limitação legal

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1 LIMITAÇÃO LEGAL AO NÚMERO DE DIRIGENTES SINDICAIS ESTÁVEIS. Da Insubsistência do Art. 522 da CLT na Ordem Instituída pela Constituição de 1988. INTRODUÇÃO A formulação de regras aparentemente aplicáveis de imediato e dotadas de uma objetividade tal que de sua simples leitura poder-se-ia antever seus destinatários, suas hipóteses concretas de incidência e seus limites exegéticos não tem, por si só, o condão de petrificar a compreensão daqueles dispositivos legais no tempo e no espaço. As normas jurídicas, enquanto conceitos e definições imaginadas pelo homem, são frutos de ilações construídas paulatinamente a partir de experiências vivenciadas em determinados momentos históricos. Se na ocasião em que nascem tais concepções mentais o ambiente social impõe-lhes um determinado desenho, com o passar do tempo, a evolução das estruturas da sociedade poderá provocar alterações substanciais em seus contornos. Poder-se-ia dizer, utilizando uma analogia chã, que o contorno dos conceitos imaginados pelo homem é “esboçado a lápis”, podendo ser “apagado e redefinido” a medida em que a realidade se altera e, com isso, impõe-lhe um novo desenho. Ou, valendo- se de outra comparação, poder-se-ia visualizar os dados da realidade como paisagens mutantes a exigirem dos artistas que pretendem reproduzi-las em tela, constantes alterações de traçado. Não por outra razão, Habermas assinala que “a partir de agora, não podemos mais apreender simplesmente e sem mediação pensamentos e fatos no mundo dos objetos representáveis”, pois “eles só são acessíveis enquanto representados, portanto em estados de coisas.” E continua: O conteúdo de todo pensamento completo é determinado por um estado de coisas que pode ser expresso numa proposição assertórica. Entretanto, todo pensamento exige, além do conteúdo assertivo, uma determinação ulterior: pergunta-se se ele é verdadeiro ou falso. Sujeitos pensantes e falantes podem tomar posição em relação a qualquer pensamento dizendo ´sim´ou ´não´; por isso, ao simples ´ter um pensamento´ vem acrescentar-se um ato de apreciação crítica. Somente o pensamento traduzido em proposições ou a proposição verdadeira expressam um fato. A avaliação afirmativa de um pensamento ou do sentido assertórico de uma proposição pronunciada coloca em jogo a validade do juízo ou da frase e, com isso, um novo momento de idealidade. Evidentemente, o contorno positivo das regras jurídicas, ou seja, a forma textual que estas últimas possuem, não será imediatamente afetado pelas alterações de contexto percebidas pelos intérpretes. A sistemática inerente ao processo legislativo não possui uma dinâmica hábil a detectar de pronto as evoluções da realidade fáticas para traduzi-las instantaneamente em lei.

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Limitação legal ao número de dirigentes sindicais estáveis

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Page 1: Limitação legal

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LIMITAÇÃO LEGAL AO NÚMERO DE DIRIGENTES SINDICAIS ESTÁVEIS.

Da Insubsistência do Art. 522 da CLT na Ordem Instituída pela Constituição de 1988.

INTRODUÇÃO

A formulação de regras aparentemente aplicáveis de imediato e dotadas de uma

objetividade tal que de sua simples leitura poder-se-ia antever seus destinatários, suas

hipóteses concretas de incidência e seus limites exegéticos não tem, por si só, o condão de

petrificar a compreensão daqueles dispositivos legais no tempo e no espaço.

As normas jurídicas, enquanto conceitos e definições imaginadas pelo homem, são

frutos de ilações construídas paulatinamente a partir de experiências vivenciadas em

determinados momentos históricos. Se na ocasião em que nascem tais concepções mentais

o ambiente social impõe-lhes um determinado desenho, com o passar do tempo, a evolução

das estruturas da sociedade poderá provocar alterações substanciais em seus contornos.

Poder-se-ia dizer, utilizando uma analogia chã, que o contorno dos conceitos

imaginados pelo homem é “esboçado a lápis”, podendo ser “apagado e redefinido” a

medida em que a realidade se altera e, com isso, impõe-lhe um novo desenho. Ou, valendo-

se de outra comparação, poder-se-ia visualizar os dados da realidade como paisagens

mutantes a exigirem dos artistas que pretendem reproduzi-las em tela, constantes alterações

de traçado.

Não por outra razão, Habermas assinala que “a partir de agora, não podemos mais

apreender simplesmente e sem mediação pensamentos e fatos no mundo dos objetos

representáveis”, pois “eles só são acessíveis enquanto representados, portanto em estados

de coisas.” E continua:

O conteúdo de todo pensamento completo é determinado por um estado de coisas que pode

ser expresso numa proposição assertórica. Entretanto, todo pensamento exige, além do

conteúdo assertivo, uma determinação ulterior: pergunta-se se ele é verdadeiro ou falso.

Sujeitos pensantes e falantes podem tomar posição em relação a qualquer pensamento

dizendo ´sim´ou ´não´; por isso, ao simples ´ter um pensamento´ vem acrescentar-se um ato

de apreciação crítica. Somente o pensamento traduzido em proposições ou a proposição

verdadeira expressam um fato. A avaliação afirmativa de um pensamento ou do sentido

assertórico de uma proposição pronunciada coloca em jogo a validade do juízo ou da frase

e, com isso, um novo momento de idealidade.

Evidentemente, o contorno positivo das regras jurídicas, ou seja, a forma textual que

estas últimas possuem, não será imediatamente afetado pelas alterações de contexto

percebidas pelos intérpretes. A sistemática inerente ao processo legislativo não possui uma

dinâmica hábil a detectar de pronto as evoluções da realidade fáticas para traduzi-las

instantaneamente em lei.

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A tarefa de dar sentido aos textos legais face às alterações vislumbradas na realidade

fática cabe, em um primeiro momento, aos intérpretes das normas. Nessa perspectiva, a lei

nada mais é do que um ponto de partida, um pensamento traduzido em direito positivo que

reflete um momento histórico determinado, cuja subsistência no tempo e no espaço não

pode prescindir dos contributos exegéticos oferecidos pelos atores sociais conectados com

o “mundo da vida” e por ele afetados diretamente.

As tensões existentes entre os textos legais e o mundo dos fatos afetam de modo

direto as normas pertinentes à organização sindical pátria, insculpidas no Título V da

Consolidação das Leis do Trabalho, porquanto estas foram elaboradas em um momento

histórico peculiaríssimo da política brasileira, caracterizado pela ascenção do ideário

corporativista , e porque os referidos dispositivos se mantêm textualmente íntegros, a

despeito da notória alteração do contexto sócio-econômico, bem como da sucessiva

alternância de regimes constitucionais ao longo dos últimos 70 (setenta) anos.

O presente estudo enfocará, em especial, as tensões entre texto legal e as

vicissitudes fáticas e ideológicas na compreensão e na aplicação do artigo 522 da CLT , a

versar sobre a composição da diretoria das entidades sindicais. Tal análise afigura-se

fundamental para a resolução da problemática em torno do número máximo de dirigentes

detentores de estabilidade e da coibição de eventuais abusos por parte dos sindicatos ao

organizarem seus corpos diretivos.

Desse modo, avaliar-se-á, em um primeiro momento, os aspectos componentes do

paradigma do Estado Social, a servirem de substrato ideológico para a formulação da

legislação sindical pátria nas décadas de 1930 e 1940 e cujo repertório apregoava, em

apertadíssima síntese, a atuação do Estado por meio de programas elaborados

unilateralmente por equipes técnicas ligadas ao Poder Executivo e voltados para a

compensação de desigualdades, bem como para a planificação do mercado.

Após isto, o estudo se voltará para um relato em torno das vicissitudes fáticas e

ideológicas ocorridas no País nos 70 (setenta) anos que se sucederam à edição do artigo 522

da CLT para perquirir, ao final, se o atual cenário jurídico-institucional permite a

convivência entre a redação casuística e restritiva dos referidos dispositivos, de um lado, e

os novos conceitos incorporados pelo sistema do direito, de outro.

Antes, contudo, faz-se mister trazer à lume uma breve descrição do sistema do

direito sob a ótica da Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann, a se justificar tendo em vista

que os conceitos de sistema, ambiente, expectativa normativa, autopoiese e acoplamento

estrutural elaborados pelo referido autor germânico, a nosso ver, consistem em mecanismos

que possibilitam verificar clara e concisamente como o direito processa as alterações de

contexto verificadas na sociedade e, desse modo, promove a sua evolução.

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Mais especificamente, a exposição ora proposta em torno dos conceitos da Teoria

dos Sistemas de Niklas Luhmann auxiliará na compreensão em torno das possibilidades de

subsistência ou não da limitação legal ao número de dirigentes sindicais com supedâneo nas

expectativas normativas originais subjacentes ao artigo 522 da CLT.

1 – O DIREITO ENQUANTO SISTEMA NA TEORIA DE LUHMANN. BREVES

NOTAS A RESPEITO DOS CONCEITOS DE SISTEMA, AMBIENTE, AUTOPOIESE,

EXPECTATIVAS NORMATIVAS E ACOPLAMENTO ESTRUTURAL.

Conforme já adiantado alhures, as presentes linhas trarão breves notas a respeito dos

conceitos integrantes da Sociologia do Direito elaborada por Niklas Luhmann, cuja

compreensão é essencial para a superação do entendimento hodiernamente conferido ao

artigo 522 da CLT.

Pois bem, segundo Luhmann, as sociedades complexas, ou seja, aquelas em que

predomina a diferenciação funcional entre suas diversas estruturas, são formadas por

sistemas, a variarem de acordo com as funções atribuídas às diferentes instituições sociais

(vg. religião, família, economia, política, etc).

Para cada função haverá, portanto, um sistema específico, que enxergará, processará

e compreenderá os dados da realidade de acordo com sua própria linguagem, sem valer-se

de códigos oriundos de outros sistemas . Poder-se-ia, portanto, ainda a título precário,

conceituar sistema como a estrutura comunicativa inerente às funções diferenciadas da

sociedade complexa.

