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Lima Barreto e Olavo Bilac: dilogos em torno da Repblica que no foi ...
MAGALI GOUVEIA ENGEL
Pertencente s geraes de intelectuais latino-americanos que, nas ltimas dcadas do
sculo XIX e primeiras do XX, constitua a cidade letrada, cujo papel fundamental foi o de
traduzir a cidade real e construir a cidade ideal, nos termos propostos por Angel Rama
(1985), Lima Barreto figurou entre os mais importantes escritores brasileiros do perodo.
Partilhava com os segmentos que compunham essa intelectualidade da dilacerante angstia de
se reconhecerem como mestios colonizados e inferiorizados pelos referenciais cientficos
ento em voga, ao mesmo tempo em que os refutavam e buscavam recri-los e ressignific-
los, a partir das especificidades das suas sociedades. E de acordo com tal perspectiva
formulou leituras acuradas e profundamente crticas da realidade brasileiras das primeiras
dcadas republicanas. Denunciando as desigualdades raciais e de classe que caracterizavam a
sociedade em que viveu, bem como as arbitrariedades dos governos da Primeira Repblica,
Lima Barreto procurou fazer de sua literatura um instrumento de transformao social. Trata-
se, pois, de um personagem especialmente instigante, cujas trajetrias intelectual e de vida
tm sido alvos privilegiados de muitos estudos desenvolvidos em diversas reas do
conhecimento. 1
Conforme sublinhou Nicolau Sevcenko em seu clssico Literatura como misso
(1983), Lima Barreto escreveu sobre as mais diversas temticas do seu tempo atravs das
quais pretendia captar e compreender o real que, no conjunto, atravessado pela questo
do poder concebido numa acepo bastante particular (SEVCENKO, 1983:161 e 169). ,
portanto, dentro dessa chave de leitura que se encontram as problemticas relativas ao
governo republicano, entre outras, na obra limiana.2 Os objetivos do presente trabalho
orientam-se, pois, no sentido de buscar apreender e compreender as especificidades das
crticas de Lima Barreto Repblica instituda no Brasil a partir de 15 de novembro de 1889,
confrontando-as com aquelas que fundamentaram as desiluses de Olavo Bilac em relao ao
UERJ, Doutora em Histria pela UNICAMP. Agncias financiadoras: CNPq e FAPERJ 1 Entre os quais possvel destacar a biografia clssica de Francisco de Assis Barbosa, A vida de Lima Barreto, publicada pela primeira, em 1952, pela Livraria Jos Olympio Editora, que utilizo aqui como a principal obra de referncia na construo do perfil biogrfico do escritor. 2 Veja-se tambm nesse sentido o livro de Denilson Botelho (2001).
novo regime. Para tanto, analiso a produo cronstica, onde ambos os autores privilegiaram a
referida temtica, buscando identificar e compreender as convergncias e, sobretudo, as
diferenas entre os argumentos que nortearam suas percepes em relao ordem
republicana instaurada no pas. Como cronista, o poeta tambm abordou vrios temas, desde
os que diziam respeito ao cotidiano da cidade do Rio em seus diversos aspectos, incluindo as
polticas pblicas de urbanizao at os grandes temas da poltica nacional e internacional
(DIMAS, 1996:15-17). No universo plural constitudo por suas crnicas destaca-se, entre
outras, a problemtica da experincia republicana na percepo daquele que atuou no
movimento republicano dos anos 1880.
Embora no tenha integrado a gerao cronolgica daqueles que apostaram na
derrubada da monarquia como o meio atravs do qual o pas encontraria o caminho do
progresso e da civilizao, Lima Barreto 3 partilhou com a maioria deles da profunda
frustrao diante da constatao de que o advento do novo regime no representou a vitria
das luzes que alaria os detentores do saber posio de direo do processo de (re)
construo da nao. A inviabilidade de realizar o sonho da Repblica dos Sbios, colocada
de imediato pelos rumos polticos do pas, aps a queda da monarquia, levou grande parte dos
intelectuais brasileiros desiludidos a fazer coro com Lopes Trovo quando este afirmou
categrico: Essa no a repblica dos meus sonhos.
