laporta, marcos. o ator como treinador de si mesmo

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA CENTRO DE ARTES – CEART LICENCIATURA E BACHARELADO EM TEATRO MARCOS BITTENCOURT LAPORTA O ATOR COMO TREINADOR DE SI MESMO: REFLEXÕES A PARTIR DO TREINAMENTO EM PROJETO ARTAUD. FLORIANÓPOLIS, SC 2014

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TCC - ''O ator como treinador de si mesmo: Reflexões a partir do treinamento em Projeto Artaud''; Trabalho de Conclusão de Curso desenvolvido em minha graduação em Licenciatura e Bacharelado em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC.

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Page 1: LAPORTA, Marcos. O ator como treinador de si mesmo

UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA

CENTRO DE ARTES – CEART

LICENCIATURA E BACHARELADO EM TEATRO

MARCOS BITTENCOURT LAPORTA

O ATOR COMO TREINADOR DE SI MESMO:

REFLEXÕES A PARTIR DO TREINAMENTO EM PROJETO ARTAUD.

FLORIANÓPOLIS, SC

2014

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MARCOS BITTENCOURT LAPORTA

O ATOR COMO TREINADOR DE SI MESMO:

REFLEXÕES A PARTIR DO TREINAMENTO EM PROJETO ARTAUD.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Licenciatura e Bacharelado em Teatro do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito parcial para obtenção dos graus de Bacharel e Licenciado em Teatro. Orientador: Prof. Dr. Stephan Arnulf Bäumgartel.

FLORIANÓPOLIS, SC

2014

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MARCOS BITTENCOURT LAPORTA

O ATOR COMO TREINADOR DE SI MESMO:

REFLEXÕES A PARTIR DO TREINAMENTO EM PROJETO ARTAUD

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Licenciatura e Bacharelado em

Teatro do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina, como requisito

parcial para obtenção dos graus de Bacharel e Licenciado em Teatro.

Banca Examinadora:

Orientador: ___________________________________

Prof. Dr. Stephan Arnulf Bäumgartel CEART – UDESC

Membro: ____________________________________

Prof. Dr. André Luiz Antunes Netto Carreira CEART - UDESC

Membro: _____________________________________

Profª Ms. Daiane Dordete Steckert Jacobs CEART - UDESC

Florianópolis, 03 de Julho de 2014.

Page 4: LAPORTA, Marcos. O ator como treinador de si mesmo

AGRADECIMENTOS

A minha mãe Ilza Laporta por todo o ensinamento durante os anos da Cia. De Teatro

Unisul em Tubarão –SC e por me despertar a paixão pelo teatro. Ela é a verdadeira

responsável por eu estar neste meio, minha grande inspiração. A todos os ex-colegas e amigos

de Cia. De Teatro Unisul, pela parceria, companheirismo e aprendizado durante os seis anos

nos quais convivemos.

A meu pai que mesmo não presente sempre me protege e me acompanha nesta

caminhada.

A minha tia Lígia por todo o apoio, amizade, e ajuda neste período de Graduação.

A toda a minha família que me apoia nas minhas escolhas e torce por mim.

A todos os amigos verdadeiros de caminhada na Graduação, que sempre estiveram ao

meu lado nas alegrias e tristezas: Hanna Luiza Feltrin, Luanda Wilk, Tainá Froner, Marina

Medeiros, Marina Soares, Clara Meirelles, Rafael Reüs, Néia Longen, Luiza Souto, Tânia

Farinon, Gabriela Medeiros, Andrés Tissier, entre tantos outros que dividiram alegrias e

tristezas durante toda essa trajetória, seja na mesma turma ou em encenações.

A minha amiga querida Rachel Chula por compartilhar comigo uma pesquisa de

treinamento, por sua generosidade, amizade e luz.

Ao Prof. Dr. Stephan Baümgartel por me auxiliar, aceitar me orientar e estar junto

nesta busca.

Ao Prof. Dr. André Carreira por me despertar interesse no tema e pelo apoio.

Ao Prof. Dr. José Ronaldo Faleiro, Prof. Ms. Diego Di Medeiros, Lau Santos, Profª

Ms. Daiane Dordete e Profª Ms. Adriana Patrícia dos Santos, pela amizade, ajuda e diálogos

sobre Antonin Artaud, atuação e treinamento.

A toda a banca, e demais professores que me auxiliaram nessa caminhada, meu

carinho especial. Obrigado, sempre!

Page 5: LAPORTA, Marcos. O ator como treinador de si mesmo

RESUMO

O presente trabalho é um trabalho auto-etnográfico que busca discutir questões acerca do treinamento do ator sobre si mesmo, a partir do trabalho de treinamento para o espetáculo Projeto Artaud, que é parte da disciplina Prática de Direção Teatral II, ministrada pelo Prof. Dr. José Ronaldo Faleiro. O trabalho discute questões referentes a atuação e a um trabalho pessoal partindo da experiência do autor. Coloca-se a discussão dentro do território afetivo do ator e de possibilidades a partir de olhares da neurociência e de uma atuação por estados anímicos ou psicofísicos a fim de se buscar soluções e problematizar a questão na emoção no campo da atuação. A partir de uma trajetória acadêmica e da consciência enquanto pesquisador-atuante, investiga-se a noção de atletismo afetivo presente no livro O teatro e seu duplo de Antonin Artaud, a partir de uma busca pessoal de territórios de alteridades, desestabilizações e reorganizações, sabendo dos riscos e contribuições que uma pesquisa auto-etnográfica possui.

Palavras-chave: Antonin Artaud. Atletismo afetivo. Treinamento psicofísico do ator. Trabalho do ator sobre si mesmo. Atuação por estados anímicos.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Imagem 1 – Espetáculo Projeto Artaud – Fragmento I.............................................................7

Imagem 2 – Espetáculo Poema à Boca Fechada.........................................................................9

Imagem 3 – Espetáculo Antigo Sofá de Molas...........................................................................9

Imagem 4 – Simbologia do Ying Yang....................................................................................19

Imagem 5 – Espetáculo Os Pequenos Burgueses - ÁQIS.........................................................28

Imagem 6 – Espetáculo Projeto Artaud – Fragmento VII........................................................37

Quadro 1 – Relação de matrizes criadas em meu processo de treinamento..............................33

Page 7: LAPORTA, Marcos. O ator como treinador de si mesmo

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................7

1 A NOÇÃO DE ATLETISMO AFETIVO .........................................................................15

1.1. ESPINOZA E OS AFETOS..,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,......................................................15

1.2. ARTAUD E O ATLETISMO AFETIVO..........................................................................17

1.3. ATLETISMO AFETIVO, NEUROCIÊNCIA E METAFORICIDADE...........................24

2 A PRÁTICA DE TREINAMENTO EM PROJETO ARTAUD........................................28

2.1. ATUAÇÃO POR ESTADO E A FIGURA DO PROVOCADOR CÊNICO....................28

2.2. O ESTADO COMO MATRIZ CRIATIVA: A PRÁTICA DO ESTADO COMO UM

TREINAMENTO PSICOFÍSICO DO ATOR............,.......................................................31

CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................39

REFERÊNCIAS......................................................................................................................42

APÊNDICES............................................................................................................................45

APÊNDICE A – LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO PARA O TCC..............................45

APÊNDICE B – DIÁRIOS DE TREINAMENTO...................................................................47

APÊNDICE C – FICHA TÉCNICA DO ESPETÁCULO PROJETO ARTAUD.....................60

Page 8: LAPORTA, Marcos. O ator como treinador de si mesmo

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INTRODUÇÃO

A presente pesquisa envolve uma reflexão a partir da prática de treinamento para o

espetáculo Projeto Artaud, resultante da disciplina Prática de Direção Teatral II que foi

ministrada pelo Prof. Dr. José Ronaldo Faleiro e monitorada por Isadora Peruch no semestre

2013/2 no Curso de Licenciatura e Bacharelado em Teatro da UDESC – Universidade do

Estado de Santa Catarina.

Imagem 1 – Espetáculo Projeto Artaud – Fragmento I – Heliogábalo ou O Anarquista Coroado. Foto:

Clara Meirelles.

Antes do ingresso no Curso de Teatro da UDESC, no ano de 2010, fiz parte da Cia. De

Teatro Unisul, em Tubarão - SC por seis anos. Em meio a este período de montagem de

espetáculos e de trabalhos técnicos, a área de atuação sempre me despertou especial paixão e

interesse. Após isto, durante todo o Curso de Graduação em Teatro as questões que envolvem

o ator sempre me inquietaram, seja pelo meu interesse na área de atuação, seja por uma

trajetória de atuação anterior ao curso ou por uma prática dentro da própria academia.

Page 9: LAPORTA, Marcos. O ator como treinador de si mesmo

8

Na quarta fase do Curso, no segundo semestre de 2011, ingressei no ÁQIS – Núcleo

de Pesquisa sobre Processos de Criação Artística – coordenado pelo professor André Carreira,

por um interesse no trabalho de pesquisa de processos de atuação a partir de estados

psicofísicos ou estados anímicos. Isto ampliou meus horizontes em relação a processos de

atuação. Assim, ingressei no ÁQIS como Bolsista de Iniciação Científica – Cnpq e passei a

pesquisar os estados como procedimentos de atuação a partir de práticas laboratoriais, que se

mesclavam com leituras de textos teóricos dentro do próprio grupo. A partir da pesquisa na

qual permaneci por dois anos, foram produzidos espetáculos-laboratório, a fim de verificar

resultados dentro de uma prática cênica: uma adaptação de Os Pequenos Burgueses, de

Máximo Górki (2011 e 2012), e Baal (2013), de Bertolt Brecht. Além disto, utilizei deste

procedimento por um viés mais pessoal no processo da disciplina de Montagem Teatral I e II,

também ministrada pelo professor André Carreira, na qual se montou Calada Estranha

(2012), uma adaptação do texto Senhora dos Afogados de Nelson Rodrigues.

Paralelamente a isto, durante o curso tive contato com a obra de Antonin Artaud,

encenador que sempre me instigou e considerei interessante. Lendo O teatro e seu duplo,

percebi aproximações entre os postulados artaudianos e a pesquisa pessoal dos estados, como

por exemplo a afirmação de Artaud (1993) em relação a uma localização física dos

sentimentos e de uma musculatura afetiva que o ator deve possuir.

As experiências de direção na disciplina Prática de Direção Teatral I, ministrada pela

Profª Dra. Maria Brígida de Miranda – Antigo Sofá de Molas e Poema à Boca Fechada –

reforçaram ainda mais meu interesse em relação a atuação e a discutir questões que tangem ao

treinamento do ator através de uma prática pessoal. Somado a isto, a conversas com colegas e

amigos de cursos, com professores e com um interesse e inquietação em evoluir em minha

pesquisa atoral, realizei um trabalho solo de atuação na disciplina Prática de Direção Teatral

II: Projeto Artaud, que fala sobre recortes de momentos da vida do encenador francês, a partir

da junção de textos.

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Imagem 2: Espetáculo Poema à Boca Fechada – Resultado da Disciplina Prática de Direção I – 2013/1.

Atriz: Luanda Wilk. Direção: Marcos Laporta e Néia Longen. Foto: Nina Medeiros.

Imagem 3 – Espetáculo Antigo Sofá de Molas. Direção de Marcos Laporta e Tainá Froner – Resultado

da Disciplina Prática de Direção Teatral I – 2013/1. Atores: Thaina Gasparotto e Rafa Zanette. Foto: Paulo Henrique Wolf.

Através deste trabalho, no qual realizo uma parceria de direção com a acadêmica

Rachel Chula, que possui uma pesquisa de conclusão de curso de graduação afim a esta,

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investigarei questões sobre o trabalho do treinamento do ator sobre si mesmo, à luz dos

conceitos abarcados por Artaud que envolvem a ideia do ator como um atleta afetivo.

Este será um trabalho filosófico-crítico a partir de uma prática pessoal atoral imersiva,

portanto auto-etnográfica, levando em conta os perigos que a auto-etnografia envolve. Fortin

(2009) afirma que a pesquisa etnográfica, assim como a auto-etnografia é uma tendência

crescente na área artística, já que envolve o artista e a produção de uma obra artística dentro

do seu sistema sígnico. Esta envolvem uma bricolagem e uma junção de diferentes

metodologias de coletas de dados dentro desta categoria: relatório de bordo, crônicas de ação,

observação participante, entre outras, em que se apropria de uma experiência de um outro ou

da própria, levando ao problema da crise de representação: A crise de representação, longe de ver a descrição como um simples exercício de transcrição e de adequação entre as palavras e a realidade, impõe firmemente a presença e a subjetividade do pesquisador até fazer deste o objeto central nos estudos auto-etnográficos. De fato, se a pessoa que conduz a investigação é indissociável da produção de pesquisa, por que, então, não observar o observador? Por que não olhar a si mesmo e escrever a partir de sua própria experiência? (FORTIN, 2009,p.82)

A crise de representação se agrava na auto-etnografia, visto que envolve uma ética

pessoal do pesquisador na qual ele deve buscar uma descrição que envolve um auto-

distanciamento e um redimensionamento do eu e da sua própria experiência, na busca de fugir

de discursos narcisistas e tendenciosos e de uma relativa neutralidade em relação ao objeto de

estudos. Assim, uma auto-etnografia, pelo descentramento do próprio eu do artista significa

uma redimensão: “Os dados auto-etnográficos definidos como as expressões da experiência

pessoal, aspiram ultrapassar a aventura individual do sujeito” (FORTIN, 2009, p. 84). Uma

redimensão de uma experiência que envolve uma conversão de um discurso pessoal subjetivo

a fabricação de um discurso teórico no terreno de exercício de tentativa de objetividade para

um outro que toma contato com a experiência do pesquisador-artista.

O trabalho e o treinamento do ator sobre si mesmo é um grande tema em discussão no

teatro e na arte contemporânea, e vem sendo discutido desde as primeiras sistematizações que

concernem ao trabalho do ator com o encenador russo Konstantin Stanislávski. Segundo

Naspolini (2013), no século XX ocorreu uma série de transformações no teatro, mais

especificamente o que concerne ao “treinamento atoral pautado na disciplina de si, buscando

uma dilatação da percepção e da consciência” (NASPOLINI, 2013, p. 27). Em geral, pode-se

dizer que estas mudanças ocorreram por uma insatisfação pelos procedimentos técnicos

utilizados no cenário do teatro europeu principalmente no século XVIII, que em sua maioria

eram pautados em padrões gestuais, entonações e expressões faciais. Um bom ator nesta

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época seria aquele que se melhor moldasse em relação a gestos convencionados e que

entoasse corretamente um texto dramático.

Dentro deste cenário, podemos começar a pensar o atletismo afetivo dentro desta

insatisfação, que parte do próprio Artaud. O termo atletismo afetivo é utilizado pelo

encenador, poeta, dramaturgo e ator francês Antonin Artaud no livro O teatro e seu duplo,

publicado originalmente em 1938. No livro, que é um apanhado de textos de Artaud, há as

principais ideias do encenador francês a respeito da encenação e do teatro em que acreditava,

além de ideias relacionadas ao ator e a atuação. Em relação a esta obra, vamos nos ater mais

especificamente na pesquisa ao capítulo Um atletismo afetivo, no qual Artaud (1993) discute

o termo atletismo afetivo propriamente dito, que é um tema matricial da presente pesquisa e

que dialogará com a referente prática de treinamento do espetáculo Projeto Artaud.

