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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES LAGOA HENRIQUES O COLECCIONADOR E A CASA-MUSEU Bruno Araújo-Gomes Mestrado em Museologia e Museografia 2012

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS-ARTES

LAGOA HENRIQUES

O COLECCIONADOR E A CASA-MUSEU

Bruno Araújo-Gomes

Mestrado em Museologia e Museografia

2012

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS-ARTES

LAGOA HENRIQUES

O COLECCIONADOR E A CASA-MUSEU

Bruno Araújo-Gomes

Mestrado em Museologia e Museografia

Dissertação orientada pela Professora Doutora Margarida Calado

2012

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À memória do meu amigo “Rato” (Alfredo Ferreira – 26/12/1974 – 30/04/2011)

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1 Mestre Lagoa Henriques por tudo e por nada! Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 5ª Entrevista - 12/01/2005, p.227. Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 7ª Entrevista - 26/04/2005, p.251. Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 7ª Entrevista - 26/04/2005, p.253. http://expresso.sapo.pt/lagoa=f499663

Sofre-se muito… Mas também se curte!

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Índice

Resumo 5

Abstract 6

Agradecimentos 7

Introdução 8

Metodologia 14

1ª Parte – Lagoa Henriques 15

Breves apontamentos para a História de Mestre Lagoa Henriques 16

1. Aprender a conhecer. 16

2. Um futuro advogado? 18

3. A descoberta de Agostinho da Silva: um escultor! 22

4. O atribulado concurso às Belas Artes. 24

5. O primeiro ano de Lisboa. 27

6. A doença e o Porto. 28

7. O Instituto de Alta Cultura reconhece qualidades. 30

8. O bolseiro jornalista. 32

9. O Escultor professor ou o Professor escultor? 33

10. O inconformismo: do ensino ao Ensino. 36

11. Antes das Chamas e Depois das Chamas. 40

12. Ver com olhos de ver! Uma viagem ao mundo da televisão. 43

13. O regresso à verdadeira paixão: o Professor Escultor hoje e sempre. 45

14. O Circulo Inadiável 47

2ª Parte – O Coleccionador 49

1. Antes do Museu a colecção: coleccionar ou acumular? Conceitos. 50

2. O coleccionismo de Mestre Lagoa Henriques: uma perspectiva única. 55

2.1. A raiz metafísica do coleccionador. Os deslumbramentos

coleccionistas do Mestre.

55

2.2. O coleccionismo como pilar teórico da museologia. 61

3. Da Colecção ao Museu - Apontamentos sobre a história da Museologia. 63

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3.1. Do museion ao Renascimento 63

3.2. Dos Gabinetes de Curiosidades ao actual museu 66

3.3.Colecções e Museus em Portugal. 72

4. Proposta de sistematização das colecções Lagoa Henriques. 78

5. O inventário. A ficha. O modelo e a sua criação. 81

5.1. A ficha de inventário. 82

5.2. Exemplo de ficha de inventário preenchida. 84

3ª Parte – A Casa-Museu 86

1. CASAS–MUSEU: Uma razão de ser 87

1.1. A memória 87

1.2. Conceitos e antagonismos 89

1.2.1. Casa 89

1.2.2. Museu 90

1.2.3. Casa-Museu 91

1.3. As colecções nas Casas-Museu 92

1.4. Classificações 94

1.5. Casas-Museu em Portugal 99

2. PROPOSTA PARA UMA CASA-MUSEU LAGOA HENRIQUES 103

2.1. Porquê? Motivos para uma exposição 103

2.2. Como? A organização de um espaço 105

2.2.1. Discurso Expositivo 105

2.2.1.1. Salas - As Colecções 105

2.2.1.2. Áreas de utilização pessoal 106

2.2.1.3. Zonas de lazer 107

2.2.1.4. Oficina/Ateliê 108

2.2.2. Design e comunicação 108

2.2.3.Iluminação 109

2.2.4. Som 110

2.3. Estrutura Funcional 110

2.3.1. Serviço Educativo 110

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2.3.2. Serviço Expositivo 111

2.3.3. Serviço de Comunicação e Marketing 111

2.3.4. Serviços Técnicos 112

2.3.5. Serviços Administrativos 112

2.3.6. Tutela e Organigrama 113

2.4 Informações Gerais 114

3. Conclusão 115

4. Bibliografia 118

5. Webgrafia 124

Anexos 128

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Resumo

O presente trabalho corresponde ao culminar de um ciclo. Um ciclo que teve início

nas aulas de Comunicação Visual, que prosseguiu para muitas horas de

investigação, partilha e ideias, e que termina agora.

Mestre Lagoa Henriques é contado, em tom de romance, na primeira parte desta

dissertação como forma de ilustrar o deslumbramento de uma vida: da infância até

sempre, de aluno a professor, de aprendiz a mestre, tendo por base entrevistas

presenciais e consultas bibliográficas.

Na segunda parte, esta vida é projectada para uma fundamentação teórica sobre o

coleccionismo, relatando a evolução deste conceito na história da museologia e na

própria história de Mestre Lagoa Henriques. As suas colecções são organizadas e

estratificadas, sendo proposto uma ficha específica de inventário.

Na terceira e última parte, esta vida de coleccionador é valorizada sob a forma de

um projecto para uma Casa-Museu Lagoa Henriques, não deixando de a enquadrar

na teoria geral desta tipologia de unidades museológicas. Factores reais e

imaginados são misturados num epítome académico.

O impulso final, comum a todas as partes, é o da homenagem que se pensa ser

justa e devida a um Homem, a um Artista, a um Professor, a um Museólogo, a um

Coleccionador. E porque cada vida merece ser celebrada, a vida deste Homem

acrescenta mais-valia artística a quem o conheceu. Ele celebrou a dádiva da

existência de forma única e ao mesmo tempo universal.

PALAVRAS-CHAVE:

Lagoa Henriques – Colecção – Casa-Museu – Belas Artes - Exposição

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Abstract

This work is the high point of a cycle. It was a cycle that began in visual

communication classes and went on to include many hours of research, sharing and

ideas. It ends here.

The first part of this dissertation tells the story of Lagoa Henriques almost in novel

form, as a way of illustrating the fascination of a life: from childhood to ever after,

from student to teacher and from apprentice to master. It is based on personal

interviews and bibliographical research.

The second part projects this life onto the theoretical substantiation of collecting and

recounts the development of this concept in the history of museology and in the story

of Lagoa Henriques himself. It organises and stratifies the collections and compiles

an inventory.

In the third, and last, part, the high point of this collector's life is honoured in the form

of a plan for a Lagoa Henriques House Museum, while blending it into the general

theory of this type of museological facility. Real and imagined factors are combined

in an academic epitome.

The final idea, common to the tree parts, is a tribute that we feel does justice to a

Man, an Artist, a Teacher, a Museologist and a Collector. And because each life

deserves to be celebrated, this man's life adds artistic value to everyone who knew

him. He celebrated the gift of existence both uniquely and universally.

KEY WORDS:

Lagoa Henriques – Collection – House museum– Fine arts - Exhibition

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Agradecimentos

O primeiro agradecimento não podia deixar de ser para o Homem cuja existência

influenciou de tal forma a minha que deu origem a este trabalho: Mestre António

Augusto Lagoa Henriques. Viverei de certeza mais rico, sabendo que o conheci.

Ao Professor Carlos Amado, indissociável do tema, primeiro como professor, depois

como orientador, agora como saudade mas sobretudo como amigo.

À Professora Margarida Calado, por ter aceite embarcar nesta aventura, com toda a

dedicação e orientação fundamental, e sem a qual este trabalho não teria sido

possível.

À minha colega Elsa Garrett Pinho pelo seu apoio e experiência. Aos meus

professores e colegas de mestrado, companheiros desta viagem.

Ao António José e à Céu por todas as vezes que tiveram que me abrir a porta. A

todos os frequentadores e amigos do LAB.CULT.

Ao meu irmão, por ser um mestre em tudo. Às minhas mães pelos diferentes apoios.

À minha família pela esperança que mantiveram.

À Filomena e à Carolina pelo amor partilhado e pela (re)descoberta da vida.

A todos aqueles que leram e releram dando sugestões e apontando críticas.

Mas o principal e mais especial agradecimento, com inevitável destaque, é para o

meu Pai, pela sua persistência, incansável colaboração e fonte de inspiração que é.

Obrigado Pai, sobretudo por sempre teres acreditado!

M... sabes que é para ti! (Sempre foi, agora apenas se materializou)

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Introdução

I

A primeira aula que tive com ele correspondeu à primeira vez que o vi em pessoa.

Só o conhecia dos programas de televisão. Tinha a perfeita noção de que se tratava

de um escultor conhecido e eu ligava-o sem dificuldade a obras como a escultura de

Fernando Pessoa que está na Brasileira do Chiado. Confesso que a primeira

impressão que tive não foi das melhores. Estava algo apreensivo, eu que nunca

tinha sido um aluno de artes. Mas que aulas eram aquelas? Que métodos

estranhos... foi a primeira vez (ao fim de 20 anos como aluno) que vi um professor a

querer saber, na aula de apresentação, onde é que os alunos tinham nascido. O

mais comum nas apresentações é dizer-se o nome, o que se faz (a profissão,

porque estávamos no âmbito de um mestrado e normalmente as pessoas já

trabalham) e porque é que se está ali. Mas neste caso não, a primeira pergunta foi:

onde nasceu? E a resposta pretendida não era, Lisboa, Porto, Torres Novas, ou

outra cidade qualquer. A resposta era o bairro, a rua, a escola. Percebo, agora,

claramente, a razão desta pergunta: nós somos o que bebemos desde sempre e

conhecer o berço e as nossas primeiras experiências, ajuda a definir-nos como

pessoas. Os trabalhos pedidos, o diário gráfico, as conversas que tinha connosco,

as experiências que tinha vivido, os museus que conhecia em todo o mundo...

enfim, toda aquela riqueza de conhecimentos e experiências estavam ali ao alcance

das nossas mãos em troca de, apenas, umas horas do nosso tempo. As aulas

passaram-se e o meu cepticismo foi desaparecendo. Aquele mundo tão diferente do

meu começava a fazer efeito, as visitas que fazíamos abriam-me muito (mas

mesmo muito) os olhos ao mais simples da vida. Comecei a não passar pelas

coisas com a indiferença de outrora. Descobri (aliás, foi-me mostrado), que tudo tem

o seu interesse, apenas existem diversas maneiras de olhar.

Certo dia, três ou quatro meses depois, acordei a rememorar um sonho: o que é que

iria acontecer às pessoas que não tinham o privilégio de frequentar aquelas aulas e

que não o conheciam como nós? Daí nasceu uma decisão! Eu tinha que fazer

alguma coisa. Às gerações futuras devia ser-lhes dada a oportunidade de contactar

com aquela realidade e ter uma hipótese de conhecer este olhar diferente sobre o

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mundo. O mínimo que eu podia fazer era garantir que este legado ficasse, pelo

menos em papel, para quem dele quisesse usufruir. Foi assim que escolhi o tema

da minha tese.

Mestre Lagoa Henriques não pode passar à galeria das memórias esquecidas. Tem

que ser lembrado pelo que é, pelo que foi e pelo que será sempre2. E, perante o

deslumbramento que me era apresentado (o Mestre considerava-se ele próprio um

deslumbrado, e esta postura transmitia-se facilmente a quem com ele convivia), e

que me foi transmitido, pensei que as verdadeiras homenagens se deviam fazer em

vida. Foi essa a motivação inicial, infelizmente não concretizada. No entanto, a

maior homenagem que posso fazer a Mestre Lagoa Henriques, nem é fazer uma

tese sobre ele, porque isso já devia ter sido feito, é deixar escrito que ele mudou

profundamente a minha existência, a minha maneira de olhar para o tudo e para o

aparente nada, e que ele foi o Professor que mais marcou o meu percurso de

estudante e de ser humano. Foi, e é, acima de tudo, um Mestre de vida.

Esperei o fim do ano curricular para falar com ele e para lhe contar sobre o meu

sonho, e foi com grande espanto e emoção que vi o olhar enternecido e até

comovido daquele homem, do Mestre cuja obra eu queria perpetuar, a dizer-me com

toda a humildade que era uma honra para ele que eu fizesse este trabalho.

A história de um homem é sempre admirável!

William Shakespeare Citado pelo Mestre,

do Livro “As Canções” de António Botto

2 Ver – Anexo I – Nós fazemos fotografia para coleccionar a vida! – Foto 5, p. 129.

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II

Desde logo, por sugestão do Mestre Lagoa Henriques, ficou decidido que o

orientador deste trabalho seria o seu amigo Professor Carlos Amado. Assim, já sob

a orientação deste, começou um período, longo, de 2 anos, de visitas ao ateliê para

a realização de entrevistas com o Mestre Lagoa Henriques, que viriam a constituir a

espinha dorsal desta dissertação.

O coleccionista e não o escultor, surgiu como corolário da necessidade de trabalhar

um espólio que se pretendia salvaguardar e eternizar. Destacar uma faceta menos

pública do Universo Lagoa Henriques foi um impulso dos Mestres que desde logo foi

aceite com entusiasmo.

Só que ao longo destes 2 anos, a doença foi chegando para se instalar. Primeiro

devagar, depois mais depressa e por fim depressa demais. A realidade batia à porta

e a morte que se fazia anunciar, chegou e ficou para sempre. Este trabalho, já de si

lento pelas vicissitudes próprias envolvidas, esmorecia no espaço e no tempo. O

desânimo foi patente em todos e um natural desalento de parte a parte fez perigar

esta dissertação. Tornou-se penoso frequentar o local e insistir em reavivar

memórias era doloroso. Profundamente abalado o Professor Carlos Amado sentindo

que existia um compromisso com Mestre Lagoa Henriques, (não só porque este

trabalho era também um desejo seu mas também porque o convidara para

orientador) e na tentativa de conseguir continuar a exercer o seu papel, sugere uma

co-orientação. Foi assim, que se estendeu o convite à Professora Margarida Calado,

que prontamente aceitou o desafio sem conhecimento prévio de conteúdo ou autor.

O trabalho prosseguiu de novo a três, só que a morte instalou-se de novo, e mais

uma vez para sempre, deixando o destino deste texto à deriva das circunstâncias.

Com dois recuos de vida, e agora com a orientação exclusiva da Professora

Margarida Calado, tornou-se necessário repensar parte do objectivo inicial, dado

que muita da informação e orientação que a princípio se bebiam na origem estavam

agora em fonte seca. A génese coleccionista manteve-se mas foi naturalmente

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percebido que era fundamental enquadrar o coleccionismo que se estudava e

organizava, num espaço físico de perpetuação de memória: a casa-museu.

Assim, um trabalho pensado para ser “O Coleccionismo em Lagoa Henriques”

passou a ser “Lagoa Henriques: O Coleccionador e a Casa-Museu”.

De realçar que nunca foi intenção deste trabalho a exaustiva inventariação das

colecções mas antes a criação de um modelo teórico que viesse a permitir, no

futuro, essa inventariação.

A MORTE é a curva da estrada,

Morrer é só não ser visto.

Fernando Pessoa3

3 (Pessoa, 1932: 251)

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III

O acto humano de coleccionar objectos – aos quais é retirado valor de uso e

atribuído, em contrapartida, valor simbólico – constitui, em si mesmo, o fundamento

antropológico da atitude museológica. Uma vez integrado numa colecção, o objecto,

subtraído à usura física e investido de significações, proporciona contemplação,

deleite e estudo (Brigola et al., 2003: 32).

Qualquer que seja a sua origem e natureza, a colecção pressupõe uma reserva de

riqueza, seja ela material ou não, que constitui um privilégio de “elites” de alguma

forma poderosas. Um poder que, entre outros, pode ser cultural, porque a cultura é

a concretização, é a corporização da mensagem dentro de um sistema de

comunicação organizado e qualificado. O coleccionador é o agente mediador entre

o objecto e o seu campo de interesses ou gosto. A sua colecção é fruto desse

processo de comunicação, da sua paixão. O coleccionismo pode ser também o

reflexo de uma moda, de uma tendência, de uma época.

Quando se pretende adquirir um objecto para colecção, aquele deve ser

enquadrado como sendo um objecto reconhecido pela ciência ou pela comunidade

na qual possui plena significação cultural, tendo uma qualidade única e como tal

sendo inestimável; ou então, embora não sendo necessariamente raro, que tenha

um valor que derive do seu meio ambiente cultural e natural. Verifica-se assim, que

o objecto ao passar para a denominação de objecto de museu é entendido como

estando fora do seu contexto natural, para o qual foi naturalmente concebido e é

recolhido enquanto valor apreciável e estimável. As colecções dos museus são

constituídas por objectos da cultura material, que são signos de cultura da nossa

história, memória e identidade.

No entanto, antes de haver museu há colecção, antes da colecção há o desejo de

preservar memória. Pode entender-se memória, neste caso, como a conservação

dos testemunhos da natureza humana e também da natureza propriamente dita.

Embora com diferentes análises, sujeitas sempre a mais ou menos subjectividade, é

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quase consensual que, para haver museu, há colecção. Nem que seja de memórias.

É nesta realidade que se inscrevem as casas-museu.

Uma Casa-Museu começa por ser um museu. No entanto, há alguns elementos

distintivos que se evidenciam, nomeadamente a memória pessoal e os seus

suportes materiais: o edifício e a sua envolvente (constituindo os bens imóveis) e a

colecção (os bens móveis), documentos tangíveis da personalidade e do

pensamento do indivíduo. O conjunto destes elementos não se pode dividir, pois

cada um faz parte do mesmo todo. Nestas instituições museológicas, os visitantes

podem experimentar o fascínio da intromissão na intimidade de uma personagem

que se torna próxima e presente, numa visita onde se revelam os traços de uma

personalidade, os seus hábitos e vivência doméstica, os espaços de trabalho e de

criação (Araújo, 2004: 19).

Pese embora toda a teoria subjacente ao acto de coleccionar, ao fenómeno da

reunião de objectos, eram, sobretudo, os vínculos, as ideias, os sentimentos que

Mestre Lagoa Henriques tinha com os seus objectos, que o motivavam a

coleccionar. É esta motivação do coleccionador/artista que devia ser levada à luz do

dia, através de uma casa-museu. Acima de tudo, foi um deslumbrado, um

apaixonado pelas formas, pelas coisas que o rodeavam. As suas colecções eram na

verdade, fruto do seu amor pela vida.

TRAHIT SUA QUEMQUE VOLUPTAS4

Palavras de Virgílio nas Éclogas

4 lat - Cada qual tem o seu prazer que o arrasta. (http://dicionariodelatim.com.br/searchController.do?hidArtigo=A37837890F444B13252CCE1532793A8B)

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Metodologia

O objectivo deste trabalho é estratificar uma colecção e propor a respectiva

musealização com vista a um projecto de casa-museu.

Para a elaboração desta tese optou-se por dividir o trabalho em três partes:

Uma que procura traçar o perfil do Homem que dá origem a este trabalho.

Outra que aborda a temática do Coleccionismo.

E finalmente uma proposta académica de Casa-Museu Lagoa Henriques.

A primeira parte é baseada em entrevistas gravadas no ateliê de Mestre Lagoa

Henriques: mais de 10 horas de conversas, divididas por cerca de 9 sessões

distintas, que originaram aproximadamente 45.334 palavras que foram transcritas

das gravações áudio para 149 folhas de discurso directo. Houve também conversas

com outras pessoas que, de algum modo, podiam complementar o conhecimento

sobre o Mestre, para além do apoio em bibliografia, documentos, fotografias, visitas

aos locais da sua existência e várias horas na internet.

A segunda e terceira parte constam de uma abordagem prática e teórica em que foi

utilizado, sempre que necessário, o material constante nas entrevistas gravadas.

Para a abordagem teórica, foram utilizados os habituais meios de estudo e de

investigação para a elaboração de qualquer dissertação: arquivos, bibliotecas,

visitas a museus e casas-museu, livrarias, internet, entrevistas, conversas,

experiências e partilhas. Para a abordagem prática, foi criado e desenvolvido um

modelo de ficha de inventário e procedeu-se à inventariação da colecção, através

de muitas horas passadas no Ateliê a escolher, limpar, fotografar, catalogar e

organizar as peças.

Estas colecções, depois de organizadas foram “transportadas” para uma hipotética

casa-museu, tendo sido delineada toda a sua estrutura funcional.

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1ª Parte

LAGOA HENRIQUES

(A partir de entrevistas, conversas e

ideias...)

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Breves apontamentos

para a História de Mestre Lagoa Henriques

1. Aprender a conhecer.

Imaginará uma mãe o futuro do seu filho no momento em que dá à luz? Mal podia

sonhar Palmyra Castália de Almeida Lagoa Henriques que o seu pequeno

António Augusto viria a ser quem foi, e quem será sempre.

Rapaz pequeno de tez pálida, pouco dado às brincadeiras comuns, desde miúdo

que vivia um pouco no seu mundo. À contrariedade das letras e dos números,

respondia ele com os seus desenhos. Certo dia, encostado à janela olhando a rua

cinzenta, admirava um varredor. Sentindo um nervosismo por não estar a estudar

gramática, pergunta com um ar inocente à sua Mãe:

- Mãe, o varredor sabe ler? Ao que ela responde:

- Ó filho, olha, infelizmente não sabe! É um escrivão da pena grande, como lhe

chamam!

- Então está decidido... quero ser varredor!5

António Augusto Lagoa Henriques nasceu em Lisboa, na Rua Ilha Terceira, no

findar do ano de 1923. Filho de um comerciante, amador dramático, e de uma

professora de inglês, francês e desenho, cedo se mudou com os pais para a Rua

dos Douradores, 21, 2º Esquerdo (casa do seu avô6), onde viveu até à idade adulta.

É desta rua que tem as suas recordações de crescimento, as primeiras referências

do mundo que o rodeava (que era observado por ele de uma maneira tão própria) e

as marcas profundas de uma Baixa Pombalina que tanto o influenciou. Essa Lisboa

de Cesário e Fernando que deixava Verde de paixão qualquer Pessoa que

respirasse as suas ruas e segredos. Segundo ele, Cesário Verde e Fernando

Pessoa ensinaram-lhe a ver a realidade exterior e interior respectivamente. Para 5 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 2ª Entrevista - 28/04/2004, p.164. Ver – Anexo III – Artigos de Imprensa – p. 282. 6 Ver – Anexo I – Nós fazemos fotografia para coleccionar a vida! – Fotos 1, 2 e 3, p. 129.

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Mestre Lagoa Henriques sempre houve esta relação entre a palavra e a imagem. A

poesia, como a escultura, sempre o apaixonou e não passava um dia em que não

escrevesse umas palavras antes de adormecer.

O ar da sua casa estava impregnado de arte. O seu pai amador dramático, a sua

mãe, que além de professora, fora discípula de Maria Augusta Bordalo Pinheiro

(irmã de Columbano e Rafael) e o seu Avô, que foi o seu primeiro mestre de Lisboa.

Mestre Lagoa Henriques relatava com saudade o episódio em que o Avô o levou à

Praça do Comércio: Levou-me ao Terreiro do Paço! Levou aquele menino ao

Terreiro do Paço! Era tão perto o Terreiro do Paço da Rua dos Douradores! E

quando eu vejo aquela praça enorme, iluminada e vejo aquele monumento do D.

José I a cavalo com aqueles grupos laterais, eu fiquei espantado! E o meu Avô, que

era alfaiate, teve a inteligência de pegar em mim, e sem me dizer nada (isso

recordo-me!) deu a volta ao monumento! Foi aí a minha descoberta, digamos, da

escultura! Fiquei admirado a olhar para aquele elefante enorme, aquela figura da

fama com a trombeta, depois as outras figuras do outro lado com aqueles cavalos e

depois o monumento a recortar-se no céu! Depois o meu Avô pegou em mim e

levou-me até ao Cais das Colunas. Levou-me mesmo junto à água, pegou na minha

mãozinha e fez com que a minha mão tocasse na água! Portanto, foi para mim um

mestre enorme! Ele deu-me a perceber qualquer coisa que eu amo profundamente

que é a água, que é o rio, que é o mar! 7

Ainda antes de ter idade para ir para a escola, a sua mãe fazia questão de o levar a

passear ao Jardim Botânico, onde faziam piqueniques, ao Jardim da Estrela e ao

Miradouro de Santa Luzia. Para a Sr.ª Dª Palmyra o contacto com a natureza era

muito importante, uma vida a espreitar pela janela não era o seu ideal de “ar livre”.

Como foi dito, com o seu Avô aprendeu também a conhecer a cidade. Da Rua dos

Fanqueiros à Praça do Comércio, da imagem do rio aos eléctricos, das colinas aos

museus. Foi também com o seu avô (alfaiate de profissão - Alfaiate da Casa Real.

Como dizia a sua Tia Elvira), que visitou pela primeira vez um museu. Tinha 6 anos

e vagueou sozinho pelos corredores do Museu Nacional de Arte Antiga, enquanto o

7 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 2ª Entrevista - 28/04/2004, p.158. Ver – Anexo III – Artigos de Imprensa – p. 280.

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seu avô falava com um antigo colega da escola primária que era guarda do museu.

Quem diria, que anos mais tarde viria a ter intervenções museográficas, nesse

mesmo museu, para que se pudessem observar as esculturas a 360˚. O petiz

passou a frequentador, o frequentador a especialista, o especialista a professor e o

professor a mestre... nasceu, cresceu, viveu e marcou a museologia com a mesma

modéstia e paixão com que sempre visitou um museu.

O seu conhecimento da cidade é, portanto, muito devido aos percursos do Avô por

um lado, e aos da Mãe pelo outro. Mas para além disso, a sua Mãe levava-o muito a

casas de família e amigos. A casa da sua Tia Elvira (irmã da sua Mãe) e sobretudo

a casa de uma senhora chamada Albertina Tourgal, casada com o Juiz Reis

Tourgal, que era uma senhora de letras, era uma “Gertrude Stein”8, uma mulher com

uma cultura enorme. Estas visitas foram de grande importância na sua formação

artística, pois os Tourgal haviam estado em Macau e na Índia e a sua casa era um

autêntico Museu. Foram os seus primeiros contactos com a arte chinesa e indiana.

O seu deslumbramento (sobretudo para uma criança de 8 anos) levou a que a Sra.

Dª Albertina Tourgal tivesse sido das primeiras pessoas a reparar que ali estava um

futuro artista.

2. Um futuro advogado?

A sua escola primária, relacionada com a Igreja de São Nicolau chamava-se Junção

do Bem e ficava, também, na Rua dos Douradores, de maneira que o pequeno

sonhador ia e vinha sozinho todos os dias a observar com atenção tudo e todos à

sua volta. A escola ficava num 4º andar mesmo ao lado da igreja. As janelas

deixavam entrar uma luz agradável, de modo que a sala não tinha aquele sentido de

aula fechada. As clarabóias do refeitório da igreja davam directamente para o

interior da nave central. Aquele percurso, casa-escola-casa, era feito entre aqueles

prédios pombalinos onde havia armazéns de víveres, para fornecer as mercearias, e

as caixotarias. As caixotarias tinham a característica de serem feitas por galegos,

8 Gertrude Stein; (3 Fevereiro, 1874 – 27 Julho, 1946) – Escritora americana catalisadora do desenvolvimento da arte moderna e da literatura, que passou grande parte da sua vida em França. Diz-se que ela fez com as palavras o que Picasso fez com as tintas.

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como a que havia por baixo do seu prédio, que tinha a particularidade de ter à porta

um papagaio que o cumprimentava todos os dias:

- Bom dia, António Augusto.

E lá ia ele pelo meio das sacas dos víveres que eram transportados para os

armazéns em carroças. Segundo ele, há uma “escola” de carroças, carroceiros e

cavalos que tem uma certa influência na sua formação. Hoje em dia já não há

carroças e portanto essa Lisboa de Cesário Verde é hoje uma arqueologia9...

Numa escola ligada à Igreja era natural (e obrigatória!) a frequência de aulas de

catequese. Mestre Lagoa Henriques recordava com ternura um episódio marcante

da sua infância: é que eu já de miúdo tinha aquele deslumbramento pelas imagens,

pelos altares, pelas esculturas… e um dia acabou a catequese e eu meti-me não sei

como, perto da sacristia e quando dou por mim tinham fechado a Igreja e eu fiquei lá

fechado! Foi terrível porque começou a anoitecer e eu comecei a chorar, era miúdo

devia ter 7/8 anos. A minha mãe teve a inteligência de pensar que se eu não tinha

ido para casa, devia estar na escola ou na Igreja porque era dia de catequese.

Chega à igreja, a igreja estava fechada. E então foi bater a casa do sacristão, que

também ficava ali perto. Lá chegaram e estava eu adormecido de cansaço, mas

lembro-me perfeitamente de estar a chorar… e isso provocou que eu até bastante

tarde tivesse pesadelos com imagens, com igrejas e com santos que se mexiam! 10

Durante a escola primária nunca foi um aluno brilhante. Fazia apenas o necessário

para ter tempo para os seus desenhos e para a sua brincadeira preferida: a

construção de teatros. Usava caixas de sapatos para fazer a estrutura e desenhava

os cenários e os personagens que depois recortava cuidadosamente. As suas

origens humildes não lhe permitiam ter muitos brinquedos e estes eram sobretudo

feitos por si.

Este “alheamento artístico” pelas actividades da escola era de tal maneira notório

que a sua Mãe, depois de uma conversa com a sua professora primária (Srª Dª

9 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 2ª Entrevista - 28/04/2004, p.156. 10 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 2ª Entrevista - 28/04/2004, p.157.

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Cândida), em que esta o considerara um excelente aluno, decide fazer um teste e

deixá-lo por conta e risco durante uma semana. Escusado será dizer que nem

redacções, nem exercícios de matemática, nem gramática, nem nada. O pequeno

“artista” estava como queria, livre para os seus deslumbramentos11. Findo o período

de experimentação a Srª Dª Palmyra voltou à fórmula inicial e Mestre Lagoa

Henriques lá foi cumprindo as suas obrigações de estudante com maior ou menor

vontade, com mais ou menos afinco, até ao dia do seu exame da 4ª classe. Exame

esse, em que foi acompanhado pela sua tia Elvira (irmã da sua mãe) que era

professora primária do ensino oficial.

O seu ensino preparatório e secundário é feito no Colégio D. Filipa de Vilhena que

era na Av. Praia da Vitória, perto do Saldanha. Embora os exames12 fossem feitos

em liceus oficiais (Camões, Gil Vicente e Carmo), foi aí que Mestre Lagoa

Henriques fez os seus 7 anos de liceu. Melhor sobretudo nos 6 primeiros, já que por

volta dos seus 15/16 anos (no 7º ano, portanto) um chumbinho a Latim e outros

mais por arrasto (abyssus abyssum invocat)13, realçaram a sua costela de aluno

mediano. No entanto, operava em si, nesta altura, uma grande transformação a

nível artístico, já que as visitas a museus e exposições eram agora da sua iniciativa.

Já longe da alçada “museológica” do avô, entretinha-se agora, sozinho, nestas

andanças pouco comuns num jovem daquela idade. No entanto, Mestre Lagoa

Henriques sempre foi diferente. O museu esteve presente em todas as fases do seu

crescimento.

Paralelamente, inscreve-se na Sociedade Nacional de Belas Artes, nas aulas

nocturnas de desenho, naquela que se pode considerar como a sua primeira atitude

espontânea em termos de formação artística (embora não tivesse ainda qualquer

intenção de seguir Belas Artes). Foi o gosto pelo desenhar, que sempre teve, que o

fez tomar esta decisão. Aqui, teve o privilégio de ser aluno de Armando Lucena,

homem de rara sensibilidade (que fazia lembrar Delacroix, pela sua fisionomia), que

já na altura fazia aulas com projecções de imagens.

11 Ver – Anexo III – Artigos de Imprensa – p. 280. 12 Ver – Anexo I – Nós fazemos fotografia para coleccionar a vida! – Foto 8, p. 130. 13 lat - Um abismo atrai outro abismo. http://pt.wikipedia.org/wiki/Anexo:Lista_de_prov%C3%A9rbios_e_senten%C3%A7as_em_latim

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No entanto, e ao contrário do que talvez fosse de esperar numa pessoa com estas

qualidades, o seu destino universitário parecia estar traçado desde os 6 anos.

Fazendo um ponto de situação à época, é preciso recordar que estamos na

presença de um filho da geração pré-televisão. E, como tal, os serões eram

passados de outra maneira e eram comuns, nas reuniões de família e amigos,

actividades de índole mais artística que as de hoje em dia. Da poesia à música, dos

pequenos discursos às saúdes com vinho do Porto, havia de tudo um pouco. Novos

e velhos passavam horas a conviver (no verdadeiro sentido da palavra) uns com os

outros. Nas palavras do próprio: as pessoas eram autoras da sua vida! Hoje são só

espectadores!14 Ora, numa destas festas de aniversário em casa de uma Tia, o

menino António Augusto tem a ideia de fazer um brinde do alto dos seus seis anitos.

Agarra num cálice, sobe para uma cadeira e faz uma saúde que deixou a sala em

silêncio, deleitada a ouvi-lo. No final teve uma clamorosa salva de palmas

(provavelmente a primeira de muitas) que nunca mais esqueceu. Acontece que

nessa festa, estava também presente um juiz amigo da família, que perante tal

contemplação se dirige a seus pais, abismado com a capacidade do petiz para dizer

as coisas, com o seu entusiasmo e maneira de comunicar: daria com certeza um

belo advogado ou um juiz15. Nasce assim, o primeiro artista de “direito”! Este

episódio, ficou de alguma maneira gravado no seio da família Lagoa Henriques e

quando o “aprendiz desenhador” inicia o liceu começa-se a traçar e a delinear a sua

ida para Letras ou Direito.

Findo o período liceal, chegam os exames de aptidão à faculdade e Mestre Lagoa

Henriques, pura e simplesmente, reprova no exame de aptidão para Direito. Resolve

então arranjar quem o ajudasse na preparação para os novos exames. Bem dita a

hora em que tomou essa decisão, pois é aqui que se dá o volte face desta história.

14 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 3ª Entrevista - 13/05/2004, p.178. 15 Ver – Anexo III – Artigos de Imprensa – p. 280.

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3. A descoberta de Agostinho da Silva: um escultor!

Para o exame de português, teve um professor que foi Rodrigues Lapa,16 professor

afastado da Faculdade de Letras por ser considerado da “oposição”, que teve a

brilhante ideia de preparar alunos por correspondência! Ou seja, o professor

enviava, por correio, exercícios para os alunos e estes por sua vez devolviam os

exercícios feitos para correcção. De quando em vez encontravam-se.

Mas, para além do Português faltavam ainda os exames de Filosofia e História. E é

aqui que surge o professor Agostinho da Silva17, também ele afastado por razões

parecidas mas da Faculdade do Porto, que o jovem Lagoa conhecia dos famosos

cadernos, “Iniciação” e “Antologia”. Esta fase da sua vida era marcada por duas

vertentes: as aulas de desenho que continuava a frequentar na Sociedade Nacional

de Belas Artes e a preparação para os exames.

Agostinho da Silva, tal como Rodrigues Lapa, ganhava a vida, sobretudo, a dar

estas aulas particulares. No entanto, depois de inquirir o seu novo pupilo sobre a

disponibilidade financeira dos seus pais para que frequentasse as suas lições,

decide não cobrar nada por elas argumentando que também ele teria certamente

muito a aprender nestes encontros entre os dois. E era com base nesta premissa

que Mestre Lagoa Henriques se deslocava duas vezes por semana à Rua Dr.

António Martins, mesmo em frente ao Jardim Zoológico. Estas aulas iam muito para

além da filosofia e da história, porque no fundo aqueles encontros resultavam em

conversas fascinantes sobre tudo: desde o universo da aventura humana até às

ciências e às artes.

Numa dessas conversas, Agostinho da Silva mostrou-se algo surpreendido com o

interesse daquele jovem pelas artes e pelo facto de saber que ele ia com frequência

a exposições, já para não falar das aulas nocturnas de desenho, e pergunta-lhe se

ele já tinha “feito” alguma coisa em termos artísticos. Mestre Lagoa Henriques

responde, naquela humildade que sempre o caracterizou, que sim que desde

16 Rodrigues Lapa - (1897-1989) - Filólogo, professor catedrático. Foi afastado da Faculdade de Letras de Lisboa, por motivos políticos, em 1935. Feroz opositor ao regime vigente, exilou-se no Brasil em 1957, onde leccionou em várias Universidades, regressando após o 25 de Abril. 17 Ver – Anexo III – Artigos de Imprensa – p. 281.

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criança que desenhava amiúde. No dia da mostra dos desenhos, Agostinho da Silva

profere a frase mais lapidar da vida deste jovem:

- Sabe uma coisa Lagoa Henriques? Eu devo dizer-lhe que tenho a impressão que o

meu amigo está enganado na vocação. E ainda lhe digo mais... o meu amigo é um

escultor!18

Qual não foi o espanto que se abateu sobre aquele rapaz que nunca tinha sequer

feito nada a três dimensões! Foi então que Agostinho da Silva lhe perguntou se já

tinha modelado algo. Ficando a saber a “negatividade” da resposta, sugeriu-lhe que

fosse à olaria mais próxima da sua casa (que neste caso era a Olaria do Desterro) e

que comprasse barro para experimentar. Mestre Lagoa Henriques percorreu com

entusiasmo o caminho até à olaria, onde comprou 5 kg de barro. Passado uns dias,

o professor Agostinho da Silva, telefona-lhe a perguntar se já tinha feito algo.

Conhecendo a “positividade” da resposta, perguntou-lhe se podia deslocar-se a sua

casa para ver o que tinha feito. Estranhando o entusiasmo de Agostinho da Silva,

Mestre Lagoa Henriques aquiesceu com humildade e toda a família esperou

nervosa a chegada do professor. Passado o tempo de uma viagem de eléctrico e de

alguns metros a pé, eis que tocam à porta! A Srª Dª Palmyra apressa-se a atender e

o “carrasco” do ex-futuro advogado entra. Pediu imediatamente para ver as peças19

e analisou cuidadosamente as três figuras com um palmo de altura a conversar

(duas masculinas e uma feminina) com a sua aparência de verticalidade, mais uma

figura nua feminina reclinada e ainda uma pequena cabeça.20 Mestre Lagoa recorda

como se fosse hoje aquela primeira experiência tridimensional. O prazer que sentiu

em mexer naquela matéria plástica (o barro), conseguindo criar realmente essa

relação dos volumes com os espaços com uma determinada intencionalidade que

manifestavam as formas, pois pareciam construir uma relação que exprimia um

determinado estado de espírito. Aquelas três figuras conversavam, havia ali como

que uma aproximação; a figura feminina reclinada descansava de uma forma

contemplativa; a cabeça, também de um palmo de altura, era um retrato imaginário

18 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 3ª Entrevista - 13/05/2004, p.181. 19 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 3ª Entrevista - 13/05/2004, p.182. 20 Estas figuras perderam-se, infelizmente, no incêndio do seu ateliê de Belém (ver página 40).

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do escritor! Análise feita, Agostinho da Silva virou-se para os pais de Mestre Lagoa

e disse:

- Pois é, estamos enganados! Tenho que vos dizer que o vosso filho é na realidade

um escultor! 21

Abateu-se um silêncio sepulcral naquela casa, e os pais de Mestre Lagoa Henriques

assistem suspensos e estupefactos à saída (pela janela) de um ex-futuro advogado,

para dar lugar à entrada (pela porta) de um futuro escultor. Como pessoas sensíveis

que eram, não tiveram a mínima objecção em aceitar o que o futuro reservava ao

seu filho.

4. O atribulado concurso às Belas Artes.

Começa aqui, uma nova etapa na vida do jovem Lagoa. Decidido a aceitar o destino

que o seu Mestre lhe revelara, concorre à Escola Superior de Belas Artes e

apresenta-se para fazer o exame de aptidão.

Com aquele diferenciamento, perante os demais, que já nesta altura lhe era

característico, Mestre Lagoa Henriques nota logo grandes dissemelhanças no seu

desenho. A honestidade dos seus traços violentos e de fortes contrastes é rebatida

pelo desenho académico e conservador. E na ingenuidade de quem era diáfano de

coração e agia segundo o seu impulso artístico, surge a reprovação no exame.

Nesse dia, Mestre Lagoa Henriques telefonou para casa a dizer que não ia almoçar

porque ia com uns amigos comer qualquer coisa e nada contou sobre o exame. Na

verdade, vagueou sozinho pela cidade com um profundo sentimento de tristeza e de

injustiça. Foi a pé desde a Escola de Belas Artes, até às docas, onde apanhou uma

concha que conservou sempre no seu ateliê até à altura do incêndio. Quando chega

a casa, já ao fim do dia, a sua mãe apressa-se a abrir a porta e diz-lhe que já sabia

do exame e que o Professor Agostinho da Silva tinha telefonado para dizer que era

mais uma prova de que ele tinha muito talento, e que o procurasse imediatamente.

21 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 4ª Entrevista - 07/07/2004, p.183. Ver – Anexo III – Artigos de Imprensa – p. 281.

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Mestre Lagoa Henriques deglutiu com avidez, num misto de confusão e ansiedade,

uma refeição rápida e apanhou o eléctrico para o Jardim Zoológico. Chegado à Rua

António Martins, toca à porta e surge no seu abrir um Agostinho da Silva de braços

abertos a exclamar:

- Então, muitos parabéns!

Se estupefacção já existia, ela quadruplicou nesta altura. Um turbilhão de

sentimentos confusos a antagónicos percorre o seu corpo de alto a baixo e deixa-o

num estado de apatia momentânea. Agostinho da Silva apressa-se a acalmá-lo e

diz-lhe:

- Calma, já lhe vou explicar porque é que lhe estou a dar os parabéns!

Entraram, passaram uma sala de gaveto e numa segunda sala, em que as paredes

tinham desaparecido para dar lugar a estantes de livros, Agostinho da Silva apontou

uma colecção de álbuns de arte (Colecção Phaidon). Leonardo da Vinci, Botticcelli,

Donatello, Rodin... Rodin! Seguindo as indicações daquele jogo misterioso, Mestre

Lagoa abre o livro sobre Rodin numa determinada página, num determinado

parágrafo...

- Leia em voz alta!

Esta leitura impressionou sobremaneira o Mestre, como se comprova pela maneira

apaixonada como narra este episódio:22

Rodin, era filho de um polícia de segurança pública e de uma criada de servir.

Tinha uma irmã, e um tio que era guarda de museu (um homem sensível) que

aconselhou o irmão polícia a matricular o menino “Augusto”, numa escola de artes

decorativas. (...) Ele matricula-se, faz esse curso da pequena escola de artes

decorativas (Petite École) e depois resolve concorrer à Grande École (Escola de

Belas Artes). Faz três tentativas e reprova sempre. Entretanto, morre a sua irmã.

22 Narração completa: Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 3ª Entrevista - 13/05/2004, p.185. Ver – Anexo III – Artigos de Imprensa – p. 282.

