libertinagem e homossexualidade em madame putiphar

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  • Terra roxa e outras terras Revista de Estudos LiterriosVolume 18 (out. 2010) - ISSN 1678-2054 http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa

    LIBERTINAGEM E HOMOSSEXUALIDADE

    EM MADAME PUTIPHAR (1839), DE PTRUS BOREL

    Fernanda Almeida Lima (UFRJ)[email protected]

    RESUMO: Ptrus Borel, figura de proa do romantismo frentico de 1830, compe o romance Madame Putiphar (1839), com o objetivo de descortinar a corrupo e a libertinagem da corte francesa do scu-lo XVIII, durante o reinado de Lus XV, poca na qual a trama se desenrola. Dentre as personagens da narrativa, a camareira real, homossexual, possui relevncia na intriga, com a funo de iniciar as amantes do rei nas prticas libertinas, tornando-se uma pea-chave na dinmica dissoluta do poder. Finalmente, destaca-se que a representao da personagem lsbica, como instrutora sexual, constitui a retomada de um personagem-tipo da literatura ertica do sculo XVIII, remontando s obras de Sade e do marqus dArgens. PALAVRAS-CHAVES: Madame Putiphar; romantismo frentico; literatura ertica; lesbianismo.

    A PROSA FRENTICA DE PTRUS BOREL

    O escritor Ptrus Borel (1809-1859) integra a segunda gerao de romnticos fran-ceses, que sobe cena literria em 1830, defendendo as inovaes estticas propos-tas pelo mestre Victor Hugo, no episdio conhecido como a batalha de Hernani. Alguns destes jovens artistas, classificados como pequenos romnticos, investem na fora do coletivismo, como instrumento de defesa diante das foras retrgradas e hierrquicas do campo literrio da poca, e fundam o Pequeno Cenculo (1830-1833). Ptrus Borel aparece como o lder desta nova capela literria, composta por repre-sentantes de diversos campos artsticos, como os escritores Grard de Nerval, Tho-phile Gautier, Philothe ONeddy, os escultores Jehan Duseigneur e Eugne Bion, os arquitetos Lon Clopet e Jules Vabre, pintores e vinhetistas, tais como Clestin Nan-teuil e Louis Boulanger. Em oposio s reabilitaes do neoclassicismo e comparti-lhando averso aos valores burgueses, bem como poltica mercantil da Monarquia

  • Fernanda Almeida Lima (UFRJ)Libertinagem e homossexualidade em Madame Putiphar (1839), de Ptrus Borel

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    Terra roxa e outras terras Revista de Estudos LiterriosVolume 18 (out. 2010) ISSN 1678-2054 http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa

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    de Julho (1830-1848), os membros do Pequeno Cenculo desenvolvem uma forma de expresso excessiva e revoltada, conhecida como romantismo frentico. Esttica de cunho marginal e subversivo, o frenesi romntico de 1830 privilegia temas paroxsti-cos, grotescos, cenas de crime e violncia, contando igualmente com elementos do fantstico hoffmaniano, do satanismo byroniano, do erotismo sadiano e do romance gtico ingls. Grandes nomes da literatura francesa, como Baudelaire, por exemplo, consideram Borel como o representante por excelncia do romantismo frentico de 1830, assinalando a relevncia de sua participao no seio do movimento, por meio da constatao de que sans Ptrus Borel, il y aurait une lacune dans le romantisme (Baudelaire 1968: 329).

    Dentre as produes frenticas mais significativas de Ptrus Borel constam Cham-pavert, contes immoraux (1833) e o romance Madame Putiphar (1839). O livro Cham-pavert composto por sete contos classificados como imorais, permeados por cenas de assassinato, suicdio, infanticdio, estupro, mutilao e rituais de decapitao. No prefcio de Champavert, o autor expe o objetivo de pr em evidncia o escndalo do Mal e os oprbrios sociais. Verifica-se que o frenesi representado no volume de contos imorais se caracteriza por um paroxismo sarcstico e provocante, construdo por meio de uma enunciao irnica. J em Madame Putiphar se manifesta um fre-nesi sbrio e pessimista, marcado pelo desespero diante de um mal irremedivel. Os personagens figuram como vtimas de um destino esmagador e injusto, no havendo mais espao para gargalhadas satnicas e escrnio. Desse modo, o romance Mada-me Putiphar constitui o acabamento irrecusvel do frenesi boreliano que, nos contos imorais de Champavert, apresentava apenas valor pardico.

