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PESSOAS COM DEFICIÊNCIA I NTELECTUAL I NCLUSÃO TRABALHISTA Lei de Cotas

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PESSOAS COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL

INCLUSÃO TRABALHISTA

Lei de Cotas

KATIA REGINA CEZAR

PESSOAS COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL

INCLUSÃO TRABALHISTA

Lei de Cotas

Escrevente de Gabinete. Mestre em Direito do Trabalho pela USP.

EDITORA LTDA.

Rua Jaguaribe, 571

CEP 01224-001

São Paulo, SP — Brasil

Fone (11) 2167-1101

www.ltr.com.br

Produção Gráfica e Editoração Eletrônica: R. P. TIEZZI

Projeto de Capa: R. P. TIEZZI

Impressão: PROL GRÁFICA E EDITORA

Fevereiro, 2012

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índice para catálogo sistemático:

Todos os direitos reservados

R

Cezar, Katia Regina

Pessoas com deficiência intelectual : inclusão trabalhista : leidecotas / Katia Regina Cezar. — São Paulo : LTr, 2012.

Bibliografia

1. Ambiente de trabalho — Brasil 2. Deficientes 3. Dignidadehumana 4. Direito do trabalho 5. Inclusão social 6. Qualificaçãoprofissional 7. Mercado de trabalho I. Título.

12-00167 CDU-34:331

1. Deficientes intelectual : Inclusão social : Direito do trabalho 34:331

Versão impressa - LTr 4450.9 - ISBN 978-85-361-1991-8

Versão digital - LTr 7301.1 - ISBN 978-85-361-2055-3

5

A todas as pessoas com deficiência e suas famílias,em especial, à minha: José Claudio Cezar,

Nair Aparecida Marques Cezar, Claudia Fernanda Cezar eDébora Thais Cezar, com amor.

Ao casal Claudia e Guilherme, com alegria e esperança.

AGRADECIMENTOS

A Deus, pela vida.

À FAPESP — Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, pelaconcessão da bolsa de mestrado (2007-2009).

Ao meu orientador, professor doutor Otavio Pinto e Silva, com profundaadmiração e carinho, pela oportunidade de realizar esta pesquisa nas Arcadas epelos ensinamentos, confiança, atenção e apoio durante todo o desenvolvimentoda pesquisa.

Ao professor doutor Marcus Orione Gonçalves Correia, cujas sábias palavrasno exame de qualificação, quanto à metodologia de abordagem, foram imprescin-díveis para o rumo deste trabalho. Agradeço, também com admiração e carinho.

À professora doutora Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, da Antropologia daUSP, pelos esclarecimentos e sugestões ofertados após primeiro parecer da FAPESP,no exame de qualificação e em minha banca de defesa. Agradeço, também, pelaoportunidade dos diálogos, sempre inspiradores e sensíveis, realizados em sua sala,em reuniões do Nadir, no I Enadir e no VI Encontro Anual da Andhep. Agradeço,com admiração e afeto.

Ao professor doutor Jorge Luiz Souto Maior, pela acolhida no grupo de estudos“Luta Trabalhista” antes mesmo do meu ingresso no mestrado e pelas contribuiçõesvalorosas ofertadas na minha banca de defesa, com grande admiração.

A todos os demais professores com quem estive em contato durante as disci-plinas da pós-graduação, em especial à professora doutora Maria Isabel GarcezGhirardi, da Terapia Ocupacional da USP, que me recebeu de maneira muito acolhe-dora em sua sala, presenteando-me com livros imprescindíveis ao estudo destatemática.

A todos os entrevistados, pelo tempo dispensado e aprendizados registradosnas anexas transcrições das entrevistas, com as quais conversei silenciosamente

durante toda a construção deste trabalho. Que o lema “Nada sobre nós, sem nós!”fortifique-se, espalhe-se e torne-se realidade. Meu muito obrigada!

Aos servidores da Biblioteca do Instituto de Psicologia da USP e da Bibliotecada Faculdade de Direito da USP, pela atenção.

A todos os amigos e colegas de pós-graduação, em especial a Tamira MairaFioravante, pela revisão do trabalho de qualificação, a Vanessa Braga Matijascic,pela revisão do segundo parecer da FAPESP, a Deigles Giacomelli Amaro, pelasindicações bibliográficas e convites para os Fóruns de Educação Inclusiva de Mauá,a Marcos Neves Fava, pela leitura do capítulo segundo desta obra e palavras deconfiança, a Manuela da Palma Coelho Germano Lourenção, pela leitura e sugestõesao capítulo segundo deste livro, e a Taylisi de Souza Corrêa Leite, por ter meapresentado Sílvio Luiz de Almeida, com quem tive uma conversa bastanteesclarecedora após minha qualificação. A todos, com admiração.

Ainda, ao casal Mariana Dias e Álvaro Augusto Camilo Mariano, pela revisãodo projeto de pesquisa, com carinho, e a Maria Cecília Máximo Teodoro, MarcoAurélio Serau Junior, Luísa Helena de Oliveira Marques, Luma Cavaleiro de MacêdoScaff, Osmar Teixeira Gaspar, Ana Farias Hirano, Camilla Bemergui Rys e GustavoMagalhães de Paula Gonçalves Domingues, por dividirem comigo as dúvidas,inseguranças, descobertas, tristezas e alegrias do curso de pós. Obrigada!

Aos participantes da disciplina “Saúde, Trabalho e Terapia Ocupacional” umagradecimento especial, pela rica troca de experiências e pela receptividade com aqual me receberam.

À amiga e terapeuta ocupacional Luciana Mello, pelo carinho e incentivo.

Aos demais colegas do curso de pós, que, apesar de não terem sido citadosaqui expressamente, refletiram comigo durante as aulas ou nos corredores dafaculdade, contribuindo sobremaneira para este trabalho.

À minha primeira professora de Direito do Trabalho, doutora Dorothee SusanneRüdiger, a quem reencontrei prazerosamente após a conclusão do mestrado, comadmiração!

Ao “irmão” Vitor Baracho Strauss, com imensa gratidão, pelas constantespalavras de apoio e por sua sempre pronta ajuda, sem a qual eu não teria concluídoo mestrado.

A todos os meus familiares, em especial a tia Nice e a, vó Esmeralda, pelapreocupação. A minha irmã Débora e meu cunhado Serginho, pela alegria dossobrinhos Pedro e Davi. Com amor.

Ao meu companheiro Willian, com amor, pela paciência e compreensão.

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SUMÁRIO

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ............................................................................ 11

APRESENTAÇÃO .................................................................................................... 13

PREFÁCIO ............................................................................................................ 15

INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 21

CAPÍTULO 1A LEGISLAÇÃO NACIONAL COMO GARANTIA DA

INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL NA EMPRESA

1.1. A CONVENÇÃO DA ONU SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: OS PRINCÍPIOS

DA INCLUSÃO SOCIAL E A SUPERIORIDADE DA DIGNIDADE HUMANA ................................... 37

1.2. UMA AÇÃO AFIRMATIVA NO BRASIL EM PROL DO DIREITO AO TRABALHO DAS PESSOAS COM DEFI-CIÊNCIA: A LEI DE COTAS DO SETOR PRIVADO ........................................................... 50

1.2.1. CONSIDERAÇÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE SOCIAL DA EMPRESA ......................... 52

CAPÍTULO 2A PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL E SUA QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL

2.1. INICIANDO UMA CONSTRUÇÃO MAIS HUMANA SOBRE O TEMA: O MODELO SOCIAL DE DEFICIÊNCIA 59

2.1.1. AS TECNOLOGIAS ASSISTIVAS E O MEIO AMBIENTE DE TRABALHO INCLUSIVO .............. 72

2.1.2. O BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA COMO ALIADO DA INCLUSÃO ................... 78

2.2. A QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL: O RECONHECI-MENTO DAS INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS E DA CAPACIDADE PLENA ...................................... 82