Numa crnica publicada em 15 de novembro de 1903 na Gazeta de Notcias, por
exemplo, Olavo Bilac,4 referia-se ao descontentamento geral em relao ao regime
implantado no pas h quatorze anos. Na Cmara dos Deputados, no Senado, nos jornais
3 Afonso Henriques de Lima Barreto era filho do tipgrafo Joo Henriques de Lima Barreto e da professora primria Amlia Augusta Barreto, ambos mestios. Completados os primeiros estudos no Liceu de Niteri, Lima Barreto foi para o Colgio Pedro II. Em 1897, ingressou na Escola Politcnica de Engenharia, na qual, em 1902, iniciou a sua colaborao no peridico dos estudantes, A Lanterna. Aps o enlouquecimento do pai e a quinta reprovao no curso de Mecnica, Lima Barreto abandonou a Escola de Engenharia, ingressando no funcionalismo pblico. Um dos mais importantes escritores brasileiros, pretendeu fazer de sua literatura um instrumento de transformao social, denunciando as desigualdades raciais e de classe que caracterizava a sociedade em que viveu, bem como as arbitrariedades dos primeiros governos republicanos. 4 Olavo Brs Martins dos Guimares Bilac (1865-1918) era filho do mdico Brs Martins dos Guimares Bilac e de Delfina Bilac. Cursou as Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e de Direito de So Paulo, mas no se formou em nenhuma delas. Como a maior parte dos literatos da poca ganhava a subsistncia atravs da atuao na imprensa e do ingresso no funcionalismo pblico. Participou ativamente dos movimentos republicano e abolicionista na dcada de 1880. Envolveu-se na campanha contra o governo de Floriano Peixoto (segundo presidente republicano, 1891-1894), tendo sido obrigado a fugir do Rio. Desempenhou papel fundamental nas campanhas contra o analfabetismo no Brasil. Autor de vrias obras poesias, contos, crnicas, livros de leitura, etc. foi membro fundador da Academia Brasileira de Letras e um dos intelectuais de maior projeo literria e poltica das primeiras dcadas republicanas.
polticos, nos botequins, enfim, por toda a parte encontrareis esta frase magoada, soando
como uma campanada de rquiem: No era esta a repblica que eu sonhava!. Sentimento
do qual o prprio poeta parecia partilhar quando, enaltecendo a ardente profisso de f
republicana, expressa nos discursos e nas aes de Joo Pinheiro ento presidente do
Estado de Minas Gerais , afirmou que o regime republicano ento vigente no pas, de
republicano s tem o nome (O Anticristo, Correio Paulistano, 22 de setembro de 1907). A
frustrao e a revolta provocadas pelo alijamento daqueles que lutaram pela causa republicana
da direo do processo de implementao e consolidao da nova ordem, so claramente
expressas no comentrio feito por Bilac, referindo-se aos quinze anos vividos pela Repblica:
A Vida assim: ns todos vivemos a edificar e a mobiliar casas para os outros; quando as casas ficam prontas, entregamos as chaves a inquilinos que no concorreram com um s tijolo para a edificao, e vamos morar nessa infinita casa do Nada ... (Gazeta de Notcias, 8 de janeiro de 1905).
A percepo das profundas continuidades entre os antigos e os novos governos,
presente em muitos dos seus escritos, revela as desiluses de Bilac com o regime republicano,
ainda que muitas vezes de modo velado. Numa crnica publicada na Gazeta de Notcias em
20 de maio de 1900, por exemplo, narra a histria do relgio da Catedral que parara de
funcionar logo aps a queda da monarquia e que dez anos e meio depois voltava a funcionar.
Dedicado Monarquia, o maquinismo do relgio emperrara quando o trono ruiu ...,
mantendo-se parado, no seu feroz embezerramento, diante das mudanas e transformaes
que ento se seguiram. Mas, ao tomar conhecimento de que o arcebispo reiniciaria o culto na
Catedral, espantou-se: Como? Pois a glorificao do Senhor, naquela santa casa da crena
dos Braganas, no era incompatvel com a Repblica ...?! Cada vez mais surpreso ficou o
relgio ao ver entrar pela Catedral adentro homens fardados ... ento, toda aquela gente de
guerra era catlica? Espanto maior foi o de constatar a presena na cerimnia catlica dos
representantes do Presidente da Repblica, e, no meio dele, quem o diria?, o general Cunha,
o representante de um Bragana ...!. Diante de tudo isso, vendo que no lucrava mais nada
com o seu embezerramento, o embezerrado desapertou as molas, e comeou a trabalhar ....
A descrena em relao a mudanas mais profundas na vida poltica brasileira, a partir
do advento da Repblica, aparece tambm formulada claramente nas palavras do Conselheiro
Aires, narrador do romance Esa e Jac de Machado de Assis,5 publicado originalmente em
1904: Nada se mudaria; o regimen, sim, era possvel, mas tambm se muda de roupa sem
trocar de pele (1975:93). 6 Mesmo no estando impregnado pelo ceticismo expresso na
famosa frase do personagem machadiano, Bilac parece concordar com o Conselheiro quando
afirmou em uma de suas crnicas publicadas na revista Kosmos, em julho de 1906, que ao
longo dos anos republicanos, dos abusos velhos nasciam abusos novos, pois se o regime
havia mudado, no havia mudado a essncia da poltica.
Pertencendo a uma gerao cronolgica bem mais jovem do que as de Machado de
Assis e de Bilac, Lima Barreto tinha sete anos quando a Repblica foi proclamada. Na crnica
intitulada O momento, publicada no Correio da Noite, no dia 3 de maro de 1915, o escritor
afirmava ter sido sempre contra a re