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    LEI DE BASES DA ORGANIZAO JUDICIRIA

    EXPOSIO DE MOTIVOSCaptulo I

    Da necessidade de uma reforma do sis tema de administ rao da justia comum

    1. A elaborao da presente proposta de Lei de Bases da Organizao Judiciria o resultadode um longo trabalho de investigao e de reflexo, com a participao de uma pluralidade de

    actores do sistema de justia e da comunidade na elaborao do diagnstico dos problemas edas propostas de soluo.

    Esta exposio de motivos pretende, em parte, dar conta desse processo, pelo que sesubdividir nos seguintes captulos:

    - Captulo I Da necessidade de uma reforma do sistema de administrao dajustia comum;- Captulo II A A preparao da reforma do s istema de administrao da justiacomum;- Captulo III A evoluo da justia em Moambique (1975-2005);- Captulo IV A reviso constitucional de 2004: o imperativo da construo deum novo sistema de justia;- Captulo V Breves notas de direito e experincia comparada sobre dois temasinovadores da reforma: a just ia comunitria e a criao de um sistema de acesso justia e ao direito;- Captulo VI As principais linhas de reforma do sistema de administrao da

    justia comum.

    No primeiro captulo d-se conta da necessidade de reforma e dos princ ipais bloqueiosdo actual sistema de administrao da justia. No segundo captulo faz-se um breverelato do trabalho de investigao e de preparao da presente proposta de lei, levada acabo pelo Centro de Formao Jurdica e Judiciria, em parceria com o Centro deEstudos Sociais da Universidade de Coimbra, no mbito do acordo de cooperao entreambas as instituies. No terceiro captulo, procede-se a uma breve reflexo sobre aevoluo da justia e do acesso justia e ao direito em Moambique desde aindependncia at aos nossos dias. No quarto captulo analisa-se o imperativo dereforma da justia, decorrente da reviso constitucional de Novembro de 2004. Nocaptulo seguinte descrevem-se e analisam-se alguns exemplos de experinciacomparada em dois temas inovadores de reforma: a participao dos tribunaiscomunitrios no sistema de administrao da justia e a criao de um novo sistemapblico de parceria Estado-Sociedade de acesso justia e ao direito. Por ltimo, nocaptulo VI, apresentam-se as principais linhas da presente proposta de reforma daorganizao judiciria.

    2. A reviso da Constituio, operada em finais de 2004, em consequncia das transformaessociais, econmicas e polticas ocorridas nos ltimos quinze anos, a acumulao deconhecimento sobre o direito e a justia em Moambique e, ainda, o incio de um novo ciclo

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    poltico, consequente s eleies presidenciais e legislativas de Dezembro ltimo, tornarammais premente a necessidade de efectuar uma reforma no sistema de administrao daJustia, que tenha como objectivo tornar os tribunais mais prximos dos cidados, mais

    acessveis, mas tambm mais eficientes e transparentes. Esta reforma visa, assim, aconsolidao e aprofundamento do Estado de Direito, enriquecido pela experincia e pelacultura moambicanas, permitindo aos cidados recorrer instncia do sistema de Justia quelhe seja mais prxima e competente para a resoluo do seu litgio, para que a lhes sejampromovidos e reconhecidos, os seus direitos e deveres. Parafraseando Albie Sachs, odesenvolvimento progressivo e seguro de um sistema de justia moambicano exige que estese forme na confluncia das melhores prticas dos sistemas de justia presentes no pas. Istosignifica dar o merecido reconhecimento ao sistema legal africano e ao pensamento jurdicoafricano como uma fonte das nossas ideias, normas e prticas legais.

    No obstante as profundas transformaes polticas, sociais e econmicas ocorridas nosltimos anos, os tribunais comunitrios e as outras instncias informais de resoluo de

    litgios mantiveram-se o principal instrumento de resoluo conflitual, dado o seu carcter deproximidade fsica e cultural populao moambicana. A presente proposta assenta numvastssimo trabalho de campo que nos permitiu aprofundar o conhecimento da riqueza darealidade scio-econmica de Moambique e, a partir dela, potenciar solues inovadorasrealistas, ancoradas na prtica das populaes e no na importao de solues ou modelosexternos que sejam limitativos da realidade da sociedade moambicana.

    Consequentemente, o presente anteprojecto de Lei de Bases um instrumento de reforma daJustia ao servio da cidadania e do desenvolvimento em Moambique.

    3. O crescimento da procura de tutela judicial e dos processos pendentes e a sua longadurao na maioria dos tribunais judiciais; a ineficincia e inacessibilidade destes tribunais; a

    existncia de uma pluralidade de instncias a resolver litgios na sociedade moambicana; aausncia de tribunais judiciais e/ou comunitrios em grande parte do territrio, perto daspopulaes; e a incapacidade do Instituto de Patrocnio e Assistncia Jurdica emdesempenhar cabalmente a sua misso exigem uma reforma da justia de modo a torn-lamais acessvel aos cidados, mais clere, mais transparente, e com maior capacidade parapromover os direitos humanos e responder s necessidades decorrentes do desenvolvimentoeconmico e social do pas.

    As autoridades judicirias ao mais alto nvel1 vm defendendo que necessrio redefinir aorganizao judiciria, estabelecendo uma articulao estreita entre os tribunais judiciais e asinstncias comunitrias de resoluo de conflitos, de modo a que a justia e o poder judiciriopossam estar mais prximos dos cidados. No contexto deste objectivo poltico foi elaborado o

    Plano Estratgico Integrado do Sector da Justia para os anos 2002-2006, no qual seestabelece como prioritria a reviso da organizao judiciria, a reviso e regulamentao dalei dos tribunais comunitrios e a institucionalizao de um novo sistema de acesso justia eao direito.

    Nas sociedades contemporneas, o Estado e a sociedade esto a construir um novo sistemade justia, que inclui os tribunais judiciais e o denominado pluralismo jurdico, ou seja, oreconhecimento da existncia de meios no judiciais com legitimidade para dirimir conflitos.

    Consequentemente, h que definir uma nova arquitectura do sistema de justia e rever aseguinte legislao: a Lei Orgnica dos Tribunais Judiciais (Lei n. 10/92, de 6 de Maio); a Lei

    1 Ver, entre outros, os discursos do Presidente do Tribunal Supremo nas sesses de abertura do ano judicial.

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    dos Tribunais Comunitrios (Lei n. 4/92, de 6 de Maio); a Lei que criou o Instituto do Patrocnioe Assistncia Jurdica e o Decreto que aprovou o Estatuto Orgnico desse Instituto (Lei n.6/94, de 13 de Janeiro e Decreto n. 54/95, de 13 de Dezembro).

    Aps ponderar as vrias solues de tcnica legislativa, optou-se por elaborar um Anteprojectode Lei de Bases da Organizao Judiciria, no qual se consagrem os princpios e as bases deum sistema de justia plural e integrado, que aproveite as potencialidades normativas e deresoluo de conflitos existentes na sociedade moambicana. Esta Lei de Bases serposteriormente desenvolvida na legislao orgnica e regulamentar que se mostre necessria,designadamente sobre os tribunais judiciais, os tribunais comunitrios e de criao de um novosistema de acesso justia e ao direito.

    Captulo IIA preparao da reforma do sis tema de administrao da justia comum

    4. O trabalho de preparao de uma proposta de lei adequada realidade do pas, como j sereferiu, exigiu uma fase de investigao, cujo objectivo foi aprofundar o conhecimento sobre asinstncias que administram a justia. Esta fase, que constituiu uma actualizao e umaprofundamento do trabalho de investigao anterior sobre a justia em Moambique, em queestiveram envolvidos os mesmos investigadores2, dividiu-se em duas etapas: (i) investigaono terreno e (ii) painis de discusso.

    5. A primeira etapa, que decorreu entre Setembro de 2003 e Junho de 2004, envolveu o estudodo sistema judicirio, nomeadamente dos tribunais judiciais e do Instituto de Patrocnio eAssistncia Jurdica; dos tribunais comunitrios e de outras instncias de resoluo de conflitos(autoridades tradicionais, AMETRAMO Associao dos Mdicos Tradicionais de Moambique

    , Grupos Dinamizadores, lderes comunitrios, lideres religiosos, ONGs).

    Pretendeu-se avaliar o desempenho efectivo destas instncias, perceber os principaisbloqueios de funcionamento, as interaces que se estabelecem entre si e a potencialidade dasua aco na promoo do acesso justia e ao direito. Para esse efeito foram realizadasentrevistas e observaes de julgamentos ou de outras sesses de resoluo de conflitos (noscaso de algumas instncias no estatais). Nos tribunais judiciais procedeu-se anlise dosdados estatsticos disponveis e anlise da evoluo do movimento processual. Procedeu-se,ainda, caracterizao dos processos findos atravs da recolha de dados, com variveis pr-definidas, de uma amostra de 467 processos, que nos permite conhecer a natureza dalitigao, dos litigantes principais e do modo como estes acederam ao sistema judicial, bemcomo, ainda, a durao dos processos. Durante todo o perodo deste trabalho, realizaram-se,

    regularmente, seminrios internos de auto-avaliao.Por impossibilidade temporal e de recursos, o trabalho de campo no pde estender-se a todoo pas. Optou-se, assim, pelo estudo intensivo dos tribunais judiciais e das outras instncias deresoluo de litgios em trs reas: no distrito de Angoche e cidade de Nampula, na provnciade Nampula; no distrito de Macossa, provncia de Manica; e na cidade de Maputo, incluindo osbairros de Inhagia, Xipamanine, Mafalala e Jorge Dimitrov (Benfica). Os critrios de selecodestes locais passaram, desde logo, pela procura de diversidade geogrfica do pas, o que setraduziu na escolha de uma regio do litoral norte, uma do centro interior e outra do sul. Alm

    2 Referimo-nos ao estudo levado a cabo conjuntamente pelo Centro de Estudos Africanos da Universidade EduardoMondlane e pelo Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, que decorreuentre 1997 e 2000, do qual resultou a publicao do livro de Santos, Trindade et al, Conflito e Transformao Social:uma Paisagem das Justias em Moambique, 2 vols., Afrontamento, Porto, 2003.

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    disso, caractersticas prprias de cada uma destas regies, que fazem delas contextosdiferenciados, e de onde decorreu a expectativa de representarem realidades distintas no quediz respeito administrao da justia, foram tambm relevantes na sua escolha.

    Nampula a segunda provncia mais populosa do pas. uma zona de forte influncia dacultura islmica e de cariz matrilinear. Alm disso, tem registado, nos ltimos anos, um elevadomovimento processual. Na sua escolha pesou, ainda, o facto de no ter sido estudada noestudo anterior.

    A importncia do distrito de Macossa enquanto objecto de estudo resulta, nomeadamente, dafraca implantao, nesse distrito, de tribunais comunitrios, do facto de ter estado sobdominao da Renamo durante o conflito armado que durante dezasseis anos assolou o pas,do baixo investimento privado (com excepo da explorao dos recursos florestais, atravsdas coutadas) e da baixa oferta de servios pblicos (inexistncia de luz elctrica, guacorrente e comunicaes). O facto de no ter tribunal judicial, permitiu-nos estudar possveis

    estratgias alternativas utilizao daquela instncia.

