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1 Leituras e Apropriações: a história intelectual de Lygia Clark de 1958-1968 Andréa Carla Kincheski Coelho Drª Christiane Marques Szezs “Lygia, faz o que ela pensa, é uma arte para sentir não para olhar.” Depoimento de aluno participante da Proposta RESUMO: O presente artigo refere-se à conclusão do trabalho iniciado em 2008 pelo PDE sobre o tema, Leituras e Apropriações: a história intelectual de Lygia Clark de 1958-1968. Enfatiza uma proposta diferenciada para o Ensino de História, por meio de análises das obras da artista plástica Lygia Clark e do contexto histórico. Por intermédio de apreciações de documentos e de obras artísticas da referida artista, procurou-se compreender as relações existentes entre o desenrolar histórico e sua obra, o viés metodológico buscou compreender as relações entre contexto-obra, contexto-autor, autor-obra, contexto com outros movimentos culturais, contexto-época, perspectiva aplicada por Dominicke La Capra na História Intelectual. Cabe ressaltar, que se concluiu ser a artista expoente da contracultura brasileira e infere-se ser possível utilizá-la para o Ensino da História do período indicado. Palavras Chave: Lygia Clark. Arte sensorial. História Intelectual. Representação. ABSTRACT This article refers to the conclusion of work that began in 2008 by the PDE on the subject, reading and Appropriation: the intellectual history of Lygia Clark 1958-1968. It emphasizes a different proposal for the Teaching of History, by analysis of the works of artist Lygia Clark and historical context. Through assessments of documents and artistic works of this artist sought to understand the relationship between the historical progress and his work, the methodological bias aimed at understanding the relationship between work- context, context-author, author-work, with context other cultural movements, context-time approach applied by Dominick La Capra in Intellectual History. It should be noted and found to be the artist exponent of Brazilian counterculture and it appears possible to use it for teaching the history of this period. Keywords: Lygia Clark. Sensory art. Intellectual History. Representation

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Leituras e Apropriações: a história intelectual de Lygia Clark de 1958-1968

Andréa Carla Kincheski Coelho

Drª Christiane Marques Szezs

“Lygia, faz o que ela pensa, é uma arte para sentir não para olhar.”

Depoimento de aluno participante da Proposta

RESUMO:

O presente artigo refere-se à conclusão do trabalho iniciado em 2008 pelo PDE sobre o tema, Leituras e Apropriações: a história intelectual de Lygia Clark de 1958-1968. Enfatiza uma proposta diferenciada para o Ensino de História, por meio de análises das obras da artista plástica Lygia Clark e do contexto histórico. Por intermédio de apreciações de documentos e de obras artísticas da referida artista, procurou-se compreender as relações existentes entre o desenrolar histórico e sua obra, o viés metodológico buscou compreender as relações entre contexto-obra, contexto-autor, autor-obra, contexto com outros movimentos culturais, contexto-época, perspectiva aplicada por Dominicke La Capra na História Intelectual. Cabe ressaltar, que se concluiu ser a artista expoente da contracultura brasileira e infere-se ser possível utilizá-la para o Ensino da História do período indicado. Palavras Chave: Lygia Clark. Arte sensorial. História Intelectual. Representação.

ABSTRACT

This article refers to the conclusion of work that began in 2008 by the PDE on the subject, reading and Appropriation: the intellectual history of Lygia Clark 1958-1968. It emphasizes a different proposal for the Teaching of History, by analysis of the works of artist Lygia Clark and historical context. Through assessments of documents and artistic works of this artist sought to understand the relationship between the historical progress and his work, the methodological bias aimed at understanding the relationship between work-context, context-author, author-work, with context other cultural movements, context-time approach applied by Dominick La Capra in Intellectual History. It should be noted and found to be the artist exponent of Brazilian counterculture and it appears possible to use it for teaching the history of this period. Keywords: Lygia Clark. Sensory art. Intellectual History. Representation

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INTRODUÇÃO:

Durante muito tempo a história utilizou-se de imagens para ilustrar os

fatos históricos, estas imagens por momentos, buscavam consolidar o poder

simbólico das elites, poder este, que estava representado por meio do retrato

do herói escolhido “a dedo” para permear o imaginário social, ou da produção

artística utilizada simplesmente como um modelo figurativo de épocas e de

fatos.

Nessa perspectiva, se convencionou utilizar imagens de obras

artísticas com um olhar diferenciado. Para tanto foram selecionadas poéticas1

de Lygia Clark, suas leituras e apropriações2 procurando construir a história

intelectual da artista permeada pelo contexto da época. Fora proposto um

estudo interdisciplinar, num diálogo entre a história da leitura da artista, o

contexto histórico de Lygia Clark e a história do Brasil da época. Para tanto,

utilizou-se uma vertente da corrente da Nova História Cultural chamada História

Intelectual3. Que segundo as Diretrizes Curriculares do Estado do Paraná4:

(...) valoriza a diversificação de documentos, como imagens, canções, objetos arqueológicos, entre outros, na construção do conhecimento histórico. Tal diversidade permite relações interdisciplinares com outras áreas do conhecimento. A abordagem local e os conceitos de representação, prática cultural, apropriação, circularidade cultural e polifonia possibilitam aos alunos e aos professores tratarem esses documentos sob problematizações mais complexas em relação à História tradicional. Deste modo, podem desenvolver uma consciência histórica que leve em conta as diversas práticas culturais dos sujeitos, sem abandono do rigor do conhecimento histórico.