Os dados da realidade não processados, bem como as informações (ruídos) oriundas

de outros sistemas, integram o ambiente (entorno), ou seja, aquilo que não faz parte do

sistema. À medida em que o sistema social elabora uma linguagem própria, apta a produzir

signos compreensivos distintos daqueles produzidos por outros sistemas, opera-se a

diferença entre aquele e o ambiente, conforme bem assinala Luhmann:

El binomio sistema/entorno es una operación sustentada en una diferencia. El teórico de

sistemas reacciona pues, de esta manera a la consigna ‘draw a distinction’. No se trata de

cualquier distinción sino precisamente la de sistema y entorno, y el indicador (pointer) está

puesto del lado del sistema y no del lado del entorno. El entorno está colocado fuera,

mientras que el sistema queda indicado del otro lado.(...) La consecuencia para la teoria de

sistemas (...) es que el sistema se puede caracterizar como una forma con la implicación de

que dicha forma esta impuesta por dos lados: sistema/entorno.

(...)

Todo lo que existe y se pueda designar como social consta, desde el punto de vista de una

construcción teórica que se fundamenta en la operación, de un mismo impulso y un mismo

tipo de acontecimiento: la comunicación. (...) El sistema es una diferencia que se produce

constantemente a partir de un solo tipo de operación. La operación lleva a efecto el hecho

de reproducir la diferencia sistema/entorno, en la medida en que produce comunicación

solo mediante comunicación.

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(...)

El sistema (la comunicación) puede distinguirse con respecto a su entorno: la operación que

lleva a cabo el sistema (operación de comunicación) lleva a efecto una diferencia en la

medida en que una operación se enlaza, se traba con outra de su mismo tipo, y va dejando

fuera todo lo demás. Fuera del sistema, en el entorno, acontecen simultáneamente otras

cosas. Estas otras cosas suceden en un mundo que solo tiene significado para el sistema en

el momento en que pueda enlazar esos acontecimientos a la comunicación. El sistema

debido a que tiene que decidir si enlaza una comunicación con otra, necesariamente debe

disponer de capacidad de observar, de percibir, lo que embona con él y lo que no embona.

Un sistema, entonces, que puede controlar sus posibilidades de enlace debe disponer de

autoobservarse, sobre todo cuando ya está puesto en marcha un lenguaje para la

comunicación y se tiene un repertorio de signos estandardizados.

O sistema social, enquanto estrutura lingüística detentora de uma determinada

função, necessita de mecanismos para se relacionar com o ambiente e processar os dados

oriundos deste último. E sendo o ambiente externo um conjunto amplamente complexo,

afigura-se imprescindível para o sistema a elaboração de formas simplificadoras, hábeis a

assegurar, ao mesmo tempo, seu caráter dinâmico interno e sua relação com o entorno.

Nesse sentido, a forma escolhida pelos sistemas sociais para reduzir a complexidade

do ambiente faz-se representada pela noção de “expectativas generalizadas”, a

compreenderem o conjunto previamente esperado de comportamentos verificáveis no

entorno, conforme bem explica Luhmann:

Quem pode ter expectativas sobre as expectativas de outros (...) pode ter um acesso mais

rico em possibilidades ao seu mundo circundante, e apesar disso viver mais livre de

desapontamentos. Ele pode superar a complexidade e a contingência mais elevadas, em um

nível mais abstrato. Ele pode, se não for demasiadamente atrapalhado por motivos próprios,

realizar internamente as adequações comportamentais necessárias, ou seja, quase sem

comunicação. Ele não precisa expor-se e fixar-se verbalmente (...) e ele economiza tempo,

conseguindo, portanto, conviver com outros em sistemas sociais muito mais complexos e

abertos em termos de comportamento.

(...)

Os sistemas sociais (...) estabilizam expectativas objetivas, vigentes, pelas quais ‘as’

pessoas se orientam. As expectativas podem ser verbalizadas na forma do dever ser, mas

também podem estar acopladas a determinações qualitativas, delimitações da ação, regras

de cuidado, etc. O importante é que se consiga uma simplificação através de uma redução

generalizante.

Ao generalizarem suas expectativas em relação ao entorno, e também em face da

elevada complexidade, os sistemas sociais assumem necessariamente um considerável risco

de desapontamento, a se materializar nas hipóteses em que as possibilidades selecionadas

pelos sistemas demonstram-se enganosas ou inverídicas. A depender do comportamento do

sistema diante de tais frustrações, as expectativas classificar-se-ão em cognitivas ou

normativas.

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Nesse diapasão, as expectativas cognitivas serão aquelas que se adaptam aos dados

fáticos dissonantes das situações esperadas pelos sistemas. As expectativas normativas, por

sua vez, serão aquelas sustentadas pelo sistema mesmo em face da realidade constatada

como decepcionante.

Nas palavras de Luhmann, “ao nível cognitivo são experimentadas e tratadas as

expectativas que, no caso de desapontamentos, são adaptadas à realidade. Nas expectativas

normativas ocorre o contrário: elas não são abandonadas se alguém as transgride.”

Diante de tal distinção, não é difícil constatar que o direito compõe-se por

expectativas normativas, porquanto seus elementos integradores tendem a permanecer

formalmente íntegros mesmo em face dos desapontamentos verificados no entorno,

conforme bem assinala Luhmann:

As normas são expectativas de comportamento estabilizadas em termos contrafáticos. Seu

sentido implica na incondicionabilidade de sua vigência na medida em que a vigência é

experimentada, e portanto também institucionalizada, independentemente da satisfação

fática ou não da norma. O símbolo do ‘dever ser’ expressa principalmente a expectativa

dessa vigência contrafática, sem colocar em discussão essa própria qualidade – aí estão o

sentido e a função do ‘dever-ser.

Isso, todavia, não quer significar que o direito seja imutável, recalcitrante em face à

realidade cambiante, cerrado à movimentação verificada no entorno. Do contrário, se o

sistema do direito possuísse tal caráter estático, sua função de generalização e estabilização

de expectativas comportamentais resultaria seriamente prejudicada , conduzindo ao vazio a

força normativa de seus princípios e regras.

Faz-se necessário, portanto, compreender o direito como uma estrutura composta

por comunicações que geram expectativas normativas abertas para o futuro. Nessa

perspectiva, a possibilidade de comportamentos divergentes verificáveis no porvir impõe ao

sistema do direito a adoção de uma linguagem apta a absorver as mudanças estruturais

verificadas no entorno e, com isso, adquirir novos significados, sem perder o caráter

cogente.

Tem-se, portanto, que a evolução do direito após a frustração de certas expectativas

normativas ocorre quando suas estruturas comunicativas selecionam novas possibilidades a

partir da observação de ruídos produzidos no ambiente. Tal processo – é importante frisar -

não se dá por intermédio da influência direta do ambiente no sistema, sendo, ao revés,

desenvolvido no interior deste último de maneira autônoma.

A partir das observações que o sistema do direito formula em relação ao que se

passa no entorno, novas comunicações são elaboradas para definir, em termos jurídicos, o

significado dos elementos presentes no ambiente. O processo interno de construção dessas

concepções mediante a utilização da linguagem do direito, sem a interferência direta do

entorno, denomina-se autopoiese, e é assim sintetizado por Gunther Teubner:

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El derecho como sistema social autopoiético no está compuesto ni por normas ni por

legisladores, sino por comunicaciones jurídicas, definidas como la síntesis de tres

selecciones de sentido: participación, información y comprensión. Dichas comunicaciones

estan interrelacionadas entre si en una red de comunicaciones que no produce outra cosa

que comunicaciones. Eso es lo que se pretende señalar con la autopoiésis: la auto-

reproducción de uma red de operaciones comunicativas mediante la aplicación recursiva de

comunicaciones a los resultados de comunicaciones anteriores. El derecho es una red

comunicativa que produce comunicaciones jurídicas.

Las comunicaciones jurídicas son los instrumentos cognitivos mediante los cuales el

derecho, como discurso social, es capaz de ‘ver’el mundo. Las comunicaciones jurídicas no

pueden acceder al mundo real externo, ni a la naturaleza ni a la sociedad. Solo pueden

comunicar algo referente a la naturaleza o a la sociedad. (...) El mundo exterior no instruye

en modo alguno al derecho; solo existe una construcción del mundo exterior por parte del

derecho. (...) El constructivismo jurídico presupone entonces la ‘existencia’ de un entorno

para el derecho. La cuestión no es un aislamiento monaudológico del derecho, sino la

construcción autónoma de modelos jurídicos de realidad bajo la impresión de las

perturbaciones ambientales.

É importante frisar, contudo, que nem todo dado oriundo do entorno é observado

pelo sistema do direito. Apenas aquilo que este último seleciona como relevante será

processado e traduzido em linguagem jurídica, através de um processo que ocorre

inteiramente dentro do sistema.

O entorno do sistema do direito é formado por outros sistemas (política, economia,

religião, etc.) e a seleção dos dados oriundos destes últimos decorre das irritações sentidas

pelo direito em relação a tais elementos externos. Diz-se, portanto, que entre o sistema do

direito e os demais sistemas há um acoplamento estrutural, ou seja, um mecanismo de

interligação sistêmica que possibilita a percepção daquelas provocações e sua seleção,

assim descrito por Luhmann:

El acoplamiento estructural (...) se situa de manera ortogonal a la operación del sistema:

selecciona lo que puede producir efectos en el sistema y filtra lo que no es conveniente que

produzca efectos en él.

(...)

Los acoplamientos estructurales no producen operaciones, sino solo irritaciones (sorpresas,

decepciones, perturbaciones) en el sistema. Estas irritaciones en razón del entramado de

operación del sistema pueden servir para que el sistema mismo reproduzca las seguintes

operaciones. Um sistema registra y aferra el entorno bajo la forma de irritación. La

irritación es, entonces, con otras palabras una forma que sólo se produce en el interior del

sistema, pero que no se lleva a efecto en el entorno. Solo cuando el sistema procesa sus

próprias irritaciones, entonces está en situación de buscar razones bajo la forma de causas

en el entorno.

Por derradeiro, importa assinalar que o processo de evolução autopoietica do

sistema do direito ora narrado envolve três fases, quais sejam, a variação, a seleção e a

estabilização.

