lembranças do presente

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CURSO BREVE DE LITERATURA BRASILEIRA é uma colecção de dezasseis volumes concebida para formar, no seu conjunto, uma selecta ou manual de estudo de acordo com um itinerário de leitura coe- rente e organizado. Não se propõe, é claro, oferecer qualquer visão global ou representativa de dois séculos de Literatura Brasileira; mas também não se reduz a alguma escolha parcialíssima determinada por crité- rios individuais de eleição crítica ou gosto. O critério primordial de selecção privilegia as obras que acres- centam a sabedoria literária ocidental, mas acolhe também aquelas que contribuíram decisivamente para dar à Literatura Brasileira a configuração própria enquanto literatura nacional autónoma. Daí resul- tando ainda um conjunto largamente excessivo, a definição dos dezasseis volumes exigiu outros critérios. Desde logo, a opção de conjugar a edição autónoma e integral de obras indispensáveis com antologias de períodos, movimentos ou géneros. Procurou-se tam- bém privilegiar obras ou autores pouco conhecidos ou de todo desconhecidos em Portugal. Como em qual- quer curso, todos os volumes incluem indicações bibliográficas. CURSO BREVE DE LITERATURA BRASILEIRA pode levar, e é desejável que assim seja, ao reexame da condição da Literatura Brasileira em Portugal. Direcção: Abel Barros Baptista

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Lembranças do presente. o conto contemporâneo, organizado por Alcir Pécora representa o volume 15 da colecção Curso breve de Literatura Brasileira.

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CURSO BREVE DE LITERATURA BRASILEIRAé uma colecção de dezasseis volumes concebida paraformar, no seu conjunto, uma selecta ou manual deestudo de acordo com um itinerário de leitura coe-rente e organizado. Não se propõe, é claro, oferecerqualquer visão global ou representativa de dois séculosde Literatura Brasileira; mas também não se reduz aalguma escolha parcialíssima determinada por crité-rios individuais de eleição crítica ou gosto. O critérioprimordial de selecção privilegia as obras que acres-centam a sabedoria literária ocidental, mas acolhetambém aquelas que contribuíram decisivamente paradar à Literatura Brasileira a configuração própriaenquanto literatura nacional autónoma. Daí resul-tando ainda um conjunto largamente excessivo, adefinição dos dezasseis volumes exigiu outros critérios.Desde logo, a opção de conjugar a edição autónoma eintegral de obras indispensáveis com antologias deperíodos, movimentos ou géneros. Procurou-se tam-bém privilegiar obras ou autores pouco conhecidos oude todo desconhecidos em Portugal. Como em qual-quer curso, todos os volumes incluem indicaçõesbibliográficas.CURSO BREVE DE LITERATURA BRASILEIRApode levar, e é desejável que assim seja, ao reexame dacondição da Literatura Brasileira em Portugal.

Direcção: Abel Barros Baptista

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LEMBRANÇAS DO PRESENTE.

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Título: Lembranças do presente. O conto contemporâneo

© Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 2006

© da organização, notas e apresentação: Alcir Pécora

Todos os direitos reservados.

Capa: Livros Cotovia

ISBN 972-795-168-6

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Lembranças do presente.o conto contemporâneo

Antologia organizada e apresentada porAlcir Pécora

volume quinzeCurso Breve de Literatura Brasileira

Livros Cotovia

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Índice

Apresentaçãopor Alcir Pécora p. 11

JOSÉ J. VEIGA

A usina atrás do morro 37

OSMAN LINS

Conto barroco ou unidade tripartita 59

DALTON TREVISAN

O primo 81Cemitério de elefantes 86Morte na praça 89Cena doméstica 98O senhor meu marido 110O fantasma da ópera 114Palácio dos prazeres 118

RUBEM FONSECA

A força humana 127O desempenho 153Relato de ocorrência 160Feliz ano novo 164Passeio noturno parte I 174Pierrô da caverna 177

SAMUEL RAWET

Conto de amor suburbano 201Uma velha história de maçãs 216A luta 222Fé de ofício 227

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HILDA HILST

Gestalt 233Teologia natural 235O grande-pequeno Jozu 237

JOÃO ANTÔNIO

Joãozinho da Babilónia 257Maria de Jesus de Souza (Perfume de gardênia) 280

SÉRGIO SANT’ANNA

O albergue 295Pela janela 315Composição I 325O submarino alemão 338

EVANDRO AFFONSO FERREIRA

Estrabuleguice 365Lanfranhudo 366Evoé! 367Bancarrota 369Paíba 370Onan 371Corê-corê 373Labéu 375Ímpeto 376Brazabum 378Abrenúncio! 379Coscuvilhice 380

Bibliografia 383

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ÍNDICE

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APRESENTAÇÃO

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ALCIR PÉCORA é professor livre-docente de literatura na Unicamp, ondeleciona desde 1977. Autor de estudos de literatura colonial brasileira, e,em particular, do sermonário do Padre Vieira. Crítico e colaborador dejornais e periódicos científicos. Entre as suas publicações, destacam-se:Teatro do Sacramento (Edusp/Editora da Unicamp, 94); Máquina deGêneros (Edusp, 2001); As Excelências do Governador (Companhia dasLetras, 2002); Rudimentos da Vida Coletiva (Ateliê, 2003). Organizoudois volumes de Sermões (Hedra, 2000/ 2001), além das antologiasA Arte de Morrer (Nova Alexandria, 1994) e Escritos Históricos e Políticos(Martins Fontes, 1995), todos a propósito da obra de Vieira. É organiza-dor da edição das obras completas de Hilda Hilst e Roberto Piva pela Edi-tora Globo. Co-editor da revista de poesia Sibila.

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Apresentação

O conto é gênero que, no Brasil, teve um pico de qua-lidade nos anos 60 e 70. Depois disso, o seu interesse foidiminuindo, até a quase inanição dos dias de hoje. Istoposto, a tarefa de organizar uma antologia do conto con-temporâneo me parece implicar basicamente um exercíciode memória daqueles anos de força do gênero. Mas nãouma memória estritamente pessoal. Gostava de pensar nocaso como uma memória mais ampla, geracional e cultu-ral, ligada sobretudo ao impacto público daqueles contos,naquelas décadas. Assim determinado, conquanto deixeregistrado em nota, para eventual informação do leitorportuguês, alguns nomes interessantes de contistas surgi-dos no Brasil nos últimos 50 anos1, do ponto de vista deminha escolha essencial de autores, reduzi as indicações aomínimo possível.

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1Citaria, entre vários outros, Adélia Prado, André Sant´Anna, Antonio

Torres, Autran Dourado, Bernardo Carvalho, Bernardo Elis, Caio FernandoAbreu, Carlos Heitor Cony, Carlos Süssekind, Domingos Pellegrini, Edla VanSteen, Fernando Sabino, Furio Lonza, Herberto Sales, Hermilo Borba Filho, Igná-cio de Loyola Brandão, Ivan Ângelo, João Gilberto Noll, João Ubaldo Ribeiro,José Cândido de Carvalho, Juliano Garcia Pessanha, Luiz Ruffato, Luiz Vilela,Lygia Fagundes Telles, Marcelo Mirisola, Márcia Denser, Moacir Scliar, MuriloRubião, Nélida Piñon, Nelson Motta, Nelson de Oliveira, Olga Savary, OrígenesLessa, Otto Lara Resende, Raduan Nassar, Roberto Drummond, Rubens Figuei-redo, Silviano Santiago, Tânia Jamardo Faillace, Valêncio Xavier, Wander Piroli,Wilson Bueno e Zulmira Ribeiro Tavares. Clarice Lispector e Guimarães Rosaficam fora da antologia por terem livros à parte na coleção.

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Ao proceder dessa maneira, não tive senão de releralguns dos textos dos quais guardava ainda algumaimpressão de quando os lera pela primeira vez (em geral,acompanhado de mais gente, a trocar idéias apaixonadassobre as revelações decisivas que pareciam fazer), e entãoselecionar aqueles que desejaria apresentar mais detida-mente nesta antologia. Entre eles, selecionei José J. Veiga,Osman Lins, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, SamuelRawet, Hilda Hilst, João Antônio e Sérgio Sant’Anna,sobretudo porque forneceram modelos de efetuação dogênero, que permanecem até hoje. Além deles, para quenão fique a impressão de que o gênero esteja extintoenquanto possibilidade de escrita, selecionei um autorcuja produção mais forte se inicia nos anos 2000, EvandroAffonso Ferreira. Fica aqui como representante solitárioda persistência do gênero.

José J. Veiga— ao lado de Murilo Rubião, por exem-plo— é um dos poucos autores, no Brasil, que produzi-ram um tipo de literatura próximo do chamado “realismomágico”, que vingou por toda a América latina, principal-mente durante as décadas a que me referi. De modo geral,o gênero tendia a alcançar resultados bem medíocres, coma confusão do pitoresco, do anedótico e do erótico, mui-tas vezes grosseirão, com a idéia de autenticidade culturale de resistência política latino-americana contra o impe-rialismo internacional, totalizado como anódino, hegemô-nico e autoritário. Tal estrutura maniqueísta, favorável aum estilo grandiloqüente e simplista ao mesmo tempo,ganhou força justamente ao unir a fantasia turística inter-nacional a respeito de um suposto modo de vida primitivoe sexualizado latino-americano com a polarização política

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que resultou da violência das ditaduras militares, que sealastravam desgraçadamente por todo o continente, noperíodo.

Os contos de Os cavalinhos de Platiplanto, de 1959,produzem uma mistura, nem sempre bem resolvida, defábula moral e perplexidade diante das mudanças nomodo de vida tradicional pelo advento do novo ritmoimposto pelo surto industrial, muito sensível no interiordo Brasil, a partir dos anos 50. Narrativas de sonhos oumemórias infantis significam, aí, uma espécie de últimorefúgio da humanidade, ameaçada por mecanismosincompreensíveis, violentos, que progressivamente pare-cem invadir as cidades e os corpos dos conhecidos, comovampiros de almas. No caso de “A usina atrás do morro”,o conto mais bem sucedido do conjunto, há curiosamenteuma semelhança qualquer com o clima dos filmes B, docinema americano dos anos 50.

