leandro lechakoski1 andressa fontana camila de souza

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1 Leandro Lechakoski 1 Andressa Fontana 2 Camila de Souza 3 “Sobre 'prendas', 'peões' e 'tradições' re-significadas: relações e representações de gênero num mundo em transformação 4 . Resumo: O presente trabalho é um estudo etnográfico do mundo dos rodeios e seus reflexos em outros espaços, como as "cabanhas" - local, onde cavalos são hospedados e tratados - e comunidades da internet, associadas ou não aos CTGs e que se esforçam em manter uma "cultura campeira" tipicamente gaúcha, ou seja, representante do sul do Brasil. Esses espaços suscitam questões teórico-metodológicas qualitativas devido aos inúmeros processos de mudança que estão ocorrendo, sobretudo no que diz respeito às novas significações e construções do masculino e feminino. Utilizando gênero como uma das ferramentas analíticas principais, vários outros campos do conhecimento se interligam e trazem a tona questões como rural-urbano, o (r)urbano, corpo e esporte, trabalho e lazer sempre a partir de uma perspectiva “interseccional” e interdisciplinar (cruzando gênero, classe, sexualidade e geração, etc...). Alguns desses temas centrais serão discutidos no presente artigo como resultado parcial do trabalho que está em andamento. Palavras-chave: Relações de gênero; esportes equestres; R(urbano), interseccionalidades. INICIANDO O TRABALHO DE CAMPO: ETNOGRAFIA E RELAÇÕES DE GÊNERO NO MTG No dia 20/02/2013 o grupo circulou um e-mail sobre a possibilidade de irmos ao rodeio em umas das cidades rurais da região metropolitana - Mandirituba - de Curitiba. Concordamos e fomos a campo! Esse rodeio foi organizado pelo CTG Herança de Tropeiros 5 nos dias 22, 23 e 24/02/2013. Devido à alguns fatores de incompatibilidade nas agendas dos pesquisadores, não foi possível ir nos outros dias, por isso só fomos no dia 24/02/2013 - Um ensolarado domingo! Fomos convidados a almoçar com alguns informantes que trabalham e/ou possuem as chamadas "cabanhas" - locais onde cavalos, 1 Mestrando em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). 2 Graduanda em Ciências sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). 3 Graduanda em Ciências sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). 4 Projeto de pesquisa orientado pela Prof. Dra. Miriam Adelman, professora do DECISISO (Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Parana (UFPR)

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Leandro Lechakoski1 Andressa Fontana2 Camila de Souza3

“Sobre 'prendas', 'peões' e 'tradições' re-significadas: relações e representações de gênero num mundo em transformação4. Resumo: O presente trabalho é um estudo etnográfico do mundo dos rodeios e seus reflexos em outros espaços, como as "cabanhas" - local, onde cavalos são hospedados e tratados - e comunidades da internet, associadas ou não aos CTGs e que se esforçam em manter uma "cultura campeira" tipicamente gaúcha, ou seja, representante do sul do Brasil. Esses espaços suscitam questões teórico-metodológicas qualitativas devido aos inúmeros processos de mudança que estão ocorrendo, sobretudo no que diz respeito às novas significações e construções do masculino e feminino. Utilizando gênero como uma das ferramentas analíticas principais, vários outros campos do conhecimento se interligam e trazem a tona questões como rural-urbano, o (r)urbano, corpo e esporte, trabalho e lazer – sempre a partir de uma perspectiva “interseccional” e interdisciplinar (cruzando gênero, classe, sexualidade e geração, etc...). Alguns desses temas centrais serão discutidos no presente artigo como resultado parcial do trabalho que está em andamento. Palavras-chave: Relações de gênero; esportes equestres; R(urbano), interseccionalidades.

INICIANDO O TRABALHO DE CAMPO: ETNOGRAFIA E RELAÇÕES DE GÊNERO NO MTG

No dia 20/02/2013 o grupo circulou um e-mail sobre a possibilidade de

irmos ao rodeio em umas das cidades rurais da região metropolitana -

Mandirituba - de Curitiba. Concordamos e fomos a campo! Esse rodeio foi

organizado pelo CTG Herança de Tropeiros5 nos dias 22, 23 e 24/02/2013.

