linguagem da revelação ou linguagem da razão humana?
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YEHOSHUA / יהושע & JESUS: LINGUAGEM DA REVELAÇÃO OU LINGUAGEM DA RAZÃO HUMANA?
Célia Smarjassi 1 [email protected]
“ É preciso ver outra vez o que já se viu, ver na primavera o que já se vira no verão ver a seara verde,
o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar... É preciso recomeçar sempre”
(José Saramago) A temática deste artigo busca descortinar uma realidade que se relaciona aos avanços das
especulações (nas duas últimas décadas) sobre a relevância de se resgatar o nome de origem do
messias de Israel enquanto inauguradores de novos campos de pesquisa para que a comunidade
científica das Ciências da Religião, que se ocupam da investigação do pensamento religioso, se
dedique à busca minuciosa das possibilidades, limitações e compreensão dos rumos desta assertiva
acerca da importância do nome original do redentor como único expoente da salvação (da religião
cristã).
Objetivamos tentar compreender as conexões que permeiam a linguagem e o mito pela compreensão
do nome que é o expoente da salvação no cristianismo e buscar compreender o nome do messias de
Israel a partir da compreensão da linguagem e do mito.
Acreditamos que essa inter-relação é importante e necessária pois, ao se ressentir de uma ou de outra
fonte, poderá acarretar o empobrecimento, a parcialidade e a unilateralidade na compreensão e
explicação do problema.
O trabalho desenvolver-se-à em três etapas: primeiro, buscaremos, na literatura, um referencial teórico
que possa, de algum modo, elucidar a questão da íntima relação entre a essência do nome e sua
atividade existencial. Para tanto, recorremos às obras Linguagem e Mito de Ernest Cassirer (2006); O
Nome de Deus, A Teoria da Linguagem E Outros Estudos de Cabala e Mística:Judaica II de
Gerson Scholem (1999). Em seguida, buscaremos apresentar, de modo sucinto, alguns dos textos
bíblicos em que os adeptos do nome Yehoshua ou Yeshua se respaldam para justificar a premissa da
importância do nome de origem do Messias . Nessa etapa, servir-nos-emos da Bíblia de Jerusalém
edição 2002. Posteriormente, buscaremos, a partir da apresentação deste fenômeno religioso que
representa nosso objeto de reflexão, traçar o perfil deste tipo de manifestação religiosa e identificar os
motivos que impeliram homens e mulheres a iniciarem um verdadeiro êxodo religioso rumo a uma 1 Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Psicologia da Educação PUC/SP; Doutoranda em Ciências da Religião –PUC/SP.
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nova modalidade de adoração espiritual que tem, como princípio fundamental, o nome Yehoshua ou
Yeshua.
Ao contemplar esse assunto, o imperativo de nossa reflexão tem a tímida proposta de trazer à baila
algo que nos parece pouco observado pelos cientistas da religião, mas que se nos apresenta
inteiramente real e compreensível pois trata-se de inquirir sobre o movimento dissidente que toma de
assalto, em curto espaço de tempo, as comunidades cristãs, apresentando, como sustentáculo, a
idéia de se resgatar o verdadeiro nome do Messias de Israel tal qual foi anunciado pelo anjo a Maria.
O que nos parece inusitado é o fato de cristãos percorrerem um caminho quase que inverso, isto é,
resgatando raízes judaicas começando pelo remissão do nome de origem como único caminho de
acesso ao Pai e de ser ouvido pelo Messias . Aliado a isso, algumas práticas de culto que entendem
não terem sido abolidas na cruz com Yeshua/ Jesus são consideradas pertinentes como forma de
adoração.
Esse movimento, que em alguns locais são denominados “Testemunhas de Yehoshua”, “Adventistas
Bereanos” e “ Congregação Beit Shamayin” , dentre outras, iniciam seu deslocamento religioso
postulando que o nome Jesus resulta de uma progressiva mudança, primeiro para o grego que,
transliterado para o português, passa a ser Iesous e, posteriormente para o latim sob a forma Jesus.
Daí porque o nome do Salvador distanciou-se cada vez mais do original dado em Jerusalém por um
outro, grego, criado em Antioquia.
