leitura salesiana de amoris...

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1 Igreja, Família, Educação: Leitura salesiana de Amoris Laetitia Andrea Bozzolo, sdb. Professor de Teologia Sistemática INTRODUÇÂO As mudanças culturais que a família tem atravessado atualmente, solicitam a atenção da Igreja de diferentes maneiras, propondo desafios pastorais e educativos inéditos e muito complexos. Nesse sentido, a partir do Concilio Vaticano II, a comunidade eclesial tem desenvolvido uma ampla reflexão acerca do matrimônio e da família, reconhecendo em tais questões elementos fundamentais para a sua própria vida e missão. A celebração de três sínodos dedicados ao tema é um sinal evidente dessa atenção: o primeiro em 1980, retomado na exortação apostólica pós-sinodal de João Paulo II Familiaris Consortio (1981); e os dois sínodos recentes, o primeiro, extraordinário, de 2014 e o sínodo ordinário de 2015, cujos resultados foram incluídos na exortação apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia (2016). A particular preocupação da Igreja com a família nasce, por um lado, da percepção da crise que esta instituição tem passado na nossa sociedade, sobretudo no mundo ocidental. Como é sabido, esta crise se manifesta no crescente número de separações e divórcios, na difusão da coabitação fora do matrimônio, na prática de hábitos afetivos questionáveis, nas diferentes atitudes de fechamento em relação à vida, na marginalização dos idosos, e, mais recentemente também, na afirmação de ideologias intrinsecamente anti-familiares. Esta situação transmite a impressão de que, em muitos casos, foi levantado um muro que não permite a comunicação entre a cultura afetiva contemporânea e a mensagem cristã. Ao voltar constantemente sua reflexão sobre a família, a Igreja demonstra que não deseja resignar-se ou temer as mudanças da história, mas antes, deseja compreendê-la e habitá-la, para fazer ressoar também no interior da cultura afetiva de hoje a palavra do Evangelho em modo jovial e convincente. O segundo motivo pelo qual a Igreja dedica tanta atenção à pastoral familiar é a renovada consciência do protagonismo que a família pode e deve ter na transmissão da fé. A própria escolha de

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Igreja, Família, Educação: Leitura salesiana de Amoris Laetitia

Andrea Bozzolo, sdb. Professor de Teologia Sistemática

INTRODUÇÂO

As mudanças culturais que a família tem atravessado atualmente, solicitam a atenção da Igreja de diferentes maneiras, propondo desafios pastorais e educativos inéditos e muito complexos. Nesse sentido, a partir do Concilio Vaticano II, a comunidade eclesial tem desenvolvido uma ampla reflexão acerca do matrimônio e da família, reconhecendo em tais questões elementos fundamentais para a sua própria vida e missão. A celebração de três sínodos dedicados ao tema é um sinal evidente dessa atenção: o primeiro em 1980, retomado na exortação apostólica pós-sinodal de João Paulo II Familiaris Consortio (1981); e os dois sínodos recentes, o primeiro, extraordinário, de 2014 e o sínodo ordinário de 2015, cujos resultados foram incluídos na exortação apostólica pós-sinodal Amoris Laetitia (2016).

A particular preocupação da Igreja com a família nasce, por um lado, da percepção da crise que esta instituição tem passado na nossa sociedade, sobretudo no mundo ocidental. Como é sabido, esta crise se manifesta no crescente número de separações e divórcios, na difusão da coabitação fora do matrimônio, na prática de hábitos afetivos questionáveis, nas diferentes atitudes de fechamento em relação à vida, na marginalização dos idosos, e, mais recentemente também, na afirmação de ideologias intrinsecamente anti-familiares. Esta situação transmite a impressão de que, em muitos casos, foi levantado um muro que não permite a comunicação entre a cultura afetiva contemporânea e a mensagem cristã. Ao voltar constantemente sua reflexão sobre a família, a Igreja demonstra que não deseja resignar-se ou temer as mudanças da história, mas antes, deseja compreendê-la e habitá-la, para fazer ressoar também no interior da cultura afetiva de hoje a palavra do Evangelho em modo jovial e convincente.

O segundo motivo pelo qual a Igreja dedica tanta atenção à pastoral familiar é a renovada consciência do protagonismo que a família pode e deve ter na transmissão da fé. A própria escolha de

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um título positivo e alegre como "Amoris Laetitia” ao documento pós-sinodal, indica uma vontade de lidar com as questões relacionadas à família a partir de um posicionamento construtivo.