Devido à alguns fatores de incompatibilidade nas agendas dos pesquisadores,

não foi possível ir nos outros dias, por isso só fomos no dia 24/02/2013 - Um

ensolarado domingo! Fomos convidados a almoçar com alguns informantes que

trabalham e/ou possuem as chamadas "cabanhas" - locais onde cavalos,

1 Mestrando em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

2 Graduanda em Ciências sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

3 Graduanda em Ciências sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

4 Projeto de pesquisa orientado pela Prof. Dra. Miriam Adelman, professora do DECISISO

(Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Parana (UFPR)

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principalmente do meio "crioulista"6 ou gauchesco, são hospedados, treinados e

montados. Nunca havia chegado perto de um cavalo, a minha única experiência

com o mundo rural era ir na infância passar os Domingos na chácara de uma

tia. Mas lá não havia nenhum cavalo! Até que então, no outro rodeio que fomos,

tive a oportunidade de montar Billy, um cavalo dócil, manso e muito bonito que

me fez ter uma experiência única. O pessoal do acampamento comentava: "ele

nunca montou, e montou pela primeira vez a pelo". Me senti conectado a partir

dessa experiência com o animal, com o contexto rural. No dia anterior à

primeira visita ao campo, estava animado, ansioso, preocupado, etc. com a

primeira ida ao campo, em todos os sentidos do termo. Várias questões

metodológicas, como, por exemplo, como vou me inserir em um contexto que é

6 No site http://cavalo-crioulo.com/raca/, encontra-se a seguinte definição de cavalo crioulo: "Com origem nas grandes planícies dos pampas, até as mais distantes montanhas dos Andes, os cavalos trazidos por colonizadores espanhóis adaptaram-se a todo o tipo de clima e região. Suportaram o intenso frio e também o calor desgastante . Com o passar de quatro séculos de adaptação e de evolução, adquiriram características únicas e próprias no meio ambiente sul americano. Por conta de sua longevidade, rusticidade, agilidade e resistência, são muito utilizados nos trabalhos pesados na lida com o gado, em fazendas de todo o país. Panorama atual – Hoje, estão presente em praticamente todos os estados brasileiros, segundo a Associação Brasileira de Criadores de Cavalos Crioulos (ABCCC). O Relatório populacional da raça, emitido pela ABCCC, informa que estão registrados 84.741 animais, entre machos e fêmeas, espalhados por 22 estados brasileiros. - See more at: http://cavalo-crioulo.com/raca/#sthash.ZW54ziwW.dpuf DÓCIL E ÁGIL – Não se deixe enganar pelo baixo porte. Os cavalos da Raça Crioula possuem musculatura extremamente consistente e estrutura óssea compacta. Anatomia que agrega tais características de agilidade e resistência. A utilização deste animal não se limita ao serviço de propriedades rurais. Se treinado, pode se tornar atleta, com destaque em provas como o Freio de Ouro e provas de rédeas. Fato que pode ser comprovado pelos resultados obtidos em provas específicas nos últimos anos, nas quais os cavalos crioulos têm conseguido obter sucesso em muitas nacionais e até internacionais. O portal Mercado de Cavalos estima que o Brasil tenha hoje cerca de 140 mil animais vivos registrados e distribuídos entre aproximadamente 14 mil proprietários. - See more at: http://cavalo-crioulo.com/raca/#sthash.ZW54ziwW.dpuf INFORMAÇÕES TÉCNICAS Altura: Cerca de 1,35m a 1,52m, com média de 1,45m em machos e fêmeas. Porte: Pequeno Pelagem: A clássica é o gateado, ou seja, um baio escuro, comum a listra preta, desde o fim da crineira até a cauda, estrias escuras nos membros e muitas vezes nas cernelhas. Todas as pelagens são admitidas. Cabeça: Curta e larga, em forma de pirâmide, perfil reto ou ligeiramente convexo, olhos grandes, expressivos, afastados sobre o bordo do plano frontal, as orelhas são pequenas e afastadas da bases. Andadura: Marcha trotada Temperamento: Vivo, inteligente, corajoso, muito forte, bem disposto e possuidor de grande resistência. Aptidões: O Crioulo é, por excelência, um cavalo de trabalho, ideal na lida com gado, para passeio e enduro, podendo ser usado para percorrer grandes distâncias. (Portal ABCCC) - See more at: http://cavalo-crioulo.com/raca/#sthash.ZW54ziwW.dpuf