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A variação ocorre no entorno e se verifica quando uma expectativa de comunicação

do sistema do direito é desapontada. Diante disso, este último sente-se irritado internamente

e promove a seleção de tal dado, a ser traduzido em linguagem jurídica. Quando o novo

entendimento é formulado comunicativamente pelo sistema do direito e nele inserido como

elemento integrante, ocorre a estabilização.

A descrição ora formulada em torno dos sobreditos conceitos extraídos da Teoria

dos Sistemas de Niklas Luhmann demonstra, afinal, que o artigo 522 da CLT - como todo e

qualquer elemento integrante do sistema do direito - é formado por uma linguagem jurídica

detentora de expectativas normativas, cuja formulação decorreu da observação de dados

presentes no entorno que foram, posteriormente, traduzidos para o sistema do direito.

Mais especificamente, o texto do artigo 522 da CLT - ao limitar o número de

dirigentes sindicais e integrantes do conselho fiscal em 7 (sete) e 3 (três), respectivamente -

foi formulado em contexto espaço-temporal (entorno/ambiente) datado e específico que, à

ocasião, provavelmente dava vazão às suas expectativas normativas.

Com efeito, se o artigo 522 da CLT foi formulado sob a égide do paradigma do

Estado Social - em uma época de sindicalismo incipiente dotado de organizações

estritamente locais e de forte dirigismo oficial - suas expectativas normativas não poderiam

apontar para outros objetivos senão o controle do tamanho e da estrutura das entidades

sindicais por parte do Estado e, paralelamente a isto, para a concessão da estabilidade a um

número certo dirigentes, proporcional ao porte dos sindicatos então existentes.

Diante disso, cumpre indagar se as expectativas normativas do artigo 522 da CLT

permanecem íntegras em face das significativas alterações estruturais verificadas no

entorno desde o advento daquele dispositivo, ocorrido em 1943 com a promulgação da

Consolidação das Leis do Trabalho.

Em se constatando o desapontamento das expectativas normativas inerentes ao

artigo em apreço, cumpre perquirir, outrossim, se a estabilização do sistema do direito pode

vir a ocorrer por intermédio da manutenção do referido dispositivo ou, pelo contrário, se

apenas mediante sua eliminação.

2 – A FIXAÇÃO DE UM NÚMERO MÁXIMO DE DIRIGENTES SINDICAIS COMO

DECORRÊNCIA DO PARADIGMA DO ESTADO SOCIAL.

Como é de conhecimento notório, o arcabouço legislativo pátrio a regulamentar as

relações sindicais surgiu nas décadas de 1930 e 1940 . No período em referência, o

sindicalismo brasileiro não configurava um fenômeno significativamente difundido, haja

vista a incipiente produção industrial, concentrada em poucos e dispersos núcleos urbanos,

bem como o caráter predominantemente rural da economia e da própria população.

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Nesse contexto de incipiência, o Estado decidiu tomar para si a função de delinear a

organização sindical dos trabalhadores e dos empresários segundo um programa ideológico

de cariz corporativista que preconizava, em apertada síntese, a união das forças

empresariais e profissionais com vistas ao alcance dos objetivos nacionais por ele definidos

, conforme bem descreve Raimundo de Araújo Castro em seus comentários à Constituição

de 1937:

O sindicalismo tem por fim congregar todos os indivíduos da mesma classe para melhor

defenderem os seus direitos.

Os sindicatos que atualmente têm mais importância são os operários. (...) O movimento

sindicalista não é na realidade a guerra empreendida pelo proletariado para esmagar a

burguesia e para conquistar os instrumentos da produção e direção da vida econômica. Não

é, como pretendem os teóricos do sindicalismo revolucionário, a classe operária, adquirindo

a consciência de si mesma, para concentrar o poder e a fortuna, e aniquilar a classe

burguesa. E´um movimento muito mais amplo, muito mais fecundo, mesmo muito mais

humano. Não é uma transformação só da classe operária, abrange todas as classes e tende a

coordena-las num sistema harmônico. O sindicalismo é a organização da massa amorfa de

grupos fortes e coerentes de estrutura jurídica determinada e compostos de homens já

unidos pela comunidade de função social e interesse profissional.

(...)

Certo, os industriais, que representam o capital merecem grande acatamento e respeito, mas

menor acatamento e respeito não devem merecer os proletários. Seria mesmo difícil afirmar

qual dessas duas classes é o maior propulsor da riqueza pública. Entre elas não deve haver

antagonismos. Ao contrário, tudo aconselha a necessidade de serem conciliados os

respectivos interêsses, a bem da prosperidade de ambas, da coexistência social e do

desenvolvimento econômicos do País.

A postura adotada pelo poder público em relação à organização sindical brasileira se

inseria plenamente no arcabouço ideológico subjacente ao paradigma do Estado Social,

cuja difusão teve início, justamente, no contexto político mundial vivenciado nas décadas

de 1930 e 1940 e cujo objetivo fundamental preconizava, resumidamente, a necessária

atuação dos órgãos estatais no fito de orientar as relações produtivas da sociedade e de

reduzir os infortúnios experimentados pelos cidadãos, em sentido diametralmente oposto ao

dogma da restrição estatal a servir como pedra de toque do paradigma liberal.

Ocorre, todavia, que a ampla atuação compensatória do Estado Social, característica

do paradigma em apreço, culminava com a idealização da sociedade como uma estrutura

centrífuga, em que o Estado se situava no núcleo, irradiando aos complexos e variantes

setores sociais, diretrizes políticas voltadas para a consecução de certos e determinados

objetivos a compreenderem, de modo geral, o bem-estar de todos os cidadãos por

intermédio da correção de desvantagens, conforme bem assevera Niklas Luhmann:

El Estado [de bienestar] se concibe entonces como la situación organizativa de la sociedad.

Las ideas regulativas del Estado de Bienestar se ajustan también a este concepto. Esto es

especialmente válido respecto de la exigencia de que el Estado de Bienestar debe

compensar a cada ciudadano individual por toda desventaja que experimente cuando

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participa en la vida social en el marco de formas de organización prestabelecidas; cuando,

por ejemplo, habita em ciudades contaminadas, estudia en clases repletas, está expuesto a

las oscilantes condiciones del mercado, o se ve afectado de modo desproporcionado por la

subida de precios. Tomado en serio, tal principio de compensación se conduce también a

uma competencia universal del Estado – si no a nível de responsabilidad política, sí al

menos desde la perspectiva de aquellos que elevan las pretensiones.

Na sistemática do Estado Social, as decisões estruturais são definidas,

precipuamente, pelos órgãos integrantes da Administração Pública central, na crença de que

seus quadros técnicos dotados de conhecimento científico especializado são capazes de

promover o bem-estar social através da formulação de amplos programas em diversas

áreas. Tal convicção ocasionou a hipertrofia estrutural do Estado, que, sob tal paradigma,

necessita contar com recursos materiais e humanos aptos a possibilitar sua pronta atuação

compensatória nas mais diversas e complexas searas da vida.

Ademais, a fixação, por parte do Estado, das diretrizes e medidas componentes dos

amplos programas sociais ocorre de modo unilateral, tomando-se por orientação as

concepções elaboradas pelo corpo técnico-burocrático a integrar seus quadros,

desconsiderando-se, muitas vezes, as opiniões e as próprias necessidades emanadas dos

indivíduos atingidos, cuja participação política, enquanto cidadãos, permanece restrita ao

voto periódico, conforme assinala Cristiano Paixão Araújo Pinto:

A crise de cidadania [do Estado Social] decorre da carência, gradativamente percebida, de

participação efetiva do público nos processos de deliberação da sociedade política. A

identificação do público com o estatal acabou por limitar a participação política ao voto. A

isso se aduziu uma estrutura burocrática centralizada e distanciada da dinâmica vital da

sociedade. A associação entre público e estatal acarretou a construção de uma relação entre

indivíduo e Estado que pode ser comparada à relação travada entre uma instituição

prestadora de serviços (e bens) e seus clientes.

Mais do que não levar em conta os reais interesses dos indivíduos diretamente

atingidos por suas diretrizes, o Estado Social acaba por desconsiderar o caráter complexo e

multifacetário inerente aos setores sociais destinatários de sua atuação unilateral, pois os

amplos programas são estabelecidos através de padrões pré-concebidos pelos corpos

técnicos e burocráticos que servirão de molde para as medidas a serem implementadas.

Tais padrões sociais vislumbrados e tidos por verídicos pela Administração Pública

acabaram por orientar a produção legislativa em torno das diretrizes e medidas integrantes

dos programas estatais. Nesse tocante, as práticas dos paradigmas do Estado Social e do

Estado Liberal partilham da mesma sistemática, qual seja, a fixação de fórmulas gerais e

abstratas em lei, supostamente aptas a abarcarem todas as situações verificáveis no tempo e

no espaço, conforme atesta Menelick de Carvalho Netto:

Se a forma da lei geral e abstrata é uma garantia da liberdade e da igualdade dos cidadãos,

há, por outro lado, o risco de acreditarmos que ao aplicá-las devêssemos proceder da

mesma forma que fizemos ao adotá-las. (...) Esse foi um dos grandes enganos da

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modernidade e decorre de sua crença excessiva na racionalidade. Acreditava-se que

mediante o estabelecimento de normas gerais e abstratas resolvia-se o problema do controle

social; a aplicação das leis deveria ser cega às especificidades das sempre distintas

situações de aplicação. (...) A crença na capacidade de racionalmente, por intermédio da

fórmula da lei, regularmos a vida moral, ética e jurídica de sorte a ficarmos livres de

problemas no campo da aplicação normativa.

(...)

Se, no entanto, a forma genérica e abstrata da lei pôde ser traduzida materialmente, na

prática, em uma exploração do homem pelo homem, sem precedentes na história da

humanidade, foi capaz, contudo, de manter a sua mística, apenas que agora no contexto da

materialização do direito.

Manteve-se no Estado Social a mesma crença: seria por meio de normas gerais e abstratas

que se poderia materializar o Direito, exigindo ações políticas de densificação desses

direitos mediante a adoção de políticas públicas pelo Estado.