Essa perspectiva ajuda a compreender que, apesar das dificuldades do presente, a família não é, acima de tudo, um problema a ser resolvido, mas uma energia a ser ativada, uma fonte de vida cristã que pode e deve expressar melhor todo o seu potencial. Deste modo, ao olhar positivamente para a família, a Igreja nos convida a nos libertar do clericalismo que muitas vezes condiciona nossos argumentos pastorais. Refletir sobre a pastoral familiar não significa que sacerdotes e agentes pastorais tem que "resolver" a crise da família, mas que o povo de Deus, formado por famílias, é chamado a redescobrir juntos o frescor e a beleza de viver a aliança conjugal iluminada pela presença de Cristo ressuscitado. A alegria do amor é um dom do Ressuscitado à sua Igreja, um fruto do Espírito Santo para ser acolhido com alegria e testemunhado com força e energia. Esta alegria é também, como sabemos, um dos recursos fundamentais para realizar a ação educativa.

Com a Estreia desse ano, o Reitor-mor convida toda a Família Salesiana a sintonizar-se com a comunidade eclesial na busca das melhores formas de acompanhamento das famílias e a contribuir com os recursos específicos que brotam do nosso carisma educativo. A reflexão que vos proponho procura realizar, como me foi solicitado, uma leitura salesiana de AL. Obviamente não farei uma apresentação material do documento, que após um ano da sua publicação já é conhecido por todos; mas procurarei sublinhar alguns aspectos que me parecem mais relevantes para o nosso carisma. A minha reflexão será articulada em quatro momentos dedicados respectivamente a (1) delinear os elementos constitutivos da família (2) propor chaves de leitura da AL (3) trazer à tona a intenção de fundo do documento (4) sugerir algumas possibilidades de escuta “salesiana” das indicações do Papa.

1. A FAMÍLIA ENTRE NATUREZA E CULTURA

O Catecismo da Igreja Católica apresenta a família nos seguintes termos: “Um homem e uma mulher, unidos em matrimônio, formam com os seus filhos uma família. Esta disposição precede todo e qualquer reconhecimento por parte da

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autoridade pública e impõe-se a ela. Deverá ser considerada como a referência normal, em função da qual serão apreciadas as diversas formas de parentesco” (CIC 2202). Do texto do Catecismo emergem com clareza os elementos constitutivos da experiência familiar: a conjugalidade e a geração. O primeiro elemento implica a diferença sexual e a aliança conjugal. O segundo a geração dos filhos e a integração social. Articulada segundo os dois eixos de gênero e geração, sem dúvidas, a família tem um papel arquitetônico para o mundo humano. Realmente, é na intersecção desses dois eixos que se encontra o núcleo de toda a antropologia.

Pais

Homem Mulher

Filhos

Isso ocorre porque a conjugalidade e a parentalidade estão enraizadas no que o homem é de mais “natural”, isto é, o encontro entre sexualidade e fertilidade. Ao mesmo tempo, isso ocorre sempre em formas que são confiadas à liberdade dos sujeitos e as mediações da "cultura"; isso quer dizer que ocorre sempre em formas plásticas e mutáveis, que variam de acordo com o tempo e lugar e nunca podem ser consideradas um processo de desenvolvimento automático e permanente. Isso deve ser levado em séria consideração para não se realizar um discurso genérico e abstrato sobre a família, mas tentar encontrar as chaves de leitura mais adequadas para diferentes situações culturais.

Em algumas épocas e culturas o eixo vertical da parentalidade tem precedência sobre o da conjugalidade: nesse sentido, a família é compreendida principalmente como o lugar da geração dos filhos, a ponto de ser “instrumentalizada” para essa finalidade. Isso pode acontecer moderadamente, mas também em formas mais explícitas, que podem trazer graves consequências sobre o modo de compreender, por exemplo, o papel da mulher e a sua vocação à maternidade. Nestes casos a dimensão comunitária (a tribo, o clã, os pais, ocasionalmente o próprio estado) prevalece sobre a dimensão pessoal; a busca pela fecundidade torna a relação

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conjugal menos significativa, a ponto de justificar a poligamia; pode haver formas de negligência educacional para com os filhos; a virgindade cristã é rejeitada como um comportamento sem sentido; e assim por diante.

Em outras épocas e culturas, no entanto, o eixo horizontal da aliança conjugal pode prevalecer sobre o eixo “generativo” da parentalidade: a família é, então, compreendida como um “casal”, uma experiência de gratificação afetiva, até ao ponto de se “instrumentalizar” a presença dos filhos à compreensão afetiva do homem e da mulher. Também neste caso surgem notáveis distorções antropológicas: a dimensão privada e subjetiva prevalece sobre a dimensão social e institucional; a geração dos filhos se torna uma mera possibilidade adiada por anos; se perde o sentido da responsabilidade pública assumida na escolha de constituir uma relação estável entre homem e mulher; se pode chegar ao ponto de se enfraquecer a diferença sexual, como está acontecendo hoje no Ocidente, com o pretexto de se assimilar as uniões homossexuais ao contexto de família.