    A cidade de Maputo a capital poltica do pas, onde esto concentradas as principaisinstituies do Estado. No que respeita administrao da justia, tm-se verificado dinmicasespecficas que passam pela implantao de uma rede judiciria prpria (seces e tribunaisde competncia especializada) e por um maior investimento em recursos materiais e humanos.A par das instituies estatais de administrao da justia, proliferam organizaes nogovernamentais que desempenham funes de resoluo de litgios e prestam patrocnio

    judicirio aos cidados. Em termos econmicos, a zona do pas que concentra maior volumede investimento privado. Por tudo isto, Maputo apresenta uma realidade muito distinta da dorestante pas, servindo-nos como ponto de comparao em relao s outras zonas estudadas.

    Moambique caracteriza-se, assim, por uma grande segmentao e fragmentao de prticas jurdicas e institucionais do Estado, onde a desregulao oficial menos ampla do que seproclama e a re-regulao oficial muito mais heterognea do que se pretende.

    Da investigao realizada resultaram um conjunto de estudos, nos quais se procurouapresentar uma anlise plural e integrada das diferentes instncias de resoluo de conflitospresentes na sociedade, que funcionam em rede, e, ainda, efectuar a caracterizao dodesempenho dos tribunais judiciais e do Instituto de Patrocnio e Assistncia Jurdica (IPAJ).

    6. A segunda fase do processo de investigao e de preparao da presente anteproposta delei decorreu nos meses de Outubro e Novembro de 2004 e teve como objectivo enfatizar aparticipao dos operadores judiciais, dos representantes comunitrios ou das organizaes da

    sociedade civil. Compreendeu um conjunto de 11 painis de discusso, distribudos pelascidades de Maputo, Matola, Nampula, Beira e Inhambane, com participantes de todas asprovncias.

    Nesses painis estiveram presentes magistrados judicias e do Ministrio Pblico, advogados,oficiais de justia, membros do IPAJ, representantes de organizaes da sociedade civil,representantes de organizaes islmicas, juzes de tribunais comunitrios, autoridadestradicionais e membros da AMETRAMO.

    A discusso nos painis centrou-se em trs grandes questes: organizao dos tribunais judiciais; relao entre os tribunais judiciais e os tribunais comunitrios; e mecanismos deacesso justia e ao direito ao dispor dos cidados. Do debate resultou um conjunto de ideias

    relevantes para a reforma, das quais destacamos as seguintes:

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    a diviso judiciria no tem necessariamente que coincidir com a divisoadministrativa, podendo ser construda uma rede judiciria diferenciada em funo dos

    contextos de cada provncia ou distrito; devem ser alargadas as competncias dos tribunais distritais, de modo a permitir umaequilibrada distribuio dos processos nos diferentes escales de tribunais;

    o Tribunal Supremo deve, progressivamente, transformar-se numa instnciaessencialmente de recurso sobre as questes de direito;

    de modo a cumprir a Constituio da Repblica e a tornar mais cleres as decisesdos recursos dos tribunais judiciais de provncia deve ser criada uma instnciaintermdia (adequada) entre os tribunais judiciais de provncia e o Tribunal Supremo,atendendo disponibilidade de recursos humanos e financeiros;

    deve ser institudo um sistema de administrao dos tribunais, autnomo e eficiente,que permita o afastamento progressivo dos juzes das tarefas de gesto, permitindo,deste modo, aumentar a produtividade do sistema;

    os tribunais comunitrios devem ser integrados no sistema de administrao da justia, articulando-se de forma estreita com os tribunais judiciais; seguindo aexperincia histrica do pas e tendo em conta o actual contexto poltico, os juzes dostribunais comunitrios devem ser legitimados por mecanismos de eleio;

    os tribunais comunitrios devem decidir de acordo com a equidade, o bom senso, osusos e costumes, com respeito pela Constituio da Repblica;

    o acesso justia e ao direito deve ser assegurado pelo Estado, em articulao comas organizaes da sociedade civil.

    Captulo IIIA evoluo da just ia em Moambique (1975-2005)

    III. 1. A organizao judiciria

    7. A evoluo da organizao judiciria desde a independncia at aos nossos dias,acompanha, em termos gerais, a evoluo do prprio sistema poltico e da ordem jurdico-constitucional de Moambique. , assim, possvel observar quatro perodos, correspondendocada um deles ao tempo de vigncia das transformaes que se fizeram sentir, com incidnciasobre a composio, a organizao e o funcionamento dos tribunais e dos outros rgos deadministrao da justia:

    de 1975 a 1978, a (re)construo do sistema judicirio;

    de 1978 a 1992, a implantao do sistema de Justia Popular; de 1992 a 2004, a criao de uma organizao judiciria do Estado de Direito, com aseparao dos tribunais comunitrios;

    o perodo que se inicia com a recente reviso constitucional, de Novembro de 2004, o do reconhecimento do pluralismo jurdico e da criao de um sistema integrado deJustia, com o objectivo de tornar a justia mais prxima, mais acessvel, mais eficiente,mais transparente e ao servio da cidadania, da democracia e do desenvolvimento.

    8. O perodo entre a proclamao da independncia e a aprovao da primeira Lei daOrganizao Judiciria foi o da concepo do sistema judicirio moambicano e, ainda, detomada de medidas pragmticas necessrias para garantir o funcionamento das instituies de

    justia, dentro do novo quadro constitucional de um novo pas.

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    A Constituio de 1975 tratava de forma bastante genrica a organizao judiciria,consagrando as seguintes regras e princpios: reserva da funo judicial para os tribunais;subordinao dos tribunais ao poder poltico, particularmente Assembleia da Repblica a

    quem prestavam contas; principio da legalidade; preveno e educao no cumprimento da lei;independncia dos juzes e obedincia lei no exerccio das suas funes; organizaohierrquica do Ministrio Pblico e subordinao ao Procurador-Geral da Repblica; e oprincpio de que o Tribunal Supremo (que viria a ser constitudo anos mais tarde) seria dotadoda funo de garantir a aplicao uniforme da lei nos tribunais.

    A Resoluo sobre Justiado Comit Central da Frelimo (8 Sesso, 1976) definiu a prioridadepoltica de destruir a estrutura judicial colonial, como um dos meios de combate ao Estadocolonial-capitalista. Assim, instituiu-se o princpio da participao popular na administrao da

    justia, intervindo nos tribunais juzes leigos (eleitos) ao lado dos juzes profissionais. Destemodo, o novo sistema judicirio [devia] exprimir o poder da aliana operrio-camponesa ereflectir a ditadura da maioria explorada. Esta opo levou a que fossem afastadas da

    administrao da justia as entidades conotadas com o poder colonial, como o caso dasautoridades tradicionais.

    Contudo, excepo das transformaes referidas, a estrutura judicial manteve-se idntica do perodo colonial: um Tribunal da Relao, com jurisdio em todo o pas, e exercendofunes quase exclusivas de recurso; tribunais judiciais de comarca, com jurisdio em cadaprovncia; julgados municipais, com jurisdio em cada distrito; julgados de paz, com jurisdioem cada posto administrativo.

    Os julgados municipais de primeira classe, os tribunais de comarca e o Tribunal da Relaoeram compostos por juzes profissionais. Nos restantes tribunais o poder jurisdicional eraexercido pela autoridade administrativa da respectiva circunscrio territorial.

    9. A Lei da Organizao Judiciria (ou Lei dos Tribunais Populares), Lei n. 12/78, de 2Dezembro, desenvolveu os princpios proclamados na Constituio e na Resoluo sobreJustiado Comit Central da Frelimo (Frelimo, 1976) e, ainda, no Relatrio ao III Congresso(Frelimo, 1977), nomeadamente os seguintes:

    articulao entre os tribunais e as estruturas polticas, sociais e do Estado; prevalncia das decises dos tribunais sobre as demais entidades pblicas eprivadas;

    tutela do Tribunal (Popular) Supremo e dos tribunais populares provinciais sobre os deescalo inferior, podendo aqueles emitir directivas e instrues de carcter geral eobrigatrio [...] a fim de garantir uniformidade na aplicao das leis e no

    desenvolvimento da actividade processual; coincidncia entre a diviso judicial e a diviso administrativa; colegialidade de todos os tribunais, prevendo a participao (especialmente nosprocessos-crime) de juzes leigos nos tribunais populares distritais e de escalosuperior, a par dos juzes profissionais e em plena igualdade com eles;

    nos processos cveis, os juzes eleitos tinham competncia para decidir sobre amatria de facto;

    a base do sistema era constituda por tribunais compostos em exclusivo por juzesleigos, eleitos pelas assembleias locais, julgando de acordo com o bom senso e a

    justia, tendo em conta os princpios que presidem construo da sociedadesocialista..., desde que no contrria lei;

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    a direco do sistema judicial foi atribuda ao Ministrio da Justia, especialmenteatravs da nomeao e exonerao de magistrados judiciais e do Ministrio Pblico3, daatribuio do poder disciplinar sobre os magistrados4, da determinao da

    especializao dos tribunais ou das respectivas seces e da sua entrada emfuncionamento, da definio dos critrios de seleco dos candidatos a magistrados, dadefinio de regras de procedimento para as eleies dos juzes no profissionais(Decreto Presidencial n. 69/83, de 29 de Dezembro).

    A lei dos tribunais populares definiu uma estrutura hierrquica dos tribunais judiciais idntica que vigorou nos primeiros anos da independncia. No topo da pirmide estava o TribunalPopular Supremo (s viria a ser constitudo em 1988) tendo estado anteriormente a funcionaro Tribunal Superior de Recurso (criado pela Lei n. 11/79 de 12 de Dezembro), em substituiodo Tribunal da Relao seguindo-se, sucessivamente, os tribunais populares provinciais(onde haviam funcionado os tribunais de comarca), os tribunais populares distritais (ondeanteriormente existiram os julgados municipais) e os tribunais populares de localidade ou de

    bairro (onde funcionaram os julgados de paz).

    10. As reformas polticas e econmicas introduzidas no pas a partir dos finais da dcada deoitenta, com o processo de paz, o alargamento dos direitos e liberdades fundamentaisindividuais e colectivos, a passagem de um regime monopartidrio e de orientao socialistapara outro multipartidrio e de economia de mercado, reflectiram-se na Constituio de 1990 e,consequentemente, na organizao judiciria. Os tribunais passaram a ser consideradosinstrumentos fundamentais para a manuteno da paz social e para o fortalecimento dademocracia.Assim, na Constituio de 1990 foram considerados os seguintes princpios e regrasconstitucionais relativas aos rgos judicirios:

    tribunais como rgos de soberania (art. 109.); autonomia dos poderes executivo e legislativo; tribunais tendo como objectivos reforar a legalidade, garantir o respeito pelas leis eassegurar os direitos e liberdades dos cidados;

    tribunais com a funo de educar os cidados no cumprimento voluntrio e conscientedas leis, estabelecendo uma justa e harmoniosa convivncia social;

    tribunais reprimindo as violaes da legalidade e decidindo os pleitos de acordo com oestabelecido na lei;

    decises dos tribunais de cumprimento obrigatrio e prevalecendo sobre as de outrasautoridades;

    juzes independentes no exerccio das suas funes, devendo obedincia lei e Constituio (arts. 162. e 164., 1);

    juzes com garantias de imparcialidade, irresponsabilidade e inamovibilidade (arts.164., 2 e 165., 2); juzes eleitos participando apenas nos julgamentos em primeira instncia eexclusivamente na deciso sobre a matria de facto.

