leminski, paulo - jesus a.c
TRANSCRIPT
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JESUS a.C.
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JESUS Paulo Leminski
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copyright Paulo Leminski
Sugesto e motivo de capa e ilustraes:
Paulo Leminski
Capa:
Takashi Fukushima
Diagramao: Moema Cavalcanti
Ilustrao final: Emlio Damiani
Reviso: Jos W. S. Moraes
Nely P. Figueiredo
Fragmento do Evangelho Segundo Domingos:
Domingos Pellegrini
Fotos: Zap Fotografia (Curitiba)
editora brasiliense s.a.
01223 r. general jardim, 160
so paulo brasil
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CONTRA CAPA
Mal-aventurados os que se rendem s verdades absolutas
sobre Jesus. Se foi reformador ou revolucionrio, fariseu
dissidente ou profeta iluminado, nada disso nos contam os
Evangelhos. Jesus sabia se esconder bem entre as muralhas e as
palavras. Indiscutvel apenas que sua doutrina tomou o poder
no Imprio
Romano sem levantar uma espada. Entender suas parbolas
mergulhar num emaranhado de significados que se multiplicam
como os peixes do milagre evanglico. Peixes, smbolo de
subverso da ordem vigente.
Ler Jesus caminhar sobre as guas incertas, que vm com
fora e quebram em ondas de interpretaes. Nas praias, porm,
s existe a certeza de que ele era um superpoeta.
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ndice
Carta de Intenes
O profeta em sua terra
Captulo 1
Nem s de po
Captulo 2
A voz gritando no deserto
Captulo 3 Captulo zero, versculo um
Captulo 4
A escritura crstica
Captulo 5
Quanto custa Jesus
Captulo 6 Jesus macho e fmea
Captulo 7 Jesus jacobino
Captulo 8 O que foi feito de Jesus
Parabolrio
Sobre Jesus
Naquele tempo
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Para Domingos Pellegrini, que, de repente, apareceu falando de.
Para Alice Ruiz que, atravs de Francisco, o ama.
Para Paulo Csar Bottas, amigo dele.
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CARTA DE INTENES
Este livro dirigido por vrios propsitos.
Entre os principais, primeiro, apresentar uma semelhana o
mais humana possvel desse Jesus, em torno de quem tantas
lendas se acumularam, floresta de mitos que impede de ver a
rvore.
Outra, a de ler o signo-Jesus como o de um sub-versor da
ordem vigente, negador do elenco dos valores de sua poca e
proponente de uma utopia.
Outra ainda, seria a inteno de revelar o poeta que Jesus,
profeta, era, atravs de uma leitura lrica de tantas passagens que
uma tradio duas vezes milenar transformou em platitudes e
lugares-comuns.
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O PROFETA EM SUA TERRA
Jerusalm, urgente Na tarde de ontem, algum que
atende pelo nome de Jesus invadiu as dependncias do Templo,
agredindo e expulsando toda a casta de vendedores que ali exercia
seu ofcio.
O luntico, galileu pelo sotaque, entrou, subitamente,
chutando as mesas dos mercadores de pombas e outros animais
destinados ao sacrifcio. Na confuso que se seguiu ao incidente,
entre as moedas que rolavam pelas escadas, gaiolas quebradas,
pombas que voavam, acorreram os guardas, que no conseguiram
deitar as mos no facnora.
O tal Jesus desapareceu no meio da multido, que o
acoberta, porque nele acredita ver um profeta. A reportagem
apurou que o referido natural de Nazar, na Galilia, filho de um
carpinteiro.
Arrebanhou inmeros seguidores entre os pescadores do
Mar da Galilia. Dizem que opera milagres. E descende, por linha
direta, do rei Davi.
Entre os seus, fala aramaico, dominando, porm, o hebraico
dos textos sagrados, que cita com frequncia, chegando mesmo a
discutir com os doutores da lei, fariseus e saduceus. Muitos vem
nele o Messias. As autoridades esto prontas para fazer frente a
qualquer nova alterao da ordem provocada pelo tal Jesus ou por
seus seguidores.
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CAPTULO 1
NEM S DE PO
Ouam, cus, e, terra, abra as orelhas que Yahweh falou.
(Isaas, 1,2)
O Oriente Mdio era o lugar, culturalmente, mais rico da
Antiguidade. Ponto de cruzamento da influncia dos primeiros
imprios, de civilizaes letradas e complexas (egpcios,
mesopotmios, hititas, fencios, ldios), passagem obrigatria de
mercadorias entre a sia e o mundo mediterrneo, a chamada
sia Menor (Turquia, Sria, Lbano, Israel, pases rabes) foi a
ptria de algumas das maiores conquistas da humanidade.
A comear pelo alfabeto, inveno dos mercadores fencios, a
partir dos hieroglifos egpcios.
A moeda, tambm, nasceu a, na Ldia, hoje, parte da
Turquia. Nessa regio, porm, no nasceram s inovaes
materiais. Nela, surgiram os mitos mais fundantes que informam
o imaginrio do Ocidente at hoje.
Essa parte do globo, afinal, foi bero do judasmo, do
cristianismo e do Islam, as religies de Moiss, Jesus e Maom.
No nos deixemos iludir pelas aparentes diferenas entre
essas trs confisses religiosas, nem por seus conflitos histricos.
Com variantes de detalhes, as trs afirmam, no fundo, os mesmos
princpios: o tribal monotesmo patriarcalista, o moralismo
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fundado em regras estritas, a tendncia ao proselitismo
expansionista, a intransigncia.
No haver outros deuses diante de ti, parecem dizer as
trs, afirmando Jav, Jesus e Al.
Trata-se, como se percebe, de uma religiosidade semita, de
bedunos dos desertos e osis da Arbia, como foram, a princpio,
hebreus, babilnios, assrios, arameus e rabes, pastores
nmades de ovelhas, dispondo do cavalo, do camelo e do
dromedrio como instrumentos de transporte.
Os primeiros semitas a se sedentarizarem em centros
urbanos estveis, constituindo civilizaes, foram os babilnios, os
assrios e os fencios. O comrcio e as guerras fizeram o resto,
tornando o Oriente Mdio um n grdio de influxos cruzando de
todas as partes: mercadorias, principalmente. Mas, tambm,
idias. Instituies. Conceitos. Mitos. Jesus parte dessa histria.
Como se conhece Jesus?
Tudo que se sabe dele nos chegou atravs de coletneas de
textos conhecidos pelo nome grego de Evangelhos, literalmente,
boa mensagem, palavra que, claro, Jesus nunca conheceu. Era
um judeu da Galilia, falante do aramaico, um dialeto semita,
aparentado ao hebraico, a lngua corrente na Palestina, depois do
cativeiro da Babilnia (quando viveu, o hebraico j era, h sculos,
apenas, o idioma sagrado dos textos religiosos, uma lngua morta,
portanto).
Em seu mundo sobrepunham-se trs idiomas: o aramaico do
povo, o grego das classes cultas das grandes cidades da sia e o
latim do dominador romano.
De grego e latim, certamente, Jesus nunca soube uma
palavra.
Suas parbolas, frases e ditos memorveis foram formulados
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em aramaico, esse dialeto semita, menos conciso que o hebraico,
mas que chegou a ser lngua comum em todo o Oriente Mdio (at
a correspondncia da chancelaria assria saa em assrio e
aramaico).
Como Buda e Scrates, Jesus no deixou nada escrito.
Tudo que sabemos dele nos foi reportado por esses
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evangelhos, que nos chegam da Igreja Primitiva, depois que
comunidades judaico-crists se espalharam por todas as grandes
metrpoles helnico-romanas do Mediterrneo (feso, Antiquia,
Mileto, Tessalnica, Tarso, Alexandria, Roma).
So textos tardios (o Evangelho de Joo deve ter tido sua
redao final, mais ou menos, cem anos depois da morte de
Jesus). Houve centenas de evangelhos. Cada Igreja local devia ter
o seu. Fora quatro dentre eles, canonizados pela Igreja, quando
esta se organizou como poder, os demais evangelhos foram
condenados e negligenciados. Seus textos s chegaram at ns
fragmentariamente. Ou atravs de vagas notcias dos escritores
cristos dos trs ou quatro primeiros sculos da nossa era. So os
apcrifos, o Evangelho dos Hebreus, o Evangelho dos Doze ou dos
Ebionitas, o Evangelho dos Adversrios da Lei e dos Profetas, o
Evangelho de Pedro, o Evangelho da Perfeio e outras coletneas
perdidas ... Os evangelhos ditos cannicos atribuem-se a Mateus,
Marcos, Lucas e Joo, discpulos diretos ou discpulos dos
discpulos de Jesus.
So textos escritos em grego. No o grego de Plato ou dos
grandes escritores da Atenas de quatro sculos atrs.
um grego meio popular, conhecido como koin (=
comum), o grego que se tornou lngua franca em todo o Oriente
depois da conquista do Imprio Persa por Alexandre da
Macednia, lngua de mercadores e administradores, falado por
fencios, judeus, persas, ldios, cilcios, e, naturalmente, romanos.
Nenhum evangelho em aramaico. Jesus j se nos aparece
traduzido. Tradio muito antiga quer que o evangelho atribudo a
Mateus tenha sido escrito, originalmente, em lngua semita,
hebraico ou aramaico. Os evangelhos de Mateus e Marcos
parecem, com efeito, representar uma camada mais antiga da
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tradio do que os textos de Lucas e Joo, visivelmente,
elaboraes posteriores da Igreja (ou das igrejas) j organizadas
litrgica e teologicamente.
Ao que tudo indica, o de Marcos talvez seja o mais antigo de
todos, seu autor, um judeu convertido, vivendo numa comunidade
romanizada, talvez, na prpria Roma. Seu aproach o mais
popularesco de todos. Em Marcos, Jesus sobretudo um
taumaturgo, um fazedor de milagres, curando a lepra, a febre, a
paralisia, a cegueira e expulsando demnios dos possessos.
E a parte propriamente doutrinria, em Marcos, (o
pensamento, digamos assim, de Jesus) sempre expressa numa
imagtica muito material, ligada ao mundo fsico das classes
populares da Galilia.
J em Joo, so atribudas a Jesus teorizaes
teologicamente to complexas que sempre se suspeitou, nelas,
influncias da filosofia grega tardia, desenvolvida nos crculos
mais cultos de Alexandria, no Egito, a capital intelectual do
Mediterrneo de ento.
Como se v, estamos lidando com uma documentao
heterognea, advinda de vrias fontes, frequentemente
contraditrias.
Como achar o verdadeiro Jesus por trs dessa floresta de
verses sobre sua pessoa, feitos e ditos?
Parece bvio que os evangelhos representem a compilao de
tradies transmitidas oralmente no interior da (s) igreja (s)
primitiva (s), feitos e ditos do Senhor, passados de boca a boca,
de orelha a orelha, evidentemente, ampliados e deformados pela
imaginao oriental, to afeita a prodgios.
O prprio carter fragmentrio e descosturado dos
evangelhos, enquanto textos, confirma essa hiptese.