No entendimento desse grupo religioso, a troca do nome do Messias teria sido profetizada por Jeremias
aproximadamente entre os anos 640 até 609 antes do Messias conforme está escrito em Jr 11,18-19:
Iahweh mo fez conhecer e conheci; naquela ocasião tu me fizeste ver os seus atos. Mas como cordeiro manso que é levado ao matadouro, não sabia que eles tramavam planos contra mim: Destruamos a árvore em seu vigor, arranquemo-la da terra dos vivos e seu nome não será mais lembrado.
(A Bíblia de Jerusalém,2002,p.1387)
Caminhos e parcerias: o contexto histórico messiânico , a teoria mística da linguagem, a filosofia da linguagem- a linguagem e o mito
Pretendemos retomar alguns pontos nodais, em torno da celeuma criada pela extenuação do nome.
hebraico יהושע (Yehoshua). O nome Yeshua é formado de duas partes. A primeira, "Ye", é a forma
abreviada do nome próprio hebraico de Deus, "YHWH – יהושע ” .A segunda, "shua", é palavra
hebraica que significa salvação".
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Conquanto, nossa reflexão se apresenta mais como um convite a pesquisar essa controvérsia, uma vez
que para os estudos da linguagem, do mito, da verdade e da fé, essa tese é imprescindível, porém,
devido sua magnitude, não pode ser abordada em sua completude em espaço tão exíguo, como neste
trabalho.
Pelo viés da filosofia da linguagem, especificamente pela conexão entre linguagem e mito, dos
pressupostos da teoria mística da linguagem e mediante a redescrição da realidade histórica
messiânica, acreditamos que pode ser possível desestabilizar o nome Jesus solidificado no mundo
cristão em detrimento da extenuação do nome Yehoshua restabelecendo novos limites, mais
extensos, para a construção de sentido do nome que é o expoente de salvação para todos que
aceitam o Messias de Israel como enviado de Deus.
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No intuito de agregar argumentos sobre o contexto histórico messiânico , recorremos
à fala do professor de Judaísmo e Filosofia Judaica Dr. Dan Bem Avrahan , em entrevista concedida
ao Dr. King no Programa “Debatendo a Verdade” na Califórnia (EUA) em fevereiro/2006.
Ao ser argüido sobre sua fé no messias Jesus, o professor desvela uma série de fatos que nos
impressiona pela riqueza de informações e detalhes que cobrem desde a questão do nome Jesus
chegando às implicações teológicas imbuídas nesse processo. Assim, o professor e estudioso judeu
messiânico é incisivo em afirmar:
[...]. Em primeiro lugar não falamos de Jesus que é uma tradução infeliz do nome hebraico do judeu que requereu ser o Messias. Seu verdadeiro nome foi Yeshua. Tristemente a tradução do nome não é simplesmente um assunto gramatical, mas também algo mais sério, um assunto de teologia. (grifo nosso).
[...]Yeshua foi um judeu que viveu dentro da comunidade judaica de Israel entre os primeiros 30 anos da era atual. Em seus dias, o Templo de Jerusalém estava de pé com todos os sacerdotes e levitas oficiando os sacrifícios diários estabelecidos pelo Eterno ao nosso povo.
Como judeu que foi, enquanto era criança, subia com seus pais todos os anos para as três festas anuais que todo judeu está obrigado a santificar em Jerusalém. Nas outras podia faltar, mas nestas três não. Estas festas eram: Pésach (Páscoa) Shavuot (Pentecostes) e Sucot (Tabernáculos). Como é evidente, o mundo de Yeshua foi o mundo judeu: a lei de Moisés, o Templo, os sacerdotes, os levitas, os juízes de Israel, os mestres e as diferentes escolas de pensamento hebraico de seus dias: fariseus, saduceus, essênios, sicários, zelotes, etc.
[...] Yeshua não foi cristão, não havia cristianismo em seus dias. Somente judaísmo. Portanto, as palavras de Yeshua têm que ser entendidas à luz do Judaísmo, não do Cristianismo que veio depois, uns 300 anos mais tarde.
[...] Não somente posterior a Yeshua historicamente falando, mas que não representa o ensinamento real de Yeshua, nem de seus ditos nem de sua vida. Porque suas palavras foram interpretadas à luz do helenismo greco-romano, não à luz do Judaísmo.
