relevam majoritariamente quando os interroga sobre suas praacuteticas da oralidade (LE CUNFF 1994 p 21 sobre o primaacuterio)

O risco da liacutenguaEssa imagem da liacutengua em que os alunos mergulham representa um silecircncio que eacute bem

descrito por M Rispail (1995) isto eacute que coleta junto dos alunos informaccedilotildees mostrando

125 Para um tratamento mais aprofundado sobre essa questatildeo e para compreender como satildeo constituiacutedas na Franccedila as ldquoideologias diglossicasrdquo (diglossia) consulte Boyer (1990)

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que a imagem da liacutengua-silecircncio eacute parcialmente uma produccedilatildeo de representaccedilotildees nas quais falamos mais alto em particular a liacutengua-norma e a liacutengua invariaacutevel eles dizem por exemplo sobre a impossibilidade de produzir uma fala natildeo preparada e a oralidade descrita no IO do coleacutegio eacute a fala invariavelmente ldquoaudiacutevel clara ordenada regularrdquo que exclui o que D Bucheton (1996 p 6) chama de ldquorascunhos verbaisrdquo eles exprimem tambeacutem o medo da sanccedilatildeo dos professores e dos colegas de sala o medo de natildeo impor a ldquoboa falardquo o que eacute adequado ao campo escolar Eacute preciso para prolongar essa exploraccedilatildeo poder mesurar o degrau da violecircncia desse silecircncio dos alunos violecircncia dirigida contra a instituiccedilatildeo e seus representantes o silecircncio dos alunos pode tambeacutem constituir uma reversatildeo de valores da instituiccedilatildeo escolar lugar da ldquomeacutetrica da liacutenguardquo por excelecircncia Eacute preciso tambeacutem poder compreender o que diz a ldquofala sufocadardquo do sujeito silencioso Frequentemente colocado sobre a conta das famosas lacunas e dificuldades acumuladas ao longo do curso escolar o silecircncio sempre se constitui todavia como um discurso sobre o modo em que o sujeito institui sua autonomia em relaccedilatildeo agrave outra parente colega de classe ou professor Entretanto essa abordagem supotildee o inverso ao sujeito e natildeo como uma ferramenta exterior em que eacute preciso adquirir uma ilusatildeo sobre a ldquomeacutetricardquo

Funcionalidade das imagens da liacutenguaLiacutengua-mundo liacutengua-norma liacutengua invariaacutevel e liacutengua-silecircncio satildeo imagens de liacutengua

dominantes em que noacutes natildeo podemos nos contentar de fazer um uacutenico objeto de contestaccedilatildeo ou um uso simplesmente explicativo Se sua identificaccedilatildeo permite explicar certos passos linguiacutesticos dos alunos e dos professores satildeo levadas em consideraccedilatildeo suas ldquofunccedilotildeesrdquo no campo escolar que promove uma verdadeira reflexatildeo sobre a liacutengua Funccedilatildeo econocircmica da imagem da liacutengua-mundo em que a conservaccedilatildeo salva os custos e em especial o que eacute uma verdadeira questatildeo sobre a reflexividade da linguagem e das modificaccedilotildees que ela implica na abordagem de textos literaacuterios sobretudo funccedilatildeo unificadora tambeacutem porque a representaccedilatildeo da liacutengua como espelho do mundo aparece na doxa da linguiacutestica espontacircnea que une um conjunto e usuaacuterios de uma liacutengua Funccedilatildeo ideoloacutegica das imagens da liacutengua-norma e da liacutengua invariaacutevel de muitas maneiras interdependentes impor o aspecto polido da liacutengua eacute apagaacute-la fazendo com que a instituiccedilatildeo corra o risco de todas as grosseiras Enfim funccedilatildeo de defesa da liacutengua-silecircncio defesa de um sujeito em que o relatoacuterio doloroso em relaccedilatildeo agrave liacutengua diz com abundacircncia a dificuldade de ldquotomar um lugarrdquo

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AS VOZES DO SENSO COMUM NOS DISCURSOS SOBRE A ESCOLA126

Senso comum ldquoManeira de julgar de agir comum a todos os homens (que equivale ao bom senso)rdquo A definiccedilatildeo do Petit Robert eacute uma definiccedilatildeo de senso comum (doravante SC) uma vez que o dicionaacuterio de liacutengua eacute o lugar de registro dos sentidos comumente aceitos por uma sociedade num dado momento de sua histoacuteria Ela eacute circular (comum) analoacutegica (que equivale ao bom senso) extensiva (ausecircncia de estabelecimento de criteacuterios) e perceptivo-comportamental (julgar e agir) Trata-se de uma primeira aproximaccedilatildeo possiacutevel da noccedilatildeo que completaremos ao integrar a dimensatildeo semacircntica do termo senso o SC teraacute para noacutes uma dupla dimensatildeo linguageira e perceptiva

O SC eacute o que podemos chamar de uma noccedilatildeo vaga que escapa agrave verificaccedilatildeo pelo verdadeiro e falso porque apresenta diversos graus de verdade a categoria ldquoSCrdquo integra mais ou menos certos elementos segundo a escala de apreciaccedilatildeo dos locutores sendo que esta uacuteltima se baseia na escala do que eacute comum ou natildeo Por exemplo determinado proveacuterbio bem naturalizado nos usos caberaacute plenamente na categoria enquanto determinada representaccedilatildeo de uma profissatildeo ou de uma nacionalidade seraacute sentida como mais ou menos partilhada Isso ocorre pois o SC eacute tambeacutem uma noccedilatildeo silenciosa fundada sobre o compartilhamento de referecircncias e conveniecircncias no momento seraacute definido de maneira heuriacutestica como um conjunto de percepccedilotildees e produccedilotildees verbais marcadas pelos traccedilos coletivo estabilizado aceito e silencioso

Esse acordo de ldquotodos os homensrdquo como diz o Petit Robert funda a nosso ver a construccedilatildeo e a circulaccedilatildeo do sentido em discurso eacute a condiccedilatildeo de sua eficaacutecia e mesmo de sua existecircncia Eacute como tal que gostariacuteamos de explorar aqui seu funcionamento depois de ter situado o SC no largo paradigma das noccedilotildees que nomeiam as partilhas silenciosas explicaremos por que ele nos parece um conceito central e operacional em anaacutelise do discurso aplicando-o num corpus de ensaios para o grande puacuteblico sobre a escola

1 Pequeno percurso do SC e das noccedilotildees vizinhas

11 Os dois paradigmas

Os fenocircmenos dotados dos traccedilos propostos acima podem ser classificados em dois paradigmas

126 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Les voix du sens commun dans les discours sur lrsquoeacutecole Pratiques 117-118 Metz CRESEF p 29-50 2003 Traduccedilatildeo de Mariana Luz Pessoa de Barros (UFSCar) e Tamires Bonani Conti (UFSCarFAPESP) Este artigo adota as retificaccedilotildees ortograacuteficas propostas pelo Conselho Superior da liacutengua francesa (JO 06121990) inclusive nas citaccedilotildees

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111 O paradigma linguageiro

Reuacutene produccedilotildees verbais como o clichecirc a ideia preconcebida o chavatildeo o lugar-comum o estereoacutetipo o toacutepos (identificaacutevel no plano do enunciado) a forma fixa o proveacuterbio a liacutengua de madeira a ldquofrase feitardquo (identificaacutevel no plano enunciativo)127

Todas essas manifestaccedilotildees estatildeo assentadas numa estabilizaccedilatildeo linguageira mais ou menos completa que permite uma coconstruccedilatildeo eficaz do sentido e uma circulaccedilatildeo faacutecil das produccedilotildees discursivas Natildeo satildeo essas as produccedilotildees que nos interessam aqui a natildeo ser por formas definitivamente estabilizadas e registradas como proveacuterbios o estabelecimento dos criteacuterios de identificaccedilatildeo eacute sempre forccedilado pois as formas fixas o satildeo relativamente agraves eacutepocas aos corpora agraves comunidades ideoloacutegicas culturais Ao localizar os clichecircs os lugares-comuns etc trabalhamos muitas vezes com o desconhecido dessas produccedilotildees e de seus produtores conforme o que eacute determinado pelos referenciais proacuteprios ao pesquisador De fato a forma fixa recortada na mateacuteria do discurso natildeo diz nada sobre seus traccedilos de SC Preferimos ouvir o que os proacuteprios discursos dizem sobre sua relaccedilatildeo com o SC e ver como os locutores constroem sua relaccedilatildeo com o silecircncio das partilhas semacircnticas

112 O paradigma perceptivo-cognitivo

Ao mesmo tempo perceptivo (representaccedilatildeo pelo espiacuterito de objetos exteriores) e cognitivo (construccedilatildeo das crenccedilas e aquisiccedilotildees do saber) esse paradigma engloba numerosas noccedilotildees frequentemente imprecisas algumas vezes concorrentes e variadas quanto a suas origens disciplinares Em suma um labirinto terminoloacutegico e conceitual atraveacutes do qual procuraremos traccedilar uma trajetoacuteria do SC a partir de trecircs espaccedilos disciplinares

A filosofiaA filosofia fala de doxa ou de opiniatildeo comum (CAUQUELIN 1999) de SC (uma ceacutelebre

controveacutersia opotildee Moore e Wittgenstein sobre esse ponto) de crenccedila (JACQUES 1979 DENNETT 1990) de prejulgamento (DASCAL 1999) Detenhamo-nos por um instante sobre as origens filosoacuteficas da doxa e do senso comum noccedilotildees salientes na disciplina Doxa palavra grega eacute estabelecida como noccedilatildeo por Platatildeo particularmente em A Repuacuteblica Existe uma excelente arqueologia do termo e da noccedilatildeo em Cauquelin (1999) A autora lembra a composiccedilatildeo das duas ldquotriacuteadesrdquo platocircnicas

- a triacuteade superior do Belo (fundando a esteacutetica) do Bem (fundando a eacutetica) e do Verdadeiro (fundando a loacutegica) formulada pelo discurso filosoacutefico o Logos discurso unitaacuterio dos princiacutepios que se desdobram no domiacutenio da teoria lugar da permanecircncia das Ideias

- a triacuteade inferior da Tekhnegrave (a teacutecnica ou seja o uacutetil e agradaacutevel da arte) a Doxa (conjunto de ldquoregras ou receitas para um comportamento eficaz que possa ser conveniente agrave maioriardquo p 28) e a Verossimilhanccedila (resultante da dispersatildeo do Verdadeiro em verdades particulares e contingentes) Esse ldquotrio enganador que corresponde ao trio sublimerdquo (p 28) coloca-nos no

127 A lista eacute aberta Os trabalhos abundam nesse domiacutenio por exemplo Amossy (1991) Amossy e Herschberg-Pierrot (1997) Dascal (1999) Goyet (1996) Perrin-Naffakh (1985) Plantin (1993) e Schapira (1999)

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domiacutenio da praacutetica da accedilatildeo e da variaccedilatildeo ele eacute formulado pelo discurso doacutexico a partir do nome de um dos trecircs elementos

Eacute este o primeiro traccedilo importante da doxa eacute tanto a forma degradada do Bem dentro da ldquotriacuteade inferiorrdquo quanto o regime de fala apropriado a essa triacuteade Nesse sentido a sofiacutestica eacute uma linguagem doacutexica pois o sofista eacute para Platatildeo um teacutecnico da palavra Isso significa que a ambiguidade pesa sobre a noccedilatildeo desde suas origens entre regras de comportamento e atitudes linguageiras

A partir daiacute eacute tecida uma tradiccedilatildeo filosoacutefica um pouco subterracircnea constituiacuteda explica Cauquelin (que aliaacutes assimila senso comum e doxa) por ldquotodos esses que sentiram que alguma coisa acontecia do lado do SC da fala ordinaacuteria ou da argumentaccedilatildeo baseada em hipoacuteteses inverificaacuteveisrdquo (p 34) Antifonte Goacutergias Filoacutestrato Quintiliano E mais perto de noacutes Nietzsche Wittgenstei os filoacutesofos da linguagem os autores da Nova Retoacuterica os pragmaticistas os socioacutelogos do cotidiano os epistemoacutelogos

O SC aparece em diferentes contextos filosoacuteficos

G-Eacute Sarfati em seu Preacutecis de pragmatique (2000a cap 6 ldquoLrsquoideacutee drsquoune pragmatique des normesrdquo) lembra que o senso comum eacute a traduccedilatildeo de koinegrave aesthegravesis estabelecido em Da alma por Aristoacuteteles como uma ldquofaculdade [que] permite operar uma siacutentese entre os perceptos dos cinco sentidosrdquo (p 101) A partir daiacute G-Eacute Sarfati distingue ldquoduas filiaccedilotildees de uma epistemologia do conceito de senso comumrdquo (p 101) uma que a toma por uma ldquoracionalidade comumrdquo e a outra que a leva para o lado da eficaacutecia das crenccedilas e da constituiccedilatildeo das opiniotildees (problema da ideologia) Eacute sobre a primeira filiaccedilatildeo que nos debruccedilaremos aqui a que constroacutei o SC como uma ldquoracionalidade comum antes de mais nada organizadora dos dados da percepccedilatildeordquo (p 100) Ela estabelece uma teoria do conhecimento Podemos dar como exemplo a controveacutersia MooreWittgenstein A posiccedilatildeo de G E Moore sobre os traccedilos daquilo que ele chama de ldquoa concepccedilatildeo do mundo oferecida pelo senso comumrdquo pode se resumir a essa declaraccedilatildeo128

[] se sabemos que satildeo caracteriacutesticas da ldquoconcepccedilatildeo de mundo oferecida pelo senso comumrdquo logo elas satildeo verdadeiras eacute contraditoacuterio defender que sabemos que satildeo traccedilos da ldquoconcepccedilatildeo de mundo oferecida pelo senso comumrdquo e que no entanto natildeo satildeo verdadeiras (MOORE 1985 [1925] p 146 grifos do autor)

A partir de sua criacutetica vigorosa da ldquocompulsatildeo filosoacuteficardquo (i e a ilusatildeo da posiccedilatildeo de destaque do filoacutesofo a partir da qual ele crecirc poder enunciar a verdade) L Wittgenstein critica G E Moore por dar agraves verdades do SC um valor absoluto agrave maneira da triacuteade platocircnica superior podemos dizer L Wittgenstein encontra-se de fato ao lado de um relativismo integral (para ele a dimensatildeo pronominal da verdade eacute o Noacutes) e as evidecircncias do SC estatildeo na praacutetica da linguagem no fluxo da vida Ele acusa G E Moore (para quem a dimensatildeo pronominal da verdade eacute o Eu) de realismo dogmaacutetico e metafiacutesico

128 Exceto quando mencionado todos os itaacutelicos nas citaccedilotildees foram feitos por noacutes

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A filosofia das ciecircnciasO SC eacute um objeto de reflexatildeo importante Para Popper (1972) as opiniotildees e crenccedilas

comumente aceitas constituem o ponto de partida universal do saber mesmo que as teorias propostas devam ser submetidas agrave criacutetica Os filoacutesofos das ciecircncias datildeo uma atenccedilatildeo especial agrave linguagem desenvolvem a ideia de que a experiecircncia do SC expressa na linguagem cotidiana deve servir de base para o discurso cientiacutefico teoacuterico de fato o valor de verdade dos enunciados da linguagem cotidiana eacute superior (em seu reconhecimento) agravequele dos enunciados da linguagem cientiacutefica (SCHUTZ 1987) Encontramos mesmo em Nagel (1961) a ideia de que a imprecisatildeo da liacutengua do SC permite a perduraccedilatildeo das crenccedilas (por causa ou graccedilas agrave dificuldade do controle experimental) enquanto o destino das teorias eacute morrer precocemente por falta de imprecisatildeo podemos dizer

As ciecircncias da linguagemAs ciecircncias da linguagem constroem outras abordagens de acordo com as subdisciplinas

do campo

ndash Na anaacutelise do discurso a noccedilatildeo de preacute-construiacutedo extraiacuteda de Henry (1974 1975) por Pecirccheux e Fuchs (1975) eacute o ponto de partida da problemaacutetica do interdiscurso

ndash Do lado da semacircntica integrada eacute traccedilada uma linha de pesquisa que trata da estereotipia na liacutengua teoria dos topoi (ASCOMBRE DUCROT 1983 ASCOMBRE 1995) teoria dos estereoacutetipos (ASCOMBRE 2001) teoria dos blocos semacircnticos e do paradoxo (CAREL DUCROT 1999)

As referecircncias anteriores mostram que nas ciecircncias da linguagem a questatildeo do SC eacute posta nos domiacutenios que integram segundo graus variados diversos paracircmetros extralinguiacutesticos (produccedilatildeo social cultural recepccedilatildeo etc)129 No entanto o SC como tal e com esse nome constitui raramente um objeto expliacutecito de anaacutelise Podemos citar os trabalhos de Sarfati de Larsson e nossa proacutepria abordagem que seraacute desenvolvida em 2

Sarfati trabalhando numa teoria das relaccedilotildees entre texto discurso e doxa propotildee uma ldquopragmaacutetica das normasrdquo (2002a) por meio de uma teoria linguiacutestica da doxa (2002b) Considerando o SC como um ldquoregulador ateacute mesmo um meacutedium semacircntico-pragmaacuteticordquo (2002b p 102) ele o define como ldquoo conjunto das representaccedilotildees simboacutelicas distintivas de uma formaccedilatildeo socialrdquo dito de outro modo uma ldquotoacutepica socialrdquo (p 103) Propotildee uma abordagem em quatro dimensotildees os dispositivos institucionais (dimensatildeo 1) vinculados a textos canocircnicos (dimensatildeo 2) determinam a toacutepica de uma sociedade (o SC dimensatildeo 3) que eacute composta por sua vez por uma ou vaacuterias doxas estruturadas em topoi ou ldquodispositivos de opiniatildeordquo (dimensatildeo 4) O postulado de partida dessa teorizaccedilatildeo eacute de que o sentido (objeto da semacircntica e da pragmaacutetica) se constitui a partir do SC (objeto de uma teoria da percepccedilatildeo)

Numa orientaccedilatildeo mais semacircntica Larsson (1997) traz a questatildeo do sentido para o centro do debate entre relativistas e objetivistas Para ele o sentido eacute equivalente ao SC que ele nomeia

129 Agrave exceccedilatildeo daqueles que remetem agrave semacircntica integrada

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ldquobomrdquo senso comum livrando-o de seus ouropeis pejorativos Propotildee uma ldquoconcepccedilatildeo do sentido como cogniccedilatildeo intersubjetivardquo (LARSSON 1997 p 287) que implica uma epistemologia da relaccedilatildeo

Da concepccedilatildeo do sentido como propriedade emergente tanto intersubjetiva quanto puacuteblica decorre entatildeo uma epistemologia que natildeo eacute nem aquela da introspecccedilatildeo nem aquela da observaccedilatildeo exterior A epistemologia do sentido podemos afirmar natildeo eacute nem uma epistemologia do eu nem uma epistemologia do eleela ou eleselas Eacute uma epistemologia do noacutes ou seja uma epistemologia do conhecimento interacional (Mead) da observaccedilatildeo participante (Boas Jakobson Bakhtin) da experimentaccedilatildeo dialoacutegica (Vygotsky Harreacute amp Gillet) e da pragmaacutetica transcendental (Appel Habermas) (LARSSON 1997 p 287-288)

2 O SC um conceito para a anaacutelise do discursoDe nossa parte frequentar os discursos de instituiccedilotildees (exeacutercito 2000 escola 2002

literatura 2001 2003) levou-nos a propor uma concepccedilatildeo de SC deliberadamente assentada em suas duas dimensotildees semacircntica e perceptivo-cognitiva a dimensatildeo semacircntica eacute a da coconstruccedilatildeo do sentido em discurso fundada num acordo silencioso cujo funcionamento procuramos entender a partir da articulaccedilatildeo da linguagem e da preacute-linguagem a dimensatildeo perceptiva eacute a dos quadros de crenccedila e de saber que configuram e prefiguram a experiecircncia humana e que informam profundamente os discursos dos locutores

21 Definiccedilatildeo

Definimos o SC como um conjunto de quadros de saberes e de crenccedilas que fornecem instruccedilotildees para a produccedilatildeo e a interpretaccedilatildeo do sentido em discurso Esses quadros possuem seis caracteriacutesticas

211 Compartilhamento coletivo e apropriaccedilatildeo individual

Os saberes e as crenccedilas do SC pertencem tanto agrave coletividade quanto ao indiviacuteduo Todo locutor pode se apropriar num Eu do sentido admitido na comunidade Em sua ceacutelebre ldquoApologie du sens communrdquo Moore (1925) explica que as verdades afirmadas em nome da ldquoconcepccedilatildeo do mundo oferecida pelo senso comumrdquo (por exemplo eu nasci um dia) podem ser apropriadas por diferentes locutores sem que sejam fixadas numa forma particular de enunciado pois satildeo formuladas em formas que ele chama de homoloacutegicas

212 Transmissibilidade

Essa propriedade eacute uma condiccedilatildeo de possibilidade da precedente para que esse vai e vem entre coletivo e individual possa existir eacute preciso haver possibilidades de transmissatildeo universal de saberes e crenccedilas Essa aptidatildeo para a transmissatildeo caracteriacutestica do SC eacute chamada de comunicabilidade por Kant que aliaacutes em Criacutetica da faculdade do juiacutezo faz dela uma prova da existecircncia do SC

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Conhecimentos e juiacutezos juntamente com a convicccedilatildeo que os acompanha tecircm que poder comunicar-se universalmente pois do contraacuterio eles natildeo alcanccedilariam nenhuma concordacircncia com o objeto [] Se poreacutem conhecimentos devem poder comunicar-se entatildeo tambeacutem o estado de acircnimo isto eacute a disposiccedilatildeo das faculdades de conhecimento para um conhecimento em geral [] porque sem esta condiccedilatildeo subjetiva do conhecer o conhecimento como efeito natildeo poderia surgir [] Ora visto que esta proacutepria disposiccedilatildeo tem que poder comunicar-se universalmente e por conseguinte tambeacutem o sentimento da mesma (em uma representaccedilatildeo dada) mas visto que a comunicabilidade universal de um sentimento pressupotildee um sentido comum assim este poderaacute ser admitido com razatildeo e na verdade sem neste caso se apoiar em observaccedilotildees psicoloacutegicas mas como a condiccedilatildeo necessaacuteria da comunicabilidade universal de nosso conhecimento a qual tem que ser pressuposta em toda loacutegica e em todo princiacutepio dos conhecimentos que natildeo seja ceacutetico (KANT 1993 [1790] sect 21 ldquoSe se pode com razatildeo pressupor um sentido comumrdquo)130

213 Virtualidade

Trataremos da virtualidade para enfatizar a dimensatildeo natildeo ou preacute-linguageira (de todo modo silenciosa isto eacute sem palavras expliacutecitas) do SC Se aprofundamos essa ideia do acordo impliacutecito sobre o sentido dos enunciados futuros e portanto sobre os conteuacutedos informativos preacutevios (crenccedilas e saberes) deparamo-nos com o espinhoso problema da natureza das proposiccedilotildees Dennett trabalhando sobre as crenccedilas em La strateacutegie de lrsquointerpregravete fornece uma boa siacutentese das diferentes concepccedilotildees de proposiccedilotildees

Existem de fato trecircs tipos de definiccedilotildees gerais de proposiccedilotildees na literatura

(1) As proposiccedilotildees satildeo entidades comparaacuteveis a sentenccedilas que possuem partes segundo certa sintaxe []

(2) As proposiccedilotildees satildeo conjuntos de mundos possiacuteveis Duas sentenccedilas exprimem a mesma proposiccedilatildeo somente se forem verdadeiras exatamente nos mesmos conjuntos de mundos possiacuteveis []

(3) As proposiccedilotildees satildeo como coleccedilotildees ou arranjos de objetos ou de propriedades no mundo (DENNET 1990 p 161-162)

Ele considera que todas essas posiccedilotildees apresentam o mesmo problema ldquoeacute esse fundo de intuiccedilatildeo que existe em relaccedilatildeo agrave possibilidade de uma apreensatildeo das proposiccedilotildeesrdquo (Ibid p 270) Sua abordagem eacute inteiramente diferente

Desde que reconheccedilamos que falar de proposiccedilotildees eacute apenas um colchatildeo heuriacutestico (Dennett 1969 p 80) uma aproximaccedilatildeo uacutetil (ainda que agraves vezes infiel) que eacute sistematicamente impossiacutevel tornar precisa podemos nos livrar daquilo que eacute essencialmente falso que

130 KANT Immanuel Criacutetica da Faculdade do Juiacutezo Traduccedilatildeo de Valeacuterio Rohden e Antoacutenio Marques Rio de Janeiro Editora Forense Universitaacuteria 1993

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consiste em dizer que toda informaccedilatildeo pode ser modelada a partir do fato de dizer ndash enviar um dictum de A a B [] (Ibid p 270 grifos do autor)

Isso o leva a formular uma definiccedilatildeo analoacutegica da proposiccedilatildeo que se adeacutequa bem agrave vagueza da noccedilatildeo de SC ldquoAs proposiccedilotildees entendidas como formas de ldquomedirrdquo a informaccedilatildeo semacircntica revelam-se mais parecidas com doacutelares que com nuacutemeros [] Natildeo haacute unidades reais naturais universais nem do valor econocircmico nem da informaccedilatildeo semacircntica (Ibid p 271 grifos do autor)

Diziacuteamos na introduccedilatildeo que a categoria ldquoSCrdquo integrava mais ou menos certos elementos a partir de uma escala de apreciaccedilatildeo relativa Os conteuacutedos proposicionais de SC tecircm a nosso ver as mesmas caracteriacutesticas que essa moeda da qual fala Dennett definida por sua virtualidade A questatildeo ldquoEsse enunciado pertence ao SCrdquo pode na verdade receber a mesma resposta que aquela dada por Dennet ao final de sua demonstraccedilatildeo ldquoO que vale uma vida de cabra Ou ainda onde e quandordquo (Ibid p 273)

214 Organizaccedilatildeo experiencial

Os saberes e crenccedilas do SC organizam a percepccedilatildeo individual do mundo e a construccedilatildeo dos conhecimentos Estabelecem a ligaccedilatildeo entre o interior e o exterior dado que configuram a percepccedilatildeo e o conhecimento do mundo para o sujeito Como aponta Goodman (1992 p 32) os mundos satildeo feitos tanto quanto encontrados ldquoSe [] os mundos satildeo feitos tanto quanto encontrados entatildeo conhecer eacute tanto fazer quanto dar conta [] Descobrir as leis implica redigi-las Reconhecer padrotildees consiste sobretudo em inventaacute-los e aplicaacute-los Compreensatildeo e criaccedilatildeo caminham juntasrdquo

A hipoacutetese do SC nos leva a adotar a posiccedilatildeo de um construtivismo moderado entre relativismo e objetivismo

215 Aproximaccedilatildeo

As crenccedilas e saberes de SC natildeo se submetem ao criteacuterio de verdade loacutegica agrave verificaccedilatildeo por demonstraccedilatildeo Remetem a uma verdade aproximativa Sua erradicaccedilatildeo que vem de uma longa tradiccedilatildeo na Franccedila das instruccedilotildees platocircnicas (Logos contra Doxa) ao espiacuterito do Iluminismo (luta contra os preconceitos) passando pela taacutebula rasa cartesiana pode ser equiparada agrave ldquoilusatildeo cartesianardquo como assinala Dascal (1999 p 115)

O preconceito sobre o preconceito impliacutecito nessa posiccedilatildeo eacute a crenccedila de que eacute possiacutevel com a ajuda de um meacutetodo satisfatoacuterio eliminar completamente os preconceitos pensar e argumentar a partir de digamos assim um grau zero de preacute-julgamentos e de preconceitos

216 Discursividade

O SC pode ser manifestado em discurso por meio de marcas epimetalinguiacutesticas e linguiacutesticas De fato os sujeitos constroem uma relaccedilatildeo com o SC em seus discursos com modalidades diferentes segundo as formaccedilotildees discursivas Nossa concepccedilatildeo de SC reencontra

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aqui parcialmente aquela de preacute-construiacutedo noccedilatildeo fundadora da anaacutelise do discurso francesa que Pecirccheux (1971 apud MALDIDIER 1990 p 153) seguindo Henry elaborava no comeccedilo dos anos 70 ldquo[] o ldquosujeito falanterdquo toma posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves representaccedilotildees das quais eacute suporte sendo que essas representaccedilotildees se encontram realizadas pelo ldquopreacute-construiacutedordquo linguisticamente analisaacutevelrdquo

A noccedilatildeo de preacute-construiacutedo estaacute intimamente articulada a um contexto epistemoloacutegico e poliacutetico especiacutefico (marxismo althusseriano inspiraccedilatildeo lacaniana) mas essa discursividade anterior agrave linguagem essa presenccedila do preacute-linguageiro no linguageiro nos parece uma propriedade partilhada pelo SC tal como o entendemos aqui

22 Manifestaccedilotildees discursivas

2211 A relaccedilatildeo com o SC uma praacutetica discursiva

Nossa questatildeo eacute a da relaccedilatildeo com o SC construiacuteda no discurso Nosso trabalho visa a contribuir com uma teoria da praacutetica discursiva dimensatildeo inserida na origem da anaacutelise do discurso (em particular por Pecirccheux) e relativamente apagada a nosso ver na anaacutelise do discurso atual131

Os discursos de fato constroem o sentido a partir de dados experienciais natildeo linguageiros (costumes haacutebitos crenccedilas quadros perceptivos e cognitivos) Esses dados satildeo taacutecitos eles natildeo precisam ser expliacutecitos e de qualquer forma natildeo estatildeo abertos agrave explicitaccedilatildeo (a possibilidade da explicitaccedilatildeo eacute segundo Dennett o que diferencia o taacutecito do impliacutecito)

Natildeo seraacute portanto o caso de ldquotraduzirrdquo as proposiccedilotildees que constituem os saberes e crenccedilas de SC mesmo a tiacutetulo heuriacutestico O que nos interessa eacute ao contraacuterio seu estado virtual e preacute-linguageiro na medida em que informa os discursos que permanecem prioritariamente nosso objeto Em conformidade com a nossa definiccedilatildeo buscaremos ver como as instruccedilotildees do SC se manifestam discursivamente

222 Os dois SC

Na perspectiva de estudo sobre corpus a noccedilatildeo de SC eacute construiacuteda por dois discursos portanto por duas visotildees diferentes

ndash Discurso 1 o discurso ldquocientiacuteficordquo do pesquisador que adota uma perspectiva funcional visando agrave anaacutelise a partir de um SC1 definido anteriormente no seio de uma elaboraccedilatildeo teoacuterica

ndash Discurso 2 o discurso dos locutores do corpus que se baseiam num SC2 cuja definiccedilatildeo eacute elaborada na praacutetica do discurso

131 A publicaccedilatildeo recente de dois dicionaacuterios de anaacutelise do discurso (DEacuteTRIE et al 2001 MAINGUENEAU CHARAUDEAU 2002) parece-nos o signo cientiacutefico e institucional de um posicionamento atual dos discursivistas no campo da ldquoteoria da teoriardquo

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O fenocircmeno interessante eacute que esse discurso 2 costuma se apresentar (e eacute particularmente o caso dos ensaios para grande puacuteblico sobre a escola escritos majoritariamente por filoacutesofos) com a ldquocientificidaderdquo do discurso 1 Acreditamos que haja duas consequecircncias decorrentes disso

ndash Do ponto de vista metodoloacutegico o risco de confundir os dois discursos eacute grande O trabalho do analista deve entatildeo conservar a profundidade do campo traccedilada pelas duas concepccedilotildees do SC e evitar confundir os dois niacuteveis sob pena de projetar um sobre o outro

ndash Do ponto de vista teoacuterico eacute interessante entender a pretensatildeo cientiacutefica do discurso 2 como a formulaccedilatildeo de uma teoria popular do SC Popular aqui quer dizer ldquoespontacircneardquo no sentido em que falamos de uma linguiacutestica ou de uma fiacutesica ou de uma psicologia popular Se como explicam os filoacutesofos das ciecircncias a experiecircncia do SC eacute o ponto de partida da teoria cientiacutefica entatildeo a teoria popular do SC que os corpora constroem parece-nos um bom ponto de partida para uma teorizaccedilatildeo linguiacutestica do SC

223 Os trecircs patamares de anaacutelise

Propomos uma aproximaccedilatildeo em trecircs niacuteveis (preacute-discursivo metadiscursivo discursivo) fundada na presenccedila de marcas no discurso

ndash Niacutevel preacute-discursivo O SC discursivizado estaacute ancorado no espaccedilo preacute-discursivo dos conhecimentos preacutevios partilhados por uma comunidade discursiva (as ldquoproposiccedilotildeesrdquo)

ndash Niacutevel metadiscursivo Os comentaacuterios dos locutores sobre a natureza de seu discurso (plano autodiscursivo) ou daquele do outro (plano alterdiscursivo) explicitam sua relaccedilatildeo com o SC

ndash Niacutevel discursivo A relaccedilatildeo com o SC se constroacutei a partir de certo nuacutemero de agenciamentos formas do jaacute-laacute convocaccedilatildeo da liacutengua manifestaccedilotildees enunciativas elaboraccedilotildees cognitivo-textuais

3 Os discursos sobre a escolaExploramos aqui uma parte dos ensaios sobre a escola publicados na volta agraves aulas de

1999 Retivemos nove dos trinta publicados a partir de um criteacuterio de representatividade relativa (e muito aproximativa) satildeo os que tiveram a maior repercussatildeo midiaacutetica O quadro dos debates eacute bem conhecido e goza de uma boa permanecircncia desde os anos 70 (reforma Haby) de forma breve a estrutura profunda eacute aquela da disputa entre Antigos e Modernos e as estruturas de superfiacutecie evoluem com as condiccedilotildees histoacutericas e sociais (PAVEAU 1999 2001) Em 1999 assumem a forma de uma oposiccedilatildeo entre ldquoRepublicanosrdquo (defensores da Escola da Repuacuteblica) e ldquoReformadoresrdquo (partidaacuterios de uma evoluccedilatildeo da escola) oposiccedilatildeo formulada pelos ldquoRepublicanosrdquo132 O corpus eacute o seguinte

132 A grande maioria dos ensaios para grande puacuteblico sobre a escola contesta as reformas e as estruturas educacionais atuais Isso indica que a origem da fala puacuteblica sobre a escola eacute no geral protestadora e contestadora Isso significa tambeacutem a nosso ver que o discurso do SC sobre a escola na Franccedila eacute informado por essa criacutetica permanente Com exceccedilatildeo de raras figuras midiaacuteticas como P Meirieu os ldquoReformadoresrdquo produzem preferencialmente obras cientiacuteficas oriundas de trabalhos universitaacuterios de difusatildeo evidentemente menos massiva que os ensaios para o grande puacuteblico

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COUTEL C Que vive lrsquoeacutecole reacutepublicaine Entretien avec P Petit Textuel ldquoConversation pour demainrdquo 120 p

JAFFRO L RAUZY J-B Lrsquoeacutecole deacutesœuvreacutee La nouvelle querelle scolaire Flammarion 269 p

MICHEacuteA J C LrsquoEnseignement de lrsquoignorance et ses conditions modernes Castelnau Climats 144 p

MILNER P A bas les eacutelegraveves Albin Michel 189 p

MOLINIER G La gestion des stocks lyceacuteens Ideacuteologies pratiques scolaires et interdit de penser LrsquoHarmattan 232 p

MOREL G TUAL -LOIZEAU D Horreur peacutedagogique Parole de profs et veacuteriteacute des copies Ramsay 253 p

MORIN E La Tecircte bien faite Repenser la reacuteforme reacuteformer la penseacutee Seuil ldquoLrsquohistoire immeacutediaterdquo 156 p

PENA-RUIZ H LrsquoEacutecole Flammarion ldquoDominosrdquo 128 p

REY M La chute de la maison Ferry Arleacutea 142 p

Pudemos mostrar num outro trabalho sobre o mesmo corpus (2002) que esses discursos construiacuteam uma relaccedilatildeo negativa com o SC escritos majoritariamente por filoacutesofos de tradiccedilatildeo ldquoplatocircnicardquo esses textos ancoram-se no que M Dascal nomeia ldquoilusatildeo cartesianardquo e formulam de maneira redundante uma vontade daquilo que chamamos de ldquolimpeza cognitivardquo fazer taacutebula rasa das verdades aproximativas logicamente falsas expressas de um modo doacutexico para construir o discurso da verdade veiculada pelo logos Essa postura eacute formulada no niacutevel metadiscursivo em particular por caracterizaccedilotildees autodiscursivas (negaccedilatildeo da convocaccedilatildeo do SC e reivindicaccedilatildeo do discurso loacutegico) e alterdiscursivas (acusaccedilatildeo da convocaccedilatildeo do SC no discurso do outro) Haviacuteamos no entanto apontado brevemente que esses discursos natildeo mantinham as posiccedilotildees declaradas pelos metadiscursos os processos de validaccedilatildeo metaenunciativos do SC (expressotildees adverbiais como ldquonaturalmenterdquo ldquoevidentementerdquo etc) e o recurso frequente ao etimologismo mostravam que a legitimidade desses discursos tambeacutem estava fundada na convocaccedilatildeo do SC

31 As formas do jaacute-laacute

O discurso diz o jaacute-laacute exterior ao sujeito sem seu conhecimento declarando-se mestre de seu discurso (em termos althusserianos falariacuteamos do indiviacuteduo interpelado em sujeito) o locutor mascara tudo ao convocar os saberes e crenccedilas do SC Eacute o caso da questatildeo geneacuterica e da negaccedilatildeo natildeomais

311 A questatildeo geneacuterica

A questatildeo geneacuterica que a retoacuterica claacutessica chama de interrogaccedilatildeo oratoacuteria eacute uma forma que registra essa postura dupla do locutor assunccedilatildeo individual e apoio no SC M Ali Bouacha

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formula muito claramente essa posiccedilatildeo na qual podemos reconhecer aliaacutes o discurso de Moore sobre as verdades do SC que podem ser apropriadas por cada um

[] o enunciado geneacuterico acumula essa propriedade dupla e agrave primeira vista contraditoacuteria de expressar um engajamento e de permitir um desengajamento Engajamento pois buscamos impor uma proposiccedilatildeo contra outra proposiccedilatildeo que lhe preexiste de uma forma ou de outra Desengajamento pois agimos como se natildeo enunciaacutessemos nossa opiniatildeo pessoal mas a de todo mundo ou melhor ainda uma verdade fundada num ldquocogitamus racionalrdquo dito de outra maneira no que ldquoobriga a pensar de acordordquo (Bachelard) (ALI BOUACHA 1993 p 285)

As formas da questatildeo geneacuterica satildeo variadas mas todas tecircm em comum o fato de instalarem uma atmosfera de duacutevida a proposiccedilatildeo avanccedilada eacute imediatamente posta em debate em nome da evidecircncia do SC que instrui uma resposta impliacutecita Nos exemplos seguintes a criaccedilatildeo da duacutevida ocorre por meio da negaccedilatildeo do futuro e da negaccedilatildeo da consequecircncia133

Interro-negaccedilatildeo

ndash Cou 40 Informar-se e formar-se satildeo a princiacutepio incompatiacuteveis para ser vocecirc mesmo natildeo seria preciso dar um passo para traacutes e para cima (o que diz a palavra ldquoalunordquo)134

ndash Rey 9 Ele [P Meirieu] natildeo eacute funcionaacuterio O que o libera entatildeo da obrigaccedilatildeo de sigilo

Que+futuro

ndash Jaf 13 Quem acreditaraacute que hoje eacute realmente importante declarar a qual campo pertencemos ao clube dos que tecircm uma visatildeo moderna e ldquoinovadorardquo de escola ou ao sindicato dos corporativistas dos saudosistas e ldquoantiquadosrdquo

ndash Rey 33 Mas quem vai querer se ver reduzido agrave categoria de repetidor natildeo podendo transmitir mais que uma iacutenfima parte de um saber amado de um saber taxado de enciclopedismo e paradoxalmente definido como o inimigo do conhecimento Quem entatildeo vai querer ndash a menos que seja levado a isso pelo medo do desemprego ndash se resignar agrave polivalecircncia Quem entatildeo vai querer submeter-se agrave vigilacircncia dos delegados de classe e ao militarismo da administraccedilatildeo

Consequecircncia negada

ndash Morel 29 Acreditamos que nossos alunos estejam suficientemente armados para praticar a ginaacutestica intelectual dos sofistas

ndash Morel 130 Quem pode ser tatildeo cego a ponto de natildeo ver que a aprendizagem da verbalizaccedilatildeo passa pelo gesto tanto quanto pelo ceacuterebro

133 As referecircncias primeiras letras do nome do autor e paacuteginas (exceto no caso de Morel e Morin)

134 NT O autor retoma a relaccedilatildeo de ldquoeacuteleacuteverdquo traduzido por ldquoalunordquo com ldquoeacuteleverrdquo que pode ser traduzido por ldquoelevarrdquo ldquolevantarrdquo entre outros Natildeo conseguimos manter essa relaccedilatildeo na traduccedilatildeo

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Outras formulaccedilotildees satildeo de ordem leacutexico- ou retoacuterico-sintaacutetica eacute a combinaccedilatildeo da interrogaccedilatildeo com a expressatildeo expliacutecita de uma soluccedilatildeo alternativa impossiacutevel que produz o efeito geneacuterico

ndash Cou 27 De que outra forma explicar essa virada educativa e de exaltaccedilatildeo da juventude que leva agrave mudanccedila do nome do ministeacuterio em 1932 []

ndash Jaf 13 Adotar certa posiccedilatildeo sobre as questotildees de poliacutetica educativa eacute simplesmente escolher entre o coacutedigo Morse e o celular

ndash Rey 32 No entanto esse prolongamento eacute em essecircncia antidemocraacutetico que famiacutelias podem manter seus filhos nos estudos por quatro a cinco anos depois do vestibular

Nesses enunciados a combinaccedilatildeo se faz com o adveacuterbio distintamente a comparaccedilatildeo teacutecnica (coacutedigo Morse e celular) e o emprego de manter conduzido pela asserccedilatildeo precedente sendo que ela mesma se apoia no SC via a expressatildeo em essecircncia

312 A negaccedilatildeo em natildeo mais

A forma natildeo mais por definiccedilatildeo soacute pode ser construiacuteda a partir do caraacuteter partilhado de um enunciado afirmativo anterior Aleacutem disso a natureza da foraclusatildeo inscreve o enunciado na temporalidade o acordo anterior remete ao passado o que explica por que essa estrutura tambeacutem participa de uma estrutura transfraacutestica e polecircmica mais ampla o mito da decadecircncia ou mito do tempo anterior bem explorado por M Angenot por exemplo (1982) e que constitui uma das crenccedilas do SC dos discursos sobre a escola Alguns exemplos

ndash Cou 40 Se a escola natildeo transmite mais a sociedade corre risco de se repetir e de natildeo mais progredir

ndash Jaf 126 Na escola de hoje a maior parte dos aprendizados que passam necessariamente pela repeticcedilatildeo dos mesmos exerciacutecios ou que dependem da memoacuteria natildeo estaacute mais garantida

ndash Morel 127 Natildeo aprender mais nada Piada triste

ndash Pen 83 [] medimos a amplitude de uma renuacutencia assim programada da Escola frente agraves desigualdades sociais que natildeo satildeo mais combatidas []

ndash Rey 33 Agrave escola natildeo se coloca mais o objetivo de enriquecer o humano mas de tornaacute-lo consumiacutevel

32 O apelo agrave liacutengua

O apelo para o SC eacute frequentemente em nosso corpus um apelo para a proacutepria liacutengua que entatildeo aparece como o lugar mais consensual de acordo com o sentido das palavras (geralmente de uma perspectiva nomenclatural) Qualquer modificaccedilatildeo de significantes ou da relaccedilatildeo significante-significado eacute entatildeo considerada como uma mudanccedila da ordem natural

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e oacutebvia do senso ldquooficialmenterdquo comum Essa eacute a ortodoxia do SC que entatildeo serve como um argumento de peso em debates sobre a escola Encontramos vaacuterias manifestaccedilotildees desse apelo agrave ortodoxia da liacutengua aqui vamos lidar com a rejeiccedilatildeo o comentaacuterio lexicoloacutegico e a definiccedilatildeo lexicograacutefica espontacircnea135

321 A rejeiccedilatildeo

Fenocircmeno de natildeo coincidecircncia do discurso consigo mesmo segundo J Authier (1995) a rejeiccedilatildeo de um segmento (na maioria das vezes uma unidade lexical) por meio de aspas ou comentaacuterios como ldquoo que chamamosrdquo ou ldquocomo dizemosrdquo aqui sinaliza uma natildeo coincidecircncia do discurso com uma concepccedilatildeo de discurso ancorada na normatividade do SC o da liacutengua As rejeiccedilotildees do corpus geralmente se relacionam com as palavras atribuiacutedas aos reformadores pedagogia ciecircncias da educaccedilatildeo profissionalizaccedilatildeo formadores Exiladas num alhures ilegiacutetimo do discurso elas satildeo de fato marcadas com um desvio das normas preacute-discursivas compartilhadas e dominantes

Rejeiccedilotildees tipograacuteficas citaccedilotildees

- Cou 8 O que vocecirc precisa saber para ensinar eacute ldquopedagogiardquo e natildeo a mateacuteria que vocecirc estaacute ensinando

- Jaf 23 Natildeo eacute incomum encontrar na abundante literatura das ldquociecircncias da educaccedilatildeordquo essa mesma escansatildeo da histoacuteria de nosso sistema educacional

- Jaf 60 No estado atual das coisas os ldquoformadoresrdquo da IUFM natildeo podem ser professores experientes

- Morel 172 Sem falar na confusatildeo que impera na terminologia [] Entre a identificaccedilatildeo de ldquocapacidadesrdquo que pressupotildeem o domiacutenio de ldquohabilidadesrdquo por sua vez detalhadas em ldquocomponentesrdquo haacute como se confundir

Combinaccedilatildeo de citaccedilotildees + comentaacuterios

- Jaf 45 Se aleacutem disso a formaccedilatildeo contiacutenua que recebem sob a forma de estaacutegios ao longo da carreira eacute mais uma vez consagrada agrave ldquoprofissatildeo docenterdquo como dizemos complacentemente e nunca ao conteuacutedo do conhecimento transmitido entatildeo eles seratildeo sem duacutevida maus professores incapazes de ensinar completamente com clareza e distinccedilatildeo os primeiros elementos

- Jaf 79 O tipo de dissimulaccedilatildeo da dimensatildeo comercial de certos ldquoprodutos culturaisrdquo como satildeo chamados eacute uma das caracteriacutesticas mais surpreendentes de nossos Modernos

135 (9) Natildeo vamos voltar ao etimologismo tratado em Paveau (2002 p 170-172)

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322 O comentaacuterio lexicoloacutegico

Trata-se de enunciados que fazem comentaacuterios criacuteticos sobre os usos lexicais do campo oposto O outro eacute acusado de se utilizar da liacutengua uma liacutengua equivocada como instrumento de dominaccedilatildeo A explicaccedilatildeo do processo eacute clara no seguinte exemplo

- Cou 13 [Pergunta] O que vocecirc chama de ldquoretoacuterica pedagoacutegicardquo [Resposta] Este eacute o conjunto de processos pelos quais os educadores oficiais especialmente Philippe Meirieu conseguem oficializar seu leacutexico e portanto sua visatildeo das instituiccedilotildees de ensino e do homem em geral [] A liacutengua dos pedagogos muitas vezes eacute repetitiva amneacutesica e autoniacutemica (ou seja confundir o nome da coisa e a proacutepria coisa) [] Eacute a essa liacutengua que eacute conveniente resistir Os tempos democraacuteticos tambeacutem satildeo favoraacuteveis a essas linguagens que satildeo consensuais sem explicaccedilatildeo Essa eacute a consequecircncia do igualitarismo um desvio da igualdade As palavras parecem verdadeiras pelo simples fato de serem usadas

Esse tipo de comentaacuterio eacute baseado em uma representaccedilatildeo ideal de liacutengua ou seja uma ldquoboardquo liacutengua liacutengua perfeita que fala a verdade do mundo representaccedilatildeo ideoloacutegica eacute claro agrave qual se apegam outros esquemas representativos

- Cou8 [Prefaacutecio de P Petit] Palavras Seria errado natildeo ter cuidado com o vocabulaacuterio que alguns usam para transmitir seus pontos de vista O dispositivo de linguagem dos atuais renovadores eacute uma maacutequina de guerra contra as escolas seculares e a educaccedilatildeo puacuteblica [] Um sistema no qual ldquoalunosrdquo se transformam em ldquojovensrdquo as ldquoaulasrdquo se transformam em ldquoatividadesrdquo a ldquodisciplina escolarrdquo se transforma em ldquoconhecimentordquo Como natildeo levar a seacuterio essa revoluccedilatildeo linguageira que a ldquopedagogia contemporacircneardquo promoveu Cabe a Charles Coutel [] ter chamado nossa atenccedilatildeo [] sobre este novo obscurantismo de palavras e valores que eacute o trampolim principal da revoluccedilatildeo cultural em curso liderada por novos pedagogos

Revoluccedilatildeo linguageira obscurantismo revoluccedilatildeo cultural a ruptura da ordem natural e oacutebvia da liacutengua eacute uma transformaccedilatildeo da ordem do mundo Os comentaacuterios lexicograacuteficos denunciam de fato uma tentativa de imposiccedilatildeo de um ldquomaurdquo SC substituindo o ldquobomrdquo no qual se baseia a liacutengua da verdade educativa ldquoTomar gato por lebre mudar pouco a pouco o sentido das palavrasrdquo como diz P Rey (p 14) Eacute a identidade do SC consigo mesmo que eacute entatildeo ameaccedilada com o SC estamos no mesmo nesta coletividade que pode ser apropriada e transmitida pelo indiviacuteduo Modificar as palavras do SC eacute colocar o outro o estrangeiro na liacutengua E a seguinte observaccedilatildeo do mesmo autor aponta bem essa ameaccedila de alteridade

- Cou 13 Trata-se antes de mais nada de tornar a escola alheia a si mesma por meio de um esvaziamento as palavras se apagam pura e simplesmente a pretexto de que ldquoenvelheceramrdquo ou de que eles satildeo muito ldquotradicionaisrdquo [] Resistir a isso eacute lembrar o sentido das palavras reprimidas ldquoinstituirrdquo significa estabelecer e instruir Esquecer

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um termo como este eacute correr o risco de esquecer toda uma seacuterie de outras palavras instituiccedilatildeo instruccedilatildeo O esquecimento mais seacuterio atualmente incide sobre as palavras ldquoeducaccedilatildeo puacuteblicardquo

Encontramos em outros autores muitas notaccedilotildees anaacutelogas

- Jaf 163 A distinccedilatildeo entre ldquoconhecimento acadecircmicordquo e ldquoconhecimento escolarrdquo poderia ser considerada como uma das muitas curiosidades que estatildeo florescendo atualmente na nova linguagem dos reformadores

- Mol 58 Assim os exerciacutecios viraram liccedilatildeo de casa entatildeo transformamos um movimento envolvendo todo o corpo [] na obrigatoriedade de realizaccedilatildeo de trabalho duro imposto de fora [] Os exerciacutecios realizados em sala de aula satildeo chamados de controles verdadeira instituiccedilatildeo dentro da instituiccedilatildeo obsessatildeo de todos os alunos Da mesma forma o aprendizado se reduz agrave obtenccedilatildeo de notas

ndash Pen 82 O vocabulaacuterio do mercado ou do espetaacuteculo natildeo tem lugar na Escola No entanto ele laacute se introduz um pouco mais a cada dia Toda uma terminologia o confirma que se encontra tanto nos textos oficiais quanto nos discursos ambientais sobre a escola confirma isso Os alunos constituiriam os ldquonovos puacuteblicosrdquo ldquousuaacuteriosrdquo ateacute mesmo ldquoconsumidores de conhecimentordquo teriam uma ldquodemandardquo que deveria ser atendida por uma ldquooferta formativardquo escolas de segundo grau deveriam ser ldquoadministradasrdquo como ldquoempresas de educaccedilatildeordquo provavelmente com ldquoparceirosrdquo etc

- Rey 15 Perversatildeo da linguagem Reforma natildeo eacute abandono Reformar natildeo eacute vender suprimir ou destruir Reformar o correio natildeo eacute transformaacute-lo agraves escondidas em um banco [] Reformar o sistema de sauacutede natildeo significa fechar uns oitenta hospitais nas pequenas cidades [] Natildeo reformar eacute melhorar []

33 A construccedilatildeo semacircntico-lexical do SC

Se os autores denunciam esses ataques agrave ortodoxia da liacutengua eles portanto implicitamente se apresentam como os detentores e possivelmente os fiadores Diversos processos discursivos contribuem para a construccedilatildeo-restauraccedilatildeo do SC perdido

331 A definiccedilatildeo lexicograacutefica espontacircnea

Chamamos de definiccedilatildeo lexicograacutefica espontacircnea a construccedilatildeo em discurso de uma definiccedilatildeo subjetiva que natildeo se refere a uma ferramenta lexicograacutefica ou a um aparato teoacuterico e que portanto remete a uma lexicografia popular Trata-se de uma remediaccedilatildeo agraves deficiecircncias de linguagem mencionadas anteriormente os locutores se empenham na restauraccedilatildeo do SC das palavras aquele que eles acreditam que deve servir de base para uma verdadeira educaccedilatildeo Eggs (1994 p 114) sublinha a dimensatildeo coletiva e generalizante da forma da definiccedilatildeo que constitui um dos lugares mais eficazes da retoacuterica ao dotaacute-la de um poder de ldquotipizaccedilatildeordquo

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Uma definiccedilatildeo eacute uma foacutermula que expressa uma ou mais tipizaccedilotildees que se tornaram quase necessaacuterias Neste caso eacute uma questatildeo de habilidade e utilidade retoacuterica apresentar seu argumento evocando implicitamente a respectiva tipizaccedilatildeo ou para interpelar argumentativamente o auditoacuterio mencionando explicitamente a ldquotipizaccedilatildeo definitivardquo como no texto de Aristoacuteteles ldquoHomens desregrados ndash todos concordariam ndash natildeo se contentam com os favores de uma soacute mulherrdquo

Este ldquotodos concordariamrdquo constitui o natildeo dito e a forccedila argumentativa da definiccedilatildeo lexicograacutefica espontacircnea que estabelece um continuum entre a opiniatildeo (o aprofundamento do conhecimento) e a definiccedilatildeo (a fixaccedilatildeo do conhecimento) O enunciado definidor eacute particularmente adequado agraves realidades sociais que admitem maior convencionalidade do que as realidades naturais Isso explica por que o processo eacute frequente em nosso corpus As formas natildeo satildeo muito variadas sendo classificadas em duas categorias principais as definiccedilotildees que explicam a atividade definitiva do falante (modelo ldquoE chamo de Xrdquo) e aquelas que apresentam apenas uma predicaccedilatildeo (modelo ldquoX eacute rdquo) Os exemplos a seguir mostram como o quadro da definiccedilatildeo fixa por tipizaccedilatildeo um conteuacutedo argumentativo (polecircmico ou ideoloacutegico) servindo em suma como uma pequena faacutebrica do SC

Eu chamo de X

- Cou 12 Atualmente reina o pedagogismo chamo de ldquopedagogismordquo a arte de multiplicar os preacute-requisitos desnecessaacuterios para o ato de aprender e para o ato de ensinar

- Jaf 16 Examinamos portanto todos os conceitos administrativo-educacionais que estatildeo a cargo da escola que denominamos ldquoideologia escolarrdquo

- Mic 14 Entenderemos aqui por ldquoprogresso da ignoracircnciardquo menos o desaparecimento de conhecimentos essenciais no sentido em que costuma ser lamentado (e muitas vezes com razatildeo) do que o decliacutenio regular da inteligecircncia criacutetica []

- Mol 26 Eu chamo de ideologia escolar todas as falsas perguntas feitas falsos problemas tratados falsas respostas dadas a problemas reais e atuais na educaccedilatildeo que satildeo tambeacutem pistas para verdadeiras questotildees poliacuteticas pedagoacutegicas e eacuteticas e mesmo antropoloacutegicas enfim todas aquelas que dizem respeito agrave formaccedilatildeo do cidadatildeo e do homem para uma profissatildeo

X eacute ou X

- Cou 15 Da mesma forma ldquoaprendizagem fundamentalrdquo agora substitui ldquoconhecimento elementarrdquo sendo que aprendizagem eacute o domiacutenio de um simples saber-fazer e ldquofundamentalrdquo eacute um termo subjetivo que natildeo se refere a nenhuma objetividade transmissiacutevel Natildeo eacute a mesma coisa de forma alguma

- Cou 81 A Repuacuteblica portanto tinha por vontade natildeo educar mas instruir Quando a relaccedilatildeo entre esses dois termos eacute elucidada o ato de ensinar torna-se faacutecil de definir eacute a arte de indicar (signare ldquoindicarrdquo) conhecimento para mentes racionais ansiosas por aprender por si mesmas

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- Jaf 166 ldquoCultura cientiacuteficardquo eacute um discurso sobre a ciecircncia o que se obteacutem quando todo o conhecimento natildeo eacute internalizado mas apenas mencionado Uma metaciecircncia

- Morel 107 [Tiacutetulo do capiacutetulo] Cultura o que resta quando vocecirc natildeo aprendeu nada

- Morin 59 A filosofia natildeo eacute uma disciplina eacute um poder de interrogaccedilatildeo e reflexatildeo que incide natildeo soacute sobre o saber e sobre a condiccedilatildeo humana mas tambeacutem sobre os grandes problemas da vida

Um dos autores aliaacutes leva a praacutetica ateacute o fim ou seja a tipizaccedilatildeo ateacute o registro em dicionaacuterio

- Mol 36 Em breve em sua nova ediccedilatildeo Le Petit Robert escreveraacute na letra A Acadeacutemie ldquo1 ant escola fundada por Platatildeo 2 mod local de conviacutevio onde procuramos amar uns aos outrosrdquo

332 A derivaccedilatildeo em de- e re-

Sabe-se que a derivaccedilatildeo repetitiva em de- privativo eacute um dos processos do discurso panfletaacuterio (ANGENOT 1982) ou reacionaacuterio (ARNOLD et al 1995) Eacute acompanhada em nosso corpus por uma prefixaccedilatildeo em re- simeacutetrica agrave primeira esperada nesse discurso ancorado no mito da decadecircncia que quer que o tempo avance regredindo e que re-accedilotildees em re- sejam necessaacuterias Aleacutem disso o processo eacute saliente em dois dos tiacutetulos do nosso corpus A escola desocupada e A cabeccedila bem feita Repensar a reforma reformar o pensamento

Este tipo de derivaccedilatildeo nos parece revelar o apelo ao SC por trecircs razotildees semacircntica morfoloacutegica e estatiacutestica

Dimensatildeo semacircnticaComo a forma em natildeo mais a forma em de- logicamente eacute construiacuteda pela pressuposiccedilatildeo

da existecircncia da unidade natildeo derivada e de seu sentido positivo (de qualquer forma natildeo negativo) mesmo que se trate frequentemente de um efeito analoacutegico pois na realidade o circuito morfoloacutegico eacute mais complexo (10)136 O raciociacutenio eacute exportaacutevel para re- Os exemplos a seguir (entre as centenas de ocorrecircncias identificadas por cada forma de- e re-) constroem os saberes e as crenccedilas do SC irrigadas pela ideologia crepuscular (PAVEAU 1999)

De-

- Jaf 90 O primeiro e principal efeito do descontentamento com o meacuterito na escola

- Mic 11 A crise do que se costumava chamar de ldquoEscola Republicanardquo [] obviamente participa do mesmo movimento histoacuterico que aliaacutes desfaz as famiacutelias decompotildee a existecircncia material e social das vilas e bairros e em geral gradualmente leva consigo

136 (10) Ainda que decompor por exemplo seja construiacutedo a partir de compor deriva desvio decadecircncia descontente etc natildeo resultam de prefixaccedilatildeo direta (a palavra natildeo prefixada desapareceu ou nunca existiu em francecircs œuvreacute) N T A observaccedilatildeo diz respeito ao termo ldquodeacutesoeuvreacuteerdquo (ociosa) que traduzimos com o objetivo de manter o prefixo de que trata a autora por ldquodesocupadardquo

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todas as formas de civilidade que haacute algumas deacutecadas ainda marcavam uma parte importante das relaccedilotildees humanas

- Mol 159 Encontramos na escrita o mesmo fenocircmeno de deslocamento e desarticulaccedilatildeo do corpo e da liacutengua Temos que ler corpos de escritos sem esqueleto a-morfos que testemunham por escrito o colapso do corpo como uma relaccedilatildeo consigo mesmo com os outros e com as coisas

- Morel 99 Falta de domiacutenio da liacutengua dificuldades de compreensatildeo falta de retrospectiva e desconstruccedilatildeo do conhecimento satildeo os principais problemas observados

- Morin 20 Consequentemente o despojamento do conhecimento muito mal compensado pela vulgarizaccedilatildeo da miacutedia coloca o problema histoacuterico agora capital da necessidade de democracia cognitiva

- Pen 96 Tendecircncia perigosa porque a deslegitimaccedilatildeo dos mestres soacute pode desencorajaacute-los ainda um pouco mais

- Rey 16 Por vinte anos e mais temos trabalhado de forma aberta ciacutenica e implacaacutevel para degradar as condiccedilotildees sociais e morais de existecircncia para destruir os serviccedilos puacuteblicos

Re-

- Cou 93 A repeticcedilatildeo seria restaurada [] Esta medida chocaria alguns mas quando constataacutessemos que ela (re) colocava os alunos para trabalhar seria amplamente aprovada

- Jaf 52 Em vez de continuar na via escolhida seria preferiacutevel tentar retroceder ndash com cautela ndash a certos preconceitos entre os mais nocivos da ideologia escolar restabelecendo a merecida confianccedila dos atores do sistema e a seriedade e o rigor que sua formaccedilatildeo exige

- Morin 46 Ela [a literatura] deve restaurar sua plena virtude

- Pen 122 Revalorizar o amor pelo conhecimento contra os desvios formalistas e pedagoacutegicos parece essencial a este respeito inclusive na luta contra as novas formas de obscurantismo e irracionalismo

- Rey 41 [] todos aqueles que pensam que um sistema educacional soacute pode ser salvo mudando os meacutetodos de ensino e evitando uma restauraccedilatildeo moral

Dimensatildeo morfoloacutegicaQuando a derivaccedilatildeo eacute neoloacutegica e o neologismo aparece em uso (salvo aspas excepcionais)

em uma frase assertiva e se inscreve num grande paradigma de termos em de- bem registrados na liacutengua isso produz um efeito de naturalizaccedilatildeo da unidade inscrita de fato nas estruturas preacute-discursivas dos destinataacuterios do discurso (algo semelhante pode ser dito da derivaccedilatildeo

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em re-) Identificamos oito neologismos que satildeo ou especiacuteficos de um autor ou retomados de um livro no outro (um caso de desritualizaccedilatildeo tirado de M Gauchet)

- Cou 37 [] as raiacutezes da desinformaccedilatildeo puacuteblica nos uacuteltimos anos

- Cou 62 Como reconstruir esse poder espiritual nas democracias modernas Eacute oacutebvio que isso requer um (re)estabelecimento da virtude poliacutetica entre cidadatildeos [] mas tambeacutem uma (re) instituiccedilatildeo escolar

- Cou 71 Os republicanos portanto correm o risco de ldquose deslaicizarrdquo sem perceber

- Jaf 118 [] tanto se tornou evidente o risco de uma marginalizaccedilatildeo coletiva de setores inteiros da juventude

- Mol 133 [] o que estamos testemunhando hoje eacute uma desinstitucionalizaccedilatildeo do corpo no sentido de que o corpo eacute desmembrado deslocado incapaz de se sustentar incapaz de se sustentar no lugar incapaz de sustentar em seu lugar

- Mol 160 Haacute uma espeacutecie de desritualizaccedilatildeo da aprendizagem (leitura escrita contagem)

- Pena 119 A (re) legitimaccedilatildeo da Escola eacute claramente urgente

Dimensatildeo estatiacutesticaA alta frequecircncia de uso dessas unidades produz um efeito de naturalizaccedilatildeo por repeticcedilatildeo

Satildeo em nossa opiniatildeo ferramentas do que Moore chama de enunciados homoloacutegicos adequados para a apropriaccedilatildeo individual das verdades de SC aqui a verdade da decadecircncia e a necessidade de um despertar reparador repeticcedilatildeo coletiva da forma [de- ou re- + X] apropriaccedilatildeo individual do segmento X

333 A derivaccedilatildeo em ndash ismo o exemplo de pedagogismo

Pedagogismo eacute um neologismo agora instalado nos usos em todo caso aqueles que testemunham os discursos do nosso corpus A sufixaccedilatildeo em -ismo produz em certos contextos unidades afetadas pela desvalorizaccedilatildeo eacute entatildeo a ideia de um sistema fechado (poliacutetico ideoloacutegico etc) mais ou menos autoritaacuterio e intencional que emerge desse sufixo tornando-se um subjetivema Todos os empregos de pedagogismo em nosso corpus satildeo marcados negativamente no contexto como mostram os exemplos a seguir

- Cou 15 O pedagogismo tambeacutem tem a perigosa ambiccedilatildeo de mudar a sociedade mudando a escola

- Cou 57 A resposta de Philippe Meirieu concentra todas as confusotildees do pedagogismo

- Jaf 100 [] a desconstruccedilatildeo do ldquocurso magistralrdquo recentemente associado ao elitismo a fragmentaccedilatildeo do grupo e a individualizaccedilatildeo dos percursos enfim tudo o que faz a reivindicaccedilatildeo atual do pedagogismo eacute justificado pela criacutetica social da escola

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- Morel 116 Voltaremos a esta noccedilatildeo de competecircncia bem como a estes novos apoacutestolos dos ldquomeacutetodosrdquo armados de certezas que datildeo aula de boa vontade adeptos de uma religiatildeo pedagogista cujo credo se resume em um slogan tatildeo pretensioso quanto destrutivo aprender a aprender

- Pen 74 As derivas sociais que potildeem em perigo a realidade especiacutefica da Escola parecem agora bem mais ameaccediladoras agrave medida que satildeo veiculadas dentro da proacutepria Escola por um discurso pedagogista muito sistematizado

Natildeo encontramos nenhuma ocorrecircncia neutra ou beneacutefica a proacutepria unidade eacute marcada pela subjetividade Como as derivaccedilotildees precedentes pedagogismo aparece em nosso corpus em enunciados assertivos determinados pelo definido generalizante o que implica uma pressuposiccedilatildeo de existecircncia e de identificaccedilatildeo O uso da palavra portanto inscreve a noccedilatildeo nas evidecircncias compartilhadas do SC como evidenciado por duas passagens interessantes A primeira constitui uma espeacutecie de arqueologia nosoloacutegica da pedagogia construindo entatildeo a noccedilatildeo como uma corrente constituiacuteda dotada de intencionalidade negativa

- Cou 26-27 [] o pedagogismo contemporacircneo detectaacutevel a partir dos anos 1920 com certos movimentos de nova educaccedilatildeo [] Um fato tambeacutem deve ser observado o fasciacutenio exercido pela Itaacutelia fascista e depois pela Alemanha nazista sobre certas mentes De que outra forma explicar essa virada educativa e de exaltaccedilatildeo da juventude que leva agrave mudanccedila do nome do ministeacuterio em 1932 ldquoEducaccedilatildeo puacuteblicardquo passou a ser ldquoEducaccedilatildeo nacionalrdquo (como na Itaacutelia) Nasceu o Estado educador e logo o pedagogo [] Este pedagogismo oficial triunfou com a lei de julho de 1989 que iria impor sob o ministeacuterio de Jospin o Estado pedagogo

A segunda atesta a mesma postura em relaccedilatildeo agrave palavra e agrave noccedilatildeo ao propor uma anaacutelise do ldquodiscurso pedagogistardquo apresentado de fato como um corpo de enunciados constituiacutedo e coerente O pedagogismo se torna quase uma formaccedilatildeo discursiva

- Jaf 177 O discurso pedagogista Pedagogia eacute um termo equiacutevoco Refere-se tanto agrave arte de ensinar quanto agrave concepccedilatildeo de educaccedilatildeo e ensino na qual essa arte se baseia Quanto ao pedagogismo existe uma concepccedilatildeo particular de ensino segundo a qual o essencial estaacute na arte de ensinar O pedagogismo eacute necessariamente polecircmico pois sua forccedila principal consiste em afirmar que a preocupaccedilatildeo com a pedagogia deve prevalecer sobre a do saber Mas ldquoa arte de ensinarrdquo tambeacutem eacute uma expressatildeo equiacutevoca Podemos compreendecirc-la como todas as praacuteticas e teacutecnicas utilizadas mais ou menos conscientemente pelo professor se forem inteiramente relativas agrave disciplina ensinada por exemplo matemaacutetica a pedagogia eacute dita especial e em nada difere da ldquodidaacuteticardquo Eacute que entendemos como ldquopedagogiardquo sobretudo um conjunto de teacutecnicas e meacutetodos cujo valor e relevacircncia sujeitos a algumas variaccedilotildees satildeo independentes das disciplinas particulares Nesse sentido a pedagogia eacute geral e se assemelha muito ao ideal loacutegico-teoloacutegico de um filoacutesofo medieval que trabalhou para inventar uma

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maacutequina para converter automaticamente os infieacuteis Tem como premissa a existecircncia de procedimentos gerais de ensino e aprendizagem que devem ser estudados promovidos e aplicados por si proacuteprios A pedagogia seria o Meacutetodo

Pedagogismo eacute um bom exemplo da construccedilatildeo discursiva do outro antagonista no discurso polecircmico a argumentaccedilatildeo requer um adversaacuterio e a eficaacutecia do discurso eacute aumentada pela existecircncia e pela identificaccedilatildeo preacutevias desse adversaacuterio Pedagogismo por meio de seu sufixo sistematizador eacute entatildeo uma palavra que concordando com N Goodman podemos dizer que eacute tanto feita tanto quanto encontrada eacute construiacuteda neologicamente no discurso ao mesmo tempo em que se articula a partir de saberes anteriores

34 A construccedilatildeo cognitivo-textual do SC

Chamamos de construccedilatildeo cognitivo-textual do SC um tipo de arranjo discursivo estabilizado que se baseia em um compartilhamento preacutevio de saberes eou crenccedilas Eacute o caso das ligaccedilotildees analoacutegicas que induzem no receptor uma transferecircncia de conhecimentos sobre um domiacutenio supostamente conhecido e partilhado que acreditamos ser do acircmbito do SC Dentre essas comparaccedilotildees estaacute obviamente a metaacutefora e retomamos as famosas hipoacuteteses de Lakoff e Johnson (1985) para quem a atividade metafoacuterica eacute natural para a expressatildeo do pensamento e da accedilatildeo Douay-Soublin (1987) fala de ldquoreconciliaccedilatildeo explicativardquo e noacutes a seguimos quando ela a torna uma macrocategoria que ignora as diferenccedilas tradicionalmente estabelecidas entre vaacuterias figuras bem estabilizadas na histoacuteria da retoacuterica

Para esta mesma forma e suas variantes a tradiccedilatildeo retoacuterica disse alternadamente paraacutebola similitude paralelo comparaccedilatildeo equivalecircncia correspondecircncia transposiccedilatildeo metaacutefora ou coloquialmente aproximaccedilatildeo ou mesmo imagem Que importa o roacutetulo desde que tenhamos a forma com o GTA [Grupo de Trabalho sobre Analogia] digo analogia para essa transferecircncia explicativa cujas condiccedilotildees de uma boa formaccedilatildeo importam mais para mim do que o nome (DOUAY-SOUBLIN 1987 on-line)

As conexotildees analoacutegicas entre X e Y satildeo suportadas pelas seguintes quatro teses

- Existem semelhanccedilas entre X e Y

- Apesar dessas semelhanccedilas X e Y satildeo diferentes de outras maneiras

- Podemos descrever ou explicar X do ponto de vista de Y usando formas de pensar que satildeo apropriadas a Y mas que natildeo teriacuteamos espontaneamente associado a X

- A comparaccedilatildeo analoacutegica permite entender melhor X porque Y eacute mais familiar e mais faacutecil de entender ou representar do que X

Note-se que a analogia tem sido tradicionalmente objeto de certo desprezo nos discursos que defendem a expressatildeo direta do conhecimento Como Douay-Soublin (1987 on-line) aponta

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[] endereccedilada pelo saacutebio ao ignorante a analogia natildeo visa ao conhecimento em todos os seus desdobramentos mas apenas a uma primeira aproximaccedilatildeo uma esquematizaccedilatildeo que leva do natildeo conhecimento ao semiconhecimento a analogia precisa de um ignorante como aacutelibi

A relaccedilatildeo analoacutegica convoca de fato um tipo de saber aproximativo natildeo loacutegico que contorna o Logos por meio dos caminhos da Doxa

Falaremos aqui da analogia proporcional e da metaacutefora sem condicionar suas diferenccedilas formais mas examinando o que as une o apelo ao CS que elas estabelecem e supotildeem

341 A analogia proporcional

A analogia oferece ao receptor um novo saber mediado por um saber compartilhado o que Douay-Soublin (1987 on-line) chama de ldquotransferecircncia de conhecimentordquo

Eacute esse efeito de suacutebita e muitas vezes duradoura elucidaccedilatildeo da representaccedilatildeo produzida por uma comparaccedilatildeo ldquoiluminadorardquo uma imagem ldquojustardquo que chamo de clique analoacutegico e me sentiria tentado na praacutetica a conceder o status de acbf (analogia cognitivamente bem formada) a todas as formas simboacutelicas que realmente desencadeiam essa transferecircncia de conhecimento qualquer que seja o nome que lhes seja dado pela tradiccedilatildeo

Nos exemplos a seguir a transferecircncia de conhecimento ocorre de um domiacutenio supostamente desconhecido ou mal conhecido para um domiacutenio conhecido cujos quadros servem de suporte para a explicaccedilatildeo Essas analogias satildeo consideradas proporcionais agrave medida que os autores comparam as proporccedilotildees

- Cou 52 A histoacuteria das ideias eacute para a filosofia o que um inseto morto eacute para o voo de um inseto Eacute uma tentaccedilatildeo formidaacutevel acreditar que esta histoacuteria das ideias prepara os alunos para o pensamento descrever um pensamento natildeo eacute pensar

- Jaf 35 O jogo dos coloacutequios e encontros pedagoacutegicos atinge em pouco tempo na escala das sociedades eruditas o que a seleccedilatildeo produz em vaacuterios milhotildees de anos no mundo dos vivos cada um quer ter sua palavra todos se alinham a um padratildeo virtual que parece nunca ter sido imposto por ningueacutem mas que acaba se tornando a regra

- Jaf 85 O meacuterito era para a poliacutetica do conhecimento o que o secularismo foi para a diversidade dos cultos uma forma bastante sofisticada de neutralidade []

- Jaf 111 Ideoloacutegica tem sido a forma de utilizar a empresa para dar um efeito de realidade ao universo fictiacutecio em que mantemos crianccedilas e professores A empresa eacute para os nossos contemporacircneos o que era a natureza no seacuteculo XVIII ou mais precisamente o mundo rural para os petainistas

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Mundo animal seleccedilatildeo natural secularismo natureza domiacutenios secundaacuterios satildeo mencionados dentro das configuraccedilotildees textuais para fins cognitivos convocando os quadros preacute-discursivos dos receptores

343 A metaacutefora

As metaacuteforas baseiam-se como especifica Aristoacuteteles em seacuteries constituiacutedas ou seja o conhecimento anterior ao discurso que organiza as representaccedilotildees

Aristoacuteteles ao mesmo tempo que insiste nas correlaccedilotildees entre seacuteries produzidas por uma estrutura idecircntica [] de fato repousa o edifiacutecio analoacutegico na existecircncia preacutevia de seacuteries jaacute constituiacutedas partes do corpo espeacutecies animais a lista de emblemas o Panteatildeo dos deuses [] Essas seacuteries que existem na memoacuteria coletiva agraves vezes satildeo longas ateacute indefinidas os nuacutemeros as cores a flora a fauna os ofiacutecios [] outras satildeo limitadas as 22 a 26 letras do alfabeto os doze trabalhos de Heacutercules os doze apoacutestolos os doze signos do zodiacuteaco os dez mandamentos [] (DOUAY-SOUBLIN 1987 on-line)

Os diferentes discursos estabelecem relaccedilotildees privilegiadas com esta ou aquela seacuterie Sabemos que o discurso da educaccedilatildeo se baseia em metaacuteforas recorrentes como aponta Charbonnel (1993) que daacute a seguinte lista viagens alimentaccedilatildeo preenchimento escultura combate luz arquitetura vida animal crescimento vegetal estabelecida com base em um estudo de textos que vatildeo da Antiguidade ao seacuteculo XIX Os discursos contemporacircneos sobre a escola (que satildeo organizados no quadro argumentativo da controveacutersia ao contraacuterio do corpus de Charbonnel) se baseiam em algumas dessas metaacuteforas estruturantes (em particular alimentaccedilatildeo e vida animal) mas oferecem outras amplamente utilizadas Escolhemos aqui falar sobre doenccedilas e militares Natildeo satildeo especiacuteficos ao nosso corpus do ano de 1999 mas organizam todos os discursos da ldquocontroveacutersia escolarrdquo que estudamos desde 1975 (PAVEAU 1999) Satildeo tambeacutem metaacuteforas estruturantes do debate polecircmico em geral que podem ser encontradas no discurso poliacutetico por exemplo

A metaacutefora meacutedicaEacute uma descriccedilatildeo analoacutegica da crise escolar que permite vaacuterias tipizaccedilotildees esclarecedoras

das quais daremos dois exemplos

- A associaccedilatildeo ldquoReformadoresrdquomaus meacutedicos e ldquoRepublicanosrdquobons meacutedicos

- Jaf 15 A poliacutetica educativa consulta os especialistas em didaacutetica e em pedagogia pede-lhes remeacutedios dirigiu-se aos piores meacutedicos pois a didaacutetica e a pedagogia por muito tempo anteciparam na teoria essa renuacutencia agrave transmissatildeo e em vez de curar a doenccedila optaram por apressar seu fim

- Rey 29 Vamos reformar o ensino meacutedio jaacute que abandonamos a faculdade Mais tarde vamos reformar a Universidade Gangrena e amputaccedilatildeo

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- Confusatildeo entre remeacutedio (boa reforma escolar) e veneno (maacute reforma)

- Jaf 33 Condenamo-nos a curar uma doenccedila que eacute proibido diagnosticar publicamente por meio de remeacutedios que sabemos infligir mal

- Rey 38 Este truque de passa-passa [] permite [] sob o pretexto de tratar a paciente acabar com ela E vai acabar com ela com a cumplicidade das mesmas pessoas que tecircm mais interesse pela sua sobrevivecircncia os pais dos alunos e os alunos as classes meacutedias e as classes trabalhadoras

- Rey 50 Tornar a escola uma das causas do desemprego alivia os empregadores e as empresas de sua imensa parcela de responsabilidades Eacute apresentar o remeacutedio como o veneno e o veneno como o remeacutedio

A metaacutefora militarEacute usada de duas maneiras A maneira melhorativa que vai ao encontro do que Charbonnel

chama de ldquoo combaterdquo associa ensino e bravura de guerra

- Pen 78 [] quem tem que trabalhar na linha de frente ndash professores no geral e professores da escola primaacuteria e natildeo pedagogos profissionais que jaacute natildeo ensinam ndash pode ser vencido pelo desacircnimo

- Rey 9 A vida nas trincheiras [tiacutetulo do capiacutetulo]

- Mil 11 [tiacutetulos dos capiacutetulos] 1 Os objetivos da guerra ndash 2 O teatro de operaccedilotildees ndash 3 As forccedilas opostas ndash 4 Suas taacuteticas [dos alunos] ndash 7 Os ardis da guerra ndash 8 A intendecircncia e as bases da retaguarda ndash 9 As alegrias do esquadratildeo

O ponto de vista polecircmico apela sobretudo para a desvalorizaccedilatildeo da atividade militar que entatildeo serve de comparaccedilatildeo com o funcionamento atual da escola

- Mol 27 Esses meacutetodos satildeo mais parecidos com os meacutetodos de gestatildeo de estoques de mercadorias [] do que com meacutetodos de instruccedilatildeo e se queremos manter o uacuteltimo termo eacute mais uma questatildeo de instruccedilatildeo militar do que instruccedilatildeo intelectual isto eacute um aprendizado da submissatildeo e da aprendizagem cega

- Mol 86 A escola de gestatildeo deve treinar seus oficiais subalternos [tiacutetulo do capiacutetulo]

- Morel 122 Algumas exceccedilotildees significativas poreacutem nesta ofensiva generalizada contra a memoacuteria e os procedimentos de aprendizagem o jogador de futebol ou tecircnis o virtuoso artista de concerto e ateacute o candidato agrave carteira de motorista

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ConclusatildeoAo final deste trabalho gostariacuteamos de fazer duas observaccedilotildees

- Levar em consideraccedilatildeo o SC requer um trabalho sobre a presenccedila de crenccedilas e saberes compartilhados na proacutepria materialidade do discurso o SC eacute uma realidade representacional que exige um discurso de atestaccedilatildeo Na ausecircncia dessa comprovaccedilatildeo discursiva o trabalho sobre o SC eacute limitado pela subjetividade do analista e enviesado por seus proacuteprios saberes e crenccedilas

- O discurso sobre a escola privilegia formas ldquointelectuaisrdquo de apelo ao SC determinadas pela formaccedilatildeo discursiva originaacuteria consideraccedilatildeo constante da liacutengua reflexatildeo sobre o sentido uso de figuras retoacutericas Os outros corpora constroem o apelo ao SC de forma diferente (os militares favorecem as formas praacuteticas e os jornalistas favorecem as formas culturais)

As formas de convocaccedilatildeo do SC constroem assim a identidade dos locutores nos discursos e sua consideraccedilatildeo depende integralmente de uma teoria das praacuteticas discursivas

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A LINGUIacuteSTICA FORA DE SI MESMA EM DIRECcedilAtildeO A UMAPOacuteS-LINGUIacuteSTICA137

No nuacutemero 139140 da revista Pratiques sobre linguiacutestica popular publicado haacute pouco mais de dez anos a introduccedilatildeo se intitulava ldquoA linguiacutestica lsquofora do templorsquordquo (ACHARD-BAYLE PAVEAU 2008) Essa expressatildeo refletia outras formulaccedilotildees de uma lacuna em relaccedilatildeo agraves normas que definiam e obrigavam as ciecircncias (ciecircncia selvagem ciecircncia popular ciecircncia profana e mesmo pseudociecircncia) mas tambeacutem a arte (arte bruta fora dos muros arte inocente arte outsider) a medicina (medicinas alternativas medicinas doces138) e muitas outras praacuteticas sociais A linguiacutestica popular eacute de fato alinhada aos colecionadoresas apaixonadosas dos inventores de teorias sem academia dos curandeiros e das bruxas dos saacutebios e xamatildes dosdas artistas loucosas dosdas criadoresas ociososas Essa linguiacutestica estaacute alinhada agraves pessoas que falam sem elaboraccedilatildeo cientiacutefica nem construccedilatildeo teoacuterica cientiacutefica sobre o que falam e o que os outros comentam

Haacute dez anos eu pensava de modo ainda um pouco binaacuterio essa fronteira entre o que eacute cientiacutefico-acadecircmico e o que natildeo eacute ainda que a tipologia dos natildeo-linguistas proposta no texto ldquoOs natildeo-linguistas fazem linguiacutesticardquo139 propusesse um continuum numa perspectiva jaacute poacutes-dualista (PAVEAU 2008) Esta forma de colocar as coisas me parece hoje ultrapassada e pouco defensaacutevel embora ela seja a regra na linguiacutestica acadecircmica Os artigos agrupados nesse nuacutemero da revista Carnets du Cediscor (onde este texto foi originalmente publicado) parece ir em direccedilatildeo a um pensamento escalar em ruptura com o binarismo fundador da ciecircncia linguiacutestica a linguiacutestica popular constituiacuteda pelos metadiscursos dos natildeo-linguistas contribui de fato a situar a linguiacutestica natildeo somente fora do templo mas tambeacutem fora de si mesma isto eacute fora de seus periacutemetros disciplinares imaginaacuterios e normativos e fora dos seus criteacuterios de legitimidade Essa evoluccedilatildeo estaacute tambeacutem ancorada nas mudanccedilas pelas quais passam atualmente todos os discursos tanto aqueles do mundo quanto os da ciecircncia e numa perspectiva internacional Ela estaacute articulada essencialmente em torno da derrota dos dualismos fundadores e do surgimento dos lugares de fala digitais que podem ser apropriados por todos

Os natildeo-linguistas natildeo existem eu osas encontreiDurante os uacuteltimos anos o pensamento poacutes-dualista traccedilou seu percurso e as propostas

para pensar o mundo de maneira ecoloacutegica satildeo felizmente desenvolvidas nutrindo agora muitos trabalhos questionamento da divisatildeo entre natureza e cultura (LATOUR 1991 DESCOLA 2006) a hierarquizaccedilatildeo dos seres e das coisas que colocava o humano no topo da

137 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A La linguistique hors drsquoelle mecircme Vers une postlinguistique Les Carnets du Cediscor 142018 on-line Disponiacutevel em httpjournalsopeneditionorgcediscor1478 Traduccedilatildeo de Julia Lourenccedilo Costa (UFSCarFAPESP)

138 NT Terapias que vatildeo da homeopatia agrave acupuntura e agrave fitoterapia Disponiacutevel em httpswww1folhauolcombrfspcotidianff2909200119htm Acesso em 10 out 2020

139 NT O texto faz parte deste livro

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piracircmide (SCHAEFFER 2007) a concepccedilatildeo internalista do espiacuterito (DENNET 1990) tambeacutem o distanciamento do antropocentrismo (BODDICE 2011) e do eurocentrismo (CHAKRABARTY 2009) Nesses diferentes campos o questionamento das distinccedilotildees dualistas enriquece os resultados das pesquisas e mais amplamente enriquece os pontos de vista pensamos melhor fora dos muros das divisotildees categoriais geograacuteficas e ideoloacutegicas do que no interior dos periacutemetros forccedilados e fechados Da derrota desses binarismos encenada atualmente emerge tambeacutem a invalidez de uma separaccedilatildeo clara entre o que seria cientiacutefico e o que natildeo seria principalmente no que se refere ao conhecimento sobre a linguagem Nancy Niedzielski e Dennis Preston demonstraram na siacutentese que fizeram em 2000 que no centro das atividades linguiacutesticas profissionais os linguistas adotavam atitudes profanas e que reciprocamente diversas descobertas linguiacutesticas profanas se revelaram perfeitamente precisas e verificaacuteveis140 Eu mesma apelei em 2008 por uma perspectiva integracionista dos saberes populares contra um eliminativismo que ainda funda a definiccedilatildeo de ciecircncia (eliminaccedilatildeo dos saberes do senso comum) Levar em consideraccedilatildeo e ateacute mesmo respeitar os resultados da linguiacutestica popular eacute portanto um enriquecimento da proacutepria linguiacutestica e eacute difiacutecil entender porquecirc os linguistas deveriam se privar dela Eacute o que explica Catherine Ruchon no seu artigo sobre a atividade de definiccedilatildeo do discurso animal ldquoAs teorias populares fornecem caminhos de acesso aos processos de semiotizaccedilatildeordquo (RUCHON no mesmo nuacutemero da revista onde o original foi publicado141)

Ela daacute o exemplo da palavra carne do ponto de vista dos carniacutevoros que natildeo evoca ou natildeo evoca mais o sema da animalidade que eacute o que o militantismo animal faz ldquoAs teorias populares podem portantordquo ela conclui ldquoalimentar a pesquisa sobre a relaccedilatildeo entre o leacutexico a referecircncia e as representaccedilotildees mostrando como as categorizaccedilotildees leacutexico-semacircnticas populares satildeo formadas e quais satildeo as representaccedilotildees axioloacutegicas associadasrdquo (Ibidem) Essa integraccedilatildeo dos pontos de vista e em uacuteltima instacircncia das experiecircncias dosdas locutoresas em detrimento da abordagem usual e logocentrada de suas proacuteprias produccedilotildees compete plenamente a uma perspectiva poacutes-dualista

Anne-Charlotte Husson vai mais longe na integraccedilatildeo dos pontos de vista dosdas locutoresas ao propor uma elaboraccedilatildeo teoacuterica que articula a linguiacutestica popular e a epistemologia do ponto de vista (a standpoint epistemologyepistemologia do ponto de vista feminista norte-americana) Essa articulaccedilatildeo permite que ela integre na anaacutelise dos fenocircmenos linguageiros e discursivos os dados eacuteticos e poliacuteticos dos ambientes produtores de discurso (HUSSON no mesmo nuacutemero da revista onde o original foi publicado142) Eis portanto a linguiacutestica popular descrita como linguiacutestica natildeo binaacuteria que funciona de maneira ecoloacutegica baseada em uma episteme poacutes-dualista Natildeo foi esse o caso do coletivo de 2008 que ainda assim reuniu

140 Lembremos que as primeiras proposiccedilotildees da linguiacutestica popular foram feitas nos Estados Unidos por Hœnigswald em 1966 quando as versotildees contextualistas da linguiacutestica estavam se desenvolvendo de acordo com o trabalho de Harris em particular (HARRIS 1969 HŒNIGSWALD 1966) Isso significa que a linguiacutestica popular eacute contemporacircnea ao nascimento da linguiacutestica contextual entendida como uma superaccedilatildeo linguiacutestica fraacutestica internalista tornada emblemaacutetica pelas Estruturas Sintaacuteticas de Chomsky (CHOMSKY 1962)

141 NT ldquoLexique cateacutegorisation et repreacutesentation les reformulations meacutetalinguistiques dans le discours animalisterdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1226

142 NT ldquoLa contribution des theacuteories feacuteministes du standpoint Pour une version forte de la perspective folkrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1324

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quinze artigos entretanto se inserem nessa perspectiva poacutes-dualista natildeo apenas as propostas ecoloacutegicas de antropoacutelogos filosoacuteficos como Philippe Descola mas tambeacutem os estudos de gecircnero finalmente instalados na Franccedila e surgidos da ironia um tanto desdenhosa que as ciecircncias humanas e sociais francesas que haacute muito reservaram aos estudos culturais seus objetos sujos Tambeacutem a chegada de uma nova geraccedilatildeo de pesquisadoresas que puderam se apropriar desses legados de maneira lucrativa e muitas vezes com alegria como evidencia esta ediccedilatildeo143 e tambeacutem o presente livro

Parecia-me possiacutevel em 2008 dizer que os natildeo-linguistas eram valiososas linguistas Eu diria hoje que natildeo existem natildeo-linguistas uma vez que a linguiacutestica eacute praticada de forma plural a partir de posiccedilotildees variadas e mutaacuteveis os natildeo-linguistas natildeo existem pois estatildeo em toda parte e ser linguista constitui uma posiccedilatildeo e uma construccedilatildeo discursiva Isso eacute claramente demonstrado pelo artigo de Judith Visser sobre liacutenguas regionais144 nesta questatildeo de fato a distinccedilatildeo linguista versus natildeo-linguista eacute particularmente inoperante na medida em que o conhecimento sobre os dialetos por exemplo eacute inacessiacutevel aos linguistas profissionais Portanto prefiro dizer hoje que os linguistas quaisquer que sejam seu status sua atividade e sua legitimidade social satildeo poacutes-linguistas valiososas no bom sentido do termo145 Por poacutes-linguista quero dizer uma pesquisadora equipadoa epistemologicamente ciente da natureza mais institucional que cientiacutefica das fronteiras disciplinares das ciecircncias da linguagem integrando plenamente contextos (realia146 e pontos de vista) em seu trabalho sobre as mateacuterias linguageiras e discursivas em uma abordagem ecoloacutegica que evita o logocentrismo antropocentrismo e eurocentrismo

OsAs amadoresas no terreno da web falar de pessoas que falamA web eacute um fator determinante para a implantaccedilatildeo de uma praacutetica poacutes-linguiacutestica Nos

uacuteltimos dez anos esse espaccedilo de fala se desenvolveu consideravelmente e mudou as praacuteticas sociais inclusive as linguiacutesticas a web 20 um dos serviccedilos de internet mais usados devido suas possibilidades conversacionais colaborativas e participativas de fato permite que o discurso linguiacutestico dosas amadoresas seja expresso de forma ilimitada tanto nos espaccedilos puacuteblicos quanto nos privados Retomo o termo amadora de Patrice Flichy (2010) que em Le sacre de lrsquoamateur (A consagraccedilatildeo do amador) descreve essa apropriaccedilatildeo das possibilidades da web por pessoas comuns que fazem o que antes estava reservado aos profissionais fotografia filme arte escrita criacutetica venda tantas praacuteticas que a acessibilidade aos espaccedilos e agraves ferramentas facilitaram muito O mesmo acontece com as praacuteticas linguiacutesticas que encontram na web conversacional lugares de formulaccedilatildeo e recepccedilatildeo os espaccedilos de escrita e

143 NT O nuacutemero 14 de 2018 da revista Les Carnets du Cediscor intitulado ldquoLes meacutetadiscours des non-linguistesrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1089

144 NT ldquoLinguiste ou non-linguiste Reacuteflexions sur une dichotomie controverseacutee agrave partir de lrsquoanalyse de meacutetadiscours sur les langues reacutegionalesrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1384

145 Acrescento esse esclarecimento pensando na carga atualmente muito depreciativa da palavra poacutes-verdade e nas conotaccedilotildees frequentemente criacuteticas de outros termos em poacutes- como poacutes-humanismo por exemplo

146 NT ldquoEm traduccedilatildeo os realia satildeo palavras que denotam objetos conceitos e fenocircmenos exclusivos de uma determinada cultura Por natildeo possuiacuterem correspondecircncias precisas em outras culturas representam muitas vezes um desafio para o tradutorrdquo Disponiacutevel em httpsptwikipediaorgwikiRealia Acesso em 10 out 2020

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discussatildeo on-line (espaccedilos para escrever blogs dispositivos tecnodiscursivos dos comentaacuterios formatos de discussatildeo das redes sociais) favorecem a produccedilatildeo de locutoresas comuns sobre a liacutengua mas tambeacutem a permitem no sentido simboacutelico do termo aquilo que eacute uma novidade em relaccedilatildeo aos lugares de expressatildeo preacute-digital

Em seu artigo sobre dicionaacuterios colaborativos147 Kaja Dolar enfatiza algo que a linguiacutestica natildeo estaacute habituada a abordar as ldquoexperiecircncias pessoaisrdquo dos linguistas que fundam seus saberes lexicograacuteficos Este campo dos dicionaacuterios colaborativos on-line eacute particularmente interessante para a observaccedilatildeo das praacuteticas linguiacutesticas porque natildeo se trata apenas de colaboraccedilatildeo mas tambeacutem da ampliaccedilatildeo enunciativa (os sujeitos da enunciaccedilatildeo satildeo perpetuamente tecidos pelas livres contribuiccedilotildees dos internautas) da relacionalidade (as definiccedilotildees propostas satildeo colocadas em relaccedilatildeo com outros documentos por meio de links hipertextuais) e inumerabilidade (ao contraacuterio do diagrama lexicograacutefico tradicional que inclui apenas uma definiccedilatildeo mesmo longa os dicionaacuterios colaborativos podem oferecer vaacuterias dezenas de definiccedilotildees como pode ser visto em alguns artigos do The Urban Dictionary por exemplo) Os criteacuterios de validade dos metadiscursos produzidos satildeo portanto dos trabalhos lexicograacuteficos habituais onde eacute a expertise do enunciador que fundamenta sua legitimidade on-line eacute o controle colaborativo e a negociaccedilatildeo intersubjetiva muitas vezes anocircnima que valida as definiccedilotildees ou as descriccedilotildees como na Wikipeacutedia por exemplo Eacute por isso que a questatildeo aqui colocada por Dietmar Osthus sobre a captaccedilatildeo das produccedilotildees dosas locutoresas comuns148 na maior parte do tempo indescritiacutevel eacute crucial invisibilizadosas e tornadoas imperceptiacuteveis pela ldquoespiral do silecircnciordquo149 estesas uacuteltimosas produzem uma massa de discurso que afeta a sociedade mas natildeo eacute reconhecida ldquoO desafio que se apresenta para as pesquisas futuras em linguiacutestica popularrdquo enfatiza Dietmar Osthus (no mesmo nuacutemero da revista onde o original foi publicado) ldquoseraacute coletar as fontes de lsquofalantes comunsrsquo fora dos espaccedilos de discussatildeo ou de publicaccedilatildeo explicitamente metalinguiacutesticosrdquo

Em um contexto natildeo digital parece que esse desafio tambeacutem eacute assumido por Franccedilois Labatut que mostra que as atividades metalinguiacutesticas estatildeo em accedilatildeo em um determinado tipo de discurso150 o amicus brief texto no qual o cidadatildeo ou cidadatilde americanoa comum podem fornecer evidecircncias ao juiz no contexto de um julgamento Com efeito Franccedilois Labatut mostra que neste tipo de texto que natildeo tem vocaccedilatildeo metalinguiacutestica os ajustes metalinguiacutesticos satildeo numerosos destinados a servir a uma das partes envolvidas no processo Voltando agrave web seus espaccedilos de escrita natildeo modificam simplesmente o conteuacutedo dos metadiscursos e a proacutepria concepccedilatildeo de lexicografia como indica Kaja Dolar mas a ecologia inteira da praacutetica linguiacutestica suas formas seus objetos seus criteacuterios de reconhecimento e legitimidade seus espaccedilos Eacute tambeacutem nisso que a linguiacutestica se torna poacutes-linguiacutestica os terrenos da web e

147 NT ldquoLes dictionnaires collaboratifs en ligne des objets meacutetalinguistiques profanesrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1161

148 NT ldquoAgrave la recherche du lsquolocuteur ordinairersquo vers une cateacutegorisation des meacutetadiscoursrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1124

149 Dietmar Osthus retoma aqui a noccedilatildeo desenvolvida nos anos 1970 por Eacutelisabeth Noeumllle-Neumann para descrever o funcionamento da opiniatildeo puacuteblica consultar a referecircncia em seu artigo

150 NT ldquoEacutenonceacutes deacutefinitoires et subjectiviteacute dans les deacutebats sur lrsquoeacutevolution du mariage aux Eacutetats-Unisrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1268

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mais amplamente da internet pressionam a linguiacutestica para fora de seus templos e para fora de si mesma forccedilando-a nas abordagens ecoloacutegicas sob a ameaccedila de perder a dinacircmica da construccedilatildeo do sentido e a vida da mateacuteria linguageira

Provincializar a linguiacutestica por uma ecologia do discursoA linguiacutestica popular ou os metadiscursos de pessoas que falam provincializam a linguiacutestica

no sentido que Dipesh Chakrabarty emprega esse termo Em Provincialiser lrsquoEurope la penseacutee postcoloniale et la diffeacuterence historique (Provincializar a Europa pensamento poacutes-colonial) e diferenccedila histoacuterica (CHAKRABARTY 2009) ele se propotildee a pensar a histoacuteria dos paiacuteses natildeo ocidentais natildeo mais a partir do centro europeu e eurocecircntrico mas a partir das margens Ele preconiza um descentramento das epistemes ocidentais uma viagem para fora de si mesmas e em certa medida de modo a adotar abordagens mais globais e respeitosas em relaccedilatildeo agraves realidades singulares das aacutereas geograacuteficas implicadas A provincializaccedilatildeo eacute portanto uma saiacuteda do centro levando em conta as margens o que consequentemente implica o apagamento desta distinccedilatildeo dualista centromargens Para Dipesh Chakrabarty (2009 p 92) trata-se de ldquoimaginar a heterogeneidade radical do mundordquo A provincializaccedilatildeo eacute uma abordagem poacutes-dualista e nos meus termos ecoloacutegica Mais recentemente Eduardo Kohn retoma essa noccedilatildeo para aplicaacute-la diretamente agrave linguagem No famoso ensaio Comment pensent les focircrets (Como as florestas pensam) ele compreende que os signos linguiacutesticos natildeo satildeo os uacutenicos elementos de significaccedilatildeo linguageira a serem considerados e que tambeacutem devemos estar atentos aos iacutecones e indiacutecios usados pelos agentes natildeo humanos animais aacutervores e plantas para representar ldquo[] os outros modos de representaccedilatildeo tecircm propriedades bastante diferentes daquelas demonstradas pelas modalidades simboacutelicas das quais a linguagem depende Em suma se interessar pelos tipos de signos que emergem e circulam para aleacutem do simboacutelico permite convencer-nos da necessidade de lsquoprovincializarrsquo a linguagemrdquo (KOHN 2017 p 68)

Continuo a tecer a metaacutefora de minha parte desejando uma provincializaccedilatildeo natildeo apenas da linguagem mas da proacutepria linguiacutestica que me parece bem iniciada pelas praacuteticas da linguiacutestica popular Considerar no proacuteprio trabalho linguiacutestico os metadiscursos das pessoas comuns incorporando suas experiecircncias de vida seus pontos de vista suas posiccedilotildees morais suas situaccedilotildees poliacuteticas e tudo o que compotildee sua vida permite agrave linguiacutestica sair do logocentrismo que a priva da profundidade da vida dos sujeitos (a linguiacutestica da enunciaccedilatildeo por exemplo permanece nas margens de suas vidas) A plena integraccedilatildeo das condiccedilotildees de fala dosas locutoresas nas praacuteticas linguiacutesticas quer sejam elas dosas produtoresas dos corpora ou de seus analistas permite iniciar o programa de uma poacutes-linguiacutestica que respeita tanto os ambientes das pessoas que falam quanto suas palavras

Sobre a autora oas organizadorase osas tradutoresas

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Marie-Anne Paveau eacute professora e pesquisadora na Universiteacute Paris XIII ndash Sorbonne Paris Nord Trabalha na teoria do discurso com uma abordagem transdisciplinar (filosofia ciecircncias sociais SIC pesquisa sobre Internet estudo acerca de animais e plantas) Desenvolve uma anaacutelise do discurso que integra ambientes natildeo humanos de natureza tecnoloacutegica corporal animal e vegetal na produccedilatildeo do discurso em uma perspectiva poacutes-dualista e

ecoloacutegica Atualmente trabalha na articulaccedilatildeo entre discurso gecircnero e raccedila em uma perspectiva decolonial Grupos e colaboraccedilotildees Anaacutelise do discurso digital (AD2I) grupo franco-brasileiro de pesquisa ndash Universidades de Campinas e Paris 13 e Feminilidades Discurso e Sexualidade grupo franco-brasileiro de pesquisa ndash Universidades de Campinas Paris 13 e ENS Lyon Publicaccedilotildees recentes LrsquoAnalyse du discours numeacuterique Dictionnaire des formes et des pratiques (Hermann 2017) Le discours pornographique (La Musardine 2014) Langage et morale Une eacutethique des vertus discursives (Lambert-Lucas 2013) La langue franccedilaise Passions et poleacutemiques (VUIBERT ROSIER 2008) Les preacutediscours Sens meacutemoire cognition (Presses Sorbonne Nouvelle 2006) Les grandes theacuteories de la linguistique (COLIN SAFARTI 2003)

E-mail mapaveauorangefr

Fonte httpspleiadeuniv-paris13frprofilmarie-annepaveau

Eacuterika de Moraes eacute docente na Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo (UNESP) vinculada agrave Faculdade de Arquitetura Artes e Comunicaccedilatildeo campus de Bauru e ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Estudos Linguiacutesticos do IBILCE-UNESP Satildeo Joseacute do Rio Preto Com poacutes-doutoramento pela Universiteacute Paris-Sorbonne (Paris IV) sob supervisatildeo do professor Dr Dominique Maingueneau realizado em 2017 Doutora e Mestre em Linguiacutestica pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas IELUNICAMP com ecircnfase em Anaacutelise do Discurso de linha francesa Graduada em Comunicaccedilatildeo Social Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo (UNESP) e em Letras pela Universidade do Sagrado Coraccedilatildeo Liacuteder do grupo de Pesquisa DisCo21 ndash Discurso e Comunicaccedilatildeo no Seacuteculo XXI e membro do FEsTA ndash Foacutermulas e Estereoacutetipos Teoria e Anaacutelise

E-mail erikademoraesuolcombrLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr7422887152634157

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Fernando Curtti Gibin eacute doutorando e mestre em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) e eacute bacharel em Letras com Habilitaccedilatildeo de Tradutor pela Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo (UNESP) e em Direito pelo Centro Universitaacuterio de Rio Preto (UNIRP) No que concerne agrave vida profissional atua como produtor de conteuacutedo revisor de textos professor de liacutengua portuguesa e advogado Agrave luz dos estudos linguiacutesticos apresenta especialidade na aacuterea de Linguiacutestica com ecircnfase em Linguiacutestica Textual e em Anaacutelise do Discurso Nas aacuteguas dos estudos juriacutedicos eacute poacutes-graduando em Direito Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD)

E-mail fernandocurttihotmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr2951925118571459

Julia Lourenccedilo Costa eacute pesquisadora de Poacutes-doutorado com apoio da Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa do Estado de Satildeo Paulo na Universidade Federal de Satildeo Carlos (FAPESPUFSCar 201712792-0) sob a supervisatildeo de Roberto Leiser Baronas Realizou estaacutegio de pesquisa na Universidade Paris 13 Nord (FAPESP 201818860-0) sob a supervisatildeo de Marie-Anne Paveau Doutora em Linguiacutestica (2017) pela Universidade de Satildeo Paulo (USP) com periacuteodo de estaacutegio de pesquisa na Universidade Paris-Sorbonne IV sob a supervisatildeo de Dominique Maingueneau Mestra em Linguiacutestica (2013) pela USP e graduada em Letras (2011) pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) Eacute membro do Laboratoacuterio de Estudos Epistemoloacutegicos e Discursividades Multimodais (LEEDiMUFSCar) e do Grupo de Estudos Semioacuteticos da Universidade de Satildeo Paulo (GES-USP) Eacute editora assistente da revista Linguasagem (PPGLUFSCar) e da revista da ANPOLL Sua pesquisa tem como foco a Anaacutelise do discurso francesa a Semioacutetica greimasiana e a Comunicaccedilatildeo nas diversas interfaces com os feminismos E-mail juliajlcgmailcom Link para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr5592296124389416

Marco Antonio Almeida Ruiz eacute Bacharel Mestre e Doutor em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) Eacute Doutor em Sociologia pela Eacutecole des Hautes Eacutetudes en Sciences Sociales (EHESS) de Paris e poacutes-doutorando em estudos linguiacutesticos pela Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras da USP de Ribeiratildeo Preto E-mail marcoalmeidaruizgmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr4613888575492521

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Maria de Faacutetima Sopas Rocha eacute Professora Associada aposentada da Universidade Federal do Maranhatildeo Eacute doutora em linguiacutestica pela Universidade Federal do Cearaacute Participou como pesquisadora dentre outros dos projetos Atlas Linguiacutestico do Maranhatildeo ndash AliMA Atlas Linguiacutestico do Brasil ndash AliB e Tesouro do Leacutexico Patrimonial Galego e Portuguecircs Foi fundadora e Professora Permanente do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Letras ndash Mestrado Acadecircmico Participou como autora ou organizou em coautoria dentre outras as seguintes obras A diversidade do portuguecircs falado no Maranhatildeo o Atlas Linguiacutestico do Maranhatildeo em foco (2006) O portuguecircs falado no Maranhatildeo estudos preliminares (2010) O portuguecircs falado no Maranhatildeo muacuteltiplos olhares Pelos caminhos da Dialetologia e da Sociolinguiacutestica entrelaccedilando saberes e vidas (2010) Dicionaacuterio da obra de Domingos Vieira Filho (2015) E-mail fsopasyahoocombrLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr6600718231861371

Mariana Luz Pessoa de Barros possui bacharelado e licenciatura em Liacutengua Portuguesa (USP) mestrado (2006) e doutorado (2011) em Semioacutetica e Linguiacutestica Geral (USP) e Poacutes-Doutorado em Linguiacutestica (2016) pela USP Realizou estaacutegio de doutorado-sanduiacuteche na Universiteacute Paris 8 Atuou como professora de liacutengua portuguesa no Ensino Fundamental II e no Ensino Meacutedio (ensino regular e EJA) Foi coordenadora do Foacuterum de Atualizaccedilatildeo em Pesquisas Semioacuteticas (FAPS Ges-Usp) e coeditora da Revista Estudos Semioacuteticos (USP) Atualmente eacute professora adjunta do Departamento de Letras da Universidade Federal de Satildeo Carlos vice-presidenta do Grupo de Estudos Linguiacutesticos do Estado de Satildeo Paulo (2019-2021) e liacuteder do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Semioacutetica da UFSCar (PISCar) Suas publicaccedilotildees envolvem os seguintes temas estudos do texto e do discurso semioacutetica autobiografia memoacuteria tempo anaacutelise do discurso poliacutetico e ensino de liacutengua portuguesa E-mail maluzpessoagmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr4830505244404566

Mocircnica Magalhatildees Cavalcante eacute doutora em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Pernambuco com poacutes-doutoramento pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Coordena o grupo de pesquisa Protexto na Universidade Federal do Cearaacute onde atua ainda hoje como Professora Associada Dentre as obras que produziu ou organizou citam-se as seguintes Referenciaccedilatildeo (2003) Os sentidos do texto (2012) Intertextualidade ndash diaacutelogos possiacuteveis (2007) Referenciaccedilatildeo (2013) Coerecircncia referenciaccedilatildeo e ensino (2014) Eacute organizadora das traduccedilotildees Apologia da polecircmica (2017) de Ruth Amossy e O texto ndash tipos e protoacutetipos de Jean-Michel Adam (2019) E-mail monicamc02gmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr5088972912048247

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Paula Camila Mesti possui graduaccedilatildeo em Letras ndash Licenciatura em Portuguecircs-Inglecircs (2007) e mestrado em Letras (2010) pela Universidade Estadual de Maringaacute (2010) e doutorado em Linguiacutestica (2017) pela Universidade Federal de Satildeo Carlos Com apoio de bolsa BEPEFAPESP fez doutorado sanduiacuteche na Sorbonne ndash Paris IV em Paris ndash Franccedila sob a supervisatildeo do Professor Dominique Maingueneau no periacuteodo de setembro2014 a junho2015 Nos anos de 2011 e 2012 foi professora colaboradora da Universidade Estadual do Mato Grosso ndash campus de Tangaraacute da Serra-MT Atualmente eacute secretaacuteria executiva da Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-graduaccedilatildeo e Pesquisa em Letras e Linguiacutestica e professora colaboradora da Universidade Estadual do Paranaacute ndash campus de Campo Mouratildeo Eacute membro do Laboratoacuterio de Estudos Epistemoloacutegicos e de Discursividades Multimodais ndash LEEDiM ndash UFSCarCNPq desde 2013 E-mail paulamestihotmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr8453392455009320

Phellipe Marcel da Silva Esteves possui bacharelado em Comunicaccedilatildeo Social (Jornalismo) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007) licenciatura em Liacutengua Portuguesa pela Universidade Candido Mendes (2008) mestrado em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2010) doutorado em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal Fluminense (2014) e residecircncia em pesquisa na Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional (2014-2016) Atualmente eacute professor adjunto da UFF aleacutem de exercer os ofiacutecios de ediccedilatildeo e traduccedilatildeo Tem experiecircncia na aacuterea de Letras com ecircnfase em Anaacutelise do Discurso atuando principalmente nos seguintes temas anaacutelise do discurso histoacuteria das ideias linguiacutesticas histoacuteria do livro linguiacutestica aplicada e linguiacutestica O materialismo histoacuterico como princiacutepio a paternidade como vida a revoluccedilatildeo dos trabalhadores como horizonteE-mail phellipemarcelyahoocombr Link para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr6384597108585900

Roberto Leiser Baronas eacute professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) e no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Estudos da Linguagem da UFMT Graduado em Letras (1994) pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e Doutor em Linguiacutestica e Liacutengua Portuguesa (2003) pela Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo (UNESP) Durante o ano de 2003 fez seu doutorado ldquosanduiacutecherdquo na Universidade Paris Est - Creacuteteil - Val de Marne - Franccedila no Centro de Estudos de Discursos Imagens Textos Escritos e Comunicaccedilatildeo - CEacuteDITEC (2003) Poacutes-doutorado no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Linguiacutestica Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL) na Faculdade de Filosofia Comunicaccedilatildeo Artes e Letras da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP) Eacute um dos coordenadores do Laboratoacuterio de Estudos Epistemoloacutegicos e Discursividades Multimodais (LEEDiMUFSCar) Editor chefe da revista Linguasagem - Revista Eletrocircnica de Popularizaccedilatildeo Cientiacutefica em Ciecircncias da Linguagem (PPGLUFSCar) Seus estudos tecircm como foco a anaacutelise do discurso a linguiacutestica popularfolk linguistics o discurso poliacutetico e a epistemologia e a histoacuteria da linguiacutestica brasileira E-mail baronasuolcombr Link para o Lattes httplattescnpqbr4613001301744682

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Samuel Ponsoni eacute Graduado em Letras Mestre e Doutor em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Satildeo Carlos ndash UFSCar (2015) Atualmente eacute professor Designado na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) Unidade Passos Coordena nessa mesma universidade o laboratoacuterio de estudos e pesquisas intitulado Laboratoacuterio Interdisciplinar de Comunicaccedilatildeo Discurso Acontecimento e Memoacuteria (LABIAM ndash UEMGCNPq) E-mail samuelponsoniuemgbrLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr6739815431846441

Tamires Cristina Bonani Conti atualmente eacute doutoranda no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Linguiacutestica da UFSCar Desenvolveu pesquisa de mestrado na mesma universidade Fez parte deste mestrado (sanduiacuteche) na Universiteacute Sorbonne Nouvelle ndash Paris 3 sob supervisatildeo de Dominique Legallois Eacute formada em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) (2014) Fez intercacircmbio acadecircmico de graduaccedilatildeo na Universidad de Buenos Aires (20131) Foi bolsista de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica da FAPESP (2011-2012) e tambeacutem do CNPq (2014) Eacute integrante do Grupo de Estudos ldquoLaboratoacuterio de Estudos Epistemoloacutegicos e de Discursividades Multimodaisrdquo (LEEDiM UFSCar) E-mail tamy_bonanihotmailcom Link para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr3442362906177938

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Page 4: Linguística folk : uma introdução

Viacutecios na falaPara dizerem milho dizem mio

Para melhor dizem mioacutePara pior pioacute

Para telha dizem teiaPara telhado dizem teiado

E vatildeo fazendo telhados

(Oswald de Andrade Poesias reunidas In Obras completas Rio de Janeiro Civilizaccedilatildeo Brasileira 1978 p 47)

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SumaacuterioApresentaccedilatildeo 7

Parte I ndash Definiccedilotildees e conceitos 12

A linguiacutestica ldquofora do templordquo 13

Natildeo-linguistas fazem linguiacutestica 27

As normas perceptivas da linguiacutestica popular 44

O falar das classes dominantes linguiacutestica popular e dialetologia perceptiva 55

Parte II ndash Aplicaccedilotildees e perspectivas 73

Linguiacutestica popular e ensino de liacutengua categorias em comum 74

A liacutengua sem classes da gramaacutetica escolar 85

Imagens da liacutengua nos discursos escolares 96

As vozes do senso comum nos discursos sobre a escola 103

A linguiacutestica fora de si mesma em direccedilatildeo a uma poacutes-linguiacutestica 128

Sobre a autora oas organizadoras e osas tradutoresas 133

Bibliografia 139

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ApresentaccedilatildeoEacute com muita alegria que entregamos a todas todes e todos interessados em questotildees de

linguagem um conjunto de textos sobre linguiacutestica folk ou linguiacutestica popular da discursivista francesa Marie-Anne Paveau especialmente reunidos para uma ediccedilatildeo brasileira

Falar de linguiacutestica folk especialmente no que concerne ao contexto brasileiro eacute dissertar sobre um aparente paradoxo Com efeito se olharmos para as aacutereas que os grandes eventos da linguiacutestica brasileira consideram como fazendo parte do escopo das ciecircncias da linguagem1 ou mesmo o que as agecircncias de fomento consideram como aacutereas dignas de se obter financiamento para a pesquisa a linguiacutestica folk natildeo aparece como um desses campos Entretanto para ficar somente no que circula na miacutedia uma espiada mais detida em um site de notiacutecias qualquer levantaraacute quase diariamente um conjunto de textos ou mesmo comentaacuterios de internautas sobre questotildees de linguagem na maioria esmagadora das vezes produzidos por natildeo-especialistas em linguiacutestica Natildeo se trata somente de discussotildees de natureza prescritiva mas que abarcam tambeacutem outros tipos de praacuteticas tais como as descritivas intervencionistas e militantes Eacute justamente nesse sentido que afirmamos tratar-se de um aparente paradoxo pois embora a linguiacutestica folk natildeo esteja institucionalizada em termos de domiacutenio ou subdomiacutenio das ciecircncias da linguagem nos grandes eventos da linguiacutestica brasileira ou nas agecircncias de fomento ela estaacute muito viva e dinacircmica em outros contextos sobretudo na boca dosas falantes e nos teclados dosdas internautas

Este livro da pesquisadora francesa Marie-Anne Paveau (ineacutedito tanto no contexto francecircs quanto no brasileiro) completa uma espeacutecie de trilogia epistemoloacutegica e teoacuterico-metodoloacutegica iniciada pela autora com a publicaccedilatildeo de Os preacute-discursos sentido memoacuteria cogniccedilatildeo2 passando tambeacutem pela publicaccedilatildeo de Linguagem e moral uma eacutetica das virtudes discursivas3 Trata-se de abordagens distintas sobre a linguagem mas que no seu conjunto aleacutem de conectadas satildeo imprescindiacuteveis para a sustentaccedilatildeo epistemoloacutegica e teoacuterico-metodoloacutegica de um grande programa de pesquisa da autora acerca do digital ou dos tecnodiscursos materializado no livro Anaacutelise do discurso digital dicionaacuterio das formas e das praacuteticas4 Os trinta e um verbetes que compotildeem esse potente e ousado programa de pesquisa de Paveau tecircm como pano de fundo epistemoloacutegico e teoacuterico-metodoloacutegico a questatildeo dos preacute-discursos o problema da relaccedilatildeo entre linguagem e moral no que concerne agraves virtudes discursivas ou ainda as proposiccedilotildees formuladas no acircmbito da linguiacutestica folk Satildeo essas trecircs bases que sustentam toda a pavimentaccedilatildeo perquirida no acircmbito de uma Anaacutelise do Discurso Digital proposta por Marie-Anne Paveau

1 Referimo-nos basicamente agrave Associaccedilatildeo Brasileira de Linguiacutestica (ABRALIN) ao Grupo de Estudos Linguiacutesticos do Estado de Satildeo Paulo (GEL) e agrave Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-graduaccedilatildeo em Letras e Linguiacutestica (ANPOLL)

2 A ediccedilatildeo francesa Les preacutediscours sens meacutemoire cognition foi publicada em 2006 pela Presses Sorbonne nouvelle e a ediccedilatildeo brasileira pela Editora Pontes em 2013

3 A ediccedilatildeo francesa Langage et morale une eacutethique des vertus discursives foi publicada em 2013 pela Eacuteditions Lambert-Lucas e a brasileira pela Editora UNICAMP em 2015

4 A ediccedilatildeo francesa LrsquoAnalyse du discours numeacuterique dictionnaire des formes e des pratiques foi publicada em 2017 pela Eacuteditions Hermann e a brasileira organizada por dois de noacutes seraacute publicada pela Editora Pontes no iniacutecio de 2021

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Os nove capiacutetulos que compotildeem este livro embora jaacute tenham sido publicados individualmente em forma de artigo em diversos perioacutedicos franceses5 num periacuteodo que compreende uma vintena de anos nunca foram reunidos em um uacutenico suporte Coube a noacutes como organizadoras o trabalho de reunir e ao lado de diversosas discursivistas brasileirosas traduzir e dispor os textos de maneira que a linguiacutestica folk obtivesse estatuto proacuteprio para o ingresso no campo dos estudos da linguagem sendo natildeo apenas apresentada no contexto de liacutengua portuguesa como uma das possibilidades pertinentes e relevantes de se refletir sobre a linguagem com base nos metadiscursos dosas locutoresas questatildeo praticamente inexistente no que concerne agraves ciecircncias da linguagem mas tambeacutem como uma possibilidade concreta de discussatildeo da validade epistemoloacutegica e especialmente social desses saberes bem como a sua aplicaccedilatildeo praacutetica Aplicaccedilatildeo essa tanto no acircmbito dos mais diferentes domiacutenios e subdomiacutenios das ciecircncias da linguagem enquanto possibilidade de integraccedilatildeo quanto no que concerne ao ensino de liacutenguas

O recorte efetuado para a organizaccedilatildeo deste livro se deu a partir de dois grandes eixos que produzem coesatildeo epistemoloacutegica e teoacuterico-metodoloacutegica aos capiacutetulos aqui publicados o da definiccedilatildeo e conceitos da linguiacutestica folk e o da aplicaccedilatildeo e das perspectivas desse campo de estudos Esses dois eixos aleacutem de organizarem de alguma forma a leitura deixam menos opaco o projeto do livro introduzir a problemaacutetica da linguiacutestica folk no contexto da liacutengua portuguesa Cumpre destacar que embora esteja totalmente fora de nossos propoacutesitos qualquer tipo de cenografia que busque privilegiar o controle do leitor e dos sentidos acreditamos ser pertinente apresentar ndash mesmo que rapidamente ndash cada um dos capiacutetulos que compotildeem esta coletacircnea

No capiacutetulo inicial deste livro panoramicamente a autora apresenta o campo de estudos da linguiacutestica folk enfatizando num primeiro momento que a irrupccedilatildeo desse campo estaacute relacionada com um movimento maior que envolve praticamente todos os campos do conhecimento qual seja o da presenccedila de fenocircmenos jaacute relativamente conhecidos o aumento do niacutevel de conhecimento dos indiviacuteduos sobretudo em razatildeo do desenvolvimento das novas tecnologias de comunicaccedilatildeo o aumento da disponibilizaccedilatildeo dos saberes nas publicaccedilotildees tradicionais ou eletrocircnicas a expressiva difusatildeo da informaccedilatildeo em muacuteltiplos suportes especialmente os gratuitos Todos esses fenocircmenos (que concernem especialmente aos paiacuteses desenvolvidos) contribuem significativamente para o aumento dos saberes dos indiviacuteduos e para um apagamento das diferenccedilas entre profissionais do saber (os universitaacuterios por exemplo) e os detentores profanos de saberes ou de saberes profanos Na sequecircncia Paveau apresenta as geografias em que a linguiacutestica folk estaacute bem estabilizada e as suas muacuteltiplas dimensotildees epistemoloacutegica teoacuterica representacional e praacutetica

No segundo capiacutetulo a discursivista trata da questatildeo da linguiacutestica folk com base no trabalho dos natildeo-linguistas Ela examina primeiro a figura do linguista folk ou linguista popular apresentando uma tipologia em regime escalar e natildeo binaacuteria desde o linguista amador escritor

5 Agradecemos vivamente os Editores das revistas francesas (Pratiques Langage et Societeacute Eacutetudes de linguistique apliqueacutee Le Franccedilais aujourdrsquohui e Les carnets du Cediscor) em que os textos aqui reunidos foram originalmente publicados que gentilmente autorizaram a traduccedilatildeo e a publicaccedilatildeo em liacutengua portuguesa

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de livros didaacuteticos ao humorista produtor de jogos de palavras em cena passando pelos escritores juristas e outros locutores afetados pelas questotildees linguageiras Na sequecircncia a autora discute a validade dos saberes folk no acircmbito das ciecircncias da linguagem com base em duas posiccedilotildees possiacuteveis em filosofia das ciecircncias (o eliminativismo de P Churchland e o realismo doce de D Dennet) Por fim ela propotildee uma terceira postura epistemoloacutegica a qual designa ldquointegracionistardquo os conhecimentos populares satildeo saberes pertinentes e devem com efeito ser integrados agrave linguiacutestica que frequentemente desenvolve suas teorias somente baseada nas intuiccedilotildees dos linguistas profissionais

No capiacutetulo trecircs Paveau aborda a questatildeo das normas perceptivas mobilizadas por falantes comuns em suas praacuteticas linguiacutesticas Ela fala precisamente de praacuteticas linguiacutesticas e natildeo de praacuteticas linguageiras designando um campo bem identificado nos Estados Unidos a linguiacutestica folk e em menor medida na Alemanha (Volklinguistik) menos ainda no domiacutenio francoacutefono no qual muitos designadores com referentes um tanto vagos coexistem para designar esse conjunto de discursos natildeo eruditos natildeo especialistas sobre as formas e padrotildees da linguagem e do discurso linguiacutestica popular espontacircnea profana selvagem natildeo erudita A interrogaccedilatildeo da pesquisadora natildeo diz respeito agrave dimensatildeo prescritiva versus descritiva das normas assim produzidas mas concerne ao valor das percepccedilotildees na elaboraccedilatildeo de um discurso linguiacutestico popular e portanto agrave validade das teorias populares em relaccedilatildeo agraves teorias acadecircmicas teorias cientiacuteficas