Em função disso, pretendeu-se integrar as artes e a história verificando

que a compreensão da história pode utilizar-se não só de mecanismos de

produção de objetos culturais, mas também se volta para os mecanismos de

1 Etimologicamente a palavra poética vem do grego poésios ou poietikos, que significa, para fabricação.

A arte poética é o nome de uma obra aristotélica sobre as artes da fala e da escrita, do canto e da dança; a poesia e o teatro, e estuda as obras de arte como fabricação de seres e gestos artificiais, isto é produzidos pelos seres humanos. (FASSINA, 2004.p.12-13) 2 Noção fundamental que faz parte da perspectiva desenvolvida por Roger Chartier de História Cultural, que segundo o próprio historiador francês, procura compreender as práticas que constroem o mundo como representação. (BARROS, 2004.p.88) 3 O campo da Nova História Cultural que pretende se voltar para as manifestações textuais que se sintonizam com os domínios da História da Literatura e da História da Filosofia é freqüentemente chamado de “História Intelectual”. (BARROS, 2004. P.56) 4 Acessado www.dia-a-dia educação em junho 2008

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recepção desses objetos5: os sujeitos, acrescentando novos caminhos para

construção e entendimento dos contextos.

Portanto, ensinar história por meio de metodologias diferenciadas nos

consente identificar as relações existentes entre o contexto e as pessoas que

dele fizeram parte, permitindo perceber que a história é repleta de tramas.

Sendo ela “um cruzamento de itinerários possíveis” de serem percorridos pela

narrativa construída pelo historiador ao buscar as “intrigas”, ou seja, os roteiros

que podem servir de guia à produção do conhecimento (VEYNE, 1983, p. 53 in

DENIPOTI, C. e JOANILHO, A. L., 2009, p.38).

Nessa perspectiva, realizaram-se leituras e pesquisas sobre as

influências que orientaram Lygia Clark para a concepção de suas proposições,

para tanto, buscou-se analisar a influência desse contexto nas suas obras

verificando por meio da história da leitura, apoiada na Nova História Cultural as

apropriações realizadas pela artista plástica para objetivar sua poética6.

Ao efetivar essa verificação entre a história pessoal da artista – sua

obra – e o contexto histórico, ocorreram diálogos com semiótica na intenção de

propiciar uma melhor compreensão dos signos utilizados por Lygia Clark em

sua obra.

O objetivo dessa proposta girou em torno da experienciação no campo

da história intelectual e história da leitura com alunos do Ensino Médio, que

foram instigados a realizar uma fruição artística7 da obra de Lygia Clark,

analisando-à frente ao contexto em que a artista vivera, o trabalho que se

segue é parte do resultado das pesquisas, estudos e conclusões sobre o tema.

Caminhando: os caminhos que levam a história.

Segundo o escritor alemão Joahann Wolfgang von Goethe (1749-

1832), em última instância, a arte é mais radical do que a política, pois alcança

5 Cabe ressaltar que segundo Barros(2004), os objetos da História Cultural estão distribuídos ou partilhados em cinco eixos fundamentais: objetos culturais, sujeitos, práticas, processos e padrões. 6 Etimologicamente a palavra poética vem do grego Poésis ou poietikós, que significa, para fabricação. A arte poética é o nome de uma obra aristotélica sobre as artes da fala e da escrita, do canto e da dança; a poesia e o teatro, e estuda as obras de arte como fabricação dos seres humanos. (in: FASSINA, p.13.2004) 7 Termo utilizado quando há um entendimento completo da obra desde a parte formal (linha,

ponto, textura) até a parte estrutural e de criação.

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aquelas camadas da alma do indivíduo em que se efetua a verdadeira

transformação da sociedade humana.(ZAGNI, s/d)

É sobre essa transformação na sociedade, ocorrida na década de

1960, representada pela visão de uma artista e de suas obras, que se analisa o

contexto de 1958 – 1968. Após análise dessa produção, pode-se inferir que a

artista busca acompanhar os rumos da contracultura. A artista passa a

repensar seu trabalho artístico com uma visão pós-moderna que concebe o

novo mesmo que ele não caiba aos propósitos da ditadura impositiva.

Nessa perspectiva, observa-se a diversidade do trabalho de Lígia Clark

que alcança uma posição fértil, com relação à tradição do modernismo

brasileiro.

Lygia Clark foi uma artista à frente de seu tempo, buscou imprimir em

sua arte uma nova significação, recusou o título de artista e nominou-se

propositora indo veementemente contra os ditames sociais da época.

Segundo GULLAR, 1985.p.271: “Lygia Clark, (...) começa a inverter

toda essa ordem de valores e compromissos, e reclama para o artista,

implicitamente, uma nova situação no mundo.”

A artista começou sua aprendizagem artística com Roberto Burle-

Marx, no Rio de Janeiro, logo a continuou em Paris com Fernand Léger, Arpad

Szenes e Isaac Dobrinski, nomes da Arte de Vanguarda Européia.

Lygia realizou sua primeira exposição individual em Paris em 1952,

regressando ao Rio de Janeiro em 1954. Ingressou no Grupo Frente, nesse

grupo seu trabalho caracterizou-se por realizar uma arte concreta utilizando-se

principalmente de uma liberdade de espaço, abolindo a moldura.

