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ARTIGOS

REVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE / FORTALEZA / V. V / N. 1 / P. 92 - 108 / MAR. 2005

Linguajares urbanos

Giovani Souza AndreoliMestre pelo Programa de Pós-Graduação em

Psicologia Social e Institucional (UFRGS).

End.: Rua Ramiro Barcelos, 2600, BairroSantana, CEP: 90035-003 – Porto Alegre, RS.

email: [email protected]

Cleci MaraschinDoutora pelo em Programa de Pós-Graduação

em Educação (UFRGS).Docente dos Programas de Pós-Graduação em

Psicologia Social e Institucional e emInformática na Educação/UFRGS

End.: Rua Ramiro Barcelos, 2600 sala 201d, BairroSantana, CEP: 90035-003 – Porto Alegre, RS.

e-mail: [email protected]

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ARTIGOS LINGUAJARES URBANOS

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RESUMO

O principal objetivo do estudo é propor um entendimento dosgrafismos urbanos como uma modalidade de linguajar. Partimos deconceitos da Biologia do Conhecer os quais permitem sustentarque os grafismos urbanos podem ser lidos como uma rede deconversações, já que são produzidos por coordenações decoordenações recorrentes de ações configurando processoscoletivizáveis de sentido, potencializando o exercício da autoria. Anavegação fotográfica foi o meio de registro das imagens. Ascoordenações entre as imagens foram auferidas a partir dosreferenciais teóricos empregados. Os resultados põem emevidência o caráter conversacional de grafias urbanasevidenciando-se o exercício de autoria, os processos deconstituição de interlocutores e os tensionamentos produzidosnesse linguajar.Palavras-chave: grafismos urbanos, autoria, rede deconversações

ABSTRACT

The principal aim that orientates this study is to produce a readingof street graphism understood as a modality of languaging. Webegin using concepts from the Biology of Cognition which permits tosustain that street graphism can be read as a network ofconversations, since they’re produced by co-ordinations ofrecurrent co-ordinations of actions, configuring collectivizedprocesses of meaning, empowering the exercise of authorship.Navigating in this network of conversations, photography was usedas a means of registering the images. The co-ordinations betweenimages were attained from the theoretical references applied. Theresults show clearly the conversational character of street graphismevidencing the exercise of authorship, the processes of constitutinginterlocutors and the tensing produced in that languaging.Keywords: street graphisms, authorship, network of conversations

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IntroduçãoO propósito de tomar como objeto de estudo os grafites

urbanos pode provocar algum estranhamento por tratar-se de umaprodução alvo de controvérsias. Ao mesmo tempo em quemoradores, comerciantes e autoridades públicas têm somadoesforços para disciplinar, ou mesmo coibir, a ação dos grafiteiros,suas produções insistem em reaparecer nos muros das cidades.Além de controverso, existem poucos estudos desse tipo.Encontramos referências brasileiras (Ramos, 1994; Baitello, 1994;Ayala, 2002) e portuguesa (Marques; Almeida & Antunes, 2000).

Duas são as perguntas mais freqüentes endereçadas a quemse dedica a esse tipo de estudo: É possível diferenciar entre “grafite” e“pichação”? E Por que as pessoas insistem em desenhar nasparedes das cidades? Tomamos inicialmente essas questões nosentido de auxiliar a distinguir o objetivo do presente texto.

O que é interessante nestas perguntas não são suasrespostas diretas, mas os motivos pelos quais elas possam serformuladas. Indicam, ao menos, a curiosidade dos transeuntes emrelação ao que se produz e aos produtores dessas marcas. Asperguntas anteriores evidenciam que os grafites suscitam a idéia deque existem redes de sentidos diferenciadas convivendo nas cidades.Existem modos de comunicação que não são acessíveis a todos.Produções que se confrontam com os modos hegemônicos deconversar.

A primeira destas duas questões leva a pensar que existe abusca de diferenciação entre as manifestações gráficas urbanasidentificável nas características físicas das imagens, que, por fim,ajudariam a proporcionar um consenso entre os que as olham. Essadiferenciação geralmente vem acompanhada de critérios de valor. Namaioria das vezes, nomeia-se “grafite” os que têm uma conotaçãomais “artística” e “pichação” os que remetem a uma manifestaçãoideológica. Embora os critérios dessa diferenciação possam servariados, tais como, a elaboração estética, o conteúdo, o espaçoocupado não há consensos nessas categorias.