Marie-Anne Paveau se debruccedila no quarto capiacutetulo sobre os pontos cegos ou impensados nos trabalhos de sociolinguiacutestica francesa de um lado nos planos praacutetico e metodoloacutegico o falar das classes dominantes como natildeo-objeto de pesquisa e de outro lado nos planos epistemoloacutegico e teoacuterico a natildeo-consideraccedilatildeo dos resultados da linguiacutestica popular (linguiacutestica folk) e dos paracircmetros perceptivos no estudo dos fenocircmenos linguageiros Ela propotildee inicialmente um balanccedilo sobre a noccedilatildeo de classe social na sociolinguiacutestica francesa e anglo-saxatilde e a descriccedilatildeo da notaacutevel assimetria que existe entre as classes comumente escolhidas pelas ciecircncias sociais como terreno de investigaccedilatildeo (trabalhadores povo excluiacutedos e em menor grau as classes meacutedias) e os pertencimentos reais ou imaginaacuterios dos indiviacuteduos (em que se encontram igualmente as classes dominantes as elites as aristocracias e as burguesias herdadas ou reconstruiacutedas) Na sequecircncia a autora examina numa perspectiva integracionista as formas e a validade dos resultados da linguiacutestica folk praacutetica analiacutetica antiga em especial sobre o falar das elites e dos bairros nobres Ela mostra tambeacutem em particular que os conceitos e meacutetodos da dialetologia perceptual norte-americana ainda pouco presentes nas pesquisas francesas permitem tratar esse tipo de corpus e fazer proposiccedilotildees linguiacutesticas sobre os falares de classe Por fim a discursivista propotildee uma primeira descriccedilatildeo do falar das classes dominantes com base na linguiacutestica folk enfatizando alguns de seus aspectos caracteriacutesticos pronuacutencia ldquoMarie-Chantalrdquo coacutedigo lexical e rituais pragmaacuteticos

No quinto capiacutetulo partindo da afirmaccedilatildeo de que o desenvolvimento da ciecircncia cognitiva e depois da etnometodologia fez emergir a questatildeo da ciecircncia espontacircnea dos sujeitos questatildeo natural para um campo que lida com o desenvolvimento do conhecimento das percepccedilotildees e das representaccedilotildees dos indiviacuteduos a autora explora este problema no campo da liacutengua

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francesa fazendo uma pergunta simples as categorias espontacircneas de alunos podem ser mobilizadas no ensino da liacutengua ou devem pelo contraacuterio ser desconstruiacutedas para dar lugar a categorias aprendidas Depois de definir o que se denomina ldquolinguiacutestica popularrdquo e sublinhar seu interesse pelo campo do ensino-aprendizagem da liacutengua ela busca responder a essa questatildeo por meio de trecircs exemplos de categorias a palavra a flexatildeo verbal e o gecircnero do discurso

No sexto capiacutetulo Marie-Anne Paveau com base no princiacutepio de que a representaccedilatildeo unitaacuteria da liacutengua tem uma funccedilatildeo social importante que natildeo deve ser obliterada por razotildees praacuteticas e tambeacutem didaacuteticas sociais e ateacute ideoloacutegicas ela assevera que eacute realmente o francecircs padratildeo que deve ser ensinado na escola No entanto para a autora isso natildeo implica a falta de abordagem e o silenciamento sobre a variaccedilatildeo social em particular ela questiona ainda se na liacutengua como em outras situaccedilotildees existem fenocircmenos de classe se existe um francecircs popular e um francecircs das classes dominantes e se as redes sociais os grupos e as comunidades que cruzam as classes de maneira complexa sem apagaacute-las tambeacutem se definem por suas formas de falar fortemente marcadas por determinismos sociais Eacute esta questatildeo da variaccedilatildeo social no sentido mais classista do termo que a discursivista aborda aqui comparando as gramaacuteticas escolares com base nos saberes linguiacutesticos chamados ldquoacadecircmicosrdquo e nos saberes da gramaacutetica espontacircnea ou gramaacutetica popular (ldquofolk gramarrdquo que adveacutem da linguiacutestica popular ldquofolk linguisticsrdquo) altamente desenvolvida nos Estados Unidos que integra o paracircmetro classista

No seacutetimo capiacutetulo a pesquisadora reflete sobre o discurso escolar Assim ao falar sobre esse tipo de discurso ela toca num problema metodoloacutegico importante o que se entende por ldquodiscurso escolarrdquo Identificado restritivamente como discurso da escola e ateacute mesmo agrave custa de uma reduccedilatildeo espacial como discurso na escola o discurso escolar natildeo eacute impedido por si mesmo de se relacionar com aqueles que se encontram fora do espaccedilo escolar ou da instituiccedilatildeo escolar Em outras palavras o discurso na escola natildeo eacute apenas os discursos da escola seria preciso portanto poder compartilhar o que eacute dos pais e da famiacutelia o que depende de paracircmetros sociais e culturais o que se capta no discurso da miacutedia o que emerge de uma crenccedila popular etc E esses proacuteprios discursos interpenetram-se e entrelaccedilam-se formando um universo discursivo que se organiza de maneira diferente de acordo com os tempos as crises e os acontecimentos Falar de imagens de liacutengua em discursos escolares natildeo pode assim ser feito sem levar em conta a polifonia essencial e essa tarefa eacute muito importante para ser realizada no acircmbito de um capiacutetulo Como em trabalhos anteriores ela aborda a questatildeo tanto fora quanto dentro da escola propondo aqui algumas respostas poreacutem sempre muito ldquomonofocircnicasrdquo reduzindo os discursos escolares aos que satildeo produzidos no acircmbito da escola pelos alunos pelos professores pelos livros e pelos textos oficiais

No oitavo capiacutetulo a partir de um corpus de ensaios do mainstream contemporacircneo sobre a escola Paveau propotildee uma concepccedilatildeo de senso comum ponderada pelas dimensotildees semacircntica e perceptual em uma abordagem em trecircs niacuteveis (preacute-discursivo metadiscursivo e discursivo) a partir da presenccedila de marcas no discurso O senso comum no discurso estaacute de fato ancorado no espaccedilo preacute-discursivo do conhecimento preacutevio compartilhado em uma

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comunidade discursiva se manifesta no niacutevel metadiscursivo por meio de comentaacuterios dos falantes explicando sua relaccedilatildeo com o senso comum (marcas de negaccedilatildeo ou captura de formas de senso comum destinada agrave validaccedilatildeo de enunciados) e eacute construiacuteda no niacutevel discursivo por meio de certo nuacutemero de arranjos lexicais enunciativos e frasais

No uacuteltimo capiacutetulo numa espeacutecie de conclusatildeo deste livro a autora defende que a renovaccedilatildeo dos estudos sobre a linguiacutestica popular por meio da consideraccedilatildeo dos pontos de vista dos locutoresas e de suas experiecircncias de vida se inscreve num amplo movimento mundial de descentramento que exaspera atualmente as ciecircncias humanas e sociais O questionamento dos grandes dualismos fundadores as indagaccedilotildees das abordagens poacutes-coloniais e as epistemologias militantes permitem abordagens poacutes-dualistas que podem ser mobilizadas em linguiacutestica A integraccedilatildeo dos metadiscursos das pessoas comuns no programa da linguiacutestica a conduz em direccedilatildeo a uma dimensatildeo ecoloacutegica que a pesquisadora qualifica de poacutes-linguiacutestica

Cumpre destacar uma vez mais que este livro de Marie-Anne Paveau sobre linguiacutestica folk natildeo vem corroborar os discursos negacionistas de variadas ordens que se inscrevem numa espeacutecie de sociologia da ignoracircncia tatildeo em voga atualmente e profundamente deleteacuteria para a ciecircncia em particular e para a toda a sociedade em geral mas vem para

Considerar no proacuteprio trabalho linguiacutestico os metadiscursos das pessoas comuns incorporando suas experiecircncias de vida seus pontos de vista suas posiccedilotildees morais suas situaccedilotildees poliacuteticas e tudo o que compotildee sua vida permitindo agrave linguiacutestica sair do logocentrismo que a priva da profundidade da vida dos sujeitos A plena integraccedilatildeo das condiccedilotildees de fala dosas locutoresas nas praacuteticas linguiacutesticas quer sejam elas dosas produtoresas dos corpora ou de seus analistas permite iniciar o programa de uma poacutes-linguiacutestica que respeita os ambientes das pessoas que falam e suas palavras (PAVEAU 2018)

Enfim este livro vem corroborar a necessidade premente do debate acerca da instauraccedilatildeo das novas partilhas do discurso acadecircmico Deixamos um agradecimento muito especial a autora Marie-Anne Paveau que prontamente acolheu a proposta desta coletacircnea e tambeacutem um muito obrigado afetuoso a todosas tradutoresas pelo seu esmerado trabalho Oacutetima leitura a todas todes e todos As sugestotildees e criacuteticas satildeo sempre muito bem-vindas

Satildeo Carlos UFSCar primavera de 2020Oas organizadoras

Parte I

Definiccedilotildees e conceitos

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A LINGUIacuteSTICA ldquoFORA DO TEMPLOrdquo6

1 Sobre a relevacircncia e a pertinecircncia em se discutir linguiacutestica popularEm 2008 a European Review of Philosophy publica uma ediccedilatildeo totalmente dedicada a

Folk Epistemology (HEINTZ POUSCOULOUS TARABORELLI 2008) Neste nuacutemero diversas questotildees abordadas pelos autores majoritariamente filoacutesofos recobrem exatamente as questotildees que pretendemos apresentar esquematicamente no capiacutetulo inicial deste livro Essas preocupaccedilotildees atestam que existe atualmente em diversos campos do conhecimento (filosofia epistemologia linguiacutestica psicologia neurociecircncias biologia e outros domiacutenios) uma robusta interrogaccedilatildeo sobre a natureza dos saberes sobre os modos de constituiccedilatildeo e de legitimaccedilatildeo dos conhecimentos ditos cientiacuteficos Neste nuacutemero a European Review of Philosophy propotildee ainda as seguintes questotildees

a) Qual eacute o domiacutenio adequado de um sistema de epistemologia popular

b) As avaliaccedilotildees epistecircmicas envolvem o pensamento consciente

c) As avaliaccedilotildees epistecircmicas satildeo especiacuteficas de humanos

d) Como a epistemologia popular contribui para o pensamento racional

e) Quais satildeo as relaccedilotildees (se houver) entre a epistemologia normativa a epistemologia do senso comum e a epistemologia popular

f) Como a epistemologia popular se relaciona com nossa compreensatildeo ingecircnua da verdade

g) Quais aspectos da cultura poderiam ser explicados com base em uma epistemologia popular

h) Os sujeitos compartilham as mesmas intuiccedilotildees epistemoloacutegicas entre culturas Ou as epistemologias variam entre culturas (HEINTZ POUSCOULOUS TARABORELLI 2008 p 34)

Neste livro de natureza introdutoacuteria natildeo temos espaccedilo para explicar pormenorizadamente a emergecircncia atual de todas essas questotildees Contentar-nos-emos em trazer agrave lembranccedila fenocircmenos bem conhecidos o aumento do niacutevel de conhecimento dos indiviacuteduos sobretudo em razatildeo do desenvolvimento das novas tecnologias de comunicaccedilatildeo o aumento da disponibilizaccedilatildeo dos saberes nas publicaccedilotildees tradicionais ou eletrocircnicas a expressiva difusatildeo da informaccedilatildeo em muacuteltiplos suportes especialmente os gratuitos Todos esses fenocircmenos (que concernem especialmente aos paiacuteses desenvolvidos) contribuem significativamente

6 Texto originalmente publicado em ACHARD-BAYLE G PAVEAU M-A Preacutesentation La linguistique laquo hors du temple raquo Pratiques p 01-15 2008 Traduccedilatildeo de Roberto Leiser Baronas (UFSCar) Tamires Cristina Bonani Conti (UFSCarFAPESP) e revisatildeo teacutecnica de Julia Lourenccedilo Costa (UFSCarFAPESP) Outra versatildeo deste texto foi publicada no Dossiecirc ldquoLinguiacutestica popularfolk linguistics e linguiacutestica cientiacutefica em vez do versus propomos a integraccedilatildeordquo na revista Foacuterum Linguiacutestico v 16 nuacutemero 4 2019 Disponiacutevel em httpsperiodicosufscbrindexphpforumarticleview1984-84122019v16n4p4257 A expressatildeo ldquofora do templordquo usada no tiacutetulo deste artigo foi emprestada do projeto que Ameacutelie Cure preparou para o nuacutemero sobre Linguiacutestica Popular publicado na revista Pratiques no nuacutemero anteriormente citado Essa expressatildeo faz eco agrave foacutermula ldquofora do cacircnonerdquo que designa a arte bruta a arte dos loucos das crianccedilas dos inexperientes dos natildeo artistas tambeacutem chamada de ldquoarte outsiderrdquo ou ldquofolk artrdquo

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para o aumento dos saberes dos indiviacuteduos e para um certo apagamento das diferenccedilas entre profissionais do saber (os universitaacuterios por exemplo) e os detentores profanos de saberes ou de saberes profanos7 Outros elementos mais confidenciais pois concernem agrave histoacuteria das ciecircncias podem ser desenvolvidos a reflexatildeo sobre as relaccedilotildees entre saber e crenccedila eacute tatildeo antiga quanto o proacuteprio pensamento assim como o valor do conhecimento do senso comum natildeo suscetiacutevel de verificaccedilatildeo loacutegica (COATES 1996 DASCAL 1999 MARKOVITTS 1999 DENNETT 1990 [1987] FISETTE POIRIER 2002) a emergecircncia de uma disciplina como a etnometodologia que trouxe a partir da segunda metade do seacuteculo XX novos objetos epistemoloacutegicos para as ciecircncias humanas tal como o ldquosaber dos participantesrdquo ou novos meacutetodos como a ldquocompreensatildeordquo em especial a partir das narrativas de vida

Enfim as ciecircncias cognitivas contrariamente agrave sulforosa reputaccedilatildeo positivista e naturalista foram as primeiras a se perguntar como os conhecimentos de qualquer natureza satildeo produzidos no ceacuterebro de todas as pessoas e natildeo somente nos mais cientiacuteficos Diante desse quadro nos pareceu pertinente e mesmo relativamente urgente que a linguiacutestica independentemente da histoacuteria e da geografia que a abrigue visto que ainda permanece um pouco distante desse questionamento epistemoloacutegico se interrogue e se deixe interrogar pela dimensatildeo folk dos saberes

Tomando como referecircncia um conjunto de artigos publicados inicialmente na revista Pratiques em 20088 que tratam especificamente de questotildees atinentes agrave linguiacutestica popular propomo-nos entatildeo a discutir neste capiacutetulo mesmo que de maneira natildeo exaustiva a questatildeo da linguiacutestica popular no interior das ciecircncias da linguagem Para tanto perseguiremos vaacuterios objetivos a) desejamos dar conta da ausecircncia no contexto francecircs de um campo identificado como ldquolinguiacutestica popularrdquo ou ldquolinguiacutestica folkrdquo em comparaccedilatildeo com os domiacutenios anglo-saxocircnico e alematildeo nos quais a linguiacutestica popular faz parte de um dos subdomiacutenios da linguiacutestica geral Nesses paiacuteses a folk linguistics ou a Volklinguistik estatildeo bem implantadas e satildeo muito dinacircmicas com publicaccedilotildees e manifestaccedilotildees cientiacuteficas consistentes nestes uacuteltimos anos que podem ser atestadas na bibliografia deste livro por exemplo b) desejamos igualmente explorar ou mesmo definir o que o campo da linguiacutestica pode sublinhar no domiacutenio francoacutefono em comparaccedilatildeo a domiacutenios conexos e problemaacuteticas afins como o purismo a gramaacutetica normativa o trabalho sobre as normas linguiacutesticas sobre a metalinguagem ou sobre a noccedilatildeo de epilinguiacutestica por exemplo c) pretendemos igualmente abrir uma reflexatildeo sobre a validade dos saberes profanos e por consequecircncia sobre os saberes ldquocientiacuteficosrdquo questatildeo que eacute muito especiacutefica em linguiacutestica na medida em que a reflexividade a introspecccedilatildeo a consciecircncia linguiacutestica e a epilinguiacutestica satildeo problemaacuteticas que definem a disciplina Qual eacute portanto a pertinecircncia das intuiccedilotildees dos locutores profanos em comparaccedilatildeo agraves elaboraccedilotildees cientiacuteficas dos linguistas Esses uacuteltimos natildeo satildeo tambeacutem locutores profanos Por fim nos parece necessaacuterio e de maneira premente questionar as relaccedilotildees e as contribuiccedilotildees da linguiacutestica popular agrave linguiacutestica geral agrave linguiacutestica aplicada e ao conhecimento e ao ensino-aprendizagem

7 Essa distinccedilatildeo natildeo eacute binaacuteria mas escalar vaacuterias categorias de detentoras do saber podem ser vistas como experts os estudantes os colecionadores os apaixonados por determinado assunto os eruditos ou especialistas de todas as ordens Para um aprofundamento dessa escala ver Schmale (2008) e Paveau (2008)

8 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1168

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de liacutengua materna em particular em um periacuteodo em que as orientaccedilotildees oficiais do ensino de liacutengua na escola e no coleacutegio especialmente no contexto francecircs promovem um tipo de gramaacutetica que reivindica uma espeacutecie de ldquosimplificaccedilatildeordquo e uma ldquoautenticidaderdquo que pode ser talvez muito proacutexima do que chamamos aqui de saberes profanos ou espontacircneos9 Eacute a razatildeo pela qual desejamos uma reflexatildeo sobre o lugar a validade e a eficaacutecia pedagoacutegica das praacuteticas reveladas mais ou menos conscientemente da linguiacutestica popular colocadas em cena tanto pelos alunos quanto por seus professores no ensino da liacutengua em todos os niacuteveis

2 O que eacute a linguiacutestica popularDebruccedilar-nos-emos aqui sobre os problemas de designaccedilatildeo e de categorizaccedilatildeo dos objetos

ou das questotildees relativas agrave linguiacutestica popular

21 Os termos e as categorias folk e popular

O termo linguiacutestica popular eacute um dos objetos de uma seacuterie de denominaccedilotildees anglo-saxocircnicas baseadas em folk nas quais esse termo eacute traduzido em francecircs por popular espontacircneo inexperiente profano ou ordinaacuterio (a lista de denominaccedilotildees permanece aberta como demonstram os poucos trabalhos na aacuterea) Falamos tambeacutem de linguiacutestica do senso comum e encontramos igualmente a expressatildeo linguiacutestica dos locutores profanos em que L Rosier assinala a presenccedila massiva na internet ldquoPode-se [] constatar a presenccedila do que nomeamos linguiacutestica dos locutores profanos na internet notadamente nos foacuteruns de discussatildeo []rdquo (ROSIER 2004 p 70)

No domiacutenio cientiacutefico anglo-saxocircnico (sobretudo norte-americano) encontramos estudos bastante numerosos sobre as folk theories folk psychology folk epistemology folk biology (folk taxonomy) folk linguistics (folk etymology e folk ou perceptual dialectology) e recentemente folk pragmatics No entanto o termo folk natildeo eacute uniacutevoco e o domiacutenio da folk psychology10 se subdivide por exemplo em dois subdomiacutenios de um lado a psicologia do senso comum (commonsense psycology) que descreve e explica o comportamento humano em termos de crenccedilas desejos intenccedilotildees expectativas esperanccedilas etc e de outro uma versatildeo filosoacutefica dessa psicologia do senso comum que propotildee uma interpretaccedilatildeo dessas explicaccedilotildees ordinaacuterias por meio de generalizaccedilotildees teoacutericas mobilizando os conceitos de crenccedila desejo etc Essa corrente eacute representada por exemplo pelos trabalhos de P Churchland D Dennett e W Sellars

As lexias construiacutedas a partir de folk estatildeo bem estabilizadas no campo anglo-saxocircnico Em nosso trabalho tentamos ao maacuteximo conservar a sua traduccedilatildeo da maneira mais literal possiacutevel No entanto o termo popular em francecircs - e tambeacutem em portuguecircs - eacute polissecircmico Falamos aqui de linguiacutestica popular11 Todavia como definir esse termo Propomos por enquanto

9 Ver em particular os seguintes textos Boletim oficial nuacutemero 0 20 fevereiro de 2008 Os novos programas da escola primaacuteria Projeto submetido agrave consulta puacuteblica Eacuteduscol dgesco abril de 2008 Coleacutegio Projeto de programa francecircs Relatoacuterio de missatildeo sobre ensino da gramaacutetica 2006 elaborado por A Bentolila E Orsenna e D Desmarchelier

10 Para ver a difusatildeo desses trabalhos norte-americanos no contexto francoacutefono ver por exemplo Fisette e Poirier (2002)

11 As reservas em torno desse termo satildeo ambiacuteguas e enganosas (ele designaria de maneira pejorativa a linguiacutestica do povo) fazendo com que alguns autores adotassem a lexia afrancesada folk linguistique NT No Brasil salvo melhor juiacutezo embora o sentido de popular possa ser pejorativo sobretudo enunciado por locutores que pertencem agraves classes mais abastadas da populaccedilatildeo poreacutem como a linguiacutestica popular ainda estaacute em gestaccedilatildeo tais sentidos ainda natildeo estatildeo apensos agrave expressatildeo linguiacutestica popular

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chamar popular o saber espontacircneo dos atores sociais sobre o mundo (depositado entre outros espaccedilos nos proveacuterbios e nos ditos populares por exemplo) que se diferencia do saber acadecircmico ou cientiacutefico da mesma maneira que o saber praacutetico se distingue do saber teoacuterico O saber espontacircneo eacute constituiacutedo de saberes empiacutericos natildeo suscetiacuteveis de verificaccedilatildeo loacutegica (o saber espontacircneo natildeo eacute verdadeiro nem falso visto que eacute um saber aproximativo como explica F Markovits) e tambeacutem de crenccedilas que constituem guias para a accedilatildeo dos atores sociais as lendas urbanas ou as influecircncias da lua sobre as plantaccedilotildees ou ainda se o ceacuteu estaacute mais ou menos nublado como possibilidade de chuva satildeo crenccedilas reveladas do saber espontacircneo As conotaccedilotildees pejorativas geralmente apensas ao termo popular (contrariamente a outros usos eufoacutericos do termo como educaccedilatildeo ou universidade ou artes e tradiccedilotildees popular(es) por exemplo) fazem parte do escopo dos estudos da linguiacutestica popular e podem se tornar um importante objeto de estudo para esse domiacutenio

22 Geografia da linguiacutestica popular

221 Folk linguistics

O domiacutenio anglo-saxocircnico da folk linguistics foi aberto nos anos 1960 do seacuteculo passado pelos trabalhos inaugurais de Hoenigswald (1960 1996) que reivindicou firmemente que se leve em conta os saberes espontacircneos na constituiccedilatildeo de toda a ciecircncia Todavia essa importante demanda natildeo encontrou muito eco agrave eacutepoca Foi preciso esperar os anos 2000 para que a obra seminal de N Niedzielski e D Preston retomasse a questatildeo sobre o conteuacutedo e a representatividade da linguiacutestica popular norte-americana atualmente Em seu trabalho N Niedzielski e D Preston (2000 p 8) precisam o sentido de folk em folk linguistics

[A palavra folk] refere-se agravequeles que natildeo satildeo profissionais qualificados na referida aacuterea [] Definitivamente natildeo usamos folk para nos referirmos a ruacutesticos ignorantes atrasados primitivos minoritaacuterios isolados marginalizados ou grupos e indiviacuteduos de status supostamente inferiores

Em seguida os autores enfatizam a importacircncia de se levar em conta os saberes populares para a constituiccedilatildeo dos corpora de saberes cientiacuteficos ldquoSeja para o propoacutesito puramente cientiacutefico de registraacute-lo ou para os propoacutesitos sociais de nos ajudar a entender melhor nossas atitudes muacutetuas sugerimos que o estudo [] dos traccedilos linguisticamente orientados eacute uma tarefa importanterdquo (NIEDZIELSKI PRESTON 2000 p 123)

Os nomes e as expressotildees abaixo que intitulam os capiacutetulos do livro de N Niedzielski e D Preston desenham claramente o mapa da folk linguistics norte-americana

a) Regionalismo

b) Fatores sociais

c) Aquisiccedilatildeo da linguagem e linguiacutestica aplicada

d) Linguiacutestica geral e linguiacutestica descritiva

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O exposto permite destacar alinhados a J R Dow (autor de uma resenha do livro de N Niedzielski e D Preston publicada no Journal of American Folklore em 2001) que a obra apresenta elementos de anaacutelise e de reflexatildeo nos seguintes domiacutenios da linguiacutestica norte-americana

A ethnography of language a social psychology of language (ou estudo das atitudes linguiacutesticas muitas vezes traduzidos por psicologia social da linguagem) general descriptive linguistics (linguiacutestica geral e descritiva) language variation and change (linguiacutestica variacionista) e applied linguistics (linguiacutestica aplicada)

Esses dados nos mostram que a folk linguistics no domiacutenio anglo-saxocircnico especialmente no norte americano constitui um importante campo para as ciecircncias da linguagem12

222 Volkslinguistik Laienlinguistik

No contexto germacircnico a Volkslinguistik agraves vezes chamada de Laienlinguistik embora os termos natildeo cubram as mesmas praacuteticas linguiacutesticas13 se apresenta como no domiacutenio anglo-saxocircnico isto eacute como um campo de estudos jaacute consolidado com muitas produccedilotildees cientiacuteficas eventos etc O pesquisador G Antos tem contribuiacutedo largamente para difundir essa abordagem que se situa no domiacutenio da formaccedilatildeo transitando entre a psicologia e a gestatildeo A Laienlinguistik eacute a linguiacutestica dos manuais de conversaccedilatildeo ou de expressatildeo oral destinados a melhorar a competecircncia linguiacutestica dos locutores na sua vida social e profissional Os trabalhos do que se denomina enquanto Volkslinguistik se concentram todavia sobre a dialetologia e adotam uma perspectiva que se poderia denominar geolinguiacutestica se debruccedilando por exemplo sobre a imagem da ldquobad languagerdquoldquoliacutengua ruimrdquo associada agraves variantes regionais14 Tambeacutem eacute esse uso geolinguiacutestico da noccedilatildeo de linguiacutestica espontacircnea popular que P Seacuteriot mobiliza na Suiacuteccedila no tiacutetulo de seu artigo de 1996 sobre a linguiacutestica espontacircnea dos marcadores de fronteiras15 e no trabalho coletivo publicado na revista Pratiques nuacutemero 139140

223 Linguiacutestica popular

No domiacutenio francecircs e francoacutefono os estudos que se inscrevem na linguiacutestica popular satildeo raros como sublinha J-C Beacco que alhures escolheu evitar o termo popular no tiacutetulo do nuacutemero 154 da revista Langages16 por ele dirigida acerca desse tema preferindo falar

12 NT No caso do Brasil ao se tomar como paracircmetro as aacutereas que compotildeem o campo de estudos da linguiacutestica a partir por exemplo do CNPq ou de um evento jaacute consolidado como o de uma associaccedilatildeo como o GEL ou mesmo os Grupos de Trabalho da ANPOLL a linguiacutestica popular sequer figura como um domiacutenio ou mesmo subdomiacutenio de estudos da linguagem

13 Para um aprofundamento desta questatildeo veja o artigo de Schmale e Stegu publicado em dezembro de 2008 na revista Pratiques linguistique litteacuterature e didactique nuacutemero 139140 O artigo pode ser acessado em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1168 Veja tambeacutem o artigo de Antos (1996)

14 Para um aprofundamento desta discussatildeo veja por exemplo Langer (2001) os trabalhos de W Davies e o projeto de pesquisa The history and current status of lsquobad languagersquo as a concept in German folk linguistics que pode ser acessado no site httpeisbrisacuk~gexnlresearchahrbhtml

15 NT A referecircncia completa do artigo mencionado eacute SERIOT P La linguistique spontaneacutee des traceurs de frontiegraveres In SERIOT P (eacuted) Langue et nation en Europe centrale et orientale du 18egraveme siegravecle agrave nos jours Cahiers de lrsquoILSL (Univ de Lausanne) n 8 p 277-304 1996

16 NT A iacutentegra desse nuacutemero intitulado Repreacutesentations meacutetalinguistiques ordinaires et discours sob a direccedilatildeo de Jean-Claude Beacco pode ser acessada em httpswwwperseefrissuelgge_0458-726x_2004_num_38_154

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sobre representaccedilotildees metalinguiacutesticas ordinaacuterias Eacute sobretudo a expressatildeo etimologia popular que eacute difundida na Franccedila Dentre as razotildees para a escolha dessa terminologia estaacute o fato de se tratar de um fenocircmeno linguiacutestico passiacutevel de descriccedilatildeo e suscetiacutevel de fornecer um objeto discreto para a linguiacutestica geral O texto de autoria de H E Brekle presente no tomo 1 do livro Histoacuteria das ideias linguiacutesticas organizado por Sylvain Auroux bem como o trabalho de J-C Beacco citado anteriormente fazem menccedilotildees expliacutecitas ao domiacutenio da linguiacutestica popular Tambeacutem Pierre Bourdieu desde o iniacutecio dos anos 1980 mas de maneira mais expliacutecita em seu trabalho de 2001 reclama a existecircncia de uma ldquociecircncia rigorosa da sociolinguiacutestica espontacircneardquo (BOURDIEU 2001 p 137) De maneira um pouco mais recente e programaacutetica vale mencionar os nossos trabalhos (Marie-Anne Paveau) sobre a necessidade de se levar em conta a linguiacutestica popular no ensino da liacutengua francesa na escola (2005) os que tratam da construccedilatildeo de objetos sociais nas abordagens sociolinguiacutesticas (2007 e 2008) e os que buscam renovar as teorias do discurso (2006) Alguns desses trabalhos satildeo objetos dos proacuteximos capiacutetulos deste livro Haacute ainda o trabalho de L Rosier sobre a questatildeo do purismo nos trabalhos acerca das normas da liacutengua francesa e a circulaccedilatildeo dos discursos (2003 2004 e 2006)

O que expusemos anteriormente natildeo significa que as questotildees aqui rapidamente apresentadas natildeo sejam tratadas na literatura Todavia esse tipo de tratamento eacute feito sob outras etiquetas terminoloacutegicas ou com base em outras orientaccedilotildees teoacutericas e temaacuteticas

Em primeiro lugar eacute sob a designaccedilatildeo ordinaacuterio que o discurso espontacircneo sobre a liacutengua eacute agraves vezes estudado17 sem que haja contudo uma discussatildeo sobre essa questatildeo no contexto francecircs cujo objetivo seria o da constituiccedilatildeo de um domiacutenio cientiacutefico que buscasse uma sistematizaccedilatildeo quer seja da ldquolinguiacutestica ordinaacuteriardquo ou do ldquoordinaacuteriordquo propriamente dito O termo ordinaacuterio eacute amplamente mobilizado em lexias como francecircs ordinaacuterio trocas linguiacutesticas ordinaacuterias ou discursos ordinaacuterios Essa problemaacutetica do termo ordinaacuterio se confunde frequentemente com a problemaacutetica do cotidiano agrave maneira que os etnometodoacutelogos tratam dessa questatildeo Em segundo lugar dois subdomiacutenios ou orientaccedilotildees teoacutericas e temaacuteticas satildeo intensamente atravessadas pelas questotildees da linguiacutestica popular

a) De uma parte o vasto domiacutenio dos estudos sobre o ldquometardquo que trata da linguiacutestica do sistema (REY-DEBOVE 1978 que faz uma distinccedilatildeo da ldquometalinguagem correnterdquo e ldquocientiacuteficardquo tanto da teoria da enunciaccedilatildeo e da reformulaccedilatildeo (AUTHIER-REVUZ 1995 e as aspas meta-enunciativas quanto de Julia (2001) que fala de uma ldquosemacircntica espontacircneardquo) ou da didaacutetica da liacutengua (por exemplo J-C BEACCO R BOUCHARD J DAVID e S TREacuteVISE)18

b) De outra parte um conjunto tambeacutem vasto de trabalhos que em sociolinguiacutestica (J-C BEACCO define a linguiacutestica popular como um desdobramento da sociolinguiacutestica) se ocupam das normas e das representaccedilotildees (BERRENDONNER 1982 GADET (2007 [2003])

17 Para constatar essa afirmaccedilatildeo veja o sumaacuterio do nuacutemero organizado por Jean-Claude Beacco na revista Langages em 2004 intitulado Repreacutesentations meacutetalinguistiques ordinaires et discours

18 Para uma siacutentese destes trabalhos ver Bouchard e Meyer (1995)

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HOUDEBINE (2002) LAFONTAINE (1986) E A BOYER N GUERNIER J-M KLINGEBERG e outros) frequentemente recobertas pela etiqueta das ldquoatitudes linguiacutesticasrdquo no quadro de uma psicologia social da linguagem

23 Praacuteticas de linguiacutesticas profanasComo acabamos de mostrar de certa maneira a linguiacutestica popular natildeo existe na Franccedila

como um campo constituiacutedo Neste caso pode parecer paradoxal querer definir seus objetos e os materiais de observaccedilatildeo O paradoxo se configura se nos propomos a considerar a linguiacutestica popular como uma estrutura para unificar os objetos e abordagens mencionadas ateacute agora centrada em torno do conceito de praacutetica

Para tanto perquirimos a seguinte proposiccedilatildeo o campo de investigaccedilatildeo da linguiacutestica popular incluiria o conjunto dos enunciados que podemos qualificar como praacuteticas linguiacutesticas profanas (isto eacute que natildeo vecircm de representantes da linguiacutestica como uma disciplina estabelecida os ldquonatildeo-linguistasrdquo assim chamados por N Niedzielski e D Preston) designando avaliando ou referindo-se aos fenocircmenos da linguagem para produzi-los (os dois primeiros itens satildeo retirados de Brekle 1989 e o terceiro proposto por noacutesMarie-Anne Paveau)

i Descriccedilotildees ou (preacute)teorizaccedilotildees linguiacutesticas por exemplo aquelas que se relacionam com a designaccedilatildeo (chamar um gato de gato ou as coisas por seu nome) ou sobre a hierarquia entre escrito e oral (palavras verbais falar como um livro colocar os pingos nos is dizer ao peacute da letra) ou ainda sobre a conformidade com as regras da liacutengua (agente vai e vocecirc estaacute afim ldquonatildeo satildeo portuguecircsrdquo19) Um exemplo de um trecho da linguiacutestica social popular derivado do corpus das obras tiacutepicas do ldquoespiacuterito francecircsrdquo que propotildee uma pequena teoria profana do patroniacutemico em um contexto intercultural (Turid a jovem companheira norueguesa do narrador faz o experimento sobre os usos do nome proacuteprio na administraccedilatildeo francesa)

Mas o segredo do nome tambeacutem se estende aos serviccedilos puacuteblicos Enquanto em muitos paiacuteses sabemos imediatamente com quem estamos lidando ndash nos escritoacuterios com um crachaacute com o nome do funcionaacuterio no telefone porque o funcionaacuterio foi nomeado ndash na Franccedila se Turid quer saber quem ela deveria chamar na prefeitura nas contribuiccedilotildees no Serviccedilo Social

- Senha 634

Se ela insiste em ter uma interlocutora que parecesse gentil com ela

- Pergunte Madame Yvette

O nome da famiacutelia continua sendo um segredo quase inviolaacutevel Eacute o mesmo no bistrocirc onde o chefe recebe constantemente mensagens codificadas

- Eu te deixo pelo Senhor Leacuteon Vocecirc vai dizer a ele que eacute do Sr Raymond (P DANINOS 1977 Made in France Paris Julliard p 23)

19 NT Aqui a autora usa dois exemplos de ldquoerros gramaticiaisrdquo em francecircs que adaptamos para o portuguecircs com o uso de agente no lugar de a gente e afim no lugar de a fim

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ii Prescriccedilotildees comportamentais que na maioria das vezes vecircm de um normativismo mais ou menos exacerbado sabemos que ldquoamantes da boa linguagemrdquo ou ldquocomerciantes de regrasrdquo nas palavras de G Philippe (2002) condenam facilmente os neologismos (inuacuteteis) os empreacutestimos (ameaccediladores) os adveacuterbios terminados em -mente (pesados) as palavras teacutecnicas (jargotildees) feminilizaccedilotildees (ridiacuteculas) etc (PAVEAU ROSIER 2008) As praacuteticas profanas entatildeo satildeo abarcadas pelo purismo como definido por L Rosier (2004 p 69)

Eacute caracterizada por uma forte axiologizaccedilatildeo performativa (o que eacute dito o que natildeo eacute dito) que une o bom uso e pretende respeitar uma estrita economia das trocas linguiacutesticas em que se avalia aquele que fala de acordo com seu domiacutenio da liacutengua sob o acircngulo de riqueza lexical e correccedilatildeo gramatical

iii Intervenccedilotildees espontacircneas sobre a liacutengua chamadas de ldquofalhasrdquo pelos gramaacuteticos e puristas mas que constituem uma praacutetica real de linguagem profana impliacutecita se considerarmos que a falta constitui um discurso sobre a linguagem A coisa eacute entendida pelas etimologias populares (cata-vento lt catar + vento) e as meta-anaacutelises ou ldquointerrupccedilotildeesrdquo (ocircnibus rarr autocarro panorama rarr diaporama) menos quando dizem respeito aos erros Mas sabemos poreacutem e desde haacute muito tempo (a intransponiacutevel Gramaacutetica das falhas de Frei data de 1928) que a maioria das falhas dos falantes grandes ou pequenas eacute explicada pelo princiacutepio da economia da linguagem a linguagem eacute assim regularizada (o famoso vocecirc faz) simplificado (o caso bem conhecido odiado pelos puristas emoccedilatildeo rarr emocionado ou o menos conhecido ele cobriu lido no Teacuteleacuterama semanaacuterio culto em julho de 2006) harmonizado (Centro de estudos espaciais tambeacutem no Teacuteleacuterama em setembro de 2006) As falhas do francecircs existem como D Leeman pergunta (1994) Tudo depende por quem para quem e por que fazer Mas as intervenccedilotildees tambeacutem dizem respeito a campos mais poliacuteticos que dizem respeito agraves realidades de territoacuterios e populaccedilotildees como mostra claramente o artigo de P Seacuteriot E Bulgakova A Herzen como jaacute mencionamos presente no nuacutemero 139140 da revista Pratiques Nomes de pessoas nomes de liacutenguas nomes de paiacuteses e rios trata-se aqui de uma linguiacutestica popular com alto grau de performatividade uma vez que as intervenccedilotildees linguiacutesticas tambeacutem satildeo prescriccedilotildees de identidade

iv Haacute ainda as praacuteticas militantes especialmente aquelas que se debruccedilam a questionar certos usos linguiacutesticos por conta de seu caraacuteter racista homofoacutebico machista enfim preconceituoso

Recapitulando com base no nosso entendimento diremos que a linguiacutestica popular reuacutene quatro tipos de praacuteticas linguiacutesticas descritiva (descrevemos a atividade da linguagem) normativa (prescrevemos comportamentos da linguagem) intervencionista (intervimos nos usos da linguagem) e militante (questionamos certos usos da linguagem por entendermos natildeo serem virtuosos preconceituosos machistas entre outros) Examinemos agora de acordo com os nossos objetivos quais questotildees a linguiacutestica popular deveria desenhar para a linguiacutestica e a didaacutetica da liacutengua

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3 As muacuteltiplas dimensotildees da linguiacutestica popularUma das razotildees pelas quais a linguiacutestica popular deveria ser um domiacutenio da linguiacutestica eacute

que ela diz respeito natildeo apenas agrave teoria linguiacutestica em sua constituiccedilatildeo sua validade e sua legitimidade (o que lhe confere uma dimensatildeo epistemoloacutegica e meta-teoacuterica) mas tambeacutem agraves praacuteticas linguageiras em suas dimensotildees sociais culturais e cognitivas (o que eacute caro agrave sociolinguiacutestica agrave psicologia social e agrave semacircntica cognitiva) bem como aos procedimentos de ensino-aprendizagem de liacutenguas (levando ao ensino de liacutenguas e agrave psicolinguiacutestica)

31 Epistemologia

A linguiacutestica popular propotildee entre outras questotildees um problema de fronteiras disciplinares e de concepccedilatildeo de ciecircncia Sobre esse ponto as questotildees se misturam quais satildeo as relaccedilotildees entre sociolinguiacutestica e linguiacutestica popular (integraccedilatildeo afinidade cruzamento) E acima de tudo entre a linguiacutestica popular e a chamada linguiacutestica acadecircmica ou cientiacutefica devemos permanecer em uma oposiccedilatildeo binaacuteria (uma versus a outra) em que os natildeo-linguistas natildeo tecircm nada a dizer sobre liacutengua e os linguistas satildeo os uacutenicos autorizados a fazecirc-lo ou de maneira mais razoaacutevel podemos colocar as coisas em termos de um continuum um gradiente de cientificidade ou espontaneidade As fronteiras satildeo claras entre o purismo e a linguiacutestica popular (o purismo finalmente eacute tatildeo profano quanto isso) E que jogo de estilos musicais se desenrola entre a gramaacutetica tradicional a linguiacutestica popular e a linguiacutestica cientiacutefica a gramaacutetica tradicional apresentando por meio da norma caracteriacutesticas em comum com a proacutepria linguiacutestica popular conectada com linguiacutestica aprendida Como definir o ldquopopularrdquo ou ldquoprofanordquo senatildeo de maneira relativa a um padratildeo de comparaccedilatildeo qual seria a cientificidade ela mesma suscetiacutevel de variaccedilotildees de acordo com os objetos os meacutetodos e os objetivos considerados

Eacute primeiramente D R Preston um dos iniciadores do campo e autor com N Niedzielski da primeira siacutentese sobre a linguiacutestica popular (2003 [2000]) que responde a essas questotildees demonstrando o interesse cientiacutefico de comentaacuterios linguiacutesticos de natildeo-linguistas No artigo ldquoQursquoest-ce que la linguistique populaire Une question drsquoimportancerdquo20 ele explica por que e como levar em conta a linguiacutestica folk e mostra de passagem algumas ideias recebidas sobre a questatildeo como a suposta pobreza dos conhecimentos populares por exemplo

No nuacutemero mencionado da revista Pratiques vaacuterios autores lidam com essa dimensatildeo epistemoloacutegica Por exemplo nesse nuacutemero haacute uma entrevista concedida pelo historiador Eacuteric Mension-Rigau21 na qual ele explica de maneira muito praacutetica como trata os dados linguiacutesticos com um meacutetodo ldquocombinadordquo de suas habilidades como leitor de literatura (ele eacute um historiador de formaccedilatildeo que se interessa pelas Letras) o que ele chama de sua intuiccedilatildeo e de suas faculdades de observaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo Para ele eacute um verdadeiro meacutetodo histoacuterico e como D Dennett o autor poderia dizer que ldquofuncionardquo porque na verdade produz resultados convincentes e reconhecidos

20 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1176

21 Referimo-nos ao texto ldquoEntretien avec un folk linguiste lrsquohistorien Eacuteric Mension-Rigaurdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1174

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Por sua vez G Achard-Bayle que especularmente escolheu uma forma ldquopopularrdquo para lidar com a questatildeo da linguiacutestica popular (ldquoTrivial Pursuit Alfabeto da identidade pop-folk para o uso de linguistasrdquo) mostra como as questotildees ligadas agrave referecircncia ao real e agrave identidade satildeo sempre suscetiacuteveis agrave teorizaccedilatildeo de regime muacuteltiplo de acordo com o senso comum ou a racionalidade cientiacutefica avanccedilam para ambos suscetiacuteveis de receberem definiccedilotildees relativas

G Schmale no texto intitulado Conceptions populaires de la conversation22 discute a questatildeo da situaccedilatildeo da Laienlinguistik em comparaccedilatildeo com outras praacuteticas algumas menos instruiacutedas outras mais sobre a conversaccedilatildeo Por fim numa perspectiva epistemoloacutegica mais generalista o pesquisador Martin Stegu no artigo Linguistique populaire language awareness linguistique appliqueacutee interrelations et transitions23 compara a linguiacutestica folk a Laienlinguistik a linguiacutestica acadecircmica ou ldquooficialrdquo e sua relaccedilatildeo com a linguiacutestica aplicada No entendimento de Stegu essa comparaccedilatildeo mostra por exemplo que a linguiacutestica aplicada eacute em muitos aspectos bem proacutexima da linguiacutestica popular porque ela proacutepria foi concebida pelos natildeo-linguistas O autor defende entatildeo uma concepccedilatildeo aberta e escalar da linguiacutestica aplicada popular e acadecircmica

32 Teoria

Em suma eacute a proacutepria questatildeo da teoria que a linguiacutestica popular revira ativando questotildees sobre a categorizaccedilatildeo e denominaccedilatildeo dos fenocircmenos estudados nas ciecircncias da linguagem o estudo das atividades metalinguiacutesticas comuns dos falantes vem da linguiacutestica popular A palavra corrente eacute sinocircnimo de popular E como tratar a famosa intuiccedilatildeo ou o sentimento da linguagem em que os proponentes de uma linguiacutestica da competecircncia estatildeo baseados Sabemos que o termo contra intuitivo eacute frequentemente mobilizado para provar a agramaticalidade desta ou daquela forma A intuiccedilatildeo estaacute incluiacuteda na categoria de ldquopopularrdquo A intuiccedilatildeo eacute profana

Tomando uma vez mais a revista Pratiques M-A Paveau oferece algumas respostas hipoteacuteticas a essas questotildees em seu texto Les non-linguistes font-ils de la linguistique Une approche anti-eacuteliminativiste des theacuteories folk24 No texto em questatildeo a autora defende uma abordagem integracionista isto eacute que integre dados considerados folk para a linguiacutestica acadecircmica sem que uma fronteira em termos de contrariedade (ldquoversusrdquo) seja colocada entre os dois tipos de fenocircmenos Eacute a questatildeo da intuiccedilatildeo que sustenta essa posiccedilatildeo antieliminatoacuteria na medida em que a linguiacutestica acadecircmica natildeo pode economizar em intuiccedilatildeo e introspecccedilatildeo por causa de sua dimensatildeo reflexiva irredutiacutevel

Nesse quesito a linguiacutestica eacute particularmente fraacutegil face a ambiccedilotildees objetivistas e idealistas derivadas do modelo cientiacutefico das ciecircncias exatas No campo da argumentaccedilatildeo o trabalho de Marianne Doury tambeacutem se questiona sobre a validade do raciociacutenio folk A autora mostra em seu artigo intitulado lsquoCe nrsquoest pas un argumentrsquo Sur quelques aspects des theacuteorisations spontaneacutees de lrsquoargumentation25 que natildeo haacute diferenccedila gritante em termos da validade dos

22 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1186

23 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1193

24 A traduccedilatildeo deste artigo para o portuguecircs estaacute publicada em Policromias Rio de Janeiro UFRJ v 2 n 3 p 21-45 dez 2018 Disponiacutevel em httpsrevistasufrjbrindexphppolicromiasissuedownload1175622 Acesso em 10 ago 2019

25 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1207

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argumentos entre as produccedilotildees espontacircneas e as produccedilotildees aprendidas Ela traz assim argumentos importantes para fundamentar a abordagem antieliminatoacuteria

Essa posiccedilatildeo integracionista pode ser encontrada ateacute mesmo dentro da proacutepria linguiacutestica acadecircmica como mostram as obras de F Recanati sobre o sentido literal e o sentido contextual sintetizado em seu livro Literal Meaning (RECANATI 2004) Eacute preciso que nos debrucemos um pouco sobre essa concepccedilatildeo do sentido diretamente relacionada ao problema do eliminatoacuterio versus integracionista F Recanati que produz linguiacutestica a partir da filosofia desenvolve uma concepccedilatildeo contextualista do sentido e portanto argumenta que uma teoria semacircntica baseada na noccedilatildeo de sentido literal natildeo pode funcionar No capiacutetulo 9 de seu livro o autor defende uma posiccedilatildeo que chama de Meaning Eliminatism (eliminar o sentido intriacutenseco) baseada na ideia de que o sentido pode ser desenvolvido sem uma concepccedilatildeo puramente linguiacutestica e natildeo-contextual do sentido

De acordo com WF [visatildeo Wrong Format ldquoFormato Erradordquo] o sentido expresso por uma expressatildeo deve sempre ser contextualmente construiacutedo com base no (excessivamente rico ou excessivamente abstrato) significado ou potencial semacircntico do tipo de palavra [] Nesse quadro ainda haacute um papel para o significado linguiacutestico dos tipos de palavras eacute a entrada (ou um dos insumos) para o processo de construccedilatildeo

A diferenccedila entre o Meaning Eliminativism (ME) e o WF eacute que de acordo com o ME natildeo precisamos de significados linguiacutesticos nem mesmo para servir como entrada para o processo de construccedilatildeo Os sentidos que satildeo as contribuiccedilotildees das palavras para os conteuacutedos satildeo construiacutedos mas a construccedilatildeo pode prosseguir sem a ajuda de significados de palavras convencionais independentes do contexto (RECANATI 2004 p 174-175)

O autor entatildeo considera que a teoria contextualista do sentido eacute uma teoria popular na medida em que se baseia em dados natildeo-linguiacutesticos isto eacute contextuais Portanto aqui estamos diante de uma teoria linguiacutestica elaborada com base em uma concepccedilatildeo ldquonatildeo-linguiacutesticardquo no sentido aprendido do termo do sentido F Recanati pode ser descrito como um filoacutesofo que faz linguiacutestica junto com a natildeo-linguiacutestica o que natildeo eacute do gosto de todos como R M Harnish (2005 p 397) mostra claramente resumindo assim a posiccedilatildeo do filoacutesofo francecircs

Assim Recanati parece natildeo apenas promover uma espeacutecie de ldquosemacircntica-pragmaacutetica folkrdquo mas tambeacutem negar a legitimidade (e o potencial valor psicoloacutegico) da tradicional (ldquocientiacuteficardquo) linguiacutestica semacircntica Ele parece estar apostando que a semacircntica-pragmaacutetica natildeo seguiraacute o caminho da sintaxe (e da fonologia) Isto eacute introspectiva a psicologia popular prevaleceraacute tanto sobre as intuiccedilotildees semacircnticas quanto sobre a metodologia tradicional de construccedilatildeo de teoria na semacircntica

Natildeo seria toda linguiacutestica uma linguiacutestica popular Isto eacute certamente mostrado por certas representaccedilotildees discursivas e certos imaginaacuterios linguiacutesticos

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33 Representaccedilotildees

A questatildeo da validade teoacuterica ou mais amplamente cientiacutefica tambeacutem surge para os estudos sobre as representaccedilotildees linguiacutesticas do imaginaacuterio linguiacutestico formulado por A-M Houdebine ateacute as mitologias linguiacutesticas estudadas por P Zoberman bem como a linguiacutestica fantaacutestica e imaginaacuteria evocada por M Yaguello o imaginaacuterio eacute popular a linguiacutestica fantaacutestica eacute profana De quais campos de quais categorias de qual campo disciplinar ou subdisciplina somos noacutes

As respostas satildeo fornecidas por J-C Beacco em seu artigo De la verve Agrave la recherche drsquoun ideacuteal discursif ordinaire26 quando ele propotildee analisar ldquoas concepccedilotildees circulantes sobre o que eacute o bom falar ou o que eacute o autecircntico bom escrever que responde a valores distintos ou opostos agravequeles que baseiam as normas dominantes ditas indiferentemente acadecircmicas oficiais escolares supervisionadas elegantes Neste texto o autor examina um corpus de artigos da imprensa esportiva (o jornal diaacuterio LrsquoEacutequipe) para descobrir definiccedilotildees espontacircneas do que eacute essa eloquecircncia autecircntica Em outra ordem de ideias mas ainda no campo das estruturas representacionais P Seacuteriot E Bulgakova e A Heržen mostram em La linguistique populaire et les pseudo-savants27 que o discurso da liacutengua constitui a base de um questionamento sobre as identidades coletivas e nacionais na Europa Oriental no primeiro dececircnio dos anos dois mil Eles destacam assim realidades culturais e discursivas pouco conhecidas como a fabricaccedilatildeo de identidades miacuteticas e origens fantaacutesticas por meio de um discurso linguiacutestico ldquopseudo-eruditordquo com uma forte intenccedilatildeo persuasiva As apostas satildeo altas porque se trata da definiccedilatildeo de povos e da delimitaccedilatildeo de fronteiras

34 Praacuteticas

Por fim a linguiacutestica popular levanta o problema do valor e da efetividade do conhecimento espontacircneo em um contexto de aprendizagem um discurso frequente eacute que na linguiacutestica como em outros lugares a demonstraccedilatildeo cientiacutefica na maioria das vezes contradiz a interpretaccedilatildeo espontacircnea (por exemplo a posiccedilatildeo de Jackendoff (2003) em relaccedilatildeo ao ldquoconhecimento popularrdquo) Esse discurso estaacute no entanto atualmente sendo minado por alguns filoacutesofos das ciecircncias que depois de ilustres antecessores como A Schutz ou P Feyerabend mostraram como as teorias espontacircneas agraves vezes estatildeo proacuteximas de resultados cientiacuteficos ou tecircm validade de uma outra ordem necessaacuteria no campo da vida em sociedade

Esta questatildeo parece crucial para noacutes na aula de francecircs do jardim de infacircncia agrave universidade Qual eacute o lugar do conhecimento profano dos alunos e professores em sala de aula (sabemos que a atividade metalinguiacutestica de ldquocrianccedilas gramaacuteticasrdquo eacute largamente explorada em preacute-aprendizagens no maternal e no ciclo 1) Um ldquoerro cientiacuteficordquo pode ter uma boa rentabilidade funcional no aprendizado Eacute este o caso de todas as atividades Para todos os niacuteveis de ensino (ldquoa crianccedila gramaacuteticardquo de Gleitman Gleitman e Shipley (1972) pode tornar-se um ldquoestudante gramaacuteticordquo) O ensino de francecircs deve privilegiar a eficaacutecia ou a precisatildeo cientiacutefica

26 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1214

27 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1220

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Sobre essas questotildees vale a pena voltar uma vez mais ao nuacutemero 139140 da revista Pratiques Em seu trabalho sobre Les explications meacutetagraphiques appliqueacutees aux premiegraveres eacutecritures enfantines28 J David se baseia em um grande corpus de textos escritos e especialmente em autoexplicaccedilotildees ou comentaacuterios metagraacuteficos produzidos por crianccedilas pequenas que satildeo aprendizes de escritores (5-7 anos) para mostrar como essas crianccedilas conseguem verbalizar o conhecimento emergente sobre o funcionamento da escrita Este conhecimento demonstra ter conexotildees por um lado com as propriedades das linguagens orais e por outro lado com os componentes da escrita (semioloacutegicos fonoloacutegicos morfoloacutegicos) gradualmente descobertos e integrados Um conhecimento espontacircneo e incontestaacutevel surge assim dos comentaacuterios metagraacuteficos das crianccedilas

Constataccedilotildees anaacutelogas satildeo feitas por referecircncia agraves grafias inventadas (invented spellings) por J-P Jaffre e M-F Morin Em sua reflexatildeo sobre Les activiteacutes preacute-orthographiques nature validiteacute et conceptions29 os autores mostram de fato que as crianccedilas pequenas possuem habilidades preacute-ortograacuteficas pois natildeo satildeo a princiacutepio cognitivamente sensiacuteveis agraves normas ortograacuteficas mas agraves funcionalidades subjacentes cuja uacutenica consideraccedilatildeo eacute avaliar suas primeiras produccedilotildees Eles concluem que escrever natildeo eacute mais uma questatildeo de (re)produzir normas ortograacuteficas mas de perceber princiacutepios graacuteficos baacutesicos e recorrentes ndash por exemplo o valor fonoloacutegico das letras na tradiccedilatildeo alfabeacutetica

Satildeo essas ldquocrianccedilas gramaacuteticasrdquo que satildeo o assunto dos comentaacuterios de M Laparra Em seu texto Lrsquoeacutelegraveve grammairien Lrsquoexemple de lrsquoapprentissage des marques graphiques du franccedilais30 a autora se pergunta qual eacute o valor do conhecimento espontacircneo que os alunos podem produzir em certas marcas morfoloacutegicas graacuteficas do francecircs Apesar de tudo a sala de aula continua sendo um espaccedilo interacional que constitui um verdadeiro reservatoacuterio onde se descobrem discursos agraves vezes preacute-fabricados furtivos ou ritualizados oriundos por vezes dos proacuteprios conhecimentos escolares derivados dos conhecimentos acadecircmicos Eacute isso que C Weber mostra em Les verbalisations ordinaires dans la classe objets furtifs ou variables encombrantes des sciences du langage31 Os vaacuterios modos comunicativos que se desenrolam na sala de aula datildeo lugar de fato em sua opiniatildeo a uma infinita variaccedilatildeo de produccedilotildees representaccedilotildees e raciociacutenios que estatildeo prestes a ser construiacutedos cuja forma e presenccedila satildeo ldquofurtivasrdquo mas que desempenham um papel decisivo nas praacuteticas escolares

O nosso primevo percurso acerca da linguiacutestica popular finda mencionando o artigo de F Capucho Ela propotildee uma abordagem ineacutedita em relaccedilatildeo a todos os trabalhos jaacute mencionados na medida em que opta por trabalhar no contexto do plurilinguismo e em uma noccedilatildeo pluridisciplinar (linguiacutestica filosofia psicologia social comunicaccedilatildeo) a intercompreensatildeo Em Lrsquointercompreacutehension est-elle une mode Du linguiste citoyen au citoyen plurilingue32 ela mostra que essa noccedilatildeo estrutura os comportamentos de falantes pluriliacutengues especialmente em condiccedilotildees

28 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1230

29 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1238

30 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1246

31 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1247

32 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1252

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com alto grau de estranheza como as viagens Em particular ela analisa os componentes emocionais e situacionais e mostra ateacute que ponto os locutores mobilizam espontaneamente quase ldquonaturalmenterdquo sua competecircncia intercompreensiva

4 Umas poucas palavras de fim Esperamos que as breves consideraccedilotildees que aqui realizamos possam orientar e talvez

iluminar uma aacuterea que ainda eacute um pouco obscura na Franccedila e pelo que nos consta a partir de nosso contato com os organizadores deste livro tambeacutem no Brasil Os levantamentos aqui apresentados podem contribuir para o tratamento da linguiacutestica popular a partir de questotildees de natureza epistemoloacutegica teoacuterica praacutetica e representacional que acreditamos serem necessaacuterias para que o campo da ciecircncia da linguagem seja mantido em um dinamismo seguro sem nenhum tipo de binarismos Esperamos que os percursos brevemente abertos ou aprofundados aqui favoreccedilam igualmente as colaboraccedilotildees de todos os interessados sobre a questatildeo da linguiacutestica popular e de um modo mais geral sobre a validade do conhecimento das ciecircncias humanas

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NAtildeO-LINGUISTAS FAZEM LINGUIacuteSTICA33

A linguiacutestica popular ou linguiacutestica folk (designaccedilatildeo afrancesada que adotei por dar conta da questatildeo da polissemia de popular e dos mal-entendidos que satildeo curiosamente associados agrave palavra)34 tem se apresentado ultimamente bem descrita e definida especialmente no contexto de trabalhos realizados sobre a questatildeo no exterior e depois na Franccedila jaacute haacute quinze anos35 A existecircncia de um conjunto de praacuteticas linguiacutesticas designaacuteveis como ldquofolkrdquo (ou melhor por todo outro adjetivo estabilizado que compartilhe o mesmo domiacutenio como profanas espontacircneas selvagens ingecircnuas leigas) natildeo deixa praticamente nenhuma duacutevida que um campo de investigaccedilatildeo particularmente fecundo se abriu para os linguistas que se preocupam com quaisquer produccedilotildees imaginaacuterias e representacionais dos falantes

Tais praacuteticas sobre as quais propus uma tipologia inicialmente tripartite em Paveau (2000) depois de Brekle (1989) (a saber 1 Descriccedilotildees 2 Prescriccedilotildees 3 Intervenccedilotildees) e mais modernamente quatripartite as praacuteticas militantes comeccedilam agora a ser bem compreendidas na diversidade dos lugares sociais em que se manifestam e na variedade de suas atividades com ou sobre a liacutengua imprensa escola foacuteruns de internet guias de conversaccedilatildeo conversa cotidiana etc Comeccedilamos assim a saber bem o que os natildeo-linguistas fazem bem como quando e onde Entretanto natildeo sabemos tatildeo bem quem exatamente eles satildeo e o que deseja sua teoria folk Eacute sobre esses dois pontos que me concentro aqui neste capiacutetulo Proporei inicialmente e a tiacutetulo heuriacutestico uma tipologia de natildeo-linguistas que a meu ver deve-se apresentar de maneira discreta ser um natildeo-linguista natildeo eacute um estado permanente mas uma atividade praticaacutevel num momento e num lugar determinados inclusive pelos proacuteprios linguistas haacute uma posiccedilatildeo de natildeo- linguista sempre cambiaacutevel com alguma outra Darei alguns exemplos de atividades cuja inscriccedilatildeo nessa linguiacutestica folk pode ser discutida exemplos que me serviratildeo para questionar as relaccedilotildees que possam existir entre as ldquoidentidadesrdquo dos natildeo-linguistas e a natureza de suas atividades Num segundo momento abordarei dando continuidade agrave reflexatildeo feita alhures em Paveau (2007 2008a) a difiacutecil questatildeo epistemoloacutegica e filosoacutefica da validade da linguiacutestica folk que evidentemente coaduna-se com as dificuldades de se pensar nas folk sciences em geral Retomarei em particular as noccedilotildees de saber e de consciecircncia epilinguiacutesticos que fornecem argumentos

33 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Les non-linguistes font-ils de la linguistique Une approche antieacuteliminativiste des theories folk Pratiques ed 139-140 p 93-110 2008 Uma versatildeo modificada deste texto foi publicada na Policromias ndash Revista de Estudos do Discurso Imagem e Som da UFRJ v 3 n 2 2018 Disponiacutevel em httpsrevistasufrjbrindexphppolicromiasarticleview21267 Traduccedilatildeo de Phellipe Marcel da Silva Esteves (UFF)

34 Ver detalhe em Paveau (2007) e nas observaccedilotildees de J-C Beacco feitas na ediccedilatildeo 139140 da Pratiques Conformo-me assim voluntariamente com um imperativo ideoloacutegico que natildeo ignoro ser definitoacuterio do discurso cientiacutefico mas nem sempre enxergo por que continuamos a atribuir a popular ldquoconotaccedilotildees pejorativasrdquo a natildeo ser para manter no exerciacutecio do discurso cientiacutefico discursos classistas que natildeo me parecem pertinentes a ele Os filoacutesofos anglicistas que traduzem hoje em dia folk psychology como psicologia popular (P Engel tradutor de Dennett (1990 [1987]) por exemplo) haacute geraccedilotildees natildeo fazem essa distinccedilatildeo incompreensiacutevel Popular como vulgar ou familiar e o conjunto do paradigma que designa ldquoo baixordquo satildeo polissecircmicos e eu me surpreendo que justamente os linguistas que satildeo alguns dos uacutenicos que sabem identificar e defender essa polissemia preocupem-se com esses efeitos

35 Ver Achard-Bayle e Paveau (2008b) Achard-Bayle e Lecolle (2009) Antos (1996) Beacco (2004 org) Brekle (1989) Niedzielski e Preston (2003 [1999]) Paveau (2000 2005 2007 2008a 2009) Paveau e Rosier (2008)

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para defender uma posiccedilatildeo integracionista36 ou seja antieliminativa os enunciados folk natildeo satildeo necessariamente crenccedilas falsas a serem eliminadas da ciecircncia Constituem ao contraacuterio saberes perceptivos subjetivos e incompletos a serem integrados aos dados cientiacuteficos da linguiacutestica

Quem satildeo os natildeo-linguistasA questatildeo da identidade ou da identificaccedilatildeo dos natildeo-linguistas eacute sem duacutevida uma das mais

difiacuteceis no domiacutenio da linguiacutestica folk Se a identificaccedilatildeo profissional dos linguistas eacute feita de modo relativamente faacutecil pela existecircncia de cursos diplomas especialidades universitaacuterias que correspondem na Franccedila a seccedilotildees do CNU e do CNRS (no Comitecirc Nacional tratam-se das seccedilotildees 7 9 e 34) e de uma literatura disciplinar relativamente bem circunscrita e balizada por dicionaacuterios a identificaccedilatildeo profissional dos natildeo-linguistas que lidam com atividades linguiacutesticas natildeo se baseia em nenhum criteacuterio mais institucional O escritor eacute um linguista folk E o revisor de textos das miacutedias escritas e das editoras E o jurista que analisa as palavras tatildeo detidamente quanto um lexicoacutelogo profissional Sim ficamos tentados a afirmar absolutamente mas a comparaccedilatildeo com o falante comum o ldquohomem das ruasrdquo que admira a beleza do leacutexico ou se lamenta quanto agrave degradaccedilatildeo da liacutengua (uma pessoa bem tiacutepica na Franccedila um paiacutes cuja liacutengua eacute constantemente objeto de polecircmicas inflamadas)37 relativiza imediatamente esse julgamento os trecircs primeiros parecem de todo modo mais ldquolinguistasrdquo que o uacuteltimo o falante comum que ocupa mais um espaccedilo verdadeiro de ldquolinguista de final de semanardquo uma figura meio ingecircnua e no fundo bem menos culta Entatildeo como identificar essa categoria de falantes que produzem enunciados avaliativos sobre a proacutepria liacutengua e a liacutengua dos outros metalinguiacutesticos e metadiscursivos a partir de posiccedilotildees subjetivas natildeo disciplinares e natildeo acadecircmicas

Posiccedilotildees discursivasComo em muitos domiacutenios do saber das ciecircncias humanas o pensamento cartesiano

binaacuterio (linguistas versus natildeo-linguistas como categorias discretas) nos leva diretamente agraves limitaccedilotildees do idealismo A meu ver eacute preferiacutevel adotar uma visatildeo escalar das coisas Seria melhor entatildeo mesmo se essa posiccedilatildeo se pareccedila iconoclasta para aqueles que creem na pureza e na objetividade da ciecircncia postular um continuum entre aqueles que fazem da linguiacutestica uma ciecircncia una e aqueles que natildeo Haveria dois polos que representariam os extremos teoacutericos de um lado o linguista ldquoestudadordquo ldquocientiacuteficordquo que manejaria os saberes ldquoexatosrdquo e de outro o linguista espontacircneo que produziria anaacutelises do tipo daquela destacada pela vendedora de loja de antiguidades ldquoEle nunca me diz o que me agradardquo

Recentemente Guumlnter Schmale (2008) fez uma primeira proposta analisando a linguiacutestica popular como lugar de cruzamento entre linguiacutestica cientiacutefica linguiacutestica amadora e para fins didaacuteticosde divulgaccedilatildeo Compartilho inteiramente dessa percepccedilatildeo Schmale eacute entatildeo levado

36 Ver Achard-Bayle e Paveau na introduccedilatildeo deste volume da Pratiques bem como Achard-Bayle e Lecolle (2009) Antos (1996) Beacco (2004 org) Brekle (1989) Niedzielski e Preston (2003 [l999]) Paveau (2000 2005 2007 2008a 2008b 2009) Paveau e Rosier (2008)

37 Ver Paveau e Rosier (2008)

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a propor uma breve tipologia dos linguistas espontacircneos no que tange agrave anaacutelise da conversa sobre um eixo cujos dois extremos satildeo uma ldquoausecircncia de conhecimentos sobre a conversardquo e ldquoconhecimentos perfeitos da organizaccedilatildeo conversacionalrdquo encontrar-se-iam gradativamente o falante comum o escritor o linguista ldquoamadorrdquo o linguista natildeo conversacionalista e o ldquoconversacionalistardquo (SCHMALE 2008) Gostaria aqui de fazer uma proposta mais global relacionada natildeo unicamente agrave anaacutelise da conversaccedilatildeo mas agrave liacutengua e agraves produccedilotildees verbais em francecircs em geral que responderia aos seguintes requisitos

[] dar conta o mais naturalmente possiacutevel da atividade ldquonatildeo-linguiacutesticardquo considerando natildeo identidades socialmente fixas (o escritor o jornalista o tipoacutegrafo) mas posiccedilotildees discursivas por definiccedilatildeo transitoacuterias e natildeo plenamente ajustadas agraves identidades sociais profissionais ou culturais Um gerente de bar inicia uma conversa por SMS com seus clientes um ministro de relaccedilotildees estrangeiras produz um texto sobre a degradaccedilatildeo do francecircs ou por que natildeo um linguista profissional produz um discurso natildeo-linguiacutestico sobre a liacutengua de natureza esteacutetica por exemplo (desgostar de alguma palavra por ela ldquosoarrdquo mal por fazer ldquodoerrdquo seus ouvidos) em virtude daquele famoso desencontro entre comportamento e introspecccedilatildeo sobre o qual em partes a sociolinguiacutestica laboviana eacute fundada e que foi quase definitivo para a dicotomia conceitual de seguranccedila versus inseguranccedila linguiacutestica (LABOV 2001 [1975])

questionar a integraccedilatildeo (ou natildeo integraccedilatildeo) das produccedilotildees considerando natildeo apenas o metalinguiacutestico mas tambeacutem o epilinguiacutestico ou seja uma competecircncia inconsciente portanto impliacutecita da liacutengua Relacionam-se aqui todos os tipos de jogos sobre as palavras os trava-liacutenguas os trocadilhos e confusotildees voluntaacuterias jogos de pronuacutencia (o ldquoQuando a mafagafa gafa gafam os sete mafagafinhosrdquo e o ldquotrecircs pratos de trigo para trecircs tigres tristesrdquo)38 brincadeiras sobre os significantes como a de ldquomonsieur et madame ont un filsrdquo39 histoacuterias bobas no substrato linguiacutestico imitaccedilotildees de sotaques e de maneiras de falar etc Chamo de ludolinguistas os falantes que adotam essa posiccedilatildeo ao mesmo tempo refletida e luacutedica sobre a liacutengua A questatildeo eacute de saber se essas produccedilotildees que repousam sobre uma competecircncia epilinguiacutestica extremamente sofisticada vecircm de atividade linguiacutestica Essas produccedilotildees satildeo sem duacutevidas dotadas de uma dimensatildeo didaacutetica expliacutecita Mas algo que pode nos confundir um bocado em nossa reflexatildeo eacute o fato de que elas se situam no limite entre atividades linguiacutesticas e atividades linguageiras entre atividades sobre a linguagem e atividades de linguagem

38 NT Realizamos uma adaptaccedilatildeo dos trava-liacutenguas em portuguecircs

39 NT Nesse ponto a autora acrescenta uma nota de rodapeacute afirmando que ldquoLes cinq filles de monsieur et madame Holl Jenny Lydia Beth Nicole et Esther eacute uma maravilhosa ilustraccedilatildeo da virtuosidade linguageira extrema no limite do domiacutenio teoacuterico dos ourives das palavras que fazem jogos com elasrdquo Essa sentenccedila em francecircs que se inicia com ldquoLes cinq fillesrdquo eacute uma brincadeira conhecida na liacutengua uma anedota Vai-se trocando o sobrenome da famiacutelia e a quantidade de filhos para se chegar a algum resultado que torne a leitura dos nomes dos filhos combinados ao sobrenome da famiacutelia a paroniacutemia de uma outra sentenccedilapalavra No caso da sentenccedila acima ldquoJrsquoai ni le diabegravete ni cholesterolrdquo [Natildeo tenho nem diabetes nem colesterol] se formam a partir de ldquoJenny Lydia Beth Nicole Esther Hollrdquo Para dar mais um exemplo ldquoMonsieur et Madame Oration ont une fille Ameacutelierdquo donde ldquoAmeacutelie Orationrdquo ldquoameacuteliorationrdquo [melhora] Um correlato fraco em liacutengua vernaacutecula mdash jaacute que natildeo se trata de uma famiacutelia de jogos epilinguiacutesticos mdash eacute a seguinte charada ldquoUma menina senta na sua cadeira da escola onde uma pessoa tinha colocado uma taxinha Qual eacute o nome da pessoa Na-taxa [Natasha]rdquo Embora natildeo forme uma famiacutelia esse tipo de charadas de ldquoQual eacute o nome da pessoardquo eacute muito comum no Brasil

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Uma proposta de tipologiaAssim proponho a seguinte tipologia elaborada a partir de trabalhos existentes sobre

a linguiacutestica folk ou as posiccedilotildees normativas as observaccedilotildees realizadas em meus trabalhos anteriores e em particular a partir do corpus reunido na obra La langue franccedilaise passions et poleacutemiques As posiccedilotildees satildeo classificadas por ldquocoeficienterdquo decrescente de detenccedilatildeo de um saber linguiacutestico e acompanhadas de uma categorizaccedilatildeo aproximada do tipo de praacuteticas executadas segundo a trilogia mencionada anteriormente

bull Linguistas profissionais que fornecem descriccedilotildees linguiacutesticas

bull Cientistas natildeo-linguistas (ldquohistoriador-linguistardquo como Eacuteric Mension-Rigau em seu Aristocrates et grands bourgeois Eacuteducation traditions valeurs ldquosocioacutelogo-linguistardquo como Pierre Bourdieu (em seu A distinccedilatildeo criacutetica social do julgamento) que propotildeem descriccedilotildees linguiacutesticas

bull Linguistas amadores (linguistas leigos acadecircmicos como Maurice Druon juristas como Geacuterard Cornu (autor de um manual de linguiacutestica juriacutedica ver Cornu 2005 [1990] e o subcapiacutetulo 131) que fornecem descriccedilotildees e prescriccedilotildees

bull Logoacutefilos glossomaniacuteacos40 e outros ldquoloucos da liacutenguardquo como Jean-Pierre Brisset ou George Orwell que frequentemente empreenderam intervenccedilotildees na liacutengua fosse por invenccedilatildeo fosse por deformaccedilatildeo

bull Preparadores-revisores-redatores (o lendaacuterio copidesque do Monde Jean-Pierre Collignon cujos sucessores produziram um discurso sobre sua atividade ldquolinguiacutesticardquo no blog ldquoLangue saucepiquanterdquo os especialistas de programas televisivos como o ldquoprofessorrdquo Capelovici e seus sucessores no programa Des chiffres et des lettres por exemplo) que sugerem descriccedilotildees e prescriccedilotildees (incluindo correccedilotildees)

bull Escritores ensaiacutestas (Proust Jean Paulhan Pierre Daninos Philippe Jullian Robert Beauvais) do lado da descriccedilatildeo e da prescriccedilatildeo

bull Ludolinguistas (humoristas imitadores autores de histoacuterias bobas autores de jogos sobre as palavras Thierry Le Luron fazendo imitaccedilotildees do poliacutetico Valeacutery Reneacute Marie Georges Giscard drsquoEstaing Sylvie Joly e sua personagem ldquoBourgeoiserdquo Florence Foresti e sua Anne-Sophie de la Coquillette Coluche e seu ldquobeaufrdquo [brutamontes homem grosseiro e machista]) que fazem descriccedilotildees-interpretaccedilotildees linguiacutesticas

bull Falantes engajados militantes ou apaixonados juristas em suas praacuteticas textuais e orais centrados na descriccedilatildeo e na intervenccedilatildeo

bull Falantes comuns (a vendedora da loja de antiguidades na Rue de la Chine os autores desconhecidos das colunas de leitores de jornais e revistas e as mensagens em blogs e foacuteruns os ldquodominantesrdquo citados por Jean-Claude Passeron que misturam sem duacutevida os trecircs tipos de praacuteticas

Tais posiccedilotildees natildeo satildeo evidentemente discretas mas porosas e ateacute mesmo transversais

40 O termo logoacutefilo eacute de Michel Pierssens (1976) e glossomaniacuteaco eacute uma palavra proposta por Umberto Eco (1994)

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podendo um falante passar de uma posiccedilatildeo a outra eacute bem isso que JRR Tolkien faz sendo filoacutelogo e lexicoacutegrafo professor de inglecircs medieval mas que ao mesmo tempo torna-se logoacutefilo ao inventar liacutenguas imaginaacuterias como o famoso eacutelfico e eacute bem assim tambeacutem com Saussure primeiro linguista profissional na teoria do signo glossomaniacuteaco beirando a posiccedilatildeo de ludolinguista em seus Anagramas

A porosidade das posiccedilotildees implica igualmente uma porosidade de saberes os saberes linguiacutesticos satildeo transmitidos para os da linguiacutestica folk e vice-versa A meu ver natildeo haacute com efeito isolamento possiacutevel das categorias nesse domiacutenio os saberes linguiacutesticos ditos ldquoestudadosrdquo ou ldquocientiacuteficosrdquo natildeo satildeo neutralizados da consciecircncia epilinguiacutestica dos falantes

Alguns exemplos juristas escritores logoacutefilos ludolinguistas e militantes

A linguiacutestica juriacutedica

O manual de linguiacutestica juriacutedica (ou ldquojurilinguiacutesticardquo) de Geacuterard Cornu (2005 [1990]) eacute um exemplo interessante de linguiacutestica folk na medida em que o autor se dedica meticulosamente a iniciar uma proposta sobre a ldquociecircncia da linguagemrdquo saussuriana embora mantendo incautamente sem duacutevidas os preacute-discursos profanos que parecem ldquoingecircnuosrdquo demais a um linguista profissional Por exemplo ele define a linguiacutestica juriacutedica como a ldquoaplicaccedilatildeo particular na linguagem do direito da fundamental ciecircncia da linguiacutestica geralrdquo e esclarece um pouco adiante que ldquosua esperanccedila eacute ao menos de ela ser reconhecida como uma linguiacutestica praacutetica do mesmo modo que a linguiacutestica aplicada agrave poesiardquo (CORNU 2005 [1990] p 25) Tal analogia entre direito e poesia eacute sustentada por uma referecircncia a Roman Jakobson cuja metodologia linguiacutestica para o estudo da poesia eacute diretamente aplicada ao direito Eacute daiacute que vem a equivalecircncia final ldquo[o] que eacute vaacutelido para o discurso poeacutetico deveria ser tambeacutem para o discurso juriacutedicordquo (CORNU 2005 [1990] p 25) Poderiacuteamos zombar dessa afirmaccedilatildeo mas essa analogia eacute interessante justamente por constituir uma das modalidades mais disseminadas do pensamento profano Temos aiacute um exemplo de uso de um meacutetodo profano para a elaboraccedilatildeo de um corpo de saber profano Mais agrave frente ele define o vocabulaacuterio juriacutedico como ldquoo reflexo do sistema juriacutedicordquo (Idem p 58) recuperando assim a concepccedilatildeo de liacutengua como reflexo E foi justamente contra essa concepccedilatildeo que a linguiacutestica cientiacutefica se constituiu Eu poderia ainda dar bem mais exemplos dessa linguiacutestica espontacircnea em embate com uma linguiacutestica acadecircmica que G Cornu apresenta para justificar o uso da linguagem em seu campo teoacuterico O essencial me parece ser que essa linguiacutestica folk ldquofuncionardquo como diria D Dennett quer dizer ela organiza com eficaacutecia os usos especializados da linguagem no campo juriacutedico

As ldquooutras liacutenguasrdquo de Antonin Artaud

ldquoEm fevereiro de 1947rdquo escreve Anne Tomiche (2002 p 141)

Antonin Artaud descreve essa lsquooutra liacutenguarsquo que ele nunca cessou de procurar como uma lsquocanccedilatildeo impostada [] entre negrochinecircsindiano e francecircs vulgarrsquo

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Ele enfatiza entatildeo natildeo apenas a dimensatildeo oral dessa liacutengua entre a canccedilatildeo e a impostaccedilatildeo mas tambeacutem a mistura de liacutenguas e mais precisamente uma mistura de liacutenguas associadas agraves transgressotildees sintaacuteticas e agrave inteligibilidade

Artaud fornece com efeito um exemplo de atividade linguiacutestica empreendida por um natildeo-linguista que eacute um escritor evidentemente dotado de um saber linguiacutestico epilinguiacutestico e plurilinguiacutestico (Artaud eacute familiarizado com muitas liacutenguas estrangeiras) largamente superior agrave meacutedia dos falantes Artaud se esforccedila entatildeo para elaborar outra liacutengua cujas caracteriacutesticas satildeo essencialmente a mistura e a transgressatildeo ao sistema Ele natildeo se contenta em criar e inventar formas linguageiras mas tambeacutem analisa-as no acircmbito de um discurso metalinguiacutestico Anne Tomiche daacute um exemplo bem representativo de uma posiccedilatildeo discursiva folk da parte de um escritor

Poderiacuteamos multiplicar os exemplos mas soacute falaremos de um particularmente interessante jaacute que Artaud natildeo se contenta em introduzir em uma frase em francecircs um termo o ldquoteacutetecircmerdquo que solda muitas liacutenguas ldquoNo sono a gente dorme de mim mesmo e de qualquer um soacute haacute o espectroa extraccedilatildeo do teacutetecircme do ser por outros seres (acordados por ora) disso que faz com que a gente seja um corpordquo Natildeo sem ironia ele continua em seguida com uma anaacutelise metalinguiacutestica da composiccedilatildeo do termo explicando que ldquoteacutetecircmerdquo mistura o eacutema grego (sangue) com a tecircte [cabeccedila testa] e com o theacute [chaacute] que reduplicado designa aquilo que repousa e que arde ldquoE o que eacute o teacutetecircme O sangue do corpo espalhado nesse momento e que adormece em seu sono Como o teacutetecircme eacute o sangue Pelo eacutema diante do t que repousa e que designa aquilo que repousa como o teacute veacute dos marselheses41 Porque o teacute [o chaacute] faz um barulho de cinza quando a liacutengua o encosta nos laacutebios em que ele queimaE Eacutema em grego quer dizer sangue E teacutetecircme duas vezes a cinza sobre a chama do coaacutegulo de sangue do inveterado coaacutegulo de sangue que eacute o corpo daquele que dorme e sonha Seria melhor que acordasserdquo(XIV 16)42 (TOMICHE 2002 p 144)

Logoacutefilos glossomaniacuteacos loucos da linguagemProacuteximo do escritor e de sua atividade folk mas distante do campo da literatura e de suas

aberturas ficcionais o apaixonado pela linguagem se entrega a atividades de invenccedilatildeo de liacutenguas imaginaacuterias O logoacutefilo eacute um tiacutepico linguista folk bem dentro do retrato que Marina Yaguello faz dele quando de seu estudo sobre aqueles que chama de ldquoloucos da linguagemrdquo

41 NT A expressatildeo ldquoTeacute veacuterdquo eacute tiacutepica da fala de Marselha significando algo como ldquoRepare soacuterdquo ldquoVejardquo ldquoOlherdquo No original a citaccedilatildeo inteira eacute ldquoOn pourrait multiplier les exemples mais on nrsquoen ajoutera qursquoun seul particuliegraverement inteacuteressant parce qursquoArtaud ne se contente pas drsquointroduire dans une phrase en franccedilais un terme le laquo teacutetecircme raquo qui brasse plusieurs langues laquo Dans le sommeil on dort il nrsquoy a pas de moi et personne que du spectre arrache- ment du teacutetecircme de lrsquoecirctre par drsquoautres ecirctres (agrave ce moment-lagrave eacuteveilleacutes) de ce qui fait que lrsquoon est un corps raquo Non sans ironie il procegravede ensuite agrave une analyse meacutetalinguistique de la composition du terme pour expliquer que le laquoteacutetecircmeraquo mecircle le eacutema grec (sang) agrave la tecircte et au laquotheacuteraquo qui redoubleacute deacutesigne ce qui se repose et qui bruumlle laquo Et qursquoest-ce que le teacutetecircme Le sang du corps agrave ce moment-lagrave allongeacute et qui sommeille car il dort Comment le teacutetecircme est-il le sang Par le eacutema devant qui le t se repose et deacutesigne ce qui se repose comme le teacute veacute des Marseillais Car le teacute fait un bruit de cendre lorsque la langue le deacutepose dans les legravevres ou il va fumer Et Eacutema en grec veut dire sang Et teacutetecircme deux fois la cendre sur la falamme du caillot de sang de caillot inveacuteteacutereacute de sang qursquoest le corps du dormeur qui recircve et ferait mieux de srsquoeacuteveiller

42 Fazemos referecircncia aqui agraves ediccedilotildees das obras completas de Artaud feitas pela Gallimard 1976-1994

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O inventor de liacutengua eacute um amador no duplo sentido do termo apaixonado pelas liacutenguas em geral desconhece absolutamente a ciecircncia da linguagem Mas ele tem antes de tudo uma preocupaccedilatildeo de natureza esteacutetica o desejo de produzir um tudo uma totalidade um conjunto fechado mas exaustivo dotado de uma simetria perfeita cujas engrenagens estatildeo besuntadas de oacuteleo onde nenhuma discordacircncia ou ambiguidade saberia se introduzir donde seriam banidos o equiacutevoco a extravagacircncia o mal-entendido (YAGUELLO 2006 p 45)

Sua posiccedilatildeo social e profissional o coloca em contato com os dados da cultura e ao contraacuterio dos pintores da arte bruta ou da arte ldquode fora da cacircnonerdquo que natildeo satildeo detentores de cultura ele estaacute no interior do universo letrado

Na maior parte das vezes eacute um escolaacutestico um professor ou um meacutedico ou seja justamente um homem de gabinete um homem de cavanhaque e de oacuteculos com armaccedilatildeo circular de metal como revela a galeria de retratos que estampa o livro de Monnerot-Dumaine uma das duas biacuteblias da interlinguiacutestica (YAGUELLO 2006 p 46)

Ele executa gestos profissionais que estatildeo proacuteximos daqueles empreendidos pela linguiacutestica acadecircmica universitaacuteria mesmo que natildeo disponha de seus saberes especializados Ainda assim de acordo com Marina Yaguello o trabalho do logoacutefilo consiste em

a) acumular dados

b) classificaacute-los

c) encontrar um princiacutepio explicativo imitaccedilatildeo dos sons da natureza ou ainda a correspondecircncia entre o sentido das palavras e sua realizaccedilatildeo acuacutestica ou articulatoacuteria

d) organizar os dados sob a forma de uma aacutervore genealoacutegica a liacutengua-matildee que daria agrave luz toda a prole de liacutenguas passadas e presentes da humanidade (YAGUELLO 2006 p 47)

LudolinguistasDefini anteriormente os ludolinguistas como especialistas na manipulaccedilatildeo luacutedica dos

significantes Aprofundo aqui com o exemplo dos imitadores especialmente aqueles de sotaques Todos os humoristas sejam imitadores profissionais ou natildeo dispotildeem em seu repertoacuterio da praacutetica de manipulaccedilatildeo de sotaques que repousa sobre uma teoria sociolinguiacutestica espontacircnea Os sotaques satildeo manifestaccedilotildees focircnicas da variaccedilatildeo regional nacional social eacutetnico-cultural de gecircnero ou de sexualidade etc O sotaque social eacute por exemplo bem representado nas imitaccedilotildees de Valeacuterie Lemercier no filme Os visitantes eles natildeo nasceram ontem de 1993 (o sotaque aristocraacutetico de ldquoBeacuteardquo de Montmirail ao ver seu ancestral ldquoHubrsquordquo chegar da Idade Meacutedia acompanhado de seu fiel serviccedilal Jacquouille la Fripouille) ou nas encenaccedilotildees de Sylvie Joly como ldquogrande burguesardquo em sua peccedila La cigale et la Joly [A cigarra e a Joly como parocircnimo de La cigale et la fourmi A cigarra e a formiga] (2006) ou ainda pelas entonaccedilotildees da atriz Mathilde Casadesus que conta com um forte registro cientiacutefico no documento sonoro mdash uma fita cassete mdash que acompanha a coletacircnea Les accents des franccedilais organizada por Pierre

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Leacuteon e colegas (LEacuteON et al 1983) Encontram-se realizaccedilotildees de sotaques eacutetnico-culturais nas imitaccedilotildees do sotaque ldquoafricanordquo pela dupla Omar e Fred no curto programa Le service apregraves-vente des eacutemissions atualmente transmitido no comeccedilo da noite no Canal+ ou com o tenista-cantor Yannick Noah que elaborou ao longo de suas intervenccedilotildees televisivas um tipo de imitaccedilatildeo antirracista do sotaque camaronecircs ou ainda com as interpretaccedilotildees magrebinas exageradas de Djamel Debbouze ou Mohand Saiacuted Fella (TERBOUCHE 2008)43 e enfim com as ecircnfases judaico-magrebinas dos humoristas Eacutelie Kakou e Gad Elmaleh Os sotaques regionais que entraram na moda no final dos anos 1990 na seacuterie de curtas televisivos Les Deschiens (uma famiacutelia que tem o sotaque rural do departamento francecircs de Sarthe v Pugniegravere 2006) e mais recentemente no filme A Riviera natildeo eacute aqui [Bienvenue chez les chrsquotis] de Dany Boon (2007) haacute muito tempo satildeo alvo de imitaccedilotildees mais ou menos pejorativas principalmente entre escritores como bem mostra a celebriacutessima cena do Dom Juan de Moliegravere dedicada aos camponeses Charlotte e Pierrot (ato II cena I) Os sotaques mais difiacuteceis de serem apreendidos e nomeados (dada a dificuldade de nomeaccedilatildeo eu proporia a terminologia sotaque de gecircnero ou sotaque de identidade sexual quem sabe ateacute de orientaccedilatildeo sexual) e mais estigmatizantes mdash como o sotaque ldquohomordquo (ldquogayrdquo) exemplificado pelas interpretaccedilotildees ldquoloucasrdquo de Michel Serrault na peccedila e no filme A Gaiola das Loucas ou de Gad Elmaleh no filme Xuxu de Merzak Allouache (2003) mdash satildeo testemunhos analogamente dessa extraordinaacuteria competecircncia linguiacutestica dos imitadores que repousa num treinamento fino apesar de natildeo cientiacutefico dos fenocircmenos foneacuteticos destacados

Eacute preciso reconhecer aleacutem de tudo que os linguistas profissionais se dedicam muito pouco aos sotaques em especiais aos sotaques do substrato eacutetnico cultural ldquode sexualidaderdquo ou comunidade haacute poucos trabalhos sobre o sotaque ldquohomossexualrdquo na sua versatildeo ldquoloucardquo ou em qualquer outra com exceccedilatildeo de um artigo de Gilles Siouffi intitulado ldquoLes homos parlent-ils comme les hommes ou comme les femmesrdquo de 1998 A questatildeo eacute abordada no acircmbito da dialetologia social estadunidense entre trabalhos sobre atitudes linguiacutesticas (PRESTON 1992 por exemplo) Os estudos satildeo entretanto escassos Em contrapartida os sotaques satildeo bem detectados por outros linguistas folk os socioacutelogos-linguistas por exemplo que consideram que eles tecircm uma funccedilatildeo de poderosos organizadores sociais Esses socioacutelogos-linguistas satildeo os protagonistas de atividades folk de uma terceira categoria dos linguistas folk as classes dominantes Com efeito Jean-Claude Passeron considera que as classes dominantes executam uma atividade linguiacutestica de intervenccedilatildeo a saber a divisatildeo social por meio dos sotaques

[] ao mesmo tempo que a linguiacutestica espontacircnea das classes dominantes constitui o sotaque dominante como a ausecircncia de sotaque sotaque zero mdash em relaccedilatildeo ao qual os sotaques regionais ou populares satildeo entendidos ou definidos como deformaccedilotildees mais ou menos pitorescas mdash a estiliacutestica espontacircnea dos modos de vida tende a considerar as marcas linguiacutesticas portadas pelas classes dominantes (determinantes concomitantemente da dominaccedilatildeo e das restriccedilotildees relacionadas ao exerciacutecio da

43 ldquoComment vous dire le costume Il eacutetait tellement petit que crsquoest un coustime [kustim]rdquo [Como o senhor diz o costume [traje] Era tatildeo pequeno que era um coustime [kustim cusrsquotam como pronunciado no espetaacuteculo mas morfologicamente um trajezinho]] (extraiacutedo do espetaacuteculo Cocktail Khorotv (literalmente Cocktail de mensonges) citado por Terbouche (2008 p 14)

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dominaccedilatildeo) como natildeo marcas a partir das quais se veem as de formaccedilotildees dos corpos e dos rostos populares (PASSERON 1999)

Os discursivistas folkConcluo essa enumeraccedilatildeo de exemplos com uma manifestaccedilatildeo militante da linguiacutestica folk

ou da anaacutelise do discurso folk nesse caso Trata-se de um ldquoateliecirc de anaacutelise e de criacutetica do discurso poliacuteticordquo intitulado antifrasticamente ldquoLe monde reacuteenchanteacute de Nicolas Sarkozyrdquo proposto em novembro de 2007 em Paris no 19e Distrito pela ldquoCoordination des Intermittents et Preacutecaires drsquoIle-de-Francerdquo A primeira sessatildeo foi apresentada assim

Primeira sessatildeo quarta-feira 31 de outubro de 2007 das 19h agraves 22h na CIPIDF

A ideia inicial eacute relativamente simples trata-se de fazer um trabalho coletivo de anaacutelise e de criacutetica do discurso poliacutetico no acircmbito de um ateliecirc aberto a todos

Em nossa opiniatildeo natildeo pode ser um grupo de reflexatildeo teoacuterica mdash porque aiacute seria necessaacuterio supor o domiacutenio de certas noccedilotildees e de algumas ferramentas o que restringiria de fato a acessibilidade do ateliecirc Noacutes o consideramos muito mais como um ateliecirc praacutetico ateacute mesmo poliacutetico se conseguimos vislumbrar daiacute sua finalidade desenvolver meios eficazes de combater os efeitos sobre noacutes mesmos e terceiros do discurso poliacutetico autorizado Poderiacuteamos dizer nesse sentido que se trata de um ateliecirc de autoformaccedilatildeo de criacutetica ideoloacutegica

Concretamente decidimos trabalhar sobre o discurso de Nicolas Sarkozy As discussotildees foram acaloradas quanto a esse assunto e ningueacutem saiu inteiramente satisfeito com a escolha Concordamos que o poder proveacutem de mais longe e que sua accedilatildeo vai aleacutem do campo ldquopoliacuteticordquo e que de certa maneira essa escolha significa sucumbir ao discurso ideoloacutegico procurando o poder precisamente onde gostariacuteamos de acreditar que ele se exerce exclusivamente Dito isso se o poder estaacute em todo lugar pouco importa onde o percebemos o importante para noacutes eacute concentrar nossa anaacutelise sobre um discurso que seja atual e endereccedilado a todos e cada um mdash cada um tem o direito e eis nossa convicccedilatildeo a capacidade de respondecirc-lo [anuacutencio recebido por e-mail outubro de 2007]

Essa passagem nos mostra que a teoria folk eacute uma teoria praacutetica ou uma teoria da praacutetica O objeto do Ateliecirc eacute o uso do discurso e seus efeitos sobre os indiviacuteduos natildeo a descriccedilatildeo de suas regras e regularidades por exemplo O saber profano eacute na maior parte das vezes um saber praacutetico um saber ldquouacutetilrdquo aos locutores para mudar a sociedade em que vivem

De que valem as teorias folkA linguiacutestica folk propotildee uma das questotildees epistemoloacutegicas mais difiacuteceis sobretudo no

domiacutenio das ciecircncias humanas e sociais qual eacute a validade das teorias (pseudo) cientiacuteficas Existem poucos trabalhos sobre essa questatildeo na Franccedila A linguiacutestica folk eacute majoritariamente traduzida em termos de posiccedilatildeo normativa ou de purismo (PAVEAU ROSIER 2008) Aleacutem disso

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o espectro cartesiano e as imagens positivas mdash talvez ateacute mesmo positivistas mdash da ciecircncia que circulam no paiacutes dificilmente favorecem esse tipo de questionamento Por outro lado a filosofia do espiacuterito e a filosofia das ciecircncias especialmente nos Estados Unidos propotildeem anaacutelises e respostas particularmente esclarecedoras sobre as folk sciences em geral ou sobre a linguiacutestica folk em particular Utilizo essas respostas em meu escrutiacutenio da validade das teorias espontacircneas sobre a liacutengua natildeo pretendendo aplicaacute-las de modo mecacircnico

Avaliaccedilotildees epistecircmicas da linguiacutestica folkQual eacute a validade das teorias folk Trecircs respostas satildeo possiacuteveis

A posiccedilatildeo eliminativaNa filosofia do espiacuterito a posiccedilatildeo dita eliminativa ou do materialismo eliminativo (P

Feyerabend R Rorty W Sellars Paul e Patricia Churchland S Laurence) estaacute fundada sobre a tese segundo a qual a compreensatildeo dos estados mentais pelas teorias do senso comum estaacute errada Isso porque ela natildeo corresponderia a nenhuma base cientiacutefica Com efeito essa compreensatildeo pode se apoiar sobre dados neuroloacutegicos Por exemplo natildeo haacute base neural para certas teorias sobre a intencionalidade ou mesmo a proacutepria consciecircncia noccedilotildees que satildeo as mais difiacuteceis para naturalizar Para o filoacutesofo Paul Churchland por exemplo (2002 [1981]) as teorias folk satildeo totalmente falsas e estatildeo aleacutem disso no processo de serem substituiacutedas (ldquoeliminadasrdquo) por demonstraccedilotildees irrefutaacuteveis concebidas pelas neurociecircncias Essa posiccedilatildeo eacute compartilhada pelo filoacutesofo S Laurence (2003) considerando que as teorias folk em qualquer ciecircncia estatildeo na maior parte do tempo erradas Laurence ainda acrescenta que a linguiacutestica apresenta uma vulnerabilidade muito forte jaacute que se trata de uma teoria jovem a publicaccedilatildeo do CLG data de 1916 pouco mais de 100 anos

Transposta para os resultados da linguiacutestica folk a teoria eliminativa diraacute entatildeo que ela se trata de uma teoria falsa por se basear em dados perceptivos intuitivos dotados de juiacutezos de valor (quem sabe ateacute mesmo imaginaacuterios) mas sem nenhum dado cientificamente verificaacutevel

Uma posiccedilatildeo intermediaacuteria ldquoo realismo suaverdquo de Daniel DennetO filoacutesofo D Dennett (1990 [1987] 2002 [1991]) defende uma posiccedilatildeo intermediaacuteria que ele

mesmo chama de ldquorealismo suaverdquo situado entre os dois extremos do ldquorealismo de forccedila industrialrdquo de J Fodor e do materialismo eliminativo dos Churchland Essa posiccedilatildeo diz respeito agrave psicologia popular (folk psychology) que ele descreve da seguinte maneira

[] as pessoas satildeo ainda menos previsiacuteveis que o tempo se tomadas face agraves teacutecnicas cientiacuteficas dos meteorologistas e mesmo dos bioacutelogos Mas haacute outra perspectiva que nos eacute conhecida desde a infacircncia e que utilizamos sem esforccedilo todos os dias que parece maravilhosamente capaz de fornecer um sentido a todas essas complexidades Chamamo-la comumente de psicologia popular Ela eacute a perspectiva que invoca a famiacutelia dos conceitos ldquomentalistasrdquo como os de crenccedila desejo conhecimento medo atenccedilatildeo

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intenccedilatildeo compreensatildeo sonho imaginaccedilatildeo consciecircncia de si e assim por diante (DENNETT 1990 [1987] p 17-18)

O realismo suave pode ser resumido assim o vocabulaacuterio e os conceitos ldquofolkrdquo satildeo operacionais e ateacute mesmo necessaacuterios para a vida social do homem e as percepccedilotildees espontacircneas satildeo estruturas (patterns) absolutamente fundamentais na vida humana

[] haacute nos assuntos humanos estruturas que se impotildeem por elas mesmas de uma maneira que natildeo eacute de modo algum inexoraacutevel mas que tecircm grande forccedila absorvendo perturbaccedilotildees e variaccedilotildees psiacutequicas que poderiacuteamos muito bem considerar como dadas ao mero acaso satildeo estruturas que caracterizariacuteamos em termos de crenccedilas desejos intenccedilotildees dos agentes racionais (DENNETT 1990 [1987] p 42)

Aleacutem do mais constata D Dennett a psicologia popular funciona (ldquoa estrateacutegia intencional funciona tatildeo bem quanto possiacutevelrdquo p 43) mesmo que esse funcionamento natildeo seja permanente A psicologia popular eacute com efeito uma teoria imperfeita incompleta e consequentemente natildeo generalizaacutevel mas ela eacute uma teoria valiosa em vaacuterios pontos de seu funcionamento Cito essa longa passagem em que D Dennett daacute uma definiccedilatildeo bastante completa da psicologia popular por conter um bom nuacutemero de elementos que podem contribuir para minha reflexatildeo quanto agrave teoria linguiacutestica

[] utilizamos a psicologia popular o tempo todo para explicar ou predizer reciprocamente nossos comportamentos atribuiacutemo-nos reciprocamente crenccedilas e desejos sem nos questionarmos muito espontaneamente e passamos um bom periacuteodo de nossas vidas conscientes formulando o mundo mdash assim como a noacutes mesmos mdash nesses termos A psicologia popular eacute quase tatildeo parte integrante de nossa segunda natureza quanto nossa fiacutesica popular dos objetos de tamanho meacutedio Ateacute que ponto essa psicologia popular eacute pertinente Se nos concentramos nos pontos fracos perceberemos que com frequecircncia somos incapazes de dar sentido a porccedilotildees particulares do comportamento humano (inclusive o nosso) em termos de crenccedilas e de desejos mesmo em retrospectiva com frequecircncia somos incapacitados de predizer o que uma pessoa faraacute ou em que momento ela agiraacute com frequecircncia natildeo conseguimos encontrar recursos teoacutericos para ajustar os desacordos relativos a certas atribuiccedilotildees de desejos e de crenccedilas Se nos concentramos nos pontos positivos descobrimos em primeiro lugar que haacute grandes setores em que essa teoria tem um poder de prediccedilatildeo extremamente confiaacutevel [] Em segundo lugar descobriremos que ela eacute uma teoria que tem um grande poder gerador e uma grande efetividade [] Em terceiro lugar descobriremos que ateacute mesmo as crianccedilas mais jovens adquirem facilmente a teoria em algum momento se natildeo o adquirem teratildeo uma experiecircncia muito limitada da atividade humana a partir da qual podem induzir uma teoria Em quarto lugar descobriremos que todos podemos utilizar a psicologia popular praticamente sem nada sabermos de como funciona o interior dos cabeccedilas das pessoas (DENNETT 1990 [1987] p 67-68)

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Transposta para a linguiacutestica folk essa anaacutelise nos levaria ao seguinte enunciado os dados da linguiacutestica folk satildeo aceitaacuteveis e integraacuteveis agrave teoria linguiacutestica porque fornecem descriccedilotildees perceptivas e organizacionais relevantes da linguagem mas natildeo podem servir de base para uma teoria geral da linguagem

A posiccedilatildeo integracionista os dados folk satildeo dados linguiacutesticosEssa posiccedilatildeo insiste sobre os saberes dos natildeo-linguistas saberes legiacutetimos e reconheciacuteveis

como tais D Preston e N Niedzielski (1999 p 10) o afirmam em sua siacutentese ldquoSe o povo fala sobre a linguagem ele deve claro saber (ou pelo menos acreditar que sabe) sobre issordquo A teoria linguiacutestica eacute entatildeo considerada sob os acircngulos de sua operacionalidade e de sua verdade praacutetica e natildeo mais no acircmbito de uma loacutegica cientiacutefica Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos psicoacutelogos sociais N Llewellyn e A Harrison (2006) em seus estudos sobre as percepccedilotildees das formas linguageiras e discursivas em documentos empresariais Eles mostram que os participantes de uma enquete por eles realizada comprovaram uma competecircncia linguiacutestica verdadeira no reconhecimento dos empregos do pronome nous (noacutesnos) ou na identificaccedilatildeo da transformaccedilatildeo passiva e da nominalizaccedilatildeo Acrescenta-se que essa competecircncia pode significar economia da metalinguagem e ateacute mesmo do aprendizado das expressotildees detectadas

Nessa perspectiva vale a pena enfatizar que categorias linguiacutesticas sonoras formais como as discutidas acima descrevem caracteriacutesticas mundanas do uso cotidiano da liacutengua Eacute perfeitamente possiacutevel que os indiviacuteduos faccedilam uso e identifiquem casos de ldquotransformaccedilatildeo passivardquo por exemplo sem nunca terem ouvido falar do termo (LLEWELYN HARRISON 2006 p 580 traduccedilatildeo nossa)44

Os autores compartilham quanto a isso a posiccedilatildeo de Sylvain Auroux que lembra em seus trabalhos sobre a gramatizaccedilatildeo que os saberes linguiacutesticos natildeo satildeo necessariamente distintos daqueles que fornecem a consciecircncia epilinguiacutestica

[] continuidade entre o epilinguiacutestico e o metalinguiacutestico pode ser comparada com a continuidade entre a percepccedilatildeo e a representaccedilatildeo fiacutesica nas ciecircncias da natureza Enquanto essas uacuteltimas romperam muito cedo com a percepccedilatildeo mdash desde a fiacutesica galileana para se distanciar dela cada vez mais mdash este saber linguiacutestico natildeo rompeu senatildeo esporadicamente com a consciecircncia epilinguiacutestica (AUROUX 1992 p 16)

O ldquorealismo ingecircnuordquo por exemplo (ACHARD-BAYLE 2008 p 34) que consiste em atribuir agraves entidades concretas do mundo fronteiras mais ou menos discretas que fazem com que coincidam com os nomes que as designam pode fazer saltar aos olhos um saber epilinguiacutestico natildeo consciente (ldquopau eacute pau pedra eacute pedrardquo diria sem hesitar minha vendedora de antiguidades)

44 NT As citaccedilotildees em inglecircs feitas no artigo foram traduzidas no texto mas mantidas conforme original em nota de rodapeacute ldquo[hellip] in this regard it is worth making the point that formal sounding linguistic categories such as those discussed above describe mundane features of everyday language use It is perfectly possible for individuals to deploy and identify instances of ldquopassive transformationrdquo for example without having heard of the termrdquo

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mas igualmente uma posiccedilatildeo semacircntico-filosoacutefica cientiacutefica e argumentada A noccedilatildeo de epilinguiacutestico eacute sem duacutevida uma das chaves para se compreender como e por quecirc ao exemplo da psicologia popular a linguiacutestica folk ldquofuncionardquo Com efeito a consciecircncia epilinguiacutestica eacute uma instacircncia que fornece dados linguiacutesticos da ordem da percepccedilatildeo Se numa perspectiva empiacuterica a linguiacutestica faz jus agraves dimensotildees experiencial e cultural da linguagem ou seja se o objeto da linguiacutestica integra os usos da liacutengua pelos sujeitos sociais e cognitivos entatildeo os dados perceptivos da linguiacutestica folk podem ser levados em conta como dados linguiacutesticos pura e simplesmente

As intuiccedilotildees dos locutores satildeo controlaacuteveisSe a linguiacutestica folk como a psicologia folk ldquofuncionardquo eacute por existir uma fonte de percepccedilotildees

de juiacutezos e de avaliaccedilotildees que pode fornecer resultados corretos essa fonte eacute em linguiacutestica a intuiccedilatildeo do dito ldquolocutor idealrdquo se tomamos a terminologia chomskiana ou a consciecircncia epilinguiacutestica se escolhemos a designaccedilatildeo do linguista francecircs Antoine Culioli45 Mas todos os locutores possuem a mesma intuiccedilatildeo Haacute diferenccedila entre a intuiccedilatildeo do locutor natildeo-linguista e a do linguista Natildeo responde o filoacutesofo M Devitt que considera que as intuiccedilotildees dos linguistas satildeo melhores que as dos linguistas folk porque as intuiccedilotildees natildeo satildeo contrariamente a uma ideia em circulaccedilatildeo inatas mas carregadas de teoria M Devitt (2006 p 483) propotildee de fato uma criacutetica bem robusta agrave intuiccedilatildeo chomskiana e propotildee uma teoria alternativa ldquoEssa teoria trata as intuiccedilotildees linguiacutesticas como opiniotildees resultantes de investigaccedilatildeo empiacuterica ordinaacuteria carregadas de teoria como todas as opiniotildees satildeordquo Ele conclui com a impossibilidade de considerar essa intuiccedilatildeo que seria bem pouco carregada cientificamente de teoria como fundaccedilatildeo da linguiacutestica

Vejo linguistas tendendo para duas perspectivas em seu tratamento dos juiacutezos intuitivos dos falantes Por um lado a visatildeo aceita eacute que os falantes representam a verdadeira teoria linguiacutestica de sua liacutengua e derivam seus juiacutezos intuitivos dessas representaccedilotildees Entatildeo esses juiacutezos intuitivos fazendo uso de termos retirados dessa teoria deveriam ser os dados primaacuterios para a teoria do linguista De outro lado haacute o pensamento atraente de que todos os juiacutezos que fazem uso desses termos satildeo dotados de uma teoria linguiacutestica empiacuterica Onde os juiacutezos satildeo do falante comum essa teoria seraacute a linguiacutestica folk Natildeo eacute regra usarmos como dados primaacuterios numa teoria juiacutezos populares carregados de teoria A linguiacutestica natildeo devia fazecirc-lo tambeacutem (DEVITT 2006 p 485 traduccedilatildeo nossa)46

45 Em vaacuterios aspectos essas duas noccedilotildees (a de intuiccedilatildeo do locutor e a de consciecircncia epilinguiacutestica uma de origem estadunidense e outra de origem francesa) se recobrem Ambas designam na verdade uma competecircncia natildeo objetivada natildeo formulada e natildeo formalizada dos locutores em relaccedilatildeo agraves suas produccedilotildees linguageiras O meacutetodo de introspecccedilatildeo faz essa faculdade evoluir para a metalinguagem seja espontacircnea seja formal

46 No original ldquoI see linguists as pulled two ways in their treatment of the intuitive judgments of speakers On the one hand the received view is that speakers represent the true linguistic theory of their language and derive their intuitive judgments from those representations So those intuitive judgments deploying terms drawn from that theory should be the primary data for the linguistrsquos theory On the other hand there is the attractive thought that all judgments deploying those terms are laden with an empirical linguistic theory Where the judgments are those of the ordinary speaker that theory will be folk linguistics We do not generally take theory-laden folk judgments as primary data for a theory So we should not do so in linguisticsrdquo

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Tal desconfianccedila quanto agrave noccedilatildeo de intuiccedilatildeo do locutor ideal e agrave ldquocontemplaccedilatildeo de seus proacuteprios idioletosrdquo pelos linguistas jaacute era denunciada por William Labov no final dos anos 1960 (1976 [1972] p 37) As intuiccedilotildees dos linguistas com efeito estatildeo longe de serem melhores do que as populares

O que aconteceria se um dado tipo de juiacutezo de linguistas sobre a gramaticalidade fosse submetido a uma populaccedilatildeo de origem diversa O estudo mais sistemaacutetico desse tipo foi levado a cabo por Spencer (1973) Ela testou 150 frases retiradas dos estudos sintaacuteticos de Perlmutter Carlotta Smith Postal Ross Rosenbaum e R Lakoff com 60 avaliadores 20 estudantes diplomados em linguiacutestica 20 outros estudantes diplomados e 20 pessoas da cidade do coleacutegio secundaacuterio []

Tendo em vista todos esses resultados ficou claro que nenhum linguista eacute melhor ou pior que os outros nessa questatildeo []

Atualmente nenhum resultado permite alimentar a esperanccedila de que os juiacutezos introspectivos dos linguistas sejam confiaacuteveis reproduziacuteveis ou generalizaacuteveis em sua aplicaccedilatildeo na linguagem da comunidade Eacute necessaacuterio entatildeo perguntarmos quais satildeo as consequecircncias desses fatos para as teorias linguiacutesticas fundadas sobre tais juiacutezos (LABOV 2001 [1975] p 32-33)

As intuiccedilotildees dos linguistas natildeo satildeo creditaacuteveis natildeo porque elas satildeo cultivadas e preteorizadas mdash posiccedilatildeo defendida por Devitt mdash mas por razotildees epistemoloacutegicas Segundo Labov (2001 [1975] p 41) a linguiacutestica natildeo deve repousar em intuiccedilotildees e evidecircncias incontroladas

[] jaacute que cada estudo conduzido ateacute hoje em dia sobre os juiacutezos intuitivos indica que encontra-se neles uma parte natildeo descartaacutevel de efeito do experimentador as intuiccedilotildees incontroladas dos linguistas devem ser consideradas com seacuterias duacutevidas Se essas intuiccedilotildees devem supostamente representar somente o idioleto do linguista entatildeo o valor de suas anaacutelises repousa sobre fundaccedilotildees muito incertas Deve-se submetecirc-los a outros estudos experimentais para que se possa testar a coerecircncia de seus juiacutezos []

Entatildeo devemos descartar os dados da intuiccedilatildeo Natildeo evidentemente mas a linguiacutestica deve integrar sua relatividade isso que Labov chama de ldquoefeito do experimentadorrdquo e aplicar certos princiacutepios

[] a soluccedilatildeo para o problema estabelecido anteriormente parece suficientemente clara Devemos (1) reconhecer o efeito do experimentador e (2) voltar agrave noccedilatildeo original de trabalho sobre os casos evidentes Poderiacuteamos entatildeo fazer nosso trabalho repousar sobre trecircs princiacutepios operacionais que oferecem uma base suficientemente soacutelida para a exploraccedilatildeo contiacutenua dos juiacutezos gramaticais I O princiacutepio do consenso se natildeo haacute motivo para pensar o contraacuterio supotildee-se que os juiacutezos de um locutor nativo sejam caracteriacutesticos ao conjunto dos locutores da liacutengua II O princiacutepio do experimentador se haacute qualquer um

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em discordacircncia quanto aos juiacutezos introspectivos os juiacutezos daqueles que satildeo familiares aos problemas teoacutericos natildeo deveriam se manter como provas III O princiacutepio dos casos evidentes os juiacutezos contestados deveriam ser reforccedilados pela presenccedila de pelo menos um padratildeo coerente na comunidade de locutores ou ser abandonados [] Eacute necessaacuterio ainda nomear um quarto princiacutepio o Princiacutepio da validade

IV Princiacutepio da validade quando o uso da linguagem se mostra mais coerente que os juiacutezos introspectivos uma descriccedilatildeo vaacutelida da linguagem privilegiaraacute o uso agrave introspecccedilatildeo (LABOV 2001 [1975] p 45 e 52)

Esses quatro princiacutepios mdash consenso experimentador casos evidentes e validade mdash levam a consequecircncias sobre as praacuteticas linguiacutesticas (reduzir a relatividade e a natildeo credibilidade dos dados extraiacutedos da intuiccedilatildeo qualquer que seja o tipo de locutor) mas igualmente sobre a proacutepria epistemologia da linguiacutestica a meu ver eles reforccedilam a ideia de um continuum entre as competecircncias dos linguistas e dos natildeo-linguistas porque racionalizam os dados intuitivos

Quando os natildeo-linguistas fabricam os objetos dos linguistas o caso das atitudes linguiacutesticasOs saberes linguiacutesticos folk constituem teorias sociais da linguagem apoiando-se mais

geralmente sobre as praacuteticas linguageiras pelo vieacutes de descriccedilotildees prescriccedilotildees e intervenccedilotildees as teorias folk fornecem os organizadores sociais que se constituem em corpo do saber social Assim a sociolinguiacutestica como linguiacutestica social as toma como objetos ou mais exatamente como metaobjetos (ou seja objetos que falam de objetos) chamando-as de atitudes ou representaccedilotildees

As praacuteticas linguageiras satildeo com efeito utilizadas pelos locutores profanos como um instrumento de descriccedilatildeo psicoloacutegica e social Em sua introduccedilatildeo a um nuacutemero do Journal of Language and Social psychology dedicado agraves atitudes linguiacutesticas D Preston e L Milroy mostram que os locutores fazem uma correspondecircncia entre aspectos psicoloacutegicos e aspectos linguageiros

Notadamente muitos estudos mostraram uma tendecircncia para avaliadores discriminarem entre de um lado dimensotildees de status como inteligecircncia ambiccedilatildeo e confianccedila e de outro lado dimensotildees relacionadas agrave solidariedade como atraccedilatildeo social amistosidade e generosidade Falantes-padratildeo tenderam a ser mais bem-avaliados no primeiro conjunto de aspectos e mal-avaliados no uacuteltimo e o contraacuterio foi vaacutelido para o juiacutezo de falantes natildeo padratildeo (p ex RYAN GILES SEBASTIAN 1982 p 9) (PRESTON MILROY 1999 p 4-5 traduccedilatildeo nossa)47

47 No original ldquo[hellip] notably several studies showed a tendency for judges to discriminate between on one hand status dimensions such as intelligence ambition and confidence and on the other solidarity-related dimensions such as social attractiveness friendliness and generosity Standard speakers have tended to be rated higher on the former set of traits and downgraded on the latter the converse being true of judgments of non standard speakers (eg Ryan Giles amp Sebastian 1982 p 9)rdquo

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R Van Bezooijen e C Gooskens constatam o mesmo em seu estudo sobre a percepccedilatildeo da variedade em locutores holandeses

Intraculturalmente (em ouvintes holandeses) bem como interculturalmente (em falantes britacircnicos quenianos mexicanos e japoneses) uma maneira de falar mais ldquoanimadardquo eacute fortemente associada com domiacutenio vontade poder e autoconfianccedila Como esperado a pronuacutencia que permite identificaccedilatildeo dialetal soacute desempenha um papel intraculturalmente (VAN BEZOOIJEN GOOSKENS 1999 p 31-32 traduccedilatildeo nossa)48

Conhecemos os resultados do ldquomeacutetodo Lambertrdquo (LAMBERT et al 1960) ndash com o desconhecimento dos sujeitos locutores biliacutengues registram versotildees de um mesmo texto em duas ou vaacuterias liacutenguas ou variedades linguiacutesticas de modo a suprimir o vieacutes da voz Espera-se que os sujeitos em seguida avaliem o locutor com a ajuda de uma escala constituiacuteda de adjetivos autoniacutemicos (o locutor eacute simpaacutetico x antipaacutetico confiaacutevel x suspeito doacutecil x violento etc) Esse meacutetodo permite que surjam resultados bem confiaacuteveis por exemplo um dos estudos realizados segundo esse protocolo mostra que os homens angloacutefonos percebem as mulheres mais favoravelmente se elas falam francecircs a essas os homens angloacutefonos produzem uma boa imagem jaacute que elas tecircm a visatildeo desses falantes de inglecircs melhor do que a dos falantes de outras liacutenguas

As percepccedilotildees natildeo cientiacuteficas carregadas de representaccedilotildees e de produccedilotildees imaginaacuterias constituem assim verdadeiras teorias espontacircneas da classificaccedilatildeo soacutecio-psicoloacutegica

Consideraccedilotildees finais os natildeo-linguistas como linguistas preciososQuis mostrar neste capiacutetulo que as informaccedilotildees geradas em praacuteticas disciplinares folk

satildeo plenamente integraacuteveis agrave anaacutelise linguiacutestica A linguiacutestica folk possui com efeito uma validade de ordem praacutetica e representacional e deve por isso ser considerada pela linguiacutestica cientiacutefica como uma reserva de dados que nenhum linguista profissional consegue reunir com o auxiacutelio dos meacutetodos ditos ldquocientiacuteficosrdquo

A enorme variedade das posiccedilotildees discursivas folk das praacuteticas correspondentes e dos dados assim recolhidos assim como a fragilidade cientiacutefica de um bom nuacutemero de observaccedilotildees cientiacuteficas (geradas de posiccedilotildees subjetivas frequentemente idioletais) deve sem duacutevidas provocar que o objeto da linguiacutestica seja repensado Eacute quase irracional mdash se pensamos junto com Pierre Bourdieu e tambeacutem com Sylvain Auroux ldquoa historicizaccedilatildeo do sujeito da historicizaccedilatildeordquo (BOURDIEU 2001) eacute uma necessidade epistemoloacutegica mdash que se continue a definir o objeto da linguiacutestica como Saussure o fez em 1916 Tal objeto foi profundamente afetado pelos saberes epilinguiacutesticos metalinguiacutesticos e metadiscursivos de que foi alvo e os saberes folk fazem parte dele Parece-me necessaacuterio entatildeo propor uma descriccedilatildeo renovada convincente e sobretudo cientificamente eficaz do objeto da linguiacutestica adotando uma posiccedilatildeo

48 No original ldquo[hellip] intraculturally (by Dutchlisteners) as well as cross-culturally (by British Kenyan Mexican and Japanese listeners) a laquo lively raquo manner of speaking is strongly asso- ciated with dominance will power and self-confidence As expected pronun- ciation allowing dialect identification only played a role intraculturallyrdquo

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antieliminativa que integre a escala dos saberes linguiacutesticos (do saber cientiacutefico mais ldquodurordquo ao saber folk mais ldquosuaverdquo)

Escolher o integracionismo significa ficar com o e em vez do ou o linguista e a vendedora o escritor e o especialista de programa de TV o glossomaniacuteaco e o militante poliacutetico O que natildeo significa de maneira alguma integrar-se ao anticientificismo ou ao negacionismo

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AS NORMAS PERCEPTIVAS DA LINGUIacuteSTICA POPULAR49

A questatildeo abordada neste capiacutetulo eacute a das normas perceptivas mobilizadas por falantes comuns em suas praacuteticas linguiacutesticas Falo precisamente de praacuteticas linguiacutesticas e natildeo de praacuteticas linguageiras o que designo um campo bem identificado nos Estados Unidos a linguiacutestica folk e em menor medida na Alemanha (Volklinguistik) menos ainda no domiacutenio francoacutefono no qual muitos designadores com referentes um tanto vagos coexistem para designar esse conjunto de discursos natildeo especializados sobre as formas e padrotildees da linguagem e do discurso linguiacutestica popular espontacircnea profana selvagem natildeo erudita

Minha interrogaccedilatildeo natildeo diz respeito agrave dimensatildeo prescritiva versus descritiva das normas assim produzidas mas concerne ao valor das percepccedilotildees na elaboraccedilatildeo de um discurso linguiacutestico popular e portanto agrave validade das teorias populares em relaccedilatildeo agraves teorias acadecircmicas Isso supotildee como veremos sair desse uacuteltimo binarismo (popular vs cientiacutefico) para pensar o coeficiente de cientificidade de um discurso de modo escalar que Madame Vauquer se equivoca ao corrigir Sylvie eacute uma evidecircncia cuja lembranccedila limitaria a reflexatildeo a uma perspectiva bastante pobre e me parece preferiacutevel pensar nas coisas em termos funcionais (funccedilatildeo desta observaccedilatildeo no acircmbito do discurso linguiacutestico espontacircneo) perceptivos (por que perceber patronminette como correto em relaccedilatildeo a patron-jacquette50) e sociais (que benefiacutecio social podemos derivar dessa atitude corretiva) Esses satildeo os acircngulos que nos permitem examinar os modos de validade das teorias populares sobre a liacutengua pois integram as dimensotildees linguiacutestica perceptiva e social ao dispositivo de observaccedilatildeo Portanto afastamo-nos da perspectiva externa impliacutecita na oposiccedilatildeo descriccedilatildeo vs prescriccedilatildeo para adotar uma perspectiva interna na qual o sujeito do discurso eacute tambeacutem o sujeito da ciecircncia

Apoacutes ter descrito a situaccedilatildeo da linguiacutestica popular nos Estados Unidos no campo mais amplo das ciecircncias folk e feito algumas observaccedilotildees sobre a ldquolinguiacutestica popularrdquo na Franccedila vou propor dois exemplos a semacircntica espontacircnea do nome proacuteprio e a sociolinguiacutestica popular das classes dominantes Eles serviratildeo como um mini-laboratoacuterio para delinear uma resposta provisoacuteria agrave questatildeo da validade teoacuterica da linguiacutestica popular

1 O domiacutenio ldquofolkrdquo uma questatildeo americanaAs disciplinas com a etiqueta folk satildeo cientiacutefica e institucionalmente reconhecidas nos

Estados Unidos e designam um verdadeiro paradigma cientiacutefico ao contraacuterio da Franccedila onde equivalentes instaacuteveis de folk sinalizam frequentemente abordagens desvalorizadas

49 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Les normes perceptives de la linguistique populaire Langage et socieacuteteacute 121 laquoLes normes pratiquesraquo mars Paris Eacuteditions de la MSH 2007 p 93-109 Traduccedilatildeo de Eacuterika de Moraes (UNESP - Universidade Estadual Paulista Faculdade de Arquitetura Artes e Comunicaccedilatildeo campus de Bauru e PPGEL IBILCE-UNESP S J do Rio Preto)

50 NT Referecircncia respectivamente agrave forma formal e agrave coloquialpopular de uma mesma expressatildeo francesa cujo significado remete a ldquomuito cedo pela manhatildemadrugadardquo (ldquoao cantar do galordquo)

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11 Disciplinas Folk Na deacutecada de 1950 um grupo de jovens etnoacutelogos de Yale propocircs o termo etnociecircncia para

designar uma nova etnologia que se baseia no estudo metoacutedico do conhecimento popular ou da ciecircncia popular Esse uacuteltimo termo surge portanto no contexto da criaccedilatildeo de um novo objeto constituiacutedo pelas classificaccedilotildees naturais e espontacircneas dos atores (BARRAU 1993) O elemento folk estaraacute como eacute importante relembrar no mesmo periacuteodo que assistiu ao nascimento das ciecircncias cognitivas associado a outras disciplinas em particular no acircmbito da filosofia interrogando sobre crenccedilas a filosofia da mente contribui de fato para desenhar o que pode parecer a principal disciplina folk a psicologia folk A partir da deacutecada de 1960 discutem-se duas grandes concepccedilotildees da mente uma correspondendo agrave ldquoimagem manifestardquo do mundo e outra agrave ldquoimagem cientiacuteficardquo (SELLARS 1993 [1963]) Apesar de suas diferenccedilas filoacutesofos como D Dennett J Searle D Davidson ou mesmo J Fodor consideram que a psicologia popular com base em nossas crenccedilas desejos e no conjunto de nossos estados mentais eacute necessaacuteria agrave teoria da mente A anaacutelise de P Churchland eacute particularmente interessante para o meu propoacutesito aqui ele considera que a psicologia popular eacute de fato uma teoria mas que eacute falsa Voltarei a essa posiccedilatildeo chamada eliminativista a propoacutesito da validade da linguiacutestica popular

Haacute portanto um domiacutenio de debate muito importante muito abastecido e atualmente muito feacutertil em pesquisas e avanccedilos cientiacuteficos51

12 Folk linguiacutestica atitudes e avaliaccedilotildeesOs primeiros a falarem de linguiacutestica folk ainda satildeo os filoacutesofos a propoacutesito do estatuto

da linguiacutestica em relaccedilatildeo agrave psicologia no quadro do debate sobre o chomskysmo Para M Devitt e K Sterelny por exemplo a linguiacutestica popular eacute uma ldquoteoria ou opiniatildeo popular ou ainda primitiva a sabedoria linguiacutestica de todos os temposrdquo (DEVITT STERELNY 1989 p 503)

