leandrobarsalini1- padroes de samba na bateria

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    LEANDRO BARSALINI

    AS SNTESES DE EDISON MACHADO:UM ESTUDO SOBRE O DESENVOLVIMENTO DE

    PADRES DE SAMBA NA BATERIA

    Dissertao apresentada ao Departamentode Msica do Instituto de Artes daUniversidade Estadual de Campinas, paraa obteno do Ttulo de Mestre em Msica.rea de concentrao: FundamentosTericos.

    Orientador: Prof. Dr. Jos Roberto Zan.

    CAMPINAS

    2009

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    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA

    BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE ARTES DA UNICAMP

    Ttulo em ingles: The Syntheses of Edison Machado: a study on the

    development of samba patterns on drums.

    Palavras-chave em ingls (Keywords): Machado, Edison ; Drums ; Sambade prato ; Brazilian Music.

    Titulao: Mestre em Msica.

    Banca examinadora:Prof. Dr. Jos Roberto Zan.

    Prof. Dr. Fernando Augusto Hashimoto.

    Prof. Dr. Hernani Maia Costa.Prof. Dr. Esdras Rodrigues da Silva.

    Prof. Dr. Alberto T. Ikeda.

    Data da defesa: 14-05-2009

    Programa de Ps-Graduao: Msica.

    Barsalini, Leandro.B28s As snteses de Edison Machado: um estudo sobre o

    desenvolvimento de padres de samba na bateria. / Leandro

    Barsalini.Campinas, SP: [s.n.], 2009.

    Orientador: Prof. Dr. Jos Roberto Zan.

    Dissertao(mestrado) - Universidade Estadual de Campinas,

    Instituto de Artes.

    1. Machado, Edison. 2. Bateria. 3. Samba de prato.

    4. Msica Popular Brasileira. I. Zan, Jos Roberto.

    II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes.III. Ttulo.

    (em/ia)

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    A Pedro e Tarcsio.

    Aos que fazem do batuque sua arte.

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    AGRADECIMENTOS

    Famlia Quiuu pelo carinho, pacincia e apoio incondicionais.

    Aos meus pais e irmos; se mesmo distantes, esto sempre aqui.

    Ao amigo e Prof. Dr. Jos Roberto Zan, decisivo neste trabalho por sua orientao

    precisa e constante.

    Aos bateristas Tutty Moreno, Z Eduardo Nazrio, Chuim, Helcio Milito e Victorio

    Calzavara, que gentilmente cederam seu tempo para colaborar com esta pesquisa

    atravs de preciosos depoimentos.

    Aos professores, msicos, alunos e amigos que ajudaram no processo de minha

    formao profissional, base necessria para o desenvolvimento do trabalho.

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    RESUMO

    O presente trabalho investiga o desenvolvimento de padres de

    execuo da bateria e suas transformaes desde a insero do instrumento nocenrio do samba urbano carioca at meados da dcada de 1960. Para tanto,

    fizemos transcries e anlises das performances de importantes representantes

    das duas primeiras geraes de bateristas brasileiros: Luciano Perrone e Edison

    Machado. Relacionando os dados levantados com os respectivos contextos

    histricos, levando em conta desde elementos estticos musicais at questes

    tcnicas relativas ao instrumento, observamos nesses bateristas a sntese de duas

    matrizes para padres de execuo, chamadas respectivamente samba batucado

    e samba de prato.

    Palavras-chave: bateria, samba de prato, samba batucado, Edison Machado,

    Luciano Perrone.

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    ABSTRACT

    The present work investigates the development of samba drums

    patterns and its transformation since the insertion of the instrument in the scene ofthe carioca urban samba until the middle of the 1960s. Therefore, transcriptions

    and analyses of the performances of important representatives of the two first

    generations of Brazilian drummers were made: Luciano Perrone and Edison

    Machado. When relating the data raised with the respective historical contexts,

    considering since the musical aesthetic standards until technical issues related to

    the instrument, it was observed in these drummers the synthesis of two patterns of

    execution, respectively named samba batucado and samba de prato.

    Key words: drums, samba de prato, samba batucado, Edison Machado, Luciano

    Perrone.

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    NDICE DE FIGURAS

    Figura 1: Bateria Gaeta.......................................................................................21

    Figura 2: Foto de conjunto musical de Salto/SP (1920)......................................22

    Figura 3: Foto de baterista (1927).......................................................................22Figura 4: Os Batutas em Paris............................................................................24

    Figura 5: Os Batutas em 1923............................................................................25

    Figura 6: Foto de Luciano Perrone......................................................................31

    Figura 7: Padres de tamborim...........................................................................34

    Figura 8: Padres de agog................................................................................35

    Figura 9: Padres de cuca.................................................................................36

    Figura 10: Padro de pandeiro............................................................................38

    Figura 11: Padres de reco-reco.........................................................................39

    Figura 12: Padres de chocalho.........................................................................39

    Figura 13: Padres de caixa (samba maxixado).................................................41

    Figura 14: Padres de caixa (escola de samba).................................................41

    Figura 15: Padres de tarol (escola de samba)..................................................41

    Figura 16: Padro de surdo de primeira..............................................................43

    Figura 17: Padro de surdo de segunda.............................................................43

    Figura 18: Padro de surdo de terceira...............................................................43Figura 19: Grade de padres de percusso no samba.......................................45

    Figura 20: Frases de bateria em Faceira............................................................48

    Figura 21: Padro rtmico predominante em Faceira..........................................49

    Figura 22: Padro rtmico recorrente em Na baixa do sapateiro........................53

    Figura 23: Transcrio de bateria em Na baixa do sapateiro.............................54

    Figura 24: Transcrio de bateria em Na baixa do sapateiro.............................55

    Figura 25: Foto de sistema de fixao de prato com mola.................................61Figura 26: Foto de pedal de bumbo da dcada de 1930....................................62

    Figura 27: Smbolo Gaeta fixado em bumbo da dcada de 1920.......................62

    Figura 28: Foto de Edison Machado...................................................................75

    Figura 29: Transcrio de bateria em Deixa o breque pr mim..........................83

    Figura 30: Transcrio de bateria em Maria Teresa...........................................86

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    Figura 31: Transcrio de bateria em Maria Teresa...........................................87

    Figura 32: Transcrio de bateria em Maria Teresa...........................................88

    Figura 33: Transcrio de bateria em Viva o samba..........................................90

    Figura 34: Transcrio de bateria em Maracangalha.........................................90

    Figura 35: Transcrio de bateria em Maracangalha.........................................91

    Figura 36: Transcrio de bateria em Maracangalha.........................................92

    Figura 37: Transcrio de bateria em Bossa Trs Theme.................................97

    Figura 38: Transcrio de bateria em Bossa Trs Theme.................................98

    Figura 39: Transcrio de bateria em Cu e Mar...............................................99

    Figura 40: Transcrio de bateria em Cu e Mar.............................................100

    Figura 41: Transcrio de bateria em Cu e Mar.............................................102

    Figura 42: Transcrio de bateria em Cu e Mar.............................................102Figura 43: Transcrio de bateria em Cu e Mar.............................................102

    Figura 44: Transcrio de bateria em Samba de uma nota s.........................104

    Figura 45: Reproduo da capa do LP Edison Machado Samba Novo.......107

    Figura 46: Transcrio de bateria em Coisa n.1...............................................108

    Figura 47: Transcrio de bateria em Quintessncia.......................................109

    Figura 48: Transcrio de bateria em Quintessncia.......................................110

    Figura 49: Transcrio de bateria em Coisa n.1...............................................110

    Figura 50: Transcrio de bateria em Voc......................................................110

    Figura 51: Transcrio de bateria em Meu fraco caf forte...........................111

    Figura 52: Transcrio de bateria em Meu fraco caf forte...........................112

    Figura 53: Transcrio de bateria em Chorinho A............................................112

    Figura 54: Foto de Edison Machado.................................................................115

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    SUMRIO

    INTRODUO ........................................................................................................ 1

    CAPTULO 1 - PREMISSAS ................................................................................... 9

    1.1 A bateria ........................................................................................................ 9

    1.2 Primeiros fatos: a insero da bateria no Brasil ........................................... 10

    1.2.1 Os Pioneiros .................................................................................................... 27

    1.3 A percusso no samba ................................................................................ 31

    CAPTULO 2 - O SAMBA EM TAMBORES ......................................................... 47

    2.1 As primeiras gravaes de bateria no samba .............................................. 47

    2.2 As restries tcnicas .................................................................................. 58

    2.3 A produo do samba ................................................................................. 63

    2.4 O samba oficial ........................................................................................... 69

    CAPTULO 3 EDISON MACHADO SAMBA NOVO ......................................... 75

    CONCLUSO ..................................................................................................... 117

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................... 121

    BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ........................................................................ 127

    LISTA DE AUDIO .......................................................................................... 129

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    INTRODUO

    O presente trabalho traz como propsito principal o debate sobre odesenvolvimento de padres de execuo do samba na bateria1 desde a

    incorporao do instrumento na msica popular brasileira at meados da dcada

    de 1960.

    Porm, no pretende apresentar-se como uma espcie de manual de

    ilustraes tcnicas e analticas que encerre todos os procedimentos especficos

    desta ou daquela maneira de manipular os elementos rtmicos do samba no

    instrumento. Entendemos que as explicaes tcnicas podem ser eficientes no

    processo de expanso da compreenso de relaes puramente musicais,

    configurando valiosos mecanismos cuja necessidade de manipulao se faz

    imperativa quando o objeto de pesquisa a prpria msica. No entanto,

    acreditamos que essas explicaes, isoladas de contextos mais amplos, tornam-

    se ferramentas de trabalho que no conseguem encerrar em si a significao de

    fenmenos to complexos como, por exemplo, a bossa nova ou a msica

    instrumental brasileira da dcada de 1960. Como bem aponta o socilogo Norbert

    Elias (1991, pp.53 e 54), embora seja muito difcil conectar com a preciso de

    um bisturi o indivduo social com suas obras artsticas, no podemos cair na

    armadilha de que a maturao de um artista e sua genialidade seja decorrente

    de um processo independente e autnomo a fatores externos ao sujeito, da

    complexa gama de relaes que estabelece como indivduo humano social.

