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322 LEVANTAMENTO E TRATAMENTO DE DADOS NAS TRANSMISSÕES GRATUITAS DE PATRIMÔNIO, PARA EMBASAMENTO DE ESTUDO DA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO E COMBATE ÀS DESIGUALDADES SOCIAIS Marinês dos Santos (UEM), [email protected] Resumo: Este artigo estuda o levantamento e tratamento de dados das transmissões gratuitas de patrimônio (herança, doação, usufruto, etc), realizadas no ano de 2014, por meio de escrituras públicas lavradas nos Tabelionatos de Notas de Maringá, e cujos beneficiários das transmissões residam no município de Maringá. A partir de referenciais teóricos e legais, analisa-se como a lógica capitalista se manifesta na ocupação do espaço urbano da cidade, excluindo, segregando, e aumentando a desigualdade social. Analisa-se, a partir dos dados levantados, como a tributação, com base em uma alíquota única de 4%, do Imposto Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens e Direitos (ITCMD), contribui para acirrar o processo de desigualdade social e hierarquização. E, ao mesmo tempo, apresenta elementos para a proposição de uma política pública de justiça tributária, com base em alíquota progressiva do ITCMD, promovendo assim o combate às desigualdades sociais. Palavras-chave: Política Pública, Desigualdade, Tributário, Inclusão.

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LEVANTAMENTO E TRATAMENTO DE DADOS NAS

TRANSMISSÕES GRATUITAS DE PATRIMÔNIO, PARA

EMBASAMENTO DE ESTUDO DA OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO

E COMBATE ÀS DESIGUALDADES SOCIAIS

Marinês dos Santos (UEM),

[email protected]

Resumo: Este artigo estuda o levantamento e tratamento de dados das transmissões gratuitas

de patrimônio (herança, doação, usufruto, etc), realizadas no ano de 2014, por meio de

escrituras públicas lavradas nos Tabelionatos de Notas de Maringá, e cujos beneficiários das

transmissões residam no município de Maringá. A partir de referenciais teóricos e legais,

analisa-se como a lógica capitalista se manifesta na ocupação do espaço urbano da cidade,

excluindo, segregando, e aumentando a desigualdade social. Analisa-se, a partir dos dados

levantados, como a tributação, com base em uma alíquota única de 4%, do Imposto

Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens e Direitos (ITCMD), contribui para

acirrar o processo de desigualdade social e hierarquização. E, ao mesmo tempo, apresenta

elementos para a proposição de uma política pública de justiça tributária, com base em

alíquota progressiva do ITCMD, promovendo assim o combate às desigualdades sociais.

Palavras-chave: Política Pública, Desigualdade, Tributário, Inclusão.

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Levantamento e tratamento de dados nas transmissões gratuitas de

patrimônio, para embasamento de estudo da ocupação do espaço urbano e

combate às desigualdades sociais 1

1. INTRODUÇÃO

O presente estudo consiste no levantamento dos dados referentes às transmissões

gratuitas de patrimônio (em especial heranças e doações), realizadas pelos Tabelionatos de

Maringá no ano de 2014, cujos beneficiários residam no município. O material levantado será

analisado à luz da legislação vigente, bem como de pressupostos teóricos que admitem a

importância da organização do território urbano, como determinante da posição social do

morador (ou do proprietário) do imóvel.

Os objetivos do estudo são: (1) realizar um levantamento de dados fidedigno,

legítimo e válido para análise científica das doações e heranças transmitidas no ano de 2014,

no município de Maringá; (2) analisar – tendo por exemplo o município de Marigá – como a

lógica capitalista se manifesta no espaço urbano, excluindo e segregando; (3) subsidiar a

propositura de uma política estadual de tributação progressiva do Imposto Transmissão Causa

Mortis e Doação de Quaisquer Bens e Direitos (ITCMD), como forma de combater a pobreza

e promover a inclusão social.

O ITCMD é um imposto de competência estadual que incide nas transmissões

gratuitas de patrimônio, ou seja, nas heranças, doações e institutos correlatos (cessão,

renúncia, instituição/extinção de usufruto). Compete ao Estado em que ocorre o fato que gera

o tributo (fato gerador) instituir e regulamentar este imposto. Atualmente, no Paraná, o valor

do ITCMD corresponde à aplicação da alíquota de 4% sobre o valor do patrimônio

transmitido (base de cálculo).