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Os episdios evanglicos so ligados, praticamente, pela
conjuno e, o que faz deles uma obra aberta, onde outros
episdios poderiam ser insertados, sem dano do conjunto.
E Jesus disse. E Jesus foi. E Jesus veio.
No resta, porm, a menor dvida de que, por trs desses
ditos e feitos, existiu uma pessoa real, de carne e osso, um rabi da
Galilia, que mudou o mundo como poucos.
A ser verdade tudo o que dizem os Evangelhos, no h
nenhum personagem da antiguidade sobre qual saibamos tanto
quanto sobre Jesus. Infncia, famlia, formao: detalhes
mnimos, que no temos sobre Pricles, Scrates, Alexandre,
Csar, Augusto, Ccero ou Virglio.
O impacto que sua vida e doutrina provocaram nos
contemporneos atingiu tal intensidade que, hoje, ainda, vibra.
Talvez, ser Deus seja, apenas, isso.
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CAPTULO 2
A VOZ GRITANDO NO DESERTO
Voz clamando no deserto: Preparar a via do Senhor: Retas fazer suas sendas.
(Isaas, 40, 3, e Mateus, 3, 3)
O essencial da mensagem de Jesus parece ser o anncio do
iminente advento de um certo Reino de Deus. Na maior parte
dos casos, depois desta vida. Mas, tambm, s vezes, nesta vida.
Um dia, esta vida ser o depois desta vida.
Esta pro-jeo, Jesus herdou dos profetas hebreus, dos quais
ele foi o maior, inventando o futuro, j que o presente histrico
insuportvel. Foram os profetas que inventaram o futuro, assim
como os poetas inventaro o presente e os homens de ao
inventam o passado sem cessar.
Os profetas bblicos (Isaas, em primeiro) surgem quando o
povo hebreu, depois de algum fastgio entre os pequenos
principados da sia Menor, perde a autonomia poltica, esmagado
entre as potncias do Egito e da Assria.
A palavra profeta, porm, grega. E no d conta de toda a
riqueza de significados do original hebraico, nabi.
Em grego, a palavra pro-feta quer dizer o que fala para a
frente, o que adivinha o futuro, portanto. Como Tirsias, a Ptia
ou a Sibila.
Ora, um nabi era mais que isso.
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Era uma espcie de louco de Deus, desfrutando das
imunidades das crianas, dos muito velhos ou dos bobos da corte.
E seus riscos. Muito semita, a categoria nabi tem sua
correspondncia entre os rabes, nos conceitos islmicos imam e
mahdi.
Imani, mahdi, so indivduos, possudos por Al, que Al
envia, periodicamente, entre os homens, para purificar a f. Para
restaurar uma pureza das origens. Para exagerar.
No de admirar que, entre os pro-fetas, estejam os
maiores poetas dessa literatura hebraica que o Ocidente chama de
Antigo Testamento. A comear por esse extraordinrio Isaas, que
Jesus, superpoeta, gostava de citar.
Para Isaas, o exerccio da profecia, como entre os antigos
hebreus, era singularmente facilitado por uma caracterstica da
lngua hebraica, onde no h tempos. Mas modos.
Idioma flexional, como o grego e o latim, o hebraico tem uma
forma de verbo que pode significar, ao mesmo tempo, prestgio e
futuro. A palavra amarti, em hebraico, pode significar tanto eu
disse como eu direi.
E para imaginar as possibilidades de ambiguidades
profticas dos hazon (vises), que se expressavam numa lngua
onde voc no sabe se se est falando de feitos passados ou
eventos por ocorrer.
Trocando em midos: se um profeta hebreu diz cairs,
cidade maldita, pelo tempo do verbo, voc no pode garantir se a
cidade j caiu ou vai cair.
Muito difcil, para ns, vivenciar ou mentalizar um universo
onde as coisas que j existiram e as que vo existir esto situadas
no mesmo plano.
Graas a essa caracterstica da lngua hebraica, o profeta
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bblico parecia se situar num tempo especial, um extratempo, onde
todo o por ocorrer j teria ocorrido. Algo como se a fico cientfica
coincidisse com o realismo socialista. Ou vice-versa.
Nisso, Isaas o mximo. Pela extrema criatividade
imagtica, vos quase surrealistas de fantasia, vigor e pujana de
expresso e formulao, Isaas tem de ser contado entre os
grandes poetas da humanidade, no time de Homero, Virglio,
Dante, Shakespeare, Bash, Goethe.
Ao profeta Jeremias, atribuem-se as Lamentaes, longo
poema elegaco sobre a queda de Jerusalm nas mos da
Babilnia, em linguagem maneirista: cada verso comea com uma
letra do alfabeto hebraico, at perfaz-lo todo, num imenso
acrstico.
No Antigo Testamento, o Tanach hebraico (Tanach uma
sigla, reunindo a inicial T, de Torah, N, de Neviim, e Ch de
Chetuvim, nomes hebraicos para os demais livros) brilham em
poesia os textos atribudos a dezessete profetas. Os primeiros
viveram e atuaram por volta do sculo VII a.C, no auge das
agruras que afligiram o povo hebreu, estraalhado entre os
poderes do Egito e da Babilnia-Assria, culminando com a
deportao quase integral dos judeus para a Mesopotmia, no
chamado Cativeiro da Babilnia.
Nesse quadro, os profetas exerceram agudo papel poltico,
como assessores e conselheiros dos reis de Jud e Israel. Alguns
pagaram com a vida esse envolvimento direto com a Histria. Quer
a lenda que Isaas, aos cem anos de idade, por intrigas de
cortesos, foi acusado de alta traio, condenado morte e
serrado ao meio.
O profeta Jeremias, pelos mesmos motivos, teria ido passar
seus ltimos dias no Egito, em exlio.
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Outro dos grandes poetas/profetas de Israel foi Ezequiel,
entre cujas vises consta uma de veculos extraterrestres, onde os
aficionados do gnero acharam por bem ver relatos sobre a visita
de discos voadores ao nosso pobre planeta.
Pitoresco o livro do profeta Jonas, engolido pela baleia. Jesus
o cita para anunciar sua morte e ressurreio, depois de trs dias
no ventre da morte, um dos mitos mais tocantes da Igreja
primitiva, reflexo dos mitos de Osris/tis/Adnis, milenares na
bacia do Mediterrneo.
Depois de Mriam, irm de Moiss, e Samuel, que ungiu Davi
como rei, o primeiro profeta que a Bblia menciona Elias, que
atuou nos tempos de Acab, rei de Israel, l por volta do sculo VIII
a.C. Sua gesta, narrada no Terceiro Livro dos Reis, guarda
assinaladas semelhanas com a de Jesus.
Como Jesus, Elias um taumaturgo. Ressuscita o filho da
viva de Sarepta, assim como Jesus ressuscitou Lzaro.
Multiplica a farinha, como Jesus multiplicou os pes. E, como um
xam ndio, faz cair a chuva.
Clebre sua disputa de poderes mgicos com os profetas do
deus Baal, divindade canania que sempre tentou Israel.
Como Jesus, Elias foi perseguido pelo mpio rei, Acab, que,
conforme a Bblia, tinha passado a fio de espada todos os
profetas.
A profecia sempre foi uma profisso perigosa.
Sucessor de Elias, foi Eliseu, que o profeta encontrou
lavrando com seus bois e consagrou-o profeta, prefigurando o que
Joo faria com Jesus e o que Jesus faria com os pescadores de
Galilia, que transformou em apstolos e portadores de suas
palavras e parbolas.
Eliseu abandona seu arado, como Pedro e os demais largam
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suas redes depois de ouvir o apelo do Rabi.
Na aparncia, Elias parece pro-fetizar Joo, o Batista. No
Quarto Livro dos Reis, Elias descrito como um homem de barba
espessa e cabelos longos, cingido sobre os rins com uma cinta de
couro. Espantosa a fbula de seu fim.
Elias caminhava ao lado de seu discpulo Eliseu, eis que um
carro de fogo e uns cavalos de fogo os separaram, e Elias subiu ao
cu, no meio de um redemoinho.
No sculo XX, os devotos dos discos voadores no deixam de
suspeitar, no episdio, a passagem de veculos extraterrenos.
Com Eliseu, ficam o manto e os poderes miraculosos do
profeta, demonstrados, a seguir, numa srie de prodgios.
Elias persistiu na memria do povo durante sculos.
Assim, ele comparece no episdio da Transfigurao de
Jesus, no captulo 17 de Mateus, gesta que, para ns, do sculo
XX, tem tambm um indisfarvel odor extragalctico de fico
cientfica.
O episdio merece ser transcrito na ntegra: Tomou Jesus
consigo Pedro, Tiago e seu irmo Joo e levou-os a um alto monte,
e transfigurou-se diante deles. E seu rosto ficou refulgente como o
sol e as suas vestiduras tornaram-se brancas como a neve.
E eis que lhe apareceram Moiss e Elias falando com ele.
E Pedro, tomando a palavra, disse a Jesus: Senhor, bom
estarmos aqui, se queres, faamos aqui trs tabernculos, um
para ti, um para Moiss e um para Elias.
Estando ainda a falar, eis que uma nuvem resplandecente os
envolveu e eis que da nuvem saiu uma voz que dizia...
No episdio, uma superposio das imagens de Elias, e
Jesus, quase at coincidncia. Ao trocadilho. Elias aparece na
vida de Jesus, por fim, no trgico equvoco de uma m
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interpretao lingustica, quando das ltimas palavras,
agonizando na cruz.
Conforme o evangelho de Marcos, momentos antes de
expirar, Jesus, em desespero, exclamou, em aramaico, Eli, Eli,
Iam sabachtani?, meu Deus, meu Deus, por que me
abandonastes?.
Marcos registra: ouvindo isto, alguns dos circunstantes
diziam: ele chama por Elias.
Jonas (em hebraico lon, a pomba), que profetizou l pelo
sculo VI a.C, era natural de Get de Zabulo, ao norte de Nazar,
na terra de Jesus, portanto.
Dentre os dezessete profetas cujas vises (hazon) foram
escritas e chegaram at ns, destaca-se, pela antiguidade, Abdias
(em hebraico, Abd-lahu = o servo de Deus, o equivalente de Abd-
Ala, em rabe). Seu texto parece ser, lingisticamente, o mais
antigo de todos.
Nem s nos textos, porm, se revela a originalidade dos nabi.
Sua vida, tambm, sempre trouxe o selo da estranheza e do
exagero. Do excesso, da excentricidade e do milagre.
Jesus foi um nabi. Antes dele, deve ter havido milhares.
Conforme os evangelhos, imediatamente antes, surgiu Joo,
chamado o Batista. Suas relaes com Jesus parecem ter sido
muito prximas: a tradio quer at que ele seja primo de Jesus.
Depois das lendas relativas ao nascimento, os Reis Magos, o
massacre das crianas por Herodes, a fuga da Sagrada Famlia ao
Egito, todas pesadamente tingidas do fantstico oriental (o que
no quer dizer que no haja resqucios e indcios de dados reais
por trs da fbula), Jesus aparece, adulto, apresentando-se diante
de Joo, para ser, por ele, batizado no rio Jordo.
