língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas · pressupostos de uma teoria...

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 33 – Gramática e construção discursiva: estudos da Língua Portuguesa e uso. 134 CONSTRUÇÕES APOSITIVAS: DIVERSIDADE E MULTIFUNCIONALIDADE Márcia Teixeira NOGUEIRA 1 RESUMO: Este estudo teve o propósito de correlacionar aspectos sintáticos, textual-semânticos e pragmático-discursivos do uso de construções apositivas não-restritivas em amostras de textos jornalísticos, publicitários, acadêmicos e jurídicos do português escrito, brasileiro, contemporâneo. A partir de uma orientação funcionalista e sociointeracionista, entendemos que a diversidade do uso da linguagem está associada à diversidade das práticas sociais dos diferentes grupos, e que os gêneros associados a essas práticas, se caracterizam pelos conteúdos e pelos meios lingüísticos de que se utilizam. A construção apositiva constitui um meio lingüístico de natureza estratégica que participa, a um só tempo, da construção dos sentidos de um texto nos planos textual, cognitivo e argumentativo-atitudinal. Em cada um desses planos, as construções apositivas desempenham diferentes funções quando analisadas em situações reais de uso da língua. Essas funções não se excluem, mas, antes, se combinam, conferindo, à aposição, um caráter multifuncional. Podemos, no entanto, observar a predominância de determinadas estratégias textualizadoras em alguns gêneros em particular, tais como a referenciação anafórica na notícia, com o propósito de refocalizar um referente discursivo apresentado na primeira unidade da construção; as referenciações catafóricas como estratégia de focalização e orientação argumentativa nos artigos de opinião, editoriais e nos anúncios (focalização); a reformulação na busca por maior adequação e precisão conceitual em artigos científicos; bem como as qualificações atributivas ou designativas em petições, como modo formulaico de construir a identidade dos referentes discursivos, na designação das pessoas envolvidas no processo judicial. PALAVRAS-CHAVE: aposição; construção apositiva; gêneros textuais. Aposição: aspectos conceituais Não há consenso entre gramáticos e lingüistas em torno dos limites conceituais da aposição. Alguns estudiosos, tais como Taboada (1978), Burton-Roberts (1987), Rodriguez (1989) e Lago (1991), defendem a exigência de correferência estrita e de identidade funcional entre os termos em aposição, restringindo bastante o conjunto de construções que podem ser analisadas como apositivas. Outros, como Matthews (1981), Quirk et al.(1985), Meyer (1987, 1989, 1992), assumem a 1 Professora doutora do Departamento de Letras Vernáculas e do Programa de Pós-Graduação em Lingüística da Universidade Federal do Ceará. Coordenadora do Grupo de Estudos em Funcionalismo. Endereço: Av. dos Expedicionários, 3406, apto. 601, bloco 01, Benfica, CEP: 60.410-410. Fortaleza-Ceará-Brasil. Endereço eletrônico: [email protected] .

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 33 – Gramática e construção discursiva: estudos da Língua Portuguesa e uso.

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CONSTRUÇÕES APOSITIVAS: DIVERSIDADE E MULTIFUNCIONALIDADE

Márcia Teixeira NOGUEIRA1

RESUMO: Este estudo teve o propósito de correlacionar aspectos sintáticos, textual-semânticos e pragmático-discursivos do uso de construções apositivas não-restritivas em amostras de textos jornalísticos, publicitários, acadêmicos e jurídicos do português escrito, brasileiro, contemporâneo. A partir de uma orientação funcionalista e sociointeracionista, entendemos que a diversidade do uso da linguagem está associada à diversidade das práticas sociais dos diferentes grupos, e que os gêneros associados a essas práticas, se caracterizam pelos conteúdos e pelos meios lingüísticos de que se utilizam. A construção apositiva constitui um meio lingüístico de natureza estratégica que participa, a um só tempo, da construção dos sentidos de um texto nos planos textual, cognitivo e argumentativo-atitudinal. Em cada um desses planos, as construções apositivas desempenham diferentes funções quando analisadas em situações reais de uso da língua. Essas funções não se excluem, mas, antes, se combinam, conferindo, à aposição, um caráter multifuncional. Podemos, no entanto, observar a predominância de determinadas estratégias textualizadoras em alguns gêneros em particular, tais como a referenciação anafórica na notícia, com o propósito de refocalizar um referente discursivo apresentado na primeira unidade da construção; as referenciações catafóricas como estratégia de focalização e orientação argumentativa nos artigos de opinião, editoriais e nos anúncios (focalização); a reformulação na busca por maior adequação e precisão conceitual em artigos científicos; bem como as qualificações atributivas ou designativas em petições, como modo formulaico de construir a identidade dos referentes discursivos, na designação das pessoas envolvidas no processo judicial. PALAVRAS-CHAVE: aposição; construção apositiva; gêneros textuais.