CAPÍTULO 3A ANÁLISE DOS DADOS DA PESQUISA EMPÍRICA

3.1. DA SÍNDROME DE DOWN E DA ESCOLHA DOS ENTREVISTADOS ........................................ 98

10

3.1.1. DA RELAÇÃO ENTRE A DEFICIÊNCIA INTELECTUAL E A SÍNDROME DE DOWN ............. 101

3.2. DAS ENTREVISTAS NA “ASSOCIAÇÃO X” .............................................................. 107

3.2.1. DA FALA DA COORDENADORA DA “ASSOCIAÇÃO X” ...................................... 110

3.2.2. DAS FALAS DOS TRABALHADORES COM DOWN .............................................. 117

3.2.2.1. QUAL SEU NÍVEL DE ESCOLARIDADE? ............................................. 118

3.2.2.2. QUAL SUA QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL? ....................................... 118

3.2.2.3. RECEBE O BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA? ............................ 119

3.2.2.4. O QUE VOCÊ FAZ NO SEU TRABALHO, QUAIS ATIVIDADES? .................... 119

3.2.2.5. SEUS COLEGAS DE TRABALHO TÊM ALGUM TIPO DE DEFICIÊNCIA? ............ 120

3.2.2.6. O QUE VOCÊ FAZ COM O DINHEIRO QUE RECEBE? .............................. 121

3.2.2.7. O QUE VOCÊ, OS SEUS PAIS E OS SEUS AMIGOS ACHARAM QUANDO VOCÊ

COMEÇOU A TRABALHAR? .......................................................... 121

3.2.2.8. SENTIU ALGUMA DISCRIMINAÇÃO OU PRECONCEITO NO AMBIENTE DE TRA-BALHO? ............................................................................... 122

3.2.2.9. VOCÊ GOSTA DE TRABALHAR? GOSTARIA DE TRABALHAR EM OUTRO LUGAR

OU FAZENDO OUTRA COISA? ....................................................... 122

3.2.2.10. O QUE GOSTARIA DE ACRESCENTAR PARA A ENTREVISTA? (LIVRE) .......... 123

3.3. DAS FALAS DOS RESPONSÁVEIS LEGAIS PELA FISCALIZAÇÃO DA LEI, POR POLÍTICAS PÚBLICAS

SOBRE A TEMÁTICA E DE RENOMADOS PROFISSIONAIS DA ÁREA DA INCLUSÃO .................... 124

3.4. DOS TERMOS DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA ......................................................... 126

3.5. DO PACTO COLETIVO ...................................................................................... 131

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 135

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................ 139

ANEXOS

A — TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO .............................................. 149

B — PAUTAS DAS ENTREVISTAS ............................................................................. 152

POSFÁCIO — MARCOS NEVES FAVA ....................................................................... 155

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ACP — Ação Civil Pública

ACT — Acordo Coletivo de Trabalho

APAE — Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais

BPC — Benefício de Prestação Continuada

CAGED — Cadastro Geral de Empregados e Desempregados

CC/2002 — Código Civil de 2002

CCT — Convenção Coletiva de Trabalho

CEP — Comitê de Ética em Pesquisa

CF/1988 — Constituição Federal de 1988

CID — Classificação Internacional de Doenças

CIF — Classificação Internacional de Funcionalidade, Deficiência e Saúde

CLT — Consolidação das Leis do Trabalho

CNS — Conselho Nacional de Saúde

CONADE — Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência(*)

CORDE — Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora deDeficiência(**)

CUT — Central Única dos Trabalhadores

CVI — Centros de Vida Independente

DTB — Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social

EC — Emenda Constitucional

(*) Segundo a Portaria do SEDH n. 2.344, de 3 de novembro de 2010 (DOU 5.11.2010), onde se lê“Pessoas Portadoras de Deficiência”, leia-se “Pessoa com Deficiência”. A referida Portaria atualizouo Regimento Interno do Conade, em conformidade com a Convenção da ONU sobre os Direitosdas Pessoas com Deficiência.(**) Idem.

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FADUSP — Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

FAPESP — Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

FAT — Fundo de Amparo ao Trabalhador

FBASD — Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down

FGTS — Fundo de Garantia do Tempo de Serviço

FIEMG — Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais

IBGE — Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INSS — Instituto Nacional do Seguro Social

LOAS — Lei Orgânica da Assistência Social

MPT — Ministério Público do Trabalho

MTE — Ministério do Trabalho e Emprego

MVI — Movimento de Vida Independente

OAB — Ordem dos Advogados do Brasil

OEA — Organização dos Estados Americanos

OIT — Organização Internacional do Trabalho

OMS — Organização Mundial da Saúde

ONG — Organização Não Governamental

ONU — Organização das Nações Unidas

OPAS — Organização Pan-Americana da Saúde

PADEF — Programa de Apoio à Pessoa com Deficiência

PL — Projeto de Lei

PRT — Procuradoria Regional do Trabalho

QI — Quociente Intelectual

RAIS — Relação Anual de Informações Sociais

SENAI — Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial

SERT — Secretaria do Emprego e Relações do Trabalho

SRTE — Superintendência Regional do Trabalho e Emprego

TAC — Termo de Ajustamento de Conduta

UNICEF — Fundo das Nações Unidas para a Infância

USP — Universidade de São Paulo

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APRESENTAÇÃO

Tenho grande satisfação em apresentar esta obra, fruto de um minucioso eoriginal trabalho de pesquisa que Katia Regina Cezar efetuou como uma dasexigências para a obtenção do título de mestre em Direito, no curso de pós-graduaçãoda Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, do Largo de São Francisco.

Katia mostrou-se uma pesquisadora dedicada, que resolveu encarar de frenteum tema polêmico: o direito à inclusão no trabalho das pessoas com deficiência,diante dos dispositivos da Constituição Federal e da legislação trabalhista eprevidenciária que tratam das chamadas “cotas”.

Trata-se de um assunto que provoca fervorosos debates na sociedade, umavez que tanto o Ministério do Trabalho e Emprego (por meio da fiscalizaçãotrabalhista) quanto a Justiça do Trabalho (por meio de ações judiciais, muitas delaspropostas pelo Ministério Público do Trabalho) têm sido implacáveis na exigênciade que as empresas contratem as pessoas com deficiência para cumprir a legislaçãoque impõe as cotas.

Por outro lado, muitos empresários costumam apontar a existência de grandesdificuldades para recrutar os trabalhadores no mercado de trabalho, afirmandonão encontrar mão de obra com a qualificação profissional desejada.

Com o apoio da FAPESP — Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de SãoPaulo, que lhe concedeu uma bolsa de estudos, Katia pesquisou especialmente aquestão dos trabalhadores com deficiência intelectual, concluindo que a existênciade “barreiras atitudinais” muitas vezes impede a contratação de trabalhadores comesse tipo de deficiência.

As diversas e interessantes entrevistas realizadas pela autora mostraram, detodo modo, que a sociedade brasileira tem avançado no sentido de fazer com quea lei de cotas seja cumprida.

A pesquisa abordou programas de empregabilidade empresariais desenvolvidosem conjunto com organizações não governamentais, além de programas específicos

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criados pelo Ministério do Trabalho e Emprego em parceria com sindicatos, e deiniciativas adotadas pelo Ministério Público do Trabalho como órgão agente.

Uma das reflexões mais importantes desta obra é a que aborda a relevânciado aprimoramento do sistema educacional brasileiro, por meio da chamada “edu-cação inclusiva”: Katia conclui que as tais “barreiras atitudinais” impõem às pessoasuma adaptação ao meio e não o contrário, de modo que se faz imprescindível umapermanente reflexão na sociedade para incorporar ao cotidiano laboral conceitoscomo os de capacidade plena, inteligências múltiplas, modelo social da deficiência.

O grande desafio que se apresenta, portanto, é o de fazer com que as empresaspossam desenvolver suas atividades econômicas e ao mesmo tempo respeitar acondição do trabalhador com deficiência, de forma a proporcionar não apenasa efetivação da lei de cotas, mas a consolidação de uma sociedade inclusiva, comigualdade de oportunidades para todos os brasileiros; enfim, uma sociedade quegaranta aos seus cidadãos o acesso à educação e ao trabalho, com a superação dopreconceito.

