leyla perrone-moisés - a criação do texto literário. in flores da escrivaninha. companhia das...

6
Lf ~l (\ çe rrD VliX) - rtO( se::; Ir . \ -' _ \. \ . L~ C'f' ~~ t~~ YC7' v-l ~ ( 8 A CRIAÇÃO DO TEXTO LITERÁRIO o título que me propuscram. e que aceitei. é extremamente ambicioso. Quercr sintetizar. numa breve comunicação, as questões que esse título anuncia. seria urna pretcnsão ou uma in- genuidade. Fique. pois. desde logo claro que pretcndo apenas le- vantar aqui alguns pontos quc me parecem ftilldamentais. deixan- do (1 campo aberto para os dcpoimentos·dos escritores e as inter- vençücs dos ouvintes que se seguirão 8S minhas colocações. ., A criação do texto litenírio." Embora pareça bastante neutro, em sua generalidade. esse título j<Í implica uma determinada teoria da literatura. !\ palavra criaçtlo supüc o tirar do nada, o tornar ex- istente aquilo que não existia antes. É urna palavra teológica. As- sim como Dcus criou o mundo a partir do Verbo. a~;sim o autor literário instauraria um munuo novo. nascido de sua vontade e de sua palavra. Para o leitor. esse mundo seria doado. com todas as suas maravilhosas novidades. como o jardim do Éden a Adão. A palavra criaçiiIJ, aplicada ao razcr artístico, pertcnce ao vocabulário uo idealismo romântico: presume que o artista não imita a na- tureza. mas cria uma outra natureZ<1. gerada por um c,:.;cesso de car:íter divino c destinada a uma completude autúnoma. Entretanto, o título proposto aeopla criaçt70 a outra palavra que aponta para outras teorias. mais recentes. I~ a palavra texto. Ao introduzir-se a palavra (exlO. remete-se para a matcrialidadc du escrito, e atenua-se o incf<Ívcl da palavra criaçt7o, Forma-se as- sim um título de compromisso. de conciliação entre o "divino" da !!Cnese e o "humano. demasiadamentc hUlTlano" do objeto criado. Como. porém. as alianças contaminam. o pniprio texto. aqui re- sultante de uma criação. torna-se um objeto algo miraculoso, co- mo uma pomba surgida dc uma cartola. fOI) Poderíamos substituir a palavra criaçiio por outras, quase sinônimas, (Existirão realmente sinônil~lOs. isto é. palavras que tenham exatamente o_l1lcsmo significado'!) Se ~ubstituíssemos a palavra criaçiio pela palavra ill\·cllçiio. por exemplo. j,Í seria ou- tra teoria da literatura que estaria por detr,ís. "A i;1venção do texto litenírio." Invenção é lambém a criaç;)o de lima coisa no- va. mas não de modo divino e al1soluto. Inventar é usar o en- genho humano. é interferir localizada.mente no conjunto dos artefatos de que o homem dispüe para tornar sua vida mais rica e mais interessante. Dentro de um sistema de Verdade. ifl- VCIIÇÜO tem até algo de pejorativo. Diz-se de uma mentira: isso é uma invenção. Daí havcr algo de provocador n() uso da palavra illFCIIÇÜO para designar o fazer artísticQ. O e~erilor que diz "eu invento" recusa as verdades ab~olutas e os I'alo"res e~l<Íveis. ressalta sua habilidade mais do que SU<l inspiração. O inVl:nlor não acredita necessariamente em Deus: Irah,lIll<I no mundo dos recursos humanos. Cham,lda de ill\·CflÇilo. a ohra de arte é com- parável ;\ pülvora ou ao <I\·ião. ;\ceila-~e assim (Iue um,i in- venção também é circunscrita no templi: 01a ~er<Í suhstituída por outra. mais engenhosa. llIais llIoderna. Ess;\ é ln11,\ 1),11,1\'1';1 C<lra às vanguardas uo século XX. que ddendem o constantc prnduzir cio novo como Ulll valor. Outra palavra quase sinllllim;1 das du,ls ;lIllL'riorcs é a p,lIana pmdllçiio. "A produç;)o do texto liler;íri(l." 1:,,;\ é uma pal;I\'1a marcadamcnte materialista. Fm ccollollli;l. IJ/'IIdll('cllI é ;1 <:ri;u,:;)o de bens e de serviços C<lP;lICS de suprir as Ilccessitl:ides m;llc.ri;lis do homcm. Produção implica quantidadc de o\ljC!OS c wlclivi- elade de produtores e consumidores. Não telll, portanto, qualquer conotação sobrenatural: é ainda mais tern:na do que a p,1I;I\'1'a ill- vCJlçiio. E, das três p,llavras "qui apreselll<ld,IS COIllO p()ssí\Tis. l; <I que se liga ele nH)do mais homo!!êne(1 COIll a palavra (C.rlO, COIll- preendido este como objeto nl<ltcri;d l' COIIClC[O. Inserido IllIlll processo de produç;10. o lc.\!o fica cquil';lr,ldo ,I um produto dI) mundo industrial. como um guarda-chuva ou uma m,íquinil dc costura. Outras duas palanas poderi;lm ainda substituir. lH:sse univer- so vocabular. ,IS três anteriores: scri;lIn as pal,lvr;ls rt'{JU',I'('II(({(:C;Ol' expresstlIJ. Mas. para uS<Í-las. dcvcríamos rclirar ,I 1,;1I,IH<I (CX(O e deixar ,lpenas ";] representaç:io liter;:ri;l" ou "a cxpress;lo lill'- r,íria", E esse fato ilOS mostra que j<Í eSI;lIlIO$ (:1\1outras C<lte,l!ori;ls discursivas e enl outr,lS \'isadas ll'(íric;ls. {Ii{

