legados de pierre bourdieu

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    REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLTICA N 19: 95-110 NOV. 2002

    RESUMO

    Rev. Sociol. Polt., Curitiba, 19, p. 95-110, nov. 2002Recebido em 29 de agosto de 2002.Aprovado em 4 de outubro de 2002.

    ARTIGOS

    O LEGADO SOCIOLGICO DE PIERRE BOURDIEU:DUAS DIMENSES E UMA NOTA PESSOAL1

    Loq J. D. WacquantUniversity of California, Berkeley

    Centre de sociologie europene du Collge de France

    O presente artigo compe-se de trs partes, retraando e discutindo, em cada uma delas, a vida e a obrasociolgica de Pierre Bourdieu, falecido em janeiro de 2002. A primeira parte apresenta a carreira dopensador francs, procurando relacionar cada etapa de sua vida com o desenvolvimento de seu pensamento,desde os estudos primrios no interior da Frana at seu reconhecimento internacional, passando peloaprendizado de filosofia em Paris e pelas investigaes antropolgicas na Arglia. A segunda parte consisteem uma discusso, por meio de uma entrevista, da sociologia reflexiva, da lgica da prtica e de outrosconceitos formulados por Bourdieu com o objetivo de estudar a realidade social e incitar descoberta denovas agendas de pesquisa. A terceira parte tematiza a importncia da revista Actes de la recherche ensciences sociales, criada pelo socilogo e destinada a ultrapassar as vrias fronteiras, de nacionalidade oudisciplinares, que cercam e limitam a produo cientfica.

    PALAVRAS-CHAVE: Pierre Bourdieu; trajetria intelectual; sociologia reflexiva; lgica da prtica; Actesde la recherche en sciences sociales.

    I. INTRODUO

    Este artigo compe-se de trs diferentes en-saios que, em conjunto, procuram dar uma noodas extraordinrias realizaes cientficas e daprofcua herana intelectual que Pierre Bourdieulegou comunidade sociolgica mundial2. A pri-meira parte, A vida sociolgica de Pierre Bour-dieu, foi escrita na primavera de 20023 por soli-citao da Associao Sociolgica Internacional(e ser publicada em uma verso diferente, emingls, em International Sociology; v. WAC-QUANT, 2002b); ela examina minuciosamente acarreira do autor de A distino e indica suma-riamente seus maiores trabalhos ao longo de sua

    trajetria pessoal e intelectual. O segundo artigofoi esboado na forma de um dilogo com ofilsofo Deyan Deyanov na primavera de 2002para um nmero especial da revista cultural blgaraKX Magazine, dedicado lgica da prtica. Eleretrata as descobertas, as contribuies e as apli-caes das teorias de Bourdieu para a pesquisaemprica. O terceiro artigo, redigido no incio de1998 para uma enciclopdia do pensamento socialfrancs, dirigida por Lawrence Kritzman (WAC-QUANT, 1998a), apresenta uma das mais ntidas,embora pouco conhecidas, de suas contribuiespara o avano da cincia social: a criao de Actesde la recherche en sciences sociales, um grupode trabalho sociolgico permanente, constitudopara derrubar as barreiras do formalismo aca-dmico, das disciplinas e do pensamento socialpr-construdos, assim como para desenvolverum genuno internacionalismo cientfico capaz derestaurar a unidade de uma cincia socialautocrtica.

    Os maiores pensadores de qualquer poca soaqueles que no apenas fazem descobertasimportantes essa a tarefa de qualquer cientista,como, alis, afirmou mile Durkheim , mas

    1 Traduo de Adriano Nervo Codato e Gustavo Biscaia deLacerda. Reviso tcnica: Adriano Nervo Codato e RenatoMonseff Perissinotto.2 Gostaria de agradecer a Pedro Bod de Moraes e a AdrianoNervo Codato por tomarem a iniciativa de publicar esteensaio compsito em portugus.3 Outono de 2002, no Hemisfrio Sul. Notar que todas asestaes do ano, do Hemisfrio Norte para o HemisfrioSul, so trocadas (N. T.).

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    tambm so aqueles que causam naqueles suavolta uma mudana no modo de pensar, indagar eescrever. Pierre Bourdieu pertence a essa cate-goria, pois ele alterou para sempre a maneira comoos estudiosos da sociedade, da cultura e da histriaem todo mundo, de Tquio a Tijuana e a Tel Aviv,concebem e exercem seus ofcios. Para ser fielao esprito de sua vida sociolgica e para continuarseu legado, devemos seguir aplicando suas idiase testando seus achados a fim de produzir novosobjetos de pesquisa.

    II. A VIDA SOCIOLGICA DE PIERRE BOUR-DIEU

    Pierre Bourdieu ilustrou brilhantemente edesmentiu enfaticamente suas prprias teoriassociais com uma vida repleta que, por meio deimprovveis converses e mudanas bastantesinuosas, ancorou-se em um fiel compromissocom a cincia, com o institution-buildingintelectual e com a justia social. De um ponto devista sociolgico e acadmico, Bourdieu teve umatrajetria improvvel. Como Raymond Arongentilmente lembrou, Bourdieu foi uma exceos leis de transmisso do capital cultural que elemesmo estabeleceu em seus livros iniciais (comJean-Claude Passeron), Les hritiers: les tudiantset la culture (1964) e La reproduction: lementspour une thorie du systme denseignement(1970; 1975): neto e filho de agricultores de umaprovncia perifrica, ele chegou ao pice dapirmide cultural francesa e tornou-se o mais citadocientista social do mundo. Treinado para juntar-se alta casta dos filsofos, a espcie intelectualsuprema na Frana do ps-Segunda Guerra, eleabraou, ao contrrio, a Sociologia, uma disciplinaento inferior e moribunda, ajudando a revitaliz-la e a renov-la, e cuja influncia na esfera pblicaele propagou como ningum.

    Bourdieu, alm disso, tambm incorporoumuitos de seus ensinamentos e de suas notveisinovaes tericas em sua prpria prtica depesquisa e em sua produo cientfica. Suaperspectiva de que a ao social governada pordisposies adquiridas pela imerso contnua emjogos sociais encontrou expresso em suainsistncia e habilidade para fundir trabalho tericode alto nvel com atividades prosaicas deinvestigao. Seu brado por uma cincia socialreflexiva, capaz de controlar seus prprios vieses,bem como se manter independente de ritos deinstituies exemplificado em sua Leon sur laleon (1982; 1988b), uma viviseco de sua aula

    inaugural no Collge de France, e em Homoacademicus (1984), uma anlise impiedosa dosdeterminantes sociais da produo intelectual dauniversidade francesa e portanto dele mesmo,como um acadmico. Sua convico de que oracionalismo plenamente compatvel com ohistoricismo e dota a Sociologia de uma indis-pensvel misso social materializada nosvariados, mas convergentes, escritos publicadosnos ltimos anos, como nos livros Mditationspascaliennes: lments pour une philosophiengative (1997a; 2001e) e Science de la science etreflexivit (2001c). Seu engajamento pessoal naslutas sociais contra a globalizao neoliberal e nadefesa da autonomia intelectual, dos desempre-gados, dos desabrigados e dos imigrantes ilegaispode ser lido em seus ensaios polticos reunidosem Contre-feux (1 (1998a; 1998e) e 2 (2001b;2001d)). Seu compromisso com o corpora-tivismo do universal amplamente manifesto emseus incansveis esforos para disseminar osinstrumentos do pensamento crtico e para criarum intelectual coletivo capaz de fazer avanaruma Realpolitik transnacional da razo.

    II.1. Elementos biogrficos

    Pierre Bourdieu nasceu em agosto de 1930 emBarn, uma regio rural do sudoeste da Frana,encravada no p dos Pirineus, em uma minsculavila cuja lngua nativa ainda era o occitnico. Seusdias na escola fundamental foram passados entreos filhos de camponeses, de operrios e depequenos comerciantes em outra vila remotaconhecida por seu arcasmo, e que, mais tarde,tornar-se-ia o local de seus primeiros estudosetnolgicos e assunto de seu ltimo livropublicado, por ocasio de seu passamento em 23de janeiro de 2002, Le bal des clibataires: crisede la socit paysanne en Barn (2002b), no qualdiagnostica a crise da sociedade camponesa desua juventude, promovida pelo deslocamento dasestratgias maritais e das relaes de gnero. Apsse distinguir nos estudos no ensino mdio em umacidade prxima, Pau, onde ganhou fama por serum vido jogador de rgbi e de pelota basca, ojovem Bourdieu recebeu uma bolsa de estudos efoi aconselhado por um de seus professores, alunoda cole Normale Suprieure, a inscrever-se nomelhor curso preparatrio para essa instituio deelite, o khgne do Liceu Louis-le-Grand de Paris,que reunia os melhores estudantes do pas em umaatmosfera de intensa competio e devooacadmica.