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(...) Então, com o desgosto da morte da irmã e estas três reprovações, ele resolve

entrar como noviço num convento (Pères du Trés Saint Sacrement) nos arredores

de Paris. (...)

Por sorte, o director desse convento (Padre Eymard) conclui que Rodin não tinha

realmente uma vocação religiosa, mas que estava a sofrer uma crise difícil, e

faculta-lhe uma cela, onde mandou montar um cavalete de escultura e um cavalete

de desenho. A condição seria a de seguir a sua actividade de escultor depois desse

período. (...)

Depois de ter voltado à sociedade e enquanto aguardava para concorrer de novo, é

convidado por Carrier-Belleuse (que tivera uma encomenda para fazer esculturas

para o edifício da Bolsa de Bruxelas) para o ajudar. É aí que ele faz a sua primeira

escultura notável, a célebre Idade do Bronze. (...)

Na sua maneira sempre peculiar, Agostinho da Silva tentava demonstrar ao jovem

Lagoa que o facto de ter reprovado era mais uma prova de que ele era um fora de

série, porque aqueles desenhos dos exames de admissão eram todos iguais, eram

aqueles desenhos académicos muito “lambidos”, com aqueles perfis muito bem

desenhados academicamente, mas eram desenhos sem qualquer criatividade.

- Por isso, o que tem a fazer é arranjar um professor ou professora que lhe ensine

esses truques académicos e vai fazer o exame com toda a facilidade!

E foi assim, que Mestre Lagoa foi discípulo da professora Eugénia Coelho que

leccionava na Escola António Arroio. No seu ateliê, que ficava perto da Estefânia, foi

colega de Sena da Silva23, que sofria também um pouco da mesma “doença”

criativa. Aprendeu a desenhar pelos cânones académicos e cumpriu com sucesso o

exame de admissão no ano seguinte.

Começava aqui a carreira de quem não se limitou a ser mais um Belo Artista (aluno

de Belas Artes), mas sim decidiu marcar profundamente com o seu habitual

23 António Sena da Silva (1926-2001) – Arquitecto, designer e artista plástico. Foi o primeiro director do Centro Português de Design.

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deslumbramento toda uma perspectiva artístico-pedagógica do ensino das Belas

Artes. Não só no seu percurso de aluno, mas sobretudo no seu percurso de

professor.

5. O primeiro ano de Lisboa.

Ultrapassada a barreira dos exames de admissão, Mestre Lagoa frequentou o

primeiro ano de Escultura na Escola de Belas Artes de Lisboa, decorria o ano de

1945. Foi um ano de grande intensidade, de muita descoberta. O jovem aspirante a

escultor absorvia com sofreguidão todo aquele ambiente artístico, que estivera em

risco de não ser colocado na rota do seu destino não fora a descoberta de

Agostinho da Silva.

Num ano de grandes novidades, alguns professores deixaram as suas marcas na

memória eterna deste estudante, que ainda hoje recorda episódios vividos com o

Mestre Piloto, professor de Modelação. Um homem de uma cultura enorme,

arquitecto de renome, responsável por obras como o Mercado da Ribeira em

Lisboa. Muito respeitado e acarinhado por todos os seus alunos (na opinião de

Mestre Lagoa Henriques).

Mas nem só de boas memórias se faz este primeiro ano. Duas farpas permanecem

cravadas nos anais das suas lembranças académicas. A primeira prende-se com a

disciplina de Desenho leccionada pelo escultor Leopoldo de Almeida. Professor

altamente cumpridor, um homem que modelava extraordinariamente, com uma obra

de estatuária muito elogiada e qualificada, mas que tinha, no entanto, segundo o

Mestre, algumas “limitações” de índole cultural e criativa que não preenchiam de

todo as ambições e os sonhos do jovem Lagoa. A segunda é atribuída à disciplina

de Desenho Arquitectónico leccionada pelo, na altura, director da escola, Arquitecto

Luís Alexandre da Cunha (conhecido no meio académico por uma alcunha pouco

lisonjeira – Cunha Bruto -, que punha em destaque o seu carácter agressivo e que

além do mais, e no dizer do Mestre “se suspeitava de colaborar com a Polícia

Política”). Reconhece, no entanto, que aprendera seguramente naquelas aulas

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matérias como, o que foi a ordem Dórica, a ordem Jónica, a ordem Coríntia,

emblemáticas da Arquitectura Grega. Mas... isso não bastava para a sua satisfação.

Apesar do entusiasmo que sempre teve em Belas Artes (como aliás em toda a sua

vida), a conjuntura académica não era de todo favorável à sua continuidade em

Lisboa e começava a surgir no horizonte a possibilidade de uma mudança para o

Porto.

Com maior ou menor sobressalto cumpre o primeiro ano em Lisboa, até que uma

ida infeliz à praia no final do ano lectivo vem precipitar de vez os acontecimentos e

“empurrar” definitivamente o seu destino para o norte.

6. A doença e o Porto.

Mestre Lagoa e os pintores Carlos Calvet e Lima de Freitas vão comemorar, o fim

do ano lectivo de 1945/46, para a Costa da Caparica, passando todo o dia na praia.

Má hora em que se decidiu por esta comemoração balnear, já que no final desse

mesmo dia começaria um longo caminho de tormenta que o levaria até ao Sanatório

das Penhas da Saúde24.

No dia seguinte, foi com a sua Mãe a um grande especialista de doenças

pulmonares o Dr. Fausto Patrício Lopo de Carvalho (de quem mais tarde fez um

retrato). O seu consultório ficava no Rossio, na esquina da Estação Central. No

primeiro andar, tinha tido escritório um advogado de seu nome Eça de Queiroz (o

escritor), que no seu romance “Os Maias” colocaria o consultório do “Carlos da

Maia”, jovem médico, nesse primeiro andar.

Passado este episódio curioso, Mestre Lagoa Henriques tem um longo período de

recuperação e consolidação no Sanatório das Penhas da Saúde, onde permanece

durante 4 meses.

24 Ver – Anexo I – Nós fazemos fotografia para coleccionar a vida! – Fotos 4, 7 e 9, p. 129, 130.

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Mas não foi só a doença que consolidou neste período. As duas “farpas” que trazia

e a grande admiração pelo professor de desenho da Faculdade de Belas Artes do

Porto, o Escultor Barata Feyo, que conhecia das exposições do SNI (Secretariado

Nacional de Informação) – onde Mestre Lagoa nunca expôs por razões de

convicção - consolidam definitivamente a sua intenção de mudança.

E é assim que, em 1948, num dia solarengo, por volta das 16h, desembarca na

Estação de São Bento, no Porto, uma mala vinda de Lisboa, que trazia atrás de si

um jovem consolidado pela certeza de uma mudança. Saído da estação, decide ir a

pé até à Escola Superior de Belas-Artes do Porto, a caminho do seu segundo ano

do Curso de Escultura.

Alia ao seu percurso estudantil a grande mais-valia de ser discípulo e colaborador

do Mestre Barata Feyo, que já conhecia da Nazaré e como já foi referido, das

exposições do SNI.

Nos seus últimos anos de curso alia à sua formação, sobretudo por razões

económicas, a actividade de professor. Primeiro do Ensino Preparatório e depois do

Ensino Secundário. Experiência muito gratificante de que falaremos mais adiante.

Como predestinado (que sempre foi, na verdade), Mestre Lagoa mantém esta

concomitância entre a frequência das aulas, o trabalho no ateliê e o ensino. Assim

conclui com distinção (obtendo 20 valores no exame final) o seu curso Superior de

Escultura em 1954.

Como não poderia deixar de ser, a sua constante insatisfação e o nunca aceitar o

que já existe em troca do que poderá haver, levam-no a percorrer milhares de

quilómetros de perguntas e respostas, aventuras e desventuras, ensinos e

aprendizagens. O mundo estava à sua espera.

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7. O Instituto de Alta Cultura reconhece qualidades.

Como sonhador nato que era, sentia fervilhar nas suas veias o sangue do ensino e

da aprendizagem e sentia já nesta altura uma necessidade intrínseca de mostrar a

outros a sua visão peculiar das coisas. Para isso, precisava de continuar a apostar

em si próprio e sentia uma enorme sede de conhecer as Escolas de Belas Artes da

Europa, porque sabia que se trabalhavam outros materiais e que havia outras

tecnologias que era fundamental aprender.

É movido por este desejo, por esta incessante procura por mais e melhor, que

concorre a uma bolsa do Instituto de Alta Cultura (hoje Instituto Camões). Neste

concurso, em que contou com a oposição de dois brilhantes adversários, teve que

fazer uma escultura de uma modelo, por sinal muito bonita pois ainda então se

lembrava dela, e que lhe viria a permitir chegar à meta do direito à bolsa em

primeiro lugar. Bolsa esta, que o iria levar, em 1955, a um período de 3 anos de

ausência de Portugal, que iriam ser pautados por longas viagens e experiências

fascinantes por países como Itália, Grécia, Egipto, Inglaterra, França, Bélgica e

Holanda.

Começa por ir para Itália, com o grande objectivo de ir para Milão25 ser discípulo do

escultor Marino Marini. No entanto, o seu fascínio e o já habitual deslumbramento

fazem com que passe primeiro um ano a conhecer Itália e se comece por inscrever

na Scuola del Marmo na Accademia delle Belle Arti di Roma, já que sentia grandes

lacunas na sua formação, pois passara um curso superior inteiro só a modelar

barro. Como a unificação italiana só se fez no século XIX (Rimli, sd: III,289), existia

uma grande rivalidade entre todas as cidades. Isto originava uma competição

estética importantíssima, o que lhe deu um documentário e um espectáculo de

diferença extremamente marcante, quer ao nível da arquitectura, da escultura, da

pintura, quer ao nível da organização da própria cidade. Com o seu tão

característico inconformismo, decide limar todas as arestas mal acabadas da sua

ávida formação, absorvendo, experimentando e aprendendo tudo o que podia nesta

25 Ver – Anexo I – Nós fazemos fotografia para coleccionar a vida! – Foto 6, p. 130.

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fase. Nem podia imaginar nesta altura como essa sua experiência ia ser tão

determinante no ensino das Belas-Artes em Portugal.

Passado este primeiro ano, vai para Milão onde está um ano lectivo como discípulo

de Marino Marini. A intenção inicial desta bolsa prendia-se essencialmente com esta

experiência de trabalhar no ateliê de um grande escultor italiano. No entanto, para

além do primeiro ano da bolsa, decide voltar do Norte novamente para Roma,

atravessando muitas cidades e contactando com muitas realidades diferentes.

Depois, de Roma vai para Florença, de Florença vai para Nápoles, de Nápoles para

a Sicília e da Sicília... para a Grécia. Chega à conclusão que tinha que ir à Grécia

para compreender a arte Romana, a arte Greco-Romana.

A bolsa funcionava por um sistema de licenças. De dois em dois meses, mais ou

menos, fazia um relatório que enviava para o Instituto de Alta Cultura. Quando se

deslocava para outra cidade, fazia novo relatório e pedia autorização para se mudar.

E assim foi conseguindo sem dificuldade, incluindo a ida à Grécia, todas as

autorizações que ia pedindo até ao dia em que pede para ir ao Egipto.

- Ao Egipto?! - Responde uma voz espantada do outro lado do pedido de

autorização - Mas o que é que vai fazer ao Egipto?! 26

Mestre Lagoa que tinha lido um daqueles caderninhos de Agostinho da Silva (nos

tempos em que fora seu aluno) chamado Viagem ao Egipto, de Heródoto, o primeiro

grande historiador conhecido como o Pai da História, sempre ficara com esta

vontade. Heródoto fora o primeiro grande jornalista da história da comunicação, pois

deslocara-se ao Egipto para ter um contacto directo com o real, ao invés de

conhecer e aprender através de livros ou de segundas e terceiras informações.

Mestre Lagoa Henriques, quando estivera na Grécia, na Escola de Belas-Artes,

conhecera uma rapariga egípcia que lhe acentuara essa convicção de que era

fundamental para o seu percurso ir ao Egipto. E é assim, com grande esforço para

26 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 4ª Entrevista - 07/07/2004, p.197.

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explicar às vozes de espanto o porquê desta necessidade, que se torna no primeiro

bolseiro português a ir ao Egipto.

Mestre Lagoa achou que nunca poderia ter ficado apenas por Itália. Foi necessário,

lógico e até fundamental, ter ido a outros locais para entender os secretos

mecanismos da criatividade e a relação que há entre o espaço personalizado de

cada país, de cada civilização e a sua produção artística.

8. O bolseiro jornalista.

Recuando um pouco no tempo, e na mesma altura que ele, também costumava

frequentar o ateliê de Barata Feyo, um jornalista do Comércio do Porto, de seu

nome Costa Barreto, que decidiu fazer um acordo com o futuro bolseiro,

fornecendo-lhe uma carteira de jornalista em troca de pequenos artigos para o

Comércio do Porto, sobre exposições em Itália. Nasce assim o primeiro “bolseiro

jornalista” encartado.

Este trunfo excepcional, que era aliás, o que de mais valioso a sua pequena mala

continha, permitiu-lhe na chegada a Roma dirigir-se na própria hora ao Ministero

degli Affari Esteri (correspondente ao nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros) e

obter com aquela carteira o correspondente em italiano, o que lhe viria a abrir

muitas portas. Exposições, inaugurações, museus, teatros, estreias, concertos,

enfim, todas as actividades culturais de que se conseguisse lembrar.

Teve possibilidade de conhecer de perto toda uma geração. Anna Magnani, Jean

Cocteau, Pablo Picasso, etc. Recorda um episódio, em que Jean Cocteau fez uma

exposição de pintura e desenho em Roma, na famosa Galeria do coleccionador

Renato Atanasio. Grande acontecimento social, de estrondoso impacto cultural e

mediático! Munido do seu “trunfo” jornalístico, teve a possibilidade de participar

neste evento. Com grande ansiedade, toda a sociedade romana, gente do teatro, da

cultura, escritores e, claro, o nosso bolseiro jornalista, esperavam a chegada do

artista, filósofo, poeta e cineasta. A certa altura um grande automóvel branco

conduzido por um famoso actor da época pára à porta da galeria. A abertura da

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porta (do carro) dá lugar a um Jean Cocteau cheio de pompa e circunstância.

Momentos mais tarde já no interior da galeria, Mestre Lagoa consegue fazer uma

pequena entrevista com a figura da noite, que conhecia bem Portugal pois para

além de coleccionar fotografias do nosso país e de ter um confesso desejo de visitar

Portugal (coisa que não chegou a acontecer), correspondia-se com frequência com

Eugénio de Andrade, a quem ofereceu mais tarde um desenho. Muitos anos depois,

Mestre Lagoa comprou com alguma emoção e até alguma nostalgia, um desenho

de Cocteau, que infelizmente se perdeu no incêndio do seu ateliê.

O contacto directo com a “obra”, nasce para ele nesta altura. É muito diferente tocar

com os olhos num David de Miguel Ângelo em Itália, numa Virgem dos Rochedos de

Leonardo Da Vinci em Paris, num Velázquez em Madrid.

Esta bolsa, e a credencial de jornalista, fizeram com que sempre considerasse, este,

um dos períodos mais essenciais na sua formação, como homem, como professor,

como artista. Foram 3 anos de grande intensidade e grande acumulação de saberes

e experiências. Foi a sua maior descoberta das artes. Teve contacto directo com a

arquitectura, com o espaço, com a escultura, com a pintura, enfim, com as obras

maiores dos grandes mestres.

Findo este período, volta ao Porto para ocupar o seu lugar de assistente na Escola

de Belas-Artes, compromisso assumido aliás na altura de início da bolsa, e começa

aqui a sua carreira como professor do ensino superior.

9. O Escultor professor ou o Professor escultor?

A dicotomia entre a carreira artística e a docência sempre foi encarada por Mestre

Lagoa de uma forma muito peculiar, pois para ele havia uma íntima e indissociável

relação entre o praticante das artes e o professor. Este termo praticante das artes

advém do facto de ter muito respeito pela palavra artista, pois ele considerava-se

apenas um oficial dessa arte, numa linha de aprendiz, oficial e mestre. Apenas lhe

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chamam Mestre por ter sido professor nas escolas de Belas-Artes. Para ele, artista

é um Rodin, um Rembrandt, um Miguel Ângelo, um Picasso.

O artista (o tal praticante das artes), ou construtor de imagens (bidimensionais e

tridimensionais) divide essa actividade em duas. Há uma clara bifurcação entre o

risco inadiável (o trabalho íntimo) e as encomendas (a arte pública). Só que, Mestre

Lagoa junta a este senso comum uma terceira questão: é que ser professor é

também uma arte! O Mestre chama a atenção para Sócrates, cujo método lhe é

caro.

Sócrates, filho de uma parteira, dizia que tinha herdado da mãe essa capacidade de

fazer nascer embora, obviamente, não se referisse ao nascimento físico dos seres,

mas ao da inteligência e do espírito. Como se sabe, o método socrático,

privilegiando o diálogo, procura, numa primeira fase, a ironia, o reconhecimento da

própria ignorância, do erro; numa segunda fase, esclarecer as ideias na mente do

interlocutor, para “dar à luz” a verdade. A esta segunda fase chamou Sócrates a

maiêutica27, aludindo ao ofício da sua mãe. Só assim se podia ter acesso aos

valores universais (Mossé, 1990: 134-137).

O professor é, portanto, um privilegiado que assiste a essa metamorfose.

Aqui se colocava o Mestre.

Nunca se cansava de frisar a importância que teve para si a experiência como

professor que se iniciou ainda durante o curso. Foi, como gostava de sublinhar, um

trabalhador-estudante avant la lettre28, pois naquela altura ainda nem sequer havia

esse estatuto. O gosto por ensinar, e uma premente necessidade económica,

levaram-no a concorrer ao ensino preparatório. Foi assim que passou um ano da

sua vida na Póvoa de Varzim. Um ano notável para ele, pois toda a descoberta

daquela vila piscatória, o contacto com aqueles miúdos de 10/11 anos com uma

intuição espantosa e que não tinham o estigma da cidade, a forte presença da

natureza (marcada sobretudo pelo mar), originaram um sentimento de partilha muito

27 Maiêutica – Do grego, arte de parteira. 28 http://ciberduvidas.pt/pergunta.php?id=20535

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grande e um conjunto de relações humanas muito puras. Como em tudo, transmitiu

o seu cunho pessoal ao programa do ensino do desenho e deixou muito bem

impressionados os dois inspectores (um escultor e um pintor) que se deslocaram

àquela escola na Póvoa de Varzim, para avaliar o seu trabalho.

No ano seguinte, muda para a Escola de Artes Decorativas Soares dos Reis, no

Porto (uma escola secundária), o que faz com que seja professor de alunos mais

velhos, acrescentado a isto o facto de dar não só aulas de dia, como de noite. Esses

contactos com outras faixas etárias completamente distintas, a mudança de

ambiente, de geografia, de população e de espaço, revelam-se sobremaneira

importantes na sua formação como professor.

Mestre Lagoa Henriques sempre gostou muito de ensinar, e como considerava isso

uma arte, sentia por vezes que se tinha realizado mais como professor do que como

“artista” (praticante das artes). Embora tenha feito coisas que considerava e

respeitava, fundamentalmente por serem originais, mesmo sabendo que todos nós

temos as nossas influências e ressonâncias, ele tinha a sua personalidade artística

bem vincada. As suas obras foram sempre diferentes, ele conseguiu sempre dar

uma resposta diferente.

Portanto, nessa relação entre o ser professor e o ser escultor, não há qualquer tipo

de incompatibilidade, uma coisa prolonga a outra. Na sua famosa última lição antes

de se reformar, o salão encheu-se de gente tão ilustre como o Presidente da

República, o Ministro da Educação, o Ministro da Cultura, Reitores de muitas

universidades... enfim, um mar de gente importante! Esta lição, a que chamou O

Círculo Inadiável, rezava assim:

Fundamentalmente apenas oferecer-vos uma mão cheia de imagens, pontos de

reflexão, da leitura do universo das formas. Raízes de entendimento do panorama

criativo ao nível dos significantes, sinais, símbolos e dos significados.

Temporalidade, intemporalidade. Dialéctica de metamorfose, a terra e o mar. O

percurso, a viagem, o equipamento, a comunicação, o erudito e o popular, o

património, a defesa e a conservação, o restauro, a arqueologia, os objectos

memórias, os materiais, a natureza, a água, a terra, o ar e o fogo. (...)

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Aqui lhes deixo uma última palavra: início de uma fascinante aprendizagem cuja

intenção maior é sem dúvida a capacidade, a disponibilidade para olhar o mundo

que nos envolve, saber ouvir, caminhar para a percepção total...29

Mestre Lagoa Henriques tinha realmente a fama de professor, o que de certo modo

correspondeu ao seu interesse e à sua dedicação, que não era propriamente

exclusiva, porque era também escultor, mas... como é que era possível ensinar

escultura, sem fazer escultura? Como é que se podia ensinar desenho sem fazer

desenho? Como é que se pode fazer um Mestrado em Museologia sem visitar

museus? Só a ler livros e a ouvir palavras? É preciso contactar com as actividades,

contactar com os espaços, é preciso contactar com as obras de arte.30

Foi sempre isso que procurou fazer. Nunca se considerou um professor de

secretária. Com ele, a escola desceu à rua. Levava alunos a desenhar para a

Ribeira de Lisboa, levava alunos a desenhar para o Largo de Camões, levava

alunos a desenhar para o Largo da Misericórdia, onde um dos seus exames finais

do curso de Arquitectura foi notícia de jornal. Estas são, apenas, algumas das

revoluções que fez na pedagogia.

O entusiasmo com que relatou todos estes acontecimentos, espelha a emoção e o

carinho com que sempre vibrou ao falar no assunto. Mestre Lagoa Henriques

respirava, sentia e vivia para os seus alunos.

10. O inconformismo: do ensino ao Ensino.

Toda a grandiosa “obra” que construiu no ensino tem as suas origens muitos anos

antes, quando ainda no período de bolseiro se viu confrontado com a possibilidade

de poder ter um papel decisivo na reforma do ensino.

29 Texto completo: Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 9ª Entrevista - 04/08/2006, p.269. 30 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 4ª Entrevista - 07/07/2004, p. 202.

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A renovação do ensino de Belas Artes, da célebre reforma de 196831, deve-se,

principalmente, à inconformidade e ao impulsionamento dado por pessoas como o

Professor Arquitecto Carlos Ramos32, que na sua procura de se rodear de aliados

que o ajudassem nesta tarefa, decide abordar Barata Feyo para que este o

ajudasse, sobretudo, no que à escultura dizia respeito.

Mestre Barata Feyo, não querendo de modo algum desinsculpir33 a “obra” de Carlos

Ramos, sugere sabiamente que este consulte o, na altura, bolseiro Lagoa Henriques

que se encontrava em Roma e por isso muito mais actualizado nestas matérias, e

de quem sempre notou, pelas coisas que fazia e que propunha, que era uma

pessoa diferente e também inconformada com tudo o que era demasiado

académico e tradicional. Seguindo de imediato o seu conselho, Carlos Ramos

decide ir a Roma falar com Mestre Lagoa Henriques.

Este episódio dá início a uma série de encontros, conversas e muita troca de

correspondência entre os dois, que se viriam a mostrar determinantes para o futuro

do ensino das Belas-Artes em Portugal. Logo na primeira visita de Carlos Ramos a

Roma, Mestre Lagoa Henriques “desabafa” todas as suas insatisfações do tempo de

estudante e todas as limitações que tinha encontrado na aprendizagem do desenho

e da escultura. Ainda mais se ia apercebendo disso, com o contacto que ia tendo

com a realidade de outros países.

Logo ali ficou definido, que uma das principais lacunas se prendia com o facto de

Mestre Lagoa Henriques considerar o ensino redutor, no sentido em que não havia

o uso e prática de determinados materiais, não só na escultura como na pintura. Um

aluno fazia um curso inteiro de escultura sem trabalhar a pedra. Mestre Lagoa

Henriques considerava-se neste aspecto um privilegiado porque a convivência diária

que tinha do ateliê de Barata Feyo, tinha-lhe permitido acompanhar muitas das

etapas do trabalho do seu Mestre, nomeadamente peças passadas à pedra e

fundidas a bronze, o que lhe tinha permitido tomar contacto com outras realidades 31 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 4ª Entrevista - 07/07/2004, p. 195. 32 Carlos João Chambers Ramos (1897-1969) - Arquitecto, urbanista e pedagogo, nasce no Porto em 15 de Janeiro de 1897. Foi professor de Arquitectura na Escola de Belas Artes do Porto, cuja direcção assumiu em 1952. Em 1959 ascendeu a vice-presidente da União Internacional de Arquitectos. 33 http://www.dicionariosignificado.com/Desinsculpir / http://www.myetymology.com/portuguese/desinsculpir.html

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que não as do curso e que eram muito limitadas. Foi por isso que se inscreveu,

durante a bolsa, na Scuola Del Marmo, para colmatar esse lacuna que sentia.34

Segundo Mestre Lagoa Henriques, o que havia a fazer para combater estas falhas

era criar as tecnologias. A tecnologia da pedra, a tecnologia da madeira, a

tecnologia dos metais, etc. Era esse o primeiro grande passo a dar para reformular

o ensino. E o que se passava com a escultura, passava-se também com a pintura,

era preciso reaprender o fresco, o mosaico, pela criação de disciplinas dessas

tecnologias. Para além disso, era preciso implementar algumas novas disciplinas,

como a Estética, por exemplo.

Carlos Ramos e Mestre Lagoa Henriques aproveitaram esta altura para visitar a

Academia de Belas-Artes de Roma e um sem número de museus, tendo este último

servido de cicerone na demonstração in situ de que as coisas podiam ser feitas com

outra sensibilidade. Ao longo de todo o período da bolsa, foram trocando muitas

impressões sobre a questão da reforma pelo que se encontravam amiúde.

Como já foi dito, no fim da bolsa Mestre Lagoa é convidado por Mestre Barata Feyo

a ocupar o lugar de assistente na Escola de Belas-Artes do Porto. E aqui, participa

juntamente com Carlos Ramos numa série de iniciativas inovadoras. Neste período

(1958), grandes figuras participaram em ciclos de conferências organizados naquela

escola. Professores de várias áreas, historiadores de arte, pintores, pessoas como

Eduardo Viana, Almada Negreiros... que fez uma conferência extraordinária, que

nunca esqueceu.

Curiosamente, voltaria a cruzar-se com Almada Negreiros num ciclo de conferências

da Gulbenkian chamado: Os artistas falam de arte!, em que Mestre Lagoa

Henriques apresentou “A aventura do desenho”, uma comunicação absolutamente

inovadora, com uma argumentação visual fortíssima e que fez um grande sucesso.

No final, Almada Negreiros foi-lhe dar um abraço, e disse-lhe:

34 Ver página 30.

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- Você realmente fez uma coisa deslumbrante! Emocionei-me imenso porque

suscitou todos os grandes momentos do desenho e tenho que lhe confessar uma

coisa... as únicas duas boas apresentações hoje foram a sua e a minha.35

Mas o inconformismo de Mestre Lagoa Henriques em Belas Artes, tem origem nos

seus tempos de estudante. Nesse tempo a disciplina de Desenho resumia-se às

estátuas e aos modelos. Levava-se dois anos a desenhar a escultura greco-latina e

mais nada. Sempre no mesmo tipo de papel, Ingres, tinham que se fazer os

desenhos de um modo profundamente académico, muito modelados, com muito

cuidado, com perfis muito certinhos.

Revoltado com as obrigatoriedades forçadas, decide implementar, em 1966,

aquando do seu regresso a Lisboa, agora como professor, todo um novo leque de

temas para o desenho, desde os modelos que se encontravam na gliptoteca da

escola (modelos em gesso), até uma série de produções de motivos escultóricos

que se tinham feito para a Exposição do Mundo Português de 1940.

A implementação desta “revolução” teve o seu preço e seguiu-se uma luta árdua em

Conselho Científico. Neste teve que se defender de ataques ao seu passado e aos

métodos trazidos do Porto, considerado uma escola de vanguarda e com métodos

pouco ortodoxos. A escola de Lisboa era uma escola clássica, nem pensar em

deformar os alunos daquela maneira! Teve que chamar a si toda a sua força interior

para fazer ver que aquela utilização da palavra “clássico” num sentido simplesmente

historicista e sem dar a sua dimensão estética, não podia ser vista de um modo tão

linear.

Votada a decisão, ganhou por um voto. No entanto, conseguiu a partir daí, para

além dessas referidas esculturas, introduzir nos referentes do Desenho um conjunto

muito vasto de temas, como o universo artístico, o universo natural, com as árvores,

frutos, animais, e o universo mecânico com motores, bicicletas e até uma mota.

Num outro exame final, igualmente famoso, levou os alunos para o Pátio da

Cisterna da, então, ESBAL (Escola Superior de Belas Artes de Lisboa), onde

35 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 4ª Entrevista - 07/07/2004, p.206.

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tiveram que desenhar as quatro esculturas renascentistas que aí se encontram

(Santa Madalena, São Pedro, São Paulo e Santa Clara) (Calado, 2001: 47-48) e a

tal mota que foi colocada sobre um cavalete.

Como complemento, os alunos entregavam também o seu Diário Gráfico (elemento

de avaliação que implementou) elaborado ao longo do ano lectivo e que consistia

num caderno que os alunos levavam sempre consigo no dia-a-dia, onde iam

escrevendo e desenhando sempre que a ocasião o justificasse. O Diário Gráfico

como elemento de avaliação é de sua autoria, mas é sem qualquer pudor que relata

como se inspirou nos diários das viagens de Le Corbusier, “pedindo ajuda” para tal

a António Aleixo36:

E assim, lição por lição,

Que aos poucos aprendemos

De outros a outros daremos

Que outros a outros darão!

Foi com este tipo de ideias e conceitos inovadores que marcou o seu percurso no

ensino, a sua intervenção como professor. É um conjunto de capítulos de um livro a

que se devia chamar: A arte de saber ensinar, por Mestre Lagoa Henriques.

11. Antes e Depois das chamas.

Corria com tranquilidade o ano de 1972, quando um terrível incêndio destruiu 40

anos de criação artística37. As poucas peças que salvou das chamas mostraram-lhe

um caminho que pressentia mas que nunca percorrera. Das cinzas pode-se

renascer para tudo e as próprias cinzas são já uma transfiguração da Arte. Por isso,

os desenhos chamuscados foram expostos na Sociedade Nacional de Belas Artes.

Foi o primeiro passo para um segundo fôlego na sua criação artística. Desta

36 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 9ª Entrevista - 04/08/2006, p.270. 37 Ver – Anexo III – Cinco Artistas Inactivos – p. 283.

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exposição, “Desenhos Recuperados”, transcrevem-se alguns excertos de um

excelente texto de Rocha de Sousa, do respectivo catálogo:38

Para além de um conjunto de verificações, coordenadas por certas disciplinas e

métodos de análise, a história é também um conjunto de recuperações. Esta

exposição tem uma história e é história. (...)

Grande parte da obra de Lagoa Henriques, talvez a mais significativa, talvez a mais

reveladora, esteve à beira de soçobrar por completo num fogo impiedoso que

atingiu o seu ateliê, lugar de uma vida e arsenal de uma longa reflexão sobre a vida.

O acaso também ajuda à formulação da história: estes desenhos mutilados,

parcialmente queimados, aqui se recuperam... (...). De um lado, eles são o reflexo

cintilante e sintético de uma observação infatigável da realidade exterior, dos rostos,

das formas, da presença humana: contam a poesia dos olhares, dos movimentos,

dos ritmos da vida, o próprio sentido da amizade e da intimidade. De outro lado,

porém, eles transfiguram o mundo das aparências, aproximam-se do movimento da

alma, reflectem a realidade interior: contam a memória e o sonho, falam de objectos

e paisagens impossíveis, narram a própria transformação.

Mas o impacto desta perda não se esquece facilmente, Dez anos depois, aquando

de uma exposição intitulada Lagoa Henriques – Desenhos/Objectos, o mesmo

Rocha de Sousa num texto para o catálogo no-lo revela:39

Dez anos depois das chamas, entre a memória de desenhos meio ardidos e a

presença subitamente antiga de mil objectos cuja história nos escapa, Lagoa

Henriques reagrupa breves restos de um incêndio quotidiano: embalagens perdidas

e oxidadas, as mãos de borracha ou de plástico deste mundo que trabalha ainda a

óleos pesados.

Trata-se, em boa medida, da aventura quase instintiva de quem se defronta,

porventura pela primeira vez, com a brutalidade expressionista dos lixos na pausa

38 Desenhos Recuperados. Catálogo da exposição na SNBA. Texto de Rocha de Sousa (Dezembro de 1972). 39 Lagoa Henriques – Desenho / Objectos. Catálogo da exposição na galeria Diário de Notícias. Texto de Rocha de Sousa (Abril de 1982).

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de um discurso lírico após personagens, coisas, plantas, vagas paisagens. O

desenhador “maquinal” – da escrita ondulante e dos retratos caligráficos que são

sobretudo cartas aos retratos ou à memória e à ficção das horas com eles vividas –

arrisca agora um recomeço sumário, talvez controverso porque sumário, ao juntar

latas velhas e luvas velhas, ao fazer objectos de acasos assumidos nos bastidores

das oficinas onde todas as máquinas são oleadas e onde os operários protegem os

dedos da corrosão que antecede todas as estridências.

(...)

Então o artista, ele próprio, volta ao papel para riscar as latas e as mãos amputadas

no registo de novo essencialmente plástico – passagem pelas aparências enquanto

modelo, representação em cores porosas de objectos a transferir-se para o espaço

linguístico do lirismo suspensos na superfície como nuvens de uma paisagem

impossível. O autor está atrás de tudo isso para nos sugerir que o drama das

significações originais foi deliberadamente adiado em favor de uma realidade outra

– tão só a do desenho. (...).

Este foi o epítome, não só de duas exposições, mas também de uma reorganização

de vida. O desalento de ter de recomeçar tudo de novo, a reunião de forças para

conseguir olhar para o aparentemente destruído e dar-lhe uma nova interpretação.

O renascer das cinzas no verdadeiro sentido da palavra.

Dois textos, dois catálogos, duas exposições separadas por uma década. Objectos

e desenhos recuperados - toda uma conjuntura a que Mestre Lagoa Henriques teve

que se sujeitar e com a qual teve que reaprender a viver. A fatalidade a que a sua

obra fora submetida não iria vingar perante a vontade de se levantar e de erguer

tudo de novo. Com toda a sua capacidade de luta e imaginação, tão característicos,

fez do aparente nada este bonito todo.

(...) Eu sempre fiz aquelas transfigurações, mas a emoção de ver tudo a arder e as

poucas peças que salvei dos escombros, os desenhos chamuscados, tudo isso teve

em mim um impacto espantoso e deu-me uma nova escala na transfiguração. Os

bronzes foram alterados pelo fogo, os desenhos foram queimados caprichosamente.

Salvei pouca coisa, uma sequência de búzios, uns rostos, um desenho que

representa o génio da Poesia segredando ao poeta Fernando Pessoa...

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O meu ateliê era nos pavilhões que serviram à Exposição do Mundo Português,

junto ao Tejo. Estavam lá outros artistas, o Raul Xavier, o Martins Correia e o

Joaquim Correia. O meu ateliê era virado para o Tejo. Um dia, ao fim da tarde,

apanhei o comboio no Cais do Sodré, desci na estação de Belém e rumei ao ateliê.

Quando me aproximei, fiquei sobressaltado porque vi logo o fumo e as chamas. Ao

chegar aos pavilhões vieram ao meu encontro alguns amigos, a Isabel da Nóbrega,

o José Saramago, o Professor Carlos Amado e outros. Disseram-me que o meu

ateliê estava em chamas. Fiquei ali a ver a destruição do trabalho de uma vida. Foi

tremendo! 40

12. Ver com olhos de ver! Uma viagem ao mundo da televisão.

Decorria o ano de 1978, quando um realizador de seu nome Eduardo Geada,

sentado numa das muitas cadeiras do ateliê de Mestre Lagoa, decide lançar o repto

de um programa de televisão. Nascem assim doze programas da série Ver com

olhos de ver - O risco inadiável: os grandes mestres do desenho. Da autoria de

Mestre Lagoa Henriques e realizado por Eduardo Geada. Foi uma aventura

espantosa, onde aprendeu imenso na arte de fazer programas de televisão com um

orçamento mínimo.

Mais tarde é solicitado pela Cinequipa (dos Irmãos Matos Silva), e é nesta altura

que faz o famoso Pare, escute e olhe!, que era um programa que estabelecia a

relação entre a poesia e as artes plásticas. Deste conjunto de programas iria fazer

parte ainda o Lisboa Revisitada, como homenagem ao seu grande “amigo”,

Fernando António Nogueira Pessoa: uma série de programas sobre Lisboa, a

Graça, Santo Amaro... para que as pessoas tivessem contacto com as realidades da

cidade. Para Mestre Lagoa era fundamental suscitar a utilização dos cinco sentidos,

como diria Almeida Garrett: A ti! ai, a ti só os meus sentidos, Todos num

confundidos (Garrett. 1960: 52-53). Podemos saber muito através de livros, mas

nada substitui o contacto directo com as realidades.

40 Excerto da entrevista de Artur Queiroz a Mestre Lagoa Henriques. Revista Autores, nº3, 2004, Sociedade Portuguesa de Autores. (artigo consultado no ateliê de MLH. Inacessível na presente data).

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Em 1987, e ainda como professor da Escola, faz uma terceira série de programas,

agora com o realizador e produtor Francisco Manso e com o Professor Miguel

Faria41 como consultor histórico, chamados Portugal Passado e Presente, que

seriam aqueles que o fariam viajar mais. Fez o Algarve, o Baixo Alentejo, o Alto

Alentejo, os Açores e a Madeira. Quando ia começar as Beiras, é cortada a

continuidade dos programas. Mestre Lagoa tem um desgosto enorme, porque, como

não poderia deixar de ser, por todas as suas características como ser humano, fazia

estes programas de uma forma apaixonada e sentia este corte como um verdadeiro

desgosto de amor.

Mas não desiste, aliás como era seu apanágio também, e como acreditava de alma

e coração na importância daqueles programas para a formação geral das pessoas,

aproveita uma oportunidade que o Ministério da Educação dava nesta altura para os

professores se reformarem antes dos 70 anos e persegue este sonho, com um

espírito de dádiva, fascínio e deslumbramento.

E é assim que, infelizmente, mais um rude golpe estava reservado nesta história e

os programas não se chegam a fazer. Antecipou a reforma para perseguir um sonho

que não se chegaria a realizar. No entanto, continuou a ser um deslumbrado,

precisamente com a dádiva do fluir biológico da existência (isto nas palavras do

próprio). Continuou a ser um sonhador, ainda bem que foi um sonhador, continuou a

ser um poeta, ainda bem que foi um poeta... mas sofreu muito com isso.

Sempre considerou a experiência como base do entendimento, base da construção,

base da criatividade; base da harmonia possível e do concerto do mundo. O

concerto é a harmonia, é o equilíbrio, é o entendimento de que a vida é qualquer

coisa de efémero. Como tal, devemos perseguir os nossos sonhos, embora isso nos

traga por vezes dissabores.

41 Miguel Filipe Ferreira Figueira de Faria é docente e investigador da Universidade Autónoma de Lisboa. Doutorado em História da Arte. Investiga e publica na área da História da Arte.

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13. O regresso à verdadeira paixão: o Professor escultor hoje e sempre.

Segundo Herbert Read, o objectivo geral da educação é o de encorajar o

desenvolvimento daquilo que é individual em cada ser humano, harmonizando

simultaneamente a individualidade assim induzida com a educação estética. (...)

Tendo como objectivo a preservação da intensidade natural de todas as formas de

percepção e sensação e destas com o meio ambiente. (...) Na prática é difícil

separar as experiências visuais e plásticas: ambas estão envolvidas numa

apreensão unificada do mundo exterior do espaço, e podem ser abrangidas pela

palavra desenho (...).

(...) A criança aprende a organizar a sua experiência por meio de sentimento

estético, então obviamente a educação deveria ser concebida para fortalecer e

desenvolver estes sentimentos estéticos (Read, 1982: 21-22).

Na verdade, Mestre Lagoa Henriques sempre teve estas preocupações em relação

à maneira como as pessoas olham o mundo e lidam com a imagem. A indiferença

humana perante as formas, perante as sensações que todas as coisas nos podem

fazer sentir, movem em si uma vontade de querer mudar este cenário. A melhor

forma de o fazer seria poder mostrar esta importância às gerações em formação: o

ensino sempre foi o veículo privilegiado nesta sua demanda.

É por isso que, passado o seu conturbado período televisivo onde também tentou

mostrar às pessoas tudo o que as rodeia, Mestre Lagoa Henriques decide voltar à

sua verdadeira grande paixão: o ensino. O professor escultor nunca se conseguira

afastar verdadeiramente dos palcos académicos, o seu mundo estava seco sem

aquele oceano de emoções, sem aquela fonte de prazer onde se habituou a saciar a

sua sede de viver.

Embora sendo reformado do ensino oficial, inicia esta nova fase a leccionar na

Universidade Moderna como professor convidado de Desenho do curso de

Arquitectura, onde permanece durante 2 anos lectivos. De seguida, é convidado

para integrar o curso de Arquitectura da Universidade Autónoma, onde lecciona até

2007 a disciplina de Pensamento e Comunicação.

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A sua carreira de professor universitário iria deixar de ser exercida apenas ao nível

das licenciaturas. Foi convidado para integrar o painel de professores do primeiro

Mestrado de Museologia e Museografia da Faculdade de Belas Artes da

Universidade de Lisboa (FBAUL) com a disciplina de Comunicação Visual.

Experiência essa que é a responsável primeira pela realização deste trabalho. Foi o

regresso, 57 anos depois da primeira entrada, a uma casa que o viu nascer como

aluno de Escultura no longínquo ano de 1946.

É muito difícil para homens apaixonados deixarem as suas verdadeiras paixões.

Mestre Lagoa Henriques nunca poderia deixar de ensinar, mesmo tentando ser todo

em cada coisa.

Para ser grande, sê inteiro: nada

Teu exagera ou exclui

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és

No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

Brilha, porque alta vive.

Fernando Pessoa

Citado, escrito e inscrito pelo Mestre vezes sem conta!42

42 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 1ª Entrevista - 26/04/2004, p.146.

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14. O Circulo Inadiável.

Tinha terminado no ponto anterior a versão inicial deste trabalho. Não quis a vida

que assim fosse, e por isso, na presente data surge o imperativo de acrescentar

este Circulo Inadiável como uma espécie de adenda, optando por manter a estrutura

inicial.

Tal como na sua última lição, este título espelha bem a perspectiva com que o

Mestre sempre encarou a meta que todos temos pela frente. Nunca na sua maneira

de estar se sentiu algum pudor pela morte. Costumava até gracejar, dizendo que já

estava na nona idade e que, por isso, nos estava a acenar43.