Justamente sob tal crença, erigiu-se nas décadas de 1930 e 1940 o arcabouço

legislativo pátrio a versar sobre as relações sindicais. A noção de categoria, a estrutura

interna, a eleição de seus dirigentes, a organização da diretoria, os requisitos para a

investidura sindical e diversos outros aspectos, encontravam ampla e minuciosa previsão

em lei. O Estado propôs-se a moldar os sindicatos de acordo com concepções pré-

estabelecidas a respeito do que convinha ou não dispor acerca da vida associativa dos

trabalhadores.

E tais concepções foram firmadas – é importante que se diga – em uma época em

que as atividades econômicas no País restringiam-se a alguns poucos pólos urbanos

distantes uns dos outros em função do extenso território nacional e das dificuldades de

comunicação e de locomoção. Nesse contexto, o movimento sindical era igualmente

limitado àquelas localidades, disperso e, em razão disso, impossibilitado de se expandir e

ultrapassar as fronteiras locais, conforme bem ressalta Boris Fausto:

A pequena empresa industrial, dispersa em vários pontos do país, existiu antes da formação

do pólo cafeeiro e ao lado dele, graças à proteção representada pela dificuldade de

comunicações, à proximidade das fontes de matéria-prima, à existência de um pequeno

mercado consumidor de bens como alimentos, bebidas, tecidos de qualidade inferior. Os

trabalhadores desse tipo de indústria, espalhados em um imenso espaço geográfico, nunca

tiveram condições objetivas para dar origem a um movimento operário. Eles ficariam nas

fímbrias do que Antônio Barros de Castro chamou a industrialização descentralizada do

Brasil.

Desse modo, as entidades então existentes nas décadas de 1930 e 1940, por estarem

situadas em um contexto econômico de baixo desenvolvimento, tinham porte reduzido e,

naturalmente, suas perspectivas de atuação não iam muito além da defesa dos interesses

imediatos e localizados da categoria, pois, afinal, não havia, à ocasião, nenhum fator que

ensejasse a ampliação de tais horizontes por parte dos sindicatos.

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Nesse contexto, Segadas Vianna chegou mesmo a fixar um esquema-padrão para as

organizações sindicais brasileiras em função do porte destas últimas àquela ocasião,

estipulando em 4 (quatro) a quantidade ideal de dirigentes a variarem segundo as singelas

funções de tais entidades:

Salvo casos excepcionais, de sindicatos com número muito grandes de associados, a

diretoria de uma entidade não necessita mais de quatro membros: Presidente, Secretário,

Tesoureiro e Diretor Social, tendo êste último a responsabilidade direta da direção da sede e

a fiscalização imediata dos serviços de assistência prestados aos associados.

(...)

Parece-nos mais simples a adoção de um esquema geral para a administração, com 4

diretores, com as funções assim distribuídas: PRESIDENTE – Representação da entidade,

coordenação das atividades da administração e demais atribuições estatutárias;

SECRETÁRIO – 1ª Secretaria das sessões; atas; correspondência. 2º.: Direção do Serviço

de Propaganda e Inscrição; do Serviço da Agência de Colocações; do Arquivo. 3º.: Direção

geral dos funcionários;TESOUREIRO – 1º.: Serviços gerais da tesouraria, inclusive

pagamentos de benefícios. 2º.: Orientação da Comissão de Finanças; DIRETOR SOCIAL –

1º: Direção da sede e programação da vida social. 2º: Controle dos serviços de assistência

social prestados na sede.

Diante de tais fatores econômicos e sociais, o corpo técnico-burocrático do Estado

Novo que redigiu a Consolidação das Leis do Trabalho houve por bem tomar por razoável e

oportuna a fixação de um número máximo de dirigentes sindicais, segundo o porte-médio

das entidades existentes à época. Assim, o art. 522 do diploma legal em referência

restringiu os mandatos a 20 (vinte), aí compreendidos os 7 (sete) diretores, os 3 (três)

integrantes do Conselho Fiscal e seus respectivos suplentes, em número de 10 (dez).

Criou-se, portanto, por intermédio do art. 522 da CLT, uma “diretoria-padrão”

dentro de um “sindicato-padrão” quase completamente regulamentado em seus aspectos

internos por dispositivos legais casuísticos e inflexíveis. Nessa ótica, as entidades

eventualmente divergentes do modelo legal são classificadas e tratadas simploriamente pelo

Estado e seus agentes como irregulares e, em razão disso, inaptas a se valerem das

prerrogativas destinadas aos entes enquadrados na moldura oficial.

Tais pretensões de vigência abstrata e aplicabilidade universal subjacentes ao art.

522 da CLT - características das normas emanadas do Estado Social -, para além de

intentarem submeter toda a organização sindical aos programas políticos emanados do

aparato oficial em um determinado momento histórico, acabam por reduzir

significativamente a possibilidade de processamento de desapontamentos por parte do

dispositivo em apreço e sua evolução autopoiética em face das transformações

vislumbradas nos outros sistemas sociais (ambiente), pois, como visto, sua redação não só é

casuística como tem por móvel, propositadamente, a fixação de parâmetros tidos por

imutáveis.

Page 12: Limitação legal

12

De outro turno, e ainda trabalhando com conceitos oriundos da Teoria dos Sistemas

de Luhmann, há de se indagar se o enunciado férreo do art. 522 da CLT, a integrar o

sistema do direito, pode manter intacta sua pretensão de vigência e aplicação

incondicionadas mesmo em face das substanciais alterações verificadas em seu ambiente.

Em outros termos, há que se indagar se o paradigma do Estado Social vigente

quando da elaboração do art. 522 da CLT ainda justifica a subsistência do referido

dispositivo no sistema do direito ou se a evolução experimentada por este último e pelos

demais sistemas sociais fez surgir novas orientações ideológicas incompatíveis com normas

que pretendem orientar de maneira unilateral e unívoca os aspectos do mundo da vida.

Antes disso, contudo, cumpre relatar, nos próximos tópicos, as significativas

alterações no ambiente em torno do artigo 522 da CLT e averiguar se e em que medida tais

mudanças no entorno contribuíram para a reanálise acerca da subsistência dos referidos

dispositivos no ordenamento jurídico pátrio.

3 – AS VICISSITUDES ECONÔMICAS, POLÍTICAS E SOCIAIS OCORRIDAS

DURANTE OS 70 (SETENTA) ANOS DE VIGÊNCIA DO ARTIGO 522 DA CLT.

Nas décadas que se seguiram ao advento do artigo 522 da CLT, a economia

nacional, bem como a política e a sociedade, passaram por mudanças significativas. O

aspecto mais evidente de tais alterações estruturais faz-se representado pelo câmbio no

perfil da população, outrora eminentemente rural, dedicada à produção agrícola, e, agora,

predominantemente urbana, voltada para o desempenho de atividades nos setores da

indústria, do comércio, dos transportes e de serviços.

Os indicadores sociais demonstram, a propósito, que da população atual do País,

estimada em 169.799.170 habitantes, nada menos do que 81,25% vivem em áreas urbanas,

ao passo que apenas 18,75%, em zonas rurais. Em 1943, conforme visto alhures, os

habitantes do campo somavam 68,30% de todos os 41 milhões de brasileiros de então,

enquanto os residentes nas cidades não passavam de 31,70%.

Grande parte dessa alteração no perfil da sociedade brasileira pode ser creditada ao

desenvolvimento econômico do País na segunda metade do Século XX, cuja válvula

propulsora consistiu na crescente industrialização fomentada pelo Estado.

Nesse período, ampliou-se significativamente a produção automobilística,

siderúrgica, metalúrgica, de eletrodomésticos, bem como a rede urbana de comércio e

serviços, culminando com o surgimento de demanda de mão-de-obra nas cidades e

ensejando, assim, o êxodo rural constatado pelas estatísticas históricas.

Saliente-se, outrossim, que a expansiva produção industrial e o incremento dos

setores do comércio, transportes e serviços possibilitou o desenvolvimento urbano de

localidades outrora alheias ao processo, principalmente nas regiões sul e sudeste.

Page 13: Limitação legal

13

A ampliação do setor econômico e sua relativa desconcentração territorial

possibilitaram, em contrapartida, um significativo aumento no número de entidades

representativas de categorias urbanas. A propósito, o censo sindical levado a cabo pelo

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE em 2001 demonstra que, na segunda

metade do Século XX, 8.764 (oito mil setecentos e sessenta e quatro) sindicatos com esse

perfil foram criados, enquanto de 1907 a 1950, constituíram-se apenas 1.413 (mil

quatrocentas e treze) entidades.

E, dentre as entidades sindicais obreiras de primeiro grau atualmente existentes,

4.957 (quatro mil, novecentas e cinqüenta e sete) delas possuem base territorial

intermunicipal (2.914), estadual (1.923), interestadual (75) e até mesmo nacional (45).

Tais organizações, que representam 46% (quarenta e seis por cento) dos entes de

trabalhadores em atividade no País , tiveram sua criação fomentada pela industrialização de

zonas contíguas, tais como as regiões metropolitanas e pela concentração de determinadas

atividades econômicas em pólos formados por mais de um município.

A estrutura das entidades intermunicipais, estaduais, interestaduais e nacionais

difere significativamente do perfil dos sindicatos existentes na primeira metade do Século

XX, quando do advento do artigo 522 da CLT, que, conforme visto alhures, atuavam em

espaços territoriais reduzidos e em defesa de categorias pequenas, justamente em função da

concentração e da incipiência das atividades econômicas urbanas.

Com a organização das entidades em áreas territoriais maiores, fez-se necessária,

naturalmente, a adoção de estruturas administrativas mais robustas do que aquela sugerida

linhas acima por Segadas Vianna, com certo grau de descentralização e com aptidão para

atender aos desígnios da categoria em toda a base do sindicato. Não por outra razão,

Amauri Mascaro Nascimento critica veementemente a subsistência da limitação traçada

pelo artigo 522 da CLT:

É difícil compatibilizar essa limitação com as necessidades atuais das organizações

sindicais. (...) Restringir a sete o número máximo de diretores de uma entidade sindical,

independentemente do seu tamanho, natureza ou número de associados, é uniformizar o que

por natureza não é uniforme: sindicatos nacionais com estaduais ou municipais, sindicatos

de categorias grandes com os de categorias pequenas, sindicatos por categoria com

sindicatos por profissão, enfim, situações díspares.