De Joo, Mateus tira uma fotografia impressionante. um
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eremita meio selvagem, vivendo no deserto, no depoimento de
Mateus, com vestimenta de pele de camelo, com uma cinta de
couro, seu alimento era gafanhotos e mel silvestre.
Quase d pra ver o tipo, um daqueles furiosos loucos de
Deus, a boca cheia de pragas e maldies contra todos os que
pareceram trair a original pureza de uma f. Reacionrios,
saudosos de um passado? Revolucionrios, querendo novas coisas
e novos cdigos? Cada um escolha o adjetivo que combine melhor
com a tanga de pele de camelo do profeta Joo.
O fato que Jesus o procurou para se submeter a um ritual
seu, o batismo. A palavra grega, e significa apenas banho.
Seu carter simblico o mais bvio possvel, a traduo
material de uma atitude espiritual. O batismo de Joo estava
articulado com a confisso dos pecados, com a categoria asctica
da penitncia.
A gua lava o corpo, a boa vontade lava a alma.
O ritual da lavagem espiritual, em riachos, rios e mares,
universal, como o carter sacro das guas vivas.
Mas, entre os judeus, esse rito parece que comeou a
competir com o da circunciso, a ablao do prepcio, que sempre
foi, desde Abro, a marca distintiva do Ham Israel. Na realidade, a
circunciso uma prtica encontradia em todo o Oriente Antigo,
a operao constando de gravuras egpcias das primeiras
dinastias. Jesus, claro, era circuncisado. Donde veio aos hebreus
o rito do batismo?
A histria dos conflitos originais entre o judasmo e o
cristianismo poderia ser, liturgicamente, entendida como uma luta
entre os ritos da circunciso e do batismo.
aqui que entram em cena os essnios, uma estranha seita
judaica que viveu em mosteiros, submetida a uma regra
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monstica prpria, chegando a produzir sua prpria literatura
margem do judasmo oficial.
H inmeras menes aos essnios na literatura antiga,
tanto judaica, quanto grega. Nenhuma, porm, nos evangelhos.
As mais clebres runas de um mosteiro essnio situam-se
em Qumran, s margens norte do Mar Morto, numa paisagem
quase lunar, pedra, sol e areia.
Nas proximidades das runas, foram descobertos
manuscritos, datando do sculo I a.C., depositados em grandes
urnas, ocultas em grutas e cavernas das elevaes circundantes.
A descoberta dos chamados Manuscritos do Mar Morto um
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dos captulos mais emocionantes da arqueologia do sculo XX.
Em pergaminhos (e at papiros) conservados pela secura do
clima, os maguilot ou rolos do Mar Morto so a biblioteca do
mosteiro essnio de Qumran, escondido s pressas diante da
arrasadora invaso romana do ano 70, conduzida por Tito.
Na literatura essnia, descoberta nas grutas dos arredores
de Qumran, os testemunhos de uma vida espiritual intensa.
E uma surpresa.
Os essnios parece que cultivavam a memria de um Mestre
da Justia, um superior da ordem essnia, que teria sido
sacrificado pelas autoridades na capital, em Jerusalm. Como
Jesus!
Acontece que as evidncias arqueolgicas e textuais dos
Manuscritos do Mar Morto apontam para mais de um sculo antes
de Cristo. Teria havido um Jesus essnio, antes de Jesus?
A riqueza dos signos feita da abundncia das
interpretaes.
Para sairmos desse impasse, nada melhor que recitar um
dos Hinos da Ao de Graas dos essnios:
Graas, Senhor,
porque me colocastes no escrnio da vida
e me cobristes contra
as armadilhas da fossa.
Homens violentos quiseram me matar,
eu me apoiava sobre tua aliana.
Esses, bando da mentira, horda do demnio,
no sabem que de ti
vem minha glria
e que em tua bondade
me salvars,
pois diriges os meus passos.
-
(..........................)
Esse o mais bem conservado hino essnio de Ao de
Graas, na tradio dos Salmos, em particular do Salmo 1.
Nos rolos, os especialistas identificaram, alm de textos dos
livros de Moiss e dos profetas, uma literatura especificamente
essnia. O Manual de Disciplina, regra da ordem essnia.
Comentrios sobre o texto dos profetas. Hinos rituais prprios, os
Hinos de Ao de Graas. E mais espantoso uma espcie de
apocalipse, chamado A Guerra Dos Filhos da Luz contra os Filhos
das Trevas.
Como eram, afinal, esses essnios?
Ao que tudo indica, uma das trs seitas em que se dividia o
judasmo na poca de Cristo, com os fariseus e os saduceus.
Os essnios procuravam preservar o judasmo em sua
mxima pureza mosaica, numa poca em que as influncias
gregas e romanas seduziam os espritos.
A comunidade essnia funcionava, pois, como um profera:
Qumran uma voz clamando no deserto.
No mosteiro essnio, cultivava-se a comunidade de bens, a
santificao da comida em comum e o celibato, tudo coisas que
vamos encontrar na doutrina de Jesus e no cristianismo primitivo.
Em Qumran, os arquelogos descobriram a piscina que
servia para as ablues e lustraes rituais: o rito do batismo ,
com certeza, de extrao essnia.
O que havia de essnio em Joo e em Jesus, fica difcil de
analisar dois mil anos depois.
O que no se pode duvidar que eram homens do seu
tempo, atravessados por idias e conceitos que circulavam no
meio em que viveram.
Batizado por Joo, num episdio que a lenda evanglica
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cumulou de prodgios (fogo sobre a gua, descida do Esprito
Santo), Jesus comea sua misso, repetindo Joo. Jesus. Joo.
Joo. Joo.
Mateus reporta o apelo inicial de Joo: faam penitncia,
aproximou-se o Reino de Deus. Pois com essa mesma frase que
Jesus comea sua atuao. O processo lembra muito a passagem
da autoridade nos mosteiros zen, do Extremo Oriente, de mestre a
mestre, registrado num livro chamado A Transmisso da
Lmpada.
Complexa a luz dessa lmpada que Joo passa a Jesus.
Mas, ao mesmo tempo, muito simples.
Jesus veio para exagerar a pureza da doutrina de Moiss.
Nenhuma razo para duvidar que no estivesse sendo
sincero, ao dizer:
Nem pensem que vim
para dissolver a lei
ou os profetas.
No vim dissolver,
mas realizar.
Amm vos digo,
at passar o cu e a terra
da lei, no vai morrer um jota
nem uma vrgula.
Est na hora de fazer as pazes com a palavra fariseu.
Na origem, fariseu vem de um radical hebraico, que quer
dizer separado. Os fariseus eram, antes da destruio da Palestina
pelos romanos, um grupo de judeus particularmente zelosos das
leis judaicas. Com a destruio do reino e do Templo e a disperso
dos judeus pelo mundo, essnios e saduceus desapareceram.
O judasmo, desde ento, obedece a diretrizes farisaicas.
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A partir dos evangelhos, a palavra fariseu adquiriu
conotaes negativas: Jesus se ope, Constantemente, a eles,
acusando-os de ritualismo vazio e formalismo religioso.
Acontece que os fariseus no so coisa to simples assim.
Por uma ironia da Histria, possvel dizer que Jesus era fariseu.
Quando Jesus viveu, vivia, na Babilnia, um rabi judeu chamado
Hilel, fariseu, que interpretava Moiss e a Lei da maneira liberal,
tal como Jesus fazia. Contra Hilel e a linhagem de seus filhos e
netos, levantou-se o rabi Shaddai, fariseu exigindo o exato
cumprimento da Lei, ao p da letra.
No se pode pensar Jesus fora do quadro da religiosidade
judaica do incio da era crist.
Nem se pode deixar passar o dado de que os fariseus, no
evangelho, sempre abordam Jesus chamando-o de Rabi, o ttulo
devido ao mestre.
Jesus, porm, duro com eles.
Em sua ira de poeta/profeta, lana-lhes na cara:
Ai de vocs, escribas
e fariseus hipcritas!
sepulcros pintados,
lindos por fora,
por dentro,
cheios de ossos de mortos
e podrido!
Evidentemente se referia aos fariseus que conhecia, que
encontrava nos lugares que frequentava, os fariseus da sua
circunstncia imediata.
No fundo, Jesus e fariseus queriam a mesma coisa: uma vida
de pureza ritual e densidade espiritual, conforme a lei de Moiss, a
-
Mitzvah, o mandato.
Os caminhos propostos que diferiam.
Jesus parece propor uma interiorizao radical dos gestos
rituais, em cuja prtica consiste isso que ser judeu de religio.
Entre Moiss e Jesus, h, pelo menos, um bom milnio.
Natural que, em mil anos, a religiosidade judaica tenha
evoludo para exigncias mais sofisticadas e formas mais
complexas e abstratas de expresso.
Afinal, quando Moiss formulou a Lei, os hebreus eram um
povo de bedunos nmades, recm-fugido do cativeiro no Egito,
onde os faras da XXIII Dinastia os empregavam, como escravos,
entre dezenas de outros povos, na edificao dos templos e
palcios que fizeram a glria do pas do Nilo.
Depois disso, o povo hebreu passou por uma extraordinria
peripcia histrica, conquistando Cana, constituindo-se em
Estado, triunfando com o rei Davi, prosperando com seu filho
Salomo, vivendo, enfim, toda a complexidade poltica e militar
dos reinos semitas do Oriente Mdio, primeiro, estraalhado entre
as superpotncias egpcia e assria, depois, invadido por persas,
gregos macednios e, enfim, romanos.
Por bem ou por mal, a Palestina e o povo hebreu se viram
envolvidos pela imensa onda de helenismo que desabou sobre a
sia com a invaso de Alexandre.
A doutrina de Jesus representa uma resposta criativa aos
novos tempos que o povo judeu vivia.
Assim, no admira que tenha se defrontado, diretamente,
com a Lei de Moiss:
Vocs ouviram
o que foi dito aos antigos:
no matars.
-
Quem matar,
seja ru de juzo.
Eu, porm, contradigo:
quem se irritar com seu irmo,
seja ru de juzo.
Jesus no est negando Moiss. Est, apenas, conduzindo a
crueza da lei mosaica a extremos de interiorizao e sutileza,
exigidos por uma poca mais sofisticada, de maior concentrao
interna do repertrio espiritual e tico prprio do povo hebreu, de
maior troca de informaes com outros universos culturais de
grande riqueza sgnica (gregos, romanos). Com exageros utpicos,
inclusive:
Vocs ouviram
o que foi dito aos antigos:
olho por olho, dente por dente.
Eu, porm, contradigo:
no resistam ao mal.
Se algum bater em vocs
num lado do rosto,
ofeream a outra face.
Numa ocasio, Jesus chegou a paralisar a execuo de um
ritual mosaico.
Foi quando fariseus e sacerdotes trouxeram ante sua
presena uma mulher, surpreendida em flagrante adultrio.
Conforme a lei mosaica, a adltera deveria ser apedrejada
pelo povo at a morte.
No relato, Jesus estava acocorado, escrevendo no p do
cho.
o nico lugar do evangelho em que Jesus aparece
-
escrevendo.
