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19 de Março de 2010
Celebrar a Poesia: Leituras no Masculino
CONVIDA-ME SÓ PARA JANTAR
E não queiras depois fazer amor.
Convida-me só para jantar
num restaurante sossegado
numa mesa de canto
e fala devagar
e fala devagar
eu quero comer uma sopa quente
não quero comer mariscos
os mariscos atravancam-me o prato
e estou cansada para os afastar
fala assim devagar
devagar
não é preciso dizeres que sou bonita
mas não me fales de economia e de política
fala assim devagar
devagar
deita-me o vinho devagar
quando o meu copo estiver vazio.
Estou convalescente
sou convalescente
não é preciso que o percebas
mas por favor não faças força em mim.
Fala, estás-me a dar de jantar
estás-me a pôr recostada à almofada
estás-me a fazer sorrir ao longe
fala assim devagar
devagar
devagar
Ana Goês in 366 poemas que falam de amor
(Antologia organizada por Vasco Graça Moura)
Lamento de um pai de família
Como pode um homem carregado de filhos e sem fortuna alguma
ser poeta neste tempo de filhos só de puta ou só de putas
sem filhos ? Neste espernegar de canalhas, como pode ser?
Antes ser gigolô para machos e ou fêmeas, ser pederasta
profissional que optou pelo riso enternecido dos virtuosos
que se revêem nele e o decepcionado dos políticos que com ele
não fazem chantagem porque não vale a pena. Antes ser denunciante
de amigos e inimigos para ganhar a estima dos poderosos ou
dos partidos políticos que nos chamarão seus génios. Antes
ser corneador de maridos mansos com as mulheres deles fáceis.
Antes reunir conferências de S. Vicente de Paula para roçar
o cu da virtude pelas distracções das sacristias escuras e
e ter o prazer de acudir com camisolinhas aos pobres entre os quais
às vezes aparece um ou uma que dá gosto ver assim tão pobre por
por se lhe verem os pêlos pelos rasgões da camisa ou algo
de mais impressionante para o subconsciente que sempre está nos olhos
que docemente se comovem com a miséria. Antes ir para as guerras
da civilização cristã ou da outra, matar os inimigos da conta corrente
e das fábricas de celofânicas bombas. Antes ser militar.
Ou marafona de circo. Ou santo. Ou demónio doméstico
torcendo as orelhas dos filhos à falta de torcê-las aos filhos
da puta. Ou gato. Ou cão. Ou piolho: Antes correr os riscos do
DDT , das carroças que os municípios têm para os cães suspeitos
de raivosos como todos os cães que se vê não lamberem as partes
das donas ou mesmo dos donos . Antes tudo isso que assistir a tudo,
sofrer de tudo e tudo, e ainda por cima ter de aturar o amor
paterno e os sorrisos displicentes dos homens de juízo
que deram pílulas às esposas, ou as mandaram à parteira secreta
e elas quiseram ir. Antes morrer.
Mas que adianta morrer?
Quem nos garante que a morte
não existe só para os filhos da puta? Quem me garante que
não lá, assistindo a tudo, e sem sequer poder chamar-lhes
filhos da puta, com o devido respeito a essas senhoras que precisamente
se distinguem das outras por não terem filhos nem desses nem dos outros?
Mas mesmo isso não consola nada. A quantidade, a variedade
gastaram a força dos insultos. E não se pode passar a vida,
esta miséria que me dão e querem dar a meus filhos, a chamar nomes
feios a sujeitos mais feios do que os nomes. Como pode um homem
sequer estar vivo no meio disto, e sem saberem primeiro quem,
para não se inquietarem com o problema de terem morto por engano
um irmão, desfalcando assim a família humana de algum ornamento
que a tornava menos humana e mais puta.
Jorge de Sena
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Amigo Velho
É meu parceiro, companheiro meu amigo.
Aquele velho que ali está sentado
Contando caso e histórias da sua vida
Suas derrotas e vitórias do passado
Quase sem forças para caminhar sozinho
Estendo-lhe a mão, pois estarei sempre a seu lado.
Até o dia que esta vida nos separe
Amigo Velho, meu querido Pai Amado.
Por muitas vezes eu não tive paciência
Causando-lhe certamente grande dor
Não escutar e não seguir os seus conselhos
Que com certeza foram dados por amor
Peço perdão, mas a vida me ensinou.
Que conselho de Pai é por amor
A Tua dor, hoje eu estou sentindo.
Porque meus filhos, também não dão valor.