No plano político-ideológico, o entorno subjacente ao artigo 522 da CLT sofreu,

igualmente, substanciais alterações. Nas últimas décadas, principalmente após a derrocada

da Ditadura Militar, a capacidade do Estado Social tomar para si a tarefa de promover

compensação e inclusão através de fórmulas políticas emanadas da cúpula técnico-

burocrática foi amplamente questionada.

Page 14: Limitação legal

14

Dentre as críticas impingidas ao Estado Social, destaca-se a ineficácia deste último

na tarefa de promover a cidadania, pois a estrutura centrífuga das amplas políticas de

inclusão – emanadas unilateralmente da Administração Pública em direção à sociedade -

excluía seu público-alvo do processo de formulação. Ao assim proceder, o Estado acabava

por desconsiderar as reais reivindicações dos cidadãos, arvorando-se da potestade de definir

as necessidades da massa amorfa.

Nesse contexto de questionamentos à postura autoritária do Estado Social,

incorporada em grande medida pelos governos militares que antecederam a Nova

República, e de busca de protagonismo dos cidadãos na definição e execução das políticas

de governo, elaborou-se a Constituição Federal de 1988, cuja característica marcante, diga-

se de passagem, fez-se representada pela ampla participação dos movimentos sociais em

sua elaboração, conforme destaca Menelick de Carvalho Netto:

A legitimidade da Constituição de 1988 veio de seu inusitado processo de elaboração. (...)

O procedimento tradicional foi atropelado pela grande força popular já mobilizada no

movimento das Diretas Já, e que diante da sua frustração decorrente da não aprovação da

Emenda Dante de Oliveira e da morte do presidente eleito pelo Colégio Eleitoral como

símbolo da transição para a democracia. Tancredo Neves, exigiu a formulação de um novo

procedimento iniciado com a coleta de sugestões populares, ocasionando a abertura e a total

democratização do processo constituinte. É isso precisamente o que pode explicar o

paradoxo de que uma das legislaturas mais conservadoras já eleitas (...) tenha vindo a

elaborar a Constituição mais progressista de nossa história. A legitimidade da Constituição

de 1988 advém do seu processo de elaboração democrático, aberto e participativo, processo

esse que, deve ser condição de legitimidade para qualquer alteração mais ampla a que

venha a se sujeitar a Constituição, algo que infelizmente não ocorreu nem mesmo na

revisão de 1993 (realizada de forma apressada e irregular).

Como não poderia deixar de ser, a postura centralizadora e tutora do Estado Social

foi questionada, também, no que se refere à organização sindical. À época da Assembléia

Nacional Constituinte, discutiu-se a substituição das estruturas corporativistas então

existentes por modelos alinhados com as pautas valorativas consagradas pelas Convenções

n° 87 e 98, da Organização Internacional do Trabalho, a preconizarem, em apertada síntese,

a autonomia organizativa, a pluralidade, o financiamento espontâneo e a abolição da

intervenção do Estado na vida das entidades.

Os embates em torno do modelo sindical no âmbito da Assembléia Nacional

Constituinte de 1987/88 foram travados por duas correntes opostas. A primeira –

capitaneada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) – defendia a adoção de uma estrutura

dotada de plena autonomia, nos moldes preconizados pela OIT e centrava-se na tarefa de

ver aprovada a Emenda relatada pelo então Deputado Federal Luiz Inácio Lula da Silva.

Do outro lado, parlamentares do chamado “centrão” e do bloco socialista (principalmente,

PCB e PC do B), batiam-se pela manutenção das estruturas então vigentes, alguns em

defesa dos interesses das entidades caudatárias do intervencionismo oficial, outros pelo

temor em torno da possível divisão do movimento operário e dos trabalhadores.

Page 15: Limitação legal

15

Ao cabo de todo o processo, aprovou-se um modelo híbrido, que assegura, ao

mesmo tempo, o monopólio por base territorial, a contribuição compulsória e a livre

organização e atuação das entidades sem a ingerência do Estado. Em outras palavras, a

organização sindical pátria delineada na Constituição Federal de 1988 acabou por mesclar

elementos eminentemente corporativistas com diretrizes pluralistas e democráticas.

Tem-se, portanto, que as discussões e as críticas travadas na Assembléia

Constituinte em torno do papel do Estado na organização sindical pátria, ainda que não

tenham instituído um sindicalismo totalmente independente, tiveram por efeito romper com

determinados dogmas corporativistas e lograr certas conquistas. Dentre tais avanços, o mais

significativo consiste, sem dúvida alguma, na consolidação da autonomia sindical, a

contemplar o “amplo poder das associações de autodeterminar as suas próprias regras

fundamentais, que é exercido basicamente por intermédio dos atos constitutivos e dos

estatutos” nas palavras de José Francisco Siqueira Neto.

Paralelamente a isto, a fórmula política da Constituição Federal de 1988, rompendo

com a tradição a persistir nas cartas anteriores , incorporou a “prevalência dos direitos

humanos” como princípio regente das relações internacionais e, nessa esteira, inseriu-se na

cláusula material aberta de direitos e garantias fundamentais (art. 5º, § 2º) os “tratados

internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”

Justamente por tal razão, Antônio Augusto Cançado Trindade assinala que “cumpre,

em nossos dias, no domínio da proteção dos direitos humanos, expressar no direito interno

a medida e as conquistas do direito internacional, ao invés de tentar projetar neste último a

medida do direito interno.”

Tal mudança de perspectiva ensejou a ratificação de importantes tratados

internacionais de direitos humanos pelo Brasil, alguns deles a versarem sobre o direito à

ampla liberdade sindical, tanto no aspecto individual, quanto na dimensão coletiva, nos

mesmos moldes preconizados pela Convenção nº 87, da OIT.

Dentre tais tratados destacam-se o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos,

Sociais e Culturais, da Organização das Nações Unidas – ONU e o Protocolo Adicional à

Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos,

Sociais e Culturais (Protocolo de São Salvador), firmado no âmbito da Organização dos

Estados Americanos – OEA , cujos dispositivos reiteram e reforçam o caráter autônomo das

entidades sindicais em relação aos governos nacionais.

Do exposto nas presentes linhas, observa-se que o entorno subjacente ao artigo 522

da CLT - em especial no que concerne aos sistemas da política e da economia -

experimentou substanciais alterações nos últimos 70 (setenta) anos. Diante disso, algumas

das expectativas normativas inerentes ao dispositivo em apreço não mais se sustentam,

ensejando, portanto, a evolução autopoiética do sistema no direito com vistas à assimilação

de tais desapontamentos e à sua superação.

Page 16: Limitação legal

16

Muito embora as expectativas normativas inerentes aos dispositivos legais tenham

por pretensão a conformação do entorno segundo seus enunciados, não quer isto dizer que

elas deverão se manter íntegras a qualquer custo, mesmo em face das substanciais

mudanças verificadas em seu ambiente. Pelo contrário, em se verificando tais alterações, o

sistema do direito deverá promover a evolução das normas jurídicas com vistas à

assimilação de novos significados e novas expectativas, conforme bem alerta Luhmann:

Também as expectativas normativas não estão atadas à sua proclamada resistência à

assimilação. A possibilidade de perseverança interna de expectativas repetidamente

desapontadas tem seus limites. As placas de estacionamento proibido cercadas pelos carros

parados acabam por não mais provocar expectativas normativas, mas tão-só cognitivas:

olha-se para ver se há algum policial por perto. A isto acrescenta-se que a elasticidade da

formulação de algumas normas permite procedimentos adaptativos – por exemplo no caso

do tão discutido aperfeiçoamento da legislação através da jurisprudência. Existe, portanto,

mesmo no direito, uma assimilação apócrifa, e nas sociedades muito complexas com direito

positivo temos até mesmo mudanças legais do direito, assimilação legitimada.

No caso do artigo 522 da CLT, as expectativas normativas do referido dispositivo

quanto ao porte das entidades sindicais, a condicionar o número máximo de dirigentes

estáveis, bem como quanto à necessidade premente de controle do Estado sobre a

organização e administração dos entes representativos, não mais encontram justificativa

existencial.

Com efeito, o atual estágio do desenvolvimento econômico nacional, sintetizado

linhas acima, demonstra que, em muitos casos, a limitação do número máximo de

dirigentes sindicais estáveis na forma inflexível preconizada pelo artigo 522 da CLT não

mais se compatibiliza com a necessidade das entidades obreiras, mormente daquelas cuja

base territorial é intermunicipal, estadual, interestadual ou nacional.

De igual modo, a fórmula política subjacente à Constituição Federal de 1988,

integrada, conforme visto, pelo princípio da autonomia sindical e pela prevalência dos

direitos humanos, aponta para a incompatibilidade entre os dispositivos legais que

pretendem condicionar unilateralmente a organização interna dos entes representativos e as

diretrizes democráticas e pluralistas emanadas da Carta Magna.

Há de se perquirir, diante do quadro ora exposto, se a limitação férrea do número de

dirigentes sindicais estabelecida pelo artigo 522 da CLT encontra condições de subsistência

no sistema do direito da forma em que este último se encontra atualmente definido. Já

adiantamos, contudo, que o desfecho de tal investigação, a ser empreendida mais adiante,

compreenderá, necessariamente, a superação do entendimento atualmente consagrado pela

jurisprudência dos Tribunais pátrios acerca do referido dispositivos legais e de sua

relevância para fins de determinação dos beneficiários da estabilidade no emprego

assegurada pelo art. 8º, VIII, da Constituição Federal.

Page 17: Limitação legal

17

4 – A COMPREENSÃO JURISPRUDENCIAL EM TORNO DO ARTIGO 522 DA CLT.

Em que pesem as sobreditas alterações político-estruturais verificadas no entorno do

artigo 522 da CLT, a jurisprudência dos Tribunais superiores pátrios vem se mantendo

recalcitrante quanto à aplicação mecânica e indiscriminada da limitação do número de

dirigentes sindicais estáveis, sob o entendimento de que o referido dispositivo teria sido

recepcionado pela Constituição Federal de 1988.

Para tanto, os julgados a versarem sobre a matéria, proferidos no âmbito do Tribunal

Superior do Trabalho e do Supremo Tribunal Federal, concluíram que a livre e

indiscriminada fixação do número de dirigentes sindicais estáveis pelas próprias entidades

teria o condão de impor aos empregadores ônus não previsto em lei, cuja materialização

afrontaria o art. 5º, II, da Constituição Federal.