Certamente existem muitas diferenças entre as marcasgráficas urbanas. Mas não é intenção desse texto propor critérios para

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sua classificação, por esse motivo falamos em uma categoriabastante ampla de “grafismos urbanos” ao invés de grafite ou depichação. Campos (1989) já havia assinalado a dificuldade dessacategorização sendo necessário, para esse intento, levar em conta osjogos de negociação entre muitos consensos. Concordando com oautor, o propósito desse estudo é analisar a possibilidade de entenderos grafismos encontrados nos muros das cidades como umamodalidade de linguajar e não buscar compilar características paraaceitar sua legitimidade existencial.

A segunda questão pode ser mais interessante na direção doestudo que fazemos. Não tanto no sentido de dar conta dos motivosindividuais pelos quais alguns cidadãos insistem em desenhar ouescrever nos muros das cidades, mas, talvez, porque esses mesmoscidadãos insistem em afirmar outros modos de comunicação.Interessa-nos saber se é possível identificar processosconversacionais entre os grafismos urbanos e não, tãoespecificamente, motivos pelos quais se fundamentaria essaprodução. São razões comunicativas que nos impulsionam apesquisar. Interessa estudar as possibilidades de conexões nasredes de sentidos que se produzem entre os grafismos e a analisarse essas mesmas redes são capazes de fazer emergir exercícios deautoria.

Grafismos como coordenações de açõesOs grafismos urbanos podem ser tomados como produções

– produtos – como rastros de gestos: riscos, caligrafias, desenhos,letras artesanais, tatuagens distinguidos por observadorestranseuntes de logradouros públicos em seus deslocamentos pelacidade. Nosso intuito é poder mapear relações (conversacionais) emsua concretude material.

A comunicação, para Maturana e Varela (2001), não podeser descrita como uma transferência de informações entre agentes.Para os autores, isso apenas denota sua aparência externa, nãoexplicando seu processo constitutivo. “Existe comunicação cada vezque há coordenação comportamental em um domínio deacoplamento estrutural” (Maturana & Varela, 2001, p. 218). A

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recursividade das coordenações de ações pode produzircongruências – sentidos mais ou menos estáveis – nunca acabados,sempre em contínua reconstrução. Aquilo que pode ser entendidocomo transmissão de informação é, para esses autores, a partilha deum domínio consensual resultante de um intenso exercício deconvivência.

As redes de conversação diferem estruturalmente de acordocom o tipo de coordenações de ações que estabelecem. São redesheterogêneas, constituídas pelos sujeitos, pelas tecnologias, pelaspráticas, pelos consensos e pelos conflitos emergentes dessasmesmas coordenações.

As redes operam como matrizes identificatórias/classificatórias. Estar sujeito a ou ser sujeito de uma rede deconversações implica em uma relação de semelhança, de filiação,identificação com tal rede. Implica também na aceitação da validadeda estrutura de coordenações de ações e consensos que aí operam.

Uma gama muito ampla de atividades nas quais existemcoordenações recorrentes de ação podem ser consideradas comolinguajares. Dentro dessa perspectiva podemos pensar que se nosgrafismos urbanos (a) existe o exercício de coordenações de ações e(b) se essas coordenações forem recorrentes a ponto de constituirsentidos partilhados, os grafismos podem ser concebidos como umlinguajar.

Tem-se conhecimento de que os produtores dessas marcas,que aqui denominaremos de grafistas, compartilham de umvocabulário próprio. No trabalho referido acima (Marques; Almeida &Antunes, 2000) existe um glossário com algumas dessas expressões.Vamos utilizar algumas delas no transcurso do texto, mas nossaatenção se focara em um exercício de leitura das produções gráficaspropriamente ditas. Um conversar visual que se produz no espaçopublico.

