leminski, paulo - jesus a.c

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  • JESUS a.C.

  • JESUS Paulo Leminski

  • copyright Paulo Leminski

    Sugesto e motivo de capa e ilustraes:

    Paulo Leminski

    Capa:

    Takashi Fukushima

    Diagramao: Moema Cavalcanti

    Ilustrao final: Emlio Damiani

    Reviso: Jos W. S. Moraes

    Nely P. Figueiredo

    Fragmento do Evangelho Segundo Domingos:

    Domingos Pellegrini

    Fotos: Zap Fotografia (Curitiba)

    editora brasiliense s.a.

    01223 r. general jardim, 160

    so paulo brasil

  • CONTRA CAPA

    Mal-aventurados os que se rendem s verdades absolutas

    sobre Jesus. Se foi reformador ou revolucionrio, fariseu

    dissidente ou profeta iluminado, nada disso nos contam os

    Evangelhos. Jesus sabia se esconder bem entre as muralhas e as

    palavras. Indiscutvel apenas que sua doutrina tomou o poder

    no Imprio

    Romano sem levantar uma espada. Entender suas parbolas

    mergulhar num emaranhado de significados que se multiplicam

    como os peixes do milagre evanglico. Peixes, smbolo de

    subverso da ordem vigente.

    Ler Jesus caminhar sobre as guas incertas, que vm com

    fora e quebram em ondas de interpretaes. Nas praias, porm,

    s existe a certeza de que ele era um superpoeta.

  • ndice

    Carta de Intenes

    O profeta em sua terra

    Captulo 1

    Nem s de po

    Captulo 2

    A voz gritando no deserto

    Captulo 3 Captulo zero, versculo um

    Captulo 4

    A escritura crstica

    Captulo 5

    Quanto custa Jesus

    Captulo 6 Jesus macho e fmea

    Captulo 7 Jesus jacobino

    Captulo 8 O que foi feito de Jesus

    Parabolrio

    Sobre Jesus

    Naquele tempo

  • Para Domingos Pellegrini, que, de repente, apareceu falando de.

    Para Alice Ruiz que, atravs de Francisco, o ama.

    Para Paulo Csar Bottas, amigo dele.

  • CARTA DE INTENES

    Este livro dirigido por vrios propsitos.

    Entre os principais, primeiro, apresentar uma semelhana o

    mais humana possvel desse Jesus, em torno de quem tantas

    lendas se acumularam, floresta de mitos que impede de ver a

    rvore.

    Outra, a de ler o signo-Jesus como o de um sub-versor da

    ordem vigente, negador do elenco dos valores de sua poca e

    proponente de uma utopia.

    Outra ainda, seria a inteno de revelar o poeta que Jesus,

    profeta, era, atravs de uma leitura lrica de tantas passagens que

    uma tradio duas vezes milenar transformou em platitudes e

    lugares-comuns.

  • O PROFETA EM SUA TERRA

    Jerusalm, urgente Na tarde de ontem, algum que

    atende pelo nome de Jesus invadiu as dependncias do Templo,

    agredindo e expulsando toda a casta de vendedores que ali exercia

    seu ofcio.

    O luntico, galileu pelo sotaque, entrou, subitamente,

    chutando as mesas dos mercadores de pombas e outros animais

    destinados ao sacrifcio. Na confuso que se seguiu ao incidente,

    entre as moedas que rolavam pelas escadas, gaiolas quebradas,

    pombas que voavam, acorreram os guardas, que no conseguiram

    deitar as mos no facnora.

    O tal Jesus desapareceu no meio da multido, que o

    acoberta, porque nele acredita ver um profeta. A reportagem

    apurou que o referido natural de Nazar, na Galilia, filho de um

    carpinteiro.

    Arrebanhou inmeros seguidores entre os pescadores do

    Mar da Galilia. Dizem que opera milagres. E descende, por linha

    direta, do rei Davi.

    Entre os seus, fala aramaico, dominando, porm, o hebraico

    dos textos sagrados, que cita com frequncia, chegando mesmo a

    discutir com os doutores da lei, fariseus e saduceus. Muitos vem

    nele o Messias. As autoridades esto prontas para fazer frente a

    qualquer nova alterao da ordem provocada pelo tal Jesus ou por

    seus seguidores.

  • CAPTULO 1

    NEM S DE PO

    Ouam, cus, e, terra, abra as orelhas que Yahweh falou.

    (Isaas, 1,2)

    O Oriente Mdio era o lugar, culturalmente, mais rico da

    Antiguidade. Ponto de cruzamento da influncia dos primeiros

    imprios, de civilizaes letradas e complexas (egpcios,

    mesopotmios, hititas, fencios, ldios), passagem obrigatria de

    mercadorias entre a sia e o mundo mediterrneo, a chamada

    sia Menor (Turquia, Sria, Lbano, Israel, pases rabes) foi a

    ptria de algumas das maiores conquistas da humanidade.

    A comear pelo alfabeto, inveno dos mercadores fencios, a

    partir dos hieroglifos egpcios.

    A moeda, tambm, nasceu a, na Ldia, hoje, parte da

    Turquia. Nessa regio, porm, no nasceram s inovaes

    materiais. Nela, surgiram os mitos mais fundantes que informam

    o imaginrio do Ocidente at hoje.

    Essa parte do globo, afinal, foi bero do judasmo, do

    cristianismo e do Islam, as religies de Moiss, Jesus e Maom.

    No nos deixemos iludir pelas aparentes diferenas entre

    essas trs confisses religiosas, nem por seus conflitos histricos.

    Com variantes de detalhes, as trs afirmam, no fundo, os mesmos

    princpios: o tribal monotesmo patriarcalista, o moralismo

  • fundado em regras estritas, a tendncia ao proselitismo

    expansionista, a intransigncia.

    No haver outros deuses diante de ti, parecem dizer as

    trs, afirmando Jav, Jesus e Al.

    Trata-se, como se percebe, de uma religiosidade semita, de

    bedunos dos desertos e osis da Arbia, como foram, a princpio,

    hebreus, babilnios, assrios, arameus e rabes, pastores

    nmades de ovelhas, dispondo do cavalo, do camelo e do

    dromedrio como instrumentos de transporte.

    Os primeiros semitas a se sedentarizarem em centros

    urbanos estveis, constituindo civilizaes, foram os babilnios, os

    assrios e os fencios. O comrcio e as guerras fizeram o resto,

    tornando o Oriente Mdio um n grdio de influxos cruzando de

    todas as partes: mercadorias, principalmente. Mas, tambm,

    idias. Instituies. Conceitos. Mitos. Jesus parte dessa histria.

    Como se conhece Jesus?

    Tudo que se sabe dele nos chegou atravs de coletneas de

    textos conhecidos pelo nome grego de Evangelhos, literalmente,

    boa mensagem, palavra que, claro, Jesus nunca conheceu. Era

    um judeu da Galilia, falante do aramaico, um dialeto semita,

    aparentado ao hebraico, a lngua corrente na Palestina, depois do

    cativeiro da Babilnia (quando viveu, o hebraico j era, h sculos,

    apenas, o idioma sagrado dos textos religiosos, uma lngua morta,

    portanto).

    Em seu mundo sobrepunham-se trs idiomas: o aramaico do

    povo, o grego das classes cultas das grandes cidades da sia e o

    latim do dominador romano.

    De grego e latim, certamente, Jesus nunca soube uma

    palavra.

    Suas parbolas, frases e ditos memorveis foram formulados

  • em aramaico, esse dialeto semita, menos conciso que o hebraico,

    mas que chegou a ser lngua comum em todo o Oriente Mdio (at

    a correspondncia da chancelaria assria saa em assrio e

    aramaico).

    Como Buda e Scrates, Jesus no deixou nada escrito.

    Tudo que sabemos dele nos foi reportado por esses

  • evangelhos, que nos chegam da Igreja Primitiva, depois que

    comunidades judaico-crists se espalharam por todas as grandes

    metrpoles helnico-romanas do Mediterrneo (feso, Antiquia,

    Mileto, Tessalnica, Tarso, Alexandria, Roma).

    So textos tardios (o Evangelho de Joo deve ter tido sua

    redao final, mais ou menos, cem anos depois da morte de

    Jesus). Houve centenas de evangelhos. Cada Igreja local devia ter

    o seu. Fora quatro dentre eles, canonizados pela Igreja, quando

    esta se organizou como poder, os demais evangelhos foram

    condenados e negligenciados. Seus textos s chegaram at ns

    fragmentariamente. Ou atravs de vagas notcias dos escritores

    cristos dos trs ou quatro primeiros sculos da nossa era. So os

    apcrifos, o Evangelho dos Hebreus, o Evangelho dos Doze ou dos

    Ebionitas, o Evangelho dos Adversrios da Lei e dos Profetas, o

    Evangelho de Pedro, o Evangelho da Perfeio e outras coletneas

    perdidas ... Os evangelhos ditos cannicos atribuem-se a Mateus,

    Marcos, Lucas e Joo, discpulos diretos ou discpulos dos

    discpulos de Jesus.

    So textos escritos em grego. No o grego de Plato ou dos

    grandes escritores da Atenas de quatro sculos atrs.

    um grego meio popular, conhecido como koin (=

    comum), o grego que se tornou lngua franca em todo o Oriente

    depois da conquista do Imprio Persa por Alexandre da

    Macednia, lngua de mercadores e administradores, falado por

    fencios, judeus, persas, ldios, cilcios, e, naturalmente, romanos.

    Nenhum evangelho em aramaico. Jesus j se nos aparece

    traduzido. Tradio muito antiga quer que o evangelho atribudo a

    Mateus tenha sido escrito, originalmente, em lngua semita,

    hebraico ou aramaico. Os evangelhos de Mateus e Marcos

    parecem, com efeito, representar uma camada mais antiga da

  • tradio do que os textos de Lucas e Joo, visivelmente,

    elaboraes posteriores da Igreja (ou das igrejas) j organizadas

    litrgica e teologicamente.

    Ao que tudo indica, o de Marcos talvez seja o mais antigo de

    todos, seu autor, um judeu convertido, vivendo numa comunidade

    romanizada, talvez, na prpria Roma. Seu aproach o mais

    popularesco de todos. Em Marcos, Jesus sobretudo um

    taumaturgo, um fazedor de milagres, curando a lepra, a febre, a

    paralisia, a cegueira e expulsando demnios dos possessos.

    E a parte propriamente doutrinria, em Marcos, (o

    pensamento, digamos assim, de Jesus) sempre expressa numa

    imagtica muito material, ligada ao mundo fsico das classes

    populares da Galilia.

    J em Joo, so atribudas a Jesus teorizaes

    teologicamente to complexas que sempre se suspeitou, nelas,

    influncias da filosofia grega tardia, desenvolvida nos crculos

    mais cultos de Alexandria, no Egito, a capital intelectual do

    Mediterrneo de ento.

    Como se v, estamos lidando com uma documentao

    heterognea, advinda de vrias fontes, frequentemente

    contraditrias.

    Como achar o verdadeiro Jesus por trs dessa floresta de

    verses sobre sua pessoa, feitos e ditos?

    Parece bvio que os evangelhos representem a compilao de

    tradies transmitidas oralmente no interior da (s) igreja (s)

    primitiva (s), feitos e ditos do Senhor, passados de boca a boca,

    de orelha a orelha, evidentemente, ampliados e deformados pela

    imaginao oriental, to afeita a prodgios.

    O prprio carter fragmentrio e descosturado dos

    evangelhos, enquanto textos, confirma essa hiptese.