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    Bourdieu logo ingressou na cole NormaleSuprieure, onde, como seu sucesso exigia,assumiu a rainha das disciplinas, a Filosofia. Mas,em reao moda da poca, dominada peloexistencialismo sartriano que marcava amplamentea educao e a vida intelectual, ele mergulhou noestudo da lgica e da histria da cincia graas influncia de Alexandre Koyr, Jules Vuillemin, EricWeil (cujo famoso seminrio sobre a Filosofia doDireito de Hegel ele seguiu), Martial Guroult (umgrande especialista em Leibinz sob cuja orientaoele escreveu um trabalho sobre as Animadver-siones), Gaston Bachelard e Georges Canguilhem(que tambm haviam orientado Michel Foucaultalguns anos antes). Aps passar na agrgationem Filosofia (juntamente com Jacques Derrida,Louis Marin e Emmanuel Leroy Ladurie), o bri-lhante recm-graduado elegeu para ensinar Filoso-fia o Liceu de Moulins, uma pequena cidade naregio central da Frana. Um ano depois, em 1955,foi chamado pela bandeira francesa a Versalhes,mas, sendo inerentemente rebelde autoridademilitar, foi rapidamente enviado, por motivosdisciplinares, Arglia, a fim de servir na missode pacificao da colnia norte-africana.

    Essa vivncia imediata das dolorosas realidadesdas guerras travadas pela Frana contra o nacio-nalismo argelino mudou o destino intelectual deBourdieu para sempre: a experincia despertou seuinteresse pela sociedade argelina, de um ponto devista poltico e cientfico, e promoveu, na prtica,sua converso da Filosofia para a Cincia Social.Seu primeiro livro, Sociologie de lAlgrie, escritoem 1957 (2001a [1957]) e traduzido nos EstadosUnidos em 1962 (The Algeriens, editado pelaBeacon Press), era um estudo acadmico impec-vel, sintetizando conhecimento histrico, etnolgi-co e sociolgico, mas que tambm inclua a ban-deira da nascente Arglia independente. Bourdieuadvertiu sobre as contradies da sociedade colo-nizada e sobre as desiluses do movimento nacio-nalista (antecipando o atoleiro no qual vrios pasesdo Terceiro Mundo encontraram-se presos pordcadas aps suas independncias).

    Bourdieu conduziu seus primeiros inquritosantropolgicos nas regies, marcadas pela guerra,de Kabylia, Collo e Ouarsenis, trs baluartes daguerrilha nacionalista. Desde o princpio, eleconjugou a etnografia com estatsticas, ainterpretao microscpica com a explanaomacroscpica, para mapear o cataclismo socialproduzido pelo capitalismo colonial e a luta de

    libertao nacional. Ele procurou ligar as estruturassociais envolventes s formas culturais, comopode ser visto em seus dois livros, Travail ettravailleurs en Algrie (de 1963, sobre a desco-berta do trabalho remunerado e a formao doproletariado urbano argelino) e Le dracinement(de 1964, com Abdelmalek Sayad, sobre a destrui-o da sociedade e da agricultura tradicionais arge-linas), e em sua coleo de ensaios etnolgicosclssicos Algrie 60 (de 1977, sobre as noesde honra e de tempo entre os kabila, e sobre odesencantamento do mundo sob a presso dotrabalho assalariado e da economia de mercado).

    Ao lado de sua formao filosfica e de suapersonalidade, as circunstncias peculiares nasquais Bourdieu efetivamente treinou a si mesmoem Antropologia, Sociologia e Estatstica, e le-varam-no aos estudos de campo que lhe serviramcomo trampolim emprico para o seu inovadorEsquisse dune thorie de la pratique (1972),explicam sua preocupao caracterstica pelareflexividade: seja para transformar continuamenteas ferramentas sociolgicas em prtica cientfica,seja para refletir criticamente sobre as condiessociais e as operaes concretas de construodo objeto. Essa era uma exigncia prticaincontornvel, s vezes mesmo uma questo devida ou morte, na Arglia beligerante. A neces-sidade de controlar as distores que a posturaanaltica que Bourdieu denominaria depois oponto de vista escolstico introduz na relaoentre o observador e o observado, entre a vidasocial real e as observaes que o socilogo produzdela, um pilar e um tema centrais de sua carreira,indo desde Le mtier de sociologue (juntamentecom Jean-Claude Chamboredon e Jean-ClaudePasseron 1990 [1968]; 2000) passando por TheLogic of Practice (1990a), e chegando aMditations pascaliennes (1997a; 2001e) e suadiscusso contnua das trs formas da falciaescolstica que nos conduzem a tomar as coisasda lgica pela lgica das coisas na Cincia, naEsttica e na tica.

    Gradualmente, o brilhante estudante destinados honras filosficas e ao estudo histrico da Epis-temologia (seus planos iniciais para depois de darbaixa exrcito eram ensinar Filosofia e ento entrarna Escola Mdica de Toulouse, como Canguilhem,que supervisionava sua carreira, havia feito) estavatornando-se um antroplogo. Bourdieu aprendeuum pouco de rabe e de berbere, primeiro no cam-po e depois nas coles des langues orientales, em

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    Paris, e assimilou o estruturalismo de Lvi-Strauss;ensinou na Universidade de Algiers e levou adianteum extenso trabalho de campo l at 1960, quandoo golpe pr-colnia em Algiers forou-o a voarrapidamente a Paris (liberais como ele estavamsob ameaa de morte). De volta Frana, eleassumiu uma posio como Professor Assistentena Sorbonne e depois na Universidade de Lille,onde, pela primeira vez, leu sistematicamente eministrou cursos sobre Durkheim, Weber, Marx,Schutz e Saussure, bem como sobre a Antro-pologia britnica e a Sociologia norte-americana,da qual ele era um entusiasmado consumidor.Simultaneamente, ele continuou a analisar dadosde campo coletados durante as freqentes viagens Arglia rural e urbana que fez durante seus mesesde frias at 1964.

    II.2. Da Antropologia Sociologia

    Foi nessa poca que Bourdieu tornou-se Diretorde Estudos da cole des Hautes tudes enSciences Sociales e fundou o Centre Europenede Sociologie, por solicitao de Aron, que receberaum grande auxlio da Fundao Ford. L eletreinou e reuniu por mais de trs dcadas umprodutivo grupo de acadmicos que investigaramas mais variadas questes com foco nas relaesentre cultura, poder e desigualdades sociais; comuma constante preocupao em unir a teoriarigorosa observao sistemtica, tanto contraas tendncias empiricistas da Sociologia norte-americana, quanto contra a inclinao teorizadorado meio intelectual francs fascinado pelosmodelos literrios, e com um reconhecimento totalda dupla objetividade do social, como compostode distribuies de recursos materiais e posies,de um lado, e classificaes incorporadas por meiodas quais os agentes simbolicamente constroem esubjetivamente experimentam o mundo, por outro.

    Assim, Bourdieu passou sem sentir da Antro-pologia para a Sociologia, uma astcia que eleabraou porque isso lhe parecia mais adequadopara compreender as complexidades da realidadesocial ao invs de obt-las a uma distncia segura,como a Filosofia e a Antropologia estruturalistafaziam. Ele procedeu no sentido de combinar emsua prtica de pesquisa o racionalismo de Bachelarde o materialismo de Marx com o interesseneokantiano de Durkheim pelas formas simblicas,a viso agonstica de Weber sobre os Lebens-ordnungen em competio com as fenomenologiasde Husserl e Merleau-Ponty. O resultado foi um

    quadro terico original, elaborado por meio de epara a produo de novos objetos de pesquisa,objetivando desvendar a multifacetada dialtica dasestruturas sociais e mentais no processo dedominao.

    Em uma dcada, Bourdieu estendeu sua anlisepioneira da contribuio da educao para aperpetuao da desigualdade social em Les hritiers anlise de outras prticas culturais, com Un artmoyen: essai sur les usages sociaux de la photo-graphie (1965) e LAmour de lart: les musesdart europens et leur public (BOURDIEU &DARBEL, 1966), bem como uma srie deinquritos ligados aos microcosmos da religio,da literatura, da cincia, da filosofia, da lei, dapoltica e da alta costura. Nesses e em outrostrabalhos, atingindo o ponto mximo com LesRgles de lart: gense et structure du champlittraire (1992; 1996c), no qual ele desvelou aestrutura e a gnese do campo artstico nostempos de Flaubert (em uma resposta indireta teoria sartriana da criao em O idiota da famlia),ele afiou e instalou o arsenal conceitual que armaa cincia da prtica e a teoria da violncia simblicaque lhe granjeou um lugar no panteo sociolgico.Bourdieu cunhou a noo de capital cultural einseriu-o em uma concepo generalizada decapital como energia social congelada econversvel. Ele recuperou e retrabalhou oconceito aristotlico-tomista de habitus paraelaborar uma filosofia disposicional da ao comopropulsora dos socialmente constitudos eindividualmente incorporados esquemas depercepo e apreciao. Ele forjou a novaferramenta analtica do campo, designando espaosrelativamente autnomos de foras objetivas e lutaspadronizadas sobre formas especficas de auto-ridade, para dar fora esttica e reificada noode estrutura e dot-la de dinamismo histrico. Eele sociologizou o conceito husserliano de doxapara basear a atitude natural da vida diria nacoincidncia das estruturas sociais e mentais pormeio das quais o mundo magicamente aparececomo auto-evidente e sua composio posta almdo alcance do debate e da elaborao.