Este estudo faz uma reflexão sobre como a alíquota única de 4% estabelecida pelo

Estado, na exigência do ITCMD, contribui para a construção de uma sociedade segregada e

desigual. Alternativamente, propõe a tributação progressiva do imposto – alíquotas variando

de 0% a 8% – como uma política pública que pomove a inclusão social e a justiça tributária.

1 Este estudo é parte da pesquisa do Mestrado Profissional, do Programa de Pós-Graduação em

Políticas Públicas, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), sob a orientação da Profa. Dra. Ana Lúcia

Rodrigues.

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A cidade está desenhada para ser “vendida” como uma “mercadoria” e, nessa lógica,

só há espaço e vez para quem tem suficiência econômica para comprar o bem desejado. Para

os desprovidos economicamente resta amargar a exclusão do sistema social.

Entendemos que a incidência do ITCMD a uma alíquota fixa de 4% sobre o valor

transmitido não atende ao princípio constitucional da capacidade contributiva do contribuinte.

Ao contrário, essa tributação reforça uma política excludente, na medida em que impõe a

mesma carga tributária a cidadãos que se econtram em situação econômica muito desigual.

Em termos fáticos, o cidadão pobre é mais onerado do que o cidadão abastado, pois o pouco

para aquele é muito, e o muito para este é pouco.

Pautado no conceito de justiça tributária da Constituição Federal e a partir do

enfoque das ciências sociais, estudaremos a demanda por uma política pública de justiça

tributária.

2. A DESIGUALDADE SOCIAL E SUA EXPRESSÃO NO ESPAÇO

URBANO

No estudo da dinâmica da mobilidade social, um aspecto que se destaca é circulação

do capital econômico enquanto determinante do “lugar social” a ser ocupado pelo cidadão.

Neste sentido o espaço urbano pode ser “palco” de reprodução ou, ao contrário, de quebra de

paradigma, das estruturas sociais hierarquizadas vigentes.

Os objetivos deste trabalho justificam a utilização de referenciais que tratam a

desigualdade social e seus vínculos com o território, ou que explicam como a ocupação dos

territórios urbanos é a expressão da estrutura desigual da sociedade. Em termos doutrinários,

há já um certo tempo que os cientistas sociais e de áreas afins estudam as cidades e as

múltiplas forças que a formam, sendo a Escola de Chicago a precursora destes estudos, que

vinculam os espaços urbanos aos processos de reprodução da desigualdade.

Os estudos adotados como nossos referenciais constatam que as cidades capitalistas

– tal qual as brasileiras – são perpassadas também por relações capitalistas e, estas, se

reproduzem pela estrutura de poder patrimonialista e por históricas relações clientelistas.

Disto resulta a eliminação de qualquer fronteira entre o público e o privado para que as

classes patrimonialistas – detentoras da

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riqueza – se apropriem do público conforme seus interesses próprios, de reprodução de

riqueza privada.

Segundo Polanyi (2012, p. 48), um autor do início do século XX, são os modos de

integração econômica que definirão as esferas de relações sociais que determinam os acessos

de cada morador na cidade e na sociedade. As reflexões de Marx (2013, p. 113), sobre o valor

de uso, o valor de troca, e sobre a mercadoria, contribuem sobremaneira para a análise do

nosso objeto de pesquisa, inclusive porque o autor pressupõe que na sociedade capitalista não

há outro modo de ser: o Estado possível será sempre um Estado burguês. Antes era um Estado

atrelado à igreja, agora é um Estado atrelado ao capital. Por isso a importância de se pensar,

apesar dos limites de atuação do Estado, em ações públicas que ampliem a integração

econômica da sociedade no âmbito da redistribuição e somente ao Estado cabe a elaboração e

implementação das Políticas Públicas.

Nessa linha de estudo citamos também Arantes (2013, p. 11), em “Uma estratégia

fatal: a cultura das novas gestões urbanas” que escreve como surgiu, na década de 1970, a

matriz liberal de planejamento conhecida por Planejamento Estratégico, segundo a qual as

cidades devem ser vistas como “máquinas de produzir riquezas” (ARANTES, 2012, p. 21).

Para a autora esse modelo de empresariamento da cidade é inviável, em especial para

os países subdesenvolvidos. É um modelo que não dá conta da enorme demanda social

presente nestes países. Adotar o Planejamento Estratégico para as cidades destes países seria

uma irresponsabilidade social do gestor público.