É claro que a situação ideal acontece quando os dois eixos são bem harmonizados entre si e quando a sua relação com a sociedade como um todo não é de sujeição nem de marginalização. Refletir sobre este aspecto é importante para se compreender que a família não é uma realidade estática e "imutável", no sentido de ser uma instituição humana sem um caminho de desenvolvimento histórico. A família, como todos os componentes da experiência humana, é uma realidade plástica e mutável, habitada por um dinamismo profundo que a leva a desenvolver-se de modo frutífero e radiante, mas que também a expõe a momentos de dificuldade e crise.

Isto aplica-se antes de tudo à família como realidade concreta em si mesma (a partir do momento em que dois jovens se conhecem, se comprometem, até quando se casam, tem filhos em mais tarde, netos); e aplica-se também ao contexto familiar dentro do sistema social, com a mudança de formas de seu reconhecimento simbólico e jurídico, com a mudança de papéis e de sua estrutura. Como o carisma salesiano se espalhou em muitas áreas e culturas diferentes, é importante procurar entender quais são as características, potencialidades e desafios relacionados à experiência familiar do contexto em que se trabalha.

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2. CHAVES DE LEITURA DE AL: A FORMA DO TEXTO E A LÓGICA

DO ACOMPANHAMENTO

A breve referência à complexidade histórica da experiência familiar nos diversos contextos nos pressiona a apreciar um dos aspectos fundamentais da AL, que constitui também a primeira chave de leitura que sugiro para a interpretação do documento. Se trata da escolha que o papa Francisco fez de falar da família a partir de uma “grande história” e não através de um “tratado”. Todos os comentaristas da exortação ressaltaram o estilo do texto, que toca os corações pela sua imensa capacidade de aderir ao cotidiano. Em ocasião da apresentação oficial do documento o cardeal Schönborn foi capaz de afirmar:

Para mim, Amoris Laetitia é, antes de tudo, um “acontecimento de linguagem”, assim como está a ser Evangelii Gaudium. Algo mudou no discurso eclesial. Esta mudança de linguagem já era perceptível durante o caminho sinodal. Entre as duas sessões sinodais de outubro de 2014 e outubro de 2015 se pôde perceber claramente como o tom se tornou mais rico de afeto, como se estivéssemos simplesmente a acolher as situações da vida, sem julgá-las ou condená-las imediatamente. Em Amoris Laetitia este se tornou o tom linguístico contínuo. Por trás disso não há, naturalmente, apenas uma opção linguística, mas um profundo respeito diante de cada homem que nunca é, em primeiro lugar, um “caso problemático” em uma “categoria”, mas uma pessoa inconfundível, com a sua própria história e seu percurso com e para Deus. Na Evangelii Gaudium o Papa Francisco escreve que devemos tirar as sandálias diante do solo sagrado do outro (EG 36). Esta atitude fundamental perpassa toda a exortação.

O registro linguístico usado pelo papa Francisco para falar da família merece ser aprofundado, porque não é questão apenas de forma, mas sobretudo de substância.

Amoris Laetitia, de fato, fala da beleza crista da família não “ao lado” ou “acima” da sua consistência humana, mas imergindo plenamente na trama articulada de suas relações. Nesse sentido, as páginas do capitulo IV são exemplares; nelas o papa comenta o hino à caridade de 1Cor 13, referindo-se às diversas situações cotidianas do amor conjugal e familiar; igual beleza pode ser encontrada nos parágrafos em que descreve com admiração aquilo que a mulher vive nos meses de gravidez, reconhecendo esse período como espaço de uma preciosa experiência espiritual (AL 168-171). Na base desse estilo expressivo de linguagem, existe o

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reconhecimento de que a “carne” do homem, a realidade frágil de sua existência pessoal, é o espaço no qual se pode encontrar o mistério de Deus, o lugar no qual podemos discernir a passagem do Espirito. Se trata de uma atitude que, intencionalmente, evita os atalhos espiritualistas e moralistas que conduzem a apresentar o matrimônio com fórmulas idealizadas e linguagens artificiais (AL 35-37).

Para isso, no entanto, “exige-se a toda a Igreja uma conversão missionária: é preciso não se contentar com um anúncio puramente teórico e desligado dos problemas reais das pessoas. A pastoral familiar deve fazer experimentar que o Evangelho da família é resposta às expectativas mais profundas da pessoa humana: a sua dignidade e plena realização na reciprocidade, na comunhão e na fecundidade. Não se trata apenas de apresentar uma normativa, mas de propor valores, correspondendo à necessidade deles que se constata hoje, mesmo nos países mais secularizados” (AL 201).

Deste modo, o papa oferece uma grande lição pastoral: não podemos cair na ilusão de que sabemos comunicar o Evangelho do matrimônio somente porque tecemos-lhe grandes elogios e utilizamos as mais altas imagens que as Escrituras nos oferecem. Separadas da humilde contemplação do cotidiano até as expressões mais ricas podem tornar-se fórmulas retóricas e símbolos vazios. A analogia, real e imperfeita, que existe entre o pacto conjugal e a aliança de Deus com o seu povo, de Cristo com a Igreja (Ef 5), assim como a afirmação de que a família é a “igreja doméstica” ou “imagem da trindade” não podem ser utilizadas como se fossem simplesmente definições prontas.