E acenou. Acenou muitas vezes durante 85 anos (1923-2009), com o sorriso que

lhe era característico e com a leveza de quem olhava de frente o destino. Só não

contava ser apanhado pela doença na recta final e não conseguiu dar o último

aceno como gostaria.

A mágoa com que agora (d)escrevo as suas acções num pretérito que foi a meu ver

perfeito, só é colmatada pela certeza de que este trabalho também fazia parte da

sua vontade e de que a homenagem à sua vida nasceu com a sua ajuda, com o seu

apoio e com a sua dedicação.

43 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 4ª Entrevista - 07/07/2004, p.187.

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De há muito,

colecciono deslumbrado

memória de perfis,

corpos serenos;

Madrugadas de esperança.

Altos, morenos

campanários,

urbanos alcantis.

Viajo pelo céu impenitente,

Repouso numa nuvem

Reclinado;

Retomo a marcha,

sempre apaixonado,

Astronauta

de sonhos infantis!

Mestre Lagoa Henriques44

44 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH.5ª Entrevista - 12/01/2005, p.218.

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2ª Parte

O COLECCIONADOR

(A partir de entrevistas, pesquisas e

hipóteses...)

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1. Antes do Museu a Colecção: coleccionar ou acumular?

Conceitos

Constituir uma definição válida do que é coleccionar e distingui-la de outras formas

de acumulação, não é tarefa fácil sobretudo porque todas as definições tendem a

ser circulares e muito à imagem de quem as produz. No entanto, várias tentativas

foram feitas ao longo do tempo e não deixa de ser curioso a comparação ou

evolução que essa mesma definição foi sofrendo. Algumas características das

colecções, mais do que propriamente as definições, emergem no decorrer das

discussões em torno das tentativas de elaboração de um saber aceite por todos, ao

longo da história (Pearce, 2005: 160).

Num mundo de objectos, pessoas diferentes guardam coisas diferentes no seu

coração e na sua mente. E por isso, os objectos atravessam a fronteira exterior da

acumulação para o interior da colecção. O coleccionismo como um dos pilares da

museologia, como teoria, tem sofrido várias definições ao longo dos tempos.

Nos anos 30 do século XX, Walter Durost afirmava que uma colecção era

basicamente determinada pela natureza do valor atribuído ao objecto ou ideia

adjacente. Se o valor predominante do objecto ou ideia, atribuído pela pessoa, for

intrínseco, isto é, pelo seu uso ou propósito, ou qualidade estética, ou outro valor

inerente ao objecto, seja por diferentes circunstâncias de costume, tradição ou

hábito então, não estamos perante uma colecção. Se esse valor conduz a outro

objecto ou objectos, como sendo um de uma série, uma parte de um todo ou um

espécime de uma classe, então estamos perante uma colecção. Esta definição

conduz a uma distinção entre objectos para uso e objectos que pertencem a

determinada sequência. Ou seja, é a ideia de série ou classe que cria a noção de

colecção. O objecto é entendido como parte de um todo e não de uma forma isolada

(Durost, 1932: 10).

Já no início dos anos 80, Joseph Alsop defendia a tese de que coleccionar é reunir

objectos pertencentes a uma categoria particular que agrade ao coleccionador. A

colecção é o conjunto de objectos que foi reunido. A tónica aqui é colocada na

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mentalidade do coleccionador. Em essência, a colecção é o que ele acredita que é,

desde que haja alguns objectos (em termos físicos) reunidos. Isto expressa muito

bem o elemento subjectivo essencial no acto de coleccionar (Alsop, 1982: 70).

No final dos anos 80, Nikolai Aristides tinha uma visão muito mais elaborada e

agressiva. Segundo ele, coleccionar é uma obsessão organizada. Uma das

diferenças entre coleccionar e possuir é que coleccionar é um tipo de posse que

implica alguma ordem, algum sistema, talvez até um complemento (Aristides, 1988:

330).

Para Aristides, o interesse de um coleccionador “puro” não está limitado pelo valor

intrínseco do objecto do seu desejo; qualquer que seja o seu custo ele quer tê-lo.

Isto leva ao reconhecimento subjectivo do uso da palavra “obsessão” e sugere que

a diferença crucial entre “possuir” e “coleccionar” é a ordem (ordem no sentido de

sequência, disposição, método, categoria, etc.) e a possibilidade de

complementação que a colecção possui. Mas, no entanto, esta ideia levanta ainda

algumas objecções (Aristides, 1988: 334).

Por exemplo, se tomarmos em consideração um conjunto de ferramentas de

trabalho, estas têm sequência, têm categoria, podem ser complementadas, mas não

ocupam na imaginação o lugar que uma colecção normalmente ocupa. Começa a

surgir a questão sentimental em torno dos objectos.

No início dos anos 90, Russell Belk considerava que coleccionar é a aquisição

selectiva, activa e longitudinal, a posse e disposição de um conjunto de objectos

diferenciados e inter-relacionados (coisas materiais, ideias, existências ou

experiências) que contribuem para o entendimento da entidade (colecção) a que

pertencem. Esta definição retoma a ideia de conjunto inter-relacionado, as séries ou

classes de Durost, e acrescenta-lhe a noção de que a colecção, como uma

entidade, é maior que a soma das partes. Isto dá origem ao coleccionador activo,

seleccionador, com o seu ponto de vista pessoal e subjectivo e reconhece que

coleccionar é uma actividade prolongada que se estende mais no tempo (Belk et al.,

1990: 8).

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É de referir que a ideia de “coleccionador activo” tem aqui uma nuance. É que o

estudo sobre coleccionadores torna claro que as colecções podem “arrastar-se” pelo

subconsciente da pessoa até ao momento em que se apercebe disso. Por exemplo,

se tivermos várias camisolas de uma mesma marca esquecidas dentro do armário

até ao dia em que nos apercebemos que temos várias e que decidimos começar a

investir em camisolas daquele modelo, daquela marca, a partir daqui podemos

considerar esse conjunto de camisolas uma colecção. Resumindo, uma colecção

não o é até alguém pensar nela nesses termos (Belk et al., 1990: 10).

Francisco Capelo, afirmava que a condição de qualquer coleccionador e com ele de

qualquer colecção reside na existência de coisas, de objectos relativamente aos

quais o coleccionador investe o seu desejo (Capelo, 1999: 15).

Segundo ele, um coleccionador não só vive num mundo de coisas, como estabelece

com as coisas que o rodeiam um relacionamento que parece ser de natureza

exterior às próprias coisas. Essa relação é intrínseca ao próprio coleccionador e só

se pode analisar segundo a sua história pessoal. Nem todas as coisas podem ser

organizadas e ter um significado como colecção para todas as pessoas. O que tem

um carácter especial e coleccionável para um, não tem que ter necessariamente

para outro. Até ao longo da vida de uma pessoa esse mesmo carácter vai mudando.

As coisas eleitas com carácter de objecto de colecção implicam um sentimento de

posse que as retira do mundo das coisas e as coloca no mundo particular desse

coleccionador. É a este mundo particular e privado que podemos designar por

colecção (Capelo, 1999: 16).

O acto individual de coleccionar pressupõe uma paixão exclusiva, ou não, sem a

qual não seria possível existir entre os homens uma memória tão vital à vida social.

A memória social permite que as comunidades resistam ao tempo com as

referências do que foi sendo adquirido, criando uma coerência basilar à fundação

dessas mesmas comunidades.

As teorias sobre coleccionismo não se podem dissociar da sua carga subjectiva,

pois aquilo que é para uns pode não ser assim para outros. É preciso não esquecer

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que estamos no campo das ciências humanas e não das ciências exactas. Não tem

que se chegar a um qualquer resultado de uma qualquer equação que tem sempre

que ser o mesmo em qualquer parte do mundo, seja feito por quem for.

Recuando ligeiramente no tempo, Madalena Braz Teixeira, cujas observações sobre

coleccionismo são pertinentes e objectivas, referia que a colecção é, em primeira

análise, o resultado da capacidade técnica da repetição, da multiplicação e da

seriação. Podem, no entanto, coleccionar-se objectos da mesma família ou de

famílias diferentes. Quanto ao objecto, a colecção pode, portanto, ser múltipla, vária

ou especializada (Teixeira, 1984: 45).

Segundo a autora, uma colecção pressupõe uma adesão em termos afectivos aos

objectos que a constituem e uma identificação com a tipologia dos mesmos. Além

desta questão afectiva, existe nesta relação como que um apropriar simbólico do

imaginário, passando o coleccionador a fazer parte do mundo dos objectos da sua

colecção ou do que neles ou por eles é representado. Assim, a postura do

coleccionador é influenciada pela emoção, pelo gosto, pela intenção e pelo

significado cultural e social que está associado à própria colecção.

Ainda segundo Madalena Braz Teixeira, a colecção é, em princípio, um fenómeno

privado que, frequentemente, quando a colecção é importante, se tornará público,

por herança ou legado, a fim de perpetuar para além da morte a relação do

possuidor com os seus objectos (Teixeira, 1984: 46). É aqui que entram os museus,

e sobretudo as casas-museu, como instituições públicas, para perpetuar as

colecções e as memórias, e expor os conjuntos de objectos.

Muita tinta se tem gasto na tentativa de perceber a diferença entre coleccionar e

acumular. A linha entre uma coisa e outra é muito fina e pode ser atravessada por

diversos grupos de materiais, dependendo do ponto de vista do seu dono, em

diferentes alturas da sua vida. Os motivos (a motivação) também são muito

importantes e os motivos mudam.

Pode-se concluir que ideias como recolha não utilitária, uma relação interna ou

intrínseca entre as coisas recolhidas – objectivamente classificadas ou não – e o

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ponto de vista subjectivo do dono, são tudo atributos significativos de uma colecção,

juntamente com a noção de que a colecção é mais que a soma das partes. Algures

neste processo, os objectos têm que ser deliberadamente vistos pelos seus donos,

ou potenciais donos, como uma colecção; isto implica selecção intencional,

aquisição e classificação. Significa, ainda, que algum tipo de valor específico é

atribuído ao grupo pelo seu possuidor, e com o reconhecimento do valor vem a

dádiva de uma parte de identidade própria.

No entanto, coleccionar é uma actividade demasiado complexa e humana para ser

analisada sumariamente por meio de definições ainda instáveis e muito pessoais.

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2. O coleccionismo de Mestre Lagoa Henriques: uma

perspectiva única.

2.1 – A raiz metafísica do coleccionador. Os deslumbramentos

coleccionistas do Mestre.

Os grandes medos do homem são a solidão e a morte45. Esta era a visão filosófica

de Mestre Lagoa Henriques sobre a condição humana. Mas talvez não seja só da

condição humana. Segundo ele, os seres vivos têm necessidade de se

acompanharem uns aos outros, de serem gregários.

Como a morte não é uma questão que se possa propriamente controlar ou decidir, é

na solidão que tentamos manipular os nossos medos. Por isso mesmo, a colecção

aparece como uma companhia. O homem tem uma necessidade intrínseca de se

rodear de objectos, pelos mais variados motivos, de se sentir “acompanhado”. A

colecção acompanha realmente as pessoas, é uma unidade, uma diversidade na

unidade.46

Ainda segundo a teoria coleccionista de Mestre Lagoa Henriques, há dois tipos de

coleccionadores, os que coleccionam por número, por quantidade e por valor (como,

por exemplo, aqueles milionários que juntam grandes colecções de objectos só pelo

seu valor financeiro) e os que coleccionam por amor e por paixão, dentro de um

comportamento que se pode considerar estético: podemos fazer combinações

desorganizadas de objectos sem qualquer tipo de ordem ou lógica, mas por

questões estéticas e de vontade. Entramos no mundo das afinidades electivas, cita

Mestre Lagoa Henriques reinterpretando Goethe.47 Objectos que jogam uns com os

outros numa harmonia musical, como se cada nota estivesse no sítio certo, como se

tocassem uma melodia afinada. Mestre Lagoa Henriques referia ainda: é um jogo

45 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 5ª Entrevista - 12/01/2005, p.208. 46 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH.5ª Entrevista - 12/01/2005, p.213. 47 As Afinidades Electivas, obra-prima de Johann Wolfgang Von Goethe escrita em 1809, aborda questões fundamentais da ética e da estética do Iluminismo, vistas em relação às Ciências Naturais, às Artes Plásticas e à Filosofia.

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visual e plástico, que nos leva também a juntar vários objectos do mesmo “tipo”, que

desempenham a mesma função, mas que se desmultiplicam em formas

diferenciadas.48

Uma colecção de Túlipas de vidro para candeeiros (bobeches) que Mestre Lagoa

Henriques possuía, é disso exemplo. Apaixonado por estas formas adquiriu os

primeiros exemplares na Feira da Ladra, apenas por uma questão estética, de

gosto. Mas à medida que comprava mais e mais, começou a comprar também por

uma questão do entendimento do objecto em si, daquilo a que se chama o Design

de Equipamento. Começou a utilizá-las como modelo nas suas aulas de desenho.

Após deixar o ensino, as cerca de uma centena que constituíam a colecção,

retomaram a sua função inicial de puro prazer estético, estando reservadas ao

deslumbramento do seu proprietário, dotado de um espírito muito forte de

coleccionismo e da necessidade de se sentir acompanhado pelos seus objectos.

De há muito colecciono deslumbrado49, dizia Mestre Lagoa Henriques num seu

poema, revelando uma faceta do seu espírito de colecção. Uma colecção que tem

muito a ver com as formas artísticas e as formas naturais na sua dimensão estética

e poética. Aquela simbiose, como diz Le Corbusier50, do mundo de objectos de

reacção poética, em que ele estabelece e define uma permanente leitura dos

contrastes e das formas. Aqui, Mestre Lagoa Henriques citava num dos seus

programas de televisão, Le Corbusier:51

Eu acredito que na vida actual, a escolha dos nossos companheiros, refiro-me aos

objectos de que gostamos de nos rodear na nossa vida quotidiana, terá de ser

outra. Olhamo-nos permanentemente, mantendo com eles um constante diálogo.

Tais companheiros, podem e devem ser objectos poéticos!

48 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 5ª Entrevista - 12/01/2005, p.213. 49 Ver página 48. 50 Charles-Edouard Jeanneret-Gris, mais conhecido pelo pseudónimo de Le Corbusier, (1887-1965) foi um arquiteto, urbanista e pintor francês de origem suíça. É considerado juntamente com Frank Lloyd Wright, Alvar Aalto, Mies van der Rohe e Oscar Niemeyer, um dos mais importantes arquitectos do século XX. A sua figura era marcada pelos seus óculos redondos de aros escuros. Morreu por afogamento em 27 de Agosto de 1965. 51 GEADA, Eduardo - Ver com Olhos de Ver. O Risco Inadiável - Le Corbusier [Registo vídeo]. Lisboa: RTP, 1979. 1 cassete vídeo (VHS) (25minutos): pb.

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Teremos prazer em coleccionar formas que normalizem e enriqueçam o nosso

sentir, que conduzam a uma definição de valores que sejam um caminho de

fraternidade. Um seixo rolado pelo mar, um pedaço de tijolo arredondado pelas

águas de um ribeiro, pequenos ossos, fósseis, raízes, algas, búzios, conchas lisas

como porcelanas, trabalhadas como pequenas esculturas gregas ou hindus,

partidas revelando-nos a sua fascinante estrutura helicoidal, sementes, silex,

cristais, pedaços de madeira... um mundo infinito de formas, falando a linguagem

mágica da natureza que podereis acariciar enternecidamente nas vossas mãos,

perscrutar indefinidamente com os vossos olhos, companheiras fiéis e evocadoras.

Através delas poderemos manter uma amizade tranquila com a natureza.

Eu gostaria de vos ver desenhar, registar esses acontecimentos plásticos, esses

testemunhos da vida orgânica, essas manifestações tão eloquentes nos seus

volumes aqui reduzidas a regras e leis da natureza e do cosmos.52

Desde muito novo que Mestre Lagoa Henriques se identifica com esta visão que Le

Corbusier tinha dos objectos e das formas e sente um apelo em “trazer” a natureza

consigo. Já quando passeava com a sua mãe pelos jardins da cidade apanhava

sempre folhas. Ainda hoje as podemos encontrar no meio dos seus livros, dos seus

cadernos, dos seus espaços. Porque, para ele, as folhas eram todas iguais e todas

diferentes. Se da mesma árvore forem apanhadas seis folhas diferentes, elas

pertencem à mesma espécie, elas são iguais na sua estrutura, mas o recorte é

diferenciado, elas têm a “sua personalidade”. É precisamente a conquista desta

diferença que vai dar a expressividade que vai permitir que se possa viver.

Esta permanente motivação por apanhar pedras, conchas, folhas, revelava que o

seu espírito de colecção era também um acto de amor. Em simultâneo, o interesse

por formas diferentes e o amor. Aqui, o amor caracteriza-se precisamente, pela

apropriação, pela posse. Por outro lado, estava sempre muito presente a já falada

questão de vencer o medo da solidão.

52 GEADA, Eduardo - Ver com Olhos de Ver. O Risco Inadiável - Le Corbusier [Registo vídeo]. Lisboa: RTP, 1979. 1 cassete vídeo (VHS) (25minutos): pb.

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No entanto, as suas colecções não nasciam motivadas por uma procura. Nasciam

por encontros. Porque Mestre Lagoa Henriques, citando Picasso, não procurava,

encontrava53. Ia e via as coisas que apanhava, as coisas que os outros não viam,

não ligavam. Era o seu olhar diferente sobre o mundo que nos rodeia que o levava à

Praia dos Prodígios (fundamental como “fornecedora” das suas colecções)54. Uma

praiazinha fluvial perto da Torre de Belém onde o Atlântico e o Tejo depositavam

essas formas que depois ia encontrar.

Depois... há ainda o coleccionar de memórias. Os desenhos que fazia nos seus

cadernos, nos seus diários gráficos. São pessoas e coisas que via acidentalmente,

num restaurante, num cinema, num café, no metro, etc. Era outro tipo de colecção

em que havia apropriação do real. Do real/concreto, a que muitas vezes se

acrescentava um real/imaginário, porque muitas das vezes olhava, mas não fazia

exactamente o que via... transfigurava. Sempre teve esse entendimento das artes,

porque a arte serve para mostrar o valor que a vida tem antes de ser transformada

em arte, ensina-nos a ver, ao nível do desenho, da escultura, da escrita. A arte, para

além da representação é transfiguração, é transmutação do real. É a passagem do

real/concreto para o real/imaginário. Toda esta linguagem e esta terminologia são

muito personalizadas, são fruto de um acumular de vivências, e como ele gostava

de dizer: Li na vida! Na minha experiência de homem, de professor e de aprendiz de

artista, li nos segredos daquilo que fui fazendo!55

Tudo o que dizemos, tudo o que fazemos, tudo o que coleccionamos, é

consequência da nossa experiência individual, mas é também consequência da

nossa relação com o plural que nos acompanha. Mestre Lagoa Henriques

desenvolveu uma teoria comportamental que explicava de certo modo o seu espírito

de colecção. Porque não se coleccionam só objectos, coleccionam-se sentimentos,

coleccionam-se ideias. É isto que faz com que apareçam as ditas artes. Porque as

artes não são mais que a tentativa permanente de agarrar o tempo que foge.

Relembrando, uma vez mais, Mestre Almada Negreiros: o desenho é o nosso

53 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 5ª Entrevista - 12/01/2005, p.228. 54 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH.7ª Entrevista - 26/04/2005, p.252. 55 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 5ª Entrevista - 12/01/2005, p.229.

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entendimento a fixar um instante!56 E é essa colecção de instantes que Mestre

Lagoa Henriques procurava repetir, essa colecção de instantes que constitui o

nosso tesouro maior. Esses instantes são traduzidos por objectos concretos, que

constituem o sentido do património, da realidade físico-química e que se manifestam

também pelos tais sentimentos e pelas tais ideias. É por isso, que quando escrevia

nos seus blocos ao fim do dia (o que acontecia por norma todos os dias) aprisionava

para a eternidade coisas que o tocaram de uma forma especial e que ele “agarrava”

através daquele registo de palavras. Houve também outros momentos em que

chegava a uma página de papel e não escrevia por letras, mas sim por formas.

Eram os desenhos. Desenhos que podiam ser de ideias ou de sentimentos, mas

que podiam ser também de realidades57.

Um simples encontro de pessoas, é sempre um acontecimento singular. As pessoas

conhecem-se e não se conhecem, e a diferença das experiências é que faz, por

assim dizer, a qualidade das próprias experiências.

Quando se faz uma colecção está a fazer-se uma colecção de significados.58

Significados que estão relacionados com os significantes e com os próprios

referentes. O signo pode, de uma forma generalista e facilitada, ser definido pela

relação do significado (conceito) com o significante (forma) (Eco 1973: 150). A

“coisa” significada, isto é, o objecto ou situação real que o signo identifica, designa-

se por referente. Temos tendência a tomar signo por significante. Todavia, o signo é

composto por um significante e por um significado. O plano dos significantes

constitui o plano de expressão e o dos significados o plano de conteúdo. (Pedro,

1995: 73).

Isto leva a considerações gerais que são importantes, neste quotidiano que todos

nós construímos. Estas considerações filosóficas, sobre a condição humana

explicam muito as colecções e voltam ao início da teoria coleccionista de Mestre

Lagoa Henriques: o problema máximo do homem, e que justifica a colecção, é

vencer as suas duas grandes preocupações de existir: a da solidão e a da morte.

56 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 6ª Entrevista - 05/04/2006, p.234. 57 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 6ª Entrevista - 05/04/2006, p.235. Ver – Anexo I – Fotografias Pessoais MLH – Fotos 11 e 12, p. 131. 58 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 6ª Entrevista - 05/04/2006, p.235.

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Isso vence-se através de toda uma inteligência, duma sensibilidade ao nível dos

comportamentos e ao nível da construção das nossas gerações.

Coleccionar também como uma forma de “aprisionar”, sentimentos, ideias,

recordações, registos gráficos e fotográficos. Coleccionar fotografia. O acto de

fotografar, de registar fotograficamente um objecto como um acto de desenhar. Fica

o registo gráfico, fotográfico desse objecto. Nós aprisionamo-lo, prendemo-lo a um

suporte fixo, para que não nos fuja59. Porque na vida tudo está permanentemente a

fugir. São os objectos recuperados... cá está uma arqueologia que tem que ver com

as colecções. Porque é que nós fazemos fotografia? Nós fazemos fotografia para

coleccionar a vida.60

E a escrita? Sempre existiu em Mestre Lagoa Henriques um diário poético. No

entanto, nem sempre fez dessa actividade um fundamento diário. Mas, com o

crescer do tempo, esta árvore de idade que sou eu, agora escreve todos os dias!61

Não passava uma noite, sem que Mestre Lagoa Henriques deixasse de registar nos

seus blocos memórias de palavras, sobretudo poemas. Acontecimentos do dia, da

vida, do amanhã. Todas estas coisas que eu escrevo são colecções de memórias e

de acontecimentos!62 Coleccionava assim, toda uma vida de imagens escritas que

ficaram também “aprisionadas” para quem as quiser ler mais tarde. Verba Volant,

Scripta Manent!63

Mais uma vez a imagem e a palavra de mão dadas. Os “objectos de reacção

poética” e a poesia de reacção objectiva. Juntas neste caminho da vida, neste

caminho de memórias, neste caminho de vitórias e derrotas, neste caminho de

colecções.

59 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 5ª Entrevista - 12/01/2005, p.214. 60 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 9ª Entrevista – 04/08/2006, p.258. 61 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 8ª Entrevista - 16/07/2006, p.257. 62 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 8ª Entrevista - 16/07/2006, p.257. 63 lat - As palavras voam, os escritos permanecem! (http://www.min-financas.pt/ptempo/ptempo1/7.pdf)

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2.2 O coleccionismo como pilar teórico da museologia.

A museologia é a ciência que trata da organização do museu como edifício, da sua

ambiência e da sua distribuição interna. Através da museologia definiram-se e

classificaram-se igualmente os problemas administrativos do museu (Oliveira, 1986:

XIII, 222). Museologia é a ciência do museu. Estuda a história e a razão de ser dos

museus, o seu papel na sociedade, os sistemas específicos da investigação, da

conservação e da organização, as relações entre o meio físico e a classificação dos

diferentes tipos de museus. A Museologia é a ciência teórica, normativa e

planificadora, que se move na análise dos fenómenos museísticos. É através da

museologia que se estudam, organizam e interpretam as colecções (Nabais, 2003:

4).

No entanto, não parece haver dúvida, pese embora as diferentes teorias e os

diferentes pensadores que a isso dedicaram o seu tempo, que a colecção está na

base de qualquer museu, isto é, antes de haver museu há colecção (Gil, 1993: 79).

Curiosamente, a museologia é a ciência que estuda o coleccionismo como

fundamento teórico da instituição-museu, cuja existência nas mais diversas

vertentes (tudo se pode coleccionar) acaba por estar na origem da própria ciência.

A vocação64 de um Museu é a abrangência de disciplinas que resulta da natureza do

seu património, colecções e de acções museais a serem desenvolvidas por cada

museu, de modo a tornar única e especifica a actividade destes organismos,

atendendo à tipologia do lugar e ao seu contexto social e cultural. É uma espécie de

“bilhete de identidade” do Museu, porque vai definir a sua especificidade em função

das suas colecções. A vocação do Museu é ainda definida pela dependência

institucional e pela abrangência territorial, mas é em primeira instância em função do

seu campo temático, definido pelas suas colecções.

Reforça-se, assim, a certeza de que para haver um Museu tem que haver uma

colecção. Seja ela de objectos ou de memórias ou mesmo de ideias. A questão

64 Conceito fornecido pela Professora Madalena Braz Teixeira, na cadeira de Gestão de Museus, no âmbito do Mestrado em Museologia e Museografia da FBAUL.

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fundamental é que existe um conjunto que se pretende perpetuar, seja material ou

não.

Se o coleccionismo, como já foi dito, parte de uma necessidade intrínseca do

homem de se sentir acompanhado, de se sentir protegido, e se uma colecção

musealizada perpetua algo ou alguém, pode-se concluir que um dos fundamentos

filosóficos para a existência de museus é que o homem precisa de deixar em legado

aquilo que é, que foi e que será. Não invalida de maneira nenhuma, todos os outros

fundamentos que estão na génese dos museus, que podem ser de ordem bem mais

prática e plausível, e até de uma compreensão muito mais imediata e objectiva. No

entanto, o homem tem por vezes necessidades e medos que tem que combater,

nem sempre de uma forma racional, criando mecanismos para um conforto que não

se explica nem se corporiza, mas que se sente. Um dos veículos que escolheu para

tal foram as colecções, o local de eleição que escolheu foram os museus.

Na verdade, somos todos coleccionadores. Se não de objectos, pelos menos de

memórias, de ideias ou de sabores. Uma vida de escolhas em função de gostos,

pode originar uma série imensa de colecções imateriais. A única diferença relativa

às colecções de objectos, é que estas são mais difíceis de perpetuar, de deixar em

legado. Mas no fundo, quase todas as pessoas juntam colecções ao longo da vida.

As fotografias, por exemplo, são colecções de memórias, são colecções de

existências. Será o coleccionismo, muito mais que um fundamento teórico da

museologia, um fundamento teórico da vida?

Se existirem teorias para viver, talvez se possa dizer em tom de livre interpretação

que parecia ser esse um dos fundamentos de vida de Mestre Lagoa Henriques.

Viver é um acto de coragem que nunca deve ser esquecido e as colecções podem

representar na nossa vida essa lembrança. Mestre Lagoa Henriques nunca se

esqueceu de coleccionar a vida ao longo da sua vida.

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3. Da Colecção ao Museu – Apontamentos sobre a história da Museologia.

3.1. Do mouseion ao Renascimento

A palavra museu vem do latim museum, que por sua vez vem do grego mouseion

(Machado, 1977: 186), que originalmente significa o templo dedicado às nove

Musas, filhas de Zeus e de Mnemósine (a mãe memória), donas da memória

absoluta, da imaginação criativa, das danças, das músicas e das narrativas.

Ajudavam os homens a esquecer a ansiedade e a tristeza. Presidiam às ciências e

às artes e guardavam os tesouros da cultura.

O mouseion era uma mistura de templo e instituição de pesquisa, voltado,

sobretudo, para o saber filosófico. Era um local privilegiado, onde a mente

repousava e onde o pensamento profundo e criativo, liberto dos problemas e

aflições quotidianos, se poderia dedicar às artes e às ciências. As obras de arte

expostas no mouseion existiam mais em função de agradar as divindades do que de

serem contempladas pelo homem.

Os templos da Grécia eram preenchidos por estátuas, vasos, pinturas e ornamentos

de bronze, ouro e prata, dedicado aos deuses. O Partenon, célebre templo da

ordem dórica e o maior da Acrópole de Atenas, tinha uma pinacoteca (onde se

guardavam as pinturas de Atena - a deusa grega da sabedoria) e na parte posterior,

tinha o opistódomo (casa do tesouro, onde se guardavam as oferendas) (Pijoan,

1988: 2, 101-104). Existia aqui, também, uma característica museológica: o guardar

de objectos, o coleccionar.

Com a dinastia dos Ptolomeus, no século III a.C., a cidade de Alexandria formou o

seu grande mouseion, que era um templo consagrado às Musas, onde as pessoas

se exercitavam na poesia, na música e onde se dedicavam aos estudos

(Guimarães, 1991 Apud Ribeiro 2005: 16) e cuja principal preocupação era o saber

enciclopédico. Procurava-se discutir e ensinar todo o saber existente nos campos da

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religião, mitologia, astronomia, filosofia, medicina, zoologia, geografia, etc. Era um

complexo que apoiava a comunidade local e as escolas.

Roma vai alterar ligeiramente este panorama. Com a conquista da Grécia e

consequente absorção cultural, passam a poder ver-se em Roma nos jardins,

termas, teatros e vilas de generais os trabalhos de arte - autênticos troféus de

guerra, fruto dos saques - em exibição para apreciadores particulares. Não sendo

propriamente exibições públicas, conferiram às colecções um carácter profano. O

Imperador Adriano foi ainda mais longe e ordenou a construção de uma villa (Villa

Adriana em Tivoli) para colocar as suas colecções, sendo considerado a partir

desse facto como um dos precursores dos museus abertos (Pijoan, 1988: 2, 274).

No processo de desenvolvimento da museologia, o objecto e as informações dos

acervos sempre foram restritos às próprias classes que os criaram. A igreja e a

nobreza, a partir da Idade Média, passaram a coleccionar e a conservar objectos do

património histórico próximo, principalmente dos castelos e das igrejas. A arte

clássica deixa de ser “interessante” nesta fase. As catedrais e os mosteiros da

Europa tornaram-se repositórios de jóias, esculturas, manuscritos e relíquias dos

santos. No início do século XII, os despojos das cruzadas foram adicionados a

esses repositórios. Ocasionalmente, as jóias e o ouro também serviam como uma

reserva para ser penhorada em tempo de guerra (Oliveira, 1986: XIII, 224).

Associadas às igrejas existiam, normalmente, livrarias que se dedicavam à cópia de

manuscritos, o que veio a garantir a preservação de uma memória escrita. Estes

livros também continham imagens, que permitiram uma maior difusão das obras de

arte. Numa sociedade totalmente ruralizada, os bens preciosos estavam todos na

igreja porque as pessoas “compravam” a sua salvação através do que ofereciam à

igreja - bens preciosos e arte. As grandes colecções passam a pertencer quase

todas à Igreja. Como aconteceu com a reforma da Abadia de S. Denis, levada a

cabo pelo abade Suger: não haveria pecado de omissão mais grave, julgava ele, do

que privar o serviço de Deus e de seus santos daquilo que Ele habilitara a natureza

a dar e o homem a aperfeiçoar: vasos de ouro e pedras preciosas, adornados de

pérolas e gemas, candelabros de ouro e painéis de altar, esculturas e vidros

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coloridos, trabalhos de mosaico e esmalte, vestimentas e tapeçarias

resplandecentes (Panofsky, 1979: 164).

Paralelamente, começa a haver uma condenação deste excesso de riqueza da

igreja, nomeadamente da parte de São Bernardo e da Ordem de Cister. Por outro

lado, surgem as novas cidades e uma nova classe: a burguesia. Esta afirma-se

como novo poder e vai contribuir para uma maior centralização do poder real, ao

mesmo tempo que aparecem as universidades (das antigas escolas das catedrais).

Nascem as ordens mendicantes. Os Franciscanos muito ligados à natureza e os

Dominicanos mais ligados ao estudo, vão trazer uma nova “visão” à igreja,

procurando regressar à pobreza evangélica: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo

o que possuíres, dá o dinheiro aos pobres, e terás um tesouro nos céus; depois,

vem e segue-Me. (Mateus 19,21).

As maiores cidades vão erguer grandes catedrais que personificam a arte visual. O

tempo dos frescos e dos mosaicos transforma-se num livro aberto. Com o

aparecimento das grandes janelas de vitrais (muitas vezes pagas pelos burgueses)

e do retábulo, que vai ganhando grandes dimensões, a própria arquitectura é

alterada. Surgem as confrarias, que permitiam que as famílias nobres fossem

enterradas dentro da igreja, em capelas próprias, e inicia-se um novo período de

oferta para as igrejas, que se voltam a encher de bens artísticos.

Com o Renascimento, sobretudo a partir do século XV, o panorama é alterado

qualitativamente. Entramos numa concepção laica da história, isto é, fora do

controle eclesiástico. O Renascimento foi uma revolução cultural, porque recuperou

o legado que estava para trás e trouxe de novo um “regresso” à Antiguidade

Clássica. Procurava-se obsessivamente o original, a fonte. Surge a imprensa que

também vai contribuir para diversificar o monopólio da comunicação da Igreja,

acabando com o seu predomínio cultural. As famílias mais ricas, e os príncipes,

tornam-se coleccionistas. Foi o caso de Lourenço de Médici (1449-1492), cujo amor

pelos objectos que coleccionava fazia dele um verdadeiro “connoisseur” (Andres,

1988: II, 718).

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O coleccionismo que se vê nesta altura era, não só constituído pelos objectos da

antiguidade, mas também pelos objectos dos Novos Mundos trazidos pelos

descobrimentos. Desde artefactos humanos até aos produtos naturais e animais,

considerados raridades. Mistura-se o gosto pelo antigo com o exotismo através do

marfim, das pedras-duras, das porcelanas, das sedas orientais, dos tapetes persas,

etc.

No século XVI, começaram a apresentar-se esculturas e pinturas em grandes salas

ou galerias dos palácios e residências de pessoas abastadas, o que incentivou

ainda mais o termo galeria para os trabalhos de arte serem vistos. Mudou também a

postura, tornando-se mais documental e institucional, embora ainda restringindo os

objectos e as suas informações a algumas classes. Era de uns para alguns. Surgem

os gabinetes de curiosidades (gabinetes de humanistas) que tinham um pouco de

tudo, desde a arte aos objectos naturais, passando pelos instrumentos científicos

(Padrón, 1992: 15).

3.2. Dos Gabinetes de Curiosidades ao actual museu.

Os Gabinetes de Curiosidades, ou os Quartos das Maravilhas, designavam os

lugares em que durante a época das grandes explorações e descobrimentos dos

séculos XVI e XVII se coleccionava uma multiplicidade de objectos raros ou

estranhos. Objectos tão variados como dos três ramos da biologia, considerados na

época (animalia, vegetalia e mineralia) ou objectos de realização humana (artística

ou científica) (Padrón, 1992: 16).

Em geral, estes gabinetes eram quase uma exposição (no actual conceito) de

curiosidades e achados procedentes de novas explorações ou instrumentos

tecnicamente avançados, como foi o caso da colecção do Czar Pedro, o Grande, da

Rússia (1672-1725). Noutros casos juntavam quadros e objectos preciosos, sendo

este o caso do Arquiduque Leopoldo Guilherme da Áustria (1614-1662), podendo

ser considerados como os precursores dos actuais museus de arte. O Arquiduque

Leopoldo Guilherme criou uma das primeiras galerias de pintura (Padrón, 1992: 30).

As galerias começam a especializar-se por temas: pintura, escultura, maravilhas,

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etc. Aqui a ideia de Quarto das Maravilhas (wunderkammer), das câmaras

maravilhosas ou artísticas é notória. Começa a fase de especialização das

colecções, embora, no caso da pintura, por exemplo, as colecções fossem

organizadas pelos tamanhos dos quadros, não havendo um critério taxionómico (por

escolas, pintores e datas), como ainda hoje se pode ver no Palácio Pitti em

Florença. Este palácio, à margem de qualquer experiência museológica e didáctica,

continua a manter presentemente quase intacto o carácter de pinacoteca

principesca (Micheletti, 1988: 10, 175).

Um dos mais emblemáticos exemplos foi o do Imperador Rodolfo II de Praga (1552-

1612), meio astrólogo e meio alquimista, protector e fomentador das artes (Pijoan,

1981: 6, 282), que adorava, entre outras coisas, coleccionar quadros. Segundo

consta, seria frequente sentar-se e ficar a olhar deslumbrado para um novo trabalho

horas a fio. Não se preocupava com despesas quando se tratava de adquirir obras

de arte de grandes mestres, como Dürer ou Brueghel. Também era patrono de

alguns dos melhores artistas contemporâneos, como Giuseppe Arcimboldo65, que

produziam, sobretudo, novas obras ao estilo do Maneirismo internacional tardio.

Mandou vir pintores de renome para a sua corte de Praga: em 1581, Bartholomeus

Spanger de Antuérpia; em 1591, Josef Heintz de Basileia; em 1592, Hans von

Aachen de Colónia. Os três formam uma equipa muito unida, representativa de um

Maneirismo simultaneamente elegante e rebuscado. Este grupo era caracterizado

por uma técnica preciosa que esconde o trabalho do pincel em benefício de uma

superfície uniforme, e acentuados contrastes de sombras, carregados nos fundos, e

de claridade, nos primeiros planos (Châtelet, 1985: 379). As colecções de Rodolfo II

eram das mais impressionantes da Europa dos seus dias e em termos de arte

maneirista, a sua foi a maior colecção alguma vez reunida.

A sua paixão pelo coleccionar foi muito para além da pintura e da escultura:

objectos decorativos de todos os tipos e aparelhos mecânicos; espadas de

cerimónia e instrumentos musicais; relógios, astrolábios, compassos, telescópios e

outros instrumentos científicos, foram produzidos especialmente para ele por alguns

dos melhores artesãos da Europa. Este soberano gostava também das singulares e

65 http://www.giuseppe-arcimboldo.org/biography.html

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sumptuosas peças de ourivesaria que o Maneirismo pôs muito em voga e que

aliavam elementos naturalistas a formas graciosamente idealizadas. Rodolfo II tinha

um dos maiores gabinetes de curiosidades da Europa, sediado no castelo de Praga

onde mandou edificar uma ala do lado norte, só para as suas colecções. Era um

gabinete bastante atípico comparativamente a outros, porque as colecções não

estavam ao acaso. A Rudolfine Kunstkrammer66 (como parece ter sido conhecida)

estava meticulosamente organizada de um modo enciclopédico. Além disso,

Rodolfo II nomeou o médico da corte, um poliglota e ávido coleccionador de

minerais, Anselmus Boetius de Boodt, como curador da sua colecção. A noção de

organização museal já se começava a notar por antecipação. Como era costume na

altura, a colecção era privada mas os amigos do Imperador, os artistas e os

professores podiam visitá-la e estudá-la (Châtelet, 1985: 380).

Também os artistas coleccionadores reuniam as suas colecções em gabinetes de

curiosidades. Às anteriores motivações de coleccionar acresce a vertente artística, a

fonte de inspiração e a utilidade criativa. Um dos mais claros exemplos foi o de

Rembrandt Harmenszoon van Rijn. Segundo Fieke Tissink, Rembrandt não era

“apenas” um artista, ele era um erudito, que não descurava o status social. Também

por isso, era um ávido coleccionador de objectos raros de todo o mundo, não só

pelo interesse e beleza que pudessem ter mas também porque os podia usar como

adereços no seu trabalho. Tal como ele, os seus alunos davam bom uso às

soberbas colecções de “curiosidades”, usando-as como material de estudo, fonte de

inspiração e muitas vezes de adereço. Como pintor histórico, Rembrandt pintava

cenas exemplares do Antigo e do Novo Testamento, da mitologia clássica e da

história. Ao pintar essas cenas do passado, usava elementos da sua colecção de

arte. Elementos tirados de gravuras de outros artistas, armas, perucas e outros

objectos que foram aparecendo nos seus desenhos e pinturas (Tissink, 2003: 53).

Os gabinetes de curiosidades estavam a tornar-se moda, no século XVII, entre a

próspera burguesia holandesa. O florescimento do comércio com terras distantes

significou que todo o tipo de objectos exóticos e pouco familiares, puderam começar

a ser importados. A colecção de Rembrandt incluía artificialia, que eram objectos

66 Existem algumas referências a este nome, embora pouco fidedignas. Fica a nota pela beleza da sonoridade. http://en.wikipedia.org/wiki/Rudolf_II,_Holy_Roman_Emperor

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feitos pelo homem, como quadros, esculturas, medalhas, objectos de arte

decorativa, artefactos etnográficos, desenhos e livros; e naturalia, que eram os

objectos do mundo natural, como animais embalsamados, plantas secas, pedras e

conchas. Embora apaixonado, Rembrandt foi um coleccionador obsessivo, ao ponto

de chegar à falência e perder a sua casa. Não olhava a despesas quando se tratava

de adquirir mais objectos para a sua colecção (Tissink, 2003: 56).

A relação entre posição social e admiração pelo objecto artístico ou “estranho”

versus a utilização profissional, era uma linha muito mais ténue nos coleccionadores

artistas em comparação com outros coleccionadores.

Ao aparecerem, a partir do Renascimento na Europa, os gabinetes de curiosidades

foram os antecessores directos dos museus e tiveram um papel fundamental para o

desenvolvimento da ciência moderna, embora reflectissem a opinião popular do

tempo (não era raro encontrar sangue de dragão seco ou esqueletos de animais

míticos). A edição de catálogos, geralmente ilustrados, permitia o acesso e a difusão

dos conteúdos aos cientistas da época.

Os gabinetes de curiosidades desapareceram durante os séculos XVIII e XIX, sendo

substituídos por instituições oficiais e colecções privadas. Os objectos considerados

mais interessantes foram transferidos para museus de arte e história natural que

começavam a ser criados. Tiveram ainda grande importância no estudo precoce de

certas disciplinas de biologia ao criar colecções de fósseis, conchas e insectos. No

entanto, a actual Casa-museu de Rembrandt, por exemplo, ainda conserva alguns

dos objectos que lhe pertenciam (Tissink, 2003: 60).

Na Europa do século XVIII surge o iluminismo, que foi um movimento intelectual,

cultural, social, político e espiritual que enfatizava a razão e a ciência como formas

de explicar o universo (Oliveira, 1986: X, 153). O chamado “século das luzes”, foi

um período em que se deu uma renovação do espírito científico, pois este tornou-se

superior a todos os outros. Deu-se um grande salto na sistematização do saber,

surgem os modelos taxionómicos (por classes), criticam-se as sociedades desiguais

discriminatórias, contestam-se os privilégios de sangue; a burguesia, que detinha na

realidade o poder económico, começa a querer partilhar o poder político.