A partir do século XX, cada vez mais houve um movimento de fundamentar bases

consistentes em relação ao treinamento do ator e seus processos psicofísicos a fim de se

desenvolver um treinamento e um trabalho do ator sobre si mesmo. O surgimento destes

procedimentos técnicos que pensam uma sistematização para o trabalho do ator, implicou

cada vez mais uma ética e o desenvolvimento de uma série de responsabilidades que o ator

deve ter para consigo: tempo para si, a qualidade de uma auto-observação diferenciada, o

desenvolvimento de um corpo-artista e de um pensamento estético mais concreto imbricado

nesta ética, em que o ator volta-se para o interior, e não tanto mais para uma molduragem ou

convenção géstica que antes ocorria, na busca de uma verdade, organicidade psicofísica e de

uma linguagem própria dos meios teatrais, que o desvinculam da ideia do teatro enquanto

literatura.

A noção de um trabalho do ator sobre si mesmo iniciada com as primeiras

sistematizações do Método Stanislávski surge a partir desta insatisfação e de um movimento

crescente de desenvolvimentos de teorias que pensassem de um modo mais concreto a arte do

ator, formação e procedimentos de treinamento que possibilitassem diretrizes formativas a

uma poética atoral. Segundo Nunes (2009), a visão metafórica cartesiana separatista de

Descartes, ou de um corpo-máquina separado e uma alma que movia a máquina do corpo

influenciou profundamente os discursos artísticos sobre treinamento e manteve-se presente

em teorias do ator mesmo na época novecentista – estando presente ainda hoje em diversos

discursos referentes ao ator e a atuação. Pode-se ver isto na visão de Stanislávski (1997) em

sua fase inicial do desenvolvimento de procedimentos atorais pautados na interioridade do

ator, a chamada “psicotécnica”.

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Ainda que no Teatro de Arte de Moscou existisse uma série de trabalhos com o corpo,

como um programa vasto de exercícios como esgrima, yoga e ginástica corporal, o trabalho

físico parecia estar desvinculado do trabalho com os processos interiores e existia uma ênfase

com o trabalho sobre o papel. Existia sim um trabalho físico, mas tudo era a serviço da mente

– no sentido de uma ênfase com um trabalho de percepção psíquica em detrimento do uso da

corporalidade - que ditava as ordens da técnica atoral. Donoso (2010) atesta que nesta época

Stanislavski buscava através de um treinamento corporal polivalente de exercícios físicos um

domínio sobre a modulação das emoções do ator, que deveria desenvolver uma técnica

psíquica visando exprimir a vida espiritual do papel. Assim o ator chegaria a um determinado

estado, que Stanislávski chama de estado interior de criação: Um ator, portanto, volta para seu instrumento criador, tanto espiritual quanto físico. Sua mente, vontade e sentimentos combinam-se para mobilizar todos os seus “elementos” interiores. Desta fusão de elementos surge um importante estado interior, o estado interior de criação. (STANISLÁVSKI, 1997,p.83)

Segundo as falas de Nunes (2009), Donoso (2010) e Coronado (2010), podemos

perceber que com o rompimento de Meyerhold e a fundação do Teatro-Estúdio, bem como o

surgimento de procedimentos de treinamento atoral de Grotowski com sua via-negativa e

mesmo as reflexões de Artaud desvinculam o treinamento sobre si mesmo de uma psicologia

para um foco mais psicofísico e da corporificação dos processos interiores, com a visão de

uma corporeidade oriunda de um sistema integrativo e não mais separada. O trabalho sobre si

mesmo, passa cada vez mais a recair sobre o ator e a sua identidade – no sentido do ator

adquirir uma atitude consciente de se pensar a operacionalizar sua práxis - e modos próprios

de trabalho e na expressão pessoal do ator, ou que Eugênio Barba acredita como a expressão

de uma identidade profissional diversa: Eu justificava para mim mesmo – e ainda o creio hoje em dia – a necessidade do treinamento como expressão de uma identidade profissional diversa. Ele era a confirmação diária, humilde e tangível, da decisão de devotar-se ao teatro, através da busca por rigor e autodisciplina. Era a conquista pessoal do ator, do como e do porquê fazer teatro. Forjou as ferramentas de sua independência, crescimento pessoal e capacidade de resistir sob condições adversas. Encorajou cada ator a praticar e defender a dissidência individual e artística. (BARBA, 2007,p.36)

Assim, desenvolveu-se a noção de um trabalho do ator sobre si mesmo arraigado a

ideia de um treinamento: um trabalho cada vez mais rigoroso de treinamento psicofísico

pessoal do ator ou o que Barba (1995) denomina um trabalho pré-expressivo do ator a partir

da ação e do pensamento-em-ação ou a exploração das nuances da ação a partir de um plano

interior-exterior – um pensar corporalmente - a partir de um treinamento pessoal que implica

uma técnica que envolve singularidades a cada ator.

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Sabendo destes perigos e responsabilidades que a auto-etnografia envolve, a noção de

atletismo afetivo, bem como a noção de um treinamento sobre si, nesta pesquisa buscarei uma

ampliação da minha experiência enquanto atuante em treinamento - enquanto criador, diretor

e treinador de si mesmo- num diálogo que busca também experiências/fontes externas e que

podem acrescentar novos significados ao que faço e ao que pesquiso. Tendo em vista estes

pressupostos, se discutirá meu processo de criação e buscar-se-á problematizar essas noções a

partir de um treinamento solo afetivo enquanto modulação de estados poéticos.

No primeiro capítulo faço uma análise do capítulo Um atletismo afetivo do livro O

teatro e seu duplo de Antonin Artaud, analisando os postulados artaudianos e ideias a respeito

do trabalho do ator e da emoção. São analisadas ideias de Artaud quanto ao trabalho do ator

como o trabalho com o mecanismo respiratório como ativador de processos afetivos

associados a contrações musculares e a comparação do ator como um atleta das emoções ou

um atleta do coração. Busca-se um diálogo com outros autores para esta análise, como

Espinoza (2009) e suas ideias a respeito dos processos afetivos na sua obra Ética, a fim de se

clarificar, entender e estabelecer respostas e questionamentos a conceitos presentes no

capítulo em questão da obra de Artaud.

Busco paralelamente a isto um olhar neurocientífico ao conceito de atletismo afetivo, a

partir de uma breve perspectiva evolucionista do neurocientista Antônio Damásio,

relacionando esta perspectiva a um trabalho possível de treinamento afetivo induzido do ator

no qual corporifica suas emoções através de estratégias pessoais de ativação de seu mundo

interior em relação de fluxo com o ambiente circundante.

Podemos ver, a partir de uma perspectiva biológico-científica das emoções e

sentimentos, que existe um problema quanto a separação cartesiana corpo-mente, como nos

afirma Damásio (2011), que ressalta a grande polêmica em torno do tema em torno de

filósofos e cientistas. Segundo o autor (2011, p.44) e partir de sua perspectiva integralizada do

corpo, é comprovado que o cérebro é capaz de produzir mapas mentais de estruturas que

compõem o corpo. Estes mapas cerebrais são a base das imagens mentais e o cérebro tem o

poder de introduzir o corpo no conteúdo de um processo mental. Problematizo esta relação de

Damásio (2011) ao território do ator, visto que as diversas linhas de atuação propõem

soluções distintas ao ator e ao território do afeto e mais especificamente aos postulados de

Artaud como forma de compreensão de um atletismo pessoal.

Por fim, discuto meu treinamento solo envolvido no processo de treinamento para

Projeto Artaud, tendo em vista as ideias anteriores a respeito dos processos afetivos, e

também em como compreender um atletismo afetivo a partir do meu processo de treinamento.

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O treinamento solo envolveu uma atuação por estados psicofísicos e estímulos de

provocadores cênicos, que eram pessoas que traziam estímulos diferenciados a cada ensaio a

fim de se compor o material criativo resultante do espetáculo. O provocador cênico também

funcionou como um estímulo para a instalação de um espaço maior de tensões e

desconstruções no processo laboratorial, alteridade, desestabilização e reorganização da

criação.

Page 16: LAPORTA, Marcos. O ator como treinador de si mesmo

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1 A NOÇÃO DE ATLETISMO AFETIVO

O termo atletismo afetivo é utilizado pelo encenador, poeta, dramaturgo e ator francês

Antonin Artaud no livro O teatro e seu duplo. Além de envolver uma linha de atuação e

processo de treinamento atoral, o atletismo afetivo decorre também de uma postura crítica de

Artaud, e parte de um movimento de processos de mudança e reformas quanto ao trabalho do

ator e seu treinamento ainda escassos, principalmente no cenário francês.

Diz respeito a uma postura combativa do próprio Artaud em relação a visão do

trabalho teatral desenvolvido na França e da visão que se tinha do próprio ator: “O ator não

passa de um empírico grosseiro, um curandeiro guiado por um instinto mal conhecido”

(ARTAUD, 1993, p. 152). Mèredieu (2011) destaca os encenadores-referência

contemporâneos a Artaud: Copeau, Dullin e Jouvet, os quais privilegiavam um teatro de texto

com uma técnica baseada na psicologia, na qual a atuação estava a serviço de uma

dramaturgia - no sentido de uma inteligibilidade racional do texto escrito - aspectos que

Artaud combatia radicalmente.

Há uma busca em Artaud até o final da sua vida de uma linguagem própria ao teatro, e

dentro disto está a atuação. O atletismo afetivo parece ser uma tentativa de pensar a atuação a

partir de mecanismos mais objetivos e de possibilitar pressupostos ao ator para que ele,

através de caminhos próprios, adquira uma agilidade emocional através de um trabalho

energético, ainda que esta tentativa se permaneça num plano de discurso. Antes de analisar

alguns pressupostos envolvidos no atletismo afetivo, analisarei algumas proposições de

Espinoza a respeito da sua conceituação em relação aos afetos, que nos permitirá alguns

diálogos conceituais e reflexões pertinentes ao meu processo de treinamento.

1.1. ESPINOZA E OS AFETOS

O filósofo holandês Baruch de Espinoza em sua obra Ética define os afetos como

afecções do corpo que aumentam ou diminuem, ajudam ou limitam a potência de agir deste

corpo e ao mesmo tempo as ideias destas afecções. “O Afeto, que chamamos de Paixão da

alma, é uma ideia confusa pela qual a Mente afirma uma força de existir, do Corpo ou de suas

partes, maior ou menor que antes e que, uma vez dada, pode determinar a própria mente a

pensar isto ou aquilo” (ESPINOZA, 2009, p. 69). Espinoza (2009) acreditava numa

compreensão e estudos racionais do afeto, possuindo este as mesmas leis da natureza/Deus

imanentes e tendo portanto causas e propriedades certas.

Page 17: LAPORTA, Marcos. O ator como treinador de si mesmo

16

Há em Espinoza (2009) um pressuposto de que existe um Deus imanente a priori, algo

dado, uma potência suprema, que é parte indissociável das potências existentes nos seres ou

nos modos existentes e está essencialmente presente no ser humano e nos objetos/corpos em

relação a ele. Deve existir no indíviduo uma tendência a uma busca de vida ou a uma busca

energética que é determinada pelo grau de potência presente em cada ser. Isto envolve uma

postura ou um trabalho/esforço: “Toda coisa se esforça (conatur) na medida que é em si

(quantum in se est) por perserverar no seu ser” (ESPINOZA, 2009,p. 41). Espinoza (2009)

denomina este esforço como conatus, ou seja, uma busca do indivíduo para afirmar-se na

existência em relação ao mundo na qual deve haver uma tendência de ampliação de suas

potências.

A potência do indivíduo está ligada intrinsicamente a capacidade do indivíduo afetar-

se e as suas relações com os objetos exteriores e como o indivíduo processa isto para consigo,

através de suas afecções ou ideias-imagens destas relações estabelecidas. Estas ideias

proporcionadas pela relação do indivíduo no mundo se tornam respostas em movimento

através do afeto - sentimentos e emoções resultantes destas ideias provocadas pelas relações

do corpo afetado e dos objetos ou corpos afectantes. As definições de Deleuze (2002) em

relação ao pensamento espinoziano nos permitem uma visão mais detalhada quanto ao afeto: [...] a afecção se refere diretamente ao corpo ao passo que o afeto se referia ao espírito. [...] A afecção (affectio) remete a um estado do corpo afetado e implica a presença do corpo afetante, ao passo que o afeto (affectus) remete a transição do estado a outro, tendo em conta a variação correlativa dos corpos afectantes. (DELEUZE, 2002,p.56)

Sendo assim, a afecção envolve uma imagem ou ideia do corpo afetado, que implica

num desencadeamento de um estado, ou uma resposta/efeito entre as interações do corpo-

objeto ou entre os corpos e o afeto estaria ligado a algo espiritual no sentido de algo mais

processual - o resultado em fluxo ou como opera o contaminar destas respostas/afecções do

corpo em relação aos estímulos dados pelo ambiente ou este estado que produz uma afetação

interna ou um sentimento que se corporifica por respostas viscerais ou por ações ou

movimentos corporais. O afeto envolveria um tempo – o que Deleuze (2002) denomina como

uma linha melódica de variação contínua - que implica uma manutenção indeterminada deste

estado gerado pelas afecções, desta contaminação provocada por esta relação estabelecida

entre as potências dos modos existentes.

Espinoza (2009) estabelece que dentro desta relação entre os modos existentes

produtora de afeto envolvem afecções positivas e negativas, determinadas pelas paixões de

alegria e tristeza. As afecções envolvendo tristeza envolvem uma tendência a destruição dos

corpos e a um afastar dos corpos, enquanto que a alegria envolve uma expansão e afirmação

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da potência pela harmonia provocada pelos modos existentes em relação, como nos explica

Deleuze: É que a alegria, e o que dela resulta, preenche de tal maneira a aptidão para ser afetado que a potência de agir ou força de existir aumenta relativamente; e de maneira inversa com a tristeza. O conatus é pois o esforço para aumentar a potência de agir ou experimentar paixões alegres. (DELEUZE, 2002,p.107)

Assim, o conatus, este estado de potência ativo e em ato, logra na medida em que há

uma ampliação de potência ou energia em trabalho. A experimentação de paixões alegres

proporcionada pelas relações dos modos significa a produção de afecções adequadas e afetos

enquanto causa adequada na medida em que há uma ampliação da potência e a afirmação do

ser atuante no mundo por esta expansão energética dentro destas afecções em fluxo. O afeto

assim, se constitui enquanto as variações dentro de uma potência ampliada em trânsito por um

encontro com um objeto ou corpo externo, que envolve uma postura do corpo-mente de

disponibilidade e filtragem de afecções ativas na medida em que há uma energia do corpo

pulsante e um movimento de manutenção e afirmação da vida de um modo existente em

relação.

Mas como isto poderia ser entendido dentro de um atletismo afetivo? Que relações

estas afirmações de Espinoza trariam num treinamento afetivo solo? As afirmações de Artaud

nos darão mais pistas.

1.2. ARTAUD E O ATLETISMO AFETIVO

Um atletismo afetivo enquanto procedimento atoral envolve um mecanismo de

atuação que parte de uma corporificação da emoção ou uma corporificação afetiva, na qual o

ator não abstraciona a emoção necessariamente, mas a induz pelo mecanismo respiratório

associado a um trabalho muscular de esforço. Ao falar do seu atletismo afetivo enquanto

procedimento atoral, Artaud tem como fio norteador a associação entre determinados pontos

musculares do corpo a mecanismos respiratórios com o desencadeamento de determinados

afetos, apesar de não explicitar exatamente quais pontos e mecanismos envolvidos.