Afirmar que os grafismos se produzem em um domínioconsensual de ações, como propõe a Biologia do Conhecer, nãosignifica que não haja antagonismos, disputas no interior do domínio.Um domínio consensual propõe a pertença a uma rede de sentidostão heterogênea e difusa como qualquer outra. A consensualidade sedá no retorno, produto resultante da recursão das ações, o que acaba

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conferindo graus de estabilidade. Os domínios consensuais resultamde práticas, de exercícios, não são estruturas previamenteestabelecidas. São coletivos, mas podem produzir efeitos singulares:no exercício de um protagonismo autoral (na maioria dos casos, umgrafista produz series de trabalhos no intuito de ser reconhecido,apesar de permanecer anônimo).

O exercício de um protagonismo no interior do domínioconsensual – que estamos chamando de autoria (Maraschin, 2000) –implica não somente em uma identificação, mas, sobretudo, em umaprodução de diferença. O jogo identificação/diferenciação constitui oautor e constitui, no mesmo ato, o leitor dessa autoria, seureconhecimento.

Nenhuma autoria e passível de ser exercida fora de uma redede conversações que institui o próprio autor, já que essa diferença queele produz deve ser reconhecida nessa mesma rede. Trata-se de umexercício de alteridade no interior da rede de conversações. No casoda rede de conversações aqui analisada, trata-se de uma autoria semindividualidade, uma autoria impessoal porque dada a conhecer ereconhecida pelas próprias obras.

A autoria consiste em um modo de viver no linguajar. ParaMaturana (1997) os sentidos não se produzem na interioridadecorporal – ainda que dependam dela e existam através dela – mas simna dinâmica relacional. As idéias emergem de uma rede deconversações onde as marcas não são um sistema de signos que asrepresentam, mas nós de coordenações de coordenaçõesconsensuais de ação e têm sentidos ou significados nas condutas eemoções que coordenam. Disso se conclui que não é trivial conviverem diferentes domínios relacionais, ou seja, produzimos sentidosdiferenciados ao vivermos em distintos domínios de relação. O “ruído”não é algo externo ao processo de linguajar, mas é o motivo pelo quala dinâmica relacional se produz. Conversamos para produzircoordenações de coordenações consensuais de ação. É por essarazão que podemos definir a autoria como a produção de umadiferença em uma rede de sentidos. Efeito de uma posição de sujeitocapaz de estranhar, questionar, refletir sobre o conversar e neleencontrar diferença, descontinuidade, ruptura, muito ao contrário deum eficiente “decodificador” de idéias que busca a identidade, a

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semelhança.O estudo que aqui apresentamos objetiva investigar o linguajar

em um domínio de relação no qual participam sujeitos que constituemuma contingência própria: os que marcam espaços públicos. Paratanto, é analisada a produção gráfica existente nesses espaços.

Navegação fotográficaO percurso no domínio dos grafismos urbanos foi mais amplo

do que aqui se apresenta. Iniciou-se percorrendo as ruas de bairroscentrais da cidade de Porto Alegre, contatando não somente osgrafistas como também pessoas ou grupos com os quaisdesenvolvem parcerias e convivências (Ongs, Secretarias deCultura), acompanhando ou participando de eventos. Comodispositivos de registro do material empírico, organizou-se um sítio naInternet com imagens fotográficas e escritas: recortes de falas ouentrevistas semi-estruturadas; reproduções e anotações a respeitodas produções gráficas pessoais (cadernos de notas dos grafistas).Procurou-se desenvolver as observações com um mínimo decategorizações prévias (classes de sujeitos e divisões do materialvisual) e fizemos questão de contatar apenas grafistas dispostos aparticipar da pesquisa.

A navegação foi o meio de abordagem eficaz diante de umconjunto de imagens tão heterogêneas quanto dispersas. Anavegação e os encontros possibilitaram perceber que o conversaroral sobre as grafias urbanas com seus produtores apresentavalimites. Ocorreram encontros onde, a despeito das trocas de idéiasatravés da fala ser a atividade central, as trocas paralelas depequenas imagens eram sempre mais atrativas para a maioria dosgrafistas. A melhor estratégia comunicativa constituiu-se nas trocasgráficas. O que levou a considerar que essa conversação transcendeo conhecimento das gírias que se compartilham, fortalecendo a idéiade que existe também um conversar que se produz no plano dainteração gráfica propriamente dita e que talvez seja essa muitosignificativa. É para essa segunda perspectiva que se orienta essetexto.