    MADAME PUTIPHAR (1839)

    O romance frentico de Ptrus Borel retrata um funesto caso de amor, protagoni-zado por Patrick e Dborah, irlandeses jovens e puros, que deixam o idlico pas natal, para escapar da crueldade do pai da herona, e desembarcam na Frana, durante o reinado de Lus XV (1715-1774). O amor e a fidelidade entre os amantes representa-ro os principais motivos dos infortnios vividos, dado que o monarca e Madame de Pompadour, personagem-ttulo, fracassam nas tentativas de seduo dos prota-gonistas, recebendo insultos e reprimendas, fato que culmina com a vingana dos poderosos. Patrick e Dborah so encarcerados por lettre de cachet, sofrendo humi-lhaes e torturas nas prises reais. Com a ajuda de um fiel e antigo servidor irlands, a herona consegue escapar do forte Sainte-Marguerite para criar o filho que trazia no ventre, chamado de Vengeance, e educado desde a infncia, como um guerreiro espartano, para vingar a honra do pai. Patrick ser a grande vtima das prises reais, sendo transferido de uma a outra, por longos anos, ganhando a liberdade apenas com a Revoluo Francesa. Nesta data, ciente da liberao dos prisioneiros, Dborah vai ao encontro de Patrick, mas ao constatar o terrvel estado do amante, internado num asilo psiquitrico, desmemoriado e louco, a herona sofre um ataque e morre. Assim, por meio da composio de Madame Putiphar, Borel objetiva apresentar a

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    face negra do sculo das Luzes, o martrio dos encarcerados, a libertinagem da corte francesa e do prprio rei.

    Madame Putiphar foi publicado em 11 de maio de 1839, em dois grandes tomos, por Ollivier, medocre editor parisiense. No que diz respeito pertinncia genrica, a obra conta com classificaes divergentes, oscilando entre roman noir e romance histrico. A partir da apresentao da trama e das particularidades espao-temporais da narrativa em foco, pode-se concluir que a classificao de roman noir ou romance gtico encontra justificativa no cenrio dos castelos do sculo XVIII, na ambincia lgubre e nauseabunda das prises reais, assim como na profunda representao do horror e do sofrimento humano. J a classificao romance histrico se baseia na utilizao de um grande nmero de documentos histricos, relativos corte de Lus XV, Bastilha e Revoluo Francesa, para compor o romance, dada a explcita preo-cupao de Ptrus Borel em retratar fielmente os costumes da poca e a dinmica de funcionamento das prises reais. No entanto, a narrativa de Borel se distingue do ro-mance gtico, devido ao fato de que a representao do mal no est relacionada a fenmenos metafsicos, nem a manifestaes de ordem sobrenatural, como castelos mal assombrados. Em Madame Putiphar, a representao do horror encontra justifi-cativa na dissoluo dos costumes, na corrupo social e na arbitrariedade do poder real, simbolizado pela carta selada (lettre de cachet). O historiador Robert Darnton explica tal simbologia, nos seguintes termos:

    o cachet era um pequeno sinete gravado. As cartas seladas, documentos que determinavam encarceramento ou exlio, seladas em branco com o sinete real e distribudas entre os favoritos do trono. Estes usavam-nos, o mais das vezes, para ajustar contas pessoais, da haverem se tornado um dos mais expressivos smbolos da arbitrariedade e do despotismo do Ancien Rgime (Antigo Regime). (1989: 246)