Jorge Amado
Poema ao Pai
Ter um Pai! É ter na vida
Uma luz por entre escolhos;
É ter dois olhos no mundo
Que vêem pelos nossos olhos!
Ter um Pai! Um coração
Que apenas amor encerra,
É ver Deus, no mundo vil,
É ter os céus cá na terra!
Ter um Pai! Nunca se perde
Aquela santa afeição,
Sempre a mesma, quer o filho
Seja um santo ou um ladrão;
Talvez maior, sendo infame
O filho que é desprezado
Pelo mundo; pois um Pai
Perdoa ao mais desgraçado!
Ter um Pai! Um santo orgulho
Pró coração que lhe quer
Um orgulho que não cabe
Num coração de mulher!
Embora ele seja imenso
Vogando pelo ideal,
O coração que me deste
Ó Pai bondoso é leal!
Ter um Pai! Doce poema
Dum sonho bendito e santo
Nestas letras pequeninas,
Astros dum céu todo encanto!
Ter um Pai! Os órfãozinhos
Não conhecem este amor!
Por mo fazer conhecer,
Bendito seja o Senhor!
Florbela Espanca
O Pai
Terra de semente inculta e bravia,
terra onde não há esteiros ou caminhos,
sob o sol minha vida se alonga e estremece.
Pai, nada podem teus olhos doces,
como nada puderam as estrelas
que me abrasam os olhos e as faces.
Escureceu-me a vista o mal de amor
e na doce fonte do meu sonho
outra fonte tremida se reflecte.
Depois... Pergunta a Deus porque me deram
o que me deram e porque depois
conheci a solidão do céu e da terra.
Olha, minha juventude foi um puro
botão que ficou por rebentar e perde
a sua doçura de seiva e de sangue.
O sol que cai e cai eternamente
cansou-se de a beijar... E o outono.
Pai, nada podem teus olhos doces.
Escutarei de noite as tuas palavras:
... menino, meu menino...
E na noite imensa
com as feridas de ambos seguirei.
Pablo Neruda, in Crepusculário
Tradução de Rui Lage
As Mãos do Meu Pai
As tuas mãos tem grossas veias como cordas azuis sobre um fundo de manchas já cor de terra — como são belas as tuas mãos — pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram na nobre cólera dos justos...
Porque há nas tuas mãos, meu velho pai, essa beleza que se chama simplesmente vida. E, ao entardecer, quando elas repousam nos braços da tua cadeira predilecta, uma luz parece vir de dentro delas...
Virá dessa chama que pouco a pouco, longamente, vieste alimentando na terrível solidão do mundo, como quem junta uns gravetos e tenta acendê-los contra o vento? Ah, Como os fizeste arder, fulgir, com o milagre das tuas mãos.
E é, ainda, a vida que transfigura das tuas mãos nodosas... essa chama de vida — que transcende a própria vida... e que os Anjos, um dia, chamarão de alma...
Mário Quintana
Deixo-vos um poema de José Agostinho Baptista
Memória
é de ti que eu falo
hoje
quando
todos os pássaros emigram do outono
para os beirais destruídos
quando os olhos cegos de conhecerem as margens
se fecham devagar
é de ti que eu falo.
lembras-te?
era janeiro e eu vinha como quem desce.
a casa tinha janelas azuis e à volta
um tempo de febre e canções longínquas.
estávamos sós.
lembras-te?
então o pai atravessa o cais.
aí paravam os estios da ilha
os ventos do atlântico queimavam os lábios
e ele dizia:
cresce filho corre filho
para onde irei para onde?
e ele dizia:
perdidos foram os teus lugares,
os caminhos íngremes e os contos de
terror,
as pedras húmidas onde te sentaste a
falar para o mar.
lembras-te?
José Agostinho Baptista, in Em Nome do Pai: Pequena Antologia do Pai na Poesia
Portuguesa
TODOS OS HOMENS SÃO MARICAS QUANDO ESTÃO COM GRIPE
Pachos na testa, terço na mão
Uma botija, chá de limão
Zaragatoas, vinho com mel
Três aspirinas, creme na pele
Grito de medo, chamo a mulher
Ai Lurdes, Lurdes, que vou morrer
Mede-me a febre, olha-me a goela
Cala os miúdos, fecha a janela
Não quero canja, nem a salada
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada
Se tu sonhasses, como me sinto
Já vejo a morte, nunca te minto
Já vejo o inferno, chamas diabos
Anjos estranhos, cornos e rabos
Vejo os demónios, nas suas danças
Tigres sem listras, bodes de tranças
Choros de coruja, risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes, que foi aquilo!