A história segue um andamento de incômodo e ter-ror crescentes: os pacatos moradores de uma cidadezinhatranqüila vêem a sua vida virar do avesso com a chegadade um misterioso casal estrangeiro, que compra terras nolugar, repudia qualquer contato amistoso com os locais eprepara a vinda de outros grupos de homens, encarrega-dos de construir uma enorme usina na região. Sobretudoa mulher chocava por seus modos pouco femininos. Empouco tempo, já não resta vestígio da antiga tranqüili-dade. Os moradores que não adotam os procedimentosda nova ordem ditada pela usina vão sendo expulsos,atropelados ou mortos. A ameaça toma a forma de umaespécie de ataque alienígena da industrialização, repen-tino e desnecessário, cuja eficiência se traduz na completadesorganização das antigas formas de convívio e na irrup-

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APRESENTAÇÃO

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ção de hábitos estranhos, cruéis e sonambúlicos, cristali-zados nas máquinas.

Embora escrito antes do golpe militar no Brasil, queé de 1964, também este conto foi maciçamente lido nachave da literatura de oposição à ditadura do períodosubseqüente. O esquematismo evidente de sua concep-ção é apenas matizado pela amplificação própria da visãodo narrador juvenil e pela construção paulatina deatmosfera inquietante e sombria, mantida consistente-mente, do começo ao fim, pela sobriedade estilística, queresiste à exuberância kitsch muito comum no gênero fan-tástico.

A obra de Osman Lins ainda está longe de ser bemconhecida, pelo público ou pela crítica. Talvez seu ecle-tismo, talvez a fugacidade das modas do realismo mágicoe do estruturalismo, a que teve seu nome ligado, talvez acomplexidade experimental de sua prosa, talvez até a suamorte prematura — qualquer coisa conspirou contra aimpermanência da notoriedade que alcançou nos anos 70.

“Conto Barroco”, entre outros contos de NoveNovena, é um exemplo do experimentalismo que marcaparte considerável da sua prosa. Especialmente interes-sante nele é a construção de uma narrativa que apresenta,dentro do seu próprio enunciado, possibilidades diversasde seu desenvolvimento—procedimento emprestado donouveau roman francês, mediado talvez pelas narrativasinterativas de Júlio Cortázar. Osman Lins o aplica, aqui,de modo a que o desnudamento do arcabouço narrativodo conto não impossibilite a continuidade da sua tensãonarrativa, mantida por certa crueldade erótica e pelaexpectativa do desenlace da missão do pistoleiro.

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Outro aspecto interessante do modo narrativo deOsman Lins é que, ao situar a ação em cidades históricasde Minas Gerais (Congonhas, Ouro Preto, Tiradentes),usualmente associadas à produção de obras ditas “barro-cas”, o autor também cria, de modo pertinente, descriçõesque emulam artifícios recorrentes nesse estilo artístico,como o efeito de trompe l´oeil e a síntese das diversas artesnum único objeto. Assim, várias passagens do conto mes-clam as ações das personagens ao cenário que está pintadonos quadros, desenhado nas tapeçarias, esculpido nasesculturas, erigido nas fachadas, de modo a confundir irre-paravelmente a realidade narrada com a visão distorcidado narrador. Amplificado, o procedimento embaralhairreparavelmente as idéias de arte e de real, sendo ambosconstruídos, ambos vertiginosos e enganadores.

Esse traço geral da narrativa associa-se ainda a doisprocedimentos ostensivos empregados no conto. De umlado, está a descrição visionária das passagens que se refe-rem à memória, que nunca é linear ou cronológica, masescavada por associações livres, quase surrealistas, quasepsicodélicas. De outro, e isto talvez seja o mais surpreen-dente, porque é também o mais tradicional possível nasnarrativas regionalistas brasileiras, o eixo do conto se sus-tenta sobre um típico “causo” sertanejo, uma dessas histó-rias anônimas, de terror excitante, a respeito do pistoleiroprofissional contratado para executar em alguém, atéentão insuspeito, a sentença de morte proferida, quiçá,por algum poderoso melindrado. Não é alguém assim,entretanto, que se revela sob o poder oculto a controlar odesfecho da história. O que surge por trás da sentença demorte é uma estrutura de mise en abîme, que produz umaindistinção progressiva entre o carrasco e suas vítimas, o

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APRESENTAÇÃO

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“eu” e o “outro”, sob o arbítrio do autor que exibe suashesitações. A composição do conto concorre então comoprincipal matéria da narrativa, ou talvez seja mais justodizer que concorre com a matéria mais tradicional doajuste de contas ou do encontro marcado.

Dalton Trevisan, ao lado de Rubem Fonseca, é a prin-cipal referência do conto contemporâneo no Brasil, desdeao menos o início dos anos 70, quando sua obra, que háanos já era confeccionada e distribuída artesanalmentepelo autor na área de Curitiba, torna-se então nacional-mente conhecida. A sua literatura, como a de NelsonRodrigues em relação aos subúrbios cariocas, está vin-culada à criação de caracteres extremos, isto é, arquetípi-cos, atemporais, e, ao mesmo tempo, marcadamente locaise datados. A articulação é possível por meio de uma estru-tura melodramática na qual os lugares comuns da narra-tiva romântica e realista são retomados como paródia e,mais ainda, na qual a grandeza de seus temas universais vaisendo diminuída até o mais cruamente provinciano e mes-quinho.

Dalton Trevisan mostra extraordinário talento paradescobrir o sórdido na ação mais corriqueira e, por issomesmo, para revelá-lo na mesma área semântica do pito-resco, do típico e do doméstico. Mais precisamente, a suaespecialidade é o patetismo cruel que se pode extrair davida familiar, boçal e provinciana. Vale dizer, o tipo demiséria exsudada na tortura do casamento, nas seduçõesbaratas de profissionais da sedução, na sexualidade recal-cada, no falso moralismo, nas taras sistemáticas, etc. A fór-mula gera uma personagem exemplar da criação de Trevi-san, o vampiro curitibano. Misto de malandragem e

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vulgaridade, de esperteza matuta e ignorância invencível,a sua marca é a perversidade, o gosto— em tudo contrá-rio ao gosto—de se alimentar dos clichês a que a mesqui-nhez da vida acostuma. Prêmio da virgindade roubadopelo incontornável primo violador; resgate impossível damulher desonrada; murmuração da cidade cuja pacatezsolicita escândalo, sangue e morte violenta; contemplaçãomórbida do suave e seguro crescimento dos tumores;memória ressentida de velhos; sapato marrom de biqueirabranca, bala de mel, mágica de baralho, cueca de seda,matinê de domingo, papel de bala azedinha, motociclistade circo, tais são os lugares onde bebe o vampiro. Todoesse tipo de coisa extinta e empalhada, ordinária e abjeta,sobretudo porque repassada de ternura.

Do ponto de vista das ações, os contos de Dalton Tre-visan raramente exigem mais do que a da imaginação fer-mentada na impotência. As suas personagens pequenas esem capacidade de vingança do desdém sofrido ou fanta-siado recalcam a ação em ódio contumaz e ressentido—ódio que (aristotelicamente) já não é paixão que se possafartar na vingança pessoal e determinada contra alguém,mas que se dissemina fantasticamente pela vontade dedestruição do gênero inteiro até tocar a loucura. Nessamecânica afetiva baixa explorada por Trevisan, o detona-dor da vingança adiada em ódio e insânia pode ser, porexemplo, a imaginação desvairada dos ciúmes. Um aze-dume inoculado sutilmente — um beijo do irmão donoivo na noiva afogueada—que, de uma hora para outra,se metamorfoseia no monstro a que nada sacia, mas quegarante vida lenta e dolorosa. Esse mesmo desejo de vin-gança sem escape se revela também no ódio implacável aosanimais, que se entregam passivelmente à tortura do

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dono, bem como no espelho do relógio parado, que asse-gura ao lar a sua exclusão dos eventos, da história, da vida.

Neste cenário claustrofóbico, de barraco de duaspeças, não há saída, a não ser a morte. De modo que osseres desenganados e devotados à morte são os que commais dignidade são representados aqui. Como os bêbadosterminais de rua que, com a sabedoria dos elefantes,tomam o caminho revelado do cemitério. Apenas nessahora ressuma uma pálida dignidade de vida, que, entre-tanto, não dura.

Desde os anos 70, ao menos, Rubem Fonseca é omais conhecido, lido e imitado contista brasileiro. Talvezseja o único autor na Literatura Brasileira que imprimiureal interesse ao gênero do romance policial, do qual for-neceu o modelo mais emulado até hoje no país, sem quese produzisse, entretanto, nada próximo em qualidade.O próprio autor, que, ao longo de sua produção, evoluida narrativa brutalista, seca, para o esquemático e progra-maticamente escandaloso, parece ter perdido a mão nafeitura dos contos, confundindo-os com roteiros cinema-tográficos ou com crônicas jornalísticas mais ou menosapelativas. Curiosamente, o mesmo trajeto, não muitofeliz, deu-se com aquele que, como disse antes, foi o seuúnico verdadeiro competidor no Brasil em matéria deêxito crítico e popular no gênero do conto: Dalton Trevi-san. Também este, ao repisar as mesmas fórmulas que ofizeram excelente, tendeu a reduzir a sua narrativa a tra-ços mínimos, mas não àqueles mais distintivos de seunúcleo amargo, único, e sim aos tiques mais pitorescos,aproximando-a de sketches de sitcom. Este aspecto cronís-tico, aliás, de relato de acontecimento ligeiro com fixação

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— e dispersão — em detalhes anedóticos, talvez seja agrande praga da produção brasileira do gênero nos últi-mos 30 anos, que se mostra incapaz de sustentar a tensão,o nervo central que faz a força do conto.