    Esse trabalho a um s tempo terico e empricoculminou nas obras magnas gmeas de Bourdieu,La distinction: critique sociale du jugement (1979a)e The Logic of Practice (1990a), que o conduziram ctedra de Sociologia do Collge de France em1981. No primeiro volume, Bourdieu efetua umarevoluo copernicana no estudo das classes e das

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    culturas ao abolir a sagrada fronteira entre a altacultura e o consumo ordinrio. Vinculando os maisvariados domnios da vida, desde a alimentao eo companheirismo at a esttica e a poltica, eledemonstrou que o julgamento no um dom inato,mas uma habilidade socialmente aprendida queserve para travar lutas de classes negadas, viabatalhas simblicas da vida diria e posturasadotadas em vrios campos da produo cultural.Ele revelou que o espao social organizado pordois princpios de diferenciao entrecruzados o capital econmico e o capital cultural , cujasdistribuies definem as duas oposies quecircundam as linhas maiores de clivagem e deconflito nas sociedades avanadas, aquelas entreas classes dominantes e as dominadas (definidaspelo volume de seu capital), e aquelas entre fraesrivais da classe dominante (opostas pelacomposio de seu capital). Essa teoria do espaosocial, composio de grupos e competiosimblica foi generalizada em The Logic ofPractice, no qual dois modos de dominao,pessoal e estrutural, so diferenciados e seusmodos de operar traados por meio da modelagemdo corpo como um operador analgico daprtica. Da, ento, a categoria de poder simblico,definida como a habilidade para conservar outransformar a realidade social pela formao desuas representaes, isto , pela inculcao deinstrumentos cognitivos de construo da realidadeque escondem ou iluminam suas arbitrariedadesinerentes, toma o centro do palco. Decifrar osmecanismos da violncia simblica em seusvariados disfarces o objetivo central de livrostais como Langage et pouvoir symbolique (1984 no qual Bourdieu procurou tratar da lingsticaestrutural e estender sua teoria da prtica nosentido de abranger as trocas lingsticas ediscursivas), LOntologie politique de MartinHeidegger (1988a; 1989d uma resoluosociolgica da acrimoniosa controvrsia acercados aspectos polticos da filosofia de Heidegger eum questionamento radical das reivindicaes daFilosofia sobre o estatuto extra-social), LaNoblesse dEtat: grandes coles et esprit de corps(1989a uma explorao das bases sociais dadominao tecnocrtica nas sociedades avanadasque prenuncia uma teoria do Estado comomonopolizador do uso legtimo da violnciasimblica), e, last but not least, La Dominationmasculine (1998a; 1999 entendido como oparadigma do poder manejado sobre oreconhecimento e o no-reconhecimento).

    II.3. O intelectual coletivo

    Embora ele tenha se tornado famoso bastantejovem (em meados dos anos 1960, com Lshritiers) e tenha usado o manto de matre penserparisiense uma dcada aps o falecimento deMichel Foucault, Bourdieu evitou persistentemente na verdade, denunciou as distraes do estrelatomiditico e procurou diligentemente salvaguardara autonomia intelectual, que considerava uma pr-condio vital para uma Sociologia rigorosa, bemcomo para uma poltica vigorosa. Ao invs dejuntar-se aos society games pelos quais as re-vistas intelectuais francesas so apropriadamenteconhecidas, ele devotou suas energias a construirinstituies de produo cientfica protegidas dasdependncias gmeas do comando estatal e dasregras do mercado. Suas aventuras editoriais,levadas a cabo com suas assistentes de longa data,Rosine Christin e Marie-Christine Rivire, soemblemticas dessa postura. Por vinte e cincoanos, Bourdieu dirigiu a srie Le sens commun naprestigiosa casa ditions de Minuit, na qualpublicou obras clssicas (de Durkheim, Mauss,Cassirer, Schumpeter e Bakhtin), tradues deimportantes autores contemporneos (entre osquais Bateson, Bernstein, Goffman, Goody eLabov), e pesquisas originais de alguns jovenssocilogos e historiadores franceses. O peridicointerdisciplinar por ele fundado em 1975 econduzido at um estgio avanado de sua doena,Actes de la recherche en science sociales, esforou-se por desnacionalizar a Cincia Social, porderrubar as noes pr-construdas do senso co-mum ordinrio e acadmico e por acabar com asformas estabelecidas da comunicao acadmica,misturando anlise, dados brutos, documentos decampo e ilustraes pictricas, sob a mxima ex-por e demonstrar. Sua combinao rara de exi-gncia conceitual, reflexividade metodolgica epertinncia scio-poltica capacitaram-no a agircomo porta-voz de uma cincia militante da so-ciedade, que alcanou um pblico leitor bem maisamplo que aquele circundado pelos muros daacademia (o ltimo nmero de Actes de la recherchepublicado sob a superviso de Bourdieu esboouuma arqueologia dos Votos, poucos meses antesdas campanhas para a Presidncia e para o legis-lativo franceses, na primavera de 2002).

    Por uma dcada a partir de 1989, Bourdieudirigiu Liber, uma revista europia de resenhasde livros, publicada simultaneamente em novelnguas e pases europeus, que ele criou para

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    acelerar a circulao internacional e a difuso detrabalhos inovadores em Cincias Sociais, nasHumanidades e na Literatura. Liber tambmrevelou uma face artstica de sua personalidadeintelectual que encontrou sua melhor expressoem suas colaboraes com o artista conceitualHans Haacke (em um livro conjunto, Libre-change, 1994), com o dramaturgo PhilippeAdrien, e o escultor Daniel Buren uma tentativade trabalhar com o cineasta Jean-Luc Godardinfelizmente fracassou devido aos estilos confli-tantes. Consciente dos mltiplos obstculos queentravam a disseminao de uma Sociologia quepretende minar todas as formas de imposiosimblica, Bourdieu tambm publicou diversosvolumes de ensaios baseados em conferncias eseminrios proferidos na Frana e no exterior Questions de sociologie (1980b; 1981), Chosesdites (1987; 1990c) e Raisons pratiques: sur lathorie de laction (1994; 1996d) nos quais elefornece aos leitores de diferentes pases e disci-plinas as ferramentas necessrias compreensoda substncia, das inter-relaes e das implicaesdos vrios liames de sua obra.

    A mesma combinao de autonomia cientficae engajamento cvico compuseram a poltica dasRaisons dagir Editions, uma editora hbrida,militante e acadmica, formada no despertar dosmovimentos de massa de dezembro de 1995 contrao plano do governo Jupp de diminuir a abran-gncia das polticas do Estado de Bem-Estar Social,conforme o pacto da estabilidade europeu. Lan-ada graas ao sucesso de vendas em que consistiua anatomia das fraquezas do jornalismo feita porBourdieu, em Sur la tlvision (1996a; 1997e), eaproveitando o estrondoso sucesso popular dotomo coletivo La Misre du monde (1993a; 1997f uma scio-anlise de mil pginas sobre as formasemergentes do sofrimento social na sociedadecontempornea, que foi adaptado para o vdeo e oteatro), as Raisons dagir Editions tornaram-seum fenmeno editorial da noite para o dia, comcinco best-sellers em dois anos, ajudando apropagar a crtica de Bourdieu s fontes escondidase s conseqncias imprevistas da revoluoneoliberal, onde quer que fosse. O premiadodocumentrio de Pierre Carle, Sociologia comouma arte marcial (2000), captura muito bem comoas teorias sociais de Bourdieu e as tomadas deposio pblicas vieram informar o pensamento ea ao de incontveis militantes e de cidadoscomuns, envolvidos em movimentos sociais

    explosivos por toda a Europa, estendendo-se dosecologistas e gays aos advogados dos direitos dossem-teto, das associaes anti-racismo e sindica-listas desarmados pela obsolescncia dos veculostradicionais da militncia trabalhista. As sutismudanas no casamento da Cincia Social com aao poltica em mais de quarenta anos foramricamente documentadas no primeiro livropstumo de Bourdieu, Interventions politiques1964-2000 (editado por Frank Poupeau e ThierryDiscepolo, 2002).