Aposição: aspectos conceituais

Não há consenso entre gramáticos e lingüistas em torno dos limites conceituais da aposição.

Alguns estudiosos, tais como Taboada (1978), Burton-Roberts (1987), Rodriguez (1989) e Lago

(1991), defendem a exigência de correferência estrita e de identidade funcional entre os termos em

aposição, restringindo bastante o conjunto de construções que podem ser analisadas como apositivas.

Outros, como Matthews (1981), Quirk et al.(1985), Meyer (1987, 1989, 1992), assumem a

1 Professora doutora do Departamento de Letras Vernáculas e do Programa de Pós-Graduação em Lingüística da Universidade Federal do Ceará. Coordenadora do Grupo de Estudos em Funcionalismo. Endereço: Av. dos Expedicionários, 3406, apto. 601, bloco 01, Benfica, CEP: 60.410-410. Fortaleza-Ceará-Brasil. Endereço eletrônico: [email protected].

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existência de um caráter gradual em tal processo sintático, reunindo e analisando diferentes tipos de

construções, na perspectiva de que algumas são semântica e sintaticamente mais típicas do que

outras.

Do ponto de vista da categorização da relação sintática mantida entre os elementos em

aposição, alguns estudiosos a identificam ou com a coordenação, tais como Hockett (1958, p.185),

ou com a subordinação, como Carone (1988, p.66). Todavia, apesar das possíveis semelhanças entre

aposição e coordenação, em virtude da simetria observada em algumas construções a partir dos

testes de supressão e permuta, a aposição canônica distingue-se da coordenação pela condição

semântica de equivalência entre os termos apostos. Reconhecer, na aposição, uma relação de

subordinação também não nos parece adequado, já que, tipicamente, os elementos em aposição têm

a mesma capacidade de configuração sintática. Se esses são os dois tipos fundamentais de relações

que a lingüística estrutural costuma identificar nas construções endocêntricas, e a aposição é uma

construção endocêntrica, alguns lingüistas, como Burton-Roberts (1994, p.185), preferem concluir

que a aposição não é uma genuína relação sintática.

Para alguns estudiosos, no entanto, a aposição não pode ser elucidada de acordo com os

pressupostos de uma teoria clássica. Segundo Matthews (1981, p.223), a aposição consiste em um

tipo de justaposição, relação que o lingüista considera como uma das mais primitivas, sendo ela

indiferenciada relativamente aos demais processos sintáticos por ele descritos. Matthews afirma que

o termo aposição tem sido empregado para denominar uma variedade de construções que não podem

ser agrupadas segundo um critério único, e discute os limites da aposição, apontando problemas de

fronteira entre construções ditas apositivas e alguns processos constantes em sua tipologia. Para

Matthews (1981, p.236), a aposição é um notável exemplo de uma categoria que não exibe fronteiras

bem definidas em termos de condições necessárias e suficientes. Em vez disso, o autor sugere que,

de acordo com uma categorização inspirada na semelhança de família, que há um uso paradigmático

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da aposição e outros usos a ele relacionados por várias formas de semelhanças, não podendo ser

naturalmente determinado onde tais semelhanças terminam.

Opondo-se à análise que Matthews faz da aposição como uma relação não completamente

diferenciada, subtipo da justaposição, Meyer (1992, p.5) define a aposição como uma relação

gramatical particular evidenciada em construções com características semânticas, sintáticas e

pragmáticas.

No paradigma funcionalista, é corrente a idéia de que as diferenças entre os tipos de relações

sintáticas estabelecidas entre orações (e também entre constituintes da oração) são graduais. Para Lehmann

(1988), tais relações podem ser encontradas em um contínuo que vai da não-dependência à máxima

integração. Hopper e Traugott (1993) também estudam as relações entre orações e postulam a existência de

graus crescentes de integração (parataxe > coordenação > hipotaxe > subordinação). Contudo, de acordo com

Lehmann (1988, p.181), a aposição é vista como uma relação de não-dependência, que se distingue da relação

de um atributo com o seu substantivo nuclear. Por outro lado, Hopper e Traugott (1993, p.175) identificam a

aposição como uma relação de hipotaxe em que, embora ainda não se possa falar em integração, há uma

interdependência entre os termos.

Assumimos com Taylor (1992, p.63) que, se não for restringida, uma categoria poderia

eventualmente cercar o universo total de entidades, desde que fosse possível estabelecer algum tipo

de similaridade tênue entre qualquer eventual par de objetos. Por esse motivo, parece-nos necessário

garantir uma fronteira para a categoria de aposição pela exigência de que todos os seus membros

compartilhem pelo menos um atributo como critério. Dessa forma, a presente pesquisa opta pela

adoção de uma abordagem de protótipos, que, de acordo com Givón (1995, p.12), permite tanto a

fluidez nas margens, como a solidez no núcleo das categorias.