Otavio Pinto e SilvaAdvogado Trabalhista.

Professor Doutor do Departamento deDireito do Trabalho e Seguridade Social da

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo — USP.

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PREFÁCIO

Este é um livro que combina sensibilidade política e competência acadêmicaao abordar o importante tema das pessoas com deficiência intelectual e seu direitoà inclusão no trabalho, articulando-o, criativa e enfaticamente, a outros aspectos--chave do campo dos Direitos Humanos no Brasil.

Da citação inaugural de Paulo Freire às Considerações Finais, a mensagemque se repete e se adensa, a cada capítulo, é a da importância do alargamentojurídico-político da compreensão dos conceitos de dignidade humana e de inclusãosocial para que, de fato, se efetive o respeito às diferenças em nosso país.

A partir de dados estatísticos indicativos de que, em qualquer população, nãoé desprezível a quantidade de pessoas com as mais variadas formas de deficiência,Katia nos conduz à questão do possível círculo vicioso que sustenta o não reconhe-cimento das capacidades laborais dessas pessoas. Por não se acreditar que elastenham tais capacidades e possam desenvolvê-las, reforçam-se barreiras atitudinaisque dificultam ou mesmo impedem seu acesso aos estudos e ao mercado detrabalho, o que acaba por reiterar que, realmente, não são aptas para tanto. Mascomo qualquer círculo vicioso pode ser rompido por lógicas que subvertam seusentido, Katia afirma que incluir pessoas com deficiência intelectual no mercado detrabalho é uma das formas de nelas fortalecer sentimentos de autoestima e de au-tonomia e, assim, estimular nelas e em todos que as cercam o desenvolvimento decapacidades, atitudes e sensibilidades mais solidárias e cidadãs. O campo dos direitostrabalhistas de pessoas com deficiência é, portanto, alçado a catalisador de impor-tantes debates e conquistas no cenário dos direitos humanos.

Preocupada em elencar e analisar as principais normas internacionais e nacionaisexistentes sobre a matéria e, principalmente, em avaliar seus alcances sociais noBrasil, a autora constrói pontes entre considerações jurídicas e sociológico-políticase, mais do que isto, combina pesquisa bibliográfica e empírica (um estudo de casona Região Metropolitana de São Paulo), algo raro nos trabalhos de mestradorealizados em nossos programas de pós-graduação em Direito.

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Em várias passagens do texto, encontramos transcrições e análises de depoi-mentos de trabalhadores com deficiência intelectual, representantes de órgãosfiscalizadores da Lei de Cotas, agentes públicos e responsáveis por órgãos quedefendem direitos de pessoas com deficiência. É muito coerente em um estudosobre capacidades e direitos que alguns protagonistas do tema tenham sido ouvidose que suas vozes acompanhem análises acadêmicas, não como meros exemplosempíricos a ilustrar teorias, mas como saberes a serem respeitados.

Vale destacar, nessa direção, o cuidado que Katia dispensou à atual termino-logia pessoa com deficiência, em detrimento de expressões já superadas, comodeficiente, demonstrando a importância de desfocar uma abordagem essencialistae redutora para outra em que qualquer pessoa seja considerada em sua integridadee complexidade.

Embora o trabalho não tenha enveredado explicitamente por uma antropologiado direito, algumas questões bastante caras a este campo estão presentes. Umadelas é justamente a constatação de que o simbólico cria realidades, muito mais doque o contrário, de modo que mudanças de nomenclatura podem deflagrar mudan-ças de mentalidades e de atitudes. Daí a importância de lutas pelo uso de categorias“politicamente corretas” ao se nomearem grupos vulnerabilizados e de se apostarque um dever ser pode prenunciar e deflagrar conquistas sociopolíticas. Em outraspalavras, o direito, ao lado da sociedade civil organizada, tem um papel transfor-mador fundamental no campo do avanço dos direitos humanos.

Outra questão central no debate antropológico jurídico é a tradicional tensãoentre universal e particular, expressa neste livro através do desafio, em contextosdemocráticos, de igualar pessoas desiguais enfatizando juridicamente suas desigual-dades, seja através de leis de cotas, seja por meio de ações afirmativas. O desafioestá justamente em alterar desvantagens históricas e estabelecer novas significaçõespara antigos marcadores sociais de diferenças de modo que eles passem a ser lidosnão como novos privilégios de poucos em detrimento de muitos, mas como formasde todos reverem posições e valores em prol de um conjunto de condutas maissolidárias.

Especialmente ao se reportar ao fato de que barreiras atitudinais preconcei-tuosas contra pessoas com deficiência também se tratam de uma “deficiência” quemuitos possuímos, Katia dá a seu trabalho um tom bastante antropológico. Aindaque sem nomear, ela toca no tema do etnocentrismo, da dificuldade de compreen-dermos o outro, diferente, a partir de seus próprios referenciais e de, assim, respeitá--lo em suas peculiaridades. Ao mencionar a possibilidade de que todos temos oupodemos ter “deficiências” e consequentemente necessidade de ajudas técnicas,como cadeiras de rodas, próteses e outros produtos de tecnologias assistivas, Katiafaz um exercício de alteridade fundamental para o alargamento da compreensãoda dignidade humana.

É com esperança, embora também com ressalvas, que Katia conclui seutrabalho, postura esta compartilhada por muitos que militam e estudam a

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implementação dos direitos humanos no Brasil. Sem dúvida, temos cada vez maisleis, programas, grupos e pessoas envolvidos com projetos de inclusão social emnosso país, mas ainda estamos no começo de uma longa caminhada.

Este trabalho de Katia, que tive a honra de avaliar por ocasião do exame quelhe outorgou o título de mestre, é, sem dúvida, um ótimo exemplo do quão grati-ficante e intensamente desafiador é alimentar esperanças e atuar na área dapromoção dos direitos humanos no Brasil.

Ana Lúcia Pastore SchritzmeyerCoordenadora do NADIR — Núcleo de Antropologia do Direito da USP.

Presidente da ANDHEP — Associação Nacional de Direitos Humanos.Pesquisa e Pós-graduação.

“Aceitar e respeitar a diferença é uma dessas virtudes semo que a escuta não se pode dar. Se discrimino o menino ou

menina pobre, a menina ou o menino negro, o meninoíndio, a menina rica; se discrimino a mulher, a camponesa,

a operária, não posso evidentemente escutá-las e se não asescuto, não posso falar com elas, mas a elas, de cima para

baixo. Sobretudo, me proíbo entendê-las. Se me sintosuperior ao diferente, não importa quem seja, recuso-me aescutá-lo ou escutá-la. O diferente não é o outro a merecer

respeito, é um isto ou aquilo, destratável ou desprezível.”

Paulo Freire

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INTRODUÇÃO

De um total de 169 milhões de habitantes, existem 24,5 milhões ou 14,5% depessoas que apresentam algum tipo de deficiência no Brasil.

Segundo esses números do Censo de 2000 do Instituto Brasileiro de Geografiae Estatística (IBGE)(1), existem aproximadamente 2 milhões de pessoas com deficiênciaintelectual e 1 milhão de pessoas com deficiência física. Na pesquisa sobre adeficiência visual, o IBGE levou em consideração três categorias: pessoas com algumadificuldade permanente de enxergar, pessoas com grande dificuldade permanentede enxergar e pessoas incapazes de enxergar. Se considerada apenas esta últimacategoria, há cerca de 148 mil pessoas com deficiência visual.

Ressalve-se que não há dados do IBGE em relação à deficiência múltipla, poisele utilizou para o Censo de 2000 somente as seguintes opções: deficiência visual(subdividida nas três categorias acima expostas), deficiência motora, deficiênciaauditiva, deficiência mental permanente e deficiência física.