    Os numerosos grupos de ativistas intelectuaisque Bourdieu guiou ou incitou na dcada final dosculo entre outros, o International Parliamentof Writers, a Association for Rethinking HigherEducation and Research (Areser), o InternationalCommittee for the Defense of Algerian Intellectuals(Cisia), Raisons dagir, e os General Estates ofthe European Social Movement so muitos daspequenas encarnaes do intelectual coletivocom que ele sonhou, para ser construdo atravsdas divises disciplinares e das fronteiras nacionais,para trazer as competncias simblicas juntas dosartistas e dos cientistas, para apoiar o debate p-blico e para reconstruir uma agenda progressivavivel e verdadeira em relao aos ideais histricosda esquerda trada pela virada neoliberal dos par-tidos socialistas e trabalhistas em todos os lugares.

    Contra o fatalismo e as profecias superficiaise novidadeiras do ps-modernismo, ele acreditavano apenas na Cincia Social como um empreendi-mento do conhecimento, como tambm na capaci-dade da Sociologia para informar um utopismoracional, necessrio salvao das instituiesda justia social da nova barbrie do mercado livree do Estado retrado. Bourdieu concebia uma Cin-cia Social unificada como um servio pblicocuja misso desnaturalizar e desfatalizar omundo social e requerer condutas por meio dadescoberta das causas objetivas e das razes subje-tivas que fazem as pessoas fazerem o que fazem,serem o que so, e sentirem da maneira comosentem. E dar-lhes, portanto, instrumentos paracomandarem o inconsciente social que governaseus pensamentos e limita suas aes, como eleincansavelmente tentou fazer consigo prprio.

    III. LEVANDO BOURDIEU AO CAMPO

    Para incio de conversa, gostaria de per-guntar-lhe como voc conheceu Pierre Bourdieu no falo aqui do seminrio em conjunto emChicago, no inverno de 1987, que o levou a

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    escrever a dois Um convite sociologia reflexiva(BOURDIEU & WACQUANT, 1992), mas aprimeira vez que voc encontrou-se frente a frentecom ele. Perdoe-me a brincadeira, mas quandofoi que a cumplicidade ontolgica entre ahistria personificada em voc e a histriaobjetivada nos escritos dele tomaram lugarconcretamente?

    uma brincadeira de que eu gosto porque elacaptura algo de muito real no processo de compar-tilhamento do conhecimento e da produo intelec-tual: as teorias elaboradas por algum pensandopodem tomar vida e envolver as mentes, asatividades e os trabalhos de muitos outros ao redore depois dele. Ns vemos bem isso com Marx eespecialmente com Durkheim e os membros doAnne sociologique no perodo clssico, e estamostestemunhando novamente algo parecido comBourdieu, que formou no discpulos (a CinciaSocial no uma religio, nem suas figurasinovadoras so lderes de seitas, como alguns gos-tariam de acreditar), mas, por todo o mundo, cola-boradores e colegas no projeto de realizao deuma cincia da sociedade crtica e reflexiva.

    Eu conheci Pierre Bourdieu por acaso, emnovembro de 1980. Na poca, eu era um calourode Economia Industrial na cole des hautes tudescommerciales (HEC), a melhor faculdade deadministrao da Frana. Estava desapontado eaborrecido com meus estudos e tateava em buscade alguma coisa intelectualmente estimulante. Umamigo levou-me a uma conferncia que Bourdieufaria sobre Questes polticas na colePolytechnique, prxima a Paris, por ocasio dolanamento de Le sens pratique (eu lera apenasOs herdeiros (BOURDIEU & PASSERON, 1964)quela poca, portanto tinha apenas uma vaganoo de quem Bourdieu era e o que queria). Fiqueiimpressionado e intrigado com aquela fala, mesmoque, sinceramente, no tivesse entendido metadedela! Eu compreendi apenas o suficiente para sentirque alguma coisa nova e importante estava sendodita e que merecia ser pesquisada. Ento, juntei-me a um grupo de estudantes que cercaramBourdieu ao final do evento. Ns fomos a um cafprximo e iniciamos uma discusso sobre aseleies vindouras isso foi alguns meses antesda disputa presidencial que levou Mitterrand e oPartido Socialista ao poder em maio de 1981.Ento, at s quatro horas da manh seguinte,Bourdieu procedeu dissecao da poltica e dasociedade francesas com uma acuidade cirrgica,

    dissecando o sistema social e expondo suas entra-nhas de uma forma que eu nunca imaginara pos-svel. Eu fui instantaneamente tomado. Pensei: se disso que a Sociologia trata, ento isso que euquero fazer.

    Assim, eu comecei a cursar Sociologia naUniversidade de Paris, ao mesmo tempo em quefazia minha graduao em Economia, e um anodepois, quando Bourdieu ministrou sua aulainaugural no Collge de France (BOURDIEU,1982; 1988b), eu fui ouvi-lo e cumpriment-lo.Ele encorajou-me a assistir a seu curso. Logoestava matando aulas da HEC para ouvir suasconferncias no Collge. E desenvolvi o hbito deesper-lo l fora para colocar questes e maisquestes. Alm desse padro de perseguiointelectual, cresceu uma troca que evoluiubastante nos anos seguintes, quando eu faziapesquisas na Nova Calednia, que depois resultouem plena colaborao quando nos reencontramosem Chicago, dando origem a nosso livro Umconvite sociologia reflexiva (BOURDIEU &WACQUANT, 1992).

    Voc poderia contar-nos mais sobre a estratgiaque vocs seguiram nesse livro, em particular ouso de uma tcnica linear de exposio pararevelar a maneira recursiva e espiralada (comovoc mesmo afirmou) de Bourdieu pensar? Comoessa tcnica de questionamento influenciou aestratgia de Bourdieu para a formulao derespostas?

    Note que a parte central do livro consiste emuma entrevista apenas aparente: na realidade, elafoi pensada e escrita, diretamente em ingls, comoum texto, e um texto no qual investimos cerca detrs anos de trabalho mas no poderamoscham-lo de um dilogo socrtico sobre a teoriada prtica sem nos arriscarmos a ser mal-inter-pretados... Tiramos do seminrio que organizeisobre o pensamento de Bourdieu com outrosestudantes de graduao na Universidade de Chi-cago a forma dialgica, com o objetivo de produziruma explicao acessvel e ao mesmo tempo siste-mtica de suas teorias, apresentar as vrias ligaesinternas entre suas investigaes, responder asdvidas tpicas e rebater as objees recorrentes.O objetivo era capacitar um leitor no-familiarizadocom sua uvre4 a ter acesso ao seu ncleo concei-

    4 Obra, em francs no original (N. T.).

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    tual e temtico sem ser desviado, estorvado oumal-orientado a culs-de-sac5 pelas leituras envie-sadas to comuns ou incompreenses, slogans ouesteretipos sobre esse trabalho (como aqueladifundida, porm tola, idia de que Bourdieu umcriador da teoria da reproduo).

    Na seo central do livro, disfarada como oSeminrio de Chicago, ns trabalhamos no sen-tido de reunir questes e respostas passo-a-passo,reescrevendo-as em idas e vindas pelo Atlntico,pelo correio, por fax e por telefone (isso foi antesda era do correio eletrnico e da internet), exe-cutando um movimento circular que deixassevisvel seus principais ncleos conceituais: refle-xividade, habitus, capital, campo, dominaosimblica, doxa, a misso dos intelectuais etc.,para empenharmo-nos, em cada caso, em situarBourdieu dinamicamente em um espao deposies possveis, a fim de melhor esclarecer seusmtodos e posturas especficas em relao sabordagens rivais e aos seus crticos por exem-plo: sobre a lgica prtica, para distinguir clara-mente sua teoria disposicional da ao tanto dateleologia da teoria da escolha racional quanto domecanicismo etnocntrico do utilitarismo: paraBourdieu, a ao orienta-se sem visar consciente-mente a um objetivo, e os mveis que a orientamtranscendem o estreito interesse material.

    O principal desafio era tentar linearizar umpensamento que de fato recursivo e espiralado,sem o desfigurar, para estend-lo ao longo devetores que se interceptam mas que so separveis,ao mesmo tempo respeitando suas articulaesinternas. Se o modo de argumentar de Bourdieu como uma teia, com ramificaes, se seus con-ceitos-chave so relacionais (habitus, campo ecapital so todos constitudos de feixes de laossociais em diferentes estados personificados,objetivados, institucionalizados e funcionammuito mais eficazmente uns em relao aosoutros), porque o universo social constitudodessa maneira, segundo ele. Ento ns procura-mos reter a conectividade intrnseca da realidadesocial e o raciocnio sociolgico enquanto desfaza-mos os emaranhados de ambos, para habilitar osleitores e os usurios do livro a capturar o cerneda ontologia social, do mtodo e das teoriassubstantivas de Bourdieu. O fato de Um convite

    sociologia reflexiva estar agora traduzido emdezessete lnguas e considerarem-no o caminhopadro de acesso ao pensamento de Bourdieusugere que no fomos totalmente mal-sucedidos...