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[...] A Igreja surge num contexto diferente ao de Yeshua. Ela existe fora de Israel, em meio à comunidade gentia, imperial e pagã. Não dentro do judaísmo. Então a missão mais importante da Igreja foi como ganhar os pagãos para a nova fé. E com o objetivo de tornar tal esforço mais sofrível e conhecido, agregaram os ditos e ensinamentos de Yeshua, que eram judeus, à linguagem e cultura dos pagãos. O resultado foi a distorção da mensagem judaica a respeito do Messias judeu. (grifo nosso)
[...] Então o que conhecemos hoje como a mensagem cristã não necessariamente foi a mensagem original de Jesus, ou seja, de Yeshua.
[...] Suas palavras foram entendidas e explicadas à luz da filosofia helenista e do paganismo, não à luz do Judaísmo. E o resultado deste feito foi o surgimento da Igreja Cristã, ou seja, o Cristianismo Católico tem muito pouco de sua essência original, ainda que guarde muitas de suas formas externas, mas fundamentadas em dois fatos chaves: transferência seletiva e substituição absoluta.
[...] Significa que a Igreja Católica, fundamentada em uma série de ensinamentos que já vinham sendo dados por alguns líderes cristãos, obviamente não judeus, a partir do segundo século, como por exemplo, Inácio de Antioquia, quem afirmou que Israel havia deixado de ser o povo escolhido e substituído pelos cristãos, desenvolve uma teologia de substituição, ou seja, ela é agora um novo Israel, o novo povo de D-us, os judeus foram rejeitados e substituídos pelos cristãos e fora isso, uma teologia de transferência seletiva, ou seja, as bênçãos que inicialmente haviam sido dadas para Israel, agora são passadas ou transferidas para a Igreja, mas as maldições creditadas aos judeus rejeitados por D-us. (Ler Efésios 2:11-22 e Romanos 11:17-20).
[...] Isto sucedeu e o resultado é a criação de uma entidade religiosa completamente separada e divorciada de sua matriz judaica e em ocasiões, não somente separada e divorciada, mas sua pior inimiga. Creio que ninguém duvida da grande inimizade que causou o Cristianismo Católico a tudo o que fosse judaico, as perseguições, as cruzadas, a inquisição e finalmente o holocausto nazista. Tristemente, tudo isso em nome da fé cristã e em nome de Jesus.
[...] As coisas não aconteceram de um dia para outro. Foi um processo que levou anos, séculos. E tudo começa quando os postulados básicos do Judaísmo são ignorados para se tornarem acessíveis aos pagãos, para evitar a censura romana, que era o império naqueles dias e que estava em guerra contra os judeus, são eliminadas todas as práticas e princípios judaicos que inicialmente desfrutaram os crentes em Yeshua, o calendário é alterado para não conter nada judaico nele, as datas bíblicas são substituídas por datas de celebração pagã e os judeus são acusados de serem os culpados da morte de Cristo. Isto foi criando uma separação, um ódio ao povo judeu que se transforma em um movimento anti-semita de proporções mundiais até nossos dias. Este processo foi o que eventualmente, com a conversão do imperador Constantino ao cristianismo por razoes políticas, não religiosas, ou seja, para usar o cristianismo como ferramenta política, criou as condições para o Santo Império Romano, ou seja, o Cristianismo se transforma na religião oficial do Estado com um objetivo: criar um governo mundial que domine o mundo inteiro, pois assim pensaram que seria o domínio de Cristo na terra.(grifo nosso)
Sobre esse aspecto, o movimento dos adeptos do nome Yehoshua/ Yeshua afirmam que esse episódio
está previsto profeticamente em Dn 7,25 : “ [...] proferirá insultos contra o Altíssimo;ele tentará mudar
os tempos e a Lei,b
Em nota de rodapé a Bíblia de Jerusalém, 2002, p.1569 traz a seguinte explicação:
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“[...] Alusão à política de helenização de Antíoco Epífanes, notadamente à sua interdição do sábado e
das festas (cf. Mc 1,41-52).”