  • Os episdios evanglicos so ligados, praticamente, pela

    conjuno e, o que faz deles uma obra aberta, onde outros

    episdios poderiam ser insertados, sem dano do conjunto.

    E Jesus disse. E Jesus foi. E Jesus veio.

    No resta, porm, a menor dvida de que, por trs desses

    ditos e feitos, existiu uma pessoa real, de carne e osso, um rabi da

    Galilia, que mudou o mundo como poucos.

    A ser verdade tudo o que dizem os Evangelhos, no h

    nenhum personagem da antiguidade sobre qual saibamos tanto

    quanto sobre Jesus. Infncia, famlia, formao: detalhes

    mnimos, que no temos sobre Pricles, Scrates, Alexandre,

    Csar, Augusto, Ccero ou Virglio.

    O impacto que sua vida e doutrina provocaram nos

    contemporneos atingiu tal intensidade que, hoje, ainda, vibra.

    Talvez, ser Deus seja, apenas, isso.

  • CAPTULO 2

    A VOZ GRITANDO NO DESERTO

    Voz clamando no deserto: Preparar a via do Senhor: Retas fazer suas sendas.

    (Isaas, 40, 3, e Mateus, 3, 3)

    O essencial da mensagem de Jesus parece ser o anncio do

    iminente advento de um certo Reino de Deus. Na maior parte

    dos casos, depois desta vida. Mas, tambm, s vezes, nesta vida.

    Um dia, esta vida ser o depois desta vida.

    Esta pro-jeo, Jesus herdou dos profetas hebreus, dos quais

    ele foi o maior, inventando o futuro, j que o presente histrico

    insuportvel. Foram os profetas que inventaram o futuro, assim

    como os poetas inventaro o presente e os homens de ao

    inventam o passado sem cessar.

    Os profetas bblicos (Isaas, em primeiro) surgem quando o

    povo hebreu, depois de algum fastgio entre os pequenos

    principados da sia Menor, perde a autonomia poltica, esmagado

    entre as potncias do Egito e da Assria.

    A palavra profeta, porm, grega. E no d conta de toda a

    riqueza de significados do original hebraico, nabi.

    Em grego, a palavra pro-feta quer dizer o que fala para a

    frente, o que adivinha o futuro, portanto. Como Tirsias, a Ptia

    ou a Sibila.

    Ora, um nabi era mais que isso.

  • Era uma espcie de louco de Deus, desfrutando das

    imunidades das crianas, dos muito velhos ou dos bobos da corte.

    E seus riscos. Muito semita, a categoria nabi tem sua

    correspondncia entre os rabes, nos conceitos islmicos imam e

    mahdi.

    Imani, mahdi, so indivduos, possudos por Al, que Al

    envia, periodicamente, entre os homens, para purificar a f. Para

    restaurar uma pureza das origens. Para exagerar.

    No de admirar que, entre os pro-fetas, estejam os

    maiores poetas dessa literatura hebraica que o Ocidente chama de

    Antigo Testamento. A comear por esse extraordinrio Isaas, que

    Jesus, superpoeta, gostava de citar.

    Para Isaas, o exerccio da profecia, como entre os antigos

    hebreus, era singularmente facilitado por uma caracterstica da

    lngua hebraica, onde no h tempos. Mas modos.

    Idioma flexional, como o grego e o latim, o hebraico tem uma

    forma de verbo que pode significar, ao mesmo tempo, prestgio e

    futuro. A palavra amarti, em hebraico, pode significar tanto eu

    disse como eu direi.

    E para imaginar as possibilidades de ambiguidades

    profticas dos hazon (vises), que se expressavam numa lngua

    onde voc no sabe se se est falando de feitos passados ou

    eventos por ocorrer.

    Trocando em midos: se um profeta hebreu diz cairs,

    cidade maldita, pelo tempo do verbo, voc no pode garantir se a

    cidade j caiu ou vai cair.

    Muito difcil, para ns, vivenciar ou mentalizar um universo

    onde as coisas que j existiram e as que vo existir esto situadas

    no mesmo plano.

    Graas a essa caracterstica da lngua hebraica, o profeta

  • bblico parecia se situar num tempo especial, um extratempo, onde

    todo o por ocorrer j teria ocorrido. Algo como se a fico cientfica

    coincidisse com o realismo socialista. Ou vice-versa.

    Nisso, Isaas o mximo. Pela extrema criatividade

    imagtica, vos quase surrealistas de fantasia, vigor e pujana de

    expresso e formulao, Isaas tem de ser contado entre os

    grandes poetas da humanidade, no time de Homero, Virglio,

    Dante, Shakespeare, Bash, Goethe.

    Ao profeta Jeremias, atribuem-se as Lamentaes, longo

    poema elegaco sobre a queda de Jerusalm nas mos da

    Babilnia, em linguagem maneirista: cada verso comea com uma

    letra do alfabeto hebraico, at perfaz-lo todo, num imenso

    acrstico.

    No Antigo Testamento, o Tanach hebraico (Tanach uma

    sigla, reunindo a inicial T, de Torah, N, de Neviim, e Ch de

    Chetuvim, nomes hebraicos para os demais livros) brilham em

    poesia os textos atribudos a dezessete profetas. Os primeiros

    viveram e atuaram por volta do sculo VII a.C, no auge das

    agruras que afligiram o povo hebreu, estraalhado entre os

    poderes do Egito e da Babilnia-Assria, culminando com a

    deportao quase integral dos judeus para a Mesopotmia, no

    chamado Cativeiro da Babilnia.

    Nesse quadro, os profetas exerceram agudo papel poltico,

    como assessores e conselheiros dos reis de Jud e Israel. Alguns

    pagaram com a vida esse envolvimento direto com a Histria. Quer

    a lenda que Isaas, aos cem anos de idade, por intrigas de

    cortesos, foi acusado de alta traio, condenado morte e

    serrado ao meio.

    O profeta Jeremias, pelos mesmos motivos, teria ido passar

    seus ltimos dias no Egito, em exlio.

  • Outro dos grandes poetas/profetas de Israel foi Ezequiel,

    entre cujas vises consta uma de veculos extraterrestres, onde os

    aficionados do gnero acharam por bem ver relatos sobre a visita

    de discos voadores ao nosso pobre planeta.

    Pitoresco o livro do profeta Jonas, engolido pela baleia. Jesus

    o cita para anunciar sua morte e ressurreio, depois de trs dias

    no ventre da morte, um dos mitos mais tocantes da Igreja

    primitiva, reflexo dos mitos de Osris/tis/Adnis, milenares na

    bacia do Mediterrneo.

    Depois de Mriam, irm de Moiss, e Samuel, que ungiu Davi

    como rei, o primeiro profeta que a Bblia menciona Elias, que

    atuou nos tempos de Acab, rei de Israel, l por volta do sculo VIII

    a.C. Sua gesta, narrada no Terceiro Livro dos Reis, guarda

    assinaladas semelhanas com a de Jesus.

    Como Jesus, Elias um taumaturgo. Ressuscita o filho da

    viva de Sarepta, assim como Jesus ressuscitou Lzaro.

    Multiplica a farinha, como Jesus multiplicou os pes. E, como um

    xam ndio, faz cair a chuva.

    Clebre sua disputa de poderes mgicos com os profetas do

    deus Baal, divindade canania que sempre tentou Israel.

    Como Jesus, Elias foi perseguido pelo mpio rei, Acab, que,

    conforme a Bblia, tinha passado a fio de espada todos os

    profetas.

    A profecia sempre foi uma profisso perigosa.

    Sucessor de Elias, foi Eliseu, que o profeta encontrou

    lavrando com seus bois e consagrou-o profeta, prefigurando o que

    Joo faria com Jesus e o que Jesus faria com os pescadores de

    Galilia, que transformou em apstolos e portadores de suas

    palavras e parbolas.

    Eliseu abandona seu arado, como Pedro e os demais largam

  • suas redes depois de ouvir o apelo do Rabi.

    Na aparncia, Elias parece pro-fetizar Joo, o Batista. No

    Quarto Livro dos Reis, Elias descrito como um homem de barba

    espessa e cabelos longos, cingido sobre os rins com uma cinta de

    couro. Espantosa a fbula de seu fim.

    Elias caminhava ao lado de seu discpulo Eliseu, eis que um

    carro de fogo e uns cavalos de fogo os separaram, e Elias subiu ao

    cu, no meio de um redemoinho.

    No sculo XX, os devotos dos discos voadores no deixam de

    suspeitar, no episdio, a passagem de veculos extraterrenos.

    Com Eliseu, ficam o manto e os poderes miraculosos do

    profeta, demonstrados, a seguir, numa srie de prodgios.

    Elias persistiu na memria do povo durante sculos.

    Assim, ele comparece no episdio da Transfigurao de

    Jesus, no captulo 17 de Mateus, gesta que, para ns, do sculo

    XX, tem tambm um indisfarvel odor extragalctico de fico

    cientfica.

    O episdio merece ser transcrito na ntegra: Tomou Jesus

    consigo Pedro, Tiago e seu irmo Joo e levou-os a um alto monte,

    e transfigurou-se diante deles. E seu rosto ficou refulgente como o

    sol e as suas vestiduras tornaram-se brancas como a neve.

    E eis que lhe apareceram Moiss e Elias falando com ele.

    E Pedro, tomando a palavra, disse a Jesus: Senhor, bom

    estarmos aqui, se queres, faamos aqui trs tabernculos, um

    para ti, um para Moiss e um para Elias.

    Estando ainda a falar, eis que uma nuvem resplandecente os

    envolveu e eis que da nuvem saiu uma voz que dizia...

    No episdio, uma superposio das imagens de Elias, e

    Jesus, quase at coincidncia. Ao trocadilho. Elias aparece na

    vida de Jesus, por fim, no trgico equvoco de uma m

  • interpretao lingustica, quando das ltimas palavras,

    agonizando na cruz.

    Conforme o evangelho de Marcos, momentos antes de

    expirar, Jesus, em desespero, exclamou, em aramaico, Eli, Eli,

    Iam sabachtani?, meu Deus, meu Deus, por que me

    abandonastes?.

    Marcos registra: ouvindo isto, alguns dos circunstantes

    diziam: ele chama por Elias.

    Jonas (em hebraico lon, a pomba), que profetizou l pelo

    sculo VI a.C, era natural de Get de Zabulo, ao norte de Nazar,

    na terra de Jesus, portanto.

    Dentre os dezessete profetas cujas vises (hazon) foram

    escritas e chegaram at ns, destaca-se, pela antiguidade, Abdias

    (em hebraico, Abd-lahu = o servo de Deus, o equivalente de Abd-

    Ala, em rabe). Seu texto parece ser, lingisticamente, o mais

    antigo de todos.

    Nem s nos textos, porm, se revela a originalidade dos nabi.

    Sua vida, tambm, sempre trouxe o selo da estranheza e do

    exagero. Do excesso, da excentricidade e do milagre.

    Jesus foi um nabi. Antes dele, deve ter havido milhares.

    Conforme os evangelhos, imediatamente antes, surgiu Joo,

    chamado o Batista. Suas relaes com Jesus parecem ter sido

    muito prximas: a tradio quer at que ele seja primo de Jesus.

    Depois das lendas relativas ao nascimento, os Reis Magos, o

    massacre das crianas por Herodes, a fuga da Sagrada Famlia ao

    Egito, todas pesadamente tingidas do fantstico oriental (o que

    no quer dizer que no haja resqucios e indcios de dados reais

    por trs da fbula), Jesus aparece, adulto, apresentando-se diante

    de Joo, para ser, por ele, batizado no rio Jordo.

