licoes com cinema vol 1

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C·O·l·e·t·â·n·e·a - LIÇOES COM CINEMA '" GOVERNO DE sAo MULD CONSTIUINOO UM FVTUlO MELHOO o Paulo,1993

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LICOES COM CINEMA

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  • COletnea

    -LIOES COM CINEMA

    ~ '" GOVERNO DE sAo MULD

    CONSTIUINOO UM FVTUlO MELHOO

    So Paulo,1993

  • Governador do Estado de So Paulo LUIZ ANTONIO FLEURY FILHO

    Secretrio de Estado da Educao FERNANDO MORAIS

    FUNDAO PARA O DESENVOLVIMENTO DA EDUCAO- FDE . Diretor Executivo

    ANTONIO CESAR RUSSI CALLEGARI Chefe de Gabinete MOACYR DOS SANTOS LOPES JR. Diretor Administrativo-Financeiro RICARDO TOSHIO OTA Diretor de Obras e Servios HLIO ALVES DE; AZEREDO JR . Diretor de Projetos Especiais PEDRO JOS BRAZ Diretora Tcnica MARIA HELENA NECCHI MOREIRA

    Rua Rodolfo Miranda, 636 - Bom Retiro 01121-900- So Paulo- SP PABX (011) 228 .1922- FAX (011) 229 .9493

    c

    FUNDA O PARA O DESENVOLVIMENTO DA EDUCAO- FDE

    1 n A a t e o e LIOES

    COM CINEMA Coordenao: An tnio Rebouas Falco Cristina Bruzzo Textos: Marlia da Silva Franco Jos Geraldo Couto Ricardo Picchiarini Antnio Penalves Rocha Elias Thom Saliba Celso Joo Ferretti Milton Jos de Almeida Jos William Vesentini

    S o P a ulo, 1993

    a

  • C694

    CATALOGAO NA FONTE: CEDUC

    Coletnea lies com cinema/Marlia da Silva Franco ... [et al.]; Antnio Rebouas Falco e Cristina Bruzzo, coordenadores.- So Paulo: FDE. Diretoria Tcnica, 1993. 172p.

    1. Cinema 2. Educao I. Falco, Antnio Rebouas. ll. Bruzzo, Cristina. III. Fundao para o Desenvolvimento da Educao.

    CDU: 791.43

    APRESENTAO

    Com o propsito de facilitar ainda mais a aproximao da Escola com a Arte, a FDE rene em um nico 11olume todos os textos que compem a srie Lies com Cinema, publicada antes em seis 11olumes.

    Esta Coletnea, de fcil consulta, expe a contribuio da arte cinematogrfica nas discusses sobre temas polmicos, estabelecendo as relaes de interdisciplinaridade do Cinema com a Literatura, a Histria e a Geografia. Trata-se de um importante instnmzento de trabalho idealizado para atender aos educadores da Rede Estadual de Ensino, e que certamente contribuir para ampliar as possibilidades de utilizao de filmes na sala de aula.

    CESAR CALLEGARI Diretor Executivo

  • NOTA EXPLICATIVA ----------------------

    Em 1991, a FDE, ao organizar o Seminrio Cinema em Vdeo, agrupou os participantes, levando em conta suas reas de atividades. Assim, os temas foram trabalhados, procurando atender cada grupo distinto.

    A srie Lies com Cinema nasceu da necessidade de fixar esses temas em publicaes que permitissem o acesso pemzanente- tanto dos usurios beneficiados com o evento quanto dos inmeros ausentes- s reflexes ali desenvolvidas. Resultaram seis ttulos, escritos por nmero variado de autores que, como natural, tinham em mente um usurio cujo contonzo era dado basicamente pela rea curricular com a qual sua atividade docente se afinava. Com exceo de Lies com Cinema, 1 (Cinema: Uma Introduo Produo Cinematogrfica), de interesse geral, os outros caminharam para a habitual setorizao do conhecimento, que o corrente nas prticas escolares.

    Apesar de atingida a meta de incio, restou uma lacuna que, aos poucos, nos pareceu de indispensvel preenchimento: a interdisciplinaridade. A rea de interesse sempre mais ampla que a rea de atividade; professores de Literatura usualmente se interessam por temas histricos no propsito de explicarem as obras estudadas; professores de Histria tomam o imaginrio e, por extenso, a Arte como foco de suas preocupaes historiogrficas, e assim por diante. Reunir os textos em coletnea foi o caminho escolhido para que, num mesmo volume, o usurio tivesse contato relativamente fecundo com as idias que vm povoando e arejando os outros setores do conhecimento presente na Escola.

  • sabida e largamente comentada a dificuldade em se estabelecer ponte vivel entre as disciplinas curriculares; sempre entrevista e quase nunca estabelecida. Se a Arte, em particular a cinematogrfica, objetivo central de todo este projeto, envolvendo inmeras publicaes e servios, coerente

    . que estejamos buscando, todo o tempo, uma multiplicidade de relaes entre a variada experincia humana.

    Os filmes mencionados nos textos, quando fizerem parte de nosso acen.1o, esto indicados com um asterisco.

    Os Coordenadores

    SUMRIO ------------

    APRESENTAO ........................................................... 3

    NOTA EXPLICATIVA .................................................... 5

    INTRODUO ................................................................ 9

    A NATUREZA PEDAGGICA DAS LINGUAGENS AUDIOVISUAIS Marlia da Silva Franco .................................................. 15

    BREVE HISTRICO DOS MOVIMENTOS CINEMATOGRFICOS Jos Geraldo Couto ........................................................ 35

    A CONSTANTE ABSTRAO NA PRODUO CINEMATOGRFICA Ricardo Picchiarini ......................................................... 53

    O FILME: UM RECURSO DIDTICO NO ENSINO DA HISTRIA? Antnio Penalves Rocha ............................................... 69

    A PRODUO DO CONHECIMENTO HISTRICO E SUAS RELAES COM A NARRATIVA FLMICA Elias Thom Saliba ......................................................... 87

  • O FILME COMO ELEMENTO DE SOCIALIZAO NA ESCOLA Celso Joo Ferretti.. ...................................................... 109

    CINEMA E TELEVISO: HISTRIAS EM IMAGENS E SOM NA MODERNA SOCIEDADE ORAL Milton Jos de Almeida ............................................... 129

    AMAZNIA Jos William Vesentini ................................................ 145

    BIBLIOTECA FDE DE CINEMA/VDEO /TELEVISO ................................ 163

    .109

    J29

    163

    INTRODUO

    Esta coletnea foi concebida com vistas ao espectador (existente em todos) que vai ao cinema e se encanta com um filme ou que, por um momento ou mais, olha ao seu redor e v as coisas de outro modo.

    Uma publicao sobre Cinema s pode interessar queles que, apreciadores desta arte, querem entend-la ou tm curiosidade de conhecer as peculiaridades de sua produo. Atendendo a esse desejo, estamos colaborando para uma aproximao mais atenciosa entre os professores e a arte cinematogrfica e estimulando, conseqentemente, a decorrente familiarizao dos alunos com o cinema, o que, por si, tem um grande valor na formao dos jovens: a possibilidade de, pelo conhecimento mnimo das caractersticas de uma arte,

    ampliar o contato com a diversidade da produo artstica, assim como apreciar a sua riqueza. Estende-se tambm perspectiva de uso dos meios audiovisuais em sala de aula, pela introduo de produes significativas da arte cinematogrfica, que representam, alm de seu valor artstico, uma contribuio na discusso de temas fundamentais dos programas curriculares. O texto da professora Marlia Franco apresenta, com vagar, a relao entre Cinema e Educao nas polticas oficiais brasileiras. De Roquette Pinto, na administrao Gustavo Capanema, ao advento do vdeo, este trabalho oferece-nos um til apanhado dos equvocos e supersties que vm envolvendo o tema em sua generalidade.

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  • Jos Geraldo Couto, em seu texto, procura Jazer um breve histrico dos movimentos e tendncias que trouxeram significativas contribuies para o Cinema como meio de expresso e como arte. Em razo dos limites deste trabalho, no pde abordar o cinema industrial americano, cuja riqueza exigiria um estudo parte; o que j foi providenciado e se encontra em fase de edio para a srie Lies com Cinema.

    Ricardo Picchiarini se preocupa com a constituio da li~_suagem cinematogrfica, com as inmeras dificuldades que caracterizam o processo de criao no Cinema, atravs de um panorama de seu nascimento, centrado no trabalho de direo e no carter abstrato de sua construo.

    Se verificarmos com ateno a oferta de ttulos em vdeo existentes no mercado, constataremos que boa parte deles se prestaria ao uso das Cincias Sociais, e um grande nmero ao ensino de Histria. Num juzo apressado, pensaramos que a situao promissora para aqueles educadores interessados na utilizao de filmes em sala de aula. Apenas na aparncia to simples esta prtica pedaggica.

    Para o ensino de Histria, o uso dos chamados filmes "histricos" e documentrios levanta problemas que exigem muitos cuidados.

    O historiador Antnio Penalves Rocha, levando em conta a enorme influncia do cinema, com seus reflexos sobre a sensibilidade, valores e comportamentos, chama ateno para seu uso na Educao formal como recurso didtico. E o Jaz com a esperada acuidade.

    A partir de um esboo de classificao dos gneros, o historiador no s analisa as relaes entre Cinema e Histria em seus mltiplos aspectos, como tambm apresenta, de forma didtica, a natureza dos servios

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    que a representao cinematogrfica pode prestar Histria e adverte, em especial o professor de Histria, sobre o que seu mau uso pode representar tanto para a Histria e seu necessrio rigor cientfico quanto para o Cinema, mortalmente ferido em seus aspectos artsticos. Nem por isso v obstculos intransponveis e coloca que o bom uso ser aquele que leve em conta os vnculos da representao com os contextos histricos dentro dos quais a obra cinematogrfica foi realizada, assim como as formas com que foi efetuada a reconstituio histrica do tema tratado. Para ele, somente com este cuidado possvel utilizar o Cinema como brao auxiliar no ensino de Histria. De outro modo, a arte cinematogrfica instrumentalizada na Educao formal ser um desservio a si prpria e ao conhecimento histrico. No h como discordar.

    Especialmente dirigido aos professores das chamadas Cincias Sociais, o texto do historiador Elias Thom Saliba pretende desfazer certos equvocos freqentes no ensino de Histria, notadamente pelo uso ingnuo que se faz e pelo modo descuidado com que alguns se debruam sobre as especificidades das criaes artsticas e do conhecimento histrico.

    Assim, seu texto analisa, de forma bastante didtica, o que vem caracterizando a historiografia nas ltimas dcadas, atravs de alguns dos mais notveis estudiosos, como os franceses Marc Bloch, Lucien Febvre e Jacques Le Goff, por exemplo. Para este historiador, " maneira do conhecimento histrico, o filme tambm produzido" e, por isso, cabe ao educador deter-se, com extrema cautela e zelo, nos eixos ideolgicos da produo flmica e em seu carter de construo e criao de significados pelo sujeito. E, com essa preocupao, analisa uma srie de filmes de nosso acervo.