    Ao contrrio do que aconteceu em 1975, a Constituio de 1990 veio proibir a criao detribunais especiais e enumerar os tribunais existentes em Moambique: o Tribunal Supremo eoutros tribunais judiciais; o Tribunal Administrativo; os tribunais militares, aduaneiros, fiscais,martimos e, ainda, os tribunais de trabalho. Outra importante inovao foi a institucionalizaodo Conselho Constitucional, com a competncia de fiscalizar a Constituio e a ilegalidade dos

    3 Na magistratura do Ministrio Pblico, esta funo passou a ser exercida pelo Procurador-Geral da Repblica apartir do ano de 1989, por fora da Lei n. 6/89, de 19 de Setembro.4 O poder disciplinar sobre os funcionrios exercido pelo juiz-presidente do respectivo tribunal.

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    actos normativos pblicos, de julgar os conflitos de competncias entre os rgos de soberaniae de decidir sobre questes eleitorais.

    11. A Lei da Organizao Judiciria de 1992 acolheu todos os princpios previstos naConstituio e acrescentou, ainda, os seguintes:

    publicidade das audincias; dever de cooperao de todas as entidades pblicas e privadas para com os tribunais; recurso nico em decises sobre a matria de facto; poder atribudo ao Tribunal Supremo e aos tribunais judiciais de provncia paraemitirem instrues e directivas, de carcter obrigatrio, aos tribunais de escaloinferior, a fim de assegurar a sua operacionalidade e a eficincia na administrao da

    justia; o princpio de que a diviso judicial dever, tanto quanto possvel, coincidir com adiviso administrativa.

    A referida lei acolhe ainda as seguintes inovaes na organizao judiciria: a direco egesto do aparelho judicial ficam a cargo do Tribunal Supremo e do Conselho Judicial, comorgos centrais do sistema judicial, que tm de se organizar para o desempenho de vriasfunes de gesto e de direco do aparelho judicial.

    O poder disciplinar sobre os magistrados passa a ser exercido pelo Conselho Superior daMagistratura Judicial. criado um rgo consultivo do Tribunal Supremo, que integra, entreoutros, os respectivos juzes e o secretrio-geral e consagra-se a possibilidade de criao dergos locais, concretamente de conselhos de tribunais, constitudos pelos juizesprofissionais dos escales provincial e distrital. , ainda, institucionalizada a inspeco judicial,que foi regulada por diploma prprio.

    Os tribunais de localidade e de bairro deixaram de fazer parte do sistema judicial, passando aser regulados por lei prpria, a Lei n. 4/92, de 6 de Maio (Lei dos Tribunais Comunitrios).

    12. Na ordem interna, a competncia dos tribunais fixada em razo da matria, hierarquia,valor e territrio. A especializao em razo da matria admitida pela lei, estando j criadostrs tribunais de competncia especializada (como o caso do Tribunal de Menores da Cidadede Maputo, o Tribunal de Polcia da Cidade de Maputo, e dos tribunais de trabalho muitoembora estes no tenham sido ainda instalados).

    Retomando a estrutura hierrquica da lei dos tribunais populares, excepto em relao base, osistema compreende as seguintes categorias de tribunais: Tribunal Supremo, tribunais judiciais

    de provncia e tribunais judiciais de distrito, podendo ser criados, sempre que as circunstnciaso justifiquem, tribunais judiciais de competncia especializada e tribunais judiciais de distritonas capitais de provncia.

    De acordo com as alteraes introduzidas Lei Orgnica pelo Decreto n. 24/98, de 2 deJunho, os tribunais distritais de 1 e 2 classes passaram a conhecer das causas cujo valor noexceda, respectivamente, os 30.000.000,00 MT e os 15.000.000,00 MT. Aos tribunais judiciaisde provncia caber julgar aces de valor superior a 30.000.000,00 MT. Em matria criminal,compete aos tribunais judiciais de distrito julgar crimes que sejam punveis com pena nosuperior a 8 anos de priso. Os tribunais judiciais de provncia julgam, em primeira instncia, osprocessos cveis e crimes que no sejam de competncia dos tribunais judiciais de distrito.

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    13. O novo quadro poltico-constitucional adoptou uma nova organizao judiciria, baseadaem novos princpios, de modo a estar consentnea com a nova filosofia de organizao doEstado e das demais instituies democrticas do pas (Prembulo da Lei n. 10/92 de 6 de

    Maio). De fora desta nova organizao judiciria ficaram, como j se referiu, os tribunaiscomunitrios criados pela Lei n. 4/92 de 6 de Maio que pretendiam evitar, ao nvel da base,o vazio gerado com a eliminao formal dos tribunais populares de base.

    Estabelecendo o primado da justia social, da igualdade de direitos para todos os cidados, daestabilidade social e da valorizao da tradio e dos demais valores sociais e culturais, a Leidos Tribunais Comunitrios reconhece no seu prembulo, que as experincias recolhidas nopas por uma justia de tipo comunitrio apontam para a necessidade da sua valorizao eaprofundamento, tendo em conta a diversidade tnica e cultural da sociedade moambicana.O que justifica a criao de rgos que permitam aos cidados resolver pequenos diferendosno seio da comunidade, contribuam para a harmonizao das diversas prticas de justia epara o enriquecimento das regras, usos e costumes e conduzam sntese criadora do direito

    moambicano.

    Existe, assim, uma grande simetria entre os tribunais populares de localidade e os tribunaiscomunitrios, designadamente no que diz respeito sua localizao, composio, processosde deciso, competncia e sanes. Alis, a lei que cria os tribunais comunitrios apontamesmo para essa continuidade, ao determinar nas disposies transitrias que com a entradaem vigor da presente lei passam a aplicar-se imediatamente aos tribunais de localidade e debairro as regras nela definidas para os tribunais comunitrios.

    Nos termos da lei, estes tribunais podero funcionar nas sedes de posto administrativo ou delocalidade, nos bairros ou nas aldeias. Uma parte considervel de tribunais comunitriosfunciona nos mesmos espaos onde funcionavam os tribunais populares de localidade e de

    bairro. A Lei prev tambm a continuidade do corpo de juizes que integravam os tribunaispopulares: Os actuais juizes dos tribunais de localidade e de bairro sero membros dostribunais comunitrios, at que se mostrem concludas as primeiras eleies para as quais elespodem candidatar-se. A verdade que muitos dos tribunais comunitrios funcionam com omesmo corpo de juizes (em regra, um total de 8 membros: 5 efectivos e 3 suplentes) ou comgrande parte dos juizes que integravam os extintos tribunais populares, porque, no tendo a leisido regulamentada, nunca se realizaram eleies na vigncia da mesma. Nos casos em quehouve substituies, estas foram feitas, muitas vezes, de acordo com as iniciativas locais,tendo sido normalmente integrados elementos das estruturas locais do Partido Frelimo ou doGrupo Dinamizador. Para o exerccio do cargo do juiz, a lei vigente impe os seguintesrequisitos: idade no inferior a 25 anos, a cidadania moambicana e o pleno gozo de direitospolticos e cvicos.

    14. Os tribunais comunitrios, semelhana dos tribunais populares de localidade, tmcompetncia para julgar pequenos conflitos de natureza cvel, questes emergentes derelaes familiares que resultem de unies constitudas segundo os usos e costumes, tentandosempre que possvel a reconciliao entre as partes, e conhecer de delitos de pequenagravidade que no sejam passveis de penas privativas de liberdade e a que se ajustem asseguintes sanes: crtica pblica; privao por perodo no superior a 30 dias do exerccio dodireito cujo uso imoderado originou a infraco; prestao de servio comunidade por perodono superior a 30 dias; multa cujo valor no exceda 10.000,00 MT; indemnizao de prejuzoscausados pela infraco, podendo esta medida ser aplicada autonomamente ou acompanhadade quaisquer outras; praticar todos os actos de que sejam incumbidos pelos tribunais judiciais.

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    O tribunal comunitrio sempre uma jurisdio voluntria. A eficcia das decises dependesempre da aceitao de todas as partes do conflito. No caso de discordncia, o assunto podesempre ser introduzido no tribunal judicial competente. ainda de notar que a lei no define a

    jurisdio territorial dos tribunais comunitrios. Mas, entende-se que a jurisdio secircunscreve ao bairro ou localidade onde esto instalados.5

    III.2 A evoluo da legislao do acesso justia e ao direito: a lei, os bloqueios e aaco das ONGs

    15. A Constituio de 1990, para alm de garantir o acesso de todos os cidados aos tribunaise de garantir o direito de defesa dos arguidos, prescrevia que o Estado providencia para que a

    justia no seja denegada por insuficincia de recursos (artigo 100.).

    O actual texto constitucional reconhece igualmente a todos os cidados o direito de acesso aostribunais, isto , o direito de recorrer aos tribunais contra os actos que violem os seus direitos

    e interesses reconhecidos pela Constituio e pela lei (art. 70.). Aos arguidos so garantidoso direito de defesa e o direito assistncia jurdica e ao patrocnio judicirio, bem como o deescolher livremente o seu defensor, sendo-lhes assegurada adequada assistncia jurdica epatrocnio judicial, quando, por razes econmicas, no possam contratar um advogado (art.62. da CRM).

    16. O Decreto-Lei n. 4/75, de 16 de Agosto, proibiu o exerccio da advocacia e das funes deconsultoria jurdica, solicitadoria, procuradoria judicial ou extrajudicial, a ttulo privado. Criou oServio Nacional de Consulta e Assistncia Jurdica (SNCAJ), na dependncia daProcuradoria-Geral da Repblica, que devia cumprir aquelas funes. Este decreto nuncachegou a ser regulamentado e, por isso, o SNCAJ jamais entrou em funcionamento.Posteriormente, atravs da Lei n. 3/86, de 16 de Abril, foi criado, em sua substituio, o

    Instituto Nacional de Assistncia Jurdica (INAJ), subordinado ao Ministrio da Justia, cujoEstatuto Orgnico foi previsto no Decreto n. 8/86, de 30 de Dezembro. S os membros doINAJ poderiam praticar actos prprios da profisso, designadamente exercer o mandato judicialou consulta jurdica. No mbito do INAJ estavam previstas trs categorias de defensores, comdiferentes competncias: advogados, com licenciatura em direito; tcnicos jurdicos, combacharelato em direito; assistentes jurdicos, habilitados com cursos de formao especfica.No entanto, a inscrio como advogado s podia ser efectuada pelos licenciados em direitodepois de completarem o estgio com aproveitamento. Para a inscrio como tcnico jurdicoexigia-se o bacharelato em direito ou equivalente e igualmente um estgio. A inscrio comoassistente jurdico era permitida queles que estivessem habilitados com cursos de formao

    jurdica reconhecidos por entidade competente.