Upload: jackelinedidone

Post on 29-Jul-2015

1.136 views

Category:

Documents


68 download

TRANSCRIPT

Page 1: leyla perrone-moisés - a criação do texto literário. in flores da escrivaninha. companhia das letras,2006

Lf~l(\çe rrD VliX) - rtO( se::;

Ir . \ -' _ \. \. L~ C'f' ~~ t~~ YC7' v-l ~(

8

A CRIAÇÃODO TEXTO LITERÁRIO

o título que me propuscram. e que aceitei. é extremamente

ambicioso. Quercr sintetizar. numa breve comunicação, as

questões que esse título anuncia. seria urna pretcnsão ou uma in­

genuidade. Fique. pois. desde logo claro que pretcndo apenas le­vantar aqui alguns pontos quc me parecem ftilldamentais. deixan­

do (1 campo aberto para os dcpoimentos·dos escritores e as inter­

vençücs dos ouvintes que se seguirão 8S minhas colocações.

.,A criação do texto litenírio." Embora pareça bastante neutro,

em sua generalidade. esse título j<Í implica uma determinada teoria

da literatura. !\ palavra criaçtlo supüc o tirar do nada, o tornar ex­

istente aquilo que não existia antes. É urna palavra teológica. As­

sim como Dcus criou o mundo a partir do Verbo. a~;sim o autorliterário instauraria um munuo novo. nascido de sua vontade e de

sua palavra. Para o leitor. esse mundo seria doado. com todas as

suas maravilhosas novidades. como o jardim do Éden a Adão. Apalavra criaçiiIJ, aplicada ao razcr artístico, pertcnce ao vocabulário

uo idealismo romântico: presume que o artista não imita a na­

tureza. mas cria uma outra natureZ<1. gerada por um c,:.;cesso de

car:íter divino c destinada a uma completude autúnoma.

Entretanto, o título proposto aeopla criaçt70 a outra palavra

que aponta para outras teorias. mais recentes. I~ a palavra texto.Ao introduzir-se a palavra (exlO. remete-se para a matcrialidadc

du escrito, e atenua-se o incf<Ívcl da palavra criaçt7o, Forma-se as­

sim um título de compromisso. de conciliação entre o "divino" da

!!Cnese e o "humano. demasiadamentc hUlTlano" do objeto criado.

Como. porém. as alianças contaminam. o pniprio texto. aqui re­

sultante de uma criação. torna-se um objeto algo miraculoso, co­

mo uma pomba surgida dc uma cartola.

fOI)

Poderíamos substituir a palavra criaçiio por outras, quasesinônimas, (Existirão realmente sinônil~lOs. isto é. palavras quetenham exatamente o_l1lcsmo significado'!) Se ~ubstituíssemos a

palavra criaçiio pela palavra ill\·cllçiio. por exemplo. j,Í seria ou­

tra teoria da literatura que estaria por detr,ís. "A i;1venção dotexto litenírio." Invenção é lambém a criaç;)o de lima coisa no­va. mas não de modo divino e al1soluto. Inventar é usar o en­

genho humano. é interferir localizada.mente no conjunto dosartefatos de que o homem dispüe para tornar sua vida mais ricae mais interessante. Dentro de um sistema de Verdade. ifl­

VCIIÇÜO tem até algo de pejorativo. Diz-se de uma mentira: isso éuma invenção. Daí havcr algo de provocador n() uso da palavra

illFCIIÇÜO para designar o fazer artísticQ. O e~erilor que diz "euinvento" recusa as verdades ab~olutas e os I'alo"res e~l<Íveis.

ressalta sua habilidade mais do que SU<linspiração. O inVl:nlornão acredita necessariamente em Deus: Irah,lIll<I no mundo dos

recursos humanos. Cham,lda de ill\·CflÇilo. a ohra de arte é com­

parável ;\ pülvora ou ao <I\·ião. ;\ceila-~e assim (Iue um,i in­venção também é circunscrita no templi: 01a ~er<Í suhstituída por

outra. mais engenhosa. llIais llIoderna. Ess;\ é ln11,\ 1),11,1\'1';1 C<lra

às vanguardas uo século XX. que ddendem o constantc prnduzircio novo como Ulll valor.