    De Joo, Mateus tira uma fotografia impressionante. um

  • eremita meio selvagem, vivendo no deserto, no depoimento de

    Mateus, com vestimenta de pele de camelo, com uma cinta de

    couro, seu alimento era gafanhotos e mel silvestre.

    Quase d pra ver o tipo, um daqueles furiosos loucos de

    Deus, a boca cheia de pragas e maldies contra todos os que

    pareceram trair a original pureza de uma f. Reacionrios,

    saudosos de um passado? Revolucionrios, querendo novas coisas

    e novos cdigos? Cada um escolha o adjetivo que combine melhor

    com a tanga de pele de camelo do profeta Joo.

    O fato que Jesus o procurou para se submeter a um ritual

    seu, o batismo. A palavra grega, e significa apenas banho.

    Seu carter simblico o mais bvio possvel, a traduo

    material de uma atitude espiritual. O batismo de Joo estava

    articulado com a confisso dos pecados, com a categoria asctica

    da penitncia.

    A gua lava o corpo, a boa vontade lava a alma.

    O ritual da lavagem espiritual, em riachos, rios e mares,

    universal, como o carter sacro das guas vivas.

    Mas, entre os judeus, esse rito parece que comeou a

    competir com o da circunciso, a ablao do prepcio, que sempre

    foi, desde Abro, a marca distintiva do Ham Israel. Na realidade, a

    circunciso uma prtica encontradia em todo o Oriente Antigo,

    a operao constando de gravuras egpcias das primeiras

    dinastias. Jesus, claro, era circuncisado. Donde veio aos hebreus

    o rito do batismo?

    A histria dos conflitos originais entre o judasmo e o

    cristianismo poderia ser, liturgicamente, entendida como uma luta

    entre os ritos da circunciso e do batismo.

    aqui que entram em cena os essnios, uma estranha seita

    judaica que viveu em mosteiros, submetida a uma regra

  • monstica prpria, chegando a produzir sua prpria literatura

    margem do judasmo oficial.

    H inmeras menes aos essnios na literatura antiga,

    tanto judaica, quanto grega. Nenhuma, porm, nos evangelhos.

    As mais clebres runas de um mosteiro essnio situam-se

    em Qumran, s margens norte do Mar Morto, numa paisagem

    quase lunar, pedra, sol e areia.

    Nas proximidades das runas, foram descobertos

    manuscritos, datando do sculo I a.C., depositados em grandes

    urnas, ocultas em grutas e cavernas das elevaes circundantes.

    A descoberta dos chamados Manuscritos do Mar Morto um

  • dos captulos mais emocionantes da arqueologia do sculo XX.

    Em pergaminhos (e at papiros) conservados pela secura do

    clima, os maguilot ou rolos do Mar Morto so a biblioteca do

    mosteiro essnio de Qumran, escondido s pressas diante da

    arrasadora invaso romana do ano 70, conduzida por Tito.

    Na literatura essnia, descoberta nas grutas dos arredores

    de Qumran, os testemunhos de uma vida espiritual intensa.

    E uma surpresa.

    Os essnios parece que cultivavam a memria de um Mestre

    da Justia, um superior da ordem essnia, que teria sido

    sacrificado pelas autoridades na capital, em Jerusalm. Como

    Jesus!

    Acontece que as evidncias arqueolgicas e textuais dos

    Manuscritos do Mar Morto apontam para mais de um sculo antes

    de Cristo. Teria havido um Jesus essnio, antes de Jesus?

    A riqueza dos signos feita da abundncia das

    interpretaes.

    Para sairmos desse impasse, nada melhor que recitar um

    dos Hinos da Ao de Graas dos essnios:

    Graas, Senhor,

    porque me colocastes no escrnio da vida

    e me cobristes contra

    as armadilhas da fossa.

    Homens violentos quiseram me matar,

    eu me apoiava sobre tua aliana.

    Esses, bando da mentira, horda do demnio,

    no sabem que de ti

    vem minha glria

    e que em tua bondade

    me salvars,

    pois diriges os meus passos.

  • (..........................)

    Esse o mais bem conservado hino essnio de Ao de

    Graas, na tradio dos Salmos, em particular do Salmo 1.

    Nos rolos, os especialistas identificaram, alm de textos dos

    livros de Moiss e dos profetas, uma literatura especificamente

    essnia. O Manual de Disciplina, regra da ordem essnia.

    Comentrios sobre o texto dos profetas. Hinos rituais prprios, os

    Hinos de Ao de Graas. E mais espantoso uma espcie de

    apocalipse, chamado A Guerra Dos Filhos da Luz contra os Filhos

    das Trevas.

    Como eram, afinal, esses essnios?

    Ao que tudo indica, uma das trs seitas em que se dividia o

    judasmo na poca de Cristo, com os fariseus e os saduceus.

    Os essnios procuravam preservar o judasmo em sua

    mxima pureza mosaica, numa poca em que as influncias

    gregas e romanas seduziam os espritos.

    A comunidade essnia funcionava, pois, como um profera:

    Qumran uma voz clamando no deserto.

    No mosteiro essnio, cultivava-se a comunidade de bens, a

    santificao da comida em comum e o celibato, tudo coisas que

    vamos encontrar na doutrina de Jesus e no cristianismo primitivo.

    Em Qumran, os arquelogos descobriram a piscina que

    servia para as ablues e lustraes rituais: o rito do batismo ,

    com certeza, de extrao essnia.

    O que havia de essnio em Joo e em Jesus, fica difcil de

    analisar dois mil anos depois.

    O que no se pode duvidar que eram homens do seu

    tempo, atravessados por idias e conceitos que circulavam no

    meio em que viveram.

    Batizado por Joo, num episdio que a lenda evanglica

  • cumulou de prodgios (fogo sobre a gua, descida do Esprito

    Santo), Jesus comea sua misso, repetindo Joo. Jesus. Joo.

    Joo. Joo.

    Mateus reporta o apelo inicial de Joo: faam penitncia,

    aproximou-se o Reino de Deus. Pois com essa mesma frase que

    Jesus comea sua atuao. O processo lembra muito a passagem

    da autoridade nos mosteiros zen, do Extremo Oriente, de mestre a

    mestre, registrado num livro chamado A Transmisso da

    Lmpada.

    Complexa a luz dessa lmpada que Joo passa a Jesus.

    Mas, ao mesmo tempo, muito simples.

    Jesus veio para exagerar a pureza da doutrina de Moiss.

    Nenhuma razo para duvidar que no estivesse sendo

    sincero, ao dizer:

    Nem pensem que vim

    para dissolver a lei

    ou os profetas.

    No vim dissolver,

    mas realizar.

    Amm vos digo,

    at passar o cu e a terra

    da lei, no vai morrer um jota

    nem uma vrgula.

    Est na hora de fazer as pazes com a palavra fariseu.

    Na origem, fariseu vem de um radical hebraico, que quer

    dizer separado. Os fariseus eram, antes da destruio da Palestina

    pelos romanos, um grupo de judeus particularmente zelosos das

    leis judaicas. Com a destruio do reino e do Templo e a disperso

    dos judeus pelo mundo, essnios e saduceus desapareceram.

    O judasmo, desde ento, obedece a diretrizes farisaicas.

  • A partir dos evangelhos, a palavra fariseu adquiriu

    conotaes negativas: Jesus se ope, Constantemente, a eles,

    acusando-os de ritualismo vazio e formalismo religioso.

    Acontece que os fariseus no so coisa to simples assim.

    Por uma ironia da Histria, possvel dizer que Jesus era fariseu.

    Quando Jesus viveu, vivia, na Babilnia, um rabi judeu chamado

    Hilel, fariseu, que interpretava Moiss e a Lei da maneira liberal,

    tal como Jesus fazia. Contra Hilel e a linhagem de seus filhos e

    netos, levantou-se o rabi Shaddai, fariseu exigindo o exato

    cumprimento da Lei, ao p da letra.

    No se pode pensar Jesus fora do quadro da religiosidade

    judaica do incio da era crist.

    Nem se pode deixar passar o dado de que os fariseus, no

    evangelho, sempre abordam Jesus chamando-o de Rabi, o ttulo

    devido ao mestre.

    Jesus, porm, duro com eles.

    Em sua ira de poeta/profeta, lana-lhes na cara:

    Ai de vocs, escribas

    e fariseus hipcritas!

    sepulcros pintados,

    lindos por fora,

    por dentro,

    cheios de ossos de mortos

    e podrido!

    Evidentemente se referia aos fariseus que conhecia, que

    encontrava nos lugares que frequentava, os fariseus da sua

    circunstncia imediata.

    No fundo, Jesus e fariseus queriam a mesma coisa: uma vida

    de pureza ritual e densidade espiritual, conforme a lei de Moiss, a

  • Mitzvah, o mandato.

    Os caminhos propostos que diferiam.

    Jesus parece propor uma interiorizao radical dos gestos

    rituais, em cuja prtica consiste isso que ser judeu de religio.

    Entre Moiss e Jesus, h, pelo menos, um bom milnio.

    Natural que, em mil anos, a religiosidade judaica tenha

    evoludo para exigncias mais sofisticadas e formas mais

    complexas e abstratas de expresso.

    Afinal, quando Moiss formulou a Lei, os hebreus eram um

    povo de bedunos nmades, recm-fugido do cativeiro no Egito,

    onde os faras da XXIII Dinastia os empregavam, como escravos,

    entre dezenas de outros povos, na edificao dos templos e

    palcios que fizeram a glria do pas do Nilo.

    Depois disso, o povo hebreu passou por uma extraordinria

    peripcia histrica, conquistando Cana, constituindo-se em

    Estado, triunfando com o rei Davi, prosperando com seu filho

    Salomo, vivendo, enfim, toda a complexidade poltica e militar

    dos reinos semitas do Oriente Mdio, primeiro, estraalhado entre

    as superpotncias egpcia e assria, depois, invadido por persas,

    gregos macednios e, enfim, romanos.

    Por bem ou por mal, a Palestina e o povo hebreu se viram

    envolvidos pela imensa onda de helenismo que desabou sobre a

    sia com a invaso de Alexandre.

    A doutrina de Jesus representa uma resposta criativa aos

    novos tempos que o povo judeu vivia.

    Assim, no admira que tenha se defrontado, diretamente,

    com a Lei de Moiss:

    Vocs ouviram

    o que foi dito aos antigos:

    no matars.

  • Quem matar,

    seja ru de juzo.

    Eu, porm, contradigo:

    quem se irritar com seu irmo,

    seja ru de juzo.

    Jesus no est negando Moiss. Est, apenas, conduzindo a

    crueza da lei mosaica a extremos de interiorizao e sutileza,

    exigidos por uma poca mais sofisticada, de maior concentrao

    interna do repertrio espiritual e tico prprio do povo hebreu, de

    maior troca de informaes com outros universos culturais de

    grande riqueza sgnica (gregos, romanos). Com exageros utpicos,

    inclusive:

    Vocs ouviram

    o que foi dito aos antigos:

    olho por olho, dente por dente.

    Eu, porm, contradigo:

    no resistam ao mal.

    Se algum bater em vocs

    num lado do rosto,

    ofeream a outra face.

    Numa ocasio, Jesus chegou a paralisar a execuo de um

    ritual mosaico.

    Foi quando fariseus e sacerdotes trouxeram ante sua

    presena uma mulher, surpreendida em flagrante adultrio.

    Conforme a lei mosaica, a adltera deveria ser apedrejada

    pelo povo at a morte.

    No relato, Jesus estava acocorado, escrevendo no p do

    cho.

    o nico lugar do evangelho em que Jesus aparece

  • escrevendo.