Analisando a cidade de Maringá, à luz desses pressupostos teóricos, reco-nhecemos

que ela é um palco de disputa de interesses das classes sociais. O perfil do município

apresenta os traços do capitalismo neoliberal, que acirra as desigual-dades sociais, e privilegia

os detentores do capital.

Maringá localiza-se no norte do Paraná; inicialmente era um Distrito de Mandaguari

(1947) e posteriormente foi emancipada para município (1951). Passados os anos, pode-se

dizer que o desenho original manteve-se: a cidade foi dividida em zonas segundo as naturezas

das atividades que seriam desempenhadas nos locais: comercial (zona 1), residencial/alto

padrão (zona 2), residencial/popular operário (zona 3), residencial/ médio padrão (zonas 4, 5,

6, 7 e 8), armazém (zona 9) e industrial (zona 10). Constata-se que a área destinada a

residências foi dividida em zonas de acordo com o poder aquisitivo do morador.

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No decorrer dos anos, a política de crescimento e desenvolvimento da cidade tornou

mais aguda as desigualdades econômico-sociais. A especulação imobiliária fez (e continua

fazendo) com que a região central e os bairros próximos a ela tenham os valores de seus lotes

inflacionados; ao mesmo tempo que empurra cada vez mais os pobres para a periferia.

Nesse sentido, a socióloga Rodrigues (2004, p.6) 2. realiza um profundo estudo da

formação do município de Maringá e da Região Metropolitana, demonstrando que para uma

faixa mais pobre da população local, não foi possível nem mesmo a periferia de Maringá.

Essas pessoas encontraram como única opção de moradia as cidades-dormitórios situadas no

entorno de Maringá, das quais se destaca Sarandi e Paiçandu.

A análise da criação e desenvolvimento de Maringá confirma a teoria de que o

sistema capitalista, tal qual o viveciamos, é excludente, segregador, e aprofunda as

desigualdades sociais. No que se refere à tributação do ITCMD, entendemos que a adoção de

alíquotas progressivas possa ser um instrumento de combate à desigualdade social, na medida

em que cada cidadão pagará segundo sua capacidade.

3 ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE PATRIMÔNIO RECEBIDO E

CARACTERÍSTICAS SOCIAIS DO TERRITÓRIO

O ITCMD, tal como o temos hoje, foi criado pela Constituição Federal de 1988

(CF/88), que o previu como um tributo de competência estadual (art. 155, inciso I, CF). Como

o próprio nome diz, trata-se da faculdade atribuída aos Estados de tributarem as diversas

transmissões não-onerosas de patrimônio (direitos, propriedade, posse ou domínio). Situações

em que o patrimônio se transmite para uma outra pessoa sem que tenha havido uma operação

comercial (ex: compra/venda, locação, etc). É o que ocorre, por exemplo, na herança e na

doação.

A instituição do imposto, sua fiscalização e cobrança devem obrigatoriamente estar

em conformidade com a legislação, seja ela a Constituição Federal, ou os demais comandos

infra-constitucionais. Estes instrumentos jurídicos constituem-se nos marcos legais do

ITCMD: A Constituição Federal (CF/88), o

2 RODRIGUES, Ana Lúcia. A pobreza mora ao lado: segregação socioespacial na região metropolitana de

Maringá. Tese de doutorado apresentada junto à PUC/SP. São Paulo, 2004, p.44.

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Código Tributário Nacional (CTN, Lei n. 5.172/66), o Estatudo da Cidade (Lei n. 10.257/01),

a Lei Estadual do ITCMD (Lei n. 8.927/88, entre outros.

A Constituição Federal é a grande matriz legal da qual derivam todos os demais

comandos de nosso ordenamento jurídico. Ela se apresenta como o marco legal, por

excelência, para todas as esferas da convivência social. Portanto, o ITCMD e todo o sistema

tributário nacional também possuem suas regras fundantes ancoradas na Carta Magna.