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  • Ao debruarmos sobre o cinema e o 11deo como rt'CII rso didtico-pedaggico, sempre bom m1o esquecer q11e 11 utilizao de meios audiovisuais Ha escola ntio 1107'11 -basta lembrar o velho Jlanelgrafo e o lbum seriado que nos apresentavam nas aulas de redao. As discusses esquentam quando, a despeito da contribuio para n aprendizagem de contedos curriculares, meios inusuais so introduzidos (aqui a referncia ao filme no-didtico). So in usuais porque observados anteriormente em contextos diversos, quando j estabeleceram padres de fruio informal no imaginrio das pessoas. O cinema, nos primrdios de sua utilizao escolar, j inquietava os educadores, preocupados em desfazer seus efeitos "perniciosos". Desfeitos os medos e preconceitos, restou uma viso redutora que via naquela arte um suporte de contedos, til na medida em que servia aos programas curriculares da Educao formal. Cegos riqueza expressiva e sua dimenso artstica, expulsaram-no para outros usos, como se o ldico no dissesse respeito ao conhecimento; fragmentavam o cinema e obscureciam sua viso do aluno real.

    Em seu texto, Celso Ferretti analisa a utilizao escolar do cinema por um prisma diferente. Interessa-lhe o filme como elemento de socializao dos alunos, mesmo que empregado sem este propsito. Socializao que vai ocorrer antes, durante e aps a mais simples e modesta exibio. Para tanto, trabalha sobre o conceito de socializao e o modo como a Escola a entende, presa que est a amarras institucionais.

    A preocupao essencial da Videoteca-FD E, desde sua origem, em princpios de 1988, procurar dar divulgao e tratamento adequados Arte e a produtos de cultura que, por esta Instituio, chegam ao professor

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    e, indiretamente, aos alunos, atravs de seus desdobramentos mais fecundos e acessveis. O valor que a Arte detm e leva s atividades educacionais, visvel na roupagem mais ou menos "sria", mais ou menos "recreativa" com que a Educao formal a veste, perdeu-se na instrumentalizao a que foi reduzida. Assim, essa vizinhana Arte-Educao resultou, na palavra de Milton Jos de Almeida, extica.

    A instrumentalizao da Arte pela escola tem sido to "naturalmente" realizada, desde as memorveis anlises sintticas de Os Lusadas, que no estranho ter constatado certa perplexidade em alguns professores que a tem como objeto preferencial, no ensino de Literatura por exemplo, quando refletiram, pela primeira vez, sobre as implicaes deste procedimento to comum e reprovvel.

    O texto de Milton Jos de Almeida procura tratar, em tom polmico, sobre hbitos h muito fixados na escola; sobre as relaes entre o espectador, na forma de grande pblico urbano (universo tambm de alunos e professores), e a indstria do entretenimento cinematogrfico; concentrando-se, aqui e ali, no carter do Cinema como segmento da indstria cultural e em toda a intrincada e suspeita rede de interesses a presentes. Por isso a dificuldade em pensar isoladamente o par Arte-Educao, apartado de um contexto que no apenas o envolve, mas o constitui.

    Tomando alguns filmes do acervo, seu texto vem viabilizar, de forma aguda e intensiva, uma aproximao a aspectos do cinema na realizao de obras como a Festa de Babette* e Stalker*, pnr exemplo, que nem longinquamente guarda semelhanas com a viso estreita do filme como recurso. Milton vai encontrar relaes de sentido entre mundos que, para o senso

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  • comum niJ se comuniazriam. Assim, a Arte afastada dos esazninhos em que a isolam para revelar-se como objeto em tomo do qual grayita ~experincia plural do ho'!u;rrt Num outro momento, e notvel a forma como ele expllczta nexos entre filmes aparentemente to diversos como Aguirre, a Clera dos Deuses* e Apocalypse Now*. A Arte Cinemato~jiaz, . portanto, encarada como produto de atltura que pode ser vzsto e interpretado em seus mltiplos signijiazdos, critiazdo, diferente de muitos outros objetos atlturais, zgual a qualquer produto no mermdo da atltura massiva". Como se v, aproximao a objetos fluidos e maventes. Este texto vem, assim, trazer, especialmente a professores de Literatura e Eduazo Artstiaz, nwmentos de perturbadora e lcida reflexo sobre sua atividade. Na constituio de nosso acervo, houve tambm a preocupaiio de reunir uma srie de ttulos que tratassem da grande variedade de temas ligados ecologia. Por duas razes centrais: atender s inmeras solicitaes de usurios e oferecer, na fomm tanto ficcional quanto doatmental, obras que abordassem, de mltiplos pontos de vista, os assuntos relacionados vida animal e vegetal, ao meio ambiente, s relaes do homem com a natureza.

    Optamos por privile8iar a Amaznia, em especial a parte brasileira. O gegra}O Jos William Vesentini Jaz em seu texto um breve, mas informativo, painel dos problemas ligados ~e~a re~io, que vo desde os elementos que a definem e a delimztam at a histria de sua oatpao e explorao.

    P~r fim, para aque~es que desejam aprojundar-s~ ainda mais nas dzsatsses sobre Cmema enquanto mezo expresszvo e arte, e sua importncia par a Educao, aditamos uma relao de livros afins, de nossa biblioteaz, que esto disponveis para emprstimo.

    Os Coordenadores

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    A NATUREZA PEDAGGICA DAS LINGUAGENS AUDIOVISUAIS

    Marlia da Silva Franco1

    "Como a sociedade ser extremamente organizada, o trabalho tremendamente fracionado e o conhecimento que a explica muitssimo elaborado e espantosamente remoto, a funo dos poetas e dos artistas- entre os quais porei os grandes mestres do que se chama inadequadamente de vulgarizao da cultura e que chamo, num esforo de valorizao, de popularizao- ser da mais extrema importncia. So eles que daro o toque humano ao imenso formigueiro humano."

    Ansio Teixeira2

    Esse texto, de um dos nossos maiores pensadores da Educao, foi produzido em 1960. No limiar, portanto, do ingresso de nossa sociedade no redemoinho do avano tecnolgico eletrnico e de suas conseqncias para a avalancha comunicativa que caracteriza este fim de sculo/ milnio.

    Ansio Teixeira, nessa reflexo, fazia mais uma vez o papel de "pensador de ponta" sobre a realidade que antevia com tanta lucidez.

    A nsia de modernidade persegue a Educao brasileira desde os anos 20 e muitas conquistas foram feitas, principalmente pela gerao do mestre Ansio.

    1 Bacharela em Cinema pela ECA/USP; doutora em Artes pela ECA/USP; professora de Cinema Educativo, Documental e da Ps-graduao da USP; autora de artigos para Boletim Intercom e da tese Escola Audiovisual.

    2 Ansio TEIXEIRA. Educao no Brasil. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976.

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  • Uma dessas conquistas toca diretamente a todos quantos hoje se preocupam e se ocupam de aproximar os meios de comunicao de massa e os processos da Educao formal. Desde as reformas educacionais levadas, ao longo d.1 dt>c.1da de 20, a vrios estados brasileiros, t'ncontramos o esforo de introduzir o uso de filmes em

    s,ll,!~t'_!ml.L Prova disso so os livrs de Jonathas -Strr,uw t' Fr.wdsco Venancio Filho (1930), Cinema e

    Edu,-,,~,i,,, t' dt' Joaquim Canuto Mendes de Almeida ( 1931), l 'lll'/1111 c,m f r a Cinema, bem como os textos do prpril, Anisio Tt'i:xeira e de Edgard Roquette Pinto.

    As duas prinwir.1s dcadas do sculo abrigaram uma pequena reYohu,;.\o cultural, que foi o progresso vertiginoso do cinem.t. O carter mais revolucionrio deve creditar-se, sem dvida, vocao democrtica que se plasmou acima das conquistas da tcnica e da linguagem. Os filmes conseguiam fascinar e dialogar com pessoas de todos os nveis sociais, culturais, econmicos e, ainda, sem discriminao de idade.

    Pedagogos e educadores do mundo todo, reconhecendo o enorme poder formador das imagens, saram em busca de frmulas que amenizassem possveis efeitos negativos, fruto do contato freqente de crianas e jovens com essa nova forma de lazer. As entidades religiosas, compartilhando esses temores, colaboraram para que se formasse uma imagem no mnimo preconceituosa das relaes entre o cinema e seus espectadores mais jovens.

    Sobre essa base construiu-se uma pedagogia do cinema com tendncias censura prvia da produo comercial e construo de um universo paralelo- a cinematografia educativa.

    Essas idias foram imediatamente assimiladas pelos ento modernos educadores brasileiros e sobre elas se construram os programas de cinema educativo, na efervescncia das reformas educacionais que evoluram nos anos 20 e 30 no Pas.

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    Instituto Nacional de Cinema Educativo

    A iniciativa mais importante e abrangente para concretizar as relaes do cinema com a educao foi a criao - dentro do novo Ministrio da Educao e Sade Pblica - do Instituto Nacional de Cinema Educativo -INCE, atravs da Lei n'! 378, de 13 de janeiro de 1937.

    Gustavo Capanema, o ministro, nomeou Edgard Roquette Pir\tparifa direo do INCE. '

    "No raro encontrar, mesmo no conceito de pessoas 1 esclarecidas, certa confuso entre cinema educativo e cinema instrutivo. certo gue os dois andam sempre juntos e muitas vezes diftcil ou impossvel dizer onde acaba um e comea o outro, distino que alis no tem muita importncia na maioria das vezes. No entanto curioso notar que o chamado cinema educativo em geral no passa de simples cinema de instruo. Porque o verdadeiro educativo outro, o grande cinema de espetculo, o cinema da vida integral. Educao principalmente ginstica do sentimento, aquisio de hbitos e costumes de moralidade, de higiene, de sociabilidade, de trabalho c at mesmo de vaaiao ... Tem de resultar do atrito dirio da personalidade com a famlia e com o povo. A instruo dirige-se principalmente inteligncia. O indivduo pode instruir-se sozinho; mas no se pode educar seno em sociedade." 3 .-

    Mdico, professor e pioneiro das comunicaes no Brasil, Roquette Pinto tinha uma viso abrangente da modernidade. O texto transcrito no pargrafo anterior a demonstrao clara de sua intuio de como as influncias se processavam no delicado terreno da formao da personalidade.

    A cinematografia educativa mundial j acumulava, em 1937, mais de dez anos de prtica e de consolidao dos (pre)conceitos que descrevi antes, nas iniciativas dos

    3 Edgard ROQUETTE PINTO. O Instituto Nacional de Cinema Educativo. Revista do Servio Pblico, Rio de Janeiro, Ano VII, v.I, n.3, mar. 1944.

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  • principais pases da Europa e de inmeras empresas norte-americanas.

    Certamente, o conhecimento dessa realidade informou o Prof. Roquette Pinto para fazer as afirmaes em torno do cinema de instruo e da educao pelo cinema. Tambm essa viso orientou a linha de trabalho que haveria de imprimir ao recm-criado Instituto. O passo decisivo deu-se com a designao do Chefe dos Servios Tcnicos do INCE, em que foi indicado um cineasta, um artista recm-descoberto pelos meios cinematogrficos do Rio de Janeiro: o mineiro Humberto Mauro.

    A partir de ento comea a se desenrolar o que chamo de "histria quase secreta" do cinema educativo no Brasil.

    Nascido em Volta Grande, Minas Gerais, Humberto Mauro encaminhou-se para o cinema no incio dos anos 20, a partir do interesse pela cmera de filmar. Dono de uma pequena empresa de instalaes e consertos de aparelhos eltricos, montada com um irmo, depois de fazer um curso da Light no Rio de Janeiro, Mauro tornou-se amigo do italiano Pedro Comello, ento fotgrafo em Cataguases, Minas Gerais.