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totalmente "exótico"7 para mim. Todos esses sentimentos - contraditórios e

complementares - surgiam em mim durante a madrugada do dia 24/02/2013. A

primeira ida ao campo foi mais descontraída, nosso grupo foi apenas no

domingo, último dia do rodeio, pois geralmente estes eventos começam na

quinta-feira e encerram no domingo. Entretanto, já era possível notar a

diferença de ambiente, pois saímos do grande caos da cidade de Curitiba, rumo

à zona rural. Logo que chegamos no rodeio, a coisa que mais me chamou a

atenção, a priori, foi ver que a grande maioria das pessoas estavam montadas

em seus cavalos e ficavam circulando pelo espaço do rodeio o tempo todo. Tive

uma primeira impressão um pouco caótica, um mistura de dois universos: o

rural e o urbano - (r)rurbano8. Outra coisa que chamou a atenção do grupo foi a

quantidade de pessoas acampadas em barracas no Parque Municipal de

Mandirituba (Anexo - Imagem - 1). Muitas pessoas que estavam presentes

nesse evento, pareciam estar mais próximas das camadas médias, pois nota-se

pela quantidade de carros não tão populares (Anexo - Imagem 2). Outro fator

relevante foi a questão de interccionalidades, que se relacionam com questões

de raça/etnicidade e gênero. Nesse primeiro momento não foi possível

identificar se haviam mais homens do que mulheres - quantitativamente

falando - , mas pode-se pensar sobre uma questão bastante curiosa que

aparece no que Bourdieu (2006) chama de héxis corporal, ou seja, um signun

social que se materializa nos corpos e nos comportamentos, ou seja, uma

7 Nesse sentido, vale lembrar as discussões de Velho (1978) que resalta a dificuldade de

transformar o "exótico" em "familiar" e o "familiar" em "exótico". 8 Segundo Maria da Silva (2001), o conceito de rurbanidade foi “um termo utilizado no 19º

Congresso Europeu de Sociologia Rural, em Dijon (França), de 3 a 7 de setembro de 2001 para designar a invasão do rural pelo urbano ou a urbanização do meio rural. O Congresso discutiu as relações da sociologia rural com a natureza e a tecnologia, no intuito de contribuir para um profundo questionamento da clássica distinção entre cidade e campo, a modernidade e a tradição, que entende as dinâmicas rurais sociais como formada somente pelo urbano (Congress of the European Society for Rural Sociology, 2001, p. 1-3).” (SILVA, 2001, p. 85-103). O conceito “rurbano”, como uma alternativa contra-hegemônica, remete-se à complexidade da organização atual e como nesta observamos uma integração (impossibilidade de desenhar fronteiras precisas) entre os espaços rurais e urbanos. Neste sentido, tomamos tal acepção conceitual como uma forma de nos referirmos a estas intersecções, diálogos e possíveis reformulações entre ideários e práticas muitas vezes antes vistas como pertencentes à esfera urbana ou rural. Compatível à ideia da hibridização da cultura, tal conceito do rurbano nos é útil a partir do momento que não toma campo e cidade como extremos opostos mas sim como esferas intercambiáveis e até mesmo comuns. Rompendo com acepções dualistas, encontramos a intensificação da comunicação entre a cidade e o campo como uma grande oportunidade à existência de uma farta e múltipla trama cultural - contexto no qual costumes, ideias e práticas de meios urbanos e rurais são reinterpretados e reformulados.