De fato o campo da linguiacutestica folk foi explicitamente aberto sob essa etiqueta na deacutecada de 1960 por HM Hœnigswald (1966) que reivindica a consideraccedilatildeo dos saberes espontacircneos na constituiccedilatildeo de qualquer ciecircncia natildeo tendo seus propoacutesitos ouvidos agrave eacutepoca Podemos dizer no entanto que o campo eacute explorado implicitamente por W Labov a partir de seu trabalho de 1966 The Social Stratification of English in New York City e entatildeo mais ou menos desenvolvido no trabalho que ele iraacute suscitar nos campos da dialetologia social Mas como explica I Kauhanen desde W Labov todo o interesse dos sociolinguistas se concentrou nas comunidades de fala e natildeo nas normas estas uacuteltimas tendo sido sobretudo estudadas com o vieacutes da legitimidade escrita sem que o vernaacuteculo possa evitar ser definido a partir do padratildeo (KAUHANEN 2006) Seraacute preciso esperar o trabalho de N Niedzielski e D Preston publicado em 2000 Folk linguistics para que o vernaacuteculo fosse apreendido por meio das percepccedilotildees avaliaccedilotildees e atitudes dos locutores segundo uma abordagem etnograacutefica possibilitando

51 Agrave psicologia popular foram acrescentadas mais recentemente a biologia popular (sobre as classificaccedilotildees espontacircneas) a fiacutesica popular (sobre as explicaccedilotildees espontacircneas dos fenocircmenos fiacutesicos) e a mais recente de que temos conhecimento a neuropsicologia popular definida como o conjunto de anaacutelises populares do funcionamento da mente inspiradas pelos avanccedilos das neurociecircncias

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neutralizar os vieses do padratildeo devido a preconceitos de pesquisadores e pesquisados A linguiacutestica folk assim desenhada proveacutem de trabalhos anteriores de autores e outros linguistas no cruzamento da sociolinguiacutestica e da psicologia social que incorporam a maneira pela qual crenccedilas e expectativas socialmente construiacutedas informam a percepccedilatildeo que os locutores tecircm dos usos da liacutengua

O conteuacutedo da obra de Niedzielski e Preston fornece uma siacutentese bem completa da linguiacutestica folk americana atual Os autores especificam o uso de folk ldquoUsamos folk para nos referirmos agravequeles que natildeo satildeo profissionais formados na aacuterea em investigaccedilatildeo [] Definitivamente natildeo usamos folk para referir a grupos ou indiviacuteduos ruacutesticos ignorantes incultos atrasados primitivos minoritaacuterios isolados marginalizados ou de estatutos supostamente inferioresrdquo (NIEDZIELSKI PRESTON 2000 p viii) Eles utilizaratildeo entatildeo o termo natildeo-linguistas ao longo da obra para designar aqueles que possuem conhecimento popular da liacutengua Uma de suas teses principais eacute que o estudo do conhecimento popular eacute uma tarefa para a linguiacutestica seja de uma perspectiva puramente linguiacutestica ou mais amplamente social e eacute realmente essa tarefa que eles enfrentam em seu trabalho que traz elementos de anaacutelise e reflexatildeo para diversos campos da pesquisa linguiacutestica americana etnografia da linguagem psicologia social da linguagem linguiacutestica geral e descritiva variacionismo e linguiacutestica aplicada Eacute compreensiacutevel portanto que ao menos no campo americano a linguiacutestica folk constitua tanto um campo de investigaccedilatildeo quanto um desafio importante para as ciecircncias da linguagem

No domiacutenio germacircnico onde o Volklinguistik tambeacutem derivado da linguiacutestica folk americana (BREKLE 1989) constitui um campo de investigaccedilatildeo relativamente desenvolvido os trabalhos centram-se na dialectologia em particular na imagem da ldquolinguagem improacutepriardquo associada a variantes regionais52

2 Linguiacutestica popular abordagens francesas

21 Popular ou comum

No domiacutenio francecircs os trabalhos que se autoproclamam ldquolinguiacutesticas popularesrdquo satildeo quase inexistentes como especifica J-C Beacco que aliaacutes evita deliberadamente esta expressatildeo no tiacutetulo do nuacutemero de Langages que dirige sobre o tema optando por representaccedilotildees metalinguiacutesticas comuns expressatildeo que desloca um pouco a abordagem perceptiva americana (BEACCO 2004) Popular estaacute sobretudo estabilizado na Franccedila na etimologia popular sem duacutevida porque a expressatildeo nomeia mais um tipo de conhecimento do que uma percepccedilatildeo ou uma atitude e que corresponde a fenocircmenos linguiacutesticos descritiacuteveis (metanaacutelise lexicalizaccedilatildeo nivelamento analoacutegico) Mas a ldquolinguiacutestica popularrdquo e as abordagens que dela podem ser tiradas natildeo percorrem os corredores do conhecimento na Franccedila aleacutem do artigo de H Brekle em Histoacuteria das ideias linguiacutesticas dirigido por S Auroux e o trabalho recente de J-C Beacco encontramos uma variante da noccedilatildeo em P Bourdieu (2001 p 137) que jaacute em 1983 clama

52 Ver por exemplo Langer (2001) e os trabalhos de W Davies e o projeto ldquoA histoacuteria e o estado atual da lsquolinguagem improacutepriarsquo como um conceito na linguiacutestica popular alematilderdquo disponiacutevel em eisbrisacukgexnl researchahrbhtml

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por uma ldquociecircncia rigorosa da sociolinguiacutestica espontacircneardquo O campo estaacute presente na obra de L Rosier na necessidade de levar em conta o discurso purista (uma forma de linguiacutestica popular) nos trabalhos sobre os padrotildees da liacutengua e a circulaccedilatildeo dos discursos (2003 2004) bem como no estudo da linguiacutestica espontacircnea de juristas no tratamento da penalizaccedilatildeo da fala (2006) De minha parte proponho integrar a linguiacutestica popular no ensino da liacutengua (2005) como na renovaccedilatildeo das teorias do discurso uma ldquoanaacutelise folk do discursordquo me parece particularmente desejaacutevel em uma concepccedilatildeo de discurso levando em conta dados cognitivos e perceptivos (2006)

Isso natildeo quer dizer evidentemente que a questatildeo do conhecimento linguiacutestico espontacircneo seja ignorada na Franccedila mas eacute tratada de acordo com outras orientaccedilotildees Vimos que o discurso espontacircneo sobre a liacutengua agraves vezes eacute abordado sob a etiqueta comum sem que esse exame leve agrave constituiccedilatildeo de um campo cientiacutefico constituiacutedo (ldquolinguiacutestica ordinaacuteriardquo) Sendo o termo ordinaacuterio amplamente mobilizado por sintagmas como francecircs ordinaacuterio trocas comuns ou discursos ordinaacuterios a problemaacutetica do ordinaacuterio se confunde frequentemente com a da vida cotidiana no sentido etnometodoloacutegico Ao considerar uma breve visatildeo geral dos domiacutenios franceses podemos sugerir com a reduccedilatildeo e a simplicidade de qualquer panorama que existem dois campos que levam em consideraccedilatildeo as questotildees relativas agrave linguiacutestica popular (dada a amplitude desses campos as referecircncias satildeo apenas indicativas)

- o domiacutenio do ldquometardquo quer se trate da linguiacutestica do sistema (J Rey-Debove que distingue entre ldquometalinguagem correnterdquo e ldquocientiacuteficardquo) da teoria da enunciaccedilatildeo e da reformulaccedilatildeo (J Authier e os elementos metaenunciativos C Julia e a ldquosemacircntica espontacircneardquo) ou didaacutetica da liacutengua (J-C Beacco R Bouchard J David A Treacutevise)

- o conjunto de trabalhos que em sociolinguiacutestica (J-C Beacco define a linguiacutestica popular como um ramo da sociolinguiacutestica) ocupa-se das normas e representaccedilotildees (A Berrendonner H Boyer F Gadet que falam de ldquolocutores nativosrdquo N Gueunier A-M Houdebine J-M Klinkenberg D Lafontaine) agraves vezes sob a etiqueta de ldquoatitudes linguiacutesticasrdquo no quadro da psicologia social da linguagem

Todos esses trabalhos tecircm em comum o fato de se apoiarem nos conhecimentos linguiacutesticos espontacircneos dos locutores cuja existecircncia reconhecem plenamente Mas deixam em aberto a questatildeo dos lugares desse saber o que esconde um paradoxo se a linguiacutestica popular natildeo existe como campo cientiacutefico na Franccedila mas ela produz um conhecimento presente e disponiacutevel aos pesquisadores entatildeo onde ela se situa

22 Os recursos do ldquoespiacuterito francecircsrdquo a linguiacutestica social

Eacute em grande parte e eacute sem duacutevida uma especificidade francesa que explica sua ausecircncia no campo cientiacutefico em um conjunto tatildeo vasto quanto antigo de discursos sobre a liacutengua provenientes de ensaiacutestas sociais (P Daninos P Jullian) humoristas (A Allais P Dac) escritores (Proust Balzac Queneau) jornalistas (P Merle P Vandel) colunistas (J Cellard P Georges) observadores modernos (J Capelovici A Schifres) e autores de manuais de etiqueta e guias de correspondecircncia (Baronne Staffe Liselotte B Bernage N de Rothschild O Cechman)

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um conjunto completo de escritores que mantiveram por vaacuterios seacuteculos uma tradiccedilatildeo que eu clamo por falta de um melhor ldquoespiacuterito francecircsrdquo constituindo um grande corpus de linguiacutestica folk

Vou me concentrar aqui em um deles que me parece ter produzido a sociolinguiacutestica espontacircnea mais completa e refinada P Daninos (1913-2005) Ele eacute um jornalista e escritor universalmente conhecido pelos Cadernos do Major Thompson (1954) dos quais sem duacutevida havia um exemplar em todos os lares franceses dos anos 1950 e 1960 Conservador sem ser reacionaacuterio amante da liacutengua sem ser purista observador e promotor dos costumes burgueses sem se afastar inteiramente da distacircncia irocircnica e de certo senso do traacutegico P Daninos eacute um bom representante dessa literatura do espiacuterito francecircs um pouco elitista um pouco sexista um pouco ufanista mas bastante divertida muito difundida e lida na sociedade francesa do poacutes-guerra e dos gloriosos Anos Trinta Nas cerca de quarenta obras que produziu algumas atribuem particular importacircncia aos fatos linguiacutesticos aleacutem dos Cadernos mencionarei Sonia les autres et moi (os outros e eu) (1952) Vacances agrave tous prix (Feacuterias a todo preccedilo) (1958) Le jacassin novo tratado de ideias recebidas loucuras burguesas e automatismos (1962) Esnobiacutessimo ou O desejo de parecer (1964) O pijama (1972) e Made in France (1977) Cada uma dessas obras constitui por um lado uma espeacutecie de banco de dados linguageiros com uma dimensatildeo social que se assemelha muito a uma declaraccedilatildeo de um linguista profissional e por outro lado uma teoria espontacircnea fundada na percepccedilatildeo dos ldquomodos de falarrdquo do francecircs relacionados ao seu ambiente social Para ilustrar aqui estatildeo alguns tiacutetulos dos capiacutetulos

- O Francecircs como se fala (Cadernos)

- Pequeno leacutexico e receitas de feacuterias (Vacanceshellip)

- Vocabulaacuterio poliacutetico (Le jacassin)

- Esnobismo na linguagem cotidiana e de diversas profissotildees (Snobissimo)

- Maacutertires da ortografia burguesa (Made in France)

E para finalizar este trecho de Sonia les autres et moi (os outros e eu) no final do capiacutetulo intitulado ldquoElesrdquo que oferece uma interessante anaacutelise em linguiacutestica folk do emprego decircitico do pronome como instacircncia coletiva

Quem satildeo eles Todo mundo sem duacutevida e ningueacutem Com os alematildees foram os alematildees e seus asseclas Com nossos libertadores foram os libertadores Mas conosco somos noacutes O dicionaacuterio de francecircs baacutesico deveria indicar para eles

ldquoHidra social contra a qual o indiviacuteduo meacutedio parte cada dia em rebeliatildeo falada designa simultaneamente franceses e estrangeiros empregadores e trabalhadores o presidente e os conselheiros as autoridades fiscais os accedilougueiros a Seguranccedila Social o Estado enfim todo o universo exceto o oradorrdquo (THOMPSON 1952 p 105 itaacutelico do autor)

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23 Praacuteticas linguiacutesticas folk

Uma vez identificados os lugares do conhecimento linguiacutestico popular resta antes de examinar duas amostras propor uma definiccedilatildeo a tiacutetulo heuriacutestico e hipoteacutetico

Eu a vejo por ora como um arcabouccedilo teoacuterico e metodoloacutegico para unificar um conjunto de praacuteticas linguiacutesticas seculares baseadas em uma concepccedilatildeo perceptiva da norma que produz trecircs tipos de discurso sobre a liacutengua (eu adapto os dois primeiros de Brekle 1989 e proponho aqui um terceiro)

- descriccedilotildees linguiacutesticas e (preacute)teorizaccedilotildees das regras de funcionamento da liacutengua fortemente informadas por percepccedilotildees (veredictos do tipo ldquonatildeo eacute francecircsrdquo ou julgamentos de adequaccedilatildeo entre nomes e coisas)

- prescriccedilotildees concernentes aos usos muitas vezes decorrentes de um normativismo muscular que vai ateacute o purismo (condenaccedilatildeo de empreacutestimos de neologismos escaacuternio da feminizaccedilatildeo etc)

- intervenccedilotildees espontacircneas na liacutengua na maioria das vezes regularizantes (emocionar e ir no cabeleireiro apesar que etc) esses famosos ldquoerrosrdquo sobre os quais D Leeman (1994) se pergunta se realmente existem (para uma apresentaccedilatildeo detalhada desta tipologia ver Paveau 2005)

Para recapitular a linguiacutestica popular se constituiria de trecircs tipos de praacuteticas seculares com uma dimensatildeo perceptiva descriccedilotildees prescriccedilotildees intervenccedilotildees

3 Semacircntica secular e sociolinguiacutestica popularApresento aqui dois exemplos de linguiacutestica popular o primeiro concernente ao significado

do nome proacuteprio e o segundo ao proacuteprio linguiacutestico das classes dominantes

31 O nome proacuteprio designador flexiacutevel

Quando P Siblot propocircs em 1987 os primeiros delineamentos teoacutericos da ldquosignificacircnciardquo do nome proacuteprio a partir das anaacutelises de Weinreich (ldquoa hipersemanticidaderdquo do nome proacuteprio) ou de Barthes (sua ldquoespessura semacircnticardquo) ele se opocircs de forma inovadora em linguiacutestica ao paradigma dominante do assemantismo do nome proacuteprio considerado como um designador riacutegido Os pesquisadores que admitem as propriedades semacircnticas do nome proacuteprio constituiacuteram entatildeo o que chamo de paradigma do designador flexiacutevel a partir de variadas proposiccedilotildees terminoloacutegicas e teoacutericas ldquohalos positivos e negativosrdquo (M Wilmet) ldquoevocaccedilotildees simboacutelicasrdquo (P Charaudeau) ldquoheterorreferencialidaderdquo e ldquoomnisignificadordquo (G Cislaru) Mas esse tipo de abordagem haacute muito se estabilizou no discurso linguiacutestico secular em particular entre os escritores mas tambeacutem entre os autores dessa tradiccedilatildeo do espiacuterito francecircs descrito acima Sabemos por exemplo que para Proust os significados plurais do nome proacuteprio satildeo uma evidecircncia tomando emprestados os canais da memoacuteria voluntaacuteria e a metaacutefora da cor Eacute o que testemunham numerosas passagens do Cocircteacute de Guermantes que se relacionam com as praacuteticas linguiacutesticas seculares

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E o nome de Guermantes na eacutepoca eacute tambeacutem como um daqueles pequenos balotildees nos quais se prendem oxigecircnio ou outro gaacutes quando consigo estouraacute-lo ao soltar o que ele conteacutem respiro o ar de Combray daquele ano daquele dia misturado com um cheiro a espinheiro agitado pelo vento da esquina da praccedila [hellip] Mas mesmo fora dos raros minutos como estes nos quais bruscamente sentimos a entidade original estremecer e retomar sua forma e sua perseguiccedilatildeo dentro das siacutelabas mortas de hoje se neste redemoinho vertiginoso da vida cotidiana onde eles tecircm apenas um uso inteiramente praacutetico os nomes perderam toda a cor como um sinal prismaacutetico [] por outro lado quando em devaneio refletimos procuramos voltar ao passado desacelerar suspender o movimento perpeacutetuo no qual estamos envolvidos pouco a pouco vemos reaparecer justapostos mas inteiramente distintos um dos outros os tons que o curso de nossa existecircncia nos apresenta sucessivamente com um mesmo nome (PROUST 1954 [1920] p 13)

O nome proacuteprio eacute considerado aqui como um reservatoacuterio de sentido que pode ser ativado de acordo com os contextos espaciais e temporais intimamente dependentes da percepccedilatildeo memoacuteria e atividade cognitiva do sujeito Ele possui uma dimensatildeo cognitivo-discursiva constituindo um verdadeiro ldquonome de memoacuteriardquo cujo significado precisa ser analisado em um contexto ampliado agrave histoacuteria agrave cultura e ao ambiente material Em uma abordagem cognitivo-discursiva diremos que eacute um preacute-discurso isto eacute um quadro preacute-discursivo coletivo que contribui para a elaboraccedilatildeo do discurso ao ativar um conjunto de conhecimentos crenccedilas e praacuteticas (esta abordagem do nome proacuteprio eacute desenvolvida em Paveau 2006) Eacute esse tipo de anaacutelise que encontramos em P Daninos

E se aquele agente duplo [Mata Hari] fosse de pouca envergadura Seu apelido permaneceraacute inscrito na histoacuteria ela termina mal mas soa bem Quem sabe o que teria acontecido com ela sob seu nome verdadeiro de Gertrude Zelle Talvez rentista em Monte-Carlo inscrita na Seguridade Social para a qual os espiotildees contribuem assim como os outros [] No domiacutenio dos nomes proacuteprios a seleccedilatildeo se opera [] com crueldade Existem alguns ndash Richelieu Voltaire La Fayette ndash que resistem a todos os empregos ceacutedulas telefone galerias Outros esmagados pelo metrocirc quantas pessoas a quem foi dito cem vezes ldquoDesccedila em Barbegravesrdquo morrem sem jamais ter voltado ao passado deste poliacutetico Alguns nomes como Chardon-Lagache natildeo dizem mais nada Outros como Pegravere-Lachaise natildeo dizem nada de valor (DANINOS 1972 p 82)

O nome proacuteprio eacute descrito como um categorizador de tipo social (coeficiente de prestiacutegio do antropocircnimo) e cultural (conservaccedilatildeo dos valores histoacutericos e literaacuterios de certos nomes) Ele propotildee uma folha de memorial que pode ser ativada de diferentes maneiras conforme percepccedilotildees dos usuaacuterios enquanto Richelieu manteacutem sua dimensatildeo histoacuterica Pegravere-Lachaise passou por uma mudanccedila semacircntica restritiva

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32 Uma sociolinguiacutestica popular a fala das classes dominantes

Quer se trate de histoacuteria sociologia ou linguiacutestica poucas ciecircncias humanas se ocuparam ateacute agora das ldquoclasses dominantesrdquo que M Pinccedilon e M Pinccedilon-Charlot explicam por ausecircncia de contratos propostos pelo Estado as escolhas posturais dos socioacutelogos que evitam enfrentar uma dissimetria social em seu prejuiacutezo e o clima poliacutetico e intelectual poacutes-1968 (PINCcedilON PINCcedilON-CHARLOT 2005 [1997]) Seja como for eacute patente que os trabalhos publicados em linguiacutestica no campo da variaccedilatildeo social satildeo majoritariamente consagrados ao francecircs popular com ou sem esse roacutetulo sem que um ldquo(grande) falante burguecircsrdquo ou um ldquofrancecircs aristocraacuteticordquo natildeo seja considerado (tambeacutem satildeo possiacuteveis outra questatildeo) Acontece poreacutem que a sociolinguiacutestica popular que aqui me interessa trata amplamente dessa questatildeo sob diferentes etiquetagens (liacutengua burguesa fala esnobe linguagem mundana boa fala) por meio da figura recorrente de Marie-Chantal que representa para a fala das classes dominantes o que Franccediloise de Proust eacute para o francecircs popular Marie-Chantal adquiriu suas marcas linguajeiras como as joias de famiacutelia por heranccedila familiar Esta eacute a anaacutelise que Proust faz a propoacutesito de Albertine

Natildeo que Albertine jaacute natildeo tivesse quando estive em Balbec um lote muito variado dessas expressotildees que revelam de imediato que se vem de famiacutelia abastada e que ano apoacutes ano uma matildee abandona sua filha do mesmo modo que outra lhe daacute na medida em que cresce em circunstacircncias importantes suas proacuteprias joias (PROUST 1954 [1920] p 64)

A literatura popular cita em seu lazer essas expressotildees ldquomuito variadasrdquo que o historiador Eacute Mension-Rigau chama de ldquoexpressotildees de intimidaderdquo e que muitas vezes se relacionam com a vida social e relaccedilotildees interpessoais Alguns exemplos dessas palavras de classe analisadas no interior de uma sociolexicologia popular

1 M de Chaudenay escreve em seu glossaacuterio que ldquoum membro do Jockey Club digno desse nome natildeo tem mamatildee nem papai nem filho nem famiacutelia nem carro nem castelo nem hotel Ele natildeo come natildeo toma aperitivos natildeo vai a espetaacuteculo nem a reuniotildees festivasrdquo E eacute verdade que o pobre homem mesmo sendo dono de Chambord seraacute

reduzido pelo bom tom de dizer-lhe Venha jantar em casa Vocecirc tem que ser o uacuteltimo dos arrivistas para falar de um castelo ou o Diretoacuterio para dizer HP (nota abreviatura para hotel privado) (DANINOS 1964 p 87)

2 De Neuilly a Passy natildeo ldquose comerdquo se almoccedila ou janta (VANDEL 1993 p 152)

3 Fui ensinado que natildeo comemos Almoccedilamos lanchamos ou jantamos (homem 1934) [hellip] Noacutes natildeo andamos a cavalo noacutes montamos Um dia eu disse desisti Aprendi a expressatildeo no internato Meu avocirc me disse isso natildeo se diz Dizemos vomitamos mas natildeo desistimos (homem 1934) (MENSION-RIGAU 1994 p 201 e 209)

Eacute difiacutecil desenvolver as anaacutelises por falta de espaccedilo (encontraremos desdobramentos adicionais em Paveau e Rosier 2007) mas eacute preciso notar que esse tipo de descriccedilatildeo lexicoloacutegica

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estaacute integrado em um sistema perceptivo mais amplo como indica Eacute Mension-Rigau (1994 p 209)

Para designar essas expressotildees rejeitadas por serem utilizadas por classes sociais que natildeo pertencem agrave mesma esfera ou ao mesmo mundo os respondentes utilizam todo um conjunto de qualificativos dizem que satildeo muito comuns muito vulgar muito ordinaacuterio comum como patildeo de cevada [arroz de festa no portuguecircs] muito corriqueiro do povo de gente pequena de todo mundo de garccedilom cabeleireiro fornecedor ou porteiro []

Encontramos portanto nesses discursos linguiacutesticos folk um corpus e teorias espontacircneas baseadas na maneira como os usuaacuterios recebem-percebem os valores sociais do leacutexico

4 A questatildeo da validade das teorias popularesA questatildeo mais interessante colocada pela linguiacutestica folk a de sua validade53 tem sido

objeto de pouco trabalho exceto pelas reflexotildees dos americanos sobre filosofia da mente e filosofia da ciecircncia Eacute um problema difiacutecil sem duacutevida porque a doxa da falsidade dos conhecimentos populares estaacute fortemente ancorada na Franccedila em particular onde se fala muito rapidamente em ldquopseudociecircnciardquo mas ainda mais porque a utilizaccedilatildeo que a linguiacutestica faz da noccedilatildeo de intuiccedilatildeo natildeo eacute esclarecida

41 Verdade cientiacutefica ou aproximada

As teorias populares satildeo verdadeiras ou falsas Existem para ser breve trecircs respostas possiacuteveis

bull As teorias populares satildeo falsas

O materialismo eliminativista agrave moda de P Churchland como vimos responde satildeo totalmente falsas aliaacutes seratildeo substituiacutedas por demonstraccedilotildees sem apelo resultantes das neurociecircncias esta posiccedilatildeo eacute tambeacutem a do filoacutesofo S Laurence (2003) que considera que as teorias correntes em qualquer ciecircncia satildeo frequentemente falsas e que o fato de a linguiacutestica ser recente a torna ainda mais vulneraacutevel

bull As teorias populares satildeo falsas mas sua existecircncia eacute necessaacuteria

O ldquorealismo suaverdquo de D Dennett por exemplo (1990 [1987]) responderia de maneira mais matizada os resultados cientiacuteficos satildeo falsos porque os qualia (experiecircncias conscientes) satildeo falsos mas o vocabulaacuterio ldquofolkrdquo eacute perfeitamente operacional e mesmo necessaacuterio para a relaccedilatildeo do homem com a linguagem em outras palavras as percepccedilotildees espontacircneas satildeo organizadores (padrotildees) necessaacuterios A linguiacutestica popular seria entatildeo admissiacutevel como uma descriccedilatildeo perceptiva e organizadora da linguagem mas natildeo como uma teoria da linguagem

bull As teorias populares satildeo verdadeiras mas os ldquonatildeo-linguistasrdquo possuem saberes sobre as liacutenguas

53 No capiacutetulo anterior realizamos uma discussatildeo mais detalhada sobre a validade das teorias folk

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D Preston e N Niedzielski (1999 p 10) colocam desta forma ldquoSe o povo fala sobre linguagem eles devem eacute claro saber (ou pelo menos acreditar que sabem) sobre elardquo Passamos a uma concepccedilatildeo praacutetica e natildeo mais loacutegica da verdade haacute um conhecimento linguiacutestico que independe de suas propriedades cientiacuteficas e esse conhecimento tem um tipo de operacionalidade Esta eacute a posiccedilatildeo de N Llewellyn e A Harrison que estudam o modo como um grupo de falantes percebe formas de liacutengua e de discurso em documentos corporativos

Em um niacutevel baacutesico o presente capiacutetulo mesmo que brevemente mostrou que as competecircncias linguiacutesticas folk dos participantes se estendem muito longe Os participantes demonstraram habilidade de distinguir entre usos inclusivos e exclusivos da primeira pessoa do plural transformaccedilatildeo passiva nominalizaccedilatildeo eles foram capazes de criticar o uso de abstraccedilotildees como sujeitos de verbos identificar possiacuteveis instacircncias da segunda pessoa disfarccedilada e assim por diante (PAVEAU 2006)

Essa resposta se fundamenta em uma abordagem anti-chomskyana da cogniccedilatildeo na qual a linguiacutestica explica as dimensotildees experiencial e cultural da linguagem Em outras palavras se o objeto da linguiacutestica permanece apesar de todos os desenvolvimentos a liacutengua por ela mesma entatildeo a linguiacutestica popular tem poucas chances se o objeto da linguiacutestica se estende aos usos da linguagem por sujeitos sociais e cognitivos entatildeo o conhecimento popular qualquer que seja seu status epistecircmico entra por pleno direito na teoria o que mostra ao que parece as duas ldquoteoriasrdquo populares apresentadas acima

42 Intuiccedilatildeo percepccedilatildeo verdade

Pode-se pensar que em uacuteltima anaacutelise todas as teorias linguiacutesticas satildeo populares uma vez que se baseiem na intuiccedilatildeo dos locutores Mas de que intuiccedilatildeo se trata exatamente A intuiccedilatildeo dos linguistas amplamente informada pela teoria (conhecemos a piada de que apenas um informante chomskyano pode admitir teorias chomskyanas) natildeo eacute a mesma que a dos locutores comuns Esta eacute a posiccedilatildeo defendida por Devitt em sua criacutetica anti-representacionista que aliaacutes fornece um meio de tratar a verdade das teorias populares

As intuiccedilotildees de falantes comuns podem parecer mais presentes do que realmente satildeo porque os linguistas consideram suas proacuteprias intuiccedilotildees representativas Sem duacutevida muitas vezes satildeo representativas E onde natildeo satildeo seriam se o falante comum tivesse a vantagem de uma educaccedilatildeo em linguiacutestica (DEVITT 2006 p 496)

Vemos como a questatildeo da verdade se desloca para a da percepccedilatildeo se as informaccedilotildees dadas pela intuiccedilatildeo satildeo verdadeiras porque satildeo informadas pela teoria entatildeo eacute de uma verdade relativa que se trata e podemos igualmente falar de verdade por intuiccedilotildees ldquofalsasrdquo que satildeo verdadeiras em relaccedilatildeo aos quadros natildeo teoacutericos dos indiviacuteduos Esses quadros satildeo os da sociedade da cultura e isso eacute o que mostra por exemplo o trabalho de N Niedzielski sobre a natureza social da percepccedilatildeo das variaacuteveis sociolinguiacutesticas (1999)

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ConclusatildeoAbordar a questatildeo da linguiacutestica folk envolveu deslocar a abordagem habitualmente binaacuteria

da norma (descritiva versus prescritiva) para propor um terceiro termo a percepccedilatildeo A ldquoverdaderdquo da linguiacutestica popular deve de fato ser pensada em termos perceptivos metadiscursivos e natildeo loacutegicos o que tambeacutem implica substituir outra oposiccedilatildeo binaacuteria cientiacutefica versus popular um contiacutenuo que leva em consideraccedilatildeo os dois objetos examinados54 e o coeficiente de informaccedilatildeo social e cultural dos conhecimentos produzidos Esses uacuteltimos satildeo justificaacuteveis para um estudo especiacutefico em linguiacutestica natildeo como uma cartilha ingecircnua sobre a qual fundar a ciecircncia mas como uma possiacutevel versatildeo da teoria da linguagem Daninos e Labov Proust e Weinreich

54 N Llewellyn e A Harrison (2006) mostram por exemplo que falantes comuns tecircm conhecimento linguiacutestico preciso sobre pronomes e neologismos mas satildeo menos confiantes quanto a problemas complexos das praacuteticas textuais

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O FALAR DAS CLASSES DOMINANTES LINGUIacuteSTICA POPULAR E DIALETOLOGIA PERCEPTIVA55

A questatildeo das identidades linguageiras e discursivas eacute crucial para uma ciecircncia da linguagem considerar a realidade das trocas sociais e os contextos da vida em sociedade Eacute o proacuteprio sistema das relaccedilotildees sociais que eacute estruturado quando as identidades satildeo postas em causa nos dois sentidos do termo lanccediladas na arena das trocas mas tambeacutem com base nas imagens de si e do outro elaboradas por si mesmo e pelo outro Os locutores adaptam os modos de falar ao mesmo tempo em que produzem anaacutelises espontacircneas elaborando e administrando simultaneamente suas imagens linguageiras Sujeitos de observaccedilatildeo para os linguistas (especializados) eles satildeo propriamente linguistas no quadro de uma linguiacutestica popular

Nesse capiacutetulo me proponho investigar as identidades linguageiras de classe56 isto eacute os modos que os locutores tecircm de mostrar o seu pertencimento a determinada classe e sua posiccedilatildeo nas relaccedilotildees sociais Desejo examinar particularmente a hipoacutetese de um falar das classes dominantes57 estudo ateacute entatildeo ausente nos trabalhos sociolinguiacutesticos franceses e que propotildee questotildees histoacutericas epistemoloacutegicas e empiacutericas pertinentes agrave linguiacutestica social

Descreverei inicialmente o estatuto da noccedilatildeo de classe social na sociolinguiacutestica francesa e anglo-saxatilde bem como a assimetria que existe entre os objetos frequentemente escolhidos pelas ciecircncias sociais (classe trabalhadora povo excluiacutedos e em menor grau as classes meacutedias) e os pertencimentos reais ou imaginaacuterios dos indiviacuteduos (em que se encontram igualmente as classes dominantes as elites as burguesias) Examinarei na sequecircncia as formas e a validade dos resultados da linguiacutestica folk (haacute uma sociolinguiacutestica espontacircnea e antiga e muito desenvolvida na Franccedila sobre o falar das elites e dos bairros nobres) mostrarei que os conceitos e os meacutetodos da dialetologia perceptual norte-americana satildeo particularmente pertinentes para dar conta desse objeto Terminarei o texto propondo uma primeira descriccedilatildeo linguiacutestica folk do falar das classes dominantes insistindo sobre alguns de seus traccedilos caracteriacutesticos (pronuacutencia leacutexico e pragmaacutetica)

1 A apreensatildeo linguiacutestica das categorias sociaisAs categorias mobilizadas pelas linguiacutesticas atentas ao humano e ao social natildeo satildeo

imanentes mas diretamente informadas pela histoacuteria das ciecircncias e das ideologias Isso eacute particularmente verdadeiro para a categoria ldquoclasse socialrdquo

55 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Le parler des classes dominantes objet linguistiquement incorrect Dialectologie perceptive et linguistique populaire Eacutetudes de linguistique appliqueacutee p 137-156 2008 Traduccedilatildeo de Roberto Leiser Baronas (UFSCar) e Julia Lourenccedilo Costa (UFSCarFAPESP)

56 Escolhi a acepccedilatildeo mais marxista do termo falo das classes ldquoda luta de classesrdquo e das ldquorelaccedilotildees sociais de produccedilatildeordquo conforme explicarei a seguir em 1

57 No momento a designaccedilatildeo tem apenas valor heuriacutestico

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11 Agrave procura da classe perdida

Natildeo falamos mais (em absoluto) de classe social especialmente em linguiacutestica como antes Tanto o termo como a noccedilatildeo parecem ter desaparecido do discurso dos socioacutelogos como mostra R Pfefferkorn em um trabalho de 2007 que reintegra o ldquojargatildeordquo marxista relaccedilatildeo social

Em linguiacutestica francesa e mais particularmente em sociolinguiacutestica o termo classe eacute substituiacutedo por posiccedilatildeo e por rede Em La variation sociale en franccedilais (2003) Franccediloise Gadet emprega ldquolocutores favorecidosrdquo e ldquodesfavorecidosrdquo (p 9) a metaacutefora da escala (o ldquoalto e o baixo dos degraus da escala socialrdquo p 10 e 68) ou o termo posiccedilatildeo em ldquoposiccedilatildeo social favorecidardquo por exemplo (p 16) Ela sublinha mais agrave frente (no capiacutetulo IV) que a classe (trabalhadora meacutedia e superior) como ferramenta de anaacutelise eacute muito formal e redutora e explica que a sociolinguiacutestica explora a noccedilatildeo de rede para melhor dar conta das diferentes articulaccedilotildees das relaccedilotildees sociais em niacutevel global e local tomando como exemplo a ldquorede operaacuteriardquo tal como eacute analisada por L Milroy (1980) O capiacutetulo IV eacute inclusive intitulado ldquoO diastraacuteticordquo termo teacutecnico perfeitamente naturalizado em linguiacutestica mas denotativo quase ciruacutergico que busca apagar as dimensotildees conflituosas eou poliacuteticas presentes na palavra classe

Todavia no decorrer deste mesmo capiacutetulo IV o termo classe social reaparece quase naturalmente o quadro que recapitula os usos sociais do natildeo da negaccedilatildeo apresenta a trilogia classe operaacuteria classe meacutedia e classe superior sendo a ldquoclasse socialrdquo apresentada como um criteacuterio igual ao de idade ou sexo e o autor menciona sem comentaacuterio especiacutefico ldquoa estratificaccedilatildeo em classes sociaisrdquo (GADET 2003 p 68)

Podemos portanto sustentar que tanto a leitura de F Gadet quanto a L Milroy bem como a de outros autores sobre a noccedilatildeo de classe sustentada na noccedilatildeo de relaccedilatildeo social natildeo apresenta diferenccedila expressiva em relaccedilatildeo agrave de rede Classe operaacuteria rede operaacuteria Se nos reportamos agraves anaacutelises de R Pfefferkorn que estima que a noccedilatildeo de classe foi paradoxalmente escamoteada pelos socioacutelogos franceses e britacircnicos nos anos 1970 e 1980 do seacuteculo passado (paradoxalmente porque a virada liberal fortaleceu sobretudo as classes dominantes) compreendemos que haacute outros elementos nesse desaparecimento e que eacute sem duacutevida por serem noccedilotildees marxistas e natildeo porque satildeo imprecisas que as abordagens em termos de classe e relaccedilatildeo social foram progressivamente descartadas

Alain Rey natildeo hesita em falar de classe em 1972 (encontramos o enunciado ldquoo pertencimento de classe dos locutoresrdquo em seu artigo publicado na revista Langue Franccedilaise no nuacutemero dedicado agrave norma p 14) e F Franccedilois emprega ainda o termo em 1983 propondo aleacutem disso uma descriccedilatildeo fina das relaccedilotildees da linguagem segundo os pertencimentos de classe

Em primeiro lugar eacute certo que a divisatildeo em classes sociais eacute acompanhada de uma divisatildeo entre aqueles que mais numerosos agem no tema sobretudo com gestos e aqueles que menos numerosos agem sobre os homens principalmente falando Ainda que as coisas sejam um pouco mais complicadas se o teacutecnico em eletrocircnica ou o

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cirurgiatildeo natildeo satildeo ldquofalantes purosrdquo satildeo as ldquoclasses meacutediasrdquo que desse ponto de vista se tornam a maioria Fica ainda mais claro se considerarmos a escrita satildeo poucos os homens para os quais escrever eacute a ocupaccedilatildeo principal (FRANCcedilOIS 1983 p 11)

Sabemos evidentemente que P Bourdieu jamais ocultou essa dimensatildeo em particular nos seus trabalhos consagrados agrave linguagem como nos mostra por exemplo o Ce que parler veut dire (1982)58 e o artigo Vous avez dit populaire (1983)59 que usa abundantemente a terminologia do conflito e da hierarquizaccedilatildeo (dominantes dominados restriccedilatildeo oposiccedilatildeo hierarquia etc)60 No entanto eacute tambeacutem verdadeiro que ateacute recentemente os estudos socioloacutegicos e sociolinguiacutesticos main stream ou tradicionais evitam a todo custo a noccedilatildeo de classe que todavia comeccedila a reaparecer com forccedila na cena intelectual a partir dos anos 2000 (numerosas obras e vaacuterias ediccedilotildees de revistas satildeo consagradas agraves desigualdades sociais e a um questionamento renovado do aparelho teoacuterico marxista ndash consultar por exemplo a primeira parte da obra de R Pfefferkorn) O bom senso nos diz que a partir do momento que a sociedade natildeo aparece como um todo socialmente pacificado eacute mais pertinente usar ferramentas de anaacutelises classistas

Nos Estados Unidos e mais tipicamente no mundo anglo-saxatildeo natildeo parece que seja produtivo semelhante tipo de apagamento ainda que a sociologia tenha passado pelas mesmas evoluccedilotildees A obra de B Bersnstein Class Codes and Control publicada em 1971 favoreceu durante uma quinzena de anos pesquisas emolduradas pela categoria de classe (o termo e a noccedilatildeo de class no mundo anglo-saxatildeo natildeo coincidem exatamente com o conceito de classe social no contexto francecircs) Categorias como a comunidade ou grupo (eacutetnico social cultural sexual geracional etc) ou a noccedilatildeo de ldquosocial networkrdquo introduzida rapidamente por Milroy (1980) que poderia ser uma alternativa agrave noccedilatildeo de classe natildeo a apagou L Milroy por exemplo trabalha ao mesmo tempo com os termos social network e class Os termos dialeto de classe ou dialeto social de classe satildeo empregados na sociolinguiacutestica americana mesmo natildeo sendo uma categoria de primeiro plano enquanto em francecircs eacute mais usado socioleto ou dialeto social noccedilotildees mais amplas natildeo conformadas ao social propriamente dito pois elas recobrem por exemplo os falares comunitaacuterios (a liacutengua das cidades ou dos jovens) etnogeograacuteficos (os dialetos crioulos por exemplo) ou geograacuteficos (os dialetos regionais)

12 Um socioleto mais elevado

Chamemos de classe redes ou grupos esses conjuntos de indiviacuteduos interligados pelos modos de ser e de falar pelas invariantes na representaccedilatildeo de si nos sentimentos de pertencimento e nos comportamentos econocircmicos satildeo estudados de modo desigual pelas ciecircncias sociais e em particular pela (soacutecio)linguiacutestica Se os trabalhos satildeo numerosos tanto na Franccedila quanto na Gratilde-Bretanha ou nos Estados Unidos sobre a classe operaacuteria ou rede operaacuteria ou classe popular ou meios desfavorecidos ou povo ou classe trabalhadora etc (a

58 NT BOURDIEU P O que falar quer dizer e economia das trocas simboacutelicas Traduccedilatildeo de Vanda Anastaacutecio Satildeo Paulo Editora Difel 1998

59 NT BOURDIEU P Vocecirc disse popular Traduccedilatildeo de Denice Barbara Catani Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 1 p 16-26 1996

60 O questionamento da categoria de popular para caracterizar um socioleto ou das maneiras de falar parece assim participar do esfacelamento da noccedilatildeo de classe em linguiacutestica Para uma anaacutelise detalhada consultar F Gadet (2002) e Abecassis (2003)

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terminologia eacute vasta61) os estudos sobre as classes dominantes ou ldquofavorecidasrdquo (burguesia grande burguesia e aristocracia) satildeo singularmente raros se natildeo inexistentes

Na Franccedila esses trabalhos satildeo rariacutessimos62 Pierre Bourdieu tem conduzido desde 1963 as pesquisas de campo sobre ldquoas classes superioresrdquo francesas (1979 p 588) cujos resultados satildeo apresentados em La distinction em 197963 Ele isola alguns marcadores de classe sem todavia propor uma anaacutelise linguiacutestica Os socioacutelogos M Pinccedilon-Charlot e M Charlot trabalham haacute quase vinte anos sobre as elites francesas e adquiriram por isso uma notoriedade fora da universidade sobre essa questatildeo que eles natildeo teriam conhecido quando estudavam essas questotildees nos anos 197064 (por exemplo 1989 1996 1997 e sua uacuteltima obra Les ghettos du Gotha publicada em 2007) Eles abordam poucos aspectos linguageiros mas destacam por exemplo a matriz discursiva de suas investigaccedilotildees Mais recentemente o historiador Eacute Mension-Rigau publicou o livro Aristocrates e grand-bourgeois (1994) ateacute entatildeo uacutenico estudo sobre as classes dominantes francesas contemporacircneas que o coloca em um lugar significativo sobre as maneiras de falar sobretudo porque os entrevistados comumente abordam eles proacuteprios como veremos mais adiante neste texto Na Beacutelgica haacute uma obra da socioacuteloga V DrsquoAlkemade intitulada La haute publicada em 2004

Do lado da linguiacutestica encontramos o estudo de O Mettas publicado em 1979 sobre a pronuacutencia parisiense La prononciation parisienne aspects phoniques drsquoun sociolecte parisien (du faubourg Saint-Germain agrave la Muette) Como anuncia o tiacutetulo o trabalho analisa o socioleto da aristocracia e da alta burguesia por meio de uma amostra de 39 locutoras A anaacutelise proposta por Mettas se concentra sobre a dimensatildeo foneacutetica (a ldquopronuacutencia refinadardquo) mas termina em uma ampliaccedilatildeo da anaacutelise de outros niacuteveis linguiacutesticos que defende a existecircncia de um falar social especiacutefico Podemos tambeacutem escutar uma amostra do sotaque do ldquosocioleto da alta burguesiardquo na gravaccedilatildeo de uma atriz que interpreta ldquouma pessoa esnobe da aristocraciardquo65 na obra Les accents des franccedilais livro-cassete publicado em 1983 e transferido para a internet66 Esse material propotildee uma lista de caracteriacutesticas focircnicas especiacuteficas Os trabalhos recentes que desenvolvi ainda programaacuteticos sobre o falar das classes dominantes tentam cercear esse objeto explicando a sua ausecircncia tanto no campo da sociolinguiacutestica quanto no das ciecircncias sociais favorecendo uma abordagem que considere nos dados linguiacutesticos as percepccedilotildees e as representaccedilotildees espontacircneas dos locutores (PAVEAU 2008 PAVEAU ROSIER 2008 capiacutetulo 8 ldquoStyles sociaux classes classements deacuteclassementsrdquo67)

61 A lista seria longa e tediosa para uma bibliografia ver Gadet (1992 2003) Calvet Mathieu (2003) Petitjean Privat (2007) e Paveau Rosier (2008)

62 Refiro-me aos trabalhos sobre as elites enquanto elites e natildeo aos estudos sobre a alta funccedilatildeo puacuteblica diplomaacutetica ou mesmo os bispos que existem na histoacuteria por exemplo e que dizem respeito a profissotildees ou posiccedilotildees de poder institucional

63 NT BOURDIEU P A distinccedilatildeo Criacutetica social do julgamento Traduccedilatildeo de Daniela Kern e Guilherme J F Teixeira Satildeo Paulo EdUSP 2007

64 O Diaacuterio de investigaccedilatildeo deles conteacutem comentaacuterios tatildeo interessantes que discorrem sobre a aacutecida recepccedilatildeo desses trabalhos pelos seus colegas prova de que se necessaacuterio os objetos cientiacuteficos possuem uma forte dimensatildeo ideoloacutegica e institucional (1996)

65 A assimilaccedilatildeo entre a alta burguesia e a aristocracia que faria qualquer aristocrata se assustar e alguns historiadores franzir a testa parece atestar a estranheza dessa categoria social para os autores da pesquisa

66 NT Disponiacutevel em httpaccentsdefrancefreefr Acesso em 17 out 2020

67 NT In PAVEAU M-A ROSIER L La langue franccedilaise passions et poleacutemiques Paris Eacuteditions Vuibert 2008

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A sociolinguiacutestica popular em contrapartida dispotildee de muitos pequenos tratados espontacircneos ou observaccedilotildees raacutepidas geralmente humoriacutesticas ou irocircnicas sobre o falar das classes dominantes por parte de observadores externos e tambeacutem por membros da aristocracia da grande burguesia ou dos ldquobons meios sociaisrdquo Esse corpus eacute constituiacutedo de ensaios para o puacuteblico em geral sobre o que denomino ldquoo espiacuterito francecircsrdquo (P Daninos P Jullian J Chazot) correspondendo a uma vasto material que abrange guias de correspondecircncia e de boas maneiras esquetes humoriacutesticas (S Joly C de Turkheim F Foresti) artigos de revista sobre os meios sociais com interpretaccedilotildees dos tiques comportamentais do ldquobobordquo68 do ldquobeauf69rdquo do ldquoaristo70rdquo ou do ldquoplouc71rdquo de dicionaacuterios de ldquocriacutetica irocircnicardquo (expressatildeo criada por L Rosier) como o Dico franccedilais-franccedilais de P Vandel (1992) ou o seu ancestral Le Jacassin de P Daninos (1962) ou ainda as obras de sociologia ldquosuaverdquo como Nous les bourgeoises de V Hanotel e M-L de Leacuteotard (1991) ou o Guide du squatteur mondain de J-F Duhauvelle (1994) Detalharei mais agrave frente neste texto os dados linguiacutesticos apresentados nesses materiais todavia eacute importante fazer uma primeira constataccedilatildeo sobre essa questatildeo existe uma assimetria notaacutevel entre os estudos linguiacutesticos ldquocientiacuteficosrdquo (rariacutessimos) e o grande nuacutemero de apreciaccedilotildees folk linguiacutesticas sobre o falar das elites sociais Essa constataccedilatildeo estaacute na origem do questionamento teoacuterico e epistemoloacutegico que discute a validade da linguiacutestica popular e as contribuiccedilotildees da dialetologia perceptiva para a linguiacutestica cientiacutefica

2 Linguiacutestica perceptiva linguiacutestica popular (folk linguiacutestica)Nos anos 1970 A Rey (1972 p 16) e outros pesquisadores reivindicaram o que chamo

de uma ldquolinguiacutestica dos valoresrdquo isto eacute um ldquoestudo sistemaacutetico das atitudes metalinguiacutesticas [] que poderia constituir uma ciecircncia social relacionada agraves teorias dos valores (teoria do direito da moral objetiva etc)rdquo ldquoEnquanto os trabalhos de soacutecio e de etnolinguiacutestica no que se refere agraves variedades de uso agraves normas objetivas satildeo atualmente muito numerosos [] os estudos relativos agrave apreciaccedilatildeo subjetiva dos usos satildeo raros e mais frequentes em inglecircsrdquo constata Rey no mesmo artigo (1972 p 15) Mais de trinta anos depois o que aconteceu Os campos norte-americanos da dialetologia social da dialetologia perceptiva da folk linguistics colaboraram voluntariamente com a psicologia social e tecircm amplamente explorado as atitudes linguiacutesticas as percepccedilotildees as avaliaccedilotildees os julgamentos de valores etc Parece se tratar de uma linguiacutestica dos valores

68 NT Abreviaccedilatildeo de bourgeois bohemian ou burguecircs boecircmio

69 NT ldquoA personagem do lsquobeaufrsquo ndash abreviaccedilatildeo de beau fregraverecunhado ndash nasceu no poacutes-maio de 68 do laacutepis de Cabu cartunista do Hara-Kiri e do Charlie Hebdo ldquoEle era o dono do bistrocirc com o pastor alematildeo o bigode e a camisetardquo explica o socioacutelogo Paul Yonnet autor de Travail Loisir (Gallimard) Havia portanto uma rejeiccedilatildeo do modo de vida e haacutebitos da classe trabalhadora da qual natildeo mais se poderia esperar a regeneraccedilatildeo da sociedaderdquo Disponiacutevel em httpswwwlexpressfrinformationsles-nouveaux-beaufs_636908html Acesso em 17 out 2020

70 NT ldquoAristo (substantivo masculino) 1 (pejorativo) pessoa que pertence a uma classe de nascimento privilegiada e que possui tiacutetulos e cargos hereditaacuterios 2 (pejorativo) aristocratardquo Disponiacutevel em httpdictionnairesensagentleparisienfraristofr-fr Acesso em 17 out 2020

71 NT ldquoQue tem a aparecircncia desajeitada de um camponecircs em sua melhor roupa de domingo que ignora os costumesrdquo comumente relacionado agrave regiatildeo francesa Bretagne Poderia ser traduzido como caipira em portuguecircs Disponiacutevel em httpswwwlaroussefrdictionnairesfrancaisplouc61755 Acesso em 17 out 2020

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Na Franccedila os dados metalinguiacutesticos satildeo estudados mas mais frequentemente segundo abordagens ldquoobjetivasrdquo (por exemplo as glosas metagraacuteficas no campo da aquisiccedilatildeo as natildeo-coincidecircncias do dizer na enunciaccedilatildeo e no discurso Para uma observaccedilatildeo em detalhe a esse respeito consultar a introduccedilatildeo de Achard-Bayle e Paveau na revista Pratiques 13914072) A questatildeo do ldquoimaginaacuterio linguiacutesticordquo eacute evidente nos trabalhos de A-M Houdebine e Socircnia Branca mas os dados propriamente perceptivos natildeo satildeo escolhidos como tais para um trabalho em linguiacutestica Haacute algumas exceccedilotildees como o estudo conduzido por A Meillet V Lucci e J Billiez publicado em 1990 com o tiacutetulo Orthographe mon amour (Grenoble PUG) que eacute no meu entendimento um raro e autecircntico trabalho no contexto francecircs de dialetologia perceptiva e de folk linguiacutestica sem que as categorias desse campo sejam efetivamente nominadas Minha hipoacutetese eacute que uma folk linguiacutestica amplamente articulada sobre uma dialetologia perceptiva pode realizar o projeto esboccedilado por A Rey de uma linguiacutestica dos valores Para sustentar essa hipoacutetese examino a validade da folk linguiacutestica e o estatuto da percepccedilatildeo na anaacutelise linguiacutestica

21 O problema da validade das disciplinas ldquofolkrdquo abordagem eliminativa versus integracionista

Como outras disciplinas ldquofolkrdquo (psicologia folk biologia folk e mais recentemente as neurociecircncias folk) a folk linguiacutestica parece por natureza desprovida de qualquer validade cientiacutefica Se de fato a ciecircncia se constroacutei sob a objetividade entatildeo as avaliaccedilotildees subjetivas e os dados perceptivos da linguiacutestica espontacircnea dos natildeo-linguistas soacute podem ser constituiacutedos de erros refutaacuteveis ou ficccedilotildees linguiacutesticas Para passar rapidamente pela questatildeo73 e tomando de empreacutestimo da filosofia do espiacuterito os termos de seu debate sobre os estados mentais existe do ponto de vista da linguiacutestica espontacircnea uma posiccedilatildeo ldquoeliminativistardquo que contesta as realidades construiacutedas por essa linguiacutestica ou que reconhece essa uacuteltima como uma teoria mas falsa Essa eacute a posiccedilatildeo geralmente adotada pelos linguistas ao se defrontarem com as opiniotildees do senso comum sobre a liacutengua (a liacutengua reflete o mundo os burgueses possuem uma linguagem mais rica do que os trabalhadores a subordinaccedilatildeo eacute um iacutendice de elaboraccedilatildeo do pensamento superior ao independente a gramaacutetica da liacutengua oral eacute passiva de erros etc) Essa eacute uma maneira binaacuteria de colocar as coisas linguiacutestica cientiacutefica versus folk linguiacutestica

Todavia existe igualmente uma posiccedilatildeo que chamarei de ldquointegracionistardquo uma vez que ela prefere integrar os dados avaliativos e perceptivos da folk linguiacutestica aos da linguiacutestica cientiacutefica ela postula que as anaacutelise dos natildeo-linguistas natildeo estatildeo muito longe daquelas dos linguistas ou podem agraves vezes forjaacute-las (os inuacutemeros trabalhos norte-americanos em dialetologia social mostram que os locutores percebem as variedades sociodialetais de maneira diferente que os linguistas profissionais o que coloca o problema da natureza do objeto) que as avaliaccedilotildees subjetivas constituem um filtro representacional essencial para compreender o funcionamento da comunicaccedilatildeo e os dados folk constituem o ponto de partida do trabalho

72 NT Linguiacutestica popular - a linguiacutestica ldquofora do templordquo Definiccedilatildeo geografia e dimensotildees Disponiacutevel em httpsperiodicosufscbrindexphpforumarticleview1984-84122019v16n4p4257

73 Sobre esta questatildeo da validade dos dados da folk linguiacutestica consultar Niedzielski (1999) Preston e Niedzielski (2000) Paveau (2007) Achard-Bayle e Paveau (2008)

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do linguista cientiacutefico bem como seu histoacuterico cognitivo74 Trata-se de uma posiccedilatildeo escalar entre dois polos extremos da linguiacutestica cientiacutefica e da folk linguiacutestica existe um continuum no qual as categorias estatildeo em contato e as anaacutelises podem ser mais ou menos cientiacuteficas ou mais ou menos espontacircneas Essa posiccedilatildeo eacute defendida pelos fundadores e praticantes da folk linguistics nos Estados Unidos (NIEDZIELSKI PRESTON 2000) vindos geralmente da dialetologia social (PRESTON 1989 WOLFRAM 1991) as duas correntes sendo derivadas do labovismo em sua primeira forma (LABOV 1966) Essa posiccedilatildeo integracionista eacute a que defendo neste texto O integracionismo natildeo foi desenvolvido na Franccedila onde como jaacute dissemos a reflexatildeo sobre a ldquoquestatildeo folkrdquo praticamente natildeo existe em linguiacutestica

Essa reflexatildeo implica que examinemos o estatuto da percepccedilatildeo e dos dados perceptivos em linguiacutestica o que naturalmente nos obriga a olhar de perto para a espinhosa noccedilatildeo de intuiccedilatildeo dos locutores

22 O estatuto linguiacutestico da percepccedilatildeo e a questatildeo da intuiccedilatildeo

Os primeiros trabalhos de W Labov nos anos 1960 sobre os falares nova-iorquinos estavam fundamentados no meacutetodo dos testes de reaccedilatildeo subjetiva de onde derivam os protocolos das entrevistas colocados em praacutetica a partir dos anos 1990 em dialetologia social e em folk linguiacutestica A questatildeo da subjetividade eacute entatildeo agrave eacutepoca plenamente de direito e totalmente integrada na construccedilatildeo da ciecircncia ldquoobjetivardquo no campo da sociolinguiacutestica norte-americana

221 Percepccedilatildeo e variaccedilatildeo

Os diferentes campos teoacutericos e metodoloacutegicos do variacionismo norte-americano verdadeiramente instalaram a noccedilatildeo de percepccedilatildeo no seu dispositivo teoacuterico e metodoloacutegico e natildeo apresentam nenhum receio em dialogar com disciplinas fora do campo da linguiacutestica como a psicologia social por exemplo Desse modo a dialetologia social e seu componente perceptivo (dialetologia perceptiva) tem mostrado que os julgamentos avaliativos dos locutores os estereoacutetipos que participam de suas representaccedilotildees em particular no domiacutenio do oral (percepccedilatildeo da fala) isto eacute o conjunto das atitudes linguiacutesticas influenciam a percepccedilatildeo das proacuteprias formas da linguagem na sua dimensatildeo mais fiacutesica (sinal fiacutesico) Dessa maneira Nancy Niedzielski defende a ideia que os sujeitos usam informaccedilotildees sociais variadas para identificar os dialetos sociais no seu componente foneacutetico As informaccedilotildees visuais como o movimento dos laacutebios as ldquoinformaccedilotildees de vozrdquo o gecircnero feminino ou masculino ou as informaccedilotildees de segundo plano do dialeto contribuem para a identificaccedilatildeo das variedades

Pesquisas em ambos os campos da sociolinguiacutestica e da psicologia social sugeriram que os estereoacutetipos sobre os grupos sociais dos quais os falantes satildeo membros (ou acreditam que satildeo membros) tecircm uma influecircncia na forma como as suas variedades linguiacutesticas satildeo percebidas [] O objetivo do estudo apresentado foi determinar em que medida os ouvintes usam informaccedilotildees sociais sobre um falante na construccedilatildeo do espaccedilo fonoloacutegico desse falante (NIEDZIELSKI 1999 p 62-63)

74 No campo da filosofia da linguagem sobre a questatildeo semacircntica eacute a posiccedilatildeo defendida por F Recanati em Literal Meaning (RECANATI 2004) contra o ldquoliteralismordquo ele defende um ldquocontextualismordquo que leva em consideraccedilatildeo as ldquorestriccedilotildees psicoloacutegicas popularesrdquo

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J Edwards (1999 p 102) a partir da psicologia social formula de maneira mais geral

A variaccedilatildeo encontrada nos estudos de avaliaccedilatildeo da fala reflete as percepccedilotildees sociais dos falantes de determinadas variedades e natildeo tem nada a acrescentar sobre quaisquer qualidades intriacutensecas ndash loacutegicas ou esteacuteticas ndash da proacutepria linguagem ou dialeto Assim ouvir determinada variedade eacute geralmente considerado um gatilho ou estiacutemulo que evoca atitudes (ou preconceitos ou estereoacutetipos) sobre a comunidade de fala considerada

Compreendemos por conseguinte que eacute a questatildeo da apreensatildeo do objeto que se coloca de maneira crucial sendo os linguistas tanto quanto os outros sujeitos perceptivos de que liacutengua eles falam entatildeo quais variedades satildeo identificadas e sobretudo como satildeo identificadas Na perspectiva norte-americana haacute certamente um lugar atribuiacutedo agrave subjetividade nas elaboraccedilotildees cientiacuteficas que comumente satildeo compreendidas como elaboraccedilotildees objetivas Na Franccedila e nos estudos francoacutefonos as coerccedilotildees objetivistas satildeo ainda mais fortes e essa questatildeo da percepccedilatildeo e mais amplamente da subjetividade eacute pouco abordada especialmente no que concerne agrave sua dimensatildeo social Alguns linguistas nos anos 1970 se preocuparam com essa questatildeo como A Rey (1972 p 8)

[] a recusa em considerar o uso de modo diferente que como objeto fiacutesico observaacutevel e analisaacutevel alheio a qualquer julgamento (da verdade do valor etc) facilmente leva a uma confusatildeo oposta agrave cometida por Vaugelas a teoria (sistema de regras de leis constituiacuteda como modelo de regras objetivas) eacute entatildeo considerada como intervencionismo disfarccedilado e qualquer reconhecimento de uma norma social como defesa do normativismo o que natildeo tem sentido []

Todavia natildeo parece que as respostas foram dadas por trabalhos fortes que integrem a dimensatildeo subjetiva Essa distinccedilatildeo entre uso-objeto e uso-valor orienta de fato profundamente os trabalhos franceses que tanto em linguiacutestica como em outras aacutereas satildeo fortemente enquadrados pelos requisitos disciplinares fazer linguiacutestica com algo diferente do linguiacutestico explicar o social com algo diferente do social natildeo eacute ainda uma postura acadecircmica habitual e bem admitida na Franccedila A distinccedilatildeo objeto versus valores realmente cruza a oposiccedilatildeo entre linguiacutestica e extralinguiacutestica ou como chama F Gadet a oposiccedilatildeo entre interno e externo ldquoSeraacute que apenas o interno explica o interno ou ainda seraacute que correlacionar a fatores mensuraacuteveis ou natildeo de natureza natildeo-linguageira (pelo menos enquanto a linguagem for reconhecida como puramente linguiacutestica) pode questionar o fundamento da variaccedilatildeo explicaacute-lordquo pergunta-se Gadet em um artigobalanccedilo sobre a sociolinguiacutestica na Franccedila (2008 p 4 itaacutelico da autora) Essa eacute sem duacutevida uma das razotildees pelas quais os trabalhos franceses ou francoacutefonos sobre as percepccedilotildees e as atitudes satildeo pouco numerosos e aleacutem disso concentrados sobre domiacutenios muito particulares as imagens da liacutengua em contexto de aprendizagem (por exemplo Fontaine 1983 Ledegen 2000) e em contexto interlinguiacutestico (por exemplo Apotheacuteloz Bysaeth 1981 Atienza (org) 2006) O domiacutenio das marcas sociais dificilmente eacute representado o que eacute talvez um efeito perverso de uma concepccedilatildeo desatada da sociolinguiacutestica defendida por exemplo por F Gadet em nome de uma ldquodialinguiacutesticardquo permitindo

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[] representar a linguagem sem fechaacute-la na alternativa de formalizaccedilatildeo versus exuberacircncia variacional com o objetivo de moldar um objeto reconhecido como conjunto muito complexo de invariacircncia e de variaccedilatildeo que se manifesta na forma do diverso do heterogecircneo do impreciso do hiacutebrido do emergente (mas tambeacutem persistente ao longo do tempo) (GADET 2008 p 5)

A ldquodialinguiacutesticardquo se pretende realmente aberta buscando substituir uma sociolinguiacutestica reduzida ao social E entatildeo o social eacute menos considerado No entanto ele constitui uma dimensatildeo incontestaacutevel e como outros tipos de variaccedilatildeo sua apreensatildeo dificilmente parece possiacutevel sem considerar os exteriores da liacutengua e dos usos inclusive as percepccedilotildees e os valores

O lugar restrito atribuiacutedo agrave noccedilatildeo de percepccedilatildeo nos trabalhos sobre a variaccedilatildeo social no contexto francecircs estaacute sem duacutevida relacionado com o enfraquecimento das reflexotildees engajadas sobre a noccedilatildeo de intuiccedilatildeo (do locutor nativo) ou do sentimento linguiacutestico

222 Percepccedilatildeo e intuiccedilatildeo

A noccedilatildeo de intuiccedilatildeo diretamente relacionada com a de percepccedilatildeo mas sem a recobrir eacute raramente objeto de questionamento e funciona como um impliacutecito ratificado pela comunidade dos linguistas Na Franccedila a noccedilatildeo eacute geralmente justificada e mobilizada em particular na sintaxe ou ainda na semacircntica assim como o seu antocircnimo adjetival contra-intuitivo No entanto tal noccedilatildeo eacute raramente descrita como operador ou ferramenta conceitual para as ciecircncias da linguagem O Glossaire bibliographique des sciences du langage de F Gobert sintomaticamente apresenta apenas uma entrada para Intuiccedilatildeo (um artigo de Jean Dubois sobre a gramaacutetica gerativa na liacutengua francesa em 1969) uma segunda entrada intitulada Intuiccedilatildeo (do locutor nativo) eacute apresentada pela definiccedilatildeo compilada e didaacutetica feita por M Yaguello em seu Catalogue des ideacutees reccedilues sur la langue em 1988 O dicionaacuterio de linguiacutestica de Jean Dubois et al publicado pela Larousse em 2001 define da mesma maneira e em poucas linhas intuiccedilatildeo e sentimento linguiacutestico como a capacidade dos sujeitos de formular julgamentos de aceitabilidade e de gramaticalidade As entradas estatildeo ausentes no Dictionnaire des sciences du langage75 de F Neveu publicado pela A Colin em 2003 Jacqueline Authier e A Meunier sublinham desde 1972 ldquoa pobreza dos conhecimentos linguiacutesticos atuais nesse domiacutenio [da intuiccedilatildeo e do sentimento linguiacutestico]rdquo (p 53)

O filoacutesofo M Devitt propotildee anaacutelises esclarecedoras sobre essa noccedilatildeo que fornecem argumentos em favor da integraccedilatildeo de saberes descrita anteriormente neste texto O autor explica que a definiccedilatildeo corrente de intuiccedilatildeo tal como eacute proposta pela gramaacutetica chomskyana (a Tese Representacional) que pode ser vantajosamente substituiacuteda por uma teoria alternativa ldquoEsta teoria trata as intuiccedilotildees linguiacutesticas como opiniotildees resultantes de investigaccedilatildeo empiacuterica comum consideradas pela teoria da maneira como todas essas opiniotildees satildeordquo (DEVITT 2006 p 485) Quando a intituiccedilatildeo do locutor nativo eacute definida como um conjunto de opiniotildees eacute isso que provoca uma mudanccedila de terreno especialmente se continua M Devitt elas embasam a

75 NT NEVEU F Dicionaacuterio das ciecircncias da linguagem Petroacutepolis Editora Vozes 2008

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intuiccedilatildeo do proacuteprio linguista ldquoEmbora as intuiccedilotildees discutidas provavelmente estejam certas as intuiccedilotildees nas quais a linguiacutestica deveria confiar satildeo aquelas dos proacuteprios linguistas pois esses uacuteltimos satildeo os mais experientesrdquo (p 494) Em uacuteltima instacircncia as intuiccedilotildees frequentemente mobilizadas pelos linguistas satildeo as suas proacuteprias intuiccedilotildees cujo aspecto espontacircneo e ingecircnuo natildeo eacute garantido uma vez que estes profissionais satildeo muito conscientes da teoria linguiacutestica

As intuiccedilotildees de falantes comuns podem parecer mais presentes do que realmente satildeo visto que os linguistas consideram as suas proacuteprias intuiccedilotildees como representativas Sem duacutevida elas muito frequentemente satildeo representativas E onde natildeo satildeo seriam se o orador comum tivesse a vantagem de uma educaccedilatildeo em linguiacutestica (DEVITT 2006 p 496)

A intuiccedilatildeo pode ser compreendida como um conjunto de atitudes Poderiacuteamos concordar com essa proposiccedilatildeo e isso nos levaria a repensar a natureza do objeto da linguiacutestica um objeto certamente subjetivo a liacutengua constituiacuteda por variantes de si mesma essas variantes natildeo sendo identificadas da mesma maneira pelos locutores Estamos longe do fantasma cientiacutefico do objeto homogecircneo ideal nem mesmo heuriacutestico e as riacutegidas distinccedilotildees habituais interno versus externo linguiacutestica versus extralinguiacutestica percepccedilatildeo versus objetivaccedilatildeo e linguistas versus natildeo-linguistas se dissolvem sendo muito mais coerente pensarmos em termos de continuum

23 Quem satildeo os natildeo-linguistas

Dessa perspectiva se coloca a delicada questatildeo da identificaccedilatildeo dos ldquonatildeo-linguistasrdquo como D Preston os designa Quem satildeo esses sujeitos Pode-se colocar num mesmo plano no que se refere ao conhecimento da liacutengua um escritor e um esportista Sim e natildeo aqui minha resposta seraacute mais escalar que binaacuteria Em vez de opor de maneira idealista os linguistas aos natildeo-linguistas me parece mais adequado colocar um continuum com esses dois polos extremos de um lado o linguista profissional isto eacute o especialista em ciecircncias da linguagem enquanto disciplina cientiacutefica e de outro o locutor comum cuja cultura e praacuteticas sociais natildeo incluem conhecimentos especiacuteficos sobre a liacutengua Entre os dois a massa de natildeo-linguistas agraves vezes mais proacutexima dos saberes cientiacuteficos (escritores corretores professores acadecircmicos de outras disciplinas como os historiadores os socioacutelogos citados anteriormente alguns jornalistas) agraves vezes longe desses mesmos saberes adotando atitudes metalinguiacutesticas menos conscientes linguisticamente que os anteriores (humoristas observadores da vida social alguns jornalistas locutores comuns) Para complicar as coisas o linguista profissional tambeacutem pode produzir comentaacuterios espontacircneos que natildeo dependem de sua atividade profissional podendo ser tambeacutem um natildeo-linguista Essa eacute uma questatildeo de posiccedilatildeo discursiva e natildeo de ontologia

Chamaremos pois de natildeo-linguista o locutor que produz discursos metalinguiacutesticos sem se fundamentar na linguiacutestica cientiacutefica Isso natildeo significa que seja desprovido de saberes culturais Proust eacute um natildeo-linguista da mesma maneira que D Debbouze mas suas anaacutelises folk linguiacutesticas de falares sociais natildeo adveacutem dos mesmos quadros culturais e de saberes Um ensaiacutesta como P Daninos por exemplo eacute um natildeo-linguista que tangencia a linguiacutestica

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mencionando diversos trabalhos em ciecircncias da linguagem (sobre o francecircs fundamental por exemplo) Nesse sentido a categoria do natildeo-linguista eacute definida de maneira mais prototiacutepica do que componencial e natildeo se confunde com categorias proacuteximas tais como ldquoorador eruditordquo ou ldquocultordquo

Abordo na sequecircncia os dados perceptivos que permitem postular a categoria do falar das classes dominantes

3 Classes sociais e identidades linguageirasNatildeo estaacute em questatildeo aqui (re)propor um paralelo redutor entre falar e classe social as

variaccedilotildees de estilo dos locutores de acordo com as situaccedilotildees sociais e suas posiccedilotildees nas relaccedilotildees estatildeo no escopo do trabalho Em vez disso trata-se de perguntar se os repertoacuterios estiliacutesticos e discursivos dos locutores natildeo estatildeo sustentados por algumas constantes estaacuteveis que seriam diretamente ligadas agrave classe social entendida como um conjunto de comportamentos de valores e de maneiras de ser que produzem pertencimento e ateacute mesmo atribuiccedilatildeo social

31 Um socioleto impensado o falar das classes dominantes

Uma lista de locutores proposta por A Rey para exemplificar os usos natildeo padratildeo nos mostra jaacute em 1972 que a marcaccedilatildeo foi concebida essencialmente como fazendo parte das classes populares ou do meio operaacuterio

Je ne vais pas au docteur je vais pas au docteur76 e com outro material lexical jrsquovais agrave lrsquopecircq ldquoagrave la pecirccherdquo77 que poderiacuteamos ficar tentados a descartar como agramaticais satildeo compatiacuteveis com os usos sociais do francecircs eles devem portanto pertencer ao sistema de liacutengua senatildeo sua gramaacutetica natildeo produziria todas as frases julgadas aceitaacuteveis pelos ldquofalantes nativosrdquo (a menos que vocecirc admita que o trabalhador de Calais o entregador de jornais normando ou a lojista de Toulouse satildeo menos ldquonativosrdquo do que o professor digamos parisiense e natildeo tem o direito de contribuir para a constituiccedilatildeo do ldquofalante idealrdquo) (REY 1972 p 13)

A questatildeo da marcaccedilatildeo da classe dos falantes natildeo pode ser colocada fora da liacutengua culta inclusive F Gadet lembra que ela eacute definida de forma negativa por exclusatildeo das formas vernaculares sem mencionar um eventual falar das classes dominantes (2003 p 80) Franccediloise Gadet tambeacutem fornece uma lista de exemplos ilustrando ldquoo alto e o baixo na escada socialrdquo incluindo quatro dados relacionados ao uso dos subjuntivos e das inversotildees ldquoNatildeo haacute nome para os exemplos de 13 a 16 explica a pesquisadora talvez isso se decirc por conta do impliacutecito a saber o ldquobom francecircsrdquo ou mesmo para alguns soacute francecircsrdquo (2003 p 10) No entanto na lista o enunciado 14 (eu natildeo gostaria que vocecirc me culpasse por esse erro) me parece bem mais

76 NT Em portuguecircs os dois enunciados satildeo traduzidos da mesma maneira Eu natildeo vou ao meacutedico Optamos por manter o exemplo em francecircs pois somente em liacutengua francesa a diferenccedila entre os dois enunciados fica evidente A primeira frase estaacute mais de acordo com a norma padratildeo de formaccedilatildeo da negaccedilatildeo em francecircs enquanto na segunda haacute supressatildeo do ne que juntamente com o pas formam a negaccedilatildeo

77 NT Algo como a variaccedilatildeo pescaacute para o verbo ldquopescarrdquo na norma padratildeo do portuguecircs

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marcado do que os outros (o 15 por exemplo nosso colaborador ele jaacute deu um passo nesse sentido)78 Marcado ou mais exatamente estigmatizado uma vez que produz o efeito de ridicularizaccedilatildeo tiacutepica dos enunciados ditos ldquoesnobesrdquo

Nancy Niedzielski (1999 p 82) retoma uma interessante hipoacutetese formulada por W Wolfram ldquoUma quarta hipoacutetese eacute baseada em uma proposta na qual Wolfram (1991) avanccedila O pesquisador sugere que quaisquer variantes de linguagem que natildeo sejam estigmatizadas sejam consideradas padratildeordquo Acontece que o falar das classes dominantes eacute amplamente estigmatizado em um corpus folk descrito anteriormente e tambeacutem no humor francecircs para mim Marie-Chantal e Anne-Sophie de la Coquillette (personagem da humorista F Foresti) natildeo falam um francecircs padratildeo D de Villepin e J DrsquoOrmesson tambeacutem natildeo

No entanto como abordar essa marcaccedilatildeo ldquodo melhorrdquo A partir do quadro integracionista proposto anteriormente e tambeacutem com base nos meacutetodos da dialetologia perceptiva escolho abordar as entradas avaliativas e perceptivas

331 Avaliaccedilotildees linguiacutesticas externas do estereoacutetipo agrave caricatura

Designo como avaliaccedilotildees linguiacutesticas externas as avaliaccedilotildees de locutores sem sentimento ou discurso de pertencimento agraves classes dominantes que estigmatizam um falar considerado como pertencente agrave alta burguesia agrave aristocracia da ldquoalta sociedaderdquo etc independentemente do vocabulaacuterio adotado Poderia ser uma avaliaccedilatildeo espontacircnea num discurso de entrevista por exemplo aquela feita por J-M Marconot (1990 p 69) em um bairro de classe meacutedia79 em Nicircmes ldquo[] um ou talvez dois que devem falar assim na ndash na burguesia certamente [] sim eu conheccedilo uma mulher que fala [] ela usa expressotildees que vocecirc acreditaria serem de Lagarde e Michard do seacuteculo XVIrdquo

Encontramos igualmente construccedilotildees ficcionais humoriacutesticas cujo diaacutelogo a seguir eacute um bom exemplo

- Apresento-lhe a senhora minha condessa troveja o Gravos que esquecendo seu traje dolorido recupera seu rosto radiante

- Meu amigo protesta a senhora parece que vocecirc ainda natildeo estudou no seu manual o capiacutetulo de apresentaccedilotildees Senatildeo vocecirc saberia que uma senhora somente deve ser apresentada a um cavalheiro quando a senhora eacute muito jovem e o cavalheiro muito velho

Sua Majestade fica corada

- Viu meu companheiro percebeu Consequentemente tenho a honra de apresentar a vocecirc Comissaacuterio San-Antonio em carne e osso com todos os seus dentes e sua pele de pecircssego

78 NT F Gadet nos exemplos que oferece afirma que em (14) haacute um imperfeito do subjuntivo e em (15) uma interrogaccedilatildeo por inversatildeo complexa GADET F La variation sociale en franccedilais Paris Ophrys 2007 p 16

79 NT A autora usa a sigla HLM para se referir ao bairro Ela significa Habitation agrave Loyer Modereacute Habitaccedilatildeo de Aluguel Moderado Optamos por traduzi-la como classe meacutedia

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Entatildeo voltando-se para mim

- Assim tenho a honra e a vantagem de fazecirc-lo impulsivamente aqui novamente entatildeo a Condessa Troussal de Trousseau amigo Como vocecirc pode perceber natildeo eacute um precircmio para reivindicar mas uma mulher de classe educada em todos os lugares Vocecirc espreitou a reaccedilatildeo da Senhora nesse momento Ah a etiqueta ela natildeo as cola em seus potes de doce eu juro a vocecirc (SAN ANTONIO 1965 p 40-41)80

Trecircs caracteriacutesticas do falar das classes dominantes satildeo propostas por F Dard por meio da personagem Beacuterurier o emprego do subjuntivo jaacute destacado por F Gadet em seus trabalhos a pronuacutencia aberta e aspirada (Mahame no lugar de Madame) e as formas pragmaacuteticas de apresentaccedilatildeo Caracteriacutesticas que podem ser encontradas no Dico francecircs-francecircs de P Vandel especificamente no capiacutetulo intitulado ldquoComo falar igual agrave Neuilly Auteuil Passyrdquo (1993 p 147 e seguintes)

Citaremos igualmente humoristas ou personagens do cinema ou do teatro S Joly (os esquetes ldquoo esnobismordquo e ldquoCanccedilatildeo esnoberdquo em La Cigale et la Joly espetaacuteculo de 1999) F Foresti e a personagem Anne-Sophie de la Coquillette (apresentada no Canal France 2) e ldquoBeacuteardquo (Beacuteatrice de Montmirail) interpretada por V Lemercier em Les Visiteurs 1 (1993)

312 Avaliaccedilotildees linguiacutesticas internas uma atividade metalinguiacutestica constante

Haacute igualmente numerosas avaliaccedilotildees internas sendo a atividade metalinguiacutestica uma das praacuteticas conversacionais das classes dominantes como bem exemplificam as entrevistas de Eacute Mension-Rigau e os corpora internos folk

O estudo de Eacute Mension-Rigau no meu entendimento se apresenta ateacute o momento como o uacutenico levantamento histoacuterico da aristocracia e da grande burguesia que leva em conta dados linguageiros Encontramos em particular nas anaacutelises do ldquoembelezamentordquo das palavras os tons de voz e da praacutetica da conversa fiada dados ineacuteditos e preciosos para os propoacutesitos deste texto

Embelezar a fala se traduz na preocupaccedilatildeo de evitar epiacutetetos mordazes palavras contundentes as palavras duras as entonaccedilotildees violentas e pelo respeito agraves conexotildees que datildeo agrave linguagem mais docilidade e maior fluidez Gritar ou rir alto satildeo consideradas atitudes muito vulgares

Nunca levante a voz natildeo importa o que aconteccedila (homem 1934) Ser comum eacute ser barulhento (mulher 1925) (MENSION-RIGAU 1994 p 202)

Em particular o historiador descreve a relaccedilatildeo que os aristocratas tecircm com o falar e sotaque regional informaccedilatildeo essa geralmente ausente nos estudos sobre os falares regionais

80 Beacuterurier protoacutetipo do homem do povo manteacutem relaccedilatildeo com a condessa Troussal du Trousseau a quem apresenta o comissaacuterio San-Antonio

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O sotaque regional reconhecidamente muito raro entre os entrevistados se apresenta menos desvalorizado do que nas famiacutelias pequeno-burguesas uma vez que provavelmente elas satildeo mais riacutegidas porque sentem a sua identidade mais fraacutegil e ldquoameaccediladardquo [] Na linguagem dos entrevistados uma relativa ruralidade agraves vezes ainda persiste de forma discreta (MENSION-RIGAU 1994 p 194)

Essa ruralidade ainda presente atualmente (as famiacutelias da aristocracia tecircm com efeito uma praacutetica de falares locais em particular o dialeto local francecircs chamado patois) eacute muito bem relatada em Le cocircteacute de Guermantes por Proust descrevendo as maneiras de falar da Senhora de Villeparisis

Senhor eu acho que vocecirc quer escrever algo sobre a Duquesa de Montmorency disse a Sra de Villeparisis ao historiador da Fronde com aquele ar rabugento que sem saber sua grande bondade foi recolhida pelos cachos mal-humorados o aborrecimento fisioloacutegico da velhice bem como a tarefa de imitar o tom quase camponecircs da velha aristocracia Eu vou te mostrar o retrato dele o original da coacutepia que estaacute no Louvre (PROUST 1954 [1920] p 240)

O pesquisador Eacute Mension-Rigau (1994 p 195)81 analisa esse fenocircmeno como ldquouma maneira mais ou menos inconsciente de exprimir seu apego ao passado sendo o conservadorismo linguiacutestico projetado como um reflexo do conservadorismo poliacutetico e socialrdquo

Essa consciecircncia metalinguiacutestica eacute encontrada tambeacutem em outros documentos do corpus folk os manuais de etiqueta da aristocracia apresentam muitas prescriccedilotildees e proibiccedilotildees foneacuteticas prosoacutedicas lexicais sintaacuteticas e pragmaacuteticas Marie-Chantal de J Chazot ornamenta seu discurso com marcas linguiacutesticas os ensaios mundanos colocam em cena personagens que sempre realizam atividades metalinguiacutesticas Trata-se de uma hipoacutetese ainda a ser verificada por meio de entrevistas mais profundas mas parece que a atividade metalinguiacutestica eacute ela proacutepria um aspecto do falar das classes dominantes

32 Alguns aspectos do falar das classes dominantesApresento aqui alguns aspectos do falar das classes dominantes a partir de descriccedilotildees da

linguiacutestica folk e de avaliaccedilotildees perceptivas (para uma descriccedilatildeo completa consultar Paveau 2008 Paveau e Rosier 2008) depois de ter mencionado duas anaacutelises gerais que confirmam a hipoacutetese do falar especiacutefico das classes dominantes

321 Descriccedilotildees globais do socioleto

No capiacutetulo que dedica aos bairros nobres no seu Dico francecircs-francecircs (1993) P Vandel propotildee uma descriccedilatildeo do falar das classes dominantes praticamente em todos os niacuteveis da anaacutelise linguiacutestica Para ele se apresentam marcados os usos relativos ao vocabulaacuterio (chatear para exasperar suar para defecar casebre para castelo os peacutes entre duas coisas para a bunda

81 Os entrevistados pronunciam por exemplo [pikoslash] e natildeo [pikoer] a palavra piqueur designando o criado que cuida do grupo em uma caccedilada

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entre duas cadeiras) a pronuacutencia dos nomes proacuteprios (Broglie La Treacutemoille Schneider e outras armadilhas culturais mundanas) a esteacutetica dos nomes (Marie-Clotilde em vez de Juanita e Pierre-Henri em vez de Robert) as convenccedilotildees pragmaacuteticas (mentiras e polidez) e a sintaxe (negaccedilatildeo completa quarta pessoa uso da condicional) P Daninos apresenta no Snobissimo (1964 p 66-67) uma amostra desses usos de sua ldquoespeleologia socialrdquo propondo o discurso de um ldquoesnobe realrdquo onde encontrariacuteamos dentre outras coisas inversotildees interrogativas marcadas (eu vejo quem estaacute entrando) empregos de giacuterias (a velha duquesa de Uzegraves que grita82) apoios conversacionais (sim vocecirc com certeza conhece vocecirc engraccedilado o que resumindo eu passo para vocecirc o resto vocecirc percebe um pouco) A mesma enumeraccedilatildeo sistemaacutetica eacute encontrada no Dictionnaire du snobisme de P Jullian e em alguns guias de boas maneiras

Contrariamente agrave ideia predominante entre os linguistas ldquoprofissionaisrdquo isto eacute que as classes dominantes finalmente apenas respeitariam o bom uso da liacutengua com uma especificidade reduzida agrave pronuacutencia83 parece todavia de acordo com os folk linguistas que marcas especiacuteficas afetam todo o sistema da liacutengua

322 Pronuacutencia e entonaccedilatildeo

A famosa pronuacutencia esnobe ou burguesa natildeo eacute um mito e eacute possiacutevel escutaacute-la nos bairros nobres ou nos endereccedilos certos para identificar essas formas Essa descriccedilatildeo folk de P Jullian (1992 p 197) corresponde agraves avaliaccedilotildees empiacutericas que um ouvido atento eacute capaz de escutar

A entonaccedilatildeo a voz dos homens eacute agraves vezes abafada ligeiramente anasalada eacute frequentemente as pessoas do Quai dacuteOrsay (exceto o ministro claro) e da Alta Sociedade Protestante ldquoParisrdquo torna-se ldquoPegraverisrdquo arrastando um pouco mas sem excesso caso contraacuterio se tornaria o ldquoPeacuterisrdquo com o ldquorrdquo pronunciado gruturalmente do ldquomenino parisienserdquo Na mulher do mundo a voz se estende desproporcionalmente ldquoadoraacuteaacutevelrdquo ou eacute colocado muito alto no nariz muito longe do natural

Tal avaliaccedilatildeo corresponde tambeacutem agrave descriccedilatildeo foneacutetica proposta por P Leacuteon et al em Les accents des Franccedilais Os trecircs sotaques (ldquovulgarrdquo ldquoesnoberdquo ldquoneutrordquo) satildeo classificados pelos autores segundo as ldquoetiquetas sociaisrdquo (popular aristocraacutetico e alta ou meacutedia burguesia) O sotaque esnobe estaacute presente assim como aquele dos ldquoantigos ricos e nobresrdquo e eacute ilustrado por um registro artificial

Registro ndeg 3

A informante eacute uma atriz Mathilde Casadesus que interpreta o papel de uma esnobe da aristocracia parisiense que estaacute visitando um de seus amigos (registro N deg LDM ndash 4024 Chant do Monde)

Apesar da natureza artificial da gravaccedilatildeo este eacute um documento identificado como uma representaccedilatildeo autecircntica do socioleto da alta burguesia parisiense O aspecto

82 NT Nesse exemplo em francecircs o verbo crier (gritar) eacute substituiacutedo pela giacuteria gueuler

83 No entanto essa interpretaccedilatildeo estaacute sujeita a questionamento como mostra a anaacutelise de A Kroch considerando que o afrouxamento da articulaccedilatildeo eacute a norma e que satildeo os grupos dominantes que o inibem (mencionado por Gadet 2003 p 52)

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caricatural natildeo estaacute aqui qualitativamente mas quantitativamente Eacute o acuacutemulo de certos fenocircmenos que daacute ao excerto seu caraacuteter especial do estilo esnobe (httpaccentsdefrancefreefr)

Os aspectos identificados satildeo os seguintes realizaccedilatildeo extrema da articulaccedilatildeo vocaacutelica e consonacircntica consoantes muito fortes e aspiradas ou ao contraacuterio fracas (o exemplo dado eacute madame que encontramos em Beacuterurier) ldquoO R eacute geralmente desvozeado ele se assemelha a um som rouco como o do jota em espanhol ou do achlaut84 alematildeo de Bachrdquo especificam os autores identificando a descriccedilatildeo balzaquiana ou proustiana do [r] aristocraacutetico As vogais satildeo alongadas (adoraacuteaacuteaacutevel como em P Jullian) ou ao contraacuterio muito breves ldquoo ritmo muito raacutepido ou muito lentordquo os acentos de insistecircncia muito numerosos e sustentados por uma forte ampliaccedilatildeo meloacutedica

323 Leacutexico e niacutevel de liacutengua

Os usos lexicais no falar das classes dominantes apresentam duas caracteriacutesticas bem distintas e reconhecidas nos corpora folk os deslizamentos semacircnticos geralmente eufemismos e empregos de giacuterias ou ditos ldquopopularesrdquo

Os exemplos de palavras com significado codificado proliferam nos ldquobons meios sociaisrdquo em todas as obras dos corpora folk e satildeo destacados por Eacute Mension-Rigau como um aspecto saliente da linguagem dos aristocratas e dos grandes burgueses Entre eles casa por exemplo assim como comenta P Daninos (1964 p 87-88)

Casa por exemplo pode ser depreciativo Um representante que coloca eletrodomeacutesticos em Seine-et-Oise ou em Seine-et-Marne iraacute perguntar ldquoVocecirc estaacute no chaleacuterdquo ou ldquoVocecirc estaacute na cidaderdquo - mas evitaraacute a palavra casa onde se faz sopa

A esse propoacutesito o ouviriacuteamos dizer Vocecirc estaacute na casa

P Vandel (1993) propotildee um mini-dicionaacuterio desses usos linguiacutesticos comunitaacuterios

A segunda caracteriacutestica eacute apresentada tanto nesses ensaios mundanos quanto nas avaliaccedilotildees metalinguiacutesticas dos locutores P Daninos (1964 p 17) descreve assim o falar burguecircs ldquodecaiacutedordquo

Natildeo quero me precipitar em generalizar mas o esnobismo se tornou mais democraacutetico Enquanto que nos graus mais baixos da escala os atrasados tentam desajeitadamente subir acreditando fazer bem e se tornar elegante no topo as pessoas chegam a decair seu vocabulaacuterio pensando fazer bem em se passar pelo povo [] Mas certas locuccedilotildees que na minha juventude teriam classificado seu homem ndash como se diz quando se trata de rebaixamento ndash agora passam completamente despercebidas [] Jaacute falei desse modo proacuteprio de algumas mulheres da alta burguesia de dizer meu homem ao falar sobre seus maridos

84 NT Fonema gutural x (a fricativa velar muda) da liacutengua alematilde

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Meu homem estaacute quase fazendo seus dezoito buracos natildeo eacute ruim Vaacute se alimentar (em Maximrsquos) tambeacutem natildeo eacute ruim quem teria imaginado isso antes da guerra Da mesma forma Tem cara de maluca que haacute trinta anos parecia muito ousada floresce na boca dos mais sagrados

O ldquodecaimento lexicalrdquo natildeo eacute um aspecto puramente linguiacutestico mas um discurso sobre pertencimento social uma vez que um socioleto se utiliza de uma marca de um outro socioleto para se constituir Natildeo eacute somente em relaccedilatildeo ao falar normativo que se marca o falar das classes dominantes mas em relaccedilatildeo ao proacuteprio falar ldquopopularrdquo em uma identificaccedilatildeo dialeacutetica complexa Eacute preciso fazer uma interpretaccedilatildeo que passa pelo imaginaacuterio social como propotildee Eacute Mension-Rigau (1994 p 227)

Na verdade eles usam como contra-referecircncia um vocabulaacuterio parcialmente inventado ndash aquele que ouvem quando vatildeo ao mercado ou em pequenas lojas ndash que eacute apenas uma parte de seu universo exterior Seu discurso alimentado por uma visatildeo simplista da sociedade de certa forma constroacutei um mundo fantaacutestico ou desaparecido confundido com a faixa mais ldquopopularrdquo do povo ndash que tambeacutem era antigamente aquela de seus dependentes ndash dos quais eacute muito faacutecil para eles se destacarem

Eacute digno de nota que o aspecto natildeo eacute simeacutetrico o falar dito ldquopopularrdquo ou os vernaculares do lado dos dominantes ou das classes menos favorecidas natildeo constroem dessa maneira apoios identitaacuterios Eacute um fenocircmeno proacuteprio sustentar a hipoacutetese de um falar das classes dominantes

324 Interaccedilotildees conversacionais

Terminamos essa pequena amostragem pelos aspectos pragmaacuteticos Enquanto a conversacionalizaccedilatildeo analisada por N Fairclough pretende fazer desaparecer as marcas de hierarquia em particular nos apelativos as formas e foacutermulas de polidez satildeo mantidas nos meios aristocraacuteticos e na grande burguesia Os manuais de boas maneiras dos uacuteltimos vinte anos natildeo repercutem mais a conversacionalizaccedilatildeo e suas prescriccedilotildees natildeo podem mais ser assimiladas a um coacutedigo social ldquopadratildeordquo Uma esposa se ldquocategorizarrdquo se endereccedilando ao seu marido com pronomes de tratamento de segunda pessoa ou obrigando os seus filhos a utilizarem esses pronomes com os seus avocircs pode parecer imaturo Natildeo eacute ldquomenos comumrdquo escreveu P Daninos no livro Snobissimo (p 87) Se essa praacutetica eacute rarefeita ela existe ainda como evidenciam certas entrevistas de Eacute Mension-Rigau e minhas proacuteprias observaccedilotildees pessoais Da mesma forma a menccedilatildeo dos apelativos tiacutetulos e funccedilotildees agora aparece como marcaccedilotildees sociais natildeo mais como um modelo universal de polidez

ConclusatildeoNo final desse capiacutetulo gostaria de formular algumas conclusotildees provisoacuterias que satildeo

na verdade proposiccedilotildees para exploraccedilotildees futuras algumas delas discutidas nos capiacutetulos seguintes

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- A assimetria das anaacutelises sobre a questatildeo dos falares sociais O exame da literatura cientiacutefica e folk mostra uma assimetria notaacutevel entre os numerosos comentaacuterios espontacircneos sobre as classes dominantes e a quase inexistecircncia de anaacutelise linguiacutestica cientiacutefica sobre um falar das classes dominantes enquanto o falar dito ldquopopularrdquo eacute objeto de mais anaacutelises cientiacuteficas que de comentaacuterios folk

- O integracionismo As informaccedilotildees provenientes de corpora folk podem ser consideradas na anaacutelise linguiacutestica pois a folk linguiacutestica possui uma validade e pode ser integrada na linguiacutestica cientiacutefica O exame do corpus folk relativo agraves classes dominantes parece sustentar essa proposiccedilatildeo

- A entrada perceptiva na dimensatildeo social da liacutengua em particular a partir das teorias e meacutetodos da dialetologia perceptiva eacute capaz de modificar o olhar dos linguistas sobre seu objeto e por conseguinte o proacuteprio objeto85

85 Agradeccedilo a Franccediloise Gadet que me permitiu enriquecer minha reflexatildeo sobre a questatildeo do socioleto das classes dominantes e tambeacutem por me oferecer preciosas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Parte II

Aplicaccedilotildees e perspectivas

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LINGUIacuteSTICA POPULAR E ENSINO DE LIacuteNGUA CATEGORIAS EM COMUM86

mdash Diga-me Zidore se eacute francecircs por que tem de se preocupar nesse momento mdash Porque pode haver guerra senhorita Beacutecassine

mdash A guerra Com quem

mdash Com todos os Boches e Bochies87

mdash Ah faz Beacutecassine

[] Rapidamente ela sobe ateacute o quarto de Yvonne lembrando que ela tem um atlas sobre a mesa Olha por muito tempo os mapas a tabela de letras do alfabeto natildeo haacute Boches nem Bochie Entretanto Melle Yvonne lhe disse que todos os povos do mundo tecircm seus nomes marcados ali Entatildeo seu rosto se ilumina e ela corre para a sala Patrotildees e trabalhadores domeacutesticos estatildeo reunidos ali muito emocionados ldquoEacute uma guerra diz Bertrand que retorna do vilarejo exibindo o cartaz da mobilizaccedilatildeo Eu parto amanhatilderdquo

mdash Eu Eu vou me alistar grita Zidore

Madame de Grand-Air chora baixinho Sua dor entristece Beacutecassine mas ela a acalma Ela caminha ateacute a patroa e sussurra em seu ouvido ldquoMadame natildeo deve ser tatildeo ruim assim Talvez haja guerra mas como eacute com gente que natildeo existe dificilmente eacute um riscordquo (CAUMERY PINCHON 1915 p 32)

A personagem Beacutecassine nos expocircs aqui brevemente uma teoria popular sobre a referecircncia se as palavras natildeo existem entatildeo tambeacutem natildeo existem as coisas um princiacutepio derivado com toda a inocecircncia sem duacutevida por parte de nossa Bretatilde do naturalismo mais maciccedilo as palavras representam diretamente coisas elas contecircm a substacircncia das coisas

A questatildeo colocada por este tipo de teoria espontacircnea natildeo eacute tanto a da sua verdade mas na perspectiva que adotamos a de sua articulaccedilatildeo com uma teoria desenvolvida cientificamente numa palavra ldquomais eruditardquo ou ldquomenos popularrdquo como quiser 1915 eacute a Grande Guerra eacute claro mas tambeacutem eacute o momento em que a linguiacutestica moderna comeccedila a mostrar que a linguagem natildeo eacute uma nomenclatura e que natildeo haacute relaccedilatildeo direta entre o signo e o referente a palavra catildeo natildeo late e visivelmente na visatildeo de mundo de Beacutecassine a palavra Bochie tambeacutem natildeo

O desenvolvimento da ciecircncia cognitiva e depois da etnometodologia fez emergir esta questatildeo da ciecircncia espontacircnea dos sujeitos questatildeo natural para um campo que lida com o desenvolvimento do conhecimento das percepccedilotildees e das representaccedilotildees dos indiviacuteduos

86 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Linguistique populaire et enseignement de la langue des cateacutegories communes Le Franccedilais aujourdrsquohui 151 Paris AFEF-Armand Colin 2005 p 95-107 Traduccedilatildeo de Samuel Ponsoni (UEMG - Unidade Passos) e Paula Camila Mesti (UNESPARANPOLL)

87 NT No artigo de origem aparece Boches e Bochie satildeo aqui traduzidos como Alematildees e Alemanha respectivamente Cabe esclarecer que Boches se trata de um termo pejorativo para alematildees germacircnicos teutos e todas as outras designaccedilotildees gentiacutelicas desse grupo etnocultural

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Gostariacuteamos de explorar este problema no campo da liacutengua francesa fazendo uma pergunta simples as categorias espontacircneas dos alunos podem ser mobilizadas no ensino da liacutengua ou devem pelo contraacuterio ser desconstruiacutedas para dar lugar a categorias aprendidas

Depois de definir o que se denomina ldquolinguiacutestica popularrdquo e sublinhar seu interesse pelo campo do ensino-aprendizagem da liacutengua tentaremos responder a essa questatildeo atraveacutes de trecircs exemplos de categorias a palavra a flexatildeo verbal e o gecircnero do discurso

A linguiacutestica popularConforme jaacute enunciamos o termo linguiacutestica popular eacute o rastro de uma seacuterie de nomes

anglo-saxotildees baseados em folk (como psicologia folk ou como teoria folk por exemplo) em que folk eacute traduzido para o francecircs e para o portuguecircs como popular espontacircneo ou ingecircnuo Podemos falar tambeacutem de linguiacutestica de senso comum e igualmente a expressatildeo linguiacutestica de leigos cuja sinalizaccedilatildeo de L Rosier (2004 p 70) aponta para um sem-nuacutemero de casos na internet ldquoPodemos [] acrescentar o que chamamos de lsquoLinguiacutestica dos leigosrsquo particularmente visiacutevel na Internet em particular no contexto dos foacuteruns de discussatildeo []rdquo

Chamamos portanto de ldquopopularrdquo o saber espontacircneo de atores sobre o mundo (depositado em proveacuterbios ou ditados por exemplo) que se distingue do saber acadecircmico ou cientiacutefico como um saber-fazer que diferencia saber cientiacutefico do ldquosaber querdquo e do senso comum Este saber espontacircneo eacute constituiacutedo por saberes empiacutericos natildeo passiacuteveis de verificaccedilatildeo loacutegica (o saber espontacircneo natildeo eacute verdadeiro nem falso falamos entatildeo de ldquoconhecimento aproximativordquo) e de crenccedilas que constituem guias para accedilatildeo as lendas urbanas ou as influecircncias da lua no crescimento das plantas satildeo crenccedilas que surgem do saber espontacircneo

As praacuteticas linguiacutesticas espontacircneasDevemos falar aqui de praacuteticas linguiacutesticas e natildeo linguageiras o termo linguiacutestica indica

que haacute uma atividade reflexiva que pode levar a resultados ldquocientiacuteficosrdquo que advecircm da ciecircncia espontacircnea enquanto linguageiro simplesmente descreve os usos que os falantes fazem da liacutengua

A terminologia linguiacutestica integrou a distinccedilatildeo feita por A Culioli entre epilinguiacutestica que designa o saber espontacircneo e inconsciente sobre a liacutengua (ldquoatividade linguiacutestica inconscienterdquo nas palavras de A Culioli) de falantes e metalinguiacutestica que designa praacuteticas reflexivas conscientes e bastante racionalizadas ldquoO verdadeiro saber linguiacutestico eacute metalinguiacutestico ou seja representado construiacutedo e manipulado como tal com a ajuda de uma metalinguagemrdquo (AUROUX 1995 p 10) No entanto devemos distinguir no campo metalinguiacutestico o que vem de uma atividade espontacircnea natildeo especializada e natildeo formalizada sobre a liacutengua daquilo que vem da construccedilatildeo de um discurso cientiacutefico sobre a liacutengua J Rey-Debove (1978 p 22) propotildee falar de ldquometalinguagem atualrdquo para o primeiro caso e de ldquometalinguagem cientiacuteficadidaacuteticardquo para o segundo

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No modo didaacutetico-cientiacutefico a metalinguagem corresponde ao discurso do linguista (linguiacutestica) e agravequilo que ele aprende ensina de uma liacutengua ou se acha interessado nela como especialista Eacute natural ou parcialmente formalizado ou simbolizado ou mesmo totalmente axiomatizado e formalizado Jaacute o modo atual corresponde ao discurso do usuaacuterio de uma liacutengua discurso muitas vezes confundido com o enunciado apresentado ao mesmo tempo de uma consciecircncia metalinguiacutestica inferior em termos de conteuacutedo e expressatildeo e uma maior liberdade uma vez que os enunciados produzidos natildeo pertencem mais ao discurso cientiacutefico sobre a liacutengua

Obtemos assim uma distinccedilatildeo tripartida que aqui manteremos atividade epilinguiacutestica metalinguagem natural e metalinguagem formalizada

Eacute notaacutevel que a linguiacutestica popular seja pouquiacutessimo desenvolvida na Franccedila enquanto na cultura anglo-saxocircnica ela integra totalmente as ldquodisciplinas folkrdquo pertencentes ao campo cientiacutefico O tomo I do livro LrsquoHistoire des ideacutees linguistiques organizado por Sylvain Auroux inicia-se com um capiacutetulo de H E Brekle intitulado ldquoA linguiacutestica popularrdquo (volkslinguistik em alematildeo traduccedilatildeo do inglecircs folk linguistics) Ele explica que em linguiacutestica o saber espontacircneo dos falantes pode ser formulado em termos de naturalidade

De maneira provisoacuteria podemos dizer que o campo da linguiacutestica popular inclui todos os enunciados que podem ser qualificados como expressotildees naturais (ou seja que natildeo vecircm dos representantes da linguiacutestica como disciplina estabelecida) designando ou referindo-se a fenocircmenos linguiacutesticos ou operando no niacutevel da metacomunicaccedilatildeo A isso devem ser adicionados os enunciados em que as qualidades foneacuteticas semacircnticas etc satildeo usadas expliacutecita ou implicitamente como unidades de uma liacutengua para produzir resultados relevantes para a regulamentaccedilatildeo do comportamento social de um indiviacuteduo ou grupo social (BREKLE 1989 p 39)

Em filigranas H E Brekle define aqui dois tipos de praacuteticas linguiacutesticas populares

- descriccedilotildees ou teorizaccedilotildees metalinguiacutesticas por exemplo aquelas relacionadas agrave designaccedilatildeo (chamar um gato de gato ou chamar as coisas pelo que seus nomes sugerem) ou na hierarquia entre o escrito e o oral (contentar-se com palavras palavras verbais as palavras se dissipam falar como um livro) A pequena teoria da referecircncia de Beacutecassine se enquadra nessa categoria

- prescriccedilotildees comportamentais que recaem em um purismo na maioria das vezes sabemos que os ldquoamantes da bela linguagemrdquo tecircm uma lista proibida de palavras feias (adveacuterbios terminados em -mente termos excessivamente teacutecnicos etc) interditas de se usar sob pena de se passar por um vulgarismo da liacutengua Tem-se entatildeo a imagem da norma da liacutengua como predominante88 Trata-se assim dos vereditos sobre a liacutengua ditos vs natildeo ditos isso se diz vs isso natildeo se diz Dessa maneira o purismo entra em uma verdadeira ldquoeconomia das trocas linguiacutesticasrdquo como sublinha L Rosier (2004 p 69)

88 Sobre as imagens dominantes da liacutengua no discurso escolar ver Paveau (1998)

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Ela eacute caracterizada por uma forte axiologizaccedilatildeo performativa (o que se diz o que natildeo se diz) que atende ao bom uso e que pretende respeitar uma economia estrita de trocas linguiacutesticas em que o falante eacute avaliado de acordo com seu domiacutenio da liacutengua sob o acircngulo da riqueza lexical e correccedilatildeo gramatical

Adicionaremos uma terceira categoria da praacutetica linguiacutestica popular as intervenccedilotildees sobre a liacutengua Sabemos que a maioria dos erros dos falantes em particular das crianccedilas natildeo o satildeo realmente em uma oacutetica linguiacutestica O tiacutetulo de uma obra de D Leeman Existem erros em francecircs89 (LEEMAN 1994) eacute emblemaacutetico dessa posiccedilatildeo que segue a tradiccedilatildeo de A Gramaacutetica das Falhas90 de H Frei (1928) nesta perspectiva aller au coiffeur e eacutemotionner91 natildeo satildeo erros mas sim intervenccedilotildees regularizadoras sobre a liacutengua Os falantes racionalizam sua liacutengua a arrumam e a organizam como um ambiente onde a ordem e a harmonia satildeo necessaacuterias

Para recapitular dissemos que a linguiacutestica popular reuacutene trecircs tipos de praacuteticas linguiacutesticas descritivas (descrevemos a atividade da linguagem) normativas (prescrevemos comportamentos linguageiros) e intervencionistas (intervimos nos usos da liacutengua)

A linguiacutestica popular eacute uma linguiacutesticaPodemos dar duas explicaccedilotildees para a ausecircncia virtual da linguiacutestica popular como campo

de pesquisa na Franccedila por um lado a veneraccedilatildeo francesa dos saberes ldquosegurosrdquo (um campo das ditas ciecircncias duras ou exatas) e o desprezo pelos saberes aproximativos (domiacutenios ditos de opiniatildeo comum ou relativizada) herdado das concepccedilotildees platocircnicas e da tradiccedilatildeo cartesiana por outro lado a ocupaccedilatildeo do que poderia ser o campo da linguiacutestica popular pelo estudo dos discursos puristas das manifestaccedilotildees da norma e das consequecircncias psicossociais das concepccedilotildees normativas (por exemplo a inseguranccedila linguiacutestica) fenocircmenos esses considerados na Franccedila como pertencente agrave sociolinguiacutestica Eacute o que J-C Beacco (2004 p 109) coordenador de uma ediccedilatildeo da revista Langages diz sobre a questatildeo das ldquorepresentaccedilotildees metalinguiacutesticas ordinaacuteriasrdquo em relaccedilatildeo aos gecircneros discursivos

[] pode-se examinar a noccedilatildeo de gecircnero discursivo pelo que originalmente eacute uma categorizaccedilatildeo ordinaacuteria intrinsecamente imprecisa mas que pode ser objetivada da comunicaccedilatildeo verbal Como tal eacute baseada em vaacuterios pontos de vista teoacutericos

1) da ldquolinguiacutestica popularrdquo (ou folk linguistics) campo da sociolinguiacutestica gecircnero discursivo eacute uma forma de representaccedilatildeo metalinguiacutestica ordinaacuteria da comunicaccedilatildeo entrando no saber comum []

89 N T o tiacutetulo da obra em liacutengua francesa Les fautes de franccedilais existent-elles

90 NT o tiacutetulo da obra em liacutengua francesa La Grammaire des Faults

91 NT por natildeo encontrar correlatos precisos na liacutengua portuguesa deixamos os exemplos em francecircs Cabe-nos entatildeo explicar que a maneira adequada de se dizer ldquoaller au coiffeurrdquo eacute ldquoaller chez le coiffeurrdquo cuja traduccedilatildeo eacute ldquoir ao cabeleireirordquo No outro exemplo temos ldquoeacutemotionnerrdquo em vez de ldquoenthousiasmerrdquo para o verbo ldquoemocionarrdquo Nesse caso explicamos que natildeo existe a palavra ldquoeacutemotionnerrdquo em francecircs apesar de existirem ldquoeacutemotionrdquo (emoccedilatildeo) e ldquoeacutemotionnelrdquo (emocional) A autora usou um terceiro exemplo ldquoapregraves qursquoil aitrdquo para o qual uma traduccedilatildeo mais adequada parece ser ldquodepois que ele temrdquo

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Nossa posiccedilatildeo eacute outra consideramos que a linguiacutestica popular deve constituir um campo da linguiacutestica porque diz respeito natildeo apenas agraves praacuteticas sociais linguageiras (no sentido da sociolinguiacutestica) mas igualmente aos procedimentos de ensino-aprendizagem de liacutengua (no sentido da didaacutetica de liacutengua e psicolinguiacutestica)92

Na verdade a linguiacutestica popular natildeo deve ser reduzida ao seu componente aproximativo descritivo ou simplesmente luacutedico A questatildeo mais interessante na folk linguistics eacute sua validade como teoria Haacute muitos trabalhos desse tipo em folk psychology (FISETTE POIRIER 2002) o que oferece vaacuterias respostas a essa pergunta O filoacutesofo D Dennett (1990) por exemplo pensa que na maioria das vezes a psicologia popular funciona e tem uma verdade praacutetica E as teorias populares da linguagem L Rosier faz uma proposta interessante a esse respeito em um trabalho que ela denomina de ldquodicionaacuterios de criacuteticas irocircnicasrdquo (os de P Merle por exemplo que apontam tiques de linguagem e de modos)

Esses ldquodicionaacuteriosrdquo tecircm a particularidade de apresentar os tipos sociais por meio de suas especificidades linguiacutesticas realizando reconhecidamente de forma caricatural um dos projetos da anaacutelise do discurso o viacutenculo entre classes sociais e as praacuteticas discursivas Eles se ldquorelacionamrdquo por estigmatizaccedilatildeo fictiacutecia e os termos e as expressotildees devem figurar como citaccedilotildees ou seja ao lecirc-los deve-se dizer a si mesmo eacute assim mesmo que ldquoelesrdquo falam (eles designa os esnobes os jornalistas os poliacuteticos os jovens os velhos os de grande valor de acordo com as subcategorizaccedilotildees sociais explicitadas pelos proacuteprios autores) (ROSIER 2003 p 63-64)

Obviamente pensamos no M Jourdain de Moliegravere em sua prosa ldquosem o saberrdquo e em muitas outras personagens literaacuterias que sem duacutevida se beneficiariam em serem analisadas em sala de aula pelo prisma sociocriacutetico dessa linguiacutestica espontacircnea Eacute portanto a questatildeo da validade da descriccedilatildeo popular que se coloca aqui do ponto de vista de uma anaacutelise do funcionamento social da linguagem

A crianccedila gramaacuteticaMas a linguiacutestica popular tambeacutem eacute e sobretudo de grande interesse no ensino-aprendizagem

da liacutengua mas com outro nome a competecircncia metalinguiacutestica

As atividades metalinguiacutesticas O estudo empiacuterico pioneiro de L Gleitman et al em 1972 mostrou que crianccedilas de dois anos

jaacute apresentam reaccedilotildees metalinguiacutesticas rudimentares satildeo pequenos gramaacuteticos O trabalho sobre o ldquometa-rdquo (comentaacuterios e manipulaccedilotildees metagraacuteficas metagramaticais metalexicais etc) tem sido amplamente desenvolvido nas pesquisas93 A atividade metalinguiacutestica do aluno

92 Eacute uma posiccedilatildeo que concorda entre outras com as de M Yaguello (1981) e de H E Brekle (1989) Mas eacute difiacutecil encontrar ao menos na Franccedila trabalhos que se relacionam diretamente com as praacuteticas linguiacutesticas espontacircneas dos locutores fora do acircmbito da aprendizagem

93 Veja alguns elementos na bibliografia com um lanccedilamento em grupo em 1994-1995 o no 9 da Repegraveres o coloacutequio da DFLM sobre metalinguagens o livro de D Leeman sobre as falhas

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eacute uma atividade de aprendizagem que ocorre na aula o que o faz produzir comentaacuterios sobre liacutengua discurso comunicaccedilatildeo e o faz utilizar procedimentos de classificaccedilatildeo nomenclatura ou argumentaccedilatildeo M Brigaudiot (1994 p 92-93) define o ldquosurpreendente comportamento reflexivordquo de jovens gramaacuteticos da seguinte forma

Definimos atividade metalinguiacutestica como o fato de um aluno se deparar com um problema linguiacutestico de entrar em um questionamento em busca de pistas de fazer provas de verificar Dizer que o problema eacute de ordem linguiacutestica eacute considerar que os objetos sobre os quais se relaciona satildeo de ordem linguiacutestica que se relacionam ao coacutedigo agrave frase ao texto ou ao discurso agrave leitura ao escrever

G Ducancel (1994) mostra que os comentaacuterios metalinguiacutesticos ligados agrave coesatildeo textual bem como aos conhecimentos metaprocessuais surgem a partir do primeiro ciclo escolar em duas formas principais

- as formulaccedilotildees e reformulaccedilotildees ldquosecasrdquo ou seja sem comentaacuterios

- a convocaccedilatildeo de uma metalinguagem para esclarecer analisar fazer comentaacuterios e dar explicaccedilotildees

Poderiacuteamos citar tambeacutem a obra de C Fabre (1990) que no campo da escrita mostrou a importacircncia da atividade metalinguiacutestica a partir do estudo dos rascunhos escolares para ela esse tal procedimento se trata de uma verdadeira entrada na escrita o que natildeo eacute pouca coisa

A partir daiacute pode ser estabelecido um contrato didaacutetico entre o professor e os alunos para a aprendizagem metalinguiacutestica No entanto uma distinccedilatildeo baacutesica deve ser feita entre atividade metalinguiacutestica espontacircnea e atividade metalinguiacutestica ldquosolicitadardquo para aprendizagem (DELAMOTTE-LEGRAND 1995) Em princiacutepio porque na praacutetica seria obviamente muito difiacutecil distinguir entre reflexotildees ldquonaturaisrdquo e ldquoartificiaisrdquo em crianccedilas

O ldquometa-rdquo reservado agraves crianccedilasEntretanto levar em consideraccedilatildeo a competecircncia metalinguiacutestica nas atividades de sala de

aula parece estar confinado ao ensino primaacuterio94 Com efeito natildeo se tem a inspiraccedilatildeo dessas praacuteticas pedagoacutegicas para professores nem as indicaccedilotildees dos programas oficiais do coleacutegio de ensino fundamental e do ensino meacutedio Nos uacuteltimos programas da faculdade apenas o ldquoo domiacutenio impliacutecito da gramaacuteticardquo aparece nas especificaccedilotildees para as praacuteticas linguageiras espontacircneas mas pode-se perguntar se a expressatildeo natildeo se deve mais agrave competecircncia linguiacutestica de um Chomsky do que agrave competecircncia metalinguiacutestica destacada pelo trabalho sobre a reflexividade das atividades linguageiras dos alunos

Sempre abordado no acircmbito da impregnaccedilatildeo das estruturas do francecircs e vinculado a diversas atividades orais e escritas a aprendizagem das ferramentas da liacutengua eacute modesta

94 Embora M Brigaudiot destaque em 1994 que as praacuteticas de ensino relacionadas agraves atividades metalinguiacutesticas das crianccedilas natildeo fazem parte da tradiccedilatildeo das escolas primaacuterias francesas

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no 6o Com base no domiacutenio impliacutecito da gramaacutetica o professor vai esclarecendo ao longo do ano alguns elementos essenciais da metalinguagem gramatical (PROGRAMA DA SEXTA SEacuteRIE 1996 p 18)

Eacute como se a competecircncia metalinguiacutestica pudesse funcionar apenas para a aquisiccedilatildeo e para a aprendizagem mas perdesse a importacircncia para aprendizagens relacionadas ao uso da liacutengua ao uso do discurso e agraves atividades de reflexatildeo criaccedilatildeo de interpretaccedilatildeo de invenccedilatildeo Deixemos o ldquometa-rdquo espontacircneo do ensino fundamental e do ensino meacutedio95 e natildeo falemos da universidade onde a categoria do popular espontacircneo ingecircnuo qualquer que seja o seu nome eacute firmemente convidada a ficar agrave porta da ciecircncia legiacutetima por exemplo qualquer reuniatildeo de respeito sobre o Curso de Linguiacutestica Geral de Saussure passaraacute por uma destruiccedilatildeo adequada da imagem da liacutengua como nomenclatura poreacutem ela eacute massivamente difundida entre os alunos servindo-lhes de saber-fazer para seu comportamento social

Sobre esse ponto a linguiacutestica se priva de ser uma poderosa alavanca para seu ensino e portanto para sua difusatildeo e manutenccedilatildeo nas ciecircncias humanas e sociais E o ensino parece ignorar um importante campo de pesquisa internacional nos uacuteltimos dez anos o das emoccedilotildees A pragmaacutetica as ciecircncias cognitivas em particular a psicologia e a neurologia mas tambeacutem a ergonomia a filosofia as ciecircncias da informaccedilatildeo e da comunicaccedilatildeo enfim todas elas realizaram pesquisas em torno do papel das emoccedilotildees no desenvolvimento e no comportamento do indiviacuteduo A psicologia cognitiva tem sido capaz de mostrar por exemplo em que medida o funcionamento da memoacuteria eacute governado pelas emoccedilotildees o que sem duacutevida tem alguma importacircncia na aquisiccedilatildeo e aprendizagem do francecircs

Algumas categorias suscetiacuteveis a um tratamento da linguiacutestica popular

A palavra uma categoria um pouco imprecisa mas operacional

A definiccedilatildeo da palavra palavra eacute um claacutessico da distinccedilatildeo entre o saber erudito e o saber popular em linguiacutestica Muito abrangente muito vaga polissecircmica e incapaz de distinguir certas segmentaccedilotildees palavra eacute geralmente proscrita por linguistas em favor de uma unidade lexical ou de acordo com o contexto de um vocaacutebulo considerado mais claro e monossecircmico Mas acontece que palavra eacute a palavra mais oacutebvia para todos os falantes independentemente da idade para designar esta unidade que eacute uma ilha graacutefica e semacircntica e suporte de representaccedilotildees mais difundidas da liacutengua para a maioria das pessoas a liacutengua estaacute associada ao leacutexico (a esse respeito ver Paveau (2000) em trabalho sobre a riqueza lexical) Isso explica porque certos linguistas levando em consideraccedilatildeo as praacuteticas espontacircneas dos falantes ou apegados a uma escrita legiacutevel de sua disciplina usam a palavra o lexicoacutelogo B Habert por exemplo chama palavra em vaacuterias palavras o que outros chamam de unidades fraseoloacutegicas ou locuccedilotildees fixas ou congeladas M Tournier sempre usou palavra no laboratoacuterio lexicomeacutetrico que dirigiu em Saint-Cloud bem como no tiacutetulo da revista que fundou Palavras as linguagens da poliacutetica96

95 NT Consultar o artigo de S Obadia sobre a categoria do registro como antiacutedoto para uma leitura de textos a partir das ldquoprimeiras reaccedilotildeesrdquo dos alunos Disponiacutevel em httpswwwcairninforevue-le-francais-aujourd-hui-2005-4-page-69htm

96 NT Em francecircs Mots les langages du politique Para saber mais sobre essa revista cientiacutefica acesse httpsjournalsopeneditionorgmots Acesso em 27 set 2020

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A terminologia gramatical de 1997 tambeacutem usa este termo na lista de noccedilotildees gerais (palavras e classes de palavras p 7) tal como nos termos sob o tiacutetulo ldquoleacutexico e semacircnticardquo (histoacuteria e construccedilatildeo de palavras famiacutelias de palavras palavras compostas palavras derivadas paacuteginas 29 e 30)

O termo palavra como ferramenta de aprendizagem ou anaacutelise eacute interessante para questionar a relevacircncia das categorias populares e acadecircmicas Os dados satildeo os seguintes

- Apesar de sua imprecisa definiccedilatildeo enfatizada em toda parte o termo palavra eacute amplamente utilizado em programas gramaacuteticas livros didaacuteticos por professores e alunos especialmente nos ensinos primaacuterio e fundamental (niacuteveis para os quais submetemos estudos e pesquisas o que natildeo eacute o caso do ensino meacutedio e menos ainda da universidade)

- A imprecisatildeo da definiccedilatildeo em questatildeo parece ser parcialmente reduzida pela elaboraccedilatildeo de um paradigma recentemente estudado por Sonia Branca e Corinne Gomila (2004) em relaccedilatildeo CP97 o qual fala de ldquometaliacutengua de transiccedilatildeordquo ou ldquotermos de transiccedilatildeordquo pedaccedilos de palavras pequenas palavras pequenas palavras iniciais outras palavras (sinocircnimos) elas indicam a funccedilatildeo de resoluccedilatildeo desses termos em particular pequenas palavras

A categoria abrangente de pequenas palavras permite que vocecirc adie a terminologia abundante para mais tarde Tambeacutem eacute usado para ldquoresolverrdquo outros problemas A unidade prevista pode portanto ser considerada pequena em comparaccedilatildeo com um todo abrangente (BRANCA GOMILA 2004 p 120)

Geralmente elas satildeo entretanto criacuteticas do uso dessa metaliacutengua de transiccedilatildeo agrave qual fazem as criacuteticas tradicionalmente dirigidas agrave categoria da palavra

Nosso ponto de vista natildeo eacute prescritivo De qualquer forma natildeo queremos denunciar a subdeterminaccedilatildeo desses termos em grande parte invisiacuteveis para aqueles que os usam ad hoc No entanto tais termos polissecircmicos encorajam um entendimento global muito vago o que dificulta a estabilizaccedilatildeo de algumas propriedades (BRANCA GOMILA 2004 p 120)

Muitas vezes encontramos a mesma posiccedilatildeo sobre a questatildeo na literatura dedicada agrave palavra e ao seu ensino-aprendizagem no coletivo liderado por M-J Beacuteguelin em 2000 a palavra eacute qualificada como uma noccedilatildeo imprecisa (p 43) poreacutem lemos nas filigranas do capiacutetulo dedicado agrave noccedilatildeo de palavra que ela eacute uma categoria popular devido agrave imprecisatildeo e agrave indeterminaccedilatildeo que carrega mas que eacute usada no ensino o que acaba servindo como soluccedilatildeo para descriccedilotildees difiacuteceis e definiccedilotildees complexas

Eacute uma pena que a eficaacutecia das categorias do senso comum natildeo seja mais profundamente questionada neste trabalho devido a uma abertura sobre a histoacuteria e sobre a epistemologia da ciecircncia Na verdade sabemos que eacute a linguagem do senso comum que permite que os

97 NT CP refere-se a um curso preparatoacuterio dos niacuteveis e das preparaccedilotildees da Eacutecole Eacuteleacutementaire francesa Le cycle 2 ou cycle des apprentissages fondamentaux comprend le cours preacuteparatoire (CP) O ciclo 2 ou ciclo das aprendizagens fundamentais compreende o curso preparatoacuterio (CP) Para saber mais acesse httpswwweducationgouvfrl-ecole-elementaire-9668 Acesso em 27 set 2020

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conhecimentos sejam fixados Sobre isso ainda E Nagel (1961) defende por exemplo a ideia de que a imprecisatildeo da liacutengua do senso comum permite que as crenccedilas persistam (por causa de ou graccedilas agrave dificuldade de controle experimental) quando o destino das teorias eacute morrer precocemente Obviamente natildeo se trata de aplicar este programa ao peacute da letra e sim de medir a eficaacutecia das praacuteticas linguiacutesticas espontacircneas em comparaccedilatildeo com as baseadas em meacutetodos cientiacuteficos

As conjugaccedilotildees fantasiosas erros de liacutengua ou soluccedilatildeo praacuteticaO erro de conjugaccedilatildeo eacute um estereoacutetipo do discurso sobre a liacutengua na Franccedila um reservatoacuterio

inesgotaacutevel de trocadilhos (Cafeacute bouillu cafeacute foutu)98 e um instrumento eficaz de discriminaccedilatildeo cultural99 Essa categoria morfoloacutegica da desinecircncia (ou terminaccedilatildeo em uma traduccedilatildeo mais tradicional e mais ldquoingenuamenterdquo descritiva) constitui-se de uma espeacutecie de lugar normativo que cristaliza a paixatildeo francesa pela liacutengua

Todos noacutes temos nosso repertoacuterio de erros de conjugaccedilatildeo desde os mais infantis (je suitais disse Ceacutesar aos quatro anos il disa disse um aluno citado por D Leeman100) aos mais literaacuterios como mostram M Savelli et al (2002) especificando que um certo nuacutemero de erros de passado simples aparecem entre os melhores autores srsquoenfuyegraverent dissolva couris mouresis eacutetranglis aperceva demandis vivegraverent101 Que essas formas satildeo defeituosas eacute indiscutiacutevel mas o que natildeo se pode fazer eacute uma interpretaccedilatildeo axioloacutegica delas e culpar os falantes por sua ignoracircncia por inferioridade linguiacutestica ou ainda pior por uma inferioridade social e impor as formas ortodoxas sem outra forma de processo

Embora os erros em francecircs existam eles tecircm uma racionalidade que o simples bom senso basta para descobrir do ponto de vista funcional natildeo haacute razatildeo para que se diga nada Entatildeo em je suitais e il disa haacute algo sobre o sistema de conjugaccedilatildeo e principalmente sobre o comportamento linguiacutestico dos desordeiros de conjugaccedilatildeo tratam-se de intervenccedilotildees sobre a liacutengua a terceira das praacuteticas linguiacutesticas populares identificadas alhures destinadas a regularizar um sistema que agraves vezes eacute muito erraacutetico O que se segue eacute muito bem explicado pela analogia com outros verbos frequentemente problemaacuteticos cuja base imperfeita termina em [t] je mens je mentais je pars je partais je suis je suitais102 (CQFD) Quanto a il disa deixemos D Leeman explicar a gecircnese da falha devido a um fenocircmeno de hipercorreccedilatildeo103