Vejam-se outros dados, agora internacionais, da Organização das Nações Unidas(ONU), da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Fundo das NaçõesUnidas para a Infância (UNICEF), que indicam essa mesma tendência, ou seja,afirmam que se podem encontrar, em qualquer população do mundo, aproximada-mente 10% de indivíduos com algum tipo de deficiência, em qualquer faixa etária(o que praticamente ocorre no Brasil, com seus 14,5%), observada a seguintepercentagem: 5% com deficiência intelectual, 2% com deficiência física, 1,5% comdeficiência auditiva, 1% com deficiência múltipla e 0,5% com deficiência visual(2).

(1) Dados atuais do Censo do IBGE (2010) afirmam que existem 45,6 milhões de pessoas com algumtipo de deficiência na população brasileira, aproximadamente 24%. Ou seja, houve um aumentode 65% no número de pessoas com deficiência declarado — de 14,5% em 2000 (24,6 milhões) para24% em 2010. Dados integrais do Censo atual disponíveis em: <http://www.censo2010.ibge.gov.br>Acesso em: 5.12.2011.(2) Conforme artigo de Romeu Kazumi Sassaki. Disponível em: <http://www.educacaoonline.pro.br/quantas_pessoas_tem_deficiencia.html> Acesso em: 10.7.2008. Ou segundo obra de GIORDANO,Blanche Warzée. (D)eficiência e trabalho: analisando suas representações. São Paulo: Annablume/FAPESP, 2000. p. 18.

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Como salientado, apesar de haver um número bastante alto de pessoas comdeficiência intelectual no Brasil, chegando em qualquer população do mundo aomontante de 5%, a deficiência intelectual é a que apresenta menor volume decontratação para o trabalho(3), a despeito do art. 93, da Lei n. 8.213, de 1991(conhecido como Lei de Cotas), que obriga as empresas do setor privado, com cemou mais empregados, a contratar pessoas com deficiência na seguinte proporção:“I — até 200 empregados.... 2%; II — de 201 a 500.... 3%; III — de 501 a 1.000...4%; IV — de 1.001 em diante.... 5%”. No setor público também há sistema decotas, conforme art. 5º, § 2º, da Lei n. 8.112/1990.

A Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2007(4), do Ministério doTrabalho e Emprego (MTE), divulgada em novembro de 2008, apresentou, pelaprimeira vez, dados sobre a inclusão, no mercado competitivo de trabalho, de pessoascom deficiência. De posse desses dados, pode-se esclarecer que as pessoas comdeficiência representam menos de 1% dos empregos formais no país; isso porque,de um total de 37,6 milhões de vínculos empregatícios formais existentes, 348,8mil foram declarados como vínculos empregatícios com pessoas com deficiência.Desse total, 50,28% são pessoas com deficiência física; 28,16%, auditiva; 2,95%,visual; 2,41%, mental; e 1,67%, múltipla. Dados da RAIS (2010) nos apresentampraticamente o mesmo quadro: 44,1 milhões de vínculos ativos; 306,0 mil comopessoas com deficiência, sendo 54,47%, física; 22,49%, auditiva; 5,79%, visual;5,10%, mental; e 1,26%, múltipla(5).

Isto posto, pode-se concluir que há um elevado número de pessoas comdeficiência intelectual no Brasil e que esse tipo de deficiência não representa o tipode deficiência mais recorrente, dentre as pessoas com alguma deficiência maiscontratadas pelas empresas.

Por essas razões é que esta pesquisa está limitada à deficiência intelectual,que, segundo o Decreto n. 5.296/2004, é aquela pessoa que possui ”funcionamentointelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoitoanos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, taiscomo: 1. comunicação; 2. cuidado pessoal; 3. habilidades sociais; 4. utilizaçãodos recursos da comunidade; 5. saúde e segurança; 6. habilidades acadêmicas;

(3) “De 2001 a maio de 2006, a Delegacia Regional do Trabalho de São Paulo (DRT/SP), por força daação fiscal, fez contratar 47.044 pessoas com deficiência. Foram fiscalizadas e estão em fase defiscalização 7.278 empresas, que contam com 100 empregados ou mais. Destas, mais 4.600 jácumprem a Lei de Cotas. Isso equivale a mais de 60% das empresas que estão obrigadas a cumprira lei no Estado de São Paulo. Nesse mesmo período, as contratações de portadores de deficiência sederam da seguinte forma: 20.203 contratações de portadores de deficiência física; 17.207 contrataçõesde portadores de deficiência auditiva; 4.427 contratações de portadores de deficiência reabilitados;2.830 contratações de portadores de deficiência visual; 1.760 contratações de portadores dedeficiência mental; 617 contratações de portadores de deficiência múltipla.” Disponível em: <http://www.mte.gov.br/delegacias/sp/noticias/default02.asp> Acesso em: 10.7.2008.(4) Disponível em: <http://www.mte.gov.br/sgcnoticia.asp?IdConteudoNoticia=4427&PalavraChave=rais,%20lei%20de%20cot as,%20deficientes> Acesso em: 16.12.2008.(5) Disponível em: <http://www.mte.gov.br/rais/2010/> Acesso em: 30.8.2011.

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7. lazer; 8. trabalho”. Referido decreto traz os conceitos dos demais tipos dedeficiência e esta questão conceitual será mais bem analisada no capítulo segundodeste trabalho.

Em reportagem da Folha de S. Paulo(6), o assessor da Secretaria de Inspeçãodo Trabalho de São Paulo, Rogério Reis, afirmou que as empresas preferem contratarpessoas com deficiências “mais leves”. E, por sua vez, um dos coordenadores doprograma de inclusão da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego (SRTE)de São Paulo, José Carlos do Carmo, afirmou que as empresas dão prioridade àcontratação de pessoas com deficiência que tenham “maior nível de escolaridade”.A RAIS de 2007 informa que 53% de pessoas com deficiência, em empregos formais,têm ensino médio ou superior completo. Assim, pode-se perceber que o tema daescolaridade é fundamental na questão da inclusão laboral. Escolaridade equalificação profissional. Por isso, também são aqui analisados.

Não obstante as dificuldades apontadas, há dados do MTE(7) que comprovamum aumento considerável na contratação de pessoas com deficiência nos últimosanos, muito por causa das ações fiscais.

O sucesso da crescente contratação está ligado ao aumento da fiscalizaçãopelos auditores fiscais do trabalho, mas também às diversas iniciativas tomadas,tanto por parte dos responsáveis pela fiscalização da Lei de Cotas (Ministério Públicodo Trabalho (MPT) e do MTE) como por parte das próprias empresas, além desindicatos, governo, Organizações Não Governamentais (ONGs), movimentos sociais,escolas especiais e regulares, Comissões, Conselhos e Secretarias em prol dos direitosdas pessoas com deficiência, algumas iniciativas tomadas em conjunto e outrasisoladamente, como se verá adiante.

O apoio da mídia mostra-se também fundamental para a divulgação da Lei deCotas, como se verifica pelas diversas notícias reproduzidas ao longo deste texto,que foram veiculadas pela Internet, nos mais diversos sites. Ressalte-se, porém, apossibilidade de a mídia não trazer um retrato fiel da realidade, principalmentequando não mostra dados de órgãos oficialmente reconhecidos. Por causa disso,tenta-se trazer à análise notícias de variados sites, pondo-se as mesmas à prova,com pesquisa empírica e discussões sobre o conteúdo dos noticiários em tela.

(6) Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/empregos/ce1412200801.htm> Acesso em:16.12.2008.(7) “Mesmo com as dificuldades enfrentadas pelas pessoas com deficiência para ingressar nomercado de trabalho, dados da fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego apontam quea contratação desses trabalhadores aumentou 56%, de 2005 para 2006. Esses dados se referem acontratações por ação fiscal, ou seja, aquelas feitas depois que a empresa recebeu uma advertênciapor não ter no quadro de funcionários um número mínimo de pessoas com deficiência. Em 2005,12.786 deficientes foram contratados nessa situação. Em 2006, foram 19.978. No primeiro trimestrede 2007, o Ministério do Trabalho e Emprego registrou 4.151 deficientes inseridos no mercado detrabalho, também por força de ações fiscais.” Disponível em: <http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/11/02/materia.2007-11-02.9375209037/view> Acesso em: 10.7.2008.