Prosseguindo sua análise, o professor adverte que
[...]O cristianismo não tem nada a ver com o movimento de crentes não judeus do primeiro século. O cristão de Antioquia nos dias de Paulo, não tem nada a ver com o cristão de Roma três séculos mais tarde. São duas coisas completamente diferentes, em perspectiva, estado, doutrina e cultura. Tristemente o Cristianismo formado assim, ou seja, a Igreja Católica ou universal veio a ser a antítese do movimento cristão do primeiro século.
Eu não creio que este Jesus criado pela Igreja Católica seja o Messias.
Ao trazer à luz um pouco da história da Igreja, e, corroborando a fala do Prof. Dr.Avrham, observaremos
que essa metamorfose anunciada do nome do Messias pode fazer algum sentido, senão vejamos:
[...] desde Paulo, no início da Cristandade, até Agostinho, seu protagonista mais influente no final da Era Clássica, a natureza a as aspirações da nova religião (Cristianismo) foram decisivamente moldadas pelo contexto grego-romano [...] resultando numa extraordinária convergência do pensamento grego e da teologia cristã que transformariam a ambos.(TARNAS, p.120).
No que se segue nesta etapa da nossa investigação convocamos alguns autores, segundo a
necessidade da argumentação em relação ao poder que é conferido ao nome, porque esta é a
dimensão fundante de nossa reflexão para tentar compreender e esclarecer a dinâmica do tema
proposto.
A teoria mística da linguagem por meio de sua interpretação da linguagem como o segredo manifesto
argumenta essa tese mediante três princípios fundamentais. Vejamos:
1. A concepção de que a Criação e a Revelação são essencialmente auto-representações de Deus, nas quais estão inseridos, por esse motivo, correspondente à natureza infinita da divindade, momentos do Divino, que conseguem comunicar-se somente através de símbolos no âmbito finito e determinado de tudo o que foi criado. A essa idéia encontra-se diretamente relacionada a concepção ulterior, de que a essência do mundo é a linguagem.
2. a posição central do Nome de Deus enquanto origem metafísica de toda linguagem e a concepção da linguagem como exposição e desdobramento desse nome, como ela aparece nos documentos da Revelação, mas também principalmente em toda linguagem. A linguagem de Deus, que se cristaliza no Nome de Deus e, em última análise, naquele Nome, que é o seu centro, fundamenta toda linguagem falada na qual ela se reflete e aparece em forma de símbolo.
3. A relação dialética entre magia e mística na teoria do Nome de Deus não menos do que no poder extraordinário, aqui atribuído à simples palavra humana.(SCHOLEM, 1999,p.12)
Como observamos, Scholem no capítulo O Nome de Deus e a Teoria da Linguagem Cabalista vem
lançar-nos luz sobre a pergunta essencial que o pensamento religioso no judaísmo sempre se
colocou, isto é:
O vínculo indissolúvel do conceito de verdade da Revelação com o da linguagem, na qual a palavra de Deus se torna perceptível, ou seja, no médium da linguagem humana, e se todavia essa palavra de
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Deus se dá na experiência humana é , certamente, uma das mais importantes heranças do Judaísmo, senão uma das mais importantes na história da religião (ibid., pp.10-11)
Isso pode soar como uma estranha prescrição aos nossos ouvidos, contudo nos conduz a um outro
ponto importante:
A convicção de que a linguagem, o médium no qual o espírito do homem se concretiza, possui um lado interior, ou seja, um aspecto que não se revela totalmente nas relações de comunicação entre os seres, forma o ponto de partida de todas as teorias místicas da linguagem das quais também faz parte a dos cabalistas. Os homens se comunicam entre si, procuram fazer-se entender em com o outro mas em toda essa busca escapa algo, que não é apenas sinal, comunicação, significado e expressão. O som, em cima do qual se constrói toda a linguagem, a voz que ela enforma, amolgado com o seu material sonoro, é, sob este ponto de vista, prima facie, mais do que o entendimento pode conceber [...] Mas se a linguagem é mais do que comunicação e expressão que os filólogos pesquisam, se esse elemento sensível, de cuja profusão e profundidade ela mesma é formada, também possui aquele outro aspecto que denomino o lado interior da linguagem, então surge a pergunta: o que é essa dimensão “secreta” da linguagem sobre a qual todos os místicos sempre estiveram de acordo, desde os indianos e os místicos do Islã até os cabalistas e Jacob Boehme? A resposta é praticamente indubitável: é o caráter simbólico da linguagem que determina essa dimensão (ibid., p.10)
Vê-se claramente que esse caráter simbólico da linguagem apontado pelo autor é de vital importância
para a nossa discussão, pois a linguagem, sob esse prisma, carrega em seu bojo uma autoridade, um
decoro, uma dimensão imanente singular. Isso nos conduz a um ponto importante sobre o tema que
temos por objeto de reflexão: daí ser possível inferir que é exatamente essa dimensão simbólica do
nome Yehoshua que se perde ao ser transliterado. Agora, cabe-nos analisar um processo que abre ao
homem perspectivas admiráveis, profundas e excepcionais em torno no nome que é sobre todos os
nomes para o cristão, pois é o nome expoente da salvação.