    Mauro comeou a dedicar-se fotografia e Comello seria o "mestre" mais bvio para os mistrios da qumica e da fsica aplicadas nova arte. A amizade que se consolidou entre os dois envolveu longas conversas sobre os filmes a que assistiam no Cine Recreio. O esprito inventiva que os unia e a oportunidade de terem nas mos uma pequena cmera de filmar Path Baby levaram-nos primeira aventura cinematogrfica do Ciclo de Cataguases.

    Ao despretensioso curta-metragem de aventura Valadio, o Cratera, feito e~ 1925, seg~iram-se mais quatro longas-metragens. Realizando um filme por ano, at 1930, na sua produtora Phebo Brasil Filme, Humberto Mauro inseriu-se na histria do cinema brasileiro to definitivamente que geraes de cineastas, at hoje, o cultuam como um grande mestre.

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    Nos cinco anos que plasmaram o Ciclo de Cataguases, Mauro assumiu-se definitivamente como cineasta. importante destacar, no entanto, que sua postura sempre foi de curiosidade e prazer pelo ofcio, nunca de artista genial. Esse aspecto foi importante para sua futura misso no INCE.

    Mauro aproximou-se do ambiente intelectual e artstico do Rio de Janeiro atravs de Adhemar Gonzaga, ento grande empreendedor cinematogrfico da capital do Pas.

    Em Cataguases, tornou-se leitor da revista Cinearte, de que Gonzaga era um dos expoentes, e decidiu levar-lhe suas produes. Gonzaga encantou-se com o que viu e iniciou-se estreita colaborao entre os dois, o que resultou na mudana de toda a famlia Mauro para o Rio de Janeiro, no incio dos anos 30.

    A partir de 1936, depois de haver trabalhado nas produtoras cariocas- Cindia, de Adhemar Gonzaga, e Brasil Vita Filmes, de Carmem Santos -, Mauro comeou a realizar uma srie de filmes curtos, educativos, em conjunto com Roquette Pinto. Em 1937, dirigiu, com produo do Instituto do Cacau, da Bahia, o filme Descobrimento do Brasil. Longa-metragem de 83 minutos, baseado na carta de Pero Vaz de Caminha, o filme foi uma superproduo para a poca, com grandes multides de extras, reconstituio de cenrios e trilha sonora composta e dirigida por Heitor Villa-Lobos.

    Toda essa trajetria o marcou definitivamente como o homem adequado para orientar a produo do INCE. Vale destacar que em toda a atividade de Mauro, desde seu curso de eletricidade no Rio de Janeiro, em nenhum momento se pode vincul-lo a preocupaes pedaggicas. Mauro foi um homem de extrema sensibilidade artstica, amplos dons artesanais e tcnicos, arrojado e visionrio, no que de melhor podem significar esses traos de carter.

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  • Foi esse perfil que determinou a personalidade cinematogrfica do INCE, nos seus trinta anos de existncia. Em 1966, transformou-se no Departamento do Filme Cultural do novo Instituto Nacional do Cinema-INC. At ento, Mauro havia realizado diretamente mais de duzentos filmes educativos e orientado a realizao de outros tantos, sobre as temticas mais variadas, experimentando todas as possibilidades de tcnica e linguagem e inventando outras tantas.

    Sei que meu leitor, salvo honrosas excees, deve estar pasmado com esta histria to intensa quanto desconhecida para a classe dos educadores brasileiros.

    Humberto Mauro, alm de Descobrimento do Brasil e Bandeirantes, sobre nossa histria, realizou filmes que vo desde aulas sobre taxidermia at passos de dana, passando por ampla srie de educao rural e culminando com sua srie mais famosa: Brasilianas, em que resgata canes, poemas e traos marcantes da cultura brasileira, atravs de imagens de um lirismo, de uma beleza plstica e de uma "brasilidade" poucas vezes conseguida por ~ossos cineastas.

    A mistura perfeita da simplicidade e sofisticao, que sempre marcaram a personalidade e a obra de Humberto Mauro, est harmonizada na sua pequena obra-prima: A Velha a Fiar. Reproduo audiovisual da cano popular que fala da mosca que incomoda a velha a fiar, com trilha sonora cantada pelo Trio Irakit, esse filmezinho de seis minutos, feito em 1964, um delicioso experimento de tcnicas de animao, misturadas com imagens ao vivo. Um jogo, um brinquedo cinematogrfico que reproduz com perfeio o clima de brinquedo da musiquinha popular. Um encanto para todas as platias que, at hoje, tm a oportunidade de assisti-lo.

    Felizmente, mais uma vez contrariando a tradio do cinema brasileiro, a obra de Humberto Mauro encontra-se

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    quase toda preservada, atualmente nas salas climatizadas do Centro Tcnico Audiovisual, no Rio de Janeiro, sob administrao do Instituto Brasileiro de Arte e Cultura -IBAC.

    O acesso a esse material, no entanto, esbarra no emaranhado de fios que, historicamente, sempre ligaram o cinema e a Educao no Brasil, tanto quanto formaram uma barreira que impediu e impede a transparncia dessas relaes, sobretudo entre a iniciativa dos cineastas e a necessidade dos professores.

    Quantas perguntas ficam no ar diante da constatao de que houve uma produo audiovisual dentro do prprio Ministrio da Educao, sem que ao menos sua histria tenha chegado ao conhecimento de algumas geraes de educadores formados em nossas escolas!

    O Cachorro Corre Atrs do Prprio Rabo

    Vamos tentar puxar alguns desses fios, na busca de entender qual li cultura" audiovisual formou o educador brasileiro que hoje se defronta com um novo surto de modernidade na sala de aula: o vdeo.

    Antes, porm, quero fazer uma observao "tcnica": vou falar sobre as linguagens audiovisuais abrangendo, de maneira geral, o cinema, a televiso e o vdeo. Quero sublinhar que, para o universo de anlise que pretendo abarcar, o meio atravs do qual o espectador tem acesso linguagem de importncia relativa. O que me interessa analisar a natureza pedaggica intrnseca s linguagens audiovisuais e como ela orienta a 11 ginstica do sentimento", realizando 11 sem querer, querendo" a tarefa educativa.

    O primeiro ponto que coloco em discusso o do preconceito em torno da influncia do cinema. Nenhum educador, por mais avanado e aberto que se pretenda,

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  • est imune viso alinhavada pelos educadores e religiosos do passado e endossada pela sociedade de um modo geral, dos legisladores s senhoras de Santana.

    Todos compartilhamos, no mnimo, da dvida em torno do potencial negativo da exposio reiterada ao mundo da fantasia da TV, do vdeo e do cinema. A soluo de uma cinematografia voltada especialmente para a educao e/ ou para a sala de aula gerou o equvoco a que se refere Roquette Pinto na sua lcida anlise. Produziu tambm a viso unnime de que "cinema educativo chato".

    Proponho que assumamos, pois, o preconceito como formao de base, como cultura inevitvel. Essa situao, no entanto, atinge-nos apenas como educadores. Como cidados comuns, no deixamos de ir ao cinema, de ver TV ou de esforar-nos por comprar um aparelho domstico de videocassete. Somos espectadores prazerosos e, cada vez mais, o convvio social est atrelado aos debates que tratam da ltima telenovela ou da tragdia e/ ou corrupo apresentada nos noticirios.

    Chegamos, ento, ao segundo ponto: o divrcio entre a sociedade e a escola. 9 cinema foi o produto cultural da revoluo industrial. E a primeira marca da modernidade do sculo XX, a tecnologia de ponta da revoluo mecnica. Em todas as polmicas alimentadas em torno da sua expanso universal- das artsticas s ideolgicas-ningum o contestou como linguagem especiassima, que recriou na sala escura, iluminada pela luz intermitente do projetor, o ambiente escuro das cavernas onde os mitos eram narrados ao redor da fogueira ..

    A trajetria industrial/ comercial trilhada pela tecnologia de captao e projeo de imagens/em movimento foi ditada, pois, pela necessidade humana de nutrir-se de narrativas que criem, recriem e expliquem os mitos que os homens constroem na sua busca de tocar o transcendente.

    Os primrdios do cinema apontavam uma vocao para a documentao e a cincia. No entanto, quando veio a

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    pblico a mgica das sombras captadas da realidade, foi ao mundo das fantasias que essas sombras foram devolvidas, na construo to minuciosa quanto irreversvel dos gneros cinematogrficos. E a Humanidade entregou-se com tanto prazer a essa orgia do sonho das sombras que a revoluo da eletrnica j veio acompanhada da sua contrapartida cultural- a televiso.

    O que o pensamento pedaggico fez com a realidade da construo da mitologia moderna foi esquecer que os mitos sempre foram um instrumento precioso de educao social, em todos os povos. Em vez de estudar em profundidade o potencial formador do "mundo das sombras" e constituir uma metodologia de compreenso e uso dessa nova linguagem, julgou-a e condenou-a a viver fora dos muros das escolas.

    O erro cometido na tentativa de criar o cinema educativo foi, exatamente, querer "limpar" a linguagem audiovisual dessa sua vocao de liberdade ante a lgica do tempo e do espao. Vocao que responde perfeitamente aos parmetros de construo das narrativas mticas que alimentaram as pedagogias de perpetuao cultural da Humanidade.

    No creio que seja produtivo, no entanto, estender essa crtica aos preceitos formais da cinematografia educativa; melhor reconhecer esse vis e compreend-lo enquanto substrato integrante de nossa formao acadmico-pedaggica e mesmo de nossa moral social.

    A chegada em massa da televiso aos lares urbanos e s pracinhas das menores cidades do Pas desvia o rumo dessa discusso. Torna-se indispensvel, hoje, reconhecer que os meios audiovisuais carregam os parmetros de comportamento individual e social.

    Nessa medida, aquela velha crena de que os pais devem educar a criana para poder mand-la escola hoje vem acrescida da educao paralela da bab eletrnica. S de

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  • brincadeira: se podemos chamar os pais para apontar defeitos de educao domstica numa criana, fica bem difcil, no entanto, chamar a Xuxa, a Mara ou as Tartarugas Ninjas para sugerir uma orientao mais adequada a esta ou quela criana.

    A dcada de 70 abrigou a ltima gerao de negadores renitentes s influncias da TV na formao das crianas. Essa batalha foi vencida por dois fatores, dentre outros, que considero importante destacar:

    Crianas com dificuldades de integrar-se ao convvio social escolar, pois no tinham os elementos para compartilhar os mitos modernos com seus coleguinhas de classe. Por no ocuparem o sof, tiveram de freqentar muito cedo os divs.

    A entrada da TV, nessas casas, pelo quarto de empregada. L a TV tinha a funo de cooptar as colaboradoras indispensveis para o equilbrio da vida domstica. No foram apenas audiovisuais os sustos que muitas famlias levaram ao descobrir o mundo paralelo que seus filhos freqentavam, com as escapadas para esse quartinho dos fundos.

    Os pontos que estou indicando ilustram aspectos desse universo indefinido de preconceitos em que pais e educadores vm-se debatendo h algumas dcadas.

    H Um Vdeo no Meu Caminho ...

    Chegamos agora ao terceiro fio desse emaranhado. A partir da constatao obsessiva e bvia de que a escola brasileira est perdendo o bonde da histria, uma das iniciativas que vm marcando os passos rumo modernidade, tanto no ensino pblico quanto na escola particular, a busca do recurso do vdeo.

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    A sensao dos professores, diante dessa novidade, de estar caminhando em areia movedia. Os cursos de Pedagogia, as licenciaturas ou o 2~ Grau profissionalizante pouco ou nada incluem nos seus currculos sobre a utilizao dos recursos audiovisuais em sala de aula.