    Deste modo, Borel utiliza informaes histricas sobre o reino de Lus XV para tecer descries minuciosas das prticas de tortura nas prises reais, dos quadros de aban-dono e sofrimento dos encarcerados, representando o desenvolvimento do mal, sob formas delirantes. Baudelaire avalia tal representao do mal como la peinture des hideurs et des tortures du cachot, qui monte jusqu la vigueur de Maturin (Baude-laire 1968: 328). No eplogo do romance, com a ecloso da Revoluo Francesa, con-No eplogo do romance, com a ecloso da Revoluo Francesa, con-siderada uma ironia da Histria, visto que os viles do romance, Lus XV e Madame de Pompadour, j haviam morrido, o romntico acaba por tecer crticas Monarquia de Julho. Entre os documentos que serviram de base histrica para a produo de Madame Putiphar, pode-se elencar Mmoires de Madame la Comtesse du Barri (1829-1830), obra escrita por tienne de Lamothe-Langon e composta por 6 volumes, que retratavam o mundo do Parc-aux-Cerfs, os dois volumes das Mmoires de Henri Masers de Latude (1793), fugitivo que descreveu as condies de vida dos prisioneiros, e um dos documentos mais consultados, no sculo XIX, como referncia dos acontecimen-tos de 14 de julho de 1789, La Bastille dvoile (1789). Este ltimo documento contm a informao de que entre os sete detentos encontrados na Bastilha, dois estavam

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    alienados e desmemoriados, sendo transferidos, em seguida, para Charenton, e que um deles era o conde irlands Whythe de Malleville, que foi carregado e exibido pelos revolucionrios, como prova viva da crueldade monrquica. Logo, com base nesta informao que Borel d vida ao heri Patrick Fitz-Whyte, retraando o percurso do conde alienado pelas prises reais e criando um passado fictcio para ele. A ambincia dos captulos iniciais de Madame Putiphar, na Irlanda, justificada pela nacionalidade do conde Whyte de Malleville. No documento La Bastille dvoile consta, igualmente, a informao de que Whythe de Malleville foi transferido de Vincennes Bastilha, jun-to com dois outros prisioneiros, M. de Solages e o marqus de Sade. No captulo XX, do ltimo livro de Madame Putiphar, Ptrus Borel reconstri tal situao, numa cena em que os trs personagens se encontram e trocam algumas palavras, na carruagem policial, que os conduzir Bastilha. Aps demonstrar espanto, por conta da triste e chocante aparncia de Patrick, o marqus de Sade aperta sua mo e lhe diz palavras de conforto. Esta cena, de carter romanesco, foi alvo de crticas que a consideraram improvvel e sem fundamento histrico, constituindo apenas uma excentricidade im-pertinente do autor, objetivando tecer elogios ao maldito marqus. Com o trabalho realizado pelos bigrafos de Borel, esta passagem do romance passou a ser avaliada, ironicamente, como uma das mais legtimas, no que concerne ao trabalho de integra-o entre criao romanesca e fundamentao histrica.

    LIBERTINAGEM E SAFISMO

    Em Madame Putiphar, ao retratar os costumes da corte de Lus XV, Ptrus Borel faz referncia a representantes da literatura libertina do sculo XVIII francs e retoma elementos tpicos das produes erticas e filosficas. No que se refere definio da literatura libertina do sculo das Luzes, faz-se necessrio tecer os devidos esclare-cimentos.

    Com base em doutrinas filosficas como o epicurismo, que pregava a busca do prazer, e a teoria sensualista, que defendia a formao dos indivduos e o reconheci-mento das sensaes, por meio das prticas sexuais, a literatura de cunho libertino se desenvolveu de forma expressiva, na Frana do sculo XVIII. Enfatizando o conceito de libertinagem como liberdade espiritual e moral, esta produo literria, desen-volvida paralelamente ao Alto Iluminismo, alcanou grande sucesso de pblico, so-bretudo entre os aristocratas, fteis, ociosos e depravados. O conceito de literatura libertina abrange grande diversidade genrica, como o romance galante, o romance cnico, as narrativas orientais, a esttica do marqus de Sade e a chamada literatura fcil ou literatura de baixo ventre, que se subdivide em romance ertico, porno-grfico e obsceno, segundo a classificao de Raymond Trousson (1993). Dentre os tipos comuns da literatura libertina, constam os mestres ou instrutores sexuais, o frio sedutor, as jovens ingnuas e as mulheres fiis, alvos favoritos dos mestres libertinos, e os jovens aprendizes nas tcnicas de libertinagem. Visando desvelar e descrever intimidades obscenas, espaos secretos, como gabinetes, alcovas e boudoirs, consti-tuem cenrios privilegiados da literatura libertina. A contextualizao das narrativas