    Os evangelhos no reportam o que estaria escrevendo,

    naqueles belos caracteres quadrados com que se escreve o

    hebraico literrio, que Jesus lia nas sinagogas.

    Ou estaria apenas desenhando um navio, um peixe ou um

    rosto?

    Uma lenda da Igreja primitiva quer que estivesse escrevendo

    o nome da adltera. Madalena?

    Os fariseus que, conforme os evangelhos, o tentavam,

    arrastam a adltera, a mulher surpreendida fazendo amor com

    quem no era o legtimo marido.

    Diante de Jesus, os fariseus lanam a perigosa pergunta:

    uma adltera.

    Conforme Moiss,

    deve ser apedrejada.

    O que voc diz?

    Jesus, sem tirar os olhos da escrita que produzia no p do

    cho, fulminou:

    Quem no tiver pecado,

    atire a primeira pedra.

    Homem assim no ia ter vida longa nem morrer na cama.

    Ia ter um fim como Joo, seu guru e batista, que teve a

    cabea cortada por Herodes.

    Isaas, serrado ao meio. Jeremias, exilado no Egito. Joo,

    decapitado. A vida de um nabi no era muito segura.

    No se brinca, impunemente, com os poderes deste mundo.

    Jesus chegou a tocar no sacrossanto repouso do sbado,

  • talvez, com a circunciso, os dois ritos fundamentais do judasmo.

    extraordinariamente minucioso o elenco de proibies,

    interditos e tabus do sbado judaico, o dia em que se repete,

    ritualmente, o descanso de Iav, no stimo dia, depois de criar o

    universo.

    No sbado judeu, as atividades so reduzidas a um mnimo.

    Rabinos extremamente meticulosos, ao longo dos sculos,

    foram legislando os gestos que violam o sbado, indo do trabalho

    alimentao da vida diria sexual, limitando at o nmero de

    passos lcitos, nesse dia de no fazer nada.

    Ora, sucedeu que, num sbado, discpulos de Jesus

    passavam ao lado de um campo de trigo. Estavam com fome,

    agarraram espigas e as comeram.

    Fariseus estavam presentes e, escandalizados, interpelaram

    Jesus:

    Teus discpulos

    violam o sbado.

    proibido

    colher nesse dia.

    Jesus arrasou:

    O sbado foi feito para o homem,

    no o homem para o sbado.

  • CAPTULO 3

    CAPTULO ZERO, VERSCULO UM

    Levanta a rocha e ali me encontrars, racha a madeira e ali estou eu.

    (Fragmento de um evangelho apcrifo de origem egpcia, as Logia de Oxyrhinchus)

    Pode alguma coisa que preste vir de Nazar?

    (Joo, 1,46)

    Nazareth, o lugar onde nasceu o nabi Joshua Bar Yosef, era

    um vilarejo da Galilia, no extremo norte da provncia romana da

    Judia, hoje, Israel.

    Nas ruelas estreitas entre as casas pequenas, crianas

    brincam os eternos jogos da infncia, sem saber que, muitas

    lguas dali, existe uma cidade imensa chamada Roma, onde reina

    o imperador Augusto, poderoso como um deus, que, com trs

    palavras num papiro, pode colocar em movimento a mais eficaz

    mquina de guerra que a antiguidade conheceu: o exrcito

    romano.

    Disso tudo, nada sabem as crianas judias de Nazareth.

    Seus pais so pequenos agricultores, cultivadores de uvas e

    oliveiras, alguns mercadores e muitos artesos, tecelos,

    pedreiros, oleiros, ferreiros, carpinteiros.

    De um carpinteiro chamado Yosef e de sua mulher Maria,

    nasceu Joshua.

  • Seu nome era muito comum entre os judeus, sendo uma

    ligeira alterao do nome de Josu, o sucessor de Moiss e cappo

    das tribos hebrias que invadiram a Palestina depois da morte do

    grande patriarca.

    Entre as crianas de Nazareth, brinca um menino que, um

    dia, vai mudar o mundo como ningum.

    lhoshuha, Joshua, Josu, Jesus: longa viagem vai fazer este

    nome.

    As tradies apostlicas e os relatos evanglicos cercaram

    seu nascimento e primeiros anos de toda sorte de lendas das mil e

    uma noites, de que o Oriente gosta.

    Desde o nascimento de uma virgem at a visita de trs

    Magos ao menino recm-nascido, cada um portando presentes,

    ouro, incenso e mirra.

    As contradies entre uma histria verdadeira e lendas e

    fbulas que se teceram em volta de Joshua aparecem primeira

    vista.

    O evangelho atribudo a Mateus abre com a enumerao da

    genealogia de Joshua, desde o patriarca Abrao.

    Na lista dos antepassados de Joshua, est o rei David, o que

    o faz herdeiro legtimo do trono de Israel.

    Esta genealogia termina na pessoa de Yosef (Jos), pai de

    Jesus.

    Imediatamente aps, Mateus reporta a lenda da concepo

    virginal de Jesus, nascido de Maria, fecundada por fora divina,

    sem concurso de homem.

    Ora, a ser assim, para que a genealogia de seu pai?

    Verses evanglicas tambm o do como nascido em Belm,

    Beth-Lehem, em hebraico, a casa do po, muito ao sul de

    Nazareth.

  • Isso se deve a um fato muito estranho.

    A vida do profeta Jesus foi toda profetizada antes de ser

    vivida.

    Inmeros episdios de sua vida foram, evidentemente,

    moldados sobre a profecia. Mateus especialista nisso. Seu relato

    todo percorrido por construes do tipo: isso se fez, para que se

    realizasse a profecia que diz...

    O nascimento de Jesus em Belm, por exemplo, resultado

    de uma leitura do profeta Miquias, que viveu, pelo menos, seis

    sculos antes dele.

    E tu, Beth-Lehem

    da terra de Jud,

    no s a menor

    entre as principais de Jud:

    de ti, vai sair o chefe,

    que reja Israel, meu povo.

    Beth-Lehem era a cidade natal do rei David, sob cuja direo

    o povo hebreu conheceu um clmax de glria militar.

    Nada mais natural que fazer Jesus nascer na terra do seu

    antepassado, do qual herdava o ttulo de rei: o messianismo judeu

    nasceu e se desenvolveu com os profetas, quando a nao perdeu

    a independncia (sculos VI e V antes de Cristo).

    Na teocracia semita, o lder religioso sempre chefe poltico.

    E vice-versa. Basta ver o caso, hoje, do Ir do Ayatolah Khomeyni.

    Descendente do rei David, Jesus era o lder carismtico do

    povo numa guerra de libertao contra o imperialismo romano.

    Sua condenao final diante do poder de Roma, encarnada

    na pessoa do procnsul Pncio Pilatos, significativa: o povo o

    aclamava, abertamente, como rei.

  • Ao colocar sobre a cruz onde o supliciavam uma placa com a

    inscrio Jesus de Nazareth, Rei dos Judeus, os romanos

    mostravam que no estavam brincando em servio.

    Deixemos de lado as lendas messinicas sobre o nascimento

    em Belm.

    Jesus sempre chamado de nazareno, natural de Nazar.

    E os primeiros cristos eram chamados de galileus.

    A fbula da fuga ao Egito deu margem a muitas outras

    lendas. Est em Mateus.

    Jesus nasce, os magos vm visit-lo, o rei Herodes fica

    sabendo, consulta os sbios para saber onde nasceria o Messias.

    Citando Miquias, os sbios apontam Beth-Lehem: Herodes

    ordena o massacre de todas as crianas com menos de um ano de

    idade.

    Avisado por um anjo, Jos pega a mulher e o filho e foge

    para o Egito, donde s volta depois que o mesmo anjo, pontual

    funcionrio do Senhor, lhe avisa, em sonho, que d para voltar,

    tudo est limpo. Da, Jos volta.

    A fbula inverossmil.

    S ver a distncia a percorrer entre a Galilia e o Egito,

    numa poca quando as estradas da sia viviam infestadas de

    assaltantes e ainda havia grande quantidade de lees, depois

    extintos pela caa contnua e sistemtica.

    No assim, no entanto, que se trata uma fbula: uma

    lenda vale por seus significados simblicos.

    A fuga da famlia de Jesus para o Egito era uma volta s

    origens. Afinal, foi l que o povo hebreu viveu escravo dos faras.

    De l, Moiss o tirou, para a liberdade, a plenitude, a maioridade,

    depois da invaso de Cana (a Palestina), realizada com

    implacveis hecatombes, massacres e aniquilao, ao estilo

  • assrio, de cidades inteiras, como conta o Livro de Josu.

    Enquanto as lendas correm, as crianas continuam a

    brincar nas ruas da aldeia de Nazareth.

    Brincam de esconde-esconde.

    O mais difcil de encontrar Joshua Bar Yosef. Ele sempre

    se esconde nos lugares mais difceis.

    Isso tudo fantasia. Pelos evangelhos, nada sabemos da

    infncia nem da adolescncia de Jesus.

    H inmeros evangelhos apcrifos dos primeiros sculos da

    era crist, chamados Evangelhos da Infncia, tecidos de lendas

    fabulosas sobre um garoto Jesus cheio de poderes e os exercendo

    com arbitrariedade. Num episdio de um desses evangelhos

    apcrifos, um menino pula nas costas de Jesus e morre

    imediatamente, s para Jesus ressuscit-lo, diante do desespero

    dos pais.

    Numa rua de Nazareth, o filho do carpinteiro continua

    brincando.

    Sobre ele, um dia, haver lendas, como a de que nasceu de

    uma virgem, um dos arqutipos religiosos da humanidade,

    encontradio nos mitos do nascimento de Buda, do rei persa Ciro

    ou do deus azteca Quetzalcoatl. Virgem/Me: coincidncia dos

    contrrios.

    Nas ruas de Nazareth, os meninos procuram atrs de cada

    parede, de cada porta, de cada pedra. Ningum encontra Joshua.

    Uma lenda evanglica conta que, um dia, ele desapareceu.

    Sua me o procurou e foi encontr-lo numa sinagoga lendo textos

    sagrados e os explicando aos doutores.

    Nas ruas de Nazareth, ainda nada.

    Pisamos em terreno seguro, provavelmente, quando o

    encontramos apresentando-se, no rio Jordo, para ser batizado

  • por Joo, o Batista.

    Conforme os evangelhos, Jesus est agora com trinta anos,

    na fora da idade.

    Israel tem um novo nabi, como Elias, Eliseu, Isaas, Joo.

    Onde esteve Jesus at ser batizado por Joo?

    Essa elipse, esse hiato, esse vcuo, j produziu bibliotecas

    de hipteses, desvarios teosficos, delrios esotricos, em que

    Jesus teria frequentado, no Egito, escolas de altos saberes.

    Alguns gostam de imagin-lo iogue na ndia.

    Outros imaginam-no monge essnio, egresso do mosteiro

    judeu de Qumran.

    Nas vielas de Nazareth, continuam a procur-lo.

    O menino continua desaparecido.

    Mas, um jovem nabi, de 30 anos, comea a agitar a Galilia,

    repetindo o apelo de seu mestre Joo, que repetia Isaas: o reino

    de Deus vem a. O menino escondido tem trs anos para

    desembocar no destino de todos os profetas de Israel: serrado

    como Isaas, decapitado como Joo, crucificado pelos romanos.

    O jovem nabi nazir.

    Nazir, entre os antigos judeus, era algum devotado a Adonai

    (Deus), desde a infncia, ao que tudo indica, por sua me.

    Essa devoo consistia na privao de vrias coisas: o vinho,

    os prazeres sexuais, a aparncia pessoal.