    ---,

    O mercado oferece produtos de natureza variada- desde qualquer filme at os didticos-, muitas vezes alheios realidade social e escolar dos alunos e professores. Soma-se ainda mais um preconceito: professor que passa filminho quer matar aula.

    De onde extrair, pois, as energias pedaggicas para vencer a carga de ms interpretaes, equvocos e desvios que marcam culturalmente as relaes das linguagens audiovisuais e a escola?

    No h nenhuma frmula mgica ou metodologia redentora. De fato a receita pode ser simples. O primeiro passo fazer do preconceito um auxiliar de trabalho.

    "Suspeito, logo devo verificar."

    O elemento de referncia deve ser o prprio professor, isto , proponho que o processo de aprendizagem para a utilizao do vdeo em sala de aula comece no interior de cada usurio.

    Se voc, leitor, concorda comigo que, separada da escola, "a TV o maior barato", comece por esse interesse, pelo hbito de ver TV. Analise suas preferncias de programao e tente descobrir seu perfil de espectador. Se tiver ou teve o hbito de ir ao cinema, mais rica ser sua experincia audiovisual para avaliar.

    "Gosto, desfruto, logo isso me marca."

    Como marca? Indicando caminhos, sugerindo comportamentos, orientando o gosto, suprindo minhas angstias, embalando minhas carncias afetivas?

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  • Estimulando a curiosidade, ensinando o que jamais pensaria aprender, instigando o raciocnio?

    Quem no tem preferncia por um gnero, quem no altera um hbito em funo do horrio de um programa de que goste? Quem no tem um ator preferido, quem no usa uma atriz como modelo, quem no tem um personagem inesquecvel?

    Por que a preferncia por um jornal ou revista pode evidenciar meu perfil poltico/ideolgico/cultural e o gosto por certos comerciais de TV no pode indicar o mesmo?

    Respondendo a essas indagaes pode-se comear a penetrar nesse quartinho escondido onde mora o "eu espectador" e trazer para o consciente, logo para o conhecimento responsvel, a natureza pedaggica da linguagem audiovisual.

    A construo dessa linguagem, isto , da forma especificamente cinematogrfica de contar uma histria, foi evoluindo ao longo das dcadas. No comeo era uma colagem de influncias do teatro e da literatura, mas, aos poucos, com a evoluo dos recursos tcnicos e o apuro do gosto dos espectadores, foram-se construindo recursos narrativos cada vez mais sofisticados e prprios para serem expressos atravs de imagens e sons.

    Nossos sentidos foram-se habituando a esses estmulos e passamos a interagir com eles de forma to natural que esquecemos de avaliar o quanto estamos sendo "lapidados" emocional e culturalmente por eles.

    O binmio sentidos-emoo a primeira chave para abrir a porta do "quartinho escondido". A linguagem audiovisual consegue fazer com que assumamos o compromisso de entrar no jogo de faz-de-conta de suas histrias, porque seduz primeiro nossos sentidos. Com sua mgica das sombras, estimula nosso prazer visual e auditivo e baixa nossas guardas racionais.

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    Nada disso, entretanto, motivo para que julguemos negativamente essa interao. Ao contrrio, o fenmeno dos mecanismos psicolgicos de projeo/identificao, base do "contrato de jogo" entre os autores e os espectadores, conhecido e explorado, h sculos, por todas as formas de jogos dramticos que a cultura humana elaborou.

    O cinema e a TV apenas aplicam seus princpios aos gneros cinematogrficos e formatos de programao,

    O binmio sentidos-emoo, acionado pelo contato com as imagens em movimento, torna-se o primeiro degrau para se chegar aos nveis racionais mais altos que podem proporcionar uma aprendizagem slida dos conceitos e sua aplicao.

    No momento em que nos dispomos ao prazer do jogo com as narrativas audiovisuais, tornamo-nos parte integrante de um fenmeno cultural. Desse modo, passamos a "viver", como personagens escondidos, as situaes armadas pelos dramaturgos, pelo diretor, pelos atores.

    H muito vem-se desenrolando uma polmica entre aqueles que entendem as platias de espectadores de cinema e TV como um grupo de indivduos passivos, manipulados pelos donos do jogo, e os que encontram formas diversas de participao, mesmo na aparente imobilidade estimulada pela poltrona.

    Tomando de volta as palavras de Roquette Pinto, quando afirma que o cinema de espetculo o cinema da vida integral, podemos entender como o fenmeno de projeo/identificao uma forma profunda de participao ativa num espetculo audiovisual (e no s nesse tipo de espetculo).

    O fascnio das crianas e jovens por seus mitos e heris consolidado pelas vivncias virtuais proporcionadas pelas narrativas audiovisuais.

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  • O conceito de vivncia virtual deve ser aplicado primeiro pelo professor a si mesmo. Todas as questes propostas anteriormente sero respondidas a partir da memria e avaliao dessas vivncias.

    importante salientar, ainda, que, embora o espectar seja um ato solitrio na sua manifestao exterior, do ponto de vista da vivncia interior proporciona momentos de intensa interao social. Alm disso, compartilhar o prazer passado diante de um espetculo audiovisual nos oferece grandes momentos de interao afetiva com os amigos, a famlia, os colegas de trabalho.

    Bem, tomamos muitos caminhos e atalhos para explorar os terrenos fronteirios da Educao e do cinema. Espero que o leitor j se tenha familiarizado com o universo onde situo as relaes entre os dois "mundos". As chaves so os elementos de sensibilidade: sentidos, emoo, afeto.

    Jean Piaget, quando investiga o caminho que o ser humano percorre, do contato emprico com o mundo s formas mais complexas de abstrao e operacionalizao racional do conhecimento, salienta o papel propulsor que o interesse afetivo exerce nessa trajetria. E no o descarta em nenhuma das etapas do desenvolvimento da inteligncia.

    Esse o vnculo bsico que devemos valorizar pedagogicamente nas relaes entre cinema e Educao.

    de cineasta De Mdico, e de Louco Todo Mundo Tem Um Pouco

    O ltimo fio do emaranhado que quero puxar , justamente, aquele que, a meu ver, pode conduzir utilizao cmoda e feliz do vdeo que puseram no seu caminho.

    Professor voc j . Espectador tambm, faz tempo. Agora juntar os dois e partir para a luta. Primeiro acredite que voc conhece mais de linguagem audiovisual do que imagina. Faa um esforo de abstrao e separe todos os

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    termos tcnicos que voc utiliza quando conta um filme a algum:

    ( ... )a tem um dose da roda da moto do exterminador passando, no ar, por cima do buraco. Corta para um plano do garoto agarrado nele. A, no plano geral vemos que o trem vai passar. De repente eles fazem um truque e os caras parece que derretem, para aparecer depois do outro lado ( ... ).

    Essa bagagem, que voc deixou esquecida no quartinho escondido, precisa ser arejada, exercitada e compartilhada. Qualquer momento adequado para o exerccio. Os comerciais de TV, por se repetirem muitas vezes, so a melhor fonte de ginstica da percepo. Proponha esse mesmo brinquedo para os alunos e compartilhem as descobertas.

    No tenha a expectativa de que possvel ler ou aprender uma metodologia pronta e acabada sobre o uso dos recursos audiovisuais na sala de aula. preciso compreender os princpios da interao entre espectador e espetculo e us-los pedagogicamente. preciso perder o medo, pois a metodologia ser construda atravs da experimentao.

    Cada professor uma autoridade diante de sua matria, de seu saber. Os recursos audiovisuais devem integralizar essa autoridade, devem enriquec-la.

    No h limites na escolha dos filmes. Os mais adequados sero os que podero proporcionar maior riqueza de discusso. O tema e a abordagem devem ser avaliados de acordo com a maturidade da classe e a natureza da matria.

    Mesmo as questes de cunho tico e moral precisam ser encaradas com mente aberta, pois j houve experincias em que mostrar o negativo permitiu a abertura crtica da viso, no rumo das atitudes positivas.

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  • O professor deve "curtir" o filme junto com a classe, deve partilhar o calor da discusso com os alunos. S numa situao de interao afetiva o professor tem terreno seguro para descolar-se, com sua autoridade e vivncia, no rumo de uma interpretao enriquecida daquilo que foi assimilado.

    O professor deve fazer-se um espectador especializado. Quer dizer, sua especializao como educador, no como espectador. O professor usa o filme ou vdeo numa situao de ensino/ aprendizagem. Est exercendo sua profisso de mestre. Como espectador comum, cidado do seu tempo, ele acumulou vivncia e experincia para aplic-la ao exerccio de sua profisso. Como espectador especializado ele ter autoridade para se fazer intrprete das linguagens audiovisuais.

    E os Artistas, Onde Entram Nisso?

    Neste ponto quero voltar ao texto de abertura, em que o Prof. Ansio Teixeira fala da funo dos poetas e artistas num mundo em que o conhecimento se tornou muito diversificado e distante.

    Como sempre, h crticos ferozes ao surto de modernidade audiovisual da escola. O argumento eterno de que faltam giz e lousa, livro didtico, merenda, dentista etc. srio e verdadeiro, mas no deve fatalizar o ensino brasileiro a ponto de impedi-lo de "queimar etapas" se a oportunidade se apresenta.

    A queima de etapas , alis, uma fatalidade do Terceiro Mundo, principalmente em relao produo do conhecimento e utilizao prtica dos resultados das pesquisas e da tecnologia.

    Compreender bem a utilidade e a importncia de se inserir o vdeo na prtica pedaggica tambm um fator de desbloqueio para o professor.

    Cada vez mais se amplia o nmero de educadores e especialistas que defendem a utilizao de qualquer tipo de

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    produo audiovisual na escola, isto , j no se busca mais o filme didtico, mas sim aquele produto que proporcione um melhor estmulo ao conhecimento. Desse ponto de vista, qualquer filme educativo.

    Partir desse princpio abre um duplo caminho para o ingresso do vdeo no contexto educacional:

    o O primeiro afasta o temor (falso) de que as imagens podem substituir o professor. Se elas no esto produzidas para o fim educativo, preciso adapt-las, interpret-las. Isso s pode ser feito pelo professor. timo! Assim descarta-se um tabu.

    o O segundo a dupla funo educativa que se pode extrair da discusso de um filme, vdeo ou programa de TV. Ao mesmo tempo em que os alunos esto aprendendo um contedo especfico tratado pelo filme, esto discutindo a linguagem, a forma como esse conhecimento est sendo transmitido.

    Esse segundo ponto adquire um valor especial no mundo moderno. a educao para compreender a forma como o conhecimento do mundo chega at cada um de ns. De certa maneira o instrumento para nos fazer perder a ingenuidade diante do compromisso que rege a relao entre o cidado e o seu Estado.

    Cada vez mais a televiso , por excelncia, o meio de disseminao da informao. E o cidado informado que toma as decises quanto a reivindicaes, propostas ou rumos de sua vida em sociedade. Mesmo as programaes com o fim estrito do lazer abrigam um espectro de informao que pode condicionar uma viso de mundo, se for assimilada ingenuamente.

    Assim, compreender que por trs de qualquer mensagem h um criador, o qual organizou a informao segundo seu ponto de vista, recorrendo a meios expressivos e

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  • tecnolgicos - formas de narrativa, fotografia, som, . montagem - que pudessem fazer essa mensagem mais confivel, torna-se um conhecimento imprescindvel para a formao do cidado moderno. A escola no pode estar ausente dessa formao.