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    erticas em pases do Oriente tambm consiste num trao tpico desta literatura, que exalta a liberdade sexual e de costumes dos orientais, sendo recorrente a substitui-o da figura do rei pelo sulto ou fara.

    Alm das obras libertinas lcitas e publicadas por editores oficiais, o sculo XVIII tambm contou com um movimento literrio e editorial de natureza clandestina, cujas produes eram qualificadas como literatura filosfica, etiqueta que dissimu-la sua real constituio. Os livros proibidos, censurados pelo Estado, por infrao moral e religio, e as edies piratas de obras lcitas compunham o corpus hetero-gneo desta literatura clandestina, formado por uma gama diversa de gneros, como textos filosficos, romances pornogrficos, obscenos, stiras, libelos de pornografia poltica e crticas escandalosas, geralmente acerca da corrupo e da imoralidade da corte. Para burlar a censura da polcia real, estas produes filosficas eram impres-sas em grficas da Holanda ou da Sua, sendo comercializadas, posteriormente, por vias clandestinas, atravs dos seguradores, agentes ilegais, responsveis pela din-mica de circulao e entrega das encomendas.

    Desta forma, constata-se que Borel retoma um dos espaos privilegiados da lite-ratura libertina, na passagem referente descrio do boudoir de Madame Putiphar. O cmodo apresentado com detalhes, indicando a aromatizao com essncias do Oriente, a ornamentao em estilo rococ, qualificado como hipocrisia esttica, com moblias trabalhadas, relevos em bronze e lustres de cristal. Neste espao ntimo, Ma-dame de Pompadour se insinua lascivamente para Patrick, numa aluso passagem bblica, na qual a mulher de Putifar tenta seduzir Jos do Egito. Em seguida, critican-do feroz e abertamente a corte de Lus XV, Borel vincula a licenciosidade das obras libertinas e filosficas dissoluo moral da aristocracia. Como representante dos libelistas, o romntico cria o personagem Fitz-Harris, amigo irlands de Patrick, que encarcerado por lettre de cachet, pela redao de um libelo difamatrio, dedicado Madame Putiphar. Ao longo do romance, obras e artistas vinculados esttica liberti-na so citados, como o escritor Crbillon Fils (1707-1777), considerado o precursor do gnero, Clodion (1733-1814), escultor francs conhecido por suas stiras e bacantes, e o marqus de Sade, representado como personagem do romance. Aps descrever as torturas sofridas pelos prisioneiros, Borel se considera autorizado a exaltar o mar-qus libertino, qualificando-o como um mrtir, uma das glrias da Frana. Em segui-da, dirigindo-se de forma indignada ao pblico e aos crticos, Borel apresenta Sade como [...] lillustre auteur dun livre contre lequel vous criez tous linfamie, et que vous avez tous dans votre poche (Borel 1999: 361). O livro referido por Borel pode ser Justine, ou les Malheurs de la vertu (1791) ou La Nouvelle Justine, ou les Malheurs de la vertu suivi de Juliette (1799), composies que acarretaram na deteno do mar-qus, em Sainte-Plagie, no ano de 1801.