O traço comum entre as diferentes construções ditas apositivas, mesmo as mais marginais,

parece-nos ser a natureza centrípeta, ou seja, que gira em torno de um ser como o seu centro,

segundo define Camara Jr. (1986, p. 47). Esse atributo essencial também se encontra na concepção

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que Halliday (1985, p. 203) tem sobre aposição. Para Halliday, a aposição enquadra-se no tipo de

relação lógico-semântica de expansão por elaboração (=), em que, em vez de ser introduzido um

novo elemento no cenário, como ocorre na relação de extensão (+), é fornecida uma caracterização

adicional ao elemento anterior de modo a reformulá-lo, especificá-lo em mais detalhes, comentá-lo,

ou para apresentar exemplos.

Contudo, de acordo com uma categorização por protótipos, as construções apositivas devem

ser definidas não apenas por um traço, mas antes por um conjunto de traços característicos. As

construções mais típicas de uma aposição exibem um maior número desses traços característicos e

podem ser consideradas como protótipo da categoria. É de se supor que a maioria das construções

apositivas exiba um grande número desses traços, assemelhando-se, portanto, ao protótipo, ao passo

que uma minoria apresente apenas alguns desses traços, sendo menos parecida com o protótipo.

Diferentes tipos de construções podem ser assimilados à categoria de aposição na base de sua

similaridade com o protótipo. Há graus em que uma construção é vista como membro dessa

categoria: quanto mais próxima for do protótipo, mais central é seu estatuto dentro da categoria.

Segundo Taylor (1992, p.60), a noção de similaridade, que subjaz todos os processos de

categorização, torna-se complexa por duas razões. Primeiro, porque esse é um conceito escalar, já

que coisas podem ser mais, ou menos, similares, embora seja difícil determinar quão diferentes

devam ser para que cesse a similaridade. A segunda dificuldade concerne ao fato de que similaridade

é também uma noção subjetiva.

Os gramáticos Quirk et al. (1985, p.1302) reúnem sob o mesmo rótulo uma diversidade de

construções que costumeiramente são apontadas nas gramáticas tradicionais como apositivas, e

assumem a existência de aposições ditas plenas e de aposições ditas parciais. A aposição plena se

caracteriza pelas seguintes condições: a) cada um dos apositivos pode ser separadamente omitido

sem afetar a aceitabilidade da sentença resultante; b) cada apositivo exerce a mesma função nas

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sentenças resultantes; c) pode assumir-se que não há nenhuma diferença entre a sentença original e

qualquer uma das sentenças resultantes em termos de referência extralingüística. As aposições que

não apresentam alguma dessas condições são tidas, pelos gramáticos, como aposições parciais.

Meyer (1989) também prefere integrar diversas construções, analisando-as na perspectiva de

que algumas são semântica e sintaticamente “mais apositivas” do que outras.Valorizando, sobretudo,

os aspectos formais relativos ao grau de dependência estrutural entre elementos em aposição, Meyer

afirma existirem aposições coordenativas e aposições subordinativas. As coordenativas são

consideradas pelo autor como aposições centrais, e as subordinativas, como aposições periféricas,

que estão na fronteira com outros tipos de construção. O autor propõe os seguintes critérios

sintáticos para a identificação do que ele designa como aposições centrais: 1) a primeira unidade da

aposição pode ser suprimida; 2) a segunda unidade da aposição pode ser suprimida; 3) as unidades

da aposição podem ser permutadas. Quanto maior for o número de critérios satisfeitos, mais próxima

estará a construção da aposição central. Construções que não preenchem um ou mais de um desses

critérios são ditas periféricas.

As propriedades apontadas por Quirk et al. (1985) e Meyer (1992) para uma aposição

prototípica assentam-se na semelhança que esses estudiosos vêem entre aposição e coordenação.

Dessa forma, aposição e coordenação são vistas como similares se considerada a independência

estrutural dos elementos, evidenciada na possibilidade de suprimi-los e de permutá-los. Parece-nos,

todavia, que, se tais propriedades se aplicam a aposições centrais, isso ocorre não pela existência de

identidade estrutural entre as unidades em aposição, por ambas pertencerem a um mesmo nível

estrutural, mas, principalmente, pelo traço de equivalência semântica entre as unidades apositivas, o

que permite, por exemplo, que uma possa substituir a outra que foi suprimida.