Este trabalho muscular toma como referência o atleta, com seu rigor e treinamento,

mas se distingue enquanto finalidade e enquanto processo: se desvincula de um evento

esportivo e de uma lógica de treinamento industrial e se aproxima do evento teatral e de

aspectos de uma via artística de treinamento atoral afetiva que envolve uma memória

muscular.

Para servir-se da sua afetividade como o lutador usa a sua musculatura, é preciso ver o ser humano como um Duplo, como o Kha dos embalsamados do Egito, como um

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espectro perpétuo cujas formas o ator verdadeiro imita, ao qual impõe as formas e a imagem de sua sensibilidade. (ARTAUD, 1993,p.153)

Ver o ser humano como um duplo significa acessar outro nível de realidade. O atleta

treina para o jogo – o seu esporte – para competir, e seu treino tem o valor do que Ferracini e

Possani(2014) chamam de um adestrar, um acúmulo de habilidades ou práticas técnico-

mecânicas dos equipamentos físicos, condicionamento que visa uma intensificação de si a fim

de atingir resultados e rendimentos específicos e da ampliação da capacidade muscular. O

trabalho do ator em Artaud envolve também uma preparação física, mas não com a mesma

ênfase do atleta, e sim num nível de condicionamento de uma corporeidade saudável a fim de

que essa corporeidade se transforme e recrie através de relações. Isto envolve outra realidade,

um tempo outro, num espaço de um viés artístico e menos comercial, dos afetos.

O trabalho de um atletismo afetivo enfatiza também um processo de busca: O ator dotado encontra em seu instinto o modo de captar e irradiar certas forças; mas essas forças, que têm seu trajeto material de órgãos e nos órgãos, ele se espantaria se lhe fosse revelado que elas existem, pois nunca pensou que pudessem existir. (ARTAUD, 1993, p.153)

Neste processo de busca o ator se atenta para os movimentos fluídicos da alma, se

prepara para o espetáculo e também se desenvolve enquanto ser, ampliando o conhecimento

que tem de si, através da matriz respiratória que alavanca de maneira artificial o afeto

associada a um trabalho muscular levado até as últimas consequências no sentido de um rigor

e precisão. Artaud (1993) inicia o capítulo postulando para desenvolver uma “musculatura

afetiva que corresponda a uma localização física dos sentimentos”, ou seja, pontos musculares

do corpo específicos que ativariam estados afetivos no ator.

A respiração segundo Amaral (1984) é o modo pelo qual transportamos oxigênio do ar

pelas células do corpo e também para queimar carboidratos, gorduras e proteínas, liberando

nossas energias de sustentação. Além disto, segundo a autora (AMARAL, 1984, p. 99), a

respiração é o modo pelo qual livramos nosso corpo de um subproduto do processo de

combustão na respiração, o dióxido de carbono. Regulada pelo sistema nervoso central, a

respiração seria a única função regulada por este que pode ser voluntariamente alterada. Para

Artaud (1993), em seu atletismo afetivo, a respiração tem importância primordial, e são

associados determinados padrões respiratórios a cada matriz de afeto: “A respiração

acompanha o sentimento, e pode se penetrar no sentimento pela respiração, sob a condição de

saber discriminadamente, entre as respirações, aquela que convém a este sentimento.”

(ARTAUD, 1993, p.156). O mecanismo respiratório, feito voluntariamente e de forma

mecânica, é associado a uma sensação/paixão dotada de materialidade fluídica.

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19

Stein (2006) afirma que Artaud baseia suas ideias da respiração e consequentemente

de um trabalho/treinamento do ator em princípios da Cabala e filosofia oriental, como o Ying

e Yang e a noção de dualidade, masculino/feminino, cheio e vazio. Representados pelo

ideograma chinês Tai-chi-Tzú, o ying-yang está ligado ao que Amaral (1984) denomina como

uma polaridade energética e trabalha-se muito nos países orientais, como a China um

equilíbrio destas energias, que correspondem a um equilíbrio do corpo, mente e alma, em

constante fluxo e diálogo. O Ying e Yang são trabalhados segundo a autora (AMARAL, 1984,

p. 14) a partir do fluir da movimentação do corpo e da respiração, num movimento de

harmonia e equilíbrio da ação a partir da metáfora do círculo – movimentos rotativos e

fluídicos. O ser humano está num movimento incessante de busca de equilíbrio da dualidade,

através de um controle do corpo que visa um controle da polaridade energética e dentro disto

a respiração se torna indispensável.

Imagem 4 – simbologia do Ying Yang.“Toda situação (objeto, ser vivo, fenômeno, etc.) ocorre a partir da inter-relação constante de Ying-Yang.” (AMARAL, 1984, p. 38). Dentro destas duas energias há a energia oposta, e existe uma gama de combinações energéticas que surge através da combinação destas energias. Estes princípios

estão presentes em Artaud.1

A dualidade/princípio binário presente no Ying Yang é um princípio motor no

pensamento de Artaud segundo Virmaux (1978) – um pensamento da vida e do universo, uma

aliança e oposição, um diálogo, um progresso pelo combate, duas formas de se relacionar no

mundo. Estes princípios e elementos da filosofia oriental, quando se fala do ator e de seu

atletismo aparecem segundo Stein (2006) nos três movimentos que compõem o fluxo

respiratório: inspiração, retenção e expiração – o feminino, o neutro e o masculino,

1 Fonte: http://solysmaroliveira.blogspot.com.br/2010/09/yin-yang-e-na-filosofia-chinesa-uma.html. Acesso em 19/06/2014.

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20

respectivamente2. Estes movimentos são associados com movimentações corporais precisas a

fim de que se desencadeiem emoções/sensações associadas. Além disto, as diferentes

qualidades de respiração – masculina, feminina e neutra ou masculina, feminina, e andrógina

permitem ao ator estabelecer nuances de suas matrizes afetivas, produzindo qualidades

diferenciadas em sua indução afetiva pelos ritmos respiratórios investigados pelo ator.

Pois a respiração que alimenta a vida permite galgar as etapas degrau por degrau. E através da respiração o ator pode repenetrar num sentimento que ele não tem, sob a condição de combinar judiciosamente seus efeitos; e de não se enganar de sexo. É que a respiração é masculina ou feminina; menos frequentemente, andrógina. Mas poderá ser necessários descrever preciosos estados suspensos. (ARTAUD, 1993, p.156)

Enumera-se em O teatro e seu duplo alguns pontos de esforço físico do pensamento

afetivo, tais como o ponto da raiva, descrito com certa minúcia: Uma raiva superaguda e que se desmembra começa por um neutro estalante e se localiza no plexo por um vazio rápido e feminino, a seguir é bloqueada nas duas omoplatas, volta como um bumerangue e lança fagulhas masculinas, mas que se consomem sem avançar. A fim de perder o tom mordaz, conservam a correlação da respiração masculina: expiram com ênfase. (ARTAUD, 1993, p.152)

Entretanto, Artaud (1993) não descreve muitos pontos associados a mecanismos

respiratórios quando postula suas ideias em relação ao trabalho do ator. Por uma falta de uma

prática de treinamento, acaba não desenvolvendo seus postulados, deixando assim lacunas a

serem preenchidas por uma prática empírica laboratorial posterior de terceiros. Existem

poucos exemplos estruturais afetivos em O teatro e o seu duplo que permitam ao ator testá-los

e adequá-los a sua própria poética corporal e de treinamento.

Como poderíamos entender as afirmações de Artaud dentro de uma possível prática de

um atletismo afetivo? Se tomarmos as afirmações de Barba (1995) quanto a sua visão em

relação a um treinamento de atores, pensar um treinamento de ator seria pensar um

treinamento energético, o que significa uma busca de uma ampliação de uma potência nervosa

e muscular. “Estudar a energia do ator, portanto, significa examinar os princípios pelos quais

ele pode modelar e educar sua potência muscular e nervosa de acordo com situações não-

cotidianas” (BARBA, 1995, p. 75). Uma determinada linha de treinamento, seguindo estas 2 É importante deixar claro que os gêneros não são preponderantes nas caracterizações das respirações, mas apenas uma forma de entendimento. Outras palavras poderiam ser usadas para explicitar essas qualidades diferentes de nuances respiratórias que na verdade indicam níveis de polaridades energéticas. Estes níveis não são fixos e sim variáveis:

Em todo ator há uma mulher e um homem. [...] Seria igualmente um erro pensar que um ator é guiado somente por uma dessas energias: ambas estão sempre presentes, e um ator experiente sabe como equilibrar seu uso, acentuando uma ou outra de vez em quando. (BARBA, 1995, p.78)

Assim, a caracterização masculino-feminino se dá em nível de nominação a essas qualidades energéticas que o ator deve saber manipular, controlar, conter e utilizar de forma adequada através de um processo de treinamento.

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21

afirmações, seria uma forma de manipulação ou um trabalho energético que o ator estabelece

por uma prática empírica laboratorial, em que busca uma dinamização energética através de

um trabalho pré-expressivo, anterior à encenação.

Tomemos além dos postulados de Barba, os postulados de Deleuze (2002) e Espinoza

(2009) quanto ao afeto. Em seu atletismo afetivo, Artaud (1993) nos parece sugerir caminhos,

mesmo que no plano de ideias em detrimento de uma prática, a um trabalho energético. A

consciência de uma materialidade fluídica da alma, ou uma materialidade dos processos

subjetivos parece abarcar uma manipulação energética, ou um acordar das energias potenciais

do ator para que ele saia da superfície géstica e tenha um diálogo psicofísico consigo, ao

mesmo tempo em que se atenta para o seu redor.

“Para Artaud, o corpo é o espaço energético que produz e movimenta as paixões”

(ARANTES, 1988, p. 49). O corpo como espaço energético é o corpo como teatro dos afetos

ou das afecções em trânsito, em que se busca a materialidade da alma. Esta materialidade

fluídica da alma é proporcionada pelo movimento respiratório em suas nuances:

contenção/suave – feminina; expansão/vigorosa – masculina e neutra ou andrógina, que

associada com pontos do corpo possibilita uma manipulação de níveis energéticos. Artaud

(1993) associa dentro destes três princípios seis combinações de respirações, num sistema

complexo, tendo como base os tempos de respiração triádicos da cabala. Assim, através da

combinação destes tempos e da contração de pontos específicos do corpo o ator dinamizaria

suas energias e produziria qualidades afetivas. O importante é tomar consciência dessas localizações do pensamento afetivo. Um meio de reconhecimento é o esforço; e os mesmos pontos sobre os quais incide o esforço físico são aqueles sobre os quais incide a emanação de um pensamento afetivo. Os mesmos que servem de trampolim para a emanação de um sentimento. (ARTAUD, 1993, p.157).

Tomar consciência das localizações do pensamento afetivo significa reencontrar essa

materialidade fluídica da alma, que envolve a energia já mencionada e sempre um esforço.

Stein (2006) enfatiza o esforço em Artaud, que decorre da sua visão de um teatro trágico, que

sempre envolve um combate, uma luta contra o mal implacável: “A crueldade é a expressão

do conflito primordial e incessante que dilacera o homem e o mundo.[...] A crueldade

significa rigor, aplicação e decisão implacáveis, determinação irreversível, absoluta”

(ARTAUD, 1993, p. 132). O mal pode ser visto como o mau encontro, que diminui a potência

do corpo pulsante e a presença deste corpo no espaço. “O esforço físico tem o mesmo ponto

de esforço do pensamento afetivo” (ARANTES, 1988, p. 54), ou seja, as afecções induzidas

por uma acuidade do ator despertam qualidades volitivas de energia que em trânsito, com o

movimento muscular e respiratório, desencadeiam determinadas qualidades afetivas. “Os

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22

indivíduos que compõem o corpo humano, e, por conseguinte, o próprio corpo humano,

podem ser afetados pelos corpos externos de grande número de modos.” (ESPINOZA, 2009, p.

27), e estas afecções induzidas desencadeiam mudanças diferenciadas no corpo que tenta

naturalmente se reorganizar em meio as induções de afecções de partes do corpo específicas e

com as respirações produzidas, em meio a este empilhamento. O ator deve ampliar suas

faculdades perceptivas para administrar e organizar estes encontros gerados pelas matrizes

experienciadas.

Há uma ênfase na respiração como um todo. “O esforço por simpatia acompanha a

respiração e, conforme a qualidade do esforço a ser produzido, uma emissão preparatória de

respiração tornará fácil e espontâneo este esforço.” (ARTAUD, 1993, p. 155). Existe um

esforço natural e involuntário na respiração – Artaud sugere um esforço voluntário rigoroso

que seja trabalhado a fim de que emanem determinados estados afetivos até que ele se torne

natural ou espontâneo. A respiração, no entanto, não é o único caminho do ator em seu

atletismo afetivo a fim de que produza novas qualidades corporais, porém é o aspecto em que

há colocações mais precisas no capítulo. “No atletismo afetivo o ator produz o seu próprio

corpo através da respiração” (ARANTES, 1988, p. 50). Há uma ênfase na respiração em todo

o capítulo de Artaud enquanto ferramenta técnica, em detrimento de outros artifícios como o

movimento, o espaço e também possibilidades de relação com o público. “[...] o sistema das

respirações não é feito para as paixões medianas” (ARTAUD, 1993,p. 157). O sistema de

combinações respiratórias não é feito para paixões medianas no sentido de que deve envolver

causas adequadas com propriedades certas e um rigor, que desencadeiam uma ampliação

energética e presença cênica do ator pela vibração de suas energias em fluxo.

O atletismo afetivo implica num trabalho com potência e dinamização energética pelo

afeto, que envolve uma acuidade do ator para ampliar o que Artaud (1993) denomina como

densidade voltaica, uma busca de afecções alegres e de relações que ampliem e acordem a sua

potência. O estado de potência ampliada, ou um conatus favorável – essa postura de

contaminação ativa equivale a um estado situado acima das respirações, a que Artaud chama

do estado de sativa: “o ator traz em si o princípio desse estado, desse caminho de sangue pelo

qual ele penetra em todos os outros cada vez que seus órgãos potenciais despertam de seu

sono” (ARTAUD, 1993, p. 156). O estado de sativa pode ser encarado como as energias

potenciais do ator – a vida em potencial - que quando acordadas possibilitam essa irradiação

de forças e uma vibração de energia em fluxo que gera presença cênica por um corpo-mente

integrado e não mais meramente abstracionado.

Page 24: LAPORTA, Marcos. O ator como treinador de si mesmo

23

É o equivalente ao que Deleuze (2002) chama ao falar de Espinoza de um conatus

bem sucedido, ou a potência de agir possuída – a virtude - algo superior atingido e

conquistado pelas afecções alegres. Este estado é atingido pela manipulação das energias e

pela ampliação de potências. Assim, o ator deixaria de ser um empírico grosseiro e possuiria

um controle relativo de seus instintos na medida em que desenvolve esta acuidade através de

um treinamento e preparação rigorosos. O ator em Artaud deve ser senhor dos seus afetos, na

medida em que recria um corpo: realiza um controle relativo de suas afecções para que se

produza determinadas qualidades de presença.