    Os evangelhos nada nos informam sobre a aparncia fsica

    de Jesus. No sabemos se era alto ou baixo. Gordo ou magro. De

    olhos negros ou castanhos.

    O menino continua escondido.

    As igrejas fizeram dele um retrato hiper-idealizado, lindo

    rosto, quase andrgino, com grandes olhos sonhadores, s vezes,

    absurdamente azuis num semita sefardi: excessos do amor.

  • Tudo o que podemos saber de Jesus, fisicamente, que

    usasse cabelos compridos: os nazir no cortavam o cabelo.

    Talvez usasse roupa branca: era um trao ritual dos

    essnios. E no devia ser pessoa de compleio frgil: basta ver o

    episdio da expulso dos vendilhes do templo, quando fustigou e

    expulsou dezenas de pessoas das escadarias do mais clebre

    santurio de Israel.

    Fora isso, s temos a tradio da Igreja primitiva, que

  • registra que Jesus era feio, talvez o reflexo de uma profecia de

    Isaas, onde o Messias apresentado como pessoa de aspecto

    desprezvel, metfora do estado poltico do povo hebreu, na poca

    da invaso de babilnios e assrios.

    Onde est o menino?

    A brincadeira de esconde-esconde prossegue, nas vielas da

    pequena Nazareth da Galilia.

    Todos j foram encontrados, menos Joshua.

    Uns pensam encontr-lo debaixo duma pedra, como se fosse

    um escorpio.

    Outros imaginam v-lo do lado de uma nuvem, um falco,

    quem sabe.

    Para alguns, ele desaparece como um fantasma, na luz forte

    do meio-dia. Nos evangelhos, seus dados de parentesco so muito

    embrulhados.

    Parece ter sido o mais velho numa famlia numerosa, com

    vrios irmos e irms.

    Ao que tudo indica, no comeo de seu nabinato, sofreu a

    oposio e a negao de seus irmos diretos.

    Seus primeiros discpulos teriam sido seus primos, dentro de

    uma tradio muito semtica de converses em sua prpria casa (a

    primeira pessoa convertida ao Islam por Maom foi sua prpria

    mulher Kadidja).

    Algum acaba de ver Jesus desaparecer por trs de uma

    porta.

    O menino Joshua sabe se esconder muito bem. Em que ano

    mesmo que ele est? Esse menino vai escola? Que tipo de

    escola?

    Nos pequenos vilarejos judeus, o mestre-escola era o hazzan,

    o leitor das sinagogas, aquele que ensinava a ler as belas letras do

  • alfabeto com que se lia a Lei de Moiss, sem o que no se podia

    realizar a mitzvah, o mandato: a cultura judaica uma cultura

    escritural, baseada em textos (para o Islam, os judeus fazem parte

    da categoria privilegiada dos ahl al-Kitab, os povos do livro, as

    minorias cuja f se baseia em textos).

    Em seus melhores anos, Joshua deve ter assimilado o

    repertrio textual bsico de qualquer judeu de sua poca: a Torah,

    a Lei de Moiss, os Profetas, tesouro escriturai de sua tribo.

    Seu processo de aprendizagem da escrita hebraica deve ter

    sido o do Oriente Mdio, ainda usado entre os rabes.

    Um processo sinttico, no qual o professor faz os alunos

    memorizarem uma frase, oralmente, aps o que distribui a frase

    escrita correspondente fazendo os alunos repetirem, olhando para

    a frase escrita, at que a leitura comea a fluir.

    Um processo pedaggico que comea ao contrrio do

    ocidental, onde o aluno aprende primeiro o ABC, o cdigo em

    estado puro, para depois aprender a combin-lo em palavras e

    oraes.

    O processo oriental vai da frase para o alfabeto, o nosso vai

    da letra para a frase.

    Como qualquer garoto judeu da Galilia, Joshua ia dos

    conjuntos para os elementos. Das totalidades para as partes. Do

    geral para o particular.

    Mas onde que esse menino se meteu?

    Na sinagoga de Nazareth, com o hazzan, Jesus ouviu/leu o

    tesouro textual de sua comunidade: Torah, Profetas, Salmos,

    Livros Sapienciais.

    Sua leitura, estudo, compreenso e prtica constituem a

    mitzvah, a via judaica. Dela, Joshua vai ter um entendimento

    profundo, radical, intransigente. Parecia reinar nas antigas

  • sinagogas da Galilia uma grande liberdade de expresso, sem

    restries de hierarquia eclesistica.

    Pelos evangelhos, l vai que era possvel algum na

    assemblia, possudo pelo Esprito (nefesh Adonai) sentar no lugar

    principal, ler os textos sagrados e interpret-los para os

    circunstantes. O povo de Israel era uma espcie de povo de

    sacerdotes, onde as distines entre leigos e eclesisticos eram

    mnimas.

    Da, aquilo de Mateus, no captulo 13:

    E chegando em sua terra

    os ensinava nas sinagogas,

    at que se espantaram e disseram:

    Donde lhe vm estes saberes e poderes?

    Esse no o filho do operrio?

  • Os meninos continuam a procur-lo nas esquinas e becos de

    Nazareth.

    Andr quase o viu. Bartolomeu pensa conhecer seus

    truques, quando se esconde. Tiago desconfia que ele esteja atrs

    daquela rvore.

    Pedro Cefas lana as redes. Mateus d um desconto. Cada

    um dos futuros doze discpulos diretos lana suas sortes.

    Como sempre, Joshua desapareceu.

    Nada mais emocionante que brincar de esconde-esconde

    com o filho do carpinteiro.

    Aps. Apstolos. Apostas.

    Discpulo de Joo, Joshua ter discpulos, portadores da sua

    doutrina e de seus poderes milagrosos, dar luz ao cegos, curar

    doenas, expulsar demnios. Assim, Eliseu herdou o manto e a

    fora taumatrgica de mestre Elias.

    Os discpulos diretos de Jesus foram conquistados entre a

    gente simples da Galilia, pescadores e artesos de forte f e tardo

    entendimento. Simples, Joshua amar os simples:

    Naquela hora,

    chegaram os discpulos

    dizendo:

    Quem o maior no reino dos cus?

    E chamando um menino

    Jesus o colocou de p

    no meio deles e disse:

    Assim digo a vocs,

    se vocs no mudarem

    e ficarem parecidos com crianas

    como esta,

    vocs no vo entrar no reino dos cus.

  • Cad Joshua?

    Entre os simples, depois, o acharo.

    Uma pergunta, nunca feita, pode, agora, ser perguntada.

    De que vivia Jesus durante os trs anos de sua pregao e

    docncia?

    Que fosse carpinteiro como seu pai Yosef, pouca dvida, os

    ofcios, no Oriente, passando de pai para filho, ao longo dos

    sculos.

    Curioso, porm, que nenhuma parbola sua tenha como

    tema a arte da carpintaria. Suas metforas e aplogos so todos

    extrados da vida agrcola. Ou piscatria.

    Para um poeta como ele, talvez, seu ofcio do dia-a-dia no

    oferecesse estmulo bastante para a poesia.

    Talvez, luz de uma esttica da recepo, adequasse seu

    discurso ao universo dos pequenos lavradores e pescadores dentre

    os quais arrebanhou seus primeiros seguidores.

    De qualquer forma, nessa frtil e verde Galilia de seu

    tempo, no devia haver muita distncia entre as atividades

    artesanais e agrcolas.

    O fato que, em nenhum momento, os evangelhos o

    mostram trabalhando.

    A no ser aquele trabalho superior, que o exerccio da vida

    do esprito.

    Em nenhum momento, Jesus planta, colhe, cozinha, serra,

    tece ou pesca.

    Tudo que faz pregar.

    Seu pai Josef tambm pregava pregos na madeira, coisa que

    Jesus devia saber fazer bem.

    S que a pregao de Jesus feita de outros pregos. Pregos

  • conceituais. Pregos-signos. Os pregos que um dia pregariam a ele,

    carpinteiro, numa cruz de madeira.

    Afinal, onde est Joshua?

    Em seus anos de pregao, Jesus viveu, de aldeia em aldeia,

    de casa em casa, sustentado por amigos, mulheres, discpulos,

    admiradores ou at por estranhos, nesse Oriente onde o hspede

    um rei na tenda do seu anfitrio.

    Onde, diabo, esse menino se meteu?

    Pelos evangelhos, Jesus fez, basicamente, duas coisas:

    curou doenas e pronunciou sentenas. Fez o bem para o corpo. E

    para a alma.

    Sua virtude taumatrgicas significa sua fora doutrinria:

    saber, poder.

    Ah, Joshua, deste vez, eu te pego!

    Muitos amigos teve Jesus. Dentre os mais caros, Lzaro,

    com suas duas irms, Marta e Maria, amigas do doce rabi da

    Galilia.

    Jesus parece ter sido muito livre na escolha de suas

    companhias. Os evangelhos esto cheios das queixas dos fariseus

    pelo fato de Jesus frequentar pecadores, estrangeiros, publicanos

    (coletores de impostos para Roma), meretrizes e at gente pior.

    Jesus se saa com coisas do tipo:

    No vim para salvar os justos.

    Justos no precisam de salvao.

    Quem sabe ter sido meio chegado ao vinho. O que estranha.

    A abstinncia de vinho era regra essnia. E uma das proibies de

    quem fosse nazir.

    Um dos milagres mais conhecidos de Jesus a

    transformao de gua em vinho num casamento, em Can.

  • E, na ltima ceia, quando codifica um rito para seus

    discpulos, identifica o fruto da vinha com seu prprio sangue

    (embora, aqui, o relato parea ter sido moldado sobre o rito, um

    rito comemorativo da Igreja primitiva, embrio da missa).

    ta garoto bom de se esconder!

    Quando se aproximava a Pscoa judaica, Jesus teve vontade

    de ir celebr-la na capital, em Jerusalm, a cidade de Davi.

    O Pesach, a Pscoa judaica, a celebrao da passagem do

    Mar Vermelho, da sada do povo hebreu do cativeiro do Egito para

    a liberdade, metfora mxima para a libertao do esprito.

    Para comemor-la, comia-se um cordeiro assado, em

    companhia de amigos. Mal sabia Jesus que, nesta Pscoa, o

    cordeiro a ser comido seria ele mesmo.

    Aquela sombra, no seria Joshua?

    L vai o cordeiro entre os lobos, o provinciano rabi da

    Galilia, entra na Grande Cidade.

    Na poca da Pscoa, Jerusalm regurgitava de gente vinda

    de todas as partes, judeus de todos os lugares para celebrar a

    Pscoa sombra do Templo, objeto de uma venerao geral,

    santurio mximo de Israel.

    Jesus tem um trocadilho no qual confunde seu corpo com o

    Templo, quando diz, diante da imponente arquitetura, que a

    destruir e a reconstruir em trs dias. Falava de sua prpria

    morte e ressurreio, comenta o evangelista.

    Em Jerusalm, Jesus sabe que est mais em perigo do que

    nunca. A, imperam os fariseus, saduceus, levitas, escribas,

    sacerdotes, toda a alta hierarquia do judasmo oficial,

    mancomunada com o poder romano, guardado por legies

    imbatveis, sob o comando de uma autoridade nomeada

    diretamente pelo Imperador.

  • Os donos da religio no gostam de seus comentrios lei

    de Moiss. Os romanos, donos da situao, no gostam de judeus

    se reunindo em torno de lderes, ligados por idias orientais que

    eles no entendem. Uns, sentem cheiro de heresia. Outros vem

    subverso da ordem. Jesus entra em Jerusalm.