    Dentro desta perspectiva, aspectos nem sempre musicais aparecem

    interagindo direta ou indiretamente com as questes trabalhadas, e nem por isso

    1Para evitar possveis confuses, esclarecemos desde j que as referncias bateria designam

    o instrumento tocado por uma nica pessoa, e no um aglomerado de instrumentos de percussocomo da escola de samba. Quando nos referirmos a esta formao numerosa, especificaremosbateria de escola de samba.O termo padres de execuo, nesse trabalho, se refere a sequncias de dois ou maisagrupamentos rtmicos que se repetem com frequncia na execuo do samba. Podemosidentificar diferentes abordagens do instrumento por parte dos bateristas medida em queconstatamos as configuraes e empregos distintos desses padres.

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    devem ser considerados menos relevantes. Fatores anteriormente considerados

    paralelos muitas vezes vm assumir influncia direta no cerne das questes, e

    entre eles podemos enumerar: 1) aspectos tecnolgicos que interferem na prpria

    configurao do instrumento ou na questo dos registros e difuso dessespadres de execuo; 2) aspectos mercadolgicos que influenciam no processo

    criativo dos instrumentistas, em seu reconhecimento pblico e conseqente

    insero profissional; 3) aspectos poltico-ideolgicos que interferem na

    consolidao de um estilo de msica popular e refletem o movimento por

    transformaes.

    Buscaremos, enfim, estabelecer constantes conexes entre os

    elementos musicais identificados no processo de desenvolvimento do samba nabateria brasileira com fatos historicamente determinados, muitos deles j

    trabalhados por diversos pesquisadores de nossa msica. A proposta do

    presente trabalho levantar discusses a partir da anlise tcnica da bateria,

    atravs do vis musical desenvolvido por instrumentistas.

    Sendo assim, o trabalho est estruturado de maneira que cada

    captulo contenha trechos representativos de transcrio de execues de samba

    na bateria, seguidas de respectivas anlises descritivas2. Deve-se ressaltar de

    antemo que estas transcries, fontes dos dados das anlises, focaram-se em

    aspectos relacionados configurao dos agrupamentos rtmicos geradores de

    padres, no contemplando necessariamente recursos como dinmicas,

    afinaes especficas do instrumento ou elementos interpretativos ligados ao

    tempo (beat) 3. Desta forma, as anlises so direcionadas a elementos rtmicos e

    determinados procedimentos tcnicos do instrumento em questo, no

    2 Como material de apoio e referncia a estas transcries e suas anlises, utilizamos quatro

    publicaes. Duas delas abordam instrumentos de percusso e sua aplicao no samba, sendo:O batuque carioca, de Guilherme Gonalves e Mestre Odilon, e Batuque um privilgio, deOscar Bolo. As outras duas publicaes, modelos atuais de ilustrao de transcries de trechosde bateria, so: The Jazz Drummers Workshop, de John Riley, e Art Blakeys Jazz Messages,de John Ramsay.3Nesse ltimo caso, questes como tocar frente ou atrs do tempo no so mensuradas de

    forma que esses desvios interpretativos sejam indicados nas transcries. Esses recursos podemser mencionados nas anlises, e para fundamentar algumas indicaes afirmamos a necessidadedo leitor complementar sua pesquisa atravs da apreciao auditiva das msicas aqui trabalhadas.

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    compreendendo necessariamente aspectos harmnicos e/ou recursos de

    aplicao de motivos meldicos relacionados construo de temas ou trechos

    de improvisao, embora esses aspectos possam ser mencionados em algum

    momento. Ao final do trabalho, no captulo de concluses, sero estabelecidasrelaes entre os dados levantados por cada anlise descritiva, a fim de

    reconhecer, no contexto em questo, as possveis transformaes na interao

    entre baterista e o instrumento.

    Decidimos fixar nossas anlises s performances de dois bateristas

    considerados referncias no desenvolvimento de padres de execuo do

    samba: Luciano Perrone e Edison Machado. Esses msicos condensaram por

    suas habilidades, talento e condies histricas, o movimento criativo de duasgeraes de bateristas brasileiros, tornando-se protagonistas em diferentes

    cenrios musicais.

    Luciano Perrone, personagem da primeira gerao de bateristas

    brasileiros, teria sido o mais ativo na execuo de um padro de samba

    executado em tambores, do qual derivou o samba batucado. Esse padro,

    expresso em diferentes variaes, parece ter sido hegemnico at a dcada de

    1950. A partir de ento, foram desenvolvidos novos padres de execuo, seja

    para suprir as exigncias geradas por transformaes da msica popular, seja

    impulsionando algumas dessas transformaes. Entre esses novos padres

    estaria ento o samba de prato. Edison Machado, baterista da gerao seguinte

    de Perrone, seria a figura responsvel pelo desenvolvimento desse novo

    padro, impulsionando um movimento de profunda transformao e tornando-se

    referncia para posteriores bateristas.

    O critrio para escolha das gravaes analisadas obedeceu a trs

    imperativos: a) terem sido executadas por Luciano Perrone ou Edison Machado.Essa restrio, alm de anteriormente anunciada e justificada, ajuda a

    identificarmos padres sem nos perdermos em muitas variantes e sutilezas

    individuais de muitos bateristas; b) a ordem cronolgica de registro. Cremos que

    desta maneira, o leitor possa entender com maior clareza o processo de

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    desenvolvimento dos referidos padres de execuo do samba, ao deparar seus

    momentos encadeados em uma sucesso temporal contnua; c) conterem mais

    claramente ou em maior nmero os recursos tcnicos que possam exemplificar

    os padres de samba em tambores e samba de prato.A partir dos elementos levantados nas respectivas anlises, cada

    captulo completado por comentrios e reflexes desenvolvidas atravs da

    conexo desses elementos com fatores diversos que configuraram o momento

    histrico em que se deu o registro de cada gravao.

    Como premissas, faremos uma apresentao histrica da bateria,

    apontando as etapas importantes da configurao do instrumento desde seu

    surgimento, bem como sua introduo no Brasil e conseqente adoo pelosinstrumentistas locais e incorporao nossa msica popular. Em seguida,

    apresentamos um tpico onde o leitor entrar em contato com as figuras rtmicas

    caractersticas do samba, assim como os instrumentos de percusso tpicos para

    sua execuo.

    A bateria no samba: entre a frico e a hibridao

    Denominador comum da propalada identidade cultural brasileira nosegmento da msica, o samba urbano teve que enfrentar um longo eacidentado percurso at deixar de ser um artefato cultural marginal ereceber as honras da sua consagrao como smbolo nacional. Essahistria, cujo ponto de partida pode ser recuado at a virada dos sculosXIX e XX, foi toda ela permeada por idas e vindas, marchas econtramarchas, descrevendo, dialeticamente, uma trajetria quedesconhece qualquer traado uniforme ou linear. (PARANHOS, A.,2003, p.1)

    O samba nasceu como desdobramento de manifestaes localizadas

    que, ao se encontrarem no crescente processo de urbanizao, a exemplo doocorrido na capital republicana do incio do sculo XX, configuraram um tipo de

    manifestao que ultrapassou sua condio de alcance local para ser

    reconhecida como smbolo de identidade nacional. Alguns anos mais tarde, o

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    gnero atravessaria mais uma vez as fronteiras locais para ser um produto

    cultural de difuso internacional.

    Entendemos que toda essa trajetria carrega e reflete uma

    caracterstica inerente ao processo de formao de uma jovem nao. Umterritrio que abriga uma complexa diversidade de relaes culturais e raciais

    como o Brasil encontra na sua histria uma grande dificuldade de auto-

    reconhecimento. A importncia da msica popular nesse contexto to decisiva

    que h tempo se tornou um significativo campo de debate a partir do qual

    intelectuais - nem sempre msicos - vm discutindo a formao de uma

    identidade nacional e as relaes de representaes do autenticamente

    brasileiro com elementos estrangeiros.A necessidade de convergncia dos diversos interesses regionais do

    pas impulsionou no incio da dcada de 1930 um movimento de centralizao

    poltica (que culminaria com o regime ditatorial de Getlio Vargas) e projetos

    modernistas de construo da cultura brasileira que teriam promovido o samba a

    msica nacional. Como aponta Hermano Vianna (1995, p.56):

    (A questo da unidade da ptria) foi um dos mais graves problemaspolticos das terras brasileiras, desde seus tempos coloniais, e recebeurespostas e propostas de soluo divergentes durante toda a nossahistria, alternando momentos de centralizao com outros dedescentralizao poltica, e apresentando mesmo combinaesestranhas das duas tendncias antagnicas. Podemos mesmo interpretara transformao do samba em msica nacional (e uma determinadacultura popular em cultura nacional) como uma dessas respostas noplano cultural.

    A tese central de Vianna consiste em demonstrar como a promoo do

    samba a msica nacional, algo aparentemente repentino, teria sido de fato o

    resultado de um longo processo histrico de miscigenao e contatos entre

    diferentes grupos sociais na tentativa de inventar uma tradio nacional. E nesse

    processo, as interaes entre elementos locais e estrangeiros (o regio e o

    cosmo) teriam sido constantemente trabalhadas por agentes mediadores.

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    A partir da perspectiva da insero da bateria na msica brasileira e

    sua relao com o samba, veremos em que medida determinada produo

    musical representou diferentes nveis de conflito entre o local e o estrangeiro. De

    acordo com a intensidade desses conflitos, proporcionada no somente pelocontexto histrico em que ocorreram, mas principalmente pelo nvel de

    conscincia dos agentes mediadores (em nosso caso, os bateristas) e sua

    singular manipulao do instrumento, poderemos identificar momentos de

    hibridao musical (CANCLINI, 2008) e de frico de musicalidades (PIEDADE,

    2005, pp.197 a 207).

    Nstor Garcia Canclini, ao trabalhar com a perspectiva das relaes

    globalizadas no cenrio cultural contemporneo, utiliza-se de um conceitoanteriormente aplicado pelas cincias biolgicas, para referir-se ao modo pelo

    qual modos culturais ou partes desses modos se separam de seus contextos de

    origem e se recombinam com outros modos ou partes de modos de outra origem,

    configurando, no processo, novas prticas (COELHO, 1997, p.125). Nesse

    sentido, a hibridao consistiria em uma espcie de combinao inovadora, fruto

    da reconverso de um patrimnio que no nosso caso cultural, a fim de tornar

    possvel sua insero em novas condies de consumo e produo. Pelas

    prprias palavras de Canclini, a hibridao, como processo de interseco e

    transaes, o que torna possvel que a multiculturalidade evite o que tem de

    segregao e se converta em interculturalidade (2008, pp.xxv e xxvi). Embora

    esse processo seja considerado pelo prprio autor como uma fuso, ele no

    ocorre absolutamente sem conflitos:

    Justamente ao passar do carter descritivo da noo de hibridao como fuso de estruturas discretas a elabor-la como recurso de

    explicao, advertimos em que casos as misturas podem ser produtivas equando geram conflitos devido aos quais permanece incompatvel ouinconcilivel nas prticas reunidas. (op. cit., loc. cit.)