    Em Madame Putiphar, Borel critica ferozmente as tendncias libertinas de Lus XV e de sua favorita, sobretudo considerando o expressivo dficit no fundo econmi-co nacional, em conseqncia da criao e manuteno do harm idealizado pelo monarca, o Parc-aux-Cerfs. Este nome designa um antigo bairro de Versalhes, onde se localizava o hotel comprado por Lus XV, para acomodar suas amantes tempor-

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    rias. Uma personagem homossexual, Madame du Hausset ou, simplesmente, La Ma-dame, aparece como diretora do Parc-aux-Cerfs, atuando tambm como uma sorte de eunuco do harm do monarca, com a funo de instruir e iniciar as hspedes nas prticas sexuais libertinas. Madame du Hausset ocupa a posio de mestre libertino da narrativa de Borel, figurando como pea-chave na dinmica dissoluta do poder. No captulo XXXIV do livro III, a herona Deborah, desejada pelo monarca, raptada e trancafiada num apartamento do Parc-aux-Cerfs. Dborah era vigiada e auxiliada por Madame du Hausset, que a apalpava e beijava sempre que possvel e de forma febril, postura que a herona inocente no compreendia, mas repudiava. O quarto onde a herona foi aprisionada era ornamentado com pinturas e esculturas pornogrficas, havendo tambm uma biblioteca libertina, de modo que Deborah pudesse desenvol-ver o processo de formao galante e sexual, intensivamente, para, ento, assumir a funo de amante de Lus XV, chamado de fara. Borel descreve o quarto reservado para a herona neste trecho:

    Les murailles taient couvertes de gravures encadres et de peintures; elle sen approcha, et recula dtonnement et de dgout; ce ntaient que des nudits, des dbauches, des scnes lascives, dont une lui donna lintelligence des manires de La Madame son gard, et de ses paroles tnbreuses.

    . . .Pleine de colre et de desespoir, elle courut la porte dentre, la ferma

    double tour et au verrouil, puis dcrocha un un les tableaux et les prcipita par les fentres. Leur chute et le bruit des glaces qui se brisaient firent un vacarme effroyable. Sur la chemine et sur les meubles taient des statuettes et des groupes de biscuit de porcelaine reprsentant aussi des obscenits, elle les brisa avec non moins de fracas. Dans un des coins du logement se trouvait une armoire vitre emplie de livres licencieux; lorsquelle en eut parcourut les intituls, elle les envoya tous rejoindre les tableaux en dbris sur le pav de la cour. (Borel 1999: 197-198)

    Desta forma, constata-se que alm da referncia a artistas representantes da li-teratura libertina e da descrio minuciosa do boudoir, espao libertino por exce-lncia, Ptrus Borel retoma um importante personagem-tipo da literatura ertica do sculo XVIII, a instrutora sexual lsbica. Este personagem-tipo figura em duas obras relevantes da literatura libertina do sculo XVIII, Thrse Philosophe (1748), de Jean Baptiste de Boyer, conhecido como marqus dArgens, e Histoire de Juliette (1781), do marqus de Sade. Na primeira, a herona Thrse complementa sua formao liberti-na em companhia da ex-prostituta Bois-Laurier, que lhe conta detalhadamente suas diversas e excntricas experincias sexuais. Ao final do relato das experincias, as reflexes filosficas da herona cedem lugar s loucuras do desejo, ento, Thrse e Bois-Laurier compartilham intimidades fsicas. J na obra de Sade, a herona Juliet-te iniciada nas prticas libertinas, aos 13 anos, no convento de Panthemont, pela religiosa que dirigia a instituio, Madame Delbne. Assim, deve-se destacar que la scne saphique est un strotype du roman pornographique au XVIIIe sicle, comme si la reprsentation de deux femmes faisant lamour tait le fantasme masculin par

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    excellence, celui dun plaisir dont lhomme est exclu mais quil contrle par le regard (Cusset 1998: 75). Considerando a sexualidade feminina como um enigma, as cenas de lesbianismo acabavam por satisfazer o desejo voyeurista do pblico masculino. Dominique Maingueneau atenta para o fato de que, nos romances libertinos, grande parte dos aprendizes e protagonistas so mulheres, visto que ao homem seria atri-buda uma libido espontnea e mulher, uma relao problemtica com a prpria sexualidade, que deveria ser descoberta e desenvolvida. Com relao ao objetivo de liberao da sexualidade feminina, proposta por esse gnero literrio, Maingueneau desenvolve a seguinte reflexo:

    Le texte pornographique a besoin de montrer une population fminine qui serait enfin affranchie des interdits fallacieux qui lassujettissaient: les femmes libres qui y figurent se comportent comme lexige lunivers masculin parce quil est postul quen droit, toute femme devient telle si elle assume son dsir. Prtendant lever toute censure, lcriture pornographique ne fonctionne donc en ralit qu partir dune autre, plus scrte, celle qui annule lirrductibilit de la sexualit fminine. De ce point de vue, la littrature pornographique se situe aux antipodes dun autre type dexploitation de la diffrence sexuelle: la mythologie de la femme fatale, telle quelle sest panouie la fin du XIXe s. Cette mythologie place en effet au centre lnigme de la diffrence sexuelle, lincapacit du masculin matriser le fminin, elle montre la destruction de lhomme, l o la pornographie montre une femme dont la sexualit est la mesure de celle de lhomme.

    Tal discusso pode ainda ser enriquecida se considerando uma peculiaridade fsica que, de forma recorrente, caracteriza as instrutoras libertinas homossexuais, a ana-frodisia. A personagem Bois-Laurier confessa Thrse sua incapacidade de obter prazer sexual, devido m formao de sua genitlia. Da mesma forma, em Histoire de Juliette, outra personagem lsbica, La Durand, que se apaixona pela herona e constri um bordel para prostitu-la, possui esta mesma peculiaridade fsica, descrita desta forma: Durand navait jamais pu jouir des plaisirs ordinaires de la jouissance: elle tait barre, mais . . . son clitoris, long comme le doigt, lui inspirait pour les fem-mes le got le plus ardent (Sade 1967: 431). O bordel construdo por Durand possui cmodos secretos, de onde a proprietria e sua amada Juliette observam as relaes sexuais dos clientes com as prostitutas, tecem reflexes filosficas e se divertem. J a Bois-Laurier explode em gargalhadas irnicas diante do intil esforo de seus parceiros, visando solucionar o problema de sua impenetrabilidade. Desse modo, a representao do safismo adquire ainda mais complexidade, visto que no se trata simplesmente de desvelar a enigmtica sexualidade feminina ao pblico masculino, mas tambm de conceber ironicamente a mecnica do desejo masculino e o fantas-ma da potncia. Logo, ce qui est ici ironiquement mis en cause, cest le dsir des hommes de prendre leur sexe pour un dieu, leur dsir de pntrer limpntrable (la Bois-Laurier), et de tout contrler par le regard et la raison. Au fantasme masculin de

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    toute-puissance, le roman oppose le rire de la Bois-Laurier (et) la complicit des deux femmes (Cusset 1998: 82). Em Madame Putiphar, Ptrus Borel ridiculariza igualmen-te a ostentao do poder e da virilidade de Lus XV, simbolizada pela dinmica de libertinagem do Parc-aux-Cerfs. O narrador de Madame Putiphar comenta ironicamen-te que o monarca-fara, na final das contas, recebia donzelas j despetaladas pela Madame. Na verdade, o que o sulto francs saboreava vaidosamente, como um requintado prato principal, eram apenas as migalhas deixadas pelo eunuco de seu harm, como ilustra a passagem a seguir: rarement celui qui plante et qui sme a les prmices de la rcolte. . . . Cest ainsi que Pharaon, en se fondant, grands frais, un harem, navait fait autre chose que den lever un La Madame, qui prlevait une grosse dixme anticipe sur ses odaliques. Il narrivait sa couche royale que le des-sert de la servante (Borel 1999: 197).