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70

É ainda no século XVIII, e a partir da Revolução Francesa, que se começam a

moldar os museus como os conhecemos hoje. Os gabinetes orientam-se cada vez

mais num esforço consertado de especialização por temas. Estas preocupações na

especialização começam a revelar a profissão de conservador. Surgem também os

peritos de arte, que fazem recolha e catálogos das colecções. Recolher,

documentar, conservar, registar e divulgar as colecções começa a fazer parte das

funções destes especialistas. Começam efectivamente a ser realizadas as várias

etapas museológicas, como hoje as entendemos. No entanto, faltava a mais

importante: a exibição dessas mesmas colecções para todos, ou seja o conceito de

exposição. As colecções continuavam, assim a ser destinadas apenas a eruditos e

sábios (Bazin, 1967: 169).

Em 1750, o governo francês passou a admitir a fruição das colecções por parte do

público. Muitos eram artistas e estudantes que dois dias por semana se deslocavam

para ver algumas centenas de pinturas fixadas no Palais du Luxembourg. Estas

colecções foram mais tarde transferidas para aquele que viria a ser o primeiro

grande museu público de arte: o Louvre.

O Louvre, criado a partir das colecções reais do século XVI, abre as suas portas em

1793 como Museu Central das Artes, com um acervo formado principalmente por

pinturas confiscadas à família real e aos aristocratas que tinham fugido da

Revolução Francesa, exibidas na Grande Galeria e no Salão Quadrado. O público

tinha acesso gratuito, mas apenas nos fins-de-semana, ficando os outros dias

reservados para o trabalho dos artistas que ali desejavam estudar as obras dos

grandes mestres, determinação que ficaria em vigor até 1855. Gradualmente, a

colecção foi expandida e ocupou muitas outras salas do complexo. Foi um museu

nascido de uma revolução, embora não seja um museu revolucionário no sentido

museológico (McClellan, 1999: 9).

Outros museus começam a surgir no panorama museológico internacional: o Museu

Nacional de Nápoles, a Galeria deglli Uffizi em Florença, o Museu Sacro e o Museu

Pio Clementino (partes do complexo do Museu do Vaticano), o Museu Nacional de

Ciências de Madrid, o Museu de Dresden, o Museu de Viena, etc. Como

característica, nesta altura, assiste-se a um deslocar do paradigma do autor, para a

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arte em si, alterando-se os critérios de apresentação. A categoria de estilo vai ser a

nova centralização da história da arte e do discurso expositivo. Paralelamente,

notam-se os movimentos liberais e revolucionários que originam o problema da

transferência dos bens que passam para o público, daí a necessidade de haver

museus. É o caso de Portugal, em que o governo Liberal em 1834 procede à

extinção dos conventos, concentrando o respectivo património no convento de São

Francisco da Cidade, espólio a partir do qual se formou o actual Museu Nacional de

Arte Antiga.67

Começa a surgir a figura do perito de arte que era convidado para todos os museus

para atribuir autoria às pinturas: o connoisseur. Estes peritos tinham a capacidade,

mesmo com escassez de documentos, de reconhecer pelo “estilo” as obras de arte

e os seus autores (Crane, 2000: 69). O século XIX é o grande século da

classificação e divisão de colecções por paradigmas ou modelos que eram

agrupados em termos da tipologia das colecções, da taxionomia e da cronologia.

Aparece a iluminação zenital, que consiste na utilização de grandes clarabóias para

entrada de luz natural (Stürmer, 2004: 6). A preocupação com o expor torna-se

evidente, são os primórdios da museografia. A conservação foi sempre muito pouco

considerada e nesta altura confundia-se mesmo conservação e restauro. Como tal,

fizeram-se sobretudo reconstituições, por vezes bem abusivas. A preocupação com

a importância do original só aparece no século XX.

O século XX trouxe à museologia o questionar do museu. Dão-se movimentações

de vanguarda que se vão repercutir na maneira de expor, pois adoptam-se

princípios novos de exposição. Contesta-se o museu como repositório de bens, o

museu estático. Aparece o conceito de museu de arte moderna. O espírito moderno

chega à museologia com a racionalização do espaço, com o despojamento. No

fundo, acaba por se ter mais respeito pelas obras em si, pois ganham mais espaço,

mais vida. Acabam-se as fileiras de objectos amontoados.

67 Ver página 75.

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Todo este panorama começa a mostrar que os museus desempenhavam um papel

ideológico importante, como um instrumento propagandista e de educação popular.

Começam a ter um papel decisivo e crescente na sociedade, na organização social.

Hoje os museus são, por definição, considerados como instituições permanentes,

sem fins lucrativos, que abrigam colecções de variados valores e categorias,

tangíveis ou não, com o objectivo de conservar, pesquisar, informar e exibir essas

mesmas colecções para a educação, a pesquisa e o usufruto do público (Giraudy,

1976: 9).

Definições e propósitos similares desta natureza sobre o museu, vêm sendo

propagadas por diversas organizações que hoje estabelecem políticas e trabalhos

museológicos em todo o mundo. É assim que surge em 1946, o Conselho

Internacional de Museus - ICOM (International Council of Museums). É uma

organização não-governamental profissional e independente que providencia fóruns

para mais de 21000 membros em 140 países através de comités locais, publicações

e actividades. A sua missão é desenvolver novos museus e forçar uma ligação entre

os já existentes através dos governos e comités responsáveis. Segundo os seus

estatutos: é uma organização internacional de museus e profissionais de museu,

que tem por missão conservar, perpetuar e comunicar à sociedade a herança

natural e cultural do mundo, presente e futura, tangível e intangível.68

3.3. Colecções e museus em Portugal.

No contexto português, a formação e a criação dos primeiros museus está

essencialmente ligada ao Iluminismo, não só através da divulgação da História

Natural (com intuito pedagógico), mas também com o saber enciclopédico que deu

origem a um acrescido interesse por todos os ramos do saber (Teixeira, 2000: 30).

No entanto, e ainda antes deste período, houve algumas manifestações

museológicas que importa salientar.

68 http://icom.museum/who-we-are/the-organisation/icom-statutes/2-mission-and-purpose.html#sommairecontent

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Desde logo, e durante a Idade Média (a partir do século XIII), os primeiros

elementos relativos a uma atitude museológica são os inventários das colecções

reais dos tesouros que os monarcas ou infantes possuíam e que, muitas vezes,

deixavam em testamento ou que eram doados a instituições da sua preferência. Por

outro lado, existiam os tesouros profanos (moedas, medalhas e jóias) que eram

relacionados com possuidores laicos (da nobreza ou da realeza) (Teixeira, 2000: 3).

Finalmente, os tesouros das catedrais, dos mosteiros e das capelas, que eram

objectos litúrgicos (peças destinadas ao culto) e peças doadas pelos devotos que

pretendiam conseguir indulgências, isto é, garantir a chegada ao paraíso. Um dos

mais emblemáticos (e completos) destes tesouros medievais é o da Rainha Santa

Isabel, que está hoje no Museu Machado de Castro em Coimbra.69

Mais tarde, a partir do século XV, no Humanismo, são de assinalar as colecções de

alguns grandes humanistas portugueses, como o Infante D. Pedro, D. Manuel I, D.

João III e Catarina da Áustria, Frei Diogo de Sousa, André de Resende, Garcia de

Orta e Damião de Góis. Foi um período caracterizado pela enorme diversificação

das áreas temáticas. Embora estas colecções ainda não fossem destinadas à

fruição pública, surge um reconhecimento do património como objecto

coleccionável, pois estes intelectuais humanistas revelavam um desejo de

coleccionar vestígios do mundo que eles estavam a reabilitar (Teixeira, 2000: 4).

Surgem os Gabinetes de Curiosidades em Portugal. De entre algumas das mais

significativas colecções, gabinetes e tesouros, destacam-se a colecção de

“antiguidades” de D. Afonso, 1º Duque de Bragança (1377-1461), que «muitas

trouxe quando andou por fora do Reyno, formando assim uma Casa de Couzas

raras, a que hoje chamão Museo» (Caetano de Sousa, 1738 Apud Ramos, 1993),

ou a de seu filho, do mesmo nome, o 1º Marquês de Valença (? -1460), onde

predominavam objectos de arte e arqueologia adquiridos em 1451 na Alemanha,

quando aí se deslocou para acompanhar a infanta D. Leonor, filha do rei D. Duarte,

futura mulher do Imperador Frederico III, e também a colecção de cipos e lápides

com inscrições romanas, árabes e hebraicas recolhidas pelo humanista André de

Resende (c.1500-1573) que as exporá em meados de quinhentos nos jardins de sua

69 http://mnmachadodecastro.imc-ip.pt/pt-PT/minisitios/ContentDetail.aspx?id=557

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casa perto de Évora (Ramos, 1993: 21), ou ainda, o “thesouro” de moedas romanas

e portuguesas do padre Manuel Severim Faria (1582?-1655), que em conjunto com

um grande número de vasos e outras relíquias de origem romana lhe permitiram

formar um Museo digno de um Príncipe (Severim de Faria, 1791 Apud Ramos,

1993: 21).

Voltando aos museus iluministas e enciclopédicos, filhos do seu tempo, foram os

sucessores directos das colecções estabelecidas nas centúrias anteriores por reis,

nobres e religiosos (Ramos, 1993): nesta altura, século XVIII, começa a haver uma

preocupação com a proveniência dos objectos, não bastando fazer a recolha. Para

além de recolher e saber a origem, começa-se a catalogar, a seriar e a organizar as

colecções para que sejam minimamente compreensivas. Outra importante e

decisiva característica deste período foi a passagem do museu privado para museu

público, enquanto o Estado assume a função de devolver o património aos

cidadãos.

Surge a biblioteca como museu, que é um modelo típico, um paradigma do

pensamento iluminista. É inconcebível, uma consciência museológica desligada da

sabedoria, pois vivia-se uma época em que predominava a visão enciclopédica do

saber. No entanto, o iluminismo em Portugal parte de uma realidade social que é ela

própria desigual, por isso os museus do iluminismo nunca franquearam

verdadeiramente a porta fundamental da diferença entre privado e público, nunca

deram o passo decisivo para deixarem de ser o museu de alguns para passarem a

ser o museu, virtualmente, de todos.

As grandes figuras deste período foram o Marquês de Pombal e Frei D. Manuel do

Cenáculo. O primeiro porque defendia absolutamente a figura de déspota

esclarecido e apostava na formação régia, além da do povo. Imbuído dos ideais

iluministas da época, o Marquês acaba definitivamente com os Gabinetes de

Curiosidades portugueses quando institui os Museus de História Natural da Ajuda e

da Universidade de Coimbra, em finais do século XVIII (Magalhães, 2003: 215). O

segundo por ser a grande figura que tutela o Marquês na reforma educativa, sendo

preceptor dos príncipes (1768) e estando na génese de vários museus que ainda

hoje existem. Vai para Coimbra reformar a Faculdade de Teologia e para lá leva um

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gabinete de física experimental, que viera do fracassado Colégio dos Nobres70, ao

qual acrescenta um jardim botânico, um museu de História Natural, um laboratório

de química e um observatório astronómico (repetindo o modelo da Ajuda). Viria a ter

um papel ainda mais importante com o liberalismo quando se torna bispo de Beja e

mais tarde de Évora, de cujos museus é fundador (Brigola, 2003: 34).

Após a Revolução Liberal (1820) a museologia portuguesa conhece mais uma

página da sua história, quando se assiste a uma extinção dos conventos (1834) e

sua consequente nacionalização dos bens respectivos. As colecções vão para

depósitos em Lisboa (no Convento de São Francisco da Cidade) e no Porto, sem

indicação de proveniência, sem serem acompanhados de registos. No “projecto

museal” do liberalismo, foi bem visível a inspiração na Revolução Francesa. A

mesma lei que provocou a extinção dos bens, previa que se fundasse um museu

nacional em Lisboa (só realizado em 1884 – O Museu Nacional de Belas Artes e

Arqueologia, hoje Museu Nacional de Arte Antiga) (Cirlot, 2005: 18) e que a outra

parte dos bens fosse devolvida às capitais de distrito. Foi um período de grandes

trocas de objectos e de mistura das colecções. Com a revolução, aparecem os

museus industriais e etnológicos. Outra reforma liberal é o aparecimento de museus

regionais. O grande legado do liberalismo para o movimento museal - mais do que

importantes museus, pela qualidade ou número – foi, sem dúvida, a afirmação da

ideia de museu público.

A partir do século XX a política museológica foi sendo alterada em função dos

regimes vigentes, sobretudo em três fases. A primeira, com os museus da

República com uma acção eminentemente pedagógica, que fez com que a reforma

dos museus acompanhasse, a par e passo, a reforma do ensino em todos os seus

graus, a reestruturação dos arquivos e bibliotecas, bem como o fomento do ensino

livre. O grande mérito da República esteve em fornecer a legislação e o

enquadramento indispensável para uma revolução cultural em Portugal (Marques,

1990 Apud Ramos, 1993:44). Foi o regime que teve mais implicações legislativas e

mais implicações no mapa museológico português. Nesta altura, a taxa de

70 O Colégio dos Nobres visava criar uma nobreza à “maneira inglesa”, isto é, que abandonava a ociosidade do antigo regime envolvendo-se numa política produtiva. O objectivo passava por casar os nobres com as principais famílias burguesas ricas na tentativa de formar uma nova nobreza com educação científica e tecnológica destinada a desenvolver o país numa perspectiva de regime capitalista e industrial.

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alfabetização teve a maior baixa de sempre. Aparecem os museus-escola e

começa-se a entender os museus como uma componente fundamental numa

perspectiva educativa. Surgem as grandes figuras no panorama museológico

português, caso de José de Figueiredo (que era um connoisseur internacional), que

promoveu o Museu Nacional de Arte Antiga a nível nacional e internacional

(Moreira, 1989: 63).

A segunda fase foi a do Estado Novo, em que os museus continuam o legado da

República, esclarecendo as tutelas de alguns museus. Surge a figura do grande

museólogo português João Couto, que sucedeu a José de Figueiredo como director

do Museu Nacional de Arte Antiga. Foi um homem que pensou as carreiras

museais, que pensou o museu integralmente. Desde as áreas de exposição, até ao

edifício, passando por todas as partes técnicas que têm que o compor,

reorganizando as colecções, organizando congressos, etc. (Moreira, 1989: 66). A

gestão do património cultural do país durante as duas primeiras décadas do Estado

Novo, assentou numa reestruturação a vários níveis, que se caracterizou por alguns

marcos significativos para o quadro museológico português. A destacar,

intervenções de fundo nos museus, nomeadamente Arte Antiga (para receber a

Exposição dos Primitivos Portugueses de 1940) e Soares dos Reis, com o

lançamento de museus etnográficos regionais. Depois do isolamento das décadas

de 30 a 50 sucedeu uma progressiva abertura do país ao exterior, facto que a

museologia nacional também acompanhou e sentiu.

A terceira, e última, fase começa com a revolução de Abril de 74. A defesa do

património cultural assumiu-se após o 25 de Abril como um significativo movimento

de opinião, em cuja dinamização apareceram dezenas de associações. Este terá

sido o primeiro relevante fenómeno ocorrido após a revolução. Outro fenómeno

cultural desta altura prende-se com o alargamento da noção tradicional de

património cultural, englobando sectores até então negligenciados (Ramos,

1993:61). Os últimos 25 anos do século são marcados por uma nova organização

das populações através de vários mecanismos, tendo na mão os seus próprios

destinos e traçando em certa medida o seu próprio futuro com outro tipo de

condições. Este alargar de conceitos de património e de monumento teve,

naturalmente, repercussões museais. Em termos portugueses, é aí que radicam

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algumas das mais estimulantes experiências museais. A partir do início da década

de 80 a vida museal portuguesa beneficiou de alterações inovadoras, que se

traduziram em novas práticas museológicas, no alargamento do conceito de

património museológico, na renovação e criação de novos museus. O nacionalismo

fascista, em que só cabiam os “heróis” escolhidos pelo regime, tornou-se em algo

de politicamente incorrecto (Pimentel, 2005:152).

Os museus passaram a fazer parte de um programa nacional de democratização da

cultura e receberam incumbência, de forma explícita ou não, de promover novos

valores políticos e sociais: democracia, liberdade de expressão, igualdade de

direitos, entre outros, passaram a fazer parte do discurso museológico.

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4. Proposta de sistematização das

Colecções Lagoa Henriques.

Nas colecções particulares, é frequente encontrar os objectos mais inesperados

que, pela sua banalidade, parecem incapazes de suscitar o mínimo interesse. É

possível constatar, sem grande risco de errar, que qualquer objecto natural de que

os homens conhecem a existência e qualquer artefacto, por mais fantasioso que

seja, figuram numa qualquer colecção particular (ou até num museu) algures no

mundo (Pomian, 1997: 51).

As colecções de Mestre Lagoa Henriques foram o resultado da sua capacidade de

deslumbramento e paixão pelas formas; do seu olhar atento e tão peculiar para o

mundo. Um mundo que era seu para que outros o descobrissem. Embora não fosse

um coleccionador “organizado” (se é que tal definição se pode dar a um genuíno

coleccionador), registava para si, para sua própria organização estética e funcional,

apenas duas grandes linhas. Dois grandes grupos onde albergava e vivia as suas

colecções: as formas artísticas e as formas naturais.71

A arte e a natureza. A arte é aquilo que o homem acrescenta à natureza. Tendo a

percepção, o conhecimento, o entendimento do que é realmente a vida, a realidade

biológica e do que está simplesmente ali, mas que se enquadra, que se emoldura.

Como dizia José Rogado, jardineiro do Museu Nacional de Arte Antiga, citado pelo

Mestre: A natureza é mais forte que a arte do homem72. Este paradigma de vida foi

um impulsionador intrínseco às suas colecções.

Era por esta simbiose, por esta dicotomia entre a arte e a natureza, que regia toda a

sua “recolha”. Nesta proposta para uma sistematização das colecções do Mestre

Lagoa Henriques, tornou-se evidente que era demasiado simplista dividir todas as

suas colecções apenas em dois grupos, pois correr-se-ia o risco de tornar a

colecção numa amálgama de objectos recolhidos ao acaso (mesmo que fosse esse

71 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 6ª Entrevista - 05/04/2005, p.233. 72 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH.9ª Entrevista - 04/08/2006, p.272.

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o impulso do coleccionador), o que tornaria a análise uma tarefa demasiado

dispersa.

Tornou-se, portanto, uma necessidade premente a criação de uma série de

subdivisões nas quais se pudessem agrupar todos os seus objectos. Dada a

tipologia das colecções Lagoa Henriques, pensou-se que o melhor seria subdividir o

primeiro grupo em diferentes tipos de arte. Assim sendo, o grande grupo das

Formas Artísticas passou a dividir-se em Arte Infantil, Arte Popular, Artes

Decorativas e Artes de outros continentes que se subdividem ainda por África,

Américas e Ásia (neste grupo ficariam incluídas as Artes Primitivas que Mestre

Lagoa Henriques tanto gostava, e onde inseria a peça considerada por ele

impulsionadora de toda a colecção73, mas que não teriam sentido como um grupo

isolado dado que se distribuíam por vários países). Este último subgrupo prende-se

com a procedência dos objectos da colecção que aqui se enquadram, isto porque

na prática, todos os objectos europeus são distribuídos pelas três primeiras

categorias (infantil, popular e decorativas) porque são em maior número. Por isso,

os que forem referentes a locais fora da Europa apenas se subdividem pela sua

origem e não pela sua espécie.

O segundo grande grupo, o das Formas Naturais, subdividiu-se em Malacologia,

Zoologia, Mineralogia e Botânica. Também aqui, os subgrupos criados foram

pensados pelo simples facto de os objectos naturais da colecção caberem nestas

quatro categorias, que representam os principais fascínios de Mestre Lagoa

Henriques em termos de arte da natureza. Porque o fundamento maior deste

coleccionador, não era tanto o lado biológico de cada um dos objectos, mas o

espanto que sentia pela beleza de formas que não tinham qualquer intervenção

humana. Apenas eram assim, naturalmente.

Não foi fácil criar uma sistematização para uma colecção que não tinha

propriamente uma organização (há sempre o risco de haver uma peça ou outra que

não se enquadre bem num compartimento, ou até que se enquadre em mais que

73 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH.7ª Entrevista - 26/04/2005, p.249.

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Colecções Lagoa 

Henriques

Formas Artísticas

Arte Infantil Arte Popular

Artes

Africa

Américas

Ásia

Artes  Decorativas

Formas Naturais

Malacologia Zoologia

Mineralogia Botânica

um), mas a verdade é que era fundamental que se tentasse criar alguma estrutura

pois estamos a falar de um universo de milhares de objectos.

Esta estrutura organizacional (Figura 1), feita com o Professor Carlos Amado,

sugerida a Mestre Lagoa Henriques, embora não sendo verdadeiramente a sua

maneira de olhar e viver a colecção, teve sempre o seu aval, e foi também fruto de

conversas, ajustes e sugestões do próprio. Teorizar o que é a essência de cada um,

o que nos impulsiona para determinadas opções e gostos, nem sempre é passível

de estruturar. No entanto, esta terá sido, a organização mais próxima possível do

seu íntimo de coleccionador.74

Figura 1 - Organigrama das Colecções Lagoa Henriques75

74 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 6ª Entrevista - 05/04/2005, p.233. Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH.7ª Entrevista - 26/04/2005, p.249. Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH.7ª Entrevista - 26/04/2005, p.250. 75 Esquema de cores de acordo com a proposta expositiva. Ver página 105.

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5. O inventário. A ficha. O modelo e a sua criação.

Como é sabido, a organização de um inventário pressupõe um conjunto de passos e

métodos tendo em vista uma correcta catalogação e, sobretudo, uma facilidade de

consulta para quem queira estudar ou simplesmente observar a colecção e que não

esteja familiarizado com a mesma. Assim, como teste à exequibilidade da proposta

foram seleccionadas cerca de cem peças, em relação às quais se aplicou o método

a seguir enunciado.

O primeiro passo foi a análise dos objectos propriamente ditos que compõem a

colecção. Procedeu-se à escolha das peças e foi verificado o seu estado de

conservação e limpeza. De seguida foi-lhes atribuído um número de inventário

alfanumérico que começou sempre pelas siglas CLH (Colecções Lagoa Henriques),

seguidas de um número sequencial sem qualquer outra referência a classe ou

espécie (CLH1, CLH2, CLH3...), por uma questão de facilidade de inventariação.

De seguida as peças foram fotografadas e marcadas provisoriamente com uma

pequena etiqueta autocolante. Mediram-se cuidadosamente e preencheu-se a

respectiva ficha de inventário com vista à elaboração de um livro geral de inventário.

Dadas as especificidades próprias desta colecção, optou-se por uma ficha de

inventário não muito extensa, para não tornar exaustiva a sua inventariação, assim

como a sua consulta. A ficha é composta por duas folhas, em que na primeira se

encontram as características da peça: o número de inventário, a categoria em que

se insere, o título, o autor, as dimensões e o material de que é feita. A segunda

folha é mais descritiva, sendo feita uma descrição detalhada da peça, o seu

historial, o seu estado de conservação e um espaço para qualquer observação que

se ache pertinente.

É um modelo de ficha muito simples, mas que pretende ser preciso e eficaz, para

que cumpra na íntegra os objectivos a que se propõe este inventário. (Ver Figuras 2

e 3).

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5.1. A ficha de inventário.

Figura 2 - Ficha de Inventário – primeira folha.

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Figura 3 - Ficha de Inventário – segunda folha.

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5.2. Exemplo de ficha de inventário preenchida.

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3ª Parte

A CASA-MUSEU

(A partir de pesquisas, memórias e

presenças...)

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1. CASAS–MUSEU: Uma razão de ser

Analisado o como e o porquê de coleccionar, as motivações e a lógica coleccionista

de Mestre Lagoa Henriques e a proposta de sistematização das suas colecções, é

necessário fazer um enquadramento de continuidade para entender o que pode e

deve ser feito com as referidas colecções. Se inicialmente, o projecto desta tese se

limitava à proposta de inventariação e catalogação das Colecção Lagoa Henriques,

a partir da morte do seu proprietário, surge a ideia de uma Casa-Museu Lagoa

Henriques, como meio de salvaguardar a identidade de um património pessoal que

deverá ser público, preservando uma memória que não pode ser esquecida.

1.1. A memória

Mesmo antes de se entender o conceito, é praticamente senso comum que uma

casa-museu diz respeito à preservação e homenagem da memória de uma dada

personalidade que se destacou ou marcou a sua época, no contexto espacial da

respectiva residência, com especial protagonismo atribuído às suas colecções, em

detrimento do seu valor evocativo enquanto suportes mnemotécnicos76 da

personalidade homenageada (Martins, 1996: 3).

Em termos sociais, a memória do indivíduo tem a sua importância centrada num

conjunto de características específicas, que o distinguem dos restantes indivíduos.

Ele desempenhou um papel de destaque na vida social, económica, religiosa,

artística, cultural ou outra, e por essa razão, é-lhe socialmente reconhecido o mérito

que justifica a preservação e a evocação da sua memória, no quadro de um

determinado tipo de instituição museológica (Martins, 1996: 85). A memória é um

elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou colectiva,

cuja busca é uma das actividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de

hoje (…) A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura

salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a

76 MNEMOTECNIA: arte de cultivar a memória.

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que a memória colectiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens.

(Le Goff, 1997: 46-47).

A memória, que tão facilmente cai no esquecimento, deve ser encarada como o

ónus de uma casa-museu, como o elemento primeiro de preservação para evitar o

apagamento de uma vida. Citando Joseph Brodsky77, Dubravka Ugrešić refere no

seu romance O museu da rendição incondicional, que a memória atraiçoa toda a

gente, especialmente aqueles que conhecemos melhor. É uma aliada do

esquecimento, é uma aliada da morte. (Brodsky Apud Ugrešić, 2011: 83).

A memória que se pretende preservar e evocar numa casa-museu, e que é feita a

partir dos ambientes originais de quem lá viveu, tem que ter em consideração os

aspectos da estrutura material da casa, em termos dos usos que dela se fizeram.

Os espaços interiores da casa poderão testemunhar características da

personalidade do seu patrono, não só pela função de cada um desses espaços de

per se, mas também pelo lado mais simbólico subjacente à própria forma de habitar

a casa (Martins, 1996: 104). As casas são o repositório da memória familiar, a

começar pelo próprio edifício. Podem evocar pela sua simples materialidade

silenciosa, mas também ser o ponto de partida da narração. (…) O recheio da casa

é todo ele um dispositivo mnemónico. (José Manuel Sobral, 1995 Apud Martins,

1996: 104).

Uma proposta de musealização de uma vida num espaço tendo em vista a

preservação de uma memória, pese embora o seu cariz académico, só faz sentido

se for pensada dentro da realidade histórica e científica em que se inserem as

casas-museu. Para isso, é preciso perceber alguns conceitos.

77 Joseph Brodsky (n.24/05/1940 em Leningrado - m.28/01/1996 em Nova York), pseudónimo de Iosif Aleksandrovich Brodsky, foi um escritor norte-americano de origem russa. Deixou a escola aos 15 anos, mas cedo foi reconhecido como a promessa dos escritores russos da sua geração. Em 1964 foi acusado pelas autoridades soviéticas de “parasitismo social” e foi condenado a cinco anos de trabalhos forçados. A sentença é suspensa no ano seguinte. Em 1972, Brodsky exila-se nos Estados Unidos, onde viveu o resto da sua vida, naturalizando-se americano em 1977. Foi laureado Prémio Nobel da Literatura em 1987, consagrando a importância da sua “voz lírica”.

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1.2. Conceito e antagonismos

A primeira grande questão é a combinação de duas palavras antagónicas: casa e

museu. Esse amargo e doce, preto e branco entre o que é privado e público ou

entre o que é de um (ou alguns) e passa a ser para todos, torna-se, talvez, um dos

fulcros de motivação da existência destas instituições.

1.2.1. Casa

Uma casa pressupõe um ambiente próprio, de refúgio, de protecção, de descanso,

de tranquilidade. Segundo o dicionário Priberam, casa78 (substantivo feminino que

vem do latim casa, -ae, cabana, casebre) é o nome genérico de todas as

construções destinadas a habitação, é um local de habitação. Frequentemente se

utiliza a noção de voltar a casa, sentir em casa, ter saudades de casa, etc., como

fundamento de uma identidade e de um local seguro e pessoal. A casa é a coisa

mais importante da vida porque é o espaço escolhido para a circulação do corpo.

(Ribeiro, 1997: 8).

A casa é um mundo à parte. Um mundo próprio, dentro do nosso mundo, em que

cada casa tem uma identidade particular que a distingue das outras. A casa resulta

das escolhas dos seus residentes e é isso que lhe confere uma individualidade e

garante a sua diferença. No seu todo, ela constitui uma unidade em que cada

espaço se encontra relacionado (Martins, 1996: 104). O interior da casa ocidental

comporta uma organização fixa do espaço. Nela encontramos divisões particulares

que correspondem a funções particulares, como a preparação dos alimentos, o

consumo das refeições, a recepção e as actividades sociais, o repouso e o sono, a

procriação e até a higiene. (Hall, 1987 Apud Martins, 1996: 104).

Para além dos traços de um espaço identitário, a casa revela-se nas suas formas

diferentes de ocupação, como um produto que depende e reflecte os valores

78 http://www.priberam.pt/dlpo/definir_resultados.aspx?pal=casa

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socioculturais, económicos, políticos e religiosos dos seus residentes e da

comunidade onde está inserida (Martins, 1996: 104).

1.2.2. Museu

Em contrapartida, um museu, que é uma instituição permanente, sem fins lucrativos,

ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberto ao público, e que

adquire, conserva, estuda, comunica e expõe testemunhos materiais do homem e

do seu meio ambiente, tendo em vista o estudo, a educação e a fruição79, contraria

as ideias de privado, de identidade pessoal, que fazem parte da noção de casa.

Desde 2004 que Portugal conta com uma definição legal de museu, estabelecida

pela Lei-Quadro dos Museus Portugueses (artigo 3º da Lei nº 47/2004, de 19 de

Agosto): instituição de carácter permanente, com ou sem personalidade jurídica,

sem fins lucrativos, dotada de uma estrutura organizacional que lhe permite: a)

garantir um destino unitário a um conjunto de bens culturais e valorizá-los através

da investigação, incorporação, inventário, documentação, conservação,

interpretação, exposição e divulgação, com objectivos científicos, educativos e

lúdicos; b) facultar o acesso regular ao público e fomentar a democratização da

cultura, a promoção da pessoa e o desenvolvimento da sociedade. Esta definição

compreende as instituições, com diferentes designações, que apresentem as

características e cumpram as funções museológicas previstas na presente lei para o

museu, ainda que o respectivo acervo integre espécies vivas, tanto botânicas como

zoológicas, testemunhos resultantes da materialização de ideias, representações de

realidades existentes ou virtuais, assim como bens de património cultural imóvel,

ambiental e paisagístico (idem), mas exclui as colecções visitáveis, conjuntos de

bens culturais que não reúnem os meios para cumprir as funções museológicas

acima indicadas (artigo 4º da mesma lei) (Delicado, 2005: 9).

79 Extraído dos Estatutos do ICOM, adoptados na 16ª Assembleia Geral do ICOM (Haia, Holanda, 5 de Setembro de 1989) e alterados pela 18ª Assembleia Geral do ICOM (Stavanger, Noruega, 7 de Julho de 1995) e pela 20ª Assembleia Geral do ICOM (Barcelona, Espanha, 6 de Julho de 2001). http://www.icom-portugal.org/documentos_def,129,220,detalhe.aspx

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1.2.3. Casa-Museu

Segundo Marta Rocha Moreira, e numa definição flutuante de conceitos, o

“percurso” da casa ao museu começa nos tipos de casas (como palácios, castelos,

mansões, apartamentos, cabanas, refúgios, etc.), passa pelo tipo de proprietário

(artista, médico, sacerdote, político, coleccionador) e seu respectivo status social

(rico, soberano, humilde, ilustre ou nem tanto), continua pela utilização que lhe deu

(se nasceu, viveu e/ou morreu lá, se era casa principal ou não), pela localização

(urbana, rural), pelo estado da casa (intacta, conservada, abandonada,

reconstruída, etc.), até chegar ao como e ao porquê de se tornar num museu: se

tem ou não colecções, se expõe divisões ou a casa inteira, se retrata uma figura (ou

várias) e a importância que ela teve, se o tema é mais específico ou mais

generalista, se é um museu de memória ou homenagem, se foi doado ou herdado,

com tutela pública ou privada e, sobretudo, se justifica a sua musealização (Moreira,

2006: 15).

O conjunto de palavras e expressões que ilustram o conceito e as ideias alargadas

associadas à casa-museu, é tão vasto que demonstra a amplitude e a diversidade,

ou mesmo a incerteza do significado do binómio. O peso de cada um dos dois

termos é difícil de determinar e pensar que cada um tem um peso de cinquenta por

cento seria uma lógica tão redutora como incorrecta. A ausência de uma definição

abrangente e internacionalmente aceite, origina uma variedade de conceitos que

têm em comum a ambiguidade da designação, que é atribuída com toda a

liberdade, e muitas vezes abusivamente, dentro e fora de âmbitos museológicos

(Moreira, 2006: 16). A viagem que parte da casa (privado) até ao museu (público) é

também determinada pelo condutor que lhe dá origem, isto é, pelo patrono do

referido espaço, que pela sua importância (ou outra característica de realce) justifica

a devida divulgação pública.

O conceito de casa-museu é tanto mais alargado quanto as abrangências que

envolve. Desde logo tem que ser perspectivada a questão do edifício, do ambiente,

das colecções e da pessoa ou grupo social em causa.

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A própria expressão (casa-museu), como já foi referido, revela o lado contrastante

do conceito: a casa que revela todo o seu lado privado e a sua intimidade de refúgio

pessoal é confrontada com o conceito de museu em toda a sua abrangência

pública, como local que recebe pessoas, que transmite conhecimentos e interage

com os visitantes. É uma casa (histórica ou não) à qual é aplicada a função

museológica, através do discurso expositivo, da conservação, do estudo de

eventuais colecções e de uma estrutura organizacional que sustente a actividade

museal: serviço educativo, expositivo, eventos, comunicação e marketing, etc.

A casa-museu deverá ser o reflexo de uma vida de alguém, que de uma forma ou

de outra se distinguiu dos seus pares, não deixando de preservar o original e o

ambiente em que lá viveu (Pina, 2001: 4), ou no qual decorreu qualquer

acontecimento de relevância nacional, regional ou local, e que justificou a criação

desta unidade museológica (Ponte, 2007: 25). É fruto da personalidade que a criou

e habitou, pois as peças apresentadas e com as quais conviveu quotidianamente

demonstram os seus gostos e preferências. Nalguns casos, pode ainda representar

determinada população ou localidade.

A proximidade com um qualquer espaço doméstico e privado, e portanto

reconhecido por todos, é um factor de motivação determinante para que o público

visite as casas-museu. Estas devem ser verdadeiros cenários de vida.

1.3. As Colecções nas Casas-Museu

Nas casas-museu as colecções são bastante diferentes em termos de “lógica”

coleccionista, das colecções dos restantes museus. Primeiro porque pressupõem

uma relação directa com alguém, depois porque são um conjunto muito diferenciado

de objectos: não só porque incluem o edifício, mas também porque a tal natureza de

pertença a alguém, confere um carácter de objecto de colecção a elementos que

noutro contexto provavelmente não teriam esse estatuto, como uma simples escova

de dentes, ou um casaco ou mesmo uma cama. O contexto, neste caso, determina

a importância.

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Será interessante pensar qual é o momento em que determinado objecto passa a

ter valor de colecção, isto é, um significado aliado a um significante80. Na

museologia em geral, as colecções particulares e o mundo dos museus parecem

realidades diferentes (Pomian, 1997: 53). O primeiro traço característico dos

museus é a sua permanência. Contrariamente à colecção particular que, na maior

parte dos casos, se dispersa depois da morte daquele que a tinha formado e sofre

as repercussões das flutuações da sua fortuna, o museu sobrevive aos seus

fundadores e tem, pelo menos em teoria, uma existência tranquila. (Pomian, 1997:

82). Já nas casas-museu, essas mesmas colecções particulares adquirem um

estatuto de objecto de museu, um significado que os torna contextualizados e com

interesse suficiente para serem visitados. Ganham também uma “vida para além da

morte”, no sentido em que ao ser musealizada, a casa-museu confere às suas

colecções o carácter de permanência e de sobrevivência ao seu fundador.

Além disso, as casas-museu pressupõem, como já foi referido, a questão da

memória pessoal. Poder-se-á dizer que nalguns museus existe a presença da

memória pessoal de alguém que, por exemplo, doou a sua colecção particular e que

até exigiu como condição que determinada sala ficasse associada à sua colecção,

ao seu nome. No entanto, a grande diferença entre estas colecções relacionadas

com uma dada memória pessoal e as colecções das casas-museu, reside no facto

dos referidos objectos que evocam essa memória, estarem deslocados do seu

ambiente, do seu contexto original. Na casa-museu as colecções são um dos

suportes materiais de evocação da memória pessoal. (Martins, 1996: 100).

Como elemento unificador do que anteriormente foi dito, importa ainda referir que a

maioria das casas-museu é composta por dois tipos de colecção: a colecção dos

objectos relativos à vivência de alguém, inerentes ao facto de se viver numa casa, e

que incluem a própria casa; e as colecções ligadas ao acto de coleccionar, isto é,

todos os objectos recolhidos pelo próprio patrono, e que são em parte responsáveis

pela musealização do referido espaço.

80 Ver página 59.

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1.4. Classificações

As inúmeras casas-museu existentes em todo o mundo, a sua diversidade de

acção, tipologia e categoria, têm dado origem a uma preocupação de classificação e

clarificação desta realidade, no sentido de se chegar a uma norma classificativa

comummente aceite. No entanto, tal não tem sido tarefa fácil.

Não sendo consensual, as casas-museu são para alguns uma mais-valia que

justifica a devoção, a exposição e o investimento. Para outros, são museus menores

de futuro duvidoso, que reúnem peças desiguais de forma pouco coerente. Para

outros, que ainda são bastantes, é apenas uma obstinação caprichosa que nem

deve ser apreciada como museu. Entre uns e outros, a verdade é que estas

instituições são uma realidade crescente e isso tem levado ao debate sobre a

essência do que é uma casa-museu e de como as classificar (Moreira, 2006: 16).

Na tentativa de estabelecer uma diferenciação tipológica destas unidades

museológicas, e para se poder proceder a uma qualquer proposta de classificação

das casas-museu, existem alguns factores fundamentais: o local deverá ser o da

casa que o patrono habitou (pelo menos algum tempo); o espaço deverá ser fiel ao

dia-a-dia da pessoa que lhe dá o nome, uma vez que representa a sua intimidade; o

discurso expositivo que a sustém deve dar destaque à vivência do patrono na casa,

já que este é o tónico principal para tornar público o espaço; a estrutura

museológica de apoio deverá cumprir alguns requisitos, tal como o horário de

funcionamento com abertura ao público, uma equipa técnica especializada,

desenvolvendo actividades de conservação, educação e investigação, entre outras

funções normalmente existentes num museu (Sousa, 2005 Apud Ponte, 2007: 42).

A reflexão em torno das casas-museu, e sua classificação, começou, de uma forma

mais especializada, nos anos 80 (do século XX). Esta é, talvez, uma das questões

que mais tem corrido o mundo dos museus e sido mais debatida, até porque foi uma

das grandes justificações para a criação de um comité temático dentro do ICOM. É

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assim que em 1998 é instituído o DEMHIST81 – Comité Internacional para as Casas

Históricas – Museus, com o objectivo de reconhecer as casas-museu como uma

categoria especial de museus e desencadear uma reflexão internacional, muito

particular, sobre o tema (Moreira, 2006: 16).

Na ausência de definições de cariz marcadamente oficial, foi possível compilar um

conjunto de propostas de classificação para as casas-museu, mais ou menos

aceites na comunidade museológica, e marcadamente espaçadas no tempo.

Em 1934 surgiu na revista Museion do Office International des Musées (S/A, 1934:

283), um artigo que dividia as casas-museu em três grupos, em função das suas

colecções:

Casas de interesse biográfico em que as colecções podem ter por base

manuscritos, correspondência, escritos, biografias, desenhos, recortes de

publicações, objectos pessoais, espécimes de trabalhos, medalhas,

diplomas, lembranças de viagem, etc.

Casas de interesse social em que as colecções apresentadas têm

sobretudo objectos que marcadamente revelam o dia-a-dia dos ocupantes,

como por exemplo cartas, quadros, objectos pessoais, peças de vestuário,

decoração, brinquedos, etc.

Casas de interesse histórico local em que as colecções são compostas por

objectos de períodos diversos e com diferentes utilizações, como armas,

uniformes, alfaias agrícolas, jornais, arquivos municipais e rurais, etc.

Cerca de cinquenta anos mais tarde, o “musealmente” famoso George Henri

Rivière, no seu manual La Muséologie, no capítulo sobre Museu e Património, na

lição de Conservação (Rivière, 1989: 240-243), deu o seu contributo apresentando

uma classificação provisória dos bens musealizados (que podiam ser culturais,

naturais ou mistos) integrando-os na distinção entre casa histórica e casa rural:

81 http://icom.museum/who-we-are/the-committees/international-committees/international-committee/international-committee-for-historic-house-museums.html

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A casa histórica que em função do habitante ainda se podia subdividir em

museus-palácios e castelos de soberanos; palácios, castelos e casas

privadas; e casas de notáveis e pessoas célebres, como artistas, escritores e

sábios.

A casa rural caracterizada, sobretudo, pela natureza do seu edifício e

equipamentos tradicionais.

Em 1993, Sherry Butcher-Younghans no seu livro “Historic Houses Museums” que

fala das casas-museu na América do Norte, distingue três tipos de tipologias de

casas-museu (Ponte, 2007: 44):

Casa-Museu Documental - um local que conta a vida de um personagem ou

lugar de interesse histórico ou cultural, onde os objectos devem ser originais.

Casa-Museu de Representação - um espaço representativo de uma época

ou estilo de vida, que pode integrar objectos de diversas proveniências,

inclusive réplicas.

Casa-Museu Estética – um local de exposição de uma colecção privada,

onde o contentor logra uma simbiose com o conteúdo, transformando-se num

dos objectos da colecção.

Já em 1997, pouco antes da criação do DEMHIST, Rosana Pavonni, a primeira

secretária do comité, e que viria a ser a sua segunda presidente, e Ornella

Selvafolta, distinguiram oito categorias de casas-museu, em função do edifício, do

habitante e da colecção (Pavonni e Selvafolta, 1999: 32-36):

Palácios Reais porque são casos muito particulares, dado o seu alto valor

representativo. É necessário estabelecer uma diferença entre os que ainda

são residência e os que apenas são museus.