Os evangelhos no reportam o que estaria escrevendo,
naqueles belos caracteres quadrados com que se escreve o
hebraico literrio, que Jesus lia nas sinagogas.
Ou estaria apenas desenhando um navio, um peixe ou um
rosto?
Uma lenda da Igreja primitiva quer que estivesse escrevendo
o nome da adltera. Madalena?
Os fariseus que, conforme os evangelhos, o tentavam,
arrastam a adltera, a mulher surpreendida fazendo amor com
quem no era o legtimo marido.
Diante de Jesus, os fariseus lanam a perigosa pergunta:
uma adltera.
Conforme Moiss,
deve ser apedrejada.
O que voc diz?
Jesus, sem tirar os olhos da escrita que produzia no p do
cho, fulminou:
Quem no tiver pecado,
atire a primeira pedra.
Homem assim no ia ter vida longa nem morrer na cama.
Ia ter um fim como Joo, seu guru e batista, que teve a
cabea cortada por Herodes.
Isaas, serrado ao meio. Jeremias, exilado no Egito. Joo,
decapitado. A vida de um nabi no era muito segura.
No se brinca, impunemente, com os poderes deste mundo.
Jesus chegou a tocar no sacrossanto repouso do sbado,
-
talvez, com a circunciso, os dois ritos fundamentais do judasmo.
extraordinariamente minucioso o elenco de proibies,
interditos e tabus do sbado judaico, o dia em que se repete,
ritualmente, o descanso de Iav, no stimo dia, depois de criar o
universo.
No sbado judeu, as atividades so reduzidas a um mnimo.
Rabinos extremamente meticulosos, ao longo dos sculos,
foram legislando os gestos que violam o sbado, indo do trabalho
alimentao da vida diria sexual, limitando at o nmero de
passos lcitos, nesse dia de no fazer nada.
Ora, sucedeu que, num sbado, discpulos de Jesus
passavam ao lado de um campo de trigo. Estavam com fome,
agarraram espigas e as comeram.
Fariseus estavam presentes e, escandalizados, interpelaram
Jesus:
Teus discpulos
violam o sbado.
proibido
colher nesse dia.
Jesus arrasou:
O sbado foi feito para o homem,
no o homem para o sbado.
-
CAPTULO 3
CAPTULO ZERO, VERSCULO UM
Levanta a rocha e ali me encontrars, racha a madeira e ali estou eu.
(Fragmento de um evangelho apcrifo de origem egpcia, as Logia de Oxyrhinchus)
Pode alguma coisa que preste vir de Nazar?
(Joo, 1,46)
Nazareth, o lugar onde nasceu o nabi Joshua Bar Yosef, era
um vilarejo da Galilia, no extremo norte da provncia romana da
Judia, hoje, Israel.
Nas ruelas estreitas entre as casas pequenas, crianas
brincam os eternos jogos da infncia, sem saber que, muitas
lguas dali, existe uma cidade imensa chamada Roma, onde reina
o imperador Augusto, poderoso como um deus, que, com trs
palavras num papiro, pode colocar em movimento a mais eficaz
mquina de guerra que a antiguidade conheceu: o exrcito
romano.
Disso tudo, nada sabem as crianas judias de Nazareth.
Seus pais so pequenos agricultores, cultivadores de uvas e
oliveiras, alguns mercadores e muitos artesos, tecelos,
pedreiros, oleiros, ferreiros, carpinteiros.
De um carpinteiro chamado Yosef e de sua mulher Maria,
nasceu Joshua.
-
Seu nome era muito comum entre os judeus, sendo uma
ligeira alterao do nome de Josu, o sucessor de Moiss e cappo
das tribos hebrias que invadiram a Palestina depois da morte do
grande patriarca.
Entre as crianas de Nazareth, brinca um menino que, um
dia, vai mudar o mundo como ningum.
lhoshuha, Joshua, Josu, Jesus: longa viagem vai fazer este
nome.
As tradies apostlicas e os relatos evanglicos cercaram
seu nascimento e primeiros anos de toda sorte de lendas das mil e
uma noites, de que o Oriente gosta.
Desde o nascimento de uma virgem at a visita de trs
Magos ao menino recm-nascido, cada um portando presentes,
ouro, incenso e mirra.
As contradies entre uma histria verdadeira e lendas e
fbulas que se teceram em volta de Joshua aparecem primeira
vista.
O evangelho atribudo a Mateus abre com a enumerao da
genealogia de Joshua, desde o patriarca Abrao.
Na lista dos antepassados de Joshua, est o rei David, o que
o faz herdeiro legtimo do trono de Israel.
Esta genealogia termina na pessoa de Yosef (Jos), pai de
Jesus.
Imediatamente aps, Mateus reporta a lenda da concepo
virginal de Jesus, nascido de Maria, fecundada por fora divina,
sem concurso de homem.
Ora, a ser assim, para que a genealogia de seu pai?
Verses evanglicas tambm o do como nascido em Belm,
Beth-Lehem, em hebraico, a casa do po, muito ao sul de
Nazareth.
-
Isso se deve a um fato muito estranho.
A vida do profeta Jesus foi toda profetizada antes de ser
vivida.
Inmeros episdios de sua vida foram, evidentemente,
moldados sobre a profecia. Mateus especialista nisso. Seu relato
todo percorrido por construes do tipo: isso se fez, para que se
realizasse a profecia que diz...
O nascimento de Jesus em Belm, por exemplo, resultado
de uma leitura do profeta Miquias, que viveu, pelo menos, seis
sculos antes dele.
E tu, Beth-Lehem
da terra de Jud,
no s a menor
entre as principais de Jud:
de ti, vai sair o chefe,
que reja Israel, meu povo.
Beth-Lehem era a cidade natal do rei David, sob cuja direo
o povo hebreu conheceu um clmax de glria militar.
Nada mais natural que fazer Jesus nascer na terra do seu
antepassado, do qual herdava o ttulo de rei: o messianismo judeu
nasceu e se desenvolveu com os profetas, quando a nao perdeu
a independncia (sculos VI e V antes de Cristo).
Na teocracia semita, o lder religioso sempre chefe poltico.
E vice-versa. Basta ver o caso, hoje, do Ir do Ayatolah Khomeyni.
Descendente do rei David, Jesus era o lder carismtico do
povo numa guerra de libertao contra o imperialismo romano.
Sua condenao final diante do poder de Roma, encarnada
na pessoa do procnsul Pncio Pilatos, significativa: o povo o
aclamava, abertamente, como rei.
-
Ao colocar sobre a cruz onde o supliciavam uma placa com a
inscrio Jesus de Nazareth, Rei dos Judeus, os romanos
mostravam que no estavam brincando em servio.
Deixemos de lado as lendas messinicas sobre o nascimento
em Belm.
Jesus sempre chamado de nazareno, natural de Nazar.
E os primeiros cristos eram chamados de galileus.
A fbula da fuga ao Egito deu margem a muitas outras
lendas. Est em Mateus.
Jesus nasce, os magos vm visit-lo, o rei Herodes fica
sabendo, consulta os sbios para saber onde nasceria o Messias.
Citando Miquias, os sbios apontam Beth-Lehem: Herodes
ordena o massacre de todas as crianas com menos de um ano de
idade.
Avisado por um anjo, Jos pega a mulher e o filho e foge
para o Egito, donde s volta depois que o mesmo anjo, pontual
funcionrio do Senhor, lhe avisa, em sonho, que d para voltar,
tudo est limpo. Da, Jos volta.
A fbula inverossmil.
S ver a distncia a percorrer entre a Galilia e o Egito,
numa poca quando as estradas da sia viviam infestadas de
assaltantes e ainda havia grande quantidade de lees, depois
extintos pela caa contnua e sistemtica.
No assim, no entanto, que se trata uma fbula: uma
lenda vale por seus significados simblicos.
A fuga da famlia de Jesus para o Egito era uma volta s
origens. Afinal, foi l que o povo hebreu viveu escravo dos faras.
De l, Moiss o tirou, para a liberdade, a plenitude, a maioridade,
depois da invaso de Cana (a Palestina), realizada com
implacveis hecatombes, massacres e aniquilao, ao estilo
-
assrio, de cidades inteiras, como conta o Livro de Josu.
Enquanto as lendas correm, as crianas continuam a
brincar nas ruas da aldeia de Nazareth.
Brincam de esconde-esconde.
O mais difcil de encontrar Joshua Bar Yosef. Ele sempre
se esconde nos lugares mais difceis.
Isso tudo fantasia. Pelos evangelhos, nada sabemos da
infncia nem da adolescncia de Jesus.
H inmeros evangelhos apcrifos dos primeiros sculos da
era crist, chamados Evangelhos da Infncia, tecidos de lendas
fabulosas sobre um garoto Jesus cheio de poderes e os exercendo
com arbitrariedade. Num episdio de um desses evangelhos
apcrifos, um menino pula nas costas de Jesus e morre
imediatamente, s para Jesus ressuscit-lo, diante do desespero
dos pais.
Numa rua de Nazareth, o filho do carpinteiro continua
brincando.
Sobre ele, um dia, haver lendas, como a de que nasceu de
uma virgem, um dos arqutipos religiosos da humanidade,
encontradio nos mitos do nascimento de Buda, do rei persa Ciro
ou do deus azteca Quetzalcoatl. Virgem/Me: coincidncia dos
contrrios.
Nas ruas de Nazareth, os meninos procuram atrs de cada
parede, de cada porta, de cada pedra. Ningum encontra Joshua.
Uma lenda evanglica conta que, um dia, ele desapareceu.
Sua me o procurou e foi encontr-lo numa sinagoga lendo textos
sagrados e os explicando aos doutores.
Nas ruas de Nazareth, ainda nada.
Pisamos em terreno seguro, provavelmente, quando o
encontramos apresentando-se, no rio Jordo, para ser batizado
-
por Joo, o Batista.
Conforme os evangelhos, Jesus est agora com trinta anos,
na fora da idade.
Israel tem um novo nabi, como Elias, Eliseu, Isaas, Joo.
Onde esteve Jesus at ser batizado por Joo?
Essa elipse, esse hiato, esse vcuo, j produziu bibliotecas
de hipteses, desvarios teosficos, delrios esotricos, em que
Jesus teria frequentado, no Egito, escolas de altos saberes.
Alguns gostam de imagin-lo iogue na ndia.
Outros imaginam-no monge essnio, egresso do mosteiro
judeu de Qumran.
Nas vielas de Nazareth, continuam a procur-lo.
O menino continua desaparecido.
Mas, um jovem nabi, de 30 anos, comea a agitar a Galilia,
repetindo o apelo de seu mestre Joo, que repetia Isaas: o reino
de Deus vem a. O menino escondido tem trs anos para
desembocar no destino de todos os profetas de Israel: serrado
como Isaas, decapitado como Joo, crucificado pelos romanos.
O jovem nabi nazir.
Nazir, entre os antigos judeus, era algum devotado a Adonai
(Deus), desde a infncia, ao que tudo indica, por sua me.
Essa devoo consistia na privao de vrias coisas: o vinho,
os prazeres sexuais, a aparncia pessoal.