Nesta antologia, porém, trata-se de representar o for-midável narrador que Rubem Fonseca revelava ser nosanos 60 e 70. Os contos aqui apresentados dão uma amos-tra de suas melhores virtudes de contista: a construção deum narrador boçalizado ou indiferente, que parece alie-nar-se de todo afeto em favor de atividades brutas, maqui-nais ou descabeçadas, mas que, ao mesmo tempo, sobuma capa soturna, carregada de silêncios, deixa ver a imi-nência de uma explosão de dor e ódio mal recalcados.O vocabulário técnico das lutas-livres e quebras-de-braço,dos treinos nos ginásios de halterofilismo do centro(muito antes de que estes se tornassem academias paramoças de bairro nobre), bem como os idiotismos dos rela-tórios burocráticos alterna-se, sem hierarquia, com a com-posição de cenas de amor canhestras, incompletas, e dosgestos maquinais na sala de jantar e TV.

Desse modo, Rubem Fonseca constrói, com parado-xal elegância, com corte rigoroso da frase, uma imagem demundo irremediavelmente ordinária e perversa. O relatoalheado e frio deixa transparecer um tremendo esforço decontenção do pesar, da dor da inadaptação à vida. Tantomaior a frieza da narrativa, tanto mais evidencia a catás-trofe, o desastre, a degradação. Nada aqui tem a ver, por-tanto, com o velho parnasiano que empesteia a prosa bra-sileira; nada a ver também com nenhum maneirismoafrancesado e reflexivo; nada a ver enfim com a literaturadenuncista que, por conta da oposição à ditadura militar

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da maior parte do período, ganhava rapidamente, emgeral abusivamente, status de boa literatura.

Pode-se dizer também que Rubem Fonseca tornou-semestre em obter o efeito de um qualquer lirismo que,entretanto, só existe quando gerado em concomitânciacom o sórdido. A ternura que resta está definitivamentelesada por um desastre iniciado no illo tempore e que,agora, apenas aguarda o tempo de seu anúncio espetacular,como surto de dor e ira. Até lá, tudo o que ocorre é con-versa fiada, tempo que escoa a condensar a explosão imi-nente, que, quando ocorre, se dá sempre de forma teatral,em proporções amplificadas de violência, sexo e sangue.

Por vezes, alguma nostalgia existe, nos relatos, comofantasia de um dia perfeito, no qual a vida simples sedeposita sobre gestos puros, sem telos fúnebre a repassar oseventos de dor. Nessas ocasiões, algum sentimentalismobreve se derrama sobre o relato factual, cronológico, ine-xorável. Outras vezes, queda resumido num dito senten-cioso, numa máxima de ocasião, que, por isso mesmo, dizmais respeito ao moral, à atitude na hora da ação, do queà moral, no sentido ético. Aliás, quando tudo é apenassinal do desfecho atroz que se aproxima, a idéia de éticainexiste nos contos: quando muito aparece como citação,ornamento e, portanto, como cinismo.

Especialmente notável nos melhores contos de RubemFonseca é a falta de solidariedade em todas as relações pes-soais, e ainda mais nas da multidão. Muito longe dos rela-tos de remissão coletiva, como os de Guimarães Rosa, porexemplo, nos quais a multidão sempre sabe ou adivinha oque cada um, em separado, desconhece, os contos deRubem Fonseca mostram mais similitude com os juízosaristocráticos a propósito da canalha. Nos contos, nada

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pode ser mais volúvel e sem caráter do que a multidão,que age sempre covardemente, como massa caprichosadominada pelos piores instintos—, ou, pensando bem,por um único instinto: menos o de sobrevivência que o dedestruição.

A frieza dos narradores dos contos, como no caso de“Relato de ocorrência”, pode se impessoalizar até tomar aforma de um relatório de ocorrência policial: um meroformulário burocrático, notarial, que não descreve nadaalém do vazio intrasponível entre os eventos brutais e acompreensão deles. Rancor pessoal, ódio social e indi-ferença burocrática são diferentes emanações da reali-dade degradada. Curiosamente, quanto mais neutra é amáquina enunciativa, mais cômico, e mesmo nonsense, é oefeito narrativo.

A idéia de nonsense articula-se com a de niilismo. Noscontos de Rubem Fonseca, se os marginais são sempre tos-cos e violentos, os ricos são cruéis, a classe média é alie-nada e inútil. Em comum, têm o gosto da novela, a litera-tura comum nacional, e o tesão do crime — seja elenotícia, como no caso da classe média; hábito ou forma devida, como no dos marginais; esporte e mesmo arte, nocaso dos ricos e dos intelectuais. A rigor, não há elite: sóralé humana. O simbolismo básico, anotado pelo escritor,é o produzido por pessoas se matando mutuamente.

O que sempre me impressionou nos contos deSamuel Rawet, acima mesmo de quaisquer outras virtudesde sua literatura bem particular, são as aberturas deles: osseus primeiros estonteantes parágrafos. Ninguém, no Bra-sil, tem inícios como os dele. Começa-se a ler e, ao fim daprimeira frase, já se descobre embarcado numa vertigem,

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na qual simetrias estranhas invadem e perturbam as refe-rências concretas do enunciado. Aberturas in medias res,que misturam movimentos de coisas e elementos geomé-tricos. Há uma insinuação cubista quase, mas as descri-ções são dramáticas demais para que a observação formalanalítica se desenvolva: antes, as aberturas se detêm e con-centram num tom denso, no qual o leitor se descobre ameio. Mal começada a leitura, já não há como recusar ocorte alucinatório ou paranóico da descrição, com seubloco de sombras em expansão.

Aos poucos, a vertigem se acalma, ou melhor, desco-bre um plano básico de estabilidade. As personagens sedistinguem, definem, os cenários são bem determinados:tais ruas do centro ou do subúrbio, os itinerários dos ôni-bus, um café, uma varanda. Dos movimentos distorcidosiniciais resta, entretanto, um traço: uma espécie de torporque imprime ao narrador de primeira pessoa ou à perso-nagem principal uma ineludível separação de todos osgrupos a que poderiam pertencer. Família, amigos,ambientes ruidosos do bar, conversas com a namorada…tudo é estrangeiro e, enfim, incomunicável. A vertigem,portanto, se desfaz em existencialismo—mas existencia-lismo não programático, sincero.

Muitas vezes, a dissipação da vertigem abriga algumaexplicação sociológica, de distância social ou preconceitode raça; mas invariavelmente a explicação é menos palpá-vel do que o efeito de torpor que se instala na narrativa.Como entendê-lo? A sua natureza é meditabunda, o deva-neio é sua outra face. Espaços determinados, particulares,abrem-se imprevistamente para longes terras da memória.Duas ou mais narrativas simultâneas se sustentam no fiodo enunciado, enquanto o presente perde sentido veloz-

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mente. Algum incidente simples, uma morte súbita, gera,sem alarde, uma peripécia total, que empurra as ações nãono sentido contrário do que vinham, mas para a evidênciada falta de consistência de tudo o que havia de maisseguro. As personagens nada podem contra essas inversõesabstrusas: são tímidas, hesitam, não formam idéias com-pletas das operações nas quais estão envolvidas.

O sentimento de pequenez, sim, é ostensivo, como otorpor. Ambos evidenciam que se rompeu definitivamenteo fio da ligação com os outros, o que também se projetacomo ruptura consigo próprio. O que se segue daí é umtipo de narrativa cujo protagonista admite sempre umduplo violento e hostil. Nos gestos e hábitos mais corri-queiros—como quando a mulher, em “Uma velha histó-ria de maçãs”, serve a sopa ao marido e vai comer, silen-ciosa, no outro cômodo — a descrição minuciosa dosgestos automáticos produz o estranhamento do quoti-diano inteiro. A narrativa, neste ponto, é a construção sis-temática da alienação: os músculos do corpo se autono-mizam e são observados de fora, como formas e ritmosestranhos, por vezes com absoluta indiferença.

No mesmo movimento de evidência dos processos dealheamento de si próprio, a narrativa de Rawet é especial-mente atenta à perda progressiva das escolhas e da idéia defuturo, até a descoberta de que real é apenas a coisa sór-dida e bruta. Mantém-se algum sentimento nostálgico ouromanticamente niilista na hipótese de que, na loucura,talvez, residisse ainda a grandeza perdida, mas é um ins-tante apenas: a tendência dos contos é reconhecer que aloucura não se sustenta na grandeza que inventa. O desen-gano, nesse caso, vem, em geral, na forma do fluxo deconsciência, que pode produzir-se como vozes imperativas

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e autoritárias que ocupam o lugar da falta de ânimo, docorpo exausto, ou então como torrente incontida de lem-branças. Nos dois casos, o seu efeito último é devastador,como perda do sentido do diálogo, inimizade consigomesmo, horror à vida.

Também cabe dizer que, curiosamente, o pathos exis-tencialista e paranóico dos contos de Rawet estrutura-sesobre elementos minimalistas, beckettianos, que, porvezes, suscitam até alguma leitura alegórica, tamanha aredução de seus elementos aos mínimos necessários e,mesmo, aos esboços do necessário. De certa maneira,como em “A Luta”, essa estrutura minimalista se reduz àagonia de dois contendores cara a cara até o ponto deparanóia em que um e outro são o mesmo.

Hilda Hilst, que começa a ter sua obra editada emPortugal, escreveu Pequenos Discursos. E um Grande, em1977, de onde foram extraídos os três textos constantesdeste volume. Não é o seu livro mais conhecido, nem omais celebrado criticamente, mas do ponto de vista doimpacto de sua obra em minha memória — desta vez,temo dizer, estritamente pessoal—foi o que primeiro ima-ginei relacionar para esta antologia de contos. Nummomento imediatamente posterior à derrota da lutaarmada contra a ditadura militar, a qual, por sua vez,começava a desgastar-se publicamente e começava a bus-car alguma institucionalização, os contos desse pequenovolume declaravam que as batalhas mais decisivas, os pro-blemas mais cruciais ainda estavam longe de ser enfrenta-dos por quaisquer dos lados da trincheira.