Sob outro prisma, a filosofia da linguagem nos dá a conhecer a importância do falar, como
característica sui-gêneris do ser humano. Gênesis 2,19-20 nos exemplifica como a realidade é
nomeada e passa a existir para o homem.
Sobre isso, Cassirer (2006, pp.64-65) nos informa que
[...] Em todas as cosmogonias míticas, por mais longe que remontemos em sua história, sempre volvemos a deparar com esta posição suprema da Palavra [...] as passagens iniciais do Evangelho segundo São João e que, com efeito, na tradução apresentada, parece coincidir inteiramente com isto. Diz: “No princípio a Palavra originou do Pai [...] Deve haver alguma função determinada, essencialmente imutável, que confere à Palavra este caráter distintivamente religioso, elevando-a, desde o começo, à esfera religiosa, à esfera do ‘sagrado’ Nos relatos da Criação de quase todas as grandes religiões culturais, a Palavra aparece sempre unida ao mais alto Deus criador, quer se apresente como instrumento utilizado por ele, quer diretamente como fundamento primário de onde ele próprio, assim como toda existência e toda ordem de existência provêm.O pensamento e sua expressão verbal costumam ser aí concebidos como uma só coisa, pois coração que pensa e língua que fala se pertencem necessariamente.
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Móran (2006), em seu artigo “Chamados pelo próprio nome” reflete sobre o ato de chamar ; do
chamamento no seu sentido próprio, ativo e concreto: O autor sublinha a idéia de que “[...] a ação de
pronunciar oralmente, em voz alta, o nome de alguém, de convida-lo a vir, a ver, a empenhar-se numa
tarefa ou atividade, a fazer um caminho, a orientar-se numa determinada direção existencial.”
Para o autor, o chamar- chamamento como fonte do ser pessoal resulta na seguinte conclusão: “Sou
chamado, logo existo”. Prossegue seu raciocínio concluindo que “[...] todo chamamento desemboca e
nos introduz num êxodo. E por sua vez, se converte por si mesmo em envio, em missão”.
Nas palavras do autor, “[...] a palavra, pois, o nome, aprendido, de nossos pensares e de nossos
sentires, dão-nos a posse de nós mesmos, a consciência de que existimos, o saber que somos.”
O contato com a obra Linguagem e Mito (CASSIRER, 2006) nos permitiu adentrar em um importante
campo de pesquisa sobre as conexões entre linguagem e mito, posto que o autor recorre, muitas
vezes, à investigação lingüística e à etimologia como veículos de interpretação . Mais especificamente,
o capítulo “A Magia da Palavra”, nos permitiu intuir porque, para muitos povos, a questão do
verdadeiro nome de Deus é tão importante. Contudo, pelo que pudemos investigar, esse movimento
religioso dissidente do cristianismo, ora apresentado, não teve nenhum acesso às literaturas como as
que se seguem para poder perceber a importância do nome de Deus ou do Messias no processo de
salvação.
Por exemplo, Cassirer (ibid., p.17) assinala que
A idéia de que o nome e a essência se correspondem em uma relação intimamente necessária, que o nome não só designa, mas também é esse mesmo ser, e que contém em si a força do ser, são algumas das suposições fundamentais dessa concepção (Anschauung) mítica, suposições que a própria pesquisa filosófica e cientifica também parecia aceitar. Tudo aquilo que no próprio mito é intuição imediata e convicção vívida, ela converte num postulado do pensar reflexivo para a ciência da mitologia; ela eleva, em sua própria esfera, ao nível de exigência metodológica a íntima relação entre o nome e a coisa, e sua latente identidade.