    Por sua vez, o musiclogo Accio Piedade, entendendo que a msica

    instrumental brasileira expressa uma desigualdade presente em seu cerne,

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    abandona as idias de transmisso, assimilao ou aculturao que resultariam

    em uma sntesee adota a idia de que h uma interao contnua em que as

    fronteiras musical-simblicas no so atravessadas, mas so objetos de uma

    manipulao que reafirma as diferenas. (2005, p.200). Nesse contexto, a idiade fuso substituda por frico, um permanente confronto que revela

    desigualdades entre musicalidades distintas que no se complementam. Sua

    relao no assumiria um carter construtivo, e sim de tenso (Ibid., p.203).

    Em nosso entendimento, a insero da bateria na msica brasileira,

    um instrumento tipicamente norte-americano, cujas referncias de

    desenvolvimento tcnico-musical esto intimamente conectadas ao

    desenvolvimento do jazz, traz consigo uma significativa representao simblicade um contato que pode ser entendido como hibridao. No entanto, por

    reconhecermos que esse processo alterna em seu decorrer idas e vindas,

    marchas e contramarchas, supomos haver a um estado constante de tenso

    que se manifesta na prpria msica brasileira, ora minimizada e ora exposta em

    maior grau. Nestes momentos em que a tenso aflora, preferimos substituir o

    conceito de hibridao pela frico de musicalidades.

    Compreender as variaes nos nveis de tenso de musicalidades

    existentes a partir da presena da bateria em nossa msica, desde a adaptao

    da linguagem musical dos instrumentos tpicos de samba bateria; bem como as

    possveis absores de musicalidades estrangeiras e sua singular manipulao

    no contexto da msica nacional expressada atravs de duas matrizes de padres

    de execuo do ritmo determinam, em ltima instncia, o pano de fundo da

    presente pesquisa.

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    CAPTULO 1 - PREMISSAS

    1.1 A bateria

    A bateria um instrumento mltiplo, ou seja, consiste em uma juno

    de diferentes instrumentos de percusso, e executado de forma preponderante na

    msica popular. H hipteses de que o instrumento tenha se originado em circos

    ou em vaudevilles (espetculos de variedades norte-americanos); porm seu

    desenvolvimento acompanha o nascimento do jazz em New Orleans, por volta de

    1900. Junto a agrupamentos de trompete, clarineta, trombone, tuba e banjo, a

    bateria do New Orleans Dixieland jazz style era inicialmente formada por umgrande bumbo de 28 a 30 polegadas de dimetro (trazido diretamente das

    paradas militares ou dos desfiles funerrios), uma caixa (geralmente apoiada

    sobre uma cadeira), um pequeno prato chins (comumente de 12 a 13 polegadas,

    trazido por imigrantes), e uma srie de acessrios, como cowbell, wood block,

    temple block 4. Desta maneira, os pioneiros do instrumento animavam as mais

    diversas festas no estilo double drumming, ou seja, tocando todos os instrumentos

    somente com as baquetas. Tambores chineses foram adicionados ao set e

    ocuparam as funes que hoje so dos tom-toms (COOK, 1997, p.275).

    Desde meados do sculo XIX, sucessivos projetos e tentativas de

    desenvolver pedais para o bumbo foram empreendidos, sendo que alguns deles

    combinavam simultaneamente toques no bumbo e em prato fixado no prprio

    bumbo. No entanto, por serem de madeira e no conterem molas, esses pedais

    rudimentares eram muito lentos e pesados, exigindo grande esforo dos

    instrumentistas. provvel que, entre outros fatores, as exigncias musicais

    4Cowbell: acessrio de percusso feito de metal, conhecido no Brasil tambm como sino de vaca;

    wood block: acessrio de percusso originrio da China, feito de uma pea retangular de madeiradura, com um fino corte horizontal perto de sua superfcie, o que promove uma ressonnciacaracterstica; temple block: acessrio de percusso originrio da China, feito atravs daescavao de pedaos slidos de madeira, deixando-os ocos e ressonantes. Ao conjunto dessesacessrios, somados a outros aparatos de ornamentos, deu-se o nome trap sets (Cf. COOK,1997).

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    impostas pelo ragtimeao baterista tenham estimulado o surgimento de um pedal

    para bumbo - patenteado por Ludwig em 1910 - capaz de fazer desaparecer o

    estilo double drumming. Esse pedal tinha a base de metal e uma mola que

    possibilitava o retorno automtico do batedor.Os primeiros pedais para prato foram patenteados em 1926 por Leedy,

    conhecidos por low boys(dotados ento por dois pratos de 10 polegadas), espcie

    de verso simplificada em miniatura do chimbau que conhecemos hoje (HUNT,

    1994, p.7). Dos anos 30 at hoje, h uma evoluo constante e gradual no

    instrumento, mas sua formao tpica, o set padro (bumbo, caixa, tom-toms,

    chimbau e um ou dois pratos) continua a mesma.

    1.2 Primeiros fatos: a insero da bateria no Brasil

    a) A questo das bandas militares

    Elucidar com preciso de que maneira e em que data a bateria chegou

    ao nosso pas uma tarefa complicada, j que h escassez de documentao

    fonogrfica e textual relativa ao instrumento nesse perodo, bem como pelasinformaes contraditrias que estes documentos contm.

    As primeiras gravaes musicais com propsito de comercializao

    foram realizadas no Brasil em 1897, ainda em cilindros, por empreendimento de

    Fred Figner. Nascido em 1866 na Bomia, emigrou para os Estados Unidos onde

    comeou a fazer negcios com fongrafos. Por volta de 1891, viajou pela Amrica

    Latina e passou carregando as novidades tecnolgicas do momento (fongrafos,

    gramofones, etc.) por vrias regies do Brasil, tendo se fixado no Rio de Janeiro.

    Em 1902, j proprietrio da casa Edison, onde vendia entre outros produtos

    cilindros e discos importados, Figner montou um estdio em sua loja e, atravs do

    sistema mecnico de gravao, produziu as primeiras matrizes de discos

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    brasileiros (Cf. TINHORO, 1981; FRANCESCHI, 2002 e RANGEL, 2007, pp.134

    a 139).

    No mesmo ano em que Enrico Caruso gravava dez rias para a

    Gramophone Co. em Milo, o popular Baiano passava para a cera o primeirodisco nacional, Isto bom, e mais 72 outros, conforme se l no primeiro catlogo

    publicado pela Casa Edison em 1902 (apud RANGEL, op. cit., p.134).

    Alm do pioneiro Baiano, participaram dessas gravaes Cadete e o

    flautista Patpio Silva. Os cantores, de indispensvel potncia vocal a fim de se

    fazer registrar nas ceras das chapas, foram muitas vezes acompanhados pelas

    bandas da prpria casa Edison e pela famosa Banda do Corpo de Bombeiros,

    liderada por Anacleto de Medeiros. Neste primeiro perodo das gravaes noBrasil, essas bandas foram responsveis pela maioria dos registros da msica

    instrumental, devido ao considervel prestgio que gozavam. Como nos esclarece

    Jairo Severiano (2008, p.47 a 49), asbandas militares, em meados do sculo XIX,

    eram as principais difusoras da msica instrumental nas grandes cidades, sendo

    convidadas a tocar em diversos lugares sob quaisquer pretextos.

    Ao assumir a direo da banda dos bombeiros cariocas em 1896,

    Anacleto pde aliar seu singular talento de compositor e arranjador autonomia

    que teve ento para arregimentar naquela banda os melhores msicos que

    compunham os grupos de choro daquele tempo. Portanto, pistonistas,

    clarinetistas, flautistas, bombardinos, trombonistas e mesmo contrabaixistas de

    renome no meio da msica popular passaram a tocar, sob a batuta de Anacleto,

    refinados arranjos e composies de polcas, valsas, dobrados e scottisches -

    ritmos importados da tradio europia, ento em voga no entretenimento da

    aristocracia - trabalhados a partir da experincia dos chores. nesse contexto

    que podemos ento interpretar a colocao de Henrique Cazes (1998, p.42) deque em 1906, em gravaes da casa Edison, o tarol, usado normalmente para

    acentuar os ataques de metais, como nos arranjos usuais do repertrio cvico, j

    ensaia uma levada no Maxixe das Brochas.

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    Durante o perodo inicial da produo fonogrfica brasileira, em que o

    mercado consumidor era ainda incipiente e reservado parcela mais rica da

    populao, as bandas militares e o teatro de revista foram os principais meios de

    divulgao popular das obras compostas naquele momento. Conforme o relato deTinhoro (2005, p.127):

    Em setembro de 1906, j convidado para o cargo de ministro da Guerrado governo Afonso Pena, que se inauguraria em 15 de novembrodaquele ano, o recm-promovido marechal Hermes da Fonsecacomandava sua segunda grande manobra em Santa Cruz quando oministro alemo, baro Von Reichau, presente aos exerccios naqualidade de adido militar da Embaixada da Alemanha no Rio, pediu banda militar do Exrcito que tocasse alguma msica brasileira, e foiatendido com a execuo do tango-chula de maior sucesso no carnaval

    daquele ano, o nada protocolar Vem c mulata, danado como maxixenas ruas, nos clubes e no palco do Palace-Teatro, numa revista estreadanaquele ms de setembro.

    Podemos concluir que a percusso dessas bandas (geralmente bumbo,

    prato a dois e tarol) dava suporte para uma nascente linguagem, em que gneros

    estrangeiros eram abrasileirados justamente pela distinta manipulao rtmica

    que os executores cariocas desempenhavam5.

    Alm da Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, em outros

    pontos do pas despontaram importantes corporaes musicais que garantiam aveiculao da nossa msica popular, a exemplos da banda de msica da Fora

    Pblica de So Paulo (dirigida pelo maestro Anto) e da Banda do 1 Batalho da

    Polcia da Bahia. Nas cidades interioranas, a divulgao da msica popular era

    garantida pelas freqentes bandas de coreto.