Os evangelhos nada nos informam sobre a aparncia fsica
de Jesus. No sabemos se era alto ou baixo. Gordo ou magro. De
olhos negros ou castanhos.
O menino continua escondido.
As igrejas fizeram dele um retrato hiper-idealizado, lindo
rosto, quase andrgino, com grandes olhos sonhadores, s vezes,
absurdamente azuis num semita sefardi: excessos do amor.
-
Tudo o que podemos saber de Jesus, fisicamente, que
usasse cabelos compridos: os nazir no cortavam o cabelo.
Talvez usasse roupa branca: era um trao ritual dos
essnios. E no devia ser pessoa de compleio frgil: basta ver o
episdio da expulso dos vendilhes do templo, quando fustigou e
expulsou dezenas de pessoas das escadarias do mais clebre
santurio de Israel.
Fora isso, s temos a tradio da Igreja primitiva, que
-
registra que Jesus era feio, talvez o reflexo de uma profecia de
Isaas, onde o Messias apresentado como pessoa de aspecto
desprezvel, metfora do estado poltico do povo hebreu, na poca
da invaso de babilnios e assrios.
Onde est o menino?
A brincadeira de esconde-esconde prossegue, nas vielas da
pequena Nazareth da Galilia.
Todos j foram encontrados, menos Joshua.
Uns pensam encontr-lo debaixo duma pedra, como se fosse
um escorpio.
Outros imaginam v-lo do lado de uma nuvem, um falco,
quem sabe.
Para alguns, ele desaparece como um fantasma, na luz forte
do meio-dia. Nos evangelhos, seus dados de parentesco so muito
embrulhados.
Parece ter sido o mais velho numa famlia numerosa, com
vrios irmos e irms.
Ao que tudo indica, no comeo de seu nabinato, sofreu a
oposio e a negao de seus irmos diretos.
Seus primeiros discpulos teriam sido seus primos, dentro de
uma tradio muito semtica de converses em sua prpria casa (a
primeira pessoa convertida ao Islam por Maom foi sua prpria
mulher Kadidja).
Algum acaba de ver Jesus desaparecer por trs de uma
porta.
O menino Joshua sabe se esconder muito bem. Em que ano
mesmo que ele est? Esse menino vai escola? Que tipo de
escola?
Nos pequenos vilarejos judeus, o mestre-escola era o hazzan,
o leitor das sinagogas, aquele que ensinava a ler as belas letras do
-
alfabeto com que se lia a Lei de Moiss, sem o que no se podia
realizar a mitzvah, o mandato: a cultura judaica uma cultura
escritural, baseada em textos (para o Islam, os judeus fazem parte
da categoria privilegiada dos ahl al-Kitab, os povos do livro, as
minorias cuja f se baseia em textos).
Em seus melhores anos, Joshua deve ter assimilado o
repertrio textual bsico de qualquer judeu de sua poca: a Torah,
a Lei de Moiss, os Profetas, tesouro escriturai de sua tribo.
Seu processo de aprendizagem da escrita hebraica deve ter
sido o do Oriente Mdio, ainda usado entre os rabes.
Um processo sinttico, no qual o professor faz os alunos
memorizarem uma frase, oralmente, aps o que distribui a frase
escrita correspondente fazendo os alunos repetirem, olhando para
a frase escrita, at que a leitura comea a fluir.
Um processo pedaggico que comea ao contrrio do
ocidental, onde o aluno aprende primeiro o ABC, o cdigo em
estado puro, para depois aprender a combin-lo em palavras e
oraes.
O processo oriental vai da frase para o alfabeto, o nosso vai
da letra para a frase.
Como qualquer garoto judeu da Galilia, Joshua ia dos
conjuntos para os elementos. Das totalidades para as partes. Do
geral para o particular.
Mas onde que esse menino se meteu?
Na sinagoga de Nazareth, com o hazzan, Jesus ouviu/leu o
tesouro textual de sua comunidade: Torah, Profetas, Salmos,
Livros Sapienciais.
Sua leitura, estudo, compreenso e prtica constituem a
mitzvah, a via judaica. Dela, Joshua vai ter um entendimento
profundo, radical, intransigente. Parecia reinar nas antigas
-
sinagogas da Galilia uma grande liberdade de expresso, sem
restries de hierarquia eclesistica.
Pelos evangelhos, l vai que era possvel algum na
assemblia, possudo pelo Esprito (nefesh Adonai) sentar no lugar
principal, ler os textos sagrados e interpret-los para os
circunstantes. O povo de Israel era uma espcie de povo de
sacerdotes, onde as distines entre leigos e eclesisticos eram
mnimas.
Da, aquilo de Mateus, no captulo 13:
E chegando em sua terra
os ensinava nas sinagogas,
at que se espantaram e disseram:
Donde lhe vm estes saberes e poderes?
Esse no o filho do operrio?
-
Os meninos continuam a procur-lo nas esquinas e becos de
Nazareth.
Andr quase o viu. Bartolomeu pensa conhecer seus
truques, quando se esconde. Tiago desconfia que ele esteja atrs
daquela rvore.
Pedro Cefas lana as redes. Mateus d um desconto. Cada
um dos futuros doze discpulos diretos lana suas sortes.
Como sempre, Joshua desapareceu.
Nada mais emocionante que brincar de esconde-esconde
com o filho do carpinteiro.
Aps. Apstolos. Apostas.
Discpulo de Joo, Joshua ter discpulos, portadores da sua
doutrina e de seus poderes milagrosos, dar luz ao cegos, curar
doenas, expulsar demnios. Assim, Eliseu herdou o manto e a
fora taumatrgica de mestre Elias.
Os discpulos diretos de Jesus foram conquistados entre a
gente simples da Galilia, pescadores e artesos de forte f e tardo
entendimento. Simples, Joshua amar os simples:
Naquela hora,
chegaram os discpulos
dizendo:
Quem o maior no reino dos cus?
E chamando um menino
Jesus o colocou de p
no meio deles e disse:
Assim digo a vocs,
se vocs no mudarem
e ficarem parecidos com crianas
como esta,
vocs no vo entrar no reino dos cus.
-
Cad Joshua?
Entre os simples, depois, o acharo.
Uma pergunta, nunca feita, pode, agora, ser perguntada.
De que vivia Jesus durante os trs anos de sua pregao e
docncia?
Que fosse carpinteiro como seu pai Yosef, pouca dvida, os
ofcios, no Oriente, passando de pai para filho, ao longo dos
sculos.
Curioso, porm, que nenhuma parbola sua tenha como
tema a arte da carpintaria. Suas metforas e aplogos so todos
extrados da vida agrcola. Ou piscatria.
Para um poeta como ele, talvez, seu ofcio do dia-a-dia no
oferecesse estmulo bastante para a poesia.
Talvez, luz de uma esttica da recepo, adequasse seu
discurso ao universo dos pequenos lavradores e pescadores dentre
os quais arrebanhou seus primeiros seguidores.
De qualquer forma, nessa frtil e verde Galilia de seu
tempo, no devia haver muita distncia entre as atividades
artesanais e agrcolas.
O fato que, em nenhum momento, os evangelhos o
mostram trabalhando.
A no ser aquele trabalho superior, que o exerccio da vida
do esprito.
Em nenhum momento, Jesus planta, colhe, cozinha, serra,
tece ou pesca.
Tudo que faz pregar.
Seu pai Josef tambm pregava pregos na madeira, coisa que
Jesus devia saber fazer bem.
S que a pregao de Jesus feita de outros pregos. Pregos
-
conceituais. Pregos-signos. Os pregos que um dia pregariam a ele,
carpinteiro, numa cruz de madeira.
Afinal, onde est Joshua?
Em seus anos de pregao, Jesus viveu, de aldeia em aldeia,
de casa em casa, sustentado por amigos, mulheres, discpulos,
admiradores ou at por estranhos, nesse Oriente onde o hspede
um rei na tenda do seu anfitrio.
Onde, diabo, esse menino se meteu?
Pelos evangelhos, Jesus fez, basicamente, duas coisas:
curou doenas e pronunciou sentenas. Fez o bem para o corpo. E
para a alma.
Sua virtude taumatrgicas significa sua fora doutrinria:
saber, poder.
Ah, Joshua, deste vez, eu te pego!
Muitos amigos teve Jesus. Dentre os mais caros, Lzaro,
com suas duas irms, Marta e Maria, amigas do doce rabi da
Galilia.
Jesus parece ter sido muito livre na escolha de suas
companhias. Os evangelhos esto cheios das queixas dos fariseus
pelo fato de Jesus frequentar pecadores, estrangeiros, publicanos
(coletores de impostos para Roma), meretrizes e at gente pior.
Jesus se saa com coisas do tipo:
No vim para salvar os justos.
Justos no precisam de salvao.
Quem sabe ter sido meio chegado ao vinho. O que estranha.
A abstinncia de vinho era regra essnia. E uma das proibies de
quem fosse nazir.
Um dos milagres mais conhecidos de Jesus a
transformao de gua em vinho num casamento, em Can.
-
E, na ltima ceia, quando codifica um rito para seus
discpulos, identifica o fruto da vinha com seu prprio sangue
(embora, aqui, o relato parea ter sido moldado sobre o rito, um
rito comemorativo da Igreja primitiva, embrio da missa).
ta garoto bom de se esconder!
Quando se aproximava a Pscoa judaica, Jesus teve vontade
de ir celebr-la na capital, em Jerusalm, a cidade de Davi.
O Pesach, a Pscoa judaica, a celebrao da passagem do
Mar Vermelho, da sada do povo hebreu do cativeiro do Egito para
a liberdade, metfora mxima para a libertao do esprito.
Para comemor-la, comia-se um cordeiro assado, em
companhia de amigos. Mal sabia Jesus que, nesta Pscoa, o
cordeiro a ser comido seria ele mesmo.
Aquela sombra, no seria Joshua?
L vai o cordeiro entre os lobos, o provinciano rabi da
Galilia, entra na Grande Cidade.
Na poca da Pscoa, Jerusalm regurgitava de gente vinda
de todas as partes, judeus de todos os lugares para celebrar a
Pscoa sombra do Templo, objeto de uma venerao geral,
santurio mximo de Israel.
Jesus tem um trocadilho no qual confunde seu corpo com o
Templo, quando diz, diante da imponente arquitetura, que a
destruir e a reconstruir em trs dias. Falava de sua prpria
morte e ressurreio, comenta o evangelista.
Em Jerusalm, Jesus sabe que est mais em perigo do que
nunca. A, imperam os fariseus, saduceus, levitas, escribas,
sacerdotes, toda a alta hierarquia do judasmo oficial,
mancomunada com o poder romano, guardado por legies
imbatveis, sob o comando de uma autoridade nomeada
diretamente pelo Imperador.
-
Os donos da religio no gostam de seus comentrios lei
de Moiss. Os romanos, donos da situao, no gostam de judeus
se reunindo em torno de lderes, ligados por idias orientais que
eles no entendem. Uns, sentem cheiro de heresia. Outros vem
subverso da ordem. Jesus entra em Jerusalm.