    A cidade ferveu daquela vida frentica de uma metrpole das

    mil e uma noites.

    Mil mercadores ambulantes apregoam seus produtos,

    compra-se, vende-se. Ouve-se, pelas esquinas, dezenas de lnguas

    e dialetos, aramaico, grego, latim, rabe, siraco ou essas misturas

    que o comrcio sempre improvisa.

    As autoridades j tinham sido alertadas sobre sua presena

    na cidade, onde ele entra cercado de seus discpulos e

    simpatizantes.

    Jesus caiu na armadilha.

    preciso distingui-lo, porm, nessa multido que vai e vem,

    onde passam profetas, nabis, pequenos mestres e seus squitos.

    Os donos da religio logram contato com um dos discpulos

    do galileu, Judas Iscariotes, que, por dinheiro, concorda em

    denunci-lo.

    Denunciado por Judas, Jesus preso pelas autoridades.

    Depois de ter sido submetido a mil sevcias e ultrajes,

    condenado pela autoridade romana ao suplcio, tipicamente

    romano, da cruz.

    Como duro de achar esse Joshua!

  • CAPTULO 4

    A ESCRITURA CRSTICA

    Nada est oculto, que no venha a ser revelado, nem to secreto que no venha a se saber.

    O que digo a vocs nas trevas, digam

    na luz, e o que vocs ouvem, ao p do ouvido, proclamem sobre os telhados.

    (Mateus, 10, 27)

    Como se percebe, o ttulo deste captulo totalmente

    inadequado. Primeiro, porque Jesus no deixou nada escrito.

    Tudo o que se sabe de seus feitos e ditos foi transmitido pela

    tradio oral, enfim registrada em evangelhos.

    Depois, porque o nome Cristo grego: com certeza, Jesus,

    falante do aramaico, jamais ouviu essa palavra, que , apenas, a

    traduo do vocbulo hebraico meshiah, o ungido, o consagrado

    com leo, como Davi foi ungido rei pelo profeta Samuel.

    J no nome pelo qual mais conhecido indicam-se as duas

    direes de sua doutrina.

    Seu nome mesmo, Jesus, judeu. E isso o reporta s suas

    origens, f tradicional do povo em que nasceu.

    A palavra grega Cristo transporta a mensagem de Jesus at

    um mundo muito mais amplo, o universo das cidades

    helensticas, entre as quais pode-se incluir, comodamente, Roma,

    a cidade senhora do mundo ocidental civilizado por volta do ano I

    da era crist, esse mundo que girava em volta do Mediterrneo.

  • Jesus (o cristianismo) a traduo de uma palavra aramaica para

    o grego.

    No meio-dia do poder romano, entre as cidades gregas da

    bacia do Mediterrneo, o aramaico era algo assim como o guarani

    do Paraguai, o qutchua e o aymar dos Andes ou o basco na

    Europa, em nossos dias um calo qualquer, falado por povos sem

    importncia.

    No pra a o mistrio.

    Jesus no falava claro. Nabi, profeta, falava por parbolas.

    Vale a pena saber que parbola, em grego, quer dizer desvio do

    caminho. O essencial das mensagens de Jesus est longe de ser

    transmitido por cadeias de raciocnios. Mas atravs de estrias

    paralelas, as parbolas, unidades poticas e ficcionais, capazes

    de irradiar significados espirituais e prticos, abertas exegese,

    explicao, liberdade. Jesus, Joshua Bar-Yosef, pensa concreto.

    Da, a durao do seu pensar, constitudo pela infinitude de

    interpretaes de suas elementaridades doutrinrias.

    Admire-se, por exemplo, a formosura da parbola do

    semeador, a primeira relatada por Mateus.

    Naquele dia, saindo Jesus de casa, sentou-se a beira do

    mar. E juntou-se em volta dele uma multido de gente, de forma

    que Jesus teve que subir numa barca e sentar-se nela.

    A multido estava de p na praia.

    A ela, falou-lhes muitas coisas por parbolas, dizendo:

    O semeador saiu a semear.

    Parte da semente

    caiu ao longo do caminho,

    vieram as aves do cu

    e comeram-na.

    Parte caiu na pedra,

  • no tinha terra,

    nasceu, veio sol e secou.

    Parte caiu entre os espinhos,

    os espinhos a sufocaram.

    Parte, enfim, caiu em terra boa

    e deu frutos,

    cem por um, outros sessenta por trinta.

    Quem tem ouvidos para ouvir, oua.

    No se sabe o que admirar mais aqui.

    Mas merece destaque o contraste entre um Jesus falando, de

    uma barca no mar, sobre algum que semeia na terra.

    Na circunstncia desta parbola, um mistrio nos hipnotiza.

    Concretamente, nela, Jesus flutua sobre as guas, falando

    da terra.

    gua. Terra. Pescar. Semear. Jesus fala por

    elementaridades: numa palavra, fala coisas.

    Na parbola do semeador, Jesus fala, na realidade, dos

    efeitos e conseqncias da pregao de sua palavra.

    A semente, a, metfora e imagem da palavra.

    O mais estranho vem a seguir: e chegando-se a ele, os

    discpulos disseram: por que lhes fala em parbolas?

    A vocs, concedido

    conhecer os mistrios do reino dos cus,

    a eles, no.

    Pois a quem tem, vai ser dado,

    e abundar.

    De quem no tem,

    at o que tem

    vai ser tirado.

    Por isso, falo a eles por parbolas.

    Para que, vendo, no vejam.

  • E, ouvindo, no ouam

    nem compreendam.

    Assim se cumpra neles a profecia de Isaas:

    ouvindo de ouvir, no vo entender,

    e, videntes, vendo, no vo ver.

    A parbola um gnero oriental, encontradio entre todos os

    povos da sia, a revelao de verdades abstratas atravs da

    materialidade de uma anedota, uma unidade ficcional mnima.

    Aquilo que Joyce chamava de epifania.

    Uma epifania uma manifestao espiritual e,

    especialmente, a manifestao original de Cristo aos Reis Magos.

    Joyce acreditava que esses momentos chegam para todos, se

    somos capazes de compreend-los. s vezes, nas circunstncias

    mais complexas, levanta-se repentinamente o vu, revela-se o

    mistrio que pesa sobre ns e manifesta-se o segredo ltimo das

    coisas (Harry Levin, James Joyce).

    As parbolas de Jesus so epifanias (em grego, sobre-

    aparies), ns de histrias donde se desprende um princpio

    geral.

    Assim fez Confcio. Assim fez o autor do Gnesis. Assim

    fizeram os cnicos gregos. Assim fizeram os rabinos. Assim fizeram

    os gurus da ndia. Assim fizeram os sufis do Islam.

    Esse procedimento de revelar ocultando tem um sabor,

    indisfaravelmente, zen.

    Por isso, Jesus diz:

    Graas te dou meu Pai,

    senhor do cu e da terra,

    porque escondeste estas coisas

    aos sbios e doutores

    e as revelastes aos pequenos.

  • Intriga, em Jesus, ao lado de um processo de re-velao, um

    de velao.

    De ocultamento da doutrina. De despistamento.

    As parbolas de Jesus so cones. E, na famlia dos signos,

    cones so signos produtores de informao, signos emissores.

    H dois mil anos, extrai-se significado das parbolas

    atribudas a Jesus pelos evangelhos. Nem outra coisa que

    estamos tentando fazer aqui.

    Quem tiver ouvidos de ouvir, oua. A linguagem de Jesus

    cifrada.

    a linguagem de um nabi, um profeta, como tantos que o

    povo de Israel produziu, a linguagem de um poeta, que nunca

    chama as coisas pelos prprios nomes, mas produz um discurso

    paralelo, um anlogo, que os gregos chamavam parbola, desvio

    do caminho.

    Essa linguagem paralela rima com o anncio de um

    eminente (e paralelo) reino de Deus, freqente entre os profetas

    da Bblia: a profecia de Abdias, talvez o mais antigo profeta cujo

    texto chegou at ns, termina falando no meluchah Adonai, em

    hebraico, o reino de Deus, tema central do discurso de Jesus, a

    escritura crstica.

    Nisso, Jesus estava sendo, talvez, fiel a uma tradio

    hebraica.

    Olhando bem, os judeus substituram a idolatria das

    imagens e simulacros pela idolatria a um texto: a Torah, os cinco

    primeiros livros da Bblia, atribudos a Moiss. A anlise

    lingstica no confirma: os cinco primeiros textos do Antigo

    Testamento, para os especialistas, parecem ter tido sua redao

    final por volta do sculo VII antes de Cristo (Moiss deve ter vivido

  • em torno do ano 1200 a.C). Nada obsta, porm, que um material

    mais antigo tenha sido manipulado por mos posteriores:

    movemo-nos num territrio muito judaico, em que textos remetem

    a textos e mensagens servem de contexto a outras mensagens.

    Isso, no entanto, de Jesus recorrer ao enigma nunca deixa

    de evocar a cabala, um dos trs pilares sobre os quais repousa a

    sabedoria de Israel.

    Os outros so a Torah e o Talmud (e a Mishna).

    Aquilo que catlicos e protestantes chamam de Antigo

    Testamento, para os judeus o Tanach, sigla que designa (T) a

    Torah, (N) Naviim, os profetas, e (Ch) Chetuvim, os escritos, os

    livros histricos, sapienciais e lricos.

    No Tanach, a Torah desfruta de um status especialssimo:

    so os livros de Moiss, Gnesis, xodo, Levtico, Nmeros e

    Deuteronmio, na traduo grega, o fundamento da f judaica, a

    essncia da crena.

    O Talmud (e a Mishna) congregam as doutrinas de rabinos

    posteriores, que regulam a mitzvah, o modo de viver que faz um

    judeu.

    At a mincia, o Talmud legisla sobre vida e morte, sobre o

    dia-a-dia, at a guarda do sbado. Obra de geraes de rabinos,

    h dois Talmuds, que regem o judasmo, at nossos dias. Torah.

    Talmud. Cabala.

    Sobre a cabala, mais difcil falar.

    A palavra vem de um radical que quer dizer transmitir:

    cabala quer dizer a transmitida.

    a tradio oral de Israel, aquela que no foi escrita, porque

    no pode ser escrita.

    A tradio cabalstica parece ter passado de boca a boca, de

    gerao em gerao, de rabino a rabino, de gueto a gueto.

  • Essencialmente, parece consistir na leitura dos textos da

    Torah, a partir de processos combinatrios codificados.

    Evidente que a prtica da cabala s acessvel a quem

    dominar a lngua hebraica.

    Um dos processos cabalsticos mais simples o da leitura

    invertida. O alfabeto hebraico, derivado, como o grego, da escrita

    fencia, tem uma ordem, que reflete, em linhas gerais, a ordem do

    nosso A-B-C. Imaginemos, agora, cabalisticamente, que a srie

    das letras do ABC correspondesse a letras do A-B-C invertido.

    Assim:

    A B C D E F G H I J L M N O P Q R S T U V X Z

    Z X V U T S R Q P O N M L J I H G F E D C B A

    Neste cdigo, A se escreve Z. C V. F vira S. E assim por

    diante. Este, o cdigo mais elementar.

    A cabala, porm, prev codificaes mais complexas. Com

    alternncias dois a dois. Trs a trs. E, a, at o infinito.

    Fazendo estas trocas conforme os esquemas cabalsticos, os

    rabinos descobriam sub-sentidos e significados ocultos, no texto

    sagrado: lendo de trs para diante, alterando a ordem das letras,

    permutando, des-lendo.