    Apesar de constada a proeminente atuao dos instrumentos de

    percusso em todo esse contexto musical do incio do sculo XX, remota a

    possibilidade de que a bateria tenha sido incorporada nossa msica como um

    5Ao contrrio dos msicos de Anacleto de Medeiros, muitos deles oriundos dos meios do choro,os da Banda da Fora Policial de So Paulo produziam sob a batuta do maestro Anto Fernandesum som duro e marcial, mesmo nas mais alegres danas populares (...), pois at na gravao deum maxixe intitulado exatamente O maxixe o que fazia esperar algum malicioso sapecadortmico o som que se ouve ainda o de uma banda militar, desembaraando-se das armadilhaspopulares cariocas da partitura com a dignidade superior de um conjunto musical cosmopolita(TINHORO, 2005, p.129).

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    instrumento decorrente da juno dos trs instrumentos de percusso tradicionais

    da banda militar. Parece-nos claro, no entanto, que procedimentos tcnicos

    provenientes da execuo musical das bandas militares tenham influenciado a

    execuo dos primeiros bateristas brasileiros.A difuso da bateria no Brasil (que desde seus primeiros relatos

    identificada como americana, justamente para diferenciar do naipe de

    percusso) teria sido conseqncia da importao de elementos culturais, reflexo

    de um processo de industrializao e modernizao deflagrado principalmente na

    cidade do Rio de Janeiro. Esse processo iniciou-se por volta de 1880 e culminou

    com a importao de bens de consumo norte-americanos no perodo posterior a

    Primeira Grande Guerra. Segundo Tinhoro (1990, p.90),

    a passagem da monarquia para a repblica de 1889, anunciando oadvento poltico das camadas urbanas ligadas ao Partido Republicano de1870, iria marcar coincidentemente, no plano econmico, igual passagemdo Brasil da esfera de dependncia dos capitais ingleses para a doscapitais norte-americanos, atravs de um silencioso processo que seconsolida durante a Primeira Guerra Mundial.

    b) A belle poquecarioca

    Antiga capital brasileira, a cidade do Rio de Janeiro foi durante um

    longo perodo o centro poltico, econmico e cultural do pas, protagonizando

    importantes acontecimentos histricos. No que tangem os aspectos culturais,

    podemos sumariamente identificar dois universos extremos de prticas musicais

    no incio do sculo XX, um perodo classificado pelo historiador Jeffrey Needell

    (1993) como a belle poque tropical. Por um lado, a poderosa aristocracia

    descendente das tradies colonialistas latifundirias e escravocratas(especificamente no caso carioca, cafeicultores da baixada fluminense), e por

    outro lado a numerosa populao de trabalhadores negros e mulatos recm

    libertos que dividiam espaos com pequenos comerciantes e funcionrios pblicos

    de baixo escalo. Vamos rapidamente contextualizar esses dois plos da esfera

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    social que, apesar de seu antagonismo, dialogavam e interagiam mutuamente no

    dinmico processo de convivncia urbana.

    A partir de 1870, importantes fatores impulsionaram o surgimento de

    novas elites, que gradativamente deslocaram-se do meio rural para as cidades. Omovimento abolicionista transformou as relaes de trabalho no campo e

    proporcionou a migrao de trabalhadores rurais para os centros urbanos,

    acompanhando as transformaes estruturais das cidades. Negros recm

    alforriados do interior do estado carioca, bem como muitos migrantes do estado da

    Bahia juntaram-se a trabalhadores urbanos, configurando uma grande classe

    pobre que sustentava o mercado de trabalho mais pesado, braal ou informal.

    Ocupando a regio prxima ao cais do porto, na cidade velha, essa populaoafro-brasileira trazia consigo as manifestaes religiosas ligadas ao candombl,

    bem como a prtica da capoeira e dos batuques de umbigada. Em todos os casos,

    a presena da percusso se fazia fundamental e predominante, com o intenso uso

    de atabaques. Esse seria o universo em que se desenvolveram os primeiros

    sambas urbanos cariocas, ainda fortemente ligados ao samba de roda baiano e

    aos batuques rurais.

    Enquanto no campo, apesar dos progressos da policultura e do fim daescravido, (...) nos grandes centros o enquadramento viria a ser omesmo dos pases capitalistas. Isso significava uma classe alta formadapela minoria dos ricos (chamados capitalistas) e gente de prestgio;uma classe mdia dividida pelo menos em duas camadas a dosprofissionais liberais, militares de patente, funcionrios graduados eboas famlias com alguma aproximao com a classe alta, e a doscomerciantes, pequenos proprietrios, funcionrios pblicos civis emilitares e trabalhadores especializados com desejos de ascenso social

    e, finalmente, uma classe baixa, englobando os trabalhadores noespecializados e a vasta massa heterognea dos biscateiros esubempregados em geral. Pois seriam as expectativas de tais classes,assim estruturadas, que iriam explicar, a partir do fim da monarquia epelas vrias repblicas que a sucederam, o gosto por este ou aquelegnero de msica popular, que agora comearia a ser produzida comcarter de artigo destinado ao consumo cultural da sociedade urbana (Tinhoro, op. cit., p.208).

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    Em contraponto aos movimentos musicais populares, que abrangiam

    desde os contextos citados a pavilhes, circos e chopes-berrantes6, a aristocracia

    cultivava manifestaes culturais modeladas segundo os padres europeus,

    principalmente os franceses e ingleses: clubes sociais (como o CassinoFluminense, o Club dos Dirios e o Jockey Club) e os sales, reunies privadas

    onde costumeiramente as senhoritas executavam ao piano as danas europias

    em voga (Cf. NEEDELL, 1993).

    Esses ambientes distintos eram ocasionalmente interligados pela

    atuao de protagonistas como Chiquinha Gonzaga (1847-1935) e Ernesto

    Nazareth (1863-1934), pioneiros no processo de fixao do choro como gnero

    musical. Habilidosos na composio de peas que agregavam elementos rtmicosafro-brasileiros a estruturas musicais europias, esses compositores teriam sido o

    que Dilmar Miranda (1998, p.47) chamou de espritos renovadores da linguagem

    artstica, aproveitando uma srie de elementos protoformadores numa nova forma

    esttica. Suas obras seriam espcies de mediaes artsticas dos mltiplos

    atravessamentos musicais e extras musicais observados naquele momento social

    (MIRANDA, op. cit., p. 48). Podemos entender Corta Jacae Odeon, composies

    populares desses artistas, no somente como simples reflexo das contradies

    entre culturas e racionalidades distintas eminentes naquele Brasil de incio de

    sculo. Acima disso, estas peas incorporaram, atravs de suas respectivas

    formas, o encontro entre musicalidades estrangeiras e locais. Sua execuo pode

    tanto permear a erudio das salas de concerto europias quanto a libido das

    danas de origem negra. Atravs do distanciamento histrico de que dispomos,

    ouvimos essas obras como snteses harmoniosas do encontro de musicalidades,

    exemplos de hibridao fixadora de certa linguagem brasileira. Porm, no

    podemos ignorar que, aparte as questes comportamentais da poca, que noadmitiam o perfil feminino de Gonzaga, sua msica no foi amplamente aceita de

    imediato. Tanto para Chiquinha como para Nazareth, trabalhar com aquele

    6Os chopes-berrantes eram barulhentas casas noturnas existentes no centro do Rio de Janeiro no

    incio do sculo XX. Esses locais ofereciam diverso e cenas de variedades acompanhadas debebida e de comida.

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    encontro de musicalidades significou em primeiro momento uma relao

    conflituosa, cujo reflexo se faz notar seja pelas dificuldades enfrentadas pela

    carreira da compositora, seja pelos registros do compositor, cujas obras

    freqentemente eram classificadas como tango. 7O relato de Luiz Edmundo (apud NEEDELL, op. cit., p.195), referindo-se

    Rua do Ouvidor (RJ) no incio do sculo XX, representa bem o conflito cultural

    daquele momento:

    Em meio a essa parada de elegncias, porm, no era raro ver-se surgirum negro cor de piche, bbado, a cambalear, aos encontres, afastandoos transeuntes, nas caladas, uma cabrocha mostrando um seiogelatinoso e luzidio fora da blusa farrapenta ou um capoeira da Sade ou

    do Saco de Alferes, em meneios de ginga, o chapu mole a lhe sair, pelocachao, cigarro atrs da orelha e porrete na mo, cheirando a parati, aberrar como um louco:- Entra nag, guaimu ta a!

    Formado sob a ideologia do progresso cunhada pelos centros

    intelectuais europeus, o engenheiro Pereira Passos, ex-aluno da cole des Ponts

    e Chaussesde Paris, enquanto prefeito do Rio de Janeiro de 1902 a 1906 levou

    a cabo grandes reformas estruturais na cidade que modificaram seu panorama

    cultural. Inspirado nas obras executadas por Haussmann na cidade de Paris,Passos demoliu em um ano e meio cerca de 590 edificaes do estreito mundo

    proletrio da Cidade Velha para a construo da Avenida Central (depois

    rebatizada Avenida Rio Branco), impulsionando uma grande parcela da populao

    pobre a ocupar os morros perifricos. A propsito dessa reestruturao, o literato

    Olavo Bilac escreveu (in Chronica, apud NEEDELL, op. cit., p.70) refletindo a

    ideologia aristocrata daquele momento:

    H poucos dias, as picaretas, entoando um hino jubiloso, iniciaram ostrabalhos de construo da Avenida Central, pondo abaixo as primeirascasas condenadas (...) comeamos a caminhar para a reabilitao. Noaluir das paredes, no ruir das pedras, no esfarelar do barro, havia umlongo gemido. Era o gemido soturno e lamentoso do Passado, do Atraso,

    7 A exemplo das peas Brejeiro, Escovado, Odeon, Favorito, entre outras. (Cf. FRANCESCHI,

    2002, ilustraes musicais e site do IMS in http://acervos.ims.uol.com.br/cgi-bin/wxis.exe/iah/).

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    do Oprbrio. A cidade colonial, imunda, retrgrada, emperrada nas suasvelhas tradies, estava soluando no soluar daqueles apodrecidosmateriais que desabavam. Mas o hino claro das picaretas abafava esseprotesto impotente. Com que alegria cantavam elas as picaretasregeneradoras! E como as almas das que ali estavam compreendiam

    bem o que elas diziam, no seu clamor incessante e rtmico, celebrando avitria da higiene, do bom gosto e da arte!