Quirk et al. (1985) e Meyer (1987) incluem, sob o rótulo de “apositiva”, uma diversidade de

estruturas em que se exprimem diferentes relações semânticas. Para Quirk et al. (1985), a

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equivalência é condição necessária para a aposição dita plena, e existe uma escala semântica para a

aposição, com uma gradação que vai de uma relação de equivalência semântica entre os elementos

(“mais apositiva”), a uma relação livre e assimétrica, como a inclusão (“menos apositiva”). Entre as

duas, está a relação de atribuição.

Também para Meyer (1987), a correferência não é o único tipo de relação semântica mantida

por elementos em aposição. Segundo o autor, apesar de a correferência ter sido, no passado, tomada

como critério principal para a aposição, ela não constitui critério decisivo, porque, em algumas

construções apositivas, a correferência pode ser posta em dúvida ou simplesmente não se verificar

de forma alguma. Desse modo, o autor sugere que se assuma também a existência, na aposição, de

outras relações semânticas, que podem ser referenciais - a referência parte/todo e a referência

catafórica (a referência a uma unidade não-referencial)- ou não-referenciais, como a sinonímia, a

atribuição e a hiponímia.

Segundo Meyer (1989), a principal vantagem de admitir-se que as unidades em aposição

possam estar relacionadas também por hiponímia ou sinonímia reside no fato de construções não-

nominais, em que não há identidade categorial entre os itens, poderem ser analisadas como

apositivas.

Vale observar que os trabalhos de Quirk et al. (1985) e de Meyer (1992) sobre aposição

parecem seguir uma tradição clássica de apontar traços que permitam, sem interferência da

subjetividade, o julgamento de similaridade entre as diferentes construções ditas apositivas e uma

aposição prototípica.

A esse respeito, cumpre dizer que, rejeitando a abordagem clássica de categorização, Taylor

(1992, p.62) fala em atributos em vez de traços binários primitivos. Segundo o autor, atributos

podem ser cognitivamente muito complexos, e um dos mitos da teoria clássica consiste em acreditar

que conceitos complexos são, em última instância, redutíveis a conjuntos de primitivos binários.

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Subjacente à tentativa de caracterizar os atributos está a hipótese de que uma estrutura cognitiva

complexa pode ser exaustivamente representada por meio de uma lista de seus componentes, em

outras palavras, a hipótese de que um conjunto é nada mais do que a soma de suas partes. O autor

lembra que Langaker (1987) tem questionado tal hipótese, ao ressaltar que estruturas cognitivas

freqüentemente necessitam ser entendidas mais como configurações holísticas, gestálticas, do que

como pacotes de atributos. Especialmente quando se lida com categorias de nível básico, o todo

pode ser perceptual e cognitivamente bem mais simples do que qualquer de suas partes individuais,

de modo que as partes são entendidas em termos do todo, e não o contrário. Com essas

considerações, Taylor pretende dizer que não é ilegítimo falar de atributos, contanto que não se

designe, por esse termo, componentes semânticos atômicos.

No presente estudo sobre aposição, as condições de identidade referencial, funcional e

categorial são reconhecidas como propriedades de uma representação prototípica da aposição. Tais

condições, consideradas em conjunto, definem a aposição como uma construção semântico-

funcional simétrica. As operações de supressão e permuta de termos apositivos constituem traços

por meio dos quais essas propriedades são evidenciadas e, dessa forma, pode-se avaliar em que

extensão há similaridade entre uma construção dita apositiva e a representação prototípica da

aposição.

Construções apositivas não-restritivas em diferentes gêneros textuais escritos

Já em Nogueira (1999), a aposição não-restritiva é caracterizada como inserção parentética

em virtude da natureza formal de segmento inserido, da exterioridade em relação ao conteúdo

proposicional do enunciado em que se encontra e do valor ilocucionário independente. A expressão

apositiva não-restritiva aproxima-se do que Jubran (1999) estabelece como a primeira classe de

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parênteses da tipologia que propõe. Tais parênteses operam na elaboração dos tópicos discursivos,

especialmente no que diz respeito ao conteúdo tópico e à formulação lingüística desse conteúdo. À

semelhança dos parênteses de primeira classe, as expressões apositivas são utilizadas de modo a

assegurar a inteligibilidade e a aceitabilidade do texto e, dessa forma, a eficácia do ato

comunicativo, como observamos em (1).

(1) Até há bem pouco tempo, sabia-se apenas que os portadores de autismo não possuíam o

que os psiquiatras chamam de teoria da mente — a capacidade que temos de entender que existe o

“eu” (nossa visão do mundo) em oposição ao “outro” (o mundo visto nela consciência de outra

pessoa). (planrrev-gj)

Inserções parentéticas como essas têm, essencialmente, a função de reformulação. A

reformulação empreendida por uma expressão apositiva inclui a paráfrase e a correção. (Hilgert:

1996). A reformulação parafrásica pode ser de natureza metalingüística (explanações, explicações

definidoras e redenominações) ou referencial (FUCHS, 1982).