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forma de manter uma certa distinção. Nesse primeiro contato, as pessoas eram

fisicamente "bonitas", "brancas", "heterossexuais" e de "classe média" (anexo -

imagem 3). A etnografia e os diários de campo estão sendo muito importantes e

adequadas ao trabalho proposto. Nesse universo entram as entrevistas

narrativas, mídias, histórias de vida e a cyberetnografia - etnografia feita a partir

de páginas da internet. Segundo Fonseca (2009):

"A etnografia é calcada numa ciência, por excelência, do concreto. O ponto de partida deste método é a interação entre o pesquisador e seus objetivos de estudo, "nativos de carne e osso" (Fonseca, 1999, p. 58).

Relativizar segundo Da Matta (1981), é o exercício do antropólogo de se

livrar das suas pré-concepções culturais, ou seja, ver as coisas como elas se

interrelacionam. Desta maneira, procura-se entender a relação entre o olhar do

pesquisador e aquilo que é olhado.

Entretanto, fomos convidados para almoçar com os grupo de uma

Cabanha para um churrasco. Enquanto o churrasco era preparado fomos

observar as provas que estavam ocorrendo no momento. A primeira prova foi a

de laço9. Nessa prova existe a modalidade masculina e feminina. Ao observar

essa prova a questão do ser humano com o cavalo pode ser observada.

Segundo Netto (2009), a relação natureza e cultura está representada na em

um elemento central:

"O cavalo é um dos elementos (material e simbólico) que proporciona essa interface entre esses dois mundos. O urbano e o rural. Esse elemento é fundamental na constituição do peão da estância, na vida do homem do campo, como seu instrumento de trabalho, de grande utilidade e eficiência para a atividade econômica que desempenha, muito embora ainda conserve, nesse ambiente, um caráter lúdico, pois muitas vezes, é suplantado pela mecanização. O cavalo é também muito importante para a constituição da identidade do tradicionalista urbano, como ornamento, complemento e instrumento. Nesse caso, é utilizado para desfiles, cavalgadas, rodeios de tiro-de-laço entre outras atividades. convém lembrar que a imagem emblemática do gaúcho é a própria figura do Centauro". (NETO, 2009. p. 28-29).

9 Segundo o wikipedia http://pt.wikipedia.org/wiki/Tiro_de_la%C3%A7o: "A prova de laço é

uma forma de competição a cavalo característica do Rio Grande do Sul. Nesta prova, o ginete tem o espaço de 100 metros para laçar um novilho que tenta fugir. São importantes para o bom desempenho a qualidade da montaria bem como a habilidade do laçador." (Wilipedia, 2013, acesso em 25/10/2010).

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Nesse sentido, cada um desenvolve uma relação subjetiva e objetiva

com o animal, enquanto outras questões são levantadas como: a relação entre

natureza e cultura, animalidade e humanidade, masculino e feminino, rural e

urbano, etc. Estas questões dicotômicas sempre estão presentes em nosso

imaginário enquanto pesquisadores.

INVENÇÃO DO MITO

Como toda cultura possui seus mitos de origem, com a cultura gaúcha

não poderia ser diferente. Assim, a invenção desse mito, o mito do gaúcho -

herói fundador de uma "nação" - foi e continua sendo um processo histórico-

cultural em constante transformação, e que a acaba se tornando um dos pontos

centrais para a interpretação dessa realidade. Esse mito foi "inventado" em uma

região específica do Brasil - o estado do Rio Grande do Sul.