A cidade ferveu daquela vida frentica de uma metrpole das
mil e uma noites.
Mil mercadores ambulantes apregoam seus produtos,
compra-se, vende-se. Ouve-se, pelas esquinas, dezenas de lnguas
e dialetos, aramaico, grego, latim, rabe, siraco ou essas misturas
que o comrcio sempre improvisa.
As autoridades j tinham sido alertadas sobre sua presena
na cidade, onde ele entra cercado de seus discpulos e
simpatizantes.
Jesus caiu na armadilha.
preciso distingui-lo, porm, nessa multido que vai e vem,
onde passam profetas, nabis, pequenos mestres e seus squitos.
Os donos da religio logram contato com um dos discpulos
do galileu, Judas Iscariotes, que, por dinheiro, concorda em
denunci-lo.
Denunciado por Judas, Jesus preso pelas autoridades.
Depois de ter sido submetido a mil sevcias e ultrajes,
condenado pela autoridade romana ao suplcio, tipicamente
romano, da cruz.
Como duro de achar esse Joshua!
-
CAPTULO 4
A ESCRITURA CRSTICA
Nada est oculto, que no venha a ser revelado, nem to secreto que no venha a se saber.
O que digo a vocs nas trevas, digam
na luz, e o que vocs ouvem, ao p do ouvido, proclamem sobre os telhados.
(Mateus, 10, 27)
Como se percebe, o ttulo deste captulo totalmente
inadequado. Primeiro, porque Jesus no deixou nada escrito.
Tudo o que se sabe de seus feitos e ditos foi transmitido pela
tradio oral, enfim registrada em evangelhos.
Depois, porque o nome Cristo grego: com certeza, Jesus,
falante do aramaico, jamais ouviu essa palavra, que , apenas, a
traduo do vocbulo hebraico meshiah, o ungido, o consagrado
com leo, como Davi foi ungido rei pelo profeta Samuel.
J no nome pelo qual mais conhecido indicam-se as duas
direes de sua doutrina.
Seu nome mesmo, Jesus, judeu. E isso o reporta s suas
origens, f tradicional do povo em que nasceu.
A palavra grega Cristo transporta a mensagem de Jesus at
um mundo muito mais amplo, o universo das cidades
helensticas, entre as quais pode-se incluir, comodamente, Roma,
a cidade senhora do mundo ocidental civilizado por volta do ano I
da era crist, esse mundo que girava em volta do Mediterrneo.
-
Jesus (o cristianismo) a traduo de uma palavra aramaica para
o grego.
No meio-dia do poder romano, entre as cidades gregas da
bacia do Mediterrneo, o aramaico era algo assim como o guarani
do Paraguai, o qutchua e o aymar dos Andes ou o basco na
Europa, em nossos dias um calo qualquer, falado por povos sem
importncia.
No pra a o mistrio.
Jesus no falava claro. Nabi, profeta, falava por parbolas.
Vale a pena saber que parbola, em grego, quer dizer desvio do
caminho. O essencial das mensagens de Jesus est longe de ser
transmitido por cadeias de raciocnios. Mas atravs de estrias
paralelas, as parbolas, unidades poticas e ficcionais, capazes
de irradiar significados espirituais e prticos, abertas exegese,
explicao, liberdade. Jesus, Joshua Bar-Yosef, pensa concreto.
Da, a durao do seu pensar, constitudo pela infinitude de
interpretaes de suas elementaridades doutrinrias.
Admire-se, por exemplo, a formosura da parbola do
semeador, a primeira relatada por Mateus.
Naquele dia, saindo Jesus de casa, sentou-se a beira do
mar. E juntou-se em volta dele uma multido de gente, de forma
que Jesus teve que subir numa barca e sentar-se nela.
A multido estava de p na praia.
A ela, falou-lhes muitas coisas por parbolas, dizendo:
O semeador saiu a semear.
Parte da semente
caiu ao longo do caminho,
vieram as aves do cu
e comeram-na.
Parte caiu na pedra,
-
no tinha terra,
nasceu, veio sol e secou.
Parte caiu entre os espinhos,
os espinhos a sufocaram.
Parte, enfim, caiu em terra boa
e deu frutos,
cem por um, outros sessenta por trinta.
Quem tem ouvidos para ouvir, oua.
No se sabe o que admirar mais aqui.
Mas merece destaque o contraste entre um Jesus falando, de
uma barca no mar, sobre algum que semeia na terra.
Na circunstncia desta parbola, um mistrio nos hipnotiza.
Concretamente, nela, Jesus flutua sobre as guas, falando
da terra.
gua. Terra. Pescar. Semear. Jesus fala por
elementaridades: numa palavra, fala coisas.
Na parbola do semeador, Jesus fala, na realidade, dos
efeitos e conseqncias da pregao de sua palavra.
A semente, a, metfora e imagem da palavra.
O mais estranho vem a seguir: e chegando-se a ele, os
discpulos disseram: por que lhes fala em parbolas?
A vocs, concedido
conhecer os mistrios do reino dos cus,
a eles, no.
Pois a quem tem, vai ser dado,
e abundar.
De quem no tem,
at o que tem
vai ser tirado.
Por isso, falo a eles por parbolas.
Para que, vendo, no vejam.
-
E, ouvindo, no ouam
nem compreendam.
Assim se cumpra neles a profecia de Isaas:
ouvindo de ouvir, no vo entender,
e, videntes, vendo, no vo ver.
A parbola um gnero oriental, encontradio entre todos os
povos da sia, a revelao de verdades abstratas atravs da
materialidade de uma anedota, uma unidade ficcional mnima.
Aquilo que Joyce chamava de epifania.
Uma epifania uma manifestao espiritual e,
especialmente, a manifestao original de Cristo aos Reis Magos.
Joyce acreditava que esses momentos chegam para todos, se
somos capazes de compreend-los. s vezes, nas circunstncias
mais complexas, levanta-se repentinamente o vu, revela-se o
mistrio que pesa sobre ns e manifesta-se o segredo ltimo das
coisas (Harry Levin, James Joyce).
As parbolas de Jesus so epifanias (em grego, sobre-
aparies), ns de histrias donde se desprende um princpio
geral.
Assim fez Confcio. Assim fez o autor do Gnesis. Assim
fizeram os cnicos gregos. Assim fizeram os rabinos. Assim fizeram
os gurus da ndia. Assim fizeram os sufis do Islam.
Esse procedimento de revelar ocultando tem um sabor,
indisfaravelmente, zen.
Por isso, Jesus diz:
Graas te dou meu Pai,
senhor do cu e da terra,
porque escondeste estas coisas
aos sbios e doutores
e as revelastes aos pequenos.
-
Intriga, em Jesus, ao lado de um processo de re-velao, um
de velao.
De ocultamento da doutrina. De despistamento.
As parbolas de Jesus so cones. E, na famlia dos signos,
cones so signos produtores de informao, signos emissores.
H dois mil anos, extrai-se significado das parbolas
atribudas a Jesus pelos evangelhos. Nem outra coisa que
estamos tentando fazer aqui.
Quem tiver ouvidos de ouvir, oua. A linguagem de Jesus
cifrada.
a linguagem de um nabi, um profeta, como tantos que o
povo de Israel produziu, a linguagem de um poeta, que nunca
chama as coisas pelos prprios nomes, mas produz um discurso
paralelo, um anlogo, que os gregos chamavam parbola, desvio
do caminho.
Essa linguagem paralela rima com o anncio de um
eminente (e paralelo) reino de Deus, freqente entre os profetas
da Bblia: a profecia de Abdias, talvez o mais antigo profeta cujo
texto chegou at ns, termina falando no meluchah Adonai, em
hebraico, o reino de Deus, tema central do discurso de Jesus, a
escritura crstica.
Nisso, Jesus estava sendo, talvez, fiel a uma tradio
hebraica.
Olhando bem, os judeus substituram a idolatria das
imagens e simulacros pela idolatria a um texto: a Torah, os cinco
primeiros livros da Bblia, atribudos a Moiss. A anlise
lingstica no confirma: os cinco primeiros textos do Antigo
Testamento, para os especialistas, parecem ter tido sua redao
final por volta do sculo VII antes de Cristo (Moiss deve ter vivido
-
em torno do ano 1200 a.C). Nada obsta, porm, que um material
mais antigo tenha sido manipulado por mos posteriores:
movemo-nos num territrio muito judaico, em que textos remetem
a textos e mensagens servem de contexto a outras mensagens.
Isso, no entanto, de Jesus recorrer ao enigma nunca deixa
de evocar a cabala, um dos trs pilares sobre os quais repousa a
sabedoria de Israel.
Os outros so a Torah e o Talmud (e a Mishna).
Aquilo que catlicos e protestantes chamam de Antigo
Testamento, para os judeus o Tanach, sigla que designa (T) a
Torah, (N) Naviim, os profetas, e (Ch) Chetuvim, os escritos, os
livros histricos, sapienciais e lricos.
No Tanach, a Torah desfruta de um status especialssimo:
so os livros de Moiss, Gnesis, xodo, Levtico, Nmeros e
Deuteronmio, na traduo grega, o fundamento da f judaica, a
essncia da crena.
O Talmud (e a Mishna) congregam as doutrinas de rabinos
posteriores, que regulam a mitzvah, o modo de viver que faz um
judeu.
At a mincia, o Talmud legisla sobre vida e morte, sobre o
dia-a-dia, at a guarda do sbado. Obra de geraes de rabinos,
h dois Talmuds, que regem o judasmo, at nossos dias. Torah.
Talmud. Cabala.
Sobre a cabala, mais difcil falar.
A palavra vem de um radical que quer dizer transmitir:
cabala quer dizer a transmitida.
a tradio oral de Israel, aquela que no foi escrita, porque
no pode ser escrita.
A tradio cabalstica parece ter passado de boca a boca, de
gerao em gerao, de rabino a rabino, de gueto a gueto.
-
Essencialmente, parece consistir na leitura dos textos da
Torah, a partir de processos combinatrios codificados.
Evidente que a prtica da cabala s acessvel a quem
dominar a lngua hebraica.
Um dos processos cabalsticos mais simples o da leitura
invertida. O alfabeto hebraico, derivado, como o grego, da escrita
fencia, tem uma ordem, que reflete, em linhas gerais, a ordem do
nosso A-B-C. Imaginemos, agora, cabalisticamente, que a srie
das letras do ABC correspondesse a letras do A-B-C invertido.
Assim:
A B C D E F G H I J L M N O P Q R S T U V X Z
Z X V U T S R Q P O N M L J I H G F E D C B A
Neste cdigo, A se escreve Z. C V. F vira S. E assim por
diante. Este, o cdigo mais elementar.
A cabala, porm, prev codificaes mais complexas. Com
alternncias dois a dois. Trs a trs. E, a, at o infinito.
Fazendo estas trocas conforme os esquemas cabalsticos, os
rabinos descobriam sub-sentidos e significados ocultos, no texto
sagrado: lendo de trs para diante, alterando a ordem das letras,
permutando, des-lendo.