A atividade tributária não é uma situação isolada, mas sim um ato político-

administrativo que interfere na vida das pessoas em particular, e da sociedade em geral. Desse

modo, para contextualizarmos o leitor no universo do ITCMD, precisamos ir para além da

norma tributária propriamente dita, e adentrar na seara dos princípios que informam a Lei

Maior – os princípios constitucionais. Estes são, por assim dizer, a alma da Constituição, eles

representam os valores da sociedade para o convivio social: a liberdade, a dignidade da

pessoa humana, a inviolabilidade de domicílio, o devido processo legal, a legalidade, a

isonomia, ampla defesa, a capacidade contributiva, vedação ao confisco, anterioridade, etc.

Estes comandos legais encontram-se distribuídos ao longo de toda a Constituição.

Entretanto, para alguns – dada sua força estruturante e valorativa – o legislador elencou-os

como “princípios fundamentais” e descreveu-os no primeiro Título da Constituição. Nesta

análise destacamos: princípio da dignidade da pessoa humana; princípio da cidadania, dos

valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; da igualdade entre os Estado, da função social

da propriedade, etc. O objetivos buscados com tais princípios, dentre outros, são: a

erradicação da pobreza e da marginalização; a redução das desigualdades sociais e regionais;

e a promoção do bem de todos, sem quaisquer formas de discriminação (BRASIL,

Constituição, 1988, arts. 1º ao 5º).

A ciência jurídica, ao mesmo tempo que reconhece dificuldades sociais, também

reforça a imperatividade do princípio constitucional que almeja a superação da desigualdade

social (FACHIN, 2015, p.588).

É com esse olhar – de um país que se volta para sua formação social, combatendo as

desigualdades e promovendo o ser humano – que devemos analisar a tributação imposta pelos

Estados aos contribuintes. No caso específico do ITCMD, olhar constitucionalmente este

imposto, implica olhá-lo para além das regras jurídicas tributárias positivadas. É preciso olhá-

lo permeado pelos valores sociais,

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fraternos, morais e éticos implícitos nos princípios constitucionais.

De tal modo que no enfrentamento entre um dispositivo legal (um artigo de lei) e um

princípio constitucional, este prevaleça sobre aquele. Isto porque nenhum artigo de lei tem

legitimidade se não estiver firmemente ancorado nos valores éticos e morais que formam a

nação. Princípios estes que foram elevados à condição de norma cogente (imposta a todos) ao

serem trazidos para o texto constitucional.

O ITCMD é o tributo exigido pelo Estado em razão da transmissão gratuita de

patrimônio de um para outro proprietário. O beneficiário não despende dinheiro para a

aquisição, esta se realiza por ato gratuito (morte ou um ato de liberalidade) do antigo

proprietário.

Na socieade capitalista, a questão patrimonial está diretamente relacionada com o

“lugar social” ocupado pelas pessoas. Assim, ser proprietário pode significar a esperança de

um futuro melhor. Em contrapartida, a pobreza econômica de uma pessoa pode representar

seu destino de miséria e precaridade, sem chance de mudança.

Ao se analisar constitucionalmente o ITCMD, não é possível limitar-se somente ao

Título VI da CF/88, que trata da tributação e do orçamento (arts. 108 a 120). Devemos

compreendê-lo também à luz dos princípios implícitos em outras áreas da Carta Magna, tal como

o Título que trata da Ordem Econômica e Social, que condiciona que esta ordem econômica

busque assegurar existência digna a todos (justiça social) e que deve obrigatoriamente observar,

dentre outros, o princípio da função social da propriedade (art. 170, III CF/88) (FACHIN, 2015,

p.584).

Em relação aos princípios do direito tributário propriamente dito, a Constituição

Federal definiu-os ao dispor sobre o Sistema Tributário Nacional (arts. 145 a 156 CF/88).

Dentre os diversos princípios, destacamos o que determina que os impostos atendam, sempre

que possível, ao princípio da capacidade contributiva do cidadão (art. 145, § 1º CF/88). Este

princípio é muito importante para assegurar um quadro de justiça social, uma vez que ele

impõe que o ente tributante respeite a capacidade econômica do contribuinte no momento de

exigir o tributo.

Na seara da justiça tributária estabelecida pela CF/88 (art. 145, § 1º) é possível

afirmar que é justo que cidadãos com poderes aquisitivos diferentes paguem impostos de

valores diferentes. Assim como, que um cidadão – hipossuficiente sob o aspecto econômico –

não pague imposto. Como exemplo citamos o Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF), em

que há uma faixa de

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rendimento anual isenta, e outras faixas cujas alíquotas são progressivas de acordo com o

aumento da renda anual do contribuinte.