    Recentemente voc publicou um livro naFrana,Corps et me: carnets ethnographiquesdun apprenti boxeur (WACQUANT,2000; 2002a a ser lanado em ingls pela University ofCalifornia Press) que relata uma intensa pesquisade campo de trs anos e meio, levada a cabo emuma academia de ginstica de negros no gueto deChicago. Voc disse-me que nesse livro aplica edesenvolve a teoria do habitus. Voc poderiacomentar esse experimento de levar Bourdieu acampo e sobre como isso ilumina a problemticada lgica prtica?

    Corpo e alma uma explicao antropolgicada disputa por supremacia enquanto habilidadecorporal no gueto negro norte-americano, baseadana imerso intensiva e na observao partici-pante, durante a qual tornei-me parte do fen-meno a fim de analis-lo. O livro reconstituiminhas atribulaes dentro e fora do ringue en-quanto um aprendiz incluindo minha luta noChicago Golden Gloves e mistura Sociologia,Etnografia e narrativa literria, texto e imagens,anlise fria e experincia quente, para levar oleitor ao quotidiano dos boxeadores comuns erecapitular em cores vvidas a produo especficade seu complexo corpo-mente (para usar umaexpresso de William James que sugere umaafinidade entre o pragmatismo e a concepo daao de Bourdieu).

    Da que o livro seja um estudo da produosocial do habitus pugilstico como um conjuntode disposies particulares reunidas coletivamentepor meio de uma pedagogia silenciosa que trans-forma a totalidade do ser do lutador ao extra-lodo reino profano e introduzi-lo em um universosensual, moral e prtico distinto, trata-se de umprocesso de seduo a fim de refazer a si mesmoe adquirir honra (masculina) pela submissovoluntria s regras ascticas de sua arte. Otrabalho uma radicalizao emprica da teoria dohabitus no qual se mostra de maneira quaseexperimental o quanto o habitus um conjunto dedesejos, vontades e habilidades, socialmente cons-titudas, que so ao mesmo tempo cognitivas,emotivas, estticas e ticas, como ele elaboradoe como opera concretamente. Deixe-me citar umapassagem de Bourdieu que resume o que eu tentei5 Becos sem sada, em francs no original (N. T.).

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    demonstrar e indicar o que os boxeadores podemensinar-nos sobre todos os agentes sociais: Pormeio de um jogo de palavras heideggeriano, poder-se-ia dizer que a disposio exposio. Justa-mente porque o corpo est (em graus diversos)exposto, posto em xeque, em perigo no mundo,confrontado ao risco da emoo, da ferida, dosofrimento, por vezes da morte, portanto obrigadoa levar o mundo a srio (e nada mais srio doque a emoo, que atinge o mago dos dispositivosorgnicos), ele est apto a adquirir disposies queconstituem elas mesmas aberturas ao mundo, isto, s prprias estruturas do mundo social de queconstituem a forma incorporada (BOURDIEU,1997a, p. 168).

    Corpo e alma tambm toma seriamente emconsiderao a repreenso de Bourdieu de que asmais fundamentais e distintas competncias quens possumos como seres sociais so conheci-mentos e habilidades personificados, que operamsob o discurso e a conscincia, em um sentidoencarnado que surge de fora da mtua inter-penetrao do ser e do mundo. Se for verdadeque nossa presena-no-mundo opera atravs doque ele chama de o conhecimento pelo corpo(essa uma expresso mais apropriada que dttulo a um captulo de Meditaes pascalianas idem, cap. 4; 2001e, cap. 4), ento segue-se quepara penetrar um dado universo como analistassociais devemos obter conhecimento desse univer-so por meio de nossos corpos: devemos adquirir,e ento investigar e problematizar, as categoriasprticas, as sensibilidades e as habilidades que osnativos desenvolveram na e pela prtica. Devemoselucidar a illusio como essa maneira de estar nomundo que emerge de ser de um certo mundo(idem, p. 162). Devemos, em suma, fazer noapenas a Sociologia do corpo criaturas animaiscomo construtos sociais como tambm a Socio-logia a partir do corpo o organismo socializadoe sensrio como construtor social que pe emprimeiro plano a primazia cintica do mundo quefaz membros reconhecidos de um dado universoo que e quem eles so.

    Ainda em outro nvel, Corpo e alma umaaplicao da reflexividade como uma exigncia depesquisa e uma estratgia epistmica, e demonstrapelo exemplo um dos argumentos centrais de Umconvite sociologia reflexiva: que o propsito e apedra de toque da boa teoria social ajudar-nos aproduzir novos objetos, detectar dimenses e

    dissecar mecanismos do mundo social que, deoutra maneira, no estaramos aptos para com-preender. H duas maneiras de concebermos eusarmos a teoria social: uma o modo escolstico,no qual dividimos, polimos e limpamos concei-tos parafraseando C. Wright Mills (1958) emsua crtica a Talcott Parsons em A imaginaosociolgica isto , produzimos categorias te-ricas como um fim em si mesmo, para exposioritual e adorao. A outra o modo gerativo, peloqual desenvolvemos a teoria para us-la empesquisas empricas e para provar e expandir suacapacidade heurstica em um confronto sistem-tico com a realidade scio-histrica. Eu esperoque Corpo e alma oferea um exemplo atraenteda segunda concepo, embora isso tambmimplique ser a teoria menos visvel, e tenhamosento de extra-la por meio de uma leitura atentadas observaes que ela conduz (e nas quais elas vezes se esconde).

    Nossa escolha da lgica da prtica como temadeste nmero de KX Magazine dedicado aBourdieu no apenas reconhece que ele fundouum novo tpico para pesquisas; tambm dese-jamos sublinhar os obstculos ao seu desenvol-vimento, o fato de que ela permanece, porenquanto, uma promessa no-cumprida. Voc noconcorda que, embora Bourdieu tenha propostouma teoria da no-coincidncia da teoria e daprtica e mesmo afirmando explicitamente que oproblema da lgica s pode ser compreendido naao, encontrando sua soluo apenas em umateoria da lgica terica e da lgica prtica(BOURDIEU, 1980a, p. 155), ele parece relutanteem desenvolver a teoria da lgica prtica enquantotal? Essa relutncia no se deve ao fato deBourdieu, tanto quanto imaginava ser possvel,pens-la como uma lgebra (BOURDIEU, 1976,p. 73; 1980a, p. 435)?

    Na minha opinio, o foco de Bourdieu na suaelaborao da lgica especfica da prtica e tudoque a distingue de uma lgica da lgica com-provadamente sua grande descoberta e contri-buio para a teoria social. Ns mal comeamos aperceber sua importncia e consumir anos detrabalho em uma variedade de disciplinas daFilosofia Lingstica, da Esttica Sociologia para extrairmos todas as suas implicaes (cf.WACQUANT, 1998b).

    Agora, isso um problema espinhoso, para oqual Bourdieu sugere duas solues possveis. Na

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    verso suave, ele prope que existe um hiatoentre a lgica imanente da prtica, que temporalmente inserida, espacialmente situada, adhoc, indistinta, inconsciente de si mesma etc., e algica do conhecimento escolstico, que eliminaa confuso e a ambigidade embutidas por meioda ao desencravadora [disembedding action]e tirando dela algumas de suas qualidadesdistintivas enquanto ao. Mas esse hiato pode serpreenchido por um esforo consciente deteorizao, por um retorno reflexivo sobre a anliseda prpria postura terica, suas condies sociaisde possibilidade, e como ela influencia a pesquisacomo uma atividade prtica (quais questes nsformulamos ou deixamos de formular, quais dadosconstrumos, quais observaes levamos a caboetc.). Esse o Bourdieu de Le sens pratique porexemplo, quando ele explica a mudana decisivada anlise do parentesco de um conjunto de re-gras (como aparece no estruturalismo de Lvi-Strauss) para uma seqncia revelada de estra-tgias situadas, guiadas pela posio dos gruposno espao social e pelo corpo como um operadoranalgico da prtica (cf. BOURDIEU, 1980a;1987; 1990c). Ou o Bourdieu de Dominao mas-culina (1997b; 1998a; 1999), que examina ostrabalhos concretos dos mecanismos da violnciasimblica que esto na origem da hegemonia mas-culina por meio de uma anlise do ritual e damitologia kabila e de como suas estruturas infor-mam a vida cotidiana na sua e em nossa sociedade.