98 NT Mais uma vez optamos por usar os exemplos originais em liacutengua francesa porque a traduccedilatildeo natildeo seria suficientemente precisa para exemplificar as situaccedilotildees descritas pela autora Neste caso ldquocafeacute bouillurdquo estaacute sendo usado no lugar de ldquocafeacute bouillirdquo (cafeacute fervido) e ldquocafeacute fouturdquo no lugar de ldquocafeacute fichurdquo (cafeacute maldito) Ressaltamos que esses mesmos fenocircmenos de falha na terminaccedilatildeo de verbos irregulares e hipercorreccedilatildeo podem tambeacutem ser encontrados em liacutengua portuguesa

99 NT ldquoNatildeo diga sobretudo Eles tecircm que me acreditar ou Eles tecircm que me verrdquo (MORHANGE-BEacuteGUEacute 1995 p 12) No original Il faut qursquoils me croivent e Il faut qursquoils me voyent

100 NT Je suitais no lugar de je suis (eu sou) e il disa inveacutes de il dit (ele disse)

101 srsquoenfuyegraverent (je me suis enfui = eu fugi) dissolva (ce dissous = isto dissolveu) couris (jrsquoai couru = eu corri) mouresis (je suis mort = eu morri) eacutetranglis (jrsquoai eacutetrangle = eu estrangulei) aperceva (jrsquoai realize = eu percebi) demandis (jrsquoai demandeacute = eu perguntei) vivegraverent (ils veacutecurent = eles viveram)

102 NT Para que seja possiacutevel a comparaccedilatildeo trazemos aqui a traduccedilatildeo dos pares de verbos je mens (eu minto) je mentais (eu menti) je pars (eu saio) je partais (eu saiacute) je suis (eu sou) je suitais (natildeo existe deveria ser jrsquoeacutetais)

103 A hipercorreccedilatildeo eacute uma ldquobusca de atitude social de prestiacutegiordquo marcada pelo ldquoexcesso na aplicaccedilatildeo de uma regrardquo (GADET 2003 p 125) e que implica por parte do falante que ele estaacute ciente de uma caracteriacutestica de sua liacutengua (frequentemente foneacutetica) percebida de forma positiva socialmente e igualmente percebida em relaccedilatildeo a outras de forma negativa pela comunidade linguiacutestica na qual ele estaacute inserido A hipercorreccedilatildeo eacute entatildeo uma reconstruccedilatildeo defeituosa de uma forma de aparecircncia correta

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A forma il dit eacute comum no presente e no passado simples daiacute o constrangimento que pode suscitar uma histoacuteria como ldquoIl prit son manteau se coiffa drsquoun beacuteret et se preacutecipita vers la porte Avant de sortir il ditrdquo104 O revisor natildeo vai acreditar que estamos usando um presente incorretamente O aluno que escreve il disa pode sentir a necessidade de empregar uma forma claramente marcada para compensar a ambiguidade na liacutengua (LEEMAN-BOUIX 1994 p 125)

Poderiacuteamos multiplicar os exemplos e sua explicaccedilatildeo racional cujas anaacutelises podem ser encontradas em Meleuc e Fauchart (1999) e David e Laborde-Milaa (2002) por exemplo

Lembremos que este tipo de intervenccedilatildeo sobre uma categoria morfoloacutegica aparentemente muito ldquocientiacuteficardquo estabelecida (nada mais semelhante de fato ao conhecimento ldquodurordquo das ciecircncias exatas do que as tabelas de conjugaccedilatildeo105 constitui uma tentativa espontacircnea de regularizaccedilatildeo do sistema o falante entatildeo adota um comportamento linguiacutestico que lhe permite evitar o embaraccedilo psicoloacutegico e o esforccedilo cognitivo da irregularidade e ao mesmo tempo facilita seu registro de memoacuteria porque a memoacuteria semacircntica estaacute aqui diretamente relacionada e essas intervenccedilotildees espontacircneas devem ser consideradas como tentativas de gerenciamento da memoacuteria Por isso levar em consideraccedilatildeo as operaccedilotildees linguiacutesticas espontacircneas dos alunos na aprendizagem de liacutenguas eacute de certo interesse desde que os professores recebam uma formaccedilatildeo adequada ldquoAs anaacutelises [dos dados escritos e orais] e as hipoacuteteses evocadas nas regularizaccedilotildees poderiam servir de reflexatildeo para um ensino no qual seria sem duacutevida necessaacuterio repensar o que eacute regra e o que eacute memoacuteriardquo (SAVELLI et al 2002 p 47)

O gecircnero de discurso uma categorizaccedilatildeo impossiacutevelSabemos que o conceito de gecircnero estaacute muito presente nos uacuteltimos curriacuteculos das

faculdades e do ensino meacutedio e portanto nos livros didaacuteticos e nas atividades de ensino Isso ocorre porque a categoria de gecircnero eacute antiga e haacute muito tempo teorizada e debatida eacute tambeacutem porque as ciecircncias da linguagem se apoderaram da noccedilatildeo haacute cerca de quinze anos produzindo muitas reflexotildees sobre os modos de categorizaccedilatildeo de textos e discursos fenocircmenos cujos rastros podem ser percebidos nos programas que se baseiam na articulaccedilatildeo entre gecircneros de texto e formas de discurso106 Precisamente o gecircnero de texto se refere antes

104 NT Para mantermos os exemplos em francecircs trazemos nessa nota a traduccedilatildeo ldquoPegou o casaco colocou uma boina e correu para a porta Antes de sair ele dissehelliprdquo

105 Serge Meleuc (2002 p 49) oferece uma interpretaccedilatildeo da tabela de conjugaccedilatildeo para a aprendizagem ldquo[] o que eacute apenas uma forma de apresentaccedilatildeo tende a transbordar seu espaccedilo legiacutetimo e a se transformar em uma espeacutecie de modelo obrigatoacuterio da proacutepria praacutetica de ensino-aprendizagem do verbo rdquo

106 Acompanhamento da aula 6 (1996) ldquoA abordagem dos gecircneros textuais estaacute vinculada agraves formas de discurso os gecircneros satildeo realidades histoacutericas e culturais que codificam as praacuteticas discursivas Se a noccedilatildeo eacute complexa e muitas vezes difusa o gecircnero eacute facilmente identificaacutevel pela presenccedila dos dominantes discursivos o romance o conto a novela por exemplo satildeo caracterizados pela narrativa dominante (possivelmente com importantes elementos de descriccedilatildeo) Portanto eacute loacutegico associar os primeiros elementos de seu estudo ao das formas de discurso Natildeo podemos limitar a questatildeo dos gecircneros a dos gecircneros literaacuterios aleacutem desses coacutedigos particulares eles governam toda sorte de tipos de textos A carta eacute um gecircnero literaacuterio mas eacute tambeacutem uma forma de produccedilatildeo textual da vida cotidiana O diaacutelogo eacute um gecircnero ao mesmo tempo literaacuterio e algo que natildeo poderia ser mais banal a cada dia A histoacuteria eacute romacircntica mas tambeacutem eacute notiacutecia do tipo fait-divers etc Os gecircneros satildeo portanto descobertos pelos alunos e analisados a partir de toda sorte de textos de todos os gecircneros antigos e contemporacircneos em conexatildeo com as formas discursivas estudadas Temos portanto a preocupaccedilatildeo durante os estudos universitaacuterios de perceber claramente as semelhanccedilas e diferenccedilas entre os gecircneros em geral e os gecircneros literaacuterios em particular

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agrave categorizaccedilatildeo dos gecircneros literaacuterios (sem se limitar a isso) e forma de discurso se refere ao que a gramaacutetica do texto chamou de tipos ou protoacutetipos (narraccedilatildeo descriccedilatildeo explicaccedilatildeo etc) e ao que Mikhail Bakhtin iniciou em 1929 (em Marxismo e Filosofia da Linguagem) com o nome de gecircnero do discurso Posteriormente esse autor nos mostra em Esteacutetica da Criaccedilatildeo Verbal (1979) que os falantes possuem um repertoacuterio espontacircneo de gecircneros desenvolvidos em interaccedilotildees orais e denominados ldquogecircneros primaacuteriosrdquo ou ldquotipos elementaresrdquo Essas satildeo formas estaacuteveis107 que se reconfiguram e se combinam nos gecircneros de discurso conhecidos como ldquogecircneros secundaacuteriosrdquo ou ldquotipos secundaacuteriosrdquo presentes nas produccedilotildees construiacutedas dos falantes por exemplo em textos escritos em particular os textos literaacuterios

Isso significa que a categorizaccedilatildeo de gecircnero eacute uma atividade espontacircnea que pode ser tratada pela linguiacutestica popular Com efeito a simples observaccedilatildeo das classificaccedilotildees espontacircneas dos falantes verdadeira praacutetica cultural e social mostra que eles participam ativamente das versotildees do mundo construiacutedas pelo discurso Citemos por exemplo os gecircneros de cinema que participam da identidade dos filmes (talvez mais do que o gecircnero do discurso participa da identidade das produccedilotildees verbais) e que ao influenciar a escolha dos espectadores cumprem verdadeiramente uma funccedilatildeo de organizaccedilatildeo de mundo como aponta C Kerbrat-Orecchioni (2003 on-line)

Classificamos os textos mas tambeacutem os filmes (Lyon-Poche admite por exemplo as seguintes categorias ldquocomeacutediardquo ldquocomeacutedia dramaacuteticardquo ldquocomeacutedia de accedilatildeordquo ldquocomeacutedia policialrdquo ldquothrillerrdquo ldquopsicodeacutelicordquo ldquoaventurardquo ldquosuspenserdquo ldquodramardquo ldquodrama psiacutequicordquo ldquoaventurardquo ldquolendardquo ldquocrocircnicardquo ldquoguerrardquo ldquodocumentaacuteriordquo ldquoretratordquo ldquoeroacuteticordquo ldquofantaacutesticordquo ldquoterrorrdquo ldquoficccedilatildeo cientiacuteficardquo ldquocartoonrdquo etc) Poreacutem se a classificaccedilatildeo do gecircnero tem uma vida dura eacute porque deve ter uma certa relevacircncia para os usuaacuterios dessas revistas e devem desempenhar um papel mais ou menos determinante na escolha do filme a que se refere e que estatildeo se preparando para ver

Em conclusatildeo parece-nos portanto razoaacutevel pleitear com vistas a uma efetiva aprendizagem dos gecircneros do discurso (ou gecircneros de textos e formas de discurso de acordo com os programas) uma abordagem relativa ao que J-C Beacco (2004 p 111) denomina uma ldquociecircncia selvagemrdquo da linguagem

Os gecircneros discursivos constituem a forma imediata em que a liacutengua eacute dominada pelos falantes eles satildeo capazes de usaacute-los e identificaacute-los Para os falantes o proacuteprio material discursivo eacute um objeto de referecircncia Essa capacidade de os falantes categorizarem o discurso decorre de uma elaboraccedilatildeo metalinguiacutestica comum da qual os uacutenicos elementos emergentes satildeo os nomes dos gecircneros Todos os nomes de gecircneros natildeo procedem dessa atividade ordinaacuteria de categorizaccedilatildeo mas a noccedilatildeo de gecircnero do discurso parece pertencer a essa atividade classificatoacuteria antes de qualquer classificaccedilatildeo cientiacutefica Dessa ldquociecircncia selvagemrdquo da linguagem a temos como prova de que a noccedilatildeo de gecircnero eacute desenvolvida e ativa desde o alvorecer da reflexatildeo linguiacutestica

107 NT No original ldquoce sont des formes stablesrdquo

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A LIacuteNGUA SEM CLASSES DA GRAMAacuteTICA ESCOLAR108

Sabemos que uma das especificidades da Franccedila na sua relaccedilatildeo com a liacutengua eacute o sentimento de unidade a liacutengua francesa una e indivisiacutevel como a Naccedilatildeo ndash eis uma representaccedilatildeo que parece resistir a todas as misturas a todas as multiculturalidades e a todos os cruzamentos raciais e no niacutevel estritamente linguiacutestico a todas as variaccedilotildees e as mudanccedilas O francecircs padratildeo ou a representaccedilatildeo que dele se constroacutei eacute na verdade a base de todo o ensino do maternal agrave universidade mas tambeacutem da maior parte dos trabalhos dos pesquisadores em linguiacutestica francesa Sozinho - ou mais ou menos sozinho - o campo da sociolinguiacutestica enfrenta a difiacutecil questatildeo da variaccedilatildeo difiacutecil do ponto de vista metodoloacutegico (coleta de dados identificaccedilatildeo das variantes) e do ponto de vista cientiacutefico (como dar conta sinteticamente do funcionamento do sistema da liacutengua a partir de dados heterogecircneos)

Esta representaccedilatildeo unitaacuteria tem obviamente uma funccedilatildeo social importante que natildeo deve ser questionada por razotildees praacuteticas e tambeacutem didaacuteticas sociais e ateacute ideoloacutegicas eacute realmente o francecircs padratildeo que deve ser ensinado na escola Mas seraacute que isso implica que nada deve ser dito sobre a variaccedilatildeo social em particular e que deve ser silenciado o fato de que na liacutengua como em outras situaccedilotildees existem fenocircmenos de classe Que existe um francecircs popular e um francecircs das classes dominantes Que as redes sociais (MILROY 1987 GADET 2007) os grupos e as comunidades que cruzam as classes de maneira complexa sem apagaacute-las tambeacutem se definem por suas formas de falar fortemente marcadas por determinismos sociais

Eacute esta questatildeo da variaccedilatildeo social no sentido mais classista do termo109 que gostaria de abordar aqui comparando as gramaacuteticas escolares com base nos saberes linguiacutesticos chamados ldquoacadecircmicosrdquo e nos saberes da gramaacutetica espontacircnea ou gramaacutetica popular (folk gramar como dizem os anglo-saxotildees) que adveacutem da linguiacutestica popular (folk linguistics) altamente desenvolvida nos Estados Unidos (BREKLE 1989 PRESTON NIEDZIELSKI 2000) mas apenas em sua infacircncia na Franccedila (PAVEAU 2005 2007 2008 PAVEAU ROSIER 2008) que integra totalmente o paracircmetro classista

Para onde foram as classes sociaisNatildeo poderemos deixar de enfatizar o bastante que as categorias adotadas pelas linguiacutesticas

empiacutericas e sociais natildeo satildeo imanentes mas diretamente alimentadas pela histoacuteria das ciecircncias e das ideologias Isso eacute particularmente verdadeiro para o conceito de classe social que foi quase eliminado do discurso das ciecircncias sociais como mostra R Pfefferkorn em um trabalho recente que retoma a noccedilatildeo marxista de relaccedilatildeo social (2007)

108 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A La langue sans classes de la grammaire scolaire Le franccedilais aujourdrsquohui 162 J David M- M Bertucci (org) Descriptions de la langue et enseignement 2008 p 29-40 Traduccedilatildeo de Mocircnica Magalhatildees Cavalcante (UFC) e Maria de Faacutetima Sopas Rocha (UFMA)

109 Eu uso o termo classista no sentido de ldquosocial com estratificaccedilatildeo em classesrdquo

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Classes sem classeNas ciecircncias sociais e consequentemente na sociolinguiacutestica o termo classe foi substituiacutedo

pelos de posiccedilatildeo e rede Em La variation sociale en franccedilais (2ordf ediccedilatildeo 2007) Gadet evita o termo e fala de ldquolocutores favorecidosrdquo e ldquodesfavorecidosrdquo mencionando ldquoo topo e a base da escala socialrdquo e usando o termo posiccedilatildeo social Ela ressalta que a classe (operaacuteria meacutedia alta) como ferramenta de anaacutelise eacute muito formal e redutora e explica que a sociolinguiacutestica em vez disso explora a noccedilatildeo de rede dando o exemplo da ldquorede de trabalhadoresrdquo tal como eacute analisada por exemplo por Milroy (1987) Os sociolinguistas falam sem problema de variaccedilatildeo diastraacutetica110 um termo teacutecnico que desfaz a dimensatildeo ideoloacutegica ou mesmo poliacutetica de classe

Mas ao mesmo tempo o termo classe social persiste e encontramos por exemplo classe trabalhadora classe meacutedia e classe alta na apresentaccedilatildeo do uso do ne (natildeo) de negaccedilatildeo para Gadet (2007) Entatildeo classe ou rede Como observa Pfefferkorn (2007) o desaparecimento da noccedilatildeo pode ter sido mais um escamoteamento ideoloacutegico do que uma necessidade cientiacutefica real e seu retorno aos trabalhos dos jovens socioacutelogos atuais sobre as desigualdades sociais que propotildeem um novo questionamento do aparelho teoacuterico marxista tenderia a provaacute-lo111

Seja como for quer sob a forma de classe de rede de comunidade ou de grupo de pares a estratificaccedilatildeo social da linguagem dificilmente aparece na gramaacutetica escolar o que constitui ao mesmo tempo um fato oacutebvio jaacute que estamos muito acostumados com a unidade legiacutetima do padratildeo e com uma inacreditaacutevel separaccedilatildeo entre a liacutengua aprendida e a liacutengua falada quer seja a dos alunos quer seja a de seus professores112

ldquoRicos e pobres de linguagemrdquoEacute um princiacutepio antigo que a escola natildeo deve ficar ligada agrave vida comum e que a linguagem

da escola natildeo eacute a da experiecircncia ordinaacuteria e natildeo eacute o caso de colocar isso em questatildeo natildeo eu natildeo ensino meus alunos em francecircs falado comum e meus colegas do ensino fundamental ou do ensino meacutedio tambeacutem natildeo Sim as manipulaccedilotildees da linguagem e a aprendizagem lexical e sintaacutetica realizada na escola natildeo tecircm como objetivo ldquoservirrdquo diretamente ao cotidiano mas sim construir uma base de saber linguageiro com a qual o aluno possa jogar no sentido teacutecnico do termo na sua praacutetica da liacutengua A divertida sessatildeo sobre o subjuntivo imperfeito pusse113 do filme Entre les Murs de L Cantet (Palma de Ouro em Cannes em 2008) bem o diz mas o que vocecirc quer que eu faccedila com ldquopusserdquo ndash disse uma aluna em siacutentese vocecirc me vecirc

110 A tipologia usual de variaccedilatildeo em sociolinguiacutestica inclui cinco criteacuterios diacrocircnico (de acordo com a eacutepoca) diastraacutetico (de acordo com as classes ou as redes sociais) diafaacutesico (de acordo com as situaccedilotildees de interlocuccedilatildeo eacute aqui que se situam os niacuteveis de linguagem) diatoacutepico (de acordo com as aacutereas geograacuteficas os dialetos por exemplo) e diameacutesicos (de acordo com a escolha do canal oral ou escrito)

111 Falamos muito em linguiacutestica nas aulas ateacute os anos 1980 por exemplo para Rey (1972) Gardin e Marcellesi (1974) Franccedilois (1983) e para Bourdieu evidentemente cujo artigo laquo Vous avez dit populaire raquo de 1983 publicado recentemente em Langage et pouvoir symbolique eacute frequentemente citado em obras contemporacircneas (2001) Para uma anaacutelise detalhada desta questatildeo e para uma comparaccedilatildeo com o emprego das noccedilotildees de classe de dialeto social ou dialeto de classe na sociolinguiacutestica americana ver Paveau (2008)

112 Os trabalhos e as reflexotildees sobre o ensino-aprendizagem da liacutengua na sua maioria apenas mencionam a liacutengua falada pelos alunos e haacute muito que me pergunto o que seria de seus professores que ao contraacuterio do que pensam os autores dos livros didaacuteticos e dos programas nem todos falam como Voltaire ou mesmo como Duras

113 NT O imperfeito do subjuntivo natildeo eacute mais usado na liacutengua francesa atual eacute defendido apenas pelos puristas que ateacute criam associaccedilotildees de seus defensores

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dizendo para minha matildee ldquoque je pusserdquo Natildeo obviamente pusse seraacute usado para outra coisa por exemplo para se apropriar do sistema da liacutengua

Mas parece-me que se deve fazer algo a respeito dessa questatildeo eminentemente social (classista) na minha casa diz a aluna natildeo soacute natildeo falamos pusse como nunca ouvimos falar estaacute fora da minha experiecircncia Ela eacute desinibida mas natildeo eacute o caso dos entrevistados de Marconot habitantes da ZUP ao norte de Nicircmes

bull bem todos noacutes falamos mal de qualquer maneira [] o verdadeiro francecircs natildeo haacute mais quem o fale hein

bull natildeo eacute uma liacutengua muito rebuscada [] digamos que as pessoas satildeo garotos ndash que vecircm da classe trabalhadora ou de outra bom bem ndash isso

bull o operaacuterio por si mesmo natildeo tem que ndash falar corretamente ah basta que ele se faccedila compreender

bull pessoas de origem muito muito popular [] que falam francecircs como ndash como eu diria ndash bem como como falam os proletaacuterios eh agraves vezes uma linguagem muito pouco trabalhada [] expressotildees grosseiras [] uma linguagem um pouco rude ( MARCONOT 1990 p 69)

Existem portanto ldquopobres e ricos de linguagemrdquo como diz Bentolila (2001 Rapport sur lrsquoillettrisme on-line) em seu leacutexico um tanto espetacular que atende a uma argumentaccedilatildeo a qual natildeo eacute a minha aqui

Os lsquoricos de linguagemrsquo se aviltam linguisticamente sem risco e com a melhor consciecircncia do mundo Mas seraacute que aqueles cujo vocabulaacuterio eacute limitado e impreciso tecircm mesmo um real poder linguiacutestico Natildeo eles satildeo os lsquopobres da linguagemrsquo condenados a se comunicar apenas no imediato e nas proximidades

Mostrarei mais adiante sem muita dificuldade visto que o assunto eacute tatildeo visiacutevel a olho nu que esses dados sociais classistas natildeo aparecem na gramaacutetica escolar nem aliaacutes na maioria das vezes na gramaacutetica universitaacuteria exceto como opccedilatildeo variacionista declarada

A dimensatildeo social em corpus escolar e em corpus popularA situaccedilatildeo sobre a qual eu proponho refletir eacute a seguinte

- nas classes encontram-se misturadas (em um ideal de mistura social) ou reunidas (na realidade das EPZs e dos estabelecimentos de ldquobairros difiacuteceisrdquo) competecircncias linguageiras socialmente desiguais em que se encontram (ou natildeo) ricos e pobres da linguagem burgueses e proletaacuterios do leacutexico priacutencipes e operaacuterios da ortografia

- na gramaacutetica escolar e nos programas que a determinam apenas a norma padratildeo estaacute presente com base em uma liacutengua ldquodesclassificadardquo ldquodessocializadardquo conforme o indica a observaccedilatildeo das gramaacuteticas contemporacircneas do ensino fundamental e do meacutedio ou

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o conteuacutedo dos novos programas de 2008114 Mesmo que os programas incorporem a dimensatildeo enunciativa ou proponham uma gramaacutetica fraacutestica mais tradicional a ausecircncia da variaccedilatildeo social eacute de fato a mesma

Sem questionar mais uma vez a funcionalidade do ensino da norma parece-me importante compreender os desafios e as consequecircncias do ensino de uma liacutengua agraves vezes pouco relacionado agraves praacuteticas correntes dos alunos e refletir sobre a integraccedilatildeo da dimensatildeo social da liacutengua no ensino Essa reflexatildeo tem sido liderada haacute muito tempo pela linguiacutestica popular que pode fornecer aos professores estruturas para construir praacuteticas pedagoacutegicas que incluam a variaccedilatildeo

A linguiacutestica popular corpus e dados115

A linguiacutestica popular eacute uma linguiacutestica praticada por natildeo-linguistas ou seja por locutores que natildeo adotam uma visatildeo cientiacutefica da liacutengua116 As anaacutelises do popular consistem em descriccedilotildees linguiacutesticas profanas (em relaccedilatildeo ao fenocircmeno da designaccedilatildeo e da relaccedilatildeo entre a liacutengua e o mundo agrave hierarquia entre escrito e oral agrave conformidade agraves regras da liacutengua etc) muitas vezes consistem em prescriccedilotildees comportamentais frequentemente normativas ou ateacute puristas (dizer vs natildeo dizer) e em intervenccedilotildees na liacutengua por intermeacutedio de usos defeituosos ou de neologismos que se tornam normas porque oferecem soluccedilotildees para dificuldades linguageiras (por exemplo verbos terminados em ndashtionner) Dentre essas praacuteticas a classificaccedilatildeo social eacute muito presente tipologia das palavras ldquovulgaresrdquo ou ldquoelegantesrdquo proibiccedilotildees lexicais ou sintaacuteticas condenando o ldquopopularrdquo declaraccedilotildees irocircnicas de expressotildees ldquoesnobesrdquo ou pronuacutencias abertas que identificam as classes dominantes

A partir de 1983 em um artigo muito famoso e frequentemente citado ldquoVocecirc disse popularrdquo Bourdieu (2001 p 137) clamava por uma ldquociecircncia rigorosa da sociolinguiacutestica espontacircneardquo que fazia eco aliaacutes agrave ldquoestiliacutestica espontacircneardquo que ele mencionava em Ce que parler veut dire em 1981 Essa sociolinguiacutestica espontacircnea eacute a linguiacutestica popular em suas dimensotildees sociais que se desenvolve em muacuteltiplos lugares de fala em conversas orais espontacircneas eacute claro mas tambeacutem nos muacuteltiplos blogs e foacuteruns sobre a liacutengua francesa (bem como em outras liacutenguas) nos guias de boas maneiras nas obras normativas e puristas sobre o bom francecircs aquelas que vecircm da ldquoalma francesardquo constituindo o conjunto uma verdadeira histoacuteria dos costumes linguageiros franceses

O ponto em comum dos elementos desse corpus eacute que eles oferecem comentaacuterios metalinguiacutesticos que colocam em jogo a subjetividade dos falantes Trecircs categorias de dados subjetivos estatildeo envolvidas as intuiccedilotildees as percepccedilotildees e os sentimentos linguiacutesticos Essas categorias de observaccedilatildeo permitem aos natildeo-linguistas construir observaacuteveis entre os quais escolhi examinar aqui as normas sociais da linguagem (correto vs incorreto) os marcadores

114 O corpus do estudo eacute apresentado no final do capiacutetulo As gramaacuteticas satildeo mencionadas por siglas no texto

115 Como a traduccedilatildeo do termo popular apresenta problemas de polissemia integrei o termo inglecircs ao francecircs e falo a partir de agora de linguiacutestica folk ou de gramaacutetica folk (PAVEAU 2008)

116 Para uma definiccedilatildeo detalhada consulte Brekle (1989) nosso artigo no n 151 de Franccedilais aujourdrsquohui (PAVEAU 2005) e para vaacuterios exemplos de todos os niacuteveis de anaacutelise linguiacutestica ver Paveau e Rosier (2008)

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sociais da linguagem (as categorias ldquopopularrdquo ldquoburguecircsrdquoldquoesnoberdquo etc concernentes agraves ldquoclassesrdquo mas tambeacutem agraves redes sociais ndash jovens comunidades profissionais geograacuteficas sociogeograacuteficas) e enfim as vozessocialmente descritas por acentos timbres e tipos de articulaccedilatildeo O meacutetodo eacute comparativo observo o que o corpus escolar e o que o corpus popular dizem sobre esses trecircs fenocircmenos linguageiros

A norma social a evidecircncia do francecircs padratildeoToda a complexidade e o interesse pela questatildeo da norma linguageira eacute por sua duplicidade

ou seja o conjunto de relaccedilotildees por vezes muito complexas que existem entre a norma social e a norma linguiacutestica Nas gramaacuteticas escolares consultadas natildeo haacute problema deste tipo a questatildeo da norma nunca eacute posta e a norma eacute pro(im)posta sem questionamento sem reflexatildeo sobre o erro e ateacute sem exerciacutecios a partir dos erros ldquoO ensino da gramaacutetica tem por finalidade favorecer a compreensatildeo dos textos lidos e ouvidos melhorar a expressatildeo de forma a garantir a justeza a correccedilatildeo sintaacutetica e ortograacuteficardquo informam os novos programas do ensino fundamental para CE2 e CM (p 14) Sim mas de que correccedilatildeo se trata A variaccedilatildeo social natildeo eacute mencionada e a giacuteria por exemplo que poderia fornecer recursos interessantes para a manipulaccedilatildeo da linguagem estaacute ausente ldquoA escola natildeo questiona o significado que o padratildeo tem para a crianccedila dando por certo que ela deseja adquiri-lo sem dizer por que eacute desejaacutevelrdquo (GADET 2007 p 105)117

Esse aspecto desejaacutevel do padratildeo e do correto por outro lado encontramos jaacute abundantemente descrito no corpus popular falar corretamente eacute desejaacutevel porque eacute falar como os que tecircm poder eacute dominar os coacutedigos sociais e ganhar poder ou conquistar um lugar na sociedade Todos os guias de etiqueta e todas as obras sobre o bom francecircs contecircm esse discurso mesmo que seja prescritivo e por vezes severamente conservador (Le Bon franccedilais de M Druon publicado em 1999 eacute um bom exemplo) O padratildeo eacute motivado por eles Isso pode ser visto por exemplo nestes comentaacuterios sobre o excesso de acentos circunflexos encontrados no site httplangue-frnet (ortografia preservada)

Tirem o chapeacuteu

Eacute o que se chama ldquoerro por hipercorreccedilatildeordquo exagerando vocecirc acrescenta acentos circunflexos onde natildeo deveria

TF1 gosta do circunflexo

- O nobre AmphigouriX (21 Pradaria do ano CCVIII 9 de junho de 2000 dc-dcg)

- Visto em Pernaut-13h [NDEacute telejornal da primeira emissora nacional francesa] uma jovem se preparando para a opccedilatildeo ldquobascardquo no bacharelado seu nome no subtiacutetulo seguido de future bacirccheliegravere Schtroumpf dizia ldquoVocecirc vecirc como as pessoas amam o circunflexo eles o colocam em todo lugarrdquo

117 Natildeo tenho espaccedilo para desenvolver este ponto mas como abordar a multiplicidade de textos literaacuterios franceses muitas vezes perfeitamente canocircnicos que encenam falares populares ou socialmente marcados sem introduzir em um momento ou outro da aprendizagem linguiacutestica a ideia de uma marcaccedilatildeo social da liacutengua

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- Maximilien (9-6-2000) ndash Eacute para ser mais seacuterio E funciona parece mais seacuterio Bem agrave primeira vista jaacute que de fato parece mais negligenciado que outra coisa

- Schtroumpfix (9-6-2000) ndash Bachotage et rabacircchage satildeo os dois seios do futuro bacharelado

- Cleacutement-Noeumll Douady (10-6-2000) ndash Previacuteamos que ela ia perder o bacharelado e entrar em uma faacutebrica de produzir lonas (nova moda boina basca em lona)

Mas o que eacute interessante eacute que o natildeo padratildeo o vernacular ou a giacuteria tambeacutem o satildeo a tradiccedilatildeo purista sempre ambiacutegua abre espaccedilo para a lsquotruculecircnciardquo da giacuteria para o prazer de xingar para o gozo da fala vulgar (PAVEAU ROSIER 2008 cap 8) Trata-se de uma visatildeo de liacutengua obviamente menos cientiacutefica mas muito mais rica a meu ver do que a das gramaacuteticas escolares

O risco imediato dessa constataccedilatildeo eacute alimentar os ensinos subjetivos esteacuteticos e natildeo ldquocientiacuteficosrdquo e ir na direccedilatildeo das propostas governamentais francesas dos uacuteltimos anos que reorientam a aprendizagem de liacutenguas para um normativismo tradicional mais apreciativo do que objetivo (Relatoacuterio de Gramaacutetica de 2006 programa de ensino fundamental 2008 programa de faculdade em consulta 2008) Embora o termo tradicional precise ser ressignificado os velhos Soucheacute e Grunenwald de minha infacircncia ndash para falar o dialeto orsenniano ndash propunha uma coluna de exerciacutecios irregulares intitulada ldquoBom usordquo Tinha por exemplo um exerciacutecio na forma de ldquonatildeo diga vs digardquo sobre o emprego do auxiliar avoir ou ecirctre (1961 p 61) No entanto esta questatildeo eacute estritamente social e histoacuterica como mostra C Blanche-Benveniste em um trabalho intitulado ldquoJrsquoai descendu dans mon jardinrdquo em que descobrimos que Littreacute admitia perfeitamente ldquojrsquoai resteacute un an agrave Grenoblerdquo credenciando assim o francecircs falado conhecido como ldquoerradordquo pelos trabalhadores da faacutebrica da Opel (BLANCHE-BENVENISTE 2003 p 319) Assim a norma mudou e o social influenciou a proacutepria sintaxe tantas vezes apresentada como uma estrutura intangiacutevel Uma excelente oportunidade a meu ver para integrar o diastraacutetico e o diacrocircnico no ensino-aprendizagem do francecircs com todas as adaptaccedilotildees necessaacuterias ao niacutevel dos alunos

A honestidade cientiacutefica nos obriga a tomar posiccedilotildees matizadas e difiacuteceis a questatildeo importante natildeo eacute nem a da riqueza da abordagem nem a do ensino a marcaccedilatildeo social da liacutengua eacute ensinada rigorosamente Acho que sim Impede o aprendizado fundamental do sistema linguiacutestico Acho que natildeo Entatildeo sim ao enriquecimento do repertoacuterio social dos alunos e natildeo ao abandono de criteacuterios racionais para o ensino da liacutengua os uacutenicos garantidores de seu ensino

Os ldquoniacuteveis de linguagemrdquo uma categoria mal definidaSe natildeo encontramos nenhum dado diastraacutetico em nossas gramaacuteticas por outro lado o

niacutevel diafaacutesico estaacute sistematicamente presente na forma de um esquema ou de uma paacutegina intitulada ldquoOs niacuteveis de linguagemrdquo em que a linguagem natildeo eacute realmente definida mas apresentada como relacionada a situaccedilotildees de interaccedilatildeo

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Na NGC no sexto niacutevel trecircs niacuteveis satildeo apresentados com exemplos coloquial boulot corrente travail formal labeur (p 314) A apresentaccedilatildeo eacute seguida de um desenvolvimento proscritivo ldquoComo evitar a linguagem coloquialrdquo em que se aprende que o niacutevel coloquial soacute pode ser usado na oralidade (retorno da velha confusatildeo entre oral e popular) e em que vaacuterias dicas satildeo dadas para aperfeiccediloar seu vocabulaacuterio (p 314 e segs)

- evitando o verlan118 as giacuterias as abreviaccedilotildees

Ufa Vocecirc viu o dinheiro que ele tem Vocecirc eacute louco Vocecirc estaacute ciente de sua fortuna

- evitando supressotildees de siacutelabas repeticcedilotildees

Ele tem uma boa scootrsquo Ele tem uma bela scooter

- usando nous em vez de on

A gente fez uma boa caminhada Demos uma boa caminhada

Atenccedilatildeo

Natildeo empregue nous e a gente na mesma frase Nous on ne bougera pas -gt Nous nous ne bougerons pas

Um pouco mais adiante dicas com exemplos tambeacutem satildeo dadas para ldquoevitar o relaxamentordquo

- A negaccedilatildeo completa e a pontuaccedilatildeo119

Jrsquote raconte pas la beacutecane Je nrsquoose pas te deacutecrire ce scooter

- A pergunta

Daacute para acreditar Vocecirc acredita no que ele estaacute dizendo

- A supressatildeo de verbos vicaacuterios como fazer

Tem que fazer isso de novo Vocecirc quer que eu explique para vocecirc de novo

Por fim explicamos ao aluno como escrever na linguagem formal ldquoA linguagem rebuscadardquo eacute usada na escrita e na oralidade nos textos literaacuterios nos discursos

- O vocabulaacuterio eacute rebuscado e as frases satildeo complexas Eu ignorava que vocecirc tinha adquirido uma motocicleta

- A gramaacutetica eacute sempre respeitada e utiliza certos modos verbais como o subjuntivo Eu deveria ter podido falar com vocecirc sobre isso

Eu natildeo gostaria de cair na facilidade do comentaacuterio irocircnico o leitor apreciaraacute a qualidade das ldquotraduccedilotildeesrdquo de um niacutevel para outro mas natildeo sem antes fazer as seguintes perguntas

118 Verlan eacute um tipo de giacuteria em que se invertem as siacutelabas ou as letras Vem de lacuteenvers que significa o inverso

119 O francecircs faz a negaccedilatildeo com dois elementos ndash ne e pas ndash e a linguagem popular tende a suprimir o ne

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- sobre a definiccedilatildeo de situaccedilatildeo quais satildeo as situaccedilotildees que requerem a substituiccedilatildeo por exemplo de moto por motocicleta Como eles satildeo identificados ou avaliados pelos alunos O paracircmetro social no sentido classista estaacute realmente ausente A quinta GPLE propunha mais ou menos a mesma coisa afirmando ldquoComo a situaccedilatildeo exigerdquo (tiacutetulo da paacutegina) e ldquoDe acordo com a situaccedilatildeo de enunciaccedilatildeordquo (tiacutetulo do paraacutegrafo)

- sobre a classificaccedilatildeo dos niacuteveis para onde passou o niacutevel da giacuteria chamado popularmente de vulgar grosseiro etc Os merde e os bordel e os trou du cul estatildeo fora dos dicionaacuterios Surpreendentemente eacute nos curriacuteculos do ensino fundamental que eles satildeo encontrados ldquoSaber o que eacute um registro de linguagem durante as trocas orais transpor qualquer enunciado espontacircneo de registros familiares giacuterias ou palavras baixas em um enunciado pertencente ao francecircs padratildeordquo (CM1 p 29) Evitadas mas ainda mencionadas as palavras ldquobaixasrdquo

A linguiacutestica popular natildeo tem esses pudores ou esses irrealismos como se gostaria A giacuteria eacute frequentemente analisada em seus corpora e natildeo faltam comentaacuterios sutis sobre os usos Assim P Daninos (1964 p 18-19) em Snobissimo menciona as alternacircncias diafaacutesicas das pessoas comuns

Eacute sem duacutevida nessas partes que a dosagem (vocabulaacuterio aviltado) de que falei alhures ndash do tipo Era divino tinha um daqueles avoacutes aiacute velhinho eacute muito simples o nascimento de Vecircnus pra melhor Acho que aquele desgraccedilado do Rubi ganhou um ingresso com ela engraccedilado ndash eacute o mais saacutebio

E os editores do Le Monde pertencentes agrave brilhante tradiccedilatildeo dos tipoacutegrafos franceses natildeo-linguistas apresentam regularmente anaacutelises de giacuterias presidenciais das quais aqui estaacute um exemplo

Sarkozy ou a loucura dos preguiccedilosos

Como uma estrela vinda de seu firmamento rodeada por seus sateacutelites ministeriais e prefeiturais o presidente da repuacuteblica derreteu na manhatilde do dia 22 de janeiro numa terccedila-feira junto a um grande grupo em Sartrouville natildeo longe de Paris para proferir suas palavras doutrinais Ouvidas estas poucas palavras veiculadas pela imprensa audiovisual durante uma breve interaccedilatildeo com os ldquojovensrdquo presentes no local e bastante maravilhados o seu ldquoplano de subuacuterbiordquo vai dar-lhes a oportunidade de trabalhar e de ter uma formaccedilatildeo ldquoporque a vida natildeo eacute para preguiccedilarrdquo Natildeo comentaremos sobre a sintaxe do presidente nem sobre a penetraccedilatildeo de seu pensamento mas apenas sobre o ldquoglanderrdquo verbo de rara elegacircncia que se tornou decididamente um carro-chefe do vocabulaacuterio governamental

O ldquoglandrdquo eacute antes de tudo o fruto do carvalho natildeo nos esqueccedilamos e esta palavra nos vem do latim glans glandis e muito antes disso de fato os linguistas a relacionavam com a raiz indo-europeacuteia gwele [hellip] O significado atual ldquoesperar em vatildeordquo soacute eacute atestado em 1941 (com forte conotaccedilatildeo sexual como ldquopunhetardquo) e glandouiller outro paradigma

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do verbo governamental dataria de 1938 Deixaremos de lado glandage glandule e glanduleux que existem mas ainda natildeo foram incorporadas ao discurso do Eliseu

Em conclusatildeo diremos que um novo direito do povo estaacute na mira do poder o ldquodireito de vadiarrdquo Mas que os jovens possam sempre responder com soberba ao presidente parafraseando F Mauriac ldquoO verdadeiro glandeur ignora as ofensas dos pequenosrdquo

(httpcorrecteursbloglemondefrcorrectors 24012008)

A mim parece que a gramaacutetica escolar poderia valer-se do fundo da linguiacutestica popular para apresentar uma visatildeo enriquecida da liacutengua notadamente por meio de marcadores sociais

As vozes uma gramaacutetica sem vozEsta observaccedilatildeo tambeacutem diz respeito agraves vozes Por voz entendo natildeo soacute o oral mas

todos os fenocircmenos marcados que o caracterizam acentos sociais timbres e articulaccedilotildees A sociolinguiacutestica acadecircmica leva em conta a oralidade e suas marcaccedilotildees sociais mas basicamente nas constataccedilotildees foneacuteticas

As falhas de ligaccedilatildeo mais comumente percebidas expressas na frase coloquial ldquoligaccedilatildeo incorretardquo satildeo os chamados erros ldquopataquegravesrdquo que conotam um discurso muito pejorativamente Satildeo chamados para os mais recorrentes de couro (fico muito confortaacutevel com isso) e de veludo (eu tambeacutem) (GADET 1989 p 78)

No corpus consultado a gramaacutetica escolar natildeo leva em consideraccedilatildeo o oral o que significa que natildeo compreendemos de forma efetiva ou de forma indireta as vozes do francecircs nos manuais didaacuteticos exceto a voz do professor e a dos alunos Uma uacutenica gramaacutetica a terceira DTP oferece um CD de aacuteudio com o livro do professor que serve para exerciacutecios regularmente propostos no manual Por exemplo

- Ouccedila com atenccedilatildeo esta conversa entre duas amigas Lou acaba de apresentar Julien uma jovem atraente mas vaidosa agrave sua melhor amiga Eacutemerance Usando o estilo indireto e a narrativa de falas relate em apenas algumas linhas o que as duas amigas estatildeo dizendo uma agrave outra Seu texto comeccedilaraacute da seguinte maneira Nesta passagem Lou pergunta a Eacutemerance se (2003 p 108 ao inserir letras em um texto)

- Em uma primeira audiccedilatildeo observe as subordinadas relativas nas passagens que vocecirc ouviraacute Em uma segunda audiccedilatildeo principalmente com a ajuda das pausas especifique quais satildeo os epiacutetetos e quais satildeo os apostos (DTP 3ordf 2003 p 185 sobre a relativa)

- O apresentador da estaccedilatildeo de raacutedio ldquoSOS solituderdquo que vocecirc vai ouvir agraves vezes tem uma maneira um tanto abrupta de falar com seus interlocutores Formule de maneira atenuada seus conselhos ou pedidos usando o condicional ou o imperfeito (DTP 3ordf p 145 sobre os modos e os valores modais)

Embora a questatildeo social natildeo seja colocada os alunos podem ter a oportunidade de atentar para sotaques regionais ou acentos sociais que os familiarizem com a variaccedilatildeo A gramaacutetica

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escolar atualmente em construccedilatildeo propotildee uma concepccedilatildeo bastante teatral do oral preocupada mais com a teacutecnica do que com a marcaccedilatildeo social

Consciente de que o oral deve ser ensinado o professor elabora exerciacutecios variados e progressivos que permitem aos alunos trabalhar a voz os gestos e a ocupaccedilatildeo do espaccedilo Eacute neste contexto que se realizam em particular a recitaccedilatildeo (em articulaccedilatildeo com os textos estudados) a leitura em voz alta a exposiccedilatildeo oral o relato as interaccedilotildees organizadas (Programme de collegravege en consultation 2008 p 7)

No lado popular abundam as notaccedilotildees classistas desde as vozes muito ldquoGuermantesrdquo descritas por Proust aos sotaques populares encenados por Fallet passando pelas excessivas aberturas de Marie-Chantal as vozes seus timbres e suas articulaccedilotildees satildeo frequentemente fixados Dois exemplos

- A proacutepria entonaccedilatildeo diferenciada parece hoje de tom ruim senatildeo ateacute duvidosa Natildeo eacute mais culpa de algumas locutoras de raacutedio cujas palavras parecem salpicadas de strass [] Quanto ao madhacircme que tantas vezes precedia minhas homenagens no tempo em que os a soacute saiacuteam de bocas bem feitas enchapelados com um acento circunflexo tornou-se prerrogativa das damas de companhia ou das companhias aeacutereas (Daninos 1964 p 16)

- Evitar tambeacutem ligaccedilotildees acentuadas demais Agraves vezes ateacute satildeo suprimidas ldquoCommen(t) allez-vousrdquo substituiu ldquoCommen-t-allez-vous rdquo Algueacutem que olhasse para o reloacutegio e dissesse ldquoJe mrsquoen vais il est troi-z et demierdquo seria um pouco ridiacuteculo no mundo e pedante laacute fora

Finalmente uma articulaccedilatildeo clara e uma leve gagueira muito ldquooxonianardquo (natildeo dizer ldquooxfordianardquo) eacute de uso para contar uma anedota ou uma histoacuteria de caccedila (JULLIAN 1992 p 197)

Quando ensinamos em lugares socialmente mistos ou nos chamados bairros difiacuteceis ou mesmo em aacutereas de alta imigraccedilatildeo como na minha Universidade Paris XIII em Villetaneuse soacute conseguimos ouvir um francecircs muito marcado por sotaques diversos para os quais categorias especiacuteficas nem sempre satildeo adequadas o famoso sotaque suburbano acompanhado do discurso de metralhadora eacute ao mesmo tempo social eacutetnico e geracional Os adultos que trabalham em um ambiente profissional o perdem

Que a gramaacutetica do francecircs seja confinada a uma escrita estranha parece-me representar o problema da realidade da liacutengua aqui de natureza social

ConclusatildeoOs materiais fornecidos pela linguiacutestica popular satildeo inestimaacuteveis e agraves vezes exclusivos

com os ldquolinguistas dominicaisrdquo realizando um trabalho em especial sobre as falas de classe que os profissionais nem sempre fazem (para uma apresentaccedilatildeo detalhada desse fenocircmeno ver Paveau e Rosier 2008)

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A abordagem social da liacutengua em sala de aula me parece necessaacuteria por razotildees linguiacutesticas (o francecircs padratildeo natildeo eacute o francecircs) mas tambeacutem por razotildees didaacuteticas (ensinar o padratildeo eacute necessaacuterio mas natildeo o suficiente) e eacuteticas (a escola natildeo precisa mentir sobre a natureza profundamente discriminatoacuteria do poder simboacutelico da linguagem) Tambeacutem eacute uma faca de dois gumes uma vez que se oferece agraves ideologizaccedilotildees do ensino do francecircs que se baseiam em avaliaccedilotildees normativas estiliacutesticas e ateacute pseudorreligiosas (a ldquomissatildeordquo da gramaacutetica amplamente descrita no relatoacuterio de novembro de 2006) Como sempre apenas uma formaccedilatildeo soacutelida de professores incorporando um discurso reflexivo sobre sua proacutepria variedade sem negaccedilatildeo ou desprezo permite manter uma posiccedilatildeo cientificamente rigorosa e pedagogicamente eficaz

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IMAGENS DA LIacuteNGUA NOS DISCURSOS ESCOLARES120

Ao falarmos sobre o discurso escolar tocamos num problema metodoloacutegico importante o que se entende por ldquodiscurso escolarrdquo Identificado restritivamente como discurso da escola e ateacute mesmo agrave custa de uma reduccedilatildeo espacial como discurso na escola o discurso escolar natildeo eacute impedido por si mesmo de se relacionar com aqueles que se encontram fora do espaccedilo escolar ou da instituiccedilatildeo escolar Em outras palavras o discurso na escola natildeo eacute apenas os discursos da escola seria preciso portanto poder compartilhar o que eacute dos pais e da famiacutelia o que depende de paracircmetros sociais e culturais o que se capta no discurso da miacutedia o que emerge de uma crenccedila popular etc E esses proacuteprios discursos interpenetram-se e entrelaccedilam-se formando um universo discursivo que se organiza de maneira diferente de acordo com os tempos as crises e os acontecimentos Falar de imagens de liacutengua em discursos escolares natildeo pode assim ser feito sem levar em conta essa polifonia essencial e a tarefa eacute muito importante para ser realizada no acircmbito de um capiacutetulo

Muitos trabalhos jaacute abordaram isso tanto fora quanto dentro da escola proporemos aqui algumas respostas poreacutem sempre muito ldquomonofocircnicasrdquo reduzindo os discursos escolares aos que satildeo produzidos no acircmbito da escola pelos alunos pelos professores pelos livros e pelos textos oficiais

Das representaccedilotildees complexas muacuteltiplas e impliacutecitasQuestionar as imagens da liacutengua eacute tentar identificar quais satildeo os traccedilos por meio dos quais

cada um traccedila um retrato mais ou menos preciso mais ou menos fixo e mais ou menos ciente de um sistema comum a todos esses traccedilos podem ser funccedilotildees valores ou propriedades Essas imagens satildeo portanto complexas porque deslizam vaacuterios paracircmetros de natureza diferente e muacuteltiplos porque pode haver tantas representaccedilotildees quantos satildeo os sujeitos falantes (ou grupos comunidades etc) na maioria das vezes no entanto eles estatildeo impliacutecitos porque este natildeo eacute nem de conhecimentos nem de saberes objetivaacuteveis mas sim de representaccedilotildees estruturantes Nas situaccedilotildees de ensino de uma disciplina como o francecircs as questotildees tornam-se ainda mais difiacuteceis pois essas representaccedilotildees estatildeo por natureza em constante circulaccedilatildeo

Discurso sobre a liacutengua e reflexividadeDiante da complexidade do fenocircmeno adotamos um meacutetodo indireto reunimos um conjunto

de trabalhos e pesquisas realizadas sobre questotildees de liacutengua na escola e procuramos ver o que elas revelavam em vatildeo e por inferecircncia dessas imagens difiacuteceis de alcanccedilar por um meacutetodo de investigaccedilatildeo direta Isso nos permitiu ampliar o campo de investigaccedilatildeo mas permanecendo dentro do acircmbito das fontes mencionadas anteriormente

120 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Images de la langue dans les discours scolaires Le Franccedilais aujourdrsquohui 125 Images et repreacutesentations de la langue Paris AFEF 1998 p 52-60 Traduccedilatildeo de Fernando Curtti Gibin (UFSCar) e Marco Antonio Almeida Ruiz (USP)

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Em relaccedilatildeo ao estatuto do curso de francecircs natildeo podemos repetir eacute irredutivelmente singular pois a liacutengua eacute reflexiva ldquoum indiviacuteduo seja aprendiz ou natildeo natildeo usa a liacutengua como instrumento de accedilatildeo sobre o mundo Tampouco se comunica por meio de um instrumento que seria essa liacutengua [] Ele pode evocar a realidade no uso de uma liacutengua e expressar seus pensamentos nessa liacutengua []rdquo(DAVID 1997 p 5) Ou seja o aluno natildeo analisa a liacutengua mas sim a sua liacutengua ele natildeo lecirc o texto de um autor que usa a liacutengua mas resolve na sua liacutengua a produccedilatildeo de quem fala a sua liacutengua As imagens da liacutengua estatildeo portanto intimamente relacionadas agraves imagens dos proacuteprios sujeitos

Quatro imagens dominantes emergem com bastante clareza de todo o discurso veiculado no campo escolar hoje (por volta dos anos noventa) Sua apresentaccedilatildeo sucessiva natildeo deve ocultar o fato de que muitas vezes manteacutem relaccedilotildees iacutentimas e que o todo forma em uacuteltima instacircncia uma macroimagem relativamente coerente da liacutengua Tampouco deve sua predominacircncia nos fazer esquecer de que outras imagens embora possam ser minoria ou indetectaacuteveis ainda existem de modo que podem com o tempo tornar-se dominantes

A liacutengua-mundo

Speculum mundi

A antiquiacutessima concepccedilatildeo de espelho da liacutengua do mundo estaacute muito presente nos alunos para os quais a liacutengua eacute usada para dizer o mundo a realidade a verdade das coisas Conforme Eacute Bautier (1995 p 184) ldquoas palavras parecem ter importacircncia apenas na medida em que para o aluno traduzem melhor a sua experiecircncia o que ele quer dizer sobre ela [] A linguagem escrita como a fala eacute lsquofeita pararsquo falar o lsquoverdadeirorsquo o que eacute o que aconteceurdquo Todos os professores de francecircs conseguem identificar essa ldquoposturardquo segundo Eacute Bautier nos vaacuterios exerciacutecios da disciplina nomeadamente na leitura e na produccedilatildeo de textos narrativos Essa aproximaccedilatildeo entre a liacutengua e a realidade entre o textual e o real tambeacutem se realiza na leitura de textos poeacuteticos que natildeo satildeo diretamente referenciais No acircmbito de uma obra sobre ldquopoesia vivardquo uma aluna do segundo ano justifica assim a escolha do poema ldquoMatildeerdquo de J Darras ldquoPorque amo as matildeesrdquo outro descarta um poema de W Cliff sobre a Beacutelgica explicando ldquoEu natildeo sou belgardquo e outro finalmente confessa que ldquoBeacutelgica e batatas fritas isso tem um aspecto pesado e desinteressanterdquo (PAVEAU PEacuteCHEYRAN-HERNU JOUVENCEAU 1997 p 84-85) A mesma postura eacute encontrada no trabalho de argumentaccedilatildeo no segundo e primeiro anos jaacute que os alunos agraves vezes resistem fortemente em defender pontos de vista dos quais natildeo compartilham que natildeo correspondem para eles agrave ldquoverdade das coisasrdquo a uma realidade que seria deles

Transmissatildeo e circularidadeOs professores franceses interessados na questatildeo conhecem bem essa representaccedilatildeo

resultante de um realismo tatildeo antigo quanto contiacutenuo121 Eacute uma questatildeo saliente para os

121 Lembramos que a querela entre nominalismo e realismo (para dizer as coisas rapidamente) eacute uma constante para especialistas da liacutengua da Antiguidade do seacuteculo XVIII Aleacutem disso ao agruparmos a ideia da liacutengua-mundo vemos a sua predominacircncia na linguiacutestica espontacircnea de locutores (Cf por exemplo BREKLE 1989)

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alunos e apresenta dificuldades em todas as aprendizagens relacionadas com a disciplina se a liacutengua natildeo reflete o mundo entatildeo o que eacute um texto um discurso um argumento De que ordem dependem o som a palavra a frase E acima de tudo o que eacute essa ordem mundial repentinamente privada de seu espelho Poreacutem o significado e a durabilidade dessa imagem que eacute obviamente o produto de vaacuterios legados escolares e extracurriculares natildeo satildeo explicitamente (suficientemente) levados em consideraccedilatildeo na forma de uma obra real e de um real questionamento sobre representaccedilotildees sobre o que jaacute se sabe dos alunos na formaccedilatildeo dos professores e no proacuteprio ensino De repente essa imagem persiste quando os alunos entram no Ensino Superior ouve-se por exemplo de alunos do segundo ano de Letras Modernas colocados em situaccedilatildeo de produzir um argumento o mesmo discurso do Ensino Meacutedio122 E quando esses alunos satildeo futuros professores a liacutengua-mundo escapando agraves perguntas ainda se espreita na prova oral de explicaccedilatildeo do texto da CAPES de Letras Modernas os candidatos muitas vezes confundem liacutengua e realidade em suas anaacutelises lexicais123 Dessa forma esta representaccedilatildeo repete-se de forma circular nos diferentes lugares e tempos de ensino e formaccedilatildeo Haacute neste campo das imagens da liacutengua um siacutetio a ser aberto e natildeo apenas em termos de validade cientiacutefica natildeo se trata de substituir com autoridade uma imagem cientificamente invalidada por outra legitimada pelo recurso agraves ciecircncias da linguagem Seria antes uma questatildeo de compreender qual eacute o lugar e a funccedilatildeo da liacutengua-mundo no universo das representaccedilotildees escolares de onde vem a legitimidade que confere a essa imagem uma longevidade tatildeo notaacutevel e sobretudo qual tipo de ensino permite e natildeo permite

A liacutengua-norma

A correccedilatildeo da liacutengua

Se a liacutengua eacute usada para dizer a verdade das coisas para os alunos parece que se deve dizecirc-la especialmente bem para os professores De acordo com os resultados da pesquisa realizada em 1993-1995 por Elalouf Benoit e Tomassone (1997 p 83) entre os futuros professores do segundo ano do IUFM eacute possiacutevel descrever o perfil do

formando-tipo de letras modernas que pode ser considerado a maioria entre os formandos [] Esse perfil eacute caracterizado por opiniotildees tradicionais sobre o ensino da liacutengua Para esses estagiaacuterios ensinar a liacutengua eacute ensinar a norma as expressotildees oral e escrita corretas [] o ensino gramatical eacute usado principalmente para dominar as expressotildees oral e escrita []

A imagem estatisticamente dominante na amostra determinada por essa pesquisa (274 estagiaacuterios dos IUFMs em Rennes Reims e Versailles) eacute portanto a de uma liacutengua padratildeo uma imagem que tambeacutem pode coexistir com a anterior

122 Essa marcaccedilatildeo reflete somente a nossa proacutepria experiecircncia e demandaria uma pesquisa para ser confirmada

123 Um exemplo entre outros sobre ldquoLe leacutezard amouroeuxrdquo [O lagarto apaixonado] de R Char um candidato indica que o poeta utiliza agraves vezes ldquopalavras simplesrdquo ldquopalavras do cotidianordquo dando como exemplo o cambalear [titube em francecircs] Interrogado sobre esses criteacuterios de apreciaccedilatildeo ele afirma que ldquoo cambalear natildeo eacute tatildeo estimado como atitude cambaleamos quando estamos embriagados por exemplordquo (seccedilatildeo 1998)

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A liacutengua restritaAqui novamente natildeo se trata de deplorar ou denunciar as concepccedilotildees tradicionais ou

gramaticais da liacutengua mas de se medirem os riscos do ensino do francecircs e de se compreender melhor o que o aluno pode fazer com a sua liacutengua quando ele recebe um ensino constituiacutedo por essa imagem para isso eacute uacutetil perguntar que padratildeo eacute esse exatamente e apreender o padratildeo escolar em seu funcionamento pedagoacutegico como fazem Founier e Veck (1995 p 53-58) em um artigo sobre ldquonoccedilotildees em francecircsrdquo Eles estudam as anotaccedilotildees das coacutepias dos alunos feitas por seus professores observando os usos imperfeitos sancionados na margem O estudo mostra que a norma escolar eacute especiacutefica na medida em que restringe o uso da liacutengua

[] a avaliaccedilatildeo dos enunciados dos alunos sobre os quais as anotaccedilotildees se referem mostra que na grande maioria dos casos os usos imperfeitos observaacuteveis nas coacutepias dos alunos natildeo constituem em si falhas Logo a escola autoriza apenas uma parte dos usos possiacuteveis A implementaccedilatildeo de noccedilotildees de gramaacutetica em uma praacutetica a avaliaccedilatildeo da escrita escolar conduz agrave constituiccedilatildeo de um padratildeo e nesse caso agrave limitaccedilatildeo dos usos e possiacuteveis efeitos de sentido (ibid p 54)

Essa restriccedilatildeo natildeo diz respeito apenas agraves formas sintaacuteticas mas se estende a todos os usos linguiacutesticos em um estudo sobre o estilo dos alunos Fournier e Allardi (1996 p 38) mostram que ldquoo exerciacutecio de redaccedilatildeo constitui como padratildeo uma categoria de enunciados determinados por criteacuterios mais seletivos do que aceitaacuteveisrdquo Com efeito as produccedilotildees dos alunos sancionadas por foacutermulas como ldquomal escritordquo ldquodesajeitadordquo ou ldquoevitarrdquo satildeo de fato enunciados corretos ao niacutevel linguiacutestico ldquoO padratildeo produzido pela escola surge assim como uma norma reforccedilada em relaccedilatildeo ao que eacute produzido por outras instituiccedilotildeesrdquo (em particular o dicionaacuterio) concluem os autores que acrescentam que nessas condiccedilotildees ldquoo aluno natildeo escreve a sua liacutengua em plena liberdaderdquo (ibidem p 39 ) Uma imagem da liacutengua baseada em padrotildees escolares de correccedilatildeo portanto apresenta problemas que vatildeo aleacutem de simples consideraccedilotildees axioloacutegicas ou esteacuteticas eacute o uso de sua liacutengua pelo aluno que estaacute em causa e ao final sua constituiccedilatildeo como sujeito sua relaccedilatildeo com o mundo e com o outro

A liacutengua invariaacutevelSe a liacutengua-norma eacute uma liacutengua limitada ela eacute tambeacutem fundamentalmente uma liacutengua

invariaacutevel uma ldquomonoliacutenguardquo exclusiva que fala somente de uma uacutenica e boa maneira Essa evidecircncia aparentemente simples eacute de fato como podemos observar problemaacutetica nos aspectos do ensino do francecircs na escola

A escrita a unicidade impliacutecita do modeloA norma escolar impotildee nos trabalhos escritos dos alunos particularmente na composiccedilatildeo

francesa do ensino fundamental uma maneira de escrita uacutenica um conjunto de estilos prototiacutepicos o que implica a rejeiccedilatildeo de outras formas de escrita Ateacute o momento nada que

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natildeo possa se justificar em especial pela necessidade de pedir emprestado para produzir um objeto normatizado no campo escolar (em outros tempos falariacuteamos da formaccedilatildeo discursiva) ou seja a composiccedilatildeo um estilo adequado a esse objeto Todavia a presenccedila dessa norma uacutenica coloca dois problemas importantes em questatildeo analisados por Veck (1996) em seu trabalho sobre as anotaccedilotildees de coacutepias dos alunos Em primeiro lugar segundo o autor a imposiccedilatildeo de um protoacutetipo estiliacutestico uacutenico da composiccedilatildeo parece arbitraacuterio em relaccedilatildeo agrave praacutetica dos alunos apoacutes ter identificado os estilos proibidos ele observa que

[] todas as maneiras de escrita rejeitadas pelo francecircs escolar natildeo satildeo descritas e nem listadas nos manuais os estilos jornaliacutesticos ou ldquoliteraacuteriosrdquo ou ldquocientiacuteficosrdquo satildeo reconhecidos intuitivamente pelo professor mas natildeo satildeo treinados pelos alunos para os distinguir nem para os praticar como conhecimento de causa Eacute porque se trata de uma questatildeo de praacutetica que se coloca a partir da observaccedilatildeo dessas anotaccedilotildees Eacute possiacutevel aprender o estilo dissertativo sem o situar em relaccedilatildeo a outros (VECK 1996 p 46)

Essa situaccedilatildeo natildeo realizada representa para ele um conjunto de bloqueios na evoluccedilatildeo da disciplina ldquoEacute por uma abordagem complexa discursiva realizada tanto por um plano reflexivo quanto para praacuteticas diversificadas que a disciplina poderia sem duacutevidas escapar da acusaccedilatildeo frequente promovida pelo encontro de atividades limitadas e esclerosantesrdquo (ibid p 46)

O oral clareza e distinccedilatildeoAs mesmas exclusotildees se produzem em relaccedilatildeo agraves produccedilotildees orais dos alunos Tomar a

oralidade e a diversidade dos usos eacute de certo modo uma atividade presente nas Instruccedilotildees oficiais recentes contudo a diversidade de usos eacute ainda considerada sobre o acircngulo de niacuteveis de liacutengua e de sua ldquomeacutetrica124rdquo e a norma escolar continua sendo a uacutenica jaacute que se trata para os alunos como um produto de uma fala ldquoaudiacutevel clara ordenada e regularrdquo (MEN 1997 p 8) Ou como afirma E Nonnon a oralidade natildeo eacute nem invariaacutevel nem linear ldquoporque trata de uma organizaccedilatildeo que se elabora passo a passo por aproximaccedilotildees na atividade produzida pela fala no qual noacutes nos corrigimos por ajustes sucessivos e regulamos por modalizaccedilotildees ou reajustes retrospectivos levando em consideraccedilatildeo a participaccedilatildeo de interlocutores para construir um espaccedilo de compreensatildeo comum Essa emergecircncia de significaccedilotildees na atividade conduzida pela enunciaccedilatildeo essa temporalidade sempre prospectiva e retrospectiva de ajustes para outras formas entram em conflito com a linearidade da linguagem em que vai e vem essa repeticcedilatildeo e esses curtos-circuitos que caracterizam a fala espontacircneardquo (NONNON 1996 p 59) Ela acrescenta que em tudo isso haacute dificilmente sentidos do falar da oralidade ao singular (natildeo mais que na escrita) porque ldquonatildeo haacute muacuteltiplas formas de atividade oralrdquo (ibid p 59) ela precisa que essas formas satildeo as vezes proacuteximas de certas atividades escritas que de forma contraacuteria podem apresentar caracteriacutesticas do discurso oral

124 ldquoEssa situaccedilatildeo (oral) qualquer que seja impotildee a cada vez suas proacuteprias normas e implica assim como consequecircncia uma meacutetrica progressiva de niacuteveis da liacutengua As variedades do francecircs mostram que existem diversos lsquobons usosrsquo que convivem e dominam os coacutedigos para participar plenamente da vida socialrdquo (MEN 1997 p 8)

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As variaccedilotildees da liacutengua o caso dos regionalismosldquoFalar a liacutengua do outro de forma livrerdquo como afirmam os escritores Fournier e Allardi eacute para o

aluno ser assegurado de natildeo incorrer em sanccedilotildees (no seio riacutegido da rejeiccedilatildeo natildeo explicitamente justificada) quando ele se inscreve nos usos da liacutengua que natildeo correspondem agrave norma escolar pois elas constituem variaccedilotildees em relaccedilatildeo aos usos legiacutetimos no exterior seria dessa forma promover uma sanccedilatildeo no tema e sobretudo nas operaccedilotildees realizadas para resolver de maneira individual os problemas linguiacutesticos Os trabalhos dos sociolinguistas mostram que dessa maneira eacute principalmente a concepccedilatildeo ldquomonolinguiacutesticardquo invariaacutevel que domina o lado dos professores e da instituiccedilatildeo e que as variaccedilotildees regionais satildeo insuficientemente consideradas porque satildeo desconhecidas Blanchet mostra por exemplo por meio de suas pesquisas sobre os documentos oficiais os manuais escolares e as representaccedilotildees de professores que ldquoa educaccedilatildeo fica majoritariamente normativa (um uacutenico coacutedigo) agraves vezes plurinormativa (vaacuterios coacutedigos) longe de proposiccedilotildees plurinormalistas (usos de vaacuterios coacutedigos) resultado do estudo cientiacutefico dos fatos linguageirosrdquo (FOURNIER ALLARDI 1995 p 49) Essa importante imagem de uma liacutengua invariaacutevel tem por ela mesma graves consequecircncias ldquoeacute uma distorccedilatildeo grave da educaccedilatildeo francesa tanto em relaccedilatildeo ao plano de conteuacutedos errocircneos quanto para a ideologia da exclusatildeo que ele instiga125rdquo (ibid p 49)

A liacutengua-silecircncio

O ldquodiaacutelogo magistralrdquo

Essa expressatildeo aplicada no padratildeo da reparticcedilatildeo da fala em aula por Daunay Marguet e Sauvage (1996 p 102) designa um tipo de troca em curso no qual ldquoa fala do aluno eacute essencialmente a resposta de solicitaccedilotildeesrdquo e tambeacutem satildeo ldquoas uacutenicas que alguns alunos sabem compreender sobre o seu localrdquo Ou seja nessa ldquocomunicaccedilatildeo desigualrdquo os outros permanecem em silecircncio Esse silecircncio dos alunos (trata-se do silecircncio que os impede de falar e natildeo de um silecircncio positivo escolhido pelo escutar e pela troca por exemplo) eacute tambeacutem o indiacutecio de uma imagem da liacutengua Para esses alunos a liacutengua eacute uma liacutengua-silecircncio e eacute composta pela constituiccedilatildeo do tema no campo escolar assim como a noccedilatildeo de aprendizagem na escola que se encontra afetada Eacute um conjunto de diversos professores colocando em discussatildeo dispositivos que lhes permitem passar do diaacutelogo magistral ao diaacutelogo mais curto se o modo da didaacutetica da oralidade eacute de fato largamente aberto o que constata que ldquoo problema das crianccedilas silenciosasrdquo eacute sempre aquele que os professores relevam majoritariamente quando os interroga sobre suas praacuteticas da oralidade (LE CUNFF 1994 p 21 sobre o primaacuterio)

O risco da liacutenguaEssa imagem da liacutengua em que os alunos mergulham representa um silecircncio que eacute bem

descrito por M Rispail (1995) isto eacute que coleta junto dos alunos informaccedilotildees mostrando

125 Para um tratamento mais aprofundado sobre essa questatildeo e para compreender como satildeo constituiacutedas na Franccedila as ldquoideologias diglossicasrdquo (diglossia) consulte Boyer (1990)

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que a imagem da liacutengua-silecircncio eacute parcialmente uma produccedilatildeo de representaccedilotildees nas quais falamos mais alto em particular a liacutengua-norma e a liacutengua invariaacutevel eles dizem por exemplo sobre a impossibilidade de produzir uma fala natildeo preparada e a oralidade descrita no IO do coleacutegio eacute a fala invariavelmente ldquoaudiacutevel clara ordenada regularrdquo que exclui o que D Bucheton (1996 p 6) chama de ldquorascunhos verbaisrdquo eles exprimem tambeacutem o medo da sanccedilatildeo dos professores e dos colegas de sala o medo de natildeo impor a ldquoboa falardquo o que eacute adequado ao campo escolar Eacute preciso para prolongar essa exploraccedilatildeo poder mesurar o degrau da violecircncia desse silecircncio dos alunos violecircncia dirigida contra a instituiccedilatildeo e seus representantes o silecircncio dos alunos pode tambeacutem constituir uma reversatildeo de valores da instituiccedilatildeo escolar lugar da ldquomeacutetrica da liacutenguardquo por excelecircncia Eacute preciso tambeacutem poder compreender o que diz a ldquofala sufocadardquo do sujeito silencioso Frequentemente colocado sobre a conta das famosas lacunas e dificuldades acumuladas ao longo do curso escolar o silecircncio sempre se constitui todavia como um discurso sobre o modo em que o sujeito institui sua autonomia em relaccedilatildeo agrave outra parente colega de classe ou professor Entretanto essa abordagem supotildee o inverso ao sujeito e natildeo como uma ferramenta exterior em que eacute preciso adquirir uma ilusatildeo sobre a ldquomeacutetricardquo

Funcionalidade das imagens da liacutenguaLiacutengua-mundo liacutengua-norma liacutengua invariaacutevel e liacutengua-silecircncio satildeo imagens de liacutengua

dominantes em que noacutes natildeo podemos nos contentar de fazer um uacutenico objeto de contestaccedilatildeo ou um uso simplesmente explicativo Se sua identificaccedilatildeo permite explicar certos passos linguiacutesticos dos alunos e dos professores satildeo levadas em consideraccedilatildeo suas ldquofunccedilotildeesrdquo no campo escolar que promove uma verdadeira reflexatildeo sobre a liacutengua Funccedilatildeo econocircmica da imagem da liacutengua-mundo em que a conservaccedilatildeo salva os custos e em especial o que eacute uma verdadeira questatildeo sobre a reflexividade da linguagem e das modificaccedilotildees que ela implica na abordagem de textos literaacuterios sobretudo funccedilatildeo unificadora tambeacutem porque a representaccedilatildeo da liacutengua como espelho do mundo aparece na doxa da linguiacutestica espontacircnea que une um conjunto e usuaacuterios de uma liacutengua Funccedilatildeo ideoloacutegica das imagens da liacutengua-norma e da liacutengua invariaacutevel de muitas maneiras interdependentes impor o aspecto polido da liacutengua eacute apagaacute-la fazendo com que a instituiccedilatildeo corra o risco de todas as grosseiras Enfim funccedilatildeo de defesa da liacutengua-silecircncio defesa de um sujeito em que o relatoacuterio doloroso em relaccedilatildeo agrave liacutengua diz com abundacircncia a dificuldade de ldquotomar um lugarrdquo

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AS VOZES DO SENSO COMUM NOS DISCURSOS SOBRE A ESCOLA126

Senso comum ldquoManeira de julgar de agir comum a todos os homens (que equivale ao bom senso)rdquo A definiccedilatildeo do Petit Robert eacute uma definiccedilatildeo de senso comum (doravante SC) uma vez que o dicionaacuterio de liacutengua eacute o lugar de registro dos sentidos comumente aceitos por uma sociedade num dado momento de sua histoacuteria Ela eacute circular (comum) analoacutegica (que equivale ao bom senso) extensiva (ausecircncia de estabelecimento de criteacuterios) e perceptivo-comportamental (julgar e agir) Trata-se de uma primeira aproximaccedilatildeo possiacutevel da noccedilatildeo que completaremos ao integrar a dimensatildeo semacircntica do termo senso o SC teraacute para noacutes uma dupla dimensatildeo linguageira e perceptiva

O SC eacute o que podemos chamar de uma noccedilatildeo vaga que escapa agrave verificaccedilatildeo pelo verdadeiro e falso porque apresenta diversos graus de verdade a categoria ldquoSCrdquo integra mais ou menos certos elementos segundo a escala de apreciaccedilatildeo dos locutores sendo que esta uacuteltima se baseia na escala do que eacute comum ou natildeo Por exemplo determinado proveacuterbio bem naturalizado nos usos caberaacute plenamente na categoria enquanto determinada representaccedilatildeo de uma profissatildeo ou de uma nacionalidade seraacute sentida como mais ou menos partilhada Isso ocorre pois o SC eacute tambeacutem uma noccedilatildeo silenciosa fundada sobre o compartilhamento de referecircncias e conveniecircncias no momento seraacute definido de maneira heuriacutestica como um conjunto de percepccedilotildees e produccedilotildees verbais marcadas pelos traccedilos coletivo estabilizado aceito e silencioso

Esse acordo de ldquotodos os homensrdquo como diz o Petit Robert funda a nosso ver a construccedilatildeo e a circulaccedilatildeo do sentido em discurso eacute a condiccedilatildeo de sua eficaacutecia e mesmo de sua existecircncia Eacute como tal que gostariacuteamos de explorar aqui seu funcionamento depois de ter situado o SC no largo paradigma das noccedilotildees que nomeiam as partilhas silenciosas explicaremos por que ele nos parece um conceito central e operacional em anaacutelise do discurso aplicando-o num corpus de ensaios para o grande puacuteblico sobre a escola

1 Pequeno percurso do SC e das noccedilotildees vizinhas

11 Os dois paradigmas

Os fenocircmenos dotados dos traccedilos propostos acima podem ser classificados em dois paradigmas

126 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Les voix du sens commun dans les discours sur lrsquoeacutecole Pratiques 117-118 Metz CRESEF p 29-50 2003 Traduccedilatildeo de Mariana Luz Pessoa de Barros (UFSCar) e Tamires Bonani Conti (UFSCarFAPESP) Este artigo adota as retificaccedilotildees ortograacuteficas propostas pelo Conselho Superior da liacutengua francesa (JO 06121990) inclusive nas citaccedilotildees

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111 O paradigma linguageiro

Reuacutene produccedilotildees verbais como o clichecirc a ideia preconcebida o chavatildeo o lugar-comum o estereoacutetipo o toacutepos (identificaacutevel no plano do enunciado) a forma fixa o proveacuterbio a liacutengua de madeira a ldquofrase feitardquo (identificaacutevel no plano enunciativo)127

Todas essas manifestaccedilotildees estatildeo assentadas numa estabilizaccedilatildeo linguageira mais ou menos completa que permite uma coconstruccedilatildeo eficaz do sentido e uma circulaccedilatildeo faacutecil das produccedilotildees discursivas Natildeo satildeo essas as produccedilotildees que nos interessam aqui a natildeo ser por formas definitivamente estabilizadas e registradas como proveacuterbios o estabelecimento dos criteacuterios de identificaccedilatildeo eacute sempre forccedilado pois as formas fixas o satildeo relativamente agraves eacutepocas aos corpora agraves comunidades ideoloacutegicas culturais Ao localizar os clichecircs os lugares-comuns etc trabalhamos muitas vezes com o desconhecido dessas produccedilotildees e de seus produtores conforme o que eacute determinado pelos referenciais proacuteprios ao pesquisador De fato a forma fixa recortada na mateacuteria do discurso natildeo diz nada sobre seus traccedilos de SC Preferimos ouvir o que os proacuteprios discursos dizem sobre sua relaccedilatildeo com o SC e ver como os locutores constroem sua relaccedilatildeo com o silecircncio das partilhas semacircnticas

112 O paradigma perceptivo-cognitivo

Ao mesmo tempo perceptivo (representaccedilatildeo pelo espiacuterito de objetos exteriores) e cognitivo (construccedilatildeo das crenccedilas e aquisiccedilotildees do saber) esse paradigma engloba numerosas noccedilotildees frequentemente imprecisas algumas vezes concorrentes e variadas quanto a suas origens disciplinares Em suma um labirinto terminoloacutegico e conceitual atraveacutes do qual procuraremos traccedilar uma trajetoacuteria do SC a partir de trecircs espaccedilos disciplinares

A filosofiaA filosofia fala de doxa ou de opiniatildeo comum (CAUQUELIN 1999) de SC (uma ceacutelebre

controveacutersia opotildee Moore e Wittgenstein sobre esse ponto) de crenccedila (JACQUES 1979 DENNETT 1990) de prejulgamento (DASCAL 1999) Detenhamo-nos por um instante sobre as origens filosoacuteficas da doxa e do senso comum noccedilotildees salientes na disciplina Doxa palavra grega eacute estabelecida como noccedilatildeo por Platatildeo particularmente em A Repuacuteblica Existe uma excelente arqueologia do termo e da noccedilatildeo em Cauquelin (1999) A autora lembra a composiccedilatildeo das duas ldquotriacuteadesrdquo platocircnicas

- a triacuteade superior do Belo (fundando a esteacutetica) do Bem (fundando a eacutetica) e do Verdadeiro (fundando a loacutegica) formulada pelo discurso filosoacutefico o Logos discurso unitaacuterio dos princiacutepios que se desdobram no domiacutenio da teoria lugar da permanecircncia das Ideias

- a triacuteade inferior da Tekhnegrave (a teacutecnica ou seja o uacutetil e agradaacutevel da arte) a Doxa (conjunto de ldquoregras ou receitas para um comportamento eficaz que possa ser conveniente agrave maioriardquo p 28) e a Verossimilhanccedila (resultante da dispersatildeo do Verdadeiro em verdades particulares e contingentes) Esse ldquotrio enganador que corresponde ao trio sublimerdquo (p 28) coloca-nos no

127 A lista eacute aberta Os trabalhos abundam nesse domiacutenio por exemplo Amossy (1991) Amossy e Herschberg-Pierrot (1997) Dascal (1999) Goyet (1996) Perrin-Naffakh (1985) Plantin (1993) e Schapira (1999)

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domiacutenio da praacutetica da accedilatildeo e da variaccedilatildeo ele eacute formulado pelo discurso doacutexico a partir do nome de um dos trecircs elementos

Eacute este o primeiro traccedilo importante da doxa eacute tanto a forma degradada do Bem dentro da ldquotriacuteade inferiorrdquo quanto o regime de fala apropriado a essa triacuteade Nesse sentido a sofiacutestica eacute uma linguagem doacutexica pois o sofista eacute para Platatildeo um teacutecnico da palavra Isso significa que a ambiguidade pesa sobre a noccedilatildeo desde suas origens entre regras de comportamento e atitudes linguageiras

A partir daiacute eacute tecida uma tradiccedilatildeo filosoacutefica um pouco subterracircnea constituiacuteda explica Cauquelin (que aliaacutes assimila senso comum e doxa) por ldquotodos esses que sentiram que alguma coisa acontecia do lado do SC da fala ordinaacuteria ou da argumentaccedilatildeo baseada em hipoacuteteses inverificaacuteveisrdquo (p 34) Antifonte Goacutergias Filoacutestrato Quintiliano E mais perto de noacutes Nietzsche Wittgenstei os filoacutesofos da linguagem os autores da Nova Retoacuterica os pragmaticistas os socioacutelogos do cotidiano os epistemoacutelogos

O SC aparece em diferentes contextos filosoacuteficos

G-Eacute Sarfati em seu Preacutecis de pragmatique (2000a cap 6 ldquoLrsquoideacutee drsquoune pragmatique des normesrdquo) lembra que o senso comum eacute a traduccedilatildeo de koinegrave aesthegravesis estabelecido em Da alma por Aristoacuteteles como uma ldquofaculdade [que] permite operar uma siacutentese entre os perceptos dos cinco sentidosrdquo (p 101) A partir daiacute G-Eacute Sarfati distingue ldquoduas filiaccedilotildees de uma epistemologia do conceito de senso comumrdquo (p 101) uma que a toma por uma ldquoracionalidade comumrdquo e a outra que a leva para o lado da eficaacutecia das crenccedilas e da constituiccedilatildeo das opiniotildees (problema da ideologia) Eacute sobre a primeira filiaccedilatildeo que nos debruccedilaremos aqui a que constroacutei o SC como uma ldquoracionalidade comum antes de mais nada organizadora dos dados da percepccedilatildeordquo (p 100) Ela estabelece uma teoria do conhecimento Podemos dar como exemplo a controveacutersia MooreWittgenstein A posiccedilatildeo de G E Moore sobre os traccedilos daquilo que ele chama de ldquoa concepccedilatildeo do mundo oferecida pelo senso comumrdquo pode se resumir a essa declaraccedilatildeo128

[] se sabemos que satildeo caracteriacutesticas da ldquoconcepccedilatildeo de mundo oferecida pelo senso comumrdquo logo elas satildeo verdadeiras eacute contraditoacuterio defender que sabemos que satildeo traccedilos da ldquoconcepccedilatildeo de mundo oferecida pelo senso comumrdquo e que no entanto natildeo satildeo verdadeiras (MOORE 1985 [1925] p 146 grifos do autor)

A partir de sua criacutetica vigorosa da ldquocompulsatildeo filosoacuteficardquo (i e a ilusatildeo da posiccedilatildeo de destaque do filoacutesofo a partir da qual ele crecirc poder enunciar a verdade) L Wittgenstein critica G E Moore por dar agraves verdades do SC um valor absoluto agrave maneira da triacuteade platocircnica superior podemos dizer L Wittgenstein encontra-se de fato ao lado de um relativismo integral (para ele a dimensatildeo pronominal da verdade eacute o Noacutes) e as evidecircncias do SC estatildeo na praacutetica da linguagem no fluxo da vida Ele acusa G E Moore (para quem a dimensatildeo pronominal da verdade eacute o Eu) de realismo dogmaacutetico e metafiacutesico

128 Exceto quando mencionado todos os itaacutelicos nas citaccedilotildees foram feitos por noacutes

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A filosofia das ciecircnciasO SC eacute um objeto de reflexatildeo importante Para Popper (1972) as opiniotildees e crenccedilas

comumente aceitas constituem o ponto de partida universal do saber mesmo que as teorias propostas devam ser submetidas agrave criacutetica Os filoacutesofos das ciecircncias datildeo uma atenccedilatildeo especial agrave linguagem desenvolvem a ideia de que a experiecircncia do SC expressa na linguagem cotidiana deve servir de base para o discurso cientiacutefico teoacuterico de fato o valor de verdade dos enunciados da linguagem cotidiana eacute superior (em seu reconhecimento) agravequele dos enunciados da linguagem cientiacutefica (SCHUTZ 1987) Encontramos mesmo em Nagel (1961) a ideia de que a imprecisatildeo da liacutengua do SC permite a perduraccedilatildeo das crenccedilas (por causa ou graccedilas agrave dificuldade do controle experimental) enquanto o destino das teorias eacute morrer precocemente por falta de imprecisatildeo podemos dizer

As ciecircncias da linguagemAs ciecircncias da linguagem constroem outras abordagens de acordo com as subdisciplinas

do campo

ndash Na anaacutelise do discurso a noccedilatildeo de preacute-construiacutedo extraiacuteda de Henry (1974 1975) por Pecirccheux e Fuchs (1975) eacute o ponto de partida da problemaacutetica do interdiscurso

ndash Do lado da semacircntica integrada eacute traccedilada uma linha de pesquisa que trata da estereotipia na liacutengua teoria dos topoi (ASCOMBRE DUCROT 1983 ASCOMBRE 1995) teoria dos estereoacutetipos (ASCOMBRE 2001) teoria dos blocos semacircnticos e do paradoxo (CAREL DUCROT 1999)

As referecircncias anteriores mostram que nas ciecircncias da linguagem a questatildeo do SC eacute posta nos domiacutenios que integram segundo graus variados diversos paracircmetros extralinguiacutesticos (produccedilatildeo social cultural recepccedilatildeo etc)129 No entanto o SC como tal e com esse nome constitui raramente um objeto expliacutecito de anaacutelise Podemos citar os trabalhos de Sarfati de Larsson e nossa proacutepria abordagem que seraacute desenvolvida em 2

Sarfati trabalhando numa teoria das relaccedilotildees entre texto discurso e doxa propotildee uma ldquopragmaacutetica das normasrdquo (2002a) por meio de uma teoria linguiacutestica da doxa (2002b) Considerando o SC como um ldquoregulador ateacute mesmo um meacutedium semacircntico-pragmaacuteticordquo (2002b p 102) ele o define como ldquoo conjunto das representaccedilotildees simboacutelicas distintivas de uma formaccedilatildeo socialrdquo dito de outro modo uma ldquotoacutepica socialrdquo (p 103) Propotildee uma abordagem em quatro dimensotildees os dispositivos institucionais (dimensatildeo 1) vinculados a textos canocircnicos (dimensatildeo 2) determinam a toacutepica de uma sociedade (o SC dimensatildeo 3) que eacute composta por sua vez por uma ou vaacuterias doxas estruturadas em topoi ou ldquodispositivos de opiniatildeordquo (dimensatildeo 4) O postulado de partida dessa teorizaccedilatildeo eacute de que o sentido (objeto da semacircntica e da pragmaacutetica) se constitui a partir do SC (objeto de uma teoria da percepccedilatildeo)

Numa orientaccedilatildeo mais semacircntica Larsson (1997) traz a questatildeo do sentido para o centro do debate entre relativistas e objetivistas Para ele o sentido eacute equivalente ao SC que ele nomeia

129 Agrave exceccedilatildeo daqueles que remetem agrave semacircntica integrada

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ldquobomrdquo senso comum livrando-o de seus ouropeis pejorativos Propotildee uma ldquoconcepccedilatildeo do sentido como cogniccedilatildeo intersubjetivardquo (LARSSON 1997 p 287) que implica uma epistemologia da relaccedilatildeo

Da concepccedilatildeo do sentido como propriedade emergente tanto intersubjetiva quanto puacuteblica decorre entatildeo uma epistemologia que natildeo eacute nem aquela da introspecccedilatildeo nem aquela da observaccedilatildeo exterior A epistemologia do sentido podemos afirmar natildeo eacute nem uma epistemologia do eu nem uma epistemologia do eleela ou eleselas Eacute uma epistemologia do noacutes ou seja uma epistemologia do conhecimento interacional (Mead) da observaccedilatildeo participante (Boas Jakobson Bakhtin) da experimentaccedilatildeo dialoacutegica (Vygotsky Harreacute amp Gillet) e da pragmaacutetica transcendental (Appel Habermas) (LARSSON 1997 p 287-288)

2 O SC um conceito para a anaacutelise do discursoDe nossa parte frequentar os discursos de instituiccedilotildees (exeacutercito 2000 escola 2002

literatura 2001 2003) levou-nos a propor uma concepccedilatildeo de SC deliberadamente assentada em suas duas dimensotildees semacircntica e perceptivo-cognitiva a dimensatildeo semacircntica eacute a da coconstruccedilatildeo do sentido em discurso fundada num acordo silencioso cujo funcionamento procuramos entender a partir da articulaccedilatildeo da linguagem e da preacute-linguagem a dimensatildeo perceptiva eacute a dos quadros de crenccedila e de saber que configuram e prefiguram a experiecircncia humana e que informam profundamente os discursos dos locutores

21 Definiccedilatildeo

Definimos o SC como um conjunto de quadros de saberes e de crenccedilas que fornecem instruccedilotildees para a produccedilatildeo e a interpretaccedilatildeo do sentido em discurso Esses quadros possuem seis caracteriacutesticas

211 Compartilhamento coletivo e apropriaccedilatildeo individual

Os saberes e as crenccedilas do SC pertencem tanto agrave coletividade quanto ao indiviacuteduo Todo locutor pode se apropriar num Eu do sentido admitido na comunidade Em sua ceacutelebre ldquoApologie du sens communrdquo Moore (1925) explica que as verdades afirmadas em nome da ldquoconcepccedilatildeo do mundo oferecida pelo senso comumrdquo (por exemplo eu nasci um dia) podem ser apropriadas por diferentes locutores sem que sejam fixadas numa forma particular de enunciado pois satildeo formuladas em formas que ele chama de homoloacutegicas

212 Transmissibilidade

Essa propriedade eacute uma condiccedilatildeo de possibilidade da precedente para que esse vai e vem entre coletivo e individual possa existir eacute preciso haver possibilidades de transmissatildeo universal de saberes e crenccedilas Essa aptidatildeo para a transmissatildeo caracteriacutestica do SC eacute chamada de comunicabilidade por Kant que aliaacutes em Criacutetica da faculdade do juiacutezo faz dela uma prova da existecircncia do SC

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Conhecimentos e juiacutezos juntamente com a convicccedilatildeo que os acompanha tecircm que poder comunicar-se universalmente pois do contraacuterio eles natildeo alcanccedilariam nenhuma concordacircncia com o objeto [] Se poreacutem conhecimentos devem poder comunicar-se entatildeo tambeacutem o estado de acircnimo isto eacute a disposiccedilatildeo das faculdades de conhecimento para um conhecimento em geral [] porque sem esta condiccedilatildeo subjetiva do conhecer o conhecimento como efeito natildeo poderia surgir [] Ora visto que esta proacutepria disposiccedilatildeo tem que poder comunicar-se universalmente e por conseguinte tambeacutem o sentimento da mesma (em uma representaccedilatildeo dada) mas visto que a comunicabilidade universal de um sentimento pressupotildee um sentido comum assim este poderaacute ser admitido com razatildeo e na verdade sem neste caso se apoiar em observaccedilotildees psicoloacutegicas mas como a condiccedilatildeo necessaacuteria da comunicabilidade universal de nosso conhecimento a qual tem que ser pressuposta em toda loacutegica e em todo princiacutepio dos conhecimentos que natildeo seja ceacutetico (KANT 1993 [1790] sect 21 ldquoSe se pode com razatildeo pressupor um sentido comumrdquo)130

213 Virtualidade

Trataremos da virtualidade para enfatizar a dimensatildeo natildeo ou preacute-linguageira (de todo modo silenciosa isto eacute sem palavras expliacutecitas) do SC Se aprofundamos essa ideia do acordo impliacutecito sobre o sentido dos enunciados futuros e portanto sobre os conteuacutedos informativos preacutevios (crenccedilas e saberes) deparamo-nos com o espinhoso problema da natureza das proposiccedilotildees Dennett trabalhando sobre as crenccedilas em La strateacutegie de lrsquointerpregravete fornece uma boa siacutentese das diferentes concepccedilotildees de proposiccedilotildees

Existem de fato trecircs tipos de definiccedilotildees gerais de proposiccedilotildees na literatura

(1) As proposiccedilotildees satildeo entidades comparaacuteveis a sentenccedilas que possuem partes segundo certa sintaxe []

(2) As proposiccedilotildees satildeo conjuntos de mundos possiacuteveis Duas sentenccedilas exprimem a mesma proposiccedilatildeo somente se forem verdadeiras exatamente nos mesmos conjuntos de mundos possiacuteveis []

(3) As proposiccedilotildees satildeo como coleccedilotildees ou arranjos de objetos ou de propriedades no mundo (DENNET 1990 p 161-162)

Ele considera que todas essas posiccedilotildees apresentam o mesmo problema ldquoeacute esse fundo de intuiccedilatildeo que existe em relaccedilatildeo agrave possibilidade de uma apreensatildeo das proposiccedilotildeesrdquo (Ibid p 270) Sua abordagem eacute inteiramente diferente

Desde que reconheccedilamos que falar de proposiccedilotildees eacute apenas um colchatildeo heuriacutestico (Dennett 1969 p 80) uma aproximaccedilatildeo uacutetil (ainda que agraves vezes infiel) que eacute sistematicamente impossiacutevel tornar precisa podemos nos livrar daquilo que eacute essencialmente falso que

130 KANT Immanuel Criacutetica da Faculdade do Juiacutezo Traduccedilatildeo de Valeacuterio Rohden e Antoacutenio Marques Rio de Janeiro Editora Forense Universitaacuteria 1993

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consiste em dizer que toda informaccedilatildeo pode ser modelada a partir do fato de dizer ndash enviar um dictum de A a B [] (Ibid p 270 grifos do autor)

Isso o leva a formular uma definiccedilatildeo analoacutegica da proposiccedilatildeo que se adeacutequa bem agrave vagueza da noccedilatildeo de SC ldquoAs proposiccedilotildees entendidas como formas de ldquomedirrdquo a informaccedilatildeo semacircntica revelam-se mais parecidas com doacutelares que com nuacutemeros [] Natildeo haacute unidades reais naturais universais nem do valor econocircmico nem da informaccedilatildeo semacircntica (Ibid p 271 grifos do autor)

Diziacuteamos na introduccedilatildeo que a categoria ldquoSCrdquo integrava mais ou menos certos elementos a partir de uma escala de apreciaccedilatildeo relativa Os conteuacutedos proposicionais de SC tecircm a nosso ver as mesmas caracteriacutesticas que essa moeda da qual fala Dennett definida por sua virtualidade A questatildeo ldquoEsse enunciado pertence ao SCrdquo pode na verdade receber a mesma resposta que aquela dada por Dennet ao final de sua demonstraccedilatildeo ldquoO que vale uma vida de cabra Ou ainda onde e quandordquo (Ibid p 273)

214 Organizaccedilatildeo experiencial

Os saberes e crenccedilas do SC organizam a percepccedilatildeo individual do mundo e a construccedilatildeo dos conhecimentos Estabelecem a ligaccedilatildeo entre o interior e o exterior dado que configuram a percepccedilatildeo e o conhecimento do mundo para o sujeito Como aponta Goodman (1992 p 32) os mundos satildeo feitos tanto quanto encontrados ldquoSe [] os mundos satildeo feitos tanto quanto encontrados entatildeo conhecer eacute tanto fazer quanto dar conta [] Descobrir as leis implica redigi-las Reconhecer padrotildees consiste sobretudo em inventaacute-los e aplicaacute-los Compreensatildeo e criaccedilatildeo caminham juntasrdquo

A hipoacutetese do SC nos leva a adotar a posiccedilatildeo de um construtivismo moderado entre relativismo e objetivismo

215 Aproximaccedilatildeo

As crenccedilas e saberes de SC natildeo se submetem ao criteacuterio de verdade loacutegica agrave verificaccedilatildeo por demonstraccedilatildeo Remetem a uma verdade aproximativa Sua erradicaccedilatildeo que vem de uma longa tradiccedilatildeo na Franccedila das instruccedilotildees platocircnicas (Logos contra Doxa) ao espiacuterito do Iluminismo (luta contra os preconceitos) passando pela taacutebula rasa cartesiana pode ser equiparada agrave ldquoilusatildeo cartesianardquo como assinala Dascal (1999 p 115)

O preconceito sobre o preconceito impliacutecito nessa posiccedilatildeo eacute a crenccedila de que eacute possiacutevel com a ajuda de um meacutetodo satisfatoacuterio eliminar completamente os preconceitos pensar e argumentar a partir de digamos assim um grau zero de preacute-julgamentos e de preconceitos

216 Discursividade

O SC pode ser manifestado em discurso por meio de marcas epimetalinguiacutesticas e linguiacutesticas De fato os sujeitos constroem uma relaccedilatildeo com o SC em seus discursos com modalidades diferentes segundo as formaccedilotildees discursivas Nossa concepccedilatildeo de SC reencontra

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aqui parcialmente aquela de preacute-construiacutedo noccedilatildeo fundadora da anaacutelise do discurso francesa que Pecirccheux (1971 apud MALDIDIER 1990 p 153) seguindo Henry elaborava no comeccedilo dos anos 70 ldquo[] o ldquosujeito falanterdquo toma posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves representaccedilotildees das quais eacute suporte sendo que essas representaccedilotildees se encontram realizadas pelo ldquopreacute-construiacutedordquo linguisticamente analisaacutevelrdquo

A noccedilatildeo de preacute-construiacutedo estaacute intimamente articulada a um contexto epistemoloacutegico e poliacutetico especiacutefico (marxismo althusseriano inspiraccedilatildeo lacaniana) mas essa discursividade anterior agrave linguagem essa presenccedila do preacute-linguageiro no linguageiro nos parece uma propriedade partilhada pelo SC tal como o entendemos aqui

22 Manifestaccedilotildees discursivas

2211 A relaccedilatildeo com o SC uma praacutetica discursiva

Nossa questatildeo eacute a da relaccedilatildeo com o SC construiacuteda no discurso Nosso trabalho visa a contribuir com uma teoria da praacutetica discursiva dimensatildeo inserida na origem da anaacutelise do discurso (em particular por Pecirccheux) e relativamente apagada a nosso ver na anaacutelise do discurso atual131

Os discursos de fato constroem o sentido a partir de dados experienciais natildeo linguageiros (costumes haacutebitos crenccedilas quadros perceptivos e cognitivos) Esses dados satildeo taacutecitos eles natildeo precisam ser expliacutecitos e de qualquer forma natildeo estatildeo abertos agrave explicitaccedilatildeo (a possibilidade da explicitaccedilatildeo eacute segundo Dennett o que diferencia o taacutecito do impliacutecito)

Natildeo seraacute portanto o caso de ldquotraduzirrdquo as proposiccedilotildees que constituem os saberes e crenccedilas de SC mesmo a tiacutetulo heuriacutestico O que nos interessa eacute ao contraacuterio seu estado virtual e preacute-linguageiro na medida em que informa os discursos que permanecem prioritariamente nosso objeto Em conformidade com a nossa definiccedilatildeo buscaremos ver como as instruccedilotildees do SC se manifestam discursivamente

222 Os dois SC

Na perspectiva de estudo sobre corpus a noccedilatildeo de SC eacute construiacuteda por dois discursos portanto por duas visotildees diferentes

ndash Discurso 1 o discurso ldquocientiacuteficordquo do pesquisador que adota uma perspectiva funcional visando agrave anaacutelise a partir de um SC1 definido anteriormente no seio de uma elaboraccedilatildeo teoacuterica

ndash Discurso 2 o discurso dos locutores do corpus que se baseiam num SC2 cuja definiccedilatildeo eacute elaborada na praacutetica do discurso

131 A publicaccedilatildeo recente de dois dicionaacuterios de anaacutelise do discurso (DEacuteTRIE et al 2001 MAINGUENEAU CHARAUDEAU 2002) parece-nos o signo cientiacutefico e institucional de um posicionamento atual dos discursivistas no campo da ldquoteoria da teoriardquo

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O fenocircmeno interessante eacute que esse discurso 2 costuma se apresentar (e eacute particularmente o caso dos ensaios para grande puacuteblico sobre a escola escritos majoritariamente por filoacutesofos) com a ldquocientificidaderdquo do discurso 1 Acreditamos que haja duas consequecircncias decorrentes disso

ndash Do ponto de vista metodoloacutegico o risco de confundir os dois discursos eacute grande O trabalho do analista deve entatildeo conservar a profundidade do campo traccedilada pelas duas concepccedilotildees do SC e evitar confundir os dois niacuteveis sob pena de projetar um sobre o outro

ndash Do ponto de vista teoacuterico eacute interessante entender a pretensatildeo cientiacutefica do discurso 2 como a formulaccedilatildeo de uma teoria popular do SC Popular aqui quer dizer ldquoespontacircneardquo no sentido em que falamos de uma linguiacutestica ou de uma fiacutesica ou de uma psicologia popular Se como explicam os filoacutesofos das ciecircncias a experiecircncia do SC eacute o ponto de partida da teoria cientiacutefica entatildeo a teoria popular do SC que os corpora constroem parece-nos um bom ponto de partida para uma teorizaccedilatildeo linguiacutestica do SC

223 Os trecircs patamares de anaacutelise

Propomos uma aproximaccedilatildeo em trecircs niacuteveis (preacute-discursivo metadiscursivo discursivo) fundada na presenccedila de marcas no discurso

ndash Niacutevel preacute-discursivo O SC discursivizado estaacute ancorado no espaccedilo preacute-discursivo dos conhecimentos preacutevios partilhados por uma comunidade discursiva (as ldquoproposiccedilotildeesrdquo)

ndash Niacutevel metadiscursivo Os comentaacuterios dos locutores sobre a natureza de seu discurso (plano autodiscursivo) ou daquele do outro (plano alterdiscursivo) explicitam sua relaccedilatildeo com o SC

ndash Niacutevel discursivo A relaccedilatildeo com o SC se constroacutei a partir de certo nuacutemero de agenciamentos formas do jaacute-laacute convocaccedilatildeo da liacutengua manifestaccedilotildees enunciativas elaboraccedilotildees cognitivo-textuais

3 Os discursos sobre a escolaExploramos aqui uma parte dos ensaios sobre a escola publicados na volta agraves aulas de

1999 Retivemos nove dos trinta publicados a partir de um criteacuterio de representatividade relativa (e muito aproximativa) satildeo os que tiveram a maior repercussatildeo midiaacutetica O quadro dos debates eacute bem conhecido e goza de uma boa permanecircncia desde os anos 70 (reforma Haby) de forma breve a estrutura profunda eacute aquela da disputa entre Antigos e Modernos e as estruturas de superfiacutecie evoluem com as condiccedilotildees histoacutericas e sociais (PAVEAU 1999 2001) Em 1999 assumem a forma de uma oposiccedilatildeo entre ldquoRepublicanosrdquo (defensores da Escola da Repuacuteblica) e ldquoReformadoresrdquo (partidaacuterios de uma evoluccedilatildeo da escola) oposiccedilatildeo formulada pelos ldquoRepublicanosrdquo132 O corpus eacute o seguinte

132 A grande maioria dos ensaios para grande puacuteblico sobre a escola contesta as reformas e as estruturas educacionais atuais Isso indica que a origem da fala puacuteblica sobre a escola eacute no geral protestadora e contestadora Isso significa tambeacutem a nosso ver que o discurso do SC sobre a escola na Franccedila eacute informado por essa criacutetica permanente Com exceccedilatildeo de raras figuras midiaacuteticas como P Meirieu os ldquoReformadoresrdquo produzem preferencialmente obras cientiacuteficas oriundas de trabalhos universitaacuterios de difusatildeo evidentemente menos massiva que os ensaios para o grande puacuteblico

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COUTEL C Que vive lrsquoeacutecole reacutepublicaine Entretien avec P Petit Textuel ldquoConversation pour demainrdquo 120 p

JAFFRO L RAUZY J-B Lrsquoeacutecole deacutesœuvreacutee La nouvelle querelle scolaire Flammarion 269 p

MICHEacuteA J C LrsquoEnseignement de lrsquoignorance et ses conditions modernes Castelnau Climats 144 p

MILNER P A bas les eacutelegraveves Albin Michel 189 p

MOLINIER G La gestion des stocks lyceacuteens Ideacuteologies pratiques scolaires et interdit de penser LrsquoHarmattan 232 p

MOREL G TUAL -LOIZEAU D Horreur peacutedagogique Parole de profs et veacuteriteacute des copies Ramsay 253 p

MORIN E La Tecircte bien faite Repenser la reacuteforme reacuteformer la penseacutee Seuil ldquoLrsquohistoire immeacutediaterdquo 156 p

PENA-RUIZ H LrsquoEacutecole Flammarion ldquoDominosrdquo 128 p

REY M La chute de la maison Ferry Arleacutea 142 p

Pudemos mostrar num outro trabalho sobre o mesmo corpus (2002) que esses discursos construiacuteam uma relaccedilatildeo negativa com o SC escritos majoritariamente por filoacutesofos de tradiccedilatildeo ldquoplatocircnicardquo esses textos ancoram-se no que M Dascal nomeia ldquoilusatildeo cartesianardquo e formulam de maneira redundante uma vontade daquilo que chamamos de ldquolimpeza cognitivardquo fazer taacutebula rasa das verdades aproximativas logicamente falsas expressas de um modo doacutexico para construir o discurso da verdade veiculada pelo logos Essa postura eacute formulada no niacutevel metadiscursivo em particular por caracterizaccedilotildees autodiscursivas (negaccedilatildeo da convocaccedilatildeo do SC e reivindicaccedilatildeo do discurso loacutegico) e alterdiscursivas (acusaccedilatildeo da convocaccedilatildeo do SC no discurso do outro) Haviacuteamos no entanto apontado brevemente que esses discursos natildeo mantinham as posiccedilotildees declaradas pelos metadiscursos os processos de validaccedilatildeo metaenunciativos do SC (expressotildees adverbiais como ldquonaturalmenterdquo ldquoevidentementerdquo etc) e o recurso frequente ao etimologismo mostravam que a legitimidade desses discursos tambeacutem estava fundada na convocaccedilatildeo do SC

31 As formas do jaacute-laacute

O discurso diz o jaacute-laacute exterior ao sujeito sem seu conhecimento declarando-se mestre de seu discurso (em termos althusserianos falariacuteamos do indiviacuteduo interpelado em sujeito) o locutor mascara tudo ao convocar os saberes e crenccedilas do SC Eacute o caso da questatildeo geneacuterica e da negaccedilatildeo natildeomais

311 A questatildeo geneacuterica

A questatildeo geneacuterica que a retoacuterica claacutessica chama de interrogaccedilatildeo oratoacuteria eacute uma forma que registra essa postura dupla do locutor assunccedilatildeo individual e apoio no SC M Ali Bouacha

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formula muito claramente essa posiccedilatildeo na qual podemos reconhecer aliaacutes o discurso de Moore sobre as verdades do SC que podem ser apropriadas por cada um

[] o enunciado geneacuterico acumula essa propriedade dupla e agrave primeira vista contraditoacuteria de expressar um engajamento e de permitir um desengajamento Engajamento pois buscamos impor uma proposiccedilatildeo contra outra proposiccedilatildeo que lhe preexiste de uma forma ou de outra Desengajamento pois agimos como se natildeo enunciaacutessemos nossa opiniatildeo pessoal mas a de todo mundo ou melhor ainda uma verdade fundada num ldquocogitamus racionalrdquo dito de outra maneira no que ldquoobriga a pensar de acordordquo (Bachelard) (ALI BOUACHA 1993 p 285)

As formas da questatildeo geneacuterica satildeo variadas mas todas tecircm em comum o fato de instalarem uma atmosfera de duacutevida a proposiccedilatildeo avanccedilada eacute imediatamente posta em debate em nome da evidecircncia do SC que instrui uma resposta impliacutecita Nos exemplos seguintes a criaccedilatildeo da duacutevida ocorre por meio da negaccedilatildeo do futuro e da negaccedilatildeo da consequecircncia133

Interro-negaccedilatildeo

ndash Cou 40 Informar-se e formar-se satildeo a princiacutepio incompatiacuteveis para ser vocecirc mesmo natildeo seria preciso dar um passo para traacutes e para cima (o que diz a palavra ldquoalunordquo)134

ndash Rey 9 Ele [P Meirieu] natildeo eacute funcionaacuterio O que o libera entatildeo da obrigaccedilatildeo de sigilo

Que+futuro

ndash Jaf 13 Quem acreditaraacute que hoje eacute realmente importante declarar a qual campo pertencemos ao clube dos que tecircm uma visatildeo moderna e ldquoinovadorardquo de escola ou ao sindicato dos corporativistas dos saudosistas e ldquoantiquadosrdquo

ndash Rey 33 Mas quem vai querer se ver reduzido agrave categoria de repetidor natildeo podendo transmitir mais que uma iacutenfima parte de um saber amado de um saber taxado de enciclopedismo e paradoxalmente definido como o inimigo do conhecimento Quem entatildeo vai querer ndash a menos que seja levado a isso pelo medo do desemprego ndash se resignar agrave polivalecircncia Quem entatildeo vai querer submeter-se agrave vigilacircncia dos delegados de classe e ao militarismo da administraccedilatildeo

Consequecircncia negada

ndash Morel 29 Acreditamos que nossos alunos estejam suficientemente armados para praticar a ginaacutestica intelectual dos sofistas

ndash Morel 130 Quem pode ser tatildeo cego a ponto de natildeo ver que a aprendizagem da verbalizaccedilatildeo passa pelo gesto tanto quanto pelo ceacuterebro

133 As referecircncias primeiras letras do nome do autor e paacuteginas (exceto no caso de Morel e Morin)

134 NT O autor retoma a relaccedilatildeo de ldquoeacuteleacuteverdquo traduzido por ldquoalunordquo com ldquoeacuteleverrdquo que pode ser traduzido por ldquoelevarrdquo ldquolevantarrdquo entre outros Natildeo conseguimos manter essa relaccedilatildeo na traduccedilatildeo

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Outras formulaccedilotildees satildeo de ordem leacutexico- ou retoacuterico-sintaacutetica eacute a combinaccedilatildeo da interrogaccedilatildeo com a expressatildeo expliacutecita de uma soluccedilatildeo alternativa impossiacutevel que produz o efeito geneacuterico

ndash Cou 27 De que outra forma explicar essa virada educativa e de exaltaccedilatildeo da juventude que leva agrave mudanccedila do nome do ministeacuterio em 1932 []

ndash Jaf 13 Adotar certa posiccedilatildeo sobre as questotildees de poliacutetica educativa eacute simplesmente escolher entre o coacutedigo Morse e o celular

ndash Rey 32 No entanto esse prolongamento eacute em essecircncia antidemocraacutetico que famiacutelias podem manter seus filhos nos estudos por quatro a cinco anos depois do vestibular

Nesses enunciados a combinaccedilatildeo se faz com o adveacuterbio distintamente a comparaccedilatildeo teacutecnica (coacutedigo Morse e celular) e o emprego de manter conduzido pela asserccedilatildeo precedente sendo que ela mesma se apoia no SC via a expressatildeo em essecircncia

312 A negaccedilatildeo em natildeo mais

A forma natildeo mais por definiccedilatildeo soacute pode ser construiacuteda a partir do caraacuteter partilhado de um enunciado afirmativo anterior Aleacutem disso a natureza da foraclusatildeo inscreve o enunciado na temporalidade o acordo anterior remete ao passado o que explica por que essa estrutura tambeacutem participa de uma estrutura transfraacutestica e polecircmica mais ampla o mito da decadecircncia ou mito do tempo anterior bem explorado por M Angenot por exemplo (1982) e que constitui uma das crenccedilas do SC dos discursos sobre a escola Alguns exemplos

ndash Cou 40 Se a escola natildeo transmite mais a sociedade corre risco de se repetir e de natildeo mais progredir

ndash Jaf 126 Na escola de hoje a maior parte dos aprendizados que passam necessariamente pela repeticcedilatildeo dos mesmos exerciacutecios ou que dependem da memoacuteria natildeo estaacute mais garantida

ndash Morel 127 Natildeo aprender mais nada Piada triste

ndash Pen 83 [] medimos a amplitude de uma renuacutencia assim programada da Escola frente agraves desigualdades sociais que natildeo satildeo mais combatidas []

ndash Rey 33 Agrave escola natildeo se coloca mais o objetivo de enriquecer o humano mas de tornaacute-lo consumiacutevel

32 O apelo agrave liacutengua

O apelo para o SC eacute frequentemente em nosso corpus um apelo para a proacutepria liacutengua que entatildeo aparece como o lugar mais consensual de acordo com o sentido das palavras (geralmente de uma perspectiva nomenclatural) Qualquer modificaccedilatildeo de significantes ou da relaccedilatildeo significante-significado eacute entatildeo considerada como uma mudanccedila da ordem natural

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e oacutebvia do senso ldquooficialmenterdquo comum Essa eacute a ortodoxia do SC que entatildeo serve como um argumento de peso em debates sobre a escola Encontramos vaacuterias manifestaccedilotildees desse apelo agrave ortodoxia da liacutengua aqui vamos lidar com a rejeiccedilatildeo o comentaacuterio lexicoloacutegico e a definiccedilatildeo lexicograacutefica espontacircnea135

321 A rejeiccedilatildeo

Fenocircmeno de natildeo coincidecircncia do discurso consigo mesmo segundo J Authier (1995) a rejeiccedilatildeo de um segmento (na maioria das vezes uma unidade lexical) por meio de aspas ou comentaacuterios como ldquoo que chamamosrdquo ou ldquocomo dizemosrdquo aqui sinaliza uma natildeo coincidecircncia do discurso com uma concepccedilatildeo de discurso ancorada na normatividade do SC o da liacutengua As rejeiccedilotildees do corpus geralmente se relacionam com as palavras atribuiacutedas aos reformadores pedagogia ciecircncias da educaccedilatildeo profissionalizaccedilatildeo formadores Exiladas num alhures ilegiacutetimo do discurso elas satildeo de fato marcadas com um desvio das normas preacute-discursivas compartilhadas e dominantes

Rejeiccedilotildees tipograacuteficas citaccedilotildees

- Cou 8 O que vocecirc precisa saber para ensinar eacute ldquopedagogiardquo e natildeo a mateacuteria que vocecirc estaacute ensinando

- Jaf 23 Natildeo eacute incomum encontrar na abundante literatura das ldquociecircncias da educaccedilatildeordquo essa mesma escansatildeo da histoacuteria de nosso sistema educacional

- Jaf 60 No estado atual das coisas os ldquoformadoresrdquo da IUFM natildeo podem ser professores experientes

- Morel 172 Sem falar na confusatildeo que impera na terminologia [] Entre a identificaccedilatildeo de ldquocapacidadesrdquo que pressupotildeem o domiacutenio de ldquohabilidadesrdquo por sua vez detalhadas em ldquocomponentesrdquo haacute como se confundir

Combinaccedilatildeo de citaccedilotildees + comentaacuterios

- Jaf 45 Se aleacutem disso a formaccedilatildeo contiacutenua que recebem sob a forma de estaacutegios ao longo da carreira eacute mais uma vez consagrada agrave ldquoprofissatildeo docenterdquo como dizemos complacentemente e nunca ao conteuacutedo do conhecimento transmitido entatildeo eles seratildeo sem duacutevida maus professores incapazes de ensinar completamente com clareza e distinccedilatildeo os primeiros elementos

- Jaf 79 O tipo de dissimulaccedilatildeo da dimensatildeo comercial de certos ldquoprodutos culturaisrdquo como satildeo chamados eacute uma das caracteriacutesticas mais surpreendentes de nossos Modernos

135 (9) Natildeo vamos voltar ao etimologismo tratado em Paveau (2002 p 170-172)

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322 O comentaacuterio lexicoloacutegico

Trata-se de enunciados que fazem comentaacuterios criacuteticos sobre os usos lexicais do campo oposto O outro eacute acusado de se utilizar da liacutengua uma liacutengua equivocada como instrumento de dominaccedilatildeo A explicaccedilatildeo do processo eacute clara no seguinte exemplo

- Cou 13 [Pergunta] O que vocecirc chama de ldquoretoacuterica pedagoacutegicardquo [Resposta] Este eacute o conjunto de processos pelos quais os educadores oficiais especialmente Philippe Meirieu conseguem oficializar seu leacutexico e portanto sua visatildeo das instituiccedilotildees de ensino e do homem em geral [] A liacutengua dos pedagogos muitas vezes eacute repetitiva amneacutesica e autoniacutemica (ou seja confundir o nome da coisa e a proacutepria coisa) [] Eacute a essa liacutengua que eacute conveniente resistir Os tempos democraacuteticos tambeacutem satildeo favoraacuteveis a essas linguagens que satildeo consensuais sem explicaccedilatildeo Essa eacute a consequecircncia do igualitarismo um desvio da igualdade As palavras parecem verdadeiras pelo simples fato de serem usadas

Esse tipo de comentaacuterio eacute baseado em uma representaccedilatildeo ideal de liacutengua ou seja uma ldquoboardquo liacutengua liacutengua perfeita que fala a verdade do mundo representaccedilatildeo ideoloacutegica eacute claro agrave qual se apegam outros esquemas representativos

- Cou8 [Prefaacutecio de P Petit] Palavras Seria errado natildeo ter cuidado com o vocabulaacuterio que alguns usam para transmitir seus pontos de vista O dispositivo de linguagem dos atuais renovadores eacute uma maacutequina de guerra contra as escolas seculares e a educaccedilatildeo puacuteblica [] Um sistema no qual ldquoalunosrdquo se transformam em ldquojovensrdquo as ldquoaulasrdquo se transformam em ldquoatividadesrdquo a ldquodisciplina escolarrdquo se transforma em ldquoconhecimentordquo Como natildeo levar a seacuterio essa revoluccedilatildeo linguageira que a ldquopedagogia contemporacircneardquo promoveu Cabe a Charles Coutel [] ter chamado nossa atenccedilatildeo [] sobre este novo obscurantismo de palavras e valores que eacute o trampolim principal da revoluccedilatildeo cultural em curso liderada por novos pedagogos

Revoluccedilatildeo linguageira obscurantismo revoluccedilatildeo cultural a ruptura da ordem natural e oacutebvia da liacutengua eacute uma transformaccedilatildeo da ordem do mundo Os comentaacuterios lexicograacuteficos denunciam de fato uma tentativa de imposiccedilatildeo de um ldquomaurdquo SC substituindo o ldquobomrdquo no qual se baseia a liacutengua da verdade educativa ldquoTomar gato por lebre mudar pouco a pouco o sentido das palavrasrdquo como diz P Rey (p 14) Eacute a identidade do SC consigo mesmo que eacute entatildeo ameaccedilada com o SC estamos no mesmo nesta coletividade que pode ser apropriada e transmitida pelo indiviacuteduo Modificar as palavras do SC eacute colocar o outro o estrangeiro na liacutengua E a seguinte observaccedilatildeo do mesmo autor aponta bem essa ameaccedila de alteridade

- Cou 13 Trata-se antes de mais nada de tornar a escola alheia a si mesma por meio de um esvaziamento as palavras se apagam pura e simplesmente a pretexto de que ldquoenvelheceramrdquo ou de que eles satildeo muito ldquotradicionaisrdquo [] Resistir a isso eacute lembrar o sentido das palavras reprimidas ldquoinstituirrdquo significa estabelecer e instruir Esquecer

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um termo como este eacute correr o risco de esquecer toda uma seacuterie de outras palavras instituiccedilatildeo instruccedilatildeo O esquecimento mais seacuterio atualmente incide sobre as palavras ldquoeducaccedilatildeo puacuteblicardquo

Encontramos em outros autores muitas notaccedilotildees anaacutelogas

- Jaf 163 A distinccedilatildeo entre ldquoconhecimento acadecircmicordquo e ldquoconhecimento escolarrdquo poderia ser considerada como uma das muitas curiosidades que estatildeo florescendo atualmente na nova linguagem dos reformadores

- Mol 58 Assim os exerciacutecios viraram liccedilatildeo de casa entatildeo transformamos um movimento envolvendo todo o corpo [] na obrigatoriedade de realizaccedilatildeo de trabalho duro imposto de fora [] Os exerciacutecios realizados em sala de aula satildeo chamados de controles verdadeira instituiccedilatildeo dentro da instituiccedilatildeo obsessatildeo de todos os alunos Da mesma forma o aprendizado se reduz agrave obtenccedilatildeo de notas

ndash Pen 82 O vocabulaacuterio do mercado ou do espetaacuteculo natildeo tem lugar na Escola No entanto ele laacute se introduz um pouco mais a cada dia Toda uma terminologia o confirma que se encontra tanto nos textos oficiais quanto nos discursos ambientais sobre a escola confirma isso Os alunos constituiriam os ldquonovos puacuteblicosrdquo ldquousuaacuteriosrdquo ateacute mesmo ldquoconsumidores de conhecimentordquo teriam uma ldquodemandardquo que deveria ser atendida por uma ldquooferta formativardquo escolas de segundo grau deveriam ser ldquoadministradasrdquo como ldquoempresas de educaccedilatildeordquo provavelmente com ldquoparceirosrdquo etc

- Rey 15 Perversatildeo da linguagem Reforma natildeo eacute abandono Reformar natildeo eacute vender suprimir ou destruir Reformar o correio natildeo eacute transformaacute-lo agraves escondidas em um banco [] Reformar o sistema de sauacutede natildeo significa fechar uns oitenta hospitais nas pequenas cidades [] Natildeo reformar eacute melhorar []

33 A construccedilatildeo semacircntico-lexical do SC

Se os autores denunciam esses ataques agrave ortodoxia da liacutengua eles portanto implicitamente se apresentam como os detentores e possivelmente os fiadores Diversos processos discursivos contribuem para a construccedilatildeo-restauraccedilatildeo do SC perdido

331 A definiccedilatildeo lexicograacutefica espontacircnea

Chamamos de definiccedilatildeo lexicograacutefica espontacircnea a construccedilatildeo em discurso de uma definiccedilatildeo subjetiva que natildeo se refere a uma ferramenta lexicograacutefica ou a um aparato teoacuterico e que portanto remete a uma lexicografia popular Trata-se de uma remediaccedilatildeo agraves deficiecircncias de linguagem mencionadas anteriormente os locutores se empenham na restauraccedilatildeo do SC das palavras aquele que eles acreditam que deve servir de base para uma verdadeira educaccedilatildeo Eggs (1994 p 114) sublinha a dimensatildeo coletiva e generalizante da forma da definiccedilatildeo que constitui um dos lugares mais eficazes da retoacuterica ao dotaacute-la de um poder de ldquotipizaccedilatildeordquo

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Uma definiccedilatildeo eacute uma foacutermula que expressa uma ou mais tipizaccedilotildees que se tornaram quase necessaacuterias Neste caso eacute uma questatildeo de habilidade e utilidade retoacuterica apresentar seu argumento evocando implicitamente a respectiva tipizaccedilatildeo ou para interpelar argumentativamente o auditoacuterio mencionando explicitamente a ldquotipizaccedilatildeo definitivardquo como no texto de Aristoacuteteles ldquoHomens desregrados ndash todos concordariam ndash natildeo se contentam com os favores de uma soacute mulherrdquo

Este ldquotodos concordariamrdquo constitui o natildeo dito e a forccedila argumentativa da definiccedilatildeo lexicograacutefica espontacircnea que estabelece um continuum entre a opiniatildeo (o aprofundamento do conhecimento) e a definiccedilatildeo (a fixaccedilatildeo do conhecimento) O enunciado definidor eacute particularmente adequado agraves realidades sociais que admitem maior convencionalidade do que as realidades naturais Isso explica por que o processo eacute frequente em nosso corpus As formas natildeo satildeo muito variadas sendo classificadas em duas categorias principais as definiccedilotildees que explicam a atividade definitiva do falante (modelo ldquoE chamo de Xrdquo) e aquelas que apresentam apenas uma predicaccedilatildeo (modelo ldquoX eacute rdquo) Os exemplos a seguir mostram como o quadro da definiccedilatildeo fixa por tipizaccedilatildeo um conteuacutedo argumentativo (polecircmico ou ideoloacutegico) servindo em suma como uma pequena faacutebrica do SC

Eu chamo de X

- Cou 12 Atualmente reina o pedagogismo chamo de ldquopedagogismordquo a arte de multiplicar os preacute-requisitos desnecessaacuterios para o ato de aprender e para o ato de ensinar

- Jaf 16 Examinamos portanto todos os conceitos administrativo-educacionais que estatildeo a cargo da escola que denominamos ldquoideologia escolarrdquo

- Mic 14 Entenderemos aqui por ldquoprogresso da ignoracircnciardquo menos o desaparecimento de conhecimentos essenciais no sentido em que costuma ser lamentado (e muitas vezes com razatildeo) do que o decliacutenio regular da inteligecircncia criacutetica []

- Mol 26 Eu chamo de ideologia escolar todas as falsas perguntas feitas falsos problemas tratados falsas respostas dadas a problemas reais e atuais na educaccedilatildeo que satildeo tambeacutem pistas para verdadeiras questotildees poliacuteticas pedagoacutegicas e eacuteticas e mesmo antropoloacutegicas enfim todas aquelas que dizem respeito agrave formaccedilatildeo do cidadatildeo e do homem para uma profissatildeo

X eacute ou X

- Cou 15 Da mesma forma ldquoaprendizagem fundamentalrdquo agora substitui ldquoconhecimento elementarrdquo sendo que aprendizagem eacute o domiacutenio de um simples saber-fazer e ldquofundamentalrdquo eacute um termo subjetivo que natildeo se refere a nenhuma objetividade transmissiacutevel Natildeo eacute a mesma coisa de forma alguma

- Cou 81 A Repuacuteblica portanto tinha por vontade natildeo educar mas instruir Quando a relaccedilatildeo entre esses dois termos eacute elucidada o ato de ensinar torna-se faacutecil de definir eacute a arte de indicar (signare ldquoindicarrdquo) conhecimento para mentes racionais ansiosas por aprender por si mesmas

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- Jaf 166 ldquoCultura cientiacuteficardquo eacute um discurso sobre a ciecircncia o que se obteacutem quando todo o conhecimento natildeo eacute internalizado mas apenas mencionado Uma metaciecircncia

- Morel 107 [Tiacutetulo do capiacutetulo] Cultura o que resta quando vocecirc natildeo aprendeu nada

- Morin 59 A filosofia natildeo eacute uma disciplina eacute um poder de interrogaccedilatildeo e reflexatildeo que incide natildeo soacute sobre o saber e sobre a condiccedilatildeo humana mas tambeacutem sobre os grandes problemas da vida