Amparado na idéia de justiça fiscal-tributária realizamos o presente estudo visando

subsidirar uma política pública de tributação progressiva do ITCMD. Neste estudo não

poderia faltar o Estatudo da Cidade – Lei n. 10.257/2001 – fundamental para qualquer análise

sobre a sociedade brasileira.

O Estatuto da Cidade representa uma conquista dos movimentos sociais. Após uma

caminhada de lutas e reivindicações, conseguiu-se trazer para o texto legal a proteção do

direito à moradia digna para todos. Como ensina Maricato (2010, p. 16)3: “Pela primeira vez

na história do Brasil, a Constituição Federal passou a contar com um capítulo dedicado ao

tema das cidades e incorporar a função social da cidade e a função social da propriedade”

(MARICATO, 2010, p. 16).

Muito embora o ITCMD seja um tributo de competência estadual, a atuação do

Estado, ao legislar, não está desconetada dos comandos do Estatuto da Cidade. Isto porque

não há como esquecer que este tributo tem por fato gerador a transferência de propriedade

(patrimônio) de uma para outra pessoa – sem esquecer que o espaço urbano é o local onde

reside a maior parte dos envolvidos na transmissão de patrimônio. Transmissão esta que tem

um efeito mais visível ainda quando se trata de propriedade imóvel.

Numa sociedade capitalista como a brasileira, é fundamental entender como o valor

patrimonial transfere-se de um para outro proprietário, a fim de que o gestor público envide

ações que busquem uma justiça social. Neste sentido, o governo estadual – gestor do ITCMD

– ao instituir, fiscalizar e cobrar este tributo, tem que fazê-lo em harmonia, não só com a

ordem constitucional, como também com o Estatuto da Cidade.

3.1 O ITCMD no Estado do Paraná (Lei n. 8.927/88)

No Estado do Paraná o ITCMD foi instituído logo após o advento da CF/88 pela Lei

n. 8927, de 28/12/1988. A estrutura básica do imposto foi definida pela CF/88, e coube à lei

estadual discipliná-lo à luz daquela.

Logo no primeiro artigo a legislação paranaense elenca os fatos geradores de tributo,

ou seja, os eventos que – uma vez ocorridos – conferem ao Estado o 3 MARICATO, Ermínia. O Estatuto da Cidade Periférica. In O Estatuto da Cidade: comentado.

CARVALHO, Ceslso Santos e ROSSBACH, Anaclaudia (Orgs). São Paulo: Ministério das Cidades:

Aliança das Cidades, 2010.

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poder/dever de exigir o imposto. De forma resumida os fatos geradores são: a transmissão de

bens e direitos pela via sucessória ou por doação; bem como a renúncia, a desistência, e a

cessão, por ato gratuito, de direitos (transmitidos pela via sucessória ou por doação)

(ESTADUAL, Lei n. 8.927/88, arts. 1º e 3º).

Numa interpretação sistemática do ordenamento jurídico é possível afirmar que, se a

legislação não envida todos os esforços possíveis para combater a pobreza e as desigualdades

sociais, ela não está em harmonia com o comando constitucional. Conforme argumentamos

no tópico que tratou das regras constitucionais, um critério de justiça é tratar igualmente os

iguais, e desigualmente os desiguais. Também lembramos, naquela ocasião, da necessidade de

se respeitar o princípio tributário (constitucional) da capacidade contributiva do cidadão.

Na tentativa de conciliar os princípios e comandos constitucionais com as regras

definidas na legislação paranaense, voltamo-nos para o estudo da aliquota do ITCMD,

entendendo que a aplicação de alíquotas diferenciadas pode ser um instrumento eficaz de

justiça social.

A alíquota corresponde ao percentual – definido em lei – que incide sobre a base de

cálculo (valor do patrimônio transmitido), resultando no valor do imposto devido. A Lei

paranaense n. 8.927/88, que instituiu o ITCMD, definiu no art. 12 que “a alíquota do imposto

é de 4% para qualquer transmissão”. Portanto nosso Estado possui uma alíquota única de

ITCMD.

Tributar as diversas transmissões gratuitas de patrimônio a uma alíquota fixa de 4%

retrata um tratamento injusto à luz da Constituição Federal. Se tomarmos por parâmetro o

princípio da capacidade contributiva, podemos afirmar que a aplicação de uma alíquota única

de 4% para qualquer valor transmitido não atende a este princípio.