Entretanto, um atletismo afetivo não enfatiza exatamente um teatro do ator: “o teatro

se faz diretamente no palco, no confronto direto com o espaço e suas potencialidades

provocativas” (ARANTES, 1988, p. 69). Um atletismo afetivo é antes de tudo uma forma de

contaminação por relações do que um atletismo propriamente do ator – é uma forma de

operacionalizar relações afetivas no palco, na cena. “Os movimentos musculares do esforço

são como a efígie de um outro esforço duplo, e que nos movimentos do jogo dramático se

localizam nos mesmos pontos” (ARTAUD, 1993, p. 151). Os movimentos musculares do

esforço representam um outro esforço que envolve uma ampliação e manutenção energética

antes adormecida. O artifício técnico é uma ferramenta que proporciona o atletismo afetivo,

que se dá verdadeiramente no palco, e com todos os elementos – espaço, público, signos.

O combate e a ampliação de potência verdadeira se encontra no momento da

encenação, o evento do acaso, no encontro com o público. Saber antecipadamente que pontos do corpo é preciso tocar significa jogar o espectador em transes mágicos. É dessa espécie preciosa de ciência que a poesia no teatro há muito se desacostumou. Conhecer as localizações do corpo é, portanto, refazer a cadeia mágica. E com o hieróglifo de uma respiração posso reencontrar uma ideia de um teatro sagrado. (ARTAUD, 1993, p. 160)

Refazer a cadeia mágica é através de um reverberar de forças que o ator possui e as

deixa nascer e fluir, fazer reverbera-las e atingir o espectador, reencontrando uma ideia de um

teatro sagrado não no sentido religioso, mas sim num sentido mágico, de evocação de uma

força superior, cósmica, algo que existe em latência, mas num outro nível acima. “Trata-se na

verdade de mudar de pele, de se deixar habitar pelas forças mágicas, como no transe dos ritos

de possessão” (VIRMAUX, 1978, p.49). Estas forças mágicas envolvem um espaço ritual dos

corpos em movimento e troca, em comunhão e compartilhamento no espaço cênico em que o

espectador está envolvo num jogo de percepção, sensações, contágios e acessos a níveis

diferenciados de realidades. “É preciso refazer a cadeia, a antiga cadeia em que o espectador

procurava no espetáculo a sua própria realidade, é preciso permitir que esse espectador se

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24

identifique com o espetáculo, respiração a respiração e tempo a tempo.” (ARTAUD, 1993,p.

160). Esta identificação não é uma identificação passiva proporcionada por um teatro de

abstração pautado na gestualidade da convenção e na literatura, mas uma identificação pelas

sensações e recortes perceptivos que o espectador encontra num espaço de contágio em

comunhão. Um atletismo afetivo é também uma forma de preparação do ator para esta

comunhão, essa reforma no teatro idealizada por Artaud.

Em suma, além de uma postura critica decorrente de um processo histórico de

mudança, o atletismo afetivo pode ser encarado como um processo de busca do ator pela

ampliação de suas pulsões de vida ou suas energias potenciais. Neste processo de busca, em

que o ator é como o atleta a nível poético, o ator se utiliza do mecanismo respiratório e

movimentos neuromusculares de esforço voluntário e consciente a fim de que se atinja níveis

energéticos de presença. Tudo isto se dá num espaço de treinamento, cercado por um rigor e

acuidade, a fim de que o atletismo afetivo verdadeiramente se dê na cena, em diálogo

horizontal com o espaço e os demais elementos que a cena compõe.

1.3. ATLETISMO AFETIVO, NEUROCIÊNCIA E METAFORICIDADE

Pensar num atletismo afetivo também é problematizar a questão da relação corpo-

mente, e também a questão do funcionamento das emoções e sentimentos 3– o que envolve a

questão dos afetos – no corpo. O neurocientista Antônio Damásio (2004) nos atenta a questão

da mente e do dualismo de substância herdado por Descartes numa visão de que se tem da

qual o corpo e suas partes são feitos de uma determinada substância concreta, ao passo de que

os processos mentais – sentimentos, impressões visuais e auditivas – são feitos de outra

substância não-física, adquirindo um estigma de algo oculto ou de um mistério inabordável.

Estas mesmas questões, como já visto, reverberaram e reverberam ainda hoje nos modos de se

pensar, conceber e trabalhar atuação e modos de treinamento atorais.

Damásio (2004), através de uma visão integrativa corpo-cérebro-mente4, postula que

existem regiões específicas do cérebro – as chamadas regiões somatossensitivas - que

3 Damásio (2009) apresenta uma diferenciação das emoções e dos sentimentos. Pode-se entender o sentimento como algo que ocorre no interior do indivíduo através de complexas conexões neurais do cérebro. Através da consciência se tornam emoção – sua manifestação exterior e material – num movimento contínuo. Assim, para o autor (DAMÁSIO, 2009, p. 71), emoções seriam conjuntos complexos de reações físicas e neurais, que significam um afetar da paisagem do corpo e do cérebro: a manifestação exterior do fenômeno, enquanto os sentimentos estariam ligados a operação do fenômeno eletrofisiológico no interior do corpo. 4 Damásio (2000) acredita num corpo-cérebro integrado, e faz uma divisão entre os conteúdos propriamente do cérebro e os processos da mente. Os conteúdos da mente são o que Damásio (2000) de espaço disposto, em que as imagens mentais se formam. “O conteúdo das disposições são sempre inconscientes, e existem de forma dormente” (DAMÁSIO, 2000, p. 418). O espaço de imagem, corresponde aos conteúdos cerebrais, e diz respeito

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25

mapeiam diretamente alterações em estruturas do corpo, que envolvem determinados estados

– sensações, emoções e sentimentos em determinadas circunstâncias, como forma de

coordenação e regulação dos processos de vida do organismo como um todo.

O corpo e a mente se auto-influenciam a partir das relações que compõem com o

ambiente, e assim constroem-se o que se chama de padrões neurais no cérebro – respostas

eletrofisiológicas do cérebro do que ocorre no corpo. “A construção dos padrões neurais tem

como base uma seleção momentânea de neurônios e circuitos promovida pela interação com

um objeto” (DAMÁSIO, 2004, p. 211). A partir destas relações, formam-se imagens na

mente, que são resultados da percepção do corpo dessa experiência de relação com um objeto

externo. “As imagens que temos na nossa mente, portanto, são resultados de interações entre

cada um de nós e os objetos que rodeiam o nosso organismo, interações essas que são

mapeadas em padrões neurais e construídas de acordo com as capacidades do organismo”

(DAMÁSIO, 2004, p. 211). Estas imagens mentais não são espelhos do objeto externo, mas

sim ideias ou afecções da mente em relação às relações produzidas no corpo, como nos fala

Espinoza: “O objeto da ideia que constitui a mente humana é o corpo [...]” (ESPINOZA,

2009, p. 23), o corpo em determinada circunstância/estado. As ideias da mente, deste modo,

dependem de certas modificações ou afecções do corpo.

Entretanto, Damásio (2004) atesta que, apesar de haver regiões do cérebro específicas

criadora destas imagens de estados do corpo em relação, este mapeamento de relações não é

constante, visto que outras regiões do cérebro podem influenciar estas regiões sensitivas. Este

trabalho eletrofisiológico não é constante e está sempre sujeito a variações. Além disto, é

possível criar esses objetos ou relações ficcionais com estes objetos na mente, através do que

o autor chama de imaginação criadora, em que se representam relações espaciais e temporais

entre objetos: É assim que representamos os acontecimentos que dizem respeito a esses objetos, e é assim que, graças a nossa imaginação criadora, podemos inventar novas imagens para simbolizar objetos e acontecimentos ou representar abstrações, novas imagens, que vão além das imagens baseadas diretamente no corpo. (DAMÁSIO, 2004, p.216)

Estes pressupostos de manipulação de imagens e criação de ficções de relações se

aproximam do território do ator. Pensar um atletismo afetivo significa recolocar as

capacidades do corpo num outro lugar, em que se pensa a criação de um corpo cotidiano num

a atividade visível destes conteúdos das imagens mentais, no qual a consciência central é ativada. “O espaço de imagem é aquele no qual imagens de todos os tipos sensoriais ocorrem explicitamente”, e isto inclui os conteúdos mentais, nos quais algumas imagens tornam-se explicitamente conscientes e outras permanecem ocultas na mente, a nível inconsciente. Assim, para Damásio o cérebro, constituinte do corpo, estaria ligado ao desencadeamento atividades biológicas explícitas enquanto a mente estaria relacionada a nível de processos subjetivos mais ocultos.

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26

outro plano de realidade – a ampliação das capacidades numa via artística de treinamento de

criação e geração de determinados estados de corpo-mente extra-cotidiano que se utiliza de

uma memória muscular, respiração e de um trabalho de relação de corpos-potência. Mas,

além disto, pode-se pensar este atletismo como uma forma de geração de estados do corpo por

uma manipulação de imagens ou afecções – uma forma de se “fabricar” ou transformar

relações, um trabalho com a imaginação criadora. Tudo é um trabalho de administração de

energias, num plano interno de organização e filtragem destas relações no corpo e também

externo, sendo estas relações induzidas ou produzidas no acaso. No tempo de pensar em não querer, ou mesmo de não pensar, uma respiração feminina fatigada nos faz aspirar um mofo de porão, o hálito úmido de uma floresta; e neste mesmo tempo prolongado emitimos uma expiração pesada; enquanto isso, os músculos de todo o corpo, vibrando por regiões de músculos, não param de trabalhar. (ARTAUD, 1993, p.157)

Dentro da relação corpo-mente em Artaud há um elemento metafísico do cosmos ou

uma energia superior, entretanto, ele tenta relativizar isto na busca de uma materialidade e

domínio dos processos submersos na mente do ator. Assim como em Espinoza (2009), o

atletismo afetivo é uma forma de pensar e relativizar os afetos a partir de um corpo-mente

enquanto substância única, e com influências mútuas. Dentro disto em Artaud há a questão de

um corpo em relação e também a criação e ficção de relações pela imaginação criadora.

Não se trata então de se pensar modelos para se atingir determinada emoção em

determinado ponto do corpo - como uma acupuntura de geração de sentimentos - mas de uma

tentativa de trabalho eletrofisiológico consciente para o ator, na qual este tenta manipular suas

imagens mentais em fluxo e criar determinados estados: Não se trata de apreender os gestos e ações, limitando-se a imagens construídas em taxionomias e categorizações pré-fixadas e localizadas (tal emoção, em tal parte do corpo), mas de perceber os estados possíveis do corpo em seu fluxo de imagens que, a cada nova circunstância, adentra ou afora o organismo. Soluções cênicas surgirão através destas conexões. (NUNES, 2009, p.118)

Os estados que surgem no corpo, segundo Nunes (2009, p.118) são frutos deste

trânsito simultâneo entre as imagens que se produzem fisicamente e no meio externo, num

movimento dinâmico percepção-ação. Estas imagens são constantemente reconstruídas, e

como solução cênica tende-se a se cristalizar num padrão metafórico gerado por percepções e

ações corporais que há neste fluxo dinâmico de experiência. Através do que Nunes (2009)

chama de um trabalho do ator sobre si mesmo, cabe o ator construir suas metáforas pessoais

através de sua poética de modos de investigação, “tais como improvisação, exercício técnico e

atenção constante, para que os atores ampliem a percepção e construção imagéticas”

(NUNES, 2009, p. 119). Um atletismo afetivo parece se apoiar num território metafórico no

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27

qual ator produz estados artificiais do corpo por sua percepção interna e objetos externos no

ambiente. Nunes (2009) ressalta a importância do território metafórico na arte e na vida, como

uma forma de compreendermos nossa relação com o corpo e o ambiente que nos cerca pela

categorização através da experiência.

Entender o atletismo afetivo enquanto prática, além de uma técnica ou procedimento

técnico é ter a noção do afeto como algo num fluxo dinâmico e da necessidade de acuidade do

ator para “ouvir” o seu corpo-mente e fazer emergir soluções para que, através de um

processo de manipulação e produção de determinadas qualidades de energia, ele possa exercer

um relativo controle sobre suas emoções e sentimentos, através de mecanismos diversos num

território metafórico e num tempo outro, no qual o ator organiza seus materiais afetivos e

entende sua relação entre interior e o ambiente ou os componentes cênicos. A partir de todos

estes pressupostos, pode-se relacionar a ideia de atletismo afetivo com o procedimento de

atuação por estados psicofísicos ou estados anímicos desenvolvido e aprimorado pelo ÁQIS –

Núcleo de Pesquisa sobre Processos de Criação Artística, coordenado pelo professor André

Carreira, do qual fiz parte que engloba o treinamento do espetáculo Projeto Artaud.

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28

2 A PRÁTICA DE TREINAMENTO EM PROJETO ARTAUD

2.1. ATUAÇÃO POR ESTADOS E A FIGURA DO PROVOCADOR CÊNICO

O procedimento de atuação por estados psicofísicos ou estados anímicos foi

desenvolvido e aprimorado pelo ÁQIS – Núcleo de Pesquisa sobre Processos de Criação

Artística, que é coordenado pelo Prof. Dr. André Carreira. Segundo Carreira e Fortes (2011),

este procedimento de atuação vem sendo testado desde 2007, e tem como conceitos centrais o

grotesco sob uma perspectiva meyerholdiana de um corpo em inacabamento e desconstrução

e a noção de empilhamento num plano afetivo, que significa uma justaposição aleatória de

elementos contraditórios como matriz para o processo criativo5. Fiz parte do ÁQIS durante

dois anos como Bolsista de Iniciação Científica (Cnpq) e neste período foram montados dois

espetáculos-laboratório afim de se verificar resultados mais consistentes com o procedimento:

Os pequenos burgueses, de Máximo Górki, e Baal, de adaptação do original de Bertolt

Brecht.

Imagem 5 – Apresentação do ÁQIS – Núcleo de Pesquisa Sobre Processos de Criação Artística do

Espetáculo-laboratório Pequenos Burgueses, no qual testou-se o mecanismo de atuação por estados. Atores: Diego Di Medeiros, Lígia Ferreira, Adriana Patricia dos Santos, Naiara Alice Bertoli, Patricia Leandra e Isadora

Peruch.

Segundo Carreira (2011), a noção de estado consiste em “experimentar um teatro

fortemente associado à noção de acontecimento e no qual o ator não seria apenas centro da

representação, mas sobretudo agente de uma condição dessa representação como ato social”

(CARREIRA, 2011, p. 12). O mecanismo básico de uma interpretação por estados anímicos 5 Ler livro Estados – Relatos de uma experiência de pesquisa sobre atuação, no qual são relatados com mais profundidade a prática no ÁQIS.

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29

ou psicofísicos assim, consiste uma experiência vivencial em que o ator experiencia imagens

a partir da geração de seus afetos/sensações e a partir desta premissa associa o que produziu

com “ações, textos das personagens, estímulos e releituras realizados pelo ator tendo como

ponto de partida o jogo com os estados” (CARREIRA, 2011, p. 13). Um estado psicofísico

pode ser entendido como uma gama de ações ou procedimentos corpóreo-mentais nos quais

resultam numa sensação, que não necessariamente é uma emoção fixa, como alegria ou

tristeza, mas também pode ser uma sensação ou emoção mais complexa. Os procedimentos

corpóreo-mentais são mapeados e fixados, tornando-se matrizes dotadas de organicidade6.