Um dos autores aliaacutes leva a praacutetica ateacute o fim ou seja a tipizaccedilatildeo ateacute o registro em dicionaacuterio

- Mol 36 Em breve em sua nova ediccedilatildeo Le Petit Robert escreveraacute na letra A Acadeacutemie ldquo1 ant escola fundada por Platatildeo 2 mod local de conviacutevio onde procuramos amar uns aos outrosrdquo

332 A derivaccedilatildeo em de- e re-

Sabe-se que a derivaccedilatildeo repetitiva em de- privativo eacute um dos processos do discurso panfletaacuterio (ANGENOT 1982) ou reacionaacuterio (ARNOLD et al 1995) Eacute acompanhada em nosso corpus por uma prefixaccedilatildeo em re- simeacutetrica agrave primeira esperada nesse discurso ancorado no mito da decadecircncia que quer que o tempo avance regredindo e que re-accedilotildees em re- sejam necessaacuterias Aleacutem disso o processo eacute saliente em dois dos tiacutetulos do nosso corpus A escola desocupada e A cabeccedila bem feita Repensar a reforma reformar o pensamento

Este tipo de derivaccedilatildeo nos parece revelar o apelo ao SC por trecircs razotildees semacircntica morfoloacutegica e estatiacutestica

Dimensatildeo semacircnticaComo a forma em natildeo mais a forma em de- logicamente eacute construiacuteda pela pressuposiccedilatildeo

da existecircncia da unidade natildeo derivada e de seu sentido positivo (de qualquer forma natildeo negativo) mesmo que se trate frequentemente de um efeito analoacutegico pois na realidade o circuito morfoloacutegico eacute mais complexo (10)136 O raciociacutenio eacute exportaacutevel para re- Os exemplos a seguir (entre as centenas de ocorrecircncias identificadas por cada forma de- e re-) constroem os saberes e as crenccedilas do SC irrigadas pela ideologia crepuscular (PAVEAU 1999)

De-

- Jaf 90 O primeiro e principal efeito do descontentamento com o meacuterito na escola

- Mic 11 A crise do que se costumava chamar de ldquoEscola Republicanardquo [] obviamente participa do mesmo movimento histoacuterico que aliaacutes desfaz as famiacutelias decompotildee a existecircncia material e social das vilas e bairros e em geral gradualmente leva consigo

136 (10) Ainda que decompor por exemplo seja construiacutedo a partir de compor deriva desvio decadecircncia descontente etc natildeo resultam de prefixaccedilatildeo direta (a palavra natildeo prefixada desapareceu ou nunca existiu em francecircs œuvreacute) N T A observaccedilatildeo diz respeito ao termo ldquodeacutesoeuvreacuteerdquo (ociosa) que traduzimos com o objetivo de manter o prefixo de que trata a autora por ldquodesocupadardquo

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todas as formas de civilidade que haacute algumas deacutecadas ainda marcavam uma parte importante das relaccedilotildees humanas

- Mol 159 Encontramos na escrita o mesmo fenocircmeno de deslocamento e desarticulaccedilatildeo do corpo e da liacutengua Temos que ler corpos de escritos sem esqueleto a-morfos que testemunham por escrito o colapso do corpo como uma relaccedilatildeo consigo mesmo com os outros e com as coisas

- Morel 99 Falta de domiacutenio da liacutengua dificuldades de compreensatildeo falta de retrospectiva e desconstruccedilatildeo do conhecimento satildeo os principais problemas observados

- Morin 20 Consequentemente o despojamento do conhecimento muito mal compensado pela vulgarizaccedilatildeo da miacutedia coloca o problema histoacuterico agora capital da necessidade de democracia cognitiva

- Pen 96 Tendecircncia perigosa porque a deslegitimaccedilatildeo dos mestres soacute pode desencorajaacute-los ainda um pouco mais

- Rey 16 Por vinte anos e mais temos trabalhado de forma aberta ciacutenica e implacaacutevel para degradar as condiccedilotildees sociais e morais de existecircncia para destruir os serviccedilos puacuteblicos

Re-

- Cou 93 A repeticcedilatildeo seria restaurada [] Esta medida chocaria alguns mas quando constataacutessemos que ela (re) colocava os alunos para trabalhar seria amplamente aprovada

- Jaf 52 Em vez de continuar na via escolhida seria preferiacutevel tentar retroceder ndash com cautela ndash a certos preconceitos entre os mais nocivos da ideologia escolar restabelecendo a merecida confianccedila dos atores do sistema e a seriedade e o rigor que sua formaccedilatildeo exige

- Morin 46 Ela [a literatura] deve restaurar sua plena virtude

- Pen 122 Revalorizar o amor pelo conhecimento contra os desvios formalistas e pedagoacutegicos parece essencial a este respeito inclusive na luta contra as novas formas de obscurantismo e irracionalismo

- Rey 41 [] todos aqueles que pensam que um sistema educacional soacute pode ser salvo mudando os meacutetodos de ensino e evitando uma restauraccedilatildeo moral

Dimensatildeo morfoloacutegicaQuando a derivaccedilatildeo eacute neoloacutegica e o neologismo aparece em uso (salvo aspas excepcionais)

em uma frase assertiva e se inscreve num grande paradigma de termos em de- bem registrados na liacutengua isso produz um efeito de naturalizaccedilatildeo da unidade inscrita de fato nas estruturas preacute-discursivas dos destinataacuterios do discurso (algo semelhante pode ser dito da derivaccedilatildeo

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em re-) Identificamos oito neologismos que satildeo ou especiacuteficos de um autor ou retomados de um livro no outro (um caso de desritualizaccedilatildeo tirado de M Gauchet)

- Cou 37 [] as raiacutezes da desinformaccedilatildeo puacuteblica nos uacuteltimos anos

- Cou 62 Como reconstruir esse poder espiritual nas democracias modernas Eacute oacutebvio que isso requer um (re)estabelecimento da virtude poliacutetica entre cidadatildeos [] mas tambeacutem uma (re) instituiccedilatildeo escolar

- Cou 71 Os republicanos portanto correm o risco de ldquose deslaicizarrdquo sem perceber

- Jaf 118 [] tanto se tornou evidente o risco de uma marginalizaccedilatildeo coletiva de setores inteiros da juventude

- Mol 133 [] o que estamos testemunhando hoje eacute uma desinstitucionalizaccedilatildeo do corpo no sentido de que o corpo eacute desmembrado deslocado incapaz de se sustentar incapaz de se sustentar no lugar incapaz de sustentar em seu lugar

- Mol 160 Haacute uma espeacutecie de desritualizaccedilatildeo da aprendizagem (leitura escrita contagem)

- Pena 119 A (re) legitimaccedilatildeo da Escola eacute claramente urgente

Dimensatildeo estatiacutesticaA alta frequecircncia de uso dessas unidades produz um efeito de naturalizaccedilatildeo por repeticcedilatildeo

Satildeo em nossa opiniatildeo ferramentas do que Moore chama de enunciados homoloacutegicos adequados para a apropriaccedilatildeo individual das verdades de SC aqui a verdade da decadecircncia e a necessidade de um despertar reparador repeticcedilatildeo coletiva da forma [de- ou re- + X] apropriaccedilatildeo individual do segmento X

333 A derivaccedilatildeo em ndash ismo o exemplo de pedagogismo

Pedagogismo eacute um neologismo agora instalado nos usos em todo caso aqueles que testemunham os discursos do nosso corpus A sufixaccedilatildeo em -ismo produz em certos contextos unidades afetadas pela desvalorizaccedilatildeo eacute entatildeo a ideia de um sistema fechado (poliacutetico ideoloacutegico etc) mais ou menos autoritaacuterio e intencional que emerge desse sufixo tornando-se um subjetivema Todos os empregos de pedagogismo em nosso corpus satildeo marcados negativamente no contexto como mostram os exemplos a seguir

- Cou 15 O pedagogismo tambeacutem tem a perigosa ambiccedilatildeo de mudar a sociedade mudando a escola

- Cou 57 A resposta de Philippe Meirieu concentra todas as confusotildees do pedagogismo

- Jaf 100 [] a desconstruccedilatildeo do ldquocurso magistralrdquo recentemente associado ao elitismo a fragmentaccedilatildeo do grupo e a individualizaccedilatildeo dos percursos enfim tudo o que faz a reivindicaccedilatildeo atual do pedagogismo eacute justificado pela criacutetica social da escola

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- Morel 116 Voltaremos a esta noccedilatildeo de competecircncia bem como a estes novos apoacutestolos dos ldquomeacutetodosrdquo armados de certezas que datildeo aula de boa vontade adeptos de uma religiatildeo pedagogista cujo credo se resume em um slogan tatildeo pretensioso quanto destrutivo aprender a aprender

- Pen 74 As derivas sociais que potildeem em perigo a realidade especiacutefica da Escola parecem agora bem mais ameaccediladoras agrave medida que satildeo veiculadas dentro da proacutepria Escola por um discurso pedagogista muito sistematizado

Natildeo encontramos nenhuma ocorrecircncia neutra ou beneacutefica a proacutepria unidade eacute marcada pela subjetividade Como as derivaccedilotildees precedentes pedagogismo aparece em nosso corpus em enunciados assertivos determinados pelo definido generalizante o que implica uma pressuposiccedilatildeo de existecircncia e de identificaccedilatildeo O uso da palavra portanto inscreve a noccedilatildeo nas evidecircncias compartilhadas do SC como evidenciado por duas passagens interessantes A primeira constitui uma espeacutecie de arqueologia nosoloacutegica da pedagogia construindo entatildeo a noccedilatildeo como uma corrente constituiacuteda dotada de intencionalidade negativa

- Cou 26-27 [] o pedagogismo contemporacircneo detectaacutevel a partir dos anos 1920 com certos movimentos de nova educaccedilatildeo [] Um fato tambeacutem deve ser observado o fasciacutenio exercido pela Itaacutelia fascista e depois pela Alemanha nazista sobre certas mentes De que outra forma explicar essa virada educativa e de exaltaccedilatildeo da juventude que leva agrave mudanccedila do nome do ministeacuterio em 1932 ldquoEducaccedilatildeo puacuteblicardquo passou a ser ldquoEducaccedilatildeo nacionalrdquo (como na Itaacutelia) Nasceu o Estado educador e logo o pedagogo [] Este pedagogismo oficial triunfou com a lei de julho de 1989 que iria impor sob o ministeacuterio de Jospin o Estado pedagogo

A segunda atesta a mesma postura em relaccedilatildeo agrave palavra e agrave noccedilatildeo ao propor uma anaacutelise do ldquodiscurso pedagogistardquo apresentado de fato como um corpo de enunciados constituiacutedo e coerente O pedagogismo se torna quase uma formaccedilatildeo discursiva

- Jaf 177 O discurso pedagogista Pedagogia eacute um termo equiacutevoco Refere-se tanto agrave arte de ensinar quanto agrave concepccedilatildeo de educaccedilatildeo e ensino na qual essa arte se baseia Quanto ao pedagogismo existe uma concepccedilatildeo particular de ensino segundo a qual o essencial estaacute na arte de ensinar O pedagogismo eacute necessariamente polecircmico pois sua forccedila principal consiste em afirmar que a preocupaccedilatildeo com a pedagogia deve prevalecer sobre a do saber Mas ldquoa arte de ensinarrdquo tambeacutem eacute uma expressatildeo equiacutevoca Podemos compreendecirc-la como todas as praacuteticas e teacutecnicas utilizadas mais ou menos conscientemente pelo professor se forem inteiramente relativas agrave disciplina ensinada por exemplo matemaacutetica a pedagogia eacute dita especial e em nada difere da ldquodidaacuteticardquo Eacute que entendemos como ldquopedagogiardquo sobretudo um conjunto de teacutecnicas e meacutetodos cujo valor e relevacircncia sujeitos a algumas variaccedilotildees satildeo independentes das disciplinas particulares Nesse sentido a pedagogia eacute geral e se assemelha muito ao ideal loacutegico-teoloacutegico de um filoacutesofo medieval que trabalhou para inventar uma

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maacutequina para converter automaticamente os infieacuteis Tem como premissa a existecircncia de procedimentos gerais de ensino e aprendizagem que devem ser estudados promovidos e aplicados por si proacuteprios A pedagogia seria o Meacutetodo

Pedagogismo eacute um bom exemplo da construccedilatildeo discursiva do outro antagonista no discurso polecircmico a argumentaccedilatildeo requer um adversaacuterio e a eficaacutecia do discurso eacute aumentada pela existecircncia e pela identificaccedilatildeo preacutevias desse adversaacuterio Pedagogismo por meio de seu sufixo sistematizador eacute entatildeo uma palavra que concordando com N Goodman podemos dizer que eacute tanto feita tanto quanto encontrada eacute construiacuteda neologicamente no discurso ao mesmo tempo em que se articula a partir de saberes anteriores

34 A construccedilatildeo cognitivo-textual do SC

Chamamos de construccedilatildeo cognitivo-textual do SC um tipo de arranjo discursivo estabilizado que se baseia em um compartilhamento preacutevio de saberes eou crenccedilas Eacute o caso das ligaccedilotildees analoacutegicas que induzem no receptor uma transferecircncia de conhecimentos sobre um domiacutenio supostamente conhecido e partilhado que acreditamos ser do acircmbito do SC Dentre essas comparaccedilotildees estaacute obviamente a metaacutefora e retomamos as famosas hipoacuteteses de Lakoff e Johnson (1985) para quem a atividade metafoacuterica eacute natural para a expressatildeo do pensamento e da accedilatildeo Douay-Soublin (1987) fala de ldquoreconciliaccedilatildeo explicativardquo e noacutes a seguimos quando ela a torna uma macrocategoria que ignora as diferenccedilas tradicionalmente estabelecidas entre vaacuterias figuras bem estabilizadas na histoacuteria da retoacuterica

Para esta mesma forma e suas variantes a tradiccedilatildeo retoacuterica disse alternadamente paraacutebola similitude paralelo comparaccedilatildeo equivalecircncia correspondecircncia transposiccedilatildeo metaacutefora ou coloquialmente aproximaccedilatildeo ou mesmo imagem Que importa o roacutetulo desde que tenhamos a forma com o GTA [Grupo de Trabalho sobre Analogia] digo analogia para essa transferecircncia explicativa cujas condiccedilotildees de uma boa formaccedilatildeo importam mais para mim do que o nome (DOUAY-SOUBLIN 1987 on-line)

As conexotildees analoacutegicas entre X e Y satildeo suportadas pelas seguintes quatro teses

- Existem semelhanccedilas entre X e Y

- Apesar dessas semelhanccedilas X e Y satildeo diferentes de outras maneiras

- Podemos descrever ou explicar X do ponto de vista de Y usando formas de pensar que satildeo apropriadas a Y mas que natildeo teriacuteamos espontaneamente associado a X

- A comparaccedilatildeo analoacutegica permite entender melhor X porque Y eacute mais familiar e mais faacutecil de entender ou representar do que X

Note-se que a analogia tem sido tradicionalmente objeto de certo desprezo nos discursos que defendem a expressatildeo direta do conhecimento Como Douay-Soublin (1987 on-line) aponta

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[] endereccedilada pelo saacutebio ao ignorante a analogia natildeo visa ao conhecimento em todos os seus desdobramentos mas apenas a uma primeira aproximaccedilatildeo uma esquematizaccedilatildeo que leva do natildeo conhecimento ao semiconhecimento a analogia precisa de um ignorante como aacutelibi

A relaccedilatildeo analoacutegica convoca de fato um tipo de saber aproximativo natildeo loacutegico que contorna o Logos por meio dos caminhos da Doxa

Falaremos aqui da analogia proporcional e da metaacutefora sem condicionar suas diferenccedilas formais mas examinando o que as une o apelo ao CS que elas estabelecem e supotildeem

341 A analogia proporcional

A analogia oferece ao receptor um novo saber mediado por um saber compartilhado o que Douay-Soublin (1987 on-line) chama de ldquotransferecircncia de conhecimentordquo

Eacute esse efeito de suacutebita e muitas vezes duradoura elucidaccedilatildeo da representaccedilatildeo produzida por uma comparaccedilatildeo ldquoiluminadorardquo uma imagem ldquojustardquo que chamo de clique analoacutegico e me sentiria tentado na praacutetica a conceder o status de acbf (analogia cognitivamente bem formada) a todas as formas simboacutelicas que realmente desencadeiam essa transferecircncia de conhecimento qualquer que seja o nome que lhes seja dado pela tradiccedilatildeo

Nos exemplos a seguir a transferecircncia de conhecimento ocorre de um domiacutenio supostamente desconhecido ou mal conhecido para um domiacutenio conhecido cujos quadros servem de suporte para a explicaccedilatildeo Essas analogias satildeo consideradas proporcionais agrave medida que os autores comparam as proporccedilotildees

- Cou 52 A histoacuteria das ideias eacute para a filosofia o que um inseto morto eacute para o voo de um inseto Eacute uma tentaccedilatildeo formidaacutevel acreditar que esta histoacuteria das ideias prepara os alunos para o pensamento descrever um pensamento natildeo eacute pensar

- Jaf 35 O jogo dos coloacutequios e encontros pedagoacutegicos atinge em pouco tempo na escala das sociedades eruditas o que a seleccedilatildeo produz em vaacuterios milhotildees de anos no mundo dos vivos cada um quer ter sua palavra todos se alinham a um padratildeo virtual que parece nunca ter sido imposto por ningueacutem mas que acaba se tornando a regra

- Jaf 85 O meacuterito era para a poliacutetica do conhecimento o que o secularismo foi para a diversidade dos cultos uma forma bastante sofisticada de neutralidade []

- Jaf 111 Ideoloacutegica tem sido a forma de utilizar a empresa para dar um efeito de realidade ao universo fictiacutecio em que mantemos crianccedilas e professores A empresa eacute para os nossos contemporacircneos o que era a natureza no seacuteculo XVIII ou mais precisamente o mundo rural para os petainistas

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Mundo animal seleccedilatildeo natural secularismo natureza domiacutenios secundaacuterios satildeo mencionados dentro das configuraccedilotildees textuais para fins cognitivos convocando os quadros preacute-discursivos dos receptores

343 A metaacutefora

As metaacuteforas baseiam-se como especifica Aristoacuteteles em seacuteries constituiacutedas ou seja o conhecimento anterior ao discurso que organiza as representaccedilotildees

Aristoacuteteles ao mesmo tempo que insiste nas correlaccedilotildees entre seacuteries produzidas por uma estrutura idecircntica [] de fato repousa o edifiacutecio analoacutegico na existecircncia preacutevia de seacuteries jaacute constituiacutedas partes do corpo espeacutecies animais a lista de emblemas o Panteatildeo dos deuses [] Essas seacuteries que existem na memoacuteria coletiva agraves vezes satildeo longas ateacute indefinidas os nuacutemeros as cores a flora a fauna os ofiacutecios [] outras satildeo limitadas as 22 a 26 letras do alfabeto os doze trabalhos de Heacutercules os doze apoacutestolos os doze signos do zodiacuteaco os dez mandamentos [] (DOUAY-SOUBLIN 1987 on-line)

Os diferentes discursos estabelecem relaccedilotildees privilegiadas com esta ou aquela seacuterie Sabemos que o discurso da educaccedilatildeo se baseia em metaacuteforas recorrentes como aponta Charbonnel (1993) que daacute a seguinte lista viagens alimentaccedilatildeo preenchimento escultura combate luz arquitetura vida animal crescimento vegetal estabelecida com base em um estudo de textos que vatildeo da Antiguidade ao seacuteculo XIX Os discursos contemporacircneos sobre a escola (que satildeo organizados no quadro argumentativo da controveacutersia ao contraacuterio do corpus de Charbonnel) se baseiam em algumas dessas metaacuteforas estruturantes (em particular alimentaccedilatildeo e vida animal) mas oferecem outras amplamente utilizadas Escolhemos aqui falar sobre doenccedilas e militares Natildeo satildeo especiacuteficos ao nosso corpus do ano de 1999 mas organizam todos os discursos da ldquocontroveacutersia escolarrdquo que estudamos desde 1975 (PAVEAU 1999) Satildeo tambeacutem metaacuteforas estruturantes do debate polecircmico em geral que podem ser encontradas no discurso poliacutetico por exemplo

A metaacutefora meacutedicaEacute uma descriccedilatildeo analoacutegica da crise escolar que permite vaacuterias tipizaccedilotildees esclarecedoras

das quais daremos dois exemplos

- A associaccedilatildeo ldquoReformadoresrdquomaus meacutedicos e ldquoRepublicanosrdquobons meacutedicos

- Jaf 15 A poliacutetica educativa consulta os especialistas em didaacutetica e em pedagogia pede-lhes remeacutedios dirigiu-se aos piores meacutedicos pois a didaacutetica e a pedagogia por muito tempo anteciparam na teoria essa renuacutencia agrave transmissatildeo e em vez de curar a doenccedila optaram por apressar seu fim

- Rey 29 Vamos reformar o ensino meacutedio jaacute que abandonamos a faculdade Mais tarde vamos reformar a Universidade Gangrena e amputaccedilatildeo

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- Confusatildeo entre remeacutedio (boa reforma escolar) e veneno (maacute reforma)

- Jaf 33 Condenamo-nos a curar uma doenccedila que eacute proibido diagnosticar publicamente por meio de remeacutedios que sabemos infligir mal

- Rey 38 Este truque de passa-passa [] permite [] sob o pretexto de tratar a paciente acabar com ela E vai acabar com ela com a cumplicidade das mesmas pessoas que tecircm mais interesse pela sua sobrevivecircncia os pais dos alunos e os alunos as classes meacutedias e as classes trabalhadoras

- Rey 50 Tornar a escola uma das causas do desemprego alivia os empregadores e as empresas de sua imensa parcela de responsabilidades Eacute apresentar o remeacutedio como o veneno e o veneno como o remeacutedio

A metaacutefora militarEacute usada de duas maneiras A maneira melhorativa que vai ao encontro do que Charbonnel

chama de ldquoo combaterdquo associa ensino e bravura de guerra

- Pen 78 [] quem tem que trabalhar na linha de frente ndash professores no geral e professores da escola primaacuteria e natildeo pedagogos profissionais que jaacute natildeo ensinam ndash pode ser vencido pelo desacircnimo

- Rey 9 A vida nas trincheiras [tiacutetulo do capiacutetulo]

- Mil 11 [tiacutetulos dos capiacutetulos] 1 Os objetivos da guerra ndash 2 O teatro de operaccedilotildees ndash 3 As forccedilas opostas ndash 4 Suas taacuteticas [dos alunos] ndash 7 Os ardis da guerra ndash 8 A intendecircncia e as bases da retaguarda ndash 9 As alegrias do esquadratildeo

O ponto de vista polecircmico apela sobretudo para a desvalorizaccedilatildeo da atividade militar que entatildeo serve de comparaccedilatildeo com o funcionamento atual da escola

- Mol 27 Esses meacutetodos satildeo mais parecidos com os meacutetodos de gestatildeo de estoques de mercadorias [] do que com meacutetodos de instruccedilatildeo e se queremos manter o uacuteltimo termo eacute mais uma questatildeo de instruccedilatildeo militar do que instruccedilatildeo intelectual isto eacute um aprendizado da submissatildeo e da aprendizagem cega

- Mol 86 A escola de gestatildeo deve treinar seus oficiais subalternos [tiacutetulo do capiacutetulo]

- Morel 122 Algumas exceccedilotildees significativas poreacutem nesta ofensiva generalizada contra a memoacuteria e os procedimentos de aprendizagem o jogador de futebol ou tecircnis o virtuoso artista de concerto e ateacute o candidato agrave carteira de motorista

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ConclusatildeoAo final deste trabalho gostariacuteamos de fazer duas observaccedilotildees

- Levar em consideraccedilatildeo o SC requer um trabalho sobre a presenccedila de crenccedilas e saberes compartilhados na proacutepria materialidade do discurso o SC eacute uma realidade representacional que exige um discurso de atestaccedilatildeo Na ausecircncia dessa comprovaccedilatildeo discursiva o trabalho sobre o SC eacute limitado pela subjetividade do analista e enviesado por seus proacuteprios saberes e crenccedilas

- O discurso sobre a escola privilegia formas ldquointelectuaisrdquo de apelo ao SC determinadas pela formaccedilatildeo discursiva originaacuteria consideraccedilatildeo constante da liacutengua reflexatildeo sobre o sentido uso de figuras retoacutericas Os outros corpora constroem o apelo ao SC de forma diferente (os militares favorecem as formas praacuteticas e os jornalistas favorecem as formas culturais)

As formas de convocaccedilatildeo do SC constroem assim a identidade dos locutores nos discursos e sua consideraccedilatildeo depende integralmente de uma teoria das praacuteticas discursivas

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A LINGUIacuteSTICA FORA DE SI MESMA EM DIRECcedilAtildeO A UMAPOacuteS-LINGUIacuteSTICA137

No nuacutemero 139140 da revista Pratiques sobre linguiacutestica popular publicado haacute pouco mais de dez anos a introduccedilatildeo se intitulava ldquoA linguiacutestica lsquofora do templorsquordquo (ACHARD-BAYLE PAVEAU 2008) Essa expressatildeo refletia outras formulaccedilotildees de uma lacuna em relaccedilatildeo agraves normas que definiam e obrigavam as ciecircncias (ciecircncia selvagem ciecircncia popular ciecircncia profana e mesmo pseudociecircncia) mas tambeacutem a arte (arte bruta fora dos muros arte inocente arte outsider) a medicina (medicinas alternativas medicinas doces138) e muitas outras praacuteticas sociais A linguiacutestica popular eacute de fato alinhada aos colecionadoresas apaixonadosas dos inventores de teorias sem academia dos curandeiros e das bruxas dos saacutebios e xamatildes dosdas artistas loucosas dosdas criadoresas ociososas Essa linguiacutestica estaacute alinhada agraves pessoas que falam sem elaboraccedilatildeo cientiacutefica nem construccedilatildeo teoacuterica cientiacutefica sobre o que falam e o que os outros comentam

Haacute dez anos eu pensava de modo ainda um pouco binaacuterio essa fronteira entre o que eacute cientiacutefico-acadecircmico e o que natildeo eacute ainda que a tipologia dos natildeo-linguistas proposta no texto ldquoOs natildeo-linguistas fazem linguiacutesticardquo139 propusesse um continuum numa perspectiva jaacute poacutes-dualista (PAVEAU 2008) Esta forma de colocar as coisas me parece hoje ultrapassada e pouco defensaacutevel embora ela seja a regra na linguiacutestica acadecircmica Os artigos agrupados nesse nuacutemero da revista Carnets du Cediscor (onde este texto foi originalmente publicado) parece ir em direccedilatildeo a um pensamento escalar em ruptura com o binarismo fundador da ciecircncia linguiacutestica a linguiacutestica popular constituiacuteda pelos metadiscursos dos natildeo-linguistas contribui de fato a situar a linguiacutestica natildeo somente fora do templo mas tambeacutem fora de si mesma isto eacute fora de seus periacutemetros disciplinares imaginaacuterios e normativos e fora dos seus criteacuterios de legitimidade Essa evoluccedilatildeo estaacute tambeacutem ancorada nas mudanccedilas pelas quais passam atualmente todos os discursos tanto aqueles do mundo quanto os da ciecircncia e numa perspectiva internacional Ela estaacute articulada essencialmente em torno da derrota dos dualismos fundadores e do surgimento dos lugares de fala digitais que podem ser apropriados por todos

Os natildeo-linguistas natildeo existem eu osas encontreiDurante os uacuteltimos anos o pensamento poacutes-dualista traccedilou seu percurso e as propostas

para pensar o mundo de maneira ecoloacutegica satildeo felizmente desenvolvidas nutrindo agora muitos trabalhos questionamento da divisatildeo entre natureza e cultura (LATOUR 1991 DESCOLA 2006) a hierarquizaccedilatildeo dos seres e das coisas que colocava o humano no topo da

137 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A La linguistique hors drsquoelle mecircme Vers une postlinguistique Les Carnets du Cediscor 142018 on-line Disponiacutevel em httpjournalsopeneditionorgcediscor1478 Traduccedilatildeo de Julia Lourenccedilo Costa (UFSCarFAPESP)

138 NT Terapias que vatildeo da homeopatia agrave acupuntura e agrave fitoterapia Disponiacutevel em httpswww1folhauolcombrfspcotidianff2909200119htm Acesso em 10 out 2020

139 NT O texto faz parte deste livro

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piracircmide (SCHAEFFER 2007) a concepccedilatildeo internalista do espiacuterito (DENNET 1990) tambeacutem o distanciamento do antropocentrismo (BODDICE 2011) e do eurocentrismo (CHAKRABARTY 2009) Nesses diferentes campos o questionamento das distinccedilotildees dualistas enriquece os resultados das pesquisas e mais amplamente enriquece os pontos de vista pensamos melhor fora dos muros das divisotildees categoriais geograacuteficas e ideoloacutegicas do que no interior dos periacutemetros forccedilados e fechados Da derrota desses binarismos encenada atualmente emerge tambeacutem a invalidez de uma separaccedilatildeo clara entre o que seria cientiacutefico e o que natildeo seria principalmente no que se refere ao conhecimento sobre a linguagem Nancy Niedzielski e Dennis Preston demonstraram na siacutentese que fizeram em 2000 que no centro das atividades linguiacutesticas profissionais os linguistas adotavam atitudes profanas e que reciprocamente diversas descobertas linguiacutesticas profanas se revelaram perfeitamente precisas e verificaacuteveis140 Eu mesma apelei em 2008 por uma perspectiva integracionista dos saberes populares contra um eliminativismo que ainda funda a definiccedilatildeo de ciecircncia (eliminaccedilatildeo dos saberes do senso comum) Levar em consideraccedilatildeo e ateacute mesmo respeitar os resultados da linguiacutestica popular eacute portanto um enriquecimento da proacutepria linguiacutestica e eacute difiacutecil entender porquecirc os linguistas deveriam se privar dela Eacute o que explica Catherine Ruchon no seu artigo sobre a atividade de definiccedilatildeo do discurso animal ldquoAs teorias populares fornecem caminhos de acesso aos processos de semiotizaccedilatildeordquo (RUCHON no mesmo nuacutemero da revista onde o original foi publicado141)

Ela daacute o exemplo da palavra carne do ponto de vista dos carniacutevoros que natildeo evoca ou natildeo evoca mais o sema da animalidade que eacute o que o militantismo animal faz ldquoAs teorias populares podem portantordquo ela conclui ldquoalimentar a pesquisa sobre a relaccedilatildeo entre o leacutexico a referecircncia e as representaccedilotildees mostrando como as categorizaccedilotildees leacutexico-semacircnticas populares satildeo formadas e quais satildeo as representaccedilotildees axioloacutegicas associadasrdquo (Ibidem) Essa integraccedilatildeo dos pontos de vista e em uacuteltima instacircncia das experiecircncias dosdas locutoresas em detrimento da abordagem usual e logocentrada de suas proacuteprias produccedilotildees compete plenamente a uma perspectiva poacutes-dualista

Anne-Charlotte Husson vai mais longe na integraccedilatildeo dos pontos de vista dosdas locutoresas ao propor uma elaboraccedilatildeo teoacuterica que articula a linguiacutestica popular e a epistemologia do ponto de vista (a standpoint epistemologyepistemologia do ponto de vista feminista norte-americana) Essa articulaccedilatildeo permite que ela integre na anaacutelise dos fenocircmenos linguageiros e discursivos os dados eacuteticos e poliacuteticos dos ambientes produtores de discurso (HUSSON no mesmo nuacutemero da revista onde o original foi publicado142) Eis portanto a linguiacutestica popular descrita como linguiacutestica natildeo binaacuteria que funciona de maneira ecoloacutegica baseada em uma episteme poacutes-dualista Natildeo foi esse o caso do coletivo de 2008 que ainda assim reuniu

140 Lembremos que as primeiras proposiccedilotildees da linguiacutestica popular foram feitas nos Estados Unidos por Hœnigswald em 1966 quando as versotildees contextualistas da linguiacutestica estavam se desenvolvendo de acordo com o trabalho de Harris em particular (HARRIS 1969 HŒNIGSWALD 1966) Isso significa que a linguiacutestica popular eacute contemporacircnea ao nascimento da linguiacutestica contextual entendida como uma superaccedilatildeo linguiacutestica fraacutestica internalista tornada emblemaacutetica pelas Estruturas Sintaacuteticas de Chomsky (CHOMSKY 1962)

141 NT ldquoLexique cateacutegorisation et repreacutesentation les reformulations meacutetalinguistiques dans le discours animalisterdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1226

142 NT ldquoLa contribution des theacuteories feacuteministes du standpoint Pour une version forte de la perspective folkrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1324

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quinze artigos entretanto se inserem nessa perspectiva poacutes-dualista natildeo apenas as propostas ecoloacutegicas de antropoacutelogos filosoacuteficos como Philippe Descola mas tambeacutem os estudos de gecircnero finalmente instalados na Franccedila e surgidos da ironia um tanto desdenhosa que as ciecircncias humanas e sociais francesas que haacute muito reservaram aos estudos culturais seus objetos sujos Tambeacutem a chegada de uma nova geraccedilatildeo de pesquisadoresas que puderam se apropriar desses legados de maneira lucrativa e muitas vezes com alegria como evidencia esta ediccedilatildeo143 e tambeacutem o presente livro

Parecia-me possiacutevel em 2008 dizer que os natildeo-linguistas eram valiososas linguistas Eu diria hoje que natildeo existem natildeo-linguistas uma vez que a linguiacutestica eacute praticada de forma plural a partir de posiccedilotildees variadas e mutaacuteveis os natildeo-linguistas natildeo existem pois estatildeo em toda parte e ser linguista constitui uma posiccedilatildeo e uma construccedilatildeo discursiva Isso eacute claramente demonstrado pelo artigo de Judith Visser sobre liacutenguas regionais144 nesta questatildeo de fato a distinccedilatildeo linguista versus natildeo-linguista eacute particularmente inoperante na medida em que o conhecimento sobre os dialetos por exemplo eacute inacessiacutevel aos linguistas profissionais Portanto prefiro dizer hoje que os linguistas quaisquer que sejam seu status sua atividade e sua legitimidade social satildeo poacutes-linguistas valiososas no bom sentido do termo145 Por poacutes-linguista quero dizer uma pesquisadora equipadoa epistemologicamente ciente da natureza mais institucional que cientiacutefica das fronteiras disciplinares das ciecircncias da linguagem integrando plenamente contextos (realia146 e pontos de vista) em seu trabalho sobre as mateacuterias linguageiras e discursivas em uma abordagem ecoloacutegica que evita o logocentrismo antropocentrismo e eurocentrismo

OsAs amadoresas no terreno da web falar de pessoas que falamA web eacute um fator determinante para a implantaccedilatildeo de uma praacutetica poacutes-linguiacutestica Nos

uacuteltimos dez anos esse espaccedilo de fala se desenvolveu consideravelmente e mudou as praacuteticas sociais inclusive as linguiacutesticas a web 20 um dos serviccedilos de internet mais usados devido suas possibilidades conversacionais colaborativas e participativas de fato permite que o discurso linguiacutestico dosas amadoresas seja expresso de forma ilimitada tanto nos espaccedilos puacuteblicos quanto nos privados Retomo o termo amadora de Patrice Flichy (2010) que em Le sacre de lrsquoamateur (A consagraccedilatildeo do amador) descreve essa apropriaccedilatildeo das possibilidades da web por pessoas comuns que fazem o que antes estava reservado aos profissionais fotografia filme arte escrita criacutetica venda tantas praacuteticas que a acessibilidade aos espaccedilos e agraves ferramentas facilitaram muito O mesmo acontece com as praacuteticas linguiacutesticas que encontram na web conversacional lugares de formulaccedilatildeo e recepccedilatildeo os espaccedilos de escrita e

143 NT O nuacutemero 14 de 2018 da revista Les Carnets du Cediscor intitulado ldquoLes meacutetadiscours des non-linguistesrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1089

144 NT ldquoLinguiste ou non-linguiste Reacuteflexions sur une dichotomie controverseacutee agrave partir de lrsquoanalyse de meacutetadiscours sur les langues reacutegionalesrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1384

145 Acrescento esse esclarecimento pensando na carga atualmente muito depreciativa da palavra poacutes-verdade e nas conotaccedilotildees frequentemente criacuteticas de outros termos em poacutes- como poacutes-humanismo por exemplo

146 NT ldquoEm traduccedilatildeo os realia satildeo palavras que denotam objetos conceitos e fenocircmenos exclusivos de uma determinada cultura Por natildeo possuiacuterem correspondecircncias precisas em outras culturas representam muitas vezes um desafio para o tradutorrdquo Disponiacutevel em httpsptwikipediaorgwikiRealia Acesso em 10 out 2020

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discussatildeo on-line (espaccedilos para escrever blogs dispositivos tecnodiscursivos dos comentaacuterios formatos de discussatildeo das redes sociais) favorecem a produccedilatildeo de locutoresas comuns sobre a liacutengua mas tambeacutem a permitem no sentido simboacutelico do termo aquilo que eacute uma novidade em relaccedilatildeo aos lugares de expressatildeo preacute-digital

Em seu artigo sobre dicionaacuterios colaborativos147 Kaja Dolar enfatiza algo que a linguiacutestica natildeo estaacute habituada a abordar as ldquoexperiecircncias pessoaisrdquo dos linguistas que fundam seus saberes lexicograacuteficos Este campo dos dicionaacuterios colaborativos on-line eacute particularmente interessante para a observaccedilatildeo das praacuteticas linguiacutesticas porque natildeo se trata apenas de colaboraccedilatildeo mas tambeacutem da ampliaccedilatildeo enunciativa (os sujeitos da enunciaccedilatildeo satildeo perpetuamente tecidos pelas livres contribuiccedilotildees dos internautas) da relacionalidade (as definiccedilotildees propostas satildeo colocadas em relaccedilatildeo com outros documentos por meio de links hipertextuais) e inumerabilidade (ao contraacuterio do diagrama lexicograacutefico tradicional que inclui apenas uma definiccedilatildeo mesmo longa os dicionaacuterios colaborativos podem oferecer vaacuterias dezenas de definiccedilotildees como pode ser visto em alguns artigos do The Urban Dictionary por exemplo) Os criteacuterios de validade dos metadiscursos produzidos satildeo portanto dos trabalhos lexicograacuteficos habituais onde eacute a expertise do enunciador que fundamenta sua legitimidade on-line eacute o controle colaborativo e a negociaccedilatildeo intersubjetiva muitas vezes anocircnima que valida as definiccedilotildees ou as descriccedilotildees como na Wikipeacutedia por exemplo Eacute por isso que a questatildeo aqui colocada por Dietmar Osthus sobre a captaccedilatildeo das produccedilotildees dosas locutoresas comuns148 na maior parte do tempo indescritiacutevel eacute crucial invisibilizadosas e tornadoas imperceptiacuteveis pela ldquoespiral do silecircnciordquo149 estesas uacuteltimosas produzem uma massa de discurso que afeta a sociedade mas natildeo eacute reconhecida ldquoO desafio que se apresenta para as pesquisas futuras em linguiacutestica popularrdquo enfatiza Dietmar Osthus (no mesmo nuacutemero da revista onde o original foi publicado) ldquoseraacute coletar as fontes de lsquofalantes comunsrsquo fora dos espaccedilos de discussatildeo ou de publicaccedilatildeo explicitamente metalinguiacutesticosrdquo

Em um contexto natildeo digital parece que esse desafio tambeacutem eacute assumido por Franccedilois Labatut que mostra que as atividades metalinguiacutesticas estatildeo em accedilatildeo em um determinado tipo de discurso150 o amicus brief texto no qual o cidadatildeo ou cidadatilde americanoa comum podem fornecer evidecircncias ao juiz no contexto de um julgamento Com efeito Franccedilois Labatut mostra que neste tipo de texto que natildeo tem vocaccedilatildeo metalinguiacutestica os ajustes metalinguiacutesticos satildeo numerosos destinados a servir a uma das partes envolvidas no processo Voltando agrave web seus espaccedilos de escrita natildeo modificam simplesmente o conteuacutedo dos metadiscursos e a proacutepria concepccedilatildeo de lexicografia como indica Kaja Dolar mas a ecologia inteira da praacutetica linguiacutestica suas formas seus objetos seus criteacuterios de reconhecimento e legitimidade seus espaccedilos Eacute tambeacutem nisso que a linguiacutestica se torna poacutes-linguiacutestica os terrenos da web e

147 NT ldquoLes dictionnaires collaboratifs en ligne des objets meacutetalinguistiques profanesrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1161

148 NT ldquoAgrave la recherche du lsquolocuteur ordinairersquo vers une cateacutegorisation des meacutetadiscoursrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1124

149 Dietmar Osthus retoma aqui a noccedilatildeo desenvolvida nos anos 1970 por Eacutelisabeth Noeumllle-Neumann para descrever o funcionamento da opiniatildeo puacuteblica consultar a referecircncia em seu artigo

150 NT ldquoEacutenonceacutes deacutefinitoires et subjectiviteacute dans les deacutebats sur lrsquoeacutevolution du mariage aux Eacutetats-Unisrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1268

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mais amplamente da internet pressionam a linguiacutestica para fora de seus templos e para fora de si mesma forccedilando-a nas abordagens ecoloacutegicas sob a ameaccedila de perder a dinacircmica da construccedilatildeo do sentido e a vida da mateacuteria linguageira

Provincializar a linguiacutestica por uma ecologia do discursoA linguiacutestica popular ou os metadiscursos de pessoas que falam provincializam a linguiacutestica

no sentido que Dipesh Chakrabarty emprega esse termo Em Provincialiser lrsquoEurope la penseacutee postcoloniale et la diffeacuterence historique (Provincializar a Europa pensamento poacutes-colonial) e diferenccedila histoacuterica (CHAKRABARTY 2009) ele se propotildee a pensar a histoacuteria dos paiacuteses natildeo ocidentais natildeo mais a partir do centro europeu e eurocecircntrico mas a partir das margens Ele preconiza um descentramento das epistemes ocidentais uma viagem para fora de si mesmas e em certa medida de modo a adotar abordagens mais globais e respeitosas em relaccedilatildeo agraves realidades singulares das aacutereas geograacuteficas implicadas A provincializaccedilatildeo eacute portanto uma saiacuteda do centro levando em conta as margens o que consequentemente implica o apagamento desta distinccedilatildeo dualista centromargens Para Dipesh Chakrabarty (2009 p 92) trata-se de ldquoimaginar a heterogeneidade radical do mundordquo A provincializaccedilatildeo eacute uma abordagem poacutes-dualista e nos meus termos ecoloacutegica Mais recentemente Eduardo Kohn retoma essa noccedilatildeo para aplicaacute-la diretamente agrave linguagem No famoso ensaio Comment pensent les focircrets (Como as florestas pensam) ele compreende que os signos linguiacutesticos natildeo satildeo os uacutenicos elementos de significaccedilatildeo linguageira a serem considerados e que tambeacutem devemos estar atentos aos iacutecones e indiacutecios usados pelos agentes natildeo humanos animais aacutervores e plantas para representar ldquo[] os outros modos de representaccedilatildeo tecircm propriedades bastante diferentes daquelas demonstradas pelas modalidades simboacutelicas das quais a linguagem depende Em suma se interessar pelos tipos de signos que emergem e circulam para aleacutem do simboacutelico permite convencer-nos da necessidade de lsquoprovincializarrsquo a linguagemrdquo (KOHN 2017 p 68)

Continuo a tecer a metaacutefora de minha parte desejando uma provincializaccedilatildeo natildeo apenas da linguagem mas da proacutepria linguiacutestica que me parece bem iniciada pelas praacuteticas da linguiacutestica popular Considerar no proacuteprio trabalho linguiacutestico os metadiscursos das pessoas comuns incorporando suas experiecircncias de vida seus pontos de vista suas posiccedilotildees morais suas situaccedilotildees poliacuteticas e tudo o que compotildee sua vida permite agrave linguiacutestica sair do logocentrismo que a priva da profundidade da vida dos sujeitos (a linguiacutestica da enunciaccedilatildeo por exemplo permanece nas margens de suas vidas) A plena integraccedilatildeo das condiccedilotildees de fala dosas locutoresas nas praacuteticas linguiacutesticas quer sejam elas dosas produtoresas dos corpora ou de seus analistas permite iniciar o programa de uma poacutes-linguiacutestica que respeita tanto os ambientes das pessoas que falam quanto suas palavras

Sobre a autora oas organizadorase osas tradutoresas

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Marie-Anne Paveau eacute professora e pesquisadora na Universiteacute Paris XIII ndash Sorbonne Paris Nord Trabalha na teoria do discurso com uma abordagem transdisciplinar (filosofia ciecircncias sociais SIC pesquisa sobre Internet estudo acerca de animais e plantas) Desenvolve uma anaacutelise do discurso que integra ambientes natildeo humanos de natureza tecnoloacutegica corporal animal e vegetal na produccedilatildeo do discurso em uma perspectiva poacutes-dualista e

ecoloacutegica Atualmente trabalha na articulaccedilatildeo entre discurso gecircnero e raccedila em uma perspectiva decolonial Grupos e colaboraccedilotildees Anaacutelise do discurso digital (AD2I) grupo franco-brasileiro de pesquisa ndash Universidades de Campinas e Paris 13 e Feminilidades Discurso e Sexualidade grupo franco-brasileiro de pesquisa ndash Universidades de Campinas Paris 13 e ENS Lyon Publicaccedilotildees recentes LrsquoAnalyse du discours numeacuterique Dictionnaire des formes et des pratiques (Hermann 2017) Le discours pornographique (La Musardine 2014) Langage et morale Une eacutethique des vertus discursives (Lambert-Lucas 2013) La langue franccedilaise Passions et poleacutemiques (VUIBERT ROSIER 2008) Les preacutediscours Sens meacutemoire cognition (Presses Sorbonne Nouvelle 2006) Les grandes theacuteories de la linguistique (COLIN SAFARTI 2003)

E-mail mapaveauorangefr

Fonte httpspleiadeuniv-paris13frprofilmarie-annepaveau

Eacuterika de Moraes eacute docente na Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo (UNESP) vinculada agrave Faculdade de Arquitetura Artes e Comunicaccedilatildeo campus de Bauru e ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Estudos Linguiacutesticos do IBILCE-UNESP Satildeo Joseacute do Rio Preto Com poacutes-doutoramento pela Universiteacute Paris-Sorbonne (Paris IV) sob supervisatildeo do professor Dr Dominique Maingueneau realizado em 2017 Doutora e Mestre em Linguiacutestica pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas IELUNICAMP com ecircnfase em Anaacutelise do Discurso de linha francesa Graduada em Comunicaccedilatildeo Social Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo (UNESP) e em Letras pela Universidade do Sagrado Coraccedilatildeo Liacuteder do grupo de Pesquisa DisCo21 ndash Discurso e Comunicaccedilatildeo no Seacuteculo XXI e membro do FEsTA ndash Foacutermulas e Estereoacutetipos Teoria e Anaacutelise

E-mail erikademoraesuolcombrLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr7422887152634157

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Fernando Curtti Gibin eacute doutorando e mestre em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) e eacute bacharel em Letras com Habilitaccedilatildeo de Tradutor pela Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo (UNESP) e em Direito pelo Centro Universitaacuterio de Rio Preto (UNIRP) No que concerne agrave vida profissional atua como produtor de conteuacutedo revisor de textos professor de liacutengua portuguesa e advogado Agrave luz dos estudos linguiacutesticos apresenta especialidade na aacuterea de Linguiacutestica com ecircnfase em Linguiacutestica Textual e em Anaacutelise do Discurso Nas aacuteguas dos estudos juriacutedicos eacute poacutes-graduando em Direito Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD)

E-mail fernandocurttihotmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr2951925118571459

Julia Lourenccedilo Costa eacute pesquisadora de Poacutes-doutorado com apoio da Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa do Estado de Satildeo Paulo na Universidade Federal de Satildeo Carlos (FAPESPUFSCar 201712792-0) sob a supervisatildeo de Roberto Leiser Baronas Realizou estaacutegio de pesquisa na Universidade Paris 13 Nord (FAPESP 201818860-0) sob a supervisatildeo de Marie-Anne Paveau Doutora em Linguiacutestica (2017) pela Universidade de Satildeo Paulo (USP) com periacuteodo de estaacutegio de pesquisa na Universidade Paris-Sorbonne IV sob a supervisatildeo de Dominique Maingueneau Mestra em Linguiacutestica (2013) pela USP e graduada em Letras (2011) pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) Eacute membro do Laboratoacuterio de Estudos Epistemoloacutegicos e Discursividades Multimodais (LEEDiMUFSCar) e do Grupo de Estudos Semioacuteticos da Universidade de Satildeo Paulo (GES-USP) Eacute editora assistente da revista Linguasagem (PPGLUFSCar) e da revista da ANPOLL Sua pesquisa tem como foco a Anaacutelise do discurso francesa a Semioacutetica greimasiana e a Comunicaccedilatildeo nas diversas interfaces com os feminismos E-mail juliajlcgmailcom Link para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr5592296124389416

Marco Antonio Almeida Ruiz eacute Bacharel Mestre e Doutor em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) Eacute Doutor em Sociologia pela Eacutecole des Hautes Eacutetudes en Sciences Sociales (EHESS) de Paris e poacutes-doutorando em estudos linguiacutesticos pela Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras da USP de Ribeiratildeo Preto E-mail marcoalmeidaruizgmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr4613888575492521

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Maria de Faacutetima Sopas Rocha eacute Professora Associada aposentada da Universidade Federal do Maranhatildeo Eacute doutora em linguiacutestica pela Universidade Federal do Cearaacute Participou como pesquisadora dentre outros dos projetos Atlas Linguiacutestico do Maranhatildeo ndash AliMA Atlas Linguiacutestico do Brasil ndash AliB e Tesouro do Leacutexico Patrimonial Galego e Portuguecircs Foi fundadora e Professora Permanente do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Letras ndash Mestrado Acadecircmico Participou como autora ou organizou em coautoria dentre outras as seguintes obras A diversidade do portuguecircs falado no Maranhatildeo o Atlas Linguiacutestico do Maranhatildeo em foco (2006) O portuguecircs falado no Maranhatildeo estudos preliminares (2010) O portuguecircs falado no Maranhatildeo muacuteltiplos olhares Pelos caminhos da Dialetologia e da Sociolinguiacutestica entrelaccedilando saberes e vidas (2010) Dicionaacuterio da obra de Domingos Vieira Filho (2015) E-mail fsopasyahoocombrLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr6600718231861371

Mariana Luz Pessoa de Barros possui bacharelado e licenciatura em Liacutengua Portuguesa (USP) mestrado (2006) e doutorado (2011) em Semioacutetica e Linguiacutestica Geral (USP) e Poacutes-Doutorado em Linguiacutestica (2016) pela USP Realizou estaacutegio de doutorado-sanduiacuteche na Universiteacute Paris 8 Atuou como professora de liacutengua portuguesa no Ensino Fundamental II e no Ensino Meacutedio (ensino regular e EJA) Foi coordenadora do Foacuterum de Atualizaccedilatildeo em Pesquisas Semioacuteticas (FAPS Ges-Usp) e coeditora da Revista Estudos Semioacuteticos (USP) Atualmente eacute professora adjunta do Departamento de Letras da Universidade Federal de Satildeo Carlos vice-presidenta do Grupo de Estudos Linguiacutesticos do Estado de Satildeo Paulo (2019-2021) e liacuteder do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Semioacutetica da UFSCar (PISCar) Suas publicaccedilotildees envolvem os seguintes temas estudos do texto e do discurso semioacutetica autobiografia memoacuteria tempo anaacutelise do discurso poliacutetico e ensino de liacutengua portuguesa E-mail maluzpessoagmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr4830505244404566

Mocircnica Magalhatildees Cavalcante eacute doutora em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Pernambuco com poacutes-doutoramento pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Coordena o grupo de pesquisa Protexto na Universidade Federal do Cearaacute onde atua ainda hoje como Professora Associada Dentre as obras que produziu ou organizou citam-se as seguintes Referenciaccedilatildeo (2003) Os sentidos do texto (2012) Intertextualidade ndash diaacutelogos possiacuteveis (2007) Referenciaccedilatildeo (2013) Coerecircncia referenciaccedilatildeo e ensino (2014) Eacute organizadora das traduccedilotildees Apologia da polecircmica (2017) de Ruth Amossy e O texto ndash tipos e protoacutetipos de Jean-Michel Adam (2019) E-mail monicamc02gmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr5088972912048247

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Paula Camila Mesti possui graduaccedilatildeo em Letras ndash Licenciatura em Portuguecircs-Inglecircs (2007) e mestrado em Letras (2010) pela Universidade Estadual de Maringaacute (2010) e doutorado em Linguiacutestica (2017) pela Universidade Federal de Satildeo Carlos Com apoio de bolsa BEPEFAPESP fez doutorado sanduiacuteche na Sorbonne ndash Paris IV em Paris ndash Franccedila sob a supervisatildeo do Professor Dominique Maingueneau no periacuteodo de setembro2014 a junho2015 Nos anos de 2011 e 2012 foi professora colaboradora da Universidade Estadual do Mato Grosso ndash campus de Tangaraacute da Serra-MT Atualmente eacute secretaacuteria executiva da Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-graduaccedilatildeo e Pesquisa em Letras e Linguiacutestica e professora colaboradora da Universidade Estadual do Paranaacute ndash campus de Campo Mouratildeo Eacute membro do Laboratoacuterio de Estudos Epistemoloacutegicos e de Discursividades Multimodais ndash LEEDiM ndash UFSCarCNPq desde 2013 E-mail paulamestihotmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr8453392455009320

Phellipe Marcel da Silva Esteves possui bacharelado em Comunicaccedilatildeo Social (Jornalismo) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007) licenciatura em Liacutengua Portuguesa pela Universidade Candido Mendes (2008) mestrado em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2010) doutorado em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal Fluminense (2014) e residecircncia em pesquisa na Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional (2014-2016) Atualmente eacute professor adjunto da UFF aleacutem de exercer os ofiacutecios de ediccedilatildeo e traduccedilatildeo Tem experiecircncia na aacuterea de Letras com ecircnfase em Anaacutelise do Discurso atuando principalmente nos seguintes temas anaacutelise do discurso histoacuteria das ideias linguiacutesticas histoacuteria do livro linguiacutestica aplicada e linguiacutestica O materialismo histoacuterico como princiacutepio a paternidade como vida a revoluccedilatildeo dos trabalhadores como horizonteE-mail phellipemarcelyahoocombr Link para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr6384597108585900

Roberto Leiser Baronas eacute professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) e no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Estudos da Linguagem da UFMT Graduado em Letras (1994) pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e Doutor em Linguiacutestica e Liacutengua Portuguesa (2003) pela Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo (UNESP) Durante o ano de 2003 fez seu doutorado ldquosanduiacutecherdquo na Universidade Paris Est - Creacuteteil - Val de Marne - Franccedila no Centro de Estudos de Discursos Imagens Textos Escritos e Comunicaccedilatildeo - CEacuteDITEC (2003) Poacutes-doutorado no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Linguiacutestica Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL) na Faculdade de Filosofia Comunicaccedilatildeo Artes e Letras da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP) Eacute um dos coordenadores do Laboratoacuterio de Estudos Epistemoloacutegicos e Discursividades Multimodais (LEEDiMUFSCar) Editor chefe da revista Linguasagem - Revista Eletrocircnica de Popularizaccedilatildeo Cientiacutefica em Ciecircncias da Linguagem (PPGLUFSCar) Seus estudos tecircm como foco a anaacutelise do discurso a linguiacutestica popularfolk linguistics o discurso poliacutetico e a epistemologia e a histoacuteria da linguiacutestica brasileira E-mail baronasuolcombr Link para o Lattes httplattescnpqbr4613001301744682

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Samuel Ponsoni eacute Graduado em Letras Mestre e Doutor em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Satildeo Carlos ndash UFSCar (2015) Atualmente eacute professor Designado na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) Unidade Passos Coordena nessa mesma universidade o laboratoacuterio de estudos e pesquisas intitulado Laboratoacuterio Interdisciplinar de Comunicaccedilatildeo Discurso Acontecimento e Memoacuteria (LABIAM ndash UEMGCNPq) E-mail samuelponsoniuemgbrLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr6739815431846441

Tamires Cristina Bonani Conti atualmente eacute doutoranda no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Linguiacutestica da UFSCar Desenvolveu pesquisa de mestrado na mesma universidade Fez parte deste mestrado (sanduiacuteche) na Universiteacute Sorbonne Nouvelle ndash Paris 3 sob supervisatildeo de Dominique Legallois Eacute formada em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) (2014) Fez intercacircmbio acadecircmico de graduaccedilatildeo na Universidad de Buenos Aires (20131) Foi bolsista de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica da FAPESP (2011-2012) e tambeacutem do CNPq (2014) Eacute integrante do Grupo de Estudos ldquoLaboratoacuterio de Estudos Epistemoloacutegicos e de Discursividades Multimodaisrdquo (LEEDiM UFSCar) E-mail tamy_bonanihotmailcom Link para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr3442362906177938

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Page 5: Linguística folk : uma introdução

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SumaacuterioApresentaccedilatildeo 7

Parte I ndash Definiccedilotildees e conceitos 12

A linguiacutestica ldquofora do templordquo 13

Natildeo-linguistas fazem linguiacutestica 27

As normas perceptivas da linguiacutestica popular 44

O falar das classes dominantes linguiacutestica popular e dialetologia perceptiva 55

Parte II ndash Aplicaccedilotildees e perspectivas 73

Linguiacutestica popular e ensino de liacutengua categorias em comum 74

A liacutengua sem classes da gramaacutetica escolar 85

Imagens da liacutengua nos discursos escolares 96

As vozes do senso comum nos discursos sobre a escola 103

A linguiacutestica fora de si mesma em direccedilatildeo a uma poacutes-linguiacutestica 128

Sobre a autora oas organizadoras e osas tradutoresas 133

Bibliografia 139

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ApresentaccedilatildeoEacute com muita alegria que entregamos a todas todes e todos interessados em questotildees de

linguagem um conjunto de textos sobre linguiacutestica folk ou linguiacutestica popular da discursivista francesa Marie-Anne Paveau especialmente reunidos para uma ediccedilatildeo brasileira

Falar de linguiacutestica folk especialmente no que concerne ao contexto brasileiro eacute dissertar sobre um aparente paradoxo Com efeito se olharmos para as aacutereas que os grandes eventos da linguiacutestica brasileira consideram como fazendo parte do escopo das ciecircncias da linguagem1 ou mesmo o que as agecircncias de fomento consideram como aacutereas dignas de se obter financiamento para a pesquisa a linguiacutestica folk natildeo aparece como um desses campos Entretanto para ficar somente no que circula na miacutedia uma espiada mais detida em um site de notiacutecias qualquer levantaraacute quase diariamente um conjunto de textos ou mesmo comentaacuterios de internautas sobre questotildees de linguagem na maioria esmagadora das vezes produzidos por natildeo-especialistas em linguiacutestica Natildeo se trata somente de discussotildees de natureza prescritiva mas que abarcam tambeacutem outros tipos de praacuteticas tais como as descritivas intervencionistas e militantes Eacute justamente nesse sentido que afirmamos tratar-se de um aparente paradoxo pois embora a linguiacutestica folk natildeo esteja institucionalizada em termos de domiacutenio ou subdomiacutenio das ciecircncias da linguagem nos grandes eventos da linguiacutestica brasileira ou nas agecircncias de fomento ela estaacute muito viva e dinacircmica em outros contextos sobretudo na boca dosas falantes e nos teclados dosdas internautas

Este livro da pesquisadora francesa Marie-Anne Paveau (ineacutedito tanto no contexto francecircs quanto no brasileiro) completa uma espeacutecie de trilogia epistemoloacutegica e teoacuterico-metodoloacutegica iniciada pela autora com a publicaccedilatildeo de Os preacute-discursos sentido memoacuteria cogniccedilatildeo2 passando tambeacutem pela publicaccedilatildeo de Linguagem e moral uma eacutetica das virtudes discursivas3 Trata-se de abordagens distintas sobre a linguagem mas que no seu conjunto aleacutem de conectadas satildeo imprescindiacuteveis para a sustentaccedilatildeo epistemoloacutegica e teoacuterico-metodoloacutegica de um grande programa de pesquisa da autora acerca do digital ou dos tecnodiscursos materializado no livro Anaacutelise do discurso digital dicionaacuterio das formas e das praacuteticas4 Os trinta e um verbetes que compotildeem esse potente e ousado programa de pesquisa de Paveau tecircm como pano de fundo epistemoloacutegico e teoacuterico-metodoloacutegico a questatildeo dos preacute-discursos o problema da relaccedilatildeo entre linguagem e moral no que concerne agraves virtudes discursivas ou ainda as proposiccedilotildees formuladas no acircmbito da linguiacutestica folk Satildeo essas trecircs bases que sustentam toda a pavimentaccedilatildeo perquirida no acircmbito de uma Anaacutelise do Discurso Digital proposta por Marie-Anne Paveau

1 Referimo-nos basicamente agrave Associaccedilatildeo Brasileira de Linguiacutestica (ABRALIN) ao Grupo de Estudos Linguiacutesticos do Estado de Satildeo Paulo (GEL) e agrave Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-graduaccedilatildeo em Letras e Linguiacutestica (ANPOLL)

2 A ediccedilatildeo francesa Les preacutediscours sens meacutemoire cognition foi publicada em 2006 pela Presses Sorbonne nouvelle e a ediccedilatildeo brasileira pela Editora Pontes em 2013

3 A ediccedilatildeo francesa Langage et morale une eacutethique des vertus discursives foi publicada em 2013 pela Eacuteditions Lambert-Lucas e a brasileira pela Editora UNICAMP em 2015

4 A ediccedilatildeo francesa LrsquoAnalyse du discours numeacuterique dictionnaire des formes e des pratiques foi publicada em 2017 pela Eacuteditions Hermann e a brasileira organizada por dois de noacutes seraacute publicada pela Editora Pontes no iniacutecio de 2021

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Os nove capiacutetulos que compotildeem este livro embora jaacute tenham sido publicados individualmente em forma de artigo em diversos perioacutedicos franceses5 num periacuteodo que compreende uma vintena de anos nunca foram reunidos em um uacutenico suporte Coube a noacutes como organizadoras o trabalho de reunir e ao lado de diversosas discursivistas brasileirosas traduzir e dispor os textos de maneira que a linguiacutestica folk obtivesse estatuto proacuteprio para o ingresso no campo dos estudos da linguagem sendo natildeo apenas apresentada no contexto de liacutengua portuguesa como uma das possibilidades pertinentes e relevantes de se refletir sobre a linguagem com base nos metadiscursos dosas locutoresas questatildeo praticamente inexistente no que concerne agraves ciecircncias da linguagem mas tambeacutem como uma possibilidade concreta de discussatildeo da validade epistemoloacutegica e especialmente social desses saberes bem como a sua aplicaccedilatildeo praacutetica Aplicaccedilatildeo essa tanto no acircmbito dos mais diferentes domiacutenios e subdomiacutenios das ciecircncias da linguagem enquanto possibilidade de integraccedilatildeo quanto no que concerne ao ensino de liacutenguas

O recorte efetuado para a organizaccedilatildeo deste livro se deu a partir de dois grandes eixos que produzem coesatildeo epistemoloacutegica e teoacuterico-metodoloacutegica aos capiacutetulos aqui publicados o da definiccedilatildeo e conceitos da linguiacutestica folk e o da aplicaccedilatildeo e das perspectivas desse campo de estudos Esses dois eixos aleacutem de organizarem de alguma forma a leitura deixam menos opaco o projeto do livro introduzir a problemaacutetica da linguiacutestica folk no contexto da liacutengua portuguesa Cumpre destacar que embora esteja totalmente fora de nossos propoacutesitos qualquer tipo de cenografia que busque privilegiar o controle do leitor e dos sentidos acreditamos ser pertinente apresentar ndash mesmo que rapidamente ndash cada um dos capiacutetulos que compotildeem esta coletacircnea

No capiacutetulo inicial deste livro panoramicamente a autora apresenta o campo de estudos da linguiacutestica folk enfatizando num primeiro momento que a irrupccedilatildeo desse campo estaacute relacionada com um movimento maior que envolve praticamente todos os campos do conhecimento qual seja o da presenccedila de fenocircmenos jaacute relativamente conhecidos o aumento do niacutevel de conhecimento dos indiviacuteduos sobretudo em razatildeo do desenvolvimento das novas tecnologias de comunicaccedilatildeo o aumento da disponibilizaccedilatildeo dos saberes nas publicaccedilotildees tradicionais ou eletrocircnicas a expressiva difusatildeo da informaccedilatildeo em muacuteltiplos suportes especialmente os gratuitos Todos esses fenocircmenos (que concernem especialmente aos paiacuteses desenvolvidos) contribuem significativamente para o aumento dos saberes dos indiviacuteduos e para um apagamento das diferenccedilas entre profissionais do saber (os universitaacuterios por exemplo) e os detentores profanos de saberes ou de saberes profanos Na sequecircncia Paveau apresenta as geografias em que a linguiacutestica folk estaacute bem estabilizada e as suas muacuteltiplas dimensotildees epistemoloacutegica teoacuterica representacional e praacutetica

No segundo capiacutetulo a discursivista trata da questatildeo da linguiacutestica folk com base no trabalho dos natildeo-linguistas Ela examina primeiro a figura do linguista folk ou linguista popular apresentando uma tipologia em regime escalar e natildeo binaacuteria desde o linguista amador escritor

5 Agradecemos vivamente os Editores das revistas francesas (Pratiques Langage et Societeacute Eacutetudes de linguistique apliqueacutee Le Franccedilais aujourdrsquohui e Les carnets du Cediscor) em que os textos aqui reunidos foram originalmente publicados que gentilmente autorizaram a traduccedilatildeo e a publicaccedilatildeo em liacutengua portuguesa

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de livros didaacuteticos ao humorista produtor de jogos de palavras em cena passando pelos escritores juristas e outros locutores afetados pelas questotildees linguageiras Na sequecircncia a autora discute a validade dos saberes folk no acircmbito das ciecircncias da linguagem com base em duas posiccedilotildees possiacuteveis em filosofia das ciecircncias (o eliminativismo de P Churchland e o realismo doce de D Dennet) Por fim ela propotildee uma terceira postura epistemoloacutegica a qual designa ldquointegracionistardquo os conhecimentos populares satildeo saberes pertinentes e devem com efeito ser integrados agrave linguiacutestica que frequentemente desenvolve suas teorias somente baseada nas intuiccedilotildees dos linguistas profissionais

No capiacutetulo trecircs Paveau aborda a questatildeo das normas perceptivas mobilizadas por falantes comuns em suas praacuteticas linguiacutesticas Ela fala precisamente de praacuteticas linguiacutesticas e natildeo de praacuteticas linguageiras designando um campo bem identificado nos Estados Unidos a linguiacutestica folk e em menor medida na Alemanha (Volklinguistik) menos ainda no domiacutenio francoacutefono no qual muitos designadores com referentes um tanto vagos coexistem para designar esse conjunto de discursos natildeo eruditos natildeo especialistas sobre as formas e padrotildees da linguagem e do discurso linguiacutestica popular espontacircnea profana selvagem natildeo erudita A interrogaccedilatildeo da pesquisadora natildeo diz respeito agrave dimensatildeo prescritiva versus descritiva das normas assim produzidas mas concerne ao valor das percepccedilotildees na elaboraccedilatildeo de um discurso linguiacutestico popular e portanto agrave validade das teorias populares em relaccedilatildeo agraves teorias acadecircmicas teorias cientiacuteficas

Marie-Anne Paveau se debruccedila no quarto capiacutetulo sobre os pontos cegos ou impensados nos trabalhos de sociolinguiacutestica francesa de um lado nos planos praacutetico e metodoloacutegico o falar das classes dominantes como natildeo-objeto de pesquisa e de outro lado nos planos epistemoloacutegico e teoacuterico a natildeo-consideraccedilatildeo dos resultados da linguiacutestica popular (linguiacutestica folk) e dos paracircmetros perceptivos no estudo dos fenocircmenos linguageiros Ela propotildee inicialmente um balanccedilo sobre a noccedilatildeo de classe social na sociolinguiacutestica francesa e anglo-saxatilde e a descriccedilatildeo da notaacutevel assimetria que existe entre as classes comumente escolhidas pelas ciecircncias sociais como terreno de investigaccedilatildeo (trabalhadores povo excluiacutedos e em menor grau as classes meacutedias) e os pertencimentos reais ou imaginaacuterios dos indiviacuteduos (em que se encontram igualmente as classes dominantes as elites as aristocracias e as burguesias herdadas ou reconstruiacutedas) Na sequecircncia a autora examina numa perspectiva integracionista as formas e a validade dos resultados da linguiacutestica folk praacutetica analiacutetica antiga em especial sobre o falar das elites e dos bairros nobres Ela mostra tambeacutem em particular que os conceitos e meacutetodos da dialetologia perceptual norte-americana ainda pouco presentes nas pesquisas francesas permitem tratar esse tipo de corpus e fazer proposiccedilotildees linguiacutesticas sobre os falares de classe Por fim a discursivista propotildee uma primeira descriccedilatildeo do falar das classes dominantes com base na linguiacutestica folk enfatizando alguns de seus aspectos caracteriacutesticos pronuacutencia ldquoMarie-Chantalrdquo coacutedigo lexical e rituais pragmaacuteticos

No quinto capiacutetulo partindo da afirmaccedilatildeo de que o desenvolvimento da ciecircncia cognitiva e depois da etnometodologia fez emergir a questatildeo da ciecircncia espontacircnea dos sujeitos questatildeo natural para um campo que lida com o desenvolvimento do conhecimento das percepccedilotildees e das representaccedilotildees dos indiviacuteduos a autora explora este problema no campo da liacutengua

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francesa fazendo uma pergunta simples as categorias espontacircneas de alunos podem ser mobilizadas no ensino da liacutengua ou devem pelo contraacuterio ser desconstruiacutedas para dar lugar a categorias aprendidas Depois de definir o que se denomina ldquolinguiacutestica popularrdquo e sublinhar seu interesse pelo campo do ensino-aprendizagem da liacutengua ela busca responder a essa questatildeo por meio de trecircs exemplos de categorias a palavra a flexatildeo verbal e o gecircnero do discurso

No sexto capiacutetulo Marie-Anne Paveau com base no princiacutepio de que a representaccedilatildeo unitaacuteria da liacutengua tem uma funccedilatildeo social importante que natildeo deve ser obliterada por razotildees praacuteticas e tambeacutem didaacuteticas sociais e ateacute ideoloacutegicas ela assevera que eacute realmente o francecircs padratildeo que deve ser ensinado na escola No entanto para a autora isso natildeo implica a falta de abordagem e o silenciamento sobre a variaccedilatildeo social em particular ela questiona ainda se na liacutengua como em outras situaccedilotildees existem fenocircmenos de classe se existe um francecircs popular e um francecircs das classes dominantes e se as redes sociais os grupos e as comunidades que cruzam as classes de maneira complexa sem apagaacute-las tambeacutem se definem por suas formas de falar fortemente marcadas por determinismos sociais Eacute esta questatildeo da variaccedilatildeo social no sentido mais classista do termo que a discursivista aborda aqui comparando as gramaacuteticas escolares com base nos saberes linguiacutesticos chamados ldquoacadecircmicosrdquo e nos saberes da gramaacutetica espontacircnea ou gramaacutetica popular (ldquofolk gramarrdquo que adveacutem da linguiacutestica popular ldquofolk linguisticsrdquo) altamente desenvolvida nos Estados Unidos que integra o paracircmetro classista

No seacutetimo capiacutetulo a pesquisadora reflete sobre o discurso escolar Assim ao falar sobre esse tipo de discurso ela toca num problema metodoloacutegico importante o que se entende por ldquodiscurso escolarrdquo Identificado restritivamente como discurso da escola e ateacute mesmo agrave custa de uma reduccedilatildeo espacial como discurso na escola o discurso escolar natildeo eacute impedido por si mesmo de se relacionar com aqueles que se encontram fora do espaccedilo escolar ou da instituiccedilatildeo escolar Em outras palavras o discurso na escola natildeo eacute apenas os discursos da escola seria preciso portanto poder compartilhar o que eacute dos pais e da famiacutelia o que depende de paracircmetros sociais e culturais o que se capta no discurso da miacutedia o que emerge de uma crenccedila popular etc E esses proacuteprios discursos interpenetram-se e entrelaccedilam-se formando um universo discursivo que se organiza de maneira diferente de acordo com os tempos as crises e os acontecimentos Falar de imagens de liacutengua em discursos escolares natildeo pode assim ser feito sem levar em conta a polifonia essencial e essa tarefa eacute muito importante para ser realizada no acircmbito de um capiacutetulo Como em trabalhos anteriores ela aborda a questatildeo tanto fora quanto dentro da escola propondo aqui algumas respostas poreacutem sempre muito ldquomonofocircnicasrdquo reduzindo os discursos escolares aos que satildeo produzidos no acircmbito da escola pelos alunos pelos professores pelos livros e pelos textos oficiais

No oitavo capiacutetulo a partir de um corpus de ensaios do mainstream contemporacircneo sobre a escola Paveau propotildee uma concepccedilatildeo de senso comum ponderada pelas dimensotildees semacircntica e perceptual em uma abordagem em trecircs niacuteveis (preacute-discursivo metadiscursivo e discursivo) a partir da presenccedila de marcas no discurso O senso comum no discurso estaacute de fato ancorado no espaccedilo preacute-discursivo do conhecimento preacutevio compartilhado em uma

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comunidade discursiva se manifesta no niacutevel metadiscursivo por meio de comentaacuterios dos falantes explicando sua relaccedilatildeo com o senso comum (marcas de negaccedilatildeo ou captura de formas de senso comum destinada agrave validaccedilatildeo de enunciados) e eacute construiacuteda no niacutevel discursivo por meio de certo nuacutemero de arranjos lexicais enunciativos e frasais

No uacuteltimo capiacutetulo numa espeacutecie de conclusatildeo deste livro a autora defende que a renovaccedilatildeo dos estudos sobre a linguiacutestica popular por meio da consideraccedilatildeo dos pontos de vista dos locutoresas e de suas experiecircncias de vida se inscreve num amplo movimento mundial de descentramento que exaspera atualmente as ciecircncias humanas e sociais O questionamento dos grandes dualismos fundadores as indagaccedilotildees das abordagens poacutes-coloniais e as epistemologias militantes permitem abordagens poacutes-dualistas que podem ser mobilizadas em linguiacutestica A integraccedilatildeo dos metadiscursos das pessoas comuns no programa da linguiacutestica a conduz em direccedilatildeo a uma dimensatildeo ecoloacutegica que a pesquisadora qualifica de poacutes-linguiacutestica

Cumpre destacar uma vez mais que este livro de Marie-Anne Paveau sobre linguiacutestica folk natildeo vem corroborar os discursos negacionistas de variadas ordens que se inscrevem numa espeacutecie de sociologia da ignoracircncia tatildeo em voga atualmente e profundamente deleteacuteria para a ciecircncia em particular e para a toda a sociedade em geral mas vem para

Considerar no proacuteprio trabalho linguiacutestico os metadiscursos das pessoas comuns incorporando suas experiecircncias de vida seus pontos de vista suas posiccedilotildees morais suas situaccedilotildees poliacuteticas e tudo o que compotildee sua vida permitindo agrave linguiacutestica sair do logocentrismo que a priva da profundidade da vida dos sujeitos A plena integraccedilatildeo das condiccedilotildees de fala dosas locutoresas nas praacuteticas linguiacutesticas quer sejam elas dosas produtoresas dos corpora ou de seus analistas permite iniciar o programa de uma poacutes-linguiacutestica que respeita os ambientes das pessoas que falam e suas palavras (PAVEAU 2018)

Enfim este livro vem corroborar a necessidade premente do debate acerca da instauraccedilatildeo das novas partilhas do discurso acadecircmico Deixamos um agradecimento muito especial a autora Marie-Anne Paveau que prontamente acolheu a proposta desta coletacircnea e tambeacutem um muito obrigado afetuoso a todosas tradutoresas pelo seu esmerado trabalho Oacutetima leitura a todas todes e todos As sugestotildees e criacuteticas satildeo sempre muito bem-vindas

Satildeo Carlos UFSCar primavera de 2020Oas organizadoras

Parte I

Definiccedilotildees e conceitos

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A LINGUIacuteSTICA ldquoFORA DO TEMPLOrdquo6

1 Sobre a relevacircncia e a pertinecircncia em se discutir linguiacutestica popularEm 2008 a European Review of Philosophy publica uma ediccedilatildeo totalmente dedicada a

Folk Epistemology (HEINTZ POUSCOULOUS TARABORELLI 2008) Neste nuacutemero diversas questotildees abordadas pelos autores majoritariamente filoacutesofos recobrem exatamente as questotildees que pretendemos apresentar esquematicamente no capiacutetulo inicial deste livro Essas preocupaccedilotildees atestam que existe atualmente em diversos campos do conhecimento (filosofia epistemologia linguiacutestica psicologia neurociecircncias biologia e outros domiacutenios) uma robusta interrogaccedilatildeo sobre a natureza dos saberes sobre os modos de constituiccedilatildeo e de legitimaccedilatildeo dos conhecimentos ditos cientiacuteficos Neste nuacutemero a European Review of Philosophy propotildee ainda as seguintes questotildees

a) Qual eacute o domiacutenio adequado de um sistema de epistemologia popular

b) As avaliaccedilotildees epistecircmicas envolvem o pensamento consciente

c) As avaliaccedilotildees epistecircmicas satildeo especiacuteficas de humanos

d) Como a epistemologia popular contribui para o pensamento racional

e) Quais satildeo as relaccedilotildees (se houver) entre a epistemologia normativa a epistemologia do senso comum e a epistemologia popular

f) Como a epistemologia popular se relaciona com nossa compreensatildeo ingecircnua da verdade

g) Quais aspectos da cultura poderiam ser explicados com base em uma epistemologia popular

h) Os sujeitos compartilham as mesmas intuiccedilotildees epistemoloacutegicas entre culturas Ou as epistemologias variam entre culturas (HEINTZ POUSCOULOUS TARABORELLI 2008 p 34)

Neste livro de natureza introdutoacuteria natildeo temos espaccedilo para explicar pormenorizadamente a emergecircncia atual de todas essas questotildees Contentar-nos-emos em trazer agrave lembranccedila fenocircmenos bem conhecidos o aumento do niacutevel de conhecimento dos indiviacuteduos sobretudo em razatildeo do desenvolvimento das novas tecnologias de comunicaccedilatildeo o aumento da disponibilizaccedilatildeo dos saberes nas publicaccedilotildees tradicionais ou eletrocircnicas a expressiva difusatildeo da informaccedilatildeo em muacuteltiplos suportes especialmente os gratuitos Todos esses fenocircmenos (que concernem especialmente aos paiacuteses desenvolvidos) contribuem significativamente

6 Texto originalmente publicado em ACHARD-BAYLE G PAVEAU M-A Preacutesentation La linguistique laquo hors du temple raquo Pratiques p 01-15 2008 Traduccedilatildeo de Roberto Leiser Baronas (UFSCar) Tamires Cristina Bonani Conti (UFSCarFAPESP) e revisatildeo teacutecnica de Julia Lourenccedilo Costa (UFSCarFAPESP) Outra versatildeo deste texto foi publicada no Dossiecirc ldquoLinguiacutestica popularfolk linguistics e linguiacutestica cientiacutefica em vez do versus propomos a integraccedilatildeordquo na revista Foacuterum Linguiacutestico v 16 nuacutemero 4 2019 Disponiacutevel em httpsperiodicosufscbrindexphpforumarticleview1984-84122019v16n4p4257 A expressatildeo ldquofora do templordquo usada no tiacutetulo deste artigo foi emprestada do projeto que Ameacutelie Cure preparou para o nuacutemero sobre Linguiacutestica Popular publicado na revista Pratiques no nuacutemero anteriormente citado Essa expressatildeo faz eco agrave foacutermula ldquofora do cacircnonerdquo que designa a arte bruta a arte dos loucos das crianccedilas dos inexperientes dos natildeo artistas tambeacutem chamada de ldquoarte outsiderrdquo ou ldquofolk artrdquo

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para o aumento dos saberes dos indiviacuteduos e para um certo apagamento das diferenccedilas entre profissionais do saber (os universitaacuterios por exemplo) e os detentores profanos de saberes ou de saberes profanos7 Outros elementos mais confidenciais pois concernem agrave histoacuteria das ciecircncias podem ser desenvolvidos a reflexatildeo sobre as relaccedilotildees entre saber e crenccedila eacute tatildeo antiga quanto o proacuteprio pensamento assim como o valor do conhecimento do senso comum natildeo suscetiacutevel de verificaccedilatildeo loacutegica (COATES 1996 DASCAL 1999 MARKOVITTS 1999 DENNETT 1990 [1987] FISETTE POIRIER 2002) a emergecircncia de uma disciplina como a etnometodologia que trouxe a partir da segunda metade do seacuteculo XX novos objetos epistemoloacutegicos para as ciecircncias humanas tal como o ldquosaber dos participantesrdquo ou novos meacutetodos como a ldquocompreensatildeordquo em especial a partir das narrativas de vida

Enfim as ciecircncias cognitivas contrariamente agrave sulforosa reputaccedilatildeo positivista e naturalista foram as primeiras a se perguntar como os conhecimentos de qualquer natureza satildeo produzidos no ceacuterebro de todas as pessoas e natildeo somente nos mais cientiacuteficos Diante desse quadro nos pareceu pertinente e mesmo relativamente urgente que a linguiacutestica independentemente da histoacuteria e da geografia que a abrigue visto que ainda permanece um pouco distante desse questionamento epistemoloacutegico se interrogue e se deixe interrogar pela dimensatildeo folk dos saberes

Tomando como referecircncia um conjunto de artigos publicados inicialmente na revista Pratiques em 20088 que tratam especificamente de questotildees atinentes agrave linguiacutestica popular propomo-nos entatildeo a discutir neste capiacutetulo mesmo que de maneira natildeo exaustiva a questatildeo da linguiacutestica popular no interior das ciecircncias da linguagem Para tanto perseguiremos vaacuterios objetivos a) desejamos dar conta da ausecircncia no contexto francecircs de um campo identificado como ldquolinguiacutestica popularrdquo ou ldquolinguiacutestica folkrdquo em comparaccedilatildeo com os domiacutenios anglo-saxocircnico e alematildeo nos quais a linguiacutestica popular faz parte de um dos subdomiacutenios da linguiacutestica geral Nesses paiacuteses a folk linguistics ou a Volklinguistik estatildeo bem implantadas e satildeo muito dinacircmicas com publicaccedilotildees e manifestaccedilotildees cientiacuteficas consistentes nestes uacuteltimos anos que podem ser atestadas na bibliografia deste livro por exemplo b) desejamos igualmente explorar ou mesmo definir o que o campo da linguiacutestica pode sublinhar no domiacutenio francoacutefono em comparaccedilatildeo a domiacutenios conexos e problemaacuteticas afins como o purismo a gramaacutetica normativa o trabalho sobre as normas linguiacutesticas sobre a metalinguagem ou sobre a noccedilatildeo de epilinguiacutestica por exemplo c) pretendemos igualmente abrir uma reflexatildeo sobre a validade dos saberes profanos e por consequecircncia sobre os saberes ldquocientiacuteficosrdquo questatildeo que eacute muito especiacutefica em linguiacutestica na medida em que a reflexividade a introspecccedilatildeo a consciecircncia linguiacutestica e a epilinguiacutestica satildeo problemaacuteticas que definem a disciplina Qual eacute portanto a pertinecircncia das intuiccedilotildees dos locutores profanos em comparaccedilatildeo agraves elaboraccedilotildees cientiacuteficas dos linguistas Esses uacuteltimos natildeo satildeo tambeacutem locutores profanos Por fim nos parece necessaacuterio e de maneira premente questionar as relaccedilotildees e as contribuiccedilotildees da linguiacutestica popular agrave linguiacutestica geral agrave linguiacutestica aplicada e ao conhecimento e ao ensino-aprendizagem

7 Essa distinccedilatildeo natildeo eacute binaacuteria mas escalar vaacuterias categorias de detentoras do saber podem ser vistas como experts os estudantes os colecionadores os apaixonados por determinado assunto os eruditos ou especialistas de todas as ordens Para um aprofundamento dessa escala ver Schmale (2008) e Paveau (2008)

8 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1168

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de liacutengua materna em particular em um periacuteodo em que as orientaccedilotildees oficiais do ensino de liacutengua na escola e no coleacutegio especialmente no contexto francecircs promovem um tipo de gramaacutetica que reivindica uma espeacutecie de ldquosimplificaccedilatildeordquo e uma ldquoautenticidaderdquo que pode ser talvez muito proacutexima do que chamamos aqui de saberes profanos ou espontacircneos9 Eacute a razatildeo pela qual desejamos uma reflexatildeo sobre o lugar a validade e a eficaacutecia pedagoacutegica das praacuteticas reveladas mais ou menos conscientemente da linguiacutestica popular colocadas em cena tanto pelos alunos quanto por seus professores no ensino da liacutengua em todos os niacuteveis

2 O que eacute a linguiacutestica popularDebruccedilar-nos-emos aqui sobre os problemas de designaccedilatildeo e de categorizaccedilatildeo dos objetos

ou das questotildees relativas agrave linguiacutestica popular

21 Os termos e as categorias folk e popular

O termo linguiacutestica popular eacute um dos objetos de uma seacuterie de denominaccedilotildees anglo-saxocircnicas baseadas em folk nas quais esse termo eacute traduzido em francecircs por popular espontacircneo inexperiente profano ou ordinaacuterio (a lista de denominaccedilotildees permanece aberta como demonstram os poucos trabalhos na aacuterea) Falamos tambeacutem de linguiacutestica do senso comum e encontramos igualmente a expressatildeo linguiacutestica dos locutores profanos em que L Rosier assinala a presenccedila massiva na internet ldquoPode-se [] constatar a presenccedila do que nomeamos linguiacutestica dos locutores profanos na internet notadamente nos foacuteruns de discussatildeo []rdquo (ROSIER 2004 p 70)

No domiacutenio cientiacutefico anglo-saxocircnico (sobretudo norte-americano) encontramos estudos bastante numerosos sobre as folk theories folk psychology folk epistemology folk biology (folk taxonomy) folk linguistics (folk etymology e folk ou perceptual dialectology) e recentemente folk pragmatics No entanto o termo folk natildeo eacute uniacutevoco e o domiacutenio da folk psychology10 se subdivide por exemplo em dois subdomiacutenios de um lado a psicologia do senso comum (commonsense psycology) que descreve e explica o comportamento humano em termos de crenccedilas desejos intenccedilotildees expectativas esperanccedilas etc e de outro uma versatildeo filosoacutefica dessa psicologia do senso comum que propotildee uma interpretaccedilatildeo dessas explicaccedilotildees ordinaacuterias por meio de generalizaccedilotildees teoacutericas mobilizando os conceitos de crenccedila desejo etc Essa corrente eacute representada por exemplo pelos trabalhos de P Churchland D Dennett e W Sellars

As lexias construiacutedas a partir de folk estatildeo bem estabilizadas no campo anglo-saxocircnico Em nosso trabalho tentamos ao maacuteximo conservar a sua traduccedilatildeo da maneira mais literal possiacutevel No entanto o termo popular em francecircs - e tambeacutem em portuguecircs - eacute polissecircmico Falamos aqui de linguiacutestica popular11 Todavia como definir esse termo Propomos por enquanto

9 Ver em particular os seguintes textos Boletim oficial nuacutemero 0 20 fevereiro de 2008 Os novos programas da escola primaacuteria Projeto submetido agrave consulta puacuteblica Eacuteduscol dgesco abril de 2008 Coleacutegio Projeto de programa francecircs Relatoacuterio de missatildeo sobre ensino da gramaacutetica 2006 elaborado por A Bentolila E Orsenna e D Desmarchelier

10 Para ver a difusatildeo desses trabalhos norte-americanos no contexto francoacutefono ver por exemplo Fisette e Poirier (2002)

11 As reservas em torno desse termo satildeo ambiacuteguas e enganosas (ele designaria de maneira pejorativa a linguiacutestica do povo) fazendo com que alguns autores adotassem a lexia afrancesada folk linguistique NT No Brasil salvo melhor juiacutezo embora o sentido de popular possa ser pejorativo sobretudo enunciado por locutores que pertencem agraves classes mais abastadas da populaccedilatildeo poreacutem como a linguiacutestica popular ainda estaacute em gestaccedilatildeo tais sentidos ainda natildeo estatildeo apensos agrave expressatildeo linguiacutestica popular

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chamar popular o saber espontacircneo dos atores sociais sobre o mundo (depositado entre outros espaccedilos nos proveacuterbios e nos ditos populares por exemplo) que se diferencia do saber acadecircmico ou cientiacutefico da mesma maneira que o saber praacutetico se distingue do saber teoacuterico O saber espontacircneo eacute constituiacutedo de saberes empiacutericos natildeo suscetiacuteveis de verificaccedilatildeo loacutegica (o saber espontacircneo natildeo eacute verdadeiro nem falso visto que eacute um saber aproximativo como explica F Markovits) e tambeacutem de crenccedilas que constituem guias para a accedilatildeo dos atores sociais as lendas urbanas ou as influecircncias da lua sobre as plantaccedilotildees ou ainda se o ceacuteu estaacute mais ou menos nublado como possibilidade de chuva satildeo crenccedilas reveladas do saber espontacircneo As conotaccedilotildees pejorativas geralmente apensas ao termo popular (contrariamente a outros usos eufoacutericos do termo como educaccedilatildeo ou universidade ou artes e tradiccedilotildees popular(es) por exemplo) fazem parte do escopo dos estudos da linguiacutestica popular e podem se tornar um importante objeto de estudo para esse domiacutenio

22 Geografia da linguiacutestica popular

221 Folk linguistics

O domiacutenio anglo-saxocircnico da folk linguistics foi aberto nos anos 1960 do seacuteculo passado pelos trabalhos inaugurais de Hoenigswald (1960 1996) que reivindicou firmemente que se leve em conta os saberes espontacircneos na constituiccedilatildeo de toda a ciecircncia Todavia essa importante demanda natildeo encontrou muito eco agrave eacutepoca Foi preciso esperar os anos 2000 para que a obra seminal de N Niedzielski e D Preston retomasse a questatildeo sobre o conteuacutedo e a representatividade da linguiacutestica popular norte-americana atualmente Em seu trabalho N Niedzielski e D Preston (2000 p 8) precisam o sentido de folk em folk linguistics

[A palavra folk] refere-se agravequeles que natildeo satildeo profissionais qualificados na referida aacuterea [] Definitivamente natildeo usamos folk para nos referirmos a ruacutesticos ignorantes atrasados primitivos minoritaacuterios isolados marginalizados ou grupos e indiviacuteduos de status supostamente inferiores

Em seguida os autores enfatizam a importacircncia de se levar em conta os saberes populares para a constituiccedilatildeo dos corpora de saberes cientiacuteficos ldquoSeja para o propoacutesito puramente cientiacutefico de registraacute-lo ou para os propoacutesitos sociais de nos ajudar a entender melhor nossas atitudes muacutetuas sugerimos que o estudo [] dos traccedilos linguisticamente orientados eacute uma tarefa importanterdquo (NIEDZIELSKI PRESTON 2000 p 123)

Os nomes e as expressotildees abaixo que intitulam os capiacutetulos do livro de N Niedzielski e D Preston desenham claramente o mapa da folk linguistics norte-americana

a) Regionalismo

b) Fatores sociais

c) Aquisiccedilatildeo da linguagem e linguiacutestica aplicada

d) Linguiacutestica geral e linguiacutestica descritiva

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O exposto permite destacar alinhados a J R Dow (autor de uma resenha do livro de N Niedzielski e D Preston publicada no Journal of American Folklore em 2001) que a obra apresenta elementos de anaacutelise e de reflexatildeo nos seguintes domiacutenios da linguiacutestica norte-americana

A ethnography of language a social psychology of language (ou estudo das atitudes linguiacutesticas muitas vezes traduzidos por psicologia social da linguagem) general descriptive linguistics (linguiacutestica geral e descritiva) language variation and change (linguiacutestica variacionista) e applied linguistics (linguiacutestica aplicada)

Esses dados nos mostram que a folk linguistics no domiacutenio anglo-saxocircnico especialmente no norte americano constitui um importante campo para as ciecircncias da linguagem12

222 Volkslinguistik Laienlinguistik

No contexto germacircnico a Volkslinguistik agraves vezes chamada de Laienlinguistik embora os termos natildeo cubram as mesmas praacuteticas linguiacutesticas13 se apresenta como no domiacutenio anglo-saxocircnico isto eacute como um campo de estudos jaacute consolidado com muitas produccedilotildees cientiacuteficas eventos etc O pesquisador G Antos tem contribuiacutedo largamente para difundir essa abordagem que se situa no domiacutenio da formaccedilatildeo transitando entre a psicologia e a gestatildeo A Laienlinguistik eacute a linguiacutestica dos manuais de conversaccedilatildeo ou de expressatildeo oral destinados a melhorar a competecircncia linguiacutestica dos locutores na sua vida social e profissional Os trabalhos do que se denomina enquanto Volkslinguistik se concentram todavia sobre a dialetologia e adotam uma perspectiva que se poderia denominar geolinguiacutestica se debruccedilando por exemplo sobre a imagem da ldquobad languagerdquoldquoliacutengua ruimrdquo associada agraves variantes regionais14 Tambeacutem eacute esse uso geolinguiacutestico da noccedilatildeo de linguiacutestica espontacircnea popular que P Seacuteriot mobiliza na Suiacuteccedila no tiacutetulo de seu artigo de 1996 sobre a linguiacutestica espontacircnea dos marcadores de fronteiras15 e no trabalho coletivo publicado na revista Pratiques nuacutemero 139140

223 Linguiacutestica popular

No domiacutenio francecircs e francoacutefono os estudos que se inscrevem na linguiacutestica popular satildeo raros como sublinha J-C Beacco que alhures escolheu evitar o termo popular no tiacutetulo do nuacutemero 154 da revista Langages16 por ele dirigida acerca desse tema preferindo falar

12 NT No caso do Brasil ao se tomar como paracircmetro as aacutereas que compotildeem o campo de estudos da linguiacutestica a partir por exemplo do CNPq ou de um evento jaacute consolidado como o de uma associaccedilatildeo como o GEL ou mesmo os Grupos de Trabalho da ANPOLL a linguiacutestica popular sequer figura como um domiacutenio ou mesmo subdomiacutenio de estudos da linguagem

13 Para um aprofundamento desta questatildeo veja o artigo de Schmale e Stegu publicado em dezembro de 2008 na revista Pratiques linguistique litteacuterature e didactique nuacutemero 139140 O artigo pode ser acessado em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1168 Veja tambeacutem o artigo de Antos (1996)

14 Para um aprofundamento desta discussatildeo veja por exemplo Langer (2001) os trabalhos de W Davies e o projeto de pesquisa The history and current status of lsquobad languagersquo as a concept in German folk linguistics que pode ser acessado no site httpeisbrisacuk~gexnlresearchahrbhtml

15 NT A referecircncia completa do artigo mencionado eacute SERIOT P La linguistique spontaneacutee des traceurs de frontiegraveres In SERIOT P (eacuted) Langue et nation en Europe centrale et orientale du 18egraveme siegravecle agrave nos jours Cahiers de lrsquoILSL (Univ de Lausanne) n 8 p 277-304 1996

16 NT A iacutentegra desse nuacutemero intitulado Repreacutesentations meacutetalinguistiques ordinaires et discours sob a direccedilatildeo de Jean-Claude Beacco pode ser acessada em httpswwwperseefrissuelgge_0458-726x_2004_num_38_154

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sobre representaccedilotildees metalinguiacutesticas ordinaacuterias Eacute sobretudo a expressatildeo etimologia popular que eacute difundida na Franccedila Dentre as razotildees para a escolha dessa terminologia estaacute o fato de se tratar de um fenocircmeno linguiacutestico passiacutevel de descriccedilatildeo e suscetiacutevel de fornecer um objeto discreto para a linguiacutestica geral O texto de autoria de H E Brekle presente no tomo 1 do livro Histoacuteria das ideias linguiacutesticas organizado por Sylvain Auroux bem como o trabalho de J-C Beacco citado anteriormente fazem menccedilotildees expliacutecitas ao domiacutenio da linguiacutestica popular Tambeacutem Pierre Bourdieu desde o iniacutecio dos anos 1980 mas de maneira mais expliacutecita em seu trabalho de 2001 reclama a existecircncia de uma ldquociecircncia rigorosa da sociolinguiacutestica espontacircneardquo (BOURDIEU 2001 p 137) De maneira um pouco mais recente e programaacutetica vale mencionar os nossos trabalhos (Marie-Anne Paveau) sobre a necessidade de se levar em conta a linguiacutestica popular no ensino da liacutengua francesa na escola (2005) os que tratam da construccedilatildeo de objetos sociais nas abordagens sociolinguiacutesticas (2007 e 2008) e os que buscam renovar as teorias do discurso (2006) Alguns desses trabalhos satildeo objetos dos proacuteximos capiacutetulos deste livro Haacute ainda o trabalho de L Rosier sobre a questatildeo do purismo nos trabalhos acerca das normas da liacutengua francesa e a circulaccedilatildeo dos discursos (2003 2004 e 2006)

O que expusemos anteriormente natildeo significa que as questotildees aqui rapidamente apresentadas natildeo sejam tratadas na literatura Todavia esse tipo de tratamento eacute feito sob outras etiquetas terminoloacutegicas ou com base em outras orientaccedilotildees teoacutericas e temaacuteticas

Em primeiro lugar eacute sob a designaccedilatildeo ordinaacuterio que o discurso espontacircneo sobre a liacutengua eacute agraves vezes estudado17 sem que haja contudo uma discussatildeo sobre essa questatildeo no contexto francecircs cujo objetivo seria o da constituiccedilatildeo de um domiacutenio cientiacutefico que buscasse uma sistematizaccedilatildeo quer seja da ldquolinguiacutestica ordinaacuteriardquo ou do ldquoordinaacuteriordquo propriamente dito O termo ordinaacuterio eacute amplamente mobilizado em lexias como francecircs ordinaacuterio trocas linguiacutesticas ordinaacuterias ou discursos ordinaacuterios Essa problemaacutetica do termo ordinaacuterio se confunde frequentemente com a problemaacutetica do cotidiano agrave maneira que os etnometodoacutelogos tratam dessa questatildeo Em segundo lugar dois subdomiacutenios ou orientaccedilotildees teoacutericas e temaacuteticas satildeo intensamente atravessadas pelas questotildees da linguiacutestica popular

a) De uma parte o vasto domiacutenio dos estudos sobre o ldquometardquo que trata da linguiacutestica do sistema (REY-DEBOVE 1978 que faz uma distinccedilatildeo da ldquometalinguagem correnterdquo e ldquocientiacuteficardquo tanto da teoria da enunciaccedilatildeo e da reformulaccedilatildeo (AUTHIER-REVUZ 1995 e as aspas meta-enunciativas quanto de Julia (2001) que fala de uma ldquosemacircntica espontacircneardquo) ou da didaacutetica da liacutengua (por exemplo J-C BEACCO R BOUCHARD J DAVID e S TREacuteVISE)18

b) De outra parte um conjunto tambeacutem vasto de trabalhos que em sociolinguiacutestica (J-C BEACCO define a linguiacutestica popular como um desdobramento da sociolinguiacutestica) se ocupam das normas e das representaccedilotildees (BERRENDONNER 1982 GADET (2007 [2003])

17 Para constatar essa afirmaccedilatildeo veja o sumaacuterio do nuacutemero organizado por Jean-Claude Beacco na revista Langages em 2004 intitulado Repreacutesentations meacutetalinguistiques ordinaires et discours

18 Para uma siacutentese destes trabalhos ver Bouchard e Meyer (1995)

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HOUDEBINE (2002) LAFONTAINE (1986) E A BOYER N GUERNIER J-M KLINGEBERG e outros) frequentemente recobertas pela etiqueta das ldquoatitudes linguiacutesticasrdquo no quadro de uma psicologia social da linguagem

23 Praacuteticas de linguiacutesticas profanasComo acabamos de mostrar de certa maneira a linguiacutestica popular natildeo existe na Franccedila

como um campo constituiacutedo Neste caso pode parecer paradoxal querer definir seus objetos e os materiais de observaccedilatildeo O paradoxo se configura se nos propomos a considerar a linguiacutestica popular como uma estrutura para unificar os objetos e abordagens mencionadas ateacute agora centrada em torno do conceito de praacutetica

Para tanto perquirimos a seguinte proposiccedilatildeo o campo de investigaccedilatildeo da linguiacutestica popular incluiria o conjunto dos enunciados que podemos qualificar como praacuteticas linguiacutesticas profanas (isto eacute que natildeo vecircm de representantes da linguiacutestica como uma disciplina estabelecida os ldquonatildeo-linguistasrdquo assim chamados por N Niedzielski e D Preston) designando avaliando ou referindo-se aos fenocircmenos da linguagem para produzi-los (os dois primeiros itens satildeo retirados de Brekle 1989 e o terceiro proposto por noacutesMarie-Anne Paveau)

i Descriccedilotildees ou (preacute)teorizaccedilotildees linguiacutesticas por exemplo aquelas que se relacionam com a designaccedilatildeo (chamar um gato de gato ou as coisas por seu nome) ou sobre a hierarquia entre escrito e oral (palavras verbais falar como um livro colocar os pingos nos is dizer ao peacute da letra) ou ainda sobre a conformidade com as regras da liacutengua (agente vai e vocecirc estaacute afim ldquonatildeo satildeo portuguecircsrdquo19) Um exemplo de um trecho da linguiacutestica social popular derivado do corpus das obras tiacutepicas do ldquoespiacuterito francecircsrdquo que propotildee uma pequena teoria profana do patroniacutemico em um contexto intercultural (Turid a jovem companheira norueguesa do narrador faz o experimento sobre os usos do nome proacuteprio na administraccedilatildeo francesa)

Mas o segredo do nome tambeacutem se estende aos serviccedilos puacuteblicos Enquanto em muitos paiacuteses sabemos imediatamente com quem estamos lidando ndash nos escritoacuterios com um crachaacute com o nome do funcionaacuterio no telefone porque o funcionaacuterio foi nomeado ndash na Franccedila se Turid quer saber quem ela deveria chamar na prefeitura nas contribuiccedilotildees no Serviccedilo Social

- Senha 634

Se ela insiste em ter uma interlocutora que parecesse gentil com ela

- Pergunte Madame Yvette

O nome da famiacutelia continua sendo um segredo quase inviolaacutevel Eacute o mesmo no bistrocirc onde o chefe recebe constantemente mensagens codificadas

- Eu te deixo pelo Senhor Leacuteon Vocecirc vai dizer a ele que eacute do Sr Raymond (P DANINOS 1977 Made in France Paris Julliard p 23)

19 NT Aqui a autora usa dois exemplos de ldquoerros gramaticiaisrdquo em francecircs que adaptamos para o portuguecircs com o uso de agente no lugar de a gente e afim no lugar de a fim

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ii Prescriccedilotildees comportamentais que na maioria das vezes vecircm de um normativismo mais ou menos exacerbado sabemos que ldquoamantes da boa linguagemrdquo ou ldquocomerciantes de regrasrdquo nas palavras de G Philippe (2002) condenam facilmente os neologismos (inuacuteteis) os empreacutestimos (ameaccediladores) os adveacuterbios terminados em -mente (pesados) as palavras teacutecnicas (jargotildees) feminilizaccedilotildees (ridiacuteculas) etc (PAVEAU ROSIER 2008) As praacuteticas profanas entatildeo satildeo abarcadas pelo purismo como definido por L Rosier (2004 p 69)

Eacute caracterizada por uma forte axiologizaccedilatildeo performativa (o que eacute dito o que natildeo eacute dito) que une o bom uso e pretende respeitar uma estrita economia das trocas linguiacutesticas em que se avalia aquele que fala de acordo com seu domiacutenio da liacutengua sob o acircngulo de riqueza lexical e correccedilatildeo gramatical

iii Intervenccedilotildees espontacircneas sobre a liacutengua chamadas de ldquofalhasrdquo pelos gramaacuteticos e puristas mas que constituem uma praacutetica real de linguagem profana impliacutecita se considerarmos que a falta constitui um discurso sobre a linguagem A coisa eacute entendida pelas etimologias populares (cata-vento lt catar + vento) e as meta-anaacutelises ou ldquointerrupccedilotildeesrdquo (ocircnibus rarr autocarro panorama rarr diaporama) menos quando dizem respeito aos erros Mas sabemos poreacutem e desde haacute muito tempo (a intransponiacutevel Gramaacutetica das falhas de Frei data de 1928) que a maioria das falhas dos falantes grandes ou pequenas eacute explicada pelo princiacutepio da economia da linguagem a linguagem eacute assim regularizada (o famoso vocecirc faz) simplificado (o caso bem conhecido odiado pelos puristas emoccedilatildeo rarr emocionado ou o menos conhecido ele cobriu lido no Teacuteleacuterama semanaacuterio culto em julho de 2006) harmonizado (Centro de estudos espaciais tambeacutem no Teacuteleacuterama em setembro de 2006) As falhas do francecircs existem como D Leeman pergunta (1994) Tudo depende por quem para quem e por que fazer Mas as intervenccedilotildees tambeacutem dizem respeito a campos mais poliacuteticos que dizem respeito agraves realidades de territoacuterios e populaccedilotildees como mostra claramente o artigo de P Seacuteriot E Bulgakova A Herzen como jaacute mencionamos presente no nuacutemero 139140 da revista Pratiques Nomes de pessoas nomes de liacutenguas nomes de paiacuteses e rios trata-se aqui de uma linguiacutestica popular com alto grau de performatividade uma vez que as intervenccedilotildees linguiacutesticas tambeacutem satildeo prescriccedilotildees de identidade

iv Haacute ainda as praacuteticas militantes especialmente aquelas que se debruccedilam a questionar certos usos linguiacutesticos por conta de seu caraacuteter racista homofoacutebico machista enfim preconceituoso

Recapitulando com base no nosso entendimento diremos que a linguiacutestica popular reuacutene quatro tipos de praacuteticas linguiacutesticas descritiva (descrevemos a atividade da linguagem) normativa (prescrevemos comportamentos da linguagem) intervencionista (intervimos nos usos da linguagem) e militante (questionamos certos usos da linguagem por entendermos natildeo serem virtuosos preconceituosos machistas entre outros) Examinemos agora de acordo com os nossos objetivos quais questotildees a linguiacutestica popular deveria desenhar para a linguiacutestica e a didaacutetica da liacutengua

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3 As muacuteltiplas dimensotildees da linguiacutestica popularUma das razotildees pelas quais a linguiacutestica popular deveria ser um domiacutenio da linguiacutestica eacute

que ela diz respeito natildeo apenas agrave teoria linguiacutestica em sua constituiccedilatildeo sua validade e sua legitimidade (o que lhe confere uma dimensatildeo epistemoloacutegica e meta-teoacuterica) mas tambeacutem agraves praacuteticas linguageiras em suas dimensotildees sociais culturais e cognitivas (o que eacute caro agrave sociolinguiacutestica agrave psicologia social e agrave semacircntica cognitiva) bem como aos procedimentos de ensino-aprendizagem de liacutenguas (levando ao ensino de liacutenguas e agrave psicolinguiacutestica)

31 Epistemologia

A linguiacutestica popular propotildee entre outras questotildees um problema de fronteiras disciplinares e de concepccedilatildeo de ciecircncia Sobre esse ponto as questotildees se misturam quais satildeo as relaccedilotildees entre sociolinguiacutestica e linguiacutestica popular (integraccedilatildeo afinidade cruzamento) E acima de tudo entre a linguiacutestica popular e a chamada linguiacutestica acadecircmica ou cientiacutefica devemos permanecer em uma oposiccedilatildeo binaacuteria (uma versus a outra) em que os natildeo-linguistas natildeo tecircm nada a dizer sobre liacutengua e os linguistas satildeo os uacutenicos autorizados a fazecirc-lo ou de maneira mais razoaacutevel podemos colocar as coisas em termos de um continuum um gradiente de cientificidade ou espontaneidade As fronteiras satildeo claras entre o purismo e a linguiacutestica popular (o purismo finalmente eacute tatildeo profano quanto isso) E que jogo de estilos musicais se desenrola entre a gramaacutetica tradicional a linguiacutestica popular e a linguiacutestica cientiacutefica a gramaacutetica tradicional apresentando por meio da norma caracteriacutesticas em comum com a proacutepria linguiacutestica popular conectada com linguiacutestica aprendida Como definir o ldquopopularrdquo ou ldquoprofanordquo senatildeo de maneira relativa a um padratildeo de comparaccedilatildeo qual seria a cientificidade ela mesma suscetiacutevel de variaccedilotildees de acordo com os objetos os meacutetodos e os objetivos considerados

Eacute primeiramente D R Preston um dos iniciadores do campo e autor com N Niedzielski da primeira siacutentese sobre a linguiacutestica popular (2003 [2000]) que responde a essas questotildees demonstrando o interesse cientiacutefico de comentaacuterios linguiacutesticos de natildeo-linguistas No artigo ldquoQursquoest-ce que la linguistique populaire Une question drsquoimportancerdquo20 ele explica por que e como levar em conta a linguiacutestica folk e mostra de passagem algumas ideias recebidas sobre a questatildeo como a suposta pobreza dos conhecimentos populares por exemplo

No nuacutemero mencionado da revista Pratiques vaacuterios autores lidam com essa dimensatildeo epistemoloacutegica Por exemplo nesse nuacutemero haacute uma entrevista concedida pelo historiador Eacuteric Mension-Rigau21 na qual ele explica de maneira muito praacutetica como trata os dados linguiacutesticos com um meacutetodo ldquocombinadordquo de suas habilidades como leitor de literatura (ele eacute um historiador de formaccedilatildeo que se interessa pelas Letras) o que ele chama de sua intuiccedilatildeo e de suas faculdades de observaccedilatildeo e interpretaccedilatildeo Para ele eacute um verdadeiro meacutetodo histoacuterico e como D Dennett o autor poderia dizer que ldquofuncionardquo porque na verdade produz resultados convincentes e reconhecidos

20 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1176

21 Referimo-nos ao texto ldquoEntretien avec un folk linguiste lrsquohistorien Eacuteric Mension-Rigaurdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1174

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Por sua vez G Achard-Bayle que especularmente escolheu uma forma ldquopopularrdquo para lidar com a questatildeo da linguiacutestica popular (ldquoTrivial Pursuit Alfabeto da identidade pop-folk para o uso de linguistasrdquo) mostra como as questotildees ligadas agrave referecircncia ao real e agrave identidade satildeo sempre suscetiacuteveis agrave teorizaccedilatildeo de regime muacuteltiplo de acordo com o senso comum ou a racionalidade cientiacutefica avanccedilam para ambos suscetiacuteveis de receberem definiccedilotildees relativas

G Schmale no texto intitulado Conceptions populaires de la conversation22 discute a questatildeo da situaccedilatildeo da Laienlinguistik em comparaccedilatildeo com outras praacuteticas algumas menos instruiacutedas outras mais sobre a conversaccedilatildeo Por fim numa perspectiva epistemoloacutegica mais generalista o pesquisador Martin Stegu no artigo Linguistique populaire language awareness linguistique appliqueacutee interrelations et transitions23 compara a linguiacutestica folk a Laienlinguistik a linguiacutestica acadecircmica ou ldquooficialrdquo e sua relaccedilatildeo com a linguiacutestica aplicada No entendimento de Stegu essa comparaccedilatildeo mostra por exemplo que a linguiacutestica aplicada eacute em muitos aspectos bem proacutexima da linguiacutestica popular porque ela proacutepria foi concebida pelos natildeo-linguistas O autor defende entatildeo uma concepccedilatildeo aberta e escalar da linguiacutestica aplicada popular e acadecircmica

32 Teoria

Em suma eacute a proacutepria questatildeo da teoria que a linguiacutestica popular revira ativando questotildees sobre a categorizaccedilatildeo e denominaccedilatildeo dos fenocircmenos estudados nas ciecircncias da linguagem o estudo das atividades metalinguiacutesticas comuns dos falantes vem da linguiacutestica popular A palavra corrente eacute sinocircnimo de popular E como tratar a famosa intuiccedilatildeo ou o sentimento da linguagem em que os proponentes de uma linguiacutestica da competecircncia estatildeo baseados Sabemos que o termo contra intuitivo eacute frequentemente mobilizado para provar a agramaticalidade desta ou daquela forma A intuiccedilatildeo estaacute incluiacuteda na categoria de ldquopopularrdquo A intuiccedilatildeo eacute profana

Tomando uma vez mais a revista Pratiques M-A Paveau oferece algumas respostas hipoteacuteticas a essas questotildees em seu texto Les non-linguistes font-ils de la linguistique Une approche anti-eacuteliminativiste des theacuteories folk24 No texto em questatildeo a autora defende uma abordagem integracionista isto eacute que integre dados considerados folk para a linguiacutestica acadecircmica sem que uma fronteira em termos de contrariedade (ldquoversusrdquo) seja colocada entre os dois tipos de fenocircmenos Eacute a questatildeo da intuiccedilatildeo que sustenta essa posiccedilatildeo antieliminatoacuteria na medida em que a linguiacutestica acadecircmica natildeo pode economizar em intuiccedilatildeo e introspecccedilatildeo por causa de sua dimensatildeo reflexiva irredutiacutevel

Nesse quesito a linguiacutestica eacute particularmente fraacutegil face a ambiccedilotildees objetivistas e idealistas derivadas do modelo cientiacutefico das ciecircncias exatas No campo da argumentaccedilatildeo o trabalho de Marianne Doury tambeacutem se questiona sobre a validade do raciociacutenio folk A autora mostra em seu artigo intitulado lsquoCe nrsquoest pas un argumentrsquo Sur quelques aspects des theacuteorisations spontaneacutees de lrsquoargumentation25 que natildeo haacute diferenccedila gritante em termos da validade dos

22 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1186

23 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1193

24 A traduccedilatildeo deste artigo para o portuguecircs estaacute publicada em Policromias Rio de Janeiro UFRJ v 2 n 3 p 21-45 dez 2018 Disponiacutevel em httpsrevistasufrjbrindexphppolicromiasissuedownload1175622 Acesso em 10 ago 2019

25 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1207

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argumentos entre as produccedilotildees espontacircneas e as produccedilotildees aprendidas Ela traz assim argumentos importantes para fundamentar a abordagem antieliminatoacuteria

Essa posiccedilatildeo integracionista pode ser encontrada ateacute mesmo dentro da proacutepria linguiacutestica acadecircmica como mostram as obras de F Recanati sobre o sentido literal e o sentido contextual sintetizado em seu livro Literal Meaning (RECANATI 2004) Eacute preciso que nos debrucemos um pouco sobre essa concepccedilatildeo do sentido diretamente relacionada ao problema do eliminatoacuterio versus integracionista F Recanati que produz linguiacutestica a partir da filosofia desenvolve uma concepccedilatildeo contextualista do sentido e portanto argumenta que uma teoria semacircntica baseada na noccedilatildeo de sentido literal natildeo pode funcionar No capiacutetulo 9 de seu livro o autor defende uma posiccedilatildeo que chama de Meaning Eliminatism (eliminar o sentido intriacutenseco) baseada na ideia de que o sentido pode ser desenvolvido sem uma concepccedilatildeo puramente linguiacutestica e natildeo-contextual do sentido

De acordo com WF [visatildeo Wrong Format ldquoFormato Erradordquo] o sentido expresso por uma expressatildeo deve sempre ser contextualmente construiacutedo com base no (excessivamente rico ou excessivamente abstrato) significado ou potencial semacircntico do tipo de palavra [] Nesse quadro ainda haacute um papel para o significado linguiacutestico dos tipos de palavras eacute a entrada (ou um dos insumos) para o processo de construccedilatildeo

A diferenccedila entre o Meaning Eliminativism (ME) e o WF eacute que de acordo com o ME natildeo precisamos de significados linguiacutesticos nem mesmo para servir como entrada para o processo de construccedilatildeo Os sentidos que satildeo as contribuiccedilotildees das palavras para os conteuacutedos satildeo construiacutedos mas a construccedilatildeo pode prosseguir sem a ajuda de significados de palavras convencionais independentes do contexto (RECANATI 2004 p 174-175)

O autor entatildeo considera que a teoria contextualista do sentido eacute uma teoria popular na medida em que se baseia em dados natildeo-linguiacutesticos isto eacute contextuais Portanto aqui estamos diante de uma teoria linguiacutestica elaborada com base em uma concepccedilatildeo ldquonatildeo-linguiacutesticardquo no sentido aprendido do termo do sentido F Recanati pode ser descrito como um filoacutesofo que faz linguiacutestica junto com a natildeo-linguiacutestica o que natildeo eacute do gosto de todos como R M Harnish (2005 p 397) mostra claramente resumindo assim a posiccedilatildeo do filoacutesofo francecircs

Assim Recanati parece natildeo apenas promover uma espeacutecie de ldquosemacircntica-pragmaacutetica folkrdquo mas tambeacutem negar a legitimidade (e o potencial valor psicoloacutegico) da tradicional (ldquocientiacuteficardquo) linguiacutestica semacircntica Ele parece estar apostando que a semacircntica-pragmaacutetica natildeo seguiraacute o caminho da sintaxe (e da fonologia) Isto eacute introspectiva a psicologia popular prevaleceraacute tanto sobre as intuiccedilotildees semacircnticas quanto sobre a metodologia tradicional de construccedilatildeo de teoria na semacircntica

Natildeo seria toda linguiacutestica uma linguiacutestica popular Isto eacute certamente mostrado por certas representaccedilotildees discursivas e certos imaginaacuterios linguiacutesticos

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33 Representaccedilotildees

A questatildeo da validade teoacuterica ou mais amplamente cientiacutefica tambeacutem surge para os estudos sobre as representaccedilotildees linguiacutesticas do imaginaacuterio linguiacutestico formulado por A-M Houdebine ateacute as mitologias linguiacutesticas estudadas por P Zoberman bem como a linguiacutestica fantaacutestica e imaginaacuteria evocada por M Yaguello o imaginaacuterio eacute popular a linguiacutestica fantaacutestica eacute profana De quais campos de quais categorias de qual campo disciplinar ou subdisciplina somos noacutes

As respostas satildeo fornecidas por J-C Beacco em seu artigo De la verve Agrave la recherche drsquoun ideacuteal discursif ordinaire26 quando ele propotildee analisar ldquoas concepccedilotildees circulantes sobre o que eacute o bom falar ou o que eacute o autecircntico bom escrever que responde a valores distintos ou opostos agravequeles que baseiam as normas dominantes ditas indiferentemente acadecircmicas oficiais escolares supervisionadas elegantes Neste texto o autor examina um corpus de artigos da imprensa esportiva (o jornal diaacuterio LrsquoEacutequipe) para descobrir definiccedilotildees espontacircneas do que eacute essa eloquecircncia autecircntica Em outra ordem de ideias mas ainda no campo das estruturas representacionais P Seacuteriot E Bulgakova e A Heržen mostram em La linguistique populaire et les pseudo-savants27 que o discurso da liacutengua constitui a base de um questionamento sobre as identidades coletivas e nacionais na Europa Oriental no primeiro dececircnio dos anos dois mil Eles destacam assim realidades culturais e discursivas pouco conhecidas como a fabricaccedilatildeo de identidades miacuteticas e origens fantaacutesticas por meio de um discurso linguiacutestico ldquopseudo-eruditordquo com uma forte intenccedilatildeo persuasiva As apostas satildeo altas porque se trata da definiccedilatildeo de povos e da delimitaccedilatildeo de fronteiras

34 Praacuteticas

Por fim a linguiacutestica popular levanta o problema do valor e da efetividade do conhecimento espontacircneo em um contexto de aprendizagem um discurso frequente eacute que na linguiacutestica como em outros lugares a demonstraccedilatildeo cientiacutefica na maioria das vezes contradiz a interpretaccedilatildeo espontacircnea (por exemplo a posiccedilatildeo de Jackendoff (2003) em relaccedilatildeo ao ldquoconhecimento popularrdquo) Esse discurso estaacute no entanto atualmente sendo minado por alguns filoacutesofos das ciecircncias que depois de ilustres antecessores como A Schutz ou P Feyerabend mostraram como as teorias espontacircneas agraves vezes estatildeo proacuteximas de resultados cientiacuteficos ou tecircm validade de uma outra ordem necessaacuteria no campo da vida em sociedade

Esta questatildeo parece crucial para noacutes na aula de francecircs do jardim de infacircncia agrave universidade Qual eacute o lugar do conhecimento profano dos alunos e professores em sala de aula (sabemos que a atividade metalinguiacutestica de ldquocrianccedilas gramaacuteticasrdquo eacute largamente explorada em preacute-aprendizagens no maternal e no ciclo 1) Um ldquoerro cientiacuteficordquo pode ter uma boa rentabilidade funcional no aprendizado Eacute este o caso de todas as atividades Para todos os niacuteveis de ensino (ldquoa crianccedila gramaacuteticardquo de Gleitman Gleitman e Shipley (1972) pode tornar-se um ldquoestudante gramaacuteticordquo) O ensino de francecircs deve privilegiar a eficaacutecia ou a precisatildeo cientiacutefica

26 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1214

27 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1220

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Sobre essas questotildees vale a pena voltar uma vez mais ao nuacutemero 139140 da revista Pratiques Em seu trabalho sobre Les explications meacutetagraphiques appliqueacutees aux premiegraveres eacutecritures enfantines28 J David se baseia em um grande corpus de textos escritos e especialmente em autoexplicaccedilotildees ou comentaacuterios metagraacuteficos produzidos por crianccedilas pequenas que satildeo aprendizes de escritores (5-7 anos) para mostrar como essas crianccedilas conseguem verbalizar o conhecimento emergente sobre o funcionamento da escrita Este conhecimento demonstra ter conexotildees por um lado com as propriedades das linguagens orais e por outro lado com os componentes da escrita (semioloacutegicos fonoloacutegicos morfoloacutegicos) gradualmente descobertos e integrados Um conhecimento espontacircneo e incontestaacutevel surge assim dos comentaacuterios metagraacuteficos das crianccedilas

Constataccedilotildees anaacutelogas satildeo feitas por referecircncia agraves grafias inventadas (invented spellings) por J-P Jaffre e M-F Morin Em sua reflexatildeo sobre Les activiteacutes preacute-orthographiques nature validiteacute et conceptions29 os autores mostram de fato que as crianccedilas pequenas possuem habilidades preacute-ortograacuteficas pois natildeo satildeo a princiacutepio cognitivamente sensiacuteveis agraves normas ortograacuteficas mas agraves funcionalidades subjacentes cuja uacutenica consideraccedilatildeo eacute avaliar suas primeiras produccedilotildees Eles concluem que escrever natildeo eacute mais uma questatildeo de (re)produzir normas ortograacuteficas mas de perceber princiacutepios graacuteficos baacutesicos e recorrentes ndash por exemplo o valor fonoloacutegico das letras na tradiccedilatildeo alfabeacutetica

Satildeo essas ldquocrianccedilas gramaacuteticasrdquo que satildeo o assunto dos comentaacuterios de M Laparra Em seu texto Lrsquoeacutelegraveve grammairien Lrsquoexemple de lrsquoapprentissage des marques graphiques du franccedilais30 a autora se pergunta qual eacute o valor do conhecimento espontacircneo que os alunos podem produzir em certas marcas morfoloacutegicas graacuteficas do francecircs Apesar de tudo a sala de aula continua sendo um espaccedilo interacional que constitui um verdadeiro reservatoacuterio onde se descobrem discursos agraves vezes preacute-fabricados furtivos ou ritualizados oriundos por vezes dos proacuteprios conhecimentos escolares derivados dos conhecimentos acadecircmicos Eacute isso que C Weber mostra em Les verbalisations ordinaires dans la classe objets furtifs ou variables encombrantes des sciences du langage31 Os vaacuterios modos comunicativos que se desenrolam na sala de aula datildeo lugar de fato em sua opiniatildeo a uma infinita variaccedilatildeo de produccedilotildees representaccedilotildees e raciociacutenios que estatildeo prestes a ser construiacutedos cuja forma e presenccedila satildeo ldquofurtivasrdquo mas que desempenham um papel decisivo nas praacuteticas escolares

O nosso primevo percurso acerca da linguiacutestica popular finda mencionando o artigo de F Capucho Ela propotildee uma abordagem ineacutedita em relaccedilatildeo a todos os trabalhos jaacute mencionados na medida em que opta por trabalhar no contexto do plurilinguismo e em uma noccedilatildeo pluridisciplinar (linguiacutestica filosofia psicologia social comunicaccedilatildeo) a intercompreensatildeo Em Lrsquointercompreacutehension est-elle une mode Du linguiste citoyen au citoyen plurilingue32 ela mostra que essa noccedilatildeo estrutura os comportamentos de falantes pluriliacutengues especialmente em condiccedilotildees

28 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1230

29 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1238

30 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1246

31 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1247

32 Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgpratiques1252

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com alto grau de estranheza como as viagens Em particular ela analisa os componentes emocionais e situacionais e mostra ateacute que ponto os locutores mobilizam espontaneamente quase ldquonaturalmenterdquo sua competecircncia intercompreensiva

4 Umas poucas palavras de fim Esperamos que as breves consideraccedilotildees que aqui realizamos possam orientar e talvez

iluminar uma aacuterea que ainda eacute um pouco obscura na Franccedila e pelo que nos consta a partir de nosso contato com os organizadores deste livro tambeacutem no Brasil Os levantamentos aqui apresentados podem contribuir para o tratamento da linguiacutestica popular a partir de questotildees de natureza epistemoloacutegica teoacuterica praacutetica e representacional que acreditamos serem necessaacuterias para que o campo da ciecircncia da linguagem seja mantido em um dinamismo seguro sem nenhum tipo de binarismos Esperamos que os percursos brevemente abertos ou aprofundados aqui favoreccedilam igualmente as colaboraccedilotildees de todos os interessados sobre a questatildeo da linguiacutestica popular e de um modo mais geral sobre a validade do conhecimento das ciecircncias humanas