Essas expressões, na verdade, são o ponto de chegada de um trabalho cuidadoso de compreensão das dinâmicas familiares, assim como o papa nos ensina a fazer, através da narração da vida que, de modo algum, podem ser ignorada ou vista somente superficialmente. Somente germinando nessas narrativas, aquelas imagens podem exprimir de modo convincente o potencial de significado que portam em si e podem se tornar uma luz para descobrir o Mistério que habita o amor conjugal.

À esta escolha de estilo expressivo, que visa profundidade, mas evita idealizações, corresponde a escolha de um estilo pastoral que privilegia o desabrochar de processos de acompanhamento (“Não basta inserir uma genérica preocupação pela família nos grandes projetos pastorais; para que as famílias possam ser

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sujeitos cada vez mais ativos da pastoral familiar, requer-se «um esforço evangelizador e catequético dirigido à família, que a encaminhe nesta direção” AL 200) ao invés de uma lógica de aplicação de esquemas e normas (“o tempo é superior ao espaço”, ou seja, é necessário “gerar processos mais do que dominar espaços” cfr. AL 3 e 261). Essa é a segunda chave de leitura que gostaria de me debruçar brevemente. Já na exortação apostólica Evangelii Gaudium, o Papa Francisco havia falado amplamente de acompanhamento:

Com obras e gestos, a comunidade missionária entra na vida diária dos outros, encurta as distâncias, abaixa-se – se for necessário – até à humilhação e assume a vida humana, tocando a carne sofredora de Cristo no povo. Os evangelizadores contraem assim o «cheiro das ovelhas», e estas escutam a sua voz. Em seguida, a comunidade evangelizadora dispõe-se a «acompanhar». Acompanha a humanidade em todos os seus processos, por mais duros e demorados que sejam. Conhece as longas esperas e a suportação apostólica. A evangelização patenteia muita paciência, e evita deter-se a considerar as limitações. (EG 24)

De formal alguma, se trata de uma renúncia a propor a verdade do evangelho com o objetivo de não contrariar a sensibilidade atual ou para satisfazer ideologias mundanas (AL 35). Se trata, ao contrário, da atitude do próprio Jesus que reconhece que as pessoas, com suas difíceis histórias, nunca são apenas um caso enquadrado em uma lei universal. Por isso, diante das questões mais complexas e mais discutidas, o Papa mostra a necessidade de uma mudança de abordagem. Certas respostas nunca poderão ser encontradas se não formos capazes de modificar, à luz de uma revisão evangélica, o nosso modo de formular a pergunta. A pretensão de soluções normativas que devem ser simplesmente aplicadas aos casos particulares ou a superficialidade de um “bonachão” permissivo que não sabe reconhecer as diferenças e iluminar para a responsabilidade, são, realmente, somente uma outra face da visão abstrata do matrimônio, cuja clareza é completamente distante da realidade.

Quando, no entanto, as fórmulas do pensamento se preenchem de conteúdos pessoais e quando “descemos” do ponto de vista universal para as situações particulares, acontece, segundo o autorizado pensamento de Santo Tomás, o exercício daquele sabedoria prática chamada prudência: uma sabedoria que não se limita a deduzir, mas é a arte evangélica de discernir. Qualquer atalho é estranho a este estilo de pastoral: tanto as fugas

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idealizantes de um pensamento que perde o contato com a realidade quanto as “receitas simples” de uma prática pastoral que imagine resolver todos os problemas rapidamente, sem o exigente esforço do acompanhamento.

3. A INTENÇÃO DE FUNDO: UMA IGREJA MAIS FAMILIAR

Identificadas estas duas chaves de leitura, podemos tentar trazer à tona o que parece ser a intenção de fundo de AL. Essa exortação apostólica, como já foi dito, não procura dar uma nova impostação normativa para as soluções dos problemas, mas indicar as estradas pelas quais ativar novos processos. Tais processos podem ser resumidos essencialmente na expressão de que devem convergir no favorecimento de um rosto mais “familiar” da Igreja. Como afirma AL no número 87:

A Igreja é família de famílias, constantemente enriquecida pela vida de todas as igrejas domésticas. Assim, ‘em virtude do sacramento do matrimónio, cada família torna-se, para todos os efeitos, um bem para a Igreja. Nesta perspectiva, será certamente um dom precioso, para o momento atual da Igreja, considerar também a reciprocidade entre família e Igreja: a Igreja é um bem para a família, a família é um bem para a Igreja. A salvaguarda deste dom sacramental do Senhor compete não só à família individual, mas a toda a comunidade cristã’

Isso significa que por um lado a instituição eclesial deve inclinar-se mais “às medidas da família”, de modo que possa realizar melhor sua imagem de “povo de Deus” que caminha na história; por outra lado, as famílias devem descobrir na comunidade eclesial o espaço vital no qual viver a própria história, superando a forte tentação de fechar-se na dimensão privada a qual a nossa cultura atual nos expõe. Portanto, trata-se de um duplo movimento (da comunidade eclesial para a família e da família à comunidade), do qual devemos agora precisar o significado.