As aposições reformulativas, referenciais ou não, consistem em uma retomada do conteúdo

do segmento anterior. Há, no entanto, construções apositivas não-restritivas que operam como um

mecanismo de focalização, tal como a que se encontra em (2), que não podem ser identificadas

como parênteses. Nesse tipo de aposição, uma expressão nominal focaliza o segmento discursivo

seguinte, criando um ambiente de expectativa e direcionando a tensão para o conteúdo desse

segmento, além de fornecer-lhe uma orientação argumentativa para a interpretação.

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(2) Tudo isso vem a propósito de uma constatação simples: a maior escritora brasileira

modificou nosso panorama literário sem que sua obra estivesse tematicamente circunscrita ao

mundo feminino. (cultedrev-gj)

Como a informação contida no segmento focalizado já foi, de certa forma, antecipada pela

expressão nominal anterior, não é pertinente analisar esse segmento apositivo como um caso de

ruptura, isto é, como um parêntese. Não se trata, nesse caso, de uma inserção parentética com função

de reformulação, mas de uma estratégia de referenciação catafórica.

No que diz respeito às estratégias de referenciação, Nogueira (1999) destaca que, a partir de

uma concepção construtivista da referência lingüística, fundada nos trabalhos de Mondada & Dubois

(1995) e de Apothéloz & Reichler-Béguelin (1995), a aposição constitui expediente por meio do

qual um objeto de discurso pode ser construído segundo diferentes perspectivas, de acordo com

diferentes propósitos comunicativos. Por ser uma construção tipicamente caracterizada pela

condição de estabilidade referencial entre os itens que a integram, a aposição mostra-se como

importante mecanismo de recategorização de um objeto de discurso.

A pesquisa buscou estabelecer relações entre os aspectos sintáticos, textual-semânticos e

textual-discursivos das construções apositivas e os propósitos socialmente reconhecidos dos gêneros

em que elas se encontram. No entanto, em virtude da limitação no número de páginas para este

artigo, são aqui apresentados apenas os resultados relativos às funções textual-discursivas

predominantes das construções apositivas não-restritivas em cada um dos gêneros investigados.

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Aposição não-restritiva nos gêneros jornalísticos

O corpus da pesquisa constituiu-se de textos escritos pertencentes aos gêneros artigo de opinião,

editorial, notícia e reportagem de jornais e revistas de circulação nacional. Buscou-se garantir um

volume textual aproximado de 6000 palavras nos quatros gêneros.

O uso de expressões apositivas permite o aporte de informações sobre os referentes

discursivos sem uma estrutura de predicação verbal. Desse modo, constitui expediente para

acrescentar, cumulativamente, propriedades dos referentes discursivos, e, por esse motivo, serve,

nos textos noticiosos, aos propósitos de compactação da informação, isto é, de garantir, ao mesmo

tempo, informatividade e concisão.

Os resultados obtidos apontam para uma significativa predominância no uso de construções

apositivas que funcionam como paráfrases referenciais ou, nos termos de Meyer (1992), como uma

estratégia de reorientação (30%). Nessas reformulações, o autor reapresenta o referente da primeira

unidade apositiva de uma perspectiva diferente. A segunda unidade é, portanto, uma designação

alternativa de um referente que já faz parte do universo do discurso, em geral evocando-lhe alguma

característica, por meio de uma perífrase.

Em (3), ilustra-se um emprego bastante freqüente em notícias e reportagens.

(3) José Luiz Sampaio, o Zé da Luz, acaba de assumir a prefeitura do município Pernambuco

de Caetés – que era distrito de Garanhuns quando Lula nasceu – para administrar um orçamento

mensal de 500.000 reais. (famnrev-gj)

A qualificação e a refocalização dos referentes discursivos apresentados na primeira unidade

apositiva são as funções mais freqüentes das construções apositivas não-restritivas nas reportagens.

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Ou seja, o propósito de construir a identidade dos referentes discursivos por meio do aporte de

informações parece caracterizar os gêneros noticiosos.

Cumpre destacar que o uso de aposições com função de focalização e de qualificação cresce

na reportagem, o que pode ser interpretado como indicativo de uma abordagem mais interpretativa

dos fatos noticiados.

Um uso de construções apositivas bastante peculiar nas notícias e reportagens encontra-se

ilustrado em (4).