Nesse âmbito, Pequenos Discursos. E um grande, comoconjunto, constitui um vigoroso grupo de ensaios políticos

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quase, embora produzidos em torno de questões diferentesde tudo o que se escrevia em termos de política e de litera-tura política no Brasil, à época. Os contos, com maior oumenor nitidez, guardam traços marcantes do gênero delibe-rativo, isto é, aquele cujo foco está posto na decisão urgentea tomar-se face ao futuro que se apresenta. Eles querem dis-cutir, por exemplo, as condições de legitimidade de umaescrita radicalmente pessoal e livre numa época de tirania e,portanto, de injustiça sistemática e irreparável, na qual ape-nas a denúncia da opressão ou das causas da revolta socialparece, no pensamento usual de esquerda, constituir-secomo tema ético ou responsável. Também querem saber,por exemplo, se há direito na construção individual de umaimagem de Bem, quando a situação coletiva parece absorvê--la inteiramente, em termos afetivos e morais. Na formaextrema dessa perplexidade, os contos de Hilda Hilst per-guntam se está ainda no âmbito do que se reconhece comohumano ser-se só e absolutamente inútil para qualquercausa, como a personagem que estabelece morada no fundode um poço seco, forrado de excrementos, a ouvir vozesinteriores vindas não se sabe de onde. Querem saber, por-tanto, se é punível com o desprezo universal quem consomeo tempo da própria vida com inutilidades ou incompreen-sibilidades. E fazem questão de pagar a conta de sua dívida,se não for legítimo ou ético dedicar-se a um amor insignifi-cante, o único que os contos podem compreender.

Admitem essas narrativas ensaísticas que, se fosse pos-sível escolher, talvez escolhessem a igualdade, a segurançado comum, o tema da poesia mais útil à ocasião, mas oproblema subseqüente é que não conseguem convencer-sede que essa escolha pode realmente ser feita. Se a escrita ea literatura não são antes um vício da diferença em vez de

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um programa de resistência da comunidade. Ou melhor:se o programa de resistência da comunidade pode ser efe-tivamente empreendido com o expurgo da singularidadeirredutível de seus membros.

Neste ponto, o discurso político admite também umalinha argumentativa desenvolvida a contrapelo, que estámanifesta nas narrativas nas quais personagens de classemédia bem assentada, conservadora e atinente à ordem,entregam-se a um amour fou tardio, esquecendo-se detodos os tabus ou obrigações de grupo, da família à nação.Tais personagens terminam pagando o preço das relaçõessocialmente intoleráveis com patetismo, humilhação emorte brutais. Há ética em ser tomado por uma tal pai-xão? Há moral ajustada ao desejo? Existe algo mais impro-vável do que propor-se um arrebatamento desse tipocomo uma política, seja ela qual for, mesmo uma políticade resistência da paixão ou do desejo?

Numa visada mais abrangente das questões encenadasem Pequenos Discursos, cabe perguntar: é legítimo distin-guir-se tão radicalmente quando a distinção fere o sensocomum da vida socialmente ajustada, o destino conve-nientemente acomodado à esquerda ou à direita? Uma vezaqui, parece justo dizer que, nesses livros, legitimidade eética não bastam para pautar uma existência cuja destina-ção está basicamente fora de controle. Política, igual-mente, não basta. Para Hilda, “literatura” ou “paixão” ape-nas podem dar nome a esse descontrole, desde que nãochegue a ser natural, e nem mesmo um programa de direi-tos da humanidade.

A literatura de João Antônio nunca foi facilmentereconhecida no Brasil justamente por aqueles de quem

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podia esperar simpatia: os grupos mais politizados, aliadospotenciais na formulação de um discurso de crítica social.A razão não é difícil de compreender: qualquer coisa soavapopulista e sentimental nas suas crônicas do submundo.Hoje, se a crítica permanece válida, João Antônio está jáperfeitamente absorvido como autor que forneceu amatriz de um tipo de narrativa de vida fora-da-lei, muitoimitada nos últimos anos.

É certo, entretanto, que a sua geografia básica, entreLapa e Copacabana, nas zonas decadentes da cidade,ostenta um evidente paradoxo temporal. Ao acompanhara perambulação de personagens miseráveis, lúmpens, embusca de trocados para a sobrevivência, a narrativa inva-riavelmente faz remontar a imaginação para uma míticaÉpoca de Ouro da malandragem, na qual, dotados derigoroso código moral, tendo como arma eficaz mais aastúcia que a violência, os mais engenhosos acabavamrecompensados com vida boa e aventurosa, mesmo se nemsempre com final feliz. Ou seja, há em cada conto de JoãoAntônio um verdadeiro elogio do malandro, de matrizcarioca, que hoje não é menos popular do que antes. Essetriste traço de encômio subdesenvolvido impregna nãoapenas a literatura ou a música popular brasileiras, mas aprópria mentalidade oferecida e celebrada difusamentecomo identidade nacional. Aparentemente, no Brasil, issonão tem cura.

Tornando, entretanto, à estrutura específica do contode João Antônio, nota-se que as narrativas são geralmenteem primeira pessoa, conduzidas por personagens da rua eda noite, cujo fluxo de consciência, alterado pelo álcool,pelas drogas, ou pelo sentimento machucado, ostente pro-fusamente gírias da malandragem, ditos populares, frases

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curtas e narrativas simultâneas, numa sintaxe saborosa,quando não ornamental e amaneirada. Curiosamente, écomedido no calão. O tom predominante é aquele damalandragem respeitosa e conhecedora dos limites da bai-xaria.

Vige nas histórias uma espécie de moral antiga, ati-nente às regras daquela Idade de Ouro da malandragem,articulada ao imperativo da valentia, da réplica sutil, dodomínio de si na cara neutra e disfarçada. O efeito geral éanedótico, pitoresco, melodramático, com personagens esituações sentimentais típicas. Brutamontes sensíveis, mal-trados pela dor de cotovelo; contos do vigário; bate-bocagabola ou galantaria chinfrim; bares e boates, que sãoprostíbulos; camburões de polícia, vestíbulos da delegacia;o lugar e o tempo nenhum entre o fim da farra e o iníciodo expediente: esta a geografia espiritual dos melodramasde João Antônio. No conjunto, predomina certo roman-tismo da boca do lixo, com sua poesia de bar e sabedoriade dito popular. Partes inteiras da narrativa concentram-seem aforismos e sentenças, vazadas sempre no léxico peculiar da vadiagem, que, para o autor, compreende um verdadeiro código—lingüístico, moral, filosófico—oculto sob a incultura.

Desse modo, não é impróprio conceber a sua litera-tura como uma espécie de colunismo social da baixa socie-dade. O problema é que o valor desse tipo de literatura sebaseia na possibilidade de o narrador apresentar-se legiti-mamente como testemunho de uma forma de vida. Istosignifica que ela está dependente da sinceridade do relatoe da possibilidade de a linguagem do conto poder falarpelos que não falam nele. A despeito de João Antônio tersido ele próprio um freqüentador dos ambientes que des-

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creve, nem sempre o que se dá a ler, de forma estilizada esentimental, parece uma forma adequada de conceber aviolência desmedida das guerras urbanas travadas no Bra-sil. Está mais para fantasia urbana, fábula moral e mesmopara comédia de costume, do que para narrativa realista,como pretendia ser. Assim repensada, creio também quepossa ser melhor apreciada, pois, em termos realistas, jánão é tão fácil engolir a pílula do romantismo malandro,como lugar de resistência da vida pura em meio à socie-dade institucional desumana, assim como não parece fáciltraduzir o rancor social e o desejo de vingança na áreasemântica da carência afetiva.

De todos os contistas aqui relacionados, SérgioSant´Anna é o menos especializado num único tema ouestilo, e o que alcança maior amplitude ou variedade deregistros discursivos e situações narradas—a despeito domencionado ecletismo de Osman Lins. No entanto, setivesse de apontar um único traço distintivo de sua obra,indicaria a acuidade e o fôlego analítico que, por vezes,tomam forma deliberadamente ensaística, narrativamentefragmentária e desestruturada. O diapasão analítico afinatanto narrativas mais confessionais, centradas na memóriapessoal, quanto aquelas mais próximas de situações típi-cas, ou de costume: em ambas se aplica com êxito.

Assim, em “O albergue”, a lógica analítica se exercesobre as personagens de um quarto de cortiço, cujo fecha-mento, absolutizado pela narrativa, suscita mesmo umainterpretação alegórica, extensiva à sociedade e à vidahumana, nos termos absurdos de sua matriz kafkiana.O enclausuramento, aí, também significa o isolamento deum campo experimental mínimo, que é examinado pelo

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narrador de maneira minuciosa e mórbida, uma vez que assituações isoladas revelam, em geral, um movimento deacentuada decadência—que surge também, com diferen-tes nuanças, em Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, JoãoAntônio e Samuel Rawet. O extraordinário é que a aná-lise, no caso, não implica perda de tensão ou desinteressepela narrativa, ao contrário: é a análise a principal linha deforça a tensionar o enunciado dos fatos, que, de outromodo, à distância, seguramente passariam desapercebidosno caos urbano habitual das grandes cidades ou na desor-dem afetiva, igualmente habitual, de seus habitantes.