    O processo de reestruturao urbana no Rio de Janeiro deflagra a

    conseqente delimitao dos espaos sociais. Nessa nova configurao, os

    ncleos herdeiros diretos de tradio negra comeam a subir os morros, gerando

    um espao paralelo que preservar sua maneira as caractersticas mais

    folclricas do samba. Nesse meio, foram mantidos aspectos relacionados a

    antigas caractersticas sociais que remetem origem do samba, ou seja, asreunies festivas que combinavam elementos religiosos e elementos coreogrficos

    da dana em roda. O improviso musical ficou garantido como elemento

    fundamental na complementao de versos cantados por um solista e seguido por

    um coro (o samba de uma nica parte), sob a predominncia dos instrumentos de

    percusso.

    Por outro lado, no espao social do asfalto (as reas reestruturadas),

    desenvolveu-se uma msica tambm chamada de samba, mas com

    caractersticas distintas daquele samba batucado, algo que seria chamado de

    samba urbano, em parte desprovido daqueles elementos tradicionais (como

    aspectos religiosos e coreogrficos). Nesse contexto, as presenas da percusso

    e do coro foram amenizadas, e os versos improvisados substitudos por uma

    segunda parte fixada, transformando dessa maneira a estrutura do discurso

    musical. Como escreveu Tinhoro (1974, p.5),

    Por oposio msica folclrica (de autor desconhecido, transmitidaoralmente de gerao a gerao), a msica popular (composta porautores conhecidos e divulgada por meios grficos, como as partituras,ou atravs de discos, fitas, filmes ou vdeo - tapes) constitui uma criaocontempornea do aparecimento de cidades com um certo grau dediferenciao social.

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    c) A influncia norte-americana: difuso da bateria no Brasil

    Impulsionada pelo contnuo processo de industrializao, no incio dosculo XX foi se ampliando na cidade do Rio de Janeiro outra recente classe

    social urbana, uma classe mdia formada por funcionrios pblicos, profissionais

    liberais, comerciantes, prestadores de servios e burocratas. Essa camada da

    populao, ao mesmo tempo em que reunia condies financeiras para usufruir as

    novidades de consumo no durveis, projetava uma condio de ascenso social,

    passando a rejeitar as manifestaes culturais da classe baixa. Nesse momento,

    os investimentos norte-americanos no Brasil foram substituindo gradativamentenossas relaes econmicas com a Europa, sendo que ao final da Primeira

    Guerra, os Estados Unidos tornam-se nosso maior parceiro comercial. O reflexo

    disso no ambiente cultural do Rio de Janeiro foi a difuso de padres norte-

    americanos atravs da produo cinematogrfica e da comercializao de discos

    de cake-walks, fox-trots, charlestonse similares, deflagrando no Brasil o prenncio

    de uma indstria voltada ao consumo de bens culturais. Como aponta Paranhos

    (2003, p. 5),

    Ao se examinar a discografia brasileira em 78 rpm, verifica-se que helementos suficientemente expressivos da penetrao do fox-trotdesde asegunda metade da dcada de 10. A influncia de gneros musicaisnorte-americanos, com o fox frente, se acentuou nos anos 20. apoca da constituio de diversas jazz-bands, dentre as quais a doBatalho Naval do Rio de Janeiro.

    Ao se referir nova classe mdia urbana, Tinhoro escreveu (1990, p.

    252):

    Para essa gente que comeava a freqentar cinemas, confeitarias, aexibir-se nas pelousesdos hipdromos e nos palanques das regatas, afazer footingnas avenidas, a ter aventuras amorosas em garonirese acultivar o vcio elegante do pio e da cocana, bom era sinnimo denovo. E tais novidades anunciadas quase sempre pelo cinema vinham naturalmente dos Estados Unidos.

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    justamente nesse contexto que teria se efetivado o surgimento da

    bateria no Brasil. Para suprir essa moda dos ritmos norte-americanos, ento em

    voga, as bandas brasileiras foram impulsionadas a adotar o instrumento, mesmoque ainda precariamente devido s dificuldades de sua importao. Iniciava-se o

    perodo da multiplicao dasjazz bandsno s na capital brasileira como em todo

    o pas.

    Segundo Tinhoro (1990, p.253), teria sido o alvssimo baterista e

    pianista euro-americano Harry Kosarin quem daria a conhecer aos cariocas e

    paulistas, a partir de meados de 1919, com as exibies do seu Harry Kosarin

    Jazz Banda novidade da bateria americana. Este hiptese contradiz informaes

    trazidas pelas Notas Teatrais de Revista Fon-Fon de 1 de dezembro de 1917

    (apudIKEDA, 1984) que revelam:

    Esta glria cabe aos Estados Unidos de onde veio agora para a orquestrado Teatro Fnix (RJ) um msico trepidante que, alm de batucar em onzeinstrumentos diversos, ainda por cima sopra uns canudos estridentes eremexe-se durante todo o espetculo, numa espcie de giguecircunscritaao lugar que ele ocupa no meio aos seus colegas.

    Segundo o pesquisador Alberto Ikeda, o referido msico trepidanteseria Harry Kosarin, presente ento no Brasil dois anos antes do que registrou

    Tinhoro, acompanhando a American Rag-Time Revue. A informao da revista

    no explicita propriamente a existncia de uma bateria (talvez porque o termo no

    estivesse estabelecido), indicando apenas um aglomerado de onze instrumentos

    que so batucados. No entanto, conforme bem notou o pesquisador Uir Moreira

    (2005, p.126), a palavra ragtime no nome do grupo nos induz a acreditar a

    existncia de um baterista entre seus msicos.

    As contradies aumentam se considerarmos mais duas fontes

    relativas ao assunto. A escritora Botyra Camorim, em seu livro sobre a vida

    artstica do maestro Ga (1985), da cidade de Salto (interior de So Paulo),

    publicou uma foto datada de 1920 em que aparece uma orquestra de cinema

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    mudo (o Cine Pavilho de Salto) com uma bateria completa para a poca, com

    bumbo, pedal, caixa, prato pendurado no aro do bumbo e provavelmente

    percutido com o pedal woodblocks e pandeiro (Figura 2). Se levarmos em

    considerao a hiptese de que o instrumento tenha aportado no pas no Rio deJaneiro em meados de 1919, conforme aponta Tinhoro, surpreendente que

    apenas um ano mais tarde ele aparea completo no interior de So Paulo.

    O msico e pesquisador Hardy Vedana (1987, pp.17 e 18), por sua vez,

    afirma:

    O brasileiro somente comeou a usar a bateria completa, como hoje aconhecemos, a partir de 1924. que naquele ano um conjunto de jazz

    americano, de nome Gordon Stretton Jazz Band, tendo como cantoraLittle Hester, fizera uma turn pela Amrica do Sul com a Companhia deRevistas Bataclan, da Mistinguete, trazendo entre os instrumentosalguns ilustres desconhecidos: o banjo, que viria a substituir o violo nosconjuntos musicais, e a bateria, com bombo, caixa clara, pratos,cincerros, cocos e uma infinidade de acessrios, todos acoplados emuma pea s, obtendo um sucesso sem precedente. Basta dizer que obaterista do conjunto, em virtude da fama que aqui obteve, acabou seradicando no Brasil. O percussionista brasileiro tocava as peas citadasacima, mas isoladas. Normalmente era usada a caixa clara separada dobombo, sendo necessrios dois instrumentistas.

    Em uma visita ao Museu Oswaldo Russomano, da cidade de Bragana

    Paulista, no interior de So Paulo, localizamos uma antiga bateria de marca

    Gaeta. Luiz Gaeta foi pioneiro na construo de instrumentos musicais na cidade

    de So Paulo, sendo que sua manufatura data da dcada de 1920. A bateria

    exposta no museu, cuja foto reproduzimos a seguir, aparece tambm em uma foto

    datada de 1924, de posse do referido museu, pertencente ento a uma jazzlocal.

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    Figura 1: Parte de bateria Gaeta exposta no Museu Oswaldo Russomano

    Apesar da impreciso em relao data de chegada da bateria no

    Brasil, fica-nos claro o contexto em que esse fato ocorreu: o perodo do cinema

    mudo e dasjazz bands. Com a difuso da dana e da msica norte-americana na

    capital brasileira, grupos locais, ao incorporarem os ritmos estrangeiros em seurepertrio, passariam a denominar-se jazz bands. No entanto, no se deve

    considerar jazz bands necessariamente como bandas cujo repertrio era

    estritamente tocado na linguagem jazzstica; era sim muito mais um sinnimo de

    modernidade do grupo, refletido em seus trajes, sua postura e em sua

    instrumentao(que passava decisivamente a incorporar a bateria americana).

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    Figura 2: Foto datada de 1920, de conjunto que acompanhava o Maestro Ga.Acervo do Museu da cidade de Salto/SP. Fonte: Moreira, 2005.

    Figura 3: Foto de 1927. Baterista Zeca Nardeli da cidade de Salto/SP.Coleo Maria Aurora e Maria Ignez Marques de Oliveira.Acervo: Museu da cidade de Salto/SP. Fonte: Moreira, 2005.

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    No entanto, conforme cita Srgio Cabral (1997, pp.100 e 101), a

    aceitao da bateria no foi unnime:

    A moda das jazz-bands foi to avassaladora que mesmo as orquestrasde cordas, que tocavam geralmente nos cafs e nas confeitariaselegantes, passaram a intitular-se jazz-bands. (..) Nem todos eramfavorveis a tal modismo. O Centro Musical do Rio de Janeiro chegou aestabelecer a formao das orquestras, de acordo com o local detrabalho, para impedir o ingresso de instrumentos que, segundo osresponsveis pela deciso, nada tinham a ver com as finalidades daqueletipo de atividade. Em seu excelente livro Acordes e Acordos, em queconta a histria do Sindicato dos Msicos do Rio de Janeiro, a escritora e

    jornalista Eulcia Esteves fala de uma assemblia do Centro Musical, em1926, em que foram lidas duas cartas relacionadas com a questo. Aprimeira foi enviada pelo associado Tertuliano de Lima, tocador debombo, reclamando por ter sido substitudo na Orquestra do Teatro

    Carlos Gomes por um msico de bateria americana, e que nem scio erado Centro.