Em relação ao mapeamento dos grafismos urbanos utilizou-

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se com estratégia principal o registro fotográfico (Achutti, 1997).Foram escolhidos alguns bairros centrais da cidade, onde aconcentração de grafismos urbanos é maior. Pensamos que maisvale observar os mesmos lugares ao longo de certo tempo,acompanhando mudanças nas interações, do que tentar abranger umespaço maior da cidade. Mantivemos esse processo de navegação ede registro fotográfico em torno de 18 meses.

Uma rede de conversação capaz de fazer emergir autoriasAtravés do registro fotográfico realizado foi possível verificar

uma espécie de rede interativa que se constitui em diferentes planosda composição gráfica. Em relação aos suportes físicos, ou àssuperfícies sobre as quais tais imagens estão dispostas, distinguimostrês planos de composição de grafismos2 .

Cabe aclarar que dentro da perspectiva teórica eleita ossuportes não são meros receptáculos das produções, participando naconstituição dos sentidos. Podemos considerá-los como diferentessistemas de “mídias” como chamou Pross (1971).

Os “grafismos anatômicos” muito comuns entre os grafistassão imagens dispostas sobre o próprio corpo (tatuagens) ou adornosem vestimentas (estampas em serigrafia ou pintura livre) são. Essasmarcas acoplam-se a própria corporeidade configurando sentidosidentitários de pertença. Usam-nas como um “cultivo de estilos”,reafirmando a pertença ao domínio consensual ou, como referem osque se identificam com o movimento do hip-hop, a determinada“posse”.

Os “grafismos portáteis” servem para trocas de material e dereferências entre os produtores de imagens, sejam originais oucópias. Os grafistas organizam coleções de imagens em mostruáriospara interação e trocas. Funcionam como um repositório dememórias e de referências de estilo. Embora se constituam namaioria das vezes como arquivos pessoais – esboços, treinamentode formas, exercícios, colagens - são “abertos” ao coletivo, pois secompõem de referências gráficas variadas, contendo desenhos deoutros grafistas, cartões, adesivos, fotografias, imagens (de revistas,jornais, etc.). Tais mostruários funcionam como redes interativas de

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auto e hetero-formação, uma vez que cada grafista pode conservarum histórico de sua produção como pode operar trocas com outrosgrafistas, incorporando e difundindo estilos e formas.

As “grafias urbanas”, sobre as superfícies da cidade, campode uma conversação de maior abrangência, no qual os grafismosganham um endereçamento para além das possíveis intenções dequem o produz. Tomemos essas últimas marcas como foco daanalise.

Coordenações entre grafismos urbanos

Caminhos de um vir-a-ser autoral

Uma primeira análise desse conversar revela, com jádescreve o trabalho de Marques; Almeida e Antunes (2000), apredominância de uma espécie de “egocentrismo anônimo”. Osespaços públicos são convocados como testemunhas de umaprodução auto-referente que insiste em sua reapresentação,incorporando pequenas mudanças, mas principalmente explorando aousadia nos locais escolhidos. Mas um egocentrismo anônimoporque impessoal, pois não se trata do reconhecimento de umaidentidade autoral individual ou jurídica, mas de uma autoria que seimpõe por uma assinatura ou por uma recorrência da produçãográfica.

Os nomes podem exemplificar essa posição autoral. Existem

Figura 1

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nomes singulares (os quais são chamados de “tags”) e de grupos(chamados “crews”) que funcionam como testemunhas das autoriassingulares ou coletivas. As letras com formatos estilizados (ditas“letters”) possuem estilos diferentes, os grafistas exploram a cor, oformato, o tamanho. Formas que configuram autorias e identidadesgrupais, tais como a diferenciação entre “iniciados” e “entendidos”.

Existe uma espécie de co-inspiração entre as assinaturasproduzidas a partir de imitações, re-apropriações. Tanto é assim quepodemos encontrar semelhanças entre os grafismos atuais e os dosanos 60 feitos em Nova Iorque, ainda que letras produzidas em cadalocalidade sejam diferentes em sua composição particular.

As personagens são mais uma forma de auto-referência.Geralmente possuem traços e proporções caricaturais. Além deveículo da expressão das idiossincrasias do estilo próprio de umgrafista, as personagens humanóides ainda podem ser uma amostrade preferências estéticas de auto-imagem, singular ou coletiva,naquilo que está retratado.