Outra palavra quase sinllllim;1 das du,ls ;lIllL'riorcs é a p,lIana

pmdllçiio. "A produç;)o do texto liler;íri(l." 1:,,;\ é uma pal;I\'1amarcadamcnte materialista. Fm ccollollli;l. IJ/'IIdll('cllI é ;1 <:ri;u,:;)o

de bens e de serviços C<lP;lICS de suprir as Ilccessitl:ides m;llc.ri;lis

do homcm. Produção implica quantidadc de o\ljC!OS c wlclivi­

elade de produtores e consumidores. Não telll, portanto, qualquer

conotação sobrenatural: é ainda mais tern:na do que a p,1I;I\'1'a ill­

vCJlçiio. E, das três p,llavras "qui apreselll<ld,IS COIllO p()ssí\Tis. l; <I

que se liga ele nH)do mais homo!!êne(1 COIll a palavra (C.rlO, COIll­

preendido este como objeto nl<ltcri;d l' COIIClC[O. Inserido IllIlll

processo de produç;10. o lc.\!o fica cquil';lr,ldo ,I um produto dI)mundo industrial. como um guarda-chuva ou uma m,íquinil dccostura.

Outras duas palanas poderi;lm ainda substituir. lH:sse univer­

so vocabular. ,IS três anteriores: scri;lIn as pal,lvr;ls rt'{JU',I'('II(({(:C;Ol'

expresstlIJ. Mas. para uS<Í-las. dcvcríamos rclirar ,I 1,;1I,IH<I (CX(O e

deixar ,lpenas ";] representaç:io liter;:ri;l" ou "a cxpress;lo lill'­

r,íria", E esse fato ilOS mostra que j<Í eSI;lIlIO$ (:1\1outras C<lte,l!ori;lsdiscursivas e enl outr,lS \'isadas ll'(íric;ls.

{Ii{

Page 2: leyla perrone-moisés - a criação do texto literário. in flores da escrivaninha. companhia das letras,2006

*Por que fica impróprio "a representação do texto literário" ou

"a expressão do texto literáriÇ>"? Porque representação e ex­pressão, diferentemente das três palavras previamente sugeridas,remetem para algo anterior ao texto, algo de preexistente; um

mundo (no caso da representação), um indivíduo (no caso da ex­pressão). Representação é a palavra mais antiga em nossa teoria

literária; é a mimese de Aristóteles. Supõe uma visão do real e

uma determinada imitação que, mesmo sendo uma transfor­

mação, tem o mundo como ponto lIe partilla. Expressão pertenceao vocabulário da psicologia e foi valorizada pelo romantismo tar­

dio. que privilegia, no ato de escrever. o sujeito emissor, com suapersonalidade e seus afetos.

;\mbas as palavTas estão atualmente postas sob suspeita, na

teoria literária; porque a filosofia contempor<1nea duvida da possi­bilillade de se captar o mundo como uma totalidade representável

e a lingüística questiona a anterioridade da idéia à palavra, a pri­mazia do sentido sobre o dito.

E agora, como ficamos? O que faz o escritor? Cria? Inventa?

Produz? Representa? Exprime? A respeito de cada um desses

verbos manifestei urna margem de reserV<l. que é característica de

um certo mal-estar da teoria- literária alual. pouco propensa às

definições categóricas e totalizantes. mais desconfiada dc scus

pressupostos filosóficos e mais cética a respeito de suas possibili­d<ldes "científicas".

Esse mal-estar terminológico não deve, entretanto, desenco­

rajar-nos. As palavras lIevcl11 ser revisitadas. reexaminadas e ex­

ploradas. elas nos ajudam na aproximação 1I0 saber que buscamos

na medida mcsma em que conhecemos seus pressupostos e seus

limites. E essa foi minha intenção ao examiná-Ias aqui, de modo

forçosamente sumário, Q,i~x~o. invenção. produçã(?2._ rep'!:esen­

~~5~~ .~?'PJe~Jiio-:--q uai q uc ~'~~sKU2~I~~'~rjã JiPJ~iilli!.SLd~s g,?s-t:rl/as. com as qUals se tenta captar o fazer lIterárIO, pode ser por

nós agora retomada, contanto que explicitel110s o modo como asestamos retomando.

A literatura, felizmente. continua existindo, apesar de nãoacreditarmos mais na possibilidade de a linguagem representar ou

expressar um real prévio, criar, inventar ou produzir um objeto

que seja auto-suficiente ou. pelo contrário. reabsorvido e utilizado

pelo real concreto, A literatura parte d~l)}.u~ce_ill....9!L~retende di­zer. falha sempre ao-JízTiu--:-iiúls--âüTiliwr lIiz outra cOlSã,"ÕeSVen-

-J;ilU]l ~)~nUõ'maIsr~alllo que ;ql'ieJe qa-eprete;:;di~·di;.-er. ---- ~.-- o '_. - ._----~..._- ._--" _. -~

102

y\:' l-.} ~() - .•...