    I O exerccio escolar de ver mensagens audiovisuais e "discutir" com elas sobre contedo e expresso, a oportunidade de discordar do autor da mensagem com a orientao do professor vo formar e consolidar a leitura crtica dos meios de comunicao e possibilitar uma relao responsvel com a informao e o lazer.

    Apesar de algumas opinies contrrias dos crticos mais mal-humorados, todos concordamos com atribuir aos trabalhadores dos meios de comunicao de massa o nome de "artistas".

    Foi o cinema que primeiro lutou para o reconhecimento de que sua forma de expresso era artstica e de que seus realizadores eram artistas.

    Se reconhecemos, ento, que o cinema, o vdeo e a TV so uma fonte preciosa de conhecimento (informao) e educao ("ginstica do sentimento") e que produzem e veiculam linguagem artstica; se nos sentimos um pouco atordoados com a multiplicao e o aprofundamento do conhecimento e, sobretudo, dos recursos tecnolgicos dele derivados, temos de concordar com Ansio Teixeira quanto ao papel fundamental de "popularizadores da cultura" que adquirem, neste fim de milnio, esses artistas.

    Agora resta-nos refletir um pouco sobre essa forma mu~to particular de sentir e expressar o mundo que eles tm. E preciso estar atentos para o fato de que a expresso artstica, desde os primeiros tempos, destacou-se de outras formas de "ver e narrar o mundo" pelo seu poder de sntese. Que a matria-prima de expresso dos artistas

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    est no uso dos sentidos e da sensibilidade. So esses os seus canais de comunicao com o mundo.

    preciso lembrar que a tradio das culturas associar o usufruto das artes aos estados de prazer.

    Voltamos, ento, ao ponto inicial do divrcio entre o cinema e a Educao, no incio do sculo. Parte desse equvoco, que perdurou tanto tempo, deveu-se exatamente ao fato de ter sido recusado ao cinema educativo o elemento de prazer, de jogo, assumido e porporcionado pelo cinema de espetculo. Em qualquer tempo, qualquer filme foi educativo.

    A outra passagem difcil de compreender : como instaurar dentro da sala de aula esse clima de desfrute, de atiamento dos sentidos, para depois fazer a passagem ao estgio mais racional das abstraes crticas e da assimilao instrutiva (funo tradicional e insubstituvel da escola)?

    Jean Piaget enftico na afirmao de que o motor afetivo indispensvel no desenvolvimento e na consolidao dos processos de aprendizagem. A dcada de 70 alinhavou inmeras teorias e metodologias baseadas na estimulao do interesse. Assim, entendo que esses so os suportes que os educadores devem reavivar para o uso dos recursos audiovisuais na Educao. Alm, claro, de reavivar seu esprito mais "f" dos velhos filmes e artistas.

    Uma ltima palavra para aqueles que ainda no encontraram um video no seu caminho: a memria um precioso auxiliar no trabalho com as linguagens audiovisuais. Assim, tudo isso que propusemos aqui perfeitamente aplicvel discusso de qualquer programao de TV que a classe e o professor estabeleam para debate. Desde que combinado previamente e assistido por todos. Em suas casas.

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  • BREVE HISTRICO DOS MOVIMENTOS CINEMATOGRFICOS

    Jos Geraldo Couto1

    Depois de uma srie de experimentos e invenes implementados no decorrer do sculo XIX na Europa e nos Estados Unidos, o cinema, na forma bsica como o conhecemos hoje, nasceu oficialmente em Paris, em 28 de dezembro de 1895, na sesso promovida pelos irmos Louis e Auguste Lumiere no Grand Caf. A partir de ento, ele no deixou nunca de se transformar, incorporando novas tcnicas, abordando novos temas e desenvolvendo novas linguagens.

    Desde suas origens, o cinema dividiu-se basicamente em duas vertentes opostas: uma tendncia documental, de busca da reproduo da realidade fsica, praticada, por exemplo, pelos prprios irmos Lumiere, que filmavam o movimento da rua, trens chegando estao, festas e enterros; e uma tendncia "mgica" ou fantstica, que deformava a realidade por meio de truques e que teve como seu principal representante, no incio do sculo, o francs Georges Mlies (1861-1938). Em maior ou menor medida, cada um dos movimentos cinematogrficos que sero abordados aqui sofreu a influncia de uma dessas duas tendncias, ou, mais raramente, de ambas.

    Um terceiro nome, alm de Lumiere e Mlies, merece destaque entre os pioneiros do cinema: o do americano David Wark Griffith (1875-1948). Ao desenvolver, a partir de 1908, recursos como o dose 2, a montagem paralela e os movimentos de cmera, Griffith praticamente criou a linguagem narrativa cinematogrfica, libertando-a da fixidez do ponto de vista que a tornava uma mera

    1 Graduado em Jornalismo e bacharel licenciado em Histria pela USP; exerceu o magistrio de Histria; foi redator do peridico O Estado de S. Paulo; atualmente trabalha no Caderno ae Letras da Folha de S. Paulo.

    2 O mesmo que primeiro plano. Ver Glossrio.

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  • extenso do teatro. Tudo o que se fez posteriormente em cinema s foi possvel graas aos passos gigantescos dados por Griffith.

    O Expressionismo Alemo

    O chamado expressionismo alemo desenvolveu-se no cinema dura~te a Repblica de Weimar, ou seja, no perodo que vai do final da Primeira Guerra Mundial (1918} ascenso de Hitler ao poder (1933). A maior parte do cinema expressionista, portanto, foi realizada nos m.ucos do cinema mudo. S os ltimos filmes do moYimento foram sonoros.

    Como ocorria na pintura, na literatura e no teatro da mt>sma escola, a caracterstica fundamental do cinema t>xprt>ssionista era a deformao da realidade como modo dt> expresso de uma viso de mundo sombria e pessimista. Era uma forma de cinema sintonizada com o sentimento de derrota do povo alemo e, ao mesmo tempo, com os pressgios de um desastre pior ainda- que viria, afinal, com o nazismo.

    Para criar esse c lima de pesadelo, o cinema expressionista lanou mo de uma srie de recursos, em sua maioria herdados do estilo de encenao do diretor teatral vienense Max Reinhardt (1873-1943): cenrios fantasmagricos, ambientao sombria, enquadramentos oblquos, nfase no contraste claro-escuro, maquiagem pesada, interpretaes exageradas. Esse aparato de deformao e exacerbao do real foi explorado de vrias formas; de acordo com o estilo de cada cineasta, e cobriu praticamente todos os gneros, do terror (Nosferatu, de Murnau, 1922) fico cientfica (Metrpolis, de Fritz Lang, 1926), do policial (Mabuse, o Jogador, de Lang, 1922} ao melodrama (O Anjo Azul*, de Sternberg, 1930), passando por filme histrico, comdia de costumes, aventura, drama romntico etc.

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    Praticamente todos os filmes expressionistas alemes foram produzidos pela Universum Film Aktiengesellschaft- UFA, companhia fundada em 1917 e que funcionava como uma espcie de cooperativa de cineastas at ser estatizada em 1940.

    O primeiro filme alemo considerado inequivocadamente expressionista foi O Gabinete do Doutor Ca/igar (1919), de Robert Wiene (1881-1938). Com sua histria intrincada-sobre um gnio louco que hipnotiza um jovem e o faz praticar crimes-, desenvolvida num cenrio fantasmagrico de ruelas retorcidas e edifcios inclinados, o filme de Wiene definiu claramente o padro esttico expressionista e tambm alguns de seus temas obsessivos: a loucura, a hipnose, o crime, o mistrio.

    Mas os cineastas mais importantes do Expressionismo foram, sem dvida, Friedrich Wilhelm Murnau (1889-1931) e Fritz Lang (1890-1976).

    Nascido em Bielefeld, Alemanha, Murnau formou-se em Histria da Arte em Heidelberg e foi assistente de Max Reinhardt no teatro antes de dedicar-se ao cinema, onde desenvolveu um estilo potico, repleto de ambigidade e sensualismo. Dentre seus principais filmes destacam-se Nosferatu (1922), A ltima Gargalhada (1924), Fausto (1926), Aurora (1927) e Tabu (1930), os dois ltimos realizados nos Estados Unidos.

    O vienense Fritz Lang representou, em muitos aspectos, o oposto de Murnau. Estudou pintura e arquitetura, e aplicou em seus filmes uma concepo plstica geomtrica e rigorosa. Ao contrrio de Murnau, que privilegiava o sentimento individual, Lang construiu um universo em que a arquitetura, o poder e as multides oprimem o indivduo. Realizou a maioria de seus roteiros em parceria com sua mulher, Thea Von Harbou, a quem abandonaria em 1933 para fugir da Alemanha nazista

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  • rumo Frana e depois aos Estados Unidos (Thea ficou e acabou aderindo ao cinema nazista). Dentre os mais importantes filmes de Lang destacam-se, em sua fase alem: A Morte Cansada (1921), Os Nibelungos (em duas partes, 1923 e 1924), Metrpolis (1926) eM, O Vampiro de Dsseldorf" (1931). Na Amrica realizou, dentre outros, Fria (1936), Os Carrascos Tambm Morrem (1942) e Os Corruptos (1953).

    Outros cineastas importantes do Expressionismo foram Georg Wilhelm Pabst (1885-1967) e Paul Leni (1885-1929). O primeiro ficou famoso principalmente pelos ousados melodramas morais que fez com a atriz americana Louise Brooks, A Caixa de Pandora e Dirio de Uma Pecadora, ambos de 1928. Leni importante sobretudo por sua obra-prima de 1924, O Gabinete das Figuras de Cera.

    Houve tambm grandes diretores que filmaram na Alemanha no perodo, e que mantiveram contato com o movimento sem serem, entretanto, autenticamente expressionistas. o caso de Ernest Lubitsch, que se especializaria em dramas histricos e, nos Estados Unidos, em comdias romnticas; e J oseph von Sternberg, famoso por sua parceria com Marlene Dietrich em filmes como O Anjo Azul* (1930) e O Expresso de Shangai (1932).

    A influncia do cinema expressionista ultrapassou as fronteiras alems, estendendo-se a cineastas to diversos como o ingls Alfred Hitchcock, o dinamarqus Carl Dreyer e o americano Orson Welles. Com a imigrao para os Estados Unidos de muitos de seus autores e tcnicos, na poca da ascenso de Hitler, o Expressionismo marcou profundamente o cinema de horror americano e o chamado filme noir3, especialmente no que diz respeito iluminao e fotografia.

    3 Literalmente, filme negro. Expresso francesa que designa obras policiais, feitas principalmente por cineastas americanos especializados na criao de ambientes sombrios e opressivos.

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    Nos anos 70 e 80, cineastas como Werner Herzog, Rainer Fassbinder e Win Wenders, do Novo Cinema alemo, resgataram em seus filmes muito da herana expressionista, no raro copiando seus temas e mesmo refilmando alguns de seus clssicos (como Nosferatu (1979), refilmado por Herzog, e O Anjo Azul*, atualizado por Fassbinder com o ttulo Lola, 1981).

    O Cinema Revolucionrio Sovitico

    No bojo da Revoluo Russa de 1917, desenvolveu-se na ento nascente Unio Sovitica um cinema empenhado ao mesmo tempo na luta poltica proletria e na busca de uma nova linguagem e esttica, de acordo com a mxima do poeta comunista Vladimir Maiakovski4 : "para um contedo revolucionrio, necessrio que haja uma forma revolucionria".