    17. Por fora da Constituio de 1990 foram liberalizadas as profisses jurdicas, deixando deser proibido o exerccio privado da advocacia. Assim, em 1994 foram publicados dois diplomasque regulam os servios jurdicos e o sistema de assistncia judiciria: a Lei n. 7/94, de 14 deSetembro, que cria a Ordem dos Advogados de Moambique (OAM) e aprova o respectivoEstatuto Orgnico, consagrando a advocacia como um dos trs pilares da administrao da

    justia; e a Lei n. 6/94, de 13 de Setembro, que cria o Instituto de Patrocnio e AssistnciaJurdica (IPAJ), como corolrio do princpio constitucional do livre acesso dos cidados aostribunais, do direito de defesa e do direito de assistncia e patrocnio judicirio.

    18. O incio da prtica da advocacia tem de ser precedido por um perodo de dois anos deestgio, podendo ento o candidato requerer a inscrio como advogado estagirio. O estgio

    5 Para todo o ponto III.1, cfr. Santos, Trindade et al, 2003.

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    de advocacia divide-se em trs perodos e tem por objectivo familiarizar o advogado estagiriocom os actos e termos mais usuais da prtica forense, inteir-lo dos direitos e deveres dosadvogados, bem como garantir a realizao da assistncia jurdica em regime de servio cvico

    obrigatrio (art. 117., 1 e 2). O primeiro perodo tem a durao de trs meses e destina-se aum aprofundamento de natureza essencialmente prtica dos estudos ministrados nauniversidade e ao relacionamento com as matrias directamente ligadas prtica daadvocacia (art. 117., 2 e 3). O segundo tem a durao de nove meses e destina-se apreenso da vivncia da advocacia, dos tribunais e de outros servios relacionados com aaplicao da justia, permitindo o exerccio efectivo dos conhecimentos adquiridos (art. 117., 2e 4). O ltimo de um ano e consiste na prestao obrigatria de servio cvico numainstituio apropriada, na qual o estagirio, mediante salrio pago pelo Estado, prestaassistncia jurdica gratuita a pessoas economicamente mais desfavorecidas (art. 117., 2 e 5).Depois do estgio, os advogados devem igualmente prestar patrocnio e assistncia jurdicaaos cidados carenciados, sempre que nomeados pelo servio de assistncia judiciria oupelo juiz (art. 61.). Quando nomeados, os advogados no podem recusar, sem motivo

    justificado, o patrocnio oficioso (art. 58.). Ora, este regime legal no tem, por ora, traduoprtica, sendo quase inexistente a participao de advogados no exerccio de patrocniojurdico gratuito, bem como o Estado tambm no organizou o referido servio cvico pago aosadvogados estagirios.

    19. O IPAJ foi criado em 1995 e uma instituio do Estado, subordinada ao Ministrio daJustia, que visa garantir a concretizao do direito de defesa, proporcionando ao cidadoeconomicamente desprotegido, o patrocnio judicirio e a assistncia jurdica de que carecer(art. 1. do Decreto n. 54/95, de 13 de Dezembro). Os servios de patrocnio e assistncia

    judiciria prestados pelo IPAJ so gratuitos, devendo o Estado assegurar a remunerao dostcnicos e assistentes jurdicos (arts. 8. e 11.). Os cidados provam a sua situao decarncia geralmente atravs de documento emitido pela administrao do bairro onde

    residem.

    So atribuies do IPAJ, nomeadamente, coordenar o exerccio da assistncia e patrocnio judicirio, coordenar o servio pblico prestado pelos advogados estagirios, zelar pelocumprimento das regras de deontologia dos seus membros e exercer poder disciplinar eparticipar na divulgao das leis.

    De acordo com Estatuto Orgnico do IPAJ, so assistentes jurdicos aqueles que tenham sidohabilitados como tal em cursos reconhecidos pelo Ministrio da Justia e so tcnicos jurdicosaqueles que tenham frequentado o curso universitrio de Direito e sido aprovados em cursosrealizados pelo IPAJ. Desta distino deriva tambm uma diferena quanto ao tipo deprocessos em que cada um pode intervir. Contudo, ambos podem intervir nos processos em

    que seja obrigatria a constituio de advogado, desde que na respectiva rea territorial noexistam advogados suficientes.

    So membros do IPAJ os tcnicos e assistentes jurdicos nele inscritos que exeram aactividade em obedincia a escalas de servio estabelecidas na lei, encontrando-se ao abrigodo poder disciplinar exercido pela direco do IPAJ. Deste modo, o Instituto representa para ostcnicos e assistentes jurdicos as mesmas funes de controlo profissional que a Ordemexerce em relao aos advogados. Os membros do IPAJ esto sujeitos a uma escala deservios que dever ser feita pela direco, devendo ser distribudos por trs tipos deactividades: atendimento e consulta jurdica; patrocnio e assistncia jurdica junto dostribunais; e assistncia jurdica junto das polcias.

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    Ora, a lei do IPAJ o exemplo perfeito de um texto legal que tem pouca correspondncia coma realidade, dado que o estudo que realizmos constatou que este Instituto no assume assuas competncias.

    20. At 20 de Maio de 2005, estavam inscritos na Ordem dos Advogados 246 advogados, dosquais 226 tinham escritrio na cidade de Maputo, 9 na Beira, 6 em Nampula, 2 em Tete, 1 emChimoio, 1 na Matola e 1 em Quelimane6. Em relao aos membros do IPAJ, os dados de quedispomos mostram que a maioria no tem qualquer vnculo com o Estado, funcionando comoadvogados privados. De acordo com o Relatrio Preliminar sobre a rea da Defesa,Assistncia e Educao Jurdica do Cidado (2000:15), o IPAJ tem, aproximadamente, 360membros inscritos, dos quais 232 so tcnicos jurdicos e 128 assistentes jurdicos. Estesnmeros devem, no entanto, ser olhados com alguma reserva, uma vez que o IPAJ no possuimecanismos que permitam uma actualizao dos ficheiros. De resto, dos seus membros,apenas dez assistentes tm a sua situao contratual regularizada, segundo o mesmodocumento (2000:15). Os restantes acabaram por criar os seus prprios clientes privados, o

    que conduz a que se privilegiem clientes e servios que permitam uma maior remunerao.Este facto leva a questionar se, na prtica, o IPAJ tem condies para prestar servios aopblico alvo para o qual foi criado, ou seja, aos cidados mais desfavorecidos. Com efeito, acobertura do territrio por qualquer das alternativas (advogados, tcnicos e assistentes

    jurdicos) muito restrita, e o seu custo conduz a que a maioria dos mobilizadores do tribunalestejam, de facto, impedidos de recorrer a qualquer servio profissional especializado para adefesa dos seus direitos, na fase pr-judicial ou judicial.

    Segundo o referido Relatrio, trs grandes problemas podem ser identificados: a ineficincia dadireco do IPAJ, a falta de prioridade poltica, e a falta de verba oramental. Com efeito, afalta de prioridade poltica por parte do Ministrio da Justia tem tido como consequncia ainsuficiente verba oramental atribuda ao IPAJ, a qual, aliada ao facto de se registar uma

    elevada rotatividade da direco da instituio, conduz a uma ineficincia ao nvel da gestocorrente, fomentando a ausncia de regras e de procedimentos.

    21. Refira-se ainda que, de acordo com o Relatrio que vimos a citar, no existe umaarticulao entre o IPAJ e as associaes de promoo e defesa dos direitos humanos. importante referir este aspecto, na medida em que, como referiremos infra, a estasorganizaes que os cidados mais frequentemente recorrem para defender os seus direitos.

    No referido Relatrio defendida a necessidade de mobilizao de mais recursos econmicose tambm considerado imprescindvel o envolvimento dos advogados, podendo recair a suaactividade no s na superviso do trabalho de advogados estagirios, mas tambm naformao de assistentes jurdicos. igualmente recomendada a possibilidade de os advogados

    serem membros do IPAJ, de modo a aumentar a qualidade dos servios prestados, bem comoo estreitamento de relaes com as ONGs que se ocupam da defesa e promoo dos direitosdos cidados.

    No mesmo sentido convergem as concluses sobre o IPAJ a que se chegou no relatrio deinvestigao do CFJJ/CES, 2004.

    22. Em decorrncia do que acima ficou dito, pode concluir-se que o acesso justia e ao direitoem Moambique muito selectivo, estando longe de concretizado o objectivo constitucional degarantir o exerccio deste direito na sua plenitude. Os recursos institucionais (humanos,

    6 Ver Relao dos Advogados, Ordem dos Advogados de Moambique, Maputo, 2005.

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    materiais, financeiros e organizacionais) disposio do Estado so insuficientes pararesponder satisfatoriamente s necessidades crescentes dos cidado.

    Nos ltimos anos, particularmente desde o incio da dcada de noventa, algumas organizaesda sociedade civil tm assumido uma importncia crescente para o acesso justia e aodireito, procurando compensar as dificuldades enfrentadas pelo Estado. Trata-se deorganizaes que prestam variado tipo de apoio aos cidados, nomeadamente, assistncia epatrocnio judicirio, informao e aconselhamento jurdico e resoluo de conflitos. O seucampo de interveno diversificado. Umas so de mbito geral e outras especializaram-seem determinados direitos ou grupos de cidados mais vulnerveis, ou em reas especialmenteproblemticas ou desacompanhadas, como so os casos dos direitos humanos, direitoshumanos das mulheres e do acesso terra e outros recursos naturais.

    A sua implantao territorial igualmente diferenciada, sendo que algumas delas, como ocaso da Liga Moambicana dos Direitos Humanos (LDH), tm representaes em todas as

    capitais provinciais e nalguns distritos. O funcionamento da maior parte das organizaesdepende de apoio de governos (ou organizaes) de pases estrangeiros, que garantem o seufinanciamento e, nalguns casos, prestam assistncia tcnica.

    As organizaes funcionam com um conjunto de advogados e de paralegais. Os primeirospraticam todos os actos que, por lei, esto reservados aos advogados. Por seu turno, aosparalegaiscabe o cumprimento de funes acessrias (garantir a notificao das partes, comou sem apoio de outras estruturas; controlar o desenrolar dos processos nos tribunais;organizar a agenda dos advogados; preparar documentos necessrios para a instruo dosprocessos; estabelecer contactos com instituies pblicas e privadas) e de resoluoextrajudicial de conflitos. O facto de os paralegais no poderem intervir em tribunal limita odesempenho das organizaes, que no dispem de advogados em nmero suficiente para

    satisfazer a procura. Por isso, e ao abrigo de protocolos de cooperao assinados entre asduas instituies, j se realizou uma aco de formao conjunta de paralegaisda LDH e deassistentes jurdicos do IPAJ, tendo aqueles sido credenciados pelo IPAJ como assistentes

    jurdicos. Tratou-se, contudo, de uma aco isolada, a que no foi dada a necessriasequncia.Dada a incapacidade de resposta do IPAJ e as dificuldades de contratao de advogados, aprocura dos servios das ONGs elevada. Por exemplo, no ano 2003, a LDH, em Maputo,recebeu mais de 1000 casos de diversa natureza (laborais, cveis, criminais)7.