Segundo 500 anos de Pintura Brasileira, Lígia busca a integração entre

o espaço real e o espaço “fingido”. Gullar comenta:

O espaço novo começa a se manifestar, a se deixar captar. A linha orgânica, limite entre os pedaços da superfície que compõem a superfície inteira, é espaço. (...) Lygia não compõe dentro de uma superfície, porque a superfície é o próprio objetivo de sua pintura.” ( GULLAR,1985. P.278)

Portanto o espaço fingido de Lygia extrapola a moldura, o que é

abordado em seus trabalhos de superfícies moduladas (exposta abaixo).

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Fig 1: Superfícies Moduladas, in: WWW.mac.usp.br

Os trabalhos mais importantes de Lígia Clark buscam o abandono do

pictórico e a incursão pela tridimensionalidade. Iniciado por “Casulos e

Trepantes” de 1959 e confirmado em 1960 pela série “bichos”

(apresentados nas figuras 2 e 3) de caráter essencialmente orgânico.

Fig 2: Bichos-1960

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Fig. 3:Bichos - 1960

Segundo Milliet (1992), por um lado, seu trabalho constituía uma

surpreendente renovação da Antropofagia celebrada por Oswald de Andrade

que observava a possibilidade do artista e literato brasileiro de assimilar “os

estrangeirismos” realizando sobre ele uma ressignificação, transformando-os

em produtos genuinamente brasileiros.

A renovação de Lygia do conceito de ‘Canibalismo’ introduziu meios

extremamente importantes e sutis de distinguir seu trabalho. Afirma Queiróz

(2008.p.7), que a referida artista possuía a visão que a obra de arte se

situava na relação de troca entre as pessoas, na sua condição subjetiva, a

qual se estabelecia por meio da vivência de suas propostas e experiências

artísticas interativas e sensoriais.

Nos anos 60, momento em que se dá o passo radicalizador na obra de Lygia Clark, o projeto de religar arte e vida, além de intensificar-se nas práticas artísticas em experimentações de toda espécie, extrapola suas fronteiras e contamina a vida social, tornando-se uma das palavras de ordem do explosivo movimento contra-cultural que agitou a época, lançando as bases de uma transformação irreversível da paisagem humana que ainda hoje não foi absorvida integralmente. Certamente não são mero acaso a invenção deste tipo de utopia na arte desde o começo do século, sua incorporação pela juventude nos anos 60, ou a ressonância entre estes fenômenos. A situação que mobiliza tais movimentos, na arte e na vida social, é a crise de uma certa cartografia da existência humana, cuja falência começa a se fazer sentir no final do século XIX e se intensifica cada vez mais ao longo do século XX. (ROLNIK, 1999.p.2)

A partir dessa década - 1960, a artista passa a produzir corpos

mutáveis, elásticos e deformáveis, os quais passam a constituir “signos

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topológicos”8 nos quais as alterações de estado são privilegiadas em

prejuízo de formas estáveis e distâncias fixas(MILIET, p.86).

Embora, as relações contexto-obra no trabalho de Lygia Clark não

estejam às claras, pode-se inferir que o período de instabilidade política no

Brasil cooperou para que a artista buscasse novas poéticas que

propiciassem ao espectador uma co-participação, podendo ao participar da

criação da obra abrir uma perspectiva para analisar o contexto histórico

brasileiro.

Observa-se, portanto que Lygia Clark ao fazer suas proposições reitera

a importância da participação do espectador e incita o público a pensar no

espaço, espaço este, que começa a ser cerceado e manipulado pelo

interesse de grupos políticos. Esses interesses constantemente são negados

em alguns trabalhos da artista que podem ser visualizados na sua trajetória

e no pensamento artístico da época

Queiroz (2008) analisa a trajetória de Lygia e o pensamento artístico da

época:

A trajetória de Lygia Clark se realizou concomitante ao desenvolvimento de uma nova forma de pensar e fazer arte, que se distanciou dos conceitos tradicionais modernistas e fez emergir a arte contemporânea. Em sua condição contemporânea, a arte surge reivindicando novas formas de significação e sensorialidades, caracterizando-se por apresentar uma ampla disposição à experimentação. E experimentar era o tom de toda a obra de Clark.

A partir dessa década, todas as suas proposições artísticas levam o

espectador a vivenciar a arte, o que em outros tempos era um privilégio

relegado ao artista que criava e oferecia a sua obra. Lygia não se contenta

em oferecer a obra, ela quer que o espectador seja o artista.

Segundo Rolnik (1999, p.15 e 16):

A etapa inaugural se faz através de uma só proposta: o Caminhando, tira de papel torcida em 180 graus, cujas extremidades são coladas de modo a transformar-se numa fita de Moebius, onde avesso e direito tornam-se indistinguíveis. A obra consiste simplesmente em oferecer ao espectador este objeto acompanhado de uma tesoura, com a instrução de escolher um ponto qualquer para iniciar o corte, evitando incidir sobre o mesmo ponto da tira a cada vez que se completa uma volta em sua superfície. A tira vai afinando e

8 As instituições topológicas, segundo Miliet (p.86), possuem caráter marcante de não

serem Euclidianas, são fundadas nas sensações e sua influência está presente tanto em obras figurativas quanto em obras que não possuem o figurativo.