    Na verso dura, que foi expressa caute-losamente pela primeira vez por Bourdieu (1990b;1996e; 1998d) em O ponto de vista escolstico,e que vem tona novamente em certos trechosde Meditaes pascalianas (embora esse trabalhoseja ambguo a esse respeito: ele tambm avanaa tese suave), h uma distncia insupervelentre o conhecimento prtico e o conhecimentocientfico, mesmo uma antinomia entre a prticacomo o impensado, o imediato e o mtuo habitardo ser e do mundo, complicao carnal com asforas ativas que fazem da existncia social o que, e o esforo para captur-la por meio do pen-samento, do raciocnio e da linguagem. O dilemano tanto uma aporia quanto um impasse; o hiatono pode ser preenchido. Mas ento, novamente,afirmar a tese dura no impede Bourdieu de levaradiante sua prpria anlise das condies sociaisque leva em conta a ambigidade fundamentalda disposio escolstica, nomeadamente, que ela

    capacita-nos a conhecer o mundo enquanto omutila, na medida em que requer que nos retiremosdo mundo e nos inclinemos para v-lo como algodiferente do que por ele mesmo como umespetculo suscetvel de ser lido maneira de umtexto (como com a descrio densa de CliffordGeertz), ou com os trabalhos autotlicos de umalgebra semitica (como em Lvi-Strauss e noassim chamado ps-estruturalismo, que na verdade estruturalismo mas com outro nome) maisque tarefas urgentes a serem realizadaspraticamente hic et nunc.

    Eu penso que a tenso no est resolvida, eque a questo se ela provar-se- frutfera, isto, se conduz heurstica progressiva, no sentidoque Lakatos d ao termo. Isso o que, com ironiapascaliana, poderamos batizar de a aposta deBourdieu: mesmo que possa haver umacontradio insupervel entre a lgica da prtica ea lgica da cincia como uma forma historicamentedatada e situada de prtica humana, ns estamosem melhor situao agindo como se no houvessee seguindo em frente no projeto de uma cinciada sociedade. A prova do pudim terico da prticaser encontrada no comer prtico.

    IV. UMA OFICINA SOCIOLGICA EM AO:ACTES DE LA RECHERCHE

    Lanada em 1975 com a beno e o apoio deFernand Braudel, o diretor da Maison des Sciencesde lHomme, onde parmaneceu baseada por vinteanos, a revista Actes de la recherche en sciencessociales firmou-se como uma das mais importantespublicaes em Cincias Sociais no mundo,embora tenha permanecido altamente singular emseu formato, tom e misso. Ela municiou odesenvolvimento de uma perspectiva sociolgicacaracterstica, inspirada pela viso cvica ecientfica de Pierre Bourdieu, que tanto continuouquanto rompeu com a longa linhagem da EscolaSociolgica Francesa. Actes de la rechercheencorajou a internacionalizao da cincia socialem um meio parisiense cuja predileo pelaautarquia intelectual incomparvel. Alm disso,a revista procura publicar os mais avanadosprodutos da pesquisa social a fim de impingi-lossobre a conscincia coletiva e sobre a discussopblica na Frana e no exterior.

    Actes de la recherche mantm a inconfundvelmarca de seu fundador e editor-chefe, o socilogoPierre Bourdieu, cuja infatigvel orientaoimpulsionou a revista por mais de trs dcadas e

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    cuja prodigiosa produo cientfica conformouprofundamente seus contedos. Mas ela oresultado da atividade conjunta de uma ampla redede acadmicos ancorada no Centre de SociologieEuropene do Collge de France e de seusassociados e filiados estrangeiros, como se podever pelas diversas origens, estilos e inclinaestericas de seus colaboradores.

    Diferentemente de Esprit ou Les TempsModernes, Actes de la recherche mais uma revistacientfica que intelectual, de maneira que a validademetodolgica e a adequao emprica tm prior-idade sobre a elegncia literria e a retido poltica.Em contraste com LHomme ou Annales: co-nomies, socits, civilisations, entretanto, ela obstinadamente transdisciplinar e atenta aos temassociopolticos da atualidade: o rgo de umacincia da sociedade militante cujo pblico basicamente, embora no exclusivamente, com-posto por intelectuais. Ainda, ao contrrio de Ledbat, sua ambio no ecoar, mas questionar amoda intelectual e poltica, baseada na noo deque uma cincia social autocrtica pode e devefuncionar como um servio pblico, desafiandoimplacavelmente as idias institudas e os modosde pensar estabelecidos. De fato, assim como oAnne sociologique serviu como ponto focal dastrocas acadmicas e veculo do republicanismosublimado da escola durkheimiana no incio dosculo XX, a Actes de la recherche foi elaboradacomo uma plataforma para a Sociologia trans-disciplinar, casando o rigor cientfico, a reflexi-vidade metodolgica e a relevncia scio-poltica.

    O longo e de fato desajeitado ttulo Actes dela recherche en sciences sociales almeja exportanto os objetos sociolgicos quanto os mtodosde pesquisa necessrios para traz-los luz, oumelhor, para constru-los como tais. Pois o pontode partida epistemolgico implcito da revista(originado na filosofia do conceito de GastonBachelard e Georges Canguilhem) estipula que osfatos sociais no surgem prontos na realidade: elesprecisam ser conquistados das percepes ordin-rias e do senso comum acadmico. Rejeitando aestilizao dos relatrios de pesquisa das CinciasSociais, que tendem a esconder o trabalho sujolevado a cabo na cozinha sociolgica, Actes de larecherche deve no apenas demonstrar mastambm mostrar. Pois o objetivo especfico destelaboratrio-em-ao sociolgico precisamentedesmascarar as formas sociais e os formalismospelos quais a realidade dissimula a si mesma (trecho

    do editorial sem ttulo, introdutrio ao nmeroinaugural). Da sua submisso a temas transver-sais, recortados de maneiras contra-intuitivas queviram do avesso concepes aceitas e elevam osobjetos inferiores enquanto rebaixam os supe-riores (no por mera coincidncia que o pri-meiro artigo do primeiro nmero discutia Omtodo cientfico e a hierarquia social deobjetos).

    Para obter rigor e relevncia sem subservinciaa preceitos doutrinrios e para tornar a Sociologiaviva para seus leitores, Actes de la recherchemultiplicou as experincias formais e as inovaesestilsticas. Em primeiro lugar, publicaram-se noapenas artigos acadmicos padro como tambmresenhas curtas, peas polmicas, notas de leitura,documentos inditos e relatrios de campo ouexperimentais rigorosamente editados, auto-reflexivos (ver, por exemplo, Anotaes para umascio-anlise, de Yvette Delsaut, e Uma noiteem uma galeria de tiro, de Philippe Bourgois,respectivamente nos nmeros de fevereiro de 1986e setembro de 1992 (BOURGOIS, 1992)). Emsegundo lugar, o artigo arquetpico dos Actes teceo texto com fotografias, fac-smiles de exposiese excertos de entrevistas ou dados crus deobservaes em caixas e barras laterais dispostasao longo do texto. A revista utiliza tambmdiferentes tipos e fontes e mistura estilos diretos eindiretos, tudo em um esforo para unir a precisoanaltica com a acuidade experimental.

    A revista tem procurado constantementedesnacionalizar a pesquisa social por meio daabertura de uma ampla janela s escolas estran-geiras, ligando os desenvolvimentos das inves-tigaes scio-culturais francesas s tendncias eavanos no exterior e vice-versa. Prximo aosAnnales, ela o peridico de Cincias Sociaisbaseado em Paris cuja orientao internacional mais significativa. De fato, a lista de autores no-franceses publicados na Actes de la recherche um verdadeiro quem quem do mundo dasCincias Sociais: Michael Baxandal e HowardBecker, Michael Burawoy e Aaron Cicourel, NilsChristie e Robert Darnton, Norbert Elias e CarloGinsburg, Johann Goudsblom e Eric Hobsbawm,Jrgen Kocka e William Labov, Wolf Lepenies eEleanor Maccoby, Nancy Scheper-Hughes eGerschom Sholem, Joan Scott e Carl Schorske,Armatya Sen e Theda Skocpol, Ivan Szelenyi eJeno Szcs, Raymond Williams, Paul Willis eViviana Zelizer. Muitos renomados autores

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    franceses tambm foram publicados pela revistaantes de obterem aclamao internacional: a listavai de Maurice Agulhon e Jacques Bouveresse aRobert Linhart e Bruno Latour. E mais: duranteesses anos Actes de la recherche procurou desco-brir e difundir o trabalho de jovens acadmicos,juntamente com textos pouco conhecidos deautores clssicos (E. C. Hughes, Mauss,Goffmann, Weber e Wittgenstein). Ao lado deautores estrangeiros e jovens pesquisadores, Actesde la recherche tambm publica mais artigos demulheres que a maioria, seno todas, as revistasde Cincias Sociais de estatura e alcancesemelhante.