No primeiro aspecto, as diferentes instituições eclesiais devem fazer todos os esforços para corrigir a tendência a estruturar-se como "agências de serviços religiosos", nas quais os operadores, também qualificados e generosos, gastam as suas energias. Se a paróquia ou outras instituições da igreja se tornam estruturas burocráticas, separados do povo ou um grupo de pessoas que se fecha em si mesmo, podem haver serviços

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eficientes, mas não aquela rede de comunhão, de encontro, de testemunho, que é o sinal da presença o Senhor e da ação do seu Espírito. Esta "reforma" da forma ecclesiae para o qual todas as nossas estruturas são chamadas, não pode nascer de uma escrivaninha, nem pode ser apenas o resultado de decisões de um pastor ou uma comunidade religiosa. Para que ela realmente aconteça, em benefício das famílias, deve ser feita junto com elas, envolvendo a sua sensibilidade, tendo em conta as suas necessidades, habitando em suas linguagens.

Estamos cientes de que recolocar a família no centro da atenção da Igreja é muito mais exigente e complexo do que a simples busca de soluções para os casos mais difíceis de consciência ou as situações mais delicadas. Uma abordagem global renovada de como a Igreja se relaciona com as famílias é, de fato, a condição fundamental para se ler mais profundamente as dificuldades e problemas que pesam sobre elas e encontrar com o paciente e sério discernimento as formas evangélicas e os estilos espirituais do acompanhamento.

O processo ao qual o Papa convida-nos consiste, portanto na necessidade de recuperar um cristianismo "doméstico", que habite em nossas casas e dê forma aos laços que se vivem nela: a insistência do Papa Francisco sobre a aliança entre as gerações, sobre o tesouro que os avós podem transmitir aos netos, sobre os cuidados que devemos ter para os mais fracos e mais frágeis vai precisamente neste sentido. Ele afirma: "A sabedoria dos afetos que não se compra e não se vende é o melhor talento do gênio familiar. Precisamente em família aprendemos a crescer naquela atmosfera de sabedoria dos afetos. A sua «gramática» aprende-se ali, caso contrário é muito difícil aprendê-la. E é exatamente esta a linguagem através da qual Deus se faz compreender por todos. "(Catecismo de 2 de Setembro de 2015).

Ou a fé toma novamente corpo naquela rede de relações que tem no pacto nupcial entre homem e mulher nupcial o seu eixo fundamental, ou tende a rebaixar-se apenas como uma ideia, inspiração, mensagem, mas não como acolhida da vida divina que se doa "em circulação "entre nós. Por esta razão, a Igreja não pode cumprir a sua missão se não inclui as famílias; ainda mais se não assume em si mesma os traços da comunhão familiar.

O segundo aspecto, que espelha o primeiro, consiste na exigência de que a comunidade eclesial convide as famílias, de modo sempre mais corajoso e atraente, a sair do isolamento para o

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qual lhes impele a cultura individualista na qual estamos imersos, ajudando-as a se abrir para a experiência de partilha, de hospitalidade, de comunidade. Uma família isolada, na verdade, é uma família enfraquecida.

Nas sociedades ocidentais, a família está experimentando um forte impulso à marginalização. Esta já não é reconhecida como o fundamento a partir da qual se ergue a sociedade, mas é representada como um subsistema afetivo, em que se vive a própria privacy. Desse modo, a família é espoliada de sua tarefa de iniciação a leitura da realidade, de realizar o processo de transmissão de cultura e de fé. Se na sociedade tradicional a iniciação à vida acontecia através da escuta dos pais, hoje acontece em escala maior, através da forma da comunicação midiática, em relação a qual a família é excluída e enfraquecida.

A sociedade pós-moderna é organizada para incentivar ao máximo possível a autonomia individual no acesso a informações e decisões. É a vitória de um estilo de vida individualista em relação à dinâmica de trabalho e finanças. Se a família cede a este retorno do “privado”, a se pensar "por si mesma", a sonhar-se romanticamente como um casal feliz no próprio bem-estar, ela já está derrotada desde o início. Sua vocação, no entanto, é "introduzir a fraternidade no mundo" (cf. AL 194). É necessário, ajudar a família a construir comunidade, a interagir com outras famílias, a ser aberta para o sofrimento e necessidades dos outros, a promover formas concretas de ajuda e testemunho nas várias esferas da vida social. O amor que circula na família deve, então, ser colocado a serviço de terceiros: só desta forma é preservado na sua frescura e verdade.