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encompridando a cada nova volta, até que a tesoura não possa mais evitar o ponto inicial. Nesse momento, a tira readquire avesso e direito e a obra se encerra. (ROLNIK. 1999, p.15 e 16)

A transferência de poder, do artista para o propositor, tem um novo

limite em Caminhando, 1963 (fig.4). Cortar a fita significava, além da questão

da “poética da transferência”, desligar-se da tradição da arte concreta, já que

a Unidade Tripartida, 1948-49, de Max Bill, ícone da herança construtivista

no Brasil, era constituída simbolicamente por uma fita de Moebius. Esta fita

distorcida na “Obra Mole” agora é recortada no “Caminhando” (fig 5 e 6). Era

uma situação limite e o início claro de num novo paradigma nas Artes

Visuais brasileiras. O objeto não estava mais fora do corpo, mas era o

próprio “corpo” que interessava a Lygia.

Ainda que este seja apenas o início de um processo, Lygia pressente a magnitude da transfiguração do cenário da arte que se anuncia em sua proposta, e entra numa crise, talvez a mais violenta de todas, que a atormentará por dois anos. É um momento em que também o Brasil está passando por um intenso movimento político e cultural, talvez demasiadamente disruptivo para as forças conservadoras da sociedade brasileira, o que irá provocar uma grave crise. (ROLNIK. 1999, p.16 e 17)

FIGURA 4: Caminhando tesoura e papel, 1963.

Artista: Lygia Clark Fonte:www.espacoperceptivo.net/downloads/artigo_pac.pdf

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FIGURA 5: Caminhando -1964

Artista: Lygia Clark Foto de Beto Felício

Fonte: http://www.passeiweb.com/saiba_mais/arte_cultura/galeria/lygia_clark/1

Segundo Catalano (2004, p.40 e 41):

No Caminhando Lygia Clark escolhe se deslocar da posição de artista inteiramente responsável pela criação de uma obra para o de propositora. E sua proposta não é apenas a vivência de uma experiência, mas a de dividir a criação desta obra com o espectador. No Caminhando, a experiência está totalmente relacionada à criação da obra mesma. Como sentencia a artista: a obra é o ato do fruidor. A ação é direcionada para o “caminho” que o espectador faz e se concentra na experiência que se desenrola durante o tempo de duração do movimento e que se constitui na obra propriamente dita. Além disso, cada um pode escolher fazer com a tesoura sua própria trajetória. Essa “independência” do participante é incentivada por Lygia Clark especialmente quando ela sugere que o Caminhando pode ser feito por qualquer um, que basta ligar as pontas de uma tira de papel torcida e cortá-la. O Caminhando é um “faça você mesmo” idealizado por Clark.

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FIGURA 6: Caminhando Artista: Lygia Clark

Fonte: bp1.blogger.com

Esta atitude leva Clark a um ato totalmente anárquico frente à

produção de outros artistas que objetivam preservar sua obra e perpetuá-la

através do tempo. Clark introduz a proposição como ação artística agindo

como catalisadora de um processo de contravenção que permite a liberdade

de criação sobre a criação “(...) revela que, no Caminhando “não há

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necessidade de objeto: é o ato que engendra a poesia.” (in BORJAVILLEL,

1997, p.153) “A obra é seu ato”” (Ibid., p.151 apud Queiróz. p.8).

Não é mais o problema de sentir a poética através de uma forma. A estrutura aí só existe como um suporte para o gesto expressivo corte, e depois de concluído não tem nada a ver com a obra de arte tradicional. É o estado da ‘arte sem arte’ pois o importante é o fazer que nada tem a ver com o artista, e tudo a ver com o espectador. O artista aí dando este tipo de idéia dá na realidade este ‘vazio-pleno’ em que todas as potencialidades da opção que vem através do ato tem lugar. (...) O ato traz ao homem contemporâneo a consciência de que a poética não está fora dele, mas sim no seu interior e que ele sempre a projetou através do objeto chamado arte. ( Manuscrito s/d, provavelmente de 1963-64, in Arquivo Lygia Clark.apud ROLNIK. 1999, p.16)

Lygia agrava sua crise existencial ao mesmo tempo em que as crises

no Brasil desembocam para o golpe militar. Sobre essa questão Rolnik (1999,

p.16 e17) comenta:

O desfecho será o golpe militar que instaura no país uma ditadura que permanecerá até 1984, sucedendo-se os generais que ocupam a presidência. Durante sua crise, e por ela mobilizada, a artista sentirá necessidade de voltar à etapa anterior de sua obra para explorá-la à luz da nova descoberta, como se também suas forças conservadoras não tivessem suportado o caráter subversivo de sua própria criação. No caso de Lygia, no entanto, isto não redundou numa ditadura destas forças em sua alma, mas apenas na necessidade de um tempo para digerir a ruptura, tempo de uma ressignificação de sua trajetória. (ROLNIK. 1999,p.16 e 17)

A obra de Lygia Clark acaba por introduzir novos propósitos a arte

brasileira que deixa de lado o técnico, e passa a reproduzir o contexto (Rolnik.

Arte de protesto no Brasil: anos 60 e 70.). « o caminhando permite (...) a

transformação de uma virtualidade em um empreendimento concreto »9. “Uma

virtualidade produzida no fora que se concretizará na criação de uma nova

forma.” (ROLNIK, Por um Estado de Arte. s/d).