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Esta pesquisa justifica-se em face da essencialidade da inclusão das pessoascom deficiência intelectual no mercado de trabalho, haja vista que esse pode ser ocaminho para o reconhecimento da capacidade dessas pessoas.

Ademais, a inclusão no mercado de trabalho, como forma de inclusão social,pode despertar sentimentos de autonomia, autoestima, pertencimento e valorpróprio na pessoa com deficiência, além de propiciar crescimento também às pessoasnão deficientes, ao propiciar ações de solidariedade.

Essa matéria justifica-se como objeto de pesquisa acadêmica por sua relevânciade cunho social, a ponto de merecer abrigo legal, como se constata pela ação emprol da proteção do direito ao trabalho das pessoas com deficiência: o sistema decotas legais.

A importância do trabalho para todas as pessoas, com ou sem deficiência, éreconhecida em normas de nossa Constituição Federal de 1988 (CF/1988), quedemonstram que a consecução do valor primordial da dignidade humana éconquistada, também, por meio do direito ao trabalho, conforme incisos III e IV doart. 1º combinados com os arts. 6º e 170.

Ressalta-se que esta pesquisa investiga a inclusão em um trabalho inserido nocontexto econômico capitalista. Não se debruça especificamente sobre os problemasque podem ser gerados pelo trabalho no capitalismo, como doenças e acidentes,desemprego e precarização ou mesmo alienação e reificação(8). Este trabalhoreconhece a existência e a essencialidade dessas questões, mas está limitado averificar se o direito à inclusão laboral, com todas as suas consequências, estásendo garantido ou não para as pessoas com deficiência. Estas têm o direito deestar incluídas no mesmo tipo de trabalho que as pessoas sem deficiência e, domesmo modo, têm o direito de poder tomar consciência e se posicionar ante a essetrabalho.

No plano internacional, há normas que corroboram a relevância da temática,muitas ratificadas pelo Brasil. Destacam-se aqui: a atual Convenção da ONU sobreos Direitos das Pessoas com Deficiência, as Convenções da Organização Internacionaldo Trabalho (OIT), n. 159 e n. 111, e a Convenção da Organização dos EstadosAmericanos (OEA), conhecida como Convenção da Guatemala ou Convenção sobrea Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas com Deficiência.

Em face do exposto, traçam-se os objetivos desta pesquisa.

O objetivo da exposição teórica é buscar o embasamento para a compreensãoe reflexão acerca da relevância da inclusão da pessoa com deficiência intelectual nomercado competitivo de trabalho. Por sua vez, a exposição prática visa à verificaçãoempírica das afirmações do embasamento teórico.

(8) Cf. ANTUNES, Ricardo (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006;e MARX, Karl. Manuscritos econômicos filosóficos. 2. reimp. São Paulo: Boitempo, 2008.

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A esse propósito, mais do que uma compilação de normas jurídicas existentessobre a temática, normas que não são poucas, visa-se a verificar se elas estãosendo cumpridas e de que forma (O trabalho é decente? Respeita os princípiosinclusivos?). Em caso negativo, quais as causas dessa problemática (Falta dequalificação? Preconceito? Desconhecimento acerca da deficiência?).

Por fim, de que natureza seriam as possíveis soluções: multas, Termos deAjustamento de Conduta (TACs)(9), premiações a empresas inclusivas dadas pelosgovernos, cursos de qualificação profissional oferecidos por instituições espe-cializadas, negociações coletivas que prevejam cláusulas sobre o tema, nos AcordosColetivos de Trabalho (ACTs) e Convenções Coletivas de Trabalho (CCTs)(10)?

Foi a partir desses questionamentos acima que se elaborou a hipótese: aocorrência de eventual descumprimento da legislação em tela decorreria de faltade qualificação profissional das pessoas com deficiência intelectual.

Como objetivo central final, busca-se concluir sobre a efetividade da Lei deCotas, em concordância com as demais normas jurídicas vigentes no Brasil, para apromoção do direito a um trabalho digno, em favor das pessoas com deficiênciaintelectual.

Em resumo, o que se pretende é apurar as presentes condições de correlaçãoentre a letra da lei e sua prática social.

Quanto à metodologia adotada, houve uma aproximação com a metodologiadas ciências sociais, em razão do caráter empírico deste trabalho.

Embora este projeto esteja vinculado à Faculdade de Direito da Universidadede São Paulo (FADUSP), não há como falar sobre a efetividade de uma lei semtangenciar os seus aspectos extrajurídicos, isto é, o entorno da lei ou o meio ondea lei deve ser aplicada e cumprida. Falar de efetividade é falar de eficácia social,mais do que de eficácia jurídica (esta relacionada à validade técnico-jurídica de umanorma).

Sem desejar entrar no mérito dessa diferenciação polêmica (eficácia jurídicaversus eficácia social), é preciso abrir parênteses para expor o que está sendoconsiderado como efetividade e como requisitos de validade de uma norma.

Para tanto, a abordagem é feita com fundamento na teoria tridimensional dodireito do mestre Reale:

A eficácia se refere, pois, à aplicação ou execução da norma jurídica, oupor outras palavras, é a regra jurídica enquanto momento da conduta

(9) Termos de Ajustamento de Conduta são termos firmados perante o Ministério Público do Traba-lho, nos quais as empresas infratoras comprometem-se a ajustar suas condutas conforme a leidentro de um determinado prazo (§ 6º do art. 5º da Lei n. 7.347/1985 e art. 7º da Lei n. 7.853/1989).(10) Acordos e convenções coletivos de trabalho são instrumentos acordados entre empresas e sindi-catos de trabalhadores (acordos) ou sindicatos de empregadores e sindicatos de empregados (con-venções) decorrentes de negociação coletiva (inciso XXVI do art. 7º da CF/1988 e art. 611 da CLT).

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humana. A sociedade deve viver o Direito e como tal reconhecê-lo. Reco-nhecido o Direito, é ele incorporado à maneira de agir da coletividade.[...] O Direito autêntico não é apenas declarado mas reconhecido, évivido pela sociedade, como algo que se incorpora e se integra a suamaneira de conduzir-se. A regra de direito deve, por conseguinte, serformalmente válida e socialmente eficaz. [...] Em resumo, são três osaspectos essenciais da validade do Direito, três os requisitos para queuma regra jurídica seja legitimamente obrigatória: o fundamento, avigência e a eficácia, que correspondem, respectivamente, à validadeética, à validade formal ou técnico-jurídica e à validade social. Fácil éperceber que a apreciação ora feita sobre vigência, eficácia e fundamentovem comprovar a já assinalada estrutura tridimensional do Direito, poisa vigência se refere à norma; a eficácia se reporta ao fato, e o fundamentoexpressa sempre a exigência de um valor(11). (itálicos do autor)

Evidencia-se a aproximação com a metodologia das ciências sociais, uma vezque a norma legítima deve ser socialmente eficaz; assim, é sobremodo importanteressaltar o pensamento de Bobbio, em um dos seus mais recentes escritos publicadosno Brasil:

De tudo o que foi discutido até agora, emerge claramente por que,como se afirmou no início, as relações entre ciência jurídica e ciênciassociais tornaram-se cada vez mais estreitas nesses últimos anos. Pararetomar a metáfora do esplêndido isolamento, a ciência jurídica já não éuma ilha, mas, sim, uma região entre as outras de um vasto continente.A questão de que o jurista deva estabelecer novos e mais profundoscontatos com psicólogos, sociólogos, antropólogos, cientistas políticostornou-se, especialmente entre os juristas da nova geração, uma commu-nis opinio tão difundida que, desejando oferecer indicações bibliográficasprecisas, não se saberia por onde começar(12). (itálico do autor)

Apesar de reconhecer a tendência sociologizante da ciência jurídica, Bobbioalerta:

Aproximação não significa confusão. A interdisciplinaridade semprepressupõe uma diferença entre abordagens diversas. [...] Não há necessi-dade de confundirmos os materiais de que um e outro podem disporcom o modo pelo qual esses mesmos materiais são utilizados. [...] Poisbem, o sociólogo usa as regras de comportamento que encontra em seucaminho para explicar por que certos indivíduos se comportam de umcerto modo, isto é, utiliza as regras como uma das variáveis do

(11) REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 112-116.(12) BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Tradução deDaniela Beccaccia Versiani. Revisão técnica de Orlando Seixas Bechara e Renata Nagamine. Barueri:Manole, 2007. p. 46-47.