As matrizes sofrem modificações no empilhamento que ocorre com os elementos do

aqui-e-agora da cena, visto que não existe uma primazia do texto escrito, bem como com a

prática laboratorial. Desta forma, o procedimento tem um caráter representacional

multidirecional e permeável ao elemento imprevisível do acaso, que é utilizado como material

para a criação. O acaso é um elemento imprescindível e determinante, o que implica num

risco, numa abertura de experiência para a contaminação. Este risco também engloba um fator

negativo, visto que o estado abarca um controle que não é total, e nem sempre o estado

potencializa os demais elementos cênicos presentes no espetáculo, como o conteúdo

dramatúrgico. Ainda assim, mesmo com este fator negativo, a prática com o procedimento

através de espetáculos-laboratório tem mostrado resultados interessantes e consistentes em

geral.

O método de trabalho do laboratório no tempo em que fui bolsista no ÁQIS esteve

baseado na livre exploração dos estados através de exercícios individuais e em grupo.

Habitualmente partíamos de uma roda que chamamos de a roda dos estados. Nesta roda qual

cada um dos atores, a seu tempo, iniciava sua indução individual de estímulos corporais com

o fim de gerar estímulos que permitissem alcançar sensações, que não necessariamente

emoções tais como tristeza ou alegria, mas algo que fosse provocado através desses estímulos,

que poderiam ser mesclados com estímulos imagéticos mentais. Fazíamos também exercícios

em duplas e trios com excertos de textos a fim de verificar resultados mais consistentes com o

procedimento técnico. Também testamos outros estímulos em laboratório, como figurinos,

alteração de iluminação na sala, alterações espaciais, entre outros.

6 A organicidade quando se fala de uma atuação por estados deve ser entendida na acepção de Nunes (2009) enquanto metáfora de um corpo vivido, na acepção fenomenológica, em que “não temos um corpo vivido, mas somos um corpo, num entendimento enquanto relação e não como instrumento [...]. Um corpo que se vê vendo e se toca tocando” (MERLEAU-PONTY apud NUNES, 2009, p. 77). Portanto organicidade advém de um corpo enquanto sistema integrativo, permeável, relacional e aberto ao fluxo dos afetos.

Page 31: LAPORTA, Marcos. O ator como treinador de si mesmo

30

Os espetáculos-laboratório Os pequenos burgueses e Baal foram tentativas de explorar

o estado na cena. Cada um recebeu um papel e memorizamos o texto de cada personagem,

além de fazermos leituras ativas em sala. Somado a isto, cada um tinha uma gama dos estados

e o experienciava livremente a cada apresentação. Estes dois espetáculos também envolveram

suas especificidades. Na fase inicial de Os pequenos burgueses, por exemplo, a cenografia era

uma surpresa. Apesar de cada integrante do grupo contribuir como pôde com o empréstimo de

móveis e objetos para a construção da cenografia, só fomos vê-la de fato construída na

véspera da apresentação. Não houve um pré-contato com o espaço em dias anteriores – não

tivemos tempo o suficiente de senti-lo, tocá-lo, ou ter um contato profundo anterior. Tudo

aconteceu no momento de compartilharmos o experimento com o público. Já em Baal,

procedimento posterior aos Pequenos Burgueses, houve uma prática de estados na rua, e

também com uma cenografia limitada, em que havia um corredor de tecido no qual a cena se

desenvolvia dentro dele.

Minha prática solo de treinamento consistiu nesta atuação através de estados, partindo

de procedimentos específicos: cada matriz de estado criada partiu de imagens mentais,

mecanismos respiratórios e contração de músculos do corpo específicas. A prática solo em

laboratório, em sua fase inicial, sempre contava com um convidado que funcionava como um

provocador cênico.

O provocador cênico é um termo relativamente novo empregado em práticas de

treinamento e criação de espetáculos de Grupos de teatro brasileiros, como a Companhia Les

Commediens Tropicales7, que é formada por alunos egressos da UNICAMP. Segundo Santos

(2011), a figura do provocador cênico neste grupo é encarada como pessoas convidadas a

assistirem os ensaios dos espetáculos e darem suas contribuições ativas, substituindo a

tradicional figura do diretor. O provocador cênico pode trazer estímulos diversos, desde

procedimentos técnicos que julgue pertinentes ao trabalho, até estímulos criativos que tragam

novos elementos ao processo criativo.

O provocador cênico no processo de treinamento em Projeto Artaud não substituiu a

figura dos diretores, que também eram atores do espetáculo. Ao todo, foram 10 provocadores

cênicos, sendo todos eles graduandos do Curso de Licenciatura e Bacharelado em Teatro da

UDESC. Normalmente o provocador trazia algum estímulo – objetos, figurinos, acessórios,

técnicas e procedimentos de atuação e treinamento – que provoca uma desestabilização e

reorganização da criação. Estes estímulos sofreram uma filtragem e seleção pelos diretores, 7 Ler dissertação Atores Negros e Atrizes Negras: Das Companhias ao Teatro de Grupo, de Adriana Patrícia dos Santos, que fala mais profundamente sobre o trabalho da Companhia.

Page 32: LAPORTA, Marcos. O ator como treinador de si mesmo

31

reestruturando o treinamento já estabelecido e o material da cena. Quando há a prática com os

estados, há inicialmente uma observação inicial do treinamento. Após isto, o provocador

participa ativamente com estímulos aos procedimentos adotados, ou interferindo ativamente

na prática laboratorial, com estímulos físicos, sonoros, com objetos e sugestões, provocando e

alterando as matrizes já fixadas pela sua alteridade.

A partir da prática num treinamento solo com os provocadores cênicos, havia um

diálogo com o provocador sobre o processo do dia. Após isto, registrava em diários de bordo

a experiência a fim de tentar estabelecer notas sobre o que foi testado e recolher estímulos

para que servissem como material criativo para o espetáculo.

2.2. O ESTADO COMO MATRIZ CRIATIVA: A PRÁTICA DO ESTADO COMO UM TREINAMENTO PSICOFÍSICO DO ATOR

Com estes postulados pode-se afirmar que um estado envolve um exercício de auto

percepção de sensações complexas a fim de que se gere uma série de afecções. A roda dos

estados, no ÁQIS, era uma forma de se marcar bem esta etapa: cada um, a seu tempo, iniciava

seu exercício de busca, procurando filtrar e gerar afecções alegres, ampliadoras de suas

próprias energias em potencial até que houvesse uma territorialização relativa de um

determinado fluxo de energia no corpo. Em meu processo de treinamento, as afecções se

davam individualmente. As afecções envolviam contrações de pontos específicos do corpo ou

ações corporais e padrões de imagens mentais, que dialogavam e potencializavam as ações. A

partir disto, desencadeava-se certo estado – uma sensação ou espécie de resposta do corpo ao

processo. O estado trabalhando energeticamente no corpo seria o afeto ou as mudanças desta

energia no corpo. Testava diversos níveis dentro destes estados: mínimo, médio e extremo, e

dentro disto a respiração era muito importante em seus movimentos de contenção, expansão e

relaxamento, ou denominados por Artaud (1993) como masculino, feminino e andrógino. Isto

me trazia qualidades energéticas diferenciadas. Procurei a cada estado associar padrões

respiratórios e determinadas imagens mentais.

Os estados eram trabalhados individualmente e também através da figura do

provocador cênico já mencionada. Dentro de um atletismo afetivo, pode-se pensar o estado

como uma forma de conquistar dinamização de uma materialidade fluídica da alma, ou uma

forma de se produzir níveis de energia afetivos e dinamizá-los, recriando-os e manipulando-os

num plano relacional. Dentro deste plano relacional há o encontro – o que Espinoza (2009)

chama como uma forma de ampliação de potências pelos encontros dos modos de existência –

no caso dos atores. A desestabilização e reorganização da criação seria uma forma de

Page 33: LAPORTA, Marcos. O ator como treinador de si mesmo

32

dinamizar estas energias geradas pelo encontro, e a partir dessa série de vivências, criou-se

uma gama de matrizes.

O treinamento com o provocador foi uma forma de desterritorialização do estado que,

na medida que se ampliava uma energia, novas afecções surgiam pela abordagem do

provocador e geravam-se outras matrizes dentro do encontro de corpos. O encontro era uma

forma de descobrir a capacidades do corpo e também o próprio estado, em suas nuances e

transições. A partir das experiências com o provocador, refazia em laboratório a gama de

ações e imagens mentais envolvidas dentro do estado, a fim de que as afecções envolvidas

fossem bem fixadas num determinado padrão, numa busca do que Artaud (1993) denomina

um tempo, um determinado pulsar inicial. Após esta série de vivências, eram criadas o que se

pode chamar de matrizes, numa tentativa de manipulação deste conteúdo eletrofisiológico

consciente, que é passível de exploração: Ela, como material inicial, pode ser moldada, remodelada, reconstruída, segmentada, transformada em sua fisicidade no tempo/espaço, tendo como única condição a necessidade de se manter seu coração, o ponto de organicidade que não põe ser perdido, que é a essência da ação/matriz, ou seja, sua corporeidade. (FERRACINI, 2001, p.16)

Artaud (1993) como já dito sugere algumas matrizes em seu atletismo, como a raiva,

associada a nuances respiratórias e pontos específicos do corpo. Entretanto, tanto as matrizes

não devem ser encaradas como uma série de modelos a serem reproduzidos como um manual

de emoções universal, e sim procedimentos a partir de poéticas pessoais. Dentro da póetica

pessoal de cada ator, com cada corpo e singularidade, a matriz implica numa série de afecções

que envolvem uma gama de ações corporais – fluxo respiratório, contração de pontos do

corpo e imagens mentais – geradoras de um determinado fluxo afetivo dentro de um plano

interior.

A matriz é gerada por relações – ficcionalizadas individualmente e/ou através da

intervenção do provocador. À medida que é explorada, seja em cena, ou em laboratório, a

matriz é permeável ao acontecimento. “[...]a capacidade de afeto de uma matriz determina sua

própria potência” (FERRACINI, 2009, p.126), ou seja, a capacidade de sua porosidade, na

medida em que o corpo afirma a sua potência e deixa reconstruir-se por novas afecções que

geram novos estados afetivos dentro deste fluxo de diferenciações. A matriz é uma premissa

ou um material inicial, uma forma de se pensar uma energia ou qualidade de afecção inicial

que se tornará permeável aos objetos externos – a cena ou o trabalho em laboratório - e

também ao processo de criações de ficções num plano interior com a imaginação criadora.

A criação de uma matriz também pode ser pensada como uma forma de enganar o

cérebro, pela manipulação de afecções corporais específicas que induzem um trabalho elétrico

Page 34: LAPORTA, Marcos. O ator como treinador de si mesmo

33

pela tentativa de manipulação neuromuscular consciente. É uma forma do que Damásio

(2004) chama de mapeamento falso do corpo pela mente, na medida em que criam-se,

induzem-se e fabricam-se relações do corpo consigo mesmo e também com o ambiente que o

circunda. As matrizes foram criadas individualmente e também através dos estímulos dados

pelos provocadores cênicos. Os estímulos ou eram pedidos previamente por mim ou eram

dados pelo provocador cênico, que tinha uma postura mais ou menos ativa, variando a cada

dia em que havia a abordagem do provocador. Diversos foram os estímulos recebidos tais

como:

- agressões verbais e físicas;

- abordagem com objetos como corda, apito, confete;

- busca de relação ativa no jogo entre eu e o provocador, como contato físico ou textos

improvisados;

- sugestões de deslocamento espacial e alteração do espaço pelo provocador;

- sugestões de procedimentos específicos dadas pelo provocador para composição de

uma possível matriz de estado, como frequência respiratória, imagem mental e contrações

musculares específicas.

A partir da premissa do estado, treinamento sobre si, e do trabalho com os

provocadores cênicos foram criadas matrizes em meu processo de treinamento. Estas foram

esquematizadas no quadro abaixo, como forma de melhor entendimento de como cada matriz

foi construída e pensada:

Quadro 1: Relação de matrizes criadas em meu processo de treinamento.

Estado

Partes do corpo envolvidas/ Ações Corporais

Imagens Mentais Utilizadas

Respiração

Vazio Relaxamento de todos

os músculos do corpo. Tentativa de “esvaziamento” do pensamento.

Fluxo respiratório lento e suave.

Ave Movimento de abertura dos braços, abertura das intercostais.

A imagem mental usada é a de que se está num campo, numa montanha, a ponto de voar, o que gera uma sensação de êxtase.

Fluxo respiratório suave e lento que vai se intensificando e aumentando a velocidade.

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34

Fonte: produção do próprio autor.

As matrizes foram empilhadas com o texto. Testava diferentes estados com as

diferentes cenas em laboratório, a fim de se compor uma determinada dramaturgia inicial a

partir das matrizes. “O treinar é uma busca de estados de tempo de afetar-se, e não exercícios

executados em um espaço-tempo exato, em um agir mecânico” (FERRACINI, 2009,p. 128).

Estado

Partes do corpo envolvidas/ Ações Corporais

Imagens Mentais Utilizadas

Respiração

Duplo Contrações nos glúteos

e antebraços. Uma mãe segura um filho ensanguentado nos braços, o que gera uma sensação de impotência/agonia.

Fluxo respiratório lento e suave.

Enfermeira

Movimento de abertura dos braços e mãos e contração súbita e rápida dos músculos do braço.

Uma enfermeira nua vem em minha direção me dar uma injeção com uma seringa, e a sensação gerada era de prazer.

Fluxo respiratório muito lento e pausado.

Ansiedade/Agonia Sacudir as pernas de modo rápido.

Imagem de que eu esperava alguém chegar numa sala de espera.

Fluxo respiratório intenso e irregular, ora pelo nariz, ora pela boca.

Choro Contração do queixo, mãos e pés de forma rápida.

As imagens mentais eram diversas e isto ajudava a manter o estado, como por exemplo a de que eu estava numa sala e todos numa platéia riam de mim, e aquilo me causava angústia.

Respiração intensa pelo nariz e soltando pela boca, com uma expiração entrecortada, soltada com ativação do diafragma.

Constrangimento Movimentos sutis nos quadris com contrações bruscas abdominais, movimentos nas articulações dos pulsos e dedos.

Várias pessoas numa grande Dionisíaca; a sensação é de um constrangimento somado a risos discretos, abafados.

Fluxo respiratório médio e suave.

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35

Um atletismo afetivo é uma forma de construção do que Ferracini (2009) denomina vivências

– ou experiências intensivas no corpo a fim de que na cena, essas experiências se reorganizem

e se redimensionem em potência, uma busca de estados dentro de um treinamento psicofísico

do ator. Dentro desta busca de estados de tempo de afetar-se deve haver o conatus, ou uma

postura de acuidade defendida por Artaud (1993) a fim de que se filtrem as relações

proporcionadas pelas vivências, aproveitem-se afecções alegres e criem-se matrizes dotadas

de organicidade que possibilitem uma permeabilidade, um pulsar energético no qual se cria

um estado de presença por atos volitivos do corpo.

Artaud buscava um sistema de exemplos estruturais dentro de seu atletismo: “Quis dar

apenas alguns exemplos em torno de alguns princípios fecundos que constituem a matéria

deste texto técnico. Outros erigirão, se tiverem tempo, a completa anatomia do sistema.”

(ARTAUD, 1993, p.159). A completa anatomia de um sistema de um atletismo afetivo é

singular a cada ator, pela composição de afecções gerada por suas próprias matrizes, sua

singularidade do corpo-mente, e modos de se compor seu próprio treinamento psicofísico

enquanto ator-criador. Um espaço de treinamento, gerador de experiência que envolve um

tempo outro, tão difícil no contexto cotidiano atual de velocidade de informação e dissolução

de relações interpessoais, envolve também uma geração de uma consciência de outro eu, pelos

deslocamentos gerados que uma auto-exploração envolve. É reflexo também de uma solidão

do ator e do seu discurso enquanto criador e articulador de si mesmo, que reflete um contexto

econômico e de dificuldades que o fazer teatral envolve.