A passagem com que a singular instituição eclesial se torna menos "agência de serviços" e mais comunidade e o caminho com que a família se torna menos "casal privado" e mais rede de famílias em comunhão só pode ser alcançado em conjunto. Assim, quando AL afirma em “a Igreja é um bem para a família e a família é um bem para a Igreja” não usa simplesmente uma fórmula de efeito, mas recolhe em uma síntese impressionante o núcleo deste duplo movimento. Compreender bem as articulações e traduzi-las em opções pastorais claras é o trabalho que nos espera. Recaídas não faltam e são decisivas.

Tomemos, por exemplo, o que significa a ligação Igreja-família para os caminhos de preparação ao matrimônio, que no imaginário coletivo continuam a aparecer como a oferta que uma agência

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religiosa oferece aos casais que vivem principalmente em um muito “privado” o itinerário que conduz ao matrimônio. Para que a comunidade cristã seja verdadeiramente um "útero" de famílias que nascem a partir do sacramento do matrimônio, e não apenas o contexto em que se assiste a um curso preparatório, é necessária uma conversão pastoral que envolve muita reflexão, criatividade e generoso esforço.

4. O ACOMPANHAMENTO DAS FAMÍLIAS EM ESTILO SALESIANO

As orientações pastorais do papa sobre o acompanhamento das famílias estão, sem dúvidas, muito próximas da nossa sensibilidade pedagógica salesiana, que nos leva a encontrar as pessoas no ponto em se encontra a sua liberdade, para ajudá-las a caminhar à luz do Evangelho. Toda a lógica dos "processos eclesiais" mencionados pelo papa é em última instância uma lógica educativa. Por outro lado, a questão da educação é explicitamente abordada na AL, em especial no capítulo VII, intitulado "Reforçar a educação das crianças", o que, no entanto, não me parece necessário comentar aqui. Parece-me mais útil destacar alguns elementos que nos permitem colocar em prática os sinais de AL no interior da Família Salesiana.

1.1. A comunidade educativo-pastoral como espaço e sujeito.

O primeiro elemento consiste em assumir com profunda convicção a figura de Igreja familiar que o Papa exorta-nos a viver em nossos ambientes. A Família Salesiana tem que ser um espaço em que as instituições eclesiais se coloquem em saída, para acompanhar o povo de Deus, e onde as famílias podem encontrar centros de agregação, de encontro, de comunhão de fé e de oração, de construção de redes educativas, de proposta de evangelização.

Penso que, para nós, Família Salesiana, trabalhar a serviço da família de acordo com o modo típico de nosso carisma significa, antes de tudo, facilitar em nossos ambientes o duplo movimento comentado anteriormente. A natureza educativa do nosso carisma já se apresenta, sem qualquer esforço, como um espaço adequado para que este duplo movimento aconteça. Muitas famílias já estão conosco, confiando-nos seus filhos, suas histórias e seus problemas. A realização de uma dinâmica de verdadeiro encontro e envolvimento, no entanto, nunca é automática. Nós também

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CEP

podemos correr o risco de prestar serviços sem encontrar as pessoas; de oferecer espaços, mas não promover a comunhão; de pensar projetos para os outros, mas não com os outros.

É necessário, então, que nossas obras sejam realmente comunidades fraternas de discípulos e testemunhas, em que os diversos estados de vida se reúnem para testemunhar a presença do Senhor em benefício dos jovens. E esta é precisamente a visão eclesiológica mais correta da CEP (comunidades educativo-pastorais) como um modo de atuação do Povo de Deus que se reúne em torno de uma proposta carismática, e não simplesmente como uma organização que se estrutura para otimizar seu próprio desempenho.

A CEP deveria ser o espaço no qual pensamos o nosso serviço à família; e os membros da Família Salesiana deveriam ser a força motriz para construí-la como um corpo vivo, de modo a facilitar a entrada de todas as famílias que se relacionam conosco nesta dinâmica de comunhão, que realiza o rosto da Igreja em um lugar especifico e torna possível a sua missão. Uma CEP em que se respira um clima evangélico alegre e uma comunhão de ações, não nasce apenas em uma reunião de meia hora. Ela só pode ser o fruto de energias que se deixam mover pela força do carisma, ou seja, pelo poder do Espírito Santo que faz presente em nós o estilo de santidade de Dom Bosco. Por haver pessoas e lugares a disposição para nosso acompanhamento, este é o presente que muitas famílias esperam de nós. A CEP, assim entendida, é, portanto, o espaço e a forma do nosso acompanhamento às famílias.