Evidentemente, o exerccio da cabala s possvel numa
lngua semita, onde todas as palavras tm um radical triltero,
constitudo, basicamente, de trs consoantes, que do o sentido
geral da raiz.
A cabala, basicamente, um jogo com estas trs letras de
cada radical. Digamos o radical semita para matar, em rabe e
hebraico: QaTaL. Lido ao contrrio, LaTaQ, proteger.
O rabino cabalista, ao ler uma frase na Torah com a palavra
-
Qatal a lia ao inverso, lendo sentidos ao contrrio.
Assim, o texto dos livros sagrados diz muitas coisas ao
mesmo tempo. A crptica escritura crstica parece apontar para esta
tradio cabalstico-esotrica, onde a verdade apangio de
poucos.
E apareceram os fariseus, que comearam a disputar com
ele, pedindo-lhe, para o tentar, um signo do cu.
Jesus tirou um suspiro do corao e disse:
Por que esta gerao
pede um signo?
Em verdade vos digo,
a esta gerao
no ser dado signo.
A declarao tanto mais estranha quanto, nos evangelhos,
Jesus vive fazendo milagres, signa, prodgios, que demonstram
sua fora sobrenatural. So, na maior parte, milagres mdicos ou
econmicos: cura de doenas (cegueira, surdez, paralisia) ou
multiplicao de alimentos (po, peixe, vinho), o que bem situa
Jesus em seu universo de gente mida, sempre s voltas com a
penria ou a molstia.
De qualquer forma, os signos foram dados.
E, quase dois mil anos depois, esto longe de parar de rolar.
De desistir de sua capacidade de serem interpretados. Chegando
a Betsaida, trouxeram-lhe um cego e suplicavam-lhe que o
tocasse. E, tomando o cego pela mo, conduziu-o fora da aldeia e,
pondo-lhe saliva sobre os olhos e impondo-lhe as mos sobre a
cabea, perguntou-lhe se enxergava alguma coisa. O cego,
levantando os olhos, disse: vejo as pessoas andando como rvores.
Depois, Jesus imps-lhe, novamente, as mos e ficou
-
completamente bom, vendo claramente todas as coisas. E Jesus
mandou-o para casa, dizendo:
Vai para tua casa,
e se entrares na aldeia,
no digas nada a ningum
Esse cuidado com o sigilo acompanha a pregao e a
trajetria do Filho do Homem.
Esse exclusivismo fariseu e essnio transparece no episdio
da mulher fencia, no judia, que o procura, para ouvir dele:
O po foi feito
para dar aos filhos,
no aos ces.
H traos de ferocidade na escritura crstica, o jeito de Jesus
fazer as coisas, bastante discrepantes das adocicadas verses das
Igrejas que dele saram e o administraram.
Quem disse no vim trazer a paz, vim trazer a espada, no
estava brincando em sua brabeza beduna.
A saudao semita, hebraica e rabe, paz: shalom, salm.
Perfeitamente possvel imaginar que Jesus tenha afirmado a
espada, diante do shalom de um amigo ou discpulo.
Este que diz que veio trazer a espada o mesmo celerado
que devastou as mesas e balces dos vendilhes do templo, os
pequenos mercadores e camels que vendiam na entrada do
templo de Jerusalm. E o mesmo que disse, falando de Joo, o
Batista: desde os dias de Joo Batista at agora, o reino de Deus
adquire-se fora, e s os violentos o conquistam.
Essa violncia de Jesus, camuflada, escamoteada e
-
maquilada pelas Igrejas, traduz-se na linguagem do filho de Jos.
De acordo com os evangelhos, Jesus adorava jogos de
palavras.
Inmeros momentos de sua vida e militncia so marcados
por trocadilhos.
Ao convidar os pescadores do mar da Galilia a segui-lo,
disse: farei de vocs pescadores de homens.
E ao escolher seu sucessor, Simon Bar-Jona, deu-lhe o
nome de Quefas = pedra, em aramaico, Pedro, tu s pedra, e,
sobre essa pedra, edificars a minha igreja, paronomstico veio
que, no sculo XX, foi radicalizado, no Finnegans Wake, pelo
irlands e catlico James Joyce.
A escritura crstica est muito presente, nessa prosa mxima
da modernidade, gigantesca e monstruosa parbola que conta a
histria da queda de um pedreiro irlands (the pftjschute of
Finnegan) e sua subseqente ressurreio no velrio, quando
gotas de usque dos convivas tocam seus lbios.
Oh, it will be lots of fun at Finnegans Wake, vai ser uma
farra quando Finnegam despertar, diz a cano do Eire.
Para Joyce, a queda de Finnegan do alto do muro emblema
da queda de toda a humanidade, depois do pecado de Ado,
legenda fundamental da mitologia judaico-crist.
Para Joyce, essa queda, porm, uma felix culpa, no dizer de
Agostinho, uma culpa feliz: por causa dela, Deus se encarnou e o
princpio de inteligncia que rege o universo confundiu-se com
essa modalidade de macaco que chamamos homem. A Encarnao
o mistrio supremo da cristandade, a humanizao de Deus
e/ou a deificao do homem.
Quando Marx falou em ...o homem ser deus do homem,
estava ecoando o tema crstico por excelncia.
-
No pode haver trocadilho maior do que entre Deus e
homem: por isso, o trocadilho o recurso fundamental no
Finnegans Wake, a ressurreio do homem comum.
Nem passa despercebida a relao entre Finnegan, o
pedreiro, e Pedro, a pedra sobre a qual Jesus, em elegantssima
paronomsia, edificou sua eclsia.
O Wake todo percorrido pela presena de Patrick, So
Patrcio, o apstolo da Irlanda, o missionrio beneditino que
converteu os irlandeses ao cristianismo no sculo VII, dos quais
foi o primeiro bispo.
O olho/ouvido trocadilhesco de Joyce percebe a similaridade
dos nomes de Pedro/Patrick, brincando com ela, a partir da forma
inicial thuartpeatrick, you are Peter/Patrick, tu s Pedro e
sobre essa pedra..., na abertura do Wake.
Essa crptica escritura crstica traduziu-se, no cristianismo
primitivo, pelo modo como os primeiros cristos, perseguidos, se
identificavam e esotericamente, se comunicavam: atravs do
desenho de um peixe, querendo dizer, em grego, ikhtys = peixe.
Talvez, haja a a aluso condio de pescadores dos
primeiros apstolos, discpulos diretos de Jesus.
Na realidade, trata-se de um signo muito complexo, um
logogrifo, acrstico, no qual as letras da palavra grega para peixe
significam I (Isus, Jesus), Kh (Khrists, Cristo), T (Theou,
de Deus), Y (Yis, filho) e S (Ster, Salvador).
O desenho de um peixe, assim, para um cristo dos
primeiros tempos, das cidades gregas que bordavam o
Mediterrneo, significava e dizia Jesus Cristo, Filho de Deus,
Salvador.
No universo das charadas, esse peixe-Cristo um rbus,
um hieroglifo, um polissigno crptico, que quer dizer (e diz) muitas
-
coisas ao mesmo tempo.
Na ambigidade pisciana das palavras, Jesus se movia como
um peixe na gua.
Nem impertinente lembrar que, na tradio astrolgica,
Jesus do signo de Peixes, embora seu nascimento lendrio em
25 de dezembro faa dele um filho do signo de Capricrnio.
A multiplicao dos peixes, um dos milagres mais clebres
de Jesus, , no fundo, a multiplicao infinita dos significados.
A melhor parte da mensagem de Jesus transmitida atravs
de parbolas e trocadilhos, recursos de arte que s um poeta,
como um profeta de Israel, podia produzir.
minha crena que Jesus concentrou toda a sua doutrina
em parbolas, tudo o mais, axiomas, teorias, conceitos sendo
interpolaes e comentrios posteriores.
Dito isto, no tenho muita certeza: obscura, por natureza, a
escritura crstica, o discurso de Jesus, melhor dizendo.
A quem vou comparar esta gerao? Ela parece as crianas
sentadas nas praas, que dizem aos seus camaradas:
Cantamos pra vocs,
vocs no danaram.
Choramos, choramos,
vocs no choraram.
Evidente que, a, Jesus reproduz a cantilena de uma
brincadeira infantil da Galilia.
Ningum nunca soube direito o que Jesus queria dizer.
-
CAPTULO 5
QUANTO CUSTA JESUS
Por acaso, no se compram dois pssaros por um centavo? e nenhum deles cai sobre a terra sem vosso pai.
Os cabelos da vossa cabea esto todos numerados.
No temas, portanto, melhores que muitos pssaros.
(Mateus, 10, 29)
A moeda uma das maiores conquistas abstratas da
humanidade.
Surgido na Ldia, por volta do sculo VII a.C., o dinheiro j
aparece ligado escravido.
Escravido, dinheiro, alfabeto a trindade que define as
sociedades da bacia do Mediterrneo, em seu boom comercial que
vai culminar nesse imenso Mercado Comum que foi o Imprio
Romano.
Quando Jesus viveu, a economia de todo o mundo
mediterrneo j era monetria.
Nas mos de egpcios, gregos, gauleses, ibricos, judeus,
circulavam sestrcios e asses, cunhados por Roma, pequenos
crculos de metal trazendo o perfil e o nome do Imperador,
onipresena de Roma.
No mundo em que Jesus vivia, o dinheiro era a evidncia da
presena do dominador: o povo de Israel estava nas mos do
-
goiim, os pagos, idlatras, politestas, que no reconhecem o
poder de Jeov, que no sabem que s h um Deus e que esse
Deus escolheu um povo para crer nele e s nele.
Na Judia, a mais nfima moeda era um ndice da
humilhao nacional.
possvel fazer uma leitura monetria de Jesus.
Inmeros episdios da sua saga esto marcados pela
presena do dinheiro. Isso , e, particularmente, sonante em
Mateus.
No admira.
Vejam s como Jesus conquista este apstolo:
Quando Jesus passou por ali,
viu um homem sentado no telnio,
por nome Mateus.
E disse: me siga.
E levantando
o seguiu.
O telnio era um pequeno balco onde os publicanos
recebiam os impostos de Roma. Mateus era um publicano, tipo de
gente odiada pelos judeus zelosos. Afinal, os publicanos so
agentes da dominao romana.
Os publicanos, evidentemente, se entregam a operaes
financeiras, emprestando dinheiro, cobrando juros, vivendo enfim
dessa suprema abstrao do trabalho, que a moeda.
Todo o pensamento abstrato dos gregos no passa de uma
traduo conceptual de operaes monetrias: lgica e juro,
metafsica e porcentagem, filosofia e crdito so, no fundo, o
mesmo fenmeno. Na poca de Jesus, porm, os judeus no eram
um povo de comerciantes nem de financistas.
-
Em toda a bacia do Mediterrneo, onde eram milhes,
disseminados entre todos os povos, os judeus eram clebres como
artesos, carpinteiros, pedreiros, teceles, ourives, ferreiros. Nesse
mundo de coisas, o dinheiro, trans-coisa, poder em estado puro,
s pode ser um objeto do diabo.
Alis, est na hora de falar do diabo.