A operação analítica cerrada que conduz a narração,entretanto, não tende a reforçar—desta vez, ao contráriode Kafka — a potência alegórica ou hermenêutica dassituações, mas o próprio caminho, errático, casual e mui-tas vezes dispersivo, tomado pela análise. Ao fim do cami-nho não se tem bem estabelecida uma lógica, mesmo doabsurdo, ainda que o raciocínio não se afrouxe. Ao fimdele, fica-se com uma lembrança viva da ocorrência decerto caminho particular, apenas isso, cujas peças nem seajustam bem, nem se contradizem de modo lógico. Fica--se, para usar uma imagem especialmente elucidativa de“O Submarino Alemão”, com um mapa flutuante emmeio a um monte de cadáveres trazidos pela memória.Mas para que serve um mapa flutuante? A que pode levara sua interpretação? Apenas à constatação de sua própriaflutuação insólita e eventualmente dos picos afetivos quea balizam.

O desfecho a que levam os contos é, por isso mesmo,invariavelmente deceptivo, de tom menor, de acomoda-ção à perda de significação do particular, mais do que àcompreensão da falta de sentido do universal. Quer dizer,

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não atinge o trágico, raramente atinge o dramático.Quando se chega ao fim, o fim já havia sido pouco apouco destrinçado e estava lá, apenas esperando para sedeclarar, sem peripécia: são rasteiros os limites daquelaexistência, conquanto única. A sua forma de vida estreita,no melhor dos casos, alcança avivar uma lembrança apa-rentemente perdida do tempo de menino, ou de momen-tos intensamente afetivos, que parecem romper com ofechamento da vida banal.

Uma tal literatura não se pensa como capaz de pro-duzir iluminação ou consciência do verdadeiro estado dascoisas; ela é mais um gesto de conseqüência, ou de reação,isto é, um movimento a mais de adaptação—talvez devadizer animal, ou vital, mais que humana—às mais estrei-tas limitações, que condicionam e estruturam a existência.Nesse aspecto, nos contos de Sérgio Sant´Anna, o seu pró-prio espaço raciocinado de composição se entende comoparte do continuum de vida — não apenas prosaica oubaixa, mas menor do que qualquer valor: trata-se de vidaorgânica, mínima, simples, a respirar não um projeto, nãoum propósito, mas o seu imperativo orgânico de adapta-ção à sobrevivência e ao vazio que se condensa progressi-vamente nela.

Evandro Affonso Ferreira é o caso mais bem sucedidode efetuação de um sub-gênero do conto, bastante difun-dido no Brasil, no início deste novo século: o miniconto.Embora Dalton Trevisan já o explorasse pioneiramentenos anos 70, ele o fazia sobretudo como experimentaçãominimalista que impunha cortes sucessivos à narrativaantes extensa. Esta se reduzia então a fórmulas indicativasde situações-clichê de seus contos, o que lhe dava nítido

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acento auto-referencial. Com Evandro Ferreira, a compo-sição é bem diferente e tem dois pontos certeiros ondeapoiar o seu eixo.

O primeiro deles está na forma precisa de compor adisposição ou seqüência das ações. O espaço do contoavança apenas o estritamente necessário para produzir umtipo bem particular de peripécia e reconhecimento—nãotrágicos, mas cômicos ou melodramáticos—no desfechoda ação. Ambos se obtêm por meio de um monólogo oudiálogo interiorizado, cujo tempo do enunciado avançaaté o presente da enunciação e, uma vez aí, coincide coma revelação da identidade imprevista do protagonista doconto ou da situação esdrúxula em que se encontra. Assima fala de uma mulher sobre a sua antiga beleza se descobrecomo esclerose da mãe que já não reconhece o própriofilho; o monólogo saudoso de um viúvo se desmascaracomo a alegria vingativa de urinar no túmulo da consorteautoritária; as lembranças do hospício revelam o duro ofí-cio de Papai Noel, e assim por diante. Enfim, todo contotraz consigo uma surpresa e uma reviravolta em relação asuas personagens ou circunstâncias.

O segundo ponto em que se apóia a literatura deEvandro A. Ferreira, ainda mais decisivo que o anterior, éa sua linguagem peculiar. Desde Guimarães Rosa não sevia um escritor aplicado em criar um vocabulário e umasintaxe tão característicos, no caso, o grogotês — queinclusive se mantém também em todos os seus romances,e mesmo na sua correspondência privada. Apesar da apa-rência de neologismo, todo o léxico grogotês está dicio-narizado; a sintaxe é única, calcada maciçamente em trejeitos orais, expressões interjetivas, redundâncias e ana-fóricos. O efeito colorido, pitoresco, do conjunto favo-

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rece, em especial, a produção de uma linguagem de cará-ter afetivo, sentimental, mas também ensimesmado e res-mungão—numa palavra, sistemático, no sentido regionalmineiro do termo, isto é, a meio caminho entre o luná-tico, o obsessivo e o caduco. O grogotês, por isso mesmo,é linguagem sempre simpática à dor humana, mediaçãopiedosa entre o sofrimento dos loucos da rua ou do hos-pício e a linguagem neutra e exterior da normalidade,forma mais alarmante de loucura. Nas inversões própriasdo seu jargão, por vezes, um nonsense rasgado se instala:razão vira adivinha, ciência vira palavras-cruzadas, sofri-mento desvairado se identifica com sublime parnasiano,poesia se confunde com letras de música brega, e tudo,bem somado, é literatura, entendida como fingimento daloucura que efetivamente se tem.

No conjunto, nos contos de Evandro A. Ferreira,tudo parece sintoma da falta de medida ridícula, mas ridí-culo comovente, porque mede a fraqueza e a derrota detodos. A julgar por eles, a loucura é o que melhor explicaa forma do mundo. E a incongruência da gente é sempremezinha de desengano face às ilusões desgraçadas de feli-cidade.

Uma nota final, apenas para reforçar o que ficou ditono início: o conjunto de contos e autores aqui seleciona-dos não resultou de uma leitura extensiva dos contos pro-duzidos contemporaneamente no Brasil, mas de um con-junto top of head do gênero, em seu período de maiorimpacto no Brasil. Nesse aspecto, “contemporâneo”, aqui,se reduz drasticamente a “anos 60 e 70”. Isso quer dizer,especificamente, que o material que o leitor portuguêsrecebe em suas mãos, hoje, remete a um mesmo período

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de apogeu do gênero, tal como se consolidou no Brasil,mais do que a um conjunto de obras isoladas, individuaisque satisfaçam um juízo estético formulado no ano de2006.

Na prática, quase me obriguei a renunciar a um juízo,em favor da memória de algumas balizas da vida literáriadaqueles anos. Há perda notável nessa escolha, ao menosno que respeita a leituras mais diversificadas de obras dequalidade. As vantagens, porém, me pareceram maiores,no âmbito de uma apresentação a um público estrangeiro:compõe-se, aqui, um grupo de obras que dialoga ostensi-vamente entre si; que vive e pensa, sob diferentes ângulos,questões afins; que participa e produz parte significativado debate cultural de uma época na qual este foi excep-cionalmente profícuo. Sobretudo, me pareceu interessanterefazer ou retomar um conjunto no qual os diferentes con-tos contextualizam-se uns aos outros. Ao mesmo tempo,dessa maneira, pode-se conhecer, com profundidade, osparâmetros de criação dos autores do gênero mais decisi-vos culturalmente, os quais, de outra forma, ficariamdiluídos num leque muito mais aberto de autores. A espe-rança, em todo caso, é que o leitor, por meio desse gruporelativamente coeso entre si, aqui privilegiado, se entu-siasme a ponto de procurar, por si próprio, outros autorese obras excelentes.

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J. J. [José Jacintho Pereira] VEIGA nasceu em Corumbá de Goiás (GO),em 1915. Cursou Humanidades no Liceu de Goiás. Durante parte dadécada de 40 viveu na Inglaterra, trabalhando na BBC de Londres. Noretorno ao Brasil, passa a viver no Rio de Janeiro, trabalhando como jor-nalista. Torna-se responsável pelo sector editorial da Fundação GetúlioVargas. Teve actividade regular de tradutor. Foi vencedor, em 1997, doPrémio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo con-junto de sua obra. Morreu no Rio de Janeiro, em 1999.O conto antologiado pertence à primeira colectânea de contos do autor,Os cavalinhos de Platiplanto (1959, seguindo o texto da 18.ª edição).Outras obras: A hora dos ruminantes (1966); A estranha máquina extravi-ada (1968); Sombras de reis barbudos (1972); Os pecados da tribo (1976);O professor Burrim e as quatro calamidades (1978); De jogos e festas (1980);Aquele mundo de Vasabarros (1982); Torvelinho dia e noite (1985); Tajá esua gente (1986); A casca da serpente (1989); O risonho cavalo do príncipe(1992); O relógio Belisário (1995); Objetos turbulentos (1997).

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Lembro-me quando eles chegaram. Vieram no cami-nhão de Geraldo Magela, trouxeram uma infinidade decaixotes, malas, instrumentos, fogareiros e lampiões, e sehospedaram na pensão de D. Elisa. Os volumes ficarammuito tempo no corredor, cobertos com uma lona verde,empatando a passagem.

De manhãzinha saíam os dois, ela de culote e botas ecamisa com abotoadura nos punhos, só se via que eramulher por causa do cabelo comprido aparecendo pordebaixo do chapéu; ele também de botas e blusa cáqui desoldado, levava uma carabina e uma caixa de madeira comalça, que revezavam no transporte. Passavam o dia inteirofora e voltavam à tardinha, às vezes já com o escuro. Napensão, depois do jantar, mandavam buscar cerveja e tran-cavam-se no quarto até altas horas. D. Elisa olhou peloburaco da fechadura e disse que eles ficavam bebendo,rabiscando papel e discutindo numa língua que ninguémentendia.

Todo mundo na cidade andava animado com a pre-sença deles, dizia-se que eram mineralogistas e que tinhamvindo fazer estudos para montar uma fábrica e dar traba-lho para muita gente, houve até quem fizesse planos parao dinheiro que iria ganhar na fábrica; mas o tempo passavae nada de fábrica, eram só aqueles passeios todos os dias

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pelos campos, pelos morros, pela beira do rio. Que que-riam eles, que faziam afinal?