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procedimento explicativo e eventualmente preditivo a que visa. O juristausa as mesmas regras para qualificar os comportamentos como lícitos eilícitos, ou seja, para estabelecer por que se deve comportar de um modoem vez de outro. [...] É compreensível que, sendo diversa a perspectivae, consequentemente, diverso também o fim — o fim do sociólogo édescrever como vão as coisas, o fim do jurista é descrever como as coisasdevem andar —, diverso é o tipo de operações intelectuais que um eoutro desempenham sobre a mesma realidade e que, assim, oscaracteriza. Para o sociólogo, a observação dos comportamentosprevalece sobre a interpretação das regras; para o jurista, a interpretaçãoprevalece sobre a observação. E assim por diante. Exatamente porqueciência jurídica e ciências sociais diferenciam-se como perspectivasdistintas, apesar da identidade de matéria, [...](13). (grifos nossos)

Em breve síntese, pode-se afirmar que a ciência jurídica pode dispor da meto-dologia das ciências sociais (do material em comum); porém, o modo pelo qualesse material é utilizado pelo jurista é necessariamente diferente do modo peloqual ele será utilizado por sociólogos, psicólogos etc. Isto é, as técnicas, osinstrumentos, podem ser comuns, mas a abordagem, a finalidade, é diferente.

Como método de procedimento, adota-se o método histórico-comparativo,que possibilita uma visão global sobre o tema, no sentido de viabilizar questio-namentos acerca de sua evolução, ou seja, como a temática da deficiência eraentendida no passado e como é hoje, realizando-se uma comparação temporal eindicando-se possíveis evoluções.

Também como método de procedimento, para a análise das entrevistas,adotam-se diretrizes da análise de conteúdo propostas por Bardin, que entendeessa análise como um conjunto de procedimentos sistemáticos direcionados para adescrição do conteúdo das mensagens. Procedimentos esses, por meio dos quaispodem-se levantar indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência deconhecimentos relativos às condições de produção/recepção dessas mensagens(14).

Essas opções metodológicas observam os parâmetros contemporâneos acercado método científico, quais sejam: não é um procedimento regulado por normasrígidas, prontas e definitivas; antes, é determinado diante do caso concreto a serinvestigado, dependendo da criatividade e habilidade, do pesquisador, de adequaro objeto da sua pesquisa aos procedimentos, ou a um procedimento específico; ométodo científico é, em suma, o saber descrever e discutir o processo de investigaçãoa que se propõe o pesquisador. Nas explanações de Köche:

(13) BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 48-49.(14) BARDIN, Laurence. L´analyse de contenu. 9. ed. Paris: Universitaires de France, 1998. p. 47: “Unensemble de techniques d´analyse des communications visant, par des procédures systématiqueset objectives de description du contenu des messages, à obtenir des indicateurs (quantitatifs ounon) permettant l´inférence de connaissances relatives aux conditions de production/réception(variables inférées) de ces messages” (Tradução livre).

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A concepção da ciência moderna, influenciada pelo positivismonewtoniano, criou uma imagem dogmática de método científico. Essaimagem continua ainda em voga, principalmente para o leigo. Criou-sea ideia de que método científico é um procedimento que, utilizandotécnicas delineadas, conduz a resultados exatos. Essa concepção, noentanto, não passa de um mito. A partir de Einstein e Popper desmisti-ficou-se a concepção de que método científico é um procedimentoregulado por normas rígidas que prescrevem os passos que o investigadordeve seguir para a produção do conhecimento científico. Popper (1975,p. 135) é taxativo quando afirma que não existe método científico.

Infelizmente não existe. Então, por que analisar o chamado “métodocientífico”?

O método científico que não existe é aquele que está na imaginação doleigo, na expectativa do estudante ávido por modelos, fórmulas oureceitas mágicas para aplicar e colher o resultado e, às vezes, na descriçãoque fazem alguns pesquisadores sem notar o engano em que seencontram. O que não existe no método científico é “um código práticopara o comportamento científico”, como afirma Medawar (1974,p. 1.108). Não existe um modelo com normas prontas, definitivas, pelosimples fato de que a investigação deve orientar-se de acordo com ascaracterísticas do problema a ser investigado, das hipóteses formuladas,das condições conjunturais e da habilidade crítica e capacidade criativado investigador. Praticamente, há tantos métodos quantos forem osproblemas analisados e os investigadores existentes. Não se pode, noentanto, cair num ceticismo total, ou no extremo oposto e afirmar, comoFeyerabend (1977, p. 274 e 279), que a ciência pede uma epistemologiaanárquica. Admite-se que não há ainda explicações razoáveis quedemonstrem como funciona o processo de descoberta das soluções paraos problemas e que também não há critérios e procedimentos universal-mente aceitos que possam ser usados para justificar e demonstrar comcerteza a veracidade de uma hipótese. Admite-se também que a ciênciae seus procedimentos são encarados como um processo histórico e comoum sistema aberto, sujeitos a mudanças drásticas atreladas à cultura decada época e à área de conhecimento em que estiver o problemainvestigado. Porém, alguns critérios básicos são discerníveis dentro doprocedimento geral, amplo, utilizado no construir a ciência. E é nessesentido que se deve compreender método científico: como a descriçãoe a discussão de quais critérios básicos são utilizados no processode investigação científica. Esses critérios, porém, não são apresentadoscomo prescrições dogmáticas, mas elementos que se somam àimaginação crítica ou à criatividade, pois, como diz Medawar (1974,

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p. 1.105), os cientistas “trabalham muito perto da fronteira entre oespanto e a compreensão”(15). (negritos e itálico do autor)

Como técnicas de pesquisa, são feitas: a documentação indireta, com apesquisa bibliográfica e de documentos (TACs e negociações coletivas); ea documentação direta, consistente da realização das entrevistas.

Após a definição do campo da pesquisa, adaptam-se os métodos de inves-tigação e técnicas disponíveis aos “objetos” (pessoas) e opta-se por realizarentrevistas, pois proporcionam maior aproximação ao “objeto” a ser conhecido,aguçando a sensibilidade e a percepção do pesquisador.

Assim, em relação às entrevistas, as direcionadas às pessoas com deficiênciaintelectual são feitas com pautas predefinidas, seguindo um roteiro(16); e as restantessão informais. Cabe informar que, embora existentes as pautas, as entrevistas nãoficam restritas a elas, podendo ocorrer acréscimos aos assuntos abordados,objetivando uma conversa mais espontânea e livre.

Estritamente em relação às pessoas com deficiência intelectual, em razão daincapacidade legal imposta a elas pelo art. 1.767 do Código Civil de 2002(CC/2002), foi necessário elaborar um termo de consentimento livre e esclarecido(17),que foi lido e direcionado às famílias, para recolhimento das autorizações.

Quanto ao termo de consentimento, o Conselho Nacional de Saúde (CNS)exige que ele, com as pautas das entrevistas, seja submetido a um Comitê de Éticaem Pesquisa (CEP). Entretanto, a Faculdade de Direito da USP, à qual este projetoestá vinculado, não tem CEP próprio. Assim, a Fundação de Amparo à Pesquisa doEstado de São Paulo (FAPESP), por contato eletrônico, orientou submetê--lo àComissão de Pesquisa da Faculdade. Por sua vez, no exame de qualificação, osprofessores doutores presentes ratificaram a pesquisa e não vislumbraram anecessidade de submetê-la a um comitê específico, desde que resguardado o sigilodos nomes dos participantes com deficiência intelectual, da associação de que elesfazem parte e das empresas envolvidas, e desde que obtidas as devidas autorizaçõesapós ciência do referido termo.