(4) Estudante no Recife, Sampainho só fica na cidade uma parte da semana, mas recebe todo

o salário de 3 500 reais. (famnrev-gj)

A expressão apositiva antecipa uma predicação a um referente discursivo que ainda será

introduzido. Além de funcionar como atributo do referente designado pela expressão referencial que

o segue, esse tipo de aposto, designado em algumas gramáticas de língua portuguesa como aposto

circunstancial, tem, às vezes, o seu valor argumentativo acrescido de um realce, nos termos de

Halliday (1985), em geral, de causa e concessão.

Observa-se que a função de focalização é a mais recorrente nos artigos de opinião (32%). O

artigo de opinião é o lugar da defesa de pontos de vista diversos. Desse modo, como importante

recurso de orientação argumentativa, esse tipo de estratégia caracteriza-se pela utilização de uma

expressão que antecipa axiologicamente o que será informado no segmento seguinte.

(5) Nadando contra a corrente das idéias predominantes na medicina tradicional, quero

erguer minha voz contra o que considero uma imposição impiedosa e indefensável no mundo

moderno: as vacinas. (aorev-gj)

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As construções apositivas com as funções de qualificação e de refocalização têm freqüência

inferior, mas também se apresentam com forte valor axiológico.

(6) As cotas, o mais óbvio e midiático dos programas de ação afirmativa, suscita enormes se

não absurdos problemas práticos. (Vidao-gj)

Se, nos artigos de opinião, o uso de construções apositivas com função de focalização já é

significativo, nos editoriais, ele é bastante expressivo.

(7) O quinto número da CULT traz em suas páginas três mulheres notáveis: as escritoras

Clarice Lispector e Nadine Gordimer, e a fotógrafa Madalena Schwartz. (cultedrev-gj)

É por meio desse expediente que o autor chama a atenção dos leitores para as matérias

tratadas nos jornais e revistas.

Aposição não-restritiva nos gêneros jurídicos

Para a análise do emprego de construções apositivas no discurso jurídico, optou-se por

diversificar a amostra, selecionando gêneros que representassem o discurso de pessoas físicas ou

jurídicas envolvidas em diferentes tipos de processo judicial. Dessa forma, o corpus analisado foi

constituído dos seguintes gêneros: petição inicial, sentença, termo de audiência e acórdão.

Selecionados os gêneros, buscou-se, na constituição e delimitação do corpus, garantir um volume

textual aproximado entre eles, medido em quantidade de palavras (6.000).

O uso de aposições não-restritivas é mais freqüente em petições iniciais. Esse resultado se

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deve, principalmente, ao emprego de aposições múltiplas com o objetivo de qualificar autor e réu

(estado civil, profissão, domicílio e residência), como se observa em (8).

(8) Maria de Fátima Silva, brasileira, divorciada, odontóloga, CPF nº 333.444.555.66,

residente e domiciliada na Avenida Visconde do Rio Branco, nº 4444, apto 501, 1º Bloco, Joaquim

Távora, nesta capital, (...) (alipet-gj)2

As expressões apositivas também são freqüentes nos termos de audiência e cumprem,

basicamente, essa mesma função: a de qualificar as pessoas envolvidas no processo judicial de que

trata a audiência.

Vale informar, ainda, que, em virtude de se tratarem de textos de menor volume textual,

comparativamente à sentença e ao acórdão, a petição e o termo de audiência contavam com um

número maior de amostras individuais para que fosse possível aproximar o volume total de cada um

dos gêneros investigados. Como o uso formulaico de aposições múltiplas se repetiu em todas as

petições e termos de audiência, a ocorrência de aposições nesses gêneros é, evidentemente, maior.

Em todo o corpus, emprego de construções apositivas com a função de qualificação é bem

mais freqüente. Com efeito, esse resultado se justifica pelo uso formulaico de expressões apositivas

que aparecem, principalmente nas petições, qualificando os indivíduos envolvidos nos processos

judiciais.

A função de focalização foi a segunda mais observada no corpus, sendo, de um modo geral,

mais freqüente nos delimitadores textuais de início.

Ainda com função de focalização, observa-se o uso de construções apositivas em que se

introduz um discurso direto, tal como em (9).

2 As referências a nomes, CPF, RG, endereço que constam neste artigo substituem as identificadas nas amostras textuais, sendo, portanto, fictícias.

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(9) O programa radiofônico que veiculou a ofensa de que trata a inicial não foi gravado,

porém, o texto da malsinada nota foi trazido aos autos pelos próprios demandados e divulgada nos

seguintes termos: “Estamos recebendo denúncia de que os Senhores Batista e Saraivinha,

responsáveis pela seleção de pessoas carentes beneficiadas com terrenos da Prefeitura,(...) teriam

muitas terras em Aquiraz. (Quiaco-gj)

Observa-se, mais uma vez, que, nas petições, a qualificação é a função mais importante das

construções apositivas empregadas. O mesmo acontece nos termos de depoimento.