Firmou-se, ademais, o entendimento de que o livre estabelecimento da quantidade

de dirigentes estáveis pelos sindicatos não só caracterizaria abuso do direito à estabilidade,

assegurado pelo art. 8º, VIII, da Carta Magna, como também implicaria no cerceamento

indevido ao direito potestativo de dispensa titularizado pelos empregadores em decorrência

do art. 5º, XXII, da Constituição Federal.

Da leitura dos referidos julgados, observa-se que a fundamentação a eles subjacente

aponta para a seguinte conclusão: a concordância prática entre os artigos 8º, VIII e 5º, II e

XXII, da Constituição Federal seria obtida por intermédio da recepção do artigo 522 da

CLT, solução esta que asseguraria, ao mesmo tempo, o direito à estabilidade dos 20 (vinte)

dirigentes ali descritos, como corolário do princípio da liberdade sindical coletiva, a

observância ao princípio da legalidade e a fruição do direito de propriedade por parte do

empregador:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRABALHO. SINDICATO: DIRIGENTES: CLT, art.

522: RECEPÇÃO PELA CF/88, art. 8º, I. I. - O art. 522, CLT, que estabelece número de

dirigentes sindicais, foi recebido pela CF/88, artigo 8º, I. II. - R.E. conhecido e provido.

(...)

VOTO

O Sr. Ministro Carlos Velloso (Relator):

(...)

No caso, penso que não há incompatibilidade entre o que dispõe o art. 522, CLT, e o art. 8º,

I, da Constituição Federal.

O que deve ser entendido é que a Constituição, que assegura a liberdade sindical, no

sentido de que ‘a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato,

ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao poder público a interferência e a

intervenção na organização sindical’ (art. 8º, I), estabeleceu, também, no mesmo art. 8º, inc.

VIII, que é [ vedada a dispensa do empregado sindicalizado a partir do registro da

candidatura a cargo de direção ou representação sindical e, se eleito, ainda que suplente, até

um ano após o final do mandato, salvo se cometer falta grave nos termos da lei.’

É dizer, estabelece a Constituição estabilidade para os dirigentes sindicais. Seria possível,

então, a lei disciplinar a matéria, em termos de número de dirigentes sindicais?

Page 18: Limitação legal

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Penso que sim.

Caso contrário, podendo o sindicato estabelecer o número de dirigentes, poderia estabelecer

número excessivo, com a finalidade de conceder-lhes a estabilidade sindical do art. 8º, VIII,

da C.F, e art. 543, § 3º, CLT.

O que deve ser entendido (...) é que não há incompatibilidade entre o art. 522, CLT e o art.

8º, I e VIII, da C.F. Ao contrário, essas normas se harmonizam e se completam.

(...)

A liberdade sindical se dá nos limites da lei. A observância, aliás, dos limites da lei é

característica do Estado de Direito. Permitir que o sindicato, em nome da liberdade sindical,

possa criar direitos, em detrimento da outra parte, quando disposição legal estaria a impedir

essa ocorrência, seria fazer tabula rasa do princípio da legalidade que deve ser observado

nas relações entre Estado e indivíduo, associações e associados e entre entidades sindicais.

(...)

Dirigentes Sindicais – Quantitativo de livre estipulação pela entidade – Princípio

constitucional da autonomia na organização – Beneficiários da garantia provisória de

emprego assegurada pelo artigo oitavo, inciso oito da Carta política de mil novecentos e

noventa e oito – Sujeição à previsão legal ordinária – Impossibilidade de atribuição de ônus

ao empregador pela via dos estatutos do sindicato profissional.

Conquanto esteja ao arbítrio das entidades sindicais o estabelecimento da composição e

funcionamento de seus órgãos administrativos, no que se inclui a deliberação quanto ao

número de membros integrantes de cada qual, não pode a norma estatutária substituir-se à

lei para criar, obliquamente, obrigação a cargo do empregador, qual seja a de assegurar

estabilidade no emprego irrestrita para quantos candidatos a cargos diretivos viabilize a

estrutura da entidade, a propósito do previsto no oitavo, inciso oito, da Carta Política,

mormente quando a ordem jurídica em vigor não contempla garantias contra dispensa

imotivada para a generalidade dos trabalhadores, remetendo-as ao plano da lei

complementar. Admitir-se a aplicação ilimitada, extensiva da norma estatutária afrontaria, a

um só tempo, o disposto no artigo quinto, inciso dois, da própria constituição, como

também o princípio da isonomia de tratamento, porque estaria criada, nas cúpulas sindicais,

uma casta privilegiada. Na inexistência, portanto, de incompatibilidade entre o direito

assegurado no artigo oitavo, inciso oito, da Constituição (...), que não é inovatório, e os

critérios fixados pelos artigos quinhentos e vinte e dois, quinhentos e trinta e oito e

quinhentos e quarenta a três da CLT, para o fim de garantia excepcional, deve a norma

estatutária que dispõe sobre o número de dirigentes do sindicato profissional e integrantes

dos conselhos respectivos ser interpretada, quanto ao seu alcance, à luz das disposições

celetiárias recepcionadas pela nova ordem jurídica estabelecida a partir de cinco de outubro

de mil novecentos e oitenta e oito.

(...)

RECURSO DE REVISTA. ESTABILIDADE SINDICAL. ARTS. 8º DA

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E 522 E SEGUINTES DA CLT.

Inexiste incompatibilidade entre o princípio de liberdade sindical, previsto no art. 8º, inciso

VIII, da Constituição Federal, de 1988, e os critérios fixados pelos artigos 522, 538 e 543

Page 19: Limitação legal

19

da CLT, uma vez que estes últimos foram recepcionados pela nova ordem jurídica

estabelecida a partir de 05-10-88. Ademais, a deliberação acerca do número irrestrito de

dirigentes sindicais, com direito à estabilidade, pelos estatutos do sindicato, impõe ao

empregador ônus não previsto em lei, em flagrante desarmonia com outros princípios

constitucionais.

De fato, a fixação abusiva e indiscriminada de dirigentes estáveis não encontra

respaldo na ordem jurídica pátria. É legítimo, portanto, que as pretensões desproporcionais

e desarrazoadas das entidades nesse sentido sejam coibidas pelo Poder Judiciário, a fim de

que o direito à liberdade sindical coletiva não seja exercido de modo a extrapolar a

finalidade precípua de assegurar aos sindicatos obreiros um espaço autônomo de atuação

dentro da empresa na defesa dos interesses da categoria.

No entanto, a almejada harmonização entre o princípio da legalidade, os direitos à

propriedade e à autonomia privada, de um lado, e à liberdade e autonomia sindical, de

outro, não é obtida mediante a fixação de uma única solução jurisprudencial válida para

todo e qualquer caso concreto, mormente quando os dados da realidade fática apresentam

situações a variarem segundo as diversas formas de organização representativa por

território ou de acordo com as diferentes estruturas das entidades, conforme visto alhures.

Em tais casos, a solução adotada pela jurisprudência dos Tribunais superiores

pátrios em nome da propalada concordância prática entre os artigos 8º, VIII e 5º, II e XXII,

da Constituição Federal, ao invés de harmonizar os sobreditos princípios constitucionais,

acabará por suprimir, em muitos casos, a liberdade e a autonomia sindical em nome do

exercício do direito à propriedade, principalmente para aquelas entidades de grande porte

cuja estrutura demanda, naturalmente, um número maior de dirigentes estáveis.

Diante disso, faz-se necessário proceder a uma releitura da questão em torno da

estruturação das diretorias sindicais, perquirindo-se a justa medida na aplicação dos

sobreditos princípios em cada caso concreto e adotando-se, em substituição ao

entendimento propalado pela jurisprudência ora analisada, uma compreensão do problema

mais consentânea com o marco político-ideológico subjacente à Constituição de 1988,

caracterizado, em grande medida, pelas pautas advindas do paradigma do Estado

Democrático de Direito.

5 – O ADVENTO DO PARADIGMA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E

SUA INFLUÊNCIA SOBRE A COMPREENSÃO DO ARTIGO 522 DA CLT.

Conforme visto alhures, a intervenção e a interferência do Estado na organização

sindical pátria, muito embora não tenha sido totalmente eliminada, foi substancialmente

questionada durante o processo de elaboração da Constituição de 1988 e, em decorrência

disso, mitigada em relação aos ordenamentos constitucionais anteriores.

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Alguns elementos eminentemente corporativistas tais como a contribuição

compulsória e a unicidade ainda subsistem, contraditoriamente, na ordem constitucional de

1988. Contudo, a possibilidade de modulação das estruturas das entidades representativas

por parte do Estado através de padrões pré-determinados foi, sem sombra de dúvidas,

extinta com o advento do princípio da autonomia sindical insculpido no art. 8º, I, da Carta

Magna.

A livre organização das entidades sindicais de acordo com suas necessidades e

peculiaridades, assegurada pelo texto constitucional vigente, se insere plenamente dentre as

pautas características do paradigma do Estado Democrático de Direito, a preconizarem, em

apertadíssima síntese, o reconhecimento em torno do caráter multifacetário da sociedade e,

em decorrência disso, a impossibilidade de que o Estado estabeleça diretrizes uniformes no

sentido de vincular a totalidade dos integrantes da complexa teia social.

Nesse sentido, o paradigma emergente do Estado Democrático de Direito pretende a

fundação de uma ordem em que a esfera pública seja redimensionada, no sentido de abarcar

não só os organismos estatais, senão também os movimentos autônomos emanados dos

mais distintos setores sociais. Reconhece-se, dessa forma, a complexidade da estrutura

social e, nessa toada, o Estado passa a atentar para as formas de organização autônoma

emanadas dos diversos grupos.

O novo paradigma parte, portanto, do pressuposto de que não incumbe ao Estado

atuar positivamente no sentido de buscar compensação e integração através de políticas

estabelecidas por seus corpos técnicos e burocráticos.

As experiências vivenciadas sob a égide do Estado Social aclararam sobremaneira a

percepção de que os mecanismos de atuação governamental característicos deste

paradigma, para além de favorecerem relações de clientelismo entre os indivíduos e o

Estado em detrimento da cidadania ativa, muitas vezes acabam por dar ensejo à formulação

de medidas inadequadas às reais necessidades do público-alvo que não encontra espaço

para participar diretamente da elaboração e da execução dos programas e que, em muitos

casos, nem sequer é consultado.