Um treinamento do ator sobre si mesmo, aliado a uma pesquisa auto-etnográfica exige

o redobramento de uma acuidade e autoexame. Na crise de representação numa pesquisa

autoetnográfica citada por Fortin (2009) em que o pesquisador é seu próprio objeto de

pesquisa, existe um desligamento ou descentramento de um eu a fim de se repensar uma

experiência atoral e de se articular um discurso enquanto pesquisador para um outro. “O

pesquisador que participa de um projeto de um artista, que observa durante um longo período

de tempo, que o escuta e o questiona, não produz uma descrição da realidade, mas

principalmente uma construção: a construção de seu reencontro com o projeto de criação”

(FORTIN, 2009, p. 82). Quando o pesquisador é o próprio artista, há uma construção dentro

da sua própria subjetividade, que envolve uma quebra de pré-conceitos, cuidados e

percepções que o próprio artista tem de si e em relação ao mundo, gerando um

descentramento. Um descentramento que não é constante, pois ou eu-pesquisador sempre

busca acessar o eu-ator a fim de que se resgate e se filtre materiais de pesquisa dentro desta

relação limítrofe de representações – um descentramento que envolve também uma série de

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36

reencontros dentro de si. É um descentramento que envolve também uma aproximação, é um

diálogo constante de subjetividades, e envolve um cuidado para que dentro destas conversas

haja uma seleção de materiais pertinentes a pesquisa.

A partir da prática num treinamento solo com os provocadores cênicos, registrava em

diários de bordo a experiência a fim de tentar estabelecer notas sobre o que foi testado e

recolher estímulos para que servissem como material criativo para o espetáculo. É fato que

uma prática de treinamento solo envolve uma série de obstáculos e dificuldades. Como já

comentado, uma pesquisa auto etnográfica envolve uma série de armadilhas como discursos

narcisistas e o desafio de um auto distanciamento da própria experiência criativa. Possibilita,

entretanto, um autoconhecimento maior de si e uma busca de crescimento enquanto artista-

pesquisador, uma vez que exige a dilatação das faculdades perceptivas enquanto material pela

evocação e pesquisador que se observa e elabora um discurso metafórico a partir de sua

própria criação.

Dentro da ideia de um descentramento e numa pesquisa de ator que realiza um

treinamento sobre si, o provocador cênico funcionou também como um suporte a uma

percepção de outro eu pela troca da experiência. Além de representar um fator de ruído,

flutuação e reorganização adicional do processo criativo em trânsito, o provocador

representou também um fator organizativo, na medida em que a troca de impressões sobre o

processo do dia com o provocador me possibilitava pontuações que muitas vezes envolvia

visões novas para mim referentes ao meu próprio fazer. Estas visões implicavam outros

caminhos em minha pesquisa auto etnográfica, haja vista a complexidade de se articular um

discurso de si. Foi uma ferramenta importante e enriquecedora.

Após isto, eram realizados diálogos com o provocador a fim de se trocar impressões a

partir da experiência do dia de treinamento. Ao mesmo tempo em que isto enriqueceu o

processo criativo, instaurou um território maior de tensão no laboratório pelo olhar de um

componente externo, que entrava no processo e o desestabilizava. E creio que é isto que o ator

deve buscar: territórios de risco que promovam desestabilizações, autocríticas, e modificações

de crenças, conceitos e da própria visão de si e de sua arte. Acredito que ser ator num

treinamento sobre si mesmo é antes de tudo buscar um território desconhecido e do acaso: se

abrir constantemente para um território novo e desconhecido e lidar com um vazio. Este vazio

existe e constantemente devem-se estabelecer estratégias e tentativas de preencher e

estabelecer diálogos entre este território de vazio e os estímulos que surgem em vivência.

Existia, além disso, outras espécies de zonas de tensões no trabalho do espetáculo

como um todo. Além de estar me auto pesquisando, eu era diretor do espetáculo e filtrava os

Page 38: LAPORTA, Marcos. O ator como treinador de si mesmo

37

estímulos dados com a Rachel pelos provocadores o que me fazia transitar constantemente

entre os papeis diretor-artista-pesquisador. Existia um território de tensão entre o fluxo afetivo

o qual deveria haver uma atenção nos laboratórios, em que havia a produção de estados em

fluxo com a conexão com o ambiente e os objetos externos (arquitetura da sala, material dos

provocadores e o próprio corpo do provocador, sons, entre outros), e também havia este

território de trânsito de funções que conduziu o processo do treinamento. Dentro disto o

provocador ajudou a inserir e também aliviar tensões, e a organizar um discurso teórico de si

mesmo e do meu processo como um todo dentro destes espaços de diálogo consigo.

Imagem 6 – Espetáculo Projeto Artaud – Fragmento VII – Para Acabar com o Julgamento de Deus.

Atores: Rachel Chula, Gabriela Medeiros, Aline Holz, Marcos Laporta e Joana Kretzer. Foto: Clara Meirelles.

Existe sempre um espaço entre, um território de fronteira dentro destes diálogos, assim

como em relação a um trabalho representativo em relação aos estados – não existe uma

construção fixa de uma personagem no sentido tradicional – a serviço de um conteúdo textual

e circunstâncias dadas de um texto - e sim mais uma construção voltada a vivência da cena e

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38

do acontecimento, na qual os estados, formado por afecções que na visão do espectador

compõem uma personagem, se multiplicam e modificam a medida em que ocorrem as

relações em cena. Existe sim um corpo construído de uma personagem, mas essa construção

passa por metamorfoses e desterritorializações na medida em que o espetáculo se desenrolava

e de acordo com os afetos gerados pelo acontecimento que afeta as matrizes criadas. A

composição de uma personagem dentro de um atletismo afetivo depende muito mais de uma

percepção do espectador do que uma construção propriamente dita do ator, e de como estas

relações afetam o espectador envolto num espaço ritual de comunhão gerador de presenças.

Dentro disto, desta relação de construção de um corpo a partir de relações, é

fundamental ter uma corporeidade saudável e preparada: um corpo consciente, disponível e

acordado para que fale energeticamente e responda aos objetos externos. Neste sentido a outra

parte do treinamento, com a minha colega Rachel Chula foi imprescindível a fim de que se

preparasse o corpo para estas relações. Os exercícios de dança, conjugados a composição de

partituras com vocalizações potencializaram as construções feitas no treinamento solo e

possibilitaram uma consciência e ampliação de uma acuidade para que os estados fossem

criados.

Assim, um atletismo afetivo, dentro de um processo de treinamento, é trabalhar com

relações, sejam elas criadas na mente ou pelo contato com um outro. É, através de um

trabalho elétrico e de um conatus – uma postura ética e também de afetar-se e ser afetado- seja

em relação a si mesmo ou em relação aos encontros, gerar energias e acordar potências, e

dentro disto buscar soluções cênicas a fim de que se modulem afetos e se amplie uma

densidade voltaica do ator, que busca acordar seus fluxos de vida.

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39

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Um Atletismo Afetivo reflete antes de tudo uma postura crítica e uma tentativa de um

procedimento atoral de Artaud frente aos mecanismos técnicos desenvolvidos na sua época

em relação ao próprio ator no cenário cultural francês e Europeu, marcado por abstrações e

convenções gésticas, ainda que não tenha havido uma prática de treinamento pelo próprio

Artaud e suas ideias ficassem a um nível de teoria em detrimento de uma prática. Além disto,

o Atletismo envolve uma possibilidade de solução do ator a pensar seus processos emocionais

e a busca do ator por uma corporificação da emoção através de um rigor e autodisciplina de si,

e assim adquirir uma agilidade emocional por um trabalho de manipulação de energias.

Num atletismo afetivo enquanto treinamento deve haver um rigor como o atleta, mas

pensado de outra forma, na qual se considera o rigor do atleta num aspecto artístico em

detrimento de um aspecto industrial, em que o ator desenvolve uma acuidade de ouvir-se e

uma memória muscular afetiva em diálogo pela manipulação voluntária da respiração como o

que Artaud (1993) denomina um movimento espasmódico para o interior levado até as

últimas consequências em rigor e busca de precisão.

O movimento respiratório é importante em Artaud e pode ser associado as qualidades

de afeto em Espinoza (2009) quanto a alegria e tristeza enquanto fator positivo e negativo de

ampliação e potências, assim como o princípio do Ying Yang, que envolvem duas formas de

relação, que associadas ao movimento muscular de relaxamento e contração representam

formas e nuances afetivas de se relacionar no mundo, manipulações corporais energéticas e

consequentemente de determinadas qualidades afetivas. Este movimento volta ao exterior

com a manifestação dos mecanismos da emoção induzida e do acesso do ator ao seu duplo ou

a um diálogo com a aspectos recolhidos e redimensionados da sua subjetividade.

Um treinamento do ator sobre si mesmo envolve antes de tudo um trabalho sobre si e

sobre a singularidade do ator e a sua poiesis ou o seu próprio fazer. A nível neurológico, é

uma forma de manipulação das relações corpo-mente ou o que Damásio (2009) chama de

manipulação de imagens mentais através de modificações no corpo, através de um processo

de manipulação neuromuscular consciente e a implicação de um trabalho elétrico de indução

afetiva, na medida em que se manipulam os processos da memória e da atenção afim de que

se aproveite este fluxo energético prolongado dentro de suas nuances e transições.

Num contexto de desestabilização do uno e indivisível e de uma dissolução de

vínculos e relações, um treinamento sobre si mesmo aliado a uma pesquisa auto etnográfica

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reflete um exercício de descentramento, na medida em que há um diálogo comigo mesmo que

envolve espaços de distanciamento e aproximação de um eu-pesquisador e um eu-artista

produtor de conteúdos energéticos afetivos ou matrizes. Uma atuação por estados psicofísicos,

usada aqui, significa entrar neste terreno de singularidade, visto que implica em

procedimentos particulares e únicos a cada ator, e uma matriz de estado criada por um ator

feita por outro provocará respostas diferenciadas. Cada corpo responderá de forma diferente a

cada matriz, pois envolve marcas intrínsecas geradas por diferentes experiências intensivas,

histórias, e relações produzidas. Não é buscar simplesmente pontos associados a emoções

como modelos, e sim buscar rigorosamente apoios para que através destes pontos possibilitem

ferramentas de contaminação e de produção de nuances afetivas através de relações de um

corpo no ambiente.

Aliada a noção de atletismo afetivo, um estado é uma forma de se pensar e buscar

caminhos ao problema afetivo do ator, que é pensado mais concretamente desde Stanislávski

(1997) e suas primeiras sistematizações quanto a um possível treinamento por

experimentações laboratoriais no Teatro de Moscou, desde o século XIX. Sejam estas em

relação à ideia de uma memória emotiva ou pelo posterior Método das Ações Físicas, em que

a construção de uma linha coerente de ação ativaria indiretamente um mundo interior do ator.

O mesmo problema da emoção é encontrado na neurociência, visto que existem diversas

visões que representam não-uniformidades quanto ao funcionamento das emoções no corpo.

A escolha da perspectiva neurológica da emoção damasiana serviu para pensarmos

como o ator pode desenvolver caminhos de enganar o cérebro e produzir emoções, visto que

segundo Damásio (2011) há estes caminhos em relação a uma emoção. Uma produção de um

estado envolve essa produção de emoções, sensações e sentimentos induzidos pela tentativa

consciente que o ator executa da manipulação dos mapas do corpo em conexão com o

cérebro. Seja em relação a neurociência, ou seja em relação a atuação, a emoção ou os afetos

se apoiam num território de metáfora, no qual Greiner (2005) postula que tenta se entender

nossa relação do corpo-mente-cérebro com o os objetos externos e o ambiente que nos

circunda, numa categorização pela série de vivências geradas por afecções ativas que foram

experimentadas ao longo do processo de treinamento.

Pensar um atletismo afetivo nesta minha experiência de treinamento significa além de

um autoexame ativo em diferentes níveis como já citado, pensar na ampliação das energias

potenciais do ator através de suas afecções enquanto causas adequadas – uma busca de um

fator positivo do conatus a um nível poético e assim uma produção de presença cênica através

de possíveis encontros no jogo, um estado superior ou o equivalente a um acesso a um sétimo

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estado, citado por Artaud, uma busca de uma potência conquistada ou de virtudes que o ator

deve ter. É uma busca ativa e incessante do ator na qual ele trabalha energeticamente com o

corpo na experiência afetiva em fluxo sobre si mesmo e contamina-se com o que o circunda,

acessando um terreno vazio e buscando afetar-se neste território de risco. Um treino atletismo

afetivo, dentro dessa produção de diferentes qualidades energéticas, é um não saber dentro de

um território dinâmico de relações, e se preparar para não saber e lidar com essa incerteza, ao

mesmo tempo em que se procura produzir um território de potência dentro desta contiguidade

entre o ser e o não ser, entre o que Artaud (1993) denomina o manifesto e o não manifesto ou

entre o território subjetivo do ator em conexão com a cena ou os ambientes externos. É uma

busca de experiências intensivas ou potencialidades virtuais na cena por um trabalho anterior

pré-expressivo, recriando fluxos de energia através das ferramentas do ator – as matrizes, que

afetam e são afetadas.

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42

REFERÊNCIAS

AMARAL, Sônia. Chi-Kun: A respiração taoísta – Exercícios para a mente e para o corpo. São Paulo: Summus Editora, 1984. ARANTES, Ulias Corrêa. Artaud – Teatro e Cultura. São Paulo: UNICAMP, 1988.

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APÊNDICE B – DIÁRIOS DE TREINAMENTO8

09/08 – Ensaio I

Provocadora Cênica: Gabriela Medeiros

Comecei aquecendo sozinho, trabalhando rolamentos, séries de abdominais e flexões.

Tenho necessidade de achar o meu centro e também de fortalecer a musculatura.

Experimentei o estado de choro,o qual sustentei pela manhã durante 60 minutos,

aproximadamente – de manhã eu foquei mais no mecanismo psicofísico do choro, um criar

uma narrativa para mim. Testei o mecanismo do choro em pé, contraindo os pés mãos e

diafragma, e sempre mantendo uma respiração com inspiração mais curta e expiração na qual

o ar é solto aos poucos, em doses pequenas. O apoio nos pés contraídos é importante e às

vezes é necessário curvar-se para manter o estado. Testei também correr com o mecanismo

afetivo de choro, porém o movimento rápido faz perder o estado – é necessário um

treinamento para que o estado com a corrida mantenha a sua organicidade. Surgiram pela

manhã grunhidos orgânicos com o choro e gritos sufocados. Entre as imagens mentais que

mais funcionaram e ajudaram a potencializar o estado foram o medo de água – imaginei uma

banheira na minha frente e que vinham me pegar a força para tomar banho.

À tarde, investi no choro mesclado a uma sensação de agonia, e surgiram outras

imagens, como a das cadeiras na sala – imaginei que numa das cadeiras estava sentado um

abusador e em várias outras cadeiras imaginei várias pessoas rindo e aquilo me causou medo.

Outro estímulo foi dado pela Gabriela. Encarei-a e sentei ao lado dela. Isto me fez ter a

imagem de que ela era alguém que me causava medo, como a imagem do abusador. Surgiram

outros estímulos interessantes, dados pela própria arquitetura do espaço, como a janela, em

que imaginei estar preso num quarto e querer sair, e a porta potencializou esta imagem. Outra

imagem/sensação surgida foi a de querer láudano e não ter, o que potencializou o estado de

agonia.