Outro aspecto existente na obra de Lygia Clark que se propõe a uma

análise da sociedade e do contexto histórico são as poéticas voltadas para o

corpo que enfatizam a necessidade de exteriorização de sentimentos que estão

interiorizados. Muitas dessas proposições têm caráter apelativo voltado para o

corpo, essas características já induzem há uma constatação sobre a obra de

Lygia Clark: suas discussões estavam buscando uma crítica voraz à sociedade

9 "1964: Caminhando", in Lygia Clark. RJ, Funarte, 1980 (col. Arte Brasileira Contemporânea);

p.25.

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conservadora que sustentava o regime militar da época e que visualizava uma

sociedade padronizada, com rígidos valores sociais e religiosos, desprovida de

desejos e voltada para a “ordem e o progresso”. Tais aspectos já permitem

inferir que Lygia Clark pretendia incitar com suas proposições uma reflexão

sobre as sensações do corpo, um vivenciar novo.

Este vivenciar de Lygia exposto na descrição de sua obra está, embora

muitos insistam em dizer o contrário, emaranhado de contexto.

Com relação a este aspecto, comenta Ortiguara(s/d):

Toda a arte está condicionada, não determinada pela história. Não é seu espelho. É uma procura de possibilidades (produção/criação), além da situação do real e imaginário insustentável.(ORTIGUARA, ARTE DE PROTESTO NO BRASIL: ANOS 60 E 70. s/d)

É, portanto que está fase de 1963 a 1966, é considerada por Lygia a

“fronteira” de sua obra onde ela coloca o artista cada vez mais em cheque e,

sobre isso, comenta: «É um trabalho fronteira porque não é psicanálise, não é

arte. Então eu fico na fronteira, completamente sòzinha» (Jornal do Brasil. 1999,

p.6).

Ainda sobre esta questão comenta Lygia Clark:

Depois disso [Caminhando] tive uma crise mortal, a arte havia acabado para mim. Caí na cama e o diagnóstico foi ‘coronárias’. Pensei em morrer e para fazer meu mausoléu, comecei a trabalhar caixas de fósforos fazendo estruturas muito menos importantes como objetos do que os anteriores. Foi o que me tirou da cama e joguei para o alto a idéia de morte. O luto foi terrível não sabia o que expressar, pois sabia que para mim a arte estava extinta. Nesta época sofri um grande acidente de carro, batendo a cabeça no chão, fora jogada fora do carro 7 metros, quebrando o pulso direito. Tive um enorme labirinto, mas a cabeça desanuviou e achei que nela entrou uma certa ordem que não havia. Quanto ao pulso quebrado depois de tirarem o gesso me mandaram fazer o seguinte: metê-lo num líquido quente depois colocar sobre ele um saquinho de plástico. Um dia por acaso, o que não existe, eu peguei este saquinho, soprei ar dentro colocando um elástico para mantê-lo cheio. Na parte externa coloquei uma pedrinha, entrando em um dos ângulos e comecei a apertá-la devagar devagar com as mãos. ‘Nostalgia do corpo’, gritei louca de alegria. Foi o primeiro objeto feito desta série e o mais lindo também.” (manuscrito s/d, in Arquivo L.Clark) Ou “Naquele momento comecei a articular interiormente o valor do precário, da fragmentação, do ato, dizendo: não é obra minha, a estrutura é topológica, não é minha. Tudo isso serviu para que eu acabasse fazendo, quase por casualidade, meu primeiro trabalho sobre o corpo até 1966. Enchi de ar um saco de plástico e o fechei com um elástico. Pus uma pedra pequena sobre ele e comecei a apalpá-la, sem me preocupar com descobrir alguma coisa. Com a pressão a pedra subia e descia por cima da bolsa de ar. Então de repente percebi que aquilo era uma coisa viva. Parecia um corpo. Era um corpo. (entrevista a Roberto

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Pontual, Jornal do Brasil, 21/09/74, in catálogo Tapiès, op.cit; p. 205. Apud ROLNIK, 1999.p19)

Nessa fala também percebemos o limiar em que Lygia chegou,

avançou tanto que não consegue inserir-se mais no campo artístico do seu

tempo. Enche seus ouvidos com as críticas vorazes de quem não compreende

o seu desejo de quebrar os paradigmas. Se falar era impossível, no momento

político em que o Brasil vivia, sentir era o que restava ao homem e esta tarefa

de criar possibilidades para sentir, era delegada ao artista. Sobre esta questão

comenta Pedrosa (1986, p.247):

A revolução política está a caminho; a revolução social se vai processando de qualquer modo. Nada poderá detê-las. Mas a revolução da sensibilidade, a revolução que irá alcançar o âmago do indivíduo, sua alma, não virá senão quando os homens tiverem novos olhos para olhar o mundo, novos sentidos para compreender suas tremendas transformações e intuição para superá-las. Esta será a grande revolução, a mais profunda e permanente, e não serão os políticos, mesmo os atualmente mais radicais, nem os burocratas do Estado que irão realizá-la. Confundir revolução política com revolução artística é, pois, um primarismo bem típico da mentalidade totalitária dominante.

Está claro que Pedrosa percebeu onde estava à verdadeira revolução e

como ela se processava e não adiantava calar as bocas dos homens se o que

realizavam, por meio de poéticas artísticas, era mais significativo para exprimir

todo o sentimento reprimido.