    23. As Faculdades de Direito da Universidade Eduardo Mondlane e de algumas Universidadesprivadas tambm criaram ncleos de atendimento, nos quais prestam apoio jurdico aoscidados. Este inclui a informao, assistncia e patrocnio judicirio. Entre as ONGs e as

    faculdades de direito estabelecem-se formas de articulao que pressupem a remessarecproca de casos em funo da sua complexidade, especificidade ou do volume de processosentrados.

    As ONGs e os centros de atendimento das faculdades de direito funcionam, em regra, deacordo com a investigao CFJJ/CES (2004), de forma desburocratizada, fsica e culturalmenteprximas das comunidades, com custos bastante reduzidos ou mesmo sem quaisquer custos- para os cidados, apresentando-se como uma alternativa de acesso justia e ao direito.

    24. O acesso justia um dos principais objectivos preconizados pelo Plano EstratgicoIntegrado do Sector da Justia 2002-2006 (PEI), ao mesmo nvel da formao, da reforma

    7 Sobre este ponto, cfr. Santos e Trindade et al, 2003; em especial os captulos 15, 16 e 18

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    legal, do investimento em infra-estruturas e equipamentos, do controlo da legalidade, entreoutros. Reconhecendo a importncia do papel das ONGs para o acesso justia, o PEI apontapara a necessidade de se promover a articulao entre elas e o Estado, nos seguintes termos:

    A garantia de acesso justia um desafio que se impe ao nosso Estado. Porm, para queela se efective, necessrio a extenso da rede judiciria por todo o pas, a adopo demecanismos cleres de resoluo de conflitos, a aprovao de legislao que propicieceleridade e simplificao de procedimentos, o conhecimento das leis pelos cidados einstituies e a existncia de um servio abrangente de patrocnio e de assistncia judiciria[...] ainda de realar a particular importncia do envolvimentos dos diferentes rgos doEstado moambicano, da sociedade civil e de todas as foras vivas que tm prestado, de formaactiva e desinteressada, a sua rica e imprescindvel contribuio para a promoo da paz, daharmonia e do bem-estar social.

    Captulo IV

    A reviso constitucional de 2004: o imperativo da construode um novo sistema de justia

    25. A reviso constitucional de 2004 veio consagrar diversas alteraes no ordenamentojurdico-constitucional, com as quais a Lei de Bases da Organizao Judiciria, que agora seprope, deve conformar-se. Para alm do reconhecimento, j referido, do pluralismo jurdico(artigo 4), a Constituio enfatiza, no seu artigo 11, alnea g), a promoo de uma sociedadede pluralismo, tolerncia e cultura de paz, e proclama, no artigo 118, que o Estadoreconhece e valoriza a autoridade tradicional legitimada pelas populaes e segundo o direitoconsuetudinrio (n. 1) e define o relacionamento da autoridade tradicional com as demaisinstituies e enquadra a sua participao na vida econmica, social e cultural do pas, nostermos da lei (n. 2). Consequentemente, a actividade destas autoridades na resoluo de

    litgios no deve ser proibida, antes pelo contrrio, deve ser encorajada, sempre que forconsentida pelas partes e as suas decises no violarem os princpios e as normasconstitucionais.

    26. A Constituio, para alm de consagrar que os preceitos constitucionais relativos aosdireitos fundamentais so interpretados e integrados de harmonia com a Declarao Universaldos Direitos do Homem e a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (art. 43.),tambm constitucionaliza o direito de aco popular (art. 81), bem como reconhece o papelque as organizaes sociais, como formas de associao com afinidades e interesses prprios,desempenham na promoo da democracia e na participao dos cidados na vida pblica.Assim, a Constituio reconhece que as organizaes sociais contribuem para a realizao dosdireitos e liberdades dos cidados, bem como para a elevao da conscincia individual e

    colectiva no cumprimento dos deveres cvicos (art. 78.), pelo que se torna imperativo, queestas organizaes possam actuar na promoo e defesa dos direitos dos cidados edesignadamente tenham um papel activo no novo sistema de acesso justia e ao direito, aonvel da informao, da consulta e do patrocnio jurdico. A Constituio reconhece, ainda,como j consensual nas sociedades contemporneas, que os tribunais judiciais h muitodeixaram de ter o monoplio da administrao da justia, prevendo, expressamente apossibilidade de serem criados mais tribunais comunitrios.

    27. A nova Constitu io tambm consagra o princ pio da igualdade de gnero,estabelecendo queo homem e a mulher so iguais perante a lei em todos os domniosda vida pol tica, econmica, social e cultural (art. 36.), e determinando, relativamentes mulheres, queo Estado promove, apoia e valoriza o desenvolvimento da mulher e

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    incentiva o seu papel crescente na sociedade, em todas as esferas da actividade poltica,econmica, social e cultural do pas (art. 122., 1).

    No concernente s lnguas nacionais, a Constituio consagra o seu reconhecimento,estabelecendo queo Estado valoriza as l nguas nacionais como patrimnio cultural eeducacional e promove o seu desenvolvimento e utilizao crescente como lnguas

    veiculares da nossa identidade (art. 9.).

    28. Ao nvel da organizao e gesto dos tribunais judiciais, a Constituio prev umConselho Superior da Magis tratura Judic ial, um Conselho Superior da Magistratura do

    Ministrio Pbli co e um Conselho Superior da Magistratura Judicial Administ rativa, esteltimo na sequncia da criao de uma estrutura hierrquica prpria dos tribunais

    administrativos, aduaneiros e fiscais, com o Supremo Tribunal Administrativo no seutopo. Assim, de harmonia com o art. 225, o Tribunal Supremo deixa de ser o nico

    tribunal superior e passa a ocupar apenas o topo da hierarquia dos tribunais judiciais,

    prevendo-se ainda a possibil idade de criar uma instncia intermdia de recurso entre oTribunal Supremo e os tr ibunais prov inciais (art. 223, n. 3).

    A Constituio consagra, ainda, a interveno obr igatria dos juzes eleitos nos casosprevistos na lei processual ou quando for determinada pelo juiz da causa, promovida

    pelo Ministrio Pblico ou requerida pelas partes (art. 216., 3), devendo a lei estabeleceras formas de eleio dos juzes mencionados no presente artigo e fixar a durao do

    respectivo perodo de exerccio de funes (art. 216, 4).

    Por ltimo, refira-se que a nova organizao terri torial de Moambique compreende,como escales, as provncias, distritos, postos administrativos, localidades e povoaes

    e, nas zonas urbanas, cidades e vilas, o que necessariamente implicar, ao nvel do

    sistema de administrao da justia, uma redefinio do mapa judicial.

    Captulo VBreves notas de direito e experincia comparada sobre dois temas inovadores da reforma: a

    justia comunitria e a criao de um sistema de acesso justia e ao direito

    V.1 A experincia comparada na rea da justia comunitria

    29. A relao entre a justia comunitria e os tribunais judiciais e a criao de umsistema de acesso justia ao direito so dois temas centrais da reforma que aqui seprope, consagrados no Anteprojecto de Lei de Bases do Sistema de Administrao da

    Justia. Para melhor os compreender, adiantam-se a seguir, e a ttulo ilustrativo, algunsexemplos da experincia comparada de pases de raiz cultural e desenvolvimentodiferenciado.

    Os exemplos recolhidos da experincia comparada permitem-nos afirmar que h umatendncia para se reconhecer que os tribunais judiciais no tm o monoplio da justia,bem como para valorizar as formas de justia de natureza comunitria e a necessidadeda sua articulao com os tribunais judiciais.

    O reconhecimento da pluralidade de instncias de resoluo de litgios e da necessidadede uma articulao entre o judicial e o no judicial diferenciado, consoante o regimelegal dominante em cada Estado seja de raiz anglo-saxnica ou europeia continental. Em

    frica, nos pases que herdaram o sistema doindirect rule, predomina o reconhecimento

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    das autoridades tradicionais como instncias de resoluo de litgios, enquanto nospases cujo sistema jurdico se inscreve na grande famlia romano-germnica (de matrizeuropeia-continental) apela-se instituc ionalizao das justias comunitrias e criao

    de outros meios no judiciais de resoluo de conflitos.

    30. A definio do papel a dar s diversas formas de justia da comunidade est tambmpresente em todos os debates sobre a reforma do sistema de justia em frica. A Constituioem vigor na Repblica da frica do Sul reconhece a instituio, o estatuto e o papel daautoridade tradicional, exercidos de acordo com o direito costumeiro e desde que no acontrariem (art. 211, n. 1). Os tribunais devem fazer uso do direito costumeiro, nos casos emque este for aplicvel, desde que no violem a Constituio ou a legislao ordinria (art. 211,n. 3). Em 2003 foi aprovada a Traditional Leadership and Governance Framework Bill, queregula o direito costumeiro (de acordo com o estabelecido no art. 211, n. 3 da Constituio),lei esta que prev o funcionamento das autoridades tradicionais como instituies locais, disposio das comunidades. No seguimento desta deciso tm vindo a ser criadas houses of

    traditional leaders e foi institudo o Conselho das Autoridades Tradicionais (nos termos doCouncil of Traditional Leaders Billde 1996 e da Council of Traditional Leaders Actde 1997), demodo a garantir o funcionamento do sistema de direito costumeiro, conforme consagrado naactual Constituio (art. 212, n. 2 alneas a) e b)).

    31. O projecto da nova Constituio do Kenya, que se encontra em debate, reconhece oconjunto das civilizaes, das pessoas e comunidades baseadas nos valores e princpiosconstitucionais no escritos, nas tradies, nas lutas do presente e nas aspiraes futuras.Estabelece, ainda, a proteco dos valores culturais e o reconhecimento da cultura como abase do orgulho nacional e da identidade. O funcionamento dos rgos dos Estado devepautar-se, assim, pelos princpios da promoo do multiculturalismo, cooperao,compreenso, tolerncia e respeito pelos diferentes costumes, tradies, crenas, lnguas,

    prticas religiosas, sabedorias e filosofias que afirmem o desenvolvimento e respeito pelapreservao da dignidade e do bem-estar do povo.