\_;.':,\,\~»),\j,. ~) \h\)\)J . f\~G\\. c,,!,

.f,,-<~j··· -..;~. A literatura nasce de uma dupla fa!t<l: uma falIa sentida no

mundo, que se pretende suprir pela linguagem. ela própria senlid;l

ef!l seguida com falta,

/, A primeira falta é experimentada por todos, no mundo físico a

; que chamamos real. O mundo em que vivenlos. o rilllndo em qUL'tropeçamos diariamente. não é satisfatôrio, FSS;l 0 uma conslal;lç:io

a que se chega bem cedo. na existência. ;\0 nascermos. o primeiro

esforço para respirar e o choro emitido cm Cllnseqii0ncia j,i el'idell­ciam a falta do conforto 1I0 útero materno, Nos dias e meses

seguintes o bebê percebe (reclamando) o hlo de que a m,je 11;10 es­

tá sempre presente, como ele o desejaria. ou de quc seu corpo mio

está em permamellle bem-estar. Esse descontenlamento plimiíril1

que nos traz o estar no l11undo só faz acentuar-se pela vida ;lIora. ;'1

medida que à simples sensação da falta sc acrcseen[;lm as espLCU-" lações racionais sobre como as coisas deveriam ser c n,IO S,IO.

"~'o Quando digo qúe o mtindo não é satisfalório. pensa-se logo

(concordando) no mundo atual. lIesde as amcaças de guerra nu­

clear até os problemas gritantes de nossa realidadc brasileira, tvlas

seria ilusório pensar que nos c<lbe o doloroso privilégio de vivcrum real insatisfatório. Todos os momentos da história do homelll

foram vividos como insatisfal<Írios ou mcsmo insuporl<íl'eis,

Flaubert gostava de lembrar S<lO Policarpo, um rwírtir do século 11

de nossa era, que dizia: "tvleu Deus. em que século me lileslL'snascer!", Dezessete séculos mais ta rde. o escri lor Ira ncês rc lom;l­

va essas palavras como suas, Cem anos lIepois. eu comcntci com

Osrnan Lins essa citação de Policlrpo/Flauberl. O escritor bra­

sileiro concordou C()~llela. élcrcsccntando por SU;I conla: "Em qucséculo e em qlle IlIgl/r me fizestes nélscer!", Podemos arrematar

com 130rges em sua fina ironia. dizendo ;1 rcspcito de ;d~uL;m:

"Coube-lhe, como a todos. maus tcmpos p;lra l'i\Tr",

O que torna o real de nosso momento histórico mais agulla­

mente insatisfatório éa maior complexidade de dados de quc dis­

pomos, aumentando nossa capacidade lIe conhecer c. paradoxal­

mente, impedindo-nos de chegar a uma vis,lo de conjunto, O que

há, e já houve em doses. mais confortadoras para o homem. S;IO

modos de reagir à insatisfação que o mundo nos causa: pela re­

ligião. aceitando os desígnios da providência c remctendo () mun-.

do sem falhas para o além-morte: pela aç;lo social. desde aquelas

lO3

Page 3: leyla perrone-moisés - a criação do texto literário. in flores da escrivaninha. companhia das letras,2006

integradas num vasto projeto político até as isoladas, _que se apli­

cam a fazer pequenos consertos no rcal: pcla imaginação, pelo faz­

dc-conta,_'lL!.~_r~os compensa~ po~_alg.un~ ~l~f!1<::IJtos~ºá iiisütis-façiio causada peiõrc~t1. ' "

Det~nhiliiló:il'l;s n'esse lÍitimo rccurso. o da imaginaçãà, A

imaginaç,10 como fuga ou compcnsaç<1o. como prêmio de pn!~er, écxcrciUdct jj(JI' todós os st:res hum;lIlos, /\Iguns, eriirelanto, exte­riorizam sua imaginação, inscrcvem-se em objetos expostos à per­

ccpção de outras pessoas, Esse é o modo artístico de exercer aimaginaç,10 c de compensar o que falta no mundo. Nãu nos impor­

ta, por enquanto, o valor dessc razer. isto é, se o objeto produzidorealiza ou n<1o o objctivo de substituir um real insatisfatôrio. Ten­tar dar uma forma concrcla ao imaginado é. de qualquer modo,

uma atividadc dc tipo artístico.

De todas as prMicas de que podcmos valer-nos para refazer o

rcal. COI11 a ajuda da imaginação. a quc aqui nos ocupa é a

literária. isto é, a rcconstrução do mundo pelas palavras. 'Nashistórias in\'cnladas podemos, eventlwlmente, encontrar um mun­

do preferível àquele em que vivemos: el11 certos poemas podemosClll.:ontrar os dados do rcal harmonizados dc modo mais satis­

fatôrio, 1\las dizer que a ohra liteníria compensa assim, positiva­mentc. as falhas do real kvar-nos-ia a uma vis<1o idílica da literatu­

ra: supor quc todas as n,llTati\'as e todos os poemas apresentam

um mundo mais belo. mais prazeroso do que o mundo real. A li­

teratura seria cntão aquele famoso "sorriso da sociedade", e o es-

critor uma incorrigívd Poliana ou UIlI inofensivo sonhador. ./As obras estão aí para desmenti-Io. Que dizer daquelas narra­

tivas que nos mostram Urll mundo ainda mais terrível do que esse.

j,í t<1o insatisfatório. quc nos cerca? E daqueles poemas que mani­

fcstam urna dor ou um pavor ainda maiores do que os quotidiana­mente nos assaltam? E csse é o modo de ser histórico da literatura '\l

co~lp()r'inca'.-'~:~~-J.-:.'-ll-'a-~-(~-_~~~~-,S-)_ COE=~e:r~ !-Ura. ncssàs-í."J, .H1SOl;gatlvas Te-se ,nnda l11alS claramente a IIlSatls- jração causada pela falta. Áccntuar o quc estú mal. torná-Io per- ~ceptível e generalizado até o insuporlúvel. é ainda sugerir. indire- ttamentc, o q uc devcria sc r e não é .