Não é a chuva, no meu postigo
Ai Lurdes, Lurdes, fica comigo
Não é o vento, a cirandar
Nem são as vozes, que vêm do mar
Não é o pingo de uma torneir
Põe-me a santinha, à cabeceira
Compõe-me a colcha, fala ao prior
Pousa o Jesus, no cobertor
Chama o doutor, passa a chamada
Ai Lurdes, Lurdes, nem dás por nada
Faz-me tisanas, e pão-de-ló
Não te levantes, que fico só
Aqui sozinho a apodrecer
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer.
António Lobo Antunes
in Letrinhas de Cantigas
LISBON REVISITED (1923) Não: não quero nada. Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer. Não me tragam estéticas! Não me falem em moral! Tirem-me daqui a metafísica! Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) Das ciências, das artes, da civilização moderna! Que mal fiz eu aos deuses todos? Se têm a verdade, guardem-na! Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo. Com todo o direito a sê-lo, ouviram? Não me macem, por amor de Deus! Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável? Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa? Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade. Assim, como sou, tenham paciência! Vão para o diabo sem mim, Ou deixem-me ir sozinho para o diabo! Para que havemos de ir juntos? Não me peguem no braço! Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho. Já disse que sou sozinho! Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia! Ó céu azul o mesmo da minha infância , Eterna verdade vazia e perfeita! Ó macio Tejo ancestral e mudo, Pequena verdade onde o céu se reflecte! Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje! Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta. Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo... E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho! Álvaro de Campos
O Novo Homem
O homem será feito em laboratório. Será tão perfeito como no antigório. Rirá como gente, beberá cerveja deliciadamente. Caçará narceja e bicho do mato. Jogará no bicho, tirará retrato com o maior capricho. Usará bermuda e gola roulée. Queimará arruda indo ao canjerê, e do não-objecto fará escultura. Será neoconcreto se houver censura. Ganhará dinheiro e muitos diplomas, fino cavalheiro em noventa idiomas. Chegará a Marte em seu cavalinho de ir a toda parte mesmo sem caminho. O homem será feito em laboratório muito mais perfeito do que no antigório. Dispensa-se amor, ternura ou desejo. Seja como for (até num bocejo) salta da retorta um senhor garoto. Vai abrindo a porta com riso maroto: «Nove meses, eu? Nem nove minutos.» Quem já concebeu melhores produtos? A dor não preside sua gestação. Seu nascer elide
o sonho e a aflição. Nascerá bonito? Corpo bem talhado? Claro: não é mito, é planificado. Nele, tudo exacto, medido, bem posto: o justo formato, o standard do rosto. Duzentos modelos, todos atraentes. (Escolher, ao vê-los, nossos descendentes.) Quer um sábio? Peça. Ministro? Encomende. Uma ficha impressa a todos atende. Perdão: acabou-se a época dos pais. Quem comia doce já não come mais. Não chame de filho este ser diverso que pisa o ladrilho de outro universo. Sua independência é total: sem marca de família, vence a lei do patriarca. Liberto da herança de sangue ou de afecto, desconhece a aliança de avô com seu neto. Pai: macromolécula; mãe: tubo de ensaio, e, per omnia secula, livre, papagaio, sem memória e sexo, feliz, por que não? pois rompeu o nexo da velha Criação, eis que o homem feito em laboratório sem qualquer defeito como no antigório, acabou com o Homem. Bem feito.
Carlos Drummond de Andrade, in Versiprosa
Poeminha da Negação da Afirmação Sou um homem bem comum sem nenhuma aspiração. Não quero ser general e muito menos sultão. Sou moderado de gastos, de ambição reduzida, não sonho ser big-shot estou contente da vida. Nunca invejei o próximo nem lhe cobiço a mulher, pego o meu lugar na fila e seja o que Deus quiser. Não sou mau pai, nem mau esposo, Grosseiro nem invejoso - só um pouco mentiroso. Millôr Fernandes, in Pif-Paf
O Macho
O macho não é menos a alma,
nem é mais:
ele também está no seu lugar,
ele também é todo qualidades,
é acção e força,
nele se encontra
o fluxo do universo conhecido,
fica-lhe bem o desdém,
ficam-lhe bem os apetites e a ousadia,
o maior entusiasmo e as mais profundas paixões
ficam-lhe bem: o orgulho cabe a ele,
orgulho de homem à potência máxima
é calmante e excelente para a alma,
fica-lhe bem o saber e ele o aprecia sempre,
tudo ele chama à experiência própria,
qualquer que seja o terreno,
quaisquer que sejam o mar e o vento,
no fim é aqui que ele faz a sondagem.