Casas de pessoas célebres que são normalmente os locais onde nasceram

ou viveram determinadas personalidades que se distinguiram por uma ou

outra razão e que são casas que identificam essas personalidades através

dos seus objectos, da sua vida e da sua carreira.

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Casas de artistas criadas para promoção da vida e/ou obra de um, ou mais,

artistas.

Casas de determinado período ou estilo que pretendem inserir num

determinado contexto peças de mobiliário ou arte decorativa, segundo uma

organização museológica.82

Casas de coleccionadores sem qualquer organização museológica mas

mantendo em exibição as colecções pessoais no seu estado original,

evoluindo mais tarde para museu.

Casas de família representativas de um determinado meio social e cultural, e

que ilustram a passagem do tempo e a sedimentação das gerações. São

verdadeiros museus familiares.

Casas com determinada identidade social e cultural que são

características de grupos sociais ou profissionais homogéneos. Normalmente

têm objectos de trabalho e muitas vezes transformam-se em museus

relacionados com o folclore.

Casas ou residências históricas onde são conservadas colecções sem

uma ligação específica com a história da própria casa.

Na conferência do DEMHIST em 2001, em Barcelona, Rosanna Pavoni, viria a dar

mais um contributo de estratificação, aprofundando a sua anterior proposta, ao

classificar as casas-museu em função da sua estratégia, discurso e relacionamento

com a comunidade museológica e sociedade em geral (Pavoni, 2002: 52-57):

Casa-museu descritiva é aquela em que os espaços e os objectos

transmitem um discurso claro e directo. Não é necessário recorrer a mais

nenhum estímulo de informação para transmitir o quotidiano de alguém,

independentemente de se conhecer quem lá habitou.

Casa-museu interpretativa é aquela que foi criada para representar alguém,

um determinado período, um estilo de vida ou um facto histórico. É usada

como veículo de apresentação de determinado tema.

82 Ensemble d`Époque – Como acontece no Museu da Cidade em Lisboa. http://www.museudacidade.pt/Esposicoes/Paginas/default.aspx

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Finalmente em 2006, Linda Young apresentou na conferência anual do DEMHIST

em Malta, uma nova classificação das casas-museu em função da sua tipologia

(Young, 2007: 59-77):

Casas de heróis, que são espaços físicos onde viveram pessoas

importantes e onde se pode interpretar a história dessas pessoas. Nestes

casos, está associada a necessidade de estabelecer um panteão de heróis,

porque estes têm um enorme poder na imaginação popular.

Casas de colecção, que são casas que se definem pelas colecções

específicas ou pelo material com valor intrínseco significativo para a casa.

Nestes casos, a necessidade de preservar as colecções de artes decorativas,

história ou arqueologia são um primado da sua lógica museológica e por isso

são facilmente confundidas com museus generalistas. Cabe ao responsável

pelo discurso expositivo da casa, não deixar que tal aconteça, preservando

para tal os significados que as colecções têm no seu original.

Casas de design, são as casas que são apresentadas como uma criação

artística, para serem alvo de apreciação de índole estética, por parte de

quem as visita. A casa e as colecções são um todo fundamental, acrescendo

a importância na percepção espacial dos volumes e texturas.

Casas de acontecimentos ou casas de processos, são casas relacionadas

com acontecimentos determinantes da história. O enfoque é retirado ao herói,

sendo as casas anónimas e genéricas, e passado para a história quotidiana e

das classes mais baixas da sociedade.

Casas de campo inglesas que se distinguem das outras casas-museu em

geral, mas que têm uma forte influência na musealização de casas no

restante mundo anglo-saxónico. Foram, quase todas, residências de famílias

nobres, funcionando como verdadeiros relatos do seu estilo de vida, o que

encanta e atrai muitos visitantes.

Casas de sentimento, são as casas-museu criadas sem grande sentido.

Resultam muitas vezes de uma “onda” de musealização de casas

disponíveis, que servem de invólucro a determinado conjunto de peças

recolhidas.

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Os diversos contributos e classificações incorrem na tentativa de balizar, explicando,

o que é, o que faz e o que representa uma casa-museu, organizando para tal as

diversas palavras, expressões e conceitos que se podem associar a estas unidades

museológicas. Contudo, tal não parece ter sido ainda suficientemente consensual

para toda a comunidade envolvida nestas temáticas. Deste modo, definir o carácter

fundamental da casa-museu e descrever simultaneamente as suas variáveis com

rigor científico, considerando a estrutura arquitectónica, o tipo de colecções, as

opções museológicas e museográficas, e o carácter das actividades da instituição,

tem sido entendido sobretudo como uma ferramenta de trabalho e não como

procura de uma definição exclusiva e universal, no tempo e no espaço. (Moreira,

2006: 20).

1.5. Casas-Museu em Portugal

As instituições museológicas em geral têm crescido de uma forma exponencial nos

últimos anos, em Portugal. Neste panorama, as casas-museu têm assumido um

papel fundamental, não só pelo seu número já significativo83, como também pela sua

contribuição para a salvaguarda do património nacional. (Ponte, 2008: 91). A

realidade portuguesa é bastante diversificada, respondendo a critérios e

pressupostos diferenciados, tanto do ponto de vista dos patronos, da multiplicidade

dos temas abordados, das dimensões das estruturas físicas, assim como dos

serviços prestados aos visitantes (Ponte, 2007: 73).

As casas-museu assumem, assim, não só um papel de conservação e divulgação

do património histórico e cultural nacional, mas também têm características próprias

que são relacionadas com o facto de estarem intrinsecamente ligadas a alguém, a

uma personalidade que lhe dá origem. A casa-museu deve extravasar para além

das colecções que essa personalidade possa ter reunido e do edifício em si, a

importância de todos os elementos que a constituem.

83 Ver Anexo IV – Quadro 1, página 285.

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No entanto, não deixa de parecer também um facto que as casas-museu em

Portugal não revestem um único padrão institucional (…) Tal situação parece estar

relacionada com o protagonismo atribuído às colecções, em detrimento do seu valor

evocativo enquanto suportes mnemotécnicos da personalidade homenageada

(Martins, 1996: 3). Para além disso, o facto de o próprio edifício ser considerado

acervo, e núcleo central do espólio, retira algum “protagonismo” aos restantes

elementos constituintes da matéria visitável.

A ideia, quiçá bastante difundida, de que a tradição dos gabinetes de curiosidades84

teve pouco significado em Portugal, reflecte acima de tudo a escassa documentação

relativa a colecções e edifícios que as albergaram (Moreira, 2006: 55). O

aparecimento exponencial de casas-museu no nosso país caracterizou-se, nos

primeiros tempos, pela forte exibição voluntária apoiada no valor contextual e

simbólico dos objectos e das colecções expostas na casa. Já nas últimas décadas,

a exibição involuntária tornou-se mais premente, dando a conhecer outras

interpretações dos conceitos expositivos a partir dos lugares de inspiração – a casa

como testemunho físico da personalidade em questão (Moreira, 2006: 343).

Em Portugal, na primeira metade do século XX não era significativo o número de

instituições referenciadas como casa-museu. No entanto, na segunda metade deste

século assiste-se ao aparecimento exponencial deste tipo de unidades

museológicas, com a “explosão” a registar-se na década de 70 e com o

consequente aumento nas décadas de 80 e 90 (Ponte, 2007: 87). Em termos de

distribuição geográfica85, verifica-se que a maior predominância vai para a região

Norte, Centro e Lisboa e Vale do Tejo, sendo a maior concentração no litoral, em

detrimento do interior (Ponte, 2007: 86).

Em termos de tutelas dominantes, é possível constatar que, na sua maioria, as

casas-museu em Portugal se encontram sob a alçada das Câmaras Municipais86, já

que são estas que muitas vezes recebem legados e doações de personalidades da

terra, e a quem querem prestar a devida homenagem, usando esse facto como

84 Ver página 66. 85 Ver Anexo IV – Quadro 2, página 288. 86 Ver Anexo IV – Quadro 3, página 288.

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veículo promocional da própria localidade. Por outro lado, essas mesmas

personalidades que se destacaram de um ou outro modo e juntaram colecções,

algumas de grande valor patrimonial, também procuram salvaguardar a memória

futura dos seus acervos, doando-os às autarquias locais envoltos numa série de

cláusulas de “protecção” com vista a garantir a permanência dos mesmos, nas

condições e locais originais (Ponte, 2008: 102).

Reforçando, as colecções das casas-museu têm, como já foi referido, uma relação

muito própria, e que não se pode dissociar, dos utilizadores que lhes dão origem,

podendo até nalguns casos (a maioria) ser uma projecção desses mesmos

utilizadores. Talvez seja esta uma da razões para que boa parte das casas-museu

que surgem em Portugal terem origem nas tais doações ou legados realizados pelos

proprietários, ou alguém próximo, com o objectivo de criar um museu local em sua

homenagem. A opção por este tipo de instituição museológica (casa-museu)

prende-se sobretudo com as necessidades de perpetuação da memória, cuja

imagem institucional de estabilidade e imutabilidade, dão as desejadas garantias de

indivisibilidade e inalienabilidade de um dado património (Martins, 2006: 102).

Em termos de tipologia das colecções, o panorama das casas-museu em Portugal

revela que quase metade não tem uma colecção definida, tal é a diversidade de

objectos87. Das que a têm, a predominância vai para as colecções de arte, logo

seguidas pelas de etnografia e etnologia. Estas colecções dão, no entanto, origem a

instituições com um reconhecido valor artístico e cultural no conjunto do património

nacional. Muitas vezes as casas-museu apresentam peças de coleccionadores, só

que não integradas em ambientes de vivência. A figura tutelar aparece somente

como um meio que potencia a salvaguarda das colecções (Ponte, 2007: 93).

Ao nível das práticas museológicas, a realidade das casas-museu, em geral, é

deficitária no nosso país. A organização das exposições (permanentes ou

temporárias) é das poucas manifestações que sugerem actividade de museologia.

Os recursos humanos, tal como os apoios financeiros, são escassos. Os horários de

funcionamento são, consequentemente, muitas vezes parcos relativamente ao que

87 Ver Anexo IV – Quadro 4, página 288.

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seria desejável (Ponte, 2007: 100). A divulgação também parece ficar aquém do

necessário, pois muitas das vezes nem se sabe da existência das instituições.

Comparativamente a outro tipo de unidades museológicas, não deixa de ser triste

constatar que no seu todo, salvo algumas boas excepções, as casas-museu em

Portugal acabam por ser um “parente pobre” em termos de condições, oferta e

interesse para quem procura este tipo de cultura.

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2. PROPOSTA PARA UMA CASA – MUSEU

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2.1. Porquê? Motivos para uma exposição

Porque não somos todos iguais, não temos as mesmas manifestações, nem as

mesmas reacções perante tudo o que nos rodeia. Consequentemente, não temos a

mesma necessidade de coleccionar, de nos sentirmos acompanhados e rodeados

pelas nossas colecções.

Um homem com o deslumbramento (como o próprio não se cansava de dizer88) e a

sensibilidade de vida de Mestre Lagoa Henriques, não podia ter tido outra atitude ao

longo da sua história que não a de se rodear de objectos, de memórias, de paixões,

de saudades, de vivências. Talvez seja esta uma das fronteiras entre as colecções

que cada um de nós transporta. Para o coleccionador têm o significado que têm,

mas para os outros, podem não ter significado nenhum. No entanto, as colecções

de Mestre Lagoa Henriques dificilmente não têm significado para todos. Um mundo

de objectos sem fim, um mundo a perder de vista. Como em qualquer colecção,

haverá sempre um sem número de significados que só a ele diziam respeito e que

provavelmente poucos entenderão. Só que as suas colecções têm um impacto

visual e cognitivo único e uma beleza intrínseca de tal forma diferenciada, que só

por isso justificam ser vistas pelo mundo.

Mesmo sem se perceber, ou saber, os fundamentos que estão na origem das suas

colecções (embora se tente explicá-los em parte neste trabalho), a paixão que

emana dos objectos reunidos é tão transparente que é fundamental (até mesmo

imperativo), que sejam perpetuadas. Não se pode deixar um património daquela

riqueza humana simplesmente exposto na galeria das memórias esquecidas, das

memórias que se deixam levar pelas ondas do tempo.

88 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH, p.151, 157, 218, 222, 237, 273 e 275.

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Mestre Lagoa Henriques habitou, criou, sonhou e coleccionou durante cerca de 30

anos na sua segunda casa-ateliê (depois da primeira se ter incendiado em 1972)89,

que foi sem dúvida um museu (pessoal) vivo, com todas aquelas salas e corredores

labirínticos cheios dos mais variados objectos, das mais variadas colecções. Ao

ateliê juntava-se o espaço semipúblico conhecido como LAB.CULT (Laboratório de

Cultura), onde juntamente com o Professor Carlos Amado promovia encontros e

tertúlias em torno das artes. Também a sua biblioteca imensa, de valor cultural e

material incalculável e a sua oficina sempre com peças em crescimento criativo,

constituíam um espólio riquíssimo. O universo Lagoa Henriques pode e deve ser

partilhado. Não é, seguramente, uma colecção pronta a ser exposta, pois está

dispersa de um modo mais ou menos aleatório e pessoal, mas é sem dúvida uma

colecção com a obrigatoriedade de ser musealizada.

A ideia de uma casa-museu seria o corolário da lógica de integrar um espaço de

vida, (pois a sua casa era também o seu ateliê ou o seu ateliê era também a sua

casa) como principal objecto da colecção. Como em todas, ou quase todas as

casas-museu, o espaço físico começa por ser o primeiro objecto da colecção, não

só porque envolve o resto, mas também pelo lado de refúgio pessoal do seu

patrono. Não é um espaço pelo espaço, mas sim o espaço de determinada pessoa

em determinado contexto.

Amiúde, e sem qualquer tipo de complexo, Mestre Lagoa Henriques costumava

dizer, eu já estou a acenar, estou-me a despedir.90 Agora que acenou mesmo, fica a

dúvida sobre o que acontecerá a todo aquele espólio, a todo aquele imenso

património cultural e pessoal. Relembrando, uma vez mais, o texto de Francisco

Capelo: (...) segue-se a vingança dos que permanecem vivos e talvez esquecidos,

os quais, libertos do laço emocional que ligava o coleccionador aos seus objectos

eleitos, apressam-se sem remorso a dispersar aquilo que foi por si descoberto e

reunido (Capelo, 1999: 17).

89 Ver página 40. 90 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 4ª Entrevista - 07/07/2004, p.187.

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2.2. Como? A organização de um espaço

2.2.1. Discurso Expositivo

2.2.1.1. Salas – As Colecções

Poder visitar estas colecções, seria um admirável mundo novo à espera de ser

apresentado91. Embora Mestre Lagoa Henriques tivesse os objectos muitas vezes

agrupados por espécies ou por tipos, era frequente ver-se objectos de todo o tipo

por todo o lado. As suas preocupações eram sempre de ordem estética e

obedeciam apenas à vontade do seu gosto e da sua interpretação. Museografar

esta colecção nunca poderia passar por alterar as peças dos seus locais originais –

eventualmente um ou outro ajuste de ordem prática – mas nunca alterações de

fundo. Além de que não seria ético desvirtuar o ambiente em que toda aquela

colecção nasceu, cresceu e viveu.

Tornar a colecção “apresentável” passaria sobretudo pela sua limpeza, conservação

e restauro, e pela sua protecção através de ambiente controlado (humidade e

temperatura) e algumas vitrinas em acrílico ou vidro. Todas as peças soltas, que se

encontram sobretudo em prateleiras, poderiam ter esta protecção à frente, o que

não impediria que se pudesse desfrutar delas, mas que as protegeria. Alguns

objectos seleccionados poderiam ser tocados e experimentados na zona prática, da

oficina. Tudo o resto ficaria nos mesmos sítios tendo apenas em consideração

eventuais ajustes de fixação, com vista a maior durabilidade e lógica expositiva.

As salas seriam organizadas por cores segundo a estrutura da colecção sugerida no

presente trabalho no Organigrama das colecções Lagoa Henriques92. Assim sendo,

as Formas Artísticas seriam cor-de-laranja e as Formas Naturais seriam em verde.

Dentro das Formas Artísticas, a Arte Infantil seria em amarelo, as Artes em azul,

(com diferentes tonalidades de azul para África, Américas e Ásia), a Arte Popular a

91 Aqui não se referindo ao Admirável Mundo Novo (Brave New World na versão inglesa) escrito por Aldous Huxley e publicado em 1932, mas recordando a expressão que lhe deu origem, e que está na obra A tempestade (1611) de William Shakespeare, dentro de um contexto bastante diferente. A original é uma afirmação de Miranda, filha de Próspero, a menina que dos três até os 15 anos de idade só conhecia as figuras do amargo pai e do escravo Caliban numa ilha do Mediterrâneo e que quando é apresentada aos inimigos de seu pai ela afirma: Como é bela a humanidade! Ó admirável mundo novo em que vivem tais pessoas! 92 Ver página 80.

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vermelho e as Artes Decorativas a rosa. Dentro das Formas Naturais a Malacologia

seria a bege, a Zoologia a cinzento, a Mineralogia a castanho e finalmente a

Botânica a violeta.

Esta organização por coloração não seria aplicada nos espaços, mas sim um

apontamento nas placas identificativas das salas, e numa planta distribuída à

entrada, que permitiria aos visitantes delinearem o seu percurso ou livremente,

passando aleatoriamente de umas salas para outras, ou por temas da colecção. A

estrutura temática permite que se volte à casa facilmente para ver determinados

objectos ou áreas em que se divide a exposição.

2.2.1.2. Áreas de utilização pessoal

Nem só de zonas de colecções e arte se poderia idealizar este espaço de vida.

Todas as áreas inerentes à função “casa” seriam mantidas tal e qual eram vividas:

Dois quartos de dormir em lados opostos da casa (até neste pormenor

Mestre Lagoa Henriques fugia da monotonia). Um virado para o rio, melhor

em vista mas muito barulhento devido ao trânsito que passa à porta, e o outro

mais recatado nas traseiras do ateliê. Além da “essencial” cama, qualquer

deles era recheado de livros, esculturas, pinturas e outros objectos tão

característicos de todo o espaço93.

A casa de banho, também ela personalizada com desenhos, fotografias e

plantas94.

A pequena cozinha, que era pequena também na utilização (a maior parte

das refeições eram fora do ateliê ou no ateliê do Professor Carlos Amado),

tinha um travo de abandono95.

93 Ver – Anexo I – Fotografias Pessoais MLH – Foto 14, p. 132. 94 Ver – Anexo I – Fotografias Pessoais MLH – Foto 15, p. 132. 95 Excerto da letra da música dos Rádio Macau Amanha é Sempre Longe De Mais, da autoria de Pedro Malaquias.

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2.2.1.3. Zonas de lazer

A multiplicidade de espaços e formas que caracterizam o ateliê de Mestre Lagoa

Henriques inclui diversas zonas destinadas a diferentes momentos de lazer. Todas

essas áreas seriam mantidas tal como estão para que se pudesse perceber como

era viver naquele mundo, como era viver naquele labirinto de níveis e desníveis. Os

vários locais onde costumava ler, escrever, reflectir, sonhar, criar, trabalhar,

desenhar, descansar... enfim, dar aos visitantes a possibilidade de absorver aquele

ar carregado de emoção, arte e mesmo paixão.

Os diversos recantos de leitura, normalmente junto dos vários armários que

guardam todas as obras literárias, onde adjacentes repousam confortáveis

cadeirões, sempre com iluminação individual e apoios para os livros, são disso o

melhor exemplo.96

A sua vastíssima biblioteca seria organizada e colocada à disposição dos visitantes

para consultas in-loco. São centenas de publicações dos mais variados temas, mas

sobretudo relativas às artes e ao mundo fascinante que o rodeava. O próprio Mestre

Lagoa Henriques afirmava vezes sem conta que muitos daqueles livros nem sequer

os tinha lido97, mas faziam parte do seu património cultural e pessoal e podiam

sempre ser consultados quando o acaso assim o exigisse.

Numa outra zona, igualmente inserida naquele labirinto artístico, era a música que

marcava o ritmo. Discos de vinil, cassetes e CDs a perder de vista, também com

uma convidativa poltrona, descansam junto de uma aparelhagem, depois de terem

cumprido a sua função vezes sem conta. O “capítulo” dos audiovisuais, só fica

completo com o canto da televisão, onde dezenas de cassetes VHS (sobretudo com

documentários) mantêm inerte a sua espera.98

96 Ver – Anexo I – Fotografias Pessoais MLH – Foto 16, p. 132. 97 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 1ª Entrevista - 26/04/2004, p.143. 98 Ver – Anexo I – Fotografias Pessoais MLH – Foto 17, p. 132.

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2.2.1.4. Oficina/Ateliê99

A zona de trabalho do ateliê seria mantida tal como está e teria, sempre que

possível, jovens artistas e estudantes a executar as mais variadas obras de pintura,

escultura e desenho para que as pessoas pudessem perceber as várias fases do

processo criativo em belas-artes. Neste local realizar-se-iam os ateliês práticos para

os visitantes e os workshops para os diversos tipos de público.

Seria o espaço mais “vivo” da casa-museu com constante movimentação de artistas

e participantes, de obras e criatividade, de experimentação e cultura. Um espaço

verdadeiramente à imagem do seu criador.100

2.2.2. Design e comunicação

A comunicação gráfica passaria pela aposta de aplicação de títulos conforme os

espaços (a marcar claramente cada local, cor e tipo de colecção, como já foi

referido), mas no entanto não se colocariam legendas escritas nos objectos,

substituindo essa informação por dispositivos áudio que explicariam tudo ao longo

do percurso. Isto ajudaria a resolver também a multiplicidade de línguas em que as

visitas poderiam ser feitas. A população surda, teria à sua disposição um guia de

língua gestual para os acompanhar na visita (mediante marcação). A casa seria,

dentro do possível, acessível a todas as pessoas. Num mundo de objectos tão

fascinantes poderiam ser feitas visitas especiais a cegos, que acompanhados por 99 Embora toda a casa seja um ateliê, aqui a nomenclatura refere-se ao espaço de trabalho. Não confundir com ateliês-museu que são instituições de complemento museológico em espaços que poderão, ou não, ter sido habitados pelo seu mentor e que não são necessariamente casas-museu, como é o caso do Ateliê-Museu António Duarte (1912-1998), inaugurado em 1985 após doação da colecção de arte do Mestre escultor à sua cidade natal, Caldas da Rainha. A ideia inicial de dotar o edifício com um ateliê, visava dar condições para que paralelamente à missão museológica, autores convidados pudessem aí desenvolver projectos artísticos. http://www.cm-caldas-rainha.pt/portal/page/portal/PORTAL_MCR/VISITANTE/MUSEUS/CENTRO_ARTES/ANTONIO_DUARTE; ou do Ateliê-Museu João Fragoso que foi inaugurado a 24 de Setembro de 1994 no seguimento da política cultural da autarquia iniciada com o Atelier-Museu António Duarte. Tal como no primeiro caso, o Atelier-Museu João Fragoso foi um espaço criado com o intuito de acolher parte significativa da obra de um eminente escultor da cidade e simultaneamente criar um espaço oficinal que permitisse dar continuidade à sua produção artística. http://www.oestecim.pt/custompages/ShowPage.aspx?pageid=80064b99-e456-4959-9e8e-dc0c73b0fa6e 100 Ver – Anexo I – Fotografias Pessoais MLH – Fotos 18 e 19, p. 133.

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um guia poderiam sentir parte daquele mundo na ponta dos seus dedos. Toda a

restante informação não contemplada nestas hipóteses estaria disponível num

catálogo Braille sobre o coleccionador e colecção, bastante completo e

pormenorizado com textos e imagens em relevo.101

Toda a informação gráfica dentro e fora da casa, teria imagens retiradas dos

milhares de desenhos guardados nas gavetas dos armários do desenho. Afinal, uma

das grandes vantagens de todo o espólio gráfico deixado por Mestre Lagoa

Henriques, seria precisamente a infindável utilização em prol da comunicação

necessária à divulgação da casa-museu.

2.2.3. Iluminação

O ambiente pretendido para esta casa-museu, nunca poderia desvirtuar o original.

Assim sendo, a iluminação seria maioritariamente zenital (o ateliê possui grandes

clarabóias e janelas nos topos do primeiro andar)102, ou seja com luz natural, com

apontamentos de luz artificial, sobretudo com carácter cénico.

No entanto, para tentar colmatar a falta do “elemento” principal, as paredes,

sobretudo nas zonas de lazer, seriam “pintadas” a luz com tons quentes para

conferir um carácter mais intimista aos espaços e uma noção de habitabilidade, isto

é, uma quase presença do próprio Mestre Lagoa Henriques, recorrendo também a

efeitos de sombras. Com esta técnica de iluminação, pretende-se que este

preenchimento passe o mais despercebido possível ao visitante, mas não deixando

de fazer toda a diferença se a luz não estiver lá, sobretudo ao nível do conforto

cognitivo.

101 Também conhecidas por imagens tácteis, são muito usadas em livros para pessoas cegas (Eriksson, 2008) 102 Ver – Anexo I – Fotografias Pessoais MLH – Foto 21, p. 133.

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2.2.4. Som

O ambiente seria pautado no geral por excertos de diferentes músicas da própria

colecção do patrono, sempre num nível bastante suave para não interferir com os

áudio-guias.

Para além disso, algumas gravações da voz de Mestre Lagoa Henriques fariam

companhia aos visitantes, em determinados pontos estratégicos com o intuito de

aumentar a proximidade do visitante com os objectos. Mais uma vez a noção de

presença, de museu vivo, seria um objectivo.

2.3. Estrutura Funcional

Sabendo que o ideal raramente anda de mãos dadas com o real, uma das

vantagens de conceber um projecto académico é a liberdade para a construção

utópica. Nesta perspectiva, a estrutura funcional de apoio (que é proposta), em

termos museológicos, à casa-museu seria formada por cinco serviços essenciais,

sendo cada um composto por dois a três funcionários, respondendo todos a um

director, que por sua vez estaria sob a alçada da respectiva entidade tutelar.

Em termos de estrutura física, os serviços e elementos que a seguir se descrevem

ficariam situados no pavilhão anexo ao ateliê de Mestre Lagoa Henriques, onde

actualmente se encontra o abandonado projecto Universo Lagoa Henriques.

2.3.1. Serviço Educativo

O Serviço Educativo ficaria encarregue de todas as actividades em torno das

exposições e da organização de visitas. Dentro das actividades, estariam incluídas

as sessões práticas na oficina, organizando a bolsa de artistas (residentes e de

passagem) e respectivo acompanhamento de grupos para estes workshops.

Tratariam das visitas guiadas a escolas e outros grupos e públicos com

necessidades especiais. Teriam ainda que elaborar manuais de acompanhamento

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para professores e alunos e protocolos de todas as actividades educativas para as

escolas.

Teriam também que promover Ciclos de colóquios inerentes à exposição

permanente e a eventuais exposições temporárias, articulando a gestão de

conteúdos com a diversidade de oferta. Esta seria uma das estratégias de

fidelização de visitantes.

Por fim, ficariam encarregues do LAB.CULT que seria mantido em funcionamento,

no mesmo espaço onde sempre existiu, com tertúlias, concertos, recitações,

visionamento de filmes e fotografias, e todas as outras as actividades de índole

cultural e artística que sempre o caracterizaram.

2.3.2. Serviço Expositivo

O Serviço Expositivo teria a seu cargo a organização, estudo, exposição e gestão

da colecção. Fariam toda a inventariação do espólio (segundo o modelo de ficha de

inventário proposto – ver capitulo 5) e manteriam actualizada a base de dados da

colecção. Com um acervo tão vasto seria possível, inclusive, constituir reservas103.

Seria incluído nesta equipa um responsável pela conservação e restauro de todas

as peças, que articularia todas as necessidades neste âmbito com a FBAUL (Curso

de Ciências da Arte e do Património),104 permitindo não só manter uma colaboração

próxima com a faculdade, como também dar hipótese a jovens estudantes do

referido curso de aplicarem na pratica o que estivessem a aprender teoricamente.

2.3.3. Serviço de Comunicação e Marketing

O Serviço de Comunicação e Marketing encarregue de toda a estratégia em termos

de imagem, seria responsável por todo o ambiente gráfico dentro da casa-museu,

bem como de todos os materiais impressos: plantas, catálogos, manuais, posters,

103 Que serviriam para renovação da exposição e empréstimos a outras entidades. 104 http://www.fba.ul.pt/pls/portal/docs/1/275387.PDF

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panfletos e demais grafismos. Além disso, seriam responsáveis por toda a imagem

exterior: comunicação com a imprensa, acções de divulgação da casa (circulação

de peças, por exemplo) e das actividades inerentes (como os ciclos de colóquios),

representação junto das diversas instituições nacionais e internacionais, como IMC

(Instituto dos Museus e da Conservação), APOM (Associação Portuguesa de

Museologia) e ICOM-DEMHIST (comité temático do ICOM para as casas-museu).

Seriam ainda responsáveis pela actualização da página de internet e das páginas

das redes sociais (facebook e twitter).

2.3.4. Serviços Técnicos

Os Serviços Técnicos seriam responsáveis pelo edifício (estruturas, electricidade, ar

condicionado, águas) e diversos equipamentos: mecânicos, audiovisuais, áudio-

guias. Ficariam encarregues de todas as manutenções periódicas (diárias, semanais

e anuais) e de emergência. Incluiriam um especialista informático, responsável

pelos equipamentos informáticos, gestão de bases de dados e pela página Web.

2.3.5. Serviço Administrativo

O chamado Serviço Administrativo seria um serviço algo polivalente, pois teria a seu

cargo os normais serviços de secretariado, e a gestão da loja/bilheteira e cafetaria.

Ficariam encarregues das marcações de visitas. A loja seria não só o ponto de

entrada e saída da casa, acumulando funções de bilheteira, como também o local

de venda de merchandising alusivo ao tema. A cafetaria, além de uma pequena

esplanada nas traseiras da casa-museu, permitiria aos visitantes tomar alguma

bebida aquando da consulta de algum livro em determinados pontos

estrategicamente pensados para esse feito. Seriam como que pequenas zonas de

leitura lounge. Fariam ainda o apoio administrativo à direcção e a gestão das linhas

telefónicas, dando informações e canalizando assuntos para os respectivos

serviços. Teriam uma responsabilidade postural acrescida, pois seriam sempre o

primeiro, e último, rosto da casa-museu.

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2.3.6. Tutela e Organigrama

De uma forma hipotética, e mantendo vivo o deslumbramento que impulsiona este

trabalho, a tutela proposta passaria por uma gestão conjunta entre a Faculdade de

Belas Artes de Lisboa (FBAUL), dona das colecções que compõem o espólio por

doação do patrono em testamento, e a Fundação Lagoa Henriques (FLH)105

proprietária da casa e de toda a sua estrutura106. Seria a FLH a fazer a

administração executiva e a garantir o funcionamento diário da casa-museu, não

deixando no entanto de articular a gestão com a FBAUL. Seria uma casa de

interesse público com gestão de fundos privados.

Em termos estruturais, a Casa-Museu Lagoa Henriques estaria a funcionar de

acordo com o seguinte organigrama:

105 A Fundação Lagoa Henriques seria a continuação do sonho, não passando de uma utopia da presente tese, e seria a solução encontrada para fazer a gestão, coordenação e salvaguarda dos interesses do espólio e da memória de Mestre Lagoa Henriques. 106 Os edifícios (casa-museu e anexo) seriam cedidos a título definitivo pela CML (Câmara Municipal de Lisboa) à Fundação Lagoa Henriques.

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2.4. Informações Gerais107

Em termos de horário, a casa-museu funcionaria de terça-feira a sexta-feira das 10h

às 18h e aos fins-de-semana e feriados em horário alargado das 11h às 22h (24h no

Verão), para permitir o funcionamento do LAB.CULT. O encerramento seria às

segundas-feiras no habitual dia de encerramento dos museus.

Tendo em vista a missão de divulgação de um património que se pretende acessível

e universal, o preço da entrada seria de 2€ para público em geral, 1€ para

estudantes, sendo gratuito para estudantes e professores da FBAUL, seniores,

crianças e demais acordos normalmente tidos com os museus.

A Casa-Museu Lagoa Henriques estaria situada numa das zonas nobres da cidade

de Lisboa, ficando mesmo ao lado do Centro Cultural de Belém e tendo o Padrão

dos Descobrimentos e a Torre de Belém como paisagem complementar.

Contactos:

Avenida da índia, nº168, 1400-207, Lisboa.

Telefone: 213 014 702

Fax: 213 014 700

Email: [email protected]

Página Web: www.cmlagoahenriques.pt

107 Horários, preços, contactos e endereços de internet são dados fictícios, servindo apenas para ilustrar uma hipótese.

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3. Conclusão

Lagoa Henriques. O Coleccionador e a Casa-Museu.

Lagoa Henriques, pretende ser uma porta de entrada para um universo que não é

muito vulgar a qualquer comum mortal. É uma ambientação a um mundo, a uma

maneira de ser, a uma forma de viver que prima pela originalidade e por um cunho

pessoal em todos os seus momentos.

Conhecer Mestre Lagoa Henriques, foi antes de tudo um fascínio. Este trabalho

pretende ser em primeira instância uma homenagem ao homem, ao artista, ao

professor, ao coleccionador, ao ser humano... ousaria mesmo a dizer, ao amigo.

O deslumbrado, sempre foi diferente de tudo e de todos. Os seus sonhos e

pensamentos, ainda em criança, sempre correram velozmente em direcções

diferentes, sempre seguiram um caminho próprio e único. Apaixonado pela vida

desde o dia em que a começou, nunca conseguiu caminhar pelas estradas comuns

e sempre escolheu os seus caminhos e atalhos. Por vezes dava voltas maiores. No

entanto, chegava sempre com um sorriso nos lábios, com um contentamento

singelo por ter descoberto mais alguma coisa simples e que tantos tinham passado

sem ver... tinham olhado, mas não tinham visto.

Toda a sua vida assim foi e foi assim que a sua verdadeira vocação foi descoberta.

Mestre Lagoa Henriques nunca foi mais um no jogo da vida, ele foi sempre aquele

jogador com uma chancela muito própria. Tudo o que implementou no seu trajecto

de artista, tudo o que renovou no ensino, tudo o que transmitiu a tantos e tantos

alunos, deixou marca de grandeza.

Será difícil acreditar, que exista algum aluno que possa dizer que nunca parou para

reflectir pelo menos uma vez nas palavras deste professor. Que não tenha ficado a

pensar como era engraçado nunca ter olhado para aquilo daquela maneira ou nas

linhas de determinado objecto ou como afinal o mundo tem tanta coisa bonita que

deixamos passar sem ver com olhos de ver.

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A sua vida foi repleta de viagens e “viagens”. As que efectivamente fez e todas

aquelas que fez apenas a olhar para qualquer coisa, a pensar, a sonhar. O seu livre

pensamento foi determinante em alturas marcantes, como o período em que foi

bolseiro, como nas primeiras experiências como professor, como nos programas

que fez para televisão, como em toda a sua obra artística... no fundo, como em toda

a sua maneira de encarar a existência. Existir, é uma responsabilidade que

devemos abraçar com entusiasmo, com amor, com deslumbramento.

O Coleccionador, foi um dos aspectos teóricos que se pretendeu abordar neste

trabalho. Primeiro, tentado explicar como o coleccionismo para além de um

fenómeno intrínseco ao acto de viver é um fundamento teórico da museologia,

segundo, deixando a tónica para o coleccionismo de Mestre Lagoa Henriques, como

sequência e consequência da sua maneira de viver, da maneira como “passou” pela

primeira parte deste trabalho.

O coleccionismo é um fenómeno presente em todos nós, mas que na realidade não

damos por ele. Quem se lembra da colecção de memórias que transporta ao longo

da vida? Quem se lembra de pensar nessas memórias como uma colecção? Desde

sempre e até aos dias de hoje, o fenómeno existe com fundamentos e necessidades

que foram variando, mas que tiveram sempre um elo de ligação: a necessidade do

homem de se sentir rodeado e no fundo protegido.

Muitos autores se têm debruçado e teorizado sobre o porquê de coleccionar, sobre

as motivações deste estranho, mas tão natural, fenómeno que nos acompanha em

tantos momentos da nossa vida quase sem darmos por ele. No entanto, ainda há

aqueles que de entre nós – mais uma vez – se destacam e têm plena consciência e

convicção do porquê de coleccionar.

Mestre Lagoa Henriques não tinha dúvida quando teorizava à volta deste assunto.

Para ele, coleccionar era primeiro que tudo uma necessidade quase tão importante

como o respirar ou o comer. Estava perfeitamente definido no seu íntimo que a

colecção era uma companhia que ajudava a combater a solidão, era um vício que

tinha que alimentar para saciar a sua dependência pela vida.

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E a Casa-Museu, porque no fundo talvez seja esse o principal desejo, o

fundamento pessoal por trás deste trabalho. Além da óbvia homenagem que se

pretende fazer ao Homem, seria de todo o interesse que aquela colecção de uma

vida, para cuja sistematização se deu uma contribuição, fosse musealizada. Seria a

perpetuação de um património de uma riqueza cultural incalculável, que se assim

não for, poderá perder-se.

Porque não preservar essa riqueza? Perpetuar os momentos, refazer vivências,

captar instantes de imaginação, de deleite ou de desfrute da vida, são aspectos

fundamentais a reter da vida deste Homem.

Dar a conhecer como e quando surgiu a imaginação e concretização de uma ideia.

Dar a conhecer o mundo dos amigos, os seus interesses, rotinas, excentricidades e

necessidades. Captar e revelar a sua inquietação. Registar e preservar a vida como

a viveu e a bebeu. Captar a eterna juventude da sua perspectiva de vida. Conhecer

o seu humor, o seu alheamento, o que o enternecia, o que o indignava...

Dar a conhecer um mundo de objectos e formas que nunca se pensaria poder

existir. Dar a conhecer o amor pelas coisas, pela natureza, pelos animais.

Reconhecer a arte em tudo o que nos rodeia. A arte das formas naturais e a arte

das formas artísticas. Perceber que há pessoas para as quais viver não é

simplesmente um ritual de passagem, não é uma estada num planeta, não é apenas

uma viagem de ida sem regresso. Viver é um fascínio, é uma descoberta diária, é

uma paixão, é um mote. É uma viagem sim, mas de ida e volta.

É importante não deixar perder toda esta magia, todo este sentimento presente

nesta colecção de vida. A noção de eternidade deve estar bem expressa na

importância desta ideia de projecto. Essa é a grande vantagem que as ideias, os

conceitos e os objectos têm sobre os homens: é que podem ser eternos e podem

ser legados de geração em geração, para sempre.

Lagoa Henriques: O Coleccionador e a Casa-Museu. É primeiro que tudo o início

de um legado.

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Anexo I

Nós fazemos fotografia

Para coleccionar a vida!109

109 Ver - Anexo II – Entrevistas a MLH. 9ª Entrevista - 16/07/2006, p.258.

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Foto 1 – Delfim Augusto Henriques (Pai de MLH)

Foto 2 – Palmyra Castália d`Almeida Lagoa Henriques (Mãe de MLH - 1965)

Foto 4 – MLH no Sanatório das Penhas-da-Saúde (1947)

Foto 3 – Jacinto José Pedro Henriques (Avô de MLH)

Foto 5 – MLH a evolução de um sorriso.

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Foto 8 – Prova de Desenho de MLH aos 11 anos (1934)

Foto 6 – Visto de permanência em Milão.

Foto 7 – O orgulhoso artista (1947)

Foto 9 – Texto nas costas da foto: Recordação do mérito artístico de António Augusto Lagoa Henriques, nesta bela revelação de arte. Julho de

1946. Ema da Luz Henriques.

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Foto 11 – Figuras/Estrela do bom sucesso. 18 de Outubro de 1993. Tinta permanente e café s/ papel. (Estrela do Bom Sussexo)

Foto 10 – Camões. Estudo para escultura levantada na Vila de Constância. Junho de 1980.

Bronze fundido patinado a negro/folha de Flandres.

Foto 12 – O autor desenhado por MLH em 2006.

Foto 13 – A amizade de MLH.

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Foto 16 – Ateliê MLH. Recanto de leitura.

Foto 17 – Ateliê MLH. Canto da televisão.

Foto 14 – Ateliê MLH. Quarto.

Foto 15 – Ateliê MLH. WC.

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Foto 21 – Ateliê MLH. Iluminação zenital.

Foto 18 – Ateliê MLH. Oficina. Ideias e ferramentas.

Foto 19 – Ateliê MLH. Oficina. O processo criativo.

Foto 20 – Juntos. Almoço convívio da turma do Mestrado de Museologia e Museografia. (2004)

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Anexo II

Entrevistas a Mestre Lagoa Henriques

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Entrevistas a Mestre Lagoa Henriques

1ª Entrevista – 26/04/2004

(…)

Lagoa Henriques (L.H.): Pois, quer dizer… esse encontro do amador das artes

com os artistas vivos é uma situação que se passa em várias épocas. Em que

realmente esse amador procura o artista que admira e faz-lhe perguntas, procura

aproximar-se do seu trabalho. De um modo geral os artistas são generosos nessas

situações.

Eu estava a falar do Rodin. Rodin… a um certo momento bate-lhe à porta do ateliê

um professor do ensino secundário, que é o Paul Gsell, que lhe propõe que ele

conte um pouco a sua história, a sua aventura no mundo das artes. E o Rodin acede

e essas conversas estão reunidas num grosso volume, que é fundamental para o

entendimento do escultor, mas sobretudo, para o aparecimento da arte moderna.

Porque Rodin é, digamos, o Picasso da escultura, é o homem que revoluciona

totalmente a linguagem da escultura dentro de aproximações e critérios que

ultrapassam um sistema, digamos, académico, estático, repetitivo.

Bruno (B): Como se chama o livro?