Quanto à coleta das entrevistas, deu-se mediante encontro pessoal com osentrevistados, em dia, hora e local que melhor lhes aprouve, tendo sido o encontropreviamente combinado por contato telefônico com a instituição e/ou com a pessoaresponsável pelo entrevistado ou diretamente com o entrevistado. As entrevistasforam gravadas em áudio (MP3 player) e elas não ultrapassaram 60 minutos.Mediante conhecimentos adquiridos pela leitura da bibliografia selecionada,

(15) KÖCHE, José Carlos. Fundamentos de metodologia científica: teoria da ciência e iniciação à pesquisa.24. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 68-69.(16) Vide pautas das entrevistas no Anexo B deste livro.(17) Vide modelo do referido termo no Anexo A deste livro.

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elaboram-se as pautas. Sobre as entrevistas pautadas, transcrevem-se os ensina-mentos de Gil:

A entrevista por pautas apresenta certo grau de estruturação, já que seguia por uma relação de pontos de interesse que o entrevistador vaiexplorando ao longo de seu curso. As pautas devem ser ordenadas eguardar certa relação entre si. O entrevistador faz poucas perguntasdiretas e deixa o entrevistado falar livremente à medida que refere àspautas assinaladas. Quando este se afasta delas, o entrevistador intervém,embora de maneira suficientemente sutil, para preservar a esponta-neidade do processo. As entrevistas por pautas são recomendadassobretudo nas situações em que os respondentes não se sintam à vontadepara responder a indagações formuladas com maior rigidez. Estapreferência por um desenvolvimento mais flexível da entrevista pode serdeterminada pelas atitudes culturais dos respondentes ou pela próprianatureza do tema investigado ou por outras razões(18).

Por sua vez, sobre as entrevistas informais:

Este tipo de entrevista é o menos estruturado possível e só se distingueda simples conversação porque tem como objetivo básico a coleta dedados. O que se pretende com entrevistas desse tipo e a obtençãode uma visão geral do problema pesquisado, bem como a identificação dealguns aspectos da personalidade do entrevistado. A entrevista informalé recomendada nos estudos exploratórios, que visam abordar realidadespouco conhecidas pelo pesquisador, ou então oferecer visão aproximativado problema pesquisado. Nos estudos desse tipo, com frequência, recorre--se a entrevistas informais com informantes-chaves, que podem ser espe-cialistas no tema em estudo, líderes formais ou informais, personalidadesdestacadas etc.(19) (grifo nosso)

Assim, é feito um estudo de caso na Região Metropolitana de São Paulo, apartir de uma associação para a educação e a qualificação profissional de pessoascom deficiência intelectual.

No que concerne aos TACs, investigaram-se as empresas citadas pelosentrevistados com deficiência, isto é, empresas onde eles laboram ou laboraram. Jáquanto às negociações coletivas, investigou-se um dos ramos de atividade econômicaem que labora um dos entrevistados.

Por meio da análise de conteúdo das entrevistas dos alunos dessa associaçãoe dos possíveis TACs e negociações coletivas, buscou-se concluir acerca da efetividadeda Lei de Cotas para as pessoas com deficiência intelectual.

(18) GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2007.p. 120-121.(19) Ibidem, p. 119.

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Entende-se que a efetividade da Lei de Cotas está diretamente relacionada àsua fiscalização pelos órgãos legalmente competentes (MTE(20) e MPT(21)), às políticaspúblicas sobre a pauta da deficiência e à atuação do Judiciário; em resumo, àatuação conjunta da sociedade em prol da inclusão (sociedade representada nestapesquisa por empresas, trabalhadores com deficiência intelectual, sindicatos,associações, entidades, movimentos, comissões e secretarias, todos envolvidos cominclusão laboral).

Com esse entendimento, definiu-se o campo de investigação da pesquisaempírica: o universo pesquisado localiza-se na Região Metropolitana de São Pauloe o estudo de caso, o recorte desse universo, é formado pelos trabalhadores ealunos de dada associação para pessoas com deficiência intelectual, que atua nessaregião; pelas empresas para as quais eles trabalham ou trabalharam; por possíveisTACs realizados com essas empresas e negociações coletivas de um desses ramoseconômicos.

Em complemento, há as demais entrevistas com profissionais renomadosenvolvidos com a inclusão na região onde os alunos da associação estão trabalhando,tanto os envolvidos pela função de fiscalizar e fazer cumprir a lei quanto pelafunção de fazer política pública e de dar consultoria acerca da temática da deficiência.

Sendo assim, todos os entrevistados escolhidos estão relacionados entre si,em prol da efetividade da Lei de Cotas; todos eles atuam na área da inclusãolaboral e relacionam-se direta ou indiretamente com a associação escolhida; ouseja, todos pertencem ao universo pesquisado e fazem parte do complexo daamostra escolhida para estudo.

Os critérios de escolha de cada entrevistado e demais opções metodológicasestão explicados no capítulo terceiro desta obra.

(20) Cf. art. 21 da CF/1988, arts. 626 e seguintes da CLT, art. 7º da Lei n. 7.855/1989 e Núcleos dePromoção da Igualdade de Oportunidades e de Combate à Discriminação criados pela Portarian. 604/2000 do MTE.(21) Cf. arts. 127 a 129 da CF/1988, arts. 3º e 7º da Lei n. 7.853/1989 e art. 5º da Lei n. 7.347/1985.

33

Capítulo 1

A LEGISLAÇÃO NACIONAL COMO

GARANTIA DA INCLUSÃO DA PESSOA COM

DEFICIÊNCIA INTELECTUAL NA EMPRESA

Nas lições de Miguel Reale(22) aprende-se que o Direito é o que deve ser, emcontraposição ao que é; ou seja, toda norma exprime um juízo de valor, imperativo,diferenciando-se dos juízos de realidade, estes considerados apenas indicativos.

Sobre tal aspecto, importante assinalar que se compartilha, aqui, do conceitode Direito em seu aspecto tridimensional (direito como fato, valor e norma)(23). Esseconceito é condizente com a opção metodológica supra, que demonstra a necessáriaaproximação do Direito com as Ciências Sociais(24) e, para além disso, tenta“harmonizar o que é com o que deve ser”(25).

(22) REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 34.(23) REALE, Miguel. Op. cit., p. 64-65. Para Reale: “Uma análise em profundidade dos diversossentidos da palavra Direito veio demonstrar que eles correspondem a três aspectos básicos,discerníveis em todo e qualquer momento da vida jurídica: um aspecto normativo (o Direito comoordenamento e sua respectiva ciência); um aspecto fático (o Direito como fato, ou em sua efetividadesocial e histórica) e um aspecto axiológico (o Direito como valor de Justiça)”. (itálicos do autor)(24) BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Tradução deDaniela Beccaccia Versiani. Revisão técnica de Orlando Seixas Bechara, Renata Nagamine. Barueri:Manole, 2007. p. 46-47.(25) REALE, Miguel. Op. cit., p. 68.

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Isto posto, neste capítulo pretende-se expor o mundo do dever ser na temáticada deficiência e do trabalho, ou seja, o arcabouço jurídico que tem por escopoassegurar a inclusão laboral das pessoas com deficiência intelectual.

Aliás, quando se fala em inclusão social, logo surge a indagação: por queincluir? E a resposta é clara: porque há exclusão social. Agora, são muitas as expli-cações acerca da exclusão social e não é objetivo deste trabalho esmiuçá-las.Entretanto, não há como falar em princípios do paradigma da inclusão social semao menos mencionar os fatores que levaram à sua edificação.

Em termos gerais, a marginalização de certos grupos sociais (sem-terras, sem--tetos, desempregados, homossexuais, negros etc.), muitas vezes denominados“minorias”, embora representem grande parcela da população mundial, ocorre emrazão das questões relacionadas à economia capitalista global e seus reflexos nestepaís(26).