Encontrando-os um dia debruçados na grade daponte, apontando qualquer coisa na pedreira lá embaixo,meu pai cumprimentou-os e puxou conversa; eles olha-ram-no desconfiados, viraram as costas e foram embora.Meu pai achou que talvez eles não entendessem a língua,mas depois vimos que a explicação não servia: quandoencontraram o preto Demoste de volta do pasto com amula do padre eles conversaram com ele e perguntaram selobeira era fruta de comer. E como poderiam viver na pen-são se não conhecessem um pouco da língua? Por menosque falassem, tinham que falar alguma coisa.

O que me preocupou desde o início foi eles nuncarirem. Entravam e saíam da pensão de cara amarrada, e omáximo que concediam a D. Elisa, só a ela, era um cum-primento mudo, batendo a cabeça como lagartixas.Aprendi com minha vó que gente que ri demais, e genteque nunca ri, dos primeiros queira paz, dos segundos des-confie; assim, eu tinha uma boa razão para ficar descon-fiado.

Com o tempo, e vendo que a tal fábrica não apare-cia — e não sendo possível indagar diretamente, porqueeles não aceitavam conversa com ninguém — cada um foise acostumando com aquela gente esquisita e voltando asuas obrigações, mas sem perdê-los de vista. Não sabendoo que eles faziam ou tramavam no sigilo de seu quarto ouno mistério de suas excursões, tínhamos medo que o resul-tado, quando viesse, pudesse não ser bom. Vivíamos empermanente sobressalto. Meu pai pensou em formar umacomissão de vigilância, consultou uns e outros, chegarama fazer uma reunião na chácara de Seu Aurélio Gomes, do

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outro lado do rio, mas Padre Santana pediu que não con-tinuassem. Achava ele que a vigilância ativa seria um erroperigoso; supondo-se que os tais descobrissem que estavahavendo articulações contra eles, o que seria de nós quenada sabíamos de seus planos? Era melhor esperar.Naquele dia mesmo ele ia iniciar uma novena particular,para não chamar atenção, e esperava que o maior númeropossível de pessoas participasse das preces. Na sua opinião,essa era a providência mais acertada no momento.

Estêvão Carapina achou que um bom passo seriainterceptar as cartas deles e lê-las antes de serem entregues,mas isso só podia ser feito com a ajuda do agente AndréGóis. Consultado, André ficou cheio de escrúpulos, disseque o sigilo da correspondência estava garantido na Cons-tituição, e que um agente do correio seria a última pessoaa violar esse sigilo; e para matar de vez a sugestão falou emduas dificuldades em que ninguém havia pensado: a pri-meira era que, nos dias de correio, só um dos dois saía emexcursão, o outro ficava de sobreaviso para ir correndo àagência quando o carro do correio passasse; a segunda difi-culdade era que as cartas com toda certeza vinham em lín-gua que ninguém na cidade entenderia. Que adiantavaportanto abrir as cartas? Era mais um plano que ia porágua abaixo.

Sem dúvida o perigo que receávamos nesses primeirostempos era mais imaginário do que real. Não conhecendoos planos daquela gente, e não podendo estabelecer rela-ções com eles, era natural que desconfiássemos de suasintenções e víssemos em sua simples presença uma ameaçaa nossa tranqüilidade. Às vezes eu mesmo procurava expli-car a conduta deles como esquisitice de estrangeiros, elembrava-me de um alemão que apareceu na fazenda de

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meu avô de mochila às costas, chapéu de palha e botinacravejada. Pediu pouco e foi ficando, passava o tempo apa-nhando borboletas para espetar num livro, perguntavanomes de plantas e fazia desenhos delas num caderno. Umdia despediu-se e sumiu. Muito tempo depois meu avôrecebeu carta dele e ficou sabendo que era um sábiofamoso. Não podiam esses de agora ser sábios também?Talvez estivéssemos fantasiando e vendo perigo onde sóhavia inocência.

Imaginem portanto o meu susto e a minha indigna-ção com o que me aconteceu uma tarde. Eu tinha ido àpensão receber o dinheiro de uns leitões que minha mãehavia fornecido a D. Elisa e na saída aproveitei a ocasiãopara dar uma olhada nos caixotes empilhados no corredor.Levantei uma beirada da lona e vi que eram todos domesmo tamanho e com os mesmos letreiros que nãoentendi. Ia puxando novamente a lona quando notei umafenda em um deles, e como não passava ninguém nomomento resolvi levar mais longe a minha inspeção. Abrio canivete e estava tentando alargar a fenda quando sentio corredor escurecer. Pensei que fosse a passagem dealguma nuvem, como às vezes acontece, e esperei que aclaridade voltasse. Voltou mas foi uma mão pesada agar-rando-me pelo pescoço e jogando-me contra a parede.O puxão foi tão forte que eu bati com a cabeça na paredee senti minar água na boca e nos olhos. Antes que a vistaclareasse, um tapa na cabeça do lado esquerdo, apanhandoo pescoço e a orelha, mandou-me de esguelha pelo corre-dor até quase a porta da rua. Apoiei-me na parede para melevantar, e um pontapé nas costelas jogou-me esparra-mado na calçada. Erguendo a cabeça ralada do raspão nalaje, vi o homen de culote e blusa cáqui em pé na porta,

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com as mãos na cintura, olhando-me mais vermelho doque de natural. Com a cabeça tonta, o ouvido zumbindoe o corpo doendo em vários lugares, e o canivete perdidonão sei onde, não me senti com disposição para reagir.Apanhei umas coisas caídas dos bolsos, bati o sujo daroupa e desci a rua mancando o menos que pude.

Felizmente não passava ninguém por perto. Se alguémsoubesse da agressão haveria de querer saber o motivo, ecomo poderia eu contar tudo e ainda esperar que me des-sem razão?

Para não chegar em casa com sinais de desordem nocorpo e na roupa desci até o rio, lavei o sangue dos ralõesdo punho e da testa e o sujo do paletó e dos joelhos dacalça, enquanto pensava um plano eficiente de vingança.Uma pedrada bem acertada na cabeça, ou uma porretadade surpresa, resolveria o meu caso. Ele não perderia poresperar.

Mas eu estava enganado quando supunha que nin-guém tinha visto. Em casa encontrei mamãe aflita. Meupai tinha saído à minha procura, armado com a bengalade estoque. Fiquei sabendo então que D. Lorena costu-reira tinha visto tudo de sua janela do outro lado da rua efora correndo contar à vizinha dos fundos—e a notíciaespalhou-se como fogo em capim seco. Foi por isso quemeu pai, ao dobrar a primeira esquina, foi cercado por umgrupo de amigos que não o deixaram prosseguir. Achavamtodos, e com razão, que ele não devia agir enquanto nãome ouvisse. Tive então que contar tudo, mas achei bomnão dizer que tinha sido apanhado escarafunchando o cai-xote; disse apenas que tinha dado uma palmada nele porcima da lona.

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Isso trouxe uma longa discussão sobre o possível con-teúdo dos caixotes, e concordamos que devia ser qualquercoisa muito preciosa, ou muito delicada, a ponto de umapalmada por fora deixar o dono alarmado. Mas que coisapoderia ser que preenchesse essa ampla hipótese?

Meu pai achou que estávamos perdendo tempo emaceitar a situação passivamente, enquanto em algum lugar,sabe-se lá onde, gente desconhecida podia estar traba-lhando contra nós; era evidente que aqueles dois nãoagiam sozinhos. As cartas que recebiam e os relatórios quemandavam eram provas de que eles tinham aliados. O quedevíamos fazer sem demora, propôs meu pai, era procuraro delegado ou o juiz e pedir que mandasse abrir os caixo-tes, devia haver alguma lei que permitisse isso. Se não fossetomada uma providência, as coisas iriam passando de mala pior, e um dia quando acordássemos nada mais haveriaa fazer.

O delegado, como sempre, estava fora caçando. O juizfoi compreensivo, mas disse que dentro da lei nada sepodia fazer, e acrescentou, mais aconselhando que pergun-tando:

— Naturalmente não vamos querer sair fora da lei,não é verdade?

Quanto à agressão, se meu pai quisesse fazer umaqueixa, o delegado teria que abrir inquérito — desde quehouvesse testemunhas.

Como a única pessoa que tinha visto parte do inci-dente era D. Lorena, meu pai foi o primeiro a reconhecerque contar com ela seria perder tempo. D. Lorena era des-sas pessoas que têm medo até de enxotar galinha. Noinquérito, na presença do agressor, ela cairia em pânico e

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juraria nada ter visto. Assim, a despeito de toda atividadecontinuávamos sem um ponto de partida.

De repente a situação começou a evoluir com rapidez,e fomos percebendo para onde éramos levados. O pri-meiro a se passar para o outro lado foi o carpinteiro Estê-vão. Estêvão tinha uma chácara do outro lado do rio, atrásdo morro de Santa Bárbara. Quando os filhos chegaram àidade de escola ele alugou a chácara a Seu Marcos Vieira,escrivão aposentado, e veio morar na cidade. Seu Marcosvinha insistindo com Estêvão para vender-lhe a chácara,mas Estêvão recusava, dizia que quando os filhos estives-sem mais crescidos deixaria o ofício e voltaria para alavoura.

Pois não é que Estêvão achou de vender a chácara paraaqueles dois, num negócio feito em surdina? Meu pai disseque o procedimento dele não tinha explicação, nem pelalógica nem pela moral. Houve mistério na transação, issoera fora de dúvida. Apertado um dia por meu pai, Estêvãorespondeu com estupidez, disse que fez o negócio porquea chácara era dele e ele não tinha tutor; depois, vendo oespanto de meu pai, seu amigo de tanto tempo, caiu em sie disse:

— Vendi porque não tive outro caminho, Maneco.Não tive outro caminho.

Quando meu pai insistiu por uma explicação maispositiva, ele abriu a boca para falar, mas apenas suspirou,virou as costas e foi-se embora.