    Evidentemente, o exerccio da cabala s possvel numa

    lngua semita, onde todas as palavras tm um radical triltero,

    constitudo, basicamente, de trs consoantes, que do o sentido

    geral da raiz.

    A cabala, basicamente, um jogo com estas trs letras de

    cada radical. Digamos o radical semita para matar, em rabe e

    hebraico: QaTaL. Lido ao contrrio, LaTaQ, proteger.

    O rabino cabalista, ao ler uma frase na Torah com a palavra

  • Qatal a lia ao inverso, lendo sentidos ao contrrio.

    Assim, o texto dos livros sagrados diz muitas coisas ao

    mesmo tempo. A crptica escritura crstica parece apontar para esta

    tradio cabalstico-esotrica, onde a verdade apangio de

    poucos.

    E apareceram os fariseus, que comearam a disputar com

    ele, pedindo-lhe, para o tentar, um signo do cu.

    Jesus tirou um suspiro do corao e disse:

    Por que esta gerao

    pede um signo?

    Em verdade vos digo,

    a esta gerao

    no ser dado signo.

    A declarao tanto mais estranha quanto, nos evangelhos,

    Jesus vive fazendo milagres, signa, prodgios, que demonstram

    sua fora sobrenatural. So, na maior parte, milagres mdicos ou

    econmicos: cura de doenas (cegueira, surdez, paralisia) ou

    multiplicao de alimentos (po, peixe, vinho), o que bem situa

    Jesus em seu universo de gente mida, sempre s voltas com a

    penria ou a molstia.

    De qualquer forma, os signos foram dados.

    E, quase dois mil anos depois, esto longe de parar de rolar.

    De desistir de sua capacidade de serem interpretados. Chegando

    a Betsaida, trouxeram-lhe um cego e suplicavam-lhe que o

    tocasse. E, tomando o cego pela mo, conduziu-o fora da aldeia e,

    pondo-lhe saliva sobre os olhos e impondo-lhe as mos sobre a

    cabea, perguntou-lhe se enxergava alguma coisa. O cego,

    levantando os olhos, disse: vejo as pessoas andando como rvores.

    Depois, Jesus imps-lhe, novamente, as mos e ficou

  • completamente bom, vendo claramente todas as coisas. E Jesus

    mandou-o para casa, dizendo:

    Vai para tua casa,

    e se entrares na aldeia,

    no digas nada a ningum

    Esse cuidado com o sigilo acompanha a pregao e a

    trajetria do Filho do Homem.

    Esse exclusivismo fariseu e essnio transparece no episdio

    da mulher fencia, no judia, que o procura, para ouvir dele:

    O po foi feito

    para dar aos filhos,

    no aos ces.

    H traos de ferocidade na escritura crstica, o jeito de Jesus

    fazer as coisas, bastante discrepantes das adocicadas verses das

    Igrejas que dele saram e o administraram.

    Quem disse no vim trazer a paz, vim trazer a espada, no

    estava brincando em sua brabeza beduna.

    A saudao semita, hebraica e rabe, paz: shalom, salm.

    Perfeitamente possvel imaginar que Jesus tenha afirmado a

    espada, diante do shalom de um amigo ou discpulo.

    Este que diz que veio trazer a espada o mesmo celerado

    que devastou as mesas e balces dos vendilhes do templo, os

    pequenos mercadores e camels que vendiam na entrada do

    templo de Jerusalm. E o mesmo que disse, falando de Joo, o

    Batista: desde os dias de Joo Batista at agora, o reino de Deus

    adquire-se fora, e s os violentos o conquistam.

    Essa violncia de Jesus, camuflada, escamoteada e

  • maquilada pelas Igrejas, traduz-se na linguagem do filho de Jos.

    De acordo com os evangelhos, Jesus adorava jogos de

    palavras.

    Inmeros momentos de sua vida e militncia so marcados

    por trocadilhos.

    Ao convidar os pescadores do mar da Galilia a segui-lo,

    disse: farei de vocs pescadores de homens.

    E ao escolher seu sucessor, Simon Bar-Jona, deu-lhe o

    nome de Quefas = pedra, em aramaico, Pedro, tu s pedra, e,

    sobre essa pedra, edificars a minha igreja, paronomstico veio

    que, no sculo XX, foi radicalizado, no Finnegans Wake, pelo

    irlands e catlico James Joyce.

    A escritura crstica est muito presente, nessa prosa mxima

    da modernidade, gigantesca e monstruosa parbola que conta a

    histria da queda de um pedreiro irlands (the pftjschute of

    Finnegan) e sua subseqente ressurreio no velrio, quando

    gotas de usque dos convivas tocam seus lbios.

    Oh, it will be lots of fun at Finnegans Wake, vai ser uma

    farra quando Finnegam despertar, diz a cano do Eire.

    Para Joyce, a queda de Finnegan do alto do muro emblema

    da queda de toda a humanidade, depois do pecado de Ado,

    legenda fundamental da mitologia judaico-crist.

    Para Joyce, essa queda, porm, uma felix culpa, no dizer de

    Agostinho, uma culpa feliz: por causa dela, Deus se encarnou e o

    princpio de inteligncia que rege o universo confundiu-se com

    essa modalidade de macaco que chamamos homem. A Encarnao

    o mistrio supremo da cristandade, a humanizao de Deus

    e/ou a deificao do homem.

    Quando Marx falou em ...o homem ser deus do homem,

    estava ecoando o tema crstico por excelncia.

  • No pode haver trocadilho maior do que entre Deus e

    homem: por isso, o trocadilho o recurso fundamental no

    Finnegans Wake, a ressurreio do homem comum.

    Nem passa despercebida a relao entre Finnegan, o

    pedreiro, e Pedro, a pedra sobre a qual Jesus, em elegantssima

    paronomsia, edificou sua eclsia.

    O Wake todo percorrido pela presena de Patrick, So

    Patrcio, o apstolo da Irlanda, o missionrio beneditino que

    converteu os irlandeses ao cristianismo no sculo VII, dos quais

    foi o primeiro bispo.

    O olho/ouvido trocadilhesco de Joyce percebe a similaridade

    dos nomes de Pedro/Patrick, brincando com ela, a partir da forma

    inicial thuartpeatrick, you are Peter/Patrick, tu s Pedro e

    sobre essa pedra..., na abertura do Wake.

    Essa crptica escritura crstica traduziu-se, no cristianismo

    primitivo, pelo modo como os primeiros cristos, perseguidos, se

    identificavam e esotericamente, se comunicavam: atravs do

    desenho de um peixe, querendo dizer, em grego, ikhtys = peixe.

    Talvez, haja a a aluso condio de pescadores dos

    primeiros apstolos, discpulos diretos de Jesus.

    Na realidade, trata-se de um signo muito complexo, um

    logogrifo, acrstico, no qual as letras da palavra grega para peixe

    significam I (Isus, Jesus), Kh (Khrists, Cristo), T (Theou,

    de Deus), Y (Yis, filho) e S (Ster, Salvador).

    O desenho de um peixe, assim, para um cristo dos

    primeiros tempos, das cidades gregas que bordavam o

    Mediterrneo, significava e dizia Jesus Cristo, Filho de Deus,

    Salvador.

    No universo das charadas, esse peixe-Cristo um rbus,

    um hieroglifo, um polissigno crptico, que quer dizer (e diz) muitas

  • coisas ao mesmo tempo.

    Na ambigidade pisciana das palavras, Jesus se movia como

    um peixe na gua.

    Nem impertinente lembrar que, na tradio astrolgica,

    Jesus do signo de Peixes, embora seu nascimento lendrio em

    25 de dezembro faa dele um filho do signo de Capricrnio.

    A multiplicao dos peixes, um dos milagres mais clebres

    de Jesus, , no fundo, a multiplicao infinita dos significados.

    A melhor parte da mensagem de Jesus transmitida atravs

    de parbolas e trocadilhos, recursos de arte que s um poeta,

    como um profeta de Israel, podia produzir.

    minha crena que Jesus concentrou toda a sua doutrina

    em parbolas, tudo o mais, axiomas, teorias, conceitos sendo

    interpolaes e comentrios posteriores.

    Dito isto, no tenho muita certeza: obscura, por natureza, a

    escritura crstica, o discurso de Jesus, melhor dizendo.

    A quem vou comparar esta gerao? Ela parece as crianas

    sentadas nas praas, que dizem aos seus camaradas:

    Cantamos pra vocs,

    vocs no danaram.

    Choramos, choramos,

    vocs no choraram.

    Evidente que, a, Jesus reproduz a cantilena de uma

    brincadeira infantil da Galilia.

    Ningum nunca soube direito o que Jesus queria dizer.

  • CAPTULO 5

    QUANTO CUSTA JESUS

    Por acaso, no se compram dois pssaros por um centavo? e nenhum deles cai sobre a terra sem vosso pai.

    Os cabelos da vossa cabea esto todos numerados.

    No temas, portanto, melhores que muitos pssaros.

    (Mateus, 10, 29)

    A moeda uma das maiores conquistas abstratas da

    humanidade.

    Surgido na Ldia, por volta do sculo VII a.C., o dinheiro j

    aparece ligado escravido.

    Escravido, dinheiro, alfabeto a trindade que define as

    sociedades da bacia do Mediterrneo, em seu boom comercial que

    vai culminar nesse imenso Mercado Comum que foi o Imprio

    Romano.

    Quando Jesus viveu, a economia de todo o mundo

    mediterrneo j era monetria.

    Nas mos de egpcios, gregos, gauleses, ibricos, judeus,

    circulavam sestrcios e asses, cunhados por Roma, pequenos

    crculos de metal trazendo o perfil e o nome do Imperador,

    onipresena de Roma.

    No mundo em que Jesus vivia, o dinheiro era a evidncia da

    presena do dominador: o povo de Israel estava nas mos do

  • goiim, os pagos, idlatras, politestas, que no reconhecem o

    poder de Jeov, que no sabem que s h um Deus e que esse

    Deus escolheu um povo para crer nele e s nele.

    Na Judia, a mais nfima moeda era um ndice da

    humilhao nacional.

    possvel fazer uma leitura monetria de Jesus.

    Inmeros episdios da sua saga esto marcados pela

    presena do dinheiro. Isso , e, particularmente, sonante em

    Mateus.

    No admira.

    Vejam s como Jesus conquista este apstolo:

    Quando Jesus passou por ali,

    viu um homem sentado no telnio,

    por nome Mateus.

    E disse: me siga.

    E levantando

    o seguiu.

    O telnio era um pequeno balco onde os publicanos

    recebiam os impostos de Roma. Mateus era um publicano, tipo de

    gente odiada pelos judeus zelosos. Afinal, os publicanos so

    agentes da dominao romana.

    Os publicanos, evidentemente, se entregam a operaes

    financeiras, emprestando dinheiro, cobrando juros, vivendo enfim

    dessa suprema abstrao do trabalho, que a moeda.

    Todo o pensamento abstrato dos gregos no passa de uma

    traduo conceptual de operaes monetrias: lgica e juro,

    metafsica e porcentagem, filosofia e crdito so, no fundo, o

    mesmo fenmeno. Na poca de Jesus, porm, os judeus no eram

    um povo de comerciantes nem de financistas.

  • Em toda a bacia do Mediterrneo, onde eram milhes,

    disseminados entre todos os povos, os judeus eram clebres como

    artesos, carpinteiros, pedreiros, teceles, ourives, ferreiros. Nesse

    mundo de coisas, o dinheiro, trans-coisa, poder em estado puro,

    s pode ser um objeto do diabo.

    Alis, est na hora de falar do diabo.