    32. No debate, em curso no Uganda, o Governo defende que os Local Council Courts(LCC)assumam um papel muito importante na administrao da justia. Estes LCC (que noestavam dependentes do sistema judicirio formal) foram criados a partir dos ResistanceCommittee Courts, tendo sido implantados em regies onde a justia formal no estavapresente. Os LCC conhecem de delitos de pequena gravidade (de foro cvel e criminal),privilegiando na sua actuao a reconciliao, a compensao e o perdo. Hoje, estestribunais encontram-se incorporados na base do sistema judicirio, sendo possvel recorrer dasua deciso para um tribunal judicial (magistrates court). Os Ministrios da AdministraoLocal e da Justia supervisionam conjuntamente a actuao dos LCC, pois estes, para alm

    das questes jurdicas, intervm tambm na administrao local.No entanto, pode ler-se num relatrio do Ministrio da Administrao Local8 que aquelestribunais enfrentam um conjunto de dificuldades e de obstculos que precisam de serresolvidos, como, por exemplo: os LCC tm, geralmente, um fraco conhecimento do direitoformal vigente; os membros do tribunal no tm acesso a materiais de referncia essenciais;com frequncia, no conhecem os direitos das crianas; as decises do LCCso muitas vezesenviesadas em desfavor das mulheres; a documentao sobre os procedimentos do tribunal

    8 Ministry of Local Government of the Republic of Uganda (2003), Local Councils Administration of Justice. Guidesfor Local Council Courts, disponvel em http://www.molg.go.ug/docs/Local CourtsGuide.pdf;

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    escassa (afectando, nomeadamente, a questo dos recursos); os LCC esto ainda a lidar comcasos que ultrapassam os limites da sua jurisdio, como por exemplo, violaes.

    Foi, portanto, com vista a promover um melhor funcionamento destas estruturas e,consequentemente, da administrao da justia, que a constituio dos LCC foi formalmenteconsagrada em forma de lei (Bill n. 23, de 2003). No mesmo sentido, elaborou-se um guia quedever ser traduzido nas principais lnguas do pas e distribudo pelos LCC, onde apresentado um conjunto de informaes e orientaes dirigidas a estas estruturas, com oobjectivo de promover um funcionamento mais justo e democrtico por parte das mesmas.

    33. Na Nambia, os tribunais comunitrios resultam de uma reformulao dos antigos tribunaistradicionais. De acordo com a Community Courts Act (Lei n. 10, de 2003), as autoridadestradicionais podem requerer ao Ministro responsvel pela rea da justia a criao de tribunaiscomunitrios. A jurisdio dos tribunais comunitrios circunscreve-se rea territorial de cadacomunidade tradicional. No constituem uma jurisdio obrigatria, dependendo a sua

    interveno do acordo das partes. Tm competncia para decidir sobre todas as questesrelacionadas com pedidos de compensao e de restituio de bens, desde que tutelada pelodireito costumeiro. Das decises dos tribunais comunitrios pode haver recurso para aestrutura formal dos tribunais, concretamente para os magistrates courts, desde que orecorrente tenha esgotado todas as possibilidades de recurso existentes na estrutura dotribunal comunitrio. Para a deciso do recurso o juiz presidente do magistrates court podenomear dois assessores, que conheam o direito e as normas aplicadas e o funcionamento dostribunais comunitrios.

    34. Em Cabo Verde encontramos outros exemplos de convivncia entre os tribunais judiciais eas instncias comunitrias de resoluo de conflitos, aqueles no detendo o monoplio daresoluo dos litgios. Realamos a existncia de estruturas tradicionais (Regedores ou

    Cabos-chefe) no perodo colonial e, aps a independncia, a implantao dos tribunais dezona, constitudos por juizes leigos. reconhecido que os tribunais de zona, enquanto formade participao popular na administrao da justia, foram extremamente importantes paraaproximar mais a justia das populaes.

    Em 1991, as eleies legislativas introduziram a democracia representativa no pas. Nestanova fase, o direito estatal passou a ser o nico direito reconhecido, com a consequenteextino dos tribunais de zona. Actualmente, reclama-se em Cabo Verde a necessidade deresgatar as experincias locais de modo a (re)introduzir formas no judiciais de resoluo deconflitos, capazes de responder crescente procura de tutela judiciria e de se traduzir emimportantes instrumentos de acesso justia. Assim, discute-se o lugar dos tribunais de zona ea reintroduo de uma justia comunitria, sendo que as opinies divergem entre os que

    defendem um modelo mais prximo daqueles tribunais e outros que defendem a criao detribunais de pequenas causas cveis e criminais.

    Jorge Fonseca9 da opinio que se devem criar, a ttulo experimental, em comarcas de maiormovimento processual, tribunais de pequenas causas cveis. O funcionamento destes tribunaisseria marcado por princpios de simplicidade de procedimentos, informalidade, oralidade eprocura de uma justa composio dos litgios por acordo das partes. Teriam competncia paraapreciar e decidir causas de valor no excedente aos da alada dos tribunais de 1. instncia,com incidncia, entre outras a definir por lei, em aces destinadas a efectivar o cumprimentode obrigaes que tenham por objecto prestaes pecunirias, aces relativas a

    9 Fonseca, Jorge Carlos de Almeida (coord.) (2002); Estudo sobre o estado da Justia em Cabo verde; Gabinete doMinistro da Justia, Governo de Cabo Verde; Praia.

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    incumprimento contratual, ao arrendamento urbano, administrao e uso da propriedade, dasuperfcie, do usufruto e de uso, de habitao, aces possessrias, de usucapio e acesso,de indemnizao por prtica de certos crimes de pequena gravidade, designadamente contra a

    propriedade e a honra, desde que no tenha havido participao criminal ou tenha havidodesistncia. Funcionariam com juzes licenciados ou bacharis em direito ou togados ou comjuzes leigos de idoneidade comprovada. As decises no dependeriam de critrios de estritalegalidade, podendo os juzes decidir segundo a equidade, desde que obtido o acordo daspartes.

    35. Para concluir esta breve resenha de dados de experincia comparado sobre oreconhecimento de instituies no judiciais, uma breve referncia a duas experincia daAmrica Latina. A Constituio da Colmbia consagra que as Autoridades dos povosindgenas podem exercer funes jurisdicionais dentro do seu mbito territorial, e emconformidade com as suas prprias normas e procedimentos, sempre que no sejamcontrrios Constituio e s leis da Repblica. A lei estabelecer as formas de coordenao

    desta jurisdio especial com o sistema jurdico nacional (art. 246.).

    Assim, no seguimento da Constituio de 1991, a Lei n. 270, de 1996, Estatutaria de laAdministracin de Justicia, incorpora os juzes de paz e a jurisdio das comunidadesindgenas na estrutura geral da Administrao da Justia, como parte da organizao judiciria.

    36. No Brasil, criou-se os Juizados Especiais de Pequenas Causas, atravs da Lei n. 7.244,de 7 de Novembro de 1998, que foram precedidos pelos Juizados Informais de Conciliao emdiversas cidades do Estado de So Paulo. O xito da iniciativa fica claramente demonstradopelo nmero de juizados criados e instalados (em 1999): 759 Juizados em todo o Brasil, ondedesempenham funes 1.170 juzes (Faisting, 1999: 45).10

    A designao de Juizados de Pequenas Causas foi alterada atravs da Lei n. 9.099, de 26 deSetembro de 1995, devido ao facto de a Constituio Brasileira se referir a causas cveis demenor complexidade e no a causas de menor valor econmico, propondo que sedesignassem antes de Juizado de Causas Cveis de Menor Complexidade e de JuizadoCriminal de Infraces de Menor Potencial Ofensivo. Esta lei criou ento os Juizados EspeciaisCveis e Criminais que so rgo da Justia Ordinria a criar pela Unio, no Distrito Federale nos Territrios, e pelos Estados, para conciliao, processo, julgamento e execuo, nascausas da sua competncia. Embora partisse dos mesmos fundamentos da lei anterior, veioacrescentar algumas novidades, nomeadamente o alargamento do valor das aces para 40salrios mnimos, a obrigatoriedade da presena de advogado nas causas entre 20 e 40salrios mnimos, o alargamento das suas competncias rea criminal e a obrigatoriedade da

    existncia destes rgos nos Estados. Conforme referido por Grinover, esta lei produziu umaverdadeira revoluo no sistema processual penal brasileiro ao no se limitar a importarsolues de outros sistemas jurdicos, mas instituindo um sistema prprio de justia penalconsensual11.

    10 Faisting, Andr Luiz, (1999), O dilema da dupla institucionalizao do poder judicirio: o caso do juizado especialde pequenas causas, in Sadek, M.T. (org.); O sistema de justia. So Paulo, Editora Sumar.11 Grinover, Ada Pellegrini et. al(1996); Juizados Especiais CriminaisComentrios Lei9.099 de 26.09.95; SoPaulo, Editora Revista dos Tribunais.

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    De acordo com a lei, os juizados devem pautar a sua actuao pela oralidade, simplicidade,informalidade, economia processual e celeridade, tentando, sempre que possvel, a conciliaoou a transaco.

    Os servios de cartrio podem ser prestados e as audincias realizadas fora da sede daComarca, em bairros ou em cidades pertencentes Comarca, ocupando prdios

    pbl icos. A descentralizao da justia nos bair ros, com a criao de tribunais especiaispara o julgamento de causas de diminuta complexidade e com servios de assistncia

    judiciria, impl ica que os juizados sejam plos de informao de direitos, pondo cobro desinformao jurdica e facili tando o acesso de classes menos favorecidas justia.

    O objectivo dos Juizados Especiais a aproximao da justia aos cidados. Para o efeito,alguns dos Juizados funcionam em centros comerciais e at em autocarros: os Juizados

    Itinerantes, nos quais funciona uma sala de audincias e duas salas de conciliao.

    O legislador brasileiro incentivou a participao popular nos juizados especiais, quer na funode conciliao, quer na de juiz leigo, com competncia para dirigir a instruo e julgamento,sob a superviso do juiz togado (magistrado judicial), e para proferir deciso, posteriormentehomologada pelo juiz togado. Os juzes leigos podem, ainda, actuar como rbitros com poderesidnticos aos do juiz togado, podendo decidir por equidade. Os conciliadores so recrutadosentre as pessoas da comunidade, com preferncia para os bacharis em direito.

    37. Tambm em Portugal, o artigo 202, n. 4, da Constituio da Repblica Portuguesadetermina que a lei poder institucionalizar instrumentos e formas de composio no

    jurisdicional de conflitos, sendo de salientar a criao, nos ltimos anos, das Comisses de

    Proteco de Crianas e Jovens, dos Centros de arbitragem institucional (por exemplo, centrosde arbitragem de conflitos de consumo, de conflitos desportivos, etc.) e dos Julgados de Paz.

    V.2 A experincia comparada na rea do acesso justia e ao direito

    38. Os estudos realizados pela sociologia judiciria revelam que os obstculos aoacesso efectivo justia por parte das classes populares so de trs tipos: econmicos,sociais e culturais. Os custos econmicos compreendem, nomeadamente, os preparos eas custas judiciais, os honorrios dos advogados e de outros profissionais (porexemplo, os peritos), gastos com transporte e outros, enfim, uma srie de custos deoportunidade com valor econmico, para alm dos custos resultantes da morosidade.