Num tumultuado cenário de incertezas, é que surge o primeiro CTG -

Centro de Tradições Gaúchas, na cidade de Porto Alegre, RS em 24 de Abril de

194810 - que tinha por finalidade manter o retomar as tradições do Movimento

Tradicionalista Gaúcho11. Inicialmente esses primeiros CTGs que foram

surgindo funcionavam como um clube masculino, não tendo participação

feminina efetiva. Os rapazes fundadores destes primeiros CTGs tentaram

construir uma noção de "comunidade" no sentido do conceito de comunidade

imaginada, cunhado por Anderson (2008) - neste caso, baseada em um

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Ver em: http://www.paginadogaucho.com.br/ctg/ctg35.htm 11

Segundo a página uma das páginas sendo etnografadas pelo facebook: "O Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG) é uma entidade cívica, sem fins lucrativos, associativa, dedicada à preservação, resgate e desenvolvimento da cultura gaúcha. Compreende que o tradicionalismo é um organismo social de natureza nativista, cívica, cultural, literária, artística e folclórica.O Movimento Tradicionalista Gaúcho encontra-se presente nos estados do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul,Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Planalto Central (FTG-PC), Rio de Janeiro, Mato Grosso, Amazônia Ocidental, Estados no nordeste (UTGN) e São Paulo, onde promove, junto aos CTGs, eventos como os Concursos de Prendas, de Peão, Palestras e Cavalgadas, além da Semana Farroupilha, que comemora o 20 de setembro, Dia do Gaúcho". No Rio Grande do Sul, o MTG foi fundado em 27 de novembro de 1967. No Estado, atualmente, são mais de 1400 entidades filiadas ao Movimento Tradicionalista Gaúcho, distribuídas em 30 Regiões Tradicionalistas (RT), que abrangem a totalidade dos 500 municípios sul-rio-grandenses. No VIII Congresso Tradicionalista, realizado entre 20 e 23 de julho de 1961, no CTG "O Fogão Gaúcho", emTaquara, foi aprovada a Carta de Princípios do Movimento Tradicionalista Gaúcho ".(https://www.facebook.com/pages/Movimento-Tradicionalista-

Ga%C3%BAcho/112219582128633?fref=ts# acesso, em 31/10/2013).

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universo rural, que estaria em constante estado de ameaça e desaparição. As

relações interpessoais se tecem face a face, e quase exclusivamente, entro os

homens desse meio; o local privilegiado como espaço social é o "galpão" -

espaço de resgate do passado e homossolidariedade entre os rapazes, que se

reúnem para relembrar de um passado romantizado e saudosista, através do

resgate e preservação das tradições - histórias contadas (causos), músicas e

práticas que remetem ao rural e ao masculino. Existe uma moralidade que é

"imposta" nos CTGs que é demonstrada através de uma constante busca de

uma identidade coletiva e individual. Segundo os manuais dos CTGs, as

tradições são transmitidas de pai pra filho, fazendo parte de uma complexa

pedagogização de significados e práticas, em que a família acaba servindo

como um elemento de manutenção dessa "densidade moral". A apreensão

desses valores morais pelos meninos está em grande parte, relacionada como

a relação do filho - homem - com seu pai (anexo - imagem 4). Dessa forma, a

transmissão desses valores culturais gaúchos, é realizada diretamente através

da relação do homem adulto com o menino, sendo função daquele, lapidar uma

forma de ser homem, de ser um verdadeiro homem gaúcho. Que homem é

esse? Ou quais homens são esses? Como argumenta Pacheco (2003):

"... na cultura tradicionalista gaúcha, não é somente a posição privilegiada de centro da cultura que homem ocupa, mas também a de representar um coletivo, e de serem os meninos criados por seus pares adultos, o que se configura num modelo patriarcal de sociedade". (PACHECO, 2003, p. 43).

Através da construção de uma relação saber-poder, o homem adulto é o

detentor legítimo do poder de representar essa cultura, assim como de

transmiti-la a outras gerações de meninos. Essa Idea de tradição aparece nas

falas de um entrevistado quando questionado sobre o seu interesse com

cavalos e o mundo rural.

"Dos dois lados, tanto do pai, quanto da mãe..., é..., os dois lados, é... vem dos tropeiros. É claro que a história é muito mais antiga ainda que isso então tem..., a gente conhece a história né...,dos antepassados, por exemplo, o que a gente fala na nossa família, né..., o bisavô do meu pai que era índio, né..., é... do Uruguai, e por aí se vai, mas asim, todo mundo sempre lidando com cavalos, meu pai né..., então é natural que a gente acaba se envolvendo também criando gosto." (Entrivistado 1, 35 anos).