O estado de agonia surgiu em experimentações no ÁQIS, em que eu realizava um

procedimento de exaustão através de pulos e deixando a coluna cair ao chão. Logo depois,

8 Todos os diários de treinamento referem-se ao processo solo do semestre referente ao semestre 2013/2 que é o foco da presente pesquisa. Neste ano de 2014 continuo minha pesquisa com treinamento solo partindo do pressuposto do atletismo afetivo, só que não mais com provocadores cênicos e sim associando procedimentos de atuação por estados anímicos com o procedimento do alba emoting e rasaboxes, como continuação da pesquisa, na busca de uma poética pessoal de construção de mecanismos de atuação a partir do cruzamento de procedimentos técnicos.

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desenrolo a coluna rapidamente e sacudo rapidamente as pernas. Com a prática este

procedimento foi abreviado, e agora o estado é atingido apenas sacudindo a perna direita de

modo rápido. O estado também mudou um pouco com a prática laboratorial, de modo que a

ansiedade tem sido experienciada com uma mistura de angústia – o que origina a sensação de

agonia.

Comparando às imagens usadas durante o dia, usei mais imagens pessoais durante a

manhã – acontecimentos pessoais como perdas familiares e acontecimentos tristes, que

ajudavam a manter o estado com o procedimento físico, além de músicas, o que não surtiu

muito efeito. A tarde usei mais imagens fictícias, o que foi mais efetivo e potencializou mais

os estados e as sensações.

Momentos de suspensão da respiração ajudam a manter o estado, e também momentos

de imobilidade física com o olhar fixo num ponto, o que ajuda também na concentração.

Um fato curioso foi que durante a tarde surgiram também microtensões que se

espalhavam pelo corpo todo, que afetavam o estado mais grunhidos e gritos sem som – a

agonia estava mais presente. A respiração também ficou mais sutil e isto potencializou o

estado. O maxilar contraído com as mãos também ajudam a manter o estado. Em geral,

consegui sustentar o choro com suas flutuações por volta de umas duas horas.

Fisicamente, apesar de ter apoios, é preciso envolver todo o corpo, mesmo que de

maneira sutil – o apoio alternativo nas costelas também ajudou bastante.

Testei o estado em diferentes posições corporais.Outra coisa que testei foi o estado de

choro com as mãos cruzadas para trás e presas, o que deu muito certo. Testei também fazer o

estado sentado no chão:dá certo, porém o estado perde potência, porque há uma tendência

natural ao corpo relaxar. Experimentarei posteriormente fazer o estado deitado e também

burcar um choro mais livre do desespero/agonia e mais próximo de uma perda/luto, através de

outros estímulos imagético-mentais.

Uma ação externa também ajuda a potencializar a sensação, como interagir com um

objeto ou passar a mão na cabeça, que me produziu gritos. Investirei mais em ações com

componentes externos. Vou testar também deixar a respiração mais sutil.

Ensaiar pela manhã exige um aquecimento maior e mais puxado, para um melhor

rendimento e um acordar efetivo do corpo. Saindo do ensaio, senti peso nos olhos, uma leve

ardência e um cansaço geral no corpo, possivelmente provocado pelo esforço.

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15/08 – Ensaio II

Provocadora Cênica: Thaina Gasparotto

Pela manhã, ensaiei sozinho na sala do PPGT. Tentei retomar o estado de choro e a

princípio foi difícil, não sei exatamente por que, talvez a concentração. Busquei um choro

mais melancólico através de imagens mentais que se somaram aos estímulos físicos. Usei

imagens diferentes, como de despedida de alguém, que foi o que mais funcionou, e também

usei fala – “não me deixe”. Ajuda também a alcançar o estado imaginar vetores, como por

exemplo um vetor que parte da respiração pelo abdômen e sai pela boca. Testei concentrar a

tensão corporal em locais diferentes, como nos antebraços.

A mudança de espaço influenciou bastante no trabalho. Havia quatro mesas juntas

com várias cadeiras no meio do espaço, e mantive o espaço desta forma. Tentei usar a

arquitetura do espaço ao meu favor, e explorei ações, como por exemplo passar por baixo da

mesa, o que me suscitou uma imagem de que eu estava num túnel escuro cheio de ratos,

fugindo de enfermeiros.

A temperatura corporal também influencia no estado – estava mais frio que no último

ensaio e isto foi prejudicial de alguma forma – era preciso aquecer várias vezes para estimular

o corpo. Foi difícil manter o estado desta vez. O aquecimento não foi o mesmo da semana

passada e isto interferiu no trabalho.

Quando eu uso muitas referências pessoais, tento me manter presente com estímulos

corporais que modifiquem o corpo, seja posições não usuais ou contrações que me tragam

para o aqui-e-agora.

À tarde eu estava com a provocadora cênica Thaina, e eu não fiz exatamente o estado

de choro, porém os estímulos externos dados por ela fizeram surgir bastantes sensações

diferentes. Ela começou a dar estímulos com fala, como dar ordens, e isto me causou uma

sensação de opressão e desconforto. Um dos comandos foi em relação ao colchão que havia

na sala – pensar no que fazer com ele, mas não fazer o que eu queria. Ela disse pra eu correr

ao redor da mesa e parar só quando eu tivesse realmente pronto pra fazer o que eu queria com

o colchão. Eu fui correndo ao redor da mesa e esbarrando nas cadeiras que estavam no espaço

– tentei experimentar qual era a sensação, mas não me surgiu nenhuma imagem nem estímulo

físico.

Num segundo momento, deitei no colchão e esta ação me suscitou uma imagem

mental de que eu estava deitando numa cama com pregos e isto me causava desconforto –

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surgiram grunhidos e falas murmuradas. Tentei levantar do colchão com esta sensação,

associando às imagens contrações na coluna e passei por baixo da mesa. A Thaina subiu por

cima da mesa e começou a bater em cima dela e isto me deu uma sensação de medo, ao ponto

de eu encolher todo o corpo e soltar gritos. Andando pela sala, o desconforto continuou e eu

associei com a respiração e contrações na coluna, o que reforçou a sensação.

Um dos momentos interessantes foi o que eu escrevi na lousa que havia na sala e tentei

apagar o que eu havia escrito e não consegui, pois o apagador estava com defeito. A Thaina

começou a me provocar e somado a isto eu tentei apagar e aquilo me produziu a sensação de

raiva, com a contração do maxilar, e eu insisti na ação até o extremo, o que me levou a jogar o

apagador longe.

Houve um outro momento também da porta, em que eu abria e não conseguia sair, em

tentativas sucessivas, o que me produziu um choro com a sensação de impotência. As ações

com objetos e componentes do espaço ajudaram a acessar sensações e explorarei mais isto

efetivamente nos próximos encontros.

22/08 – Ensaio III

Provocadora Cênica: Fernanda Neves

Pela manhã, com a Diretora de Ator Rachel Chula, fizemos um trabalho com release e

respiração, desmembramento e consciência das partes corporais.

Depois, experimentei um pouco criar ações a partir de sensações. Deitei no chão e me

surgiu a imagem de que a sala toda estava pegando fogo e minha cabeça estava colada no

chão – junto a isto falei um texto improvisado e também utilizei um apoio pélvico, algo novo

pra mim, o que ajudou a controlar a sensação. Com estes mecanismos surgiram algumas

partituras improvisadas.

À tarde, havia a presença da provocadora. Experimentei o estado de choro com as

imagens de despedida de alguém, as cadeiras sugerindo várias pessoas rindo e isto me

provocou uma fala “Vocês não entendem”. Testei outros apoios como o abdômen inflado,

porém o que mais funcionou foi o diafragma e intercostais com a respiração mais sutil pela

boca e micromovimentos no queixo. Mais uma vez, a arquitetura do espaço suscitou imagens,

como a janela e a porta.

Refiz a partitura criada pela manhã, em que eu deitava numa fileira de três cadeiras e

caía no chão e a Fernanda me provocou oralmente, dizendo pra eu cair novamente. Isto me

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fez repetir a partitura incessantemente. Num outro momento, ela usou um cachecol e me

enforcou, o que resultou numa tensão no pescoço – testei andar no espaço com esta tensão e

sem o cachecol, o que foi potente. Depois, a Fernanda me abraçou e quando soltei tive a

imagem de que jogaram água em mim e aquilo me causou repugnância – associei isto a

tensões no abdômen e no antebraço. Repeti o procedimento físico e logo a sensação veio.

É necessário combinar com o provocador cênico até qual limite eu posso ir com ele –

o limite de um risco ou agressão física, pois hoje teve momentos que tive vontade de agredir a

provocadora e fiquei receoso. É necessário ir mais aos extremos das sensações, e transpor

meus limites pessoais e pudores.

30/08 – Ensaio IV

Provocadora Cênica: Tatiani Borga

Pela manhã, com a Rachel, fizemos um ensaio mais curto e retomamos questões do

último ensaio referentes a release, consciência corporal e engajamento da voz no movimento.

À tarde, inicialmente comecei a trabalhar sozinho. Estar sozinho exige mais disciplina

de si – é preciso ignorar o vazio da sala e prosseguir com o trabalho – É necessário eu me

condicionar a isto, embora a presença dos provocadores cênicos tenha sido muito eficaz. Farei

mais ensaios sozinho. Sozinho, eu não fiz somente estados, mas usei os estados para compor

uma partitura física, que envolveu torções e trabalho em relação ao chão – retomei algumas

coisas que havia criado anteriormente e fixei mais, a partir dos estímulos dados pela Rachel

pela manhã. Conjuguei a voz junto a partitura, o que foi bastante efetivo. O treinamento com a

dança está sendo muito bom no sentido da ampliação sensório-perceptiva do corpo e do

movimento e controle do mesmo.

Testei fazer o estado de choro deitado e mantê-lo. Imediatamente a imagem da cama

com pregos apareceu. Percebi que deitado, é difícil manter o estado depois de um tempo pois

há uma tendência do corpo a relaxar, a abandonar o corpo no chão. Microtensões no corpo

ajudaram a manter o estado e a deixar o corpo presente. Também usei apoios que foram

explorados anteriormente, como o apoio costodiafragmático alternado com o apoio abdominal

inflado. A respiração que tem sido mais efetiva a potencializar o estado de choro é uma

respiração mais controlada e sutil, soltando aos poucos.

A Tatiani veio no final do ensaio. Com ela, comecei repetindo algumas coisas que eu

já tinha feito anteriormente. Surgiram ações, como o uso do quadro que havia na sala – eu

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caminhar com o quadro e ser arrastado com ele, uma partitura com as cadeiras, em que eu

passo por baixo das cadeiras e isto me ativou a imagem dos ratos. Fazendo a partitura, usei a

respiração, o que ajudou a ativar a sensação de medo e de fuga, e acabei jogando todas as

cadeiras longe. Houve um momento também em que a Tati me jogou na parede e eu testei

voltar na mesma direção em que fui empurrado com um contra-impulso e qualidade de

movimento. Não surgiu nada efetivamente novo no plano de sensações, o que acabou

sendoexplorado foi a composição de ações, que reativaram algumas sensações.

O que eu testei em relação ao provocador cênico desta vez foi colocar uma máscara

cirúrgica na Tatiani, o que segundo ela a colocou em um outro lugar como provocadora.

Todos os provocadores tem usado muito estímulos provocativos vocais, como gritos e

violência – existe até então um padrão de ações frequentes – empurrar, ordenar, bater –

embora cada um tenha trazido coisas diferentes. Os próximos provocadores se manterão com

a máscara cirúrgica e haverá uma nova regra: não poderão falar.

Ensaio V – 06/09 Provocadora Cênica: Hanna Feltrin

Pela manhã com a Rachel, a partir do trabalho de release, conjugação da voz no

movimento e organização do corpo, testamos compor algumas partituras, como

deslocamentos no espaço e som, em que eu deveria fazer um vocalize, num mesmo tom,

mantendo um deslocamento com os joelhos bem levantados. Além disto, trouxe um primeiro

esboço de textos e testamos um trabalho de composição de partituras a partir de palavras

selecionadas deste texto: SUPLICO – CULPADO – PERDOA. Além disto, trouxe um texto,

referente a Heliogábalo, e o texto me trouxe uma partitura animalesca, em que eu me

deslocava de cócoras e com movimentos amplos na coluna.

À tarde, com a presença da Hanna, mostrei o que eu já havia criado para ela até então.

Ela ressaltou a qualidade dos movimentos e o trabalho com a coluna, porém disse que os

movimentos devem ser mais explorados e conjugados com a voz, o que ela considera potente.

Depois disto, ela atuou como provocadora cênica. Dei uma máscara cirúrgica a ela e

ela colocou, e disse que ela não poderia falar. O diferencial foi que ela trouxe alguns objetos,

como apito, linha, confete e espanador. Algumas intervenções que ela fez suscitaram

diferentes sensações, como quando ela me abraçou, e retomei a sensação num ensaio com a

Fernanda, associada a imagem de que haviam jogado água em mim e que eu não gostava.

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Houve um momento em que ela me amarrou com a linha que ela trouxe e eu deitei, o

que prontamente ativou a sensação de estar numa cama de pregos, e produzi uma partitura, em

que a posição corporal modificou a voz, com um texto improvisado – “Não estou louco, Dr.

Tolouse!”, o que foi interessante. Houve uma hora que deitado, fazendo a partitura, a Hanna

se aproximou e ficou ajoelhada em frente a minha cabeça, e isto aprofundou minha sensação

de agonia. Quis abraça-la e não queria soltá-la. Ela tentava se esquivar e não conseguia.

A intervenção da Hanna com oespanador me suscitou a imagem de um sapato – o

sapato o qual Artaud morreu agarrado em Ivry, em 1948. Agarrei o sapato e não queria mais

soltá-lo, e encolhi o corpo todo no chão. Durante esta ação, o abdômen estava o tempo todo

contraído, juntamente com o pescoço.

Para o próximo encontro, vou explorar as sensações mais internamente. As ações

reativaram sensações – isto me lembra muito o Método das Ações Físicas do Stanislávski. A

própria ação externa pode gerar uma matriz de estado, que pode ser explorada e fixada com

uma imagem mental conjugada a algum mecanismo físico.

Outra coisa que eu vou fazer é utilizar mais de um provocador cênico num ensaio,

além de convidar um provocador cênico do sexo masculino, o que ainda não ocorreu.

Ensaio VI – 13/09

Provocadora Cênica: Aline Holz

Comecei alongando e aquecendo com uma corrida ao redor do CEART, o que foi

bom, pois ensaiar de manhã para mim demanda um aquecimento mais pesado. Depois,

mostrei a Aline as composições que havia surgido até então. Percebi que ao mostrar, fico

ansioso, o que dificulta eu atingir determinadas sensações. É preciso um tempo maior de

concentração para mostrar ao outro o que eu fiz, talvez seja prejudicial ao treinamento.

Semana que vem não terei um tempo de mostrar e o provocador cênico atuará ativamente

desde o começo do ensaio.

Após ver o que eu fiz, a Aline perguntou se eu estava já num personagem desde a

corrida, a qual ela havia acompanhado, pois eu não olhava diretamente para ela ao falar, pois

após mostrar tudo o que eu já havia iniciado para ela, num momento de conversa posterior, eu

a olhava fixamente. É preciso que eu regule e controle a minha timidez, para que ela não me

prejudique nos momentos de treino, principalmente se eu não tenho uma amizade mais íntimo

com o provocador cênico em questão – no caso com a Aline aconteceu um pouco isto.