    Sem ceder nada aos modismos polticos e aosassuntos novidadeiros, a revista empenha-se emmanter um p na sociedade e em contribuir paraa continuidade dos debates scio-polticos de umaperspectiva rigorosamente cientfica. Portanto, elapersegue a misso cvica da cincia social: a buscada autonomia cientfica e o retorno do conhe-cimento, produzido por essa autonomia, esferapblica (BOURDIEU, 1989b). Por exemplo: nooutono de 1980, quando os tanques soviticosrumavam para Cabul, Actes de la recherche lanouum artigo intitulado: Et si on parlait delAfghanistan? (CENTLIVRES & MICHELINE,1980). Em 1988, s vsperas da disputa presi-dencial entre Mitterrand e Chirac, uma srie deartigos de expoentes da Cincia Poltica, daSociologia e do Direito procurou Repensar apoltica. No incio dos anos 1990, novas formasde desigualdade social e marginalidade surgiram,eludindo os instrumentos tradicionais de protestocoletivo. Em resposta, Actes de la recherchepublicou uma srie de estudos baseados embiografias retratando as origens sociais e asimplicaes desses sofrimentos sociais (essesestudos foram depois expandidos em um sucessode vendas, de cerca de mil pginas, uma scio-anlise da Frana contempornea publicada comoA misria do mundo BOURDIEU, 1993a; 1997f).Acompanhando de perto as macias manifestaesde rua ocorridas em dezembro de 1995 contra ainsegurana social, o nmero de novembro de 1996de Actes, sobre As novas formas de dominaono trabalho, trouxe aos seus leitores uma anliseorganizacional da sobrecarga do trabalho nostransportes rodovirios justamente quando osmotoristas de caminho estavam paralisando o pascom bloqueios de estrada. Em 1997, quando odebate sobre a globalizao e suas patologias

    cresceu, a revista reuniu um conjunto de pesquisasaprofundadas, de mbito internacional, sobre Oseconomistas e a economia (Actes de la recherche,1997)6 .

    Em outro sentido, Actes de la recherche ensciences sociales pode ser caracterizada por seusobjetos privilegiados e temas recorrentes. Oprincipal deles a economia dos bens culturais.Literatura e imaginrio popular, pintura e livros,msica e museus, moda e gosto, religio e aca-demia, mito e cincia (bem como suas intersees:mitos, crenas e ritos cientficos): a produo, acirculao e o consumo desses bens obedece aleis peculiares que so melhor revelados pelaanalogia e pela anlise comparativa em uma sriede questes. Um outro assunto preferencial algica da classificao social e a fabricao decoletivos sociais. Estudos sobre a constituio (ouo desfazimento) da classe, do gnero, da etnici-dade, da idade, da regio, da nao e do imprioconvergem para mostrar como princpios alter-nativos de viso e diviso sociais constituemferramentas e marcos nas lutas simblicas, pelasquais a realidade social de uma vez dotada defacticidade e revelada como um edifcio precrio.Essa preocupao com a desconstruo deentidades sociais naturalizadas [ready-made]estende-se tambm a recipientes familiares davida social, tais como a famlia, a empresa, opartido e o Estado. A preocupao correlata emdocumentar a necessidade social trabalhando pordetrs de realidades sociais extremas abrangeinstituies aparentemente exticas, como a msi-ca popular, o futebol, os campos de concentraoe o gueto afro-americano.

    Um terceiro ncleo temtico centra-se nasestratgias sociais de dominao, distino ereproduo: entre elas figuram estudos de gruposdomiciliares, escolas e consumo, trabalho e labor,as bases e os efeitos das polticas pblicas, a inter-seo da economia e da moral, e o papel da prticapoltica e das leis. Last but not least, Actes de larecherche esquadrinha continuamente as prticas,as complicaes e os poderes intelectuais. Assim,nmeros sobre As categorias do entendimentoprofissional (setembro de 1975), A cincias e aatualidade (fevereiro de 1986), Pesquisa sobrea pesquisa (setembro de 1988), A histria social

    6 Cf. os artigos de Bourdieu (1997), Fligstein (1997),Lebaron (1997) e Lordon (1997) (N. Ed.).

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    das cincias sociais (junho e setembro de 1995)e As astcias da razo imperialista (fevereiro de1998) atestam a necessidade de pr os acadmicossob seu prprio microscpio a fim de desvelar e, espera-se, melhor controlar os determinantessociais do pensamento social. Entre os artigosclssicos sobre a sociologia dos intelectuais,podemos indicar: A ontologia poltica de MartinHeidegger, de Pierre Bourdieu (BOURDIEU &BOLTANSKI , 1975); Paul Lazarsfeld, fundadorde uma multinacional cientfica, de Michael Pollak(1995); Louis Dumont e a cincia nativa, deRoland Lardinois (1995); a dissecao da trajetrialiterria de Franois Mauriac, por Gisle Sapiro(1996), e as peas incisivas sobre os intelectuaisparodistas do Tel Quel e dos grupos parisiensesrelacionados, da autoria de Louis Pinto (1998).

    Em suma: o impulso diretor por trs dasvariadas investigaes publicadas em Actes de larecherche vai no sentido de desnaturalizar ascategorias, os fatos e as instituies sociais, aomesmo tempo em que prov os meios pararecapitular e aceder as diferentes etapas dademonstrao que esto mo. Essa frmulaprovou ter apelo: com um pblico leitor regularprximo a dez mil, Actes satisfaz um amplo pblicoque se estende para bem alm da academia hapenas cerca de mil socilogos na Frana. Os de-mais leitores incluem no somente pesquisadorescomo tambm professores e estudantes universi-trios, assistentes sociais, ativistas e empresriosculturais, bem como outros estratos instrudoscom interesse em pesquisas e questes sociais(alguns nmeros tiveram vendagens superiores avinte mil exemplares). Com revistas irms na

    Espanha, no Japo e no Brasil, que reimprimemartigos-chave traduzidos, seu pblico internacionalvai muito alm do mbito francfono. Desde 1989,Actes ladeada por um suplemento, Liber: revueinternationale des livres, publicado simultanea-mente em nove pases e lnguas europeus, cujoobjetivo avanar burlando as estruturas nacionaise acelerar a circulao continental de trabalhosinovadores e comprometidos nas Artes, nasHumanidades e nas Cincias Sociais.

    Actes de la recherche en sciences socialespermanece uma operao largamente artesanal,com uma pequena equipe e limitado apoio institu-cional, quase desproporcional ao seu impacto na-cional e adeptos internacionais. O sucesso tendeinevitavelmente a diluir a frmula original que oproduziu; como o grupo tanto de autores quantode leitores expande-se, o esprito cientfico e cvicoespecfico da revista torna-se mais difcil de man-ter. Pode-se esperar de Actes de la recherche queevolua em resposta s mudanas das correntes econstrangimentos intelectuais enquanto permanecefiel sua vocao inicial: promover aquela cinciasocial rigorosa e transdisciplinar de todo o planetaque funde a pesquisa e a teoria, ao mesmo tempoem que permanece alerta s implicaes polticase ticas da investigao social. Ao faz-lo, elarenova a militncia cientfica e o internacionalismoda Escola Sociolgica Francesa. Assim como comDurkheim e o Anne sociologique, seu maior desa-fio sobreviver ao passamento final da geraoacadmica que a criou e dela cuidou. Ler Actes dela recherche en sciences sociales nos prximos anospromete ser ento um intrigante experimento sobrea rotinizao do carisma intelectual.

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    Loiq Wacquant ([email protected]) Professor de Sociologia na Universidade da Califrnia(Berkeley) e Pesquisador do Centre de sociologie europenne do Collge de France. autor, comPierre Bourdieu, de Um convite sociologia reflexiva (1992).

  • O LEGADO SOCIOLGICO DE PIERRE BOURDIEU

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    REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLTICA N 19: 157-159 NOV. 2002

    investment that has been made in the automobile industry in the Greater Curitiba, state of Paran.The research adopts a perspective on globalization that takes into account both global structuresand mechanisms as well as the decision-making sphere of local government. The authors come tothe conclusion that researchers should include social as well as political aspects in their analyses, aswell as research the investments, strategies and operations of transnational firms in Brazil, employinginterdisciplinary approaches that take international economic policy into account.

    KEYWORDS: globalization, transnational enterprise, automobile industry.

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    LABOR AND UNIONISM IN BRAZIL: A CRITICAL INVENTORY OF THE NEOLIBERALDECADE (1990-2000)

    Giovanni Alves (Universidade Estadual Paulista Marlia)

    This article presents an overview of principal shapes that the world of labor took on in Brazil duringthe nineties. We refer to this period as the neo-liberal decade. We emphasize the development ofa new complex of productive restructuring and its dominant moment (Toyotism), as well as theemergence of a new (and precarious) world of labor and the advent of the crisis of unionism, whichwe consider to be the contingent expression of the fragmentation of the working class. We come tothe conclusion that today more than ever, at the start of the twenty first century, the greatest challengethat Brazilian unionism faces involves a break with its bureaucratic-corporative bias, as well as theorganization and mobilization of a massive contingent of young workers and employees and even theprecarious self-employed or workers subject to capitalist exploitation. We make critical use of empiricaldata from books and essays written by researchers from the fields of economics, sociology of workand industrial sociology in Brazil over the last decade

    KEYWORDS: labor; unionism; Neo-liberalism; Toyotism, unemployment.