Esse tempo de turbulência vivido por Lygia e pelos demais artistas no

Brasil (músicos, atores, poetas, literatos, intelectuais, entre outros) agravou-se

ainda mais com a instituição do AI-5 e com a chamada “Linha Dura” no poder,

estudantes eram presos, políticos cassados, cantores populares exilados,

trabalhadores e sindicatos impedidos de lutarem por seus direitos. Enfim, tudo

deveria passar pelo crivo dos militares e para manter a ordem, o Serviço

Nacional de Informação - SNI agia em todos os níveis da sociedade para

impedir atividades ditas subversivas.

Sobre os episódios que se seguem no Brasil descreve Moraes (1998,

p.479):

Ainda que as atitudes do governo demonstrassem as intenções de anular a oposição, esta buscava se rearticular de diversas maneiras. Setores da Igreja manifestaram sua insatisfação com o processo político e com o tratamento dado às questões sociais. Os estudantes voltaram à ativa,apesar de suas entidades permanecerem ilegais,

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como no congresso União Nacional dos Estudantes em Ibiúna, em outubro, desbaratado pelo exército e pela polícia militar de São Paulo. Um episódio trágico no movimento estudantil foi a morte do estudante Edson Luís num enfrentamento com a polícia, transformando-o em um símbolo da resistência civil. Greves operárias eclodiram em Osasco e Belo Horizonte, mas foram reprimidas com violência pelo governo. O ponto culminante de todo esse processo foi a passeata dos cem mil no Rio de janeiro. Foi nessa época que começaram a ganhar força as idéias de parte do setor oposicionista que acreditava ser a luta e a resistência armada contra o regime militar a única forma efetiva de derrubá-lo(...).

Quanto ao contexto pós o AI5 comenta Konder (Hollanda e Gonçalves,

1982 in Ortiguara, s/d):

minha primeira impressão, quando olho para trás, é a de ver ruínas arqueológicas de uma cultura dizimada pelo AI – 5, pela repressão, pelas torturas, pelo milagre brasileiro, pelo vazio cultural, pela disciplina tecnocrática e lógica implacável do mercado capitalista... Mas é evidente que nem tudo se perdeu: ficou o esforço, ficaram gestos de grandeza, preocupações fecundas. E onde o pensamento político carecia de lucidez, a sensibilidade dos artistas produzia criações cheias de encanto, livros, poemas, filmes, canções. Obras cuja vitalidade não pode ser negada, porque ainda hoje circulam entre nós e nos emocionam (Konder, In: Hollanda e Gonçalves, 1982: 91-92 apud Ortiguara, p.11.s/d).

É, portanto que embora pareça que isso tudo seja uma experiência

pessoal, não há como desvinculá-la do contexto, e Lygia Clark estando inserida

no grupo artístico não conseguia isolar-se das coisas que estavam ocorrendo

no seu país e suas poéticas mergulham ainda mais no indivíduo.

Incessantemente deixa refletida na sua obra o desejo de encontrar-se, de

submeter-se ao efeito da sensação, propondo uma interiorização reflexiva

como um “conhece-te a ti mesmo”10, este intuito de Lygia acabava sendo

debatido pelos artistas figurativos e pelos que combatiam a arte neoconcreta,

num âmbito mais político, a censura ainda estava em outro patamar para poder

compreender as intenções de Lygia com seu trabalho propositivo, portanto não

a indagavam sobre seu trabalho.

Segundo Páscoa (s/d), essa subjetividade esta interiorizada no artista:

10

"Conhece-te a ti mesmo" - o lema em que Sócrates cifra toda a sua vida de sábio. O perfeito conhecimento do homem é o objetivo de todas as suas especulações e a moral, o centro para o qual convergem todas as partes da filosofia. A psicologia serve-lhe de preâmbulo, a teodicéia de estímulo à virtude e de natural complemento da ética. Disponível em: http://www.mundodosfilosofos.com.br/socrates.htm acessado em 15/09/2008.

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Atingir o estado de arte na subjetividade do próprio artista não tem nada de novo, pois é neste estado que o artista cria. Lygia sempre viveu verdadeiras convulsões durante a gestação de cada fase de sua obra. Suas turbulências não eram um mero detalhe biográfico pitoresco, peculiaridade de sua "estrutura psicológica", mas sim parte de seu processo de criação, no qual ganhava corpo uma proposta ao mesmo tempo artística e existencial. Podemos perceber que as obras de arte podem ser muito mais do que um simples objeto de contemplação, decoração e consumo de um grupo social restrito. A arte é pensamento e pode nos conduzir a uma reflexão política e social.(PÁSCOA, Concretismo e Utopia: a vanguarda artística nos anos 50)

Nessa perspectiva ao analisar a obra de Lygia e o contexto histórico

(fig.7) partindo do pressuposto que a arte e a história se sobrepõem se

contrapõem e por vezes se completam e se complementam, essa relação

antagônica está expressa na obra de Lygia Clark que quer ao mesmo tempo

livrar-se da história “mergulhando” evidentemente nela. A artista ao pretender

desprender-se do contexto acaba deixando aflorar seu Eu que mergulha nos

seus valores, na sua visão de mundo e na intencionalidade de revolucionar a

arte brasileira. Talvez a artista não tenha expressado essa atitude, nem tenha

ambicionado expressar a contracultura, mas o que fica claro é que Lygia Clark

induz o espectador a participar e compor, e este ato, por si só, já é pleno de ir

contra a cultura.