É justamente em razão dessas vicissitutes a ocasionarem o déficit de cidadania

característico do Estado Social, que o paradigma do Estado Democrático de Direito não só

combate as visões de mundo unilaterais do Estado em relação à sociedade, como também

legitima as formas de vida originadas autonomamente nesta última, incluindo-as no espaço

público, conforme ressalta Menelick de Carvalho Netto:

A cidadania requer a dimensão pública ou eu reduzo a dimensão individual, os direitos

individuais, a mero egoísmo, inviabilizando a própria noção de convivência comum, do

respeito ao outro, que é a dimensão pública inafastável dos direitos privados. E é

precisamente esse aspecto, de pluralismo, da tensão entre igualdade e liberdade, o da

sociedade dos diferentes, que abre a possibilidade de uma sociedade tão complexa quanto a

moderna. (...) A dimensão pública pressupõe o respeito às diferentes opiniões, valores e

crenças. O pluralismo político e organizacional é essencial para que o público não seja

Page 21: Limitação legal

21

privatizado por uma burocracia encastelada no poder. Somos iguais, embora tenhamos

cores diferentes, religiões diferentes, opções sexuais diferentes, etc., e, no entanto, nos

respeitamos como iguais. Somos livres para construir a nossa igualdade no respeito às

nossas diferenças. O interesse público é o de todos os afetados pelo exercício do poder e

não, necessariamente, o de uma determinada administração.

Dessa forma, um Estado como aquele instituído pela Constituição Federal de 1988,

fundado no paradigma do Estado Democrático de Direito, que reconhece o pluralismo

ideológico e que, nessa esteira, adota o princípio da autonomia sindical, não se

compatibiliza com o direito infraconstitucional anterior tendente a fixar padrões unívocos

de organização para as entidades representativas, impedindo estas últimas de se

estruturarem de acordo com suas necessidades e propósitos peculiares, afastando-as, por

conseguinte, do espaço público.

Conforme visto alhures, no complexo e multifacetário cenário econômico e social

brasileiro, diversas são as formas de organização assumidas pelas entidades sindicais de

primeiro grau, assim como são distintas suas necessidades e propósitos. Nesse contexto, o

reconhecimento de tal diversidade por parte do Estado e a possibilidade conferida aos entes

representativos para se estruturarem da forma que melhor lhes assegure a persecução de

suas finalidades integra o substrato teleológico do paradigma do Estado Democrático de

Direito e encontra expresso amparo no princípio da autonomia sindical.

Uma vez lançadas tais assertivas, poder-se-ia formular a seguinte indagação: em se

admitindo a tese ora proposta em torno da insubsistência dos limites trazidos pelo artigo

522 da CLT diante dos princípios da democracia, do pluralismo ideológico e da autonomia

sindical, consagrados na Constituição Federal de 1988, como seriam coibidos os eventuais

abusos perpetrados pelas entidades sindicais na fixação do número de dirigentes estáveis?

No intuito de responder tal questionamento, já adiantamos que, ao contrário da linha

de entendimento adotada pela jurisprudência firmada nos Tribunais Superiores pátrios após

a promulgação da Constituição de 1988, a possibilidade abstrata de materialização dos

sobreditos abusos não respalda, por si só, a subsistência do artigo 522 da CLT.

Tal assertiva se justifica na medida em que o discurso adotado pelo TST e pelo STF

nos sobreditos julgados não se mostra adequado à totalidade dos casos envolvendo a

constituição de diretorias sindicais em um número superior aos 20 (vinte) dirigentes

autorizados pelo art. 522 da CLT.

Ora, nem todas as situações que porventura contrariem a literalidade do dispositivo

legal em apreço revestir-se-ão da pecha de abusivas, pois as entidades representativas

hodiernas se organizam sob múltiplas formas, a variarem segundo sua abrangência

territorial e de acordo com seu porte, conforme exaustivamente visto alhures. Nesse

contexto, é plenamente possível que, em muitos casos, seja vital para as organizações

sindicais constituírem uma diretoria e um conselho fiscal em número superior àquele

delimitado no art. 522 da CLT, situação esta que encontra pleno respaldo no princípio da

autonomia sindical.

Page 22: Limitação legal

22

E, nesse diapasão, não é demais recordar que a livre formação das diretorias por

parte das entidades representativas de grande porte sem a correspondente estabilidade de

seus integrantes não tem valia alguma. Com efeito, a ausência da referida garantia para a

totalidade dos dirigentes compromete sobremaneira a livre atividade sindical e torna o ente

obreiro vulnerável aos desígnios patronais, conforme alerta Oscar Ermida Uriarte:

La importancia del fuero sindical está fuera de discusión. El fuero sindical es, sin lugar a

dudas, un componente esencial de la libertad sindical; es (...) un complemento

indispensable de los demás derechos sindicales, los que dificilmente pueden ser ejercidos

sin su efectiva presencia. (...) La falta o la insuficiencia del fuero sindical – así como de

otras garantias del ejercício de derechos sindicales – hecen ilusória la declaración de la

libertad sindical.

(...)

El bien jurídico tutelado por el fuero sindical no es solamente el derecho al empleo del

trabajador afectado, sino la própria libertad sindical y, más precisamente, el derecho al

desarollo de la actividad sindical, lo que solo recibe adecuada protección (como lo pide el

Convenio 98) con la reincorporación real del trabajador.

Diante disso, caberá aos intérpretes do direito efetuar a análise individual dos casos

postos a seu conhecimento, a fim de verificar se há, ou não, nos diferentes supostos, abuso

de direito. Deve-se partir, portanto, do pressuposto exegético de que todas as situações a

envolverem a formulação de diretorias de entidades representativas são regidas pelos os

princípios constitucionais genéricos da democracia, da pluralidade ideológica e da

autonomia sindical e que a justa medida de cada um destes pressupostos abstratos variará

de acordo com as peculiaridades das hipóteses concretas.

É justamente o que afirma Ronald Dworkin em sua célebre compreensão do direito

como “integridade”, a preconizar que o sentido e o alcance dos preceitos normativos não é

unívoco e estanque temporalmente, mas sim variável, aberto e sujeito a novas

compreensões a medida em que a evolução da vida cria novos supostos de aplicação:

De acordo com o direito como integridade, as proposições jurídicas afiguram-se verídicas

se elas integram ou decorrem de princípios de justiça, equidade e devido processo que

provejam a melhor interpretação construtiva da prática jurídica comunitária. (...) [o direito

como integridade] – a compreender os direitos e deveres decorrentes de decisões pretéritas

da coletividade – (...) insiste que o direito (...) não contém somente o conteúdo estreito e

explícito daquelas decisões, mas também, de modo mais amplo, o conjunto de princípios

necessários para justificá-las.

(...)

O direito como integridade, então, opera no presente e se volta para o passado apenas na

medida em que seu foco contemporâneo assim determina. Ele não pretende retomar,

mesmo para o direito atual, os ideais ou propósitos práticos dos políticos que

primeiramente os criaram. O direito como integridade pretende, ao revés, justificar o que os

referidos políticos estabeleceram (...) em uma descrição abrangente contada no presente,

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23

uma descrição com uma pretensão complexa: que a prática hodierna possa ser elaborada e

justificada em princípios suficientemente atrativos para proverem um futuro honroso.

(...)

O direito como integridade requer que os juízes assumam, na maior medida possível, que o

direito é formado por um conjunto coerente de princípios (...) e requer, outrossim, que eles

os reforce nos casos concretos que se ponham diante deles.(...) Os juízes que aceitam o

ideal interpretativo da integridade decidem os casos difíceis tentando encontrar, em um

conjunto coerente de princípios acerca dos direitos e deveres individuais, a melhor

interpretação construtiva em torno da estrutura política e jurídica de sua comunidade.

(...)

Nenhum juiz mortal pode ou deveria tentar estender seus entendimentos instintivos ou fazer

com que estes fossem tão concretos e detalhados a ponto de que nenhuma compreensão

ulterior se fizesse necessária caso a caso. Deve-se tratar todo princípio geral ou regra

seguida no passado como datada e apta a ser abandonada em favor de compreensões mais

sofisticadas quando a situação assim o requer.

Ao fixar um entendimento abstrato, estanque e pretensamente unívoco acerca da

receptividade da limitação legal do número de dirigentes sindicais, a jurisprudência do TST

e do STF acabou por incidir nas mesmas generalizações e imprecisões características das

medidas do Estado Social. As substanciais diferenças de porte e abrangência existentes

entre as entidades sindicais contemporâneas foram singelamente ignoradas, pondo-se todas

elas sob as rédeas sufocantes do artigo 522 da CLT.

Em se levando tal interpretação às últimas conseqüências, os princípios da liberdade

e da autonomia sindical não encontrarão espaço para incidir concretamente nas diferentes

situações postas à apreciação do Poder Judiciário. Ao revés, os postulados constitucionais

em referência serão reféns de uma compreensão generalizante e restritiva e, retomando os

conceitos de Dworkin, incapazes de assegurar sua coerência caso a caso.

Entendimentos jurisprudenciais análogos àqueles formulados em torno da

receptividade do artigo 522 da CLT não se coadunam com a atividade hermenêutica

requerida dos Juízes na vigência do paradigma do Estado Democrático de Direito. Sob esta

nova ótica, o reconhecimento em torno do caráter plural e diferenciado dos corpos sociais,

por parte do Estado, exigirá a elaboração de decisões específicas para cada caso concreto, a

serem formuladas sob a forma de discursos de aplicação , conforme bem assevera Menelick

de Carvalho Netto:

No paradigma do Estado Democrático de Direito, é de se requerer do Judiciário que tome

decisões que, ao retrabalharem construtivamente os princípios e regras constitutivos do

Direito vigente, satisfaçam, a um só tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença

tanto na legalidade, entendida como segurança jurídica, como certeza do Direito, quanto ao

sentimento de justiça realizada, que deflui da adequabilidade da decisão às particularidades

do caso concreto.

(...)