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    PIERRE BOURDIEUS SOCIOLOGICAL LEGACY: TWO DIMENSIONS AND A PERSONALNOTE

    Loc J. D. Wacquant (University of California, Berkeley/Centre de sociologie europene du Collgede France)

    This article is made up of three parts, each of which re-traces and discusses the life and sociologicalwork of Pierre Bourdieu, who died in January of 2002. The first section discusses the French thinkerscareer, and seeks to relate each stage of his life with the ongoing development of his thought - fromhis primary schooling in the French interior to his international recognition, and including his studies inPhilosophy in Paris and anthropological research in Algeria. The second section uses an interview toengage in a discussion of reflexive sociology, of the logic of practice, and of other concepts thatBourdieu formulated for the study of social reality and to incite the discovery of new researchagendas. The third section discusses the importance of the journal Actes de la recherche en sciencessociales which Bourdieu founded, meant to transcend the several boundaries of nationality anddisciplines which circumscribe and limit scientific production.

    KEYWORDS: Pierre Bourdieu; intellectual trajectory; reflexive sociology; the logics of practice;Actes de la recherche en sciences sociales.

    * * *

    EXPLAINING THE MANAGEMENT STATES IMPLEMENTATION CRISIS:PERFORMANCE VERSUS FISCAL ADJUSTMENT

    Flvio da Cunha Rezende (Universidade Federal de Pernambuco)

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    REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLTICA N 19: 165-167 NOV. 2002

    Cet article prsente les rsultats prliminaires dune recherche dont lobjectif est de dvelopper unerfrence thorique afin danalyser les antcdents et les implications de la globalisation conomiqueau Brsil. Plus particulirement, larticle met en relief les problmes de gouvernement et maintienenvironnemental concernant les investissements directs trangers qui ont t effectus dans lindustrieautomobile de la rgion de Curitiba, dans ltat du Paran. La recherche suit une perspective particulirede globalisation qui considre autant les mcanismes et structures globales que lespace de dcisiondes gouvernements locaux. Les auteurs considrent finalement que les chercheurs doivent prendreen compte non seulement les aspects sociaux mais encore les aspects politiques dans leurs analyseset quil faut entreprendre, lorsquon mne des recherches portant sur investissements, stratgies etoprations des entreprises transnationales, des approches interdisciplinaires compte tenu de lapprochedu domaine de lconomie politique internationale.

    MOTS-CLS: globalisation; entreprise transnationale; industrie automobile.

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    TRAVAIL ET SYNDICALISME AU BRESIL: UN BILAN CRITIQUE DES ANNES NEO-LIBERALES (1990-2000)

    Giovanni Alves (Universidade Estadual Paulista Marlia)

    Cet article prsente un tableau des principaux contours du monde du travail au Brsil, dans lesannes 90. On appelle cette priode les annes no-librales. On souligne le dveloppement dunnouveau rseau de restructuration productive et son moment le plus important (le toyotisme), lanaissance dun nouveau (et fragile) monde du travail et lavnement de la crise du syndicalisme,considre comme lexpression ncessaire de la fragmentation de la classe ouvrire. On estimequaujourdhui, plus que jamais, le grand dfi du syndicalisme au Brsil laube du XXIme sicle estde rompre avec la tendance burocratique-corporatiste, dorganiser et de mobiliser un contigentimportant de jeunes ouvriers et ouvrires, employs, y compris les travailleurs indpendants en situationdifficile et exploits par le capital. On a utilis, dans une perspective critique, les donnes empiriquesdes livres et des essais de chercheurs du domaine de lconomie et de la sociologie de lindustrie etdu travail au Brsil, parus tout au long des annes 90.

    MOTS-CLS: travail; syndicalisme; no-libralisme; toyotisme; chmage.

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    LHERITAGE SOCIOLOGIQUE DE PIERRE BOURDIEU: DEUX DIMENSIONS ET UNETOUCHE PERSONNELLE

    Loc J. D. Wacquant (University of Californie, Berkeley/Centre de socilogie europnne du Collgede France)

    Cet article est compos de trois parties o lon retrace la vie et loeuvre sociologique de PierreBourdieu, dcd en janvier 2002 et lon en discute. La premire partie prsente la carrire dupenseur franais et cherche mettre en rapport chaque tape de sa vie avec le dveloppement de sapense depuis les premires tudes en province jusqu sa renomme internationale. On se reportegalement ses tudes de philosophie Paris et aux investigations anthropologiques en Arglie. Laseconde partie consiste en un dbat, par le biais dune interview, de la sociologie rflexive, de lalogique de la pratique et dautres concepts formuls par Bourdieu avec lobjectif dtudier laralit sociale et dinciter la dcouverte des nouveaux agendas de recherche. La troisime partiea pour thme limportance de la revue Actes de la recherche en sciences sociales, fonde par lesociologue et destine dpasser les diverses frontires de nationalit et de disciplines, qui entourentet limitent la production scientifique.

    MOTS-CLES: Pierre Bourdieu; trajectoire intellectuelle; sociologie rflexive; logique de la pratique;

  • 165

    REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLTICA N 19: 165-167 NOV. 2002

    Actes de la recherche en sciences sociales.

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    LES RAISONS DE LA CRISE DIMPLEMENTATION DE LETAT GESTION: PERFORMANCEET AJUSTEMENT FISCAL

    Flvio da Cunha Rezende (Universidade Federal de Pernambuco)

    Cet article se compose de trois buts diffrents: dabord, il prsente la crise dimplmentation despolitiques de rforme administrative et en discute. Ensuite, il fait la rvision des principales thoriescontemporaines abordant le sujet. Enfin, il suggre une thorie aditive qui met en rapport la crisedimplmentation des rformes et le problme des limites pour lobtention de la collaboration simultaneen fonction des objectifs du programme dajustement fiscal et changement institutionnel. La thoriepropose prne que la tension entre plus de flexibilit burocratique, dune part, et la demande duneplus grande rigueur dans les systmes internes de contrle burocratiques, dautre part, est un puissantmcanisme causal qui tend gnrer des crises successives dimplmentation de ces propositionspolitiques. Aussi les rformes tendent-elles gnrer une rsistance organise au changement, desproblmes de coordination, des problmes daction collective et dautres problmes. Larticleargumente que, bien que cette explication soit valable dune faon gnrale pour le cas des rformesadministratives, il se peut que ce soit plus compliqu pour les rformes de gestion o la contradictionentre les objectifs dajustement fiscal et le changement intitutionnel est plus intense.

    MOTS-CLS: rformes administratives; politiques publiques; implmentation des politiques publiques.

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    COMPORTEMENT ELECTORAL VOLAGE ET REELECTION: LES VICTOIRES DE JAIMELERNER DANS LETAT DU PARAN

    Emerson Urizzi Cervi (Faculdade Internacional de Curitiba)

    Cet article prsente, donnes socioconomiques de la rgion et rsultats des lections pour legouverneur de ltat du Paran en 1994 et 1998 lappui, des lments indicant une trs grandevolatilit lectorale quon ne peut saisir dans une analyse de lagreg de ltat. Janalyse les rsultatslectoraux du vote pour lexcutif du Paran partir dune coupe gographique, dfinissant les villescomme units danalyse. Les voix obtenues par les candidats dans les villes de ltat sont regroupesselon la dimension des units et daprs leur dveloppement socioconomique, vrifi par lIDH-V(Indicateur de dveloppement humain de la ville en 1991). Les villes sont partages en micro, petites,moyennes et grandes. Pour tablir une rfrence de dveloppement conomique et social, jutilise lIndicateur de dveloppement humain (IDH), classant les villes en IDH trs bas, IDH bas, IDHmoyen et IDH lev. Lobjectif du travail est didentifier gographiquement et socialement les lecteursdes principaux candidats au gouvernement du Paran dans les deux lections analyses. Ensuite, jedmontre lexistence dune volatilit lectorale importante dans les deux lections remportes parJaime Lerner ce qui nest pas saisi lorsquon analyse le rsultat agrg des voix. Larticle discutenotamment du comportement lectoral dans les dmocraties populaires o llecteur est considrcomme lagent du processus lectoral dont les inclinations et demandes changent en permanence.

    MOTS-CLS: comportement lectoral; dmocratie populaire; volatilit lectorale; gouvernementdu Paran; Jaime Lerner.

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