Fig.7: Lygia Clark e o contexto

Intervenção em fotografia – arte digital11 Fonte: Andréa Coelho

11 A poética realizada pela pesquisadora procura resumir a relação conflituosa da artista com o contexto, Lygia, portanto se relaciona com as pessoas de sua época induzindo o espectador a pensar o seu tempo.

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A seguir se expõem algumas conclusões do trabalho realizado.

CONCLUSÃO:

Ao chegar ao fim desse trabalho pode-se perceber que a artista Lygia

Clark, embora alguns autores afirmem, sem intencionalidade, torna-se uma

artista ícone para compreender o movimento de contracultura, por meio da

arte, no Brasil.

A artista realizou uma leitura clara de seu tempo, em sua poética,

provando que, se somos seres históricos, não podemos ficar alheios ao que

acontece ao nosso redor e mesmo que se procurarmos nos alienar ou negar o

vivido, estamos impregnados dele, e representamos, mesmo sem

intencionalidade, os caracteres temporais que nos rodeiam.

Perceber tais particularidades por meio da obra de Clark, fez com que

sentíssemos as possibilidades historiográficas dos contextos, “a História como

prática (disciplina), seu resultado (um discurso) e a relação entre eles”12,

análise importante para despertar em nossos jovens a “consciência histórica”

necessária para nos compreendermos como agentes ativos e críticos da

história.

A história da arte, apreendida dessa maneira, permite ao indivíduo a

necessária compreensão e leitura de mundo, para que possa integrar-se ao

contexto em que vive. Nesse estudo, Lygia Clark pôde, por meio da leitura

polifônica (feita pela pesquisadora), dar significação ao contexto referente à

contracultura, mostrando as inúmeras possibilidades didáticas, para a arte e a

história que podem fazer uso desse estudo.

Se “o esforço característico do ofício de historiador e o que lhe dá

sabor é espantar-se com óbvio”13 o presente trabalho encarrega-se de

reorientar os acontecimentos por meio do olhar e obra de Lygia Clark.

12

JOSGRILBERG. 2005, p.62. 13

Afirmativa de Paul Veyne (1971, p.7)

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Cabe ressaltar que o presente estudo já é subsídio a ser utilizado pelos

professores de Artes Visuais e outras áreas que assim julgaram significativo

para sua relação interdisciplinar.

Quanto à representatividade expressa na obra de Lygia Clark pode-se

inferir que se dá devido às obras artísticas que realizou. Na sua trajetória

podem-se encontrar as características principais do movimento de

contracultura como: contravenção ao imposto pela sociedade; nesse caso

transpondo para a arte, Lygia Clark, desde seu primeiro trabalho do período

Superfícies Moduladas, procura transgredir com as regras impostas pelas ditas

“Belas-Artes” e de início quebra com a moldura. Depois da primeira

“contravenção”, não para mais e segue um caminho político de busca por uma

arte, que se superasse. Os Bichos foram sua obra mais conhecida e o princípio

da inserção do espectador para “dar vida” ao seu trabalho. Este aspecto

iniciado nos “bichos” permeou seu trabalho tornando-se com o passar do

tempo mais aprofundado.

Outro momento do trabalho de Lygia Clark, onde se destaca aspectos

da contracultura, está na obra Caminhando a qual expusemos no decorrer do

trabalho, nessa obra a artista “procura por canais que possibilitem exprimir as

pequenas realidades do cotidiano”.14Procurando carregá-la de simplicidade,

porém, submetendo o participante da proposição há uma profunda reflexão,

após Caminhando as poéticas de Lygia Clark voltaram-se para o corpo. Nada

mais contracultural que isso, pois, um dos aspectos mais discutidos no

movimento era a descoberta do corpo, a liberação sexual, a busca da liberdade

e do prazer. Olhando as obras da artista e procurando ler essa imagem pode-

se inferir que a partir do Caminhando todas as obras que seguem tem essa

preocupação.

A partir da obra Trepante, onde a artista propõe que os participantes

chutem a obra de arte, envolve-se em proposições corporais cada vez mais

submersas em questões psicológicas, fato que leva a comunidade artística a

negar o trabalho de Clark e a relegá-lo à categoria de não-arte. Este fato,

citado acima, contém um atributo da contracultura que é o “forte espírito de

contestação, de insatisfação, de experiência de busca de outra realidade, de

outro modo de vida” (idem nota). Características como misticismo,

14

Pereira. 1983, p. 92

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psicodelismo também são encontradas nas suas obras a partir de Trepante das

quais se destacam: Nostalgia do Corpo, várias proposições que apresentam

aspectos contraculturais relativos ao misticismo e psicodelismo.

Acredita-se que Lygia Clark, sendo “filha do seu tempo”, não poderia

deixar de transbordar em sua obra o contexto vivido, portanto, segundo os

estudos realizados, a artista, mesmo que alguns considerem que foi

inconscientemente, é um expoente da contracultura no Brasil.

A arte brasileira seguiu, pois, após os modernistas de 1922, caminhos

diversos e tal qual a arte do mundo inteiro, tinha permanências e mudanças

como até hoje. O grupo Neoconcreto, em seus estudos teóricos e pela sua

opção filosófica, acabou destacando-se com relação às características já

expostas da contracultura e se sobrepôs ao realizar um Manifesto coerente e

com bases teóricas fortes. Principalmente ao optar pela linha de Merleau

Ponty, a fenomenologia, e realizar obras artísticas que enfatizavam mais o

processo de construção que a obra pronta em si. Destacamos além de Lygia

Clark e Hélio Oiticica e os demais integrantes do Grupo Frente, Mario Pedrosa

e Ferreira Gullar como importantes para os princípios fundantes de uma arte

contemporânea no Brasil, em consonância com o mundo.