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De acordo com os estudos da masculinidades esse tipo de socialização

é uma relação homossocial, na qual a construção do "ser homem" é apreendida

através da relação entre homens. As relações de parentesco, também são

determinantes nesse processo de transmissão cultural, pois é a relação pai e

filho que ocupa um lócus privilegiado nesse processo.

Assim como a Escola é uma instituição que molda corpos e

subjetividades, os CTGs funcionam da mesma maneira. De acordo com uma

micro-física faucaultiana, podemos argumentar ainda que as pedagogias, em

especial as de gênero -, se espalham e se misturamos mais diversos espaços

(FOUCAULT, 1979). No caso aqui estudado, os Centros de Tradição Gaúcha,

desde que instituídos em meados do século XX, também implementam

"pedagogias" modernas de gênero, nas quais, aprender a ser gaúcho significa -

de acordo com os persistentes binarismos - o que se supõe que significa ser

um menino, um rapaz e um homem - peão - e no casa das meninas prendas

(anexo - imagem 5). Pacheco (2003), ao analisar A CARTA de princípios do

Movimento Tradicionalista Gaúcho, escrito por Glauco Saraivam em 1961,

como o "manual de cabeceira do MTG. Ainda segundo Pacheco (2003):

"Os princípios presentes na Carta, dizem respeito, por exemplo, a: promover a retomada de consciência dos valores morais do Gaúcho, buscar harmonia social criando a consciência de valor coletivo, combatendo o enfraquecimento da cultura; criar barreiras e tudo o que esteja através dos veículos de propaganda (mídia em geral), em desacordo aos costumes e pendores naturais do nosso povo;..." Ibid, (p. 24).

Desta forma as questões centrais que podem ser observadas nesse

documento, estão estritamente ligados com essa noção de "espírito de grupo",

ou seja, uma solidariedade entre os gaúchos que deve ser mantida e

transmitida entre as gerações vias CTGs. Assim, a solidariedade entre os

integrantes do MTG, serveria como uma ferramenta de manutenção dos

costumes, da coesão do grupo e da construção de identidades baseadas na

alteridade e na distinção em relação a outro grupos.

Se a ideia de tradição segundo Guiddens (2000), é própria da criação da

modernidade, o MTG é um exemplo concreto da invenção de uma tradição, já

que tem por finalidade preservar os "valores morais" da cultura gaúcha. O

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termo gaúcho segundo surge para designar e classificar um tipo social

desviante, marginal, sem valores morais. Segundo Confortin (2010):

"Dessa variedade de concepções, como definir o gaúcho do Brasil, ou mais especificamente, do RS? [...] Iniciemos pela palavra 'gaúcho' que sequer tem uma origem segura. Lamberty (2000, p. 12) dia que a denominação gaúcho nasceu no seio dos grupos gaudérios errantes, mestiços, charruas, minuanos, guaranis, jaros, meclandos com as chinas dos ranchos. Para aurélio porto, o termo vem de gahú do guarani, canto triste ou uivo do cão e che, do quíchua, que significa gente. A definição para o historiador seria: 'homem que canta triste'. Zeno Cardoso Nunes e Rui Cardoso Nunes, no Dicionário de Regionalismos do Rio Grande do Sul (1982 p. 211), definem gaúcho - do árabe gaúch, proveniente do persa gauchi (bonzinho), formado gau, boi ou vaca, mais - chi, sufixo diminutivo. essa definição remete a uma profunda ligação das palavras de origem com gado, rebanhos, pastagens, tropeiros, nômades ou camponeses. Daí a figura no criador, caçador ou tropeiro de gado. [...] Portanto, pode-se afirmar que o gaúcho é o vaqueiro do Sul, um tropeiro que canta sua terra e sua gente".