Seu Marcos teve que se mudar a bem dizer a toque decaixa. Quem fez a exigência foi o próprio Estêvão, que jáestava servindo como uma espécie de procurador doscompradores. Seu Marcos pediu um mês de prazo, queriacolher o milho e o feijão e precisava de calma para arran-

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jar uma casa em condições na cidade. Estêvão respondeuque não estava autorizado a conceder tanto tempo, queuma semana era o máximo que podia dar. Quanto às plan-tações, Seu Marcos não se incomodasse, os compradoresindenizariam o que ele pedisse; e se Seu Marcos tivessedificuldade em encontrar casa, poderia mudar provisoria-mente para a do próprio Estêvão, que ia para a chácaraajudar os compradores nas obras.

Todo mundo reprovou o procedimento dos compra-dores, e mais ainda o de Estêvão, que na qualidade deantigo proprietário e amigo poderia ter dito uma palavraem favor do velho Marcos; mas Estêvão era agora todo dooutro lado, e nada mais se poderia esperar dele. Meu paiachou que não se devia dizer mais nada na frente de Estê-vão, pois não seria de admirar que ele estivesse contratadopara espião. Se quiséssemos nos organizar para a resistên-cia, convinha não esquecer essa hipótese.

No mesmo dia que Seu Marcos, triste e ressentido,arriou seus pertences na casa desocupada por Estêvão, ocaminhão de Geraldo Magela roncou na subida da pontelevando os estrangeiros na boléia e o carpinteiro Estêvãoatrás, em cima da carga. Ao vê-los passar em nossa porta,meu pai virou o rosto, enojado; disse que nunca vira umespetáculo mais triste, um homem de bem como Estêvão,competente no seu ofício, largar tudo para acompanharaquela gente como menino recadeiro.

Mas não deixou de ser um alívio vê-los fora da cidade.Agora podíamos novamente freqüentar a pensão deD. Elisa, conversar com os hóspedes, saber quem chegavae quem saía, sem necessidade de falar baixo nem de nosesconder.

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Durante muitos dias, quase um mês, não vimos aque-les dois nem tivemos notícias deles. Estêvão de vez emquando vinha à cidade, mas não sei se por influência dospatrões, ou se por vergonha, ou remorso, não conversavacom ninguém; fazia o que tinha de fazer, ia ao correio apa-nhar a correspondência, sempre uns envelopes muitograndes, e voltava no mesmo dia. Nem passava mais pornossa porta, que seria o caminho natural; dava uma voltagrande, passando pela rua de cima.

Outro que também sumiu foi Geraldo Magela,parece que agora estava trabalhando só para os estrangei-ros. Quando íamos pescar bem em cima no rio, ou apa-nhar cajus no morro, podíamos ouvir o ronco do cami-nhão trabalhando do outro lado. Uma vez eu e Demostesaímos escondidos para apurar o que estava se passandona chácara, mas quando chegamos na crista do morroachamos melhor não continuar. Haviam levantado umacerca de arame em volta da chácara, muito mais alta doque as cercas comuns, e de fios mais unidos, e vimos sen-tinelas armadas rondando. Ficamos de voltar outro dialevando a marmota do padre, mas nem isso chegamos afazer porque soubemos que o André gaguinho, queandara apanhando lenha do outro lado, fora alvejadocom um tiro de sal na popa.

Um dia correu a notícia de que o casal não estava maisna chácara, havia subido o rio à noite num barco a motor.Devia ser verdade, porque Geraldo Magela voltou a apa-recer na cidade. Achamos que agora, com ele ali à dispo-sição íamos afinal saber o que se passava na chácara deEstêvão. Geraldo sempre fora amigo de todos, deixava ameninada subir no caminhão, trazia encomendas paratodo mundo, e quando o padre organizava passeios para

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os alunos de catecismo, fazia questão de contratar Geraldo,não aceitava oferecimento de nenhum outro, nem quetivéssemos de esperar dias quando calhava de Geraldoestar viajando.

Mas não levamos muito tempo para descobrir queGeraldo também era agora do outro lado. Ele que fora tra-balhador e prestativo, sempre preocupado em poupar amãe — desde que comprara o caminhão exigiu queD. Ritinha deixasse de lavar roupa para fora — agoraficava horas no bilhar jogando ou bebendo cerveja e zom-bando dos pexotes. Quanto às obras que estavam sendofeitas na chácara, ele não dizia coisa com coisa. A meu paiele disse que estavam apenas armando um pari, a outrodisse que estavam instalando uma olaria. Quando SeuMarcos o interpelou com energia, ele deu uma respostamalcriada:

—Vocês esperem. Vocês esperem que não demora.E ficou olhando para Seu Marcos e assoviando, uma

coisa que se D. Ritinha visse haveria de chorar de des-gosto.

Vendo-o ali bebendo, fazendo gracinhas, faltando aorespeito com os mais velhos, e dando cada hora uma res-posta, achei que ele estava apenas querendo fazer-se deimportante, de sabedor de coisas misteriosas, talvez pelodesejo de imitar os patrões. Foi essa também a opinião dePadre Santana quando soube da resposta de Geraldo a SeuMarcos.

Foi mais ou menos nessa época que D. Ritinha apare-ceu lá em casa para desabafar com mamãe. Começourodeando, falando nas mudanças que estava havendo emtoda parte, e entrou no capítulo do procedimento dosfilhos quando crescem.

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—Para muita gente, ter filhos resulta num castigo,D. Teresa — disse ela. — Os desgostos acabam sendomaiores do que as alegrias.

Vi que mamãe ficou embaraçada, com medo de dizeralguma coisa que pudesse magoar D. Ritinha. Por fim,disse vagamente:

— Os antigos diziam que filho criado, trabalhodobrado.

—Muito certo, D. Teresa. Veja o meu Geraldo. Umrapaz bem criado, inveja de muitas mães; de repente,esquece tudo o que eu e o pai lhe ensinamos.

Mamãe procurou consolá-la dizendo que o procedi-mento de Geraldo devia ser resultado de uma influênciapassageira. A culpa era daqueles dois, que deviam estarenfiando coisas na cabeça dele; quando ela menos espe-rasse, ele mesmo ia abrir os olhos e arrepender-se. D. Riti-nha tivesse paciência e confiasse em Deus. Aí D. Ritinhacaiu no choro, disse que a culpa era dela, que o aconse-lhara a ir trabalhar para aquela gente. Ele não queria, masela insistira porque o ordenado era bom, até falara ásperocom ele. Agora estava aí o resultado. De que adiantava odinheiro sem a consideração do filho?

Quando mamãe começou a chorar também, eu fiqueimeio encabulado e sai sem destino.

Ao passar pelo chafariz encontrei Geraldo divertindo--se com um gato que havia jogado dentro do tanque.O bichinho esgoelava e pelejava para sair, e cada vez queia chegando à beirada Geraldo cercava e dava-lhe umpapilote na orelha. Fiquei olhando, com medo de salvar opobrezinho e ter de brigar com Geraldo. Mas quando opobrezinho veio subindo no ponto onde eu estava, eGeraldo gritou para eu cercar, eu estendi o braço e apa-

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nhei-o pela nuca, como fazem as gatas. Pensei queGeraldo ia querer tomá-lo, mas ele apenas olhou e foi-seembora dando gargalhadas e imitando o miado do gato,parecia coisa de louco.

Geraldo sabia o que estava dizendo quando mandouSeu Marcos esperar, porque um belo dia chegaram oscaminhões. Chegaram de madrugada, e eram tantos quenem pudemos contá-los. A nossa lavadeira, que moravano alto do cemitério, disse que desde as três da madrugadaeles começaram a descer um atrás do outro de faróis ace-sos. Atravessaram a cidade sem parar, descendo cautelosa-mente as ladeiras, sacudindo as paredes das casas nas ruasestreitas, passaram a ponte e tomaram o caminho da chá-cara como uma enorme procissão de vaga-lumes.

Daí por diante não tivemos mais sossego. Desde queamanhecia até que anoitecia eram aqueles estrondos atrásdo morro, tão fortes que chegavam a chacoalhar as panelas nas cozinhas apesar da distância, nas paredes nãoficou um espelho inteiro. Mamãe vivia rezando etomando calmante, não queria mais que eu fosse além daponte em meus passeios. Achei que fosse receio exage-rado dela, mas verifiquei depois que a proibição era geral,de todas as mães.

Geraldo andava ocupado novamente lá do outro lado,e quando aparecia na cidade era guiando uns caminhõesenormes, de um tipo que ainda não tínhamos visto, e sem-pre com uns sujeitos esquisitos na boléia, uns homensmuito altos e vermelhos, os braços muito cabeludos apa-recendo por fora da manga curta da camisa. Ficavamolhando para tudo com olhos espantados, entortavam opescoço até o último grau para olhar a gente quando ocaminhão já ia lá adiante. Paravam no botequim ou no

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armazém e metiam caixas e mais caixas de cerveja paradentro do caminhão, latas grandes de bolachas, caixotesde cigarros. Uma vez levaram todo o sortimento de cigar-ros da praça e os fumantes tiveram que picar fumo e enro-lar palha durante quase um mês.

Quando os caminhões paravam em alguma casa decomércio e nós fazíamos grupos de longe para olhar,Geraldo ficava na frente fazendo palhaçadas para nos pro-vocar. Seu Marcos disse que ele havia perdido toda a com-postura, e se não fosse por causa de D. Ritinha, era o casode se dar uma surra nele.

E toda noite agora era aquele ruído tremido que vinhade trás do morro, parecia o ronronar de muitos gatos. Nãodava para incomodar porque não era forte, mas assustavapela novidade. De dia não o ouvíamos, talvez por causados barulhos da cidade, mas quando batia a Ave-Maria, etodo mundo cessava o trabalho, lá vinha ele. Então a genteolhava para os lados da chácara e via um enorme clarão nocéu, como o de uma queimada vista de longe, só que nãotinha fumaça.