    Para termos idia da fora desse modismo das jazz-bands, citamos

    aqui alguns exemplos de formaes musicais que a partir de 1923 adotaram essa

    expresso a sua identificao: Jazz Band Sul Americano de Romeu Silva, Apolo

    Jazz Orchestra, American Jazz Band Slvio de Souza (Rio de Janeiro); Jazz Band

    Andreozzi, Jazz Band Repblica, Jazz Band Caracafu, Jazz Band Salvans,

    Orquestra Rag Time Fusellas, Jazz Band Imperador (So Paulo); Jazz Band

    Mirarar, Jazz Band Scala (Santos); Espia S Jazz Band, Rei Jazz Band, Royal

    Jazz Band, Jazz Band Guarani, Jazz Band Cruzeiro (Porto Alegre) (Cf. VEDANA,

    1987).

    Nesse mesmo ano de 1923, msicos egressos do importante e

    renomado conjunto Oito Batutas, como Donga, Nelson Alves e J. Toms, aps

    desavenas internas ocorridas no grupo em sua turn pela Argentina, fundaram

    um novo conjunto intitulado Oito Cotubas, abandonando o estilo regionalista que

    outrora adotaram os pioneiros grupos de Pixinguinha (como o Caxang). Os

    Cotubas apontavam para o novo, portando-se ao estilo das jazz bandsda poca,

    incorporando o terno e a gravata, msica internacional no repertrio e, claro, a

    bateria na instrumentao, que foi assumida pelo prprio J. Toms. A propsito de

    uma apresentao dos Cotubas imprensa carioca, o representante do Correio da

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    Manh impressionou-se com o uso do instrumento, que descreveu como um

    verdadeiro arsenal de pancadaria musical que produz efeitos curiosssimos (apud

    CABRAL, 1997, p.97). Ao retornarem de sua excurso pela Argentina, a 31 de

    maio de 1923, os Oito Batutas de Pixinguinha, preocupados em identificarem-secom os novos tempos, tambm incorporam a bateria ao conjunto, tornando-se

    ento a Bi-Orquestra Os Batutas. O responsvel pela execuo da bateria foi

    Eugnio de Almeida Gomes, conhecido como Submarino.

    Figura 4: Os Batutas em Paris (1922)Fonte: Cabral, 1978.

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    Figura 5: Os Batutas em 1923.Fonte: Cabral, 1978.

    Vale notarmos nesse processo de transformao de comportamento

    no somente na mudana dos trajes, na incorporao de novos instrumentos -

    trombone, sax, banjo, piano, alm da j citada bateria - e na postura dos msicos

    diante dos registros fotogrficos. Os repertrios praticados a partir de ento por

    essas bandas tambm aparecem como indicativos dessa influncia de elementos

    estrangeiros no processo de desenvolvimento da msica popular nacional . De

    forma semelhante aos contextos vividos por Ernesto Nazareth e Chiquinha

    Gonzaga, nos deparamos novamente com um encontro de distintos padres

    estticos e culturais.

    O pblico que freqentava os eventos animados pelas jazz bands

    pertencia s classes mdia e alta, pois a entrada em um cabar no era acessvel

    a qualquer pessoa. Conforme registra Cabral (op. cit.), aquela era uma poca boapara os msicos em termos de mercado de trabalho. Os Oito Cotubas, por

    exemplo, foram contratados pelo Cabar Fnix por um ms pela quantia de cem

    mil ris dirios, praticamente o salrio mdio mensal de um trabalhador comum.

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    Os Batutas, por sua vez, animavam festas de empresrios e intelectuais de

    projeo. Observemos os respectivos repertrios (apud CABRAL, 1978, p.50):

    a. Oito Cotubas: Von and tem, When Budha smile, Trouble (foxtrotes);

    Non, jamais, les hommes, Mor Fina (valsas); Valle feittil(tango); Tatu subiu no pau(samba a moda paulista); Polca cmica; Embolada do Norte.

    b. Bi-Orquestra Os Batutas: Yes, we have no bananas, Blue Hossie

    blues, When Budha smile, You no got to see, Mamma every night (foxtrotes), o

    magistral maxixe Prova de fogo, alm de vrios choros, como Urubu.

    Percebemos que o mesmo repertrio reunia elementos locais a

    estrangeiros, apresentando grande variedade de gneros e ritmos. Esta

    diversidade era comum naquele momento porque ainda no havia se consolidadoa noo de um gnero musical que representasse alguma identidade brasileira.

    Ainda no havia no meio musical algum iderio de uma cultura nacional ou uma

    busca no sentido de identificar elementos autctones e cercear influncias

    estrangeiras. As performancesde Pixinguinha, hoje reconhecido cone fixador de

    um bem cultural brasileiro, provavelmente eram encaradas apenas como

    entretenimento. Sua obra composicional (ao menos do perodo em questo) teria

    se desenvolvido, at certo ponto, livre de influncias ou orientaes que visavam

    consolidar um projeto de msica nacional.

    Observamos tambm que nesse contexto ainda no existia

    propriamente estabelecido um mercado consumidor de bens culturais no Brasil.

    Sendo assim, era natural que as manifestaes musicais envolvendo o

    entretenimento social urbano refletissem a inexistncia de uma segmentao

    definida no que diz respeito a classes e seus respectivos padres de consumo.

    A adoo da bateria norte-americana na msica brasileira revela esta

    especial propriedade de incorporar elementos estrangeiros e manipular de formasingular suas caractersticas, a ponto de combin-las s nossas prprias. Este

    processo, como nos mostra a histria de nossa msica popular, nem sempre

    resolvido de forma harmoniosa. A fuso, em muitos casos, pode ser substituda

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    pela tenso, conforme a poca em que ocorra e o grau de conscincia de seus

    agentes.

    A partir do que pudemos constatar, fica claro que a adoo da bateria,

    somada a outras atitudes, trazia num primeiro momento um status ao grupo, comoalgo essencial ao seu ingresso em nobres ambientes de trabalho. Mas impe-se a

    seguinte questo: ser que o prprio baterista gozava desse privilgio?

    Levando em considerao as fontes bibliogrficas consultadas nesse

    trabalho, parece que no. Porque poucos so os registros e menes a esses

    instrumentistas nas fontes por ns consultadas. Das raras citaes que

    encontramos, grande parte se justifica pelo deslumbramento com o novo

    instrumento, ou com as exticas destrezas de malabarista do executor cujonome quase nunca citado - ou com o estrondoso barulho causado. Nenhuma

    delas se refere de forma especial ou prestigiosa como o fazem com solistas ou

    compositores ao baterista. Tambm no h comentrios sobre as maneiras

    pelas quais os pioneiros teriam adaptado o instrumento aos ritmos brasileiros.

    1.2.1 Os Pioneiros

    Conforme pudemos constatar, quatro nomes destacaram-se na primeira

    gerao de bateristas brasileiros: Joaquim Silveira Toms, Valfrido Pereira da

    Silva, Joo Batista das Chagas Pereira (mais conhecido como Sut) e Luciano

    Perrone8 (cf. FALLEIROS, 2000 e EFEG, 1980).

    J. Toms (1898 a 1948) merece ateno por ser considerado um dos

    primeiros brasileiros a tocar o instrumento, funo que passou a exercer como

    conseqncia do processo de transformao pela qual passaram os Oito Batutas.

    Integrante desse conjunto, Toms tocava anteriormente instrumentos depercusso. Em 1922, deixou de acompanhar o conjunto em sua uma turn na

    cidade de Paris - financiada por seu admirador Arnaldo Guinle em funo de

    8 Alm dos msicos mencionados, so lembrados Manteiga (Orquestra Ioio), Bibi Miranda

    (Orquestra Fon-Fon) e Porto (Orquestra de Rafael Romano).

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    problemas de sade. Mas no retorno dos Batutas, que j teriam travado ento

    estreito contato com jazz bands na Europa e comprado uma bateria, Toms

    assume o posto de baterista do grupo, e assim excursiona em 1923 pela

    Argentina. No retorno do grupo ao Brasil, em funo de desentendimentos entreos integrantes, Toms organizou seu prprio conjunto (Os Oito Cotubas), onde

    alm de atuar como baterista divulgava suas prprias composies. Trabalhou

    intensamente em cinemas, rdios e teatros, tendo inclusive dirigido a Orquestra

    Victor Brasileira (cf. SEVERIANO, 2008, p. 194).

    Valfrido Silva (1904-1972) nascido no Rio de Janeiro, iniciou seus

    estudos de bateria em 1916 em Niteri com os diretores de orquestras Carlos

    Eckardt e Augusto Lima. J em 1917, inicia-se profissionalmente na orquestra deCarlos Eckardt no Cine Royal (RJ), acompanhando revistas e operetas e fazendo

    fundo musical para filmes mudos. Em sua carreira, passou pelo Cabar Assrio,

    Beira Mar, Dancing Avenida e pelo Cassino Atlntico. Integrou tambm, a partir de

    1932, os conjuntos dirigidos por Pixinguinha na gravadora RCA, os famosos

    Grupo da Velha Guarda e Os Diabos do Cu. Junto a esses grupos, participou

    de muitas gravaes, entre elas as histricas O teu cabelo no nega e Linda

    Morena, alm de Cidade Maravilhosa, realizada nos estdios da Odeon, onde

    tambm trabalhou at 1935, quando transferiu-se para a orquestra de Romeu

    Silva.

    Foi o primeiro baterista brasileiro a ter seu nome, como tal, registrado

    em disco, na gravao do fox-blue Preludiando, feita pela Odeon em 1932,

    acompanhando Carolina Cardoso de Meneses (cf. ALBIN, 2006). Na dcada de

    1940, integrou-se Cia. Derci Gonalves, em excurso ao exterior. Acompanhou

    o pianista Gad, com quem gravou em 1959 o LP Gafieira, somente com piano e

    bateria.Valfrido acumulou tambm uma considervel obra como compositor.

    Fez parcerias com nomes como Noel Rosa (Vai haver barulho no chat),

    Almirante (Vou-me casar no Uruguai), entre outros. de sua autoria a famosa O

    tic-tac do meu corao, originalmente gravada por Carmen Miranda.

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    Sut (1905-?) 9 nasceu no interior do estado de So Paulo, onde iniciou-

    se como baterista na dcada de 1920, integrando a Jazz Band Manon. Apontado

    como um virtuose no instrumento, ficou reconhecido por seus malabarismos

    executados pelo extremo domnio tcnico com as baquetas. Transferindo-se parao Rio de Janeiro, trabalhou na Rdio Nacional e acompanhou o grupo de Carmem

    Miranda em apresentaes na cidade de Nova York.