Além do elemento econômico, são apontados outros fatores para o fenômenoda exclusão social, tais como o estigma e a discriminação(27), e também questõesrelativas à privação da sociabilidade(28).

Quanto aos grupos excluídos, interessante a colocação de uma das entrevis-tadas, a Sra. Lia Crespo, do Movimento de Vida Independente (MVI) de São Paulo,que chama a atenção, de forma bem-humorada, para a invisibilidade das pessoascom deficiência dentro dos próprios grupos marginalizados:

Vários setores começaram a reivindicar os seus direitos: as mulheres, oshomossexuais, os negros, os trabalhadores etc. Nos livros aparece assim:“etc.”. Quando você vê o “etc.”, pode completar ali com “as pessoascom deficiência”. Ou seja, eu já vi vários livros que falam sobre os movi-mentos sociais e nenhum menciona o movimento das pessoas comdeficiência, está sempre no “etc.”. Então, eu espero que minha tese dedoutorado pelo menos sirva para completar o “etc.”, eu estou fazendouma tese de doutorado em cima do “etc.”!

Não obstante a mazela da marginalização social, compreende-se o Direitocomo resistência a esse processo de exclusão. E neste capítulo pretende-se demons-trar exatamente isso. Aliás, o Direito do Trabalho é pioneiro em proteger certosgrupos sociais; no caso, os economicamente fracos, os trabalhadores.

(26) ANTUNES, Ricardo. A era da informatização e a época da informalização: riqueza e misériado trabalho no Brasil. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. SãoPaulo: Boitempo, 2006. p. 15.(27) PARKER, Richard; AGGLETON, Peter. Estigma, discriminação e Aids. Rio de Janeiro: AssociaçãoBrasileira Interdisciplinar de Aids, 2001. p. 16. Para os autores: “o estigma é empregado por atoressociais reais e identificáveis que buscam legitimar o seu próprio status dominante dentro dasestruturas de desigualdade social existentes”.(28) Cf. CASTEL, Robert. As armadilhas da exclusão. Tradução de Cleisa Moreno Maffei Rosa eMariangela Belfiore-Wanderley. In: CASTEL, R.; WANDERLEY, L. E. W.; BELFIORE-WANDERLEY,M. (orgs.). Desigualdade e questão social. 2. ed. São Paulo: Educ, 2000. p. 17-50.

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No que toca à proteção das pessoas com deficiência, trabalha-se com os princí-pios do paradigma da inclusão social (o direito de pertencer, a valorização da diver-sidade humana, dentre outros que serão vistos em detalhes mais adiante). Essesprincípios são os atuais valores eleitos como ideais a serem perseguidos na questãoda deficiência; foram estabelecidos pelo movimento de inclusão social iniciado nospaíses mais desenvolvidos na década de 1980 e difundidos aos países emdesenvolvimento na década seguinte(29).

Hodiernamente, os princípios da sociedade inclusiva estão todos presentes naConvenção da ONU Sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, fazendo partedo mundo do dever ser em âmbito nacional e internacional.

Além da exposição dos princípios do paradigma da inclusão social, demonstra--se o entendimento aqui adotado, acerca desses princípios, como integrantes doconteúdo da norma da dignidade da pessoa humana, a qual, por sua vez, “atrai arealização dos direitos fundamentais do homem, em todas as suas dimensões”(30).

Nesse sentido, a norma da dignidade já podia ser por si só utilizada comogarantia do ideal da inclusão laboral das pessoas com deficiência intelectual, hajavista que se pode afirmar, nesse diapasão, que os princípios da inclusão social nadamais são do que a efetivação da dignidade humana.

Apenas o nosso texto constitucional de 1988(31) é que se dedicou a explicitara norma da dignidade da pessoa humana; porém, já estava inserida no Preâmbuloda Carta Geral das Nações Unidas em 1945(32).

Na tentativa de se clarear e iluminar a compreensão da norma da dignidadeda pessoa humana, como abrangente também dos direitos das pessoas comdeficiência, tornou-se necessária a feitura de documentos internacionais específicos.

As primeiras normas internacionais contudo, apenas focaram um dos aspectosda questão da deficiência, como as Convenções ns. 159 e 111 da OIT (respectiva-mente sobre Readaptação Profissional e Emprego, de 1983, e sobre Discriminação,Emprego e Ocupação, de 1958); as Recomendações ns. 99, 150 e 168, também daOIT (respectivamente sobre Habilitação e Reabilitação Profissionais dos Deficientes,sobre Desenvolvimento dos Recursos Humanos, sobre Readaptação Profissional eEmprego de Pessoas Deficientes); a Convenção da OEA (conhecida como Convençãoda Guatemala ou Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas deDiscriminação contra as Pessoas com Deficiência, de 2001) e o Documento da OITsobre Gestão de Questões Relativas à Deficiência no Local de Trabalho, de 2001.

(29) SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. 7. ed. Rio de Janeiro:WVA, 2006. p. 17.(30) SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia.Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 212, p. 89-94, abr./jun. 1998.(31) LIMA, Firmino Alves. Mecanismos antidiscriminatórios nas relações de trabalho. São Paulo: [s. n.],2005. p. 24. Dissertação (mestrado) — Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.(32) Ibidem, p. 20.

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Nesse sentido, citem-se ainda a Declaração de Direitos do Deficiente Mental,de 1971; a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes, de 1975; a Declaraçãode Salamanca sobre Princípios, Política e Prática em Educação Especial, de 1994; ea Declaração Internacional de Montreal sobre Inclusão, de 2001.

Nenhum desses textos, porém, conseguiu ser tão abrangente, abarcando todosos princípios da inclusão social, como a Convenção da ONU adotada em dezembrode 2006 pela Assembleia Geral. No Brasil, referida Convenção ganhou recentementestatus de norma constitucional, estando integrada ao ordenamento jurídico pátrio.

Em 2008, o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência (3 de dezembro)foi celebrado com o tema Dignidade e Justiça para Todos, por causa do agravamentoda crise econômica mundial. Em mensagem comemorativa, o Diretor-Geral da OIT,Juan Somavia, relata:

Das 650 milhões de pessoas com deficiência, que representam cerca de10% da população do planeta, cerca de 470 milhões estão em idadede trabalhar. Cerca de 80% residem em países em desenvolvimento e aimensa maioria vive abaixo do limiar da pobreza ou se dedica a formasde trabalho vulneráveis. Enfrentando estas desvantagens, as pessoascom deficiência demonstram diariamente sua produtividade e seu com-promisso para dar sua contribuição a suas comunidades e sociedades.[...] A missão traçada pela OIT de promover o trabalho decente paratodos inclui as pessoas com deficiência. [...] A recente Convenção dasNações Unidas sobre os direitos das pessoas com deficiência vemacrescentar um instrumento de vital importância, que permitirá às pessoascom deficiência cumprir uma função muito mais central no desenvol-vimento social e econômico.(33)

A noção de trabalho decente para todos, na concepção da OIT, vai ao encontrodo modelo inclusivista de trabalho, como se analisa em tópico próprio.

Além da recente Convenção da ONU, a proteção à inclusão laboral das pessoascom deficiência é garantida também pela ocorrência no Brasil de ação afirmativaespecífica: o Sistema de Cotas Legais, traduzido pelo art. 93, caput, da Lei n. 8.213/1991.

A Lei de Cotas é de 1991, mas a CF/1988 já tratava da importância do trabalhopara todas as pessoas, com ou sem deficiência. Nesse sentido, normas constitucionaisdemonstram que a consecução do valor primordial da dignidade humana é con-quistada, também, por meio do direito ao trabalho, conforme incisos III e IV do art.1º combinados com os arts. 6º e 170. Ainda, a ideia da sociedade inclusiva vai aoencontro das normas da igualdade e da não discriminação, segundo o inciso IV doart. 3º, o caput do art. 5º e o inciso XXXI do art. 7º.

(33) Disponível em: <http://www.oit.org.br> Acesso em: 4.12.2008.