.•' .' ')-' ,. -, , Na sua gênese e na sua realizaçüo. a literatura a. 011la sempre, . !. .~ --'-~--- -.-- •\: \., '". pará'o 'ue falta, no mundo c em nós. Ela emprcende dIzer as" I 7'. I ~ •. __ ~-:; ...•••~ __.•••..••_

, :.,' coisas como são. faltantes, ou como deveriam scr. completas,

Trágica ou epifânica. negativa ou positiva, ela estéí sempre dizendo" . ". :~ --- =. ~.--~~-'''"''-._....... ....• '.......... -'- .... - - -

, ljue 2 rea!JwQ.~~,_-­( " :

. 1 !__-

Ç)

~... ,;

10·1

I'

\ 1-··I '

Inúmeros ~ão os escritores quc defincm a literatura a partir dafaltaJFlaubcrlf; "A vida é 1,1u horrível que st'> seyod~ ..?up(~rt<í-Ia

evitan~lo-a; e p(xlemos f<l7:~-lo'quando se vive ii~mundo da arlc".Fernando Pess'o1: "/\ literatUJ:;I,~Õnl~) loda ;;rte:-Cllma Cllnfiss,10

de que a vida não basta", No cntanto, nl'nhum d()s d(jis es'crevcu

ul11a obra que se possa C<lracterizar conlll uma fuga para um Illun­

do mais alegrc do que o rc'll. E !3(lI'ges) l'llj;IS Lihulas podem parc­

cer, ü primeinL visla. como desvincul"das do rcal. ,Irirm<t: "A lite­ratura nasce da inrclicidade. A felicidadc n;locxi 'e nada, t\""m'Mi-

CiUal e queC~~Ji?Xljj~~ã'"filt'(jlI;~í~lcL~~Ea':" Essa ~~"ein-'(jlIé'sC; transfo'lli'í7í- a infelicidade é qll'e pode Cllmpensar a falta,não pelo que ela cria ou representa. mas por scu modo dc ser. /\isso voitnremos mais adianlc,

, . Invcntar um outro Illllildo mais plenl! ou e\'illenci,lr as lacullas !!/"-, elesse em que vivcmos s,10 duas mancir,ls dc rcclamar da l'all,1, •

Mas aí chcgamos ao grande p'lrado.\o quc funda o fazer lilcr<Írio,

A literatura cmpreendc suprir;1 falIa por um sistcma quc funciona

em falta, em falso: cssc sisiCnia é <l lingu'lgclll. Us signos verbaiss<1o substitutos das coisas.scu uso rcpousa numa nler;1 cOJl\'cnção

d.c cor.rcspondência: ,(,li c~)isa ser;í .represcnlad;l ,por tal si~no, AS_/'

sIm. dIZer as cOisas e 'aceitar pcrdc-Ias, dIstanCIa-bis c alc Illcsmo

anulá-Ias, /\ linguagcm ni'io podc subslituir o Illundo, ncm ao

mcnos represenl<í-Io I'ielmenle, l'mle apenas cv(icá~li), aludir a ele

através ele um pacto que implica a perda do rc;lI concreto,\ A lingu,lgem tem uma funçiio rdercnciaJ c uma prclenstlO

, represcntaliv,l. Entrcl'lnl(). o IllUllLio l'Ii"Lil! pcl<l linguagcm nuncl

esl<Í tolalmcntc ,ldcquado ao rc,lI, Narr<lr uma histúria, Ill_esnll'.

q 1~1~'U:.sl~~I,~i,l:.ll)"I7çúÜ:Y]íiÚ""h~_J2U;~~· pessoasnunca contam o Illcsmo fal,o da mesnlil forma: a simples cscolha

dos pnrmclllires.a sc.:rcm n,lITados, a (lrdcn,lç,lo dos fatos e o ,in­

guio de quc eles si'io cllcar'ldos. (udo isso l'Iia a possibilidade dc

mil e uma hislúrias. das quais Ilcnhum;1 sl'r;í <I "rcal", Sempre cs­

lar,í faltando. na hisl(íria. <l1~(l dl! rc,lI: c 1ll1lil,IS vezcs se cs(ar;í

criando. na histlÍria, algo quc f,lIla\',1 no rcal. Uu mclllllr. algo que,

ao se produzir na hislúria. rcvel<l,uma illlpcrdo;ivl'i fal~l~1no real. ~Escrever um poem,l é l,imbcm. PCllJ tem:l, Ill<lgnlilcar um llU

v;írius aspectos dl! 1'C,i1.dcsprczando outros: l'cl,1 forma. rilmar as

palavras como um convitc a rilmar o mundo, criar harmonias de f

som c de sentido que n<1ose percehclll na linguagem correnle: ins­

taurar o que Valéry define COIllO a "hcsilaç,10 cntre_ C! ,~onl e o SCIl-tido", Na mônada do pocma. o mundo fica momentancamcilic