Discorrendo sobre o liame constitutivo do nome e seu portador, Cassirer (ibid.,p.68) pontua que
A identidade essencial entre a palavra e o que ela designa torna-se ainda mais evidente se, em lugar de considerar tal conexão do ponto de vista objetivo, a tomamos de um ângulo subjetivo. Pois também o eu do homem, sua mesmidade e personalidade, estão indissoluvelmente unidos com seu nome, para o pensamento mítico. O nome não é nunca um mero símbolo, sendo parte da personalidade de seu portador; é uma propriedade que deve ser resguardada com o maior cuidado e cujo uso exclusivo deve ser ciosamente reservado. Por vezes, não é apenas o nome próprio, mas qualquer outra designação verbal, que é, desta forma manejada como uma propriedade física, podendo ser como tal adquirida e usurpada.
[...] O nome pode desenvolver-se para além deste significado mais ou menos acessório da posse pessoal, na medida em que é visto como um ser substancial, como parte integrante da pessoa. Enquanto tal, pertence à mesma categoria que seu corpo ou a sua alma.
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É importante ressaltar que essa simbiose entre o nome e a personalidade está presente de forma viva
em culturas bastante avançadas.
Adicionalmente, mais uma vez recorremos a Scholem (1999, pp.14-15) que, em semelhante
interpretação, faz uma importante citação pontuando que :
Entre os historiadores das religiões é bastante difundida a idéia de que a magia do nome se baseia no fato de que entre ele e seu portador existe uma estreita e fundamental relação. O nome é uma grandeza real, e não um elemento fictício. Ele contém uma declaração sobre a essência de seu portador ou algo, acerca do poder que lhe é próprio; sim, chega a ser identificado com a própria essência do denominado, uma concepção que desempenhou um importante papel no contexto oriental do judaísmo, sobretudo na religião egípcia. Dever-se-ia dizer, no entanto, que a magia da palavra é para o homem uma outra experiência fundamental bem mais ampla, que somente na magia do nome encontra um aguçamento especialmente incisivo.
São muitos os exemplos que ilustram o fato de que um deus pode ser mantido duradouramente
no estreito domínio para o qual foi na sua origem criado. Contudo, não vamos nos estender em
citações para conferir a esse tema um friso da viva conexão entre a personalidade e o nome.
Mas, sobre isso, é oportuno salientar que o nome Yehoshua (hebraico) e a abreviação sofrida
no exílio babilônico passando para Yeshua (hebraico-aramico) não mudam o significado do nome que
originalmente quer dizer “o Senhor vai salvar/salva/salvou”. Mas, se considerarmos a hipótese de que
a transliteração não assegura o real significado dos nomes, a questão de se resgatar sua origem pode
ter fundamento.
Em suas investigações científicas Cassirer (2006, p.69) acentua que
[...] também a unidade e unicidade do nome não compõem somente o signo da unidade e unicidade da pessoa, mas a constituem realmente, pois o nome é que, antes de mais nada, faz do homem um indivíduo. Onde não existe essa distinção verbal, os limites da individualidade começam a apagar-se.
Os “Testemunhas de Yehoshua”, “Adventistas Bereanos” e “Congregação Beit Shamayin”
dentre outros inúmeros grupos religiosos que defendem a restauração do nome do Messias de Israel
apresentam alguns princípios bastante contundentes na explicação e justificação dessa fé no nome
e o fazem a partir de alguns textos bíblicos.
Inicialmente, é preciso esclarecer que, na Bíblia, o nome de uma pessoa tem uma grande
importância, equivale à própria pessoa, não se restringe a um simples rótulo, mas está atrelada à sua
personalidade, portanto, tem um significado peculiar, singular. Daí porque, em situações especiais,
apenas Deus trocava o nome de uma pessoa a fim de que o novo nome representasse a finalidade de
sua nova missão. A exemplo disso podemos destacar Abrão (Pai da Exaltação”) que se tornou Abraão
(“Pai de multidões”), Sarai (“Contenciosa”) mudado para Sara (“Princesa”); Jacó que significa “agarrar
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o calcanhar” ou “suplantador”, após sua luta com o anjo passa a ser chamado de Israel que significa
“Nação”. Considerando ainda que Deus chama até as estrelas do céu por nome é porque realmente
essa questão deve ser , no mínimo, considerada.