    Luciano Perrone (1908-2001) nasceu no Rio de Janeiro. Filho de um

    msico chefe de orquestras em cinemas mudos da cidade, iniciou sua carreira no

    cinema Odeon aos 14 anos, onde exercia a funo de produzir efeitos sonoros s

    cenas. Como ele mesmo contou,

    Tocava-se de acordo com as cenas. E quem criou isso foi meu pai,porque antigamente tocavam no cinema msicas que no tinham nada aver com o filme. Aconteciam ento coisas horrorosas. Contam at quenuma ocasio, num filme sobre Cristo, a crucificao foi ao som de Tatusubiu no pau. (...) No cinema, eu tocava s com um tarol em cima dacadeira, um prato dependurado na grade que separava a orquestra daplatia e um bumbo. Eu tinha que fazer, digamos assim, umasincronizao da cena. Se tinha tiro, eu batia na caixa, por exemplo,(apud FALLEIROS e BOLO, 2000, p.24).

    Podemos notar que Perrone, no incio de sua carreira, ainda juntava as

    peas da banda sinfnica, sendo que talvez nem dispusesse de pedal de bumbonaquele momento.

    Em 1924 j acompanhava orquestras e jazz bandsem bailes, alm de

    teatros de revistas, como no Teatro Recreio, como percussionista da sambista

    Araci Crtes. Nesse mesmo ano tocou junto ao renomado pianista Osvaldo

    Cardoso de Meneses. Tocou na Orquestra Pan American de Simon Bountman, e

    em 1929 era o baterista mais requisitado do Rio de Janeiro, participando de

    gravaes pela Odeon, Columbia, RCA e Victor. Nesse mesmo ano conheceu

    Radams Gnattali, com quem trabalhou por 59 anos. O compositor chegou

    inclusive a dedicar duas de suas peas a Perrone (Samba em trs andamentose

    Bate papo a trs vozes), em que a bateria aparecia como instrumento de

    9 No encontramos o ano de falecimento do baterista em nenhuma das fontes consultadas.

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    destaque. Perrone foi protagonista em um importante momento do instrumento: o

    primeiro solo de bateria gravado no Brasil (na msica Faceira, em 1931,

    acompanhando o cantor Slvio Caldas) 10. Em 1933, na Rdio Cajuti do Rio de

    Janeiro, Perrone apresentou um concerto solo de bateria. Aps ter trabalhado nasRdios Cajuti e Transmissora, foi contratado pela Rdio Nacional (onde ficou por

    25 anos), tendo tocado inclusive em seu programa inaugural em 1936. Tambm

    trabalhou no contexto sinfnico como timpanista da Orquestra Sinfnica Nacional.

    O msico, dentre os bateristas citados, foi realmente um caso a parte.

    Instrumentista excepcional, era dotado de uma formao que o habilitava, por

    exemplo, a ler partituras, algo muito raro entre os percussionistas da poca. At

    hoje sua maneira singular de interpretar os ritmos no instrumento so poucoreproduzidas pelos bateristas. Sua carreira praticamente sedimentou uma

    abordagem brasileira do instrumento. Devido qualidade de suas execues e a

    sua ampla insero no mercado de trabalho, Perrone foi eleito pelo pblico

    brasileiro o melhor baterista do ano em 1950, 51 e 52. Entre todos os seus

    companheiros, foi ele o maior responsvel pela adaptao de diversos ritmos

    brasileiros para a bateria, e seu trabalho nesse sentido pode ser conferido no LP

    Batucada Fantstica, de 1963 o primeiro disco solo de bateria e percusso

    brasileira, premiado internacionalmente. Aliando seu talento e formao musical

    erudita a um ambiente de trabalho privilegiado, sempre prximo a Radams

    Gnattali e cercado de bambas como Bide, Maral e Joo da Baiana, Perrone

    soube sintetizar na bateria elementos rtmicos outrora expressos atravs de vrios

    instrumentos de percusso.

    Embora saibamos da elevada importncia de um estudo aprofundado

    de sua obra, este no nosso foco principal. Portanto, apesar de utilizarmos

    alguns exemplos rtmicos extrados de suas execues, Perrone nos servir nessetrabalho apenas como um baterista exemplar de um padro de interpretao do

    samba focado em caixa e tambores.

    10 Solo aqui usado no sentido em que o instrumento registrado sem a presena de nenhumoutro ao mesmo tempo. O que Perrone executou nessa gravao foram, a bem dizer, frases depreenchimento aos breques do samba.

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    Figura 6: o baterista Luciano Perrone.

    Fonte:http://www.ensaios.musicodobrasil.com.br/oscarbolao-abat

    1.3 A percusso no samba

    Conforme exposto anteriormente, a incorporao da bateria nossa

    msica popular colaborou com transformaes estticas de vrios grupos

    musicais. No contexto urbano carioca, as referncias quanto participao da

    percusso na msica popular eram provenientes das bandas militares (caixas,bumbos e prato a dois), dos regionais (pandeiro e instrumentos leves) e dos

    batuques de terreiro e rodas de samba. Veremos que os diversos instrumentos

    utilizados pelos bambas do Estcio e de outros morros tambm exerceram

    influncia decisiva na configurao de padres de execuo do samba na bateria.

    http://www.ensaios.musicodobrasil.com.br/oscarbolao-abathttp://www.ensaios.musicodobrasil.com.br/oscarbolao-abathttp://www.ensaios.musicodobrasil.com.br/oscarbolao-abathttp://www.ensaios.musicodobrasil.com.br/oscarbolao-abat
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    Conforme escreveu Muniz Junior (1976, pp.165 e 166),

    Na dcada de 1920, os batuqueiros j imperavam em todos os recantosdo Rio de Janeiro, martelando seus instrumentos rsticos, herdados dos

    escravos africanos, alm daqueles que iam adotando com o correr dotempo (...). Devido falta de recursos financeiros, eram os prpriosbatuqueiros que fabricavam seus instrumentos, como os surdos debarricas, cucas de barriletes, alm de tamborins e pandeirosretangulares, com a pele estirada e pregada com tachinhas (...). Com osurgimento das primeiras escolas de samba, em fins da dcada de 1920e princpios da dcada de 30, os instrumentos ainda continuaram osmesmos, com o couro pregado, sem tarraxas. Mais tarde, a rivalidadeexistente entre as agremiaes forou a apresentao de novidades, aomesmo tempo em que as chamadas velharias iam sendo abolidas.

    Com o crescimento das escolas de samba, os instrumentos de

    percusso artesanais j no davam conta de produzir a massa sonora necessriaao desfile, sendo ento substitudos por instrumentos metalizados e industriais. A

    partir de ento, os tambores de banda, como caixas, taris, entre outros, foram

    incorporados aos blocos (Ibidem, loc. cit.).

    A seguir, sero sucintamente apresentados os principais instrumentos

    de percusso utilizados no contexto da formao e desenvolvimento do samba

    urbano carioca. Dividimos esses instrumentos em trs grupos, de acordo com a

    funo principal exercida por cada um deles, a saber:

    a) grupo dos instrumentos responsveis pela determinao de frases

    rtmicas (os mantenedores de padres reconhecidos como time lines) 11;

    b) grupo dos instrumentos com funo predominante de marcao dos

    tempos fortes sobre as quais o ritmo estruturado;

    c) grupo dos instrumentos com funo predominante de conduo.

    Ilustramos alguns padres recorrentes mais caractersticos na

    execuo dos referidos instrumentos no contexto do samba, e ao final dessa

    11 O termo pode ser traduzido por linhas-guia, (...) que funcionam como uma espcie demetrnomo, um orientador sonoro que possibilita a coordenao geral em meio a polirritmias deestonteante complexidade. (SANDRONI, 2001, p.25).

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    exposio reproduzida uma grade de percusso onde os padres aparecem

    sobrepostos, para uma melhor visualizao da relao entre suas funes12.

    Como veremos adiante, essas trs funes bsicas na constituio do

    ritmo de samba foram apropriadas pelo instrumento bateria, sendo que as tcnicasde execuo e os contextos estticos em que estavam envolvidas determinaram,

    no decorrer do perodo analisado neste trabalho, diferentes relaes entre as

    funes de conduo, marcao e desenvolvimento de fraseados.

    a) Grupo dos instrumentos responsveis pela determinao de frases

    i. Tamborim

    Esse instrumento, ao que tudo indica, uma adaptao brasileira de

    tamboretes, significado de pequenos tambores. Instrumentos semelhantes so

    encontrados em danas e cantos populares em diversos pases. Sua fixao no

    contexto do samba parece ter sido impulsionada pelos sambistas do Estcio no

    final da dcada de 1920, a exemplo de Bide e Maral, compositores e ritmistas.

    Em entrevista concedida a Srgio Cabral (1996), Bide afirmou que resolveu fazer

    o instrumento: Encourei, esquentei e resolvi tocar. Tocava na rua mesmo, sem

    bloco nem nada (apud CABRAL, ibidem, p.247). Por sua vez, o sambista Buci

    Moreira (1909-1984), afirmou: O criador do tamborim foi o Bide. O Bide e o

    Bernardo, desde garotos, andavam com o tamborim, inventaram isso (apud

    CABRAL, ibidem, p.254).

    Segundo Muniz (1976, p.166), os tamborins inicialmente tinham

    diferentes formatos: quadrados, sextavados, oitavados, ou mesmo similares a uma

    p. Eram de madeira com a pele pregada, e posteriormente foram trocados poroutros, com formato redondo, metalizado e com tarraxas. Atualmente, so

    produzidos com aros de madeira, metal ou mesmo sintticos de aproximadamente

    12As ilustraes baseiam-se em exemplos de execuo contidos em Bolo (2003) e Gonalves e

    Costa (2000).

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    seis polegadas de dimetro por uma e meia de altura, onde presa uma pele

    animal ou uma pele sinttica. Pode ser percutido com uma baqueta de madeira ou

    de plstico flexvel (no contexto de blocos de percusso, essas baquetas chegam

    a reunir em uma mesma base at quatro varetas, o que gera um som muitointenso e agudo). Na execuo do instrumento, alternamos os toques de baqueta

    com o uso do dedo mdio da outra mo (a que segura o instrumento) pela parte

    de baixo da pele, como toques complementares ou abafamentos. Deve-se

    tambm, em determinados casos, executar um movimento rotatrio com o pulso

    dessa mo que segura o instrumento, para que o tamborim encontre a baqueta

    enquanto ela estiver em movimento ascendente (cf. GONALVES e COSTA,

    2000, p.26).O instrumento passou por pequenas transformaes no decorrer dos

    anos, mas desde a dcada de 1930 praticamente indispensvel no samba, j

    que tem como funo principal executar a linha-guia, o ostinato padro

    caracterstico do ritmo. Utilizado em naipes nas escolas de samba, nesse contexto

    tambm so utilizados para executar convenes e pontuar as melodias dos

    enredos. A figura 7 reproduz os padres utilizados com maior freqncia no

    instrumento, caractersticos do samba desde a dcada de 1930. comum

    ouvirmos muitas variaes a partir do que est escrito.