Mas a grande surpresa foi quando Geraldo veio àcidade montado numa motocicleta vermelha. Não vinhamais de roupa cáqui de trabalho e botina de vaqueta, masde parelho de casimira azul-marinho, sapatos de verniz egravata. Parou no bilhar, cumprimentou todo mundo econvidou para tomarem cerveja. Uns aceitaram, outrosficaram de longe, ressabiados. Ele disse que não haviamotivo para malquerenças, reconhecia que havia se exce-dido nas brincadeiras, mas não fizera nada com a intençãode ofender. Os tempos agora eram outros, acabaram-se asbrincadeiras. Ele estava ali como amigo para dar umanotícia que devia contentar a todos. Aí os mais desconfia-

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dos foram se chegando também, Geraldo mandou unsdois ou três saírem na porta e convidarem quem maisencontrassem por perto. Num instante o salão estavacheio, quem estava jogando parou, havia gente até do ladode fora debruçada nas janelas.

Quando viu que não cabia mais ninguém, Geraldosubiu numa das mesas e comunicou que fora nomeadogerente da Companhia e que estava ali para contratar fun-cionários. Os ordenados eram muito bons, havia casa paratodos, motocicletas para os homens, bicicletas para ascrianças e máquinas de costura para as mulheres. Quemestivesse interessado aparecesse no dia seguinte ali mesmopara assinar a lista.

Como ninguém estava preparado para aquilo, ficaramtodos ali apalermados, se entreolhando calados. Quandoalguém se lembrou de pedir explicações sobre as ativi-dades da Companhia, Geraldo já ia longe na motocicletavermelha.

Após muita confabulação ali mesmo no bilhar, depoisnas muitas rodas formadas nos pontos de conversa dacidade, e finalmente nas casas de cada um, muitos se apre-sentaram no dia seguinte, acredito que a maioria apenaspara ter uma oportunidade de saber o que se passava nachácara. Já no segundo dia os caminhões vieram buscá--los, e foi a última vez que os vimos como amigos: quandocomeçaram a aparecer novamente na cidade, ninguém osreconhecia mais. Entravam e saíam como foguetes, mon-tados em suas motocicletas vermelhas, não paravam parafalar com ninguém.

Essas máquinas eram uma verdadeira praga. Ninguémpodia mais sair à rua sem a precaução de levar uma varabem forte com um ferrão na ponta para se defender dos

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motociclistas, que pareciam se divertir atropelando pes-soas distraídas. Nem os cachorros andavam mais em sos-sego, quase todos os dias a Intendência recolhia corpos decachorros estraçalhados. E quanta gente morreu embaixode roda de motocicleta. O caso que mais me impressionoufoi o de D. Aurora. Um dia eu ia atravessando o largo comela, carregando um cesto de ovos que ela havia compradolá em casa para a festa do aniversário do padre, quandovimos dois motociclistas que vinham descendo empare-lhados. Já sabendo como eles eram, D. Aurora atrapalhou--se, correu para a frente, depois quis recuar, e um delesseparou-se do outro e veio direito em cima dela, jogando--a no chão, e trilhando-a pelo meio. Quando me abaixavapara socorrê-la, ouvi as gargalhadas dos dois e o comentá-rio do criminoso:

—Você viu? Estourou como papo-de-anjo.D. Aurora morreu ali mesmo, e eu tive de voltar com

o cesto de ovos para casa.A impressão que se tinha era a de haver pessoas ocupa-

das unicamente em perturbar o nosso sossego, com quefim não sei. Ainda bem não havíamos tomado fôlego deum susto, outro artifício era aplicado contra nós. Mas nãohavendo motivo para tanta perseguição, também podia serque os responsáveis pelas nossas aflições nem estivessempensando em nós, mas apenas cuidando de seu trabalho;nós é que estávamos atrapalhando, como um formigueiroque brota num caminho onde alguém tem que passar enão pode se desviar. Depois do estrago é que vinha acuriosidade de ver como é que estávamos resistindo.

Foi o que verificamos quando as nossas casas derampara pegar fogo sem nenhum motivo aparente. Primeiroera um aquecimento repentino, os moradores começavam

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a suar, todos os objetos de metal queimavam quem ostocasse, e do chão ia minando um fumaceiro com umchiado tão forte que até assoviava. Pessoas e bichos saíamdesesperados para a rua engasgados com a fumaça, semsaberem exatamente o que estava acontecendo. Ouvia-seum estouro abafado, e num instante a casa era umafogueira. Tudo acontecia tão depressa que em muitoscasos os moradores não tinham tempo de fugir.

Depois de cada incêndio aparecia na cidade umacomissão de funcionários da Companhia, remexia nas cin-zas, cheirava uma coisa e outra, tomava notas, recolhiafragmentos de material sapecado, com certeza para exa-miná-los em microscópios. Pelo destino dos moradoresnão mostravam o menor interesse. Para não perder tempoem casos de emergência, passamos a dormir vestidos e cal-çados.

Embora sem muita esperança, meu pai foi procurar odelegado para ver se conseguia dele uma providência con-tra a Companhia. O delegado estava assustado como coe-lho, piscava nervoso e repetia como falando sozinho:

—Uma providência. É preciso uma providência.Meu pai quis saber que espécie de providência ele

pensava tomar, e ele não saía daquilo:—É, uma providência. É preciso uma providência.Meu pai sacudiu-o para ver se o acordava, ele agarrou

meu pai pelo braço e disse desesperado, quase chorando:— Eu estou de pés e mãos amarradas, Maneco. De

pés e mãos amarradas. Que vida! Quanta coisa!Os espiões eram outra grande maçada. Não sei com

que astúcia a Companhia conseguiu contratar gente donosso meio para informá-la de nossos passos e de nossasconversas. O número de espiões cresceu tanto que não

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podíamos mais saber com quem estávamos falando, e oresultado foi que ficamos vivendo numa cidade de mudos,só falávamos de noite em nossas casas, com as portas ejanelas bem fechadas, e assim mesmo em voz baixa.

Eu estava quase perdendo a esperança de voltarmos àvida antiga, e já não me lembrava mais com facilidade dosossego em que vivíamos, da cordialidade com que tratá-vamos nossos semelhantes, conhecidos e desconhecidos.Quando eu pensava no passado, que afinal não estavaassim tão distante, tinha a impressão de haver avançadoanos e anos, sentia-me velho e deslocado. Para onde nosestariam levando? Qual seria o nosso fim? Morreríamostodos queimados, como tantos parentes e conhecidos?

Passávamos os dias com o coração apertado, e as noi-tes em sobressalto. Ninguém queria fazer mais nada, nãovalia a pena. As casas andavam cheias de goteiras, o matoinvadia os quintais, entrava pelas janelas das cozinhas. Nosvãos do calçamento, que cada qual antigamente faziaquestão de manter sempre limpo em frente a sua casa,arrancando a grama com um toco de faca e despejando calnas fendas, agora cresciam tufos de capim. O muro dopombal desmoronou numa noite de chuva, ficaram osadobes na rua fazendo lama, quem queria passar rodeavaou pisava por cima, arregaçando as calças. Não valia apena consertar nada, tudo já estava no fim.

Mas a esperança, por menor que seja, é uma grandeforça. Basta um fiapinho de nada para dar alma nova àgente. Eu estava remexendo um dia na tulha de feijão àprocura de uma medalha que caíra do meu pescoço eencontrei umas caixas de papelão quadradinhas, escondi-das bem no fundo. Abri uma e vi que estava cheia de car-tuchos de dinamite. Guardei tudo depressa e não disse

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nada a ninguém nem deixei meu pai saber, porque nãoqueria colocá-lo na triste situação de ter de prevenir-secontra mim. Tudo era possível naqueles dias.

Agora que nada mais há a fazer, arrependo-me denão ter falado abertamente e entrado na intimidade dosplanos, se é que havia algum. Hoje é que imagino a afli-ção que minha mãe deve ter passado na noite em que emvão esperamos meu pai para a ceia. Com uma indife-rença que não me perdôo eu tomei a minha tigela deleite com beiju e fui domir. Mamãe ficou acordadafiando, e quando tomei-lhe a bênção no dia seguintenotei que ela estava pálida e com os olhos vermelhos dequem não havia dormido. Não tenho muito jeito paraconsolar, fiquei remanchando em volta dela, bulindonuma coisa e noutra, irritando-a com o meu nervosismoinarticulado. Ela mandava-me sair, passear, fazer algumacoisa fora, mas eu tinha medo de deixá-la sozinhaestando tão deprimida.

Não me lembro de outro dia tão triste. Uma neblinacinzenta tinha baixado sobre a cidade, cobrindo tudo comaquele orvalho de cal. As galinhas empoleiradas nosmuros, nos galhos baixos dos cafezeiros, ou encolhidasdebaixo da escada do quintal, pareciam aguardar tristesnotícias, ou lamentar por nós algum acontecimento quesó elas sabiam por enquanto. Em frente a nossa janela devez em quando passava uma pessoa, as mãos roxas de friosegurando o guarda-chuva, ou um menino em serviço derecado, protegendo-se com um saco de estopa na cabeça.E nos quintais molhados os sabiás não paravam de cantar.

Em dias de sol nós ainda podíamos resistir, podíamosolhar para os lados da usina e apertar os dentes com ódio,e assim mostrar que ainda não havíamos nos entregado;

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mas num dia molhado como aquele só nos restava o medoe o desânimo.

A notícia chegou antes do almoço. Uns roceiros quetinham vindo vender mantimentos na cidade encontra-ram o corpo na estrada, a barriga celada no meio pelasrodas de uma motocicleta.

Depois do enterro mamãe mandou-me esconder ascaixas de dinamite num buraco bem fundo no quintal,vendeu tudo o que tínhamos, todas as galinhas, pelo preçode duas passagens de caminhão e no mesmo dia embarca-mos sem dizer adeus a ninguém, levando só a roupa docorpo e um saquinho de matula, como dois mendigos.

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