L.H.: Há uma tradução portuguesa e uma tradução brasileira. O título no original é

L'art / Auguste Rodin: entretiens réunis par Paul Gsell. É uma leitura muito

interessante porque é muito vivo, porque ele consegue esses depoimentos de Rodin

através de visitas. Visitas aos 3 ateliês de Rodin, que teve vários ateliês. Ele

aparecia discretamente, Rodin mandava-o entrar e às vezes até se esquecia que

ele lá estava e ele ia tomando notas. Até relativamente às coisas que o Rodin…

como ele mexia nos materiais e ia-lhe fazendo perguntas… Por outro lado, criou-se

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uma amizade muito forte entre os dois e Rodin também lhe contava como tudo tinha

acontecido, porque Rodin fazia muitas vezes vários trabalhos ao mesmo tempo. O

que muitas vezes acontece comigo, porque o trabalho de escultor cruza-se em dois

aspectos: um que é o trabalho, digamos, de encomenda, o trabalho que é solicitado

por uma instituição ou particular e depois há o trabalho em que o artista… a que eu

chamo a escultura íntima, que é feita… porque não pode ser deixada de fazer. É o

risco inadiável com que eu defino o desenho, aplicado à escultura. Eu lembro-me

muitas vezes… e agora quando estava lá em Florença, estava a ver uma exposição

de fotografia de um fotógrafo americano e eu apartir daquelas fotografias estava a

imaginar fazer umas pequenas peças para mim. É o fascínio de começarmos a

desenhar uma coisa que nem sabemos que vamos desenhar. Há aí uma raiz,

digamos, gestual que tem que ver com uma certa tensão emocional e também com

um certo universo de memórias próximas ou longínquas, que eu costumo dizer que

são os momentos mais felizes, mais significativos da nossa vida. O processo, a

secreta linguagem da criatividade tem muito que ver com a tentativa que nós temos

de agarrar os momentos mais importantes da nossa vida. É a definição do Almada

Negreiros: ”o desenho é o nosso entendimento a fixar um instante”. Portanto, um

sentido dinâmico de existência, como diz o filósofo Grego: ”o homem nunca se

banha duas vezes na mesma água do mesmo rio”. Essa singularidade de

experiências faz com que algumas tenham para nós uma importância singular.

Podem ser coisas extremamente simples e humildes que desencadeiam em nós

desejo de as aprisionar, de as formalizar, de as corporizar. Estamos aqui numa

teoria, digamos, da escultura, ou do desenho, uma teoria de arte que tem que ver,

no meu caso pessoal, com a convicção (de resto isso até está escrito lá na minha

exposição) de que a raiz de todas as artes é a poesia. Depois eu faço aquela

citação do Platão e do Aristóteles. Para mim isso é muito claro, faz parte da minha

personalidade como explicação desse mistério, eu diria das artes, mas

nomeadamente das artes que estão ligadas ao meu trabalho da escultura e do

desenho.

Isto veio a propósito de estar a aconselhar L`Art do Rodin. Há outro livro muito

interessante de um escultor dessa época que foi discípulo de Rodin, que é o

Bordell. Há também um livro sobre ele que se chama “Conversações com

Bordell” que é também uma recolha de entrevistas de outro autor…

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B: Para mim é óptimo porque dá também uma orientação para as nossas

conversas. Pode ser interessante para eu ter uma base.

L.H.: A base fundamentalmente é essa, quer dizer, nós quando atingimos um

determinado percurso, temos uma história… a infância, depois a adolescência,

depois a juventude, depois entramos já na idade adulta. Vamos avançando no

tempo, o tempo vai-nos esculpindo e nós também vamos esculpindo o tempo. Há

aqui uma dialéctica…

B: “O tempo esse grande escultor!”

L.H.: Da Marguerite Yourcenar, nunca esquecer porque é realmente… No meu caso

pessoal, precisamente pelas minhas afinidades com as artes e pela minha paixão

pela poesia e pela literatura… houve sempre uma relação muito íntima entre a

palavra e a imagem… percebes?

Os poetas e os romancistas e até os filósofos, ensinaram-me a descobrir o mundo,

a descobrir a vida, compreendes? Portanto, um dos poetas que para mim foi muito

importante foi o Cesário Verde. O Livro de Cesário Verde. Foi o homem que me

ensinou a ver a realidade exterior, eu disse isso uma vez numa entrevista. Assim

como o Fernando Pessoa me ensinou a ver a realidade interior. O que não quer

dizer que o Pessoa também não tenha uma abordagem pela realidade exterior, pela

natureza, pelos objectos… mas a mim, isso já me tinha sido dado, (por razões

temporais eu li o Cesário antes de ter lido o Pessoa) e, portanto, o Cesário ensinou-

me a ver muito tudo o que o homem… sobretudo o sentimento… quer dizer, é um

livro que tens que ler para fazeres o trabalho sobre mim, é: “O Livro do Cesário

Verde”. Que é básico, é um livro de que eu muitas vezes lia pedaços naquela minha

cadeira da Escola de Belas Artes, a Comunicação Visual.

B: Acha que essa ligação entre a poesia e a escultura é uma característica muito

sua? Ou pensa que é normal nos escultores?

L.H.: Vamos lá a ver uma coisa… Voltando ao Bordell, numa daquelas entrevistas

que foi feita ele dizia esta frase que podes tomar nota: “O difícil não é ser-se

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escultor, é ser-se artista!”. A frase é inteira do Bordell. Depois ele argumentava, e

agora as palavras não são as exactas que ele terá empregue, que realmente as

técnicas se aprendem, não é? Mas há muitos técnicos de escultura e de pintura,

que não são artistas. O artista é o homem que faz a passagem, como diz o Platão,

do não ser ao ser. Percebes? É o homem que imagina, que vai para além de.

E, como diz o nosso caríssimo António Aleixo:

A arte é dom de quem cria.

Por isso não é artista,

Aquele que só copia

As coisas que tem à vista!

Portanto, “quem conta um conto, acrescenta um ponto!”. Isso é muito interessante.

Eu a uma certa altura fui convidado para fazer uma conferência na Casa da

Imprensa em Lisboa. Fui eu e aquele homem que esteve ligado à Gulbenkian,

professor de história de arte… o Dr. Artur Nobre de Gusmão. Eu lembro-me que

comecei a minha conferência com esse adágio popular: “quem conta um conto,

acrescenta um ponto!”. Porque a sabedoria popular é nobre! Mais tarde fizeram-me

uma entrevista, para uma série de artigos sobre artes populares, de que eu tenho ali

uma fotocópia… em que me sirvo também dessa frase. Porque realmente isso é

importante, está na génese. Quer dizer, na génese de todas as artes. A arte viria…

agora estou a dar-te aqui uma definição minha que nunca a disse, ou terei dito mas

sem esta força de síntese que agora estou a empregar na conversa presente: “A

arte é uma exaltação da vida!” É na medida em que os artistas exaltam a vida, dão-

lhe uma outra escala, obrigam as pessoas a compreendê-la melhor. Estou-me a

fazer entender?!

B: Perfeitamente!

L.H.: E portanto, os artistas ensinam o homem a descobrir os valores da existência.

Valores estéticos, valores éticos, valores poéticos. Dentro desta linha de reflexão

sobre o universo das artes, e portanto, na relação que há entre arte erudita e arte

popular. Como tu sabes uma das coisas que caracteriza a minha produção artística

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é o meu perfil pedagógico, porque eu considero-me, tanto ou mais, realizado como

professor do que como artista. No fim de contas, um professor é também um

artista…

B: Se não é devia ser!

L.H.: … simplesmente modela, utiliza materiais que são o próprio corpo dos seres

vivos. Quer dizer, os jovens (as raparigas e os rapazes) que nós conhecemos, que

se aproximam de um curso que escolheram, seja ele qual for, mas neste caso das

artes plásticas, são realmente elementos que nós trabalhamos e que nós

procuramos modificar através de uma determinada argumentação, de uma

determinada sensibilização, de uma determinada chamada para valores que nós

consideramos essenciais. No meu caso especial, eu sempre tive esta preocupação

e agora vou citar-te mais uma frase minha: “O problema de todos os tempos, é que

o segredo para se atingir uma harmonia construtiva, é conciliar, na medida do

possível, a técnica, a estética, a ética e a poética!”. Isso é uma frase fundamental na

minha pedagogia e na minha maneira de estar na vida. Porque eu estou

permanentemente a pensar nisso.

Eu todas as noites escrevo aqui, tenho os meus blocos onde vou escrevendo

coisas. Nós estamos a viver um mundo altamente conturbado em que… tu ontem

(Nota: 25/04/2004) ouviste a minha intervenção quando eu falei no desconcerto do

mundo, lembras-te?

B: Perfeitamente!

L.H.: … já o Camões pensou nisso! E não só o Camões, quer dizer… o poeta é o

homem que pretende que se anule, na medida do possível, o conflito, percebes tu?

A agressão, a guerra. Eu diria que o artista (também é uma frase minha) é

fundamentalmente um construtor de harmonias. Seja ele um músico, seja ele

realmente um poeta, seja ele um romancista, enfim… tudo aquilo que constitui

matéria de arte. Tem muito que ver com a construção da harmonia. A harmonia

manifesta-se através de uma estrutura organizada, portanto que conduz a uma

unidade de comunicação.

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Está a ser gravado, não está?!

B: Tudo, até agora!

L.H.: Porque há coisas que eu estou a dizer, que já disse, mas neste momento

estou a dizê-las de uma forma mais sintética e mais feliz! E porquê?! Agora até é

interessante… é porque eu hoje tive um dia complexo, ontem tive um dia muito

carregado porque de qualquer modo eu fui o autor daquela escultura. Eu quando

olho para as coisas que faço sei que fui eu que as fiz, o que me responsabiliza

extraordinariamente, mas olho-as como se não fosse eu que as tivesse feito. E isso

cria-me um balanço que por vezes é muito… eu não queria empregar simplesmente

a palavra forte… é perturbante! Porque nós poderíamos ter feito melhor do que

fizemos! Matisse tinha muito dessa consciência… diz??

B: O espírito crítico exalta-se nessa altura, não é?

L.H.: Exactamente! Matisse tinha muito essa consciência, dizia eu, já no fim da sua

vida. Já ele estava numa cadeira de rodas e desenhava com uma vara enorme e

recortava aqueles papéis… desenhava com o papel. Não era já com o lápis, mas

era com a tesoura. Aquele ciclo do Jazz que é formidável. Mas ele dizia que tinha

feito todo o possível para fazer o melhor que sabia e o melhor que podia, portanto

sentia-se… de um certo modo justificado. Nós… numa outra conversa eu vou

buscar o livro do Matisse, que está sublinhado, porque sabes que o meu ensino nas

escolas de Belas Artes do Porto e de Lisboa foi sempre um ensino com uma

expressão simultânea técnica e prática. Eu não me limitei a ensinar as técnicas do

desenho ou da escultura. Eu aqui em Lisboa só ensinei escultura durante um ano,

ano e meio, quando foi o 25 de Abril, porque os alunos exigiram e perante essa

exigência dos alunos o Conselho Científico, quer dizer a direcção, viu-se obrigada

precisamente… e propôs-me que eu ficasse lá como professor de escultura. Depois

aquilo abrandou e um professor de escultura uma vez disse-me:

- Mas ó Professor isso já está, isso já passou! O senhor é professor de desenho,

não é professor de escultura!

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E eu disse:

- Ó Professor sim senhor! Com certeza!

Eu se estive um ano a ensinar escultura, foi porque os alunos pediram! Eu fui

professor de escultura, mas no Porto! Eu comecei por ser professor de escultura no

Porto. Depois do Porto fiz o concurso, não para professor de escultura, mas para

professor de desenho porque houve um atraso na entrega dos documentos aqui na

Direcção Geral do Ensino Superior de Belas Artes. O Prof. Carlos Ramos e o Prof.

Barata Feyo ficaram muito tristes. Mas depois disse-me o Carlos Ramos:

- Ó Lagoa Henriques há males que vêm por bem! O senhor se tem feito o concurso

com os outros seus colegas certamente ganharia. Mas agora, vai abrir um concurso

para professor de Desenho e a Escola vai lucrar imenso com isso, porque o senhor

em vez de ser professor só de escultores, vai ser professor de escultores, pintores e

arquitectos!

Isto porque o desenho é uma cadeira comum. E assim aconteceu, eu concorri com

um pintor, ganhei esse concurso e desenvolvi, realmente, a minha acção de

professor de desenho.

Mas, estava eu a dizer que o meu ensino firma-se fundamentalmente num

cruzamento contínuo, digamos dialéctico, entre a teoria e a prática. Portanto, a

propósito do nascimento de uma forma, eu muitas vezes procuro desvendar, sugerir

ao aluno porque é que essa forma apareceu, quais foram as razões que o levaram.

Já se sabe que há exercícios pontuais, sobretudo nos primeiros anos, que têm que

ser feitos como destreza técnica, mas também, e antes de tudo, e aí é que é a

minha visão mais original, eu encontro nas minhas funções de professor a mesma

originalidade que tenho nas minhas funções em termos de criador de imagens.

Se há algum valor que eu tenho é ter uma personalidade. Mas, o problema da

personalidade na arte aplica-se no meu caso de uma forma muito evidente, porque

eu não estou agora aqui a fazer qualquer crítica negativa relativamente a muitos

colegas meus que se limitam a fazer variações sobre temas. Eles vão… todos nós

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temos influências, eu também as tive dos meus professores, do Prof. Barata Feyo,

(?) Gomes, do Mário Marini, sou um apaixonado da cultura egípcia com certeza, da

escultura moderna do Bordell, do Rodin, do Mayol, quer dizer desses homens com

quem eu contactei, muitos deles ainda vivos e que para mim foram importantíssimos

e que portanto têm ressonâncias. Mas, procuro sempre personalizar e é essa

personalidade que me dá estilo próprio e uma determinada diferença…

B: Uma imagem de marca, não é?!

L.H.: Ora exactamente! Entre aspas! Estou a contar-te já uma série de coisas que

são importantes e que têm que ver com a minha formação.

Mas, nós estávamos a falar um pouco nos sistemas de abordagem relativamente

aos críticos de arte que procuram entender e conhecer um determinado artista.

Estávamos a dar exemplos de artistas quase actuais e contemporâneos que agora

já não existem, não é?! Mas, é frequente o crítico de arte, ou o investigador, ou o

historiador de arte aproximarem-se de um artista, interrogá-lo!

B: Se calhar se essas pessoas não tivessem tido essas iniciativas, os artistas

desapareciam e perdia-se… Uma das minhas intenções é exactamente não deixar

que isso aconteça…

L.H.: Já se sabe que o nosso querido Leonardo DaVinci escreveu os seus “carnets”,

que são documentos espantosos em que conta tudo e… eu tenho ali, depois

mostro-te… é notável como aquele homem ia escrevendo tudo aquilo que descobria

e essa escrita era uma escrita simultânea, uma escrita gráfica, através da palavra,

da letra e uma escrita através do desenho. Portanto, há esse cruzamento de

informação que é um fascínio, é realmente genial!

O nosso querido Picasso também escreveu bastante. De facto um livro fascinante

do nosso Picasso, parece que é este… Catálogo de Obra Gravada… não… não é

este… temos que ver qual é… aqui está! Isto é uma loucura! Por aqui encontras

tudo o que ele foi escrevendo… uma peça de teatro, pensamentos… repara o

grafismo disto tudo!

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B: Tem mesmo as imagens do que ele escreveu!...

L.H.: Exactamente! Isto é tudo escrito por ele. `Tás a ver as caligrafias disto tudo.

Isto é um espanto! Se tu me perguntares eu não li isto tudo… sabes que para mim o

livro tem um… eu sou um leitor muito particular! Eu em vez de ler um livro de fio a

pavio, de um modo geral, nesta fase da minha vida, porque quando eu tinha os

meus 17/18 anos e comecei a ler romances eu então lia de ponta a ponta, mas

depois de uma certa altura o livro para mim é um objecto misterioso, é uma dádiva

secreta e eu tenho este livro… e hoje abri aqui… Portanto, a pessoa abre e há

coisas que não leu ainda e que vai depois ler! É um fascínio!

B: A pessoa deixa-se levar, não é?

L.H.: Exactamente! É um fascínio! Isto veio a propósito desses escritos do Picasso.

Portanto, houve uma altura em que se acreditava que o artista plástico era estúpido!

Que só sabia fazer bonecos…

B: E que não sabia escrever…

L.H.: E não sabia escrever! Mas não acontece, o que acontece é que a maior parte

deles escreveram…

B: E o que escrevem, escrevem bem, não é?!

L.H.: Muito bem! O Miguel Ângelo era um extraordinário poeta…

B: São pessoas que são sensíveis por natureza, como tal, provavelmente, também

têm facilidade na escrita…

L.H.: Exactamente! Ora nesta primeira conversa informal, eu para tirar o livro a uma

certa altura tirei isto… mas o que é isto?! Isto foi uma coisa que eu apanhei, que eu

apanhava do chão, percebes? Que para mim são importantíssimas, isto em si…

B: Lá está a sua vertente de coleccionador!

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L.H.: Ora aí está! Portanto isto era uma zona industrial em que apareciam estes

bocados de coisas… isto está virado aqui e eu deixei ficar… já se sabe que depois a

uma certa altura eu posso servir-me disto e começar a trabalhar com isto. É o meu

fascínio pelas coisas inúteis, de resto aqui está um aspecto que tem que ver um

pouco como o nosso Picasso. ”O que não procuro encontro”. E a uma certa altura

quando eu começo a coleccionar coisas, ainda não sabia que o Picasso

coleccionava coisas, objectos, coisas inúteis!

B: Aparentemente inúteis!

L.H.: Aparentemente inúteis… Ora bem, mas estávamo-nos então aqui a

surpreender e a falar nas formas de descoberta do artista. Um artista conta, o artista

escreve, é procurado por esses estudiosos da arte e, sobretudo na arte moderna e

na escola de Paris, a maior parte daqueles artistas tiveram poetas e tiveram

realmente literados que se aproximaram deles estabelecendo conversas que hoje

nos revelam realmente o segredo, desvendam um pouco o segredo da criatividade.

Nós quando atingimos uma determinada idade e uma determinada maturidade

interrogamo-nos sobre as razões porque nós tomámos um certo caminho na vida,

porque a vida é feita de opções. Nós somos todos iguais e todos diferentes, como

sabes, mesmo uma turma, uma geração… O professor diz a mesma coisa aos

alunos e um interpreta essa transmissão de uma maneira e o outro de outra! Isso é

interessante…

B: É a interpretação pessoal, não é?

L.H.: Exactamente! Que tem que ver com a sua própria formação e que tem que ver

também…

B: Com a sua sensibilidade!

L.H.: … e com a ancestralidade. O que vem do teu pai, da tua mãe, dos teus avós…

mas, também levanta outro problema interessante, que é para além da

racionalidade, as coisas acontecem sem nós sabermos porquê. Fernando Pessoa

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interpreta isso maravilhosamente, porque é que uma pessoa sai de casa e vi numa

determinada direcção, mas a um certo momento decide que não vai por essa rua e

vai por outra. E ao passar por essa rua ou pode ver uma montra de uma livraria ou

pode ver uma árvore, ou pode ver figuras anónimas… É uma coisa estranha! O não

deliberado, eu quase que chego à conclusão que é tão importante, ou mais

importante do que aquilo que é deliberado, estou-me a fazer entender? Porque…

não se sabe bem! São coisas misteriosas, mágicas. Poder-se-á dizer que o excesso

de racionalismo pode destruir um pouco, entre aspas, a vida de um homem. Pode

empobrecê-la, pode torná-la…

B: Um tanto ou quanto fria… não é?

L.H.: Exactamente! Exactamente!

B: Devemos deixar talvez o instinto assumir algumas decisões… não é?

L.H.: Exacto! Eu gostaria que as nossas conversas… é natural que seja mais eu a

falar do que tu, mas eu gostaria que as nossas conversas tivessem também uma

expressão dialogada, porque…

B: Dentro do possível, mas ao princípio estou um pouco mais expectante…

L.H.: Com certeza, com certeza! Porque isto é uma oportunidade interessantíssima!

Repara que nós agora estamos a viajar no tempo, estamos a lembrar-nos da

filosofia grega e sobretudo dos diálogos de Platão e da teoria Socrática. O Sócrates

falava com aqueles jovens, ia-lhes fazendo perguntas.

Eu sou um pouco disperso…

B: Não se preocupe que eu tenho mais! (substituição da cassete)

L.H.: Como tu já reparaste eu sou um pouco disperso… Mas essa dispersão…

B: Para mim um dos fascínios é esse mesmo, essa capacidade de…

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L.H.: … essa dispersão é consequente de… é como as folhas, as folhas orientam-

-se em determinado sentido, estão à procura de uma luz. E eu procuro ser o mais

natural possível, porque acho que o segredo da harmonia possível, é realmente a

aproximação com a natureza. Uma aproximação em que nós nos entregamos

inteiros àquilo que nos aparece na vida. Lá está o poema do Fernando Pessoa:

Para ser grande, sê inteiro: nada

Teu exagera ou exclui

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és

No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

Brilha, porque alta vive.

Ora bem, isto foi um poema que me marcou extraordinariamente!

B: Está ali em baixo, estive a lê-lo agora…

L.H.: Está ali e está gravado no mausoléu que eu fiz ali para o claustro dos

Jerónimos. Não sei se te contei já esse episódio…

B: Não, eu li-o aqui nesta folha, mas prefiro ouvi-lo contado por si!

L.H.: O que é que acontece…? A um certo momento eu apaixono-me pelo

Fernando Pessoa, porque através… vê lá tu… o Fernando Pessoa é-me sugerido e

entregue por um homem que era um grande crítico de arte e também romancista e

ensaísta, que era o João Gaspar Simões, que ia todos os anos passar as férias à

Nazaré. Ora bem, eu desde que nasci, e até aos meus 20 anos, ia sempre passar

as férias à Nazaré durante Agosto e Setembro. Eu, os meus pais eram de origem

humilde, o meu pai trabalhava no comércio, a minha mãe foi professora e nunca

tivemos automóvel e fazíamos, portanto, as viagens à Nazaré por uma empresa de

camionagem que era Os Capristanos (que ainda hoje existe). Nessas viagens, eu

conheci o Gaspar Simões, o João Gaspar Simões com a sua primeira mulher e com

a filha. Eu nessa altura já devia ter os meus 15/16 anos e já tinha lido umas coisas

do Gaspar Simões, romances, ensaios. Ele era crítico literário do Diário de Notícias

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e conhecia-o também de fotografias. Até que uma vez, numa daquelas viagens dos

Capristanos, ele ficou ali perto de mim e a filha e a mulher ficaram noutro banco,

depois havia aquela coxia central da camioneta e eu fiquei com ele ao meu lado.

Naturalmente começámos a conversar. Ele teve muita influência na minha

formação… depois mais tarde reapareceu Gaspar Simões, já numa outra fase da

minha vida, quando ele está com a Isabel da Nóbrega, aquela minha grande amiga!

Isabel da Nóbrega é uma rapariga, filha de um grande médico ali de Cascais, de

quem tem 3 filhos, mas aquele casamento a uma certa altura enfraquece porque ele

não tinha, digamos, aquela curiosidade, aquela sensibilidade que ela tinha. E então,

ela separa-se dele e há ali um encontro com o Gaspar Simões porque ela começa a

escrever e ela vive durante muito tempo com ele. Ela é uma mulher espantosa, tem

uma vida… um romance! Depois com o Gaspar Simões aquilo também acaba, mas

acaba de uma forma… porque as pessoas… as relações humanas não são fáceis!

B: Nada mesmo!

L.H.: E portanto, o Gaspar Simões, mais velho que ela… Eu agora estou a fazer

uma comparação com a minha própria vivência, do enriquecimento e eu continuo a

ser uma pessoa alegre, tu conheces-me um pouco como professor teu que fui, não

é?! Um apaixonado, um deslumbrado! Mas, também tenho as minhas crises de

melancolia, de inquietação, consequentes da idade. A pessoa torna-se um pouco

exógena, quer dizer fecha-se um pouco sobre si própria, deixa de conviver. Eu ia

imenso a concertos, a exposições, agora vou muitíssimo menos. Estou aqui neste

meu canto, tenho ali outro que tu já conheces, depois tenho ali outro que é a sala

das claraboias, é a sala dos biombos, é a sala das estantes e esta é a sala da janela

porque eu levantei este chão para poder ver aqui neste maple, que era do meu avô

e que já foi forrado três vezes, ali o Tejo, para ver a Doca do Bom Sucesso e ver a

outra banda! Mas então, o Gaspar Simões começa a tornar-se, começa a encimar-

se muito e a Isabel da Nóbrega que gostava imenso de ir a toda a parte disse-lhe:

“Ó João, eu compreendo o teu… mas tens que me deixar livre porque eu quero

continuar a contactar com as pessoas!”. Ela tem um livro lindíssimo que se chama

“Viver com os Outros”, um romance espantoso! Ela recebeu muito dele. Ele

influenciou-a muito, mas a certa altura resolveram separar-se precisamente por

causa disso. Agora vê a qualidade desta mulher… isto parece que não tem nada a

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ver com as nossas conversas e é isto que é importante que se fale, o artista é antes

de tudo um ser humano, dizia o Rodin: “é preciso ser homem, antes de ser artista!”,

é uma frase dele espantosa que me influenciou muito!... Portanto, ela resolve

separar-se, mas nessa altura ele tem uma crise de saúde, tem um problema de

próstata, vai ser operado e ela diz:

- Não, não. Eu já não me separo de ti. Eu vou acompanhar-te nesta fase difícil da

tua vida!

E portanto, continua com ele, ele é operado tudo corre bem, recupera, fica

praticamente bem e então nessa altura é que ela se separa. Portanto, isto vem a

propósito destas metamorfoses dos sentimentos e dos comportamentos… porque é

que eu falei disto??

B: Estava a falar do Gaspar Simões e da influência que ele teve e as viagens…

L.H.: ah e da Nazaré…era por causa de Fernando Pessoa! É, então, ele que me

revela o Fernando Pessoa, eu já o conhecia mais ou menos, mas ele estava nessa

altura a escrever uma biografia do F.P., que ainda hoje é a melhor biografia do F.P.

Um grosso volume. Depois fez uma biografia de Eça de Queiroz e era um homem

com uma cultura espantosa. E o F.P. entra na minha vida…Depois há aquela

coincidência de eu morar na rua dos Douradores e do F.P. durante um determinada

época ter morado nessa rua. Eu tinha mais ou menos 15 quando morre o Fernando

Pessoa, eu tenho isso tudo apontado, possivelmente tê-lo-ei visto. Mas não o

reconheci, depois na esquina do meu quarteirão em frente há o Abel Pereira da

Fonseca onde ele ia tomar os seus copos, até há aquela fotografia em “flagrante de

litro” em que ele está a beber um copo. E ele esteve hospedado em quartos

alugados, em casa de uma senhora que era grande amiga do meu Avô e quando

ele sai daquele quarto e vai para outro quarto, deixa lá uns livros que essa senhora

um dia me ofereceu. Eu tinha 3 livros, 2 deles assinados pelo F.P., vê lá tu, com o

meu incêndio aquilo desapareceu tudo!

B: Isso era um tesouro!

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L.H.: Era o “Só” do António Nobre, era “As Flores do Mal” do Charles Baudelaire e

um livro inglês que eu já não me lembro do nome. Portanto há essa aproximação e

há então um corpúsculo dele que ele escreve em que ele diz que há um universo na

Rua dos Douradores. Um dia hás-de ver o vídeo que fiz sobre o Fernando Pessoa,

que precisamente vai buscar esse texto para construir as imagens. Isto foi a

propósito dos poetas que me influenciaram, eu sou muito influenciado pelos poetas,

quer dizer, tive um grande professor de português quando estava no liceu, que era

dos Açores, eu andei num colégio particular ali perto do Saldanha que era o D.

Filipa de Vilhena. Tive excelentes professores. Este não me lembro o nome. Tive

um professor de ciências que era o Dr. Roque que fazia aquelas experiências.

Depois tive um professor de História formidável, pai de uma grande personalidade

do 25 de Abril que era o Dr. Álvaro Cunhal, portanto o pai era o… Dr. Avelino

Cunhal! Formado em direito, professor de história, bem… tu não podes imaginar o

que eram aquelas aulas, a actividade daquele homem. Um homem muito distinto, a

mulher tinha uns certos dinheiros, era Alentejana. Ele tinha 2 ou 3 fatos, vestia com

um bom gosto espantoso, lembro-me tão bem disso… fato cinzento com uma

gravata verde e umas peúgas verdes, noutros dias um fato azul escuro em que

trazia uma gravata vermelha e as meias vermelhas. Isso pra nós putos, que

tínhamos na altura 15/16 anos, aquela figura era muito marcante e depois tinha uma

cultura espantosa, era um homem que escrevia para o DIABO, que era um jornal da

época, desenhava admiravelmente… Portanto, tive professores excepcionais que

me marcaram de uma maneira notável.

Isto foi a propósito do Fernando Pessoa e da Rua dos Douradores e da

comunicação e da influência que os outros têm sobre nós, que nos vão passando a

mensagem, o testemunho, através das várias linguagens de expressão, portanto, da

palavra e da imagem!

B: Nós somos, no fim de contas, o fruto de tudo o que nos rodeia!

L.H.: Exacto! Eu escrevi uma vez uma coisa… há muitas coisas que eu escrevi que

desapareceram, uma parte muito significativa da minha obra. Eu perdi 40 anos da

minha vida! Só permaneceram as obras públicas, uns bronzes, o mármore ficou

todo estalado, o granito…

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B: Entre eles “O Segredo”, não é?!

L.H.: Pois. O granito ficou reduzido a areia, uns desenhos queimados e todas as

minhas coisas escritas desapareceram. E a mim isso faz-me uma falta…

B: E livros e livros…

L.H.: Pois, a minha biblioteca que era maior que esta. Livros autografados daqueles

tempos que eu estive em Itália, na Grécia, no Egipto, conheci aquela gente toda,

romancistas, homens do cinema, escultores, gente do teatro, Anna Magnani,

conheci toda aquela gente… e tinha fotografias autografadas. São momentos

difíceis que eu evoco, apesar do dramático do incêndio, ainda com uma grande

alegria, com uma grande ternura, com uma grande satisfação, percebes? Esse

contacto que eu tive, essa oportunidade que eu tive de falar com essa gente…

B: Quando é que foi o incêndio?

L.H.: Isso posso dizer-te, foi em 1973. Num fim de tarde, naqueles antigos pavilhões

da exposição do mundo português, junto à estação fluvial de Belém. Ali existiam uns

pavilhões cuja terra pertencia ao porto de Lisboa e as construções à Fazenda

Pública. Estivemos ali, todos escultores, António Duarte, João Fragoso, Barata

Feyo, Francisco Franco, Leopoldo de Almeida, Raul Xavier, Martins Correia, depois

mais recentemente o Carlos Amado, Maria Helena Matos, o Hélder Batista… tudo

aquilo foi ocupado por ateliês de escultores. Era realmente uma convivência muito

interessante e o facto de estarmos ali próximos do Tejo, também a alguns de nós

nos marcou bastante.

Eu sou uma pessoa que sou muito tocada… até esta música dos comboios me

acompanha e me marca, percebes? Não me perturba. Já se sabe que houve uma

altura em que morei na linha do Estoril, depois da morte do meu Pai, portanto eu

venho da Rua dos Douradores, vou morar pró Estoril. Eu fui inquilino do Pai do Prof.

Carlos Amado…

B: No Estoril?

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L.H.: Em São Pedro do Estoril. Vivi ali uns anos, não sei quantos… isso tenho que

lhe perguntar a ele porque eu nunca sei as datas nem os tempos. E portanto,

morava perto também da estação dos comboios e isso não me aflige nada! `Tás a

ver que eu aqui tenho um cruzamento, um trânsito cruzado entre os comboios, os

automóveis, por outro lado os peões… do outro lado da linha, não na Av. da Índia,

mas na Av. Brasília, eu ali tenho a Doca do Bom Sucesso, aquele espectáculo

tremulante dos mastros e tenho com grande frequência um espectáculo de

atletismo, da malta que vai ali correr, da tropa, da marinha… tudo ali aparece, os

ciclistas, é um espectáculo permanente. Eu sempre vi a vida como um espectáculo.

Sempre tive essa capacidade de deslumbramento e conseguia conciliar o aspecto

dramático da vida com os seus desencontros, com as suas guerras, com os seus

desastres, com a dádiva do espectáculo, do movimento urbano. Isto tudo na cidade

porque depois na terra e no mar…

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2ª Entrevista – 28/04/2004

B: A propósito da nossa última conversa, tinha-me dito que deu umas entrevistas

para uns artigos sobre a arte popular…

L.H.: Sim e tenho ali uma cópia.

B: Era exactamente para lembrar se me dava uma cópia, para depois não me

esquecer…

L.H.: Vou-te já dar… aqui está!

Pois eu com esta minha prosa poética recebi passados 4 ou 5 dias um cheque de

50 contos e fiquei de boca aberta, eu nunca fui tão bem pago na minha vida! Isto

vais gostar de ver porque é interessante, é uma coisa sobre arte popular…

B: Pois porque nós estávamos a falar de “quem conta um conto acrescenta um

ponto…”

L.H.: Isto já é um ponto que se acrescenta ao conto… é importante que o leias

porque isso tem que ver com o perfil da minha personalidade, não só de professor

mas também como modesto artista que sou… aprendiz! Bom, então estou às tuas

ordens!

B: Como o tempo hoje é curto e para não estar a interromper talvez pudéssemos

falar um pouco de como começar as entrevistas sobre a sua vida. O método de

trabalho a adoptar. Eu queria começar mesmo pelo início da sua vida…

L.H.: Portanto, se estivesse aqui connosco (eu de vez em quando interrompo-te,

mas no bom sentido) sentado naquela cadeira aquele rapaz inglês que é um dos

maiores homens de Teatro do mundo, que se chama William Shakespeare

(traduzindo Guilherme), ele dizia-te: “A vida de um homem é sempre uma coisa

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melhor!”. Portanto, a pessoa mais humilde, a pessoa mais desconhecida, se nós a

entrevistarmos, se conhecermos o que é que aconteceu desde que nasceu até que

morre, é sempre uma aventura fascinante, é sempre uma história “somos todos

iguais e todos diferentes”. Portanto, eu tenho a minha história e estou disposto a

dizer-te. Como tenho por ti um grande respeito, vamos lá a ver se nos

entendemos… tenho por ti um grande respeito como tenho por todos os alunos (e

eu fui professor durante 30 anos, continuei a ser professor, fui professor nas escolas

de Belas Artes, fui professor no Museu Nacional de Arte Antiga, fui professor no

Instituto Superior de Conservação, fui professor na Universidade Autónoma, fui

professor na Universidade Moderna) e portanto, a minha relação com os alunos

sempre foi uma relação muito aberta com o maior respeito e procurando dar alguma

coisa do que poderia dar relativamente aos meus conhecimentos e à minha

experiência. Portanto, é isso que está aqui a contar. Sobre a minha vida, eu conto-te

sem problema!

B: A 1ª fase, por onde iríamos começar, não é a mais determinante para o trabalho,

mas é mais importante sobretudo para mim, para enquadrar toda a sua realidade.

L.H.: Então diz lá…

B: As primeiras coisas: onde nasceu, a escola, os passeios com o seu Avô…

L.H.: Muito bem, meu querido amigo… Eu nasci em Lisboa! No dia 27 de Dezembro

de 1924, fazendo as contas, tenho portanto 80 anos! Acontece que eu nasço na

Rua Ilha Terceira, no Bairro dos Açores, ali perto da Estefânia e do Arco do Cego.

Entretanto morre a minha Avó paterna e o meu Avô fica sozinho. E o meu Pai vira-

se para a minha Mãe e diz-lhe: “Olha oh Palmira, como viste morreu a minha Mãe, o

meu Pai vai ficar sozinho e eu não gostaria que ele ficasse sozinho. Há uma

senhora que vai lá tratar da casa, mas eu não quero que isso lhe aconteça.

Portanto, eu o que proponho é que nós vamos morar par casa do meu Pai”. Ora a

casa do meu Avô Jacinto José Pedro Henriques, que era alfaiate de profissão e

também nascido em Lisboa, era na Rua dos Douradores, 21, 2º Esq., portanto, na

Baixa pombalina! A minha Mãe teve um certo desgosto em se mudar porque lá na

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Rua Ilha Terceira era uma casa cheia de Sol que tinha um pequenino jardim e ela foi

viver para um bairro…

B: … para um 2º andar!

L.H.: … um 2º andar sobreloja e, portanto, em que havia apenas umas varandas e

em que o Sol passava muito de fugida. Portanto custou-lhe um pouco. Depois

ajustou-se e adaptou-se… aquelas janelas de sacada encheram-se de vasos com

flores e era o que ela podia fazer. E o menino António Augusto vai com 3 anos

morar para a rua dos Douradores. Isso marcou-me muito porque as memórias que

eu tenho da Rua Ilha Terceira são muito fugidias. Aqui há 2 anos eu voltei lá a essa

casa porque vivia precisamente por baixo uma rapariga que veio a ser minha aluna

que é a Ana Filgueiras, filha do Dr. Filgueiras Soares que foi médico escolar na

Escola Superior de Belas Artes do Porto e eu fui lá com ela para visitar a casa onde

tinha nascido e onde moram agora outras pessoas.

B: Mas a casa existe?

L.H.: Existe sim! Portanto, pode-se fotografar inclusivamente.

B: Não se lembra do número da porta?

L.H.: O número é que eu não sei de cor… tenho isso anotado. Em frente há uma

espécie de uma igreja, aquilo é uma fachada neoclássica.

E então, o menino vem viver prá Rua dos Douradores e aí toda a atmosfera é

diferente. Entretanto vai crescendo sempre a espreitar pela janela. A minha Mãe

levava-me a passear, levava-me muitas vezes ao Jardim Botânico, sabes onde é o

Jardim Botânico?

B: Sei sim!

L.H.: … pra que eu estivesse em contacto com a natureza mesmo antes de eu ir prá

escola. Ela levava um almoço e eu almoçava no jardim. Saíamos de manhã pelas

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9h e 30m/10h e fez isso durante muito tempo. Entretanto, o menino cresceu e foi

para a escola na Rua dos Douradores.

B: Qual era? Como é que se chamava a escola?

L.H.: Era uma escola que não era propriamente oficial. Era uma escola relacionada

com a Igreja de São Nicolau e que se chamava a Junção do Bem. Ficava no

quarteirão a seguir ao meu. Portanto, prái no 23, 25, 27. Entre o início do quarteirão

e a Igreja de São Nicolau. E eu lá vou… pra isso subia todos os dias 4 andares. A

escola era num 4º andar. Ficava metida mesmo ao pé da Igreja. Havia uma parte de

uma espécie de refeitório com umas clarabóias, que ficava um pouco perto… sobre

a Igreja. E ali faço os meus 4 anos de instrução primária.

B: Existe ainda essa escola?

L.H.: … e possivelmente, eu não sei se ainda lá funciona alguma escola, julgo que

não. Mas não sei… é uma coisa que tens que investigar… Portanto aquele percurso

que eu faço a pé entre o nº21 e o nº da escola, que eu já não me lembro qual é, era

feito entre aqueles prédios pombalinos onde havia armazéns de víveres, farinha,

arroz, tudo, tudo o que existe para fornecer depois as mercearias, compreendes? E

portanto, o que era dominante ao nível comercial, ali, eram os tais armazéns de

víveres e eram caixotarias, que no fim de contas eram para receber esses víveres.

Essas caixotarias tinham a característica de serem Galegas. Havia uma caixotaria

mesmo por baixo do meu prédio. Eu quando saía pra ir prá escola dirigia-me para o

meu lado esquerdo, do lado direito mesmo ao pé da minha porta havia uma

caixotaria, onde havia um papagaio que era muito engraçado, falava, dizia o meu

nome:

- Bom dia António Augusto!

E eu lá ia e passava pelo meio daquelas carroças, daquelas sacas, todos aqueles

víveres que eram levados àqueles armazéns. Portanto, há uma escola de carroças,

de carroceiros e de cavalos que tem uma certa influência na minha formação,

percebes?

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B: Até porque nessa altura via-os com uma dimensão que agora…

L.H.: Exactamente! Hoje em dia já não há carroças e portanto essa Lisboa de

Cesário Verde é hoje uma arqueologia.

B: Mas esse tipo de ideia que nós temos das dimensões, acontece com toda a

gente, não é?! Embora não com carroças, mas eu tinha a ideia que morava numa

rua muito grande quando era miúdo e fui lá depois e a rua até é pequena!

L.H.: E afinal onde é que moravas?

B: Essa rua de que eu concretamente estou a falar era em Sacavém. Eu morei em

muitos sítios, mas na minha “primária” morava em Sacavém, quando fiz a escola

primária.

L.H.: 1ª classe, 2ª, 3ª e 4ª?

B: A 4ª já foi em Linda-a-Velha. Também já morei em Queluz, já morei em Lisboa,

moro no Montijo.

L.H.: Ah, pois tu moras no Montijo presentemente. Encontrámo-nos lá na exposição.

B: Mas de qualquer das maneiras eu já sabia que ia lá, mesmo sem ser por morar

no Montijo. Sabia que ia haver a inauguração.

L.H.: Sabias que ia haver a inauguração da Tágide e da exposição…

B: Exactamente!

L.H.: Portanto, estou aqui a dar-te uma notícia sobre a minha infância… esses

quatro anos de escola são importantes, pelo convívio que vou ter com as outras

crianças. Também há que ter em conta que era uma escola ligada à Igreja de São

Nicolau e havia a catequese, eu lembro-me das senhoras da catequese. Houve uma

vez um episódio que me marcou bastante… é que eu já de miúdo tinha aquele

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deslumbramento pelas imagens, pelos altares, pelas esculturas… e um dia acabou

a catequese e eu meti-me lá não sei como, lá perto da sacristia e quando dou por

mim tinham fechado a Igreja e eu fiquei lá fechado! Foi terrível porque começou a

anoitecer e eu comecei a chorar, era miúdo devia ter 7/8 anos. A minha mãe teve a

inteligência de dizer: “Ele não veio para casa, deve estar na escola”, mas depois

disse: “Não, mas hoje era dia de catequese, se calhar está na Igreja!”. Chega à

igreja, a igreja estava fechada. E então foi bater a casa do sacristão que também

ficava ali perto. Lá chegaram e estava eu adormecido de cansaço, mas lembro-me

perfeitamente de estar a chorar… e isso provocou que eu até bastante tarde tivesse

pesadelos com imagens, com igrejas e com santos que se mexiam!

B: Pois… marcou-o muito!

L.H.: Ora bem, são episódios que parecendo que não têm qualquer importância,

têm!

B: Têm muita, lógico!

L.H.: Depois em complementaridade, como eu te dizia, para além do ambiente

familiar que era o meu Pai, a minha Mãe, era o meu Avô e havia depois uma criada

que também foi importante e que era muito simpática… e então o que é que

acontece? Acontece que o meu Avô me levava a passear, já te contei aquele

episódio quando ele me levou a primeira vez (julgo que vos contei até na aula) ao

Terreiro do Paço!

B: Não, esse penso que não!

L.H.: Levou-me ao Terreiro do Paço! Levou aquele menino ao Terreiro do Paço. Era

tão perto o Terreiro do Paço da Rua dos Douradores! E quando eu vejo aquela

praça enorme iluminada e vejo aquele monumento do D. José I a cavalo com

aqueles grupos laterais, eu fiquei espantado! E o meu Avô, que era alfaiate, teve a

inteligência de pegar em mim, e sem me dizer nada (isso recordo-me!) deu a volta

ao monumento! Foi aí a minha descoberta, digamos, da escultura! Fiquei admirado

a olhar para aquele elefante enorme, aquela figura do anjo com a trombeta, depois

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as outras figuras do outro lado com aqueles cavalos e depois o monumento a

recortar-se no céu! Depois o meu Avô pegou em mim e levou-me até ao Cais das

Colunas, que agora está tapado com as obras do metropolitano que não se sabe

quando acaba, e aquelas colunas elegantíssimas, que eu julgo que as ainda deves

ter visto…

B: Sim, sim, ainda vi!