IO,'i

Page 4: leyla perrone-moisés - a criação do texto literário. in flores da escrivaninha. companhia das letras,2006

, -

Saber que o escritor só atinge o "dcveras" como um "fingi­dor" (Fernando Pessoa), só alcança a verdade através de uma téc­nica, é ter consciência da gravidade de seu ofício: um fazer que

!J.0 ~~s.~~e_(: n~.~,~~._~I.~~~~~SI,~~:() que se COrl(lffm'f;~~larZJi'-ma nau e um mero obJclO ornameHtal. l1]as Ulll objillLQ.!.lde o n:alse dá a ver. O compromisso do CSCril(;r'C'õiíl~undo I~;;;r:)r

'li;nc'(;;'~I:;;-misso com a forma: é o que Roland Barthes chamoude "responsabilidade da forma",

A simples denúncia, pela linguagcm. do que vai mal no mun­do, não tem a eficácia conscguida pelo trabalho da forma na lite­ratura. Os artifícios do escritor revelam. ao rneslllo lempo. o qucfalta no mundo e aquilo que ncle- devcria eslar. FeI,1 força de SU,1articulação. contra[JoSta ú "desordem asi;ítica do mundo real"(Sorges). a obra literária dcmonstra que o hOlllcm é capaz de unl<lharmonia maior. Mesmo as obras cuja tern,ílic;1 é a dcsordem c afalta. quando possuem essa i'orça da forma. Clllnprclll uma funç;lopositiva. Nietzsche dizia: "Todas ,IS cois<ts hoas siio fortes estimu­

lantes em favor da vida: é a!i,ís o caso dc t(ld(l~!I_~

Por outro lado, inventar e arresenLHr (1 illl'xistl'nte é só apaj

rentemente uma ,lção alienante do real. I'ois. quando esse Illullllo

invenlado se erg.ue com a perturbadora celtoa quc lhe dü a for\11ajusta. ele é Ulll [Joderoso rival daquele que accil<ív,\\11OSCOIllOreal.

107

Escrever é o modo de qucm tem a palavra como iSC1:a )ala ,-~tcando o quc niio é pal'1\'fa. Um;1,-cz quc SCPL'SCOU,I cl1lrclinh,l, po-,",":;.-\ ••.~ •••.•~_:..;.'~~,--,<"''''''.~~:;''-,.r-.':!,"-''~:'':.;. , ._dia-se com aliVIO Jogar a palavra lora, "',Ias,11ccssa a analogia: a nao,Jalavra. ao morder a isca, incorporou-a, ~~ .•..-..;:..~""" ",~~-,"--.•..-

, ou o poema e são suas linhas de força invisíveis. até o lavor minu­~Ti,aso do estilo, que consiste em colocar as r'alanas cm determina­

da ordem, pesando como numa balança os sons c os ritmos. A for­ma buscada pelo escri.t9r'é"'não apenas essa forma sensívcl íiãõíã:

._ _._, ~ .- ,_ _ __ •• _'_. ,.:... __ - •• _ •• - __ .o~ ---_

, Teriafiaade do Iscurso-maso aõ"mesrno f'enipo. a forma do sentido., nõ arranjo )LIsta' as'rcfêrg-nci,is',-n7t-'cxriõr;lç~o-d;ls éOrl~(aç()~s. ;\

1~~irrCo'§là-~r.é~i~j~ ,f,': ~C_~lrdLi~)~.aIn<;!lt.e t~,!ll]ad ãj)7lra'colher, no real, veruades que não se vêem a ulho QP.S q~l_c..vistas,I ,.""'''' •• '" .",,_. .__••...• >- '--', ~-, ,',-" •..0'" '

'obri am a reformular o'prórrio real.-_- Só poJ'êser-;;CritZ;j: nqucl~-(íue ~onhecc c aceita esse pcrcur­so enviesado do real às palavras e das palavras ao real. aquele qucsabe que seu caminho é o indireto. Dizia Clarice Lis[Jector:

106

( cifrado, a captação do particular insinuando que uma plenitude do. mundo é de~ejável e possível.

O hurizonte da literatura é sempre o real que se pretende re­presentar-em sua dolorosa condiç;lo de falta ou reapresentar nu­ma proposta alternativa de cOlllplelude. Mas. por ser linguagem, aliteratura nunca pode ser realista. O chamado realismo nada mais f

é do que um conjunto de efeitos, baseados el11 convenções que tvariam historicamente. Céline assim explicava sua experiência, f

aparentemente realIsta: ~uando se m=rgulh,~ um bast.ão na ágUa,)'

ele parcce torto pelo deito da rclraçao: entao, se qUIsermos que 'ele pareça reto, lemos de quebr;í-lo antes de mergulhá-Io na água.