Ao tributarmos pessoas com diferentes poderes aquisitivos com a mesma carga

tributária, estamos, proporcionalmente, onerando mais quem tem menor capacidade

econômica.

3.2 A realidade confirma a teoria

A parte empírica de nosso estudo, procura analisar as transmissões de patrimônio –

fato gerador de ITCMD – que foram formalizadas por meio de escritura pública pelos

Tabelionatos de Notas de Maringá, no ano de 2014, e cujos beneficiários residam no

município.

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Considerando o espaço territorial como um elemento muito importante na definição

do “lugar social” a ser ocupado pelo cidadão na sociedade, analisaremos se a região de

moradia do beneficiário possui uma relação direta com o valor do benefício por ele recebido.

A se confirmar esta hipótese, é possível concluir que quanto menor a base de cálculo

do ITCMD (menor valor de patrimônio recebido), tanto mais pobre é o beneficiário. Isto

possibilita uma ação pública de combate à pobreza, sem perda de receita, bastante simples e

muito eficiente: a instituição de alíquotas progressivas, que variem de 0% a 8% à medida em

que aumenta a base de cálculo. Isto faz com que pessoas mais pobres paguem menos e

pessoas mais abastadas paguem mais imposto.

Pois bem, nossa fonte primária de dados consistiu no levantamento junto às

escrituras públicas lavradas em 2014, pelos Tabelionados de Notas de Maringá, referentes a

fatos geradores de ITCMD, cujos beneficiários residam no município. Este levantamento foi

comparado com o banco de dados das Declarações de ITCMD que os contribuintes

apresentaram junto ao Fisco Estado, referente ao mesmo período. Da consolidação dessas

duas fontes, chegou-se ao universo de transmissões de patrimônio que se constitui no objeto

da pesquisa (Tabela 1):

Fatos geradores Qtde Escrit. Qtde FG Base de cálculo Valor ITCMD

Doações 159 180 38.461.613,83 1.538.464,56

Excesso na partilha 6 10 1.266.001,59 50.640,06

Extinção Usufruto 12 12 4.664.577,75 186.583,11

Instituição Usufruto 4 6 528.750,00 21.150,00

Separação Excesso 17 17 380.620,83 15.224,83

Causa Mortis 338 407 38.234.143,20 1.520.303,25

Tabela 1: Fatos geradores de ITCMD, constantes de escrituras públicas lavradas em 2014, e cujos

beneficiários residem no município. Fontes: Consolidação entre o banco de dados de ITCMD do órgão tributante; e as

escrituras públicas lavradas pelos Tabelionatos de Notas de Maringa

Uma vez que almejamos verificar se há uma relação direta entre capacidade

econômica do contribuinte-beneficiário da transmissão (a partir do local de moradia) e o valor

do benefício recebido, necessitamos também levantar o perfil sócio-econômico do

beneficiário.

Para mapeamento do espaço urbano do município, e da capacidade econômico-social

do beneficiário utilizamo-nos dos dados censitários do ano de

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2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que definiu vinte Área de

Ponderação de Dados da Amostra (APOND) 4 para Maringá, conforme mapa 1

(RODRIGUES et alli, 2015, p. 147):

MAPA1: desagregação do território municipal de Maringá por áreas homogêneas

(mapeamento das 20 APOND's do municípo de Maringá)

Fonte: IBGE, 2010 Organização: Observatório das Metrópoles/UEM

Embora a pesquisa ainda esteja em andamento, já é possível fazer um comparativo

entre essas duas fontes: os dados primários constantes da Figura 1, e os dados secundários do

Censo 2010, que definiu as Aponds.

A partir do Mapa 1 com as vinte regiões de Apond de Maringá e

4 “Define-se Área de Ponderação como sendo uma unidade geográfica, formada por um agrupamento mutuamente

exclusivo de setores censitários, para a aplicação dos procedimentos de calibração das estimativas com as

informações conhecidas para a população como um todo.” (Censo Demográfico 2010. Resultados preliminares da

Amostra. IBGE. Rio de Janeiro, 2010. Disponível em <

http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/ resultados_prelimina

res_amostra/notas_resultados_preliminares_amostra.pdf>. Acesso em 28/10/2015).