(Onde mais lançaria ele a sonda,
senão aqui?)
Sagrado é o corpo do homem
como sagrado é o corpo da mulher,
sagrado — não importa de quem seja.
É o mais humilde numa turma de operários?
É um dos imigrantes de face turva
apenas desembarcados no cais?
São todos daqui ou de qualquer parte,
da mesma forma que os bem situados,
da mesma forma que qualquer um de vocês:
cada qual há-de ter na procissão
o lugar dele ou dela.
(Tudo é uma procissão,
todo o universo é uma procissão
em movimento medido e perfeito.)
Saberão vocês tanto, de si mesmos,
que ao mais humilde chamem de ignorante?
Consideram-se com todo direito a uma boa visão
e a ele ou ela sem nenhum direito a uma visão?
Acham então que a matéria se fez coesa
na inconsistência em que flutuava
e que a crosta subiu e se fez chão
e as águas correm e brotam as plantas
para vocês, só — para ele e ela, nada?
Walt Whitman, in Leaves of Grass
O Divino
Nobre seja o homem,
Caridoso e bom!
Pois isso apenas
É que o distingue
De todos os seres
Que conhecemos.
Glória aos incógnitos
Mais altos seres
Que pressentimos!
Que o homem se lhes iguale!
Seu exemplo nos ensine
A crer naqueles!
Pois insensível
É a natureza:
O sol 'spalha luz
Sobre maus e bons,
E ao criminoso
Brilham como ao santo
A lua e as 'strelas.
Vento e torrentes,
Trovão e saraiva
Rugem seu caminho
E agarram,
Velozes passando,
Um após outro.
Tal a sorte às cegas
Lança mãos à turba
E agarra os cabelos
Do menino inocente
Ou a fronte calva
Do velho culpado.
Por eternas leis,
Grandes e de bronze,
Temos todos nós
De fechar os círculos
Da nossa existência.
Mas somente o homem
Pode o impossível:
Só ele distingue,
Escolhe e julga;
E pode ao instante
Dar duração.
Só ele é que pode
Premiar o bom,
Castigar o mau,
Curar e salvar,
Unir com proveito
Tudo o que erra e divaga.
E nós veneramos
Os Imortais
Como se homens fossem,
Em grande fizessem
O que em pequeno o melhor de nós
Faz ou deseja.
Que o homem nobre
Seja caridoso e bom!
Incansável crie
O útil, o justo,
E nos seja exemplo
Dos Seres pressentidos.
Johann Wolfgang von Goethe, in Poemas
(Tradução de Paulo Quintela)
Primeiro a tua mão sobre o meu seio. Depois o pé – o meu – sobre o teu pé. Logo o roçar urgente do joelho E o ventre mais à frente na maré. É a onda do ombro que se instala. É a linha do dorso que se inscreve. A mão agora impõe, já não embala Mas o beijo é carícia, de tão leve. O corpo roda: quer mais pele, mais quente, A boca exige: quer mais sal, mais morno. Já não há gesto que se não invente, Ímpeto que não ache um abandono. Então já a maré subiu de vez. É todo o mar que inunda a nossa cama. Afogados de amor e de nudez Somos a maré alta de quem ama. Por fim o sono calmo, que não é Senão ternura, intimidade, enleio: O meu pé descansado no teu pé, A tua mão dormindo no meu seio. Rosa Lobato de Faria, in Poemas: Escolhidos e Dispersos
Quero dar-te a coisa mais pequenina que houver bago de arroz grão de areia semente de linho suspiro de pássaro pedra de sal som de regato a coisa mais pequena do mundo a sombra do meu nome o peso do meu coração na tua pele. Rosa Lobato de Faria, in Poemas: Escolhidos e Dispersos
Agora me parece que o homem não está só. em suas mãos elaborou como se fora um duro pão, a esperança, a terrestre esperança. Nuevas odes elementares Pablo Neruda, in Presentes de um Poeta
O Homem
Aqui hoje terminam estas viagens
nas quais me acompanhaste
através da noite e do dia
e do mar e do homem.
de tudo quanto vos disse
vale muito mais a vida.
Fim del Mundo
Pablo Neruda, in Presentes de um Poeta
Bibliotecas Escolares Departamento de Línguas
Agrupamento de Escolas com sede na Escola Básica 2, 3 João da Ros