É precisamente a diferença entre os discursos legislativos de justificação, regidos pelas

exigências de universalidade e abstração, e os discursos judiciais de aplicação, regidos

pelas exigências de respeito às especificidades e à concretude de cada caso, ao densificarem

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as normas gerais e abstratas na produção das normas individuais e concretas,que fornece o

substrato do que Klaus Günther denomina ´senso de adequabilidade´, que, no Estado

Democrático de Direito, é de se exigir do concretizador do ordenamento do tomar suas

decisões.

(...)

No domínio dos discursos de aplicação normativa, faz-se justiça não somente na medida em

que o julgador seja capaz de tomar uma decisão consistente com o Direito vigente, mas

para isso ele tem que ser igualmente capaz de se colocar no lugar de cada um desses

envolvidos, de buscar ver a questão de todos os ângulos possíveis e, assim, proceder

racional ou fundamentadamente à escolha de única norma plenamente adequada à

complexidade e à unicidade da situação de aplicação que se apresenta. Com essa abertura

para a complexidade de toda essa situação de aplicação, o apliador deve exigir então que o

ordenamento jurídico apresente-se diante dele, não através de uma única regra integrante de

um todo passivo, harmônico e predeterminado que já teria de antemão regulado de modo

absoluto a aplicação de suas regras, mas em sua integralidade, como um mar revolto de

normas em permanente tensão concorrendo entre si para regerem situações.

Deve-se, pois, sob a vigência do paradigma do Estado Democrático de Direito,

reconhecer a todas as entidades sindicais o direito de se organizarem internamente de

acordo com suas necessidades legítimas e com suas propostas de atuação. Nesse contexto,

não há espaço para a imposição, por parte do Estado, de regras extremamente casuísticas e

cerradas, que se pretendam aplicáveis de modo universal e como se discursos de

justificação o fossem.

Ao contrário, o paradigma do Estado Democrático de Direito apregoa a regência das

situações concretas por intermédio de textos normativos propositadamente abertos, com

vistas a permitir o maior grau possível de identificação entre os diferentes atores sociais e o

direito positivo, o que acabará por reforçar a inclusão de um maior número de cidadãos e

entidades no espaço público, conforme atesta Dieter Grimm:

Via de regra, a percepção de um sistema como ´bom´ pressupõe um alto grau de

inclusividade. Quanto mais pessoas na sociedade se identificarem com sua constituição, o

poder desta última de criar integração social aumentará. A elaboração de textos abertos na

constituição auxilia esse processo. Tal abertura ajuda a prevenir o choque de idéias em

torno do significado do texto que acaba por enfraquecer a identificação dos cidadãos com

ele. Assim, pode-se dizer que o poder simbólico da constituição aumenta com sua

ambigüidade interpretativa, muito embora seu poder de determinação legal diminua na

mesma medida.

Destarte, se a Constituição Federal de 1988 incorporou em sua fórmula política o

paradigma do Estado Democrático de Direito, é de se descartar a subsistência dos

dispositivos legais tendentes a pautar a estrutura das entidades representativas segundo

padrões preestabelecidos pelo Estado, elaborados sob a forma do “tudo ou nada”, na

acepção de Dworkin. Logo, o art. 522 da CLT reputar-se-á incompatível com os princípios

da democracia, do pluralismo e da autonomia sindical insculpidos na Carta Magna vigente,

o que leva inexoravelmente à conclusão em torno de sua rejeição pela nova ordem.

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Na sistemática subjacente à Carta de 1988, a questão em torno das diretorias

sindicais é melhor resolvida, ao que nos parece, pela aplicação caso a caso dos princípios

da liberdade e da autonomia sindical, por intermédio da formulação de discursos de

aplicação em cada suposto específico. Somente assim será possível ao Poder Judiciário

distinguir as situações legítimas das abusivas e, nessa toada, concretizar, em maior medida,

não só as garantias previstas no art. 8º, caput, I e VIII, da Constituição Federal, como

também os demais postulados constitucionais a incidirem eventualmente nas hipóteses

concretas.

CONCLUSÃO

Nos primeiros capítulos do presente estudo, as considerações lançadas em torno da

Teoria dos Sistemas de Luhmann demonstraram que as normas jurídicas, enquanto

elementos integrantes do sistema do direito, são definições construídas pelo homem a partir

de experiências vivenciadas em determinados momentos históricos e dotadas de pretensões

voltadas para o condicionamento de seu ambiente.

Viu-se, outrossim, que os enunciados de direito mantém-se íntegros em suas

pretensões mesmo em face da esporádica inobservância de seus comandos. Tal

característica ínsita as normas jurídicas compõe o que Luhmann conceitua como

“expectativas normativas”, que se distinguem das “expectativas cognitivas” justamente pela

sua inflexão diante dos desapontamentos experimentados em face dos dados advindos do

ambiente circundante.

No entanto, as expectativas normativas não consistem em estruturas inabaláveis e,

ao contrário do que possa parecer à primeira vista quando se procede ao estudo da Teoria

dos Sistemas, elas também possuem um ponto de saturação. Com efeito, a alteração dos

dados advindos do ambiente pode ser de tal modo intensa, que as expectativas normativas

não lograrão reunir condições de subsistência, dando azo, nessas situações, a interpretações

modificativas do sentido da norma sem sua alteração textual – em um processo análogo à

chamada mutação constitucional - ou, em casos mais extremos, até mesmo à alteração

legislativa segundo as formalidades necessárias para tanto.

Quando ocorre qualquer uma das sobreditas conseqüências do esgotamento das

expectativas normativas de uma determinada norma jurídica , diz-se, ainda segundo os

conceitos da Teoria dos Sistemas de Luhmann, que o sistema do direito promoveu sua

evolução autopoiética, ou seja, corrigiu distorções internas por si próprio, mediante a

formulação de novos dados comunicativos, sem a interferência direta do ambiente.

Como norma jurídica, o artigo 522 da CLT possui expectativas normativas,

voltadas, como visto, para a estruturação das diretorias das entidades sindicais segundo

padrões predeterminados pelo Estado e sob a orientação ideológica historicamente datada,

característica do paradigma do Estado Social, a preconizar a primazia do Poder Público na

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26

fixação das políticas e programas sociais, por intermédio da atuação de corpos técnicos e

burocráticos.

Ocorre que nos últimos 70 anos, o ambiente a circundar o artigo 522 da CLT sofreu

substanciais alterações, tanto no aspecto econômico, quanto no social e político. De fato, a

economia nacional foi significativamente incrementada durante o período em referência e,

nessa esteira, diversas entidades sindicais viram-se na contingência de estabelecer marcos

organizativos diversos daquele modelo legal preestabelecido pelo Estado.

Paralelamente a isto, o ambiente político subjacente ao artigo 522 da CLT foi

sensivelmente alterado, mormente porque a Constituição de 1988 – elaborada, como visto,

em condições de participação social jamais experimentadas alhures - passou a integrar em

sua fórmula política elementos típicos do paradigma nascente do Estado Democrático de

Direito, a romperem com a intervenção governamental na organização autônoma dos

diversos setores sociais, dentre os quais se insere a garantia conferida às entidades sindicais

no art. 8º, I, da Carta Magna.

Observa-se, portanto, que as expectativas normativas do artigo 522 da CLT já

atingiram há muito seu ponto de exaustão. Os dados advindos do entorno não mais

justificam que o sistema do direito pretenda condicionar a organização sindical pátria a uma

estrutura criada sob um contexto político, social e econômico já ultrapassado há muito.

Por tal razão, há, a nosso ver, a necessidade imperativa de que o sistema do direito

evolua nesse tocante, superando as expectativas normativas daqueles artigos e busque,

dessa forma, um novo marco regulatório para a fixação das diretorias sindicais que seja

mais consentâneo não só com o quadro heterogêneo das entidades representativas

brasileiras, como também com a formula política subjacente à Constituição Federal de

1988.

Diante desse quadro, a solução para o problema da estruturação das diretorias

sindicais e da fruição da estabilidade, a nosso ver, se resolve, em primeiro lugar, pelo

reconhecimento de que o artigo 522, da CLT não foi recepcionado pela Constituição

Federal de 1988, haja vista seu descompasso com os princípios constitucionais da

democracia, do pluralismo, da prevalência dos direitos humanos e, principalmente, da

liberdade e da autonomia sindical.

A violação aos postulados da liberdade e da autonomia sindical se constata na

medida em que o comando do art. 522 da CLT acaba por impedir, em muitos casos, a

própria ação das entidades representativas, mormente daquelas constituídas em áreas

territoriais mais extensas e que, por tal razão, não poderiam funcionar com uma diretoria

estabelecida dentro dos estritos limites trazidos no dispositivo legal em apreço ou então

destituída de estabilidade.

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Em segundo lugar, os eventuais abusos na fixação das diretorias sindicais para fins

de fruição da estabilidade assegurada pelo art. 8º, VIII, da Constituição Federal seriam

melhor coibidos, a nosso ver, pela aplicação caso a caso dos princípios da liberdade e da

autonomia sindical e das demais garantias constitucionais titularizadas pelos atores

envolvidos na situação posta à apreciação do Poder Judiciário.

Em termos mais concretos, far-se-ia uma análise individualizada de dados como o

porte da entidade sindical postulante da estabilidade para seus dirigentes, bem como de sua

área de atuação e do número de afiliados para averiguar se, no caso específico, a pretensão

é abrangida pelos princípios da liberdade e da autonomia sindical ou se, ao contrário, o

pleito afigura-se abusivo.

Ao assim proceder, o Poder Judiciário estaria concretizando os princípios

constitucionais segundo sua justa medida nos casos concretos e contribuindo, em última

medida, para a fixação de seus limites e possibilidades. Do contrário, a aplicação universal

dos limites fixados no art. 522 da CLT, tal como propalado pela jurisprudência do STF e do

TST, tem por efeito tornar os referidos postulados da Carta Magna reféns de uma

compreensão generalizante, restritiva e cega às nuances da situação.

Em uma sociedade complexa, em que existem entidades sindicais de todos os portes

e áreas de representatividade, não há como coibir os eventuais abusos na fixação de

diretorias mediante o estabelecimento de uma fórmula legal datada, inflexível e casuística,

sem que se esteja promovendo, em última medida, a injustiça.

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