    Todos estes custos tornam a justia dispendiosa e proporcionalmente mais cara para asaces de pequeno valor, por alguns deles serem rgidos, o que vitimiza, mais uma vez,as classes populares, dado que precisamente neste tipo de aces que tendem aintervir.

    O acesso justia e ao direito um direito humano consagrado nas principais cartasinternacionais dos direitos humanos, nomeadamente na Declarao Universal dosDireitos do Homem, proclamada em 1948 pela Organizao das Naes Unidas, e naCarta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, aprovada pela Conferncia Ministerialda Organizao da Unidade Africana (OUA) em Banjul, Gmbia, em Janeiro de 1981, eadoptada pela XVIII Assembleia dos Chefes de Estado e Governo da Organizao daUnidade Africana (OUA) em Nairobi, Kenya, em 27 de Julho de 1981.

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    Por outro lado, a anlise da evoluo do modelo africano em especial, o da frica doSul e do modelo europeu especialmente o da Frana , permite-nos afirmar que, nombito do acesso justia e ao direito, se caminha para um modelo pblico garantido

    pelo Estado e estruturado em parcerias entre o Estado e as organizaes da sociedadeque promovem os direitos individuais e colectivos e prestam servios de informao,consulta e patrocnio jur dico, a quem deles necessita.

    39. Em Julho de 2000 foi realizada, no International Conference Centre Arusha (Tanznia),uma conferncia intitulada Citizens and Constitutionalism in East Africa. Um dos sub-temasento discutidos, sob coordenao do professor Issa Shivji, foi a questo do acesso justia eao direito. Essa discusso resultou no levantamento de um conjunto de problemas presentesna regio oriental de frica. Entre os factores de bloqueio ao acesso referidos, encontramos apresena de sistemas judiciais ineficientes, caracterizados pela formalidade e a utilizao delinguagem e procedimentos no familiares aos cidados; a privatizao da natureza dossistemas de justia e a inexistncia de estruturas de acesso justia e ao direito, em particular

    nas zonas rurais. Da discusso resultaram, ainda, algumas recomendaes, como a promoode estruturas de paralegais; o encorajamento de mtodos de resoluo alternativa de conflitos;o estabelecimento de esquemas governamentais de acesso justia e ao direito (funo queno deve ser delegada apenas s ONGs); a simplificao da lei e dos procedimentos dostribunais e a introduo de tribunais de famlia com procedimentos mais simples.

    40. A Constituio sul-africana (aprovada atravs do Act108, de 1996) estabelece a igualdadeperante a lei (seco 9); o direito a um julgamento justo (seco 34), o direito de livre escolha ede consulta com o advogado (seco 35 (2) (b)), bem como o direito de representao poradvogado contratado e pago pelo Estado, quando, de outra forma, resultasse numa injustiasubstancial.

    Em 1998, um Frum Nacional de Apoio Jurdico (National Legal Aid Forum) reuniu, tendoconcludo que o sistema Judicare (modelo convencionado entre o Estado e osadvogados, para que estes prestem servios jurdicos a quem seja consideradonecessitado),que vigorara durante trinta anos, teria que ser substitudo por um modelode Centros de Justi a (justice centre model).A mudana do modelo de Judicarepara osCentros de Justia constitui uma estratgia que tem como objectivo ltimo providenciarum sistema integrado de prestao de servios jurdicos. Em Maro de 2003 tinham sidocriados quarenta e quatro Centros de Justia, que visavam proporcionar aos candidatosa apoio jur dico, sem que aqueles tivessem que se deslocar a vrios locais, advogadosassalariados (legal practitioners) dedicados inteiramente prestao de servios acidados carenciados. Embora esta meta no tenha ainda sido integralmente alcanada,a abordagem dos Centros de Justia inovadora em vrios aspectos: os centros

    empregam advogados/paralegais assalariados que se dedicam unicamente a servir oscidados carenciados, sendo que, na prtica, o servio fornece consulta e representaojurdica; os centros tm que de dar prioridade aos litgios dos mais desfavorecidos, ouseja, defesa criminal e aos direitos das mulheres, crianas e sem abrigo/pessoas semterra (landless people); devem oferecer um vasto leque de servios, desde apoioadministrativo , a consultas e aconselhamento, at representao em Tribunal.

    O South African Legal Board opera num ambiente diferente daquele que existe nosdenominados pases desenvolvidos. Os processos de tomada de deciso so pressionados porum conjunto de factores, como o HIV/SIDA, a pobreza, o desemprego, o falta de acesso segurana social, a herana do apartheid, uma elevada taxa criminal, o elevado nmero de

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    pessoas que comparecem no tribunal sem qualquer forma de defesa e outras prioridadesnacionais a reclamarem financiamento do Governo.12

    41. A partir do Conselho Europeu de Tampere (Outubro de 1999), o acesso justia e aodireito aparece, finalmente, autonomizado na Unio Europeia, como uma medida prioritria,estabelecendo-se, inclusivamente, um padro mnimo de apoio judicirio para que os cidadostenham direito a um julgamento justo dentro do espao comum europeu. O Livro Verde daComisso Europeia sobre a assistncia judiciria civil (2000) prope, entre outras medidas, aprestao de conselhos jurdicos gratuitos ou a baixo custo; a representao em tribunal porum advogado; a iseno parcial ou total de outras despesas, designadamente de custas

    judiciais, que deveriam, normalmente, ser exigidas; e a ajuda financeira directa para compensarquaisquer despesas relacionadas com o litgio, como honorrios de advogados, custas

    judiciais, e as despesas da parte vencida para suportar as despesas da parte vencedora.

    42. A Frana, dentro dos pases analisados, apresenta o modelo mais complexo e mais

    completo13

    . A nova lei de 1998 de acesso justia e ao direito vem aprofundar o caminhoseguido pela lei de 1991, nomeadamente na considerao de uma viso p lural do acesso justia e ao direito e de um sistema integrado de resoluo de litgios de que ostribunais so uma parte do todo. Emergem, assim, duas novas concepes de acesso

    justia e ao direito, a de informao jurdica at como forma de preveno do recursoaos tribunais e a da assistncia jurdica, que funciona como um meio extrajudicial deresoluo de conflitos. As inovaes desta lei vo, ainda, no sentido de aumentar oapoio jurisdicional nas transaces pr-contenciosas e na mediao penal, naconcretizao das Casas de Justia e de Direito e na substituio das formas deassistncia judiciria em favor de sistemas de prestao de informao jurdica.Pretende-se passar de um modelo de apoio judic irio para o de apoio jur dico, de modo aevitar ou a diminuir o recurso aos tribunais.

    As estruturas deste modelo de acesso, para alm dos rgos judiciais e das formas deresoluo extrajudicial de conflitos, asseguradas pela conciliao, arbitragem emediao, so os Conselhos Departamentais de Acesso ao Direito (CDAD), as Casas deJustia e de Direito (CJD) e os Pontos de Acesso ao Direito (PAD). A misso do CDAD definir uma poltica de acesso ao direito no Departamento Administrativo em que estinserido e de coordenar aces em matria de apoio ao acesso ao direito. As Casas deJustia e de Direito visam a preveno da delinquncia, o apoio s vtimas e acesso aodireito e a tomada de aces que ajudem a desenvolver os mecanismos alternativos deregulao de conflitos civis e penais. Os PAD so um local de acolhimento gratuito epermanente (cuja criao avalizada pelo CDAD), que prestam informao deproximidade sobre os direitos e deveres dos cidados com problemas jurdicos ou

    administrativos. Estas entidades podem funcionar junto dos tribunais, das Casas deJustia e de Direito ou das associaes, de modo a garantir uma proximidade efectivacom as reas geogrficas com maiores problemas scio-econmicos. O financiamentodestas estruturas essencialmente pblico (estatal ou local), embora se prevejam eestimulem as parcerias com entidades privadas, no s para a gesto e difuso, mas,igualmente, para o funcionamento.

    As associaes ligadas aos CDAD passaram, nos ltimos anos, a ter mais sucesso noseu papel de facilitadoras do acesso ao direito, apoiando os mais necessitados, quer na

    12 Hannie, van As (2004), Thought Paper: the development of a model for the supply of integrated legal aidservices in South Africa, disponvel em http ://www.ru.ac.za/research/pdfs/ van_as_thought_paper.pdf.13 Este modelo foi alvo de reformas intercalares em 1972, 1991 e 1998. Cfr. os documentos inseridos no sitedoMinistrio da Justia francs (http://www.justice.gouv.fr).

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    divulgao dos seus direitos, quer na defesa (de consumo, de ambiente, de habitao,de minorais tnicas, etc.). Estas associaes contribuem, assim, para uma verdadeirapoltica local de acesso ao direito.

    Captulo VIAs principais linhas da reforma do sistema de administrao da justia

    43. De harmonia com o imperativo constitucional, e tendo em considerao a anlise eas propostas dos titulares dos rgos do Poder Judicial, as orientaes do PlanoEstratgico Integrado do Sector da Justia, a investigao e os estudos efectuados, areflexo sobre a evoluo da organizao judiciria em Moambique e a anlise dealguns exemplos do direito e da experincia comparada, apresentamos de seguida asprincipais linhas da presente Lei de Bases da Organizao Judiciria. As inovaes que sepropem podem agrupar-se em cinco reas, a saber:

    a) o reconhecimento do pluralismo jurdico e a construo de um novo modelo deinstitucionalizao dos tribunais comunitrios;b) o estabelecimento de um novo modelo de organizao e de repartio decompetncias dos tribunais judiciais;c) a criao de um sis tema pblico de acesso just ia e ao direito, em articulaocom as instncias de justia no judiciais e em cooperao com associaes deprofissionais do di reito e de promoo e defesa dos direitos humanos;d) o reforo da capacidade de direco e de gesto dos tribunais judiciais; ee) a criao de um sistema de controlo do funcionamento, da qualidade dosistema de justia e da avaliao do desempenho dos tribunais.

    VI.1 O reconhecimento do pluralismo jurdico e a construo de um novo modelo deinstitucionalizao dos tribunais comunitrios

    44. O presente Anteprojecto de Lei de Bases inspira-se no princpio constitucional doreconhecimento dos vrios sistemas normativos e instncias de resoluo de conflitosque coexistem na sociedade moambicana, na medida em que no contrariem os valorese os princpios fundamentais da Constituio. A opo pelos tribunais comunitrioscomo tribunais de base do sistema de justia uma opo por uma soluo emergenteda sociedade moambicana, na qual conflui uma boa articulao entre as formas de

    justia da comunidade e os tribunais judiciais. Acresce que tambm uma soluo emque a pluralidade da sociedade se deve reflectir atravs da eleio democrtica dos

    juzes, aos nveis poltico, social, econmico e cultural e, ainda, na promoo daigualdade de gnero. Assim, o sistema de justia passa a ser concebido de um modo plural,integrando, nos termos desta lei, as instncias comunitrias de resoluo de litgios, ostribunais comunitrios e os tribunais judiciais.