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NAtildeO-LINGUISTAS FAZEM LINGUIacuteSTICA33

A linguiacutestica popular ou linguiacutestica folk (designaccedilatildeo afrancesada que adotei por dar conta da questatildeo da polissemia de popular e dos mal-entendidos que satildeo curiosamente associados agrave palavra)34 tem se apresentado ultimamente bem descrita e definida especialmente no contexto de trabalhos realizados sobre a questatildeo no exterior e depois na Franccedila jaacute haacute quinze anos35 A existecircncia de um conjunto de praacuteticas linguiacutesticas designaacuteveis como ldquofolkrdquo (ou melhor por todo outro adjetivo estabilizado que compartilhe o mesmo domiacutenio como profanas espontacircneas selvagens ingecircnuas leigas) natildeo deixa praticamente nenhuma duacutevida que um campo de investigaccedilatildeo particularmente fecundo se abriu para os linguistas que se preocupam com quaisquer produccedilotildees imaginaacuterias e representacionais dos falantes

Tais praacuteticas sobre as quais propus uma tipologia inicialmente tripartite em Paveau (2000) depois de Brekle (1989) (a saber 1 Descriccedilotildees 2 Prescriccedilotildees 3 Intervenccedilotildees) e mais modernamente quatripartite as praacuteticas militantes comeccedilam agora a ser bem compreendidas na diversidade dos lugares sociais em que se manifestam e na variedade de suas atividades com ou sobre a liacutengua imprensa escola foacuteruns de internet guias de conversaccedilatildeo conversa cotidiana etc Comeccedilamos assim a saber bem o que os natildeo-linguistas fazem bem como quando e onde Entretanto natildeo sabemos tatildeo bem quem exatamente eles satildeo e o que deseja sua teoria folk Eacute sobre esses dois pontos que me concentro aqui neste capiacutetulo Proporei inicialmente e a tiacutetulo heuriacutestico uma tipologia de natildeo-linguistas que a meu ver deve-se apresentar de maneira discreta ser um natildeo-linguista natildeo eacute um estado permanente mas uma atividade praticaacutevel num momento e num lugar determinados inclusive pelos proacuteprios linguistas haacute uma posiccedilatildeo de natildeo- linguista sempre cambiaacutevel com alguma outra Darei alguns exemplos de atividades cuja inscriccedilatildeo nessa linguiacutestica folk pode ser discutida exemplos que me serviratildeo para questionar as relaccedilotildees que possam existir entre as ldquoidentidadesrdquo dos natildeo-linguistas e a natureza de suas atividades Num segundo momento abordarei dando continuidade agrave reflexatildeo feita alhures em Paveau (2007 2008a) a difiacutecil questatildeo epistemoloacutegica e filosoacutefica da validade da linguiacutestica folk que evidentemente coaduna-se com as dificuldades de se pensar nas folk sciences em geral Retomarei em particular as noccedilotildees de saber e de consciecircncia epilinguiacutesticos que fornecem argumentos

33 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Les non-linguistes font-ils de la linguistique Une approche antieacuteliminativiste des theories folk Pratiques ed 139-140 p 93-110 2008 Uma versatildeo modificada deste texto foi publicada na Policromias ndash Revista de Estudos do Discurso Imagem e Som da UFRJ v 3 n 2 2018 Disponiacutevel em httpsrevistasufrjbrindexphppolicromiasarticleview21267 Traduccedilatildeo de Phellipe Marcel da Silva Esteves (UFF)

34 Ver detalhe em Paveau (2007) e nas observaccedilotildees de J-C Beacco feitas na ediccedilatildeo 139140 da Pratiques Conformo-me assim voluntariamente com um imperativo ideoloacutegico que natildeo ignoro ser definitoacuterio do discurso cientiacutefico mas nem sempre enxergo por que continuamos a atribuir a popular ldquoconotaccedilotildees pejorativasrdquo a natildeo ser para manter no exerciacutecio do discurso cientiacutefico discursos classistas que natildeo me parecem pertinentes a ele Os filoacutesofos anglicistas que traduzem hoje em dia folk psychology como psicologia popular (P Engel tradutor de Dennett (1990 [1987]) por exemplo) haacute geraccedilotildees natildeo fazem essa distinccedilatildeo incompreensiacutevel Popular como vulgar ou familiar e o conjunto do paradigma que designa ldquoo baixordquo satildeo polissecircmicos e eu me surpreendo que justamente os linguistas que satildeo alguns dos uacutenicos que sabem identificar e defender essa polissemia preocupem-se com esses efeitos

35 Ver Achard-Bayle e Paveau (2008b) Achard-Bayle e Lecolle (2009) Antos (1996) Beacco (2004 org) Brekle (1989) Niedzielski e Preston (2003 [1999]) Paveau (2000 2005 2007 2008a 2009) Paveau e Rosier (2008)

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para defender uma posiccedilatildeo integracionista36 ou seja antieliminativa os enunciados folk natildeo satildeo necessariamente crenccedilas falsas a serem eliminadas da ciecircncia Constituem ao contraacuterio saberes perceptivos subjetivos e incompletos a serem integrados aos dados cientiacuteficos da linguiacutestica

Quem satildeo os natildeo-linguistasA questatildeo da identidade ou da identificaccedilatildeo dos natildeo-linguistas eacute sem duacutevida uma das mais

difiacuteceis no domiacutenio da linguiacutestica folk Se a identificaccedilatildeo profissional dos linguistas eacute feita de modo relativamente faacutecil pela existecircncia de cursos diplomas especialidades universitaacuterias que correspondem na Franccedila a seccedilotildees do CNU e do CNRS (no Comitecirc Nacional tratam-se das seccedilotildees 7 9 e 34) e de uma literatura disciplinar relativamente bem circunscrita e balizada por dicionaacuterios a identificaccedilatildeo profissional dos natildeo-linguistas que lidam com atividades linguiacutesticas natildeo se baseia em nenhum criteacuterio mais institucional O escritor eacute um linguista folk E o revisor de textos das miacutedias escritas e das editoras E o jurista que analisa as palavras tatildeo detidamente quanto um lexicoacutelogo profissional Sim ficamos tentados a afirmar absolutamente mas a comparaccedilatildeo com o falante comum o ldquohomem das ruasrdquo que admira a beleza do leacutexico ou se lamenta quanto agrave degradaccedilatildeo da liacutengua (uma pessoa bem tiacutepica na Franccedila um paiacutes cuja liacutengua eacute constantemente objeto de polecircmicas inflamadas)37 relativiza imediatamente esse julgamento os trecircs primeiros parecem de todo modo mais ldquolinguistasrdquo que o uacuteltimo o falante comum que ocupa mais um espaccedilo verdadeiro de ldquolinguista de final de semanardquo uma figura meio ingecircnua e no fundo bem menos culta Entatildeo como identificar essa categoria de falantes que produzem enunciados avaliativos sobre a proacutepria liacutengua e a liacutengua dos outros metalinguiacutesticos e metadiscursivos a partir de posiccedilotildees subjetivas natildeo disciplinares e natildeo acadecircmicas

Posiccedilotildees discursivasComo em muitos domiacutenios do saber das ciecircncias humanas o pensamento cartesiano

binaacuterio (linguistas versus natildeo-linguistas como categorias discretas) nos leva diretamente agraves limitaccedilotildees do idealismo A meu ver eacute preferiacutevel adotar uma visatildeo escalar das coisas Seria melhor entatildeo mesmo se essa posiccedilatildeo se pareccedila iconoclasta para aqueles que creem na pureza e na objetividade da ciecircncia postular um continuum entre aqueles que fazem da linguiacutestica uma ciecircncia una e aqueles que natildeo Haveria dois polos que representariam os extremos teoacutericos de um lado o linguista ldquoestudadordquo ldquocientiacuteficordquo que manejaria os saberes ldquoexatosrdquo e de outro o linguista espontacircneo que produziria anaacutelises do tipo daquela destacada pela vendedora de loja de antiguidades ldquoEle nunca me diz o que me agradardquo

Recentemente Guumlnter Schmale (2008) fez uma primeira proposta analisando a linguiacutestica popular como lugar de cruzamento entre linguiacutestica cientiacutefica linguiacutestica amadora e para fins didaacuteticosde divulgaccedilatildeo Compartilho inteiramente dessa percepccedilatildeo Schmale eacute entatildeo levado

36 Ver Achard-Bayle e Paveau na introduccedilatildeo deste volume da Pratiques bem como Achard-Bayle e Lecolle (2009) Antos (1996) Beacco (2004 org) Brekle (1989) Niedzielski e Preston (2003 [l999]) Paveau (2000 2005 2007 2008a 2008b 2009) Paveau e Rosier (2008)

37 Ver Paveau e Rosier (2008)

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a propor uma breve tipologia dos linguistas espontacircneos no que tange agrave anaacutelise da conversa sobre um eixo cujos dois extremos satildeo uma ldquoausecircncia de conhecimentos sobre a conversardquo e ldquoconhecimentos perfeitos da organizaccedilatildeo conversacionalrdquo encontrar-se-iam gradativamente o falante comum o escritor o linguista ldquoamadorrdquo o linguista natildeo conversacionalista e o ldquoconversacionalistardquo (SCHMALE 2008) Gostaria aqui de fazer uma proposta mais global relacionada natildeo unicamente agrave anaacutelise da conversaccedilatildeo mas agrave liacutengua e agraves produccedilotildees verbais em francecircs em geral que responderia aos seguintes requisitos

[] dar conta o mais naturalmente possiacutevel da atividade ldquonatildeo-linguiacutesticardquo considerando natildeo identidades socialmente fixas (o escritor o jornalista o tipoacutegrafo) mas posiccedilotildees discursivas por definiccedilatildeo transitoacuterias e natildeo plenamente ajustadas agraves identidades sociais profissionais ou culturais Um gerente de bar inicia uma conversa por SMS com seus clientes um ministro de relaccedilotildees estrangeiras produz um texto sobre a degradaccedilatildeo do francecircs ou por que natildeo um linguista profissional produz um discurso natildeo-linguiacutestico sobre a liacutengua de natureza esteacutetica por exemplo (desgostar de alguma palavra por ela ldquosoarrdquo mal por fazer ldquodoerrdquo seus ouvidos) em virtude daquele famoso desencontro entre comportamento e introspecccedilatildeo sobre o qual em partes a sociolinguiacutestica laboviana eacute fundada e que foi quase definitivo para a dicotomia conceitual de seguranccedila versus inseguranccedila linguiacutestica (LABOV 2001 [1975])

questionar a integraccedilatildeo (ou natildeo integraccedilatildeo) das produccedilotildees considerando natildeo apenas o metalinguiacutestico mas tambeacutem o epilinguiacutestico ou seja uma competecircncia inconsciente portanto impliacutecita da liacutengua Relacionam-se aqui todos os tipos de jogos sobre as palavras os trava-liacutenguas os trocadilhos e confusotildees voluntaacuterias jogos de pronuacutencia (o ldquoQuando a mafagafa gafa gafam os sete mafagafinhosrdquo e o ldquotrecircs pratos de trigo para trecircs tigres tristesrdquo)38 brincadeiras sobre os significantes como a de ldquomonsieur et madame ont un filsrdquo39 histoacuterias bobas no substrato linguiacutestico imitaccedilotildees de sotaques e de maneiras de falar etc Chamo de ludolinguistas os falantes que adotam essa posiccedilatildeo ao mesmo tempo refletida e luacutedica sobre a liacutengua A questatildeo eacute de saber se essas produccedilotildees que repousam sobre uma competecircncia epilinguiacutestica extremamente sofisticada vecircm de atividade linguiacutestica Essas produccedilotildees satildeo sem duacutevidas dotadas de uma dimensatildeo didaacutetica expliacutecita Mas algo que pode nos confundir um bocado em nossa reflexatildeo eacute o fato de que elas se situam no limite entre atividades linguiacutesticas e atividades linguageiras entre atividades sobre a linguagem e atividades de linguagem

38 NT Realizamos uma adaptaccedilatildeo dos trava-liacutenguas em portuguecircs

39 NT Nesse ponto a autora acrescenta uma nota de rodapeacute afirmando que ldquoLes cinq filles de monsieur et madame Holl Jenny Lydia Beth Nicole et Esther eacute uma maravilhosa ilustraccedilatildeo da virtuosidade linguageira extrema no limite do domiacutenio teoacuterico dos ourives das palavras que fazem jogos com elasrdquo Essa sentenccedila em francecircs que se inicia com ldquoLes cinq fillesrdquo eacute uma brincadeira conhecida na liacutengua uma anedota Vai-se trocando o sobrenome da famiacutelia e a quantidade de filhos para se chegar a algum resultado que torne a leitura dos nomes dos filhos combinados ao sobrenome da famiacutelia a paroniacutemia de uma outra sentenccedilapalavra No caso da sentenccedila acima ldquoJrsquoai ni le diabegravete ni cholesterolrdquo [Natildeo tenho nem diabetes nem colesterol] se formam a partir de ldquoJenny Lydia Beth Nicole Esther Hollrdquo Para dar mais um exemplo ldquoMonsieur et Madame Oration ont une fille Ameacutelierdquo donde ldquoAmeacutelie Orationrdquo ldquoameacuteliorationrdquo [melhora] Um correlato fraco em liacutengua vernaacutecula mdash jaacute que natildeo se trata de uma famiacutelia de jogos epilinguiacutesticos mdash eacute a seguinte charada ldquoUma menina senta na sua cadeira da escola onde uma pessoa tinha colocado uma taxinha Qual eacute o nome da pessoa Na-taxa [Natasha]rdquo Embora natildeo forme uma famiacutelia esse tipo de charadas de ldquoQual eacute o nome da pessoardquo eacute muito comum no Brasil

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Uma proposta de tipologiaAssim proponho a seguinte tipologia elaborada a partir de trabalhos existentes sobre

a linguiacutestica folk ou as posiccedilotildees normativas as observaccedilotildees realizadas em meus trabalhos anteriores e em particular a partir do corpus reunido na obra La langue franccedilaise passions et poleacutemiques As posiccedilotildees satildeo classificadas por ldquocoeficienterdquo decrescente de detenccedilatildeo de um saber linguiacutestico e acompanhadas de uma categorizaccedilatildeo aproximada do tipo de praacuteticas executadas segundo a trilogia mencionada anteriormente

bull Linguistas profissionais que fornecem descriccedilotildees linguiacutesticas

bull Cientistas natildeo-linguistas (ldquohistoriador-linguistardquo como Eacuteric Mension-Rigau em seu Aristocrates et grands bourgeois Eacuteducation traditions valeurs ldquosocioacutelogo-linguistardquo como Pierre Bourdieu (em seu A distinccedilatildeo criacutetica social do julgamento) que propotildeem descriccedilotildees linguiacutesticas

bull Linguistas amadores (linguistas leigos acadecircmicos como Maurice Druon juristas como Geacuterard Cornu (autor de um manual de linguiacutestica juriacutedica ver Cornu 2005 [1990] e o subcapiacutetulo 131) que fornecem descriccedilotildees e prescriccedilotildees

bull Logoacutefilos glossomaniacuteacos40 e outros ldquoloucos da liacutenguardquo como Jean-Pierre Brisset ou George Orwell que frequentemente empreenderam intervenccedilotildees na liacutengua fosse por invenccedilatildeo fosse por deformaccedilatildeo

bull Preparadores-revisores-redatores (o lendaacuterio copidesque do Monde Jean-Pierre Collignon cujos sucessores produziram um discurso sobre sua atividade ldquolinguiacutesticardquo no blog ldquoLangue saucepiquanterdquo os especialistas de programas televisivos como o ldquoprofessorrdquo Capelovici e seus sucessores no programa Des chiffres et des lettres por exemplo) que sugerem descriccedilotildees e prescriccedilotildees (incluindo correccedilotildees)

bull Escritores ensaiacutestas (Proust Jean Paulhan Pierre Daninos Philippe Jullian Robert Beauvais) do lado da descriccedilatildeo e da prescriccedilatildeo

bull Ludolinguistas (humoristas imitadores autores de histoacuterias bobas autores de jogos sobre as palavras Thierry Le Luron fazendo imitaccedilotildees do poliacutetico Valeacutery Reneacute Marie Georges Giscard drsquoEstaing Sylvie Joly e sua personagem ldquoBourgeoiserdquo Florence Foresti e sua Anne-Sophie de la Coquillette Coluche e seu ldquobeaufrdquo [brutamontes homem grosseiro e machista]) que fazem descriccedilotildees-interpretaccedilotildees linguiacutesticas

bull Falantes engajados militantes ou apaixonados juristas em suas praacuteticas textuais e orais centrados na descriccedilatildeo e na intervenccedilatildeo

bull Falantes comuns (a vendedora da loja de antiguidades na Rue de la Chine os autores desconhecidos das colunas de leitores de jornais e revistas e as mensagens em blogs e foacuteruns os ldquodominantesrdquo citados por Jean-Claude Passeron que misturam sem duacutevida os trecircs tipos de praacuteticas

Tais posiccedilotildees natildeo satildeo evidentemente discretas mas porosas e ateacute mesmo transversais

40 O termo logoacutefilo eacute de Michel Pierssens (1976) e glossomaniacuteaco eacute uma palavra proposta por Umberto Eco (1994)

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podendo um falante passar de uma posiccedilatildeo a outra eacute bem isso que JRR Tolkien faz sendo filoacutelogo e lexicoacutegrafo professor de inglecircs medieval mas que ao mesmo tempo torna-se logoacutefilo ao inventar liacutenguas imaginaacuterias como o famoso eacutelfico e eacute bem assim tambeacutem com Saussure primeiro linguista profissional na teoria do signo glossomaniacuteaco beirando a posiccedilatildeo de ludolinguista em seus Anagramas

A porosidade das posiccedilotildees implica igualmente uma porosidade de saberes os saberes linguiacutesticos satildeo transmitidos para os da linguiacutestica folk e vice-versa A meu ver natildeo haacute com efeito isolamento possiacutevel das categorias nesse domiacutenio os saberes linguiacutesticos ditos ldquoestudadosrdquo ou ldquocientiacuteficosrdquo natildeo satildeo neutralizados da consciecircncia epilinguiacutestica dos falantes

Alguns exemplos juristas escritores logoacutefilos ludolinguistas e militantes

A linguiacutestica juriacutedica

O manual de linguiacutestica juriacutedica (ou ldquojurilinguiacutesticardquo) de Geacuterard Cornu (2005 [1990]) eacute um exemplo interessante de linguiacutestica folk na medida em que o autor se dedica meticulosamente a iniciar uma proposta sobre a ldquociecircncia da linguagemrdquo saussuriana embora mantendo incautamente sem duacutevidas os preacute-discursos profanos que parecem ldquoingecircnuosrdquo demais a um linguista profissional Por exemplo ele define a linguiacutestica juriacutedica como a ldquoaplicaccedilatildeo particular na linguagem do direito da fundamental ciecircncia da linguiacutestica geralrdquo e esclarece um pouco adiante que ldquosua esperanccedila eacute ao menos de ela ser reconhecida como uma linguiacutestica praacutetica do mesmo modo que a linguiacutestica aplicada agrave poesiardquo (CORNU 2005 [1990] p 25) Tal analogia entre direito e poesia eacute sustentada por uma referecircncia a Roman Jakobson cuja metodologia linguiacutestica para o estudo da poesia eacute diretamente aplicada ao direito Eacute daiacute que vem a equivalecircncia final ldquo[o] que eacute vaacutelido para o discurso poeacutetico deveria ser tambeacutem para o discurso juriacutedicordquo (CORNU 2005 [1990] p 25) Poderiacuteamos zombar dessa afirmaccedilatildeo mas essa analogia eacute interessante justamente por constituir uma das modalidades mais disseminadas do pensamento profano Temos aiacute um exemplo de uso de um meacutetodo profano para a elaboraccedilatildeo de um corpo de saber profano Mais agrave frente ele define o vocabulaacuterio juriacutedico como ldquoo reflexo do sistema juriacutedicordquo (Idem p 58) recuperando assim a concepccedilatildeo de liacutengua como reflexo E foi justamente contra essa concepccedilatildeo que a linguiacutestica cientiacutefica se constituiu Eu poderia ainda dar bem mais exemplos dessa linguiacutestica espontacircnea em embate com uma linguiacutestica acadecircmica que G Cornu apresenta para justificar o uso da linguagem em seu campo teoacuterico O essencial me parece ser que essa linguiacutestica folk ldquofuncionardquo como diria D Dennett quer dizer ela organiza com eficaacutecia os usos especializados da linguagem no campo juriacutedico

As ldquooutras liacutenguasrdquo de Antonin Artaud

ldquoEm fevereiro de 1947rdquo escreve Anne Tomiche (2002 p 141)

Antonin Artaud descreve essa lsquooutra liacutenguarsquo que ele nunca cessou de procurar como uma lsquocanccedilatildeo impostada [] entre negrochinecircsindiano e francecircs vulgarrsquo

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Ele enfatiza entatildeo natildeo apenas a dimensatildeo oral dessa liacutengua entre a canccedilatildeo e a impostaccedilatildeo mas tambeacutem a mistura de liacutenguas e mais precisamente uma mistura de liacutenguas associadas agraves transgressotildees sintaacuteticas e agrave inteligibilidade

Artaud fornece com efeito um exemplo de atividade linguiacutestica empreendida por um natildeo-linguista que eacute um escritor evidentemente dotado de um saber linguiacutestico epilinguiacutestico e plurilinguiacutestico (Artaud eacute familiarizado com muitas liacutenguas estrangeiras) largamente superior agrave meacutedia dos falantes Artaud se esforccedila entatildeo para elaborar outra liacutengua cujas caracteriacutesticas satildeo essencialmente a mistura e a transgressatildeo ao sistema Ele natildeo se contenta em criar e inventar formas linguageiras mas tambeacutem analisa-as no acircmbito de um discurso metalinguiacutestico Anne Tomiche daacute um exemplo bem representativo de uma posiccedilatildeo discursiva folk da parte de um escritor

Poderiacuteamos multiplicar os exemplos mas soacute falaremos de um particularmente interessante jaacute que Artaud natildeo se contenta em introduzir em uma frase em francecircs um termo o ldquoteacutetecircmerdquo que solda muitas liacutenguas ldquoNo sono a gente dorme de mim mesmo e de qualquer um soacute haacute o espectroa extraccedilatildeo do teacutetecircme do ser por outros seres (acordados por ora) disso que faz com que a gente seja um corpordquo Natildeo sem ironia ele continua em seguida com uma anaacutelise metalinguiacutestica da composiccedilatildeo do termo explicando que ldquoteacutetecircmerdquo mistura o eacutema grego (sangue) com a tecircte [cabeccedila testa] e com o theacute [chaacute] que reduplicado designa aquilo que repousa e que arde ldquoE o que eacute o teacutetecircme O sangue do corpo espalhado nesse momento e que adormece em seu sono Como o teacutetecircme eacute o sangue Pelo eacutema diante do t que repousa e que designa aquilo que repousa como o teacute veacute dos marselheses41 Porque o teacute [o chaacute] faz um barulho de cinza quando a liacutengua o encosta nos laacutebios em que ele queimaE Eacutema em grego quer dizer sangue E teacutetecircme duas vezes a cinza sobre a chama do coaacutegulo de sangue do inveterado coaacutegulo de sangue que eacute o corpo daquele que dorme e sonha Seria melhor que acordasserdquo(XIV 16)42 (TOMICHE 2002 p 144)

Logoacutefilos glossomaniacuteacos loucos da linguagemProacuteximo do escritor e de sua atividade folk mas distante do campo da literatura e de suas

aberturas ficcionais o apaixonado pela linguagem se entrega a atividades de invenccedilatildeo de liacutenguas imaginaacuterias O logoacutefilo eacute um tiacutepico linguista folk bem dentro do retrato que Marina Yaguello faz dele quando de seu estudo sobre aqueles que chama de ldquoloucos da linguagemrdquo

41 NT A expressatildeo ldquoTeacute veacuterdquo eacute tiacutepica da fala de Marselha significando algo como ldquoRepare soacuterdquo ldquoVejardquo ldquoOlherdquo No original a citaccedilatildeo inteira eacute ldquoOn pourrait multiplier les exemples mais on nrsquoen ajoutera qursquoun seul particuliegraverement inteacuteressant parce qursquoArtaud ne se contente pas drsquointroduire dans une phrase en franccedilais un terme le laquo teacutetecircme raquo qui brasse plusieurs langues laquo Dans le sommeil on dort il nrsquoy a pas de moi et personne que du spectre arrache- ment du teacutetecircme de lrsquoecirctre par drsquoautres ecirctres (agrave ce moment-lagrave eacuteveilleacutes) de ce qui fait que lrsquoon est un corps raquo Non sans ironie il procegravede ensuite agrave une analyse meacutetalinguistique de la composition du terme pour expliquer que le laquoteacutetecircmeraquo mecircle le eacutema grec (sang) agrave la tecircte et au laquotheacuteraquo qui redoubleacute deacutesigne ce qui se repose et qui bruumlle laquo Et qursquoest-ce que le teacutetecircme Le sang du corps agrave ce moment-lagrave allongeacute et qui sommeille car il dort Comment le teacutetecircme est-il le sang Par le eacutema devant qui le t se repose et deacutesigne ce qui se repose comme le teacute veacute des Marseillais Car le teacute fait un bruit de cendre lorsque la langue le deacutepose dans les legravevres ou il va fumer Et Eacutema en grec veut dire sang Et teacutetecircme deux fois la cendre sur la falamme du caillot de sang de caillot inveacuteteacutereacute de sang qursquoest le corps du dormeur qui recircve et ferait mieux de srsquoeacuteveiller

42 Fazemos referecircncia aqui agraves ediccedilotildees das obras completas de Artaud feitas pela Gallimard 1976-1994

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O inventor de liacutengua eacute um amador no duplo sentido do termo apaixonado pelas liacutenguas em geral desconhece absolutamente a ciecircncia da linguagem Mas ele tem antes de tudo uma preocupaccedilatildeo de natureza esteacutetica o desejo de produzir um tudo uma totalidade um conjunto fechado mas exaustivo dotado de uma simetria perfeita cujas engrenagens estatildeo besuntadas de oacuteleo onde nenhuma discordacircncia ou ambiguidade saberia se introduzir donde seriam banidos o equiacutevoco a extravagacircncia o mal-entendido (YAGUELLO 2006 p 45)

Sua posiccedilatildeo social e profissional o coloca em contato com os dados da cultura e ao contraacuterio dos pintores da arte bruta ou da arte ldquode fora da cacircnonerdquo que natildeo satildeo detentores de cultura ele estaacute no interior do universo letrado

Na maior parte das vezes eacute um escolaacutestico um professor ou um meacutedico ou seja justamente um homem de gabinete um homem de cavanhaque e de oacuteculos com armaccedilatildeo circular de metal como revela a galeria de retratos que estampa o livro de Monnerot-Dumaine uma das duas biacuteblias da interlinguiacutestica (YAGUELLO 2006 p 46)

Ele executa gestos profissionais que estatildeo proacuteximos daqueles empreendidos pela linguiacutestica acadecircmica universitaacuteria mesmo que natildeo disponha de seus saberes especializados Ainda assim de acordo com Marina Yaguello o trabalho do logoacutefilo consiste em

a) acumular dados

b) classificaacute-los

c) encontrar um princiacutepio explicativo imitaccedilatildeo dos sons da natureza ou ainda a correspondecircncia entre o sentido das palavras e sua realizaccedilatildeo acuacutestica ou articulatoacuteria

d) organizar os dados sob a forma de uma aacutervore genealoacutegica a liacutengua-matildee que daria agrave luz toda a prole de liacutenguas passadas e presentes da humanidade (YAGUELLO 2006 p 47)

LudolinguistasDefini anteriormente os ludolinguistas como especialistas na manipulaccedilatildeo luacutedica dos

significantes Aprofundo aqui com o exemplo dos imitadores especialmente aqueles de sotaques Todos os humoristas sejam imitadores profissionais ou natildeo dispotildeem em seu repertoacuterio da praacutetica de manipulaccedilatildeo de sotaques que repousa sobre uma teoria sociolinguiacutestica espontacircnea Os sotaques satildeo manifestaccedilotildees focircnicas da variaccedilatildeo regional nacional social eacutetnico-cultural de gecircnero ou de sexualidade etc O sotaque social eacute por exemplo bem representado nas imitaccedilotildees de Valeacuterie Lemercier no filme Os visitantes eles natildeo nasceram ontem de 1993 (o sotaque aristocraacutetico de ldquoBeacuteardquo de Montmirail ao ver seu ancestral ldquoHubrsquordquo chegar da Idade Meacutedia acompanhado de seu fiel serviccedilal Jacquouille la Fripouille) ou nas encenaccedilotildees de Sylvie Joly como ldquogrande burguesardquo em sua peccedila La cigale et la Joly [A cigarra e a Joly como parocircnimo de La cigale et la fourmi A cigarra e a formiga] (2006) ou ainda pelas entonaccedilotildees da atriz Mathilde Casadesus que conta com um forte registro cientiacutefico no documento sonoro mdash uma fita cassete mdash que acompanha a coletacircnea Les accents des franccedilais organizada por Pierre

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Leacuteon e colegas (LEacuteON et al 1983) Encontram-se realizaccedilotildees de sotaques eacutetnico-culturais nas imitaccedilotildees do sotaque ldquoafricanordquo pela dupla Omar e Fred no curto programa Le service apregraves-vente des eacutemissions atualmente transmitido no comeccedilo da noite no Canal+ ou com o tenista-cantor Yannick Noah que elaborou ao longo de suas intervenccedilotildees televisivas um tipo de imitaccedilatildeo antirracista do sotaque camaronecircs ou ainda com as interpretaccedilotildees magrebinas exageradas de Djamel Debbouze ou Mohand Saiacuted Fella (TERBOUCHE 2008)43 e enfim com as ecircnfases judaico-magrebinas dos humoristas Eacutelie Kakou e Gad Elmaleh Os sotaques regionais que entraram na moda no final dos anos 1990 na seacuterie de curtas televisivos Les Deschiens (uma famiacutelia que tem o sotaque rural do departamento francecircs de Sarthe v Pugniegravere 2006) e mais recentemente no filme A Riviera natildeo eacute aqui [Bienvenue chez les chrsquotis] de Dany Boon (2007) haacute muito tempo satildeo alvo de imitaccedilotildees mais ou menos pejorativas principalmente entre escritores como bem mostra a celebriacutessima cena do Dom Juan de Moliegravere dedicada aos camponeses Charlotte e Pierrot (ato II cena I) Os sotaques mais difiacuteceis de serem apreendidos e nomeados (dada a dificuldade de nomeaccedilatildeo eu proporia a terminologia sotaque de gecircnero ou sotaque de identidade sexual quem sabe ateacute de orientaccedilatildeo sexual) e mais estigmatizantes mdash como o sotaque ldquohomordquo (ldquogayrdquo) exemplificado pelas interpretaccedilotildees ldquoloucasrdquo de Michel Serrault na peccedila e no filme A Gaiola das Loucas ou de Gad Elmaleh no filme Xuxu de Merzak Allouache (2003) mdash satildeo testemunhos analogamente dessa extraordinaacuteria competecircncia linguiacutestica dos imitadores que repousa num treinamento fino apesar de natildeo cientiacutefico dos fenocircmenos foneacuteticos destacados

Eacute preciso reconhecer aleacutem de tudo que os linguistas profissionais se dedicam muito pouco aos sotaques em especiais aos sotaques do substrato eacutetnico cultural ldquode sexualidaderdquo ou comunidade haacute poucos trabalhos sobre o sotaque ldquohomossexualrdquo na sua versatildeo ldquoloucardquo ou em qualquer outra com exceccedilatildeo de um artigo de Gilles Siouffi intitulado ldquoLes homos parlent-ils comme les hommes ou comme les femmesrdquo de 1998 A questatildeo eacute abordada no acircmbito da dialetologia social estadunidense entre trabalhos sobre atitudes linguiacutesticas (PRESTON 1992 por exemplo) Os estudos satildeo entretanto escassos Em contrapartida os sotaques satildeo bem detectados por outros linguistas folk os socioacutelogos-linguistas por exemplo que consideram que eles tecircm uma funccedilatildeo de poderosos organizadores sociais Esses socioacutelogos-linguistas satildeo os protagonistas de atividades folk de uma terceira categoria dos linguistas folk as classes dominantes Com efeito Jean-Claude Passeron considera que as classes dominantes executam uma atividade linguiacutestica de intervenccedilatildeo a saber a divisatildeo social por meio dos sotaques

[] ao mesmo tempo que a linguiacutestica espontacircnea das classes dominantes constitui o sotaque dominante como a ausecircncia de sotaque sotaque zero mdash em relaccedilatildeo ao qual os sotaques regionais ou populares satildeo entendidos ou definidos como deformaccedilotildees mais ou menos pitorescas mdash a estiliacutestica espontacircnea dos modos de vida tende a considerar as marcas linguiacutesticas portadas pelas classes dominantes (determinantes concomitantemente da dominaccedilatildeo e das restriccedilotildees relacionadas ao exerciacutecio da

43 ldquoComment vous dire le costume Il eacutetait tellement petit que crsquoest un coustime [kustim]rdquo [Como o senhor diz o costume [traje] Era tatildeo pequeno que era um coustime [kustim cusrsquotam como pronunciado no espetaacuteculo mas morfologicamente um trajezinho]] (extraiacutedo do espetaacuteculo Cocktail Khorotv (literalmente Cocktail de mensonges) citado por Terbouche (2008 p 14)

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dominaccedilatildeo) como natildeo marcas a partir das quais se veem as de formaccedilotildees dos corpos e dos rostos populares (PASSERON 1999)

Os discursivistas folkConcluo essa enumeraccedilatildeo de exemplos com uma manifestaccedilatildeo militante da linguiacutestica folk

ou da anaacutelise do discurso folk nesse caso Trata-se de um ldquoateliecirc de anaacutelise e de criacutetica do discurso poliacuteticordquo intitulado antifrasticamente ldquoLe monde reacuteenchanteacute de Nicolas Sarkozyrdquo proposto em novembro de 2007 em Paris no 19e Distrito pela ldquoCoordination des Intermittents et Preacutecaires drsquoIle-de-Francerdquo A primeira sessatildeo foi apresentada assim

Primeira sessatildeo quarta-feira 31 de outubro de 2007 das 19h agraves 22h na CIPIDF

A ideia inicial eacute relativamente simples trata-se de fazer um trabalho coletivo de anaacutelise e de criacutetica do discurso poliacutetico no acircmbito de um ateliecirc aberto a todos

Em nossa opiniatildeo natildeo pode ser um grupo de reflexatildeo teoacuterica mdash porque aiacute seria necessaacuterio supor o domiacutenio de certas noccedilotildees e de algumas ferramentas o que restringiria de fato a acessibilidade do ateliecirc Noacutes o consideramos muito mais como um ateliecirc praacutetico ateacute mesmo poliacutetico se conseguimos vislumbrar daiacute sua finalidade desenvolver meios eficazes de combater os efeitos sobre noacutes mesmos e terceiros do discurso poliacutetico autorizado Poderiacuteamos dizer nesse sentido que se trata de um ateliecirc de autoformaccedilatildeo de criacutetica ideoloacutegica

Concretamente decidimos trabalhar sobre o discurso de Nicolas Sarkozy As discussotildees foram acaloradas quanto a esse assunto e ningueacutem saiu inteiramente satisfeito com a escolha Concordamos que o poder proveacutem de mais longe e que sua accedilatildeo vai aleacutem do campo ldquopoliacuteticordquo e que de certa maneira essa escolha significa sucumbir ao discurso ideoloacutegico procurando o poder precisamente onde gostariacuteamos de acreditar que ele se exerce exclusivamente Dito isso se o poder estaacute em todo lugar pouco importa onde o percebemos o importante para noacutes eacute concentrar nossa anaacutelise sobre um discurso que seja atual e endereccedilado a todos e cada um mdash cada um tem o direito e eis nossa convicccedilatildeo a capacidade de respondecirc-lo [anuacutencio recebido por e-mail outubro de 2007]

Essa passagem nos mostra que a teoria folk eacute uma teoria praacutetica ou uma teoria da praacutetica O objeto do Ateliecirc eacute o uso do discurso e seus efeitos sobre os indiviacuteduos natildeo a descriccedilatildeo de suas regras e regularidades por exemplo O saber profano eacute na maior parte das vezes um saber praacutetico um saber ldquouacutetilrdquo aos locutores para mudar a sociedade em que vivem

De que valem as teorias folkA linguiacutestica folk propotildee uma das questotildees epistemoloacutegicas mais difiacuteceis sobretudo no

domiacutenio das ciecircncias humanas e sociais qual eacute a validade das teorias (pseudo) cientiacuteficas Existem poucos trabalhos sobre essa questatildeo na Franccedila A linguiacutestica folk eacute majoritariamente traduzida em termos de posiccedilatildeo normativa ou de purismo (PAVEAU ROSIER 2008) Aleacutem disso

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o espectro cartesiano e as imagens positivas mdash talvez ateacute mesmo positivistas mdash da ciecircncia que circulam no paiacutes dificilmente favorecem esse tipo de questionamento Por outro lado a filosofia do espiacuterito e a filosofia das ciecircncias especialmente nos Estados Unidos propotildeem anaacutelises e respostas particularmente esclarecedoras sobre as folk sciences em geral ou sobre a linguiacutestica folk em particular Utilizo essas respostas em meu escrutiacutenio da validade das teorias espontacircneas sobre a liacutengua natildeo pretendendo aplicaacute-las de modo mecacircnico

Avaliaccedilotildees epistecircmicas da linguiacutestica folkQual eacute a validade das teorias folk Trecircs respostas satildeo possiacuteveis

A posiccedilatildeo eliminativaNa filosofia do espiacuterito a posiccedilatildeo dita eliminativa ou do materialismo eliminativo (P

Feyerabend R Rorty W Sellars Paul e Patricia Churchland S Laurence) estaacute fundada sobre a tese segundo a qual a compreensatildeo dos estados mentais pelas teorias do senso comum estaacute errada Isso porque ela natildeo corresponderia a nenhuma base cientiacutefica Com efeito essa compreensatildeo pode se apoiar sobre dados neuroloacutegicos Por exemplo natildeo haacute base neural para certas teorias sobre a intencionalidade ou mesmo a proacutepria consciecircncia noccedilotildees que satildeo as mais difiacuteceis para naturalizar Para o filoacutesofo Paul Churchland por exemplo (2002 [1981]) as teorias folk satildeo totalmente falsas e estatildeo aleacutem disso no processo de serem substituiacutedas (ldquoeliminadasrdquo) por demonstraccedilotildees irrefutaacuteveis concebidas pelas neurociecircncias Essa posiccedilatildeo eacute compartilhada pelo filoacutesofo S Laurence (2003) considerando que as teorias folk em qualquer ciecircncia estatildeo na maior parte do tempo erradas Laurence ainda acrescenta que a linguiacutestica apresenta uma vulnerabilidade muito forte jaacute que se trata de uma teoria jovem a publicaccedilatildeo do CLG data de 1916 pouco mais de 100 anos

Transposta para os resultados da linguiacutestica folk a teoria eliminativa diraacute entatildeo que ela se trata de uma teoria falsa por se basear em dados perceptivos intuitivos dotados de juiacutezos de valor (quem sabe ateacute mesmo imaginaacuterios) mas sem nenhum dado cientificamente verificaacutevel

Uma posiccedilatildeo intermediaacuteria ldquoo realismo suaverdquo de Daniel DennetO filoacutesofo D Dennett (1990 [1987] 2002 [1991]) defende uma posiccedilatildeo intermediaacuteria que ele

mesmo chama de ldquorealismo suaverdquo situado entre os dois extremos do ldquorealismo de forccedila industrialrdquo de J Fodor e do materialismo eliminativo dos Churchland Essa posiccedilatildeo diz respeito agrave psicologia popular (folk psychology) que ele descreve da seguinte maneira

[] as pessoas satildeo ainda menos previsiacuteveis que o tempo se tomadas face agraves teacutecnicas cientiacuteficas dos meteorologistas e mesmo dos bioacutelogos Mas haacute outra perspectiva que nos eacute conhecida desde a infacircncia e que utilizamos sem esforccedilo todos os dias que parece maravilhosamente capaz de fornecer um sentido a todas essas complexidades Chamamo-la comumente de psicologia popular Ela eacute a perspectiva que invoca a famiacutelia dos conceitos ldquomentalistasrdquo como os de crenccedila desejo conhecimento medo atenccedilatildeo

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intenccedilatildeo compreensatildeo sonho imaginaccedilatildeo consciecircncia de si e assim por diante (DENNETT 1990 [1987] p 17-18)

O realismo suave pode ser resumido assim o vocabulaacuterio e os conceitos ldquofolkrdquo satildeo operacionais e ateacute mesmo necessaacuterios para a vida social do homem e as percepccedilotildees espontacircneas satildeo estruturas (patterns) absolutamente fundamentais na vida humana

[] haacute nos assuntos humanos estruturas que se impotildeem por elas mesmas de uma maneira que natildeo eacute de modo algum inexoraacutevel mas que tecircm grande forccedila absorvendo perturbaccedilotildees e variaccedilotildees psiacutequicas que poderiacuteamos muito bem considerar como dadas ao mero acaso satildeo estruturas que caracterizariacuteamos em termos de crenccedilas desejos intenccedilotildees dos agentes racionais (DENNETT 1990 [1987] p 42)

Aleacutem do mais constata D Dennett a psicologia popular funciona (ldquoa estrateacutegia intencional funciona tatildeo bem quanto possiacutevelrdquo p 43) mesmo que esse funcionamento natildeo seja permanente A psicologia popular eacute com efeito uma teoria imperfeita incompleta e consequentemente natildeo generalizaacutevel mas ela eacute uma teoria valiosa em vaacuterios pontos de seu funcionamento Cito essa longa passagem em que D Dennett daacute uma definiccedilatildeo bastante completa da psicologia popular por conter um bom nuacutemero de elementos que podem contribuir para minha reflexatildeo quanto agrave teoria linguiacutestica

[] utilizamos a psicologia popular o tempo todo para explicar ou predizer reciprocamente nossos comportamentos atribuiacutemo-nos reciprocamente crenccedilas e desejos sem nos questionarmos muito espontaneamente e passamos um bom periacuteodo de nossas vidas conscientes formulando o mundo mdash assim como a noacutes mesmos mdash nesses termos A psicologia popular eacute quase tatildeo parte integrante de nossa segunda natureza quanto nossa fiacutesica popular dos objetos de tamanho meacutedio Ateacute que ponto essa psicologia popular eacute pertinente Se nos concentramos nos pontos fracos perceberemos que com frequecircncia somos incapazes de dar sentido a porccedilotildees particulares do comportamento humano (inclusive o nosso) em termos de crenccedilas e de desejos mesmo em retrospectiva com frequecircncia somos incapacitados de predizer o que uma pessoa faraacute ou em que momento ela agiraacute com frequecircncia natildeo conseguimos encontrar recursos teoacutericos para ajustar os desacordos relativos a certas atribuiccedilotildees de desejos e de crenccedilas Se nos concentramos nos pontos positivos descobrimos em primeiro lugar que haacute grandes setores em que essa teoria tem um poder de prediccedilatildeo extremamente confiaacutevel [] Em segundo lugar descobriremos que ela eacute uma teoria que tem um grande poder gerador e uma grande efetividade [] Em terceiro lugar descobriremos que ateacute mesmo as crianccedilas mais jovens adquirem facilmente a teoria em algum momento se natildeo o adquirem teratildeo uma experiecircncia muito limitada da atividade humana a partir da qual podem induzir uma teoria Em quarto lugar descobriremos que todos podemos utilizar a psicologia popular praticamente sem nada sabermos de como funciona o interior dos cabeccedilas das pessoas (DENNETT 1990 [1987] p 67-68)

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Transposta para a linguiacutestica folk essa anaacutelise nos levaria ao seguinte enunciado os dados da linguiacutestica folk satildeo aceitaacuteveis e integraacuteveis agrave teoria linguiacutestica porque fornecem descriccedilotildees perceptivas e organizacionais relevantes da linguagem mas natildeo podem servir de base para uma teoria geral da linguagem

A posiccedilatildeo integracionista os dados folk satildeo dados linguiacutesticosEssa posiccedilatildeo insiste sobre os saberes dos natildeo-linguistas saberes legiacutetimos e reconheciacuteveis

como tais D Preston e N Niedzielski (1999 p 10) o afirmam em sua siacutentese ldquoSe o povo fala sobre a linguagem ele deve claro saber (ou pelo menos acreditar que sabe) sobre issordquo A teoria linguiacutestica eacute entatildeo considerada sob os acircngulos de sua operacionalidade e de sua verdade praacutetica e natildeo mais no acircmbito de uma loacutegica cientiacutefica Essa eacute tambeacutem a posiccedilatildeo dos psicoacutelogos sociais N Llewellyn e A Harrison (2006) em seus estudos sobre as percepccedilotildees das formas linguageiras e discursivas em documentos empresariais Eles mostram que os participantes de uma enquete por eles realizada comprovaram uma competecircncia linguiacutestica verdadeira no reconhecimento dos empregos do pronome nous (noacutesnos) ou na identificaccedilatildeo da transformaccedilatildeo passiva e da nominalizaccedilatildeo Acrescenta-se que essa competecircncia pode significar economia da metalinguagem e ateacute mesmo do aprendizado das expressotildees detectadas

Nessa perspectiva vale a pena enfatizar que categorias linguiacutesticas sonoras formais como as discutidas acima descrevem caracteriacutesticas mundanas do uso cotidiano da liacutengua Eacute perfeitamente possiacutevel que os indiviacuteduos faccedilam uso e identifiquem casos de ldquotransformaccedilatildeo passivardquo por exemplo sem nunca terem ouvido falar do termo (LLEWELYN HARRISON 2006 p 580 traduccedilatildeo nossa)44

Os autores compartilham quanto a isso a posiccedilatildeo de Sylvain Auroux que lembra em seus trabalhos sobre a gramatizaccedilatildeo que os saberes linguiacutesticos natildeo satildeo necessariamente distintos daqueles que fornecem a consciecircncia epilinguiacutestica

[] continuidade entre o epilinguiacutestico e o metalinguiacutestico pode ser comparada com a continuidade entre a percepccedilatildeo e a representaccedilatildeo fiacutesica nas ciecircncias da natureza Enquanto essas uacuteltimas romperam muito cedo com a percepccedilatildeo mdash desde a fiacutesica galileana para se distanciar dela cada vez mais mdash este saber linguiacutestico natildeo rompeu senatildeo esporadicamente com a consciecircncia epilinguiacutestica (AUROUX 1992 p 16)

O ldquorealismo ingecircnuordquo por exemplo (ACHARD-BAYLE 2008 p 34) que consiste em atribuir agraves entidades concretas do mundo fronteiras mais ou menos discretas que fazem com que coincidam com os nomes que as designam pode fazer saltar aos olhos um saber epilinguiacutestico natildeo consciente (ldquopau eacute pau pedra eacute pedrardquo diria sem hesitar minha vendedora de antiguidades)

44 NT As citaccedilotildees em inglecircs feitas no artigo foram traduzidas no texto mas mantidas conforme original em nota de rodapeacute ldquo[hellip] in this regard it is worth making the point that formal sounding linguistic categories such as those discussed above describe mundane features of everyday language use It is perfectly possible for individuals to deploy and identify instances of ldquopassive transformationrdquo for example without having heard of the termrdquo

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mas igualmente uma posiccedilatildeo semacircntico-filosoacutefica cientiacutefica e argumentada A noccedilatildeo de epilinguiacutestico eacute sem duacutevida uma das chaves para se compreender como e por quecirc ao exemplo da psicologia popular a linguiacutestica folk ldquofuncionardquo Com efeito a consciecircncia epilinguiacutestica eacute uma instacircncia que fornece dados linguiacutesticos da ordem da percepccedilatildeo Se numa perspectiva empiacuterica a linguiacutestica faz jus agraves dimensotildees experiencial e cultural da linguagem ou seja se o objeto da linguiacutestica integra os usos da liacutengua pelos sujeitos sociais e cognitivos entatildeo os dados perceptivos da linguiacutestica folk podem ser levados em conta como dados linguiacutesticos pura e simplesmente

As intuiccedilotildees dos locutores satildeo controlaacuteveisSe a linguiacutestica folk como a psicologia folk ldquofuncionardquo eacute por existir uma fonte de percepccedilotildees

de juiacutezos e de avaliaccedilotildees que pode fornecer resultados corretos essa fonte eacute em linguiacutestica a intuiccedilatildeo do dito ldquolocutor idealrdquo se tomamos a terminologia chomskiana ou a consciecircncia epilinguiacutestica se escolhemos a designaccedilatildeo do linguista francecircs Antoine Culioli45 Mas todos os locutores possuem a mesma intuiccedilatildeo Haacute diferenccedila entre a intuiccedilatildeo do locutor natildeo-linguista e a do linguista Natildeo responde o filoacutesofo M Devitt que considera que as intuiccedilotildees dos linguistas satildeo melhores que as dos linguistas folk porque as intuiccedilotildees natildeo satildeo contrariamente a uma ideia em circulaccedilatildeo inatas mas carregadas de teoria M Devitt (2006 p 483) propotildee de fato uma criacutetica bem robusta agrave intuiccedilatildeo chomskiana e propotildee uma teoria alternativa ldquoEssa teoria trata as intuiccedilotildees linguiacutesticas como opiniotildees resultantes de investigaccedilatildeo empiacuterica ordinaacuteria carregadas de teoria como todas as opiniotildees satildeordquo Ele conclui com a impossibilidade de considerar essa intuiccedilatildeo que seria bem pouco carregada cientificamente de teoria como fundaccedilatildeo da linguiacutestica

Vejo linguistas tendendo para duas perspectivas em seu tratamento dos juiacutezos intuitivos dos falantes Por um lado a visatildeo aceita eacute que os falantes representam a verdadeira teoria linguiacutestica de sua liacutengua e derivam seus juiacutezos intuitivos dessas representaccedilotildees Entatildeo esses juiacutezos intuitivos fazendo uso de termos retirados dessa teoria deveriam ser os dados primaacuterios para a teoria do linguista De outro lado haacute o pensamento atraente de que todos os juiacutezos que fazem uso desses termos satildeo dotados de uma teoria linguiacutestica empiacuterica Onde os juiacutezos satildeo do falante comum essa teoria seraacute a linguiacutestica folk Natildeo eacute regra usarmos como dados primaacuterios numa teoria juiacutezos populares carregados de teoria A linguiacutestica natildeo devia fazecirc-lo tambeacutem (DEVITT 2006 p 485 traduccedilatildeo nossa)46

45 Em vaacuterios aspectos essas duas noccedilotildees (a de intuiccedilatildeo do locutor e a de consciecircncia epilinguiacutestica uma de origem estadunidense e outra de origem francesa) se recobrem Ambas designam na verdade uma competecircncia natildeo objetivada natildeo formulada e natildeo formalizada dos locutores em relaccedilatildeo agraves suas produccedilotildees linguageiras O meacutetodo de introspecccedilatildeo faz essa faculdade evoluir para a metalinguagem seja espontacircnea seja formal

46 No original ldquoI see linguists as pulled two ways in their treatment of the intuitive judgments of speakers On the one hand the received view is that speakers represent the true linguistic theory of their language and derive their intuitive judgments from those representations So those intuitive judgments deploying terms drawn from that theory should be the primary data for the linguistrsquos theory On the other hand there is the attractive thought that all judgments deploying those terms are laden with an empirical linguistic theory Where the judgments are those of the ordinary speaker that theory will be folk linguistics We do not generally take theory-laden folk judgments as primary data for a theory So we should not do so in linguisticsrdquo

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Tal desconfianccedila quanto agrave noccedilatildeo de intuiccedilatildeo do locutor ideal e agrave ldquocontemplaccedilatildeo de seus proacuteprios idioletosrdquo pelos linguistas jaacute era denunciada por William Labov no final dos anos 1960 (1976 [1972] p 37) As intuiccedilotildees dos linguistas com efeito estatildeo longe de serem melhores do que as populares

O que aconteceria se um dado tipo de juiacutezo de linguistas sobre a gramaticalidade fosse submetido a uma populaccedilatildeo de origem diversa O estudo mais sistemaacutetico desse tipo foi levado a cabo por Spencer (1973) Ela testou 150 frases retiradas dos estudos sintaacuteticos de Perlmutter Carlotta Smith Postal Ross Rosenbaum e R Lakoff com 60 avaliadores 20 estudantes diplomados em linguiacutestica 20 outros estudantes diplomados e 20 pessoas da cidade do coleacutegio secundaacuterio []

Tendo em vista todos esses resultados ficou claro que nenhum linguista eacute melhor ou pior que os outros nessa questatildeo []

Atualmente nenhum resultado permite alimentar a esperanccedila de que os juiacutezos introspectivos dos linguistas sejam confiaacuteveis reproduziacuteveis ou generalizaacuteveis em sua aplicaccedilatildeo na linguagem da comunidade Eacute necessaacuterio entatildeo perguntarmos quais satildeo as consequecircncias desses fatos para as teorias linguiacutesticas fundadas sobre tais juiacutezos (LABOV 2001 [1975] p 32-33)

As intuiccedilotildees dos linguistas natildeo satildeo creditaacuteveis natildeo porque elas satildeo cultivadas e preteorizadas mdash posiccedilatildeo defendida por Devitt mdash mas por razotildees epistemoloacutegicas Segundo Labov (2001 [1975] p 41) a linguiacutestica natildeo deve repousar em intuiccedilotildees e evidecircncias incontroladas

[] jaacute que cada estudo conduzido ateacute hoje em dia sobre os juiacutezos intuitivos indica que encontra-se neles uma parte natildeo descartaacutevel de efeito do experimentador as intuiccedilotildees incontroladas dos linguistas devem ser consideradas com seacuterias duacutevidas Se essas intuiccedilotildees devem supostamente representar somente o idioleto do linguista entatildeo o valor de suas anaacutelises repousa sobre fundaccedilotildees muito incertas Deve-se submetecirc-los a outros estudos experimentais para que se possa testar a coerecircncia de seus juiacutezos []

Entatildeo devemos descartar os dados da intuiccedilatildeo Natildeo evidentemente mas a linguiacutestica deve integrar sua relatividade isso que Labov chama de ldquoefeito do experimentadorrdquo e aplicar certos princiacutepios

[] a soluccedilatildeo para o problema estabelecido anteriormente parece suficientemente clara Devemos (1) reconhecer o efeito do experimentador e (2) voltar agrave noccedilatildeo original de trabalho sobre os casos evidentes Poderiacuteamos entatildeo fazer nosso trabalho repousar sobre trecircs princiacutepios operacionais que oferecem uma base suficientemente soacutelida para a exploraccedilatildeo contiacutenua dos juiacutezos gramaticais I O princiacutepio do consenso se natildeo haacute motivo para pensar o contraacuterio supotildee-se que os juiacutezos de um locutor nativo sejam caracteriacutesticos ao conjunto dos locutores da liacutengua II O princiacutepio do experimentador se haacute qualquer um

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em discordacircncia quanto aos juiacutezos introspectivos os juiacutezos daqueles que satildeo familiares aos problemas teoacutericos natildeo deveriam se manter como provas III O princiacutepio dos casos evidentes os juiacutezos contestados deveriam ser reforccedilados pela presenccedila de pelo menos um padratildeo coerente na comunidade de locutores ou ser abandonados [] Eacute necessaacuterio ainda nomear um quarto princiacutepio o Princiacutepio da validade

IV Princiacutepio da validade quando o uso da linguagem se mostra mais coerente que os juiacutezos introspectivos uma descriccedilatildeo vaacutelida da linguagem privilegiaraacute o uso agrave introspecccedilatildeo (LABOV 2001 [1975] p 45 e 52)

Esses quatro princiacutepios mdash consenso experimentador casos evidentes e validade mdash levam a consequecircncias sobre as praacuteticas linguiacutesticas (reduzir a relatividade e a natildeo credibilidade dos dados extraiacutedos da intuiccedilatildeo qualquer que seja o tipo de locutor) mas igualmente sobre a proacutepria epistemologia da linguiacutestica a meu ver eles reforccedilam a ideia de um continuum entre as competecircncias dos linguistas e dos natildeo-linguistas porque racionalizam os dados intuitivos

Quando os natildeo-linguistas fabricam os objetos dos linguistas o caso das atitudes linguiacutesticasOs saberes linguiacutesticos folk constituem teorias sociais da linguagem apoiando-se mais

geralmente sobre as praacuteticas linguageiras pelo vieacutes de descriccedilotildees prescriccedilotildees e intervenccedilotildees as teorias folk fornecem os organizadores sociais que se constituem em corpo do saber social Assim a sociolinguiacutestica como linguiacutestica social as toma como objetos ou mais exatamente como metaobjetos (ou seja objetos que falam de objetos) chamando-as de atitudes ou representaccedilotildees

As praacuteticas linguageiras satildeo com efeito utilizadas pelos locutores profanos como um instrumento de descriccedilatildeo psicoloacutegica e social Em sua introduccedilatildeo a um nuacutemero do Journal of Language and Social psychology dedicado agraves atitudes linguiacutesticas D Preston e L Milroy mostram que os locutores fazem uma correspondecircncia entre aspectos psicoloacutegicos e aspectos linguageiros

Notadamente muitos estudos mostraram uma tendecircncia para avaliadores discriminarem entre de um lado dimensotildees de status como inteligecircncia ambiccedilatildeo e confianccedila e de outro lado dimensotildees relacionadas agrave solidariedade como atraccedilatildeo social amistosidade e generosidade Falantes-padratildeo tenderam a ser mais bem-avaliados no primeiro conjunto de aspectos e mal-avaliados no uacuteltimo e o contraacuterio foi vaacutelido para o juiacutezo de falantes natildeo padratildeo (p ex RYAN GILES SEBASTIAN 1982 p 9) (PRESTON MILROY 1999 p 4-5 traduccedilatildeo nossa)47

47 No original ldquo[hellip] notably several studies showed a tendency for judges to discriminate between on one hand status dimensions such as intelligence ambition and confidence and on the other solidarity-related dimensions such as social attractiveness friendliness and generosity Standard speakers have tended to be rated higher on the former set of traits and downgraded on the latter the converse being true of judgments of non standard speakers (eg Ryan Giles amp Sebastian 1982 p 9)rdquo

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R Van Bezooijen e C Gooskens constatam o mesmo em seu estudo sobre a percepccedilatildeo da variedade em locutores holandeses

Intraculturalmente (em ouvintes holandeses) bem como interculturalmente (em falantes britacircnicos quenianos mexicanos e japoneses) uma maneira de falar mais ldquoanimadardquo eacute fortemente associada com domiacutenio vontade poder e autoconfianccedila Como esperado a pronuacutencia que permite identificaccedilatildeo dialetal soacute desempenha um papel intraculturalmente (VAN BEZOOIJEN GOOSKENS 1999 p 31-32 traduccedilatildeo nossa)48

Conhecemos os resultados do ldquomeacutetodo Lambertrdquo (LAMBERT et al 1960) ndash com o desconhecimento dos sujeitos locutores biliacutengues registram versotildees de um mesmo texto em duas ou vaacuterias liacutenguas ou variedades linguiacutesticas de modo a suprimir o vieacutes da voz Espera-se que os sujeitos em seguida avaliem o locutor com a ajuda de uma escala constituiacuteda de adjetivos autoniacutemicos (o locutor eacute simpaacutetico x antipaacutetico confiaacutevel x suspeito doacutecil x violento etc) Esse meacutetodo permite que surjam resultados bem confiaacuteveis por exemplo um dos estudos realizados segundo esse protocolo mostra que os homens angloacutefonos percebem as mulheres mais favoravelmente se elas falam francecircs a essas os homens angloacutefonos produzem uma boa imagem jaacute que elas tecircm a visatildeo desses falantes de inglecircs melhor do que a dos falantes de outras liacutenguas

As percepccedilotildees natildeo cientiacuteficas carregadas de representaccedilotildees e de produccedilotildees imaginaacuterias constituem assim verdadeiras teorias espontacircneas da classificaccedilatildeo soacutecio-psicoloacutegica

Consideraccedilotildees finais os natildeo-linguistas como linguistas preciososQuis mostrar neste capiacutetulo que as informaccedilotildees geradas em praacuteticas disciplinares folk

satildeo plenamente integraacuteveis agrave anaacutelise linguiacutestica A linguiacutestica folk possui com efeito uma validade de ordem praacutetica e representacional e deve por isso ser considerada pela linguiacutestica cientiacutefica como uma reserva de dados que nenhum linguista profissional consegue reunir com o auxiacutelio dos meacutetodos ditos ldquocientiacuteficosrdquo

A enorme variedade das posiccedilotildees discursivas folk das praacuteticas correspondentes e dos dados assim recolhidos assim como a fragilidade cientiacutefica de um bom nuacutemero de observaccedilotildees cientiacuteficas (geradas de posiccedilotildees subjetivas frequentemente idioletais) deve sem duacutevidas provocar que o objeto da linguiacutestica seja repensado Eacute quase irracional mdash se pensamos junto com Pierre Bourdieu e tambeacutem com Sylvain Auroux ldquoa historicizaccedilatildeo do sujeito da historicizaccedilatildeordquo (BOURDIEU 2001) eacute uma necessidade epistemoloacutegica mdash que se continue a definir o objeto da linguiacutestica como Saussure o fez em 1916 Tal objeto foi profundamente afetado pelos saberes epilinguiacutesticos metalinguiacutesticos e metadiscursivos de que foi alvo e os saberes folk fazem parte dele Parece-me necessaacuterio entatildeo propor uma descriccedilatildeo renovada convincente e sobretudo cientificamente eficaz do objeto da linguiacutestica adotando uma posiccedilatildeo

48 No original ldquo[hellip] intraculturally (by Dutchlisteners) as well as cross-culturally (by British Kenyan Mexican and Japanese listeners) a laquo lively raquo manner of speaking is strongly asso- ciated with dominance will power and self-confidence As expected pronun- ciation allowing dialect identification only played a role intraculturallyrdquo

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antieliminativa que integre a escala dos saberes linguiacutesticos (do saber cientiacutefico mais ldquodurordquo ao saber folk mais ldquosuaverdquo)

Escolher o integracionismo significa ficar com o e em vez do ou o linguista e a vendedora o escritor e o especialista de programa de TV o glossomaniacuteaco e o militante poliacutetico O que natildeo significa de maneira alguma integrar-se ao anticientificismo ou ao negacionismo

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AS NORMAS PERCEPTIVAS DA LINGUIacuteSTICA POPULAR49

A questatildeo abordada neste capiacutetulo eacute a das normas perceptivas mobilizadas por falantes comuns em suas praacuteticas linguiacutesticas Falo precisamente de praacuteticas linguiacutesticas e natildeo de praacuteticas linguageiras o que designo um campo bem identificado nos Estados Unidos a linguiacutestica folk e em menor medida na Alemanha (Volklinguistik) menos ainda no domiacutenio francoacutefono no qual muitos designadores com referentes um tanto vagos coexistem para designar esse conjunto de discursos natildeo especializados sobre as formas e padrotildees da linguagem e do discurso linguiacutestica popular espontacircnea profana selvagem natildeo erudita

Minha interrogaccedilatildeo natildeo diz respeito agrave dimensatildeo prescritiva versus descritiva das normas assim produzidas mas concerne ao valor das percepccedilotildees na elaboraccedilatildeo de um discurso linguiacutestico popular e portanto agrave validade das teorias populares em relaccedilatildeo agraves teorias acadecircmicas Isso supotildee como veremos sair desse uacuteltimo binarismo (popular vs cientiacutefico) para pensar o coeficiente de cientificidade de um discurso de modo escalar que Madame Vauquer se equivoca ao corrigir Sylvie eacute uma evidecircncia cuja lembranccedila limitaria a reflexatildeo a uma perspectiva bastante pobre e me parece preferiacutevel pensar nas coisas em termos funcionais (funccedilatildeo desta observaccedilatildeo no acircmbito do discurso linguiacutestico espontacircneo) perceptivos (por que perceber patronminette como correto em relaccedilatildeo a patron-jacquette50) e sociais (que benefiacutecio social podemos derivar dessa atitude corretiva) Esses satildeo os acircngulos que nos permitem examinar os modos de validade das teorias populares sobre a liacutengua pois integram as dimensotildees linguiacutestica perceptiva e social ao dispositivo de observaccedilatildeo Portanto afastamo-nos da perspectiva externa impliacutecita na oposiccedilatildeo descriccedilatildeo vs prescriccedilatildeo para adotar uma perspectiva interna na qual o sujeito do discurso eacute tambeacutem o sujeito da ciecircncia

Apoacutes ter descrito a situaccedilatildeo da linguiacutestica popular nos Estados Unidos no campo mais amplo das ciecircncias folk e feito algumas observaccedilotildees sobre a ldquolinguiacutestica popularrdquo na Franccedila vou propor dois exemplos a semacircntica espontacircnea do nome proacuteprio e a sociolinguiacutestica popular das classes dominantes Eles serviratildeo como um mini-laboratoacuterio para delinear uma resposta provisoacuteria agrave questatildeo da validade teoacuterica da linguiacutestica popular

1 O domiacutenio ldquofolkrdquo uma questatildeo americanaAs disciplinas com a etiqueta folk satildeo cientiacutefica e institucionalmente reconhecidas nos

Estados Unidos e designam um verdadeiro paradigma cientiacutefico ao contraacuterio da Franccedila onde equivalentes instaacuteveis de folk sinalizam frequentemente abordagens desvalorizadas

49 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Les normes perceptives de la linguistique populaire Langage et socieacuteteacute 121 laquoLes normes pratiquesraquo mars Paris Eacuteditions de la MSH 2007 p 93-109 Traduccedilatildeo de Eacuterika de Moraes (UNESP - Universidade Estadual Paulista Faculdade de Arquitetura Artes e Comunicaccedilatildeo campus de Bauru e PPGEL IBILCE-UNESP S J do Rio Preto)

50 NT Referecircncia respectivamente agrave forma formal e agrave coloquialpopular de uma mesma expressatildeo francesa cujo significado remete a ldquomuito cedo pela manhatildemadrugadardquo (ldquoao cantar do galordquo)

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11 Disciplinas Folk Na deacutecada de 1950 um grupo de jovens etnoacutelogos de Yale propocircs o termo etnociecircncia para

designar uma nova etnologia que se baseia no estudo metoacutedico do conhecimento popular ou da ciecircncia popular Esse uacuteltimo termo surge portanto no contexto da criaccedilatildeo de um novo objeto constituiacutedo pelas classificaccedilotildees naturais e espontacircneas dos atores (BARRAU 1993) O elemento folk estaraacute como eacute importante relembrar no mesmo periacuteodo que assistiu ao nascimento das ciecircncias cognitivas associado a outras disciplinas em particular no acircmbito da filosofia interrogando sobre crenccedilas a filosofia da mente contribui de fato para desenhar o que pode parecer a principal disciplina folk a psicologia folk A partir da deacutecada de 1960 discutem-se duas grandes concepccedilotildees da mente uma correspondendo agrave ldquoimagem manifestardquo do mundo e outra agrave ldquoimagem cientiacuteficardquo (SELLARS 1993 [1963]) Apesar de suas diferenccedilas filoacutesofos como D Dennett J Searle D Davidson ou mesmo J Fodor consideram que a psicologia popular com base em nossas crenccedilas desejos e no conjunto de nossos estados mentais eacute necessaacuteria agrave teoria da mente A anaacutelise de P Churchland eacute particularmente interessante para o meu propoacutesito aqui ele considera que a psicologia popular eacute de fato uma teoria mas que eacute falsa Voltarei a essa posiccedilatildeo chamada eliminativista a propoacutesito da validade da linguiacutestica popular

Haacute portanto um domiacutenio de debate muito importante muito abastecido e atualmente muito feacutertil em pesquisas e avanccedilos cientiacuteficos51

12 Folk linguiacutestica atitudes e avaliaccedilotildeesOs primeiros a falarem de linguiacutestica folk ainda satildeo os filoacutesofos a propoacutesito do estatuto

da linguiacutestica em relaccedilatildeo agrave psicologia no quadro do debate sobre o chomskysmo Para M Devitt e K Sterelny por exemplo a linguiacutestica popular eacute uma ldquoteoria ou opiniatildeo popular ou ainda primitiva a sabedoria linguiacutestica de todos os temposrdquo (DEVITT STERELNY 1989 p 503)

De fato o campo da linguiacutestica folk foi explicitamente aberto sob essa etiqueta na deacutecada de 1960 por HM Hœnigswald (1966) que reivindica a consideraccedilatildeo dos saberes espontacircneos na constituiccedilatildeo de qualquer ciecircncia natildeo tendo seus propoacutesitos ouvidos agrave eacutepoca Podemos dizer no entanto que o campo eacute explorado implicitamente por W Labov a partir de seu trabalho de 1966 The Social Stratification of English in New York City e entatildeo mais ou menos desenvolvido no trabalho que ele iraacute suscitar nos campos da dialetologia social Mas como explica I Kauhanen desde W Labov todo o interesse dos sociolinguistas se concentrou nas comunidades de fala e natildeo nas normas estas uacuteltimas tendo sido sobretudo estudadas com o vieacutes da legitimidade escrita sem que o vernaacuteculo possa evitar ser definido a partir do padratildeo (KAUHANEN 2006) Seraacute preciso esperar o trabalho de N Niedzielski e D Preston publicado em 2000 Folk linguistics para que o vernaacuteculo fosse apreendido por meio das percepccedilotildees avaliaccedilotildees e atitudes dos locutores segundo uma abordagem etnograacutefica possibilitando

51 Agrave psicologia popular foram acrescentadas mais recentemente a biologia popular (sobre as classificaccedilotildees espontacircneas) a fiacutesica popular (sobre as explicaccedilotildees espontacircneas dos fenocircmenos fiacutesicos) e a mais recente de que temos conhecimento a neuropsicologia popular definida como o conjunto de anaacutelises populares do funcionamento da mente inspiradas pelos avanccedilos das neurociecircncias

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neutralizar os vieses do padratildeo devido a preconceitos de pesquisadores e pesquisados A linguiacutestica folk assim desenhada proveacutem de trabalhos anteriores de autores e outros linguistas no cruzamento da sociolinguiacutestica e da psicologia social que incorporam a maneira pela qual crenccedilas e expectativas socialmente construiacutedas informam a percepccedilatildeo que os locutores tecircm dos usos da liacutengua

O conteuacutedo da obra de Niedzielski e Preston fornece uma siacutentese bem completa da linguiacutestica folk americana atual Os autores especificam o uso de folk ldquoUsamos folk para nos referirmos agravequeles que natildeo satildeo profissionais formados na aacuterea em investigaccedilatildeo [] Definitivamente natildeo usamos folk para referir a grupos ou indiviacuteduos ruacutesticos ignorantes incultos atrasados primitivos minoritaacuterios isolados marginalizados ou de estatutos supostamente inferioresrdquo (NIEDZIELSKI PRESTON 2000 p viii) Eles utilizaratildeo entatildeo o termo natildeo-linguistas ao longo da obra para designar aqueles que possuem conhecimento popular da liacutengua Uma de suas teses principais eacute que o estudo do conhecimento popular eacute uma tarefa para a linguiacutestica seja de uma perspectiva puramente linguiacutestica ou mais amplamente social e eacute realmente essa tarefa que eles enfrentam em seu trabalho que traz elementos de anaacutelise e reflexatildeo para diversos campos da pesquisa linguiacutestica americana etnografia da linguagem psicologia social da linguagem linguiacutestica geral e descritiva variacionismo e linguiacutestica aplicada Eacute compreensiacutevel portanto que ao menos no campo americano a linguiacutestica folk constitua tanto um campo de investigaccedilatildeo quanto um desafio importante para as ciecircncias da linguagem

No domiacutenio germacircnico onde o Volklinguistik tambeacutem derivado da linguiacutestica folk americana (BREKLE 1989) constitui um campo de investigaccedilatildeo relativamente desenvolvido os trabalhos centram-se na dialectologia em particular na imagem da ldquolinguagem improacutepriardquo associada a variantes regionais52

2 Linguiacutestica popular abordagens francesas

21 Popular ou comum

No domiacutenio francecircs os trabalhos que se autoproclamam ldquolinguiacutesticas popularesrdquo satildeo quase inexistentes como especifica J-C Beacco que aliaacutes evita deliberadamente esta expressatildeo no tiacutetulo do nuacutemero de Langages que dirige sobre o tema optando por representaccedilotildees metalinguiacutesticas comuns expressatildeo que desloca um pouco a abordagem perceptiva americana (BEACCO 2004) Popular estaacute sobretudo estabilizado na Franccedila na etimologia popular sem duacutevida porque a expressatildeo nomeia mais um tipo de conhecimento do que uma percepccedilatildeo ou uma atitude e que corresponde a fenocircmenos linguiacutesticos descritiacuteveis (metanaacutelise lexicalizaccedilatildeo nivelamento analoacutegico) Mas a ldquolinguiacutestica popularrdquo e as abordagens que dela podem ser tiradas natildeo percorrem os corredores do conhecimento na Franccedila aleacutem do artigo de H Brekle em Histoacuteria das ideias linguiacutesticas dirigido por S Auroux e o trabalho recente de J-C Beacco encontramos uma variante da noccedilatildeo em P Bourdieu (2001 p 137) que jaacute em 1983 clama

52 Ver por exemplo Langer (2001) e os trabalhos de W Davies e o projeto ldquoA histoacuteria e o estado atual da lsquolinguagem improacutepriarsquo como um conceito na linguiacutestica popular alematilderdquo disponiacutevel em eisbrisacukgexnl researchahrbhtml

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por uma ldquociecircncia rigorosa da sociolinguiacutestica espontacircneardquo O campo estaacute presente na obra de L Rosier na necessidade de levar em conta o discurso purista (uma forma de linguiacutestica popular) nos trabalhos sobre os padrotildees da liacutengua e a circulaccedilatildeo dos discursos (2003 2004) bem como no estudo da linguiacutestica espontacircnea de juristas no tratamento da penalizaccedilatildeo da fala (2006) De minha parte proponho integrar a linguiacutestica popular no ensino da liacutengua (2005) como na renovaccedilatildeo das teorias do discurso uma ldquoanaacutelise folk do discursordquo me parece particularmente desejaacutevel em uma concepccedilatildeo de discurso levando em conta dados cognitivos e perceptivos (2006)

Isso natildeo quer dizer evidentemente que a questatildeo do conhecimento linguiacutestico espontacircneo seja ignorada na Franccedila mas eacute tratada de acordo com outras orientaccedilotildees Vimos que o discurso espontacircneo sobre a liacutengua agraves vezes eacute abordado sob a etiqueta comum sem que esse exame leve agrave constituiccedilatildeo de um campo cientiacutefico constituiacutedo (ldquolinguiacutestica ordinaacuteriardquo) Sendo o termo ordinaacuterio amplamente mobilizado por sintagmas como francecircs ordinaacuterio trocas comuns ou discursos ordinaacuterios a problemaacutetica do ordinaacuterio se confunde frequentemente com a da vida cotidiana no sentido etnometodoloacutegico Ao considerar uma breve visatildeo geral dos domiacutenios franceses podemos sugerir com a reduccedilatildeo e a simplicidade de qualquer panorama que existem dois campos que levam em consideraccedilatildeo as questotildees relativas agrave linguiacutestica popular (dada a amplitude desses campos as referecircncias satildeo apenas indicativas)

- o domiacutenio do ldquometardquo quer se trate da linguiacutestica do sistema (J Rey-Debove que distingue entre ldquometalinguagem correnterdquo e ldquocientiacuteficardquo) da teoria da enunciaccedilatildeo e da reformulaccedilatildeo (J Authier e os elementos metaenunciativos C Julia e a ldquosemacircntica espontacircneardquo) ou didaacutetica da liacutengua (J-C Beacco R Bouchard J David A Treacutevise)

- o conjunto de trabalhos que em sociolinguiacutestica (J-C Beacco define a linguiacutestica popular como um ramo da sociolinguiacutestica) ocupa-se das normas e representaccedilotildees (A Berrendonner H Boyer F Gadet que falam de ldquolocutores nativosrdquo N Gueunier A-M Houdebine J-M Klinkenberg D Lafontaine) agraves vezes sob a etiqueta de ldquoatitudes linguiacutesticasrdquo no quadro da psicologia social da linguagem

Todos esses trabalhos tecircm em comum o fato de se apoiarem nos conhecimentos linguiacutesticos espontacircneos dos locutores cuja existecircncia reconhecem plenamente Mas deixam em aberto a questatildeo dos lugares desse saber o que esconde um paradoxo se a linguiacutestica popular natildeo existe como campo cientiacutefico na Franccedila mas ela produz um conhecimento presente e disponiacutevel aos pesquisadores entatildeo onde ela se situa

22 Os recursos do ldquoespiacuterito francecircsrdquo a linguiacutestica social

Eacute em grande parte e eacute sem duacutevida uma especificidade francesa que explica sua ausecircncia no campo cientiacutefico em um conjunto tatildeo vasto quanto antigo de discursos sobre a liacutengua provenientes de ensaiacutestas sociais (P Daninos P Jullian) humoristas (A Allais P Dac) escritores (Proust Balzac Queneau) jornalistas (P Merle P Vandel) colunistas (J Cellard P Georges) observadores modernos (J Capelovici A Schifres) e autores de manuais de etiqueta e guias de correspondecircncia (Baronne Staffe Liselotte B Bernage N de Rothschild O Cechman)

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um conjunto completo de escritores que mantiveram por vaacuterios seacuteculos uma tradiccedilatildeo que eu clamo por falta de um melhor ldquoespiacuterito francecircsrdquo constituindo um grande corpus de linguiacutestica folk

Vou me concentrar aqui em um deles que me parece ter produzido a sociolinguiacutestica espontacircnea mais completa e refinada P Daninos (1913-2005) Ele eacute um jornalista e escritor universalmente conhecido pelos Cadernos do Major Thompson (1954) dos quais sem duacutevida havia um exemplar em todos os lares franceses dos anos 1950 e 1960 Conservador sem ser reacionaacuterio amante da liacutengua sem ser purista observador e promotor dos costumes burgueses sem se afastar inteiramente da distacircncia irocircnica e de certo senso do traacutegico P Daninos eacute um bom representante dessa literatura do espiacuterito francecircs um pouco elitista um pouco sexista um pouco ufanista mas bastante divertida muito difundida e lida na sociedade francesa do poacutes-guerra e dos gloriosos Anos Trinta Nas cerca de quarenta obras que produziu algumas atribuem particular importacircncia aos fatos linguiacutesticos aleacutem dos Cadernos mencionarei Sonia les autres et moi (os outros e eu) (1952) Vacances agrave tous prix (Feacuterias a todo preccedilo) (1958) Le jacassin novo tratado de ideias recebidas loucuras burguesas e automatismos (1962) Esnobiacutessimo ou O desejo de parecer (1964) O pijama (1972) e Made in France (1977) Cada uma dessas obras constitui por um lado uma espeacutecie de banco de dados linguageiros com uma dimensatildeo social que se assemelha muito a uma declaraccedilatildeo de um linguista profissional e por outro lado uma teoria espontacircnea fundada na percepccedilatildeo dos ldquomodos de falarrdquo do francecircs relacionados ao seu ambiente social Para ilustrar aqui estatildeo alguns tiacutetulos dos capiacutetulos

- O Francecircs como se fala (Cadernos)

- Pequeno leacutexico e receitas de feacuterias (Vacanceshellip)

- Vocabulaacuterio poliacutetico (Le jacassin)

- Esnobismo na linguagem cotidiana e de diversas profissotildees (Snobissimo)

- Maacutertires da ortografia burguesa (Made in France)

E para finalizar este trecho de Sonia les autres et moi (os outros e eu) no final do capiacutetulo intitulado ldquoElesrdquo que oferece uma interessante anaacutelise em linguiacutestica folk do emprego decircitico do pronome como instacircncia coletiva

Quem satildeo eles Todo mundo sem duacutevida e ningueacutem Com os alematildees foram os alematildees e seus asseclas Com nossos libertadores foram os libertadores Mas conosco somos noacutes O dicionaacuterio de francecircs baacutesico deveria indicar para eles

ldquoHidra social contra a qual o indiviacuteduo meacutedio parte cada dia em rebeliatildeo falada designa simultaneamente franceses e estrangeiros empregadores e trabalhadores o presidente e os conselheiros as autoridades fiscais os accedilougueiros a Seguranccedila Social o Estado enfim todo o universo exceto o oradorrdquo (THOMPSON 1952 p 105 itaacutelico do autor)

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23 Praacuteticas linguiacutesticas folk

Uma vez identificados os lugares do conhecimento linguiacutestico popular resta antes de examinar duas amostras propor uma definiccedilatildeo a tiacutetulo heuriacutestico e hipoteacutetico

Eu a vejo por ora como um arcabouccedilo teoacuterico e metodoloacutegico para unificar um conjunto de praacuteticas linguiacutesticas seculares baseadas em uma concepccedilatildeo perceptiva da norma que produz trecircs tipos de discurso sobre a liacutengua (eu adapto os dois primeiros de Brekle 1989 e proponho aqui um terceiro)

- descriccedilotildees linguiacutesticas e (preacute)teorizaccedilotildees das regras de funcionamento da liacutengua fortemente informadas por percepccedilotildees (veredictos do tipo ldquonatildeo eacute francecircsrdquo ou julgamentos de adequaccedilatildeo entre nomes e coisas)

- prescriccedilotildees concernentes aos usos muitas vezes decorrentes de um normativismo muscular que vai ateacute o purismo (condenaccedilatildeo de empreacutestimos de neologismos escaacuternio da feminizaccedilatildeo etc)

- intervenccedilotildees espontacircneas na liacutengua na maioria das vezes regularizantes (emocionar e ir no cabeleireiro apesar que etc) esses famosos ldquoerrosrdquo sobre os quais D Leeman (1994) se pergunta se realmente existem (para uma apresentaccedilatildeo detalhada desta tipologia ver Paveau 2005)

Para recapitular a linguiacutestica popular se constituiria de trecircs tipos de praacuteticas seculares com uma dimensatildeo perceptiva descriccedilotildees prescriccedilotildees intervenccedilotildees

3 Semacircntica secular e sociolinguiacutestica popularApresento aqui dois exemplos de linguiacutestica popular o primeiro concernente ao significado

do nome proacuteprio e o segundo ao proacuteprio linguiacutestico das classes dominantes

31 O nome proacuteprio designador flexiacutevel

Quando P Siblot propocircs em 1987 os primeiros delineamentos teoacutericos da ldquosignificacircnciardquo do nome proacuteprio a partir das anaacutelises de Weinreich (ldquoa hipersemanticidaderdquo do nome proacuteprio) ou de Barthes (sua ldquoespessura semacircnticardquo) ele se opocircs de forma inovadora em linguiacutestica ao paradigma dominante do assemantismo do nome proacuteprio considerado como um designador riacutegido Os pesquisadores que admitem as propriedades semacircnticas do nome proacuteprio constituiacuteram entatildeo o que chamo de paradigma do designador flexiacutevel a partir de variadas proposiccedilotildees terminoloacutegicas e teoacutericas ldquohalos positivos e negativosrdquo (M Wilmet) ldquoevocaccedilotildees simboacutelicasrdquo (P Charaudeau) ldquoheterorreferencialidaderdquo e ldquoomnisignificadordquo (G Cislaru) Mas esse tipo de abordagem haacute muito se estabilizou no discurso linguiacutestico secular em particular entre os escritores mas tambeacutem entre os autores dessa tradiccedilatildeo do espiacuterito francecircs descrito acima Sabemos por exemplo que para Proust os significados plurais do nome proacuteprio satildeo uma evidecircncia tomando emprestados os canais da memoacuteria voluntaacuteria e a metaacutefora da cor Eacute o que testemunham numerosas passagens do Cocircteacute de Guermantes que se relacionam com as praacuteticas linguiacutesticas seculares

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E o nome de Guermantes na eacutepoca eacute tambeacutem como um daqueles pequenos balotildees nos quais se prendem oxigecircnio ou outro gaacutes quando consigo estouraacute-lo ao soltar o que ele conteacutem respiro o ar de Combray daquele ano daquele dia misturado com um cheiro a espinheiro agitado pelo vento da esquina da praccedila [hellip] Mas mesmo fora dos raros minutos como estes nos quais bruscamente sentimos a entidade original estremecer e retomar sua forma e sua perseguiccedilatildeo dentro das siacutelabas mortas de hoje se neste redemoinho vertiginoso da vida cotidiana onde eles tecircm apenas um uso inteiramente praacutetico os nomes perderam toda a cor como um sinal prismaacutetico [] por outro lado quando em devaneio refletimos procuramos voltar ao passado desacelerar suspender o movimento perpeacutetuo no qual estamos envolvidos pouco a pouco vemos reaparecer justapostos mas inteiramente distintos um dos outros os tons que o curso de nossa existecircncia nos apresenta sucessivamente com um mesmo nome (PROUST 1954 [1920] p 13)

O nome proacuteprio eacute considerado aqui como um reservatoacuterio de sentido que pode ser ativado de acordo com os contextos espaciais e temporais intimamente dependentes da percepccedilatildeo memoacuteria e atividade cognitiva do sujeito Ele possui uma dimensatildeo cognitivo-discursiva constituindo um verdadeiro ldquonome de memoacuteriardquo cujo significado precisa ser analisado em um contexto ampliado agrave histoacuteria agrave cultura e ao ambiente material Em uma abordagem cognitivo-discursiva diremos que eacute um preacute-discurso isto eacute um quadro preacute-discursivo coletivo que contribui para a elaboraccedilatildeo do discurso ao ativar um conjunto de conhecimentos crenccedilas e praacuteticas (esta abordagem do nome proacuteprio eacute desenvolvida em Paveau 2006) Eacute esse tipo de anaacutelise que encontramos em P Daninos

E se aquele agente duplo [Mata Hari] fosse de pouca envergadura Seu apelido permaneceraacute inscrito na histoacuteria ela termina mal mas soa bem Quem sabe o que teria acontecido com ela sob seu nome verdadeiro de Gertrude Zelle Talvez rentista em Monte-Carlo inscrita na Seguridade Social para a qual os espiotildees contribuem assim como os outros [] No domiacutenio dos nomes proacuteprios a seleccedilatildeo se opera [] com crueldade Existem alguns ndash Richelieu Voltaire La Fayette ndash que resistem a todos os empregos ceacutedulas telefone galerias Outros esmagados pelo metrocirc quantas pessoas a quem foi dito cem vezes ldquoDesccedila em Barbegravesrdquo morrem sem jamais ter voltado ao passado deste poliacutetico Alguns nomes como Chardon-Lagache natildeo dizem mais nada Outros como Pegravere-Lachaise natildeo dizem nada de valor (DANINOS 1972 p 82)

O nome proacuteprio eacute descrito como um categorizador de tipo social (coeficiente de prestiacutegio do antropocircnimo) e cultural (conservaccedilatildeo dos valores histoacutericos e literaacuterios de certos nomes) Ele propotildee uma folha de memorial que pode ser ativada de diferentes maneiras conforme percepccedilotildees dos usuaacuterios enquanto Richelieu manteacutem sua dimensatildeo histoacuterica Pegravere-Lachaise passou por uma mudanccedila semacircntica restritiva

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32 Uma sociolinguiacutestica popular a fala das classes dominantes

Quer se trate de histoacuteria sociologia ou linguiacutestica poucas ciecircncias humanas se ocuparam ateacute agora das ldquoclasses dominantesrdquo que M Pinccedilon e M Pinccedilon-Charlot explicam por ausecircncia de contratos propostos pelo Estado as escolhas posturais dos socioacutelogos que evitam enfrentar uma dissimetria social em seu prejuiacutezo e o clima poliacutetico e intelectual poacutes-1968 (PINCcedilON PINCcedilON-CHARLOT 2005 [1997]) Seja como for eacute patente que os trabalhos publicados em linguiacutestica no campo da variaccedilatildeo social satildeo majoritariamente consagrados ao francecircs popular com ou sem esse roacutetulo sem que um ldquo(grande) falante burguecircsrdquo ou um ldquofrancecircs aristocraacuteticordquo natildeo seja considerado (tambeacutem satildeo possiacuteveis outra questatildeo) Acontece poreacutem que a sociolinguiacutestica popular que aqui me interessa trata amplamente dessa questatildeo sob diferentes etiquetagens (liacutengua burguesa fala esnobe linguagem mundana boa fala) por meio da figura recorrente de Marie-Chantal que representa para a fala das classes dominantes o que Franccediloise de Proust eacute para o francecircs popular Marie-Chantal adquiriu suas marcas linguajeiras como as joias de famiacutelia por heranccedila familiar Esta eacute a anaacutelise que Proust faz a propoacutesito de Albertine

Natildeo que Albertine jaacute natildeo tivesse quando estive em Balbec um lote muito variado dessas expressotildees que revelam de imediato que se vem de famiacutelia abastada e que ano apoacutes ano uma matildee abandona sua filha do mesmo modo que outra lhe daacute na medida em que cresce em circunstacircncias importantes suas proacuteprias joias (PROUST 1954 [1920] p 64)

A literatura popular cita em seu lazer essas expressotildees ldquomuito variadasrdquo que o historiador Eacute Mension-Rigau chama de ldquoexpressotildees de intimidaderdquo e que muitas vezes se relacionam com a vida social e relaccedilotildees interpessoais Alguns exemplos dessas palavras de classe analisadas no interior de uma sociolexicologia popular

1 M de Chaudenay escreve em seu glossaacuterio que ldquoum membro do Jockey Club digno desse nome natildeo tem mamatildee nem papai nem filho nem famiacutelia nem carro nem castelo nem hotel Ele natildeo come natildeo toma aperitivos natildeo vai a espetaacuteculo nem a reuniotildees festivasrdquo E eacute verdade que o pobre homem mesmo sendo dono de Chambord seraacute

reduzido pelo bom tom de dizer-lhe Venha jantar em casa Vocecirc tem que ser o uacuteltimo dos arrivistas para falar de um castelo ou o Diretoacuterio para dizer HP (nota abreviatura para hotel privado) (DANINOS 1964 p 87)

2 De Neuilly a Passy natildeo ldquose comerdquo se almoccedila ou janta (VANDEL 1993 p 152)

3 Fui ensinado que natildeo comemos Almoccedilamos lanchamos ou jantamos (homem 1934) [hellip] Noacutes natildeo andamos a cavalo noacutes montamos Um dia eu disse desisti Aprendi a expressatildeo no internato Meu avocirc me disse isso natildeo se diz Dizemos vomitamos mas natildeo desistimos (homem 1934) (MENSION-RIGAU 1994 p 201 e 209)

Eacute difiacutecil desenvolver as anaacutelises por falta de espaccedilo (encontraremos desdobramentos adicionais em Paveau e Rosier 2007) mas eacute preciso notar que esse tipo de descriccedilatildeo lexicoloacutegica

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estaacute integrado em um sistema perceptivo mais amplo como indica Eacute Mension-Rigau (1994 p 209)

Para designar essas expressotildees rejeitadas por serem utilizadas por classes sociais que natildeo pertencem agrave mesma esfera ou ao mesmo mundo os respondentes utilizam todo um conjunto de qualificativos dizem que satildeo muito comuns muito vulgar muito ordinaacuterio comum como patildeo de cevada [arroz de festa no portuguecircs] muito corriqueiro do povo de gente pequena de todo mundo de garccedilom cabeleireiro fornecedor ou porteiro []

Encontramos portanto nesses discursos linguiacutesticos folk um corpus e teorias espontacircneas baseadas na maneira como os usuaacuterios recebem-percebem os valores sociais do leacutexico

4 A questatildeo da validade das teorias popularesA questatildeo mais interessante colocada pela linguiacutestica folk a de sua validade53 tem sido

objeto de pouco trabalho exceto pelas reflexotildees dos americanos sobre filosofia da mente e filosofia da ciecircncia Eacute um problema difiacutecil sem duacutevida porque a doxa da falsidade dos conhecimentos populares estaacute fortemente ancorada na Franccedila em particular onde se fala muito rapidamente em ldquopseudociecircnciardquo mas ainda mais porque a utilizaccedilatildeo que a linguiacutestica faz da noccedilatildeo de intuiccedilatildeo natildeo eacute esclarecida

41 Verdade cientiacutefica ou aproximada

As teorias populares satildeo verdadeiras ou falsas Existem para ser breve trecircs respostas possiacuteveis

bull As teorias populares satildeo falsas

O materialismo eliminativista agrave moda de P Churchland como vimos responde satildeo totalmente falsas aliaacutes seratildeo substituiacutedas por demonstraccedilotildees sem apelo resultantes das neurociecircncias esta posiccedilatildeo eacute tambeacutem a do filoacutesofo S Laurence (2003) que considera que as teorias correntes em qualquer ciecircncia satildeo frequentemente falsas e que o fato de a linguiacutestica ser recente a torna ainda mais vulneraacutevel

bull As teorias populares satildeo falsas mas sua existecircncia eacute necessaacuteria

O ldquorealismo suaverdquo de D Dennett por exemplo (1990 [1987]) responderia de maneira mais matizada os resultados cientiacuteficos satildeo falsos porque os qualia (experiecircncias conscientes) satildeo falsos mas o vocabulaacuterio ldquofolkrdquo eacute perfeitamente operacional e mesmo necessaacuterio para a relaccedilatildeo do homem com a linguagem em outras palavras as percepccedilotildees espontacircneas satildeo organizadores (padrotildees) necessaacuterios A linguiacutestica popular seria entatildeo admissiacutevel como uma descriccedilatildeo perceptiva e organizadora da linguagem mas natildeo como uma teoria da linguagem

bull As teorias populares satildeo verdadeiras mas os ldquonatildeo-linguistasrdquo possuem saberes sobre as liacutenguas

53 No capiacutetulo anterior realizamos uma discussatildeo mais detalhada sobre a validade das teorias folk

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D Preston e N Niedzielski (1999 p 10) colocam desta forma ldquoSe o povo fala sobre linguagem eles devem eacute claro saber (ou pelo menos acreditar que sabem) sobre elardquo Passamos a uma concepccedilatildeo praacutetica e natildeo mais loacutegica da verdade haacute um conhecimento linguiacutestico que independe de suas propriedades cientiacuteficas e esse conhecimento tem um tipo de operacionalidade Esta eacute a posiccedilatildeo de N Llewellyn e A Harrison que estudam o modo como um grupo de falantes percebe formas de liacutengua e de discurso em documentos corporativos

Em um niacutevel baacutesico o presente capiacutetulo mesmo que brevemente mostrou que as competecircncias linguiacutesticas folk dos participantes se estendem muito longe Os participantes demonstraram habilidade de distinguir entre usos inclusivos e exclusivos da primeira pessoa do plural transformaccedilatildeo passiva nominalizaccedilatildeo eles foram capazes de criticar o uso de abstraccedilotildees como sujeitos de verbos identificar possiacuteveis instacircncias da segunda pessoa disfarccedilada e assim por diante (PAVEAU 2006)

Essa resposta se fundamenta em uma abordagem anti-chomskyana da cogniccedilatildeo na qual a linguiacutestica explica as dimensotildees experiencial e cultural da linguagem Em outras palavras se o objeto da linguiacutestica permanece apesar de todos os desenvolvimentos a liacutengua por ela mesma entatildeo a linguiacutestica popular tem poucas chances se o objeto da linguiacutestica se estende aos usos da linguagem por sujeitos sociais e cognitivos entatildeo o conhecimento popular qualquer que seja seu status epistecircmico entra por pleno direito na teoria o que mostra ao que parece as duas ldquoteoriasrdquo populares apresentadas acima

42 Intuiccedilatildeo percepccedilatildeo verdade

Pode-se pensar que em uacuteltima anaacutelise todas as teorias linguiacutesticas satildeo populares uma vez que se baseiem na intuiccedilatildeo dos locutores Mas de que intuiccedilatildeo se trata exatamente A intuiccedilatildeo dos linguistas amplamente informada pela teoria (conhecemos a piada de que apenas um informante chomskyano pode admitir teorias chomskyanas) natildeo eacute a mesma que a dos locutores comuns Esta eacute a posiccedilatildeo defendida por Devitt em sua criacutetica anti-representacionista que aliaacutes fornece um meio de tratar a verdade das teorias populares

As intuiccedilotildees de falantes comuns podem parecer mais presentes do que realmente satildeo porque os linguistas consideram suas proacuteprias intuiccedilotildees representativas Sem duacutevida muitas vezes satildeo representativas E onde natildeo satildeo seriam se o falante comum tivesse a vantagem de uma educaccedilatildeo em linguiacutestica (DEVITT 2006 p 496)

Vemos como a questatildeo da verdade se desloca para a da percepccedilatildeo se as informaccedilotildees dadas pela intuiccedilatildeo satildeo verdadeiras porque satildeo informadas pela teoria entatildeo eacute de uma verdade relativa que se trata e podemos igualmente falar de verdade por intuiccedilotildees ldquofalsasrdquo que satildeo verdadeiras em relaccedilatildeo aos quadros natildeo teoacutericos dos indiviacuteduos Esses quadros satildeo os da sociedade da cultura e isso eacute o que mostra por exemplo o trabalho de N Niedzielski sobre a natureza social da percepccedilatildeo das variaacuteveis sociolinguiacutesticas (1999)

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ConclusatildeoAbordar a questatildeo da linguiacutestica folk envolveu deslocar a abordagem habitualmente binaacuteria

da norma (descritiva versus prescritiva) para propor um terceiro termo a percepccedilatildeo A ldquoverdaderdquo da linguiacutestica popular deve de fato ser pensada em termos perceptivos metadiscursivos e natildeo loacutegicos o que tambeacutem implica substituir outra oposiccedilatildeo binaacuteria cientiacutefica versus popular um contiacutenuo que leva em consideraccedilatildeo os dois objetos examinados54 e o coeficiente de informaccedilatildeo social e cultural dos conhecimentos produzidos Esses uacuteltimos satildeo justificaacuteveis para um estudo especiacutefico em linguiacutestica natildeo como uma cartilha ingecircnua sobre a qual fundar a ciecircncia mas como uma possiacutevel versatildeo da teoria da linguagem Daninos e Labov Proust e Weinreich

54 N Llewellyn e A Harrison (2006) mostram por exemplo que falantes comuns tecircm conhecimento linguiacutestico preciso sobre pronomes e neologismos mas satildeo menos confiantes quanto a problemas complexos das praacuteticas textuais

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O FALAR DAS CLASSES DOMINANTES LINGUIacuteSTICA POPULAR E DIALETOLOGIA PERCEPTIVA55

A questatildeo das identidades linguageiras e discursivas eacute crucial para uma ciecircncia da linguagem considerar a realidade das trocas sociais e os contextos da vida em sociedade Eacute o proacuteprio sistema das relaccedilotildees sociais que eacute estruturado quando as identidades satildeo postas em causa nos dois sentidos do termo lanccediladas na arena das trocas mas tambeacutem com base nas imagens de si e do outro elaboradas por si mesmo e pelo outro Os locutores adaptam os modos de falar ao mesmo tempo em que produzem anaacutelises espontacircneas elaborando e administrando simultaneamente suas imagens linguageiras Sujeitos de observaccedilatildeo para os linguistas (especializados) eles satildeo propriamente linguistas no quadro de uma linguiacutestica popular

Nesse capiacutetulo me proponho investigar as identidades linguageiras de classe56 isto eacute os modos que os locutores tecircm de mostrar o seu pertencimento a determinada classe e sua posiccedilatildeo nas relaccedilotildees sociais Desejo examinar particularmente a hipoacutetese de um falar das classes dominantes57 estudo ateacute entatildeo ausente nos trabalhos sociolinguiacutesticos franceses e que propotildee questotildees histoacutericas epistemoloacutegicas e empiacutericas pertinentes agrave linguiacutestica social

Descreverei inicialmente o estatuto da noccedilatildeo de classe social na sociolinguiacutestica francesa e anglo-saxatilde bem como a assimetria que existe entre os objetos frequentemente escolhidos pelas ciecircncias sociais (classe trabalhadora povo excluiacutedos e em menor grau as classes meacutedias) e os pertencimentos reais ou imaginaacuterios dos indiviacuteduos (em que se encontram igualmente as classes dominantes as elites as burguesias) Examinarei na sequecircncia as formas e a validade dos resultados da linguiacutestica folk (haacute uma sociolinguiacutestica espontacircnea e antiga e muito desenvolvida na Franccedila sobre o falar das elites e dos bairros nobres) mostrarei que os conceitos e os meacutetodos da dialetologia perceptual norte-americana satildeo particularmente pertinentes para dar conta desse objeto Terminarei o texto propondo uma primeira descriccedilatildeo linguiacutestica folk do falar das classes dominantes insistindo sobre alguns de seus traccedilos caracteriacutesticos (pronuacutencia leacutexico e pragmaacutetica)

1 A apreensatildeo linguiacutestica das categorias sociaisAs categorias mobilizadas pelas linguiacutesticas atentas ao humano e ao social natildeo satildeo

imanentes mas diretamente informadas pela histoacuteria das ciecircncias e das ideologias Isso eacute particularmente verdadeiro para a categoria ldquoclasse socialrdquo

55 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Le parler des classes dominantes objet linguistiquement incorrect Dialectologie perceptive et linguistique populaire Eacutetudes de linguistique appliqueacutee p 137-156 2008 Traduccedilatildeo de Roberto Leiser Baronas (UFSCar) e Julia Lourenccedilo Costa (UFSCarFAPESP)

56 Escolhi a acepccedilatildeo mais marxista do termo falo das classes ldquoda luta de classesrdquo e das ldquorelaccedilotildees sociais de produccedilatildeordquo conforme explicarei a seguir em 1

57 No momento a designaccedilatildeo tem apenas valor heuriacutestico

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11 Agrave procura da classe perdida

Natildeo falamos mais (em absoluto) de classe social especialmente em linguiacutestica como antes Tanto o termo como a noccedilatildeo parecem ter desaparecido do discurso dos socioacutelogos como mostra R Pfefferkorn em um trabalho de 2007 que reintegra o ldquojargatildeordquo marxista relaccedilatildeo social

Em linguiacutestica francesa e mais particularmente em sociolinguiacutestica o termo classe eacute substituiacutedo por posiccedilatildeo e por rede Em La variation sociale en franccedilais (2003) Franccediloise Gadet emprega ldquolocutores favorecidosrdquo e ldquodesfavorecidosrdquo (p 9) a metaacutefora da escala (o ldquoalto e o baixo dos degraus da escala socialrdquo p 10 e 68) ou o termo posiccedilatildeo em ldquoposiccedilatildeo social favorecidardquo por exemplo (p 16) Ela sublinha mais agrave frente (no capiacutetulo IV) que a classe (trabalhadora meacutedia e superior) como ferramenta de anaacutelise eacute muito formal e redutora e explica que a sociolinguiacutestica explora a noccedilatildeo de rede para melhor dar conta das diferentes articulaccedilotildees das relaccedilotildees sociais em niacutevel global e local tomando como exemplo a ldquorede operaacuteriardquo tal como eacute analisada por L Milroy (1980) O capiacutetulo IV eacute inclusive intitulado ldquoO diastraacuteticordquo termo teacutecnico perfeitamente naturalizado em linguiacutestica mas denotativo quase ciruacutergico que busca apagar as dimensotildees conflituosas eou poliacuteticas presentes na palavra classe

Todavia no decorrer deste mesmo capiacutetulo IV o termo classe social reaparece quase naturalmente o quadro que recapitula os usos sociais do natildeo da negaccedilatildeo apresenta a trilogia classe operaacuteria classe meacutedia e classe superior sendo a ldquoclasse socialrdquo apresentada como um criteacuterio igual ao de idade ou sexo e o autor menciona sem comentaacuterio especiacutefico ldquoa estratificaccedilatildeo em classes sociaisrdquo (GADET 2003 p 68)

Podemos portanto sustentar que tanto a leitura de F Gadet quanto a L Milroy bem como a de outros autores sobre a noccedilatildeo de classe sustentada na noccedilatildeo de relaccedilatildeo social natildeo apresenta diferenccedila expressiva em relaccedilatildeo agrave de rede Classe operaacuteria rede operaacuteria Se nos reportamos agraves anaacutelises de R Pfefferkorn que estima que a noccedilatildeo de classe foi paradoxalmente escamoteada pelos socioacutelogos franceses e britacircnicos nos anos 1970 e 1980 do seacuteculo passado (paradoxalmente porque a virada liberal fortaleceu sobretudo as classes dominantes) compreendemos que haacute outros elementos nesse desaparecimento e que eacute sem duacutevida por serem noccedilotildees marxistas e natildeo porque satildeo imprecisas que as abordagens em termos de classe e relaccedilatildeo social foram progressivamente descartadas

Alain Rey natildeo hesita em falar de classe em 1972 (encontramos o enunciado ldquoo pertencimento de classe dos locutoresrdquo em seu artigo publicado na revista Langue Franccedilaise no nuacutemero dedicado agrave norma p 14) e F Franccedilois emprega ainda o termo em 1983 propondo aleacutem disso uma descriccedilatildeo fina das relaccedilotildees da linguagem segundo os pertencimentos de classe

Em primeiro lugar eacute certo que a divisatildeo em classes sociais eacute acompanhada de uma divisatildeo entre aqueles que mais numerosos agem no tema sobretudo com gestos e aqueles que menos numerosos agem sobre os homens principalmente falando Ainda que as coisas sejam um pouco mais complicadas se o teacutecnico em eletrocircnica ou o

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cirurgiatildeo natildeo satildeo ldquofalantes purosrdquo satildeo as ldquoclasses meacutediasrdquo que desse ponto de vista se tornam a maioria Fica ainda mais claro se considerarmos a escrita satildeo poucos os homens para os quais escrever eacute a ocupaccedilatildeo principal (FRANCcedilOIS 1983 p 11)

Sabemos evidentemente que P Bourdieu jamais ocultou essa dimensatildeo em particular nos seus trabalhos consagrados agrave linguagem como nos mostra por exemplo o Ce que parler veut dire (1982)58 e o artigo Vous avez dit populaire (1983)59 que usa abundantemente a terminologia do conflito e da hierarquizaccedilatildeo (dominantes dominados restriccedilatildeo oposiccedilatildeo hierarquia etc)60 No entanto eacute tambeacutem verdadeiro que ateacute recentemente os estudos socioloacutegicos e sociolinguiacutesticos main stream ou tradicionais evitam a todo custo a noccedilatildeo de classe que todavia comeccedila a reaparecer com forccedila na cena intelectual a partir dos anos 2000 (numerosas obras e vaacuterias ediccedilotildees de revistas satildeo consagradas agraves desigualdades sociais e a um questionamento renovado do aparelho teoacuterico marxista ndash consultar por exemplo a primeira parte da obra de R Pfefferkorn) O bom senso nos diz que a partir do momento que a sociedade natildeo aparece como um todo socialmente pacificado eacute mais pertinente usar ferramentas de anaacutelises classistas

Nos Estados Unidos e mais tipicamente no mundo anglo-saxatildeo natildeo parece que seja produtivo semelhante tipo de apagamento ainda que a sociologia tenha passado pelas mesmas evoluccedilotildees A obra de B Bersnstein Class Codes and Control publicada em 1971 favoreceu durante uma quinzena de anos pesquisas emolduradas pela categoria de classe (o termo e a noccedilatildeo de class no mundo anglo-saxatildeo natildeo coincidem exatamente com o conceito de classe social no contexto francecircs) Categorias como a comunidade ou grupo (eacutetnico social cultural sexual geracional etc) ou a noccedilatildeo de ldquosocial networkrdquo introduzida rapidamente por Milroy (1980) que poderia ser uma alternativa agrave noccedilatildeo de classe natildeo a apagou L Milroy por exemplo trabalha ao mesmo tempo com os termos social network e class Os termos dialeto de classe ou dialeto social de classe satildeo empregados na sociolinguiacutestica americana mesmo natildeo sendo uma categoria de primeiro plano enquanto em francecircs eacute mais usado socioleto ou dialeto social noccedilotildees mais amplas natildeo conformadas ao social propriamente dito pois elas recobrem por exemplo os falares comunitaacuterios (a liacutengua das cidades ou dos jovens) etnogeograacuteficos (os dialetos crioulos por exemplo) ou geograacuteficos (os dialetos regionais)

12 Um socioleto mais elevado

Chamemos de classe redes ou grupos esses conjuntos de indiviacuteduos interligados pelos modos de ser e de falar pelas invariantes na representaccedilatildeo de si nos sentimentos de pertencimento e nos comportamentos econocircmicos satildeo estudados de modo desigual pelas ciecircncias sociais e em particular pela (soacutecio)linguiacutestica Se os trabalhos satildeo numerosos tanto na Franccedila quanto na Gratilde-Bretanha ou nos Estados Unidos sobre a classe operaacuteria ou rede operaacuteria ou classe popular ou meios desfavorecidos ou povo ou classe trabalhadora etc (a

58 NT BOURDIEU P O que falar quer dizer e economia das trocas simboacutelicas Traduccedilatildeo de Vanda Anastaacutecio Satildeo Paulo Editora Difel 1998

59 NT BOURDIEU P Vocecirc disse popular Traduccedilatildeo de Denice Barbara Catani Revista Brasileira de Educaccedilatildeo n 1 p 16-26 1996

60 O questionamento da categoria de popular para caracterizar um socioleto ou das maneiras de falar parece assim participar do esfacelamento da noccedilatildeo de classe em linguiacutestica Para uma anaacutelise detalhada consultar F Gadet (2002) e Abecassis (2003)

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terminologia eacute vasta61) os estudos sobre as classes dominantes ou ldquofavorecidasrdquo (burguesia grande burguesia e aristocracia) satildeo singularmente raros se natildeo inexistentes

Na Franccedila esses trabalhos satildeo rariacutessimos62 Pierre Bourdieu tem conduzido desde 1963 as pesquisas de campo sobre ldquoas classes superioresrdquo francesas (1979 p 588) cujos resultados satildeo apresentados em La distinction em 197963 Ele isola alguns marcadores de classe sem todavia propor uma anaacutelise linguiacutestica Os socioacutelogos M Pinccedilon-Charlot e M Charlot trabalham haacute quase vinte anos sobre as elites francesas e adquiriram por isso uma notoriedade fora da universidade sobre essa questatildeo que eles natildeo teriam conhecido quando estudavam essas questotildees nos anos 197064 (por exemplo 1989 1996 1997 e sua uacuteltima obra Les ghettos du Gotha publicada em 2007) Eles abordam poucos aspectos linguageiros mas destacam por exemplo a matriz discursiva de suas investigaccedilotildees Mais recentemente o historiador Eacute Mension-Rigau publicou o livro Aristocrates e grand-bourgeois (1994) ateacute entatildeo uacutenico estudo sobre as classes dominantes francesas contemporacircneas que o coloca em um lugar significativo sobre as maneiras de falar sobretudo porque os entrevistados comumente abordam eles proacuteprios como veremos mais adiante neste texto Na Beacutelgica haacute uma obra da socioacuteloga V DrsquoAlkemade intitulada La haute publicada em 2004

Do lado da linguiacutestica encontramos o estudo de O Mettas publicado em 1979 sobre a pronuacutencia parisiense La prononciation parisienne aspects phoniques drsquoun sociolecte parisien (du faubourg Saint-Germain agrave la Muette) Como anuncia o tiacutetulo o trabalho analisa o socioleto da aristocracia e da alta burguesia por meio de uma amostra de 39 locutoras A anaacutelise proposta por Mettas se concentra sobre a dimensatildeo foneacutetica (a ldquopronuacutencia refinadardquo) mas termina em uma ampliaccedilatildeo da anaacutelise de outros niacuteveis linguiacutesticos que defende a existecircncia de um falar social especiacutefico Podemos tambeacutem escutar uma amostra do sotaque do ldquosocioleto da alta burguesiardquo na gravaccedilatildeo de uma atriz que interpreta ldquouma pessoa esnobe da aristocraciardquo65 na obra Les accents des franccedilais livro-cassete publicado em 1983 e transferido para a internet66 Esse material propotildee uma lista de caracteriacutesticas focircnicas especiacuteficas Os trabalhos recentes que desenvolvi ainda programaacuteticos sobre o falar das classes dominantes tentam cercear esse objeto explicando a sua ausecircncia tanto no campo da sociolinguiacutestica quanto no das ciecircncias sociais favorecendo uma abordagem que considere nos dados linguiacutesticos as percepccedilotildees e as representaccedilotildees espontacircneas dos locutores (PAVEAU 2008 PAVEAU ROSIER 2008 capiacutetulo 8 ldquoStyles sociaux classes classements deacuteclassementsrdquo67)

61 A lista seria longa e tediosa para uma bibliografia ver Gadet (1992 2003) Calvet Mathieu (2003) Petitjean Privat (2007) e Paveau Rosier (2008)

62 Refiro-me aos trabalhos sobre as elites enquanto elites e natildeo aos estudos sobre a alta funccedilatildeo puacuteblica diplomaacutetica ou mesmo os bispos que existem na histoacuteria por exemplo e que dizem respeito a profissotildees ou posiccedilotildees de poder institucional

63 NT BOURDIEU P A distinccedilatildeo Criacutetica social do julgamento Traduccedilatildeo de Daniela Kern e Guilherme J F Teixeira Satildeo Paulo EdUSP 2007

64 O Diaacuterio de investigaccedilatildeo deles conteacutem comentaacuterios tatildeo interessantes que discorrem sobre a aacutecida recepccedilatildeo desses trabalhos pelos seus colegas prova de que se necessaacuterio os objetos cientiacuteficos possuem uma forte dimensatildeo ideoloacutegica e institucional (1996)

65 A assimilaccedilatildeo entre a alta burguesia e a aristocracia que faria qualquer aristocrata se assustar e alguns historiadores franzir a testa parece atestar a estranheza dessa categoria social para os autores da pesquisa

66 NT Disponiacutevel em httpaccentsdefrancefreefr Acesso em 17 out 2020

67 NT In PAVEAU M-A ROSIER L La langue franccedilaise passions et poleacutemiques Paris Eacuteditions Vuibert 2008

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A sociolinguiacutestica popular em contrapartida dispotildee de muitos pequenos tratados espontacircneos ou observaccedilotildees raacutepidas geralmente humoriacutesticas ou irocircnicas sobre o falar das classes dominantes por parte de observadores externos e tambeacutem por membros da aristocracia da grande burguesia ou dos ldquobons meios sociaisrdquo Esse corpus eacute constituiacutedo de ensaios para o puacuteblico em geral sobre o que denomino ldquoo espiacuterito francecircsrdquo (P Daninos P Jullian J Chazot) correspondendo a uma vasto material que abrange guias de correspondecircncia e de boas maneiras esquetes humoriacutesticas (S Joly C de Turkheim F Foresti) artigos de revista sobre os meios sociais com interpretaccedilotildees dos tiques comportamentais do ldquobobordquo68 do ldquobeauf69rdquo do ldquoaristo70rdquo ou do ldquoplouc71rdquo de dicionaacuterios de ldquocriacutetica irocircnicardquo (expressatildeo criada por L Rosier) como o Dico franccedilais-franccedilais de P Vandel (1992) ou o seu ancestral Le Jacassin de P Daninos (1962) ou ainda as obras de sociologia ldquosuaverdquo como Nous les bourgeoises de V Hanotel e M-L de Leacuteotard (1991) ou o Guide du squatteur mondain de J-F Duhauvelle (1994) Detalharei mais agrave frente neste texto os dados linguiacutesticos apresentados nesses materiais todavia eacute importante fazer uma primeira constataccedilatildeo sobre essa questatildeo existe uma assimetria notaacutevel entre os estudos linguiacutesticos ldquocientiacuteficosrdquo (rariacutessimos) e o grande nuacutemero de apreciaccedilotildees folk linguiacutesticas sobre o falar das elites sociais Essa constataccedilatildeo estaacute na origem do questionamento teoacuterico e epistemoloacutegico que discute a validade da linguiacutestica popular e as contribuiccedilotildees da dialetologia perceptiva para a linguiacutestica cientiacutefica

2 Linguiacutestica perceptiva linguiacutestica popular (folk linguiacutestica)Nos anos 1970 A Rey (1972 p 16) e outros pesquisadores reivindicaram o que chamo

de uma ldquolinguiacutestica dos valoresrdquo isto eacute um ldquoestudo sistemaacutetico das atitudes metalinguiacutesticas [] que poderia constituir uma ciecircncia social relacionada agraves teorias dos valores (teoria do direito da moral objetiva etc)rdquo ldquoEnquanto os trabalhos de soacutecio e de etnolinguiacutestica no que se refere agraves variedades de uso agraves normas objetivas satildeo atualmente muito numerosos [] os estudos relativos agrave apreciaccedilatildeo subjetiva dos usos satildeo raros e mais frequentes em inglecircsrdquo constata Rey no mesmo artigo (1972 p 15) Mais de trinta anos depois o que aconteceu Os campos norte-americanos da dialetologia social da dialetologia perceptiva da folk linguistics colaboraram voluntariamente com a psicologia social e tecircm amplamente explorado as atitudes linguiacutesticas as percepccedilotildees as avaliaccedilotildees os julgamentos de valores etc Parece se tratar de uma linguiacutestica dos valores

68 NT Abreviaccedilatildeo de bourgeois bohemian ou burguecircs boecircmio

69 NT ldquoA personagem do lsquobeaufrsquo ndash abreviaccedilatildeo de beau fregraverecunhado ndash nasceu no poacutes-maio de 68 do laacutepis de Cabu cartunista do Hara-Kiri e do Charlie Hebdo ldquoEle era o dono do bistrocirc com o pastor alematildeo o bigode e a camisetardquo explica o socioacutelogo Paul Yonnet autor de Travail Loisir (Gallimard) Havia portanto uma rejeiccedilatildeo do modo de vida e haacutebitos da classe trabalhadora da qual natildeo mais se poderia esperar a regeneraccedilatildeo da sociedaderdquo Disponiacutevel em httpswwwlexpressfrinformationsles-nouveaux-beaufs_636908html Acesso em 17 out 2020

70 NT ldquoAristo (substantivo masculino) 1 (pejorativo) pessoa que pertence a uma classe de nascimento privilegiada e que possui tiacutetulos e cargos hereditaacuterios 2 (pejorativo) aristocratardquo Disponiacutevel em httpdictionnairesensagentleparisienfraristofr-fr Acesso em 17 out 2020

71 NT ldquoQue tem a aparecircncia desajeitada de um camponecircs em sua melhor roupa de domingo que ignora os costumesrdquo comumente relacionado agrave regiatildeo francesa Bretagne Poderia ser traduzido como caipira em portuguecircs Disponiacutevel em httpswwwlaroussefrdictionnairesfrancaisplouc61755 Acesso em 17 out 2020

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Na Franccedila os dados metalinguiacutesticos satildeo estudados mas mais frequentemente segundo abordagens ldquoobjetivasrdquo (por exemplo as glosas metagraacuteficas no campo da aquisiccedilatildeo as natildeo-coincidecircncias do dizer na enunciaccedilatildeo e no discurso Para uma observaccedilatildeo em detalhe a esse respeito consultar a introduccedilatildeo de Achard-Bayle e Paveau na revista Pratiques 13914072) A questatildeo do ldquoimaginaacuterio linguiacutesticordquo eacute evidente nos trabalhos de A-M Houdebine e Socircnia Branca mas os dados propriamente perceptivos natildeo satildeo escolhidos como tais para um trabalho em linguiacutestica Haacute algumas exceccedilotildees como o estudo conduzido por A Meillet V Lucci e J Billiez publicado em 1990 com o tiacutetulo Orthographe mon amour (Grenoble PUG) que eacute no meu entendimento um raro e autecircntico trabalho no contexto francecircs de dialetologia perceptiva e de folk linguiacutestica sem que as categorias desse campo sejam efetivamente nominadas Minha hipoacutetese eacute que uma folk linguiacutestica amplamente articulada sobre uma dialetologia perceptiva pode realizar o projeto esboccedilado por A Rey de uma linguiacutestica dos valores Para sustentar essa hipoacutetese examino a validade da folk linguiacutestica e o estatuto da percepccedilatildeo na anaacutelise linguiacutestica

21 O problema da validade das disciplinas ldquofolkrdquo abordagem eliminativa versus integracionista

Como outras disciplinas ldquofolkrdquo (psicologia folk biologia folk e mais recentemente as neurociecircncias folk) a folk linguiacutestica parece por natureza desprovida de qualquer validade cientiacutefica Se de fato a ciecircncia se constroacutei sob a objetividade entatildeo as avaliaccedilotildees subjetivas e os dados perceptivos da linguiacutestica espontacircnea dos natildeo-linguistas soacute podem ser constituiacutedos de erros refutaacuteveis ou ficccedilotildees linguiacutesticas Para passar rapidamente pela questatildeo73 e tomando de empreacutestimo da filosofia do espiacuterito os termos de seu debate sobre os estados mentais existe do ponto de vista da linguiacutestica espontacircnea uma posiccedilatildeo ldquoeliminativistardquo que contesta as realidades construiacutedas por essa linguiacutestica ou que reconhece essa uacuteltima como uma teoria mas falsa Essa eacute a posiccedilatildeo geralmente adotada pelos linguistas ao se defrontarem com as opiniotildees do senso comum sobre a liacutengua (a liacutengua reflete o mundo os burgueses possuem uma linguagem mais rica do que os trabalhadores a subordinaccedilatildeo eacute um iacutendice de elaboraccedilatildeo do pensamento superior ao independente a gramaacutetica da liacutengua oral eacute passiva de erros etc) Essa eacute uma maneira binaacuteria de colocar as coisas linguiacutestica cientiacutefica versus folk linguiacutestica

Todavia existe igualmente uma posiccedilatildeo que chamarei de ldquointegracionistardquo uma vez que ela prefere integrar os dados avaliativos e perceptivos da folk linguiacutestica aos da linguiacutestica cientiacutefica ela postula que as anaacutelise dos natildeo-linguistas natildeo estatildeo muito longe daquelas dos linguistas ou podem agraves vezes forjaacute-las (os inuacutemeros trabalhos norte-americanos em dialetologia social mostram que os locutores percebem as variedades sociodialetais de maneira diferente que os linguistas profissionais o que coloca o problema da natureza do objeto) que as avaliaccedilotildees subjetivas constituem um filtro representacional essencial para compreender o funcionamento da comunicaccedilatildeo e os dados folk constituem o ponto de partida do trabalho

72 NT Linguiacutestica popular - a linguiacutestica ldquofora do templordquo Definiccedilatildeo geografia e dimensotildees Disponiacutevel em httpsperiodicosufscbrindexphpforumarticleview1984-84122019v16n4p4257

73 Sobre esta questatildeo da validade dos dados da folk linguiacutestica consultar Niedzielski (1999) Preston e Niedzielski (2000) Paveau (2007) Achard-Bayle e Paveau (2008)

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do linguista cientiacutefico bem como seu histoacuterico cognitivo74 Trata-se de uma posiccedilatildeo escalar entre dois polos extremos da linguiacutestica cientiacutefica e da folk linguiacutestica existe um continuum no qual as categorias estatildeo em contato e as anaacutelises podem ser mais ou menos cientiacuteficas ou mais ou menos espontacircneas Essa posiccedilatildeo eacute defendida pelos fundadores e praticantes da folk linguistics nos Estados Unidos (NIEDZIELSKI PRESTON 2000) vindos geralmente da dialetologia social (PRESTON 1989 WOLFRAM 1991) as duas correntes sendo derivadas do labovismo em sua primeira forma (LABOV 1966) Essa posiccedilatildeo integracionista eacute a que defendo neste texto O integracionismo natildeo foi desenvolvido na Franccedila onde como jaacute dissemos a reflexatildeo sobre a ldquoquestatildeo folkrdquo praticamente natildeo existe em linguiacutestica

Essa reflexatildeo implica que examinemos o estatuto da percepccedilatildeo e dos dados perceptivos em linguiacutestica o que naturalmente nos obriga a olhar de perto para a espinhosa noccedilatildeo de intuiccedilatildeo dos locutores

22 O estatuto linguiacutestico da percepccedilatildeo e a questatildeo da intuiccedilatildeo

Os primeiros trabalhos de W Labov nos anos 1960 sobre os falares nova-iorquinos estavam fundamentados no meacutetodo dos testes de reaccedilatildeo subjetiva de onde derivam os protocolos das entrevistas colocados em praacutetica a partir dos anos 1990 em dialetologia social e em folk linguiacutestica A questatildeo da subjetividade eacute entatildeo agrave eacutepoca plenamente de direito e totalmente integrada na construccedilatildeo da ciecircncia ldquoobjetivardquo no campo da sociolinguiacutestica norte-americana

221 Percepccedilatildeo e variaccedilatildeo

Os diferentes campos teoacutericos e metodoloacutegicos do variacionismo norte-americano verdadeiramente instalaram a noccedilatildeo de percepccedilatildeo no seu dispositivo teoacuterico e metodoloacutegico e natildeo apresentam nenhum receio em dialogar com disciplinas fora do campo da linguiacutestica como a psicologia social por exemplo Desse modo a dialetologia social e seu componente perceptivo (dialetologia perceptiva) tem mostrado que os julgamentos avaliativos dos locutores os estereoacutetipos que participam de suas representaccedilotildees em particular no domiacutenio do oral (percepccedilatildeo da fala) isto eacute o conjunto das atitudes linguiacutesticas influenciam a percepccedilatildeo das proacuteprias formas da linguagem na sua dimensatildeo mais fiacutesica (sinal fiacutesico) Dessa maneira Nancy Niedzielski defende a ideia que os sujeitos usam informaccedilotildees sociais variadas para identificar os dialetos sociais no seu componente foneacutetico As informaccedilotildees visuais como o movimento dos laacutebios as ldquoinformaccedilotildees de vozrdquo o gecircnero feminino ou masculino ou as informaccedilotildees de segundo plano do dialeto contribuem para a identificaccedilatildeo das variedades