Igreja Família CEP Família Igreja

A subjetividade pastoral da família, já instituída pelo Concilio e reafirmada fortemente pela AL, deve ser assumida de modo especial pelos leigos que fazem parte de movimentos e associações eclesiais, como o são, de modos diversos, os membros da FS. Já conhecemos experiências interessantes, que podem variar desde o nível mais simples e popular de famílias amigas de Dom Bosco, que se reúnem sob a bandeira de seu carisma para sustentar-se na fé; a outros que se envolvem diretamente na pastoral familiar das igrejas locais. Envolver as famílias que estão inseridas de diferentes maneiras na FS para construir redes

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familiares em nossas instituições é, certamente, um dos desafios que nos espera, e uma das potencialidades pastorais mais rico que temos.

A este respeito, podemos nos perguntar também sobre a contribuição que a experiência de leigos casados oferece ao desenvolvimento e à compreensão do sistema preventivo. Um pai ou uma mãe possuem uma sensibilidade em relação à educação que é distinta e complementar à dos consagrados. Portanto, é importante evitar que os papeis e os carismas sejam nivelados. Corre-se esse risco quando prevalece uma visão de CEP de molde social em que estão em primeiro plano os papéis a serem preenchidos, em vez da partilha profunda da fé e da missão. Neste sentido, a nova eclesiologia do Vaticano II deveria fazer da CEP uma experiência vivificante de reciprocidade entre o casamento e virgindade, entre a família e a comunidade religiosa.

4.2 Uma renovada cultura afetiva e familiar

Muitas vezes a crise da família induz a uma atitude de resignação em nossas comunidades. É comum ouvirmos agentes pastorais (catequistas, educadores, professores, etc.) que se queixam porque as famílias não ajudam na educação, não cooperam na transmissão da fé, e assim por diante. Às vezes, pode ser que estejamos paralisados pela sensação de que as coisas simplesmente são assim e não podemos fazer nada. Esta atitude psicológica e espiritual é muito perigosa e precisa ser corrigida com vigor.

Para corrigi-la é preciso um esforço de formação, que ajude a ir além, na tentativa de compreender as razões que estão na origem da crise, ou seja, as razões que correm o risco de fazer com que a mensagem cristã pareça “estranha” à cultura afetiva de hoje. Todos nós encontramos, em algum momento, jovens e adultos que não conseguem sequer levam em consideração aspectos que consideramos muito importantes para uma boa vida afetiva. A maneira como olham para o corpo, a sexualidade, a vida a dois, o matrimônio... parecem não ter quase nada em comum com a linguagem usual da pregação cristã.

Em outras palavras, a sua cultura, ou seja, o conjunto de representações simbólicas com que a olham a vida, corre o risco de tornar-se impermeável à linguagem cristã. Isto deriva do fato de que a cultura afetiva prevalecente traz consigo, para além de aspectos indubitavelmente positivos, distorções perigosas e ambiguidades graves. A dificuldade é, então, que o evangelho pede sempre a

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cada um de nós uma conversão que é motivo de escândalo e para a qual o nosso coração resiste. Mas a dificuldade nasce também - temos de reconhecer francamente – do fato que a linguagem que muitas vezes nosso anúncio se expressa foi preparada com categorias e modelos que fizeram referência a um outro horizonte cultural, que não existe mais ou está muito alterado.

Pensemos, tipicamente, no fenômeno da coabitação pré-matrimonial, que em muitas áreas do Ocidente se tornou o modo "normal" para chegar a construir uma família. Dizer aos jovens que esta maneira de construir a relação não é moralmente boa é necessário, mas, obviamente, não é suficiente. Também estar ao seu lado com simpatia e cultivando belas relações é necessário, mas não suficiente. Para alcançar um verdadeiro "acompanhamento" precisamos entender a partir de dentro da cultura jovem do corpo, dos afetos, da sexualidade e ativar processos pedagógicos de anúncio que tornam acessível à consciência pessoal a beleza e o encanto do Evangelho.

Hoje, as dificuldades da família são uma das principais expressões da separação entre fé e cultura mencionada por Paulo VI. O caminho de reflexão que a Igreja tem feito desde o Concilio revela que esta quer reagir à crise não através do caminho da denúncia ou da queixa, mas através de um esforço generoso de proximidade e reflexão profunda. Esta é a via que também nos adentramos com coragem e em todos os níveis. Dom Bosco, estando no meio dos jovens, foi capaz de compreender-lhes a partir de dentro de seu mundo e propor-lhes a fé em formas adequadas, através de processos que valorizavam suas necessidades positivas e preveniam suas dificuldades. Não podemos pensar de enfrentar os desafios afetivos do nosso tempo sem possuir a mesma coragem e a mesma desenvoltura.

4.3. Algumas áreas a privilegiar

A nossa contribuição à vida das famílias deve, necessariamente, favorecer as áreas típicas de nosso carisma, ou seja, os âmbitos da educação e da pastoral juvenil. Entre estes se ressaltam sobretudo alguns aspectos, nos quais é mais evidente a relação com a dinâmica da vida familiar e nos quais é mais urgente o investimento das energias da FS.

Educação sexual e afetiva dos jovens.