~ssa ág,ua que obriga a entortar o real. rara que ele volte a------ -~ •.•••~ _ .•__ .~ ~_ •.••...-._•• '_';.o~_. 1.'

ser Q.~ -realmente era, é a IlIlguagem li~!.ária. Já diziaWords\Vorth: "A [Joesia é 'lm11\:;'/íiigüilgcj;]'JJStz;rcid;'::-Qualq uerlinguagem dCfo)-niii-ã"SColsas:'e a ling~prénaaocscritor, paradar verdade;ls coisas. assume decididamente seu estatuto de ar­

tifício e de ilusão. Daí a importância da forma e sua relação com averdade. na literatura.

Para se pensar essa relação da literatura com a verdade, vale a

pena lembrar os vari,riveis sentidos da palavra miro. Para os povosprimitivos, o mito é a história verdadeira ror excelência; emmuitos desses [JOvos. são os relatos do quotidiano que são chama-dos de "históri<JS falsas'o, Em nossa civilização. ao contrário, mito {)

tomou o sentido de coisa [Juramente imaginária e. portanto, men-' ,.1tirosa. Mais do que duas concepções diferentes da verdade. são fl't•...{{Vdois modos diferentes de buscá-l<í. Muito diverso de um devaneio

fantasioso. o mito é um sistema simbólico rigorosamente forma-lizado. O modo literária de buscar a verdade continua sendo omodo simbólico do mito.

Contrariamente ao quc pensam os que têm uma concepçãomeramente instrulllental da linguagem~ a fonnQiizQÇào ejorati­vamcnte chamada de artifício), n<llitera~n;~ 6:11í"ê;;ação'efirrí~~-.._,.-c'.''''''. .---~'.' " •..•. __ ,,~_~ __ ,_ •.•._ _.__ ~_~_ •..• ~.-. . .

ll~~~ uma ce;:.\.i!-'(er(~~:~~l~J}~o .....L!~lr5)Elll~~..in~disp~nsá-

~~!J}5!JJ.l,!;1,S.~~...p.JL.~I<Í.~q.u.s.h!.~i;!--ilguçada que ahre t~'i<~has]2' I~.r.~~.0~:.0l)g_~~h.~~~.A.:~~~!~j~!l~!!.~.5?,,~~':.r~~t~r.{(nº~)..valõ.~_~_s,~ --1~'1i\lhtt­~ laz:~_u.~,-i~!.an Q~.oY_9~.~11ge~;.~12~aJeorclenaç~:?~?..m,~~~.o. E í

" ) por esse art1llcl0 da_toj'IDa que a literatura atinge uma verdade do

", ( rC~.:..,~:.rp'or -ii'ii~~giress;o verd,~~_<9iec li} -e~~ç~ií~~~iz~1:!Fiaube'iJ'd~ia que nunc'a cõ fundo que escandaliza mas a formü:"-""':-:-::-:-:;;-'-. ·~)\-tnra5aITll)uã,,-oTõril1a seexerce "em-iodos oÇ'níveis da obra

... ··'iteníria. desde as grandes estruturas. que sustentam a narrativa.,:'dl ).'}~

, ( :.) j

.'}',

Page 5: leyla perrone-moisés - a criação do texto literário. in flores da escrivaninha. companhia das letras,2006

Já Arist6teles, em sua teorra da_ representação poética, defendia

não a veracidade mas a verossimilhança:

Não é ofício do poeta narrar o que aconteceu; é. sim. o de represen­tar o que podia acontecer, quer dizer. o que é possível segundo averossimilhança e a necessidade.

"/,\"): - o Representnr o que poderia ter acontecido é sugerir o que

)'i; J .\) r.0~.~~~r"e.[e~êàrlJoSS-íbliLd·;ile~Er;,alfZã'd.~~do:e,a~.,s é,- -nesse sentido que a htemtura pode ser e c rcvoluclOnana: por

, () nHÍliTer'V'íva aú(opià: nãõ' cônio 'o irrí~lgini{rio"<illlP,(;s~Ívél~m'a~' co­

o T1TGõ~lsna-gíiiáverpósSível.0"-'-- ", ", .. ,.·l-'-!(;-t'iXricc~Lispector observava: "Escrever é tnntas vS?~~~r­

.,; §e do ue nunca existiu". Lembrm::::~e do que nuncn existiu é não'cOl';-formar·se C(;111() mUlldo e suas histlÍrias. não considerar o real

, como o inelut;ívet; é afirmar que as coisas poderiam ter sido ou-

tras. poderão ser outras. A função revolucionária da literatura não

consiste em emitir mensagens revolucionárias, mas em levantar,

por suas reordenações e invenções. uma dúvida radical sobre a fa­

talidade do real. sobre o determinismo da histlÍria. É o que diz

Miguel Torga. emadminíveis versos: "Canta, poeta. canta!! Violen­

ta o silêncio conformado.! Cega com outra luz a luz do din.! Desns­

sossega o mundo sossegado.! Ensina a cada alma a sua rebeldia".