    O cinema revolucionrio sovitico, realizado sobretudo nos anos 20, teve duas vertentes opostas e complementares. De um lado, Serguei Eisenstein (1898-1948), de longe a figura mais importante do movimento, preconizava um cinema conceitual, dialtico, distante do naturalismo e do documentarismo. De outro lado, Dziga Vertov (1896-1954) criava o "cine-olho", propondo justamente a captao da realidade in loco, longe do estdio e sem a interferncia do diretor, a no ser na montagem.

    Alm de um grande cineasta, Eisenstein foi tambm um terico. Ao mesmo tempo em que realizava seus filmes, refletia sobre a linguagem cinematogrfica, e acabou

    4 Vladimir MAIAKOVSKI (1893-1930). Poeta russo, dos mais importantes deste sculo, autor de Guerra e Paz (1917), Nossa Marcha (1918), Vladimir Ilitch Lenine (1925), dentre outros.

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  • construindo uma das obras tericas mais importantes do cinema.5

    Sua idia bsica era a de que a arte do cinema baseia-se essencialmente na montagem, mas no no sentido de Griffith, que a empregava com fins meramente dramticos e narrativos. Para Eisenstein, a contraposio de dois planos filmados gera uma terceira imagem ou idia, e nesse mecanismo que ele baseia a sua proposta de um cinema conceitual ou dialtico. Um exemplo concreto: em Outubro* (1927), um plano mostra o lder do governo provisrio (entre a revoluo de fevereiro de 17 e a revoluo bolchevique de outubro do mesmo ano), Kerensky, filmado de baixo para cima, com os braos cruzados; o plano seguinte mostra uma esttua de Napoleo na mesma posio. O confronto entre as duas imagens sugere um conceito, ou melhor, vrios: ambio, tirania, megalomania. o princpio do cinema conceitual.

    Esse princpio ganhou nos prprios filmes de Eisenstein um notvel enriquecimento, graas ao extraordinrio senso plstico do diretor, que era wn estudioso da pintura e da iconografia religiosa russa. Suas obras-primas da fase muda so o prprio Outubro* e, principalmente, O Encouraado Potemkin* (1925). Considerado um dos maiores filmes da histria do cinema, O Encouraado ... narra a revolta dos marinheiros contra o czar durante a abortada revoluo de 1905, considerada um "ensaio geral" para a revoluo de 1917. Os dois filmes, realizados por encomenda do governo sovitico para comemorao dos aniversrios dos acontecimentos narrados, ultrapassaram sobremaneira o objetivo cvico-pedaggico, transformando-se em marcos do cinema poltico.

    Apesar das dificuldades impostas pelo crescentemente opressivo regime stalinista, Eisenstein ainda realizaria dois filmes sonoros extraordinrios, ambos picos que remetem histria russa: Alexandre Nevsky (1938), saga patritica

    5 Ver ttulos de Eisenstein na Biblioteca FDE de Cinema.

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    sintonizada com o clima pr-Segunda Guerra, e Ivan, o Terrvel (1944 e 1958), cuja segunda parte s foi montada dez anos depois da morte do cineasta e que considerada uma referncia velada tirania stalinista. Outra obra-prima inacabada de Eisenstein o semidocumentrio Viva Mxico!* (rodado em 1931 e s concludo em 1979 pelo co-diretor Grigory Alexandrov).

    Vertov, por sua vez, depois do filme-manifesto Kino-Glaz (Cine-Olho, 1924), que lanou sua esttica, realizou em 1926 Um Sexto do Mundo, montagem de cenas da vida cotidiana em pases capitalistas e socialistas. Dentre seus curtas mais famosos esto os da srie Kino-Pravda (Cinema-Verdade), realizados entre 1922 e 1925. A influncia de Vertov foi decisiva para o Neo-realismo italiano e para a Nouvelle Vague francesa, e a expresso vertoviana cinema-verdade foi o lema dos jovens cineastas dos anos60.

    Dentre outros cineastas soviticos do perodo revolucionrio, em geral seguidores de Eisenstein, destacam-se Vsevold I. Pudovkin (1893-1953) e Aleksandr Dovjenko (1894-1956). O primeiro, inspirado em Mximo Grki6, realizou uma trilogia sobre a tomada de conscincia proletria: A Me (1926), O Fim de So Petersburgo (1927) e Tempestade Sobre a Asi (1928). Dovjenko mostrou a temtica revolucionria do ponto de vista de sua Ucrnia nataL em obras marcantes corno Arsenal (1929) e Terra (1930). Era' considerado pelo historiador Georges SadouF "o maior poeta pico do cinema".

    Mximo GRKI (1868-1936). Clebre escritor e dramaturgo russo, foi o porta-voz oficial dos intelectuais junto ao governo aps a Revoluo de 1917. Autor de Ral, A Me e Pequenos Burgueses, dentre outros.

    7 Georges SADOUL (1904-1%7). Francs, dos mais clebres historiad~res_do cinema, ~oi.ligado ao grupo surrealista e comeou a fazer critica crnematogrfica em 1935. Ex-professor no Instituto de Filmologia da Sorbonne, foi tambm conferencista de renome mundial. Autor de Histria do Cinema Mundial e Dicionrio de Cinema, dentre outros.

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  • Neo-realismo italiano

    o termo Neo-realismo foi criado em 1943 pelo crtico italiano Umberto Barbaro8 para designar uma tendncia cinematogrfica que comeava a surgir na Itlia e que se configuraria em movimento a partir do final da Segun~a Guerra (1945). A caracterstica principal dessa tend~cJ.a era a tentativa de fazer um cinema que documentasse a vtda do povo italiano, sem artifcios nem retrica. Era uma reao aos melodramas acadmicos e vazios (chamados de "telefones brancos") que floresceram na poca do fascismo.

    As fontes do Neo-realismo so inmeras, desde a literatura verista de Giovanni Verga9 e os escritos do terico comunista Antonio GramscP0 at as experincias realistas esboadas na fase muda do cinema italiano por cineastas como Nino Martoglio e Gustavo Serena. Alm disso, uma influncia marcante foi a do sovitico Dziga Vertov e seu "cine-olho".

    Curiosamente,o primeiro filme de caractersticas nitidamente neo-realistas foi feito por um francs, Jean Renoir. Trata-se de Toni (1934), ambientado entre migrantes italianos que trabalhavam na lavoura no Sul da Frana. A descrio detalhada da vida cotidiana do povo, a ausncia de artifcios de montagem e cenografia, a predominncia de cenas externas e o realismo da histria narrada j antecipavam a despojada

    8 Umberto BARBARO (1902-1959). Professor do Centro Ex~rimental, terico do cinema e tradutor de escritores como Puovkin. Eisenstein e Balasz.

    9 Giovanni VERGA (1840-1922). Escritor italiano nascido na Siclia, ligado a movimentos patriticos. Grande admirador de Flaubert e Zola, escreveu romances com forte preocup_a9~o social. Auto~ d~ ~ Casa dos Malavoglia, Don Gesualdo, Contos SICilianos e Duas H1stonas da Sia1ia (todos em ln~ portu~esa).

    10Antonio GRAMSCI (1891-1937). Terico e homem poltico italiano. Filsofo da prxis, acreditava que o marxismo continha as bases "para construir sua total e integral concepo do mundo". Autor de Cartas do Crcere, Os Intelectuais e a Organizao thl Cultura, Literatura e Vi Nacional, dentre outros.

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    esttica neo-realista. Outro filme precursor do movimento foi a obra de estria do italiano Luchino Visconti (1906-1976), Ossessione (1942), drama livremente inspirado no romance The Postman Always Rings Twice, do americano James M. Cain.11

    Mas o movimento neo-realista propriamente dito foi desencadeado em 1945 por Roma, Cidade Aberta, filme-chave da obra de um dos expoentes da escola, o romano Roberto Rosselini (1906-1977). Misturando cenas documentais a outras encenadas por atores, o filme narra a dramtica resistncia do povo romano contra a ocupao nazista. O impacto de Roma, Cidade Aberta, lanado logo aps o trmino da Guerra, ajudou a divulgar o movimento no mundo todo.

    O filme seguinte de Rosselini, Pais (1946), confirmaria as caractersticas realistas do primeiro, mostrando uma srie de episdios trgicos e cmicos do final da Guerra, quando a Itlia, j destroada, era palco das ltimas batalhas entre alemes e aliados. A partir da, at os anos 60, Rosselini no pararia de realizar filntes notveis, que, mesclando o documento e o melodrama (ou, mais raramente, a comdia), ajudaram a mostrar ao mundo a Itlia do ps-Guerra. Entre suas obras mais marcantes, que influenciaram as geraes da Nouvelle Vague e do Cinema Novo, destacam-se: Alemanha, Ano Zero (1947), Stromboli (1949), Europa 51 (1952) e De Crpula a Heri (1959).

    Outra gigante do Neo-realismo foi o ator e diretor Vittorio De Sica (1902-1974), que, ao lado do roteirista Cesare Zavattini, daria ao movimento algumas de suas obras-primas, como Ladres de Bicicleta (1948), Milagre em Milo (1950) e Umberto D (1951). A mxima de Zavattini

    11James Mallahan CAIN (1892- ? ). Jornalista, escritor e roteirista, seus romances se caracterizam pela violncia. Autor de A Admirvel Contrafao do Amor (1942), O Destino Bate Porta e A Borboleta (1947), dentre outros.

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  • era: "retratar o homem em sua aventura de todos os dias". Embora sem descuidar do aspecto documentat a potica de De Sica centrava-se sobretudo no indivduo oprimido pelas engrenagens sociais. Seu humanismo, um dos mais profundos de todo o cinema, tem como herdeiros diretos, dentre outros, o italiano Ettore Scola e o brasileiro Roberto Santos.

    Alm de Rosselini e De Sica, vrios cineastas italianos de primeirssima categoria comearam no interior d,o movimento e depois seguiram novos caminhos. E o caso do prprio Visconti, que depois de Ossessione realizaria ainda os marcadamente neo-realistas La Terra Trema (1947), Belssima (1951) e Rocco e Seus Irmos {1960), antes de tornar-se grande esteta da decadncia das classes dominantes. Alguns dos primeiros filmes de Federico Fellini, como Mulheres e Luzes (1950), Os Boas- Vidas (1953) e A Estrada (1954), mostram clara influncia do movimento, e o mesmo se pode dizer dos primeiros documentrios de Michelangelo Antonioni e de seu melodrama O Grito (1957).

    Diretores neo-realistas importantes so tambm Giuseppe De Santis (nascido em 1912), realizador de Trgica Perseguio (1947) e Arroz Amllrgo (1948), e Alberto Lattuada (nascido em 1914), que dirigiu, dentre outros, O Bandido (1946) e O Moinho do P (1948), alm de ter co-dirigido o filme de estria de Fellini, Mulheres e Luzes (1950).

    O Neo-realismo influenciou, de um modo geral, todo o cinema italiano posterior, alm dos diretores franceses da Nouvelle Vague, brasileiros do Cinema Novo e mesmo americanos como Elia Kazan, Robert Rossen e Martin Scorsese.

    Nouvelle Vague

    A Nouvelle Vague ("nova onda", em francs) foi um movimento surgido na Frana no final dos anos 50, quando os jovens crticos e cinfilos reunidos em torno

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    da revista Cahiers du Cinma comearam a fazer filmes, colocando em prtica suas idias cinematogrficas. De um modo geral, tratou-se de um movimento de renovao da linguagem e dos temas do cinema, subvertendo as convenes narrativas ento dominantes.