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Quando ela entrou como provocadora, ela ia vestir uma roupa que ela mesma trouxe,

porém acabou não vestindo. Ela se colocou na minha frente, ativou em mim uma sensação de

vazio. Tentei esvaziar os pensamentos e abandonei o corpo todo no chão. A imagem mental

que foi ativada era a de que eu estava numa sala completamente branca. Junto a isto surgiu

uma respiração presa e demorada a ser retomada. Relaxei meu corpo ainda mais, e isto só

reforçou a sensação de um não sentir. Caí ao chão e a Aline me segurou, e começou a me

beijar e isto só reforçou a sensação ainda mais. Ela tirou a minha camiseta e repetiu a ação de

me beijar. Foi aí que ela colocou a minha camiseta.

Houve um momento em que eu montei nas costas dela e isto atingiu um estado antigo

meu de constrangimento, com contrações pélvicas, respiração interrompida em dois tempos

pela boca e movimentos dos dedos das mãos. Experimentei fazer uma partitura que eu tinha

explorado já nos encontros anteriores, a do Heliogábalo com essa sensação. Nesta partitura,

me desloco de cócoras pelo espaço, com as mãos nos quadris, o que lembra algo como se

fosse uma galinha, algo meio animalesco. Meu corpo foi relaxando e isto produziu um outro

estado, meio chapado, que também eu já tinha, que gera uma voz aguda e ativa intensamente

o riso.Continuei falando o texto com esta sensação, que se mesclou com outras falas que

surgiram no momento, como Eu sou uma ave! – e aí a Aline foi até o espelho da sala e

escreveu esta frase com batom. Parei de fazer a partitura e abandonei o corpo no chão, e esta

sensação manteve-se.

Depois disto, a Aline se sentou em frente ao espelho da Dança 2 e ficou parada.

Levantei ela e ela me pegou pelos braços, me forçando a fazer matrizes de movimento com os

braços abertos como se fosse um voo de uma ave. Associei este movimento com uma

respiração que se soltava em 2 tempos e isto ativou uma imagem mental de que eu estava num

grande campo ensolarado e que eu ia voar e aquilo era maravilhoso. Comecei a correr pela

sala e a Aline me pegou pelas costas e me empurrou, e isto me deu um impulso de produzir

pulos com o apoio nas costas dela. Ela começou a correr pela sala e eu comecei a retomar

partituras que eu já havia feito e criado antes com este impulso, testando como esta sensação

poderia modificar estas partituras já criadas.

No final do ensaio, deitei novamente no chão. A Aline deitou em cima de mim e

permaneceu deitada por um tempo. Aquilo me produziu uma imagem de uma mãe e ativou

meu estado já experienciado de choro. Surgiram várias imagens de uma mãe se despedindo e

eu implorando para que ela não me deixasse. A sensação era intensa.

Após este dia vi que algumas sensações levam a um transe intenso, realmente

imersivo, e é preciso ter um controle para que este transe não me comande, pois pode anular a

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presença na cena. O próprio Artaud (1993) fala a respeito do transe em O teatro e seu duplo e

diz que ele deve existir, porém deve ser um transe controlado e que não se apodera do ator.

É preciso também aquecer o corpo-mente para que um treinamento pautado em

sensações possa ser mais efetivo – é necessário o vazio também num treinamento, para haja

uma real contaminação pela experiência e para que esta experiência aconteça e transpasse o

ator. Isto não ocorre sem um labor, sem uma real entrega do ator e também do provocador

cênico, que entra na criação e produz material que gera uma contaminação.

À tarde, com a Rachel, prosseguimos com o alongamento, associado a aquecimentos

vocais e trabalho com release e consciência corporal, além do aprimoramento de partituras.

Exploramos também deslocamentos de espaço com vocalizes, criação de partituras com

explorações de vogais e repassamos a partitura inicial de Heliogábalo, aprimorando as

partituras criadas e explorando o texto dito com variações vocais.

Ensaio VII e VIII – 18/09 e 27/09

Não houve ensaios individuais nestas semanas, entretanto pode-se citar algumas

práticas feitas com a Diretora de Ator Rachel Chula, que possui uma pesquisa afim a esta

embora envolva outros aspectos do processo de treinamento para o espetáculo. Desde os

ensaios anteriores vem-se criando uma rotina de alongamentos e exercícios corpóreo vocais

que tem ajudado tanto na produção de estados/sensações quanto na criação de cenas e

partituras, tais como:

- massagem geral no corpo: eliminação de tensões, com as pernas cruzadas, leve tensão na

lombar e ombros relaxados; ao mesmo tempo, varrer a boca com a língua, com movimentos

circulares nos dentes, e movimentos com língua no palato duro.

- sentar em borboleta no chão: trabalho com respiração com apoio (tss) e movimentos da

cabeça para direita, esquerda, nas diagonais, laterais, trás e frente; giro parcial da cabeça

horário e anti horário, com emissão vocal vibrando (tss), seguido de um giro completo. Giro

com ombros conjugado com emissão vocal glissada quatro vezes, no sentido horário, anti-

horário, ombros separados e juntos. No final dos giros, acentuar a emissão vocal de vibração

com o apoio costo-diafragmático.

- alongamento das pernas: Inicialmente na posição em borboleta, puxar uma das pernas, sendo

que a outra fica imóvel na altura pélvica – descer coluna inspirando e expirando; importante

deixar o abdômen disponível, bem como uma leve tensão na lombar. Não curvar a coluna.

Após o alongamento de ambas as pernas compensar deixando a coluna cair na posição de

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borboleta, procurando não levar os ombros e relaxar a coluna, com uma respiração de

frequência suave. Com as pernas recolhidas, levantar uma das pernas e soltar em vibração

(trr), agudizando conforme a perna estiver mais para cia e voltar descendo a tonalidade vocal.

Fazer o mesmo com a outra perna. Alongamento de pernas lateral, com abertura do peito –

não deixar cair pés para o lado e tentar encostar o cotovelo no joelho.

- sequência de release: dissociação dos membros dos braços: dedos, tarso, meta-tarso, pulso,

ante-braço, cotovelos – movimento fluido não conduzido, dedos disponíveis, braços e mãos

opostos não se encontram, buscar fluidez no movimento – inclusão de giro com volta pelo

movimento conduzido da perna; release somente pernas; envolvimento de pernas e braços,

com rolamento e movimento de volta pela perna – na volta os pés devem estar bem apoiados

bem como o abdômen contraído. As sequências foram feitas associadas a emissões vocais em

vibração, (trr e tss), variando tonalidades aguda e grave - glissando, fry e exploração de

vogais.

- exploração de deslocamentos pelo espaço com vocalizes: deslocamento diagonal, com o

abdômen encaixado e joelhos flexionados em direção ascendente e descendente;

deslocamento lateral com pés em meia ponta, junto com vocalizes explorando a vogal A.

- Vocalizes: Exploração das vogais A-E-É-I-Ó-Ô-U. Exploração do signo vocal, de

entonações, ruídos, diferentes projeções, volumes e timbres; composição de movimentos com

cada vogal; junção dos movimentos criados falando todas as vogais ao mesmo tempo; através

da emissão com o apoio intercostal.

Os alongamentos e exercícios servem também como material para criação de

partituras para as cenas, como partituras feitas com acessórios e objetos cênicos.

Ensaio IX – 04/10

Provocador Cênico: Andrés Tissier

Comecei fazendo a cena de Heliogábalo, e o Andrés tentou interferir na cena com

estímulos físicos, como eu subindo nas costas dele. Estes estímulos físicos me deram a ideia

de trabalhar com desequilíbrio em torno dos movimentos, como o uso de pernas-de-pau, algo

que causasse uma desestabilização que fosse investigada e controlável, como um estímulo a

mais para a cena.

Tentei repassar a cena, e ele me pediu para respirar em 8 tempos e soltar – sentir que a

respiração está indo para o corpo todo – da cabeça ao dedo do pé; imaginar que o corpo todo

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está leve. Quando eu conseguisse ter a imagem de que o ar fosse e voltasse na sala, eu refaria

a cena. Em relação ao procedimento com estados, o Andrés me sugeriu que eu quando fizesse

o procedimento imaginasse que realmente o estado impregnasse no corpo todo, como uma

forma de atingir as sensações mais rapidamente. Foi uma boa dica, que tentarei incorporar

para os próximos ensaios, pois na primeira cena, por exemplo, a de Heliogábalo, tenho muitas

mudanças de estado. Me alonguei novamente antes de refazer a cena, prestando mais atenção

na respiração. Devo tomar cuidado com a projeção vocal nesta cena, principalmente nos

momentos em que a emissão vocal é realizada curvada, pois ocorre uma diminuição de

volume consequente da posição corporal. Trabalharei posteriormente a fim de que a

ressonância correta possibilite uma melhor projeção.

Tentei criar uma nova cena com o auxílio de um provocador cênico, o que não havia

feito antes. Passei o texto do fragmento IV – Cartas-denúncia aos manicômios. Fizemos o

seguinte: o Andrés falava o texto comigo em ritmos diferentes, e quando eu não soubesse o

texto eu faria uma partitura aleatória, em vez de tentar lembra-lo. Outro recurso usado foi usar

o mecanismo respiratório como um artifício de tensão dramática no texto. Surgiram algumas

partituras que foram incorporadas na cena. Em alguns momentos, a partitura acabou

funcionando como o próprio texto escrito e algumas partes do texto acabaram sendo

suprimidas, pois o próprio corpo já falava o que estava no papel. Nos próximos ensaios,

buscarei dissociar as partes do corpo nos movimentos criados, para que os movimentos nas

partituras sejam mais fluidos e conscientes e também para que surjam movimentos novos

dentro do que já foi criado.

Ensaio X – 11/10

Provocadora cênica: Thaís Putti

A Putti começou pedindo para que eu fechasse os olhos e deitasse. Ela colocou

algumas pedras em alguns pontos do meu corpo, que me provocaram um relaxamento

corporal maior. Fiquei um tempo assim, sentindo o peso das pedras no meu corpo contraposto

ao peso do corpo no chão, respirando suavemente.

Aos poucos, fui levantando e fizemos um jogo. Ela espalhou várias pedras no chão.

Duas pedras teriam que sempre ficar na minha mão. Ela então tentou tirar as pedras de mim e

eu tentei de todas as formas impedi-la. Fizemos com isto jogos corporais e de deslocamento

no espaço. Após isto, agora 4 pedras deveriam ficar nas minhas mãos. Mantivemos o jogo e

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surgiram mais possibilidades de contato corporal, deslocamento e também possibilidades de

trabalho com desequilíbrio. Testamos eu me deslocar mantendo 4 pedras nas costas. Tentei

me deslocar de cócoras, tentando equilibrar as pedras. As pedras foram tiradas e testei

caminhar com essa alteração corporal provocada pelas pedras.

Carregar as pedras me provocou um deslocamento dos ombros, e isto me produziu

uma sensação de que o meu corpo era aberto e esticado, juntamente com uma respiração

suspensa em tempos com intervalos de respiração intensa e rápida. Refiz o procedimento e

novamente a sensação veio com intensidade. Testei passar um fragmento do texto com a

sensação, e criar algo com as pedras.

Repassei algumas cenas para a Putti observar e dar seu feedback, tais como: Cartas-

denúncia aos manicômios, Acabar com as obras primas e Heliogábalo. Ela sugeriu que na

cena Cartas-denúncia aos manicômios eu usasse um paletó apertado, que me provocaria uma

sensação de fardo e angústia similar a da cena de Heliogábalo, na qual eu usarei uma

armadura de arame e fios como algo que denota este fardo e angústia de não querer ser

imperador, de carregar algo indesejável.

Ensaio XI – 18/10

Provocador cênico: Gabriel Velasquez

Inicialmente fiz meu aquecimento e alongamento pessoais e pedi que o Gabriel me

sugerisse uma parte do corpo, um ritmo respiratório e uma imagem mental. Ele sugeriu: bacia,

ritmo lento e hospital, respectivamente. A imagem sugerida me fez ter uma imagem de que

estava num corredor de um hospital e várias pessoas vinham me pegar e eu provocava elas. A

tentativa de contração da bacia potencializou a sensação. Após isto, o ensaio foi interrompido

com a chegada do Lau Santos, e então tivemos uma conversa sobre o trabalho e o que eu tinha

feito até então. Ele ressaltou alguns pontos sobre Artaud como a Peste, a loucura, religião, a

simbologia do peiote, o ritual e as influencias que Artaud exerceu sobre Sarah Kane e outros

autores e artistas. Ainda que o processo laboratorial com o provocador cênico tivesse sido

interrompido, as pontuações teóricas do Lau foram interessantíssimas para pensar a

dramaturgia cênica do espetáculo posteriormente, como uma possível colagem de textos

artaudianos com de outros autores e o acréscimo de outros elementos citados por ele na

dramaturgia do espetáculo.

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Ensaio XII- 25/10

Provocadora Cênica: Marina Soares

Iniciei o processo pedindo a Marina - como no ensaio passado com o Gabriel - que ela

me sugerisse: um músculo do corpo, uma imagem mental e um ritmo respiratório. Ela

sugeriu: braços, mãe chorando a perda do filho e ritmo lento, respectivamente. Os

procedimentos resultaram numa outra imagem mental, de que uma enfermeira vinha me dar

uma injeção nua e aquilo me provocou uma sensação de êxtase. Explorei a sensação em pá,

parado, me deslocando num ritmo médio, sentado no chão e deitado. A sensação era intensa.

Depois, a Marina interferiu mais ativamente, com uma ação de me abraçar.

Imediatamente com o abraço dela relaxei o corpo e ativou um outro estado já criado, o estado

de “vazio”. Ela continuou a tentar um contato físico comigo de várias formas, me abraçando e

buscando um choro. Deitei e fiquei olhando para ela. Ela se afastou de mim e retornou até

mim chorando, e o meu corpo no chão relaxado ativou um riso, meio “chapado” e muito

agudo. Isto alterou a voz que permaneceu muito aguda. O estado se manteve com intensidade

até o final das experimentações. Após isto, mostrei as cenas que já estavam criadas para ela:

Heliogábalo, Cartas-denúncia aos manicômios e a cena final – Para acabar com o julgamento

de Deus (sem as enfermeiras). Ela disse para cuidar com a questão da voz, principalmente a

articulação, e mais ainda quando havia um registo de voz agudo e em palavras complicadas

como Heliogábalo.

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APÊNDICE C – FICHA TÉCNICA DO ESPETÁCULO PROJETO ARTAUD

Direção Geral/de Ator: Marcos Laporta e Maria Rachel de Souza Chula

Direção de Arte: Leandro Lunelli e Chaianny Gracietti

Direção Musical: Paulo Rodriguez

Criação/Operação de Luz: Mário César

Contra-Regragem: Andrés Tissier e Gabriel Velasquez

Produção: Marcos Laporta

Assistente de Produção: Gabriela Medeiros

Elenco: Marcos Laporta, Rachel Chula, Joana Kretzer, Gabriela Medeiros e Aline Holz.

Design: Joana Kretzer

Fotografia: Nina Medeiros e Clara Meirelles

Audiovisual: Clara Meirelles

Página do Espetáculo: http://www.facebook.com/projetoartaud