Encontramos na Bíblia de Jerusalém (2002, p.1256,nota de rodapé a) a seguinte
explicação para a questão do nome: “O nome próprio define o ser que o usa e fixa-lhe o destino (cf.os
nomes de Jacó,Gn 25,36, e de seus filhos, Gn 29,31-30,24 etc). Alteração de nome significa uma
alteração de vocação (cf.Abraão, Gn 17,5;Israel, Gn 32,29,etc.)”.
Sobre isso, vale patentear que
[...] para a concepção mítica fundamental, a individualidade humana não é algo simplesmente fixo e imutável, mas algo que, a cada passo, em uma nova fase decisiva da vida, ganha um outro ser, um outro eu, esta transformação também se exprime, antes de tudo, na troca do nome. (CASSIRER, 2006, p.69)
Prosseguindo nossa reflexão, encontramos em Mt 1,21 e Lc 1,31 o relato que um anjo é
enviado do céu para anunciar a Maria e depois a José o nome Jesus (A Bíblia de Jerusalém, em
nota de rodapé, alínea f , p. 1704 assevera que esse nome em hebraico é Yehoshua. ) que deveriam
colocar na criança que iria nascer. Fica a pergunta: Sendo eles, os pais, não teriam o direito de
escolherem o nome do filho? Por que Deus fez questão de escolher, Ele próprio, o nome de seu
unigênito ainda que nascido de carne? Parece realmente polêmica essa questão.
Ampliando um pouco mais o debate, o pastor Marcos Andrade
(www.pedrasvivas.org.br/19/04/2009) esclarece, segundo sua interpretação bíblica, a intima relação
entre o nome de Deus e do filho Yeshua conforme segue:
Yeshua, antes de tabernacular entre nós em um corpo físico, se manifestava num corpo espiritual e às vezes era chamado de: “O Anjo do Senhor”. Em uma de suas manifestações, o Eterno revela que colocou o Seu nome nele: Êxodo 23: 20, 21: “Eis que Eu envio um anjo diante de ti, para que te guarde pelo caminho e te leve ao lugar que te tenho preparado. Guarda-te diante dele e ouve a sua voz, e não o provoques a ira; porque não perdoará a vossa rebeldia; porque o Meu Nome está Nele.”
O D'us e Pai do nosso Senhor Yeshua Há Mashiach (Jesus, o Messias) deu um nome ao Seu Filho que é sobre todo o nome (Filipenses 2: 9). Quem dá é maior do que quem recebe, como está escrito em 1 Coríntios 15: 28. “E, quando todas as coisas lhe estiverem sujeitas, então, também o mesmo Filho se sujeitará àquele que todas as coisas lhe sujeitou, para que D'us seja tudo em todos”. Logo, este nome que foi dado ao Filho, Yeshua, tinha que conter também o nome Daquele que sujeitou a Ele todas as coisas.
A importância do nome nos Escritos Apócrifos também vai ficando muito patente.
Em 1Jo 5,13 está escrito: “Eu vos escrevo tudo isto a vós que credes no nome do Filho de
Deus, para saberdes que tendes a vida eterna.” (A Bíblia de Jerusalém, 2002, p.2133) Podemos
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observar que o perdão dos pecados e a vida eterna estão diretamente condicionados ao nome do
Messias de Israel. At. 10,43; Lc 24,46-47 também mencionam esta misteriosa relação condicional.
Um outro texto bíblico bastante significativo usado para corroborar a tese desses movimentos
está registrado em Jo 4,22 mencionando que a salvação vem dos judeus, portanto o nome do doador
da salvação não poderia ser grego, mas hebraico. Ainda, em At 4,12 a advertência quanto à existência
de um único nome com o poder de remissão dos pecados e de salvação acirra ainda mais a polêmica
. Vejamos: “Pois não há, debaixo do céu, outro nome dado aos homens pelo qual devamos ser salvos”
(ibid.,p.1907)
Diante do acima exposto, podemos inferir que [...] Quanto maior o poder de um ser,
e quanto mais eficácia e ‘significação’ mítica contém, tanto mais se estende a significação de seu nome
(CASSIRER, 2006,p.71).