Entretanto, após a Revolução Farroupilha esse gaúcho passou a ser

(re)significado, dentro de uma ideia de "nação gaúcha", como "peão", "herói" e

"guerreiro":

"Gaúcho que é gaúcho não foge de uma pelea". (Entrevistado 3, 60 anos).

Uma "nação" gaúcha que deveria ser conhecida pelas suas diferenças

com as demais regiões do Brasil. O MTG incorpora esta (re)significação - trazer

o rural para o urbano -, a partir de uma idealização do passado de critérios

contemporâneos de tempo e espaço, criando assim uma identidade. Esta é

performatizada por homens urbanos, com um considerável "capital cultural",

pois mobilizaram-se, no sentido da visibilização pública, da identidade gaúcha

dos "verdadeiros peões" que ainda habitam as estâncias do interior do Rio

Grande do Sul. Nesse sentido, as identidades gaúchas são múltiplas e estão

em constante processo de re-siginificação.

Desta forma, o representante dessa cultura é um sujeito masculino,

mitificado, heterossexual e branco que se materializa na figura do gaúcho e

torna-se um símbolo de uma cultura particular, criando a noção de "macho

gaúcho", idealizado e enaltecido pelos Tradicionalistas. Esse "gaúcho macho"

deve ser autônomo, viril, aquele que domina a natureza e defende sua honra. E

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está sempre com seu fiem companheiro, o cavalo. Nesse sentido, há uma

valorização e centralização da figura do peão campeiro como a identidade

representante do tradicionalismo gaúcho (PACHECO, 2003).

Entretanto, esse mito do "gaúcho herói" fio re-siginificado no contexto

urbano, idealizando uma narrativa ruralizada sobra a história do gaúcho

campeiro. Esse homem do campo, ainda serve como modelo simbólico e

interpretativo da realidade. Nas quais as discussões entre campo e cidade e/ou

rural e urbano acabam entrando em cena, assim como as pedagogias de

gênero.

NOTAS CONCLUSIVAS

De uma forma quase que substancial podemos afirmar que o

representante da cultura tradicionalista gaúcha se coloca como o sujeito

masculino e mitificado, que na figura do gaúcho, torna-se símbolo de uma

cultura particular, emergindo a noção do “macho gaúcho” idealizado e

enaltecido pelos Tradicionalistas, que o transformaram no representante fiel do

povo do sul. Esse “gaúcho macho” deve ser, autônomo, viril, aquele que

domina a natureza e defende sua honra e está sempre com seu fiel

companheiro, o cavalo. Nesse sentido, há uma valorização e centralização da

figura do peão campeiro como a identidade representante do tradicionalismo

gaúcho (PACHECO, 2003).

Entretanto, esse mito do “gaúcho herói” foi re-significado no presente de

um contexto urbano, idealizando uma narrativa ruralizada sobre a história do

gaúcho campeiro, do homem do campo, que ainda serve como ferramenta

simbólica interpretativa da realidade, na qual a discussão entre campo e cidade

e/ou rural e urbano sempre acabam entrando em cena, assim como as

pedagogias da sexualidade, já que os MTG, via CTGs fazem todo um trabalho

na educação dos meninos, ensinando-os a serem “verdadeiros gaúchos”, ou

seja, ser forte, valente e corajoso como características intrinsecamente

masculinas que o “peão” deve aprender desde piá, o que não ocorre com a

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meninas, já que ser mulher é ser “prenda”, ou seja, apenas uma coadjuvante

nesse contexto hipermasculino que é a “cultura gaúcha”.

No contexto observado, os rodeios campeiros na Região Metropolitana

de Curitiba, Paraná, é notável a presença de crianças, muitas delas "pilchadas",

aprendendo a laçar e até participando de algumas provas em categorias mirins.

O menino participa ativamente dessa homosocialização, pois sempre está em

contato com seus pares, o que nos faz observar que existem nuances entre a

socialização das meninas e dos meninos.

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ANEXOS

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IMAGEM 5 - Essa foto pertence à minha família que é originária do Rio Grande do Sul e foi tirada em 1976 no CTG "Os Legalistas" em Santo Ângelo - RS.