L.H.: E então levou-me mesmo junto à água pegou na minha mãozinha e fez com

que a minha mão tocasse na água! Portanto, foi para mim um mestre enorme! Ele

deu-me a perceber qualquer coisa que eu amo profundamente que é a água, que é

o rio, que é o mar! Portanto, tive esta pedagogia familiar notável: o meu Pai era um

homem muito sensível trabalhava no comércio, mas era amador dramático; a minha

Mãe tinha sido professora, já estava aposentada no recolhimento de São Pedro de

Alcântara, era professora de Francês, Inglês e de Desenho, tinha sido discípula da

irmã do Columbano Bordalo Pinheiro, da Maria Augusta Bordalo Pinheiro, que foi

pró Columbano quase uma mãe, porque era mais velha que ele e acompanhou-o

sempre, mesmo depois do Columbano casar. O Columbano casou com uma modelo

que havia na Escola de pintura. Mas, ele foi sempre muito apoiado pela irmã –

contava a minha Mãe. Maria Augusta Bordalo Pinheiro era uma mulher com uma

capacidade enorme. A minha Mãe foi várias vezes ao ateliê do Columbano, contou-

me várias estórias sobre o Columbano… eu mais tarde quando venho a fazer um

programa sobre o Columbano foi muito em função dessas memórias que a minha

mãe me contou.

Portanto, estou aqui a traçar vários factores dos primeiros anos da minha vida… A

minha mãe para além de me levar ao Jardim Botânico, isso é muito importante

porque foi onde eu descobri a natureza, levou-me a outros jardins, como o Jardim

da Estrela, por exemplo. Levava-me, também, ali assim ao miradouro de Santa

Luzia… enfim, começou a mostrar-me a cidade. O meu Avô em determinados

percursos e a minha Mãe por outros, porque a minha Mãe estava mais disponível (o

meu Pai trabalhava desde as 9h até às 20h da noite)… e eu vou descobrindo o

mundo dessa maneira. Mas também me levava muitas vezes a casa de família. A

casa da minha tia Elvira, a casa de várias amigas dela, havia uma senhora, que

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também teve muita influência na minha vida, que era a D. Albertina Tourgal, casada

com um Juiz, Reis Tourgal, que era uma Gertrude Stein, que era uma mulher de

letras, uma mulher com uma cultura enorme. Ele tinha estado como juiz em Macau

e na Índia, e portanto a casa dela era um Museu! E eu quando lá ia a casa, era

pequenino e…

B: Ficava fascinado!...

L.H.: Ficava fascinado! E começava a aproximar-me das coisas e a minha mãe

dizia-me:

- Ò António Augusto, tá quieto, não mexas em nada!

E essa D. Albertina Tourgal dizia à minha Mãe:

- O teu filho vai ser artista!

Porque realmente não é vulgar numa criança com 8 anos ter esta curiosidade,

porque eu pegava numa coisa e a minha Mãe dizia:

- Ó filho, não mexas nisso!

E eu largava e depois ia pegar noutra, mas com o maior cuidado! Nunca parti nada!

B: Tinha um grande sentido de observação, não é?!

L.H.: Exacto! E portanto, contactando já com a arte chinesa, com a arte Indiana,

compreendes?

B: Foram talvez os seus primeiros contactos…

L.H.: … com esses objectos. O marido, o tal Dr. Tourgal, era um homem cultíssimo,

gostava muito de mim, achava muita graça àquela criança, os filhos dele… a D.

Albertina Tourgal tinha só um filho, que era o António Tourgal, que gostava muito da

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minha Mãe, já era crescido, portanto ele achava muita graça àquele miúdo!

Conversava muito comigo e… eles moravam nas Avenidas Novas. Tás a ver o que

era aquele percurso da Baixa para as Avenidas Novas! E moravam em frente de um

actor, que eu não sei se tu já ouviste falar porque já não é do teu tempo e que fez

parte da companhia do Teatro Nacional D. Maria II, que era o Raul de Carvalho. O

Raul de Carvalho fez vários filmes, entre eles, um sobre o Bocage feito pelo Leitão

de Barros e muitos outros, para além das peças de teatro.

Depois, a minha Tia também morava ali nas Avenidas Novas, perto da Maternidade

Alfredo da Costa, na Rua Latino Coelho, julgo eu, enfim, era ali assim. Morava num

3º andar. Portanto, eu começo também a descobrir a cidade por razões familiares e

sempre a olhar para tudo, sempre a olhar para tudo. Durante a escola eu era um

aluno pouco aplicado, percebes?! Porque eu gostava era de desenhar, era de fazer,

com caixas de sapatos, uma espécie de teatros, em que eu fazia os cenários e

todas aquelas figurinhas. Comecei a ir ao teatro cedo porque o meu Pai era muito

amigo de um grande actor, que talvez tenhas ouvido falar, que era o Estevão

Amarante. O Estevão Amarante tinha sido colega do meu Pai nas sociedades de

recreio em que eles iam por toda a Lisboa, eu tenho um envelope enorme cheio de

todos os folhetos que anunciavam aquelas festas…

B: E tem ali um na parede…

L.H.: Pois, que eu já te mostrei, é em seda, daquela sociedade de Paço de Arcos.

Portanto estás a ver como é que todas estas coisas se descobrem.

Na escola gostava muito da minha professora a D. Cândida que era uma senhora

enorme com o nariz adunco, mas muito fraterna. Eu aprendi muito, as coisas

essenciais, eu tenho que te dizer, que aprendi na Escola Primária!

B: Dantes acontecia mais isso do que agora, tenho essa sensação…

L.H.: Sim, sim!

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B: A escola primária parece que se foi diluindo. Parece que tiraram “peso” à escola

primária.

L.H.: Sim. E depois sabes, naquela altura os professores primários eram muito

dedicados, muito vocacionados! Eu lembro-me de ir com 10 anos, portanto estava

na 4ª classe, visitar aqui a Cordoaria e aquilo era uma fábrica de cordas! Quando as

cordas eram feitas com fibras e não em plástico! Cordas da fábrica que vem, sei lá

de que época séc. XVII ou XVIII, porque as cordas são do estilo manuelino, as

cordas das naus, das fragatas, das descobertas… e então, eu nunca mais me

esqueci dessa visita. Aquela senhora, antes destes métodos, fazia com os seus

alunos este tipo de visitas! Portanto eu tive professores excepcionais da escola

primária até ao ensino superior. Mas, estava eu a dizer, na escola primária eu não

era bom aluno. Até que um dia…

B: Era pouco aplicado, não é?

L.H.: Pouco! Não queria. Chegava a casa pegava numa saquinha, que eu nasci

numa família humilde, o meu pai trabalhava no comércio, tinha um ordenado e a

minha mãe tinha uma pequena reforma de professora, percebes? Já o meu

padrinho e a minha Tia, tinham outro perfil económico. Portanto eu lembro-me de ter

uma saquinha, que era uma saca em serapilheira, e tinha um bibe… eu conto isto

porque…

B: A propósito de ser pouco aplicado e chegava a casa e...

L.H.: Ah! Chegava a casa e punha a saca pró lado e ia brincar! Ia fazer uns

desenhos, recortava figuras em papel...

B: Fazia os tais teatros...

L.H.: Fazia os tais teatros, ia para a janela olhar, ver o que é que se passava, quem

abria e quem fechava a janela, era muito...

B: Observador!?

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L.H.: Observador! Não queria dizer bisbilhoteiro...

B: Não! Era atento às coisas que o rodeavam!

L.H.: Era atento! Isso indiscutivelmente, sempre fui! E um dia lembro-me, já eu

andava prái na 3ª classe, saí com a minha Mãe e encontrámos a D. Cândida na

Praça da Figueira, que já não é do teu tempo, mas onde é hoje a Praça da Figueira

era um grande mercado em ferro fundido, felizmente que os portuenses mantiveram

o seu mercado que hoje é um espaço cultural, e então encontrou-se a D. Cândida e

diz ela assim:

- Ai Sr.ª D. Palmira, o seu filho é um excelente aluno!

E a minha Mãe começou-se a rir e diz ela:

- Mas a Sr.ª Palmira está-se rir porquê?!

E diz a minha Mãe:

- Olhe, vamos fazer uma experiência: eu durante uma semana vou deixá-lo

completamente livre e a Sr.ª vai ver o que vai acontecer.

E então, durante uma semana eu cheguei a casa, a minha Mãe não dizia nada, eu

punha a saca pró lado e ia brincar! Fazer as minhas coisas e tal, os meus desenhos.

Cheguei ao fim e não apresentei trabalhos nenhuns, nem contas, nem redacções,

nada! Não fiz nada! Passa-se uma semana e a minha Mãe vai falar com a D.

Cândida, leva-me à escola e fala com ela:

- Então Sr.ª D. Cândida?

- Ai Sr.ª D. Palmira, tem toda a razão ele nunca mais fez nada! Nem contas, nem

redacções, nada!

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De tal maneira isto acontecia, contava até a minha Mãe, e o Prof. Carlos Amado

ainda ouviu isso porque contava a minha Mãe à Mãe dele, que eu não fazia as

coisas... Mas já estávamos noutro...

B: Não, foi a tal semana em que a sua Mãe o deixou à vontade...

L.H.: Exactamente! Depois a minha Mãe retomou outra vez as rédeas...

B: Claro! Rédea curta!

L.H.: E eu continuei então a fazer os trabalhos todos. Ora bem, mas eu não gostava

de gramática, havia uma série de coisas que eu detestava, e então... e a minha Mãe

dizia:

- Mas tu tens que estudar filho!

E eu dizia:

- Mas então pra eu falar é preciso saber gramática?!

- Tens filho, tens que aprender estas coisas!

B: É difícil em pequeno compreender a importância, não é?!

L.H.: E às vezes ficava muito...

- Ó Mãe, mas então eu estava agora a ver ali…

E estava a ver (eu morava no 2º andar, mas com sobreloja correspondia ao 3º) lá de

cima, tás a ver eu pequenino com 6 anos, e andava um homem a varrer as ruas. E

eu virei-me e achei muita graça ao homem a fazer aquele serviço e virei-me prá

minha mãe e disse:

- Ó Mãe, o varredor sabe ler?

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E a minha Mãe disse:

- Ó filho, olha, infelizmente não sabe! É um escrivão da pena grande, como lhe

chamam!

Resposta do menino António Augusto:

- Então, quero ser varredor!

Isto não é anedota!

B: (risos) Já não precisava de ter que aprender aquelas coisas!

L.H.: Exactamente! Aquela chatice da gramática, daquelas contas… o que é que eu

gostava!? Gostava de História, Ciências Naturais, Geografia e sobretudo… gostava

de desenhar! Mas era um desenho que também quando era muito exigente ao nível

da… perdia a liberdade, digamos daquele desenho infantil e espontâneo. Tanto que

a minha Mãe disse que viu uns desenhos que eu tinha feito, lá daqueles em que se

desenhava um peso de 5 Kg, uns cubos e umas coisas, e eu isso não desenhava

bem!

(Toca o telefone)

Podemos continuar mais 5/10 minutos.

Ficaste a saber, então, que eu queria ser varredor. Mas, a minha Mãe não me

deixou... e faço a 4ª classe numa escola oficial, portanto, numa rua ali a caminho...

B: Mas o exame ou mesmo a 4ª classe?

L.H.: Não, não! O exame! O exame da 4ª classe é que eu não podia fazer ali

naquela escola, porque era uma escola particular que era a tal Junção do Bem,

percebes tu!? E que tinha a vantagem de estar mesmo ali ao pé de mim... eu vou

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fazer o exame, e quem vai assistir ao meu exame é a minha Tia Elvira, irmã da

minha Mãe, que era professora primária, professora oficial.

B: Lembra-se onde é que foi fazer o exame?

L.H.: Lembro-me muito bem…julgo que ainda lá existe essa mesma escola. É uma

escola que fica ali depois da Costa do Castelo, se tu quiseres um dia em que nós

formos reconhecer o meu espaço, a tal R. dos Douradores… e até podemos subir a

escada e eu bato lá à porta, porque quem mora lá é a viúva dum homem que era

fundidor de gesso na Escola de Belas Artes, que era o velho Fainça, que já não é do

teu tempo… porque eu como sou bom rapaz e sempre desprendido das coisas

materiais, depois dos meus pais morrerem aquela casa tornou-se um pouco

fantomática. Eu mantive-a mas passei a viver no meu ateliê, antes disso vivia em S.

Pedro do Estoril, porque a minha Mãe também… viver ali também a perturbava mas

pouco, depois da morte do meu Avô, depois a morte do meu Pai… Mas eu

conservei a casa e quando vem o 25 de Abril o Fainça diz-me assim:

- Ó Mestre, o Mestre tem aquela casa sem ninguém, porque é que o Mestre não me

empresta a casa, eu pago-lhe a renda…

E eu disse:

- Oh Fainça, tenho muito gosto! Só tenho pena que me tivesses dito isso só agora,

porque o senhor já me conhece há tanto tempo, sabe como eu sou e se me tem dito

isto já há 4 ou 5 anos, eu já lhe tinha feito aquilo que vou fazer agora… porque não

julgue que lhe vou fazer isto por causa do 25 de Abril! Porque o Fainça lembra-se

bem que na Escola de Belas Artes de Lisboa, o único professor que não foi

contestado pelos alunos, foi o Sr. Prof. António Augusto Lagoa Henriques! Todos os

outros tiveram que…enfim, foram um pouco agredidos, não digo fisicamente, mas

por palavras e alguns ultrajados. E o Sr. Prof. Lagoa Henriques… não sei se sabias,

mas ficas a saber, não houve um aluno que tivesse uma palavra contra ele. Porque

eu sempre fui como fui, tu conheces-me, sabes como eu sou generoso, espontâneo,

honrado… não estou a fazer um auto-elogio… muito leal com as pessoas…

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…e portanto, o nosso amigo Fainça foi viver para a Rua dos Douradores, 21, 2º

Esq.! Mais tarde, depois de ele lá estar, passado dois meses (isto já depois do 25 de

Abril) telefona-me uma prima minha e diz:

- Ó António Augusto estou-te a telefonar porque há uma família de Moçambique,

que era amiga da minha Mãe e que vieram retornados… e se sabíamos de uma

casa e eu lembrei-me da tua casa…

E eu disse:

- Olha ó Castália a minha casa neste momento, eu cedi-a a um colaborador meu da

Escola de Belas Artes.

- Mas ó António Augusto, eles davam-te uma…

B: Renda?

L.H.: Não se chama renda… um trespasse! Porque aquilo naquele sítio… eles

estavam ligados a negócios e ainda era uma quantidade de dinheiro substancial! E

o Sr. António Augusto, nesta altura já não era o menino, decidiu que não ia fazer o

negócio. Isto é pra tu veres as diferenças entre as pessoas, eu não me estou a

valorizar, mas estou-te a dizer a pura verdade! E pronto, perdi ali muito dinheiro!

Entretanto, agora repara que continua a minha ingenuidade, não estou arrependido,

atenção… passa-se um tempo e o Fainça diz-me:

- Veio aqui uma carta pra si dos senhorios, (que eram os Duques de Palmela, donos

daqueles dois quarteirões) a propor… eu já sei porque a vizinha do lado já me

contou qual o teor da carta e a carta está aqui para o Mestre abrir, mas eu já sei o

teor… é que eles propõem vender estes andares a quem os ocupa…

E eu abri a carta e era essa proposta… e esta criança que está aqui a falar contigo

disse:

- Olhe ó Fainça, aproveite!

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Eu que até podia ter comprado a casa… é que eu estou aqui numa situação, eu

nunca soube viver, sabes? Sou um romântico, sou uma criança, sou um ingénuo!

De um momento para o outro eu posso ter que sair deste ateliê, porque não se pode

viver nos ateliês, ultimamente os recibos dizem precisamente isso… porque houve

umas cenas, umas escandaleiras naqueles ateliês que há ali perto do Júlio de

Matos… Coruchéus! Houve pra lá umas cenas e os gajos proibiram que se vivesse

nos Ateliês, e eu sempre vivi nos ateliês…

O que é que foi agora??

B: É a campainha!

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3ª Entrevista – 13/05/2004

B:... na sequência da nossa última conversa, falámos com algum pormenor do local

em que nasceu, a Rua Ilha Terceira, depois a Rua dos Douradores... a escola na

mesma rua, etc.

L.H.: Muito bem! Exactamente!

B: ... aflorámos ligeiramente a parte em que estava no liceu (depois gostava de

voltar um bocadinho a isso), mas uma coisa que falámos por alto e que gostava que

falássemos um pouco mais (se não se importasse)... eram aquelas idas com o seu

Avô ao MNAA, que foi uma coisa que eu me lembro das aulas e que me marcou

particularmente, em que nos disse...

L.H.: ... que me marcou muito!

B: ... que o marcou muito! Porque eu acho que isso é muito importante para...

L.H.: Ora acontece, que nessa sequência de ir viver para a Rua dos Douradores,

21, 2º Esq., onde o meu Avô tinha a oficina de alfaiate, fez com que eu descobrisse

outro espaço. Já se sabe que numa criança com 3 anos as suas percepções são

muito particulares, as memórias tornam-se longínquas, mas... o meu Avô começa a

levar-me a passear... nessa altura eu devia ter uns 4/5 anos. Mas a primeira

memória que eu tenho, a primeira lembrança que eu tenho é quando o meu avô me

leva ao Terreiro do Paço. Já contei isso, não contei?!

B: Já, já!

L.H.: Por isso não vou repetir... Portanto, a descoberta da estátua equestre do

Terreiro do Paço, a aproximação do Tejo... contei tudo isso, não é verdade?

B: Sim, sim!

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L.H.: Agora, o que acontece é que ele para além de me levar a certos

estabelecimentos comerciais da Rua dos Fanqueiros, portanto onde havia

estabelecimentos que vendiam fatos já... e portanto, ele tinha os seus amigos,

outros alfaiates, casas de lanifícios... E ele levava-me às vezes, agora lembrei-me

porque ouvi ali o corvo, ele ia cortar o cabelo a um barbeiro que ficava ali a dois

passos da Sé de Lisboa. Perto desse barbeiro havia uma tasca, uma taberna onde

existia um corvo, de que eu me lembro muito bem, porque o corvo estava atado com

um cordel, como se dizia no Séc. XVIII um barbante, a uma patinha e ele andava

por ali. Dizia umas palavras e era realmente emocionante! Saltitava...

B: Foi uma imagem que ficou?!

L.H.: ... ficou-me! A razão porque eu tenho este corvo e este papagaio, é porque

tanto um corvo como um papagaio marcaram, também, a minha infância. O

papagaio existia na própria Rua dos Douradores 21,entrada assim do lado direito

havia uma caixotaria de uns galegos que tinham um papagaio. E esse papagaio a

um determinado momento aprendeu o meu nome... porque eu saía dali... sabes que

aquelas ruas a uma certa altura eram quase um bairro, percebes?! As pessoas que

moravam num quarteirão conheciam-se quase todas! E então, essa senhora que

era a dona da caixotaria e que tinha várias filhas, ela já era viúva, morava no 4º

andar. E ao princípio de eu ir para ali as relações... elas ficaram... não aceitaram

muito que o meu Pai e a minha Mãe fossem para ali, porque havia uma senhora que

estava lá em casa a acompanhar o meu Avô, percebes?! E então, eu lembro-me da

minha Mãe depois me contar que às vezes elas implicavam com ela, mas depois

começaram a simpatizar muito, gostavam muito de mim, davam-me rebuçados,

chocolates, percebes?!... E quando eu comecei a ir prá escola, eu passava ali pela

caixotaria e estava o Leopoldo, que era o filho da senhora, com os empregados e

cumprimentavam-me:

- Bom dia, menino António Augusto!

E o papagaio aprendeu o Bom dia António Augusto. Portanto, é para explicar estas

relações que aparecem no princípio e no fim, quer dizer, no princípio da vida

naturalmente, espontaneamente, no fim um pouco dentro de uma determinada

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simbologia de formas que nos ajudam (sem dramatizar!) a despedir da vida,

percebes? Compreendes?

Mas então, vamos lá a ver... o meu Avô para além de me levar a esses amigos, dos

armazéns de lanifícios e das lojas, tinha um grande amigo que tinha andado com ele

na escola primária e que era guarda do Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA). E a

um certo momento ele leva-me ao MNAA, mas várias vezes! Portanto, eu descobri o

MNAA devia ter os meus 6 anos, 7 anos!

B: Não deixa de ser um privilégio, não é?!

L.H.: Fantástico! E de resto eu tenho lá em baixo, que depois te posso mostrar,

duas fotografias que foram duas figuras que me marcaram, uma escultura e uma

pintura, e que eu fiz dessas fotografias. Hoje a escultura já não está no mesmo sítio

onde estava, a pintura também está noutra sala, mas são... é aquela escultura do

della Robbia, aquele frade que agora não me estou a lembrar o nome dele, mas...

olha no Algarve há uma igreja com o nome desse Santo, porque ele foi torturado, o

martírio dele foi uma... há uma igreja perto de Lagos que tem o nome deste santo e

portanto, tem uma tira de azulejos que contam a história... mas eu vou lá abaixo ver!

Dás-me licença?...

B: Com certeza!

L.H.: Portanto... Andrea della Robbia... e é este célebre frade (São Leonardo) que

tem aqui este instrumento, digamos de tortura, mas que eu não me lembro o nome!

Portanto, eu lembro-me de ver esta peça lá ao fundo de um corredor. Eu tenho um

slide onde isso está.

B: E que na altura até pensava que era maior, não?! Dado que era tão novo na

altura...

L.H.: Sim, sim, sim! Depois temos aqui a “Virgem das estrelas”. Estas duas

esculturas estavam, estiveram, aqui nos Jerónimos. E ainda falta uma terceira...

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B: Ah... não são estas duas que estão numa sala em que o Mestre até as colocou

mais para o meio?

L.H.: Exactamente! Vocês estiveram lá!

B: Pois estivemos! Eu até tenho fotografias dessa aula!

L.H.: E ainda há uma outra que está aqui nos Jerónimos, que é precisamente o São

Jerónimo! Que não está bem iluminada... enfim, eu já contei essas histórias todas!

Também foram lá ver, não foram?

B: Fomos, fomos. Fomos lá consigo.

L.H.: Pois, nós fomos lá! Isto é uma pintura, também, que me impressionou muito,

que é uma pintura espanhola, portanto... que é o São Sebastião, que não sei bem

se é do Ribera... Neste caso, sei muito bem que é o Lucca della Robia... e aqui é a

“Virgem das Estrelas”, não há dúvida nenhuma... aqui é o “São Sebastião” e este

frade, este santo é que eu não me lembro o nome...

Isto foi a propósito dessa descoberta do museu, sendo eu realmente um menino...

B: Portanto, foram essas as primeiras imagens...

L.H.: Exactamente! Portanto, o museu tinha uma monumentalidade, uma

espacialidade muito particular, depois um silêncio...

B: Pois... se já pra nós adultos ele parece imponente, imagino para uma criança de

6 anos!

L.H.: Exactamente! Isso tem a ver com aquilo que me estavas a perguntar

relativamente à minha formação e a influência que teve o meu Avô, que me levou

realmente...

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B: Acha que esses “passeios” que dava sozinho, terão sido realmente influentes no

seu percurso?

L.H.: Sim, na minha formação foi! Sim, eu acho que sim! Porque repara, nessa

altura eu ia com o meu Avô porque era miúdo, depois quando eu começo a ter 15

anos 16 começo a sair já um pouco sozinho, percebes tu? E a descobrir

precisamente aqueles espaços, não é?!

Ah... estou-me a lembrar da Sé de Lisboa, que vocês foram lá também. Há aquela

fotografia magnífica em que vocês estão todos... que foi uma visita muito

interessante!

B: Essa foi a nossa primeira visita consigo!

L.H.: Que foi realmente importante, foi o Saul Viela, foi aquela rapariga a Ana Paula

Abrantes, que é restauradora de escultura... Portanto, eu fui muito marcado por toda

aquela zona da Lisboa Pombalina... e depois como nasce aquela colina que se vai

desenvolver até ao Castelo. Portanto, a zona da Sé, a descida para Alfama... tudo

aquilo me marcou muito, aquela arquitectura, aquele espaço, aquela aproximação

do rio e portanto a descoberta dos poetas, sobretudo Cesário Verde! Mas aí nessa

altura, já eu tinha 16/17 anos! Tive um belíssimo professor de português, que não

me lembro o nome, que era dos Açores... e portanto, o Cesário Verde é o meu

grande guia de Lisboa, percebes?!

B: Falou-me há dias que ele foi o responsável por lhe revelar a sua realidade

exterior...

L.H.: ... e o Fernando Pessoa a realidade interior. Isso é verdade, eu fui sempre

muito tocado pela poesia. Ah... não sei se respondi à tua pergunta...

B: Sim, perfeitamente!

L.H.: Portanto, essas primeiras experiências que tem um ser humano, são

fundamentais para a sua formação. Porque alertam para determinadas coisas.

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B: Pois, são marcantes, são decisivos! Sabe-me dizer o nome do seu liceu?

L.H.: Eu depois andei num colégio particular. Eu nunca andei no liceu. Era o colégio

D. Filipa de Vilhena, que era na Av. Praia da Vitória, ali perto do Saldanha.

B: Já não existe?

L.H.: Eu tenho a impressão que já não existe. Mas ainda existiu até há pouco

tempo. Eu outro dia, quando foi a inauguração da minha Tágide ali no Montijo...

B: Pois, eu estava lá!

L.H.: Estavas lá... pois tu és do Montijo. Estava lá uma senhora, uma senhora

velhinha, que tem praticamente a minha idade, mas parece bastante mais velha que

eu que é a Ana Maria, que era uma mulher lindíssima...

B: Que estava sentada numa cadeira...

L.H.: Que estava sentada numa cadeira!

B: E é essa fotografia que lhe vou trazer...

L.H.: Ah! Eu quando vi a Ana Maria fiquei... já se sabe, o que é que eu havia de lhe

dizer... eu também sou um velho, não há dúvida nenhuma, não pode deixar de ser,

mas ela realmente... porque era muito elegante, muito bonita, com umas

capacidades... e foi uma excelente professora do Ensino Secundário e foi

professora lá no Montijo. A presidente da câmara do Montijo foi aluna dela e ela

falava-lhe em mim, quando soube que eu ia fazer aquela escultura ficou toda feliz!

Porque nesse colégio D. Filipa de Vilhena, a uma certa altura a Directora, que se

chamava Maria Carrusca e era casada com o Capitão Carrusca, era uma mulher

muito interessante, muito amante das letras, da literatura, do teatro... e a uma certa

altura faz uma festa do colégio no Teatro Ginásio, que hoje já não existe, é onde

está agora um supermercado, vens do Camões, sobes aquela rua era o Teatro

Ginásio, que depois foi cinema e que agora é supermercado... e ela faz aí uma festa

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do colégio, que nessa altura fazia não sei quantos anos e escreveu uma peça em

que entraram todos os alunos da escola, em que eu também entrei. Primeiro havia

uma pequena peça sobre D. Filipa de Vilhena, escrita pela Professora Maria

Carrusca, em que quem fazia de D. Filipa era a Ana Maria, que tinha uma vocação

para o teatro que era uma coisa espantosa!

B: Então foram colegas...

L.H.: Nesse colégio! E há uma rapariga... essa `tá muito bem conservada, que era a

Maria de Lurdes Pequenina, muito bonita, era um bocado parecida com a Maria

Barroso, vive ali perto de colares, eu às vezes vou lá... também é do meu tempo,

porque o colégio tinha a vantagem de ser misto, porque nessa altura os liceus eram

masculinos e femininos, mas os colégios não! Os colégios tinham rapazes e

raparigas.

Portanto, eu andei ali 7 anos! Naquele colégio.

B: Pois, foi o secundário todo?

L.H.: Pois exactamente, fiz exames no liceu Camões (a maior parte deles), depois

cheguei a fazer exames... uma vez no Gil Vicente e outra vez no Liceu do Carmo,

onde é agora uma escola. Sabes onde é! Nós fomos lá ao Museu do Carmo... e ao

lado direito há uma escola!

Eu nunca fui um grande aluno. A certa altura chumbei em Latim e chumbei a não sei

quê mais, portanto, eu até ao 6º ano fiz tudo direito, depois aí comecei a ter uns

problemas. Entretanto a minha formação visual, a minha formação artística,

manifesta-se por não esquecer que a minha Mãe que tinha sido professora ali em

São Pedro de Alcântara, de desenho, Francês e Inglês e que o meu Pai era amador

dramático. E eu começo a interessar-me pelas exposições, por essas coisas e

começo a ir ver exposições. Isso foi muito importante e começo a visitar museus.

B: Exactamente. Quer dizer, ao longo da sua vida o “Museu” esteve sempre

presente?!

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L.H.: Sim, sim! A uma certa altura eu matriculo-me na Sociedade Nacional de Belas

Artes, nas aulas de desenho.

B: Isso na fase ainda de liceu?

L.H.: Sim, exactamente. Eu devia ter nessa altura os meus 16 anos ou 17. Isso é

uma coisa que se pode investigar e ir lá saber em que altura é que foi, já não me

lembro bem... também tive um excelente professor de História de Arte que era o

Armando Lucena, que foi um homem que também me marcou bastante, porque era

um indivíduo com uma rara sensibilidade, muito parecido aqui com um rapaz que dá

pelo nome de Delacroix. O Armando Lucena era um pintor muito interessante que

teve o privilégio de ter um Ateliê no próprio Jardim da Estrela! Lá num pavilhão que

ainda hoje existe.

B: Sim, sim. Eu conheço muito bem o Jardim da Estrela!

L.H.: Era um homem extremamente sensível, um homem realmente com umas

qualidades raras, o que era muito importante. Porque, lá está, naquele tempo havia

aulas de história da arte que depois foram dadas na SNBA, mas já não é do meu

tempo, pelo Dr. José Augusto França e depois pelo Dr. Mário Gonçalves. `Tás a

perceber? Aquela tradição da SNBA tem uma importância enorme na formação das

artes em Portugal até um determinado momento! Depois perdeu, mas era uma coisa

importante! Aquilo é fundado pelos pintores de ar livre, o Silva Porto, toda aquela

geração que fundou a SNBA, que é uma instituição importantíssima! Outro dia

encontrei finalmente, o que é muito importante para ti, o catálogo que eu te disse da

1ª exposição de Escultura e Desenho de Escultores que eu organizei na SNBA

quando vim lá de Itália da minha bolsa de estudo.

B: Gostava de ver...

L.H.: Tenho ali, depois posso facultar-te isso... portanto, a SNBA, para além disso,

era um espaço cultural notável. Para além dos grandes salões, que são os salões

de influência francesa (Os Salon), salão de Inverno, salão de Outono e salão

Primavera. Portanto, no salão Primavera era pintura e escultura, no salão de

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Inverno... `tás a ver como eu estou? Há coisas que me esqueço... Era o salão de

Inverno, Outono e havia outro... era um de pintura e escultura, outro que era de

desenho e gravura e o outro já não me recordo bem o que era... mas havia esses 3

salões, onde eram inauguradas essas grandes exposições em que as pessoas

concorriam, havia um júri que aprovava e seleccionava as obras. E era inaugurado

pelo Presidente da República! A minha Mãe contava-me uma história muito

interessante... a certa altura há um PR, de quem tu por certo já deves ter ouvido

falar, que era dos Açores, que era o Manuel de Arriaga. Era um homem

inteligentíssimo e foi a uma exposição como PR, ia inaugurar a exposição e havia

um fundo do salão no lado esquerdo, isto conta-me a minha Mãe, onde havia uma

série de quadros do Columbano, ele fazia aquelas naturezas mortas, aqueles

retratos excepcionais... e a uma certa altura, viu lá um quadro relativamente

pequenino que era uma couve e ficou encantado e disse:

- Eu quero comprar este quadro!

E marcaram o quadro, quando ele vai saber o preço... não tinha dinheiro para

comprar o quadro! Ora, ficou muito preocupado e acho que escreveu um bilhete ao

Columbano a pedir-lhe desculpa... e o Columbano acho que lho ofereceu, ele não

queria, mas ele ofereceu-lhe o quadro! Ora bem, são situações interessantes, não

é? Porque geralmente as pessoas, os dirigentes, os políticos, tinham grande

interesse pelas artes...

B: Tinham uma sensibilidade diferente...

L.H.: Hoje, `tás a ver como isto é manobrado. Para além disso, para além das

exposições, havia concertos, conferências, recitais de poesia... está muito ligado

àquele movimento de esquerda do Fernando Lopes Graça, percebes? Ele

organizava ali uns concertos de música moderna, que se chamavam Sonata, onde

ele revelou os grandes compositores modernistas, Stravinski, Béla Bartók, todos

esses homens... ele fez ali concertos onde íamos quase todos, nós estudantes...

isto já se passa na altura em que eu já era capaz de estar nas Belas Artes... agora,

sabes há coisas, há desfasamentos em que eu não acerto muito com as datas, mas

estou a falar da minha formação e até que ponto isso foi importante, e como aquele

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espaço era um espaço verdadeiramente cultural. Portanto, eu tive... no 1º ano da

escola é quando eu exponho pela primeira vez!

B: Portanto, no seu 1º ano de Belas Artes em Lisboa?

L.H.: ... exactamente! No 1º ano de Belas Artes em Lisboa. Exponho uma máscara

do Arquitecto Sena da Silva, que eu agora até pedi à viúva para me emprestar o

gesso, para mandar fazer uma fundição em bronze, vão-se fazer duas, uma pra mim

e outra pra ela... e o que é que foi mais que eu expus nesse ano?!... Já não me

lembro... não sei se foi o retrato do meu Pai... aquele que está todo esmagado, aqui

no Museu... enfim, já não me lembro! Depois tive uma menção honrosa, depois tive

uma 3ª medalha, depois tive uma 2ª medalha e depois tive uma 1ª medalha!

B: Foi subindo...

L.H.: Fui subindo!

B: Queria voltar um bocadinho atrás...àquela história que eu conheço, felizmente,

por nos ter contado nas aulas, mas eu gostava de ficar com ela gravada! Aquela

questão da sua escolha, a seguir ao liceu, do que iria fazer. Aquela influência que

teve, que depois o fez optar por Belas Artes, mas que não era a sua ideia inicial...

L.H.: Já te contei esse episódio... não está gravado?

B: Não, foi numa conversa anterior.

L.H.: Muito bem! Então o que é que acontece!? Eu quando era miúdo, era muito

vivo, era um miúdo irrequieto (no bom sentido!), e portanto, tomava atitudes e

iniciativas inesperadas! E então, a uma certa altura... naquele tempo festejavam-se

muito os aniversários... eu de resto na intervenção que vou fazer na casa Fernando

Pessoa vou ler também esse poema, que é um longo poema chamado: “ No tempo

em que se festejava o dia dos meus anos”. Um poema que é uma coisa

deslumbrante! Ora bem, numa dessas festas de aniversário em casa de uma tia

minha, que era uma festa de família, contavam-se episódios, havia pessoas de

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várias idades, faziam-se pequenos discursos, saúdes com vinho do Porto, tocava-se

piano...

B: Citava-se poesia...

L.H.: Citava-se poesia! E tudo isso era assim mesmo! As pessoas eram autoras da

sua própria vida! Hoje a maior parte das pessoas são apenas espectadores!

Espectadores dessas máquinas como a televisão, fundamentalmente, e portanto,

estão sempre presas ao pequeno ecrã. Naquela altura não! A vida acontecia! Não é

verdade?! Ou se contava uma história de uma Avó ou de uma bisavó. Portanto, um

miúdo de 6/7 anos ouvia aquilo e ia fixando certas coisas, depois faziam-se as tais

saúdes... e então, uma das vezes, eu peguei num cálice e fiz uma saúde! Eu devia

ter nessa altura, talvez os meus 9 anos... bem, ficou tudo a olhar e de facto eu

acabei de dizer as palavras que disse e apanhei uma salva de palmas enorme!

Estava lá presente um juiz que foi ter com o meu Pai e a minha Mãe e disse:

- Bem, o vosso filho é realmente uma coisa impressionante! A capacidade que ele

tem para dizer as coisas! E o entusiasmo, a comunicação... é uma pessoa que daria

um belo advogado, ou um juiz!

E isso ficou um pouco na memória dos meus pais! E quando eu começo a andar no

5º, 6º ano tal, tal... começa-se a orientar um pouco, a delinear a minha ida para

letras ou direito. Simplesmente o que acontece, é que eu faço uma primeira

tentativa de fazer o exame de aptidão e fico chumbado! E então, resolvi arranjar um

professor, no ano a seguir para repetir esses exames, que era o Professor

Agostinho da Silva (A.S.), que eu conhecia daqueles cadernos... que são

fundamentais! Eram a “Iniciação” e a “Antologia”.

B: Esse é que é o verdadeiro volte face no seu...

L.H.: Exactamente! Já se sabe que eu ainda antes disso, estava eu prái no 6º ano,

tinha-me matriculado e feito sócio da SNBA e frequentava as aulas nocturnas. Isto

é, portanto, anterior ao A.S. Mas nestas aulas (SNBA) o que eu aprendia era

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desenho! Com dois professores, um que era pintor, que tinha sido professor aqui na

Casa Pia... não me lembro os nomes!

Portanto, há estas duas vertentes: a minha aproximação às artes por frequentar os

cursos nocturnos da SNBA, mas sem pretender concorrer à escola de Belas Artes e

essa memória e a opção de fazer os tais exames de aptidão a letras ou a direito.

Entretanto o A.S. começa a dar-me essas aulas de filosofia e história que eram as

cadeiras que tinham que se fazer nesses exames de aptidão, e o português, mas

que eu tinha com outro professor que eu só via raramente e que era uma grande

figura da cultura portuguesa dessa época, que é o Professor Rodrigues Lapa que

era um homem que pertencia a uma entidade cultural notável que era a Seara Nova.

A Seara Nova era um grupo de intelectuais de esquerda, que se reuniam muito na

SNBA e tudo isso, e pintores e escultores, escritores, médicos, professores... o

Rodrigues Lapa (RL) chegou a ser professor da Faculdade de Letras, mas foi posto

fora por ser precisamente da oposição! Ao A.S. aconteceu-lhe a mesma coisa,

porque ele era professor no Porto! E portanto, esses homens começam a ganhar a

vida dando lições particulares. E então o R.L. o que é que se lembra?!... De fazer

cursos por correspondência para preparar alunos para os exames de aptidão. Eu

soube, e inscrevi-me nisso. E então, eu levantava por correio uma carta, em que

vinha... eu não tenho essas coisas porque arderam todas no incêndio... em que

vinha, por exemplo, um poema de Camões para se fazer um comentário, a

interpretação... por isso, eu tive oportunidade de falar com o R.L. aí umas 20 vezes,

porque de vez em quando encontrávamo-nos... Por semana ele mandava um

daqueles envelopes para eu responder, podia ser uma coisa do Garrett... Tenho lá

imensos livros prefaciados por ele (R.L.), era um indivíduo de grande qualidade!

Isto vem tudo quando eu estou a falar nesta plêiade de artistas e intelectuais que

me marcaram. Porque eu já te disse, a minha mãe tinha tido uma aluna que era da

Nazaré (Lucília Carvalho), que casou depois com o Dr. Carvalho, que era formado

em Matemáticas, e que a certo momento orientaram um pouco... eram professores

no tal colégio D. Filipa de Vilhena. E que tinham os amigos que eram quase todos

pessoas de esquerda... havia um homem que era notável, que era professor no

Liceu Gil Vicente que era o Dr. Alberto Candans um cientista notável, um homem

que fez imensas publicações... e muitos outros!

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Isto a propósito do A.S. ... portanto, o outro preparava-me para o Português que eu

fazia através do correio e com o A.S. era então a história e a filosofia. Eu ia lá a

casa dele, ele morava na R. Dr. António Martins, frente ao Jardim Zoológico.

Telefono-lhe, ele diz que sim senhor que me recebe. Foi muito interessante, eu fui lá

a primeira vez, ele começou a conversar comigo e disse:

- Sim senhor, o meu amigo vem cá 2x por semana e... o que é que faz o seu Pai?

E eu disse:

- Oh Professor, o meu Pai trabalha no comércio e a minha Mãe tem uma pequena

reforma porque foi professora no Colégio São Pedro de Alcântara.

E ele disse:

- Bem, estou a ver que não tem grandes posses!?

E eu disse:

- Não, não tenho!

Nessa altura o meu Avô já tinha morrido.

E ele disse:

- Portanto, vamos já acertar isso! Para mim é um privilégio conhecer um jovem, é a

primeira vez que falamos, mas o meu amigo tem uma sensibilidade, uma

personalidade que eu estou a apreciar e eu também vou aprender consigo. E

portanto, eu tenho outros alunos que me pagam... o meu amigo...

B: Estamos quites!

L.H.: Estamos quites! E assim se desenrolou. Aquilo começou a rolar e aí passados

uns 2 ou 3 meses, eu estava a olhar lá prás estantes dele e a ver aqueles livros que

ele lá tinha, e ele disse:

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- Ó Lagoa Henriques, eu estou a ver pelas conversas que temos tido em relação à

História que o meu amigo é interessado pelas artes e já me tem contado que tem

ido ver exposições...

E eu tinha contado aquele episódio do meu Avô e do MNAA, e ele disse:

- Então mas já tem feito alguma coisa?

E eu disse:

- Oh Professor Agostinho da Silva, eu frequentei uns cursos nocturnos da SNBA e

sempre desenhei desde miúdo! Desde miúdo que papel e lápis sempre foi natural!

A minha mãe dava-me papel e lápis de cor e eu comecei a fazer variadíssimos

desenhos e a construir os tais teatros nas caixas de sapatos! Portanto, os cenários,

os figurinos e aquela coisa toda... e ele disse:

- Então, há-de-me trazer os seus desenhos!

E eu levei-lhe os desenhos que tinha, uns que tinha feito para mim e outros que

tinha feito na SNBA. O tipo olhou para os desenhos e disse assim:

- Sabe uma coisa L.H.?! Eu quero-lhe dizer uma coisa... eu tenho a impressão que o

meu amigo está enganado! Eu até lhe digo mais, o meu amigo é um escultor!

E eu fiquei muito espantado a olhar para ele, porque nunca tinha feito nada de

escultura! E ele diz-me assim:

- Nunca fez nada em 3 dimensões?

E eu disse:

- Não!

- Mas então vai experimentar, vamos ver qual é a olaria mais perto da sua casa!

Foi a uma lista telefónica e era uma olaria que ainda hoje existe, pelo menos aqui há

uns 4 anos eu fui lá fazer uns slides, que é a olaria do Desterro, ali uma transversal

da Rua da Palma. E lá comprei 5 kg de barro!