Já nas sentenças, verificou-se um uso mais diversificado das construções apositivas no que

diz respeito aos aspectos funcionais, sendo a refocalização e a qualificação, nessa ordem, as funções

mais observadas. Nos acórdãos, predomina a função de focalização, identificada nas passagens com

discurso direto e, principalmente, nos delimitadores de início.

A aposição não-restritiva nos gêneros acadêmicos

Na análise das construções apositivas utilizadas em amostras textuais pertencentes ao gênero

artigo científico, observou-se que a função de reformulação textual é uma das mais importantes para

a construção dos sentidos dos textos desse gênero. Por meio de uma expressão apositiva, o autor

retoma o conteúdo formulado na primeira unidade, parafraseando-o ou retificando-o para facilitar a

compreensão por parte do leitor.

A paráfrase de conteúdos proposicionais, que consiste na retomada do conteúdo

proposicional de um segmento discursivo anterior na forma de algum tipo de comentário que

representa uma orientação argumentativa fornecida pelo autor para a interpretação desse conteúdo, é

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uma das funções mais recorrentes nos artigos científicos. Um exemplo desse uso no corpus

analisado pode ser visto a seguir.

(10) (...) os constrangimentos da “conexão eleitoral” ou da competição política levariam à

irresponsabilidade fiscal e a uma “política macroecônomica populista”. Ou seja, os governantes

“não poderiam dizer não” para não pôr em risco sua sobrevivência política.(Polac-ga)

Muito freqüente é também a redenominação, procedimento metalingüístico que se

caracteriza pela busca de uma expressão mais apropriada para designar um conteúdo. Em geral,

trata-se do uso de uma expressão sinônima, um termo mais familiar, mais técnico, ou a tradução de

uma palavra em língua estrangeira.

(11) Nas Guianas, os assentamentos não são apenas considerados politicamente

autônomos e economicamente auto-suficientes, mas são também idealmente tomados como

demograficamente auto-sustentáveis ou, em outras palavras, endogâmicos. (Predac-ga)

Aposição não-restritiva nos gêneros publicitários

Para a análise do uso de construções apositivas nos gêneros publicitários, optou-se por

constituir um corpus anúncios publicitários veiculados em jornais e revistas de circulação nacional.

O volume textual é de, aproximadamente, 6000 palavras.

A função de focalização é, significativamente, a que mais caracteriza o uso de construções

apositivas nos anúncios. No exemplo a seguir, tem-se, como primeiro elemento apositivo, um

sintagma nominal indefinido que introduz um referente discursivo que só será especificado e

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identificado na segunda unidade. Segundo Nogueira (1999), este tipo de referenciação catafórica

assemelha-se a um tipo de recategorização lexical explícita, procedimento descrito por Apothéloz e

Reichler-Beguélin (1995, p.248), como vemos em (12):

(12) E já que você investiu um pouco do seu tempo lendo este anúncio, invista um pouco

mais conversando com a gente. No mínimo, você vai ganhar uma das coisas mais valiosas na hora

de investir: informação. (citi2arev-gp)

Já em (13), a expressão referencial (“os seus dois maiores desejos”) constitui um rótulo

fortemente avaliativo para o referente especificado na segunda unidade, contribuindo para o

propósito comunicativo central do gênero anúncio: a conquista de um cliente.

(13) Conseguimos reunir os seus dois maiores desejos: um Honda Civic e os juros.

(Hondajor-gp)

Similares às estratégias de rotulação descritas por Francis (1994), as nominalizações, isto é,

processos pelos quais uma expressão antecipa e organiza o conteúdo proposicional de um segmento

discursivo objetivando caracterizá-lo segundo a avaliação do autor, são comuns nas construções

apositivas com referenciação catafórica. No exemplo (14), tem-se um encapsulamento a partir de um

pronome indefinido que institui como referente o conteúdo proposicional da oração a seguir:

(14) Grandes empresas como Coca-Cola, Nike e Varig têm algo em comum: todas já foram

pequenas empresas um dia. (Sebrajor-gp)

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A refocalização nos anúncios caracteriza-se como uma reorientação avaliativa típica desse

gênero.

(15) Tome Magris – o emagrecedor que emagrece...de verdade. (Magrajor-gp)

Nota-se, nos exemplos acima, que o uso de uma expressão referencial definida como

segunda unidade da construção apositiva sugere que o referente designado na primeira (o produto ou

serviço anunciado) é o único no mercado com as características desejadas pelos consumidores.

Menos comum, mas com relevante contribuição para os propósitos do anúncio, observou-se

a função de qualificação, em que se emprega uma expressão atributiva (ou designativa) como

segunda unidade da construção apositiva.