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O papa Francisco, dirigindo-se aos Salesianos e Filhas de Maria Auxiliadora, durante a visita pastoral a Turim, recomendou especialmente este ponto, considerando-o particularmente expressivo em nosso carisma. Todos estamos conscientes do quão urgente é trabalhar sobre um tema tão difícil e delicado. AL dedica alguns parágrafos significativos (280-286) que devem ser lidos com muita atenção. Entre outras coisas, o texto diz: "O Concílio Vaticano II apresentava a necessidade de «uma educação sexual positiva e prudente» oferecida às crianças e adolescentes «à medida que vão crescendo» e «tendo em conta os progressos da psicologia, pedagogia e didática”. Deveríamos perguntar-nos se as nossas instituições educativas assumiram este desafio. "(AL 280).

A educação afetiva implica antes de tudo o testemunho de vida e uma sábia atitude; e não pode ser reduzida à instrução a ser oferecida em qualquer dimensão, nem a implementação de algum projeto almejado. Não pode ser nem mesmo fruto de improvisação, ou limitar-se simplesmente a alguns bons conselhos quando necessário. As mudanças socioculturais que ocorreram nos últimos anos certamente exigem mais; até mesmo a assimilação da identidade sexual hoje é dificultada por uma cultura que tende a apresentá-la como o resultado de escolhas arbitrárias. No mundo escolar, por exemplo, cada vez mais de difundem percursos de educação sexual de orientação antropológica e de valores duvidosos.

Acredito que seria necessário de nós um sério investimento cultural nesta área delicada para aproveitar melhor os recursos pedagógicos e teológicos que temos e, desse modo, procurar elaborar propostas específicas a serem implementadas ao menos dentro de nossas instituições.

O acompanhamento dos jovens ao matrimônio.

É uma área que requer uma atenção muito diversificada, conforme os contextos culturais. No Ocidente, a idade de acesso ao matrimônio já não é estritamente "juvenil". Aqueles que frequentam os percursos pré-matrimoniais, muitas vezes têm mais de trinta anos e, normalmente, convivem há muito tempo e já tem um ou mais filhos. Em outras sociedades, no entanto, o casamento continua a ser uma etapa atingida em uma idade jovem, mesmo que se coloquem alguns problemas pastorais relacionados com a liberdade na escolha do cônjuge, a importância social da fertilidade, o valor do mariage coutumier e outros, que solicitam uma atenção substancial.

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A educação para o conceito cristão de paternidade e maternidade requer um compromisso ainda mais especial, reagindo às muitas distorções culturais que pesam sobre a parentalidade. Sabemos, por exemplo, como no mundo ocidental tem havido uma pressão ideológica muito forte para considerar a maternidade como um limite para a mulher, assim como continua uma obstinada contestação à figura do pai, esvaziado de suas características simbólicas. Estes temas certamente não podem estar ausentes de uma pastoral juvenil qualificada e atenta aos desafios da cultura juvenil.

O trabalho pastoral com as famílias que entram em relação com nossas obras.

Algumas famílias solicitam o nosso serviço educativo motivadas por uma sincera adesão ao projeto educacional cristão e salesiano; para outros, o contato com as nossas obras é a única ou quase única forma de relacionamento com a comunidade eclesial. Nestes casos, a nossa proposta educacional é uma ponte delicada para que a vida familiar seja iluminada pela luz do Evangelho: enquanto acompanhamos os filhos em seu crescimento, acompanhamos também o caminho das suas famílias, entrando em contato com suas riquezas, suas fadigas e seus dramas.

Precisamos refletir, então, sobre a maneira pela qual, através do serviço educativo, podemos contribuir para a evangelização da família, permitindo os processos de inclusão e suporte sobre os quais o papa Francisco tanto insiste. Ajudar as famílias a sair do isolamento em que são confinadas pela cultura individualista de hoje, a fim de construir redes familiares verdadeiros, é certamente uma das contribuições mais significativas que as nossas obras podem oferecer em termos de uma pastoral renovada.

Pensar a pastoral juvenil em termos “generativos”.

A redescoberta do papel fundamental que a família tem para a transmissão da fé - que ocorre não apenas em termos de "crença", mas também de laços, pertença, reconhecimento em um horizonte simbólico, enraizamento em uma experiência que nos precede – solicita que a pastoral juvenil pense o papel da comunidade eclesial em termos de "geração". Se a modernidade levou-nos a pensar a educação sobretudo em termos de desenvolvimento (autonomia) do indivíduo, a perspectiva familiar nos recorda que a educação é uma extensão do ato gerador: por isso é testemunho dado através da qualidade dos laços familiares, é um sábio exercício de paternidade

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e maternidade espiritual, é uma introdução ao todo da experiência, e não apenas aos seus significados parciais e penúltimos.

Uma verificação sobre estas questões, nos permitirá estar mais perto da experiência das famílias e também à luz original do carisma de Dom Bosco, que é riqueza que nós partilhamos como Família Salesiana.