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No outro dia, o nosso querido A.S., telefona para minha casa e diz:

- Então?!

Deviam ser umas 6 horas da tarde, 6 e meia...

- Já fez alguma coisa?!

- Já!

- O que é que fez?

- Olhe Sr. Professor, eu fiz 3 figuras com um palmo a conversar, fiz uma figura

feminina reclinada e fiz uma cabecinha.

Diz ele:

- Posso ir aí ver isso?

- Ó professor com certeza, mas...

- Eu gostava ainda hoje de ir aí! Eu vou tomar o meu eléctrico e em sendo aí nove e

meia eu vou aí ver as suas coisas!

E eu disse ao meu Pai e à minha Mãe, ela até ficou assim um bocadinho

preocupada, porque o A.S. era uma pessoa... e assim foi. Ele apanhou o eléctrico

no Jardim Zoológico, saiu ali assim perto da Praça da Figueira, na Rua dos

Fanqueiros e pronto... R. Dos Douradores, bateu à porta eu abri-lhe a porta,

entrou... e disse:

- Pois é, não há dúvida nenhuma, estão cá o seu Pai e a sua Mãe?

- Estão sim professor.

- Então, vá lá chamá-los se faz favor!

Eu fui chamar o meu Pai e a minha Mãe e ele virou-se para eles e disse:

- Muito prazer em conhecê-los, o vosso filho é uma pessoa com uma grande

sensibilidade, um rapaz muito inteligente e como sabem, ele tem lá ido a minha

casa, e eu tenho estado a prepará-lo para essas provas, mas quero-lhes dizer uma

coisa... nós estamos enganados!...

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4ª Entrevista – 07/07/2004

B: Então, o Professor Agostinho da Silva (A.S.) tinha acabado de comunicar aos

seus pais que estavam enganados. Não é?!

L.H.: Pois...

- Estamos enganados! O vosso filho é um escultor!

Bem... eu fiquei realmente suspenso, estupefacto! A minha Mãe e o meu Pai

também. E ele disse:

- Não, não! Eu acho que ele deve ir é para Belas Artes! Porque realmente tem

capacidades singulares e é isso que deve fazer!

E o meu Pai e a minha Mãe concordaram. A minha Mãe que foi professora de

desenho, foi aluna da irmã do Columbano Bordalo Pinheiro, o meu Pai que

trabalhava no comércio e era amador dramático, concordaram! Tinham

sensibilidade e concordaram!

E então, eu concorro e quando vou fazer o exame de aptidão eu reparo logo que o

meu desenho é diferente de todos os outros! É violento, com fortes contrastes e não

me apercebi que iria provocar a resposta que aconteceu... vou ver as classificações

e realmente estava excluído! Repara que se passou este tempo todo e a palavra

reprovado ainda me choca um pedaço... telefonei para minha casa e disse:

- Ó mãe, eu não vou almoçar.

Mas, não lhe disse o que tinha acontecido...

- Eu estou aqui com uns colegas, vamos comer a um restaurantezinho, uma

tascazinha e depois eu apareço para jantar.

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E então, eu saí e não fui almoçar com ninguém. Fui a pé desde a Escola de Belas

Artes, do largo da biblioteca pública, até às docas, onde apanhei uma concha que

conservei sempre no meu ateliê, mas que perdi no incêndio... mas como vês, este

espaço está povoado desse... dessa atmosfera de búzios e de conchas que eu amo

profundamente!... Voltei para casa, e quando eu chego a casa precisamente às 7

horas, a minha mãe abre-me a porta e diz:

- Ó filho, eu já sei o que aconteceu. O Prof. A.S. telefonou para aqui e disse-me que

era uma prova de que tu tinhas muito talento! E pediu que logo que tu chegasses

que fosses a casa dele!

Isto eram portanto 7 horas, eu comi uma sopa à pressa e depois meti-me outra vez

no tal eléctrico... eu devo dizer ao Sr. Mestrando que nunca tive automóvel, andei

sempre em transportes públicos. Quando comecei a ser colega aqui do Prof. Carlos

Amado, que foi meu aluno, nós ficámos aqui vizinhos de ateliê e então lá

comprámos um carro a meias e agora passo a ter um certo apoio de automóvel,

mas gosto muito de andar de transportes e muitas vezes vou de eléctrico e outras

até de autocarro, embora os autocarros já não sejam bem aquilo que eram... tudo se

modifica, tudo se transforma!

Bem, portanto, meti-me no eléctrico e cheguei à Rua António Martins, toquei à porta,

ele veio abrir a porta, abre os braços e diz:

- Então, muitos parabéns!

Bem! Eu fiquei...

- Calma, já lhe vou explicar porque é que lhe estou a dar os parabéns...

Entrámos, ele tinha as paredes todas forradas de livros, livros, livros... livros que

nunca mais acabavam! Na sala onde nós conversávamos, porque no fim de contas

aquelas aulas eram conversas fascinantes sobre tudo... sobre o universo da

aventura humana... da ciência, às artes, à geografia... a tudo! Ele tinha nessa sala,

que era uma sala de gaveto, em pequeno telescópio! Onde eu pela primeira vez vi

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as estrelas, já com uma determinada dimensão... bem, era um homem fantástico! E

então passámos para uma segunda sala e ele disse:

- Está a ver ali? Na parte mais alta, na última estante... há ali uma série de albuns

de arte...

Estava o Leonardo Da Vinci, estava o Botticelli, o Pierro de La Franscesca, o

Donatello e estava o Rodin... e ele disse:

- Tire aí o Rodin, se faz favor!

E eu tirei o álbum cá pra baixo... ele abriu e disse:

- Agora leia este parágrafo, olhe este aqui... leia lá isso!

Eu comecei a ler e ele disse.

- Leia alto!

E eu comecei a ler... o Rodin era filho de um polícia de segurança pública e de uma

criada de servir. Portanto, de origem o mais humilde possível! Tinha uma irmã.

Entretanto, tinha um tio que parece que era guarda de museu (um homem sensível)

que aconselhou o irmão polícia a matricular o menino “Augusto”, numa escola de

artes decorativas... correspondente à nossa António Arroio ou Soares dos Reis no

Porto... ele matricula-se, faz esse curso da pequena escola de artes decorativas e

depois a um certo momento resolve concorrer à Grand École au Beaux Arts (Escola

de Belas Artes). Concorre, pela primeira vez, vai ver as classificações... ficou

reprovado! Volta a insistir uma segunda vez e novamente fica reprovado! Volta a

insistir uma terceira vez e novamente fica reprovado! Depois teria que estar à

espera uns dois anos para poder voltar a concorrer... mas, coincidiu este desgosto

enorme com a morte da irmã! O Rodin tinha uma admiração enorme pela irmã e

certos biógrafos levantam até a hipótese de haver ali uma atmosfera sentimental

muito particular. Então, com a morte da irmã e estas três reprovações na Escola de

Belas Artes, ele resolve ir para Frade e então desloca-se para um...

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B: Convento?!

L.H.: Sim! Que ficava nos arredores de Paris, que eu agora não me lembro o nome,

e diz que quer ir para Frade! Por sorte, o director desse convento (que hoje toda a

gente conhece por causa do Rodin) começou a falar com ele, a perguntar-lhe:

- Mas porque é que quer vir para aqui?! O que é que aconteceu?!

E ele conta-lhe aquelas histórias todas. E ele diz:

- Bem, mas sim senhor... eu tenho a sensação que você não tem realmente uma

vocação religiosa, mas está a sofrer uma crise difícil, terrível e eu vou facultar-lhe

uma cela, mas imediatamente se vai montar aqui um cavalete de escultura, um

cavalete para o senhor desenhar e quando lhe passar tudo isso, o senhor volta e vai

continuar a sua actividade de escultor! A primeira coisa que vai fazer é o meu

retrato!

E o Rodin faz-lhe um retrato, que está fundido em bronze...

Já foste a Paris?!

B: Já, mas era pequeno!

L.H.: Então já foste, mas não foste ao Museu Rodin... Tens que ir a Paris! Todos

vocês, agora nesta continuidade, têm que começar a viajar! Entras no Museu Rodin

e logo no início, aquilo está exposto por ordem cronológica, logo na primeira sala

aparece esse retrato espectacular do Padre Eymard.

Portanto, aquilo passa-lhe tudo, ele volta digamos para a sociedade civil e o Padre

Eymard é que lhe diz:

- Mas, o senhor agora não pode concorrer tão cedo à Escola. Comece a trabalhar,

procure encontrar um ateliê de um escultor onde possa trabalhar!

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Não me lembro agora o nome do primeiro escultor com quem ele trabalhou como

aprendiz... que era, de resto, o que acontecia no renascimento. Depois a uma certa

altura começa a correr entre os escultores que há um rapaz que trabalha como

aprendiz e que tem qualidades excepcionais! E, há um escultor da moda, que hoje

também só se conhece porque trabalhou com o Rodin, que é o Carrier-Belleuse que

foi... que teve a uma certa altura uma encomenda da Bélgica, para fazer esculturas

para o edifício da câmara municipal... e leva com ele o Rodin. O Rodin vai,

colabora... e é aí que ele faz a sua primeira escultura mais notável e que provocou

um impacto no Salon de Paris, que é a célebre Idade do Bronze, de que nós temos

uma réplica no Museu do Chiado, antigo Museu de Arte Contemporânea, que está

muito mal colocada do ponto de vista museográfico... aquele museu foi

transformado numa galeria de exposições!! Aquele museu, que era um museu

notável ao nível da pintura, da escultura, até das artes decorativas (tinha uns

bordados da Maria Augusta Bordalo Pinheiro...)... Enfim, está lá, então, uma réplica

da Idade do Bronze adquirida pelo Diogo Macedo. Bem! É uma peça espantosa, é

um bronze excepcional que ele faz lá na Bélgica. Conhece um soldado, e não sei

bem como é que isso se passa, mas ele pede ao soldado para posar. E leva 4 anos

a fazer aquela escultura!

Eu só comecei a perceber isso aqui há uns 10 anos atrás... eu trabalhei muito, eu

comecei a trabalhar muito jovem, já quando estava com o Barata Feyo no Porto e fui

fazendo, modestamente, as minhas obras e fazia aquilo num tempo normal.

Ultimamente tenho levado muito mais tempo, não é porque... já se sabe que eu já

estou a acenar, estou-me a despedir! É pena no gravador não ficar gravado o

gesto... mas, agora levo mais tempo porque sou mais exigente. Agora é que eu

compreendo que o Rodin tivesse levado 4 anos a fazer a Idade do Bronze; que o

Leonardo DaVinci tivesse levado 4 anos a pintar a Gioconda, alguns biógrafos

dizem que ainda mais... e que por exemplo o nosso grande meste Le Corbuisier,

esse extraordinário desenhador e arquitecto, urbanista e filósofo, sociólogo (outra

das grandes figuras da história das artes e da história da humanidade), levou para

construir o “Modulour”, que é uma nova medida para a arquitectura, vários anos...

ao princípio a informação era de 4 anos, mas no outro dia, li um último livro sobre Le

Corbuisier e parece que foram 8! Portanto, quer dizer, estas coisas exigem um

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trabalho e são consequentes de um sentido de responsabilidade que se torna cada

vez maior conforme o tempo nos vai trabalhando a nós!

Concluí esta informação, o que é que deseja mais?!

B: Portanto, nós estamos em casa do Prof. A.S. a ler o tal parágrafo sobre o

Rodin... para perceber que ele também tinha reprovado...

L.H.: Ah!... Exactamente! Precisamente para ele me dizer que eu tinha um exemplo,

que o facto de eu ter reprovado representava que eu eram modestamente, fora de

série! Porque aqueles desenhos eram todos iguais, aqueles desenhos académicos

muito “lambidos”, com aqueles perfis muito bem desenhados academicamente, mas

eram desenhos sem criatividade. Pronto, e então ele disse-me:

- Arranje um professor ou uma professora que lhe ensine esses truques e o senhor

faz... com a sua sensibilidade!

E então fui. Fui discípulo de uma senhora que era professora na Escola António

Arroio, que ainda me lembro do nome, era uma senhora bastante forte, a D.

Eugénia Coelho. Ela lá me ensinou esses truques. Ela tinha um ateliê ali perto da

Estefânia... eu lembro-me disto fotograficamente. E foi lá que encontrei o Arquitecto

Sena da Silva, encontrei o Arquitecto Maurício Vasconcelos, que foram meus

colegas. Lá fomos fazer... o Sena da Silva também tinha ficado duas vezes

reprovado no exame de admissão... e pronto, lá entrei!

B: Isso decorre o quê? Um ano?

L.H.: Pois, no ano a seguir.

B: E depois, o percurso académico?

L.H.: Eu estive na Escola de Belas Artes de Lisboa um ano, entretanto no fim desse

ano eu tive uma tuberculose. Foi um ano muito intenso, um ano em que... está a ver

o que foi todo aquele convívio, aquela descoberta. Eu ainda apanhei um ou dois

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professores muito interessantes! Que era o velho mestre Piloto, Piloto tio porque

depois havia o piloto sobrinho que era professor de Descritiva, ele era professor de

Estilização. Ele era uma cultura enorme! Eu tive o privilégio de estar lá no último ano

em que ele deu, tinha ele já 70 anos! Era um homem espantoso! E como arquitecto

muito interessante, vou-lhe citar uma obra que é muito importante, temos que lhe

prestar homenagem, que é o Mercado da Ribeira, que ainda hoje é uma peça de

arquitectura notável! Teve a sua funcionalidade, para além da sua estrutura

arquitectónica, a maneira como aquelas águas descarregam, o sistema de

iluminação... era um tipo espantoso! De uma rara sensibilidade! Pequenino, muito

afectivo... estou-me a lembrar numa aula... às vezes ele punha a mão no ombro dos

alunos e das alunas e uma vez estava uma aluna que era muito bonita e ele pôs-lhe

a mão no ombro e depois prolongou um pouco essa carícia, essa ternura e disse:

- A menina desculpe, mas eu sou um velhinho, não leva a mal com certeza...?!

E lembro-me muito bem que a rapariga disse:

- Ó Mestre, então eu fico encantada! Se me dá licença eu vou-lhe dar um beijo...

Isso teve influência em mim, porque às vezes quando eu encontro as alunas e tal,

às vezes também peço para me darem um beijo...

Ah... o que é que eu estava a contar mais...? Pronto, tive o Mestre Piloto que era um

grande professor! E depois no desenho tive o Leopoldo de Almeida, aquele escultor

que era um professor altamente cumpridor, um homem que modelava

extraordinariamente! Sob o ponto de vista cultural era um pouco limitado, mas ele

também não tinha culpa disso... é um homem que tem uma obra de estatuária

honrada e qualificada. Já se sabe que não tem a criatividade que eu gostaria que

tivesse o meu futuro professor de escultura, razão pela qual eu fui para o Porto!

Porque nessa altura vai para o Porto para professor de escultura o Barata Feyo...

como ele interpreta aquele Herculano com o capote Alentejano, é uma coisa notável

e portanto, um homem erudito, um homem extremamente compacto, interiorizado,

severo! Sendo também um poeta! E do outro lado o Garrett, que era também um

homem... um romântico, um apaixonado, um grande romancista, um grande político,

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um grande professor. No fim de contas professor, porque ele é que funda o

Conservatório Nacional. Pois... o Conservatório Nacional que existia ali no Bairro

Alto, foi fundado pelo Almeida Garrett, a parte precisamente de teatro. A parte da

música não me lembro agora quem foi... mas há que prestar homenagem a esses

dois homens. Portanto, o Garrett era um homem de teatro... estamo-nos a lembrar

do “Frei Luís de Sousa”, mas não só, outras comédias que ele fez também notáveis,

“A sobrinha do Marquês”... imensas coisas, não é?! Traduções... e o poeta

espantoso que foi! Era uma figura notável... os poemas, aqueles últimos são

notáveis... e sobretudo, os discursos que ele fez na Assembleia, que nessa altura se

chamava as Cortes. Ele queria ser deputado pelo Porto e nunca foi, teve esse

desgosto. Mas veio a ser deputado, não sei se aqui por Lisboa ou outra cidade...

B: Mas então, a questão da sua doença não teve influência nessa mudança, é

apenas um episódio?...

L.H.: Pois, mas eu estive no sanatório. Eu curei-me passados 4 meses, mas depois

tive uma consolidação no Sanatório das Penhas da Saúde.

B: Mas foi durante...

L.H.: Foi no fim do ano! Eu fiz o ano, fui à praia da Costa da Caparica. Com o

arquitecto e pintor Carlos Calvet da Costa que é um rapaz do meu tempo e com o

Lima de Freitas. Fomos os 3 à Costa, à praia e então apanhámos imenso sol e na

altura, já no fim da tarde eu comecei a tossir e cuspi sangue! Fiquei... como deves

imaginar... e eles também ficaram impressionadíssimos. Fui para casa e nessa noite

voltei a tossir e a ter essa expectoração vermelha! A minha Mãe, acho que acordou

de noite, eu entretanto adormeci e ela viu tudo isso. No outro dia de manhã, levou-

-me ao consultório do grande médico das doenças pulmonares, que era o...

professor de que eu depois fiz um retrato, ficámos amigos... ele era dono da Quinta

das Águias, aqui na Junqueira, que fica perto do Hospital de Egas Moniz... eu estou-

lhe a dizer estas coisas porque são importantes...

B: Claro, claro Mestre!

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L.H.: E o consultório dele era no Rossio, numa esquina quando se vai para entrar

na estação do Rossio na parte posterior, sobe-se aquelas escadinhas. Há ali um...

nesse primeiro andar quem teve escritório de advogado foi o Eça de Queiroz. E

quando o Eça de Queiroz escreve aquele admirável romance “Os Maias” coloca o

consultório do “Carlos da Maia” que fez o curso de medicina, nesse 1º andar do

Rossio! Estas coisas são muito curiosas, muito interessantes... e há estas

coincidências. Pronto, eu vou para o sanatório, faço a tal cura em 4 meses, uma

cura natural, fico a consolidar e depois volto. Volto, ainda frequento...

B: Mas entretanto, já o ano lectivo tinha começado, não é?!

L.H.: Exactamente! E é nessa altura que resolvo ir para o Porto, para ser discípulo

do Barata Feyo.

B: Portanto, faz já o 2º ano no Porto?!

L.H.: Exactamente! Também depois, é preciso que se veja que aquilo tinha lá uma

cadeira terrível que era o Desenho Arquitectónico, que era do Cunha “Bruto”... eu

passei na Descritiva, mas no desenho arquitectónico chumbei no 1º ano. E também

isso me levou a ir para o Porto. Mas, a razão... no entanto, foi imensa gente pró

Porto porque não conseguiu fazer o arquitectónico, porque o director da escola, que

era o Arquitecto Luís Alexandre da Cunha, mais conhecido por Cunha “Bruto”, era

um homem que estava muito ligado ao antigo regime... diziam que ele trabalhava

com a PIDE, e portanto, quando ele percebia que os alunos eram um pouco de

esquerda, ele chumbava-os e perseguia-os! Aconteceu isso com o Zé Dias Coelho,

como sabes foi assassinado ali na esquina da Rua de Santo Amaro e... bem, isto

são episódios da minha geração!

B: Mas, diga-me uma coisa... nessa altura, vivia ainda na Rua dos Douradores?

L.H.: Nº 21, 2º Esq.!

B: Então, essa mudança de Escola é uma mudança “radical”, por assim dizer...

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L.H.: Sim, porque eu vou para o Porto...

B: Sai da casa em que sempre viveu...

L.H.: Exactamente! Eu nunca tinha ido ao Porto. Meto-me no comboio e chego ao

Porto à Estação de São Bento. Nessa altura ia-se para o Porto ainda da Estação do

Rossio! Lembro-me dos meus pais me irem acompanhar, chego ao Porto, saio da

Estação de São Bento, e eu já tinha estado a ver o mapa, e realmente a Escola de

Belas Artes, não era muito distante. Eu cheguei aí pelas três e meia quatro horas e

disse:

- Eu vou perguntando e quero ir a pé!

Quando saí da Estação de São Bento comecei a subir... o Porto é todo alcantilado,

como sabes, e fui dar a um largo que tinha uma fonte em granito lindíssima, que

ainda hoje me lembro, que é o Largo do Actor Dias. Porque sabes que, e aqui em

Lisboa também, as cidades na sua toponímia muitas vezes prestavam homenagem

aos actores. O teatro no séc. XIX foi importantíssimo na cultura portuguesa, e não

só! E então sentei-me naqueles degraus da fonte de granito e lembro-me que

escrevi umas coisas (que arderam no meu incêndio) e fiz uns desenhos (que

também arderam) e depois continuei tal, tal, tal e fui ter ao Jardim de São Lázaro,

Av. Rodrigues de Freitas e à direita o Palacete Braguinha, onde ainda hoje está

instalada a Faculdade de Belas Artes do Porto. Porque a certa altura a arquitectura

se separou da pintura e da escultura.

Vivi em vários sítios, eu tenho que ir ao Porto para fazer umas fotografias dos sítios

onde vivi. O 1º sítio onde vivi foi na R. das Fontainhas, onde agora é o São João

das Fontainhas. Depois tive na R. Duque de Saldanha, depois estive na R. Barão de

São Cosmo... em quartos alugados. Depois, é que a uma certa altura, quando

comecei, no fim do curso, já quando eu estava a trabalhar com o Barata Feyo e ....

B: Então começou, desculpe interromper, começou a trabalhar com ele...

L.H.: Logo que lá cheguei! Mas, eu já conhecia o Barata Feyo da Nazaré e das

exposições aqui de Lisboa que se faziam no antigo secretariado. Era a Sociedade

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de Belas Artes que era um espaço independente e o Secretariado que era uma sala

de exposições do antigo SNI. Que foram em São Pedro de Alcântara e depois no

Palácio Foz nos Restauradores.

B: Então, só para eu me situar... naquela tal 1ª exposição que fez na SNBA ainda

estava a estudar cá?

L.H.: Ainda estava a estudar cá, no 1º ano da escola. Foi quando eu fiz o retrato do

Sena da Silva, fiz um retrato do meu Pai e mais qualquer coisa. Expús e fui

admitido. Porque aquilo tinha um júri de admissão e muitas vezes as pessoas não

eram admitidas.

B: Mas, fez várias exposições na Sociedade?

L.H.: Entrei em várias exposições. Depois é que fiz...

B: Até teve aqueles prémios...

L.H.: Sim , sim! Mas isso eram os tais “Salon”.

B: Mas isso sempre em Lisboa?

L.H.: Não, primeiro eu estava em Lisboa, mas depois quando fui para o Porto

continuava a expor na SNBA. Razão porque parece que se vai fazer uma exposição

minha daqui a 2 anos na SNBA...

B: Pois bem sei, eu também estou no projecto!

L.H.: Muito bem! Mais perguntas?!

B: Então, mudamos para o Porto novamente... acaba lá o curso sempre como

discípulo do Mestre Barata Feyo...

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L.H.: Discípulo e colaborador do Prof. Barata Feyo. Trabalhava no ateliê do Barata

Feyo!

B: E, acabado o curso como é que foi?

L.H.: Acabado o curso, eu fiz o tal concurso para uma bolsa de estudo do Instituto

de Alta Cultura, hoje instituto Camões.

B: Logo assim que acabou o curso?

L.H.: Logo que abriu a bolsa! Que foi precisamente nessa altura!

B: Então esteve quantos anos no Porto... 4 anos?

L.H.: Portanto… eu estive no Porto uns 6 anos! Mas isso só se pode saber se fores

à Escola de Belas Artes do Porto informar-te, porque eu não tenho essas coisas!

Mas, depois continuei a viver lá, porque entretanto vou lá para fora, ganho o

concurso do Instituto de Alta Cultura e estou durante 3 anos em Itália, Grécia,

Egipto...

B: Pois, vamos focar-nos agora nesse período...

L.H.: Eu fui como bolseiro para Itália, para ser discípulo de um escultor que eu

admirava muito, que era o Marino Marini... (apagado)

... na parte do R/C era a escola, a Academia de Brera, e no 1º e 2º andar era o

célebre Museu de Brera. Onde tu encontras pintura e escultura da arte italiana

desde o séc. XIII até ao séc. XVIII.

B: Então foi discípulo do...?

L.H.: ... do Marino Marini. Mas antes disso, estive 1 ano a conhecer Itália. Estive em

Roma, porque eu logo que chego a Roma matriculo-me na Academia de Belas Artes

de Roma, na Scuola del Marmo, traduzindo Escola do Mármore. Porque eu tinha

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feito um curso inteiro sem trabalhar a pedra ou a madeira! A gente fazia um curso

inteiro só a trabalhar em barro!

B: A sério?!

L.H.: Pois fica agora a saber! A renovação do ensino de Belas Artes, da célebre

reforma de 68, é consequente do... quem produz essa reforma é o Prof. Arquitecto

Carlos Ramos, cujo filho ainda mora aqui no Restelo e que fez o Café Restelo e o

Cinema Restelo, que depois foi deitado abaixo para fazer aquele sítio onde está o

Pingo Doce e um banco e essa coisa toda! Portanto, a uma certa altura chega-se à

conclusão que é preciso fazer uma reforma do ensino de Belas Artes... o Carlos

Ramos é, digamos... o grande motor dessa reforma... ele fala com o Barata Feyo e

diz-lhe:

- Oh Barata Feyo, o que é que te parece relativamente à escultura?!

E o Barata Feyo diz-lhe:

- Olha óh Carlos Ramos, eu vou-lhe dar a minha opinião, eu tenho as minhas ideias,

certamente que sim, mas quem está actualizadíssimo nessas coisas, porque esteve

em França, porque esteve na Holanda, porque esteve na Bélgica… é o Lagoa

Henriques! Que é bolseiro e está a acabar a bolsa dele!

(Nessa altura eu ainda estava no 1º ano da bolsa, no fim do 1º ano!)

- O Carlos Ramos vá a Roma (até porque ele era presidente da União Internacional

dos Arquitectos), vá ter com o Lagoa, porque ele vai dar-lhe certamente, sugestões

muito interessantes! Até porque enquanto ele foi meu assistente, ainda antes de

fazer a bolsa, ele já propunha coisas diferentes daquelas que nós estávamos

habituados a fazer.

E assim foi. O nosso Carlos Ramos, telefona-me, escreve-me e diz:

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- Vou a Roma, o mestre Barata Feyo disse-me para falar consigo, por causa destas

coisas do ensino de Belas Artes… ólhe, vá-me esperar no dia tal à hora tal ao

aeroporto de Roma.

O Carlos Ramos chegou lá e eu fui cicerone dele porque ele nunca tinha ido a

Roma. Foi uma coisa espantosa, tivémos imensas conversas… e ele disse:

- O Lagoa o que é que lhe parece?

E eu disse:

- Ó Mestre Carlos Ramos, parece-me o seguinte: é que eu tive grandes professores

na Escola do Porto, eu tive o Barata Feyo, tive um mestre que não chegou a ser

meu professor, que era arquitecto, mas com toda a organização, a

complementaridade cultural que fez na escola, as grandes exposições magnas… o

pintor Dórdio Gomes foi meu professor de desenho, mas no entanto o ensino era

um pouco reduzido, não havia a prática de determinados materiais, não só na

escultura como na pintura! Quer dizer, eu fiz um curso inteiro de escultura, em que

aprendi imenso, e se não fosse o facto de eu contactar com outras realidades no

ateliê do Barata Feyo e tivesse acompanhado muitas peças dele que foram

passadas à pedra, outras fundidas em bronze... eu não me tinha apercebido! Quer

dizer, conhecia de museus, mas não... nunca... quer dizer, fiz um curso inteiro sem

trabalhar a pedra! Por isso, a 1ª coisa que eu fiz quando cheguei aqui foi matricular-

me na Scuola del Marmo, onde pela 1ª vez comecei a trabalhar em pedra. Portanto,

a 1ª coisa que há a fazer, Mestre, é criar as tecnologias. A tecnologia da pedra, a

tecnologia da madeira, dos metais... e é isso que é preciso fazer para reformular o

ensino das Belas Artes em Portugal! E o que se passa com a escultura deve passar-

se com a pintura. É preciso introduzir de novo o Fresco, introduzir o mosaico... é

preciso introduzir as novas tecnologias. Para além de algumas cadeiras que não

estavam implantadas, como a estética... a arqueologia já existia no meu tempo e a

história da arte... mas, é necessário revolucionar e criar essas novas tecnologias. E

é devido a estes nossos encontros, com a maior modéstia, não é!? Que se fez esta

reforma! O Carlos Ramos disse:

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- Admirável! Eu já tinha um pouco essa intuição, mas realmente o Lagoa agora...

E depois eu levei-o à Academia de Belas Artes de Roma... estivemos lá mesmo no

ateliê da pedra, depois visitei com ele muitos museus, que eu já conhecia, e servi

um pouco de Cicerone (dito em italiano pelo Mestre), e aquilo foi muito importante! E

então, faz-se uma reforma em que se faz essa abertura.

Entretanto, eu depois faço a Itália toda, como já disse ao meu querido amigo, vou

para Milão. Estou lá com o Marino Marini um ano lectivo, depois volto novamente do

Norte para Roma, mas atravesso todas aquelas cidades notáveis, todas elas são

espantosas! E depois, a uma certa altura desço de Roma para Florença, depois vou

para Nápoles, de Nápoles vou para a Sicília e da Sicília vou para a Grécia! Porque

chego à conclusão que tenho que ir à Grécia para compreender e arte Romana, a

arte Greco-Romana! E depois chego à conclusão que tenho que ir ao Egipto!

B: Explique-me só como é que funcionava, mesmo em termos prácticos... quando

chegava à conclusão que tinha que ir à Grécia, por exemplo, a bolsa previa...?

L.H.: Não, não, não previa! Eu tinha que pedir licença. Portanto, eu todos os meses

(ou de dois em dois, já não me lembro bem) tinha que fazer relatórios para o

Instituto de Alta Cultura. Quando me deslocava para outra cidade, eu fazia o

relatório e pedia autorização para isso. Porque eu tinha pedido a bolsa para Itália e

fundamentalmente para ir para Milão ser discípulo do Marino Marini, mas depois...

primeiro fui para Roma porque tinha mesmo que ser! Não fui propriamente ver o

Papa, mas fui ao Vaticano que tem um museu que é uma coisa espectacular, um

museu excepcional!

... E tudo isto se processava dentro desta... quando peço licença para ir à Grécia,

sim senhor muito bem, quando peço licença para ir ao Egipto... ficaram muito

espantados!

- Ao Egipto?! Mas o que é que vai fazer ao Egipto?!

Disse-me a Doutora, muito simpática, mas enfim... e eu disse:

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- Ó Soutora... por favor!

Eu li, tive o privilégio de ler, porque fui discípulo (ainda eu não pensava que ia ser

escultor, quem descobriu a minha vocação foi o A.S.)... li um daqueles caderninhos

do A.S., que se chamava “Viagem ao Egipto”, do Heródoto, o 1º grande historiador

que é conhecido pelo Pai da História e aí fiquei fascinado! E quando fui à Grécia, já

se sabe fui logo à Escola de Belas Artes (eu criava logo amizades) e estava lá uma

rapariga que era egípcia e que me disse:

- É pá, tu devias ir era ao Egipto!

E então, eu resolvo ir ao Egipto!

Vim cá, porque eu vinha cá passar às vezes umas férias, mas muito breves. Eu só

vim 2 natais a Portugal! O resto ficava sempre lá. Escrevia sempre tanta...

felizmente tenho essa correspondência porque isso salvou-se, porque eu escrevia

para os meus pais, para o Barata Feyo, também tenho várias coisas, Carlos Ramos,

eu escrevia para os meus amigos e tal...

E então, lá me deram autorização. Fui o 1º bolseiro em Portugal que foi ao Egipto!

B: Mas como é que ia para esses países? Ia assim à aventura de saco às costas,

ou... ?

L.H.: Tinha uma malinha muito pequenina! Nessa altura ainda não havia esses

sacos que há agora, essas mochilas... era uma mala muito pequenina. Onde eu

tinha umas mudas de roupa, tinha um fatito... já se sabe que eu tinha também uma

vantagem, porque eu quando fui para Itália, frequentava também o ateliê do Barata

Feyo um jornalista do Comércio do Porto que se chama Costa Barreto. O senhor

quando tiver oportunidade e tempo tem que ler 3 livros que ele publicou que se

chamam “Estrada Larga”, em que ele faz o levantamento da literatura, das artes

plásticas, do cinema, ah... entrevistando as figuras do tempo, da época, enfim, são 3

volumes espantosos! Bem, e ele disse-me assim:

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- Ó Lagoa Henriques, você vai para Itália, olhe eu vou-lhe arranjar um cartão de

jornalista! E você lá em Itália vai ver exposições e manda-me os artigos para o

Comércio do Porto!

E então, isso para mim foi excepcional, porque eu chego a Roma e vou ao

“Ministero degli Affari Esteri” e recebo através do meu cartão de jornalista, (que não

era no fim de contas), um cartão de jornalista para Itália! E então, ia a todos os

teatros, todas as exposições, a todas as estreias, concertos, tudo! Não pagava

nada... Hai capito ou non hai capito? Razão porque eu conheci aquelas grandes

figuras, do cinema, do teatro... eh, pá, coisas fantásticas!

B: Isso deve ter sido um período fascinante, não?! Louco?!

L.H.: Sim! Foi nessa altura que eu aprendi tudo praticamente, quer dizer... Tudo no

sentido do contacto directo com a obra! É muito diferente um gajo olhar, por

exemplo, para o “David” de Miguel Ângelo e ver a estátua... ou para “Os Escravos”

(que tenho aí as fotografias)... é muito diferente! Uma pessoa ir a Paris e ver a

“Virgem dos Bruxedos” de Leonardo Da Vinci, ou ver o Velásquez em Madrid...

B: Esse felizmente já vi!

L.H.: É muito diferente! O contacto com as cidades, o contacto... ir a Veneza...

B: Nessa perspectiva, considera-se um privilegiado?!

L.H.: Com certeza, sem dúvida nenhuma! Se eu não tenho tido aqueles 3 anos, se

não tenho tido aquela bolsa, eu não era aquilo que sou hoje! Tanto que eu estou

sempre a dizer... entretanto, já se sabe que essas bolsas quase deixaram de existir,

há as bolsas da Gulbenkian, ainda, mas... eu tive que prestar provas, éramos 3 a

concorrer e tivemos que fazer uma escultura de uma modelo (muito bonita, ainda

hoje me lembro)... e assim foi! Tás a compreender?! Mas faz favor de continuar a

interrogar!

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B: Então, voltando um pouco atrás... estávamos a ir ao Egipto. É onde termina o

seu percurso da bolsa?

L.H.: Não, eu depois volto a Itália.

B: Quanto tempo ainda esteve lá?

L.H.: Bem... eu isso assim não sei... foram 3 anos completos no total!

B: E depois volta para o Porto ou para Lisboa?

L.H.: Depois volto para o Porto, porque quando ganhei a bolsa assinei um

documento em como me responsabilizava em que depois da bolsa ia ser professor

no Porto! Assistente na Escola de Belas Artes do Porto, com o maior prazer!

Assistente, portanto, do escultor Barata Feyo! Eu fui professor de desenho e

escultura no Porto, primeiro até de escultura. E a razão...

B: É aí que começa a sua vida de professor?

L.H.: Começo a minha vida de professor do ensino superior, porque eu no fim do

meu curso de escultura fui trabalhador-estudante, concorri e fui professor na Escola

Comercial e Industrial na Póvoa do Varzim, portanto, no ciclo preparatório e depois

no ano a seguir concorri novamente e fui colocado no Porto na Escola Soares dos

Reis, onde eu aprendi imenso com os miúdos, com aquelas... eu sempre gostei

muito de ensinar, mas aprendi imenso naqueles 2 anos em que fui professor de

ensino secundário. Havia um inspector escolar, que era o professor Calvet

Magalhães e um outro de Leiria, que não me estou a lembrar o nome, que

revolucionaram o ensino do desenho no ciclo preparatório... pronto! Foram

experiências realmente fundamentais para a minha formação!

B: E diga-me como é que um professor/escultor gere este paralelismo entre a

carreira artística e a docência!

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L.H.: A relação entre o praticante das artes... a palavra artista é uma coisa pela qual

eu tenho muito respeito. E artista é o Rodin, o Rembrandt, é o Miguel Ângelo, é o

Picasso... eu sou apenas um aprendiz de artista, ou talvez um oficial (aprendiz,

oficial e mestre), chamam-me Mestre porque eu fui professor e nas escolas de

Belas Artes chamavam aos professores mestres!

Portanto, a relação entre o professorado e a actividade profissional do dito artista,

eu chamo distintamente ao artista um construtor de imagens, imagens

bidimensionais no caso do desenho e tridimensionais no caso da escultura... mas

voltando a essa relação entre o exercício do desenho e o exercício da escultura,

que se bifurca em 2 vias, uma realização que eu chamo o risco inadiável, o desenho

intimo, a escultura intima, que não é feita por encomenda e a encomenda pública, a

arte pública, que são as estátuas, são os relevos... estou-me a fazer entender?!

B: Perfeitamente!

L.H.: Ora bem, simplesmente eu considero que o ser professor é também uma arte,

porque realmente, como dizia o nosso querido amigo Sócrates, que era filho de uma

parteira, ele dizia que tinha herdado da mãe essa capacidade de fazer nascer a

inteligência e o espírito. O professor assiste a essa metamorfose. Eu apanhei alunos

desde o preparatório com 10/11 anos, passando pela Escola Soares dos Reis em

que tive alunos com 14/16/18 (tinha até uma turma nocturna de trabalhadores

estudantes), até à Escola de Belas Artes com alunos já de outro plano etário.

Portanto, eu sempre gostei muito de ensinar, como te expliquei, isso para mim é

também uma arte, eu muitas vezes sinto que até talvez me tenha realizado mais

como professor, do que como artista (entre aspas), embora tenha feito coisas que

eu considero e respeito, fundamentalmente por serem originais, embora todos nós

tenhamos influências e ressonâncias, mas tenho digamos, a minha personalidade.

Como sabe, as minhas obras são sempre diferentes, eu dou sempre uma resposta

diferente.

Portanto, nessa relação entre o ser professor e o ser escultor, não há qualquer tipo

de incompatibilidade, uma coisa prolonga a outra. Eu na minha última lição, que

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tenho um vídeo que se fez, feito pelo Francisco Manso, que não é muito famoso,

mas que dá um pouco a notícia disso, e tenho a lição escrita, e tenho os meus

diapositivos, porque essa minha última lição foi realmente uma pedrada no charco,

aquele salão encheu-se! Tanto que tiveram que pôr umas televisões noutras salas

para as pessoas assistirem! E assistiu o Ministro da Educação, o Presidente da

República, o Azeredo Perdigão... toda aquela gente apareceu ali. Porque eu tinha

realmente uma fama de professor, que de certo modo corresponde ao meu

interesse e à minha dedicação, que não era propriamente exclusiva porque era

também escultor, mas... como é que se pode ensinar escultura, sem fazer

escultura?! Como é que se pode ensinar desenho sem fazer desenho?! Já se sabe

que muitos professores passaram ali por certas escolas, que não têm obra

nenhuma, nem pintura nem escultura! Outros têm... estas coisas são complicadas,

mas é bom que se chame a atenção para isto. Como é que uma pessoa pode fazer

um mestrado em museologia, se não visitar os museus?! Se se limitar a ler livros,

só?! E a ouvir palavras... é preciso contactar com os espaços, é preciso contactar

com as obras de arte! Foi isso que eu procurei fazer, como vê não sou professor de

secretária! Fui eu que fiz descer a escola à rua! Levava os alunos a desenhar para a

Ribeira de Lisboa, levava os alunos a desenhar para o Largo de Camões, levava os

alunos a desenhar para o Largo da Misericórdia, onde está aquele museu... São

Roque! Fiz um exame final com os Arquitectos nesse largo! Isso veio nos jornais!

Portanto, está a ver a revolução que eu fiz na pedagogia. Já se sabe que eu ainda

vibro com isto! Noutro dia descobriu-se, e isso é uma coisas espantosa (o Mário

está a tratar dos meus diapositivos), aquela série de diapositivos que eu tenho sobre

as minhas aulas de desenho, e não só, que é uma revolução total! O desenho

antigamente, era só o desenho de estátua e o desenho do modelo. Levavam-se 2

anos a desenhar a escultura greco-latina e acabou! Ora, eu fui traumatizado por

isso, porque eu tive um ano só a desenhar a Vénus, o Agripa, o Doríforo e acabou!

Mais nada! Era naquelas folhas de papel Ingres, a gente tinha que fazer aquele

desenho profundamente académico, muito modelado, com muito cuidado, com

aqueles perfis... o professor, que era o professor Leopoldo de Almeida, sabia

imenso de anatomia, era um bom professor dentro desse esquema. Agora, estás a

ver o que é um ano inteiro a fazer aquilo! Eu já não podia ver aquilo à minha frente!

A uma certa altura fui visitar a gliptoteca, que são os modelos em gesso que existem

na escola, porque há lá modelos depois do Séc. XV, Séc. XVI da escultura

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portuguesa, que eu quando vim do Porto para Lisboa introduzi nas minhas aula!

Falei com o director, e pedi-lhe licença para levar aquilo prá minha aula de desenho,

porque aquilo não se podia fazer, aquilo foi uma coisa terrível! Porque eu vinha da

escola do Porto que era uma escola de vanguarda e esta escola tinha-se

conservado completamente igual ao que era quando eu tinha saído de lá! Havia

umas produções que se tinham feito na Exposição do Mundo Português, de certos

motivos escultóricos, os túmulos de D. Pedro e D. Inês, o portal da catedral de

Évora, portanto daquela escultura românica excepcional, e não só, e muitas outras

coisas de vários pontos do país, portanto a escultura do séc. XVI, coisas dos

Jerónimos e tal... e então eu propus que se levasse para os alunos desenharem. Ele

achou a ideia interessante, mas disse:

- Eu acho que sim, mas não posso ser eu a decidir, isso tem de ir a Concelho

Científico.

E então, lá nos reunimos em Concelho Científico, ele apresentou a questão e houve

logo umas reacções que disseram:

- O quê?! Ó Prof. Lagoa Henriques... julga que está no Porto?! Isto é uma escola de

expressão académica, é uma escola que... então o senhor vai obrigar os alunos a

desenhar um cânone de 6 cabeças?! Essas figuras são românicas, são figuras

atarracadas... isso vai deformar os alunos! Isto é uma escola clássica!

E eu disse:

- Olhe, não concordo nada com isso! Ilustre colega, ilustre escultor, ilustre professor,

não concordo nada consigo! Porque está a utilizar a palavra clássico num sentido

simplesmente historicista e sem dar a sua dimensão estética! Porque uma obra

clássica, tanto é do Brâncuşi como é do Policleto, tanto é uma escultura românica,

como é uma escultura gótica. O clássico é, digamos, a obra. Seja de pintura, de

escultura ou desenho... ou de música! Uma obra de Stravinsky ou do Prokofