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LIBERDADE E MORALIDADE EM KANT1

Diego Carlos Zanella2

Liliana Souza de Oliveira3

Resumo:

O texto tem a pretensão de discorrer sobre um dos principais problemas da ética kantiana, a

saber, como é possível a liberdade? Para Kant a ação moral só é possível se for por dever, isto

é, obedecendo a lei na forma do imperativo categórico, que ele criou para si próprio. Dessa

forma o homem é autor e submisso à mesma lei. Kant resolve esse problema afirmando que o

homem, enquanto ser racional é membro de dois mundos: o inteligível (onde ele cria a lei) e o

sensível (onde ele é submisso a ela).

Palavras-chave: Moralidade. Liberdade. Dever.

No primeiro parágrafo da Terceira Seção da Fundamentação da Metafísica dos

Costumes (1785) Immanuel Kant (1724-1804) define a vontade4 como “uma espécie de

causalidade dos seres vivos, enquanto racionais” e a liberdade como “a propriedade desta

causalidade” (Kant, 2004, p.93), pela qual – a vontade – pode ser livre de quaisquer

determinações. Em oposição à liberdade, Kant define a necessidade natural como sendo “a

propriedade da causalidade de todos os seres irracionais” (Kant, 2004, p.93), pela qual esses

seres agem segundo determinações estranhas à razão, ou seja, segundo leis necessárias da

natureza.

Da definição negativa de liberdade, cuja possibilidade lógica foi exposta na Dialética

Transcendental da Crítica da Razão Pura (A 1781 e B 1787), Kant deriva mediante um

procedimento analítico, a autonomia da vontade enquanto conceito positivo da liberdade que

é, ao mesmo tempo, o princípio da moralidade de todos os seres racionais em geral. Essa

positivação da liberdade pressupõe o conceito de causalidade segundo o qual a uma

determinada coisa pensada como causa se segue necessariamente uma outra pensada como

efeito. Nesse conceito, portanto, já é pensado como analiticamente contido o conceito de uma

1 Pesquisa filosófica desenvolvida junto à Faculdade Palotina – FAPAS na disciplina de monografia, sendo que esse artigo é um capítulo modificado da monografia que tem como título “A teoria da ação moral em Kant”.2 Licenciado em Filosofia pela Faculdade Palotina de Santa Maria – FAPAS e mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. ([email protected]).3 Professora da Faculdade Palotina de Santa Maria – FAPAS e orientadora da pesquisa. ([email protected]).4 No início da Terceira Seção da Fundamentação da Metafísica dos Costumes Kant define o conceito de vontade, do qual “emerge o conceito de liberdade como a chave para explicação da autonomia da vontade” (Lima Vaz, 2002, p.343).

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legislação. Assim, a autonomia é a propriedade da vontade de ser em todas as ações uma lei

para si mesma (cf. Kant, 2004, p.99). Em outros termos, não significa outra coisa senão que a

vontade, enquanto uma causalidade tem a si mesma por objeto de uma lei universal. Desse

modo, a vontade é ao mesmo tempo livre e também submetida à sua própria lei. Por

conseguinte, essa definição de liberdade expressa também a fórmula do imperativo

categórico5. Mas, com essa derivação, a validade prática da lei moral ainda não é

demonstrada, e proposições tais como: “uma vontade absolutamente boa é aquela cuja

máxima pode sempre conter-se a si mesma em si, considerada como lei universal” (Kant,

2004, p.94), são sintéticas, pois requerem um conceito que não está contido analiticamente no

princípio da moralidade. Segundo Kant, o conceito positivo de liberdade cria esse terceiro

elemento que não pode ser um conceito empírico, mas deve ser totalmente a priori (cf. Kant,

2004, p.94).

É uma conseqüência necessária supor que, se a vontade é uma causalidade atribuída

à razão pura, e a liberdade é a propriedade dessa causalidade, então temos que atribuir a

liberdade também a todos os seres racionais em geral. Essa universalização é válida também

para a lei moral que, se “nos serve de lei somente enquanto somos seres racionais, tem ela

que valer também para todos os seres racionais” (Kant, 2004, p.95). A liberdade é condição da

lei moral, no entanto, é também uma idéia cuja realidade objetiva é em si mesma, duvidosa,

pois Kant deixou claro na Dialética Transcendental da Crítica da Razão Pura, que a mesma

não se refere a nenhum objeto dado na intuição sensível. Apesar disso, a idéia de liberdade

constitui um pressuposto necessário e aparentemente suficiente do princípio da moralidade e

da liberdade prática, pois “todo o ser que não pode agir sob a idéia de liberdade, é por isso

mesmo, em sentido prático, verdadeiramente livre (...)” (Kant, 2004, p.95). Desse pressuposto

segue-se outro, ou seja, “a todo o ser racional que tem uma vontade temos que atribuir-lhe

necessariamente a idéia da liberdade, sob a qual ele unicamente pode agir” (Kant, 2004, p.95-

96). Esse recurso de Kant se baseia no fato de que a liberdade não pode provir da experiência,

tampouco pode ser inventada arbitrariamente. Pois, já que dela depende o princípio da

autonomia e, consequentemente, a própria lei moral, que não é senão a auto-legislação, a

liberdade só pode ser pressuposta enquanto uma idéia da qual os seres racionais tem

consciência. Através dessa idéia a razão pode ser pensada como prática em si mesma, ou seja,

Ela tem de considerar-se a si mesma como autora dos seus princípios, independentemente de influências estranhas; por conseguinte, como

5 “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (Kant, 2004, p.59)

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razão prática ou como vontade de um ser racional, tem de considerar-se a si mesma como livre; isto é, a vontade desse ser só pode ser uma vontade própria sob a idéia da liberdade, e, portanto, é preciso atribuir, em sentido prático, uma tal vontade a todos os seres racionais (Kant, 2004, p.96).

O simples fato de que a lei moral se refere em última instância à idéia de liberdade

não significa que com isso está demonstrada a possibilidade real da liberdade, mas apenas que

temos que pressupô-la se quisermos pensar um ser como racional e com consciência de sua causalidade a respeito das ações, isto é, dotado de uma vontade, e assim achamos que, exatamente pela mesma razão, temos que atribuir a todo o ser dotado de razão e vontade esta propriedade de se determinar a agir sob a idéia da sua liberdade (Kant, 2004, p.96-97).

Da idéia de liberdade segue-se a consciência de uma lei de ação que diz “que os

princípios subjetivos das ações, isto é as máximas, têm que ser sempre tomados de modo a

valerem também objetivamente, quer dizer a valerem universalmente como princípios e,

portanto a poderem servir para a nossa própria legislação universal” (Kant, 2004, p.97).

A universalização da lei moral, que requer das máximas, enquanto princípios

subjetivos, também uma validade objetiva, traz consigo uma situação paradoxal, ou seja,

temos que pensar a vontade como livre e ao mesmo tempo submetida a sua própria legislação.

Mas, a partir disso, não podemos mais explicar porque temos de nos submeter à lei moral,

nem tampouco porque devemos tomar interesse por ela, ou, o que é o mesmo, “por que é que

a validade universal da nossa máxima, considerada como lei, tem de ser a condição limitativa

das nossas ações” (Kant, 2004, p.98). Para Kant, mostrar a possibilidade meramente lógica da

lei moral não é suficiente, pois, nessa derivação se manifesta “uma espécie de círculo

vicioso”, ou seja, “considerarmo-nos como livres na ordem das causas eficientes, para nos

pensarmos submetidos a leis morais na ordem dos fins, e depois pensamo-nos como

submetidos a estas leis porque nos atribuímos a liberdade da vontade” (Kant, 2004, p.98-99).

Se, por um lado, Kant tem de mostrar que a lei moral é obrigatória para os seres racionais

finitos, deve também poder mostrar que temos um interesse por essa lei. O que, não obstante,

está claro é o fato de que a lei moral, no caso dos seres racionais em geral, se manifesta como

um puro querer. No entanto, para seres racionais finitos, cuja faculdade de desejar está sujeita

também à determinação por móbiles empíricos e, portanto, subjetivos, constitui um dever. O

conceito de dever só pode ser admitido com o pressuposto de que o princípio da moralidade é

objetivamente válido enquanto um imperativo categórico.

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A solução que Kant propõe à questão se baseia na distinção que faz entre fenômeno e

coisa em si (noumêno). Todas as nossas representações sensíveis são apenas fenômenos que

constituem os únicos objetos de todo o nosso conhecimento. Mas, é preciso pressupor como

estando na base desses fenômenos as coisas em si, das quais não podemos ter conhecimento

algum. Os fenômenos nos são dados mediante intuição sensível em relação aos quais somos

simplesmente passivos. Já as coisas em si, são puros entes do entendimento, pois, são

produtos da espontaneidade do nosso pensamento, mas nem por isso invenções arbitrárias.

Dessa separação entre fenômeno e coisa em si, diz Kant, “tem de resultar a distinção, embora

grosseira, entre um mundo sensível e um mundo inteligível, o primeiro dos quais pode variar

muito segundo a diferença de sensibilidade dos diversos espectadores, enquanto o segundo,

que lhe serve de base, permanece idêntico” (Kant, 2004, p.100). Essa divisão não diz respeito

apenas aos objetos em geral, mas também ao sujeito. Consequentemente, o homem como

integrante do mundo sensível se conhece pelo sentido interno como fenômeno. Mas, enquanto

integrante do mundo inteligível, não pode se conhecer a si mesmo, embora tenha

necessariamente que pressupor em si uma atividade da qual tem consciência imediata e que

constitui o seu eu inteligível. De acordo com as suas inclinações, que são simples percepções,

é meramente passivo, mas enquanto ser inteligível se pensa a si mesmo como pura

espontaneidade.

Essa espontaneidade que o homem encontra em si mesmo é “uma faculdade pela

qual se distingue de todas as outras coisas, e até de si mesmo, na medida em que ele é afetado

por objetos; essa faculdade é a razão” (Kant, 2004, p.101). Embora o entendimento seja

também atividade própria, os seus conceitos servem unicamente para determinar objetos, isto

é, “submeter a regras as representações sensíveis” (Kant, 2004, p.101). A razão, ao contrário,

com os seus conceitos puros (idéias) ultrapassa o âmbito da experiência e mediante uma

atividade pura pensa as coisas em si e separa o mundo em sensível e inteligível, determinando

com isso também os limites do entendimento.

Uma vez que o homem é participante de dois mundos, tem que se admitir também

duas legislações. Enquanto ser sensível, todas as suas ações são determinadas segundo leis da

natureza e formam no seu conjunto uma heteronomia para a razão. Enquanto ser inteligível,

as leis podem ser dadas unicamente pela razão, em que o ser racional se considera a si mesmo

autor dessas leis sob a idéia de liberdade. Essas leis constituem para a razão o que Kant chama

de autonomia. Assim como o fenômeno está na base das leis da natureza, analogamente, a

idéia de liberdade está na base da lei moral. Kant pretende com isso ter resolvido o “círculo

vicioso”, que se manifesta quando liberdade e submissão à lei moral são pensadas como

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conceitos que servem de fundamento um ao outro e que coexistem num e mesmo sujeito;

Pois agora vemos que, quando nos pensamos livres, nos transpomos para o mundo inteligível como seus membros e reconhecemos a autonomia da vontade juntamente com a sua conseqüência – a moralidade; mas quando nos pensamos como obrigados, consideramo-nos como pertencentes ao mundo sensível e, contudo ao mesmo tempo também ao mundo inteligível (Kant, 2004, p.103).

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