(16) Fundamos a Real Nicrocrédito, uma empresa especialmente criada para estimular a

gerações de emprego e o desenvolvimento nas comunidades carentes. (rearev-gp)

(17) Active Cooper de Neutrogena: tecnologia clinicamente comprovada que suavemente

repõe a reserva de cobre enquanto hidrata a pele. (Neutrarev-gp)

Nesses exemplos, o uso de uma predicação em que a pausa assume o lugar da cópula garante

concisão e precisão necessárias ao apelo de um anúncio publicitário.

Aposição não-restritiva nos gêneros epistolares

O corpus de análise desta pesquisa constituiu-se de 10 amostras textuais (aproximadamente

6.392 palavras), pertencentes ao gênero carta pessoal.

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A carta pessoal é um gênero primário (simples), pois se constitui de circunstâncias de

comunicação verbal espontânea (BAKHTIN, 1997). Sua diversidade temática é imensa e há uma

infinidade de propósitos comunicativos. Considerado um gênero do senso comum, caracteriza-se não

apenas pelos seus aspectos formais, como data, saudação, vocativo, despedida e assinatura, mas,

sobretudo, pelo conteúdo que procura veicular. O gênero carta pessoal se caracteriza pelo

envolvimento (BIBER, 1981) maior entre os interlocutores, que compartilham, em grande medida,

informação pragmática (DIK,1989). Em alguns casos, a intimidade entre os interlocutores é tão

grande, que o conteúdo torna-se ininteligível aos analistas, que não compartilham as informações.

As construções apositivas são, em geral, pouco utilizadas pelos autores de cartas pessoais.

Talvez isso se deva ao fato de que, nesse gênero, os interlocutores partilhem conhecimentos,

diminuindo, portanto, a necessidade do uso desse tipo de construção que visa elucidar, esclarecer

melhor os conteúdos, por meio de estratégias de reformulação na construção dos sentidos do texto,

segundo o direcionamento argumentativo que o autor sugere.

Da análise das ocorrências identificadas no corpus, são apresentados, a seguir, os resultados

que ilustram melhor a realização das funções textual-discursivas no gênero carta pessoal.

A refocalização foi uma das funções mais freqüentes no uso das construções apositivas

identificadas nas cartas pessoais. O autor pode utilizar, na segunda unidade, um conjunto ilimitado

de opções referenciais, de acordo com seus propósitos comunicativos. Em (18), o objetivo parece

estritamente referencial, isto é, de referência construtora (DIK,1989).

(18) Meu professor, o José, que além de Língua Portuguesa ensina Italiano e Esperanto, me

convidou para assistir a um curso deste último gratuitamente (...) (Abrep-ge)

A refocalização pode estar associada à manifestação de opiniões do autor.

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(19) E, agora, alguém que eu tanto amo, alguém que me fazia sentir especial, mentiu, me

usou, me fez pensar que poderíamos viver juntos quando, na verdade, eu era apenas mais uma.

(Sancp-ge)

Em (19), a segunda unidade da aposição reapresenta, sob uma perspectiva diferente, o

mesmo objeto-de-discurso designado pela primeira unidade da construção apositiva.

Aposições não-restritivas com função de qualificação (aposições atributivas), também são

comuns nas cartas pessoais.

(20) Talvez não seja tão difícil para você por estar vendo o assunto sob orientação de um

professor e não como eu, um mero curioso. (Abrcp-ge)

Finalizando esta breve exposição, conclui-se que o estudo das construções apositivas sob o

enfoque funcionalista pode revelar que a diversidade formal de tais estruturas está associada a sua

multiplicidade funcional, isto é, às diferentes funções textual-discursivas que elas atualizam. E,

consideradas desse modo, simultaneamente em suas formas e funções, é possível identificar relações

de base funcional entre elas e os gêneros textuais em que se manifestam como opção lingüística do

falante.

Conclusões

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As construções apositivas não-restritivas, aqui caracterizadas como procedimento textual-

discursivo, foram analisadas em amostras de texto escrito do português brasileiro contemporâneo,

pertencentes aos gêneros jornalísticos, jurídicos, acadêmicos, publicitários e epistolares.

Conclui-se com o estudo realizado, cujos resultados gerais encontram-se maximamente

resumidos nesse espaço, que a construção apositiva não-restritiva constitui um mecanismo textual-

discursivo que cumpre relevante papel como estratégia textualizadora. Considerada sob um enfoque

funcionalista, observou-se que a diversidade formal de tal estrutura está associada a sua

multiplicidade funcional, isto é, às diferentes funções textual-discursivas que ela exerce, e que essas

funções encontram-se condicionadas pelos propósitos comunicativos dos gêneros em que é

utilizada.

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