As produções e poéticas desses artistas levaram em conta a

contravenção e o espírito contestador da contracultura. Lygia Clark, ao realizar

seu primeiro trabalho artístico Superfícies Moduladas prendia-se ainda nos

princípios do concretismo. A característica geométrica, embora bem objetiva, já

possuía tímidas liberdades com cores e formas e o principal impacto dessa

obra foi o rompimento com a moldura criando um espaço diferenciado para sua

poética. Já em os Bichos, embora mantivesse o uso dos princípios da

geometria, criou “objetos-vivos” (como chamava cada “bicho”) indicando que

cada um possuía uma vida própria doada pelo espectador que o “movia” de

diferentes maneiras. Sempre, ao olhá-los nos recordamos das dobraduras

japonesas – o origami – Assim, os Bichos de Clark são como Tsurus15 voando

conforme o vento (espectador) lhe proporciona.

15

O "tsuru" (o grou), ave sagrada para o povo Japonês é um pássaro que segundo a lenda vive 1000 anos. Considerada símbolo de sorte, paz, felicidade e longevidade, diz-se que se uma pessoa estiver doente e fizer mil dobraduras desta ave será curada. Disponível em: http://www.arteeducar.com/comofazer/cftecnica/p15cftc01db04a.htm

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A partir da proposição dos Bichos, Lygia Clark aprofunda-se cada vez

mais nas poéticas do corpo. Cada parte dos sentidos humanos é o objeto de

estudo de Clark, procura potencializá-los, reduzi-los, explorá-los. Nessas

proposições o concretismo deixa de ser utilizado e o que chamam de

neoconcretismo passa a responder as questões impostas pela artista ao

conceber seu trabalho.

O Neoconcretismo, embora ainda utilizasse alguns princípios do

concretismo, possuía uma liberdade de criação e um espírito contestador das

bases artísticas vigentes evidentes em seu manifesto e em todas as poéticas

artísticas dos componentes do movimento. Pode-se, portanto, inferir que Lygia

Clark, Lygia Pape e Hélio Oiticica, são os que se destacaram nas proposições

neoconcretistas.

Lygia Clark, ao destacar-se, marca sua caminhada por trabalhos

conflitantes, interrogativos e que proporcionam ao espectador realizar uma

participação no seu processo artístico. Essas idéias, é claro, estão contidas nos

fundamentos teóricos da fenomenologia de Merleau Ponty que destaca a

importância do processo inferindo a ele maior ênfase do que a obra em si.

Todo o trabalho da artista possui as influências do tempo em que vive, a

contracultura marca da sociedade da época. E é sem dúvida, uma constante no

seu trabalho, o desejo de comunicar aos outros uma nova proposta e que ela

possa promover o crescimento de quem participa dela, modificando seus atos,

analisando suas mazelas, e proporcionando uma mudança de postura, está

sempre clara em suas poéticas a partir de Caminhando e embora vivendo em

um país ditatorial (pós-golpe) busca com suas proposições trazer o espectador

para um local onde é possível sim interferir, dialogar, modificar.

Pode-se inferir, portanto, que a artista quer encontrar um lugar de

importância para o seu trabalho artístico, o que não ocorre no Brasil. É na

França, após 1968, que consegue reconhecimento, quando recebe da

Sourbonne, um título que reconhece muito de suas proposições para uso

clínico. Mesmo com o título obtido na França ela nunca conseguiu inserir-se

como psicoterapeuta, sendo então relegada pelos psicólogos e pelos artistas.

Portanto conclui-se que, embora houvesse muitas discussões em torno

da obra de Lygia Clark, não se pode negar que a artista possui uma trajetória

fascinante, que nos permite destacar claramente as fases percorridas por ela.

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Primeiramente, Lygia liberta-se da moldura, ampliando seu espaço criativo, em

seguida, quer dar ao espectador condições de cooperar para a construção de

obras-vivas. O próximo passo é o espectador experienciar os diferentes

sentidos do corpo humano em poéticas chamadas Nostalgias do Corpo,

proporcionando cheiros, sons, gostos, e novos olhares em diferentes poéticas.

É nesse período que Lygia infere que seu trabalho é ovulado, desenvolvido e

concebido, ou seja, cada obra é gerada numa interiorização (subjetividade) e

posterior exteriorização (objetividade), sempre buscando materializar a

expressão e diálogo, ao amadurecer as intenções que tem. Na última fase

estudada, A Casa é o Corpo, a artista explora o corpo do participante, fazendo-

o mergulhar em seu interior para que possa encontrar-se com seu eu. O

subjetivismo dos últimos trabalhos do período estudado é um “exercício de

liberdade” que Lygia exerce com toda a sua força. Para Lygia a arte é uma

“estratégia existencial”16, mesmo que naquele momento fosse incompreendida.

Cabe ressaltar, que essas discussões não se esgotam nessa pesquisa

e que tanto a obra de Lygia Clark quanto sua biografia, cooperam para novas

possibilidades no ensino da história e das artes, proporcionando um

entendimento do contexto brasileiro e da contracultura.

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16

As aspas indicam duas citações contidas na Biografia de Lygia Clark exposta no Cd room 500 anos de Pintura Brasileira

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