    CONCLUSO

    Os resultados da anlise empreendida no presente trabalho indiciam a funo de um relevante personagem-tipo da esttica libertina, a instrutora sexual lsbica, na composio do romance Madame Putiphar, de Ptrus Borel. Verifica-se que a nar-rativa de Borel manifesta filiao tradio do romance libertino, contendo deter-minados elementos desta literatura, como situaes, personagens tpicos e espaos erticos, por excelncia, como o boudoir de Madame Putiphar, descrito detalhada-mente pelo autor. Entretanto, tais elementos so retomados com inteno provoca-dora e visando o desenvolvimento de crticas estticas e polticas. No que concerne, por exemplo, cena da priso de Deborah, num dos apartamentos do Parc-aux-Cerfs, devidamente decorado com seletas obras libertinas, deve-se atentar para a reao negativa da herona Borel. O escritor romntico se serve das caractersticas da lite-ratura libertina para tecer crticas ao comportamento de Lus XV e de Madame de Pompadour, apresentando tal vertente literria como metonmia da perverso e dis-soluo moral da corte francesa do sculo XVIII. Madame du Hausset, a instrutora libertina homossexual, constitui, igualmente, um dos principais alvos das crticas de Borel, uma vez que figurava como agente de importncia capital para o bom desen-volvimento da dinmica devassa do reinado de Lus XV. No entanto, a febril atrao da Madame pela futuras amantes do rei, permite a Borel ridicularizar do projeto do monarca. A servial incumbida de atuar como guardi e instrutora do Parc-aux-Cerfs, por ordem de Lus XV e de sua favorita, apresentada como a verdadeira beneficiria das preciosidades femininas cultivadas no harm real. Desta forma, o enquadramen-to histrico de Madame Putiphar, assim como retomada elementos narrativos pecu-liares s produes licenciosas e clandestinas do sculo das Luzes, permitem a Ptrus Borel expressar, de forma oblqua, posicionamentos polticos. possvel, igualmente, estabelecer vnculos entre a identidade enunciativa tipicamente frentica de Borel e a reivindicao de uma posio poltica antimonrquica. Tal posicionamento poltico seria legitimado com base no mito do despotismo degenerado, representado, em

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    sua forma mais monstruosa, pela monarquia de Lus XV e de Madame Putiphar, ou seja, Madame de Pompadour.

    Obras citadas

    BAUDELAIRE, Charles. 1968. Rfl exions sur quelques-uns de mes contempo-Rfl exions sur quelques-uns de mes contempo-Rflexions sur quelques-uns de mes contempo-rains (XXXV- Ptrus Borel). Lart romantique. Paris: Garnier-Flammarion. 327-330.

    BOREL, Ptrus. 1999. Madame Putiphar. Ed. de Jean-Luc Steinmetz. Paris: Phbus.

    CUSSET, Catherine. 1998. Les romanciers du plaisir. Paris: Honor Champion.

    DARNTON, Robert. 1989, Boemia literria e revoluo: o submundo das Letras no Anti-go Regime. So Paulo: Companhia das Letras.

    MAINGUENEAU, Dominique. 2007. La littrature pornographique. Paris: Armand Co-Paris: Armand Co-lin.

    SADE. 1967. Histoire de Juliette. Paris: ditions du cercle du livre prcieux.

    TROUSSON, Raymond, org. 1993. Romans libertins du XVIIIe sicle. Paris: Robert Laf-font.

    Debauchery and homosexuality in Petrus Borels Madame Putiphar (1839)

    ABSTRACT: Ptrus Borel, leading figure of the frenetic romanticism of 1830, writes the novel Madame Putiphar (1839) aiming to uncover the corruption and debauchery of the French court of the eigh-teenth century during the reign of Louis XV, at which time the story takes place. Among the characters in the narrative, the royal maid, homosexual, has a great relevance to the story since her function is to teach libertine practices to the Kings mistresses, becoming a key player in the dissolute dynamic of power. Finally, it is worthy of mention that the representation of the lesbian character as a sex instruc-tor is the resumption of a character-type of the eighteenth centurys erotic literature, going back to the works of Sade and the Marquis dArgens.KEYWORDS: Madame Putiphar; frenetic romanticism; erotic literature; lesbianism.

    Recebido em 15 de julho de 2010; aprovado em 30 de outubro de 2010.