    Embora fossem todos discpulos do grande crtico Andr Bazin (1918-1958) e tivessem em comum o repdio ao cinema francs convencional e a paixo pelos mesmos cineastas (Hawks, Hitchcock, Orson Welles, Renoir, Nicholas Ray), os principais diretores da Nouvelle Vague seguiram trilhas bastante distintas.

    O filme que inaugura oficialmente o movimento, Os Incompreendidos (1958), representativo da esttica de seu autor, Franois Truffaut {1932-1984). Ao narrar a histria de um adolescente rebelde beira da marginalidade, Truffaut assumia o tom lrico e autobiogrfico que marcaria a maioria de seus filmes, dentre os quais se destacam Jules et fim (1961), Farenheit 451 (1966), Duas Inglesas e o Amor (1971), A Noite Americana {1973), A Histria de Adele H {1975) e O Homem Que Amava as M~lhtres (1977). O .elegante cinema de Truffaut, que ev.Itava os temas duetamente polticos e sociais, sempre foi declaradamente influenciado pela literatura romntica e, no cinema, por Jean Renoir e Alfred Hitchcock.

    O outro lder mais clebre do movimento, Jean-Luc Godard (nascido em 1930), notabilizou-se, ao contrrio, pela postura polmica e provocadora. Desde sua explosiva estria, em 1960, com Acossado, Godard mostrou-se um experimentador radical, disposto a subverter as convenes narrativas dos vrios gneros cinematogrficos.

    Nos filmes de Godard, geralmente pardias de gneros, uma profuso de referncias literrias e cinematogrficas convive com temas polticos do momento e com rupturas narrativas (atores falam diretamente para a cmera,

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  • letreiros ocupam a tela com mensagens bombsti~as, _a equipe tcnica aparece em cena etc.). Em sua ferttlisstma primeira fase, Godard parodiou o polic~al ~Ac~ssa~o), o filme blico (Tempo de Guerra, 1963), a ftcao ctenhftca (Alp11aville, 1965) e o road movie (Pierrot le Fou, 1965, e Week-End Francesa, 1967), alm de realizar uma original reflexo sobre o prprio cinema com O Desprezo* (1963) e uma anteviso das revoltas de maio de 1968 com A CIIntsa (1967). Por sua inteligncia e disp?si~ para~ polmica e a inveno, Godard mantm vtvo amda hoJe o esprito da Nouvelle Vague (no por acaso, este o ttulo de um de seus filmes mais recentes).

    Dois outros cineastas importantes participaram da fase herica da Nouvelle Vague: Claude Chabrol (nascido em 1930) e Eric Rohmer (nascido em 1920). Chabrol estreou em 1958 com Nas Garras do Vcio, financiado por uma herana recebida por sua mulher, e desde ento desenvolveu uma carreira desigual, em que filmes mais pessoais como Os Primos (1959), As Coras (1968) e A Mullter Infiel (1969) alternam-se com produes comerciais e rotineiras. Admirador de Hitchcock (sobre quem escreveu um livro, em parceria com Rohmer), Chabrol especializou-se em dramas policiais com fundo moral.

    Eric Rohmer, o mais velho representante da Nouvelle Vague, teve uma das carreiras menos espetaculares, mas mais consistentes do movimento. A partir de Le Signe du Lion (1959); construiu aos poucos uma obra intimista e discreta, que j foi chamada "cinema de cmara", por analogia msica de cmara. Com suas sries "Contos Morais" e "Comdias e Provrbios", desenvolvidas a partir dos anos 60, firmou um estilo rigoroso, em que poucos personagens discutem seus pequenos dramas em paisagens campestres ou cenrios despojados, colocando em evidncia delicados dilemas metafsicos e morais. Dentre seus ttulos mais importantes esto La Collectionneuse (1967), O Joe111o de Claire (1970), O Amor Tarde (1972) e O Raio Verde (1985).

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    Dois grandes cineastas foram precursores e "companheiros de viagem" da Nouvelle Vague sem contudo participar diretamente do movimento: Alain Resnais (nascido em 1922) e Louis Malle (nascido em 1932). Ambos anunciaram, com seus primeiros longas, a ruptura que a Nouvelle Vague instalaria: Resnais com a obra-prima Hiroshima Meu Anwr (1959) e Malle com Ascensor Para o Cadafalso (1957) e Os Amantes (1958). Depois disso, Resnais prosseguiria numa fecunda pesquisa de novas formas narrativas que o levaria a associar-se com escritores do nouveau roman12 como Marguerite Duras13 (roteirista de Hiroshima) e Alain Robbe-Grillet14 (roteirista de O Ano Passado em Marienbad, de 1%1).

    Malle, por sua vez, desenvolveria um cinema narrativo mais clssico, centrado geralmente em temas morais e polticos candentes, como o incesto (Um Sopro no Corao, 1970). e o colaboracionismo francs durante a ocupao nazista (Lacombe Luden, 1973).

    Cinema Novo

    O Cinema Novo brasileiro foi o primeiro movimento cinematogrfico surgido no Terceiro Mundo a ganhar repercusso internacional. Inflamado pelo efervescente contexto poltico do incio dos anos 60 (Revoluo

    12Tendncia da literatura francesa que elimina a psicologia do comportamento e sobreleva os objetos. Teve alguma notoriedade nos anos 50 e incio dos 60.

    13Marguerite DURAS (1914- ). Francesa, nascida e criada na Indochina, autora de Modera to Cantabile (1958), O Vice-cnsul (1966), O Caminho (1977), dentre outros.

    14Alain ROBBE-GRILLET (1922- ). Escritor e terico do nouveau roma~:~, autor, dentre outros, de Entre Dois Tiros, O Cime, Djinn-Uma Mancha Vennelha Num Pavimento Estragado, todos editados em Portugal.

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  • Cubana, luta antiimperialista, reformas de base do governo Joo Goulart e, depois, resistncia ao golpe militar de 1964), o Cinema Novo representou uma tentativa de enfrentamento radical da realidade brasileira, focalizando sobretudo a misria, as desigualdades sociais e a dependncia econmica.

    No plano esttico, o Cinema Novo significou uma reao ao formalismo e superficialidade da Vera Cruz15, cujo modelo de cinema era uma tentativa de cpia dos padres de superproduo norte-americanos. A esse cinema "colonizado e artificial", o Cinema Novo contraps a "esttica da fome", expresso popularizada graas a um clebre manifesto escrito pelo principal lder do movimento, o baiano Glauber Rocha (1938-1981).

    Glauber forneceu tambm o lema do Cinema Novo: "Uma cmera na mo, uma idia na cabea". Ou seja: um mximo de criatividade com um mnimo de recursos tcnicos. A proposta era fazer 1.1m cinema que refletisse no seu prprio modo de produo as condies do Pas.

    O Cinema Novo surgiu mais ou menos esparsamente, na Bahia e no Rio de Janeiro, pelas mos de jovens diretores como Glauber, Cac Diegues (nascido em 1940), Ruy Guerra (nascido em 1931), Leon Hirszman (1937-1987), Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988) e Paulo Csar Saraceni (nascido em 1932). Todos eles eram discpulos de Nlson Pereira dos Santos (nascido em 1928), que j havia lanado as bases do movimento com os precursores Rio 40 Graus (1955) e Rio Zona Norte* (1957), exuberantes afrescos da vida popular carioca.

    15Nome da Companhia Cinematogrfica fundada por Franco Zampari em 1949, em So Bernardo do campo. Faliu em 1955. Realizou dezoito lonsas-metragens, dentre os quais: Cai.ara (1950) e Tic.o-Tico no Fuba (1952), de Adolfo Celi; Sai da Frente (1952), de Ablio Pereira de Almeida; e O Cangaceiro* (1953), de Lima Barreto.

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    A influncia neo-realista que se notava nos filmes de Nlson Pereira estava presente tambm em outra obra anunciadora do Cinema Novo, O Grande Momento (1958), do paulista Roberto Santos. A ela juntava-se, nos melhores diretores do Cinema Novo, a influncia do cinema revolucionrio sovitico (especialmente Eisenstein) e da Nouvelle Vague (sobretudo no repdio s convenes narrativas do cinema comercial).

    Em sua primeira fase (at 1964), o Cinema Novo significou a descoberta e a anlise crtica de um Brasil at ento ausente da produo cinematogrfica nacional, ou ento presente sob a forma do pitoresco e do folclrico. Um dos focos de ateno do movimento foi o Nordeste, com a dura realidade sertaneja aparecendo em filmes como Vidas Secas* (1963), de Nlson Pereira dos Santos; Os Fuzis* (1964), de Ruy Guerra; e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), de Glauber Rocha, talvez o grande filme do movimento. Outro tema privilegiado, as favelas cariocas apareciam em obras como Rio Zona Norte* e o filme de episdios Cinco Vezes Favela, produzido em 1962 pelo Centro Popular de Cultura da Unio Nacional dos Estudantes - UNE - e dirigido por Cac Diegues, Leon Hirszman e Joaquim Pedro de Andrade.

    Depois do golpe militar de 64, os filmes do Cinema Novo passaram a ser ~ais diretamente polticos, e seu estilo mais alegrico. E o caso do filme-chave Terra em Transe* (1967), de Glauber Rocha, alegoria delirante e barroca sobre a luta pelo poder num pas imaginrio da Amrica Latina. Representativos dessa mesma fase so tambm O Desafio (1965), de Paulo Csar Saraceni; O Bravo Guerreiro (1968), de Gustavo Dahl; Os Herdeiros (1969), de Cac Diegues; e O Drago da Maldade Contra o Santo Guerreiro (prmio de melhor direo em Cannes, 1969), de Glauber Rocha.

    O Cinema Novo enquanto movimento organizado encerra-se praticamente com o exlio de Glauber Rocha na

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  • Europa, em 1970. Embora o prprio Glauber tenha realizado uma obra notvel no Exterior e seus colegas tenham continuado a produzir filmes no Brasil, a eficcia poltica da produo cinemanovista j no era a mesma, e a vanguarda cinematogrfica passava para as mos do chamado Cinema Marginal ou "Udigrudi", cujos principais representantes foram Rogrio Sganzerla, autor do extraordinrio O Bandido da Luz Vermelha* (1968), e Jlio Bressane, realizador, dentre outros, de Matou a Famlia e Foi ao Cinema (1969).

    Cabe lembrar algumas obras realizadas margem do grupo do Cinema Novo, mas que com ele guardam fortes afinidades temticas e estticas. o caso, por exemplo, de O Pagador de Promessas*, realizado por Anselmo Duarte em 1962. Ganhador do Palma de Ouro em Cannes, o filme de Duarte trata do tema da intolerncia e do preconceito da cultura oficial com relao religiosidade popular. Outro grande filme de concepo prxima do Cinema Novo O Caso dos Irmos Naves* (1967), de Luis Srgio Person, que aproveita um erro judicial ocorrido nos anos 30 para denunciar as distores polticas e sociais da Justia no Brasil.

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  • A CONSTANTE ABSTRAO NA PRODUO CINEMATOGRFICA

    Ricardo Picchiarinil

    Como, em poucas linhas, descrever o cinema:

    "Nas mos de um esprito livre, o cinema uma arma magnfica e perigosa. o melhor instrumento para exprimir o muno dos sonhos, das emoes, do instinto. O mecanismo produtor das imagens cinematogrficas , por seu funcionamento intrnseco, aquele que, de todos os meios da expresso humana, mais se assemelha mente humana, ou melhor, mais se aproxima do funcionamento da mente em estado de sonho.