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considerando os dados de escolaridade e renda do Censo 2010, foi possível definir o perfil de

“Renda Média por Apond” da cidade (Mapa 3, lado esquerdo).

De igual modo, também a partir do Mapa 1, lançamos nas vinte áreas de Apond, os

valores recebidos pelos beneficiários de fatos geradores de ITCMD, segundo a região em que

residem no município (Mapa 3, lado direito).

Assim, podemos fazer um comparativo entre a “Renda Média por Apond” da cidade

e o “Valor Médio Recebido” pelo beneficiário distribuído nas vinte Apond de Maringá:

MAPA3: Comparativo visual: mapeamento da Renda Média (Censo 2010) dos moradores, por Apond; e mapeamento

do “Valor Médio Recebido” pelos beneficiários (Escrituras 2014), por Apond

Fontes: Censo Demográfico do IBGE, 2010 Banco de dados da Fazenda Estadual, referente às Declarações de ITCMD de 2014;

Escrituras públicas lavradas, em 2014, pelos Tabelionatos de Notas de Maringa. Organização: Observatório das Metrópoles/UEM

Mesmo se tratando, por ora, de uma análise comparativa visual, já é possível

vislumbrar que as transmissões gratuitas de patrimônio (causa mortis, doação,

instituiçao/extinção usufruto, etc) possuem uma relação direta com o local

334

de moradia do beneficiário. Os maiores valores transmitidos em herança/doação estão nas Aponds

ns. 12 e 14, seguida pelas Aponds ns. 17, 9, 13, e 2. A terceira faixa de valor recebido está nas

Aponds ns. 10, 5, 4, 8, e 7. Por fim, restam as duas última faixas, situadas nas Aponds ns. 11, 18,

16, 15, 1 e 19, e na Apond n. 20, 6 e 3.

A renda média dos moradores dessas Aponds também apresentam hierarquia

assemelhada. As maiores rendas estão nas Aponds 12 e 13, seguida das Aponds ns. 9,15, 2,

10 e 5. No terceiro nível de renda estão as Apónds ns. 17, 1, 14 e 8. Nas duas últimas faixas

de renda estão: Aponds ns. 11, 16, 1, 19 e 4; seguida das Aponds ns. 18, 20, 6 e 3.

Percebe-se que boa parte das vezes o comparativo “Beneficio Recebido” / “Renda

Média” coincide na mesma região de Apond. Quado não coinde, o deslocamento é para a

próxima faixa imediata, ou seja, não há um salto de níveis distantes das Aponds.

Frisamos mais uma vez, que se trata de uma pesquisa ainda em andamento, cujas

análises mais profundas, complexas e apuradas ainda estão sendo elaboradas. Entretanto, o

que já se tem pesquisado acena, com boa margem de acerto, que as hipóteses inicialmente

levantadas provavelmente se confirmarão.

CONCLUSÃO

Na conclusão do artigo retomamos os objetivos inicialmente propostos, afim de

respondê-los:

O objetivo inicial referia-se à qualidade dos dados: entendemos que este objetivo foi

atendido plenamente. Os lados são fidedignos, legítimos e válidos para a análise científica,

fizemos uso de fontes primárias por meio de documentos oficiais (escrituras públicas e base

de dados de órgão público); bem como de fontes secundárias públicas e oficiais, qual seja os

dados censitários 2010 do IBGE.

A nosso ver, o segundo objetivo também foi atingido ao explicarmos a criação e

desenvolvimento da cidade de Maringá, a partir de uma fundamentação teórica que demonstra

como o capitalismo econômico neoliberal faz da cidade um empreendimento que visa lucro,

em detrimento de ações sociais voltadas para os mais necessitados.

Por fim, entendemos que o terceiro e último objetivo também foi atendido, pois

demonstramos na pesquisa empírica como a tributação do ITCMD nos moldes atuais – uma

alíquota fixa de 4% sobre uma base de cálculo (o valor do patrimônio)

335

– aumenta a desigualdade social, a segregação, e onera injustamente o cidadão pobre. Ao

mesmo tempo, a pesquisa ainda em andamento, permite vislumbar que é possível pensar na

proposição de tributar progressivamente do ITCMD. A adoção de alíquotas progressivas, para

este imposto, representa concretamente uma política de justiça fiscal que – sem se descuidar

da receita do Estado – combate a pobreza, a desigualdade social, e atua em harmonia com os

marcos legais vigentes.

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