    Relativamente s instncias comunitrias, a presente lei de bases no pretende interferirno seu funcionamento e apenas consagra um princpio de no proibio se a deciso foraceite consensualmente pelos interessados, salvo se violar os princpios, as normas eos valores fundamentais inscri tos na Constituio.

    Os tribunais comunitrios passam a ser instncias institucionalizadas no judiciais deresoluo de litgios, independentes, que julgam de acordo com o bom senso, a

    equidade, de modo informal, desprofissionalizado, com prevalncia da oralidade e

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    atendendo aos valores sociais e culturais existentes na sociedade moambicana, semviolar as normas constitucionais e no respeito pela presente lei.

    45. Os estudos realizados pelo CFJJ/CES tornaram claras, no s a importncia dos tribunaiscomunitrios enquanto instncias que favorecem o acesso justia e ao direito, por estarem,geogrfica e culturalmente, prximas dos cidados, como a necessidade de rapidamente lhesdirigir algumas orientaes, com vista a manterem condies para o seu funcionamentodemocrtico, preservando as suas caractersticas essenciais e potencialidades, como autilizao de lnguas nacionais, para alm do portugus, e o funcionamento simples e informal.

    De acordo com dados oficiais constantes do Relatrio do X Conselho Coordenador doMinistrio da Justia14, em 2004 foram inventariados no pas 1653 tribunais comunitrios dosquais 254 (cerca de 15%) instalados no perodo de 2000 a 2004 , com cerca de 8265 juzes15.Nos distritos estudados pela equipa do CFJJ/CES, verificmos uma procura significativa destasinstncias para resoluo, entre outros, de casos de famlia (em particular, conflitos entre

    casais constitudos segundo as normas tradicionais ou em unio de facto, bem como relativosao exerccio do poder paternal), pequenas disputas entre vizinhos, pequenas dvidas, conflitosque envolvem acusaes de feitiaria e disputas em torno da habitao. Embora os tribunaiscomunitrios respondam a esta procura, em regra, procurando, em primeiro lugar, reconciliaras partes, enfrentam um conjunto de dificuldades que tendem a colocar em causa a suaactividade ou a afectar o bom desempenho. A inexistncia de regulamentao da Lei n. 4/92,de 6 de Maio, traduziu-se na falta de apoio a estes tribunais, quer em termos materiais, querem termos de formao. Traduziu-se, ainda, numa difcil comunicao entre estes e ostribunais judiciais, dificultando, entre outras coisas, a possibilidade das partes procurarem outrasoluo para os problemas, no caso de considerarem injusta a deciso do tribunal comunitrio.

    Verificmos, nas diferentes zonas onde decorreu o trabalho de pesquisa, que grande parte dos

    tribunais comunitrios tm vindo a fechar ou funcionam com um nmero reduzido de juzes,alguns deles nomeados segundo critrios definidos localmente. Comprovmos a existncia dems instalaes, falta de material e falta de apoio dos tribunais judiciais quando solicitados. Os

    juzes dos tribunais comunitrios reclamam ainda por orientao e formao para desempenharo seu trabalho, na ausncia das quais buscam, com frequncia, as regras, que s vagamenteconhecem, dos tribunais judiciais.

    Esta situao conduz, na prtica, a que alguns tribunais comunitrios no cumpram a funoessencial para que foram criados ou seja, promover eficazmente o acesso justia e aodireito , dependendo o desempenho de cada tribunal comunitrio sobretudo do perfil dosrespectivos juzes e do contexto em que funciona. Foi nas situaes em que os tribunaiscomunitrios articulam com o judicirio que encontrmos as melhores prticas de respeito

    pelos direitos constitucionais. o caso de alguns dos tribunais comunitrios do distrito deAngoche.

    O presente projecto de Lei de Bases procura responder aos problemas encontrados,estimulando as potencialidades dos tribunais comunitrios, e procurando garantir o respeitopela Constituio. nesse sentido que a lei promove a articulao entre os tribunaiscomunitrios e os judiciais, facilita por um lado, a aproximao cultural dos tribunais judiciais populao, e por outro lado, a possibilidade de recorrer das decises dos tribunais comunitriospara os tribunais judiciais; estabelece um mtodo democrtico de eleio dos juzes, incluindoa garantia da representao das mulheres; delimita o tipo de casos que os juzes tero

    14 Ministrio da Justia (2004), Relatrio do X Conselho Coordenador. Tete, 13 a 15 de Julho de 2004.15 Em 2005, o nmero total de tribunais comunitrios ter descido para 1547, segundo informao contida noRelatrio ao XI Conselho Coordenador, Ministrio da Justia, Maputo, 24 a 26 de Agosto de 2005.

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    competncia para resolver, o conjunto de sanes que podem aplicar, as taxas que podemcobrar; estabelece os Conselhos Provinciais Coordenadores das Justias Comunitrias, rgosde gesto e disciplina; e prev a formao dos juzes pelo centro de Formao Jurdica e

    Judiciria.

    46. Assim, a presente Lei de Bases consagra um princpio de proximidade eacessibilidade da justia, de modo a que territorial, social e culturalmente se encontreprxima dos cidados. Consequentemente, como corolrio deste princpio, os tribunaiscomunitrios so consagrados como base do sistema de justia, deixando de ser jurisdiovoluntria e passando a ser jurisdio obrigatria.

    Os tribunais comunitrios, nos termos da legislao regulamentar, tero competncia numadada circunscrio territorial, que pode coincidir com os limites de um posto administrativo, deuma localidade, de um bairro ou de uma aldeia, ou de um agrupamento de postos, localidades,bairros ou aldeias contguas, podendo funcionar em qualquer lugar dessa circunscrio.

    Os tribunais comunitrios tm competncia para todos os conflitos, excepo daqueles emque estejam em causa princpios e normas constitucionais ou de contencioso administrativo oucujo valor da causa seja duas vezes o salrio mnimo nacional, digam respeito capacidadedas pessoas, validade ou interpretao de testamento, adopo e dissoluo decasamento civil ou, ainda, em matria criminal, relativamente a crimes de natureza pblica ousempre que o pedido de indemnizao cvel exceda duas vezes o salrio mnimo nacional

    47. Os despachos e sentenas dos tribunais comunitrios tm o mesmo valor dos despachos edas sentenas proferidas pelos tribunais judiciais, e podem vir a ser cumpridas coercivamente.No podem condenar em multa superior a um salrio mnimo nacional, nem em penasprivativas de liberdade.

    As sentenas proferidas pelos tribunais comunitrios podem ser sempre impugnadas por meiode recurso para o tribunal judicial de distrito competente, e o recurso pode ser interpostooralmente ou por escrito pelos interessados, sem necessidade de patrocnio jurdico. O

    julgamento destes recursos est sujeito aos mesmos critrios de equidade, bom senso e justacomposio dos litgios, sendo vedado ao juiz de decidir de acordo com critrios de legalidade.

    48. Os juzes dos tribunais comunitrios tm de ter idade superior a 35 anos e no podem serrepresentantes ou funcionrios de qualquer partido poltico, representantes de autarquias ou dergos locais do Estado, advogados, tcnicos jurdicos ou profissionais integrados no sistemade acesso justia e ao direito, juizes de direito ou magistrados do Ministrio Pblico.

    Os juzes dos tribunais comunitrios so eleitos por sufrgio universal, directo e secreto doscidados moambicanos eleitores recenseados na circunscrio territorial respectiva, sendo aconduo do processo eleitoral da responsabilidade do Conselho Provincial Coordenador dasJustias Comunitrias. Podero, para este efeito, ser criadas Comisses Eleitorais Distritais erequisitada a colaborao de outras instituies administrativas e do Estado. Os candidatos a

    juzes podem ser propostos pelas associaes cvicas, organizaes sociais, culturais eprofissionais em funcionamento na circunscrio territorial respectiva, ou por grupos decidados de um mnimo de vinte e cinco eleitores. As listas devem assegurar a paridade degnero.

    49. Em cada provncia criado um Conselho Provincial Coordenador das JustiasComunitrias, que o rgo de gesto e disciplina dos juzes e demais pessoal dos tribunais

    comunitrios, sendo composto pelo Juiz-Presidente do Tribunal Judicial de Provncia, que

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    preside, um procurador designado pelo Conselho Superior da Magistratura do MinistrioPblico, dois juzes de tribunais judiciais de distrito, designados pelo Conselho Superior daMagistratura Judicial, um representante do servio pblico de assistncia jurdica, designado

    pelo Director do Instituto Pblico de Acesso Justia e ao Direito, oito representantes dostribunais comunitrios, eleitos pelos seus pares, com mandatos de dois anos e trsrepresentantes das autoridades comunitrias, eleitos pelos seus pares, igualmente commandatos de dois anos.

    50. A justia comunitria ser tendencialmente gratuita, devendo o oramento anual dostribunais judiciais de provncia incluir uma verba afecta aos tribunais comunitrios situados nasua rea de jurisdio para financiamento dos recursos humanos e das despesas materiaiscorrentes, excepo das despesas com edifcios, equipamento e demais recursos materiais,que so da responsabilidade dos governos provinciais.

    VI. 2 Um novo modelo de organizao e de repartio de competncias dos tribunais judiciais

    51. Para responder dimenso do territrio, distribuio da populao, dos recursos e dasnecessidades, consensual entre todos os actores que participaram elaborao da lei, que aorganizao dos tribunais judiciais deve obedecer a um princpio de no coincidnciacom a diviso administrativa. Pode haver, se a lei o consagrar, um tribunal distrital comcompetncia territorial em mais do que um distrito e um distrito com mais do que um tribunal

    judicial distrital. Tambm em cada provncia pode haver mais do que um tribunal judicial deprovncia, se o volume e a natureza dos processos o justificarem.

    52. A presente lei, para melhorar o desempenho dos tribunais, diminuir a morosidade epromover a qualidade da justia, consagra o princpio da especializao dos tribunais

    judiciais a todos os nveis, ou seja, nos tribunais judiciais de distrito, nos tribunais judiciais deprovncia e no Tribunal Supremo, podendo, assim, serem criadas seces de competnciagenrica ou especializada, quando tal se justificar, face natureza e volume dos litgios queprocurem tutela judicial.

    53. Ao Tribunal Supremo, a presente reforma do sistema de justia pretende reservar, emtermos jurisdicionais, progressivamente um papel de julgar apenas matria de direito, sconhecendo matria de facto quando decide em primeira instncia ou quando julgue em via derecurso decises proferidas pelos tribunais judiciais de provncia.

    Esta proposta vem na lgica da resoluo, a mdio prazo, do problema da excessivapendncia e morosidade processual que bloqueia o actual funcionamento deste tribunal

    superior.54. Em obedincia Constituio da Repblica e com o mesmo objectivo dedesbloquear o Tribunal Supremo do excesso de processos pendentes, e tendo ainda emconta a realidade e os recursos existentes, criada nos tribunais judiciais de provnciauma seco de recurso, como instncia intermdia de recurso antes do TribunalSupremo, com competncia para julgar, em matria de facto e de direito, os recursos dasdecises proferidas pelos tribunais judiciais de distrito, nos termos da lei d