Figura 2

Nomes com fontes simples, em uma só cor ede execução rápida, são chamadas “tag’s”;neste caso, são nomes e uma mensagemhabitual, “pax” (“paz” em latim).

Nome estilizado como “letra” (letter, gíria nova-iorquina). Os caracteres assumem formas tãodiferenciadas que se tornam irreconhecíveis para quemnão tem conhecimento do “estilo” do autor.

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A dificuldade de acesso ao local ocupado pelo grafismo éoutro elemento que caracteriza as intervenções. Trata-se de umaforma específica de ocupação no espaço que pode operar como umsímbolo da ousadia, destreza e/ou originalidade, portanto de distinçãode uma autoria que se afirma ao testar novos limites. Há diferentessentidos em se romper limites de acesso: nos locais altos, cercados,ou em situações tais como grafar sobre veículos em uso, comoônibus ou viaturas de polícia, afirma-se a agilidade, a velocidade e aousadia ao executar a tarefa, em geral buscando com isso garantirmaior visibilidade à grafia.

A ação de “alcançar as alturas”, “burlar os muros e cercas” e“fazer-se o mais visível com o máximo de riscos” funciona comocategoria distintiva de autoria frente às outras. Cada conquista estávisível ao sinalizar uma ultrapassagem das “marcas” próprias.

Constituindo alteridades

Todo exercício de autoria pressupõe um endereçamento.Embora possamos pensar que tal endereçamento seja tambémanônimo ou impessoal existem indicações que poderiam sinalizar olugar dessa alteridade, ou o destino desejado de recepção das grafias

A personagem ao lado “fala” (há uma onomatopéia de verbalização indicandosair de sua boca) que diz: “vomitar é legal”, ou seja, existe valor positivo emser espontâneo e expressivo.

Figura 3

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produzidas. As frases constituem-se grafismos muito freqüentes eque podem dar visibilidade aos possíveis destinatários. De modogeral, são escritas em português embora não seja incomum o uso deinglês e, mais raramente, latim e outras línguas. Assim como nosnomes, as frases encontram na repetição, no local de exposição ou,ainda, no inusitado de sua mensagem a potencialidade produção desentido e a constituição de destinatários. As frases estão relacionadasa diferentes ideologias, atitudes e/ou modos de vida.

Esta frase foi escrita em uma parede do viaduto da Avenida João Pessoa,próxima aos prédios do Campus Central da UFRGS.

“Graffiteiros não são vandalos e sim poetas da noite!!!”

Mensagem auto-referente que busca um claroendereçamento: a uma alteridade que não considera apoética do grafismo urbano.

Figura 4

Figura 5

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Além do endereçamento anônimo – aos passantes – existemoutros nos quais a alteridade é tencionada entre diferentes grupos degrafistas. Esse linguajar visual toma os grafismos existentes,produzindo intervenções sobre intervenções. O embate é visível naspróprias grafias por meio das frases sobrepostas (o que ocorre commuita freqüência, por exemplo, nas contraposições de expressõesdas tribos neonazista e punk, formulando embates ideológicos e/ouidentitários). Embora não tenhamos o propósito, neste texto deanalisar os confrontos existentes entre diferentes movimentos sociaise culturais que utilizam as grafias urbanas como modo de expressãoidentifica-se, pelas marcas gráficas registradas, a heterogeneidadede grupos e suas contraposições. Os grafismos urbanos são muitomais heterogêneos do que à referência comumente feita de seconstituírem como um elemento do movimento hip-hop.

Os exemplos acima evidenciam coordenações de ações dografar cuja recursão pode se desenvolver tanto na consensualidadedo empreendimento comum (seja no conteúdo das mensagens, na

À esquerda, a dedicatória: “paraToniolo” (de Trampo, escrito no rastrodo spray da personagem de capa eboné). Esta ação foi uma reação ainterferências de Toniolo em outrostrabalhos de Trampo.

As imagens jogam com ainclusão de objetos e pessoasno meio urbano. O autor destacadeira à direita (que apareceem inúmeros modelosdiferentes) chegou mesmo aescrever, ao lado de uma desuas obras: “ei, você que morana rua, aqui está mais um móvelpara sua casa”.