    ]acques B. Brunius2 assinala que a noite paulatina que invade a sala equivale a fechar os olhos. Comea ento na tela, e no znterior a pessoa, a incurso pela noite do inconsciente; como no sonho, as imagens aparecem e desaparecem por meio de fuses e escurecimentos; o tempo e o espao tornam-se flexveis, prestando-se a redues e distenses voluntrias; a ordem cronolgica e os valores relativos da durao deixam ae corresponder realidade; a ao transcorre em ciclos que podem abranger minutos ou sculos; os movimentos se aceleram.".

    Estas palavras do cineasta espanhol Luis Bufiuel realmente abrangem quase toda a produo da histria do cinema. Por que quase? Porque houve uma poca em que o cinema no tinha uma idia to clara de todas as suas potencialidades; o pensamento de Bufiuel vlido apenas para um cinema que j havia descoberto a linguagem cinematogrfica e uma forma de organiz-la, ou seja, sua narrativa.

    1 Graduado em Cinema pela USP; roteirista, diretor de fotografia e produtor de som em vrios curtas-metragens.

    2 Em A Experincia do Cinema, de Ismail Xavier.

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  • Para se ter uma idia da rpida evoluo pela qual passou o cinema, estas palavras de Buiiuel foram ditas apenas sessenta anos depois da inveno do cinema (creditada aos irmos Lumiere em 1895); e mais: seus prprios inventores deixaram claro, na poca, que no acreditavam na longevidade de sua inveno. Mesmo assim, realizaram mais de mil pequenos documentrios e alguns curtas-metragens cmicos. Mal sabiam eles que estes seus experimentos serviriam para o desenvolvimento da linguagem cinematogrfica.

    Cineastas pio~1eiros, como o francs Georges Mlies, aprofundaram a pesquisa no sentido de explorar a capacidade narrativa do cinema, ou seja, de conseguir contar histrias atravs de um filme. Enquanto os Lumieres investiam basicamente em documentrios de pequena durao (por volta de dois minutos), Mlies, no seu Cinderel/a (1899), contava uma histria em vinte atos, intercalados por letreiros que lhe davam nomes. O fato de poder desligar a cmera ao final de cada ato dava-lhe a possibilidade de uma narrativa mais extensa, chegando aos quinze minutos de durao- seria impossvel, na poca, filmar tanto tempo sem recarregar a cmera com filme virgem.

    Ao introduzir este novo formato, Mlies acabava por abrir novos caminhos para o cinema. Porm, ainda era muito forte o parentesco destas primeiras obras com a narrativa teatral: a cmera simplesmente registrava a ao de um ponto de vista fixo, muito prximo do que estaria vendo na primeira fila da platia de um teatro; no havia movimentos de cmera e os letreiros em fundo preto funcionavam como cortinas que se fecham ao trmino de um ato. O nico (e importante) avano do cinema em relao ao teatro, at ento, era o fato de popularizar este ltimo, permitindo que uma mesma obra fosse vista por um pblico muito maior do que normalmente uma pea teatral conseguiria (afinal, um filme poderia ser assistido em vrias sesses e em vrias salas simultaneamente).

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    Quantas vezes voc j viu esta cena, ou alguma similar: Um prdio est pegando fogo; na rua, bombeiros chegam e se preparam para apagar o incndio. L dentro, em um dos apartamentos, me e filha esperam aflitas por socorro. Do lado de fora, um bombeiro sobe pela escada de incndio, entra pela janela e resgata as duas do quarto em chamas.

    Parece bvio para ns uma cena que se desenvolve em dois locais- a rua e o quarto- ao mesmo tempo. Mas, este paralelismo da ao foi uma mudana narrativa revolucionria introduzida em 1902 no filme A Vida de Um Bombeiro Americano, de Edwin S. Porter. Conduzir a narrao atravs destes "palcos" mltiplos e simultneos era uma mobilidade que o cinema permitia, que ainda no havia sido explorada e que comeava a distanci-lo do teatro, dando os primeiros passos para a criao de uma narrativa cinematogrfica.

    O toque final viria com o tambm americano D. W. Griffith. Seu O Nascimento de Uma Nao (1915) continha uma novidade que, finalmente, conferia ao cinema o status de uma nova linguagem. O nome desta novidade? "Direcionamento dramtico do olhar atravs da montagem." No, no nenhum palavro. Explico: os "palcos mltiplos" de Porter iam sendo trocados na medida em que ele sentia necessidade de mostrar algo que estava acontecendo fora dos limites de um dado "palco", ou seja, a mudana era ditada por razes espaciais. Embora um pouco de suspense seja adiCionado narrativa -quando, depois de vermos me e filha em meio s chamas, acompanhamos o esforo do bombeiro do lado de fora do prdio -, a distncia que separa a cmera dos atores (ou o espectador da ao) era mantida; a interpretao dos atores ficava, assim, responsvel por passar quase toda a dramaticidade do que se assistia, sobrecarregando os gestos (grandes sorrisos ou movimentos exagerados com os braos eram, por

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  • exemplo, bastante comuns), de uma maneira muito prxima do teatro, onde o espectador da ltima fila tambm deve ver o que est acontecendo.

    Griffith foi alm. Para ele, o cinema poderia criar muitos "palcos" dentro de um mesmo "palco". No haveria mais necessidade de se exagerar uma expresso de espanto: a cmera que se aproximaria do rosto do ator, registrando cada pequena contrao dos msculos de sua face, seu olho naturalmente arregalado, o brilho do suor na sua pele. Para Griffith, o incndio filmado por Porter fatalmente deveria conter uma srie de cenas insertadas durante a ao geral do salvamento - como uma cortina sendo consumida pelo fogo, ou os olhos lacrimejantes da me, ou, ainda, a fumaa que encobria a cara do bombeiro e dificultava sua escalada -, permitindo ao espectador um contato mais prximo e mais emocionante com o que estava acontecendo. O corte, agora, dava-se por motivos dramticos. E, mais importante: gerava um tipo de narrativa que s o cinema - enquadramentos e tcnica de montagem, principalmente- poderia oferecer.

    Nas palavras de um dos mais famosos crticos e tericos do cinema, o francs Andr Bazin3:

    se por cinema entende-se a liberdade de ao em relao ao espao, e a liberdade de ponto de vista em relao ao, ( ... ) o cinema age somente como um revelador que acaba por fazer aparecer certos detalhes que o palco deixava em branco. .

    Adicionemos a a flexibilidade temporal, permitida pela montagem, e temos finalmente um cinema ciente de suas infinitas possibilidades no que se refere manipulao das imagens, defendida por Buii.uel anos mais tarde. claro que na poca em que este diretor se pronunciou

    3 And.r BAZIN (1918-1958). O maior crtico cinematogrfico e tenco francs do ps-Guerra, fundador da clebre publicao Cahiers du Cinma. Autor de Orson Welles, Vittorio De Sica O Cinema (Ver bibliografia). '

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    outras tantas descobertas haviam sido feitas (som, cor etc.), mas as bases narrativas que elevaram o cinema categoria de "stima arte" j estavam todas l ao final da dcada de 1910.

    E como meio de comunicao artstica, a linguagem cinematogrfica experimentava todos os possveis usos dos instrumentos de que dispunha, desde o aprofundamento da discusso esttica em torno do que j havia sido descoberto no campo narrativo- afinal, este um perodo agitado pelo Cubismo, Futurismo, Surrealismo e outros movimentos artsticos-, at a sua familiarizao com o que se apresentava de novo, tecnologicamente falando. Neste caso, em particular, as novidades dobravam as possibilidades do cinema: com o advento da cor ou do som, por exemplo, o preto e branco e o filme mudo deixavam de ser meros, porque nicos, suportes para a produo cinematogrfica, para se tornarem op-:;es estticas. Contabilizavam-se, ento, dois elementos a mais a cada descoberta: o novo (cor, som) e o velho (preto e branco, mudo).

    Assim, no se pode dizer que um filme utiliza procedimentos ultrapassados apenas pelo fato de no ser colorido ou no conter o som das falas; se fosse desta forma, cineastas modernssimos como o americano Jim Jarmusch (Daunbail, 1986) ou o holands Jos Stelling (O Ilusionista*, 1984) seriam considerados retrgrados- o primeiro pelo uso do preto e branco, o segundo pela supresso dos dilogos em seus filmes. Na realidade, so experincias que apenas recorrem a instrumentos narrativos pouco utilizados hoje em dia.

    Pelo que j foi exposto, fica fcil intuir as dificuldades envolvidas no processo de criao de um filme, muito devido s inmeras maneiras de se manipular os instrumentos narrativos disponveis- que no so poucos. Afinal, se j bastante complicado passar para o papel uma idia qualquer, o que no se dir de um

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  • processo que no termina a, tendo posteriormente de se transformar em imagens e sons?

    Imaginemos uma histria qualquer (ou sonhemos, como sugere Bunuel). A velocidade com que a mente cria imagens geralmente o primeiro obstculo a ser transposto quando se pretende contar estas cenas para outra pessoa. O escritor deve encontrar meios para traduzir a dinmica como ele as imaginou, enfatizando detalhes, "montando" cenrios e aes atravs de palavras. Fazer com que estas tenham um contedo que transcenda a mera descrio, atingindo a esfera das idias, de bom tom e enriquecer sua narrao. A palavra impressa a forma ltima que suas idias tero.

    Isto para um escritor. No caso de um roteirista de cinema, as coisas mudam de figura: o roteiro no a obra final, sendo apenas uma etapa de sua elaborao. As divagaes poticas de uma obra literria podem estar presentes num roteiro; mas, mais importante que ele indique com clareza como imagens e sons iro traduzir para a tela essas suas intenes. Esta deve ser a preocupao principal desta etapa escrita: encontrar maneiras cinematograficamente realizveis para que as idias contidas no roteiro consigam ser transpostas para o filme. Uma tima histria pode ficar barrada no papel por causa de um roteiro que se descuide neste ponto.

    Faamos uma comparao entre o romance A Hora da Estrela (1977), de Clarice Lispector4:

    "Ento ao dar o passo de descida da calada para atravessar a rua, o Destino (exploso) sussurrou veloz e guloso: agora, j, chegou a minha vez!

    4 Clarce LISPECTOR (1925-1977). Das mais importantes escritoras brasileiras, de origem ucraniana, estreou em 1944 com Perto do Corao Selvagem, romance muito bem recebido pela crtica. Autora de A Paixo Segundo GH (1964), O Livro dos Prazeres (1969), Agua Viva (1973), dentre outros.

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    E enorme como um transatlntico o Mercedes amarelo pegou-a - e neste mesmo instante em algum nico lugar do mundo um cavalo como resposta empinou-se em gargalhada de relincho.

    ( ... ) E ento o sbito grito estertorado de uma gaivota, de repente a guia voraz erguendo para os altos ares a ovelha tenra, o macio gato estraalhando um rato sujo e qualquer, a vida come a vida."

    e o roteiro do filme A Hora da Estrela* (1985), de Suzana Amaral:

    "Avenida Presidente Vargas (R/) Macaba anda na calada e pela primeira vez dois moos viram a cabea para olh-la ... Vai atravessar a rua. Pra no meio fio ... No sabe se atravessa ou se continua andando pela calada ... Est inebriada com sua felicidade futura e suas possibilidades. D um passo para descer a calada ... em CAMERA LENTA O Mercedes amarelo se aproxima enorme ... Em CAMERA LENTA Macaba vira a cabea em direo ao carro ... tarde ... Na rua v