Ainda, segundo Cassirer, Giesebrecht estudou profundamente a origem, expansão e repercussão da
norma que determina o sigilo ao nome de Deus e detectou que esta motivação no Antigo Testamento
também encontra eco no Cristianismo primitivo conforme observa:
Que o nome surja como representante da pessoa, que pronunciá-lo equivalha a chamar a existência presente, que seja temido porque é um ser real, que se deseje conhece-lo porque contém poder, tudo isto [...] nos ensina a compreender o que sentiam e queriam expressar os primeiros cristãos quando diziam: em nome de Deus, em nome de Cristo, em vez de dizerem: em Deus e em Cristo [...] O nome é pronunciado sobre a água batismal, com o que toma posse dela e a preenche, de modo que o neófito é imerso, na verdadeira acepção da palavra no nome do Senhor. A congregação cuja liturgia começa ‘em o nome de Deus’ por mais formal e impropriamente que as palavras tenham sido utilizadas em seguida, permanece- pensava-se, então- no domínio e na eficácia do nome, que foi pronunciado no início.’ Onde quer que estejam reunidos dois ou três em meu nome[...] estou Eu em meio a eles’ (São Mateus, XVIII, 20) isto não quer dizer senão que: ‘onde pronunciem meu nome e o reunidos, aí estou Eu realmente presente’(ibid., 2006,p.72)
Os textos bíblicos são contundentes, os textos científicos nos despertam para algo , no
mínimo, curioso. Desse modo, frente a um problema que tem causado tantas rupturas, acalorados
debates e até mesmo violentas discussões nas comunidades religiosas, inegavelmente estamos
diante de uma realidade que não pode ser escamoteada nem ignorada. Entendemos que o porfiar
sobre essa questão do nome é um tema de grande envergadura que deve ser lido a partir da exegese
e da hermenêutica bíblica sim , mas que extrapola seus limites uma vez que, no limiar dessa
discussão, fica tangível nuanças que geram controvérsias, que inquietam e , por isso, merecem ser
repensadas do ponto de vista científico da filosofia da linguagem e do ponto de vista religioso como
um fenômeno religioso da contemporaneidade.
Tomamos emprestadas as palavras de Cassirer (ibid.,73), para, mais uma vez chamar a
atenção acerca do tema proposto:
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A esta altura, detemo-nos, pois, em vez de acumular material histórico-religioso e etnológico, importa-nos, bem mais, encarar em profundidade o problema que aí aflora. Um entrelaçamento e imbricação, tal como aqui se manifestou, entre os elementos da linguagem e as diferentes configurações básicas da consciência mítico-religiosa, não pode ser mero acaso, devendo fundamentar-se em um traço essencial da própria linguagem e do mito.
Considerações finais. Concluindo nossa reflexão, mas sem a pretensão de fechá-la, podemos inferir que, diante do
crivo questionador apresentado em relação ao nome Jesus, podemos deduzir que o perfil desses
movimentos religiosos que advogam em favor da restauração do nome Yehoshua ou Yeshua como
único nome santo em detrimento do nome profano, parece-nos resultar, sim, da consciência mítico-
religiosa da Palavra, já que grande parte dos sujeitos dessas comunidades sinalizam chegar a essa
conclusão sobre a fé na supremacia do nome e no poder mágico que lhe é peculiar pelo caminho da
intuição, que, na concepção deles, trata-se de revelação divina.
À guisa de conclusão, queremos , com esta reflexão, precisar nossa intenção de despertar o
problema para a investigação científica recomeçando a viagem ao centro dos nomes sagrados.
Ilustraremos esse chamado, partilhando as palavras de Fernando Pessoa, que nos atrai para uma
reflexão :
O meu olhar é nítido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas olhando para a direita e para esquerda e de vez em quando olhando para trás. E o que vejo a cada momento é aquilo que eu nunca tinha visto antes. E eu sei dar por isso muito bem.
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