    O judasmo primitivo desconhece demnios. Nada mais

    estranho ao puro monotesmo do que imaginar, ao lado do ser

    supremo, um opositor, de poderes quase iguais aos dele.

    Parece que aos judeus o demnio lhes veio da Prsia.

    A Prsia dualista de Zoroastro e do maniquesmo: o Princpio

    do Bem versus o Princpio do Mal.

    Mas o demnio soube se insinuar junto ao trono de Jeov.

    L est ele, no livro de J, tentando o justo. Jesus e seus

    contemporneos acreditavam no diabo, o inimigo, o Outro, o anti-

    Deus, em hebraico, satan.

    Este demnio, para Jesus, pode se chamar Mammon. A

    palavra aparece neste contexto curioso:

    Ningum pode servir

    a dois senhores.

    Pois vai odiar a um

    e amar o outro.

    Ou vai apoiar um

    e desprezar o outro.

    No se pode servir a Deus

    e a Mammon.

    Mammon uma palavra aramaica que significa aquilo em

    que se confia, isto , crdito, e por extenso riquezas, bens,

    dinheiro acumulado.

    Publicano de profisso, Mateus registra inmeros episdios

  • da vida de Jesus ligados ao dinheiro.

    At o carter subversivo da misso de Jesus aparece ligado

    moeda.

    Os evangelhos narram a tentativa de armadilha em que seus

    inimigos o quiseram encurralar.

    Fariseus e saduceus se aproximaram dele, apresentaram-lhe

    uma moeda com que se pagava o tributo a Roma. E lhe fizeram

    uma pergunta poltica:

    A lei de Roma manda

    que se pague este tributo a Csar.

    O que que voc diz disto?

    Jesus, que tinha sempre um humor muito pronto, pegou a

    moeda e perguntou:

    De quem esta efgie

    gravada na moeda?

    De Csar, disseram.

    A Csar o que de Csar,

    a Deus o que de Deus.

    Na resposta, Jesus contrapunha sua utopia mstico-poltica

    do Reino de Deus, a mlechah Adonai, estpida realidade do

    imprio romano, criando-lhe um concorrente.

    O tema monetrio aparece ainda em parbolas importantes,

    como a da dracma perdida. Ou na fbula do bolo encontrado na

    boca do peixe.

    A comunidade, a fratria, dos seguidores de Jesus parece ter

  • tido um esboo mnimo de organizao financeira.

    Entre os doze principais que o seguiam, a administrao do

    dinheiro comum (trao essnio?) estava a cargo de Judas

    Iscariotes.

    Pois foi Judas, o homem do dinheiro, quem traiu Jesus,

    apontando-o s autoridades.

    Por exatamente trinta dinheiros. Trinta belas moedas de

    prata, com a imagem do Imperador de Roma.

  • CAPTULO 6

    JESUS MACHO E FMEA

    E soprou o Senhor Adonai um sono sobre Ado: quando

    dormiu, tirou uma de suas costelas e encheu o lugar com carne. E

    da costela que tirou de Ado o Senhor Adonai edificou a mulher.

    Neste mito do Gnesis, o fundamento metafsico do rigoroso

    patriarcalismo semita (hebreus e rabes).

    Notvel na estrutura do mito da origem de Eva que ele

    constitui uma inverso da realidade: biologicamente, o homem

    que sai da mulher, no a mulher do homem.

    Curiosamente, o Gnesis, ainda por cima, referenda o mito

    com uma pseudo-etimologia, um argumento filolgico, fundando o

    mito no prprio tecido morfolgico da linguagem.

    E ela se chamou mulher porque do homem foi extrada.

    Em hebraico, homem isch, mulher, ischah: nenhuma

    dvida, ischah uma forma derivada de isch...

    O patriarcalismo falocrtico, prprio dos pastores nmades,

    que eram todos os semitas em sua origem, encontrou sua

    traduo mais literal na poligamia, regime no qual a mulher

    desaparece enquanto pessoa, reduzida a uma frao de um

    harm. Os antigos hebreus e o judasmo posterior so

    fundamentalmente patriarcalistas, bem como o cristianismo e o

    Islam, derivados diretos da f de Moiss.

    Nesses trs credos (no fundo, um s), a mulher no tem

    acesso s funes sacerdotais: os intermedirios entre o sacro e a

  • humanidade so rabinos, padres, ulems.

    Isso vem de muito longe.

    No livro do Gnesis, os primeiros grandes patriarcas hebreus

    (Abro, Isaac, Jac) tm muitas mulheres, como cabe a um

    prspero sheik do deserto.

    Como distinguir o esplendor do reino de Salomo, sem

    lembrar das setecentas mulheres do seu harm, entre as quais

    brilhava, inclusive, uma filha do fara do Egito?

    Nesse universo patriarcal, falocrtico, poligmico, a mulher

    s pode ter uma existncia, uma condio ontolgica rarefeita,

    essencialmente subalterna, secundria, menor, algo entre os

    camelos e rebanhos e os humanos plenos, que so os machos.

    Da, os rigores da lei mosaica contra o homossexualismo e a

    sodomia, instncias de aguda feminilizao do homem, punidos

    com a morte.

    Por isso mesmo, espanta o registro da saga de vrias

    mulheres, entre os antigos hebreus, tal como os apresenta o

    Antigo Testamento: Mriam, irm de Moiss, Judite, Rute, Ester.

    Antes dos reis Saul e Davi, os hebreus eram regidos pelos

    shofethim, juzes. Um desses juzes foi Dbora, uma mulher que

    dirigiu o povo hebreu durante os duros tempos da ocupao da

    Palestina contra os filisteus que a habitavam (uma antepassada de

    Golda Meir?). Um shofeth era, ao mesmo tempo, um lder militar e

    a suprema autoridade judiciria entre as doze tribos em que se

    dividiu o povo hebreu na conquista de Cana/Palestina.

    Como explicar a presena de uma mulher exercendo um

    cargo dessa importncia numa sociedade onde o flus o cetro e a

    coroa apenas uma hiprbole da glande?

    No Livro de Josu, Dbora chamada de profeta: uma

    mulher podia ser nabi, em Israel.

  • Essa anomalia, talvez, se explique pela permanncia de

    resqucios matriarcais-tribais entre os hebreus. Talvez, se trate da

    infiltrao de valores egpcios: na terra donde Moiss tirou seu

    povo reinou Hatsep-schut, fara-mulher, que a tradio grega,

    atravs do historiador Herdoto, chamou Nitcris.

    Os gregos da era clssica, alis, sempre se espantaram com

    a liberdade de movimentos de que desfrutava a mulher no Egito,

    mais um dos absurdos desse povo cujos costumes soavam to

    estranhos aos ouvidos helnicos.

    Nos tempos de Jesus, a situao da mulher hebria no deve

    ter melhorado muito, embora a poligamia dos tempos patriarcais

    parea ter quase desaparecido, substituda pela monogamia, pelo

    menos entre as classes mais modestas.

    Complexas as relaes de Jesus com as Mulheres.

    Parece que sua doutrina e sua presena exerciam grande

    fascnio sobre elas.

    Marcos descreve a cena logo depois que Jesus, crucificado,

    morreu, dando um grande grito.

    Ali estavam tambm algumas mulheres que olhavam de

    longe, entre as quais Maria Madalena, e Maria, a me de Tiago o

    Menor e de Jos e Salom, as quais, estando ele na Galilia, o

    seguiam e o serviam e muitas outras que com ele tinham subido a

    Jerusalm.

    Seguiam-no e o serviam. Muitas outras. A saga de Jesus

    est cercada de mulheres.

    O Evangelho de Lucas mais exato.

    Indo ele, logo depois, por cidades e aldeias, pregava e

    anunciava o reino de Deus. Acompanhavam-no os doze e algumas

    mulheres que tinham sido curadas de espritos malignos e

    enfermidades. Maria, chamada Madalena, da qual havia

  • expulsado sete demnios, Joana, mulher de Cuza, administrador

    de Herodes, e Susana, e outras muitas, que o serviam com seus

    bens.

    Eram as mulheres do squito de Jesus que asseguravam sua

    subsistncia, bem dentro de um esquema me-filho: eram as

    mulheres que davam de comer a Jesus.

    Nada de anmalo nisso: a espiritualidade nas mulheres

    mais intensa. Entre elas, todos os criadores de religies, os

    inventores do signo transcendental, encontraram logo seus mais

    pacientes ouvintes e seus primeiros seguidores.

    At nesse to masculino Islam, o primeiro convertido por

    Maom f de Al foi sua mulher Kadidja.

    Na expanso da f crist, no Imprio Romano, o papel das

    mulheres parece ter sido fundamental.

    Religio de escravos, em seus primrdios, o cristianismo

    passou por um processo de ascenso social at chegar ao palcio

    dos imperadores romanos. Nessas altssimas rodas, os primeiros

    convertidos foram imperatrizes e grandes damas da famlia

    imperial. A partir da dinastia Flvia, em meados do sculo I,

    suspeita-se de cristianismo inmeras imperatrizes e familiares de

    imperadores romanos.

    O terreno j estava preparado pela infiltrao da f judaica

    entre as mulheres desde os primrdios do Imprio.

    A historiografia romana imperial registra relaes ntimas

    entre Popia, amante de Nero, e o judasmo de Roma (milhares de

    judeus na capital do Imprio no incio da era crist).

    Com Jesus, no deve ter sido diferente.

    As mulheres o ouviam melhor que os homens.

    Nele, viam um pai? Ou um filho?

    De pai, ele tinha o tom autoritrio de quem sabe o que diz,

  • porque fala em seu prprio nome: a certeza de quem senhor de

    uma verdade que criou.

    De filho, devia ter algo dessa fragilidade infantil dos homens

    muito espirituais: Jesus sempre gostou de crianas, e dizia mesmo

    que elas entraro no Reino dos Cus antes de todos.

    No Antigo Testamento, no h crianas.

    Ado e Eva j so criados adultos.

    E Moiss, beb flutuando num cesto no Nilo, prepara apenas

    a saga do lder adulto.

    De mulheres e crianas, porm, os Evangelhos esto cheios.

    Muito curiosas as relaes de Jesus com Maria, sua me.

    Parecem ter sido muito ligados. O pai Jos desaparece logo

    da cena, ausente de todos os episdios: evidente que j tinha

    morrido quando Jesus, aos trinta anos, nabi sagrado em gua,

    pelas mos de Joo, o Batista, inicia sua militncia.

    Em algumas passagens dos evangelhos, Jesus parece ter em

    relao me uma oblqua atitude de repulsa.

    Na fbula da transformao da gua em vinho, num

    casamento no vilarejo de Can, Jesus e sua me, convidados,

    discutem.

    No episdio, Jesus a chama apenas de mulher.

    Em outra ocasio, Jesus pregava cercado de ouvintes.

    Algum chega e lhe comunica que sua me e seus irmos (parece

    que sua famlia no acreditava muito nele) tinham acabado de

    chegar para v-lo.

    Minha me e meus irmos? Minha me e meus irmos so

    os que me ouvem, respondeu aquele que multiplicava pes e

    peixes e transformava a gua em vinho (a lenda evanglica pode

    estar baseada, imagino, em alguma expresso popular judaica que

    significava fazer fazer o impossvel). De qualquer forma, a me

  • estava com ele na hora de sua execuo. E a ela, nessa hora,

    recomendou seu amado discpulo, Joo, o mais jovem dos seus

    seguidores, por quem tinha um carinho especial (na Ceia, o

    evangelho o registra com a cabea reclinada no peito de Jesus).

    De novo, chama Maria de mulher: Mulher, eis a teu filho.

    De