O judasmo primitivo desconhece demnios. Nada mais
estranho ao puro monotesmo do que imaginar, ao lado do ser
supremo, um opositor, de poderes quase iguais aos dele.
Parece que aos judeus o demnio lhes veio da Prsia.
A Prsia dualista de Zoroastro e do maniquesmo: o Princpio
do Bem versus o Princpio do Mal.
Mas o demnio soube se insinuar junto ao trono de Jeov.
L est ele, no livro de J, tentando o justo. Jesus e seus
contemporneos acreditavam no diabo, o inimigo, o Outro, o anti-
Deus, em hebraico, satan.
Este demnio, para Jesus, pode se chamar Mammon. A
palavra aparece neste contexto curioso:
Ningum pode servir
a dois senhores.
Pois vai odiar a um
e amar o outro.
Ou vai apoiar um
e desprezar o outro.
No se pode servir a Deus
e a Mammon.
Mammon uma palavra aramaica que significa aquilo em
que se confia, isto , crdito, e por extenso riquezas, bens,
dinheiro acumulado.
Publicano de profisso, Mateus registra inmeros episdios
-
da vida de Jesus ligados ao dinheiro.
At o carter subversivo da misso de Jesus aparece ligado
moeda.
Os evangelhos narram a tentativa de armadilha em que seus
inimigos o quiseram encurralar.
Fariseus e saduceus se aproximaram dele, apresentaram-lhe
uma moeda com que se pagava o tributo a Roma. E lhe fizeram
uma pergunta poltica:
A lei de Roma manda
que se pague este tributo a Csar.
O que que voc diz disto?
Jesus, que tinha sempre um humor muito pronto, pegou a
moeda e perguntou:
De quem esta efgie
gravada na moeda?
De Csar, disseram.
A Csar o que de Csar,
a Deus o que de Deus.
Na resposta, Jesus contrapunha sua utopia mstico-poltica
do Reino de Deus, a mlechah Adonai, estpida realidade do
imprio romano, criando-lhe um concorrente.
O tema monetrio aparece ainda em parbolas importantes,
como a da dracma perdida. Ou na fbula do bolo encontrado na
boca do peixe.
A comunidade, a fratria, dos seguidores de Jesus parece ter
-
tido um esboo mnimo de organizao financeira.
Entre os doze principais que o seguiam, a administrao do
dinheiro comum (trao essnio?) estava a cargo de Judas
Iscariotes.
Pois foi Judas, o homem do dinheiro, quem traiu Jesus,
apontando-o s autoridades.
Por exatamente trinta dinheiros. Trinta belas moedas de
prata, com a imagem do Imperador de Roma.
-
CAPTULO 6
JESUS MACHO E FMEA
E soprou o Senhor Adonai um sono sobre Ado: quando
dormiu, tirou uma de suas costelas e encheu o lugar com carne. E
da costela que tirou de Ado o Senhor Adonai edificou a mulher.
Neste mito do Gnesis, o fundamento metafsico do rigoroso
patriarcalismo semita (hebreus e rabes).
Notvel na estrutura do mito da origem de Eva que ele
constitui uma inverso da realidade: biologicamente, o homem
que sai da mulher, no a mulher do homem.
Curiosamente, o Gnesis, ainda por cima, referenda o mito
com uma pseudo-etimologia, um argumento filolgico, fundando o
mito no prprio tecido morfolgico da linguagem.
E ela se chamou mulher porque do homem foi extrada.
Em hebraico, homem isch, mulher, ischah: nenhuma
dvida, ischah uma forma derivada de isch...
O patriarcalismo falocrtico, prprio dos pastores nmades,
que eram todos os semitas em sua origem, encontrou sua
traduo mais literal na poligamia, regime no qual a mulher
desaparece enquanto pessoa, reduzida a uma frao de um
harm. Os antigos hebreus e o judasmo posterior so
fundamentalmente patriarcalistas, bem como o cristianismo e o
Islam, derivados diretos da f de Moiss.
Nesses trs credos (no fundo, um s), a mulher no tem
acesso s funes sacerdotais: os intermedirios entre o sacro e a
-
humanidade so rabinos, padres, ulems.
Isso vem de muito longe.
No livro do Gnesis, os primeiros grandes patriarcas hebreus
(Abro, Isaac, Jac) tm muitas mulheres, como cabe a um
prspero sheik do deserto.
Como distinguir o esplendor do reino de Salomo, sem
lembrar das setecentas mulheres do seu harm, entre as quais
brilhava, inclusive, uma filha do fara do Egito?
Nesse universo patriarcal, falocrtico, poligmico, a mulher
s pode ter uma existncia, uma condio ontolgica rarefeita,
essencialmente subalterna, secundria, menor, algo entre os
camelos e rebanhos e os humanos plenos, que so os machos.
Da, os rigores da lei mosaica contra o homossexualismo e a
sodomia, instncias de aguda feminilizao do homem, punidos
com a morte.
Por isso mesmo, espanta o registro da saga de vrias
mulheres, entre os antigos hebreus, tal como os apresenta o
Antigo Testamento: Mriam, irm de Moiss, Judite, Rute, Ester.
Antes dos reis Saul e Davi, os hebreus eram regidos pelos
shofethim, juzes. Um desses juzes foi Dbora, uma mulher que
dirigiu o povo hebreu durante os duros tempos da ocupao da
Palestina contra os filisteus que a habitavam (uma antepassada de
Golda Meir?). Um shofeth era, ao mesmo tempo, um lder militar e
a suprema autoridade judiciria entre as doze tribos em que se
dividiu o povo hebreu na conquista de Cana/Palestina.
Como explicar a presena de uma mulher exercendo um
cargo dessa importncia numa sociedade onde o flus o cetro e a
coroa apenas uma hiprbole da glande?
No Livro de Josu, Dbora chamada de profeta: uma
mulher podia ser nabi, em Israel.
-
Essa anomalia, talvez, se explique pela permanncia de
resqucios matriarcais-tribais entre os hebreus. Talvez, se trate da
infiltrao de valores egpcios: na terra donde Moiss tirou seu
povo reinou Hatsep-schut, fara-mulher, que a tradio grega,
atravs do historiador Herdoto, chamou Nitcris.
Os gregos da era clssica, alis, sempre se espantaram com
a liberdade de movimentos de que desfrutava a mulher no Egito,
mais um dos absurdos desse povo cujos costumes soavam to
estranhos aos ouvidos helnicos.
Nos tempos de Jesus, a situao da mulher hebria no deve
ter melhorado muito, embora a poligamia dos tempos patriarcais
parea ter quase desaparecido, substituda pela monogamia, pelo
menos entre as classes mais modestas.
Complexas as relaes de Jesus com as Mulheres.
Parece que sua doutrina e sua presena exerciam grande
fascnio sobre elas.
Marcos descreve a cena logo depois que Jesus, crucificado,
morreu, dando um grande grito.
Ali estavam tambm algumas mulheres que olhavam de
longe, entre as quais Maria Madalena, e Maria, a me de Tiago o
Menor e de Jos e Salom, as quais, estando ele na Galilia, o
seguiam e o serviam e muitas outras que com ele tinham subido a
Jerusalm.
Seguiam-no e o serviam. Muitas outras. A saga de Jesus
est cercada de mulheres.
O Evangelho de Lucas mais exato.
Indo ele, logo depois, por cidades e aldeias, pregava e
anunciava o reino de Deus. Acompanhavam-no os doze e algumas
mulheres que tinham sido curadas de espritos malignos e
enfermidades. Maria, chamada Madalena, da qual havia
-
expulsado sete demnios, Joana, mulher de Cuza, administrador
de Herodes, e Susana, e outras muitas, que o serviam com seus
bens.
Eram as mulheres do squito de Jesus que asseguravam sua
subsistncia, bem dentro de um esquema me-filho: eram as
mulheres que davam de comer a Jesus.
Nada de anmalo nisso: a espiritualidade nas mulheres
mais intensa. Entre elas, todos os criadores de religies, os
inventores do signo transcendental, encontraram logo seus mais
pacientes ouvintes e seus primeiros seguidores.
At nesse to masculino Islam, o primeiro convertido por
Maom f de Al foi sua mulher Kadidja.
Na expanso da f crist, no Imprio Romano, o papel das
mulheres parece ter sido fundamental.
Religio de escravos, em seus primrdios, o cristianismo
passou por um processo de ascenso social at chegar ao palcio
dos imperadores romanos. Nessas altssimas rodas, os primeiros
convertidos foram imperatrizes e grandes damas da famlia
imperial. A partir da dinastia Flvia, em meados do sculo I,
suspeita-se de cristianismo inmeras imperatrizes e familiares de
imperadores romanos.
O terreno j estava preparado pela infiltrao da f judaica
entre as mulheres desde os primrdios do Imprio.
A historiografia romana imperial registra relaes ntimas
entre Popia, amante de Nero, e o judasmo de Roma (milhares de
judeus na capital do Imprio no incio da era crist).
Com Jesus, no deve ter sido diferente.
As mulheres o ouviam melhor que os homens.
Nele, viam um pai? Ou um filho?
De pai, ele tinha o tom autoritrio de quem sabe o que diz,
-
porque fala em seu prprio nome: a certeza de quem senhor de
uma verdade que criou.
De filho, devia ter algo dessa fragilidade infantil dos homens
muito espirituais: Jesus sempre gostou de crianas, e dizia mesmo
que elas entraro no Reino dos Cus antes de todos.
No Antigo Testamento, no h crianas.
Ado e Eva j so criados adultos.
E Moiss, beb flutuando num cesto no Nilo, prepara apenas
a saga do lder adulto.
De mulheres e crianas, porm, os Evangelhos esto cheios.
Muito curiosas as relaes de Jesus com Maria, sua me.
Parecem ter sido muito ligados. O pai Jos desaparece logo
da cena, ausente de todos os episdios: evidente que j tinha
morrido quando Jesus, aos trinta anos, nabi sagrado em gua,
pelas mos de Joo, o Batista, inicia sua militncia.
Em algumas passagens dos evangelhos, Jesus parece ter em
relao me uma oblqua atitude de repulsa.
Na fbula da transformao da gua em vinho, num
casamento no vilarejo de Can, Jesus e sua me, convidados,
discutem.
No episdio, Jesus a chama apenas de mulher.
Em outra ocasio, Jesus pregava cercado de ouvintes.
Algum chega e lhe comunica que sua me e seus irmos (parece
que sua famlia no acreditava muito nele) tinham acabado de
chegar para v-lo.
Minha me e meus irmos? Minha me e meus irmos so
os que me ouvem, respondeu aquele que multiplicava pes e
peixes e transformava a gua em vinho (a lenda evanglica pode
estar baseada, imagino, em alguma expresso popular judaica que
significava fazer fazer o impossvel). De qualquer forma, a me
-
estava com ele na hora de sua execuo. E a ela, nessa hora,
recomendou seu amado discpulo, Joo, o mais jovem dos seus
seguidores, por quem tinha um carinho especial (na Ceia, o
evangelho o registra com a cabea reclinada no peito de Jesus).
De novo, chama Maria de mulher: Mulher, eis a teu filho.
De