Figura 6

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composição estética); quanto na tensão, na demonstração deagressividade pela existência de ofensas e/ou sobreposiçõesinvasivas.

Linguajares urbanosSe o virtuosismo, o egocentrismo e a ousadia podem ser

marcas dos grafismos urbanos (Marques; Almeida & Antunes, 2000)este trabalho tornou possível pensar que neste contexto se institui umexercício da função autor, uma autoria que emerge na especificidadedessa circunstância marcada pela impessoalidade. Autoria que seproduz ao insistir em operações de distinção que podem serobservadas na busca de um estilo próprio e de um reconhecimentodo trajeto percorrido. Mesmo que haja tendências à repetição deimagens típicas ou de estratégias, compondo sujeitos coletivos, oestilo específico de cada autoria tende a ser diferenciado entre osdemais. A originalidade é valorizada entre produtores de grafismosurbanos como uma evidência de atitude ousada e competência nacriação. Neste sentido, atribuída tanto à elaboração técnica quanto àespontaneidade do traço.

Nesse vir-a-ser grafista existe a experimentação e criação de

“A evolução de poucos é a inveja de muitos”, diz em letras verdesacima da sigla “TDK”, ao lado das personagens. Isso demonstranão somente o caráter competitivo da conversação, mas tambémseu sentido de um vir-a –ser grafista em ato.

Figura 7

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elementos de estilo. Além dos anteriormente referidos, cabemencionar o uso freqüente do rolinho ao invés do “clássico” spray, naRegião Sul do país. A alteração de instrumentos, pelo custo elevadodo spray, faz com que possam ser experimentadas e criadas outraspossibilidades de in(terven)ção.

Mas o exercício de uma autoria produz, no mesmo ato, umendereçamento, um interlocutor. Tal endereçamento de interlocução,como foi possível evidenciar, pode ser remetido a diferentes agentes:a sociedade como um agente anônimo; a grupos específicos, a outrosgrafistas.

A conversação urbana travada a partir dos grafismos revelaoutras e mesmas conversações. A própria condição de existência daintervenção gráfica tende a confrontar e a reiterar os ritmosestabelecidos no território urbano. Neste sentido, os grafismos podemser lidos como tentativas de desaceleração, já que se interpõem naspassagens, nas vias. Por outro lado, em vista da necessidadefreqüente de uma execução rápida do trabalho, exatamente por setratar de uma intervenção que desafia a legalidade instituída, aaceleração igualmente tende a caracterizá-los (trabalhar rápido, saircorrendo). Ambos os ritmos intervêm na produção e na fruição dosgrafismos urbanos.

Outra importante marca temporal das grafias urbanas é suaefemeridade. O fato de se trabalhar em espaços abertos pressupõetanto uma inevitabilidade da deterioração por exposição aoselementos climáticos; quanto da intervenção alheia – proprietários dossuportes; outros grafistas. Um espaço sempre aberto a outrasintervenções.

Pelo exposto, cremos ter sido possível evidenciar a existênciade coordenações de ações recorrentes capazes de constituirexercícios de linguagem em um domínio consensual comestruturação própria que garante certas especificidades. Ascaracterísticas recursividade, expansividade, invasividade einventividade são operações reiteradas na produção das imagens dosgrafistas. Mas, além disso, foi possível flagrar movimentos de autoriae de endereçamento capazes de ampliar a rede conversacional paraalém dos participantes do próprio domínio. Tal movimento de abertura

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revela-se tencionado pelas relações publico/privado; autoria/anonimato e legalidade/ilegalidade.

Notas

1 O presente artigo foi escrito a partir da Dissertação de Mestradointitulada Grafismos urbanos: composições, olhares e conversaçõesdefendida pelo primeiro autor e orientada pela segunda (Andreoli,2004).

2 Existe um quarto plano – sítios da Internet – que não entrarão emnossa análise.

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ARTIGOS GIOVANI SOUZA ANDREOLI E CLECI MARASCHIN

REVISTA MAL-ESTAR E SUBJETIVIDADE / FORTALEZA / V. V / N. 1 / P. 92 - 108 / MAR. 2005

Recebido em 13 de novembro de 2004Aceito em 27 de janeiro de 2005Revisado em 20 de fevereiro de 2005

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