    Em ambos os exemplos, as notas abaixo da linha representam o som

    percutido pelo dedo sob a pele.

    Figura 7 padres de tamborim.

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    ii. Agog

    Nome yorub do instrumento de origem africana, que consiste em duas

    ou mais campnulas de ferro com tamanhos e tons distintos unidas por uma hastecurvada e flexvel de tal forma que possibilite o entrechoque das campnulas. So

    geralmente percutidas com uma baqueta de ferro ou madeira. Na frica, pode ser

    tambm chamado de nkobu ou ngongi, dependendo da regio (cf. MUKUNA,

    1978, p.35). Muito difundido no Brasil, especialmente pelo candombl, est

    presente em diversos ritmos afro-brasileiros, como o maracatu, afox e o samba.

    Dependendo da regio do pas, pode ser tambm conhecido como gongu ou g.

    No samba, exerce funes semelhantes do tamborim, estabelecendo padres

    que podem ser utilizados como linhas-guias sobre as quais o ritmo estruturado.

    Figura 8: padres de agog.

    iii. Cuca

    A cuca brasileira apresenta uma singularidade que a difere dos

    instrumentos semelhantes encontrados na Europa, justamente pela posio da

    vareta. Considerado um instrumento de frico, consiste em um casco de madeira

    ou metal onde presa uma pele de couro animal em um dos lados. Nos pases

    europeus, prende-se uma vareta fina de bambu no centro da pele, porm para fora

    do instrumento. No caso da cuca brasileira, a vareta presa dentro do cilindro,

    possibilitando ao instrumentista pressionar a pele por fora ao mesmo tempo em

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    que fricciona a vareta. Desta maneira, pode-se alterar as alturas das notas

    resultantes, possibilitando a execuo de glissandos e at mesmo de melodias (cf.

    FRUNGILLO, 2002).

    Segundo Muniz Junior (1976), os indgenas j conheciam uma putafeita de bambu com uma vareta interna; porm os responsveis por sua projeo

    teriam sido escravos negros, utilizando o instrumento com freqncia em batuques

    nas senzalas e terreiros. Somente popularizou-se no samba a partir de 1915,

    provavelmente pelas mos de Joo (ou Z) de Minas, citado em artigo do jornal

    ltima Hora, de 28/07/1972: O inventor da cuca o mineiro Z Minas (...). Fez

    primeiro uma cuca de barrica, com uma corda dentro e depois substituiu a corda

    por vareta de bambu. Mais tarde, Samuco, cuiqueiro da Paz e Amor, de BentoRibeiro, aperfeioou-a, pondo-lhe tarraxas (apud MUNIZ, op. cit., p.176). O

    sambista Buci afirmou que Joo Mina (provavelmente o prprio Z Minas) foi

    quem trouxe a cuca para o samba: Naquele tempo (dcada de 1920) no havia

    cuca. Havia prato de cozinha, reco-reco, agog. Foi ele (Joo Mina) quem lanou

    a cuca (apud CABRAL, 1996, p.255).

    No contexto do samba, o instrumento geralmente utilizado para

    pontuar determinados trechos com frases curtas, trazendo um colorido singular

    msica. Aparece em grupo numeroso nas grandes escolas de samba.

    Instrumentos semelhantes so utilizados tambm em outros ritmos

    brasileiros, exercendo outras funes, onde so conhecidos por roncador,

    socador, fungador, porca, puta, entre outros (cf. ANDRADE, 1989, p.166).

    Figura 9: padres de cuca.

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    Alm dos instrumentos citados, utenslios como caixa de fsforos,

    garrafas e colheres eram usados com freqncia na execuo de linhas-guia. A

    caixeta (bloco de madeira) foi tambm muito utilizada com esta finalidade,

    principalmente no choro. Outros instrumentos so atualmente utilizados em algunscontextos de samba, e exercem funes hbridas (entre elas a caracterstica dos

    instrumentos aqui agrupados), como a caixa, o repique de anel e o repique de

    mo (cf. BOLO, 2003, pp.36 a 39).

    b) Grupo dos instrumentos com funo predominante de conduo

    i. Pandeiro

    13

    Difundido em quase todo o mundo, pode-se encontrar citaes desse

    antigo instrumento na Bblia. No caso da msica brasileira, ele est presente na

    maioria de nossos diversos ritmos, sendo que as tcnicas de execuo tambm

    so distintas em muitos casos.

    O pandeiro brasileiro feito de um aro redondo de madeira, geralmente

    de 10 a 14 polegadas, onde fixada uma pele de couro animal ou sinttica e

    pequenos discos de metal (platinelas) que, distribudos aos pares, produzem um

    som semelhante ao guizo quando se chocam. Segundo Mrio de Andrade (1989,

    p. 381), o instrumento pode ser encontrado no Brasil com o aro na forma

    quadrada, neste caso chamado de pandeiro-adufo ou adufe. O sambista Buci

    contou que nos anos de 1920, o pandeiro a gente chamava de adufo. Era sem

    bambinela (platinelas) (apud CABRAL, 1996, p.254).

    Da mesma maneira que o tamborim, o pandeiro deve ser executado

    com um leve movimento rotatrio do pulso da mo que segura o instrumento, almde pressionarmos levemente com a ponta dos dedos a parte de baixo da pele para

    produzirmos seu abafamento (cf. BOLO, op. cit., pp.64 e 65).

    13 O pandeiro, como veremos, agrega outras funes. Podemos classific-lo tambm como uminstrumento de marcao das pulsaes.

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    o instrumento que sintetiza diversas funes percussivas, pois produz

    simultaneamente notas graves de marcao (funo do surdo) e a conduo

    ininterrupta de semicolcheias (funo do chocalho, reco-reco, prato e faca, etc.)

    permeadas por frases caractersticas do ritmo, sendo praticamente indispensvelno choro ou no samba.

    Os toques so produzidos em uma seqncia em que se alternam

    polegar (p), ponta de dedos (d) em bloco e base da mo (b). Em alguns toques,

    deve-se abafar a pele com dedo da mo que segura o instrumento (a).

    Figura 10: padro de pandeiro.

    ii. Reco-reco

    Tambm presente em vrios pases, esse instrumento de frico

    muito usado em toda a Amrica Latina. constitudo de uma superfcie (em geral

    bambu, cabaa, madeira, metal ou osso) em que h uma seqncia de entalhes

    transversais paralelos, que so friccionados por uma vareta em movimento de vai-

    e-vem, gerando um som raspado. Nas escolas de samba, a fim de se obter um

    som mais intenso, utiliza-se o reco de mola: em uma espcie de caixa de metal

    so esticadas trs molas que so friccionadas com uma vareta de metal.

    Esse movimento contnuo gera um tipo de conduo rtmica de funo

    semelhante ao chocalho, porm atravs de acentuaes so produzidas algumas

    frases caractersticas.

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    Figura 11: padres de reco-reco.

    iii. Chocalho

    Tradicionalmente usados por vrias culturas em contextos religiosos,

    como purificadores e protetores, os chocalhos podem ser construdos de muitas

    maneiras distintas, e com a utilizao dos mais variados materiais. No caso do

    samba, consiste de um agrupamento de platinelas em uma armao retangular de

    madeira ou metal, balanada atravs de movimentos contnuos e regulares.

    mais um instrumento cuja funo gerar uma base de conduo que

    sirva de apoio na sustentao do ritmo, e utilizado em naipes na escola de

    samba, em nmero semelhante ao dos tamborins (cf. GONALVES e COSTA,

    2000, p.36).

    Figura 12: padres de chocalho.

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    iv. Caixa14

    Esse instrumento encontrado h sculos em distintos contextos

    (como bandas marciais, orquestras sinfnicas, manifestaes folclricas, etc.),apresentando muitas variaes no que diz respeito a suas dimenses e

    nomeaes especficas. No entanto, a estrutura constante a de um tambor de

    madeira ou metal no qual fixada uma pele em cada extremidade. O diferencial

    que caracteriza a caixa a presena de uma esteira (uma corda ou um conjunto

    de cordas esticadas paralelamente) estendida sobre uma dessas peles (cf.

    FRUNGILLO, 2002). A caixa geralmente percutida por duas baquetas, e pode

    ser pendurada no ombro do percussionista com o auxlio de um talabarte ou

    acomodada em suporte especfico.

    A caixa era utilizada pelas bandas militares brasileiras do incio do

    sculo XX como suporte rtmico na execuo de dobrados, polcas e maxixes,

    entre outros ritmos. No muito utilizada, no entanto, em pequenos agrupamentos

    de percusso dentro do contexto do samba (a no ser quando aparece como

    componente do instrumento bateria), mas instrumento indispensvel nas escolas

    de samba. Nesse contexto, juntamente com o tarol, desempenham funes de

    sustentao rtmica e desenhos rtmicos que muitas vezes so caractersticos de

    cada bateria, onde aparecem em grande nmero.

    A figura 13 representa padres caractersticos executados no contexto

    do samba-maxixado, uma construo rtmica que predominou no universo do

    samba urbano carioca praticamente at o incio dos anos 1930, quando os

    motivos passaram a acompanhar o que Sandroni chamou de paradigma do

    Estcio (2001, p.12). A figura 14 ilustra padres de caixa em escolas de samba, e

    finalmente a figura 14 apresenta padres executados por taris nas escolas desamba.

    14 Assim como o pandeiro, a caixa tambm agrega outra importante funo, de configurao daslinhas-guia.

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    Figura 13: padres de caixa (samba-maxixado).

    Figura 14: padres de caixa em escola de samba.

    Figura 15: padres de tarol em escola de samba.

    Podemos reunir neste grupo tambm o ganz, o xequer ou afox, a

    frigideira e o prato e faca.

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    c) Grupo dos instrumentos de marcao

    i. Surdo

    Os surdos so grandes tambores de madeira ou metal que vo em

    mdia de 18