Assim COlllO a literaturn não representa fielmente o real, tam­

b<5m não age diretamente sobre ele. A falta p(~de ser di Ia. m'ls não ",•.... ~:::;,.~-..-_.-._--.- .. ~~-.-.~ .•..,...- .•.•.. _. -

~9JS~12!i~, Ainda Flaubert: "S~.:2·~s' fcil'lis piiIj dizêJg.nüo par.1 tê-Io;'. O que a literatura pode. e faz, <5ampliar nossa com·

pr~eal. por um processo que consiste em destruÍ-lo e re­

constrUÍ-Ia, alribuindo-Ihe valores que. em si, ele não lemo Como

loJa arte "representativa". aliás. Comentando um filme sobre o

garimpo, que lhe foi moslrndo. um velho garimrciro observou: "Tu­

do o que está lá, a genle já conhece: mas no filme ludo transpareee

c a gente reconhece" (U Estado de S. Paulo, .( de mnio de IlJ7K).

( A criaçüo liter<Íria é um processo que tem dois p,ólos:. 0. es­lerilor c o Ieilor. Â obra literária só cXlste. de falo (' IIldeflnlda­

\mente, enquanto recriada pela leitura. ofício que deve ser tão ali­

'vo quanto o do escritor.

Nesse processo. o escritor é o deseneadendor. mas não o dono

bsoiuto, como certo romantismo remancscentc quer fazer crer.

108

"j

No ato de recriação da obra pela leitura, a proposta inicial se am-l opli'a e as intenções primitivas cio autor são superadas, Entre o di- .

zer e ° ouvir, entre o escrever e o ler. ocorrem coisas maiores do )que os propósitos de um emissor e as expectativas de um receptor:

há um saber inconsciente circulando na linguagem. instiluiç,lo c ,.J

bem comum de autores e leitores. ,.ffO que importa, assim, n<lo S,IO as intcnçCles mensageiras do >"lf

autor (por melhores que sejam), e sim sua cap:lcidadc de imprimir

n obra aquele impulso poderoso e aquela ahcrtura estimulante

que convide o leitor a prosseguir sua criação, Todavi;1. assim como

o autor nüo é o dono absoluto da obra, que o ullrapassa. o leilor

também nüo pode ler a prelensão de ser sober;lIlO em sua leilur:l. /Aleilara <5um aprendizado de alenç:lo. de sensihilidade e dc in- ,

venção. A grande obra não pode ser lida de qualquer maneira, ao (

bel-prazer da pura subjetividade do leilor. porquc nela estão ins-{cri tas ciquela~ linhas de força quc podem ser moduladas c prolon;gadas .. mas nao anuladas.

Na circulação entre a proposta que é a ohra e sua recepção

pe'lo leitor cria-se não propriamcnle um mundo paralelo, repre­sentado, e sim uma vis:lo valorativa do mundo em que vivcmos,

Assim, a obra liter:íria é construç;lo do rcal e convite reiler:Hlo ao

seu ultrapassamento. Essa comprecnsão permitida pela obra!ileníria é diversa da compreensão racional. visada pelos discursosinstrumcntais da eiênci;l e da filosofia: é uma inteligC'ncia scnsí\'el.

que se opera cm nossa mente como em nosso corpo. pelo podcr

de uma linguagem e111que as palavras eVOC:lI11ohjetos. mas SÜO.

ao mesmo tempo. objdos se nsÍ\'l:is e ;110 meSnlll sel)suais.

Assim. a literatura IlllI 1C:l cst;,í afaslada do rc,J1. Trabalh:lr o

imagilHírio pela lingu:g!.em n,IO é scr C:lplur,ldo I)elo imagin:írio.

mas caplurar. ;llravés uo illlagin,írio. \'erd,l(ks do re;J1 que n;lo sedão a ver fora de uma ordem silllb<ilica, ,\ IU~:J do re,J1. ou scu

oposto, o realismo, nunca se efetuam tol<J1lllcnte na liter:llur:1.

pois as duas atitudes têm o real como hori/onle e a ling.uagem co­mo mediação. A linguagem é obsuículo. 11\1C:lminl1o do real. f.lJ:1S

é também possibilidade de fund:í-Io. Fora da ordem da lingua~em.

o real é apenas C'IOS. Como lembra Oct:l\'jo 1',1/. "a palaHa não S(ldiz o mundo. 'mas tamb<5m o funda - ou II tr:Jnsforma", Pre­

tendendo subslituir o real ou. pelo contnírio. l'Slll'lh,í-lo. scmpre <5

a ele que a literatura se refere. Tanto a fuga CllnlO o mergulho·

obrigam-nos aTcr esse rcal. a question,í-Io e a ITin\'cnt:í-lo.

1M

Page 6: leyla perrone-moisés - a criação do texto literário. in flores da escrivaninha. companhia das letras,2006

iJr

~.;·._.I_ •..~

Como todas as atividades humanas (a partir da própria fala),ali-teratura nasce da vivência da falta e da aspiraçãc à comple­tud:e. Essa compJetude. a literatura não nos pode dar. O que ela .';'nos ,pode dar. isso sim. é uma forma de conhecimento que satisfaz:não )uma verdade abstrata e dada. mas Ullla verdade corporificadae em obra.

Cls inúmeros saberes carreados pela literatura são meros pre­textos para um saber maior: o saber lia falta. e a permanentemanute nçào do desejo de supri-Ia. O mundo deixa a desejar, as

palavras estão sempre em falta: a literatura o diz. insistente e ple­namente.[ IS184]

110