Pesquisas em ambos os campos da sociolinguiacutestica e da psicologia social sugeriram que os estereoacutetipos sobre os grupos sociais dos quais os falantes satildeo membros (ou acreditam que satildeo membros) tecircm uma influecircncia na forma como as suas variedades linguiacutesticas satildeo percebidas [] O objetivo do estudo apresentado foi determinar em que medida os ouvintes usam informaccedilotildees sociais sobre um falante na construccedilatildeo do espaccedilo fonoloacutegico desse falante (NIEDZIELSKI 1999 p 62-63)

74 No campo da filosofia da linguagem sobre a questatildeo semacircntica eacute a posiccedilatildeo defendida por F Recanati em Literal Meaning (RECANATI 2004) contra o ldquoliteralismordquo ele defende um ldquocontextualismordquo que leva em consideraccedilatildeo as ldquorestriccedilotildees psicoloacutegicas popularesrdquo

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J Edwards (1999 p 102) a partir da psicologia social formula de maneira mais geral

A variaccedilatildeo encontrada nos estudos de avaliaccedilatildeo da fala reflete as percepccedilotildees sociais dos falantes de determinadas variedades e natildeo tem nada a acrescentar sobre quaisquer qualidades intriacutensecas ndash loacutegicas ou esteacuteticas ndash da proacutepria linguagem ou dialeto Assim ouvir determinada variedade eacute geralmente considerado um gatilho ou estiacutemulo que evoca atitudes (ou preconceitos ou estereoacutetipos) sobre a comunidade de fala considerada

Compreendemos por conseguinte que eacute a questatildeo da apreensatildeo do objeto que se coloca de maneira crucial sendo os linguistas tanto quanto os outros sujeitos perceptivos de que liacutengua eles falam entatildeo quais variedades satildeo identificadas e sobretudo como satildeo identificadas Na perspectiva norte-americana haacute certamente um lugar atribuiacutedo agrave subjetividade nas elaboraccedilotildees cientiacuteficas que comumente satildeo compreendidas como elaboraccedilotildees objetivas Na Franccedila e nos estudos francoacutefonos as coerccedilotildees objetivistas satildeo ainda mais fortes e essa questatildeo da percepccedilatildeo e mais amplamente da subjetividade eacute pouco abordada especialmente no que concerne agrave sua dimensatildeo social Alguns linguistas nos anos 1970 se preocuparam com essa questatildeo como A Rey (1972 p 8)

[] a recusa em considerar o uso de modo diferente que como objeto fiacutesico observaacutevel e analisaacutevel alheio a qualquer julgamento (da verdade do valor etc) facilmente leva a uma confusatildeo oposta agrave cometida por Vaugelas a teoria (sistema de regras de leis constituiacuteda como modelo de regras objetivas) eacute entatildeo considerada como intervencionismo disfarccedilado e qualquer reconhecimento de uma norma social como defesa do normativismo o que natildeo tem sentido []

Todavia natildeo parece que as respostas foram dadas por trabalhos fortes que integrem a dimensatildeo subjetiva Essa distinccedilatildeo entre uso-objeto e uso-valor orienta de fato profundamente os trabalhos franceses que tanto em linguiacutestica como em outras aacutereas satildeo fortemente enquadrados pelos requisitos disciplinares fazer linguiacutestica com algo diferente do linguiacutestico explicar o social com algo diferente do social natildeo eacute ainda uma postura acadecircmica habitual e bem admitida na Franccedila A distinccedilatildeo objeto versus valores realmente cruza a oposiccedilatildeo entre linguiacutestica e extralinguiacutestica ou como chama F Gadet a oposiccedilatildeo entre interno e externo ldquoSeraacute que apenas o interno explica o interno ou ainda seraacute que correlacionar a fatores mensuraacuteveis ou natildeo de natureza natildeo-linguageira (pelo menos enquanto a linguagem for reconhecida como puramente linguiacutestica) pode questionar o fundamento da variaccedilatildeo explicaacute-lordquo pergunta-se Gadet em um artigobalanccedilo sobre a sociolinguiacutestica na Franccedila (2008 p 4 itaacutelico da autora) Essa eacute sem duacutevida uma das razotildees pelas quais os trabalhos franceses ou francoacutefonos sobre as percepccedilotildees e as atitudes satildeo pouco numerosos e aleacutem disso concentrados sobre domiacutenios muito particulares as imagens da liacutengua em contexto de aprendizagem (por exemplo Fontaine 1983 Ledegen 2000) e em contexto interlinguiacutestico (por exemplo Apotheacuteloz Bysaeth 1981 Atienza (org) 2006) O domiacutenio das marcas sociais dificilmente eacute representado o que eacute talvez um efeito perverso de uma concepccedilatildeo desatada da sociolinguiacutestica defendida por exemplo por F Gadet em nome de uma ldquodialinguiacutesticardquo permitindo

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[] representar a linguagem sem fechaacute-la na alternativa de formalizaccedilatildeo versus exuberacircncia variacional com o objetivo de moldar um objeto reconhecido como conjunto muito complexo de invariacircncia e de variaccedilatildeo que se manifesta na forma do diverso do heterogecircneo do impreciso do hiacutebrido do emergente (mas tambeacutem persistente ao longo do tempo) (GADET 2008 p 5)

A ldquodialinguiacutesticardquo se pretende realmente aberta buscando substituir uma sociolinguiacutestica reduzida ao social E entatildeo o social eacute menos considerado No entanto ele constitui uma dimensatildeo incontestaacutevel e como outros tipos de variaccedilatildeo sua apreensatildeo dificilmente parece possiacutevel sem considerar os exteriores da liacutengua e dos usos inclusive as percepccedilotildees e os valores

O lugar restrito atribuiacutedo agrave noccedilatildeo de percepccedilatildeo nos trabalhos sobre a variaccedilatildeo social no contexto francecircs estaacute sem duacutevida relacionado com o enfraquecimento das reflexotildees engajadas sobre a noccedilatildeo de intuiccedilatildeo (do locutor nativo) ou do sentimento linguiacutestico

222 Percepccedilatildeo e intuiccedilatildeo

A noccedilatildeo de intuiccedilatildeo diretamente relacionada com a de percepccedilatildeo mas sem a recobrir eacute raramente objeto de questionamento e funciona como um impliacutecito ratificado pela comunidade dos linguistas Na Franccedila a noccedilatildeo eacute geralmente justificada e mobilizada em particular na sintaxe ou ainda na semacircntica assim como o seu antocircnimo adjetival contra-intuitivo No entanto tal noccedilatildeo eacute raramente descrita como operador ou ferramenta conceitual para as ciecircncias da linguagem O Glossaire bibliographique des sciences du langage de F Gobert sintomaticamente apresenta apenas uma entrada para Intuiccedilatildeo (um artigo de Jean Dubois sobre a gramaacutetica gerativa na liacutengua francesa em 1969) uma segunda entrada intitulada Intuiccedilatildeo (do locutor nativo) eacute apresentada pela definiccedilatildeo compilada e didaacutetica feita por M Yaguello em seu Catalogue des ideacutees reccedilues sur la langue em 1988 O dicionaacuterio de linguiacutestica de Jean Dubois et al publicado pela Larousse em 2001 define da mesma maneira e em poucas linhas intuiccedilatildeo e sentimento linguiacutestico como a capacidade dos sujeitos de formular julgamentos de aceitabilidade e de gramaticalidade As entradas estatildeo ausentes no Dictionnaire des sciences du langage75 de F Neveu publicado pela A Colin em 2003 Jacqueline Authier e A Meunier sublinham desde 1972 ldquoa pobreza dos conhecimentos linguiacutesticos atuais nesse domiacutenio [da intuiccedilatildeo e do sentimento linguiacutestico]rdquo (p 53)

O filoacutesofo M Devitt propotildee anaacutelises esclarecedoras sobre essa noccedilatildeo que fornecem argumentos em favor da integraccedilatildeo de saberes descrita anteriormente neste texto O autor explica que a definiccedilatildeo corrente de intuiccedilatildeo tal como eacute proposta pela gramaacutetica chomskyana (a Tese Representacional) que pode ser vantajosamente substituiacuteda por uma teoria alternativa ldquoEsta teoria trata as intuiccedilotildees linguiacutesticas como opiniotildees resultantes de investigaccedilatildeo empiacuterica comum consideradas pela teoria da maneira como todas essas opiniotildees satildeordquo (DEVITT 2006 p 485) Quando a intituiccedilatildeo do locutor nativo eacute definida como um conjunto de opiniotildees eacute isso que provoca uma mudanccedila de terreno especialmente se continua M Devitt elas embasam a

75 NT NEVEU F Dicionaacuterio das ciecircncias da linguagem Petroacutepolis Editora Vozes 2008

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intuiccedilatildeo do proacuteprio linguista ldquoEmbora as intuiccedilotildees discutidas provavelmente estejam certas as intuiccedilotildees nas quais a linguiacutestica deveria confiar satildeo aquelas dos proacuteprios linguistas pois esses uacuteltimos satildeo os mais experientesrdquo (p 494) Em uacuteltima instacircncia as intuiccedilotildees frequentemente mobilizadas pelos linguistas satildeo as suas proacuteprias intuiccedilotildees cujo aspecto espontacircneo e ingecircnuo natildeo eacute garantido uma vez que estes profissionais satildeo muito conscientes da teoria linguiacutestica

As intuiccedilotildees de falantes comuns podem parecer mais presentes do que realmente satildeo visto que os linguistas consideram as suas proacuteprias intuiccedilotildees como representativas Sem duacutevida elas muito frequentemente satildeo representativas E onde natildeo satildeo seriam se o orador comum tivesse a vantagem de uma educaccedilatildeo em linguiacutestica (DEVITT 2006 p 496)

A intuiccedilatildeo pode ser compreendida como um conjunto de atitudes Poderiacuteamos concordar com essa proposiccedilatildeo e isso nos levaria a repensar a natureza do objeto da linguiacutestica um objeto certamente subjetivo a liacutengua constituiacuteda por variantes de si mesma essas variantes natildeo sendo identificadas da mesma maneira pelos locutores Estamos longe do fantasma cientiacutefico do objeto homogecircneo ideal nem mesmo heuriacutestico e as riacutegidas distinccedilotildees habituais interno versus externo linguiacutestica versus extralinguiacutestica percepccedilatildeo versus objetivaccedilatildeo e linguistas versus natildeo-linguistas se dissolvem sendo muito mais coerente pensarmos em termos de continuum

23 Quem satildeo os natildeo-linguistas

Dessa perspectiva se coloca a delicada questatildeo da identificaccedilatildeo dos ldquonatildeo-linguistasrdquo como D Preston os designa Quem satildeo esses sujeitos Pode-se colocar num mesmo plano no que se refere ao conhecimento da liacutengua um escritor e um esportista Sim e natildeo aqui minha resposta seraacute mais escalar que binaacuteria Em vez de opor de maneira idealista os linguistas aos natildeo-linguistas me parece mais adequado colocar um continuum com esses dois polos extremos de um lado o linguista profissional isto eacute o especialista em ciecircncias da linguagem enquanto disciplina cientiacutefica e de outro o locutor comum cuja cultura e praacuteticas sociais natildeo incluem conhecimentos especiacuteficos sobre a liacutengua Entre os dois a massa de natildeo-linguistas agraves vezes mais proacutexima dos saberes cientiacuteficos (escritores corretores professores acadecircmicos de outras disciplinas como os historiadores os socioacutelogos citados anteriormente alguns jornalistas) agraves vezes longe desses mesmos saberes adotando atitudes metalinguiacutesticas menos conscientes linguisticamente que os anteriores (humoristas observadores da vida social alguns jornalistas locutores comuns) Para complicar as coisas o linguista profissional tambeacutem pode produzir comentaacuterios espontacircneos que natildeo dependem de sua atividade profissional podendo ser tambeacutem um natildeo-linguista Essa eacute uma questatildeo de posiccedilatildeo discursiva e natildeo de ontologia

Chamaremos pois de natildeo-linguista o locutor que produz discursos metalinguiacutesticos sem se fundamentar na linguiacutestica cientiacutefica Isso natildeo significa que seja desprovido de saberes culturais Proust eacute um natildeo-linguista da mesma maneira que D Debbouze mas suas anaacutelises folk linguiacutesticas de falares sociais natildeo adveacutem dos mesmos quadros culturais e de saberes Um ensaiacutesta como P Daninos por exemplo eacute um natildeo-linguista que tangencia a linguiacutestica

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mencionando diversos trabalhos em ciecircncias da linguagem (sobre o francecircs fundamental por exemplo) Nesse sentido a categoria do natildeo-linguista eacute definida de maneira mais prototiacutepica do que componencial e natildeo se confunde com categorias proacuteximas tais como ldquoorador eruditordquo ou ldquocultordquo

Abordo na sequecircncia os dados perceptivos que permitem postular a categoria do falar das classes dominantes

3 Classes sociais e identidades linguageirasNatildeo estaacute em questatildeo aqui (re)propor um paralelo redutor entre falar e classe social as

variaccedilotildees de estilo dos locutores de acordo com as situaccedilotildees sociais e suas posiccedilotildees nas relaccedilotildees estatildeo no escopo do trabalho Em vez disso trata-se de perguntar se os repertoacuterios estiliacutesticos e discursivos dos locutores natildeo estatildeo sustentados por algumas constantes estaacuteveis que seriam diretamente ligadas agrave classe social entendida como um conjunto de comportamentos de valores e de maneiras de ser que produzem pertencimento e ateacute mesmo atribuiccedilatildeo social

31 Um socioleto impensado o falar das classes dominantes

Uma lista de locutores proposta por A Rey para exemplificar os usos natildeo padratildeo nos mostra jaacute em 1972 que a marcaccedilatildeo foi concebida essencialmente como fazendo parte das classes populares ou do meio operaacuterio

Je ne vais pas au docteur je vais pas au docteur76 e com outro material lexical jrsquovais agrave lrsquopecircq ldquoagrave la pecirccherdquo77 que poderiacuteamos ficar tentados a descartar como agramaticais satildeo compatiacuteveis com os usos sociais do francecircs eles devem portanto pertencer ao sistema de liacutengua senatildeo sua gramaacutetica natildeo produziria todas as frases julgadas aceitaacuteveis pelos ldquofalantes nativosrdquo (a menos que vocecirc admita que o trabalhador de Calais o entregador de jornais normando ou a lojista de Toulouse satildeo menos ldquonativosrdquo do que o professor digamos parisiense e natildeo tem o direito de contribuir para a constituiccedilatildeo do ldquofalante idealrdquo) (REY 1972 p 13)

A questatildeo da marcaccedilatildeo da classe dos falantes natildeo pode ser colocada fora da liacutengua culta inclusive F Gadet lembra que ela eacute definida de forma negativa por exclusatildeo das formas vernaculares sem mencionar um eventual falar das classes dominantes (2003 p 80) Franccediloise Gadet tambeacutem fornece uma lista de exemplos ilustrando ldquoo alto e o baixo na escada socialrdquo incluindo quatro dados relacionados ao uso dos subjuntivos e das inversotildees ldquoNatildeo haacute nome para os exemplos de 13 a 16 explica a pesquisadora talvez isso se decirc por conta do impliacutecito a saber o ldquobom francecircsrdquo ou mesmo para alguns soacute francecircsrdquo (2003 p 10) No entanto na lista o enunciado 14 (eu natildeo gostaria que vocecirc me culpasse por esse erro) me parece bem mais

76 NT Em portuguecircs os dois enunciados satildeo traduzidos da mesma maneira Eu natildeo vou ao meacutedico Optamos por manter o exemplo em francecircs pois somente em liacutengua francesa a diferenccedila entre os dois enunciados fica evidente A primeira frase estaacute mais de acordo com a norma padratildeo de formaccedilatildeo da negaccedilatildeo em francecircs enquanto na segunda haacute supressatildeo do ne que juntamente com o pas formam a negaccedilatildeo

77 NT Algo como a variaccedilatildeo pescaacute para o verbo ldquopescarrdquo na norma padratildeo do portuguecircs

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marcado do que os outros (o 15 por exemplo nosso colaborador ele jaacute deu um passo nesse sentido)78 Marcado ou mais exatamente estigmatizado uma vez que produz o efeito de ridicularizaccedilatildeo tiacutepica dos enunciados ditos ldquoesnobesrdquo

Nancy Niedzielski (1999 p 82) retoma uma interessante hipoacutetese formulada por W Wolfram ldquoUma quarta hipoacutetese eacute baseada em uma proposta na qual Wolfram (1991) avanccedila O pesquisador sugere que quaisquer variantes de linguagem que natildeo sejam estigmatizadas sejam consideradas padratildeordquo Acontece que o falar das classes dominantes eacute amplamente estigmatizado em um corpus folk descrito anteriormente e tambeacutem no humor francecircs para mim Marie-Chantal e Anne-Sophie de la Coquillette (personagem da humorista F Foresti) natildeo falam um francecircs padratildeo D de Villepin e J DrsquoOrmesson tambeacutem natildeo

No entanto como abordar essa marcaccedilatildeo ldquodo melhorrdquo A partir do quadro integracionista proposto anteriormente e tambeacutem com base nos meacutetodos da dialetologia perceptiva escolho abordar as entradas avaliativas e perceptivas

331 Avaliaccedilotildees linguiacutesticas externas do estereoacutetipo agrave caricatura

Designo como avaliaccedilotildees linguiacutesticas externas as avaliaccedilotildees de locutores sem sentimento ou discurso de pertencimento agraves classes dominantes que estigmatizam um falar considerado como pertencente agrave alta burguesia agrave aristocracia da ldquoalta sociedaderdquo etc independentemente do vocabulaacuterio adotado Poderia ser uma avaliaccedilatildeo espontacircnea num discurso de entrevista por exemplo aquela feita por J-M Marconot (1990 p 69) em um bairro de classe meacutedia79 em Nicircmes ldquo[] um ou talvez dois que devem falar assim na ndash na burguesia certamente [] sim eu conheccedilo uma mulher que fala [] ela usa expressotildees que vocecirc acreditaria serem de Lagarde e Michard do seacuteculo XVIrdquo

Encontramos igualmente construccedilotildees ficcionais humoriacutesticas cujo diaacutelogo a seguir eacute um bom exemplo

- Apresento-lhe a senhora minha condessa troveja o Gravos que esquecendo seu traje dolorido recupera seu rosto radiante

- Meu amigo protesta a senhora parece que vocecirc ainda natildeo estudou no seu manual o capiacutetulo de apresentaccedilotildees Senatildeo vocecirc saberia que uma senhora somente deve ser apresentada a um cavalheiro quando a senhora eacute muito jovem e o cavalheiro muito velho

Sua Majestade fica corada

- Viu meu companheiro percebeu Consequentemente tenho a honra de apresentar a vocecirc Comissaacuterio San-Antonio em carne e osso com todos os seus dentes e sua pele de pecircssego

78 NT F Gadet nos exemplos que oferece afirma que em (14) haacute um imperfeito do subjuntivo e em (15) uma interrogaccedilatildeo por inversatildeo complexa GADET F La variation sociale en franccedilais Paris Ophrys 2007 p 16

79 NT A autora usa a sigla HLM para se referir ao bairro Ela significa Habitation agrave Loyer Modereacute Habitaccedilatildeo de Aluguel Moderado Optamos por traduzi-la como classe meacutedia

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Entatildeo voltando-se para mim

- Assim tenho a honra e a vantagem de fazecirc-lo impulsivamente aqui novamente entatildeo a Condessa Troussal de Trousseau amigo Como vocecirc pode perceber natildeo eacute um precircmio para reivindicar mas uma mulher de classe educada em todos os lugares Vocecirc espreitou a reaccedilatildeo da Senhora nesse momento Ah a etiqueta ela natildeo as cola em seus potes de doce eu juro a vocecirc (SAN ANTONIO 1965 p 40-41)80

Trecircs caracteriacutesticas do falar das classes dominantes satildeo propostas por F Dard por meio da personagem Beacuterurier o emprego do subjuntivo jaacute destacado por F Gadet em seus trabalhos a pronuacutencia aberta e aspirada (Mahame no lugar de Madame) e as formas pragmaacuteticas de apresentaccedilatildeo Caracteriacutesticas que podem ser encontradas no Dico francecircs-francecircs de P Vandel especificamente no capiacutetulo intitulado ldquoComo falar igual agrave Neuilly Auteuil Passyrdquo (1993 p 147 e seguintes)

Citaremos igualmente humoristas ou personagens do cinema ou do teatro S Joly (os esquetes ldquoo esnobismordquo e ldquoCanccedilatildeo esnoberdquo em La Cigale et la Joly espetaacuteculo de 1999) F Foresti e a personagem Anne-Sophie de la Coquillette (apresentada no Canal France 2) e ldquoBeacuteardquo (Beacuteatrice de Montmirail) interpretada por V Lemercier em Les Visiteurs 1 (1993)

312 Avaliaccedilotildees linguiacutesticas internas uma atividade metalinguiacutestica constante

Haacute igualmente numerosas avaliaccedilotildees internas sendo a atividade metalinguiacutestica uma das praacuteticas conversacionais das classes dominantes como bem exemplificam as entrevistas de Eacute Mension-Rigau e os corpora internos folk

O estudo de Eacute Mension-Rigau no meu entendimento se apresenta ateacute o momento como o uacutenico levantamento histoacuterico da aristocracia e da grande burguesia que leva em conta dados linguageiros Encontramos em particular nas anaacutelises do ldquoembelezamentordquo das palavras os tons de voz e da praacutetica da conversa fiada dados ineacuteditos e preciosos para os propoacutesitos deste texto

Embelezar a fala se traduz na preocupaccedilatildeo de evitar epiacutetetos mordazes palavras contundentes as palavras duras as entonaccedilotildees violentas e pelo respeito agraves conexotildees que datildeo agrave linguagem mais docilidade e maior fluidez Gritar ou rir alto satildeo consideradas atitudes muito vulgares

Nunca levante a voz natildeo importa o que aconteccedila (homem 1934) Ser comum eacute ser barulhento (mulher 1925) (MENSION-RIGAU 1994 p 202)

Em particular o historiador descreve a relaccedilatildeo que os aristocratas tecircm com o falar e sotaque regional informaccedilatildeo essa geralmente ausente nos estudos sobre os falares regionais

80 Beacuterurier protoacutetipo do homem do povo manteacutem relaccedilatildeo com a condessa Troussal du Trousseau a quem apresenta o comissaacuterio San-Antonio

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O sotaque regional reconhecidamente muito raro entre os entrevistados se apresenta menos desvalorizado do que nas famiacutelias pequeno-burguesas uma vez que provavelmente elas satildeo mais riacutegidas porque sentem a sua identidade mais fraacutegil e ldquoameaccediladardquo [] Na linguagem dos entrevistados uma relativa ruralidade agraves vezes ainda persiste de forma discreta (MENSION-RIGAU 1994 p 194)

Essa ruralidade ainda presente atualmente (as famiacutelias da aristocracia tecircm com efeito uma praacutetica de falares locais em particular o dialeto local francecircs chamado patois) eacute muito bem relatada em Le cocircteacute de Guermantes por Proust descrevendo as maneiras de falar da Senhora de Villeparisis

Senhor eu acho que vocecirc quer escrever algo sobre a Duquesa de Montmorency disse a Sra de Villeparisis ao historiador da Fronde com aquele ar rabugento que sem saber sua grande bondade foi recolhida pelos cachos mal-humorados o aborrecimento fisioloacutegico da velhice bem como a tarefa de imitar o tom quase camponecircs da velha aristocracia Eu vou te mostrar o retrato dele o original da coacutepia que estaacute no Louvre (PROUST 1954 [1920] p 240)

O pesquisador Eacute Mension-Rigau (1994 p 195)81 analisa esse fenocircmeno como ldquouma maneira mais ou menos inconsciente de exprimir seu apego ao passado sendo o conservadorismo linguiacutestico projetado como um reflexo do conservadorismo poliacutetico e socialrdquo

Essa consciecircncia metalinguiacutestica eacute encontrada tambeacutem em outros documentos do corpus folk os manuais de etiqueta da aristocracia apresentam muitas prescriccedilotildees e proibiccedilotildees foneacuteticas prosoacutedicas lexicais sintaacuteticas e pragmaacuteticas Marie-Chantal de J Chazot ornamenta seu discurso com marcas linguiacutesticas os ensaios mundanos colocam em cena personagens que sempre realizam atividades metalinguiacutesticas Trata-se de uma hipoacutetese ainda a ser verificada por meio de entrevistas mais profundas mas parece que a atividade metalinguiacutestica eacute ela proacutepria um aspecto do falar das classes dominantes

32 Alguns aspectos do falar das classes dominantesApresento aqui alguns aspectos do falar das classes dominantes a partir de descriccedilotildees da

linguiacutestica folk e de avaliaccedilotildees perceptivas (para uma descriccedilatildeo completa consultar Paveau 2008 Paveau e Rosier 2008) depois de ter mencionado duas anaacutelises gerais que confirmam a hipoacutetese do falar especiacutefico das classes dominantes

321 Descriccedilotildees globais do socioleto

No capiacutetulo que dedica aos bairros nobres no seu Dico francecircs-francecircs (1993) P Vandel propotildee uma descriccedilatildeo do falar das classes dominantes praticamente em todos os niacuteveis da anaacutelise linguiacutestica Para ele se apresentam marcados os usos relativos ao vocabulaacuterio (chatear para exasperar suar para defecar casebre para castelo os peacutes entre duas coisas para a bunda

81 Os entrevistados pronunciam por exemplo [pikoslash] e natildeo [pikoer] a palavra piqueur designando o criado que cuida do grupo em uma caccedilada

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entre duas cadeiras) a pronuacutencia dos nomes proacuteprios (Broglie La Treacutemoille Schneider e outras armadilhas culturais mundanas) a esteacutetica dos nomes (Marie-Clotilde em vez de Juanita e Pierre-Henri em vez de Robert) as convenccedilotildees pragmaacuteticas (mentiras e polidez) e a sintaxe (negaccedilatildeo completa quarta pessoa uso da condicional) P Daninos apresenta no Snobissimo (1964 p 66-67) uma amostra desses usos de sua ldquoespeleologia socialrdquo propondo o discurso de um ldquoesnobe realrdquo onde encontrariacuteamos dentre outras coisas inversotildees interrogativas marcadas (eu vejo quem estaacute entrando) empregos de giacuterias (a velha duquesa de Uzegraves que grita82) apoios conversacionais (sim vocecirc com certeza conhece vocecirc engraccedilado o que resumindo eu passo para vocecirc o resto vocecirc percebe um pouco) A mesma enumeraccedilatildeo sistemaacutetica eacute encontrada no Dictionnaire du snobisme de P Jullian e em alguns guias de boas maneiras

Contrariamente agrave ideia predominante entre os linguistas ldquoprofissionaisrdquo isto eacute que as classes dominantes finalmente apenas respeitariam o bom uso da liacutengua com uma especificidade reduzida agrave pronuacutencia83 parece todavia de acordo com os folk linguistas que marcas especiacuteficas afetam todo o sistema da liacutengua

322 Pronuacutencia e entonaccedilatildeo

A famosa pronuacutencia esnobe ou burguesa natildeo eacute um mito e eacute possiacutevel escutaacute-la nos bairros nobres ou nos endereccedilos certos para identificar essas formas Essa descriccedilatildeo folk de P Jullian (1992 p 197) corresponde agraves avaliaccedilotildees empiacutericas que um ouvido atento eacute capaz de escutar

A entonaccedilatildeo a voz dos homens eacute agraves vezes abafada ligeiramente anasalada eacute frequentemente as pessoas do Quai dacuteOrsay (exceto o ministro claro) e da Alta Sociedade Protestante ldquoParisrdquo torna-se ldquoPegraverisrdquo arrastando um pouco mas sem excesso caso contraacuterio se tornaria o ldquoPeacuterisrdquo com o ldquorrdquo pronunciado gruturalmente do ldquomenino parisienserdquo Na mulher do mundo a voz se estende desproporcionalmente ldquoadoraacuteaacutevelrdquo ou eacute colocado muito alto no nariz muito longe do natural

Tal avaliaccedilatildeo corresponde tambeacutem agrave descriccedilatildeo foneacutetica proposta por P Leacuteon et al em Les accents des Franccedilais Os trecircs sotaques (ldquovulgarrdquo ldquoesnoberdquo ldquoneutrordquo) satildeo classificados pelos autores segundo as ldquoetiquetas sociaisrdquo (popular aristocraacutetico e alta ou meacutedia burguesia) O sotaque esnobe estaacute presente assim como aquele dos ldquoantigos ricos e nobresrdquo e eacute ilustrado por um registro artificial

Registro ndeg 3

A informante eacute uma atriz Mathilde Casadesus que interpreta o papel de uma esnobe da aristocracia parisiense que estaacute visitando um de seus amigos (registro N deg LDM ndash 4024 Chant do Monde)

Apesar da natureza artificial da gravaccedilatildeo este eacute um documento identificado como uma representaccedilatildeo autecircntica do socioleto da alta burguesia parisiense O aspecto

82 NT Nesse exemplo em francecircs o verbo crier (gritar) eacute substituiacutedo pela giacuteria gueuler

83 No entanto essa interpretaccedilatildeo estaacute sujeita a questionamento como mostra a anaacutelise de A Kroch considerando que o afrouxamento da articulaccedilatildeo eacute a norma e que satildeo os grupos dominantes que o inibem (mencionado por Gadet 2003 p 52)

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caricatural natildeo estaacute aqui qualitativamente mas quantitativamente Eacute o acuacutemulo de certos fenocircmenos que daacute ao excerto seu caraacuteter especial do estilo esnobe (httpaccentsdefrancefreefr)

Os aspectos identificados satildeo os seguintes realizaccedilatildeo extrema da articulaccedilatildeo vocaacutelica e consonacircntica consoantes muito fortes e aspiradas ou ao contraacuterio fracas (o exemplo dado eacute madame que encontramos em Beacuterurier) ldquoO R eacute geralmente desvozeado ele se assemelha a um som rouco como o do jota em espanhol ou do achlaut84 alematildeo de Bachrdquo especificam os autores identificando a descriccedilatildeo balzaquiana ou proustiana do [r] aristocraacutetico As vogais satildeo alongadas (adoraacuteaacuteaacutevel como em P Jullian) ou ao contraacuterio muito breves ldquoo ritmo muito raacutepido ou muito lentordquo os acentos de insistecircncia muito numerosos e sustentados por uma forte ampliaccedilatildeo meloacutedica

323 Leacutexico e niacutevel de liacutengua

Os usos lexicais no falar das classes dominantes apresentam duas caracteriacutesticas bem distintas e reconhecidas nos corpora folk os deslizamentos semacircnticos geralmente eufemismos e empregos de giacuterias ou ditos ldquopopularesrdquo

Os exemplos de palavras com significado codificado proliferam nos ldquobons meios sociaisrdquo em todas as obras dos corpora folk e satildeo destacados por Eacute Mension-Rigau como um aspecto saliente da linguagem dos aristocratas e dos grandes burgueses Entre eles casa por exemplo assim como comenta P Daninos (1964 p 87-88)

Casa por exemplo pode ser depreciativo Um representante que coloca eletrodomeacutesticos em Seine-et-Oise ou em Seine-et-Marne iraacute perguntar ldquoVocecirc estaacute no chaleacuterdquo ou ldquoVocecirc estaacute na cidaderdquo - mas evitaraacute a palavra casa onde se faz sopa

A esse propoacutesito o ouviriacuteamos dizer Vocecirc estaacute na casa

P Vandel (1993) propotildee um mini-dicionaacuterio desses usos linguiacutesticos comunitaacuterios

A segunda caracteriacutestica eacute apresentada tanto nesses ensaios mundanos quanto nas avaliaccedilotildees metalinguiacutesticas dos locutores P Daninos (1964 p 17) descreve assim o falar burguecircs ldquodecaiacutedordquo

Natildeo quero me precipitar em generalizar mas o esnobismo se tornou mais democraacutetico Enquanto que nos graus mais baixos da escala os atrasados tentam desajeitadamente subir acreditando fazer bem e se tornar elegante no topo as pessoas chegam a decair seu vocabulaacuterio pensando fazer bem em se passar pelo povo [] Mas certas locuccedilotildees que na minha juventude teriam classificado seu homem ndash como se diz quando se trata de rebaixamento ndash agora passam completamente despercebidas [] Jaacute falei desse modo proacuteprio de algumas mulheres da alta burguesia de dizer meu homem ao falar sobre seus maridos

84 NT Fonema gutural x (a fricativa velar muda) da liacutengua alematilde

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Meu homem estaacute quase fazendo seus dezoito buracos natildeo eacute ruim Vaacute se alimentar (em Maximrsquos) tambeacutem natildeo eacute ruim quem teria imaginado isso antes da guerra Da mesma forma Tem cara de maluca que haacute trinta anos parecia muito ousada floresce na boca dos mais sagrados

O ldquodecaimento lexicalrdquo natildeo eacute um aspecto puramente linguiacutestico mas um discurso sobre pertencimento social uma vez que um socioleto se utiliza de uma marca de um outro socioleto para se constituir Natildeo eacute somente em relaccedilatildeo ao falar normativo que se marca o falar das classes dominantes mas em relaccedilatildeo ao proacuteprio falar ldquopopularrdquo em uma identificaccedilatildeo dialeacutetica complexa Eacute preciso fazer uma interpretaccedilatildeo que passa pelo imaginaacuterio social como propotildee Eacute Mension-Rigau (1994 p 227)

Na verdade eles usam como contra-referecircncia um vocabulaacuterio parcialmente inventado ndash aquele que ouvem quando vatildeo ao mercado ou em pequenas lojas ndash que eacute apenas uma parte de seu universo exterior Seu discurso alimentado por uma visatildeo simplista da sociedade de certa forma constroacutei um mundo fantaacutestico ou desaparecido confundido com a faixa mais ldquopopularrdquo do povo ndash que tambeacutem era antigamente aquela de seus dependentes ndash dos quais eacute muito faacutecil para eles se destacarem

Eacute digno de nota que o aspecto natildeo eacute simeacutetrico o falar dito ldquopopularrdquo ou os vernaculares do lado dos dominantes ou das classes menos favorecidas natildeo constroem dessa maneira apoios identitaacuterios Eacute um fenocircmeno proacuteprio sustentar a hipoacutetese de um falar das classes dominantes

324 Interaccedilotildees conversacionais

Terminamos essa pequena amostragem pelos aspectos pragmaacuteticos Enquanto a conversacionalizaccedilatildeo analisada por N Fairclough pretende fazer desaparecer as marcas de hierarquia em particular nos apelativos as formas e foacutermulas de polidez satildeo mantidas nos meios aristocraacuteticos e na grande burguesia Os manuais de boas maneiras dos uacuteltimos vinte anos natildeo repercutem mais a conversacionalizaccedilatildeo e suas prescriccedilotildees natildeo podem mais ser assimiladas a um coacutedigo social ldquopadratildeordquo Uma esposa se ldquocategorizarrdquo se endereccedilando ao seu marido com pronomes de tratamento de segunda pessoa ou obrigando os seus filhos a utilizarem esses pronomes com os seus avocircs pode parecer imaturo Natildeo eacute ldquomenos comumrdquo escreveu P Daninos no livro Snobissimo (p 87) Se essa praacutetica eacute rarefeita ela existe ainda como evidenciam certas entrevistas de Eacute Mension-Rigau e minhas proacuteprias observaccedilotildees pessoais Da mesma forma a menccedilatildeo dos apelativos tiacutetulos e funccedilotildees agora aparece como marcaccedilotildees sociais natildeo mais como um modelo universal de polidez

ConclusatildeoNo final desse capiacutetulo gostaria de formular algumas conclusotildees provisoacuterias que satildeo

na verdade proposiccedilotildees para exploraccedilotildees futuras algumas delas discutidas nos capiacutetulos seguintes

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- A assimetria das anaacutelises sobre a questatildeo dos falares sociais O exame da literatura cientiacutefica e folk mostra uma assimetria notaacutevel entre os numerosos comentaacuterios espontacircneos sobre as classes dominantes e a quase inexistecircncia de anaacutelise linguiacutestica cientiacutefica sobre um falar das classes dominantes enquanto o falar dito ldquopopularrdquo eacute objeto de mais anaacutelises cientiacuteficas que de comentaacuterios folk

- O integracionismo As informaccedilotildees provenientes de corpora folk podem ser consideradas na anaacutelise linguiacutestica pois a folk linguiacutestica possui uma validade e pode ser integrada na linguiacutestica cientiacutefica O exame do corpus folk relativo agraves classes dominantes parece sustentar essa proposiccedilatildeo

- A entrada perceptiva na dimensatildeo social da liacutengua em particular a partir das teorias e meacutetodos da dialetologia perceptiva eacute capaz de modificar o olhar dos linguistas sobre seu objeto e por conseguinte o proacuteprio objeto85

85 Agradeccedilo a Franccediloise Gadet que me permitiu enriquecer minha reflexatildeo sobre a questatildeo do socioleto das classes dominantes e tambeacutem por me oferecer preciosas informaccedilotildees bibliograacuteficas

Parte II

Aplicaccedilotildees e perspectivas

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LINGUIacuteSTICA POPULAR E ENSINO DE LIacuteNGUA CATEGORIAS EM COMUM86

mdash Diga-me Zidore se eacute francecircs por que tem de se preocupar nesse momento mdash Porque pode haver guerra senhorita Beacutecassine

mdash A guerra Com quem

mdash Com todos os Boches e Bochies87

mdash Ah faz Beacutecassine

[] Rapidamente ela sobe ateacute o quarto de Yvonne lembrando que ela tem um atlas sobre a mesa Olha por muito tempo os mapas a tabela de letras do alfabeto natildeo haacute Boches nem Bochie Entretanto Melle Yvonne lhe disse que todos os povos do mundo tecircm seus nomes marcados ali Entatildeo seu rosto se ilumina e ela corre para a sala Patrotildees e trabalhadores domeacutesticos estatildeo reunidos ali muito emocionados ldquoEacute uma guerra diz Bertrand que retorna do vilarejo exibindo o cartaz da mobilizaccedilatildeo Eu parto amanhatilderdquo

mdash Eu Eu vou me alistar grita Zidore

Madame de Grand-Air chora baixinho Sua dor entristece Beacutecassine mas ela a acalma Ela caminha ateacute a patroa e sussurra em seu ouvido ldquoMadame natildeo deve ser tatildeo ruim assim Talvez haja guerra mas como eacute com gente que natildeo existe dificilmente eacute um riscordquo (CAUMERY PINCHON 1915 p 32)

A personagem Beacutecassine nos expocircs aqui brevemente uma teoria popular sobre a referecircncia se as palavras natildeo existem entatildeo tambeacutem natildeo existem as coisas um princiacutepio derivado com toda a inocecircncia sem duacutevida por parte de nossa Bretatilde do naturalismo mais maciccedilo as palavras representam diretamente coisas elas contecircm a substacircncia das coisas

A questatildeo colocada por este tipo de teoria espontacircnea natildeo eacute tanto a da sua verdade mas na perspectiva que adotamos a de sua articulaccedilatildeo com uma teoria desenvolvida cientificamente numa palavra ldquomais eruditardquo ou ldquomenos popularrdquo como quiser 1915 eacute a Grande Guerra eacute claro mas tambeacutem eacute o momento em que a linguiacutestica moderna comeccedila a mostrar que a linguagem natildeo eacute uma nomenclatura e que natildeo haacute relaccedilatildeo direta entre o signo e o referente a palavra catildeo natildeo late e visivelmente na visatildeo de mundo de Beacutecassine a palavra Bochie tambeacutem natildeo

O desenvolvimento da ciecircncia cognitiva e depois da etnometodologia fez emergir esta questatildeo da ciecircncia espontacircnea dos sujeitos questatildeo natural para um campo que lida com o desenvolvimento do conhecimento das percepccedilotildees e das representaccedilotildees dos indiviacuteduos

86 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Linguistique populaire et enseignement de la langue des cateacutegories communes Le Franccedilais aujourdrsquohui 151 Paris AFEF-Armand Colin 2005 p 95-107 Traduccedilatildeo de Samuel Ponsoni (UEMG - Unidade Passos) e Paula Camila Mesti (UNESPARANPOLL)

87 NT No artigo de origem aparece Boches e Bochie satildeo aqui traduzidos como Alematildees e Alemanha respectivamente Cabe esclarecer que Boches se trata de um termo pejorativo para alematildees germacircnicos teutos e todas as outras designaccedilotildees gentiacutelicas desse grupo etnocultural

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Gostariacuteamos de explorar este problema no campo da liacutengua francesa fazendo uma pergunta simples as categorias espontacircneas dos alunos podem ser mobilizadas no ensino da liacutengua ou devem pelo contraacuterio ser desconstruiacutedas para dar lugar a categorias aprendidas

Depois de definir o que se denomina ldquolinguiacutestica popularrdquo e sublinhar seu interesse pelo campo do ensino-aprendizagem da liacutengua tentaremos responder a essa questatildeo atraveacutes de trecircs exemplos de categorias a palavra a flexatildeo verbal e o gecircnero do discurso

A linguiacutestica popularConforme jaacute enunciamos o termo linguiacutestica popular eacute o rastro de uma seacuterie de nomes

anglo-saxotildees baseados em folk (como psicologia folk ou como teoria folk por exemplo) em que folk eacute traduzido para o francecircs e para o portuguecircs como popular espontacircneo ou ingecircnuo Podemos falar tambeacutem de linguiacutestica de senso comum e igualmente a expressatildeo linguiacutestica de leigos cuja sinalizaccedilatildeo de L Rosier (2004 p 70) aponta para um sem-nuacutemero de casos na internet ldquoPodemos [] acrescentar o que chamamos de lsquoLinguiacutestica dos leigosrsquo particularmente visiacutevel na Internet em particular no contexto dos foacuteruns de discussatildeo []rdquo

Chamamos portanto de ldquopopularrdquo o saber espontacircneo de atores sobre o mundo (depositado em proveacuterbios ou ditados por exemplo) que se distingue do saber acadecircmico ou cientiacutefico como um saber-fazer que diferencia saber cientiacutefico do ldquosaber querdquo e do senso comum Este saber espontacircneo eacute constituiacutedo por saberes empiacutericos natildeo passiacuteveis de verificaccedilatildeo loacutegica (o saber espontacircneo natildeo eacute verdadeiro nem falso falamos entatildeo de ldquoconhecimento aproximativordquo) e de crenccedilas que constituem guias para accedilatildeo as lendas urbanas ou as influecircncias da lua no crescimento das plantas satildeo crenccedilas que surgem do saber espontacircneo

As praacuteticas linguiacutesticas espontacircneasDevemos falar aqui de praacuteticas linguiacutesticas e natildeo linguageiras o termo linguiacutestica indica

que haacute uma atividade reflexiva que pode levar a resultados ldquocientiacuteficosrdquo que advecircm da ciecircncia espontacircnea enquanto linguageiro simplesmente descreve os usos que os falantes fazem da liacutengua

A terminologia linguiacutestica integrou a distinccedilatildeo feita por A Culioli entre epilinguiacutestica que designa o saber espontacircneo e inconsciente sobre a liacutengua (ldquoatividade linguiacutestica inconscienterdquo nas palavras de A Culioli) de falantes e metalinguiacutestica que designa praacuteticas reflexivas conscientes e bastante racionalizadas ldquoO verdadeiro saber linguiacutestico eacute metalinguiacutestico ou seja representado construiacutedo e manipulado como tal com a ajuda de uma metalinguagemrdquo (AUROUX 1995 p 10) No entanto devemos distinguir no campo metalinguiacutestico o que vem de uma atividade espontacircnea natildeo especializada e natildeo formalizada sobre a liacutengua daquilo que vem da construccedilatildeo de um discurso cientiacutefico sobre a liacutengua J Rey-Debove (1978 p 22) propotildee falar de ldquometalinguagem atualrdquo para o primeiro caso e de ldquometalinguagem cientiacuteficadidaacuteticardquo para o segundo

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No modo didaacutetico-cientiacutefico a metalinguagem corresponde ao discurso do linguista (linguiacutestica) e agravequilo que ele aprende ensina de uma liacutengua ou se acha interessado nela como especialista Eacute natural ou parcialmente formalizado ou simbolizado ou mesmo totalmente axiomatizado e formalizado Jaacute o modo atual corresponde ao discurso do usuaacuterio de uma liacutengua discurso muitas vezes confundido com o enunciado apresentado ao mesmo tempo de uma consciecircncia metalinguiacutestica inferior em termos de conteuacutedo e expressatildeo e uma maior liberdade uma vez que os enunciados produzidos natildeo pertencem mais ao discurso cientiacutefico sobre a liacutengua

Obtemos assim uma distinccedilatildeo tripartida que aqui manteremos atividade epilinguiacutestica metalinguagem natural e metalinguagem formalizada

Eacute notaacutevel que a linguiacutestica popular seja pouquiacutessimo desenvolvida na Franccedila enquanto na cultura anglo-saxocircnica ela integra totalmente as ldquodisciplinas folkrdquo pertencentes ao campo cientiacutefico O tomo I do livro LrsquoHistoire des ideacutees linguistiques organizado por Sylvain Auroux inicia-se com um capiacutetulo de H E Brekle intitulado ldquoA linguiacutestica popularrdquo (volkslinguistik em alematildeo traduccedilatildeo do inglecircs folk linguistics) Ele explica que em linguiacutestica o saber espontacircneo dos falantes pode ser formulado em termos de naturalidade

De maneira provisoacuteria podemos dizer que o campo da linguiacutestica popular inclui todos os enunciados que podem ser qualificados como expressotildees naturais (ou seja que natildeo vecircm dos representantes da linguiacutestica como disciplina estabelecida) designando ou referindo-se a fenocircmenos linguiacutesticos ou operando no niacutevel da metacomunicaccedilatildeo A isso devem ser adicionados os enunciados em que as qualidades foneacuteticas semacircnticas etc satildeo usadas expliacutecita ou implicitamente como unidades de uma liacutengua para produzir resultados relevantes para a regulamentaccedilatildeo do comportamento social de um indiviacuteduo ou grupo social (BREKLE 1989 p 39)

Em filigranas H E Brekle define aqui dois tipos de praacuteticas linguiacutesticas populares

- descriccedilotildees ou teorizaccedilotildees metalinguiacutesticas por exemplo aquelas relacionadas agrave designaccedilatildeo (chamar um gato de gato ou chamar as coisas pelo que seus nomes sugerem) ou na hierarquia entre o escrito e o oral (contentar-se com palavras palavras verbais as palavras se dissipam falar como um livro) A pequena teoria da referecircncia de Beacutecassine se enquadra nessa categoria

- prescriccedilotildees comportamentais que recaem em um purismo na maioria das vezes sabemos que os ldquoamantes da bela linguagemrdquo tecircm uma lista proibida de palavras feias (adveacuterbios terminados em -mente termos excessivamente teacutecnicos etc) interditas de se usar sob pena de se passar por um vulgarismo da liacutengua Tem-se entatildeo a imagem da norma da liacutengua como predominante88 Trata-se assim dos vereditos sobre a liacutengua ditos vs natildeo ditos isso se diz vs isso natildeo se diz Dessa maneira o purismo entra em uma verdadeira ldquoeconomia das trocas linguiacutesticasrdquo como sublinha L Rosier (2004 p 69)

88 Sobre as imagens dominantes da liacutengua no discurso escolar ver Paveau (1998)

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Ela eacute caracterizada por uma forte axiologizaccedilatildeo performativa (o que se diz o que natildeo se diz) que atende ao bom uso e que pretende respeitar uma economia estrita de trocas linguiacutesticas em que o falante eacute avaliado de acordo com seu domiacutenio da liacutengua sob o acircngulo da riqueza lexical e correccedilatildeo gramatical

Adicionaremos uma terceira categoria da praacutetica linguiacutestica popular as intervenccedilotildees sobre a liacutengua Sabemos que a maioria dos erros dos falantes em particular das crianccedilas natildeo o satildeo realmente em uma oacutetica linguiacutestica O tiacutetulo de uma obra de D Leeman Existem erros em francecircs89 (LEEMAN 1994) eacute emblemaacutetico dessa posiccedilatildeo que segue a tradiccedilatildeo de A Gramaacutetica das Falhas90 de H Frei (1928) nesta perspectiva aller au coiffeur e eacutemotionner91 natildeo satildeo erros mas sim intervenccedilotildees regularizadoras sobre a liacutengua Os falantes racionalizam sua liacutengua a arrumam e a organizam como um ambiente onde a ordem e a harmonia satildeo necessaacuterias

Para recapitular dissemos que a linguiacutestica popular reuacutene trecircs tipos de praacuteticas linguiacutesticas descritivas (descrevemos a atividade da linguagem) normativas (prescrevemos comportamentos linguageiros) e intervencionistas (intervimos nos usos da liacutengua)

A linguiacutestica popular eacute uma linguiacutesticaPodemos dar duas explicaccedilotildees para a ausecircncia virtual da linguiacutestica popular como campo

de pesquisa na Franccedila por um lado a veneraccedilatildeo francesa dos saberes ldquosegurosrdquo (um campo das ditas ciecircncias duras ou exatas) e o desprezo pelos saberes aproximativos (domiacutenios ditos de opiniatildeo comum ou relativizada) herdado das concepccedilotildees platocircnicas e da tradiccedilatildeo cartesiana por outro lado a ocupaccedilatildeo do que poderia ser o campo da linguiacutestica popular pelo estudo dos discursos puristas das manifestaccedilotildees da norma e das consequecircncias psicossociais das concepccedilotildees normativas (por exemplo a inseguranccedila linguiacutestica) fenocircmenos esses considerados na Franccedila como pertencente agrave sociolinguiacutestica Eacute o que J-C Beacco (2004 p 109) coordenador de uma ediccedilatildeo da revista Langages diz sobre a questatildeo das ldquorepresentaccedilotildees metalinguiacutesticas ordinaacuteriasrdquo em relaccedilatildeo aos gecircneros discursivos

[] pode-se examinar a noccedilatildeo de gecircnero discursivo pelo que originalmente eacute uma categorizaccedilatildeo ordinaacuteria intrinsecamente imprecisa mas que pode ser objetivada da comunicaccedilatildeo verbal Como tal eacute baseada em vaacuterios pontos de vista teoacutericos

1) da ldquolinguiacutestica popularrdquo (ou folk linguistics) campo da sociolinguiacutestica gecircnero discursivo eacute uma forma de representaccedilatildeo metalinguiacutestica ordinaacuteria da comunicaccedilatildeo entrando no saber comum []

89 N T o tiacutetulo da obra em liacutengua francesa Les fautes de franccedilais existent-elles

90 NT o tiacutetulo da obra em liacutengua francesa La Grammaire des Faults

91 NT por natildeo encontrar correlatos precisos na liacutengua portuguesa deixamos os exemplos em francecircs Cabe-nos entatildeo explicar que a maneira adequada de se dizer ldquoaller au coiffeurrdquo eacute ldquoaller chez le coiffeurrdquo cuja traduccedilatildeo eacute ldquoir ao cabeleireirordquo No outro exemplo temos ldquoeacutemotionnerrdquo em vez de ldquoenthousiasmerrdquo para o verbo ldquoemocionarrdquo Nesse caso explicamos que natildeo existe a palavra ldquoeacutemotionnerrdquo em francecircs apesar de existirem ldquoeacutemotionrdquo (emoccedilatildeo) e ldquoeacutemotionnelrdquo (emocional) A autora usou um terceiro exemplo ldquoapregraves qursquoil aitrdquo para o qual uma traduccedilatildeo mais adequada parece ser ldquodepois que ele temrdquo

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Nossa posiccedilatildeo eacute outra consideramos que a linguiacutestica popular deve constituir um campo da linguiacutestica porque diz respeito natildeo apenas agraves praacuteticas sociais linguageiras (no sentido da sociolinguiacutestica) mas igualmente aos procedimentos de ensino-aprendizagem de liacutengua (no sentido da didaacutetica de liacutengua e psicolinguiacutestica)92

Na verdade a linguiacutestica popular natildeo deve ser reduzida ao seu componente aproximativo descritivo ou simplesmente luacutedico A questatildeo mais interessante na folk linguistics eacute sua validade como teoria Haacute muitos trabalhos desse tipo em folk psychology (FISETTE POIRIER 2002) o que oferece vaacuterias respostas a essa pergunta O filoacutesofo D Dennett (1990) por exemplo pensa que na maioria das vezes a psicologia popular funciona e tem uma verdade praacutetica E as teorias populares da linguagem L Rosier faz uma proposta interessante a esse respeito em um trabalho que ela denomina de ldquodicionaacuterios de criacuteticas irocircnicasrdquo (os de P Merle por exemplo que apontam tiques de linguagem e de modos)

Esses ldquodicionaacuteriosrdquo tecircm a particularidade de apresentar os tipos sociais por meio de suas especificidades linguiacutesticas realizando reconhecidamente de forma caricatural um dos projetos da anaacutelise do discurso o viacutenculo entre classes sociais e as praacuteticas discursivas Eles se ldquorelacionamrdquo por estigmatizaccedilatildeo fictiacutecia e os termos e as expressotildees devem figurar como citaccedilotildees ou seja ao lecirc-los deve-se dizer a si mesmo eacute assim mesmo que ldquoelesrdquo falam (eles designa os esnobes os jornalistas os poliacuteticos os jovens os velhos os de grande valor de acordo com as subcategorizaccedilotildees sociais explicitadas pelos proacuteprios autores) (ROSIER 2003 p 63-64)

Obviamente pensamos no M Jourdain de Moliegravere em sua prosa ldquosem o saberrdquo e em muitas outras personagens literaacuterias que sem duacutevida se beneficiariam em serem analisadas em sala de aula pelo prisma sociocriacutetico dessa linguiacutestica espontacircnea Eacute portanto a questatildeo da validade da descriccedilatildeo popular que se coloca aqui do ponto de vista de uma anaacutelise do funcionamento social da linguagem

A crianccedila gramaacuteticaMas a linguiacutestica popular tambeacutem eacute e sobretudo de grande interesse no ensino-aprendizagem

da liacutengua mas com outro nome a competecircncia metalinguiacutestica

As atividades metalinguiacutesticas O estudo empiacuterico pioneiro de L Gleitman et al em 1972 mostrou que crianccedilas de dois anos

jaacute apresentam reaccedilotildees metalinguiacutesticas rudimentares satildeo pequenos gramaacuteticos O trabalho sobre o ldquometa-rdquo (comentaacuterios e manipulaccedilotildees metagraacuteficas metagramaticais metalexicais etc) tem sido amplamente desenvolvido nas pesquisas93 A atividade metalinguiacutestica do aluno

92 Eacute uma posiccedilatildeo que concorda entre outras com as de M Yaguello (1981) e de H E Brekle (1989) Mas eacute difiacutecil encontrar ao menos na Franccedila trabalhos que se relacionam diretamente com as praacuteticas linguiacutesticas espontacircneas dos locutores fora do acircmbito da aprendizagem

93 Veja alguns elementos na bibliografia com um lanccedilamento em grupo em 1994-1995 o no 9 da Repegraveres o coloacutequio da DFLM sobre metalinguagens o livro de D Leeman sobre as falhas

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eacute uma atividade de aprendizagem que ocorre na aula o que o faz produzir comentaacuterios sobre liacutengua discurso comunicaccedilatildeo e o faz utilizar procedimentos de classificaccedilatildeo nomenclatura ou argumentaccedilatildeo M Brigaudiot (1994 p 92-93) define o ldquosurpreendente comportamento reflexivordquo de jovens gramaacuteticos da seguinte forma

Definimos atividade metalinguiacutestica como o fato de um aluno se deparar com um problema linguiacutestico de entrar em um questionamento em busca de pistas de fazer provas de verificar Dizer que o problema eacute de ordem linguiacutestica eacute considerar que os objetos sobre os quais se relaciona satildeo de ordem linguiacutestica que se relacionam ao coacutedigo agrave frase ao texto ou ao discurso agrave leitura ao escrever

G Ducancel (1994) mostra que os comentaacuterios metalinguiacutesticos ligados agrave coesatildeo textual bem como aos conhecimentos metaprocessuais surgem a partir do primeiro ciclo escolar em duas formas principais

- as formulaccedilotildees e reformulaccedilotildees ldquosecasrdquo ou seja sem comentaacuterios

- a convocaccedilatildeo de uma metalinguagem para esclarecer analisar fazer comentaacuterios e dar explicaccedilotildees

Poderiacuteamos citar tambeacutem a obra de C Fabre (1990) que no campo da escrita mostrou a importacircncia da atividade metalinguiacutestica a partir do estudo dos rascunhos escolares para ela esse tal procedimento se trata de uma verdadeira entrada na escrita o que natildeo eacute pouca coisa

A partir daiacute pode ser estabelecido um contrato didaacutetico entre o professor e os alunos para a aprendizagem metalinguiacutestica No entanto uma distinccedilatildeo baacutesica deve ser feita entre atividade metalinguiacutestica espontacircnea e atividade metalinguiacutestica ldquosolicitadardquo para aprendizagem (DELAMOTTE-LEGRAND 1995) Em princiacutepio porque na praacutetica seria obviamente muito difiacutecil distinguir entre reflexotildees ldquonaturaisrdquo e ldquoartificiaisrdquo em crianccedilas

O ldquometa-rdquo reservado agraves crianccedilasEntretanto levar em consideraccedilatildeo a competecircncia metalinguiacutestica nas atividades de sala de

aula parece estar confinado ao ensino primaacuterio94 Com efeito natildeo se tem a inspiraccedilatildeo dessas praacuteticas pedagoacutegicas para professores nem as indicaccedilotildees dos programas oficiais do coleacutegio de ensino fundamental e do ensino meacutedio Nos uacuteltimos programas da faculdade apenas o ldquoo domiacutenio impliacutecito da gramaacuteticardquo aparece nas especificaccedilotildees para as praacuteticas linguageiras espontacircneas mas pode-se perguntar se a expressatildeo natildeo se deve mais agrave competecircncia linguiacutestica de um Chomsky do que agrave competecircncia metalinguiacutestica destacada pelo trabalho sobre a reflexividade das atividades linguageiras dos alunos

Sempre abordado no acircmbito da impregnaccedilatildeo das estruturas do francecircs e vinculado a diversas atividades orais e escritas a aprendizagem das ferramentas da liacutengua eacute modesta

94 Embora M Brigaudiot destaque em 1994 que as praacuteticas de ensino relacionadas agraves atividades metalinguiacutesticas das crianccedilas natildeo fazem parte da tradiccedilatildeo das escolas primaacuterias francesas

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no 6o Com base no domiacutenio impliacutecito da gramaacutetica o professor vai esclarecendo ao longo do ano alguns elementos essenciais da metalinguagem gramatical (PROGRAMA DA SEXTA SEacuteRIE 1996 p 18)

Eacute como se a competecircncia metalinguiacutestica pudesse funcionar apenas para a aquisiccedilatildeo e para a aprendizagem mas perdesse a importacircncia para aprendizagens relacionadas ao uso da liacutengua ao uso do discurso e agraves atividades de reflexatildeo criaccedilatildeo de interpretaccedilatildeo de invenccedilatildeo Deixemos o ldquometa-rdquo espontacircneo do ensino fundamental e do ensino meacutedio95 e natildeo falemos da universidade onde a categoria do popular espontacircneo ingecircnuo qualquer que seja o seu nome eacute firmemente convidada a ficar agrave porta da ciecircncia legiacutetima por exemplo qualquer reuniatildeo de respeito sobre o Curso de Linguiacutestica Geral de Saussure passaraacute por uma destruiccedilatildeo adequada da imagem da liacutengua como nomenclatura poreacutem ela eacute massivamente difundida entre os alunos servindo-lhes de saber-fazer para seu comportamento social

Sobre esse ponto a linguiacutestica se priva de ser uma poderosa alavanca para seu ensino e portanto para sua difusatildeo e manutenccedilatildeo nas ciecircncias humanas e sociais E o ensino parece ignorar um importante campo de pesquisa internacional nos uacuteltimos dez anos o das emoccedilotildees A pragmaacutetica as ciecircncias cognitivas em particular a psicologia e a neurologia mas tambeacutem a ergonomia a filosofia as ciecircncias da informaccedilatildeo e da comunicaccedilatildeo enfim todas elas realizaram pesquisas em torno do papel das emoccedilotildees no desenvolvimento e no comportamento do indiviacuteduo A psicologia cognitiva tem sido capaz de mostrar por exemplo em que medida o funcionamento da memoacuteria eacute governado pelas emoccedilotildees o que sem duacutevida tem alguma importacircncia na aquisiccedilatildeo e aprendizagem do francecircs

Algumas categorias suscetiacuteveis a um tratamento da linguiacutestica popular

A palavra uma categoria um pouco imprecisa mas operacional

A definiccedilatildeo da palavra palavra eacute um claacutessico da distinccedilatildeo entre o saber erudito e o saber popular em linguiacutestica Muito abrangente muito vaga polissecircmica e incapaz de distinguir certas segmentaccedilotildees palavra eacute geralmente proscrita por linguistas em favor de uma unidade lexical ou de acordo com o contexto de um vocaacutebulo considerado mais claro e monossecircmico Mas acontece que palavra eacute a palavra mais oacutebvia para todos os falantes independentemente da idade para designar esta unidade que eacute uma ilha graacutefica e semacircntica e suporte de representaccedilotildees mais difundidas da liacutengua para a maioria das pessoas a liacutengua estaacute associada ao leacutexico (a esse respeito ver Paveau (2000) em trabalho sobre a riqueza lexical) Isso explica porque certos linguistas levando em consideraccedilatildeo as praacuteticas espontacircneas dos falantes ou apegados a uma escrita legiacutevel de sua disciplina usam a palavra o lexicoacutelogo B Habert por exemplo chama palavra em vaacuterias palavras o que outros chamam de unidades fraseoloacutegicas ou locuccedilotildees fixas ou congeladas M Tournier sempre usou palavra no laboratoacuterio lexicomeacutetrico que dirigiu em Saint-Cloud bem como no tiacutetulo da revista que fundou Palavras as linguagens da poliacutetica96

95 NT Consultar o artigo de S Obadia sobre a categoria do registro como antiacutedoto para uma leitura de textos a partir das ldquoprimeiras reaccedilotildeesrdquo dos alunos Disponiacutevel em httpswwwcairninforevue-le-francais-aujourd-hui-2005-4-page-69htm

96 NT Em francecircs Mots les langages du politique Para saber mais sobre essa revista cientiacutefica acesse httpsjournalsopeneditionorgmots Acesso em 27 set 2020

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A terminologia gramatical de 1997 tambeacutem usa este termo na lista de noccedilotildees gerais (palavras e classes de palavras p 7) tal como nos termos sob o tiacutetulo ldquoleacutexico e semacircnticardquo (histoacuteria e construccedilatildeo de palavras famiacutelias de palavras palavras compostas palavras derivadas paacuteginas 29 e 30)

O termo palavra como ferramenta de aprendizagem ou anaacutelise eacute interessante para questionar a relevacircncia das categorias populares e acadecircmicas Os dados satildeo os seguintes

- Apesar de sua imprecisa definiccedilatildeo enfatizada em toda parte o termo palavra eacute amplamente utilizado em programas gramaacuteticas livros didaacuteticos por professores e alunos especialmente nos ensinos primaacuterio e fundamental (niacuteveis para os quais submetemos estudos e pesquisas o que natildeo eacute o caso do ensino meacutedio e menos ainda da universidade)

- A imprecisatildeo da definiccedilatildeo em questatildeo parece ser parcialmente reduzida pela elaboraccedilatildeo de um paradigma recentemente estudado por Sonia Branca e Corinne Gomila (2004) em relaccedilatildeo CP97 o qual fala de ldquometaliacutengua de transiccedilatildeordquo ou ldquotermos de transiccedilatildeordquo pedaccedilos de palavras pequenas palavras pequenas palavras iniciais outras palavras (sinocircnimos) elas indicam a funccedilatildeo de resoluccedilatildeo desses termos em particular pequenas palavras

A categoria abrangente de pequenas palavras permite que vocecirc adie a terminologia abundante para mais tarde Tambeacutem eacute usado para ldquoresolverrdquo outros problemas A unidade prevista pode portanto ser considerada pequena em comparaccedilatildeo com um todo abrangente (BRANCA GOMILA 2004 p 120)

Geralmente elas satildeo entretanto criacuteticas do uso dessa metaliacutengua de transiccedilatildeo agrave qual fazem as criacuteticas tradicionalmente dirigidas agrave categoria da palavra

Nosso ponto de vista natildeo eacute prescritivo De qualquer forma natildeo queremos denunciar a subdeterminaccedilatildeo desses termos em grande parte invisiacuteveis para aqueles que os usam ad hoc No entanto tais termos polissecircmicos encorajam um entendimento global muito vago o que dificulta a estabilizaccedilatildeo de algumas propriedades (BRANCA GOMILA 2004 p 120)

Muitas vezes encontramos a mesma posiccedilatildeo sobre a questatildeo na literatura dedicada agrave palavra e ao seu ensino-aprendizagem no coletivo liderado por M-J Beacuteguelin em 2000 a palavra eacute qualificada como uma noccedilatildeo imprecisa (p 43) poreacutem lemos nas filigranas do capiacutetulo dedicado agrave noccedilatildeo de palavra que ela eacute uma categoria popular devido agrave imprecisatildeo e agrave indeterminaccedilatildeo que carrega mas que eacute usada no ensino o que acaba servindo como soluccedilatildeo para descriccedilotildees difiacuteceis e definiccedilotildees complexas

Eacute uma pena que a eficaacutecia das categorias do senso comum natildeo seja mais profundamente questionada neste trabalho devido a uma abertura sobre a histoacuteria e sobre a epistemologia da ciecircncia Na verdade sabemos que eacute a linguagem do senso comum que permite que os

97 NT CP refere-se a um curso preparatoacuterio dos niacuteveis e das preparaccedilotildees da Eacutecole Eacuteleacutementaire francesa Le cycle 2 ou cycle des apprentissages fondamentaux comprend le cours preacuteparatoire (CP) O ciclo 2 ou ciclo das aprendizagens fundamentais compreende o curso preparatoacuterio (CP) Para saber mais acesse httpswwweducationgouvfrl-ecole-elementaire-9668 Acesso em 27 set 2020

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conhecimentos sejam fixados Sobre isso ainda E Nagel (1961) defende por exemplo a ideia de que a imprecisatildeo da liacutengua do senso comum permite que as crenccedilas persistam (por causa de ou graccedilas agrave dificuldade de controle experimental) quando o destino das teorias eacute morrer precocemente Obviamente natildeo se trata de aplicar este programa ao peacute da letra e sim de medir a eficaacutecia das praacuteticas linguiacutesticas espontacircneas em comparaccedilatildeo com as baseadas em meacutetodos cientiacuteficos

As conjugaccedilotildees fantasiosas erros de liacutengua ou soluccedilatildeo praacuteticaO erro de conjugaccedilatildeo eacute um estereoacutetipo do discurso sobre a liacutengua na Franccedila um reservatoacuterio

inesgotaacutevel de trocadilhos (Cafeacute bouillu cafeacute foutu)98 e um instrumento eficaz de discriminaccedilatildeo cultural99 Essa categoria morfoloacutegica da desinecircncia (ou terminaccedilatildeo em uma traduccedilatildeo mais tradicional e mais ldquoingenuamenterdquo descritiva) constitui-se de uma espeacutecie de lugar normativo que cristaliza a paixatildeo francesa pela liacutengua

Todos noacutes temos nosso repertoacuterio de erros de conjugaccedilatildeo desde os mais infantis (je suitais disse Ceacutesar aos quatro anos il disa disse um aluno citado por D Leeman100) aos mais literaacuterios como mostram M Savelli et al (2002) especificando que um certo nuacutemero de erros de passado simples aparecem entre os melhores autores srsquoenfuyegraverent dissolva couris mouresis eacutetranglis aperceva demandis vivegraverent101 Que essas formas satildeo defeituosas eacute indiscutiacutevel mas o que natildeo se pode fazer eacute uma interpretaccedilatildeo axioloacutegica delas e culpar os falantes por sua ignoracircncia por inferioridade linguiacutestica ou ainda pior por uma inferioridade social e impor as formas ortodoxas sem outra forma de processo

Embora os erros em francecircs existam eles tecircm uma racionalidade que o simples bom senso basta para descobrir do ponto de vista funcional natildeo haacute razatildeo para que se diga nada Entatildeo em je suitais e il disa haacute algo sobre o sistema de conjugaccedilatildeo e principalmente sobre o comportamento linguiacutestico dos desordeiros de conjugaccedilatildeo tratam-se de intervenccedilotildees sobre a liacutengua a terceira das praacuteticas linguiacutesticas populares identificadas alhures destinadas a regularizar um sistema que agraves vezes eacute muito erraacutetico O que se segue eacute muito bem explicado pela analogia com outros verbos frequentemente problemaacuteticos cuja base imperfeita termina em [t] je mens je mentais je pars je partais je suis je suitais102 (CQFD) Quanto a il disa deixemos D Leeman explicar a gecircnese da falha devido a um fenocircmeno de hipercorreccedilatildeo103

98 NT Mais uma vez optamos por usar os exemplos originais em liacutengua francesa porque a traduccedilatildeo natildeo seria suficientemente precisa para exemplificar as situaccedilotildees descritas pela autora Neste caso ldquocafeacute bouillurdquo estaacute sendo usado no lugar de ldquocafeacute bouillirdquo (cafeacute fervido) e ldquocafeacute fouturdquo no lugar de ldquocafeacute fichurdquo (cafeacute maldito) Ressaltamos que esses mesmos fenocircmenos de falha na terminaccedilatildeo de verbos irregulares e hipercorreccedilatildeo podem tambeacutem ser encontrados em liacutengua portuguesa

99 NT ldquoNatildeo diga sobretudo Eles tecircm que me acreditar ou Eles tecircm que me verrdquo (MORHANGE-BEacuteGUEacute 1995 p 12) No original Il faut qursquoils me croivent e Il faut qursquoils me voyent

100 NT Je suitais no lugar de je suis (eu sou) e il disa inveacutes de il dit (ele disse)

101 srsquoenfuyegraverent (je me suis enfui = eu fugi) dissolva (ce dissous = isto dissolveu) couris (jrsquoai couru = eu corri) mouresis (je suis mort = eu morri) eacutetranglis (jrsquoai eacutetrangle = eu estrangulei) aperceva (jrsquoai realize = eu percebi) demandis (jrsquoai demandeacute = eu perguntei) vivegraverent (ils veacutecurent = eles viveram)

102 NT Para que seja possiacutevel a comparaccedilatildeo trazemos aqui a traduccedilatildeo dos pares de verbos je mens (eu minto) je mentais (eu menti) je pars (eu saio) je partais (eu saiacute) je suis (eu sou) je suitais (natildeo existe deveria ser jrsquoeacutetais)

103 A hipercorreccedilatildeo eacute uma ldquobusca de atitude social de prestiacutegiordquo marcada pelo ldquoexcesso na aplicaccedilatildeo de uma regrardquo (GADET 2003 p 125) e que implica por parte do falante que ele estaacute ciente de uma caracteriacutestica de sua liacutengua (frequentemente foneacutetica) percebida de forma positiva socialmente e igualmente percebida em relaccedilatildeo a outras de forma negativa pela comunidade linguiacutestica na qual ele estaacute inserido A hipercorreccedilatildeo eacute entatildeo uma reconstruccedilatildeo defeituosa de uma forma de aparecircncia correta

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A forma il dit eacute comum no presente e no passado simples daiacute o constrangimento que pode suscitar uma histoacuteria como ldquoIl prit son manteau se coiffa drsquoun beacuteret et se preacutecipita vers la porte Avant de sortir il ditrdquo104 O revisor natildeo vai acreditar que estamos usando um presente incorretamente O aluno que escreve il disa pode sentir a necessidade de empregar uma forma claramente marcada para compensar a ambiguidade na liacutengua (LEEMAN-BOUIX 1994 p 125)

Poderiacuteamos multiplicar os exemplos e sua explicaccedilatildeo racional cujas anaacutelises podem ser encontradas em Meleuc e Fauchart (1999) e David e Laborde-Milaa (2002) por exemplo

Lembremos que este tipo de intervenccedilatildeo sobre uma categoria morfoloacutegica aparentemente muito ldquocientiacuteficardquo estabelecida (nada mais semelhante de fato ao conhecimento ldquodurordquo das ciecircncias exatas do que as tabelas de conjugaccedilatildeo105 constitui uma tentativa espontacircnea de regularizaccedilatildeo do sistema o falante entatildeo adota um comportamento linguiacutestico que lhe permite evitar o embaraccedilo psicoloacutegico e o esforccedilo cognitivo da irregularidade e ao mesmo tempo facilita seu registro de memoacuteria porque a memoacuteria semacircntica estaacute aqui diretamente relacionada e essas intervenccedilotildees espontacircneas devem ser consideradas como tentativas de gerenciamento da memoacuteria Por isso levar em consideraccedilatildeo as operaccedilotildees linguiacutesticas espontacircneas dos alunos na aprendizagem de liacutenguas eacute de certo interesse desde que os professores recebam uma formaccedilatildeo adequada ldquoAs anaacutelises [dos dados escritos e orais] e as hipoacuteteses evocadas nas regularizaccedilotildees poderiam servir de reflexatildeo para um ensino no qual seria sem duacutevida necessaacuterio repensar o que eacute regra e o que eacute memoacuteriardquo (SAVELLI et al 2002 p 47)

O gecircnero de discurso uma categorizaccedilatildeo impossiacutevelSabemos que o conceito de gecircnero estaacute muito presente nos uacuteltimos curriacuteculos das

faculdades e do ensino meacutedio e portanto nos livros didaacuteticos e nas atividades de ensino Isso ocorre porque a categoria de gecircnero eacute antiga e haacute muito tempo teorizada e debatida eacute tambeacutem porque as ciecircncias da linguagem se apoderaram da noccedilatildeo haacute cerca de quinze anos produzindo muitas reflexotildees sobre os modos de categorizaccedilatildeo de textos e discursos fenocircmenos cujos rastros podem ser percebidos nos programas que se baseiam na articulaccedilatildeo entre gecircneros de texto e formas de discurso106 Precisamente o gecircnero de texto se refere antes

104 NT Para mantermos os exemplos em francecircs trazemos nessa nota a traduccedilatildeo ldquoPegou o casaco colocou uma boina e correu para a porta Antes de sair ele dissehelliprdquo

105 Serge Meleuc (2002 p 49) oferece uma interpretaccedilatildeo da tabela de conjugaccedilatildeo para a aprendizagem ldquo[] o que eacute apenas uma forma de apresentaccedilatildeo tende a transbordar seu espaccedilo legiacutetimo e a se transformar em uma espeacutecie de modelo obrigatoacuterio da proacutepria praacutetica de ensino-aprendizagem do verbo rdquo

106 Acompanhamento da aula 6 (1996) ldquoA abordagem dos gecircneros textuais estaacute vinculada agraves formas de discurso os gecircneros satildeo realidades histoacutericas e culturais que codificam as praacuteticas discursivas Se a noccedilatildeo eacute complexa e muitas vezes difusa o gecircnero eacute facilmente identificaacutevel pela presenccedila dos dominantes discursivos o romance o conto a novela por exemplo satildeo caracterizados pela narrativa dominante (possivelmente com importantes elementos de descriccedilatildeo) Portanto eacute loacutegico associar os primeiros elementos de seu estudo ao das formas de discurso Natildeo podemos limitar a questatildeo dos gecircneros a dos gecircneros literaacuterios aleacutem desses coacutedigos particulares eles governam toda sorte de tipos de textos A carta eacute um gecircnero literaacuterio mas eacute tambeacutem uma forma de produccedilatildeo textual da vida cotidiana O diaacutelogo eacute um gecircnero ao mesmo tempo literaacuterio e algo que natildeo poderia ser mais banal a cada dia A histoacuteria eacute romacircntica mas tambeacutem eacute notiacutecia do tipo fait-divers etc Os gecircneros satildeo portanto descobertos pelos alunos e analisados a partir de toda sorte de textos de todos os gecircneros antigos e contemporacircneos em conexatildeo com as formas discursivas estudadas Temos portanto a preocupaccedilatildeo durante os estudos universitaacuterios de perceber claramente as semelhanccedilas e diferenccedilas entre os gecircneros em geral e os gecircneros literaacuterios em particular

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agrave categorizaccedilatildeo dos gecircneros literaacuterios (sem se limitar a isso) e forma de discurso se refere ao que a gramaacutetica do texto chamou de tipos ou protoacutetipos (narraccedilatildeo descriccedilatildeo explicaccedilatildeo etc) e ao que Mikhail Bakhtin iniciou em 1929 (em Marxismo e Filosofia da Linguagem) com o nome de gecircnero do discurso Posteriormente esse autor nos mostra em Esteacutetica da Criaccedilatildeo Verbal (1979) que os falantes possuem um repertoacuterio espontacircneo de gecircneros desenvolvidos em interaccedilotildees orais e denominados ldquogecircneros primaacuteriosrdquo ou ldquotipos elementaresrdquo Essas satildeo formas estaacuteveis107 que se reconfiguram e se combinam nos gecircneros de discurso conhecidos como ldquogecircneros secundaacuteriosrdquo ou ldquotipos secundaacuteriosrdquo presentes nas produccedilotildees construiacutedas dos falantes por exemplo em textos escritos em particular os textos literaacuterios

Isso significa que a categorizaccedilatildeo de gecircnero eacute uma atividade espontacircnea que pode ser tratada pela linguiacutestica popular Com efeito a simples observaccedilatildeo das classificaccedilotildees espontacircneas dos falantes verdadeira praacutetica cultural e social mostra que eles participam ativamente das versotildees do mundo construiacutedas pelo discurso Citemos por exemplo os gecircneros de cinema que participam da identidade dos filmes (talvez mais do que o gecircnero do discurso participa da identidade das produccedilotildees verbais) e que ao influenciar a escolha dos espectadores cumprem verdadeiramente uma funccedilatildeo de organizaccedilatildeo de mundo como aponta C Kerbrat-Orecchioni (2003 on-line)

Classificamos os textos mas tambeacutem os filmes (Lyon-Poche admite por exemplo as seguintes categorias ldquocomeacutediardquo ldquocomeacutedia dramaacuteticardquo ldquocomeacutedia de accedilatildeordquo ldquocomeacutedia policialrdquo ldquothrillerrdquo ldquopsicodeacutelicordquo ldquoaventurardquo ldquosuspenserdquo ldquodramardquo ldquodrama psiacutequicordquo ldquoaventurardquo ldquolendardquo ldquocrocircnicardquo ldquoguerrardquo ldquodocumentaacuteriordquo ldquoretratordquo ldquoeroacuteticordquo ldquofantaacutesticordquo ldquoterrorrdquo ldquoficccedilatildeo cientiacuteficardquo ldquocartoonrdquo etc) Poreacutem se a classificaccedilatildeo do gecircnero tem uma vida dura eacute porque deve ter uma certa relevacircncia para os usuaacuterios dessas revistas e devem desempenhar um papel mais ou menos determinante na escolha do filme a que se refere e que estatildeo se preparando para ver

Em conclusatildeo parece-nos portanto razoaacutevel pleitear com vistas a uma efetiva aprendizagem dos gecircneros do discurso (ou gecircneros de textos e formas de discurso de acordo com os programas) uma abordagem relativa ao que J-C Beacco (2004 p 111) denomina uma ldquociecircncia selvagemrdquo da linguagem

Os gecircneros discursivos constituem a forma imediata em que a liacutengua eacute dominada pelos falantes eles satildeo capazes de usaacute-los e identificaacute-los Para os falantes o proacuteprio material discursivo eacute um objeto de referecircncia Essa capacidade de os falantes categorizarem o discurso decorre de uma elaboraccedilatildeo metalinguiacutestica comum da qual os uacutenicos elementos emergentes satildeo os nomes dos gecircneros Todos os nomes de gecircneros natildeo procedem dessa atividade ordinaacuteria de categorizaccedilatildeo mas a noccedilatildeo de gecircnero do discurso parece pertencer a essa atividade classificatoacuteria antes de qualquer classificaccedilatildeo cientiacutefica Dessa ldquociecircncia selvagemrdquo da linguagem a temos como prova de que a noccedilatildeo de gecircnero eacute desenvolvida e ativa desde o alvorecer da reflexatildeo linguiacutestica

107 NT No original ldquoce sont des formes stablesrdquo

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A LIacuteNGUA SEM CLASSES DA GRAMAacuteTICA ESCOLAR108

Sabemos que uma das especificidades da Franccedila na sua relaccedilatildeo com a liacutengua eacute o sentimento de unidade a liacutengua francesa una e indivisiacutevel como a Naccedilatildeo ndash eis uma representaccedilatildeo que parece resistir a todas as misturas a todas as multiculturalidades e a todos os cruzamentos raciais e no niacutevel estritamente linguiacutestico a todas as variaccedilotildees e as mudanccedilas O francecircs padratildeo ou a representaccedilatildeo que dele se constroacutei eacute na verdade a base de todo o ensino do maternal agrave universidade mas tambeacutem da maior parte dos trabalhos dos pesquisadores em linguiacutestica francesa Sozinho - ou mais ou menos sozinho - o campo da sociolinguiacutestica enfrenta a difiacutecil questatildeo da variaccedilatildeo difiacutecil do ponto de vista metodoloacutegico (coleta de dados identificaccedilatildeo das variantes) e do ponto de vista cientiacutefico (como dar conta sinteticamente do funcionamento do sistema da liacutengua a partir de dados heterogecircneos)

Esta representaccedilatildeo unitaacuteria tem obviamente uma funccedilatildeo social importante que natildeo deve ser questionada por razotildees praacuteticas e tambeacutem didaacuteticas sociais e ateacute ideoloacutegicas eacute realmente o francecircs padratildeo que deve ser ensinado na escola Mas seraacute que isso implica que nada deve ser dito sobre a variaccedilatildeo social em particular e que deve ser silenciado o fato de que na liacutengua como em outras situaccedilotildees existem fenocircmenos de classe Que existe um francecircs popular e um francecircs das classes dominantes Que as redes sociais (MILROY 1987 GADET 2007) os grupos e as comunidades que cruzam as classes de maneira complexa sem apagaacute-las tambeacutem se definem por suas formas de falar fortemente marcadas por determinismos sociais

Eacute esta questatildeo da variaccedilatildeo social no sentido mais classista do termo109 que gostaria de abordar aqui comparando as gramaacuteticas escolares com base nos saberes linguiacutesticos chamados ldquoacadecircmicosrdquo e nos saberes da gramaacutetica espontacircnea ou gramaacutetica popular (folk gramar como dizem os anglo-saxotildees) que adveacutem da linguiacutestica popular (folk linguistics) altamente desenvolvida nos Estados Unidos (BREKLE 1989 PRESTON NIEDZIELSKI 2000) mas apenas em sua infacircncia na Franccedila (PAVEAU 2005 2007 2008 PAVEAU ROSIER 2008) que integra totalmente o paracircmetro classista

Para onde foram as classes sociaisNatildeo poderemos deixar de enfatizar o bastante que as categorias adotadas pelas linguiacutesticas

empiacutericas e sociais natildeo satildeo imanentes mas diretamente alimentadas pela histoacuteria das ciecircncias e das ideologias Isso eacute particularmente verdadeiro para o conceito de classe social que foi quase eliminado do discurso das ciecircncias sociais como mostra R Pfefferkorn em um trabalho recente que retoma a noccedilatildeo marxista de relaccedilatildeo social (2007)

108 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A La langue sans classes de la grammaire scolaire Le franccedilais aujourdrsquohui 162 J David M- M Bertucci (org) Descriptions de la langue et enseignement 2008 p 29-40 Traduccedilatildeo de Mocircnica Magalhatildees Cavalcante (UFC) e Maria de Faacutetima Sopas Rocha (UFMA)

109 Eu uso o termo classista no sentido de ldquosocial com estratificaccedilatildeo em classesrdquo

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Classes sem classeNas ciecircncias sociais e consequentemente na sociolinguiacutestica o termo classe foi substituiacutedo

pelos de posiccedilatildeo e rede Em La variation sociale en franccedilais (2ordf ediccedilatildeo 2007) Gadet evita o termo e fala de ldquolocutores favorecidosrdquo e ldquodesfavorecidosrdquo mencionando ldquoo topo e a base da escala socialrdquo e usando o termo posiccedilatildeo social Ela ressalta que a classe (operaacuteria meacutedia alta) como ferramenta de anaacutelise eacute muito formal e redutora e explica que a sociolinguiacutestica em vez disso explora a noccedilatildeo de rede dando o exemplo da ldquorede de trabalhadoresrdquo tal como eacute analisada por exemplo por Milroy (1987) Os sociolinguistas falam sem problema de variaccedilatildeo diastraacutetica110 um termo teacutecnico que desfaz a dimensatildeo ideoloacutegica ou mesmo poliacutetica de classe

Mas ao mesmo tempo o termo classe social persiste e encontramos por exemplo classe trabalhadora classe meacutedia e classe alta na apresentaccedilatildeo do uso do ne (natildeo) de negaccedilatildeo para Gadet (2007) Entatildeo classe ou rede Como observa Pfefferkorn (2007) o desaparecimento da noccedilatildeo pode ter sido mais um escamoteamento ideoloacutegico do que uma necessidade cientiacutefica real e seu retorno aos trabalhos dos jovens socioacutelogos atuais sobre as desigualdades sociais que propotildeem um novo questionamento do aparelho teoacuterico marxista tenderia a provaacute-lo111

Seja como for quer sob a forma de classe de rede de comunidade ou de grupo de pares a estratificaccedilatildeo social da linguagem dificilmente aparece na gramaacutetica escolar o que constitui ao mesmo tempo um fato oacutebvio jaacute que estamos muito acostumados com a unidade legiacutetima do padratildeo e com uma inacreditaacutevel separaccedilatildeo entre a liacutengua aprendida e a liacutengua falada quer seja a dos alunos quer seja a de seus professores112

ldquoRicos e pobres de linguagemrdquoEacute um princiacutepio antigo que a escola natildeo deve ficar ligada agrave vida comum e que a linguagem

da escola natildeo eacute a da experiecircncia ordinaacuteria e natildeo eacute o caso de colocar isso em questatildeo natildeo eu natildeo ensino meus alunos em francecircs falado comum e meus colegas do ensino fundamental ou do ensino meacutedio tambeacutem natildeo Sim as manipulaccedilotildees da linguagem e a aprendizagem lexical e sintaacutetica realizada na escola natildeo tecircm como objetivo ldquoservirrdquo diretamente ao cotidiano mas sim construir uma base de saber linguageiro com a qual o aluno possa jogar no sentido teacutecnico do termo na sua praacutetica da liacutengua A divertida sessatildeo sobre o subjuntivo imperfeito pusse113 do filme Entre les Murs de L Cantet (Palma de Ouro em Cannes em 2008) bem o diz mas o que vocecirc quer que eu faccedila com ldquopusserdquo ndash disse uma aluna em siacutentese vocecirc me vecirc

110 A tipologia usual de variaccedilatildeo em sociolinguiacutestica inclui cinco criteacuterios diacrocircnico (de acordo com a eacutepoca) diastraacutetico (de acordo com as classes ou as redes sociais) diafaacutesico (de acordo com as situaccedilotildees de interlocuccedilatildeo eacute aqui que se situam os niacuteveis de linguagem) diatoacutepico (de acordo com as aacutereas geograacuteficas os dialetos por exemplo) e diameacutesicos (de acordo com a escolha do canal oral ou escrito)

111 Falamos muito em linguiacutestica nas aulas ateacute os anos 1980 por exemplo para Rey (1972) Gardin e Marcellesi (1974) Franccedilois (1983) e para Bourdieu evidentemente cujo artigo laquo Vous avez dit populaire raquo de 1983 publicado recentemente em Langage et pouvoir symbolique eacute frequentemente citado em obras contemporacircneas (2001) Para uma anaacutelise detalhada desta questatildeo e para uma comparaccedilatildeo com o emprego das noccedilotildees de classe de dialeto social ou dialeto de classe na sociolinguiacutestica americana ver Paveau (2008)

112 Os trabalhos e as reflexotildees sobre o ensino-aprendizagem da liacutengua na sua maioria apenas mencionam a liacutengua falada pelos alunos e haacute muito que me pergunto o que seria de seus professores que ao contraacuterio do que pensam os autores dos livros didaacuteticos e dos programas nem todos falam como Voltaire ou mesmo como Duras

113 NT O imperfeito do subjuntivo natildeo eacute mais usado na liacutengua francesa atual eacute defendido apenas pelos puristas que ateacute criam associaccedilotildees de seus defensores

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dizendo para minha matildee ldquoque je pusserdquo Natildeo obviamente pusse seraacute usado para outra coisa por exemplo para se apropriar do sistema da liacutengua

Mas parece-me que se deve fazer algo a respeito dessa questatildeo eminentemente social (classista) na minha casa diz a aluna natildeo soacute natildeo falamos pusse como nunca ouvimos falar estaacute fora da minha experiecircncia Ela eacute desinibida mas natildeo eacute o caso dos entrevistados de Marconot habitantes da ZUP ao norte de Nicircmes

bull bem todos noacutes falamos mal de qualquer maneira [] o verdadeiro francecircs natildeo haacute mais quem o fale hein

bull natildeo eacute uma liacutengua muito rebuscada [] digamos que as pessoas satildeo garotos ndash que vecircm da classe trabalhadora ou de outra bom bem ndash isso

bull o operaacuterio por si mesmo natildeo tem que ndash falar corretamente ah basta que ele se faccedila compreender

bull pessoas de origem muito muito popular [] que falam francecircs como ndash como eu diria ndash bem como como falam os proletaacuterios eh agraves vezes uma linguagem muito pouco trabalhada [] expressotildees grosseiras [] uma linguagem um pouco rude ( MARCONOT 1990 p 69)

Existem portanto ldquopobres e ricos de linguagemrdquo como diz Bentolila (2001 Rapport sur lrsquoillettrisme on-line) em seu leacutexico um tanto espetacular que atende a uma argumentaccedilatildeo a qual natildeo eacute a minha aqui

Os lsquoricos de linguagemrsquo se aviltam linguisticamente sem risco e com a melhor consciecircncia do mundo Mas seraacute que aqueles cujo vocabulaacuterio eacute limitado e impreciso tecircm mesmo um real poder linguiacutestico Natildeo eles satildeo os lsquopobres da linguagemrsquo condenados a se comunicar apenas no imediato e nas proximidades

Mostrarei mais adiante sem muita dificuldade visto que o assunto eacute tatildeo visiacutevel a olho nu que esses dados sociais classistas natildeo aparecem na gramaacutetica escolar nem aliaacutes na maioria das vezes na gramaacutetica universitaacuteria exceto como opccedilatildeo variacionista declarada

A dimensatildeo social em corpus escolar e em corpus popularA situaccedilatildeo sobre a qual eu proponho refletir eacute a seguinte

- nas classes encontram-se misturadas (em um ideal de mistura social) ou reunidas (na realidade das EPZs e dos estabelecimentos de ldquobairros difiacuteceisrdquo) competecircncias linguageiras socialmente desiguais em que se encontram (ou natildeo) ricos e pobres da linguagem burgueses e proletaacuterios do leacutexico priacutencipes e operaacuterios da ortografia

- na gramaacutetica escolar e nos programas que a determinam apenas a norma padratildeo estaacute presente com base em uma liacutengua ldquodesclassificadardquo ldquodessocializadardquo conforme o indica a observaccedilatildeo das gramaacuteticas contemporacircneas do ensino fundamental e do meacutedio ou

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o conteuacutedo dos novos programas de 2008114 Mesmo que os programas incorporem a dimensatildeo enunciativa ou proponham uma gramaacutetica fraacutestica mais tradicional a ausecircncia da variaccedilatildeo social eacute de fato a mesma

Sem questionar mais uma vez a funcionalidade do ensino da norma parece-me importante compreender os desafios e as consequecircncias do ensino de uma liacutengua agraves vezes pouco relacionado agraves praacuteticas correntes dos alunos e refletir sobre a integraccedilatildeo da dimensatildeo social da liacutengua no ensino Essa reflexatildeo tem sido liderada haacute muito tempo pela linguiacutestica popular que pode fornecer aos professores estruturas para construir praacuteticas pedagoacutegicas que incluam a variaccedilatildeo

A linguiacutestica popular corpus e dados115

A linguiacutestica popular eacute uma linguiacutestica praticada por natildeo-linguistas ou seja por locutores que natildeo adotam uma visatildeo cientiacutefica da liacutengua116 As anaacutelises do popular consistem em descriccedilotildees linguiacutesticas profanas (em relaccedilatildeo ao fenocircmeno da designaccedilatildeo e da relaccedilatildeo entre a liacutengua e o mundo agrave hierarquia entre escrito e oral agrave conformidade agraves regras da liacutengua etc) muitas vezes consistem em prescriccedilotildees comportamentais frequentemente normativas ou ateacute puristas (dizer vs natildeo dizer) e em intervenccedilotildees na liacutengua por intermeacutedio de usos defeituosos ou de neologismos que se tornam normas porque oferecem soluccedilotildees para dificuldades linguageiras (por exemplo verbos terminados em ndashtionner) Dentre essas praacuteticas a classificaccedilatildeo social eacute muito presente tipologia das palavras ldquovulgaresrdquo ou ldquoelegantesrdquo proibiccedilotildees lexicais ou sintaacuteticas condenando o ldquopopularrdquo declaraccedilotildees irocircnicas de expressotildees ldquoesnobesrdquo ou pronuacutencias abertas que identificam as classes dominantes

A partir de 1983 em um artigo muito famoso e frequentemente citado ldquoVocecirc disse popularrdquo Bourdieu (2001 p 137) clamava por uma ldquociecircncia rigorosa da sociolinguiacutestica espontacircneardquo que fazia eco aliaacutes agrave ldquoestiliacutestica espontacircneardquo que ele mencionava em Ce que parler veut dire em 1981 Essa sociolinguiacutestica espontacircnea eacute a linguiacutestica popular em suas dimensotildees sociais que se desenvolve em muacuteltiplos lugares de fala em conversas orais espontacircneas eacute claro mas tambeacutem nos muacuteltiplos blogs e foacuteruns sobre a liacutengua francesa (bem como em outras liacutenguas) nos guias de boas maneiras nas obras normativas e puristas sobre o bom francecircs aquelas que vecircm da ldquoalma francesardquo constituindo o conjunto uma verdadeira histoacuteria dos costumes linguageiros franceses

O ponto em comum dos elementos desse corpus eacute que eles oferecem comentaacuterios metalinguiacutesticos que colocam em jogo a subjetividade dos falantes Trecircs categorias de dados subjetivos estatildeo envolvidas as intuiccedilotildees as percepccedilotildees e os sentimentos linguiacutesticos Essas categorias de observaccedilatildeo permitem aos natildeo-linguistas construir observaacuteveis entre os quais escolhi examinar aqui as normas sociais da linguagem (correto vs incorreto) os marcadores

114 O corpus do estudo eacute apresentado no final do capiacutetulo As gramaacuteticas satildeo mencionadas por siglas no texto

115 Como a traduccedilatildeo do termo popular apresenta problemas de polissemia integrei o termo inglecircs ao francecircs e falo a partir de agora de linguiacutestica folk ou de gramaacutetica folk (PAVEAU 2008)

116 Para uma definiccedilatildeo detalhada consulte Brekle (1989) nosso artigo no n 151 de Franccedilais aujourdrsquohui (PAVEAU 2005) e para vaacuterios exemplos de todos os niacuteveis de anaacutelise linguiacutestica ver Paveau e Rosier (2008)

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sociais da linguagem (as categorias ldquopopularrdquo ldquoburguecircsrdquoldquoesnoberdquo etc concernentes agraves ldquoclassesrdquo mas tambeacutem agraves redes sociais ndash jovens comunidades profissionais geograacuteficas sociogeograacuteficas) e enfim as vozessocialmente descritas por acentos timbres e tipos de articulaccedilatildeo O meacutetodo eacute comparativo observo o que o corpus escolar e o que o corpus popular dizem sobre esses trecircs fenocircmenos linguageiros

A norma social a evidecircncia do francecircs padratildeoToda a complexidade e o interesse pela questatildeo da norma linguageira eacute por sua duplicidade

ou seja o conjunto de relaccedilotildees por vezes muito complexas que existem entre a norma social e a norma linguiacutestica Nas gramaacuteticas escolares consultadas natildeo haacute problema deste tipo a questatildeo da norma nunca eacute posta e a norma eacute pro(im)posta sem questionamento sem reflexatildeo sobre o erro e ateacute sem exerciacutecios a partir dos erros ldquoO ensino da gramaacutetica tem por finalidade favorecer a compreensatildeo dos textos lidos e ouvidos melhorar a expressatildeo de forma a garantir a justeza a correccedilatildeo sintaacutetica e ortograacuteficardquo informam os novos programas do ensino fundamental para CE2 e CM (p 14) Sim mas de que correccedilatildeo se trata A variaccedilatildeo social natildeo eacute mencionada e a giacuteria por exemplo que poderia fornecer recursos interessantes para a manipulaccedilatildeo da linguagem estaacute ausente ldquoA escola natildeo questiona o significado que o padratildeo tem para a crianccedila dando por certo que ela deseja adquiri-lo sem dizer por que eacute desejaacutevelrdquo (GADET 2007 p 105)117

Esse aspecto desejaacutevel do padratildeo e do correto por outro lado encontramos jaacute abundantemente descrito no corpus popular falar corretamente eacute desejaacutevel porque eacute falar como os que tecircm poder eacute dominar os coacutedigos sociais e ganhar poder ou conquistar um lugar na sociedade Todos os guias de etiqueta e todas as obras sobre o bom francecircs contecircm esse discurso mesmo que seja prescritivo e por vezes severamente conservador (Le Bon franccedilais de M Druon publicado em 1999 eacute um bom exemplo) O padratildeo eacute motivado por eles Isso pode ser visto por exemplo nestes comentaacuterios sobre o excesso de acentos circunflexos encontrados no site httplangue-frnet (ortografia preservada)

Tirem o chapeacuteu

Eacute o que se chama ldquoerro por hipercorreccedilatildeordquo exagerando vocecirc acrescenta acentos circunflexos onde natildeo deveria

TF1 gosta do circunflexo

- O nobre AmphigouriX (21 Pradaria do ano CCVIII 9 de junho de 2000 dc-dcg)

- Visto em Pernaut-13h [NDEacute telejornal da primeira emissora nacional francesa] uma jovem se preparando para a opccedilatildeo ldquobascardquo no bacharelado seu nome no subtiacutetulo seguido de future bacirccheliegravere Schtroumpf dizia ldquoVocecirc vecirc como as pessoas amam o circunflexo eles o colocam em todo lugarrdquo

117 Natildeo tenho espaccedilo para desenvolver este ponto mas como abordar a multiplicidade de textos literaacuterios franceses muitas vezes perfeitamente canocircnicos que encenam falares populares ou socialmente marcados sem introduzir em um momento ou outro da aprendizagem linguiacutestica a ideia de uma marcaccedilatildeo social da liacutengua

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- Maximilien (9-6-2000) ndash Eacute para ser mais seacuterio E funciona parece mais seacuterio Bem agrave primeira vista jaacute que de fato parece mais negligenciado que outra coisa

- Schtroumpfix (9-6-2000) ndash Bachotage et rabacircchage satildeo os dois seios do futuro bacharelado

- Cleacutement-Noeumll Douady (10-6-2000) ndash Previacuteamos que ela ia perder o bacharelado e entrar em uma faacutebrica de produzir lonas (nova moda boina basca em lona)

Mas o que eacute interessante eacute que o natildeo padratildeo o vernacular ou a giacuteria tambeacutem o satildeo a tradiccedilatildeo purista sempre ambiacutegua abre espaccedilo para a lsquotruculecircnciardquo da giacuteria para o prazer de xingar para o gozo da fala vulgar (PAVEAU ROSIER 2008 cap 8) Trata-se de uma visatildeo de liacutengua obviamente menos cientiacutefica mas muito mais rica a meu ver do que a das gramaacuteticas escolares

O risco imediato dessa constataccedilatildeo eacute alimentar os ensinos subjetivos esteacuteticos e natildeo ldquocientiacuteficosrdquo e ir na direccedilatildeo das propostas governamentais francesas dos uacuteltimos anos que reorientam a aprendizagem de liacutenguas para um normativismo tradicional mais apreciativo do que objetivo (Relatoacuterio de Gramaacutetica de 2006 programa de ensino fundamental 2008 programa de faculdade em consulta 2008) Embora o termo tradicional precise ser ressignificado os velhos Soucheacute e Grunenwald de minha infacircncia ndash para falar o dialeto orsenniano ndash propunha uma coluna de exerciacutecios irregulares intitulada ldquoBom usordquo Tinha por exemplo um exerciacutecio na forma de ldquonatildeo diga vs digardquo sobre o emprego do auxiliar avoir ou ecirctre (1961 p 61) No entanto esta questatildeo eacute estritamente social e histoacuterica como mostra C Blanche-Benveniste em um trabalho intitulado ldquoJrsquoai descendu dans mon jardinrdquo em que descobrimos que Littreacute admitia perfeitamente ldquojrsquoai resteacute un an agrave Grenoblerdquo credenciando assim o francecircs falado conhecido como ldquoerradordquo pelos trabalhadores da faacutebrica da Opel (BLANCHE-BENVENISTE 2003 p 319) Assim a norma mudou e o social influenciou a proacutepria sintaxe tantas vezes apresentada como uma estrutura intangiacutevel Uma excelente oportunidade a meu ver para integrar o diastraacutetico e o diacrocircnico no ensino-aprendizagem do francecircs com todas as adaptaccedilotildees necessaacuterias ao niacutevel dos alunos

A honestidade cientiacutefica nos obriga a tomar posiccedilotildees matizadas e difiacuteceis a questatildeo importante natildeo eacute nem a da riqueza da abordagem nem a do ensino a marcaccedilatildeo social da liacutengua eacute ensinada rigorosamente Acho que sim Impede o aprendizado fundamental do sistema linguiacutestico Acho que natildeo Entatildeo sim ao enriquecimento do repertoacuterio social dos alunos e natildeo ao abandono de criteacuterios racionais para o ensino da liacutengua os uacutenicos garantidores de seu ensino

Os ldquoniacuteveis de linguagemrdquo uma categoria mal definidaSe natildeo encontramos nenhum dado diastraacutetico em nossas gramaacuteticas por outro lado o

niacutevel diafaacutesico estaacute sistematicamente presente na forma de um esquema ou de uma paacutegina intitulada ldquoOs niacuteveis de linguagemrdquo em que a linguagem natildeo eacute realmente definida mas apresentada como relacionada a situaccedilotildees de interaccedilatildeo

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Na NGC no sexto niacutevel trecircs niacuteveis satildeo apresentados com exemplos coloquial boulot corrente travail formal labeur (p 314) A apresentaccedilatildeo eacute seguida de um desenvolvimento proscritivo ldquoComo evitar a linguagem coloquialrdquo em que se aprende que o niacutevel coloquial soacute pode ser usado na oralidade (retorno da velha confusatildeo entre oral e popular) e em que vaacuterias dicas satildeo dadas para aperfeiccediloar seu vocabulaacuterio (p 314 e segs)

- evitando o verlan118 as giacuterias as abreviaccedilotildees

Ufa Vocecirc viu o dinheiro que ele tem Vocecirc eacute louco Vocecirc estaacute ciente de sua fortuna

- evitando supressotildees de siacutelabas repeticcedilotildees

Ele tem uma boa scootrsquo Ele tem uma bela scooter

- usando nous em vez de on

A gente fez uma boa caminhada Demos uma boa caminhada

Atenccedilatildeo

Natildeo empregue nous e a gente na mesma frase Nous on ne bougera pas -gt Nous nous ne bougerons pas

Um pouco mais adiante dicas com exemplos tambeacutem satildeo dadas para ldquoevitar o relaxamentordquo

- A negaccedilatildeo completa e a pontuaccedilatildeo119

Jrsquote raconte pas la beacutecane Je nrsquoose pas te deacutecrire ce scooter

- A pergunta

Daacute para acreditar Vocecirc acredita no que ele estaacute dizendo

- A supressatildeo de verbos vicaacuterios como fazer

Tem que fazer isso de novo Vocecirc quer que eu explique para vocecirc de novo

Por fim explicamos ao aluno como escrever na linguagem formal ldquoA linguagem rebuscadardquo eacute usada na escrita e na oralidade nos textos literaacuterios nos discursos

- O vocabulaacuterio eacute rebuscado e as frases satildeo complexas Eu ignorava que vocecirc tinha adquirido uma motocicleta

- A gramaacutetica eacute sempre respeitada e utiliza certos modos verbais como o subjuntivo Eu deveria ter podido falar com vocecirc sobre isso

Eu natildeo gostaria de cair na facilidade do comentaacuterio irocircnico o leitor apreciaraacute a qualidade das ldquotraduccedilotildeesrdquo de um niacutevel para outro mas natildeo sem antes fazer as seguintes perguntas

118 Verlan eacute um tipo de giacuteria em que se invertem as siacutelabas ou as letras Vem de lacuteenvers que significa o inverso

119 O francecircs faz a negaccedilatildeo com dois elementos ndash ne e pas ndash e a linguagem popular tende a suprimir o ne

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- sobre a definiccedilatildeo de situaccedilatildeo quais satildeo as situaccedilotildees que requerem a substituiccedilatildeo por exemplo de moto por motocicleta Como eles satildeo identificados ou avaliados pelos alunos O paracircmetro social no sentido classista estaacute realmente ausente A quinta GPLE propunha mais ou menos a mesma coisa afirmando ldquoComo a situaccedilatildeo exigerdquo (tiacutetulo da paacutegina) e ldquoDe acordo com a situaccedilatildeo de enunciaccedilatildeordquo (tiacutetulo do paraacutegrafo)

- sobre a classificaccedilatildeo dos niacuteveis para onde passou o niacutevel da giacuteria chamado popularmente de vulgar grosseiro etc Os merde e os bordel e os trou du cul estatildeo fora dos dicionaacuterios Surpreendentemente eacute nos curriacuteculos do ensino fundamental que eles satildeo encontrados ldquoSaber o que eacute um registro de linguagem durante as trocas orais transpor qualquer enunciado espontacircneo de registros familiares giacuterias ou palavras baixas em um enunciado pertencente ao francecircs padratildeordquo (CM1 p 29) Evitadas mas ainda mencionadas as palavras ldquobaixasrdquo

A linguiacutestica popular natildeo tem esses pudores ou esses irrealismos como se gostaria A giacuteria eacute frequentemente analisada em seus corpora e natildeo faltam comentaacuterios sutis sobre os usos Assim P Daninos (1964 p 18-19) em Snobissimo menciona as alternacircncias diafaacutesicas das pessoas comuns

Eacute sem duacutevida nessas partes que a dosagem (vocabulaacuterio aviltado) de que falei alhures ndash do tipo Era divino tinha um daqueles avoacutes aiacute velhinho eacute muito simples o nascimento de Vecircnus pra melhor Acho que aquele desgraccedilado do Rubi ganhou um ingresso com ela engraccedilado ndash eacute o mais saacutebio

E os editores do Le Monde pertencentes agrave brilhante tradiccedilatildeo dos tipoacutegrafos franceses natildeo-linguistas apresentam regularmente anaacutelises de giacuterias presidenciais das quais aqui estaacute um exemplo

Sarkozy ou a loucura dos preguiccedilosos

Como uma estrela vinda de seu firmamento rodeada por seus sateacutelites ministeriais e prefeiturais o presidente da repuacuteblica derreteu na manhatilde do dia 22 de janeiro numa terccedila-feira junto a um grande grupo em Sartrouville natildeo longe de Paris para proferir suas palavras doutrinais Ouvidas estas poucas palavras veiculadas pela imprensa audiovisual durante uma breve interaccedilatildeo com os ldquojovensrdquo presentes no local e bastante maravilhados o seu ldquoplano de subuacuterbiordquo vai dar-lhes a oportunidade de trabalhar e de ter uma formaccedilatildeo ldquoporque a vida natildeo eacute para preguiccedilarrdquo Natildeo comentaremos sobre a sintaxe do presidente nem sobre a penetraccedilatildeo de seu pensamento mas apenas sobre o ldquoglanderrdquo verbo de rara elegacircncia que se tornou decididamente um carro-chefe do vocabulaacuterio governamental

O ldquoglandrdquo eacute antes de tudo o fruto do carvalho natildeo nos esqueccedilamos e esta palavra nos vem do latim glans glandis e muito antes disso de fato os linguistas a relacionavam com a raiz indo-europeacuteia gwele [hellip] O significado atual ldquoesperar em vatildeordquo soacute eacute atestado em 1941 (com forte conotaccedilatildeo sexual como ldquopunhetardquo) e glandouiller outro paradigma

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do verbo governamental dataria de 1938 Deixaremos de lado glandage glandule e glanduleux que existem mas ainda natildeo foram incorporadas ao discurso do Eliseu

Em conclusatildeo diremos que um novo direito do povo estaacute na mira do poder o ldquodireito de vadiarrdquo Mas que os jovens possam sempre responder com soberba ao presidente parafraseando F Mauriac ldquoO verdadeiro glandeur ignora as ofensas dos pequenosrdquo

(httpcorrecteursbloglemondefrcorrectors 24012008)

A mim parece que a gramaacutetica escolar poderia valer-se do fundo da linguiacutestica popular para apresentar uma visatildeo enriquecida da liacutengua notadamente por meio de marcadores sociais

As vozes uma gramaacutetica sem vozEsta observaccedilatildeo tambeacutem diz respeito agraves vozes Por voz entendo natildeo soacute o oral mas

todos os fenocircmenos marcados que o caracterizam acentos sociais timbres e articulaccedilotildees A sociolinguiacutestica acadecircmica leva em conta a oralidade e suas marcaccedilotildees sociais mas basicamente nas constataccedilotildees foneacuteticas

As falhas de ligaccedilatildeo mais comumente percebidas expressas na frase coloquial ldquoligaccedilatildeo incorretardquo satildeo os chamados erros ldquopataquegravesrdquo que conotam um discurso muito pejorativamente Satildeo chamados para os mais recorrentes de couro (fico muito confortaacutevel com isso) e de veludo (eu tambeacutem) (GADET 1989 p 78)

No corpus consultado a gramaacutetica escolar natildeo leva em consideraccedilatildeo o oral o que significa que natildeo compreendemos de forma efetiva ou de forma indireta as vozes do francecircs nos manuais didaacuteticos exceto a voz do professor e a dos alunos Uma uacutenica gramaacutetica a terceira DTP oferece um CD de aacuteudio com o livro do professor que serve para exerciacutecios regularmente propostos no manual Por exemplo

- Ouccedila com atenccedilatildeo esta conversa entre duas amigas Lou acaba de apresentar Julien uma jovem atraente mas vaidosa agrave sua melhor amiga Eacutemerance Usando o estilo indireto e a narrativa de falas relate em apenas algumas linhas o que as duas amigas estatildeo dizendo uma agrave outra Seu texto comeccedilaraacute da seguinte maneira Nesta passagem Lou pergunta a Eacutemerance se (2003 p 108 ao inserir letras em um texto)

- Em uma primeira audiccedilatildeo observe as subordinadas relativas nas passagens que vocecirc ouviraacute Em uma segunda audiccedilatildeo principalmente com a ajuda das pausas especifique quais satildeo os epiacutetetos e quais satildeo os apostos (DTP 3ordf 2003 p 185 sobre a relativa)

- O apresentador da estaccedilatildeo de raacutedio ldquoSOS solituderdquo que vocecirc vai ouvir agraves vezes tem uma maneira um tanto abrupta de falar com seus interlocutores Formule de maneira atenuada seus conselhos ou pedidos usando o condicional ou o imperfeito (DTP 3ordf p 145 sobre os modos e os valores modais)

Embora a questatildeo social natildeo seja colocada os alunos podem ter a oportunidade de atentar para sotaques regionais ou acentos sociais que os familiarizem com a variaccedilatildeo A gramaacutetica

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escolar atualmente em construccedilatildeo propotildee uma concepccedilatildeo bastante teatral do oral preocupada mais com a teacutecnica do que com a marcaccedilatildeo social

Consciente de que o oral deve ser ensinado o professor elabora exerciacutecios variados e progressivos que permitem aos alunos trabalhar a voz os gestos e a ocupaccedilatildeo do espaccedilo Eacute neste contexto que se realizam em particular a recitaccedilatildeo (em articulaccedilatildeo com os textos estudados) a leitura em voz alta a exposiccedilatildeo oral o relato as interaccedilotildees organizadas (Programme de collegravege en consultation 2008 p 7)

No lado popular abundam as notaccedilotildees classistas desde as vozes muito ldquoGuermantesrdquo descritas por Proust aos sotaques populares encenados por Fallet passando pelas excessivas aberturas de Marie-Chantal as vozes seus timbres e suas articulaccedilotildees satildeo frequentemente fixados Dois exemplos

- A proacutepria entonaccedilatildeo diferenciada parece hoje de tom ruim senatildeo ateacute duvidosa Natildeo eacute mais culpa de algumas locutoras de raacutedio cujas palavras parecem salpicadas de strass [] Quanto ao madhacircme que tantas vezes precedia minhas homenagens no tempo em que os a soacute saiacuteam de bocas bem feitas enchapelados com um acento circunflexo tornou-se prerrogativa das damas de companhia ou das companhias aeacutereas (Daninos 1964 p 16)

- Evitar tambeacutem ligaccedilotildees acentuadas demais Agraves vezes ateacute satildeo suprimidas ldquoCommen(t) allez-vousrdquo substituiu ldquoCommen-t-allez-vous rdquo Algueacutem que olhasse para o reloacutegio e dissesse ldquoJe mrsquoen vais il est troi-z et demierdquo seria um pouco ridiacuteculo no mundo e pedante laacute fora

Finalmente uma articulaccedilatildeo clara e uma leve gagueira muito ldquooxonianardquo (natildeo dizer ldquooxfordianardquo) eacute de uso para contar uma anedota ou uma histoacuteria de caccedila (JULLIAN 1992 p 197)

Quando ensinamos em lugares socialmente mistos ou nos chamados bairros difiacuteceis ou mesmo em aacutereas de alta imigraccedilatildeo como na minha Universidade Paris XIII em Villetaneuse soacute conseguimos ouvir um francecircs muito marcado por sotaques diversos para os quais categorias especiacuteficas nem sempre satildeo adequadas o famoso sotaque suburbano acompanhado do discurso de metralhadora eacute ao mesmo tempo social eacutetnico e geracional Os adultos que trabalham em um ambiente profissional o perdem

Que a gramaacutetica do francecircs seja confinada a uma escrita estranha parece-me representar o problema da realidade da liacutengua aqui de natureza social

ConclusatildeoOs materiais fornecidos pela linguiacutestica popular satildeo inestimaacuteveis e agraves vezes exclusivos

com os ldquolinguistas dominicaisrdquo realizando um trabalho em especial sobre as falas de classe que os profissionais nem sempre fazem (para uma apresentaccedilatildeo detalhada desse fenocircmeno ver Paveau e Rosier 2008)

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A abordagem social da liacutengua em sala de aula me parece necessaacuteria por razotildees linguiacutesticas (o francecircs padratildeo natildeo eacute o francecircs) mas tambeacutem por razotildees didaacuteticas (ensinar o padratildeo eacute necessaacuterio mas natildeo o suficiente) e eacuteticas (a escola natildeo precisa mentir sobre a natureza profundamente discriminatoacuteria do poder simboacutelico da linguagem) Tambeacutem eacute uma faca de dois gumes uma vez que se oferece agraves ideologizaccedilotildees do ensino do francecircs que se baseiam em avaliaccedilotildees normativas estiliacutesticas e ateacute pseudorreligiosas (a ldquomissatildeordquo da gramaacutetica amplamente descrita no relatoacuterio de novembro de 2006) Como sempre apenas uma formaccedilatildeo soacutelida de professores incorporando um discurso reflexivo sobre sua proacutepria variedade sem negaccedilatildeo ou desprezo permite manter uma posiccedilatildeo cientificamente rigorosa e pedagogicamente eficaz

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IMAGENS DA LIacuteNGUA NOS DISCURSOS ESCOLARES120

Ao falarmos sobre o discurso escolar tocamos num problema metodoloacutegico importante o que se entende por ldquodiscurso escolarrdquo Identificado restritivamente como discurso da escola e ateacute mesmo agrave custa de uma reduccedilatildeo espacial como discurso na escola o discurso escolar natildeo eacute impedido por si mesmo de se relacionar com aqueles que se encontram fora do espaccedilo escolar ou da instituiccedilatildeo escolar Em outras palavras o discurso na escola natildeo eacute apenas os discursos da escola seria preciso portanto poder compartilhar o que eacute dos pais e da famiacutelia o que depende de paracircmetros sociais e culturais o que se capta no discurso da miacutedia o que emerge de uma crenccedila popular etc E esses proacuteprios discursos interpenetram-se e entrelaccedilam-se formando um universo discursivo que se organiza de maneira diferente de acordo com os tempos as crises e os acontecimentos Falar de imagens de liacutengua em discursos escolares natildeo pode assim ser feito sem levar em conta essa polifonia essencial e a tarefa eacute muito importante para ser realizada no acircmbito de um capiacutetulo

Muitos trabalhos jaacute abordaram isso tanto fora quanto dentro da escola proporemos aqui algumas respostas poreacutem sempre muito ldquomonofocircnicasrdquo reduzindo os discursos escolares aos que satildeo produzidos no acircmbito da escola pelos alunos pelos professores pelos livros e pelos textos oficiais

Das representaccedilotildees complexas muacuteltiplas e impliacutecitasQuestionar as imagens da liacutengua eacute tentar identificar quais satildeo os traccedilos por meio dos quais

cada um traccedila um retrato mais ou menos preciso mais ou menos fixo e mais ou menos ciente de um sistema comum a todos esses traccedilos podem ser funccedilotildees valores ou propriedades Essas imagens satildeo portanto complexas porque deslizam vaacuterios paracircmetros de natureza diferente e muacuteltiplos porque pode haver tantas representaccedilotildees quantos satildeo os sujeitos falantes (ou grupos comunidades etc) na maioria das vezes no entanto eles estatildeo impliacutecitos porque este natildeo eacute nem de conhecimentos nem de saberes objetivaacuteveis mas sim de representaccedilotildees estruturantes Nas situaccedilotildees de ensino de uma disciplina como o francecircs as questotildees tornam-se ainda mais difiacuteceis pois essas representaccedilotildees estatildeo por natureza em constante circulaccedilatildeo

Discurso sobre a liacutengua e reflexividadeDiante da complexidade do fenocircmeno adotamos um meacutetodo indireto reunimos um conjunto

de trabalhos e pesquisas realizadas sobre questotildees de liacutengua na escola e procuramos ver o que elas revelavam em vatildeo e por inferecircncia dessas imagens difiacuteceis de alcanccedilar por um meacutetodo de investigaccedilatildeo direta Isso nos permitiu ampliar o campo de investigaccedilatildeo mas permanecendo dentro do acircmbito das fontes mencionadas anteriormente

120 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Images de la langue dans les discours scolaires Le Franccedilais aujourdrsquohui 125 Images et repreacutesentations de la langue Paris AFEF 1998 p 52-60 Traduccedilatildeo de Fernando Curtti Gibin (UFSCar) e Marco Antonio Almeida Ruiz (USP)

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Em relaccedilatildeo ao estatuto do curso de francecircs natildeo podemos repetir eacute irredutivelmente singular pois a liacutengua eacute reflexiva ldquoum indiviacuteduo seja aprendiz ou natildeo natildeo usa a liacutengua como instrumento de accedilatildeo sobre o mundo Tampouco se comunica por meio de um instrumento que seria essa liacutengua [] Ele pode evocar a realidade no uso de uma liacutengua e expressar seus pensamentos nessa liacutengua []rdquo(DAVID 1997 p 5) Ou seja o aluno natildeo analisa a liacutengua mas sim a sua liacutengua ele natildeo lecirc o texto de um autor que usa a liacutengua mas resolve na sua liacutengua a produccedilatildeo de quem fala a sua liacutengua As imagens da liacutengua estatildeo portanto intimamente relacionadas agraves imagens dos proacuteprios sujeitos

Quatro imagens dominantes emergem com bastante clareza de todo o discurso veiculado no campo escolar hoje (por volta dos anos noventa) Sua apresentaccedilatildeo sucessiva natildeo deve ocultar o fato de que muitas vezes manteacutem relaccedilotildees iacutentimas e que o todo forma em uacuteltima instacircncia uma macroimagem relativamente coerente da liacutengua Tampouco deve sua predominacircncia nos fazer esquecer de que outras imagens embora possam ser minoria ou indetectaacuteveis ainda existem de modo que podem com o tempo tornar-se dominantes

A liacutengua-mundo

Speculum mundi

A antiquiacutessima concepccedilatildeo de espelho da liacutengua do mundo estaacute muito presente nos alunos para os quais a liacutengua eacute usada para dizer o mundo a realidade a verdade das coisas Conforme Eacute Bautier (1995 p 184) ldquoas palavras parecem ter importacircncia apenas na medida em que para o aluno traduzem melhor a sua experiecircncia o que ele quer dizer sobre ela [] A linguagem escrita como a fala eacute lsquofeita pararsquo falar o lsquoverdadeirorsquo o que eacute o que aconteceurdquo Todos os professores de francecircs conseguem identificar essa ldquoposturardquo segundo Eacute Bautier nos vaacuterios exerciacutecios da disciplina nomeadamente na leitura e na produccedilatildeo de textos narrativos Essa aproximaccedilatildeo entre a liacutengua e a realidade entre o textual e o real tambeacutem se realiza na leitura de textos poeacuteticos que natildeo satildeo diretamente referenciais No acircmbito de uma obra sobre ldquopoesia vivardquo uma aluna do segundo ano justifica assim a escolha do poema ldquoMatildeerdquo de J Darras ldquoPorque amo as matildeesrdquo outro descarta um poema de W Cliff sobre a Beacutelgica explicando ldquoEu natildeo sou belgardquo e outro finalmente confessa que ldquoBeacutelgica e batatas fritas isso tem um aspecto pesado e desinteressanterdquo (PAVEAU PEacuteCHEYRAN-HERNU JOUVENCEAU 1997 p 84-85) A mesma postura eacute encontrada no trabalho de argumentaccedilatildeo no segundo e primeiro anos jaacute que os alunos agraves vezes resistem fortemente em defender pontos de vista dos quais natildeo compartilham que natildeo correspondem para eles agrave ldquoverdade das coisasrdquo a uma realidade que seria deles

Transmissatildeo e circularidadeOs professores franceses interessados na questatildeo conhecem bem essa representaccedilatildeo

resultante de um realismo tatildeo antigo quanto contiacutenuo121 Eacute uma questatildeo saliente para os

121 Lembramos que a querela entre nominalismo e realismo (para dizer as coisas rapidamente) eacute uma constante para especialistas da liacutengua da Antiguidade do seacuteculo XVIII Aleacutem disso ao agruparmos a ideia da liacutengua-mundo vemos a sua predominacircncia na linguiacutestica espontacircnea de locutores (Cf por exemplo BREKLE 1989)

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alunos e apresenta dificuldades em todas as aprendizagens relacionadas com a disciplina se a liacutengua natildeo reflete o mundo entatildeo o que eacute um texto um discurso um argumento De que ordem dependem o som a palavra a frase E acima de tudo o que eacute essa ordem mundial repentinamente privada de seu espelho Poreacutem o significado e a durabilidade dessa imagem que eacute obviamente o produto de vaacuterios legados escolares e extracurriculares natildeo satildeo explicitamente (suficientemente) levados em consideraccedilatildeo na forma de uma obra real e de um real questionamento sobre representaccedilotildees sobre o que jaacute se sabe dos alunos na formaccedilatildeo dos professores e no proacuteprio ensino De repente essa imagem persiste quando os alunos entram no Ensino Superior ouve-se por exemplo de alunos do segundo ano de Letras Modernas colocados em situaccedilatildeo de produzir um argumento o mesmo discurso do Ensino Meacutedio122 E quando esses alunos satildeo futuros professores a liacutengua-mundo escapando agraves perguntas ainda se espreita na prova oral de explicaccedilatildeo do texto da CAPES de Letras Modernas os candidatos muitas vezes confundem liacutengua e realidade em suas anaacutelises lexicais123 Dessa forma esta representaccedilatildeo repete-se de forma circular nos diferentes lugares e tempos de ensino e formaccedilatildeo Haacute neste campo das imagens da liacutengua um siacutetio a ser aberto e natildeo apenas em termos de validade cientiacutefica natildeo se trata de substituir com autoridade uma imagem cientificamente invalidada por outra legitimada pelo recurso agraves ciecircncias da linguagem Seria antes uma questatildeo de compreender qual eacute o lugar e a funccedilatildeo da liacutengua-mundo no universo das representaccedilotildees escolares de onde vem a legitimidade que confere a essa imagem uma longevidade tatildeo notaacutevel e sobretudo qual tipo de ensino permite e natildeo permite

A liacutengua-norma

A correccedilatildeo da liacutengua

Se a liacutengua eacute usada para dizer a verdade das coisas para os alunos parece que se deve dizecirc-la especialmente bem para os professores De acordo com os resultados da pesquisa realizada em 1993-1995 por Elalouf Benoit e Tomassone (1997 p 83) entre os futuros professores do segundo ano do IUFM eacute possiacutevel descrever o perfil do

formando-tipo de letras modernas que pode ser considerado a maioria entre os formandos [] Esse perfil eacute caracterizado por opiniotildees tradicionais sobre o ensino da liacutengua Para esses estagiaacuterios ensinar a liacutengua eacute ensinar a norma as expressotildees oral e escrita corretas [] o ensino gramatical eacute usado principalmente para dominar as expressotildees oral e escrita []

A imagem estatisticamente dominante na amostra determinada por essa pesquisa (274 estagiaacuterios dos IUFMs em Rennes Reims e Versailles) eacute portanto a de uma liacutengua padratildeo uma imagem que tambeacutem pode coexistir com a anterior

122 Essa marcaccedilatildeo reflete somente a nossa proacutepria experiecircncia e demandaria uma pesquisa para ser confirmada

123 Um exemplo entre outros sobre ldquoLe leacutezard amouroeuxrdquo [O lagarto apaixonado] de R Char um candidato indica que o poeta utiliza agraves vezes ldquopalavras simplesrdquo ldquopalavras do cotidianordquo dando como exemplo o cambalear [titube em francecircs] Interrogado sobre esses criteacuterios de apreciaccedilatildeo ele afirma que ldquoo cambalear natildeo eacute tatildeo estimado como atitude cambaleamos quando estamos embriagados por exemplordquo (seccedilatildeo 1998)

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A liacutengua restritaAqui novamente natildeo se trata de deplorar ou denunciar as concepccedilotildees tradicionais ou

gramaticais da liacutengua mas de se medirem os riscos do ensino do francecircs e de se compreender melhor o que o aluno pode fazer com a sua liacutengua quando ele recebe um ensino constituiacutedo por essa imagem para isso eacute uacutetil perguntar que padratildeo eacute esse exatamente e apreender o padratildeo escolar em seu funcionamento pedagoacutegico como fazem Founier e Veck (1995 p 53-58) em um artigo sobre ldquonoccedilotildees em francecircsrdquo Eles estudam as anotaccedilotildees das coacutepias dos alunos feitas por seus professores observando os usos imperfeitos sancionados na margem O estudo mostra que a norma escolar eacute especiacutefica na medida em que restringe o uso da liacutengua

[] a avaliaccedilatildeo dos enunciados dos alunos sobre os quais as anotaccedilotildees se referem mostra que na grande maioria dos casos os usos imperfeitos observaacuteveis nas coacutepias dos alunos natildeo constituem em si falhas Logo a escola autoriza apenas uma parte dos usos possiacuteveis A implementaccedilatildeo de noccedilotildees de gramaacutetica em uma praacutetica a avaliaccedilatildeo da escrita escolar conduz agrave constituiccedilatildeo de um padratildeo e nesse caso agrave limitaccedilatildeo dos usos e possiacuteveis efeitos de sentido (ibid p 54)

Essa restriccedilatildeo natildeo diz respeito apenas agraves formas sintaacuteticas mas se estende a todos os usos linguiacutesticos em um estudo sobre o estilo dos alunos Fournier e Allardi (1996 p 38) mostram que ldquoo exerciacutecio de redaccedilatildeo constitui como padratildeo uma categoria de enunciados determinados por criteacuterios mais seletivos do que aceitaacuteveisrdquo Com efeito as produccedilotildees dos alunos sancionadas por foacutermulas como ldquomal escritordquo ldquodesajeitadordquo ou ldquoevitarrdquo satildeo de fato enunciados corretos ao niacutevel linguiacutestico ldquoO padratildeo produzido pela escola surge assim como uma norma reforccedilada em relaccedilatildeo ao que eacute produzido por outras instituiccedilotildeesrdquo (em particular o dicionaacuterio) concluem os autores que acrescentam que nessas condiccedilotildees ldquoo aluno natildeo escreve a sua liacutengua em plena liberdaderdquo (ibidem p 39 ) Uma imagem da liacutengua baseada em padrotildees escolares de correccedilatildeo portanto apresenta problemas que vatildeo aleacutem de simples consideraccedilotildees axioloacutegicas ou esteacuteticas eacute o uso de sua liacutengua pelo aluno que estaacute em causa e ao final sua constituiccedilatildeo como sujeito sua relaccedilatildeo com o mundo e com o outro

A liacutengua invariaacutevelSe a liacutengua-norma eacute uma liacutengua limitada ela eacute tambeacutem fundamentalmente uma liacutengua

invariaacutevel uma ldquomonoliacutenguardquo exclusiva que fala somente de uma uacutenica e boa maneira Essa evidecircncia aparentemente simples eacute de fato como podemos observar problemaacutetica nos aspectos do ensino do francecircs na escola

A escrita a unicidade impliacutecita do modeloA norma escolar impotildee nos trabalhos escritos dos alunos particularmente na composiccedilatildeo

francesa do ensino fundamental uma maneira de escrita uacutenica um conjunto de estilos prototiacutepicos o que implica a rejeiccedilatildeo de outras formas de escrita Ateacute o momento nada que

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natildeo possa se justificar em especial pela necessidade de pedir emprestado para produzir um objeto normatizado no campo escolar (em outros tempos falariacuteamos da formaccedilatildeo discursiva) ou seja a composiccedilatildeo um estilo adequado a esse objeto Todavia a presenccedila dessa norma uacutenica coloca dois problemas importantes em questatildeo analisados por Veck (1996) em seu trabalho sobre as anotaccedilotildees de coacutepias dos alunos Em primeiro lugar segundo o autor a imposiccedilatildeo de um protoacutetipo estiliacutestico uacutenico da composiccedilatildeo parece arbitraacuterio em relaccedilatildeo agrave praacutetica dos alunos apoacutes ter identificado os estilos proibidos ele observa que

[] todas as maneiras de escrita rejeitadas pelo francecircs escolar natildeo satildeo descritas e nem listadas nos manuais os estilos jornaliacutesticos ou ldquoliteraacuteriosrdquo ou ldquocientiacuteficosrdquo satildeo reconhecidos intuitivamente pelo professor mas natildeo satildeo treinados pelos alunos para os distinguir nem para os praticar como conhecimento de causa Eacute porque se trata de uma questatildeo de praacutetica que se coloca a partir da observaccedilatildeo dessas anotaccedilotildees Eacute possiacutevel aprender o estilo dissertativo sem o situar em relaccedilatildeo a outros (VECK 1996 p 46)

Essa situaccedilatildeo natildeo realizada representa para ele um conjunto de bloqueios na evoluccedilatildeo da disciplina ldquoEacute por uma abordagem complexa discursiva realizada tanto por um plano reflexivo quanto para praacuteticas diversificadas que a disciplina poderia sem duacutevidas escapar da acusaccedilatildeo frequente promovida pelo encontro de atividades limitadas e esclerosantesrdquo (ibid p 46)

O oral clareza e distinccedilatildeoAs mesmas exclusotildees se produzem em relaccedilatildeo agraves produccedilotildees orais dos alunos Tomar a

oralidade e a diversidade dos usos eacute de certo modo uma atividade presente nas Instruccedilotildees oficiais recentes contudo a diversidade de usos eacute ainda considerada sobre o acircngulo de niacuteveis de liacutengua e de sua ldquomeacutetrica124rdquo e a norma escolar continua sendo a uacutenica jaacute que se trata para os alunos como um produto de uma fala ldquoaudiacutevel clara ordenada e regularrdquo (MEN 1997 p 8) Ou como afirma E Nonnon a oralidade natildeo eacute nem invariaacutevel nem linear ldquoporque trata de uma organizaccedilatildeo que se elabora passo a passo por aproximaccedilotildees na atividade produzida pela fala no qual noacutes nos corrigimos por ajustes sucessivos e regulamos por modalizaccedilotildees ou reajustes retrospectivos levando em consideraccedilatildeo a participaccedilatildeo de interlocutores para construir um espaccedilo de compreensatildeo comum Essa emergecircncia de significaccedilotildees na atividade conduzida pela enunciaccedilatildeo essa temporalidade sempre prospectiva e retrospectiva de ajustes para outras formas entram em conflito com a linearidade da linguagem em que vai e vem essa repeticcedilatildeo e esses curtos-circuitos que caracterizam a fala espontacircneardquo (NONNON 1996 p 59) Ela acrescenta que em tudo isso haacute dificilmente sentidos do falar da oralidade ao singular (natildeo mais que na escrita) porque ldquonatildeo haacute muacuteltiplas formas de atividade oralrdquo (ibid p 59) ela precisa que essas formas satildeo as vezes proacuteximas de certas atividades escritas que de forma contraacuteria podem apresentar caracteriacutesticas do discurso oral

124 ldquoEssa situaccedilatildeo (oral) qualquer que seja impotildee a cada vez suas proacuteprias normas e implica assim como consequecircncia uma meacutetrica progressiva de niacuteveis da liacutengua As variedades do francecircs mostram que existem diversos lsquobons usosrsquo que convivem e dominam os coacutedigos para participar plenamente da vida socialrdquo (MEN 1997 p 8)

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As variaccedilotildees da liacutengua o caso dos regionalismosldquoFalar a liacutengua do outro de forma livrerdquo como afirmam os escritores Fournier e Allardi eacute para o

aluno ser assegurado de natildeo incorrer em sanccedilotildees (no seio riacutegido da rejeiccedilatildeo natildeo explicitamente justificada) quando ele se inscreve nos usos da liacutengua que natildeo correspondem agrave norma escolar pois elas constituem variaccedilotildees em relaccedilatildeo aos usos legiacutetimos no exterior seria dessa forma promover uma sanccedilatildeo no tema e sobretudo nas operaccedilotildees realizadas para resolver de maneira individual os problemas linguiacutesticos Os trabalhos dos sociolinguistas mostram que dessa maneira eacute principalmente a concepccedilatildeo ldquomonolinguiacutesticardquo invariaacutevel que domina o lado dos professores e da instituiccedilatildeo e que as variaccedilotildees regionais satildeo insuficientemente consideradas porque satildeo desconhecidas Blanchet mostra por exemplo por meio de suas pesquisas sobre os documentos oficiais os manuais escolares e as representaccedilotildees de professores que ldquoa educaccedilatildeo fica majoritariamente normativa (um uacutenico coacutedigo) agraves vezes plurinormativa (vaacuterios coacutedigos) longe de proposiccedilotildees plurinormalistas (usos de vaacuterios coacutedigos) resultado do estudo cientiacutefico dos fatos linguageirosrdquo (FOURNIER ALLARDI 1995 p 49) Essa importante imagem de uma liacutengua invariaacutevel tem por ela mesma graves consequecircncias ldquoeacute uma distorccedilatildeo grave da educaccedilatildeo francesa tanto em relaccedilatildeo ao plano de conteuacutedos errocircneos quanto para a ideologia da exclusatildeo que ele instiga125rdquo (ibid p 49)

A liacutengua-silecircncio

O ldquodiaacutelogo magistralrdquo

Essa expressatildeo aplicada no padratildeo da reparticcedilatildeo da fala em aula por Daunay Marguet e Sauvage (1996 p 102) designa um tipo de troca em curso no qual ldquoa fala do aluno eacute essencialmente a resposta de solicitaccedilotildeesrdquo e tambeacutem satildeo ldquoas uacutenicas que alguns alunos sabem compreender sobre o seu localrdquo Ou seja nessa ldquocomunicaccedilatildeo desigualrdquo os outros permanecem em silecircncio Esse silecircncio dos alunos (trata-se do silecircncio que os impede de falar e natildeo de um silecircncio positivo escolhido pelo escutar e pela troca por exemplo) eacute tambeacutem o indiacutecio de uma imagem da liacutengua Para esses alunos a liacutengua eacute uma liacutengua-silecircncio e eacute composta pela constituiccedilatildeo do tema no campo escolar assim como a noccedilatildeo de aprendizagem na escola que se encontra afetada Eacute um conjunto de diversos professores colocando em discussatildeo dispositivos que lhes permitem passar do diaacutelogo magistral ao diaacutelogo mais curto se o modo da didaacutetica da oralidade eacute de fato largamente aberto o que constata que ldquoo problema das crianccedilas silenciosasrdquo eacute sempre aquele que os professores relevam majoritariamente quando os interroga sobre suas praacuteticas da oralidade (LE CUNFF 1994 p 21 sobre o primaacuterio)

O risco da liacutenguaEssa imagem da liacutengua em que os alunos mergulham representa um silecircncio que eacute bem

descrito por M Rispail (1995) isto eacute que coleta junto dos alunos informaccedilotildees mostrando

125 Para um tratamento mais aprofundado sobre essa questatildeo e para compreender como satildeo constituiacutedas na Franccedila as ldquoideologias diglossicasrdquo (diglossia) consulte Boyer (1990)

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que a imagem da liacutengua-silecircncio eacute parcialmente uma produccedilatildeo de representaccedilotildees nas quais falamos mais alto em particular a liacutengua-norma e a liacutengua invariaacutevel eles dizem por exemplo sobre a impossibilidade de produzir uma fala natildeo preparada e a oralidade descrita no IO do coleacutegio eacute a fala invariavelmente ldquoaudiacutevel clara ordenada regularrdquo que exclui o que D Bucheton (1996 p 6) chama de ldquorascunhos verbaisrdquo eles exprimem tambeacutem o medo da sanccedilatildeo dos professores e dos colegas de sala o medo de natildeo impor a ldquoboa falardquo o que eacute adequado ao campo escolar Eacute preciso para prolongar essa exploraccedilatildeo poder mesurar o degrau da violecircncia desse silecircncio dos alunos violecircncia dirigida contra a instituiccedilatildeo e seus representantes o silecircncio dos alunos pode tambeacutem constituir uma reversatildeo de valores da instituiccedilatildeo escolar lugar da ldquomeacutetrica da liacutenguardquo por excelecircncia Eacute preciso tambeacutem poder compreender o que diz a ldquofala sufocadardquo do sujeito silencioso Frequentemente colocado sobre a conta das famosas lacunas e dificuldades acumuladas ao longo do curso escolar o silecircncio sempre se constitui todavia como um discurso sobre o modo em que o sujeito institui sua autonomia em relaccedilatildeo agrave outra parente colega de classe ou professor Entretanto essa abordagem supotildee o inverso ao sujeito e natildeo como uma ferramenta exterior em que eacute preciso adquirir uma ilusatildeo sobre a ldquomeacutetricardquo

Funcionalidade das imagens da liacutenguaLiacutengua-mundo liacutengua-norma liacutengua invariaacutevel e liacutengua-silecircncio satildeo imagens de liacutengua

dominantes em que noacutes natildeo podemos nos contentar de fazer um uacutenico objeto de contestaccedilatildeo ou um uso simplesmente explicativo Se sua identificaccedilatildeo permite explicar certos passos linguiacutesticos dos alunos e dos professores satildeo levadas em consideraccedilatildeo suas ldquofunccedilotildeesrdquo no campo escolar que promove uma verdadeira reflexatildeo sobre a liacutengua Funccedilatildeo econocircmica da imagem da liacutengua-mundo em que a conservaccedilatildeo salva os custos e em especial o que eacute uma verdadeira questatildeo sobre a reflexividade da linguagem e das modificaccedilotildees que ela implica na abordagem de textos literaacuterios sobretudo funccedilatildeo unificadora tambeacutem porque a representaccedilatildeo da liacutengua como espelho do mundo aparece na doxa da linguiacutestica espontacircnea que une um conjunto e usuaacuterios de uma liacutengua Funccedilatildeo ideoloacutegica das imagens da liacutengua-norma e da liacutengua invariaacutevel de muitas maneiras interdependentes impor o aspecto polido da liacutengua eacute apagaacute-la fazendo com que a instituiccedilatildeo corra o risco de todas as grosseiras Enfim funccedilatildeo de defesa da liacutengua-silecircncio defesa de um sujeito em que o relatoacuterio doloroso em relaccedilatildeo agrave liacutengua diz com abundacircncia a dificuldade de ldquotomar um lugarrdquo

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AS VOZES DO SENSO COMUM NOS DISCURSOS SOBRE A ESCOLA126

Senso comum ldquoManeira de julgar de agir comum a todos os homens (que equivale ao bom senso)rdquo A definiccedilatildeo do Petit Robert eacute uma definiccedilatildeo de senso comum (doravante SC) uma vez que o dicionaacuterio de liacutengua eacute o lugar de registro dos sentidos comumente aceitos por uma sociedade num dado momento de sua histoacuteria Ela eacute circular (comum) analoacutegica (que equivale ao bom senso) extensiva (ausecircncia de estabelecimento de criteacuterios) e perceptivo-comportamental (julgar e agir) Trata-se de uma primeira aproximaccedilatildeo possiacutevel da noccedilatildeo que completaremos ao integrar a dimensatildeo semacircntica do termo senso o SC teraacute para noacutes uma dupla dimensatildeo linguageira e perceptiva

O SC eacute o que podemos chamar de uma noccedilatildeo vaga que escapa agrave verificaccedilatildeo pelo verdadeiro e falso porque apresenta diversos graus de verdade a categoria ldquoSCrdquo integra mais ou menos certos elementos segundo a escala de apreciaccedilatildeo dos locutores sendo que esta uacuteltima se baseia na escala do que eacute comum ou natildeo Por exemplo determinado proveacuterbio bem naturalizado nos usos caberaacute plenamente na categoria enquanto determinada representaccedilatildeo de uma profissatildeo ou de uma nacionalidade seraacute sentida como mais ou menos partilhada Isso ocorre pois o SC eacute tambeacutem uma noccedilatildeo silenciosa fundada sobre o compartilhamento de referecircncias e conveniecircncias no momento seraacute definido de maneira heuriacutestica como um conjunto de percepccedilotildees e produccedilotildees verbais marcadas pelos traccedilos coletivo estabilizado aceito e silencioso

Esse acordo de ldquotodos os homensrdquo como diz o Petit Robert funda a nosso ver a construccedilatildeo e a circulaccedilatildeo do sentido em discurso eacute a condiccedilatildeo de sua eficaacutecia e mesmo de sua existecircncia Eacute como tal que gostariacuteamos de explorar aqui seu funcionamento depois de ter situado o SC no largo paradigma das noccedilotildees que nomeiam as partilhas silenciosas explicaremos por que ele nos parece um conceito central e operacional em anaacutelise do discurso aplicando-o num corpus de ensaios para o grande puacuteblico sobre a escola

1 Pequeno percurso do SC e das noccedilotildees vizinhas

11 Os dois paradigmas

Os fenocircmenos dotados dos traccedilos propostos acima podem ser classificados em dois paradigmas

126 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A Les voix du sens commun dans les discours sur lrsquoeacutecole Pratiques 117-118 Metz CRESEF p 29-50 2003 Traduccedilatildeo de Mariana Luz Pessoa de Barros (UFSCar) e Tamires Bonani Conti (UFSCarFAPESP) Este artigo adota as retificaccedilotildees ortograacuteficas propostas pelo Conselho Superior da liacutengua francesa (JO 06121990) inclusive nas citaccedilotildees

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111 O paradigma linguageiro

Reuacutene produccedilotildees verbais como o clichecirc a ideia preconcebida o chavatildeo o lugar-comum o estereoacutetipo o toacutepos (identificaacutevel no plano do enunciado) a forma fixa o proveacuterbio a liacutengua de madeira a ldquofrase feitardquo (identificaacutevel no plano enunciativo)127

Todas essas manifestaccedilotildees estatildeo assentadas numa estabilizaccedilatildeo linguageira mais ou menos completa que permite uma coconstruccedilatildeo eficaz do sentido e uma circulaccedilatildeo faacutecil das produccedilotildees discursivas Natildeo satildeo essas as produccedilotildees que nos interessam aqui a natildeo ser por formas definitivamente estabilizadas e registradas como proveacuterbios o estabelecimento dos criteacuterios de identificaccedilatildeo eacute sempre forccedilado pois as formas fixas o satildeo relativamente agraves eacutepocas aos corpora agraves comunidades ideoloacutegicas culturais Ao localizar os clichecircs os lugares-comuns etc trabalhamos muitas vezes com o desconhecido dessas produccedilotildees e de seus produtores conforme o que eacute determinado pelos referenciais proacuteprios ao pesquisador De fato a forma fixa recortada na mateacuteria do discurso natildeo diz nada sobre seus traccedilos de SC Preferimos ouvir o que os proacuteprios discursos dizem sobre sua relaccedilatildeo com o SC e ver como os locutores constroem sua relaccedilatildeo com o silecircncio das partilhas semacircnticas

112 O paradigma perceptivo-cognitivo

Ao mesmo tempo perceptivo (representaccedilatildeo pelo espiacuterito de objetos exteriores) e cognitivo (construccedilatildeo das crenccedilas e aquisiccedilotildees do saber) esse paradigma engloba numerosas noccedilotildees frequentemente imprecisas algumas vezes concorrentes e variadas quanto a suas origens disciplinares Em suma um labirinto terminoloacutegico e conceitual atraveacutes do qual procuraremos traccedilar uma trajetoacuteria do SC a partir de trecircs espaccedilos disciplinares

A filosofiaA filosofia fala de doxa ou de opiniatildeo comum (CAUQUELIN 1999) de SC (uma ceacutelebre

controveacutersia opotildee Moore e Wittgenstein sobre esse ponto) de crenccedila (JACQUES 1979 DENNETT 1990) de prejulgamento (DASCAL 1999) Detenhamo-nos por um instante sobre as origens filosoacuteficas da doxa e do senso comum noccedilotildees salientes na disciplina Doxa palavra grega eacute estabelecida como noccedilatildeo por Platatildeo particularmente em A Repuacuteblica Existe uma excelente arqueologia do termo e da noccedilatildeo em Cauquelin (1999) A autora lembra a composiccedilatildeo das duas ldquotriacuteadesrdquo platocircnicas

- a triacuteade superior do Belo (fundando a esteacutetica) do Bem (fundando a eacutetica) e do Verdadeiro (fundando a loacutegica) formulada pelo discurso filosoacutefico o Logos discurso unitaacuterio dos princiacutepios que se desdobram no domiacutenio da teoria lugar da permanecircncia das Ideias

- a triacuteade inferior da Tekhnegrave (a teacutecnica ou seja o uacutetil e agradaacutevel da arte) a Doxa (conjunto de ldquoregras ou receitas para um comportamento eficaz que possa ser conveniente agrave maioriardquo p 28) e a Verossimilhanccedila (resultante da dispersatildeo do Verdadeiro em verdades particulares e contingentes) Esse ldquotrio enganador que corresponde ao trio sublimerdquo (p 28) coloca-nos no

127 A lista eacute aberta Os trabalhos abundam nesse domiacutenio por exemplo Amossy (1991) Amossy e Herschberg-Pierrot (1997) Dascal (1999) Goyet (1996) Perrin-Naffakh (1985) Plantin (1993) e Schapira (1999)

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domiacutenio da praacutetica da accedilatildeo e da variaccedilatildeo ele eacute formulado pelo discurso doacutexico a partir do nome de um dos trecircs elementos

Eacute este o primeiro traccedilo importante da doxa eacute tanto a forma degradada do Bem dentro da ldquotriacuteade inferiorrdquo quanto o regime de fala apropriado a essa triacuteade Nesse sentido a sofiacutestica eacute uma linguagem doacutexica pois o sofista eacute para Platatildeo um teacutecnico da palavra Isso significa que a ambiguidade pesa sobre a noccedilatildeo desde suas origens entre regras de comportamento e atitudes linguageiras

A partir daiacute eacute tecida uma tradiccedilatildeo filosoacutefica um pouco subterracircnea constituiacuteda explica Cauquelin (que aliaacutes assimila senso comum e doxa) por ldquotodos esses que sentiram que alguma coisa acontecia do lado do SC da fala ordinaacuteria ou da argumentaccedilatildeo baseada em hipoacuteteses inverificaacuteveisrdquo (p 34) Antifonte Goacutergias Filoacutestrato Quintiliano E mais perto de noacutes Nietzsche Wittgenstei os filoacutesofos da linguagem os autores da Nova Retoacuterica os pragmaticistas os socioacutelogos do cotidiano os epistemoacutelogos

O SC aparece em diferentes contextos filosoacuteficos

G-Eacute Sarfati em seu Preacutecis de pragmatique (2000a cap 6 ldquoLrsquoideacutee drsquoune pragmatique des normesrdquo) lembra que o senso comum eacute a traduccedilatildeo de koinegrave aesthegravesis estabelecido em Da alma por Aristoacuteteles como uma ldquofaculdade [que] permite operar uma siacutentese entre os perceptos dos cinco sentidosrdquo (p 101) A partir daiacute G-Eacute Sarfati distingue ldquoduas filiaccedilotildees de uma epistemologia do conceito de senso comumrdquo (p 101) uma que a toma por uma ldquoracionalidade comumrdquo e a outra que a leva para o lado da eficaacutecia das crenccedilas e da constituiccedilatildeo das opiniotildees (problema da ideologia) Eacute sobre a primeira filiaccedilatildeo que nos debruccedilaremos aqui a que constroacutei o SC como uma ldquoracionalidade comum antes de mais nada organizadora dos dados da percepccedilatildeordquo (p 100) Ela estabelece uma teoria do conhecimento Podemos dar como exemplo a controveacutersia MooreWittgenstein A posiccedilatildeo de G E Moore sobre os traccedilos daquilo que ele chama de ldquoa concepccedilatildeo do mundo oferecida pelo senso comumrdquo pode se resumir a essa declaraccedilatildeo128

[] se sabemos que satildeo caracteriacutesticas da ldquoconcepccedilatildeo de mundo oferecida pelo senso comumrdquo logo elas satildeo verdadeiras eacute contraditoacuterio defender que sabemos que satildeo traccedilos da ldquoconcepccedilatildeo de mundo oferecida pelo senso comumrdquo e que no entanto natildeo satildeo verdadeiras (MOORE 1985 [1925] p 146 grifos do autor)

A partir de sua criacutetica vigorosa da ldquocompulsatildeo filosoacuteficardquo (i e a ilusatildeo da posiccedilatildeo de destaque do filoacutesofo a partir da qual ele crecirc poder enunciar a verdade) L Wittgenstein critica G E Moore por dar agraves verdades do SC um valor absoluto agrave maneira da triacuteade platocircnica superior podemos dizer L Wittgenstein encontra-se de fato ao lado de um relativismo integral (para ele a dimensatildeo pronominal da verdade eacute o Noacutes) e as evidecircncias do SC estatildeo na praacutetica da linguagem no fluxo da vida Ele acusa G E Moore (para quem a dimensatildeo pronominal da verdade eacute o Eu) de realismo dogmaacutetico e metafiacutesico

128 Exceto quando mencionado todos os itaacutelicos nas citaccedilotildees foram feitos por noacutes

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A filosofia das ciecircnciasO SC eacute um objeto de reflexatildeo importante Para Popper (1972) as opiniotildees e crenccedilas

comumente aceitas constituem o ponto de partida universal do saber mesmo que as teorias propostas devam ser submetidas agrave criacutetica Os filoacutesofos das ciecircncias datildeo uma atenccedilatildeo especial agrave linguagem desenvolvem a ideia de que a experiecircncia do SC expressa na linguagem cotidiana deve servir de base para o discurso cientiacutefico teoacuterico de fato o valor de verdade dos enunciados da linguagem cotidiana eacute superior (em seu reconhecimento) agravequele dos enunciados da linguagem cientiacutefica (SCHUTZ 1987) Encontramos mesmo em Nagel (1961) a ideia de que a imprecisatildeo da liacutengua do SC permite a perduraccedilatildeo das crenccedilas (por causa ou graccedilas agrave dificuldade do controle experimental) enquanto o destino das teorias eacute morrer precocemente por falta de imprecisatildeo podemos dizer

As ciecircncias da linguagemAs ciecircncias da linguagem constroem outras abordagens de acordo com as subdisciplinas

do campo

ndash Na anaacutelise do discurso a noccedilatildeo de preacute-construiacutedo extraiacuteda de Henry (1974 1975) por Pecirccheux e Fuchs (1975) eacute o ponto de partida da problemaacutetica do interdiscurso

ndash Do lado da semacircntica integrada eacute traccedilada uma linha de pesquisa que trata da estereotipia na liacutengua teoria dos topoi (ASCOMBRE DUCROT 1983 ASCOMBRE 1995) teoria dos estereoacutetipos (ASCOMBRE 2001) teoria dos blocos semacircnticos e do paradoxo (CAREL DUCROT 1999)

As referecircncias anteriores mostram que nas ciecircncias da linguagem a questatildeo do SC eacute posta nos domiacutenios que integram segundo graus variados diversos paracircmetros extralinguiacutesticos (produccedilatildeo social cultural recepccedilatildeo etc)129 No entanto o SC como tal e com esse nome constitui raramente um objeto expliacutecito de anaacutelise Podemos citar os trabalhos de Sarfati de Larsson e nossa proacutepria abordagem que seraacute desenvolvida em 2

Sarfati trabalhando numa teoria das relaccedilotildees entre texto discurso e doxa propotildee uma ldquopragmaacutetica das normasrdquo (2002a) por meio de uma teoria linguiacutestica da doxa (2002b) Considerando o SC como um ldquoregulador ateacute mesmo um meacutedium semacircntico-pragmaacuteticordquo (2002b p 102) ele o define como ldquoo conjunto das representaccedilotildees simboacutelicas distintivas de uma formaccedilatildeo socialrdquo dito de outro modo uma ldquotoacutepica socialrdquo (p 103) Propotildee uma abordagem em quatro dimensotildees os dispositivos institucionais (dimensatildeo 1) vinculados a textos canocircnicos (dimensatildeo 2) determinam a toacutepica de uma sociedade (o SC dimensatildeo 3) que eacute composta por sua vez por uma ou vaacuterias doxas estruturadas em topoi ou ldquodispositivos de opiniatildeordquo (dimensatildeo 4) O postulado de partida dessa teorizaccedilatildeo eacute de que o sentido (objeto da semacircntica e da pragmaacutetica) se constitui a partir do SC (objeto de uma teoria da percepccedilatildeo)

Numa orientaccedilatildeo mais semacircntica Larsson (1997) traz a questatildeo do sentido para o centro do debate entre relativistas e objetivistas Para ele o sentido eacute equivalente ao SC que ele nomeia

129 Agrave exceccedilatildeo daqueles que remetem agrave semacircntica integrada

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ldquobomrdquo senso comum livrando-o de seus ouropeis pejorativos Propotildee uma ldquoconcepccedilatildeo do sentido como cogniccedilatildeo intersubjetivardquo (LARSSON 1997 p 287) que implica uma epistemologia da relaccedilatildeo

Da concepccedilatildeo do sentido como propriedade emergente tanto intersubjetiva quanto puacuteblica decorre entatildeo uma epistemologia que natildeo eacute nem aquela da introspecccedilatildeo nem aquela da observaccedilatildeo exterior A epistemologia do sentido podemos afirmar natildeo eacute nem uma epistemologia do eu nem uma epistemologia do eleela ou eleselas Eacute uma epistemologia do noacutes ou seja uma epistemologia do conhecimento interacional (Mead) da observaccedilatildeo participante (Boas Jakobson Bakhtin) da experimentaccedilatildeo dialoacutegica (Vygotsky Harreacute amp Gillet) e da pragmaacutetica transcendental (Appel Habermas) (LARSSON 1997 p 287-288)

2 O SC um conceito para a anaacutelise do discursoDe nossa parte frequentar os discursos de instituiccedilotildees (exeacutercito 2000 escola 2002

literatura 2001 2003) levou-nos a propor uma concepccedilatildeo de SC deliberadamente assentada em suas duas dimensotildees semacircntica e perceptivo-cognitiva a dimensatildeo semacircntica eacute a da coconstruccedilatildeo do sentido em discurso fundada num acordo silencioso cujo funcionamento procuramos entender a partir da articulaccedilatildeo da linguagem e da preacute-linguagem a dimensatildeo perceptiva eacute a dos quadros de crenccedila e de saber que configuram e prefiguram a experiecircncia humana e que informam profundamente os discursos dos locutores

21 Definiccedilatildeo

Definimos o SC como um conjunto de quadros de saberes e de crenccedilas que fornecem instruccedilotildees para a produccedilatildeo e a interpretaccedilatildeo do sentido em discurso Esses quadros possuem seis caracteriacutesticas

211 Compartilhamento coletivo e apropriaccedilatildeo individual

Os saberes e as crenccedilas do SC pertencem tanto agrave coletividade quanto ao indiviacuteduo Todo locutor pode se apropriar num Eu do sentido admitido na comunidade Em sua ceacutelebre ldquoApologie du sens communrdquo Moore (1925) explica que as verdades afirmadas em nome da ldquoconcepccedilatildeo do mundo oferecida pelo senso comumrdquo (por exemplo eu nasci um dia) podem ser apropriadas por diferentes locutores sem que sejam fixadas numa forma particular de enunciado pois satildeo formuladas em formas que ele chama de homoloacutegicas

212 Transmissibilidade

Essa propriedade eacute uma condiccedilatildeo de possibilidade da precedente para que esse vai e vem entre coletivo e individual possa existir eacute preciso haver possibilidades de transmissatildeo universal de saberes e crenccedilas Essa aptidatildeo para a transmissatildeo caracteriacutestica do SC eacute chamada de comunicabilidade por Kant que aliaacutes em Criacutetica da faculdade do juiacutezo faz dela uma prova da existecircncia do SC

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Conhecimentos e juiacutezos juntamente com a convicccedilatildeo que os acompanha tecircm que poder comunicar-se universalmente pois do contraacuterio eles natildeo alcanccedilariam nenhuma concordacircncia com o objeto [] Se poreacutem conhecimentos devem poder comunicar-se entatildeo tambeacutem o estado de acircnimo isto eacute a disposiccedilatildeo das faculdades de conhecimento para um conhecimento em geral [] porque sem esta condiccedilatildeo subjetiva do conhecer o conhecimento como efeito natildeo poderia surgir [] Ora visto que esta proacutepria disposiccedilatildeo tem que poder comunicar-se universalmente e por conseguinte tambeacutem o sentimento da mesma (em uma representaccedilatildeo dada) mas visto que a comunicabilidade universal de um sentimento pressupotildee um sentido comum assim este poderaacute ser admitido com razatildeo e na verdade sem neste caso se apoiar em observaccedilotildees psicoloacutegicas mas como a condiccedilatildeo necessaacuteria da comunicabilidade universal de nosso conhecimento a qual tem que ser pressuposta em toda loacutegica e em todo princiacutepio dos conhecimentos que natildeo seja ceacutetico (KANT 1993 [1790] sect 21 ldquoSe se pode com razatildeo pressupor um sentido comumrdquo)130

213 Virtualidade

Trataremos da virtualidade para enfatizar a dimensatildeo natildeo ou preacute-linguageira (de todo modo silenciosa isto eacute sem palavras expliacutecitas) do SC Se aprofundamos essa ideia do acordo impliacutecito sobre o sentido dos enunciados futuros e portanto sobre os conteuacutedos informativos preacutevios (crenccedilas e saberes) deparamo-nos com o espinhoso problema da natureza das proposiccedilotildees Dennett trabalhando sobre as crenccedilas em La strateacutegie de lrsquointerpregravete fornece uma boa siacutentese das diferentes concepccedilotildees de proposiccedilotildees

Existem de fato trecircs tipos de definiccedilotildees gerais de proposiccedilotildees na literatura

(1) As proposiccedilotildees satildeo entidades comparaacuteveis a sentenccedilas que possuem partes segundo certa sintaxe []

(2) As proposiccedilotildees satildeo conjuntos de mundos possiacuteveis Duas sentenccedilas exprimem a mesma proposiccedilatildeo somente se forem verdadeiras exatamente nos mesmos conjuntos de mundos possiacuteveis []

(3) As proposiccedilotildees satildeo como coleccedilotildees ou arranjos de objetos ou de propriedades no mundo (DENNET 1990 p 161-162)

Ele considera que todas essas posiccedilotildees apresentam o mesmo problema ldquoeacute esse fundo de intuiccedilatildeo que existe em relaccedilatildeo agrave possibilidade de uma apreensatildeo das proposiccedilotildeesrdquo (Ibid p 270) Sua abordagem eacute inteiramente diferente

Desde que reconheccedilamos que falar de proposiccedilotildees eacute apenas um colchatildeo heuriacutestico (Dennett 1969 p 80) uma aproximaccedilatildeo uacutetil (ainda que agraves vezes infiel) que eacute sistematicamente impossiacutevel tornar precisa podemos nos livrar daquilo que eacute essencialmente falso que

130 KANT Immanuel Criacutetica da Faculdade do Juiacutezo Traduccedilatildeo de Valeacuterio Rohden e Antoacutenio Marques Rio de Janeiro Editora Forense Universitaacuteria 1993

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consiste em dizer que toda informaccedilatildeo pode ser modelada a partir do fato de dizer ndash enviar um dictum de A a B [] (Ibid p 270 grifos do autor)

Isso o leva a formular uma definiccedilatildeo analoacutegica da proposiccedilatildeo que se adeacutequa bem agrave vagueza da noccedilatildeo de SC ldquoAs proposiccedilotildees entendidas como formas de ldquomedirrdquo a informaccedilatildeo semacircntica revelam-se mais parecidas com doacutelares que com nuacutemeros [] Natildeo haacute unidades reais naturais universais nem do valor econocircmico nem da informaccedilatildeo semacircntica (Ibid p 271 grifos do autor)

Diziacuteamos na introduccedilatildeo que a categoria ldquoSCrdquo integrava mais ou menos certos elementos a partir de uma escala de apreciaccedilatildeo relativa Os conteuacutedos proposicionais de SC tecircm a nosso ver as mesmas caracteriacutesticas que essa moeda da qual fala Dennett definida por sua virtualidade A questatildeo ldquoEsse enunciado pertence ao SCrdquo pode na verdade receber a mesma resposta que aquela dada por Dennet ao final de sua demonstraccedilatildeo ldquoO que vale uma vida de cabra Ou ainda onde e quandordquo (Ibid p 273)

214 Organizaccedilatildeo experiencial

Os saberes e crenccedilas do SC organizam a percepccedilatildeo individual do mundo e a construccedilatildeo dos conhecimentos Estabelecem a ligaccedilatildeo entre o interior e o exterior dado que configuram a percepccedilatildeo e o conhecimento do mundo para o sujeito Como aponta Goodman (1992 p 32) os mundos satildeo feitos tanto quanto encontrados ldquoSe [] os mundos satildeo feitos tanto quanto encontrados entatildeo conhecer eacute tanto fazer quanto dar conta [] Descobrir as leis implica redigi-las Reconhecer padrotildees consiste sobretudo em inventaacute-los e aplicaacute-los Compreensatildeo e criaccedilatildeo caminham juntasrdquo

A hipoacutetese do SC nos leva a adotar a posiccedilatildeo de um construtivismo moderado entre relativismo e objetivismo

215 Aproximaccedilatildeo

As crenccedilas e saberes de SC natildeo se submetem ao criteacuterio de verdade loacutegica agrave verificaccedilatildeo por demonstraccedilatildeo Remetem a uma verdade aproximativa Sua erradicaccedilatildeo que vem de uma longa tradiccedilatildeo na Franccedila das instruccedilotildees platocircnicas (Logos contra Doxa) ao espiacuterito do Iluminismo (luta contra os preconceitos) passando pela taacutebula rasa cartesiana pode ser equiparada agrave ldquoilusatildeo cartesianardquo como assinala Dascal (1999 p 115)

O preconceito sobre o preconceito impliacutecito nessa posiccedilatildeo eacute a crenccedila de que eacute possiacutevel com a ajuda de um meacutetodo satisfatoacuterio eliminar completamente os preconceitos pensar e argumentar a partir de digamos assim um grau zero de preacute-julgamentos e de preconceitos

216 Discursividade

O SC pode ser manifestado em discurso por meio de marcas epimetalinguiacutesticas e linguiacutesticas De fato os sujeitos constroem uma relaccedilatildeo com o SC em seus discursos com modalidades diferentes segundo as formaccedilotildees discursivas Nossa concepccedilatildeo de SC reencontra

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aqui parcialmente aquela de preacute-construiacutedo noccedilatildeo fundadora da anaacutelise do discurso francesa que Pecirccheux (1971 apud MALDIDIER 1990 p 153) seguindo Henry elaborava no comeccedilo dos anos 70 ldquo[] o ldquosujeito falanterdquo toma posiccedilatildeo em relaccedilatildeo agraves representaccedilotildees das quais eacute suporte sendo que essas representaccedilotildees se encontram realizadas pelo ldquopreacute-construiacutedordquo linguisticamente analisaacutevelrdquo

A noccedilatildeo de preacute-construiacutedo estaacute intimamente articulada a um contexto epistemoloacutegico e poliacutetico especiacutefico (marxismo althusseriano inspiraccedilatildeo lacaniana) mas essa discursividade anterior agrave linguagem essa presenccedila do preacute-linguageiro no linguageiro nos parece uma propriedade partilhada pelo SC tal como o entendemos aqui

22 Manifestaccedilotildees discursivas

2211 A relaccedilatildeo com o SC uma praacutetica discursiva

Nossa questatildeo eacute a da relaccedilatildeo com o SC construiacuteda no discurso Nosso trabalho visa a contribuir com uma teoria da praacutetica discursiva dimensatildeo inserida na origem da anaacutelise do discurso (em particular por Pecirccheux) e relativamente apagada a nosso ver na anaacutelise do discurso atual131

Os discursos de fato constroem o sentido a partir de dados experienciais natildeo linguageiros (costumes haacutebitos crenccedilas quadros perceptivos e cognitivos) Esses dados satildeo taacutecitos eles natildeo precisam ser expliacutecitos e de qualquer forma natildeo estatildeo abertos agrave explicitaccedilatildeo (a possibilidade da explicitaccedilatildeo eacute segundo Dennett o que diferencia o taacutecito do impliacutecito)

Natildeo seraacute portanto o caso de ldquotraduzirrdquo as proposiccedilotildees que constituem os saberes e crenccedilas de SC mesmo a tiacutetulo heuriacutestico O que nos interessa eacute ao contraacuterio seu estado virtual e preacute-linguageiro na medida em que informa os discursos que permanecem prioritariamente nosso objeto Em conformidade com a nossa definiccedilatildeo buscaremos ver como as instruccedilotildees do SC se manifestam discursivamente

222 Os dois SC

Na perspectiva de estudo sobre corpus a noccedilatildeo de SC eacute construiacuteda por dois discursos portanto por duas visotildees diferentes

ndash Discurso 1 o discurso ldquocientiacuteficordquo do pesquisador que adota uma perspectiva funcional visando agrave anaacutelise a partir de um SC1 definido anteriormente no seio de uma elaboraccedilatildeo teoacuterica

ndash Discurso 2 o discurso dos locutores do corpus que se baseiam num SC2 cuja definiccedilatildeo eacute elaborada na praacutetica do discurso

131 A publicaccedilatildeo recente de dois dicionaacuterios de anaacutelise do discurso (DEacuteTRIE et al 2001 MAINGUENEAU CHARAUDEAU 2002) parece-nos o signo cientiacutefico e institucional de um posicionamento atual dos discursivistas no campo da ldquoteoria da teoriardquo

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O fenocircmeno interessante eacute que esse discurso 2 costuma se apresentar (e eacute particularmente o caso dos ensaios para grande puacuteblico sobre a escola escritos majoritariamente por filoacutesofos) com a ldquocientificidaderdquo do discurso 1 Acreditamos que haja duas consequecircncias decorrentes disso

ndash Do ponto de vista metodoloacutegico o risco de confundir os dois discursos eacute grande O trabalho do analista deve entatildeo conservar a profundidade do campo traccedilada pelas duas concepccedilotildees do SC e evitar confundir os dois niacuteveis sob pena de projetar um sobre o outro

ndash Do ponto de vista teoacuterico eacute interessante entender a pretensatildeo cientiacutefica do discurso 2 como a formulaccedilatildeo de uma teoria popular do SC Popular aqui quer dizer ldquoespontacircneardquo no sentido em que falamos de uma linguiacutestica ou de uma fiacutesica ou de uma psicologia popular Se como explicam os filoacutesofos das ciecircncias a experiecircncia do SC eacute o ponto de partida da teoria cientiacutefica entatildeo a teoria popular do SC que os corpora constroem parece-nos um bom ponto de partida para uma teorizaccedilatildeo linguiacutestica do SC

223 Os trecircs patamares de anaacutelise

Propomos uma aproximaccedilatildeo em trecircs niacuteveis (preacute-discursivo metadiscursivo discursivo) fundada na presenccedila de marcas no discurso

ndash Niacutevel preacute-discursivo O SC discursivizado estaacute ancorado no espaccedilo preacute-discursivo dos conhecimentos preacutevios partilhados por uma comunidade discursiva (as ldquoproposiccedilotildeesrdquo)

ndash Niacutevel metadiscursivo Os comentaacuterios dos locutores sobre a natureza de seu discurso (plano autodiscursivo) ou daquele do outro (plano alterdiscursivo) explicitam sua relaccedilatildeo com o SC

ndash Niacutevel discursivo A relaccedilatildeo com o SC se constroacutei a partir de certo nuacutemero de agenciamentos formas do jaacute-laacute convocaccedilatildeo da liacutengua manifestaccedilotildees enunciativas elaboraccedilotildees cognitivo-textuais

3 Os discursos sobre a escolaExploramos aqui uma parte dos ensaios sobre a escola publicados na volta agraves aulas de

1999 Retivemos nove dos trinta publicados a partir de um criteacuterio de representatividade relativa (e muito aproximativa) satildeo os que tiveram a maior repercussatildeo midiaacutetica O quadro dos debates eacute bem conhecido e goza de uma boa permanecircncia desde os anos 70 (reforma Haby) de forma breve a estrutura profunda eacute aquela da disputa entre Antigos e Modernos e as estruturas de superfiacutecie evoluem com as condiccedilotildees histoacutericas e sociais (PAVEAU 1999 2001) Em 1999 assumem a forma de uma oposiccedilatildeo entre ldquoRepublicanosrdquo (defensores da Escola da Repuacuteblica) e ldquoReformadoresrdquo (partidaacuterios de uma evoluccedilatildeo da escola) oposiccedilatildeo formulada pelos ldquoRepublicanosrdquo132 O corpus eacute o seguinte

132 A grande maioria dos ensaios para grande puacuteblico sobre a escola contesta as reformas e as estruturas educacionais atuais Isso indica que a origem da fala puacuteblica sobre a escola eacute no geral protestadora e contestadora Isso significa tambeacutem a nosso ver que o discurso do SC sobre a escola na Franccedila eacute informado por essa criacutetica permanente Com exceccedilatildeo de raras figuras midiaacuteticas como P Meirieu os ldquoReformadoresrdquo produzem preferencialmente obras cientiacuteficas oriundas de trabalhos universitaacuterios de difusatildeo evidentemente menos massiva que os ensaios para o grande puacuteblico

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COUTEL C Que vive lrsquoeacutecole reacutepublicaine Entretien avec P Petit Textuel ldquoConversation pour demainrdquo 120 p

JAFFRO L RAUZY J-B Lrsquoeacutecole deacutesœuvreacutee La nouvelle querelle scolaire Flammarion 269 p

MICHEacuteA J C LrsquoEnseignement de lrsquoignorance et ses conditions modernes Castelnau Climats 144 p

MILNER P A bas les eacutelegraveves Albin Michel 189 p

MOLINIER G La gestion des stocks lyceacuteens Ideacuteologies pratiques scolaires et interdit de penser LrsquoHarmattan 232 p

MOREL G TUAL -LOIZEAU D Horreur peacutedagogique Parole de profs et veacuteriteacute des copies Ramsay 253 p

MORIN E La Tecircte bien faite Repenser la reacuteforme reacuteformer la penseacutee Seuil ldquoLrsquohistoire immeacutediaterdquo 156 p

PENA-RUIZ H LrsquoEacutecole Flammarion ldquoDominosrdquo 128 p

REY M La chute de la maison Ferry Arleacutea 142 p

Pudemos mostrar num outro trabalho sobre o mesmo corpus (2002) que esses discursos construiacuteam uma relaccedilatildeo negativa com o SC escritos majoritariamente por filoacutesofos de tradiccedilatildeo ldquoplatocircnicardquo esses textos ancoram-se no que M Dascal nomeia ldquoilusatildeo cartesianardquo e formulam de maneira redundante uma vontade daquilo que chamamos de ldquolimpeza cognitivardquo fazer taacutebula rasa das verdades aproximativas logicamente falsas expressas de um modo doacutexico para construir o discurso da verdade veiculada pelo logos Essa postura eacute formulada no niacutevel metadiscursivo em particular por caracterizaccedilotildees autodiscursivas (negaccedilatildeo da convocaccedilatildeo do SC e reivindicaccedilatildeo do discurso loacutegico) e alterdiscursivas (acusaccedilatildeo da convocaccedilatildeo do SC no discurso do outro) Haviacuteamos no entanto apontado brevemente que esses discursos natildeo mantinham as posiccedilotildees declaradas pelos metadiscursos os processos de validaccedilatildeo metaenunciativos do SC (expressotildees adverbiais como ldquonaturalmenterdquo ldquoevidentementerdquo etc) e o recurso frequente ao etimologismo mostravam que a legitimidade desses discursos tambeacutem estava fundada na convocaccedilatildeo do SC

31 As formas do jaacute-laacute

O discurso diz o jaacute-laacute exterior ao sujeito sem seu conhecimento declarando-se mestre de seu discurso (em termos althusserianos falariacuteamos do indiviacuteduo interpelado em sujeito) o locutor mascara tudo ao convocar os saberes e crenccedilas do SC Eacute o caso da questatildeo geneacuterica e da negaccedilatildeo natildeomais

311 A questatildeo geneacuterica

A questatildeo geneacuterica que a retoacuterica claacutessica chama de interrogaccedilatildeo oratoacuteria eacute uma forma que registra essa postura dupla do locutor assunccedilatildeo individual e apoio no SC M Ali Bouacha

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formula muito claramente essa posiccedilatildeo na qual podemos reconhecer aliaacutes o discurso de Moore sobre as verdades do SC que podem ser apropriadas por cada um

[] o enunciado geneacuterico acumula essa propriedade dupla e agrave primeira vista contraditoacuteria de expressar um engajamento e de permitir um desengajamento Engajamento pois buscamos impor uma proposiccedilatildeo contra outra proposiccedilatildeo que lhe preexiste de uma forma ou de outra Desengajamento pois agimos como se natildeo enunciaacutessemos nossa opiniatildeo pessoal mas a de todo mundo ou melhor ainda uma verdade fundada num ldquocogitamus racionalrdquo dito de outra maneira no que ldquoobriga a pensar de acordordquo (Bachelard) (ALI BOUACHA 1993 p 285)

As formas da questatildeo geneacuterica satildeo variadas mas todas tecircm em comum o fato de instalarem uma atmosfera de duacutevida a proposiccedilatildeo avanccedilada eacute imediatamente posta em debate em nome da evidecircncia do SC que instrui uma resposta impliacutecita Nos exemplos seguintes a criaccedilatildeo da duacutevida ocorre por meio da negaccedilatildeo do futuro e da negaccedilatildeo da consequecircncia133

Interro-negaccedilatildeo

ndash Cou 40 Informar-se e formar-se satildeo a princiacutepio incompatiacuteveis para ser vocecirc mesmo natildeo seria preciso dar um passo para traacutes e para cima (o que diz a palavra ldquoalunordquo)134

ndash Rey 9 Ele [P Meirieu] natildeo eacute funcionaacuterio O que o libera entatildeo da obrigaccedilatildeo de sigilo

Que+futuro

ndash Jaf 13 Quem acreditaraacute que hoje eacute realmente importante declarar a qual campo pertencemos ao clube dos que tecircm uma visatildeo moderna e ldquoinovadorardquo de escola ou ao sindicato dos corporativistas dos saudosistas e ldquoantiquadosrdquo

ndash Rey 33 Mas quem vai querer se ver reduzido agrave categoria de repetidor natildeo podendo transmitir mais que uma iacutenfima parte de um saber amado de um saber taxado de enciclopedismo e paradoxalmente definido como o inimigo do conhecimento Quem entatildeo vai querer ndash a menos que seja levado a isso pelo medo do desemprego ndash se resignar agrave polivalecircncia Quem entatildeo vai querer submeter-se agrave vigilacircncia dos delegados de classe e ao militarismo da administraccedilatildeo

Consequecircncia negada

ndash Morel 29 Acreditamos que nossos alunos estejam suficientemente armados para praticar a ginaacutestica intelectual dos sofistas

ndash Morel 130 Quem pode ser tatildeo cego a ponto de natildeo ver que a aprendizagem da verbalizaccedilatildeo passa pelo gesto tanto quanto pelo ceacuterebro

133 As referecircncias primeiras letras do nome do autor e paacuteginas (exceto no caso de Morel e Morin)

134 NT O autor retoma a relaccedilatildeo de ldquoeacuteleacuteverdquo traduzido por ldquoalunordquo com ldquoeacuteleverrdquo que pode ser traduzido por ldquoelevarrdquo ldquolevantarrdquo entre outros Natildeo conseguimos manter essa relaccedilatildeo na traduccedilatildeo

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Outras formulaccedilotildees satildeo de ordem leacutexico- ou retoacuterico-sintaacutetica eacute a combinaccedilatildeo da interrogaccedilatildeo com a expressatildeo expliacutecita de uma soluccedilatildeo alternativa impossiacutevel que produz o efeito geneacuterico

ndash Cou 27 De que outra forma explicar essa virada educativa e de exaltaccedilatildeo da juventude que leva agrave mudanccedila do nome do ministeacuterio em 1932 []

ndash Jaf 13 Adotar certa posiccedilatildeo sobre as questotildees de poliacutetica educativa eacute simplesmente escolher entre o coacutedigo Morse e o celular

ndash Rey 32 No entanto esse prolongamento eacute em essecircncia antidemocraacutetico que famiacutelias podem manter seus filhos nos estudos por quatro a cinco anos depois do vestibular

Nesses enunciados a combinaccedilatildeo se faz com o adveacuterbio distintamente a comparaccedilatildeo teacutecnica (coacutedigo Morse e celular) e o emprego de manter conduzido pela asserccedilatildeo precedente sendo que ela mesma se apoia no SC via a expressatildeo em essecircncia

312 A negaccedilatildeo em natildeo mais

A forma natildeo mais por definiccedilatildeo soacute pode ser construiacuteda a partir do caraacuteter partilhado de um enunciado afirmativo anterior Aleacutem disso a natureza da foraclusatildeo inscreve o enunciado na temporalidade o acordo anterior remete ao passado o que explica por que essa estrutura tambeacutem participa de uma estrutura transfraacutestica e polecircmica mais ampla o mito da decadecircncia ou mito do tempo anterior bem explorado por M Angenot por exemplo (1982) e que constitui uma das crenccedilas do SC dos discursos sobre a escola Alguns exemplos

ndash Cou 40 Se a escola natildeo transmite mais a sociedade corre risco de se repetir e de natildeo mais progredir

ndash Jaf 126 Na escola de hoje a maior parte dos aprendizados que passam necessariamente pela repeticcedilatildeo dos mesmos exerciacutecios ou que dependem da memoacuteria natildeo estaacute mais garantida

ndash Morel 127 Natildeo aprender mais nada Piada triste

ndash Pen 83 [] medimos a amplitude de uma renuacutencia assim programada da Escola frente agraves desigualdades sociais que natildeo satildeo mais combatidas []

ndash Rey 33 Agrave escola natildeo se coloca mais o objetivo de enriquecer o humano mas de tornaacute-lo consumiacutevel

32 O apelo agrave liacutengua

O apelo para o SC eacute frequentemente em nosso corpus um apelo para a proacutepria liacutengua que entatildeo aparece como o lugar mais consensual de acordo com o sentido das palavras (geralmente de uma perspectiva nomenclatural) Qualquer modificaccedilatildeo de significantes ou da relaccedilatildeo significante-significado eacute entatildeo considerada como uma mudanccedila da ordem natural

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e oacutebvia do senso ldquooficialmenterdquo comum Essa eacute a ortodoxia do SC que entatildeo serve como um argumento de peso em debates sobre a escola Encontramos vaacuterias manifestaccedilotildees desse apelo agrave ortodoxia da liacutengua aqui vamos lidar com a rejeiccedilatildeo o comentaacuterio lexicoloacutegico e a definiccedilatildeo lexicograacutefica espontacircnea135

321 A rejeiccedilatildeo

Fenocircmeno de natildeo coincidecircncia do discurso consigo mesmo segundo J Authier (1995) a rejeiccedilatildeo de um segmento (na maioria das vezes uma unidade lexical) por meio de aspas ou comentaacuterios como ldquoo que chamamosrdquo ou ldquocomo dizemosrdquo aqui sinaliza uma natildeo coincidecircncia do discurso com uma concepccedilatildeo de discurso ancorada na normatividade do SC o da liacutengua As rejeiccedilotildees do corpus geralmente se relacionam com as palavras atribuiacutedas aos reformadores pedagogia ciecircncias da educaccedilatildeo profissionalizaccedilatildeo formadores Exiladas num alhures ilegiacutetimo do discurso elas satildeo de fato marcadas com um desvio das normas preacute-discursivas compartilhadas e dominantes

Rejeiccedilotildees tipograacuteficas citaccedilotildees

- Cou 8 O que vocecirc precisa saber para ensinar eacute ldquopedagogiardquo e natildeo a mateacuteria que vocecirc estaacute ensinando

- Jaf 23 Natildeo eacute incomum encontrar na abundante literatura das ldquociecircncias da educaccedilatildeordquo essa mesma escansatildeo da histoacuteria de nosso sistema educacional

- Jaf 60 No estado atual das coisas os ldquoformadoresrdquo da IUFM natildeo podem ser professores experientes

- Morel 172 Sem falar na confusatildeo que impera na terminologia [] Entre a identificaccedilatildeo de ldquocapacidadesrdquo que pressupotildeem o domiacutenio de ldquohabilidadesrdquo por sua vez detalhadas em ldquocomponentesrdquo haacute como se confundir

Combinaccedilatildeo de citaccedilotildees + comentaacuterios

- Jaf 45 Se aleacutem disso a formaccedilatildeo contiacutenua que recebem sob a forma de estaacutegios ao longo da carreira eacute mais uma vez consagrada agrave ldquoprofissatildeo docenterdquo como dizemos complacentemente e nunca ao conteuacutedo do conhecimento transmitido entatildeo eles seratildeo sem duacutevida maus professores incapazes de ensinar completamente com clareza e distinccedilatildeo os primeiros elementos

- Jaf 79 O tipo de dissimulaccedilatildeo da dimensatildeo comercial de certos ldquoprodutos culturaisrdquo como satildeo chamados eacute uma das caracteriacutesticas mais surpreendentes de nossos Modernos

135 (9) Natildeo vamos voltar ao etimologismo tratado em Paveau (2002 p 170-172)

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322 O comentaacuterio lexicoloacutegico

Trata-se de enunciados que fazem comentaacuterios criacuteticos sobre os usos lexicais do campo oposto O outro eacute acusado de se utilizar da liacutengua uma liacutengua equivocada como instrumento de dominaccedilatildeo A explicaccedilatildeo do processo eacute clara no seguinte exemplo

- Cou 13 [Pergunta] O que vocecirc chama de ldquoretoacuterica pedagoacutegicardquo [Resposta] Este eacute o conjunto de processos pelos quais os educadores oficiais especialmente Philippe Meirieu conseguem oficializar seu leacutexico e portanto sua visatildeo das instituiccedilotildees de ensino e do homem em geral [] A liacutengua dos pedagogos muitas vezes eacute repetitiva amneacutesica e autoniacutemica (ou seja confundir o nome da coisa e a proacutepria coisa) [] Eacute a essa liacutengua que eacute conveniente resistir Os tempos democraacuteticos tambeacutem satildeo favoraacuteveis a essas linguagens que satildeo consensuais sem explicaccedilatildeo Essa eacute a consequecircncia do igualitarismo um desvio da igualdade As palavras parecem verdadeiras pelo simples fato de serem usadas

Esse tipo de comentaacuterio eacute baseado em uma representaccedilatildeo ideal de liacutengua ou seja uma ldquoboardquo liacutengua liacutengua perfeita que fala a verdade do mundo representaccedilatildeo ideoloacutegica eacute claro agrave qual se apegam outros esquemas representativos

- Cou8 [Prefaacutecio de P Petit] Palavras Seria errado natildeo ter cuidado com o vocabulaacuterio que alguns usam para transmitir seus pontos de vista O dispositivo de linguagem dos atuais renovadores eacute uma maacutequina de guerra contra as escolas seculares e a educaccedilatildeo puacuteblica [] Um sistema no qual ldquoalunosrdquo se transformam em ldquojovensrdquo as ldquoaulasrdquo se transformam em ldquoatividadesrdquo a ldquodisciplina escolarrdquo se transforma em ldquoconhecimentordquo Como natildeo levar a seacuterio essa revoluccedilatildeo linguageira que a ldquopedagogia contemporacircneardquo promoveu Cabe a Charles Coutel [] ter chamado nossa atenccedilatildeo [] sobre este novo obscurantismo de palavras e valores que eacute o trampolim principal da revoluccedilatildeo cultural em curso liderada por novos pedagogos

Revoluccedilatildeo linguageira obscurantismo revoluccedilatildeo cultural a ruptura da ordem natural e oacutebvia da liacutengua eacute uma transformaccedilatildeo da ordem do mundo Os comentaacuterios lexicograacuteficos denunciam de fato uma tentativa de imposiccedilatildeo de um ldquomaurdquo SC substituindo o ldquobomrdquo no qual se baseia a liacutengua da verdade educativa ldquoTomar gato por lebre mudar pouco a pouco o sentido das palavrasrdquo como diz P Rey (p 14) Eacute a identidade do SC consigo mesmo que eacute entatildeo ameaccedilada com o SC estamos no mesmo nesta coletividade que pode ser apropriada e transmitida pelo indiviacuteduo Modificar as palavras do SC eacute colocar o outro o estrangeiro na liacutengua E a seguinte observaccedilatildeo do mesmo autor aponta bem essa ameaccedila de alteridade

- Cou 13 Trata-se antes de mais nada de tornar a escola alheia a si mesma por meio de um esvaziamento as palavras se apagam pura e simplesmente a pretexto de que ldquoenvelheceramrdquo ou de que eles satildeo muito ldquotradicionaisrdquo [] Resistir a isso eacute lembrar o sentido das palavras reprimidas ldquoinstituirrdquo significa estabelecer e instruir Esquecer

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um termo como este eacute correr o risco de esquecer toda uma seacuterie de outras palavras instituiccedilatildeo instruccedilatildeo O esquecimento mais seacuterio atualmente incide sobre as palavras ldquoeducaccedilatildeo puacuteblicardquo

Encontramos em outros autores muitas notaccedilotildees anaacutelogas

- Jaf 163 A distinccedilatildeo entre ldquoconhecimento acadecircmicordquo e ldquoconhecimento escolarrdquo poderia ser considerada como uma das muitas curiosidades que estatildeo florescendo atualmente na nova linguagem dos reformadores

- Mol 58 Assim os exerciacutecios viraram liccedilatildeo de casa entatildeo transformamos um movimento envolvendo todo o corpo [] na obrigatoriedade de realizaccedilatildeo de trabalho duro imposto de fora [] Os exerciacutecios realizados em sala de aula satildeo chamados de controles verdadeira instituiccedilatildeo dentro da instituiccedilatildeo obsessatildeo de todos os alunos Da mesma forma o aprendizado se reduz agrave obtenccedilatildeo de notas

ndash Pen 82 O vocabulaacuterio do mercado ou do espetaacuteculo natildeo tem lugar na Escola No entanto ele laacute se introduz um pouco mais a cada dia Toda uma terminologia o confirma que se encontra tanto nos textos oficiais quanto nos discursos ambientais sobre a escola confirma isso Os alunos constituiriam os ldquonovos puacuteblicosrdquo ldquousuaacuteriosrdquo ateacute mesmo ldquoconsumidores de conhecimentordquo teriam uma ldquodemandardquo que deveria ser atendida por uma ldquooferta formativardquo escolas de segundo grau deveriam ser ldquoadministradasrdquo como ldquoempresas de educaccedilatildeordquo provavelmente com ldquoparceirosrdquo etc

- Rey 15 Perversatildeo da linguagem Reforma natildeo eacute abandono Reformar natildeo eacute vender suprimir ou destruir Reformar o correio natildeo eacute transformaacute-lo agraves escondidas em um banco [] Reformar o sistema de sauacutede natildeo significa fechar uns oitenta hospitais nas pequenas cidades [] Natildeo reformar eacute melhorar []

33 A construccedilatildeo semacircntico-lexical do SC

Se os autores denunciam esses ataques agrave ortodoxia da liacutengua eles portanto implicitamente se apresentam como os detentores e possivelmente os fiadores Diversos processos discursivos contribuem para a construccedilatildeo-restauraccedilatildeo do SC perdido

331 A definiccedilatildeo lexicograacutefica espontacircnea

Chamamos de definiccedilatildeo lexicograacutefica espontacircnea a construccedilatildeo em discurso de uma definiccedilatildeo subjetiva que natildeo se refere a uma ferramenta lexicograacutefica ou a um aparato teoacuterico e que portanto remete a uma lexicografia popular Trata-se de uma remediaccedilatildeo agraves deficiecircncias de linguagem mencionadas anteriormente os locutores se empenham na restauraccedilatildeo do SC das palavras aquele que eles acreditam que deve servir de base para uma verdadeira educaccedilatildeo Eggs (1994 p 114) sublinha a dimensatildeo coletiva e generalizante da forma da definiccedilatildeo que constitui um dos lugares mais eficazes da retoacuterica ao dotaacute-la de um poder de ldquotipizaccedilatildeordquo

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Uma definiccedilatildeo eacute uma foacutermula que expressa uma ou mais tipizaccedilotildees que se tornaram quase necessaacuterias Neste caso eacute uma questatildeo de habilidade e utilidade retoacuterica apresentar seu argumento evocando implicitamente a respectiva tipizaccedilatildeo ou para interpelar argumentativamente o auditoacuterio mencionando explicitamente a ldquotipizaccedilatildeo definitivardquo como no texto de Aristoacuteteles ldquoHomens desregrados ndash todos concordariam ndash natildeo se contentam com os favores de uma soacute mulherrdquo

Este ldquotodos concordariamrdquo constitui o natildeo dito e a forccedila argumentativa da definiccedilatildeo lexicograacutefica espontacircnea que estabelece um continuum entre a opiniatildeo (o aprofundamento do conhecimento) e a definiccedilatildeo (a fixaccedilatildeo do conhecimento) O enunciado definidor eacute particularmente adequado agraves realidades sociais que admitem maior convencionalidade do que as realidades naturais Isso explica por que o processo eacute frequente em nosso corpus As formas natildeo satildeo muito variadas sendo classificadas em duas categorias principais as definiccedilotildees que explicam a atividade definitiva do falante (modelo ldquoE chamo de Xrdquo) e aquelas que apresentam apenas uma predicaccedilatildeo (modelo ldquoX eacute rdquo) Os exemplos a seguir mostram como o quadro da definiccedilatildeo fixa por tipizaccedilatildeo um conteuacutedo argumentativo (polecircmico ou ideoloacutegico) servindo em suma como uma pequena faacutebrica do SC

Eu chamo de X

- Cou 12 Atualmente reina o pedagogismo chamo de ldquopedagogismordquo a arte de multiplicar os preacute-requisitos desnecessaacuterios para o ato de aprender e para o ato de ensinar

- Jaf 16 Examinamos portanto todos os conceitos administrativo-educacionais que estatildeo a cargo da escola que denominamos ldquoideologia escolarrdquo

- Mic 14 Entenderemos aqui por ldquoprogresso da ignoracircnciardquo menos o desaparecimento de conhecimentos essenciais no sentido em que costuma ser lamentado (e muitas vezes com razatildeo) do que o decliacutenio regular da inteligecircncia criacutetica []

- Mol 26 Eu chamo de ideologia escolar todas as falsas perguntas feitas falsos problemas tratados falsas respostas dadas a problemas reais e atuais na educaccedilatildeo que satildeo tambeacutem pistas para verdadeiras questotildees poliacuteticas pedagoacutegicas e eacuteticas e mesmo antropoloacutegicas enfim todas aquelas que dizem respeito agrave formaccedilatildeo do cidadatildeo e do homem para uma profissatildeo

X eacute ou X

- Cou 15 Da mesma forma ldquoaprendizagem fundamentalrdquo agora substitui ldquoconhecimento elementarrdquo sendo que aprendizagem eacute o domiacutenio de um simples saber-fazer e ldquofundamentalrdquo eacute um termo subjetivo que natildeo se refere a nenhuma objetividade transmissiacutevel Natildeo eacute a mesma coisa de forma alguma

- Cou 81 A Repuacuteblica portanto tinha por vontade natildeo educar mas instruir Quando a relaccedilatildeo entre esses dois termos eacute elucidada o ato de ensinar torna-se faacutecil de definir eacute a arte de indicar (signare ldquoindicarrdquo) conhecimento para mentes racionais ansiosas por aprender por si mesmas

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- Jaf 166 ldquoCultura cientiacuteficardquo eacute um discurso sobre a ciecircncia o que se obteacutem quando todo o conhecimento natildeo eacute internalizado mas apenas mencionado Uma metaciecircncia

- Morel 107 [Tiacutetulo do capiacutetulo] Cultura o que resta quando vocecirc natildeo aprendeu nada

- Morin 59 A filosofia natildeo eacute uma disciplina eacute um poder de interrogaccedilatildeo e reflexatildeo que incide natildeo soacute sobre o saber e sobre a condiccedilatildeo humana mas tambeacutem sobre os grandes problemas da vida

Um dos autores aliaacutes leva a praacutetica ateacute o fim ou seja a tipizaccedilatildeo ateacute o registro em dicionaacuterio

- Mol 36 Em breve em sua nova ediccedilatildeo Le Petit Robert escreveraacute na letra A Acadeacutemie ldquo1 ant escola fundada por Platatildeo 2 mod local de conviacutevio onde procuramos amar uns aos outrosrdquo

332 A derivaccedilatildeo em de- e re-

Sabe-se que a derivaccedilatildeo repetitiva em de- privativo eacute um dos processos do discurso panfletaacuterio (ANGENOT 1982) ou reacionaacuterio (ARNOLD et al 1995) Eacute acompanhada em nosso corpus por uma prefixaccedilatildeo em re- simeacutetrica agrave primeira esperada nesse discurso ancorado no mito da decadecircncia que quer que o tempo avance regredindo e que re-accedilotildees em re- sejam necessaacuterias Aleacutem disso o processo eacute saliente em dois dos tiacutetulos do nosso corpus A escola desocupada e A cabeccedila bem feita Repensar a reforma reformar o pensamento

Este tipo de derivaccedilatildeo nos parece revelar o apelo ao SC por trecircs razotildees semacircntica morfoloacutegica e estatiacutestica

Dimensatildeo semacircnticaComo a forma em natildeo mais a forma em de- logicamente eacute construiacuteda pela pressuposiccedilatildeo

da existecircncia da unidade natildeo derivada e de seu sentido positivo (de qualquer forma natildeo negativo) mesmo que se trate frequentemente de um efeito analoacutegico pois na realidade o circuito morfoloacutegico eacute mais complexo (10)136 O raciociacutenio eacute exportaacutevel para re- Os exemplos a seguir (entre as centenas de ocorrecircncias identificadas por cada forma de- e re-) constroem os saberes e as crenccedilas do SC irrigadas pela ideologia crepuscular (PAVEAU 1999)

De-

- Jaf 90 O primeiro e principal efeito do descontentamento com o meacuterito na escola

- Mic 11 A crise do que se costumava chamar de ldquoEscola Republicanardquo [] obviamente participa do mesmo movimento histoacuterico que aliaacutes desfaz as famiacutelias decompotildee a existecircncia material e social das vilas e bairros e em geral gradualmente leva consigo

136 (10) Ainda que decompor por exemplo seja construiacutedo a partir de compor deriva desvio decadecircncia descontente etc natildeo resultam de prefixaccedilatildeo direta (a palavra natildeo prefixada desapareceu ou nunca existiu em francecircs œuvreacute) N T A observaccedilatildeo diz respeito ao termo ldquodeacutesoeuvreacuteerdquo (ociosa) que traduzimos com o objetivo de manter o prefixo de que trata a autora por ldquodesocupadardquo

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todas as formas de civilidade que haacute algumas deacutecadas ainda marcavam uma parte importante das relaccedilotildees humanas

- Mol 159 Encontramos na escrita o mesmo fenocircmeno de deslocamento e desarticulaccedilatildeo do corpo e da liacutengua Temos que ler corpos de escritos sem esqueleto a-morfos que testemunham por escrito o colapso do corpo como uma relaccedilatildeo consigo mesmo com os outros e com as coisas

- Morel 99 Falta de domiacutenio da liacutengua dificuldades de compreensatildeo falta de retrospectiva e desconstruccedilatildeo do conhecimento satildeo os principais problemas observados

- Morin 20 Consequentemente o despojamento do conhecimento muito mal compensado pela vulgarizaccedilatildeo da miacutedia coloca o problema histoacuterico agora capital da necessidade de democracia cognitiva

- Pen 96 Tendecircncia perigosa porque a deslegitimaccedilatildeo dos mestres soacute pode desencorajaacute-los ainda um pouco mais

- Rey 16 Por vinte anos e mais temos trabalhado de forma aberta ciacutenica e implacaacutevel para degradar as condiccedilotildees sociais e morais de existecircncia para destruir os serviccedilos puacuteblicos

Re-

- Cou 93 A repeticcedilatildeo seria restaurada [] Esta medida chocaria alguns mas quando constataacutessemos que ela (re) colocava os alunos para trabalhar seria amplamente aprovada

- Jaf 52 Em vez de continuar na via escolhida seria preferiacutevel tentar retroceder ndash com cautela ndash a certos preconceitos entre os mais nocivos da ideologia escolar restabelecendo a merecida confianccedila dos atores do sistema e a seriedade e o rigor que sua formaccedilatildeo exige

- Morin 46 Ela [a literatura] deve restaurar sua plena virtude

- Pen 122 Revalorizar o amor pelo conhecimento contra os desvios formalistas e pedagoacutegicos parece essencial a este respeito inclusive na luta contra as novas formas de obscurantismo e irracionalismo

- Rey 41 [] todos aqueles que pensam que um sistema educacional soacute pode ser salvo mudando os meacutetodos de ensino e evitando uma restauraccedilatildeo moral

Dimensatildeo morfoloacutegicaQuando a derivaccedilatildeo eacute neoloacutegica e o neologismo aparece em uso (salvo aspas excepcionais)

em uma frase assertiva e se inscreve num grande paradigma de termos em de- bem registrados na liacutengua isso produz um efeito de naturalizaccedilatildeo da unidade inscrita de fato nas estruturas preacute-discursivas dos destinataacuterios do discurso (algo semelhante pode ser dito da derivaccedilatildeo

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em re-) Identificamos oito neologismos que satildeo ou especiacuteficos de um autor ou retomados de um livro no outro (um caso de desritualizaccedilatildeo tirado de M Gauchet)

- Cou 37 [] as raiacutezes da desinformaccedilatildeo puacuteblica nos uacuteltimos anos

- Cou 62 Como reconstruir esse poder espiritual nas democracias modernas Eacute oacutebvio que isso requer um (re)estabelecimento da virtude poliacutetica entre cidadatildeos [] mas tambeacutem uma (re) instituiccedilatildeo escolar

- Cou 71 Os republicanos portanto correm o risco de ldquose deslaicizarrdquo sem perceber

- Jaf 118 [] tanto se tornou evidente o risco de uma marginalizaccedilatildeo coletiva de setores inteiros da juventude

- Mol 133 [] o que estamos testemunhando hoje eacute uma desinstitucionalizaccedilatildeo do corpo no sentido de que o corpo eacute desmembrado deslocado incapaz de se sustentar incapaz de se sustentar no lugar incapaz de sustentar em seu lugar

- Mol 160 Haacute uma espeacutecie de desritualizaccedilatildeo da aprendizagem (leitura escrita contagem)

- Pena 119 A (re) legitimaccedilatildeo da Escola eacute claramente urgente

Dimensatildeo estatiacutesticaA alta frequecircncia de uso dessas unidades produz um efeito de naturalizaccedilatildeo por repeticcedilatildeo

Satildeo em nossa opiniatildeo ferramentas do que Moore chama de enunciados homoloacutegicos adequados para a apropriaccedilatildeo individual das verdades de SC aqui a verdade da decadecircncia e a necessidade de um despertar reparador repeticcedilatildeo coletiva da forma [de- ou re- + X] apropriaccedilatildeo individual do segmento X

333 A derivaccedilatildeo em ndash ismo o exemplo de pedagogismo

Pedagogismo eacute um neologismo agora instalado nos usos em todo caso aqueles que testemunham os discursos do nosso corpus A sufixaccedilatildeo em -ismo produz em certos contextos unidades afetadas pela desvalorizaccedilatildeo eacute entatildeo a ideia de um sistema fechado (poliacutetico ideoloacutegico etc) mais ou menos autoritaacuterio e intencional que emerge desse sufixo tornando-se um subjetivema Todos os empregos de pedagogismo em nosso corpus satildeo marcados negativamente no contexto como mostram os exemplos a seguir

- Cou 15 O pedagogismo tambeacutem tem a perigosa ambiccedilatildeo de mudar a sociedade mudando a escola

- Cou 57 A resposta de Philippe Meirieu concentra todas as confusotildees do pedagogismo

- Jaf 100 [] a desconstruccedilatildeo do ldquocurso magistralrdquo recentemente associado ao elitismo a fragmentaccedilatildeo do grupo e a individualizaccedilatildeo dos percursos enfim tudo o que faz a reivindicaccedilatildeo atual do pedagogismo eacute justificado pela criacutetica social da escola

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- Morel 116 Voltaremos a esta noccedilatildeo de competecircncia bem como a estes novos apoacutestolos dos ldquomeacutetodosrdquo armados de certezas que datildeo aula de boa vontade adeptos de uma religiatildeo pedagogista cujo credo se resume em um slogan tatildeo pretensioso quanto destrutivo aprender a aprender

- Pen 74 As derivas sociais que potildeem em perigo a realidade especiacutefica da Escola parecem agora bem mais ameaccediladoras agrave medida que satildeo veiculadas dentro da proacutepria Escola por um discurso pedagogista muito sistematizado

Natildeo encontramos nenhuma ocorrecircncia neutra ou beneacutefica a proacutepria unidade eacute marcada pela subjetividade Como as derivaccedilotildees precedentes pedagogismo aparece em nosso corpus em enunciados assertivos determinados pelo definido generalizante o que implica uma pressuposiccedilatildeo de existecircncia e de identificaccedilatildeo O uso da palavra portanto inscreve a noccedilatildeo nas evidecircncias compartilhadas do SC como evidenciado por duas passagens interessantes A primeira constitui uma espeacutecie de arqueologia nosoloacutegica da pedagogia construindo entatildeo a noccedilatildeo como uma corrente constituiacuteda dotada de intencionalidade negativa

- Cou 26-27 [] o pedagogismo contemporacircneo detectaacutevel a partir dos anos 1920 com certos movimentos de nova educaccedilatildeo [] Um fato tambeacutem deve ser observado o fasciacutenio exercido pela Itaacutelia fascista e depois pela Alemanha nazista sobre certas mentes De que outra forma explicar essa virada educativa e de exaltaccedilatildeo da juventude que leva agrave mudanccedila do nome do ministeacuterio em 1932 ldquoEducaccedilatildeo puacuteblicardquo passou a ser ldquoEducaccedilatildeo nacionalrdquo (como na Itaacutelia) Nasceu o Estado educador e logo o pedagogo [] Este pedagogismo oficial triunfou com a lei de julho de 1989 que iria impor sob o ministeacuterio de Jospin o Estado pedagogo

A segunda atesta a mesma postura em relaccedilatildeo agrave palavra e agrave noccedilatildeo ao propor uma anaacutelise do ldquodiscurso pedagogistardquo apresentado de fato como um corpo de enunciados constituiacutedo e coerente O pedagogismo se torna quase uma formaccedilatildeo discursiva

- Jaf 177 O discurso pedagogista Pedagogia eacute um termo equiacutevoco Refere-se tanto agrave arte de ensinar quanto agrave concepccedilatildeo de educaccedilatildeo e ensino na qual essa arte se baseia Quanto ao pedagogismo existe uma concepccedilatildeo particular de ensino segundo a qual o essencial estaacute na arte de ensinar O pedagogismo eacute necessariamente polecircmico pois sua forccedila principal consiste em afirmar que a preocupaccedilatildeo com a pedagogia deve prevalecer sobre a do saber Mas ldquoa arte de ensinarrdquo tambeacutem eacute uma expressatildeo equiacutevoca Podemos compreendecirc-la como todas as praacuteticas e teacutecnicas utilizadas mais ou menos conscientemente pelo professor se forem inteiramente relativas agrave disciplina ensinada por exemplo matemaacutetica a pedagogia eacute dita especial e em nada difere da ldquodidaacuteticardquo Eacute que entendemos como ldquopedagogiardquo sobretudo um conjunto de teacutecnicas e meacutetodos cujo valor e relevacircncia sujeitos a algumas variaccedilotildees satildeo independentes das disciplinas particulares Nesse sentido a pedagogia eacute geral e se assemelha muito ao ideal loacutegico-teoloacutegico de um filoacutesofo medieval que trabalhou para inventar uma

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maacutequina para converter automaticamente os infieacuteis Tem como premissa a existecircncia de procedimentos gerais de ensino e aprendizagem que devem ser estudados promovidos e aplicados por si proacuteprios A pedagogia seria o Meacutetodo

Pedagogismo eacute um bom exemplo da construccedilatildeo discursiva do outro antagonista no discurso polecircmico a argumentaccedilatildeo requer um adversaacuterio e a eficaacutecia do discurso eacute aumentada pela existecircncia e pela identificaccedilatildeo preacutevias desse adversaacuterio Pedagogismo por meio de seu sufixo sistematizador eacute entatildeo uma palavra que concordando com N Goodman podemos dizer que eacute tanto feita tanto quanto encontrada eacute construiacuteda neologicamente no discurso ao mesmo tempo em que se articula a partir de saberes anteriores

34 A construccedilatildeo cognitivo-textual do SC

Chamamos de construccedilatildeo cognitivo-textual do SC um tipo de arranjo discursivo estabilizado que se baseia em um compartilhamento preacutevio de saberes eou crenccedilas Eacute o caso das ligaccedilotildees analoacutegicas que induzem no receptor uma transferecircncia de conhecimentos sobre um domiacutenio supostamente conhecido e partilhado que acreditamos ser do acircmbito do SC Dentre essas comparaccedilotildees estaacute obviamente a metaacutefora e retomamos as famosas hipoacuteteses de Lakoff e Johnson (1985) para quem a atividade metafoacuterica eacute natural para a expressatildeo do pensamento e da accedilatildeo Douay-Soublin (1987) fala de ldquoreconciliaccedilatildeo explicativardquo e noacutes a seguimos quando ela a torna uma macrocategoria que ignora as diferenccedilas tradicionalmente estabelecidas entre vaacuterias figuras bem estabilizadas na histoacuteria da retoacuterica

Para esta mesma forma e suas variantes a tradiccedilatildeo retoacuterica disse alternadamente paraacutebola similitude paralelo comparaccedilatildeo equivalecircncia correspondecircncia transposiccedilatildeo metaacutefora ou coloquialmente aproximaccedilatildeo ou mesmo imagem Que importa o roacutetulo desde que tenhamos a forma com o GTA [Grupo de Trabalho sobre Analogia] digo analogia para essa transferecircncia explicativa cujas condiccedilotildees de uma boa formaccedilatildeo importam mais para mim do que o nome (DOUAY-SOUBLIN 1987 on-line)

As conexotildees analoacutegicas entre X e Y satildeo suportadas pelas seguintes quatro teses

- Existem semelhanccedilas entre X e Y

- Apesar dessas semelhanccedilas X e Y satildeo diferentes de outras maneiras

- Podemos descrever ou explicar X do ponto de vista de Y usando formas de pensar que satildeo apropriadas a Y mas que natildeo teriacuteamos espontaneamente associado a X

- A comparaccedilatildeo analoacutegica permite entender melhor X porque Y eacute mais familiar e mais faacutecil de entender ou representar do que X

Note-se que a analogia tem sido tradicionalmente objeto de certo desprezo nos discursos que defendem a expressatildeo direta do conhecimento Como Douay-Soublin (1987 on-line) aponta

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[] endereccedilada pelo saacutebio ao ignorante a analogia natildeo visa ao conhecimento em todos os seus desdobramentos mas apenas a uma primeira aproximaccedilatildeo uma esquematizaccedilatildeo que leva do natildeo conhecimento ao semiconhecimento a analogia precisa de um ignorante como aacutelibi

A relaccedilatildeo analoacutegica convoca de fato um tipo de saber aproximativo natildeo loacutegico que contorna o Logos por meio dos caminhos da Doxa

Falaremos aqui da analogia proporcional e da metaacutefora sem condicionar suas diferenccedilas formais mas examinando o que as une o apelo ao CS que elas estabelecem e supotildeem

341 A analogia proporcional

A analogia oferece ao receptor um novo saber mediado por um saber compartilhado o que Douay-Soublin (1987 on-line) chama de ldquotransferecircncia de conhecimentordquo

Eacute esse efeito de suacutebita e muitas vezes duradoura elucidaccedilatildeo da representaccedilatildeo produzida por uma comparaccedilatildeo ldquoiluminadorardquo uma imagem ldquojustardquo que chamo de clique analoacutegico e me sentiria tentado na praacutetica a conceder o status de acbf (analogia cognitivamente bem formada) a todas as formas simboacutelicas que realmente desencadeiam essa transferecircncia de conhecimento qualquer que seja o nome que lhes seja dado pela tradiccedilatildeo

Nos exemplos a seguir a transferecircncia de conhecimento ocorre de um domiacutenio supostamente desconhecido ou mal conhecido para um domiacutenio conhecido cujos quadros servem de suporte para a explicaccedilatildeo Essas analogias satildeo consideradas proporcionais agrave medida que os autores comparam as proporccedilotildees

- Cou 52 A histoacuteria das ideias eacute para a filosofia o que um inseto morto eacute para o voo de um inseto Eacute uma tentaccedilatildeo formidaacutevel acreditar que esta histoacuteria das ideias prepara os alunos para o pensamento descrever um pensamento natildeo eacute pensar

- Jaf 35 O jogo dos coloacutequios e encontros pedagoacutegicos atinge em pouco tempo na escala das sociedades eruditas o que a seleccedilatildeo produz em vaacuterios milhotildees de anos no mundo dos vivos cada um quer ter sua palavra todos se alinham a um padratildeo virtual que parece nunca ter sido imposto por ningueacutem mas que acaba se tornando a regra

- Jaf 85 O meacuterito era para a poliacutetica do conhecimento o que o secularismo foi para a diversidade dos cultos uma forma bastante sofisticada de neutralidade []

- Jaf 111 Ideoloacutegica tem sido a forma de utilizar a empresa para dar um efeito de realidade ao universo fictiacutecio em que mantemos crianccedilas e professores A empresa eacute para os nossos contemporacircneos o que era a natureza no seacuteculo XVIII ou mais precisamente o mundo rural para os petainistas

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Mundo animal seleccedilatildeo natural secularismo natureza domiacutenios secundaacuterios satildeo mencionados dentro das configuraccedilotildees textuais para fins cognitivos convocando os quadros preacute-discursivos dos receptores

343 A metaacutefora

As metaacuteforas baseiam-se como especifica Aristoacuteteles em seacuteries constituiacutedas ou seja o conhecimento anterior ao discurso que organiza as representaccedilotildees

Aristoacuteteles ao mesmo tempo que insiste nas correlaccedilotildees entre seacuteries produzidas por uma estrutura idecircntica [] de fato repousa o edifiacutecio analoacutegico na existecircncia preacutevia de seacuteries jaacute constituiacutedas partes do corpo espeacutecies animais a lista de emblemas o Panteatildeo dos deuses [] Essas seacuteries que existem na memoacuteria coletiva agraves vezes satildeo longas ateacute indefinidas os nuacutemeros as cores a flora a fauna os ofiacutecios [] outras satildeo limitadas as 22 a 26 letras do alfabeto os doze trabalhos de Heacutercules os doze apoacutestolos os doze signos do zodiacuteaco os dez mandamentos [] (DOUAY-SOUBLIN 1987 on-line)

Os diferentes discursos estabelecem relaccedilotildees privilegiadas com esta ou aquela seacuterie Sabemos que o discurso da educaccedilatildeo se baseia em metaacuteforas recorrentes como aponta Charbonnel (1993) que daacute a seguinte lista viagens alimentaccedilatildeo preenchimento escultura combate luz arquitetura vida animal crescimento vegetal estabelecida com base em um estudo de textos que vatildeo da Antiguidade ao seacuteculo XIX Os discursos contemporacircneos sobre a escola (que satildeo organizados no quadro argumentativo da controveacutersia ao contraacuterio do corpus de Charbonnel) se baseiam em algumas dessas metaacuteforas estruturantes (em particular alimentaccedilatildeo e vida animal) mas oferecem outras amplamente utilizadas Escolhemos aqui falar sobre doenccedilas e militares Natildeo satildeo especiacuteficos ao nosso corpus do ano de 1999 mas organizam todos os discursos da ldquocontroveacutersia escolarrdquo que estudamos desde 1975 (PAVEAU 1999) Satildeo tambeacutem metaacuteforas estruturantes do debate polecircmico em geral que podem ser encontradas no discurso poliacutetico por exemplo

A metaacutefora meacutedicaEacute uma descriccedilatildeo analoacutegica da crise escolar que permite vaacuterias tipizaccedilotildees esclarecedoras

das quais daremos dois exemplos

- A associaccedilatildeo ldquoReformadoresrdquomaus meacutedicos e ldquoRepublicanosrdquobons meacutedicos

- Jaf 15 A poliacutetica educativa consulta os especialistas em didaacutetica e em pedagogia pede-lhes remeacutedios dirigiu-se aos piores meacutedicos pois a didaacutetica e a pedagogia por muito tempo anteciparam na teoria essa renuacutencia agrave transmissatildeo e em vez de curar a doenccedila optaram por apressar seu fim

- Rey 29 Vamos reformar o ensino meacutedio jaacute que abandonamos a faculdade Mais tarde vamos reformar a Universidade Gangrena e amputaccedilatildeo

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- Confusatildeo entre remeacutedio (boa reforma escolar) e veneno (maacute reforma)

- Jaf 33 Condenamo-nos a curar uma doenccedila que eacute proibido diagnosticar publicamente por meio de remeacutedios que sabemos infligir mal

- Rey 38 Este truque de passa-passa [] permite [] sob o pretexto de tratar a paciente acabar com ela E vai acabar com ela com a cumplicidade das mesmas pessoas que tecircm mais interesse pela sua sobrevivecircncia os pais dos alunos e os alunos as classes meacutedias e as classes trabalhadoras

- Rey 50 Tornar a escola uma das causas do desemprego alivia os empregadores e as empresas de sua imensa parcela de responsabilidades Eacute apresentar o remeacutedio como o veneno e o veneno como o remeacutedio

A metaacutefora militarEacute usada de duas maneiras A maneira melhorativa que vai ao encontro do que Charbonnel

chama de ldquoo combaterdquo associa ensino e bravura de guerra

- Pen 78 [] quem tem que trabalhar na linha de frente ndash professores no geral e professores da escola primaacuteria e natildeo pedagogos profissionais que jaacute natildeo ensinam ndash pode ser vencido pelo desacircnimo

- Rey 9 A vida nas trincheiras [tiacutetulo do capiacutetulo]

- Mil 11 [tiacutetulos dos capiacutetulos] 1 Os objetivos da guerra ndash 2 O teatro de operaccedilotildees ndash 3 As forccedilas opostas ndash 4 Suas taacuteticas [dos alunos] ndash 7 Os ardis da guerra ndash 8 A intendecircncia e as bases da retaguarda ndash 9 As alegrias do esquadratildeo

O ponto de vista polecircmico apela sobretudo para a desvalorizaccedilatildeo da atividade militar que entatildeo serve de comparaccedilatildeo com o funcionamento atual da escola

- Mol 27 Esses meacutetodos satildeo mais parecidos com os meacutetodos de gestatildeo de estoques de mercadorias [] do que com meacutetodos de instruccedilatildeo e se queremos manter o uacuteltimo termo eacute mais uma questatildeo de instruccedilatildeo militar do que instruccedilatildeo intelectual isto eacute um aprendizado da submissatildeo e da aprendizagem cega

- Mol 86 A escola de gestatildeo deve treinar seus oficiais subalternos [tiacutetulo do capiacutetulo]

- Morel 122 Algumas exceccedilotildees significativas poreacutem nesta ofensiva generalizada contra a memoacuteria e os procedimentos de aprendizagem o jogador de futebol ou tecircnis o virtuoso artista de concerto e ateacute o candidato agrave carteira de motorista

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ConclusatildeoAo final deste trabalho gostariacuteamos de fazer duas observaccedilotildees

- Levar em consideraccedilatildeo o SC requer um trabalho sobre a presenccedila de crenccedilas e saberes compartilhados na proacutepria materialidade do discurso o SC eacute uma realidade representacional que exige um discurso de atestaccedilatildeo Na ausecircncia dessa comprovaccedilatildeo discursiva o trabalho sobre o SC eacute limitado pela subjetividade do analista e enviesado por seus proacuteprios saberes e crenccedilas

- O discurso sobre a escola privilegia formas ldquointelectuaisrdquo de apelo ao SC determinadas pela formaccedilatildeo discursiva originaacuteria consideraccedilatildeo constante da liacutengua reflexatildeo sobre o sentido uso de figuras retoacutericas Os outros corpora constroem o apelo ao SC de forma diferente (os militares favorecem as formas praacuteticas e os jornalistas favorecem as formas culturais)

As formas de convocaccedilatildeo do SC constroem assim a identidade dos locutores nos discursos e sua consideraccedilatildeo depende integralmente de uma teoria das praacuteticas discursivas

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A LINGUIacuteSTICA FORA DE SI MESMA EM DIRECcedilAtildeO A UMAPOacuteS-LINGUIacuteSTICA137

No nuacutemero 139140 da revista Pratiques sobre linguiacutestica popular publicado haacute pouco mais de dez anos a introduccedilatildeo se intitulava ldquoA linguiacutestica lsquofora do templorsquordquo (ACHARD-BAYLE PAVEAU 2008) Essa expressatildeo refletia outras formulaccedilotildees de uma lacuna em relaccedilatildeo agraves normas que definiam e obrigavam as ciecircncias (ciecircncia selvagem ciecircncia popular ciecircncia profana e mesmo pseudociecircncia) mas tambeacutem a arte (arte bruta fora dos muros arte inocente arte outsider) a medicina (medicinas alternativas medicinas doces138) e muitas outras praacuteticas sociais A linguiacutestica popular eacute de fato alinhada aos colecionadoresas apaixonadosas dos inventores de teorias sem academia dos curandeiros e das bruxas dos saacutebios e xamatildes dosdas artistas loucosas dosdas criadoresas ociososas Essa linguiacutestica estaacute alinhada agraves pessoas que falam sem elaboraccedilatildeo cientiacutefica nem construccedilatildeo teoacuterica cientiacutefica sobre o que falam e o que os outros comentam

Haacute dez anos eu pensava de modo ainda um pouco binaacuterio essa fronteira entre o que eacute cientiacutefico-acadecircmico e o que natildeo eacute ainda que a tipologia dos natildeo-linguistas proposta no texto ldquoOs natildeo-linguistas fazem linguiacutesticardquo139 propusesse um continuum numa perspectiva jaacute poacutes-dualista (PAVEAU 2008) Esta forma de colocar as coisas me parece hoje ultrapassada e pouco defensaacutevel embora ela seja a regra na linguiacutestica acadecircmica Os artigos agrupados nesse nuacutemero da revista Carnets du Cediscor (onde este texto foi originalmente publicado) parece ir em direccedilatildeo a um pensamento escalar em ruptura com o binarismo fundador da ciecircncia linguiacutestica a linguiacutestica popular constituiacuteda pelos metadiscursos dos natildeo-linguistas contribui de fato a situar a linguiacutestica natildeo somente fora do templo mas tambeacutem fora de si mesma isto eacute fora de seus periacutemetros disciplinares imaginaacuterios e normativos e fora dos seus criteacuterios de legitimidade Essa evoluccedilatildeo estaacute tambeacutem ancorada nas mudanccedilas pelas quais passam atualmente todos os discursos tanto aqueles do mundo quanto os da ciecircncia e numa perspectiva internacional Ela estaacute articulada essencialmente em torno da derrota dos dualismos fundadores e do surgimento dos lugares de fala digitais que podem ser apropriados por todos

Os natildeo-linguistas natildeo existem eu osas encontreiDurante os uacuteltimos anos o pensamento poacutes-dualista traccedilou seu percurso e as propostas

para pensar o mundo de maneira ecoloacutegica satildeo felizmente desenvolvidas nutrindo agora muitos trabalhos questionamento da divisatildeo entre natureza e cultura (LATOUR 1991 DESCOLA 2006) a hierarquizaccedilatildeo dos seres e das coisas que colocava o humano no topo da

137 Texto originalmente publicado em PAVEAU M-A La linguistique hors drsquoelle mecircme Vers une postlinguistique Les Carnets du Cediscor 142018 on-line Disponiacutevel em httpjournalsopeneditionorgcediscor1478 Traduccedilatildeo de Julia Lourenccedilo Costa (UFSCarFAPESP)

138 NT Terapias que vatildeo da homeopatia agrave acupuntura e agrave fitoterapia Disponiacutevel em httpswww1folhauolcombrfspcotidianff2909200119htm Acesso em 10 out 2020

139 NT O texto faz parte deste livro

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piracircmide (SCHAEFFER 2007) a concepccedilatildeo internalista do espiacuterito (DENNET 1990) tambeacutem o distanciamento do antropocentrismo (BODDICE 2011) e do eurocentrismo (CHAKRABARTY 2009) Nesses diferentes campos o questionamento das distinccedilotildees dualistas enriquece os resultados das pesquisas e mais amplamente enriquece os pontos de vista pensamos melhor fora dos muros das divisotildees categoriais geograacuteficas e ideoloacutegicas do que no interior dos periacutemetros forccedilados e fechados Da derrota desses binarismos encenada atualmente emerge tambeacutem a invalidez de uma separaccedilatildeo clara entre o que seria cientiacutefico e o que natildeo seria principalmente no que se refere ao conhecimento sobre a linguagem Nancy Niedzielski e Dennis Preston demonstraram na siacutentese que fizeram em 2000 que no centro das atividades linguiacutesticas profissionais os linguistas adotavam atitudes profanas e que reciprocamente diversas descobertas linguiacutesticas profanas se revelaram perfeitamente precisas e verificaacuteveis140 Eu mesma apelei em 2008 por uma perspectiva integracionista dos saberes populares contra um eliminativismo que ainda funda a definiccedilatildeo de ciecircncia (eliminaccedilatildeo dos saberes do senso comum) Levar em consideraccedilatildeo e ateacute mesmo respeitar os resultados da linguiacutestica popular eacute portanto um enriquecimento da proacutepria linguiacutestica e eacute difiacutecil entender porquecirc os linguistas deveriam se privar dela Eacute o que explica Catherine Ruchon no seu artigo sobre a atividade de definiccedilatildeo do discurso animal ldquoAs teorias populares fornecem caminhos de acesso aos processos de semiotizaccedilatildeordquo (RUCHON no mesmo nuacutemero da revista onde o original foi publicado141)

Ela daacute o exemplo da palavra carne do ponto de vista dos carniacutevoros que natildeo evoca ou natildeo evoca mais o sema da animalidade que eacute o que o militantismo animal faz ldquoAs teorias populares podem portantordquo ela conclui ldquoalimentar a pesquisa sobre a relaccedilatildeo entre o leacutexico a referecircncia e as representaccedilotildees mostrando como as categorizaccedilotildees leacutexico-semacircnticas populares satildeo formadas e quais satildeo as representaccedilotildees axioloacutegicas associadasrdquo (Ibidem) Essa integraccedilatildeo dos pontos de vista e em uacuteltima instacircncia das experiecircncias dosdas locutoresas em detrimento da abordagem usual e logocentrada de suas proacuteprias produccedilotildees compete plenamente a uma perspectiva poacutes-dualista

Anne-Charlotte Husson vai mais longe na integraccedilatildeo dos pontos de vista dosdas locutoresas ao propor uma elaboraccedilatildeo teoacuterica que articula a linguiacutestica popular e a epistemologia do ponto de vista (a standpoint epistemologyepistemologia do ponto de vista feminista norte-americana) Essa articulaccedilatildeo permite que ela integre na anaacutelise dos fenocircmenos linguageiros e discursivos os dados eacuteticos e poliacuteticos dos ambientes produtores de discurso (HUSSON no mesmo nuacutemero da revista onde o original foi publicado142) Eis portanto a linguiacutestica popular descrita como linguiacutestica natildeo binaacuteria que funciona de maneira ecoloacutegica baseada em uma episteme poacutes-dualista Natildeo foi esse o caso do coletivo de 2008 que ainda assim reuniu

140 Lembremos que as primeiras proposiccedilotildees da linguiacutestica popular foram feitas nos Estados Unidos por Hœnigswald em 1966 quando as versotildees contextualistas da linguiacutestica estavam se desenvolvendo de acordo com o trabalho de Harris em particular (HARRIS 1969 HŒNIGSWALD 1966) Isso significa que a linguiacutestica popular eacute contemporacircnea ao nascimento da linguiacutestica contextual entendida como uma superaccedilatildeo linguiacutestica fraacutestica internalista tornada emblemaacutetica pelas Estruturas Sintaacuteticas de Chomsky (CHOMSKY 1962)

141 NT ldquoLexique cateacutegorisation et repreacutesentation les reformulations meacutetalinguistiques dans le discours animalisterdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1226

142 NT ldquoLa contribution des theacuteories feacuteministes du standpoint Pour une version forte de la perspective folkrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1324

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quinze artigos entretanto se inserem nessa perspectiva poacutes-dualista natildeo apenas as propostas ecoloacutegicas de antropoacutelogos filosoacuteficos como Philippe Descola mas tambeacutem os estudos de gecircnero finalmente instalados na Franccedila e surgidos da ironia um tanto desdenhosa que as ciecircncias humanas e sociais francesas que haacute muito reservaram aos estudos culturais seus objetos sujos Tambeacutem a chegada de uma nova geraccedilatildeo de pesquisadoresas que puderam se apropriar desses legados de maneira lucrativa e muitas vezes com alegria como evidencia esta ediccedilatildeo143 e tambeacutem o presente livro

Parecia-me possiacutevel em 2008 dizer que os natildeo-linguistas eram valiososas linguistas Eu diria hoje que natildeo existem natildeo-linguistas uma vez que a linguiacutestica eacute praticada de forma plural a partir de posiccedilotildees variadas e mutaacuteveis os natildeo-linguistas natildeo existem pois estatildeo em toda parte e ser linguista constitui uma posiccedilatildeo e uma construccedilatildeo discursiva Isso eacute claramente demonstrado pelo artigo de Judith Visser sobre liacutenguas regionais144 nesta questatildeo de fato a distinccedilatildeo linguista versus natildeo-linguista eacute particularmente inoperante na medida em que o conhecimento sobre os dialetos por exemplo eacute inacessiacutevel aos linguistas profissionais Portanto prefiro dizer hoje que os linguistas quaisquer que sejam seu status sua atividade e sua legitimidade social satildeo poacutes-linguistas valiososas no bom sentido do termo145 Por poacutes-linguista quero dizer uma pesquisadora equipadoa epistemologicamente ciente da natureza mais institucional que cientiacutefica das fronteiras disciplinares das ciecircncias da linguagem integrando plenamente contextos (realia146 e pontos de vista) em seu trabalho sobre as mateacuterias linguageiras e discursivas em uma abordagem ecoloacutegica que evita o logocentrismo antropocentrismo e eurocentrismo

OsAs amadoresas no terreno da web falar de pessoas que falamA web eacute um fator determinante para a implantaccedilatildeo de uma praacutetica poacutes-linguiacutestica Nos

uacuteltimos dez anos esse espaccedilo de fala se desenvolveu consideravelmente e mudou as praacuteticas sociais inclusive as linguiacutesticas a web 20 um dos serviccedilos de internet mais usados devido suas possibilidades conversacionais colaborativas e participativas de fato permite que o discurso linguiacutestico dosas amadoresas seja expresso de forma ilimitada tanto nos espaccedilos puacuteblicos quanto nos privados Retomo o termo amadora de Patrice Flichy (2010) que em Le sacre de lrsquoamateur (A consagraccedilatildeo do amador) descreve essa apropriaccedilatildeo das possibilidades da web por pessoas comuns que fazem o que antes estava reservado aos profissionais fotografia filme arte escrita criacutetica venda tantas praacuteticas que a acessibilidade aos espaccedilos e agraves ferramentas facilitaram muito O mesmo acontece com as praacuteticas linguiacutesticas que encontram na web conversacional lugares de formulaccedilatildeo e recepccedilatildeo os espaccedilos de escrita e

143 NT O nuacutemero 14 de 2018 da revista Les Carnets du Cediscor intitulado ldquoLes meacutetadiscours des non-linguistesrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1089

144 NT ldquoLinguiste ou non-linguiste Reacuteflexions sur une dichotomie controverseacutee agrave partir de lrsquoanalyse de meacutetadiscours sur les langues reacutegionalesrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1384

145 Acrescento esse esclarecimento pensando na carga atualmente muito depreciativa da palavra poacutes-verdade e nas conotaccedilotildees frequentemente criacuteticas de outros termos em poacutes- como poacutes-humanismo por exemplo

146 NT ldquoEm traduccedilatildeo os realia satildeo palavras que denotam objetos conceitos e fenocircmenos exclusivos de uma determinada cultura Por natildeo possuiacuterem correspondecircncias precisas em outras culturas representam muitas vezes um desafio para o tradutorrdquo Disponiacutevel em httpsptwikipediaorgwikiRealia Acesso em 10 out 2020

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discussatildeo on-line (espaccedilos para escrever blogs dispositivos tecnodiscursivos dos comentaacuterios formatos de discussatildeo das redes sociais) favorecem a produccedilatildeo de locutoresas comuns sobre a liacutengua mas tambeacutem a permitem no sentido simboacutelico do termo aquilo que eacute uma novidade em relaccedilatildeo aos lugares de expressatildeo preacute-digital

Em seu artigo sobre dicionaacuterios colaborativos147 Kaja Dolar enfatiza algo que a linguiacutestica natildeo estaacute habituada a abordar as ldquoexperiecircncias pessoaisrdquo dos linguistas que fundam seus saberes lexicograacuteficos Este campo dos dicionaacuterios colaborativos on-line eacute particularmente interessante para a observaccedilatildeo das praacuteticas linguiacutesticas porque natildeo se trata apenas de colaboraccedilatildeo mas tambeacutem da ampliaccedilatildeo enunciativa (os sujeitos da enunciaccedilatildeo satildeo perpetuamente tecidos pelas livres contribuiccedilotildees dos internautas) da relacionalidade (as definiccedilotildees propostas satildeo colocadas em relaccedilatildeo com outros documentos por meio de links hipertextuais) e inumerabilidade (ao contraacuterio do diagrama lexicograacutefico tradicional que inclui apenas uma definiccedilatildeo mesmo longa os dicionaacuterios colaborativos podem oferecer vaacuterias dezenas de definiccedilotildees como pode ser visto em alguns artigos do The Urban Dictionary por exemplo) Os criteacuterios de validade dos metadiscursos produzidos satildeo portanto dos trabalhos lexicograacuteficos habituais onde eacute a expertise do enunciador que fundamenta sua legitimidade on-line eacute o controle colaborativo e a negociaccedilatildeo intersubjetiva muitas vezes anocircnima que valida as definiccedilotildees ou as descriccedilotildees como na Wikipeacutedia por exemplo Eacute por isso que a questatildeo aqui colocada por Dietmar Osthus sobre a captaccedilatildeo das produccedilotildees dosas locutoresas comuns148 na maior parte do tempo indescritiacutevel eacute crucial invisibilizadosas e tornadoas imperceptiacuteveis pela ldquoespiral do silecircnciordquo149 estesas uacuteltimosas produzem uma massa de discurso que afeta a sociedade mas natildeo eacute reconhecida ldquoO desafio que se apresenta para as pesquisas futuras em linguiacutestica popularrdquo enfatiza Dietmar Osthus (no mesmo nuacutemero da revista onde o original foi publicado) ldquoseraacute coletar as fontes de lsquofalantes comunsrsquo fora dos espaccedilos de discussatildeo ou de publicaccedilatildeo explicitamente metalinguiacutesticosrdquo

Em um contexto natildeo digital parece que esse desafio tambeacutem eacute assumido por Franccedilois Labatut que mostra que as atividades metalinguiacutesticas estatildeo em accedilatildeo em um determinado tipo de discurso150 o amicus brief texto no qual o cidadatildeo ou cidadatilde americanoa comum podem fornecer evidecircncias ao juiz no contexto de um julgamento Com efeito Franccedilois Labatut mostra que neste tipo de texto que natildeo tem vocaccedilatildeo metalinguiacutestica os ajustes metalinguiacutesticos satildeo numerosos destinados a servir a uma das partes envolvidas no processo Voltando agrave web seus espaccedilos de escrita natildeo modificam simplesmente o conteuacutedo dos metadiscursos e a proacutepria concepccedilatildeo de lexicografia como indica Kaja Dolar mas a ecologia inteira da praacutetica linguiacutestica suas formas seus objetos seus criteacuterios de reconhecimento e legitimidade seus espaccedilos Eacute tambeacutem nisso que a linguiacutestica se torna poacutes-linguiacutestica os terrenos da web e

147 NT ldquoLes dictionnaires collaboratifs en ligne des objets meacutetalinguistiques profanesrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1161

148 NT ldquoAgrave la recherche du lsquolocuteur ordinairersquo vers une cateacutegorisation des meacutetadiscoursrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1124

149 Dietmar Osthus retoma aqui a noccedilatildeo desenvolvida nos anos 1970 por Eacutelisabeth Noeumllle-Neumann para descrever o funcionamento da opiniatildeo puacuteblica consultar a referecircncia em seu artigo

150 NT ldquoEacutenonceacutes deacutefinitoires et subjectiviteacute dans les deacutebats sur lrsquoeacutevolution du mariage aux Eacutetats-Unisrdquo Disponiacutevel em httpsjournalsopeneditionorgcediscor1268

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mais amplamente da internet pressionam a linguiacutestica para fora de seus templos e para fora de si mesma forccedilando-a nas abordagens ecoloacutegicas sob a ameaccedila de perder a dinacircmica da construccedilatildeo do sentido e a vida da mateacuteria linguageira

Provincializar a linguiacutestica por uma ecologia do discursoA linguiacutestica popular ou os metadiscursos de pessoas que falam provincializam a linguiacutestica

no sentido que Dipesh Chakrabarty emprega esse termo Em Provincialiser lrsquoEurope la penseacutee postcoloniale et la diffeacuterence historique (Provincializar a Europa pensamento poacutes-colonial) e diferenccedila histoacuterica (CHAKRABARTY 2009) ele se propotildee a pensar a histoacuteria dos paiacuteses natildeo ocidentais natildeo mais a partir do centro europeu e eurocecircntrico mas a partir das margens Ele preconiza um descentramento das epistemes ocidentais uma viagem para fora de si mesmas e em certa medida de modo a adotar abordagens mais globais e respeitosas em relaccedilatildeo agraves realidades singulares das aacutereas geograacuteficas implicadas A provincializaccedilatildeo eacute portanto uma saiacuteda do centro levando em conta as margens o que consequentemente implica o apagamento desta distinccedilatildeo dualista centromargens Para Dipesh Chakrabarty (2009 p 92) trata-se de ldquoimaginar a heterogeneidade radical do mundordquo A provincializaccedilatildeo eacute uma abordagem poacutes-dualista e nos meus termos ecoloacutegica Mais recentemente Eduardo Kohn retoma essa noccedilatildeo para aplicaacute-la diretamente agrave linguagem No famoso ensaio Comment pensent les focircrets (Como as florestas pensam) ele compreende que os signos linguiacutesticos natildeo satildeo os uacutenicos elementos de significaccedilatildeo linguageira a serem considerados e que tambeacutem devemos estar atentos aos iacutecones e indiacutecios usados pelos agentes natildeo humanos animais aacutervores e plantas para representar ldquo[] os outros modos de representaccedilatildeo tecircm propriedades bastante diferentes daquelas demonstradas pelas modalidades simboacutelicas das quais a linguagem depende Em suma se interessar pelos tipos de signos que emergem e circulam para aleacutem do simboacutelico permite convencer-nos da necessidade de lsquoprovincializarrsquo a linguagemrdquo (KOHN 2017 p 68)

Continuo a tecer a metaacutefora de minha parte desejando uma provincializaccedilatildeo natildeo apenas da linguagem mas da proacutepria linguiacutestica que me parece bem iniciada pelas praacuteticas da linguiacutestica popular Considerar no proacuteprio trabalho linguiacutestico os metadiscursos das pessoas comuns incorporando suas experiecircncias de vida seus pontos de vista suas posiccedilotildees morais suas situaccedilotildees poliacuteticas e tudo o que compotildee sua vida permite agrave linguiacutestica sair do logocentrismo que a priva da profundidade da vida dos sujeitos (a linguiacutestica da enunciaccedilatildeo por exemplo permanece nas margens de suas vidas) A plena integraccedilatildeo das condiccedilotildees de fala dosas locutoresas nas praacuteticas linguiacutesticas quer sejam elas dosas produtoresas dos corpora ou de seus analistas permite iniciar o programa de uma poacutes-linguiacutestica que respeita tanto os ambientes das pessoas que falam quanto suas palavras

Sobre a autora oas organizadorase osas tradutoresas

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Marie-Anne Paveau eacute professora e pesquisadora na Universiteacute Paris XIII ndash Sorbonne Paris Nord Trabalha na teoria do discurso com uma abordagem transdisciplinar (filosofia ciecircncias sociais SIC pesquisa sobre Internet estudo acerca de animais e plantas) Desenvolve uma anaacutelise do discurso que integra ambientes natildeo humanos de natureza tecnoloacutegica corporal animal e vegetal na produccedilatildeo do discurso em uma perspectiva poacutes-dualista e

ecoloacutegica Atualmente trabalha na articulaccedilatildeo entre discurso gecircnero e raccedila em uma perspectiva decolonial Grupos e colaboraccedilotildees Anaacutelise do discurso digital (AD2I) grupo franco-brasileiro de pesquisa ndash Universidades de Campinas e Paris 13 e Feminilidades Discurso e Sexualidade grupo franco-brasileiro de pesquisa ndash Universidades de Campinas Paris 13 e ENS Lyon Publicaccedilotildees recentes LrsquoAnalyse du discours numeacuterique Dictionnaire des formes et des pratiques (Hermann 2017) Le discours pornographique (La Musardine 2014) Langage et morale Une eacutethique des vertus discursives (Lambert-Lucas 2013) La langue franccedilaise Passions et poleacutemiques (VUIBERT ROSIER 2008) Les preacutediscours Sens meacutemoire cognition (Presses Sorbonne Nouvelle 2006) Les grandes theacuteories de la linguistique (COLIN SAFARTI 2003)

E-mail mapaveauorangefr

Fonte httpspleiadeuniv-paris13frprofilmarie-annepaveau

Eacuterika de Moraes eacute docente na Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo (UNESP) vinculada agrave Faculdade de Arquitetura Artes e Comunicaccedilatildeo campus de Bauru e ao Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Estudos Linguiacutesticos do IBILCE-UNESP Satildeo Joseacute do Rio Preto Com poacutes-doutoramento pela Universiteacute Paris-Sorbonne (Paris IV) sob supervisatildeo do professor Dr Dominique Maingueneau realizado em 2017 Doutora e Mestre em Linguiacutestica pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas IELUNICAMP com ecircnfase em Anaacutelise do Discurso de linha francesa Graduada em Comunicaccedilatildeo Social Jornalismo pela Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo (UNESP) e em Letras pela Universidade do Sagrado Coraccedilatildeo Liacuteder do grupo de Pesquisa DisCo21 ndash Discurso e Comunicaccedilatildeo no Seacuteculo XXI e membro do FEsTA ndash Foacutermulas e Estereoacutetipos Teoria e Anaacutelise

E-mail erikademoraesuolcombrLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr7422887152634157

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Fernando Curtti Gibin eacute doutorando e mestre em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) e eacute bacharel em Letras com Habilitaccedilatildeo de Tradutor pela Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo (UNESP) e em Direito pelo Centro Universitaacuterio de Rio Preto (UNIRP) No que concerne agrave vida profissional atua como produtor de conteuacutedo revisor de textos professor de liacutengua portuguesa e advogado Agrave luz dos estudos linguiacutesticos apresenta especialidade na aacuterea de Linguiacutestica com ecircnfase em Linguiacutestica Textual e em Anaacutelise do Discurso Nas aacuteguas dos estudos juriacutedicos eacute poacutes-graduando em Direito Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD)

E-mail fernandocurttihotmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr2951925118571459

Julia Lourenccedilo Costa eacute pesquisadora de Poacutes-doutorado com apoio da Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa do Estado de Satildeo Paulo na Universidade Federal de Satildeo Carlos (FAPESPUFSCar 201712792-0) sob a supervisatildeo de Roberto Leiser Baronas Realizou estaacutegio de pesquisa na Universidade Paris 13 Nord (FAPESP 201818860-0) sob a supervisatildeo de Marie-Anne Paveau Doutora em Linguiacutestica (2017) pela Universidade de Satildeo Paulo (USP) com periacuteodo de estaacutegio de pesquisa na Universidade Paris-Sorbonne IV sob a supervisatildeo de Dominique Maingueneau Mestra em Linguiacutestica (2013) pela USP e graduada em Letras (2011) pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) Eacute membro do Laboratoacuterio de Estudos Epistemoloacutegicos e Discursividades Multimodais (LEEDiMUFSCar) e do Grupo de Estudos Semioacuteticos da Universidade de Satildeo Paulo (GES-USP) Eacute editora assistente da revista Linguasagem (PPGLUFSCar) e da revista da ANPOLL Sua pesquisa tem como foco a Anaacutelise do discurso francesa a Semioacutetica greimasiana e a Comunicaccedilatildeo nas diversas interfaces com os feminismos E-mail juliajlcgmailcom Link para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr5592296124389416

Marco Antonio Almeida Ruiz eacute Bacharel Mestre e Doutor em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) Eacute Doutor em Sociologia pela Eacutecole des Hautes Eacutetudes en Sciences Sociales (EHESS) de Paris e poacutes-doutorando em estudos linguiacutesticos pela Faculdade de Filosofia Ciecircncias e Letras da USP de Ribeiratildeo Preto E-mail marcoalmeidaruizgmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr4613888575492521

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Maria de Faacutetima Sopas Rocha eacute Professora Associada aposentada da Universidade Federal do Maranhatildeo Eacute doutora em linguiacutestica pela Universidade Federal do Cearaacute Participou como pesquisadora dentre outros dos projetos Atlas Linguiacutestico do Maranhatildeo ndash AliMA Atlas Linguiacutestico do Brasil ndash AliB e Tesouro do Leacutexico Patrimonial Galego e Portuguecircs Foi fundadora e Professora Permanente do Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Letras ndash Mestrado Acadecircmico Participou como autora ou organizou em coautoria dentre outras as seguintes obras A diversidade do portuguecircs falado no Maranhatildeo o Atlas Linguiacutestico do Maranhatildeo em foco (2006) O portuguecircs falado no Maranhatildeo estudos preliminares (2010) O portuguecircs falado no Maranhatildeo muacuteltiplos olhares Pelos caminhos da Dialetologia e da Sociolinguiacutestica entrelaccedilando saberes e vidas (2010) Dicionaacuterio da obra de Domingos Vieira Filho (2015) E-mail fsopasyahoocombrLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr6600718231861371

Mariana Luz Pessoa de Barros possui bacharelado e licenciatura em Liacutengua Portuguesa (USP) mestrado (2006) e doutorado (2011) em Semioacutetica e Linguiacutestica Geral (USP) e Poacutes-Doutorado em Linguiacutestica (2016) pela USP Realizou estaacutegio de doutorado-sanduiacuteche na Universiteacute Paris 8 Atuou como professora de liacutengua portuguesa no Ensino Fundamental II e no Ensino Meacutedio (ensino regular e EJA) Foi coordenadora do Foacuterum de Atualizaccedilatildeo em Pesquisas Semioacuteticas (FAPS Ges-Usp) e coeditora da Revista Estudos Semioacuteticos (USP) Atualmente eacute professora adjunta do Departamento de Letras da Universidade Federal de Satildeo Carlos vice-presidenta do Grupo de Estudos Linguiacutesticos do Estado de Satildeo Paulo (2019-2021) e liacuteder do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Semioacutetica da UFSCar (PISCar) Suas publicaccedilotildees envolvem os seguintes temas estudos do texto e do discurso semioacutetica autobiografia memoacuteria tempo anaacutelise do discurso poliacutetico e ensino de liacutengua portuguesa E-mail maluzpessoagmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr4830505244404566

Mocircnica Magalhatildees Cavalcante eacute doutora em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Pernambuco com poacutes-doutoramento pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Coordena o grupo de pesquisa Protexto na Universidade Federal do Cearaacute onde atua ainda hoje como Professora Associada Dentre as obras que produziu ou organizou citam-se as seguintes Referenciaccedilatildeo (2003) Os sentidos do texto (2012) Intertextualidade ndash diaacutelogos possiacuteveis (2007) Referenciaccedilatildeo (2013) Coerecircncia referenciaccedilatildeo e ensino (2014) Eacute organizadora das traduccedilotildees Apologia da polecircmica (2017) de Ruth Amossy e O texto ndash tipos e protoacutetipos de Jean-Michel Adam (2019) E-mail monicamc02gmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr5088972912048247

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Paula Camila Mesti possui graduaccedilatildeo em Letras ndash Licenciatura em Portuguecircs-Inglecircs (2007) e mestrado em Letras (2010) pela Universidade Estadual de Maringaacute (2010) e doutorado em Linguiacutestica (2017) pela Universidade Federal de Satildeo Carlos Com apoio de bolsa BEPEFAPESP fez doutorado sanduiacuteche na Sorbonne ndash Paris IV em Paris ndash Franccedila sob a supervisatildeo do Professor Dominique Maingueneau no periacuteodo de setembro2014 a junho2015 Nos anos de 2011 e 2012 foi professora colaboradora da Universidade Estadual do Mato Grosso ndash campus de Tangaraacute da Serra-MT Atualmente eacute secretaacuteria executiva da Associaccedilatildeo Nacional de Poacutes-graduaccedilatildeo e Pesquisa em Letras e Linguiacutestica e professora colaboradora da Universidade Estadual do Paranaacute ndash campus de Campo Mouratildeo Eacute membro do Laboratoacuterio de Estudos Epistemoloacutegicos e de Discursividades Multimodais ndash LEEDiM ndash UFSCarCNPq desde 2013 E-mail paulamestihotmailcomLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr8453392455009320

Phellipe Marcel da Silva Esteves possui bacharelado em Comunicaccedilatildeo Social (Jornalismo) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007) licenciatura em Liacutengua Portuguesa pela Universidade Candido Mendes (2008) mestrado em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2010) doutorado em Estudos de Linguagem pela Universidade Federal Fluminense (2014) e residecircncia em pesquisa na Fundaccedilatildeo Biblioteca Nacional (2014-2016) Atualmente eacute professor adjunto da UFF aleacutem de exercer os ofiacutecios de ediccedilatildeo e traduccedilatildeo Tem experiecircncia na aacuterea de Letras com ecircnfase em Anaacutelise do Discurso atuando principalmente nos seguintes temas anaacutelise do discurso histoacuteria das ideias linguiacutesticas histoacuteria do livro linguiacutestica aplicada e linguiacutestica O materialismo histoacuterico como princiacutepio a paternidade como vida a revoluccedilatildeo dos trabalhadores como horizonteE-mail phellipemarcelyahoocombr Link para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr6384597108585900

Roberto Leiser Baronas eacute professor do Departamento de Letras da Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) e no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Estudos da Linguagem da UFMT Graduado em Letras (1994) pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e Doutor em Linguiacutestica e Liacutengua Portuguesa (2003) pela Universidade Estadual Paulista ldquoJuacutelio de Mesquita Filhordquo (UNESP) Durante o ano de 2003 fez seu doutorado ldquosanduiacutecherdquo na Universidade Paris Est - Creacuteteil - Val de Marne - Franccedila no Centro de Estudos de Discursos Imagens Textos Escritos e Comunicaccedilatildeo - CEacuteDITEC (2003) Poacutes-doutorado no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Linguiacutestica Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL) na Faculdade de Filosofia Comunicaccedilatildeo Artes e Letras da Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo (PUC-SP) Eacute um dos coordenadores do Laboratoacuterio de Estudos Epistemoloacutegicos e Discursividades Multimodais (LEEDiMUFSCar) Editor chefe da revista Linguasagem - Revista Eletrocircnica de Popularizaccedilatildeo Cientiacutefica em Ciecircncias da Linguagem (PPGLUFSCar) Seus estudos tecircm como foco a anaacutelise do discurso a linguiacutestica popularfolk linguistics o discurso poliacutetico e a epistemologia e a histoacuteria da linguiacutestica brasileira E-mail baronasuolcombr Link para o Lattes httplattescnpqbr4613001301744682

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Samuel Ponsoni eacute Graduado em Letras Mestre e Doutor em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Satildeo Carlos ndash UFSCar (2015) Atualmente eacute professor Designado na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) Unidade Passos Coordena nessa mesma universidade o laboratoacuterio de estudos e pesquisas intitulado Laboratoacuterio Interdisciplinar de Comunicaccedilatildeo Discurso Acontecimento e Memoacuteria (LABIAM ndash UEMGCNPq) E-mail samuelponsoniuemgbrLink para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr6739815431846441

Tamires Cristina Bonani Conti atualmente eacute doutoranda no Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Linguiacutestica da UFSCar Desenvolveu pesquisa de mestrado na mesma universidade Fez parte deste mestrado (sanduiacuteche) na Universiteacute Sorbonne Nouvelle ndash Paris 3 sob supervisatildeo de Dominique Legallois Eacute formada em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Satildeo Carlos (UFSCar) (2014) Fez intercacircmbio acadecircmico de graduaccedilatildeo na Universidad de Buenos Aires (20131) Foi bolsista de Iniciaccedilatildeo Cientiacutefica da FAPESP (2011-2012) e tambeacutem do CNPq (2014) Eacute integrante do Grupo de Estudos ldquoLaboratoacuterio de Estudos Epistemoloacutegicos e de Discursividades Multimodaisrdquo (LEEDiM UFSCar) E-mail tamy_bonanihotmailcom Link para o curriacuteculo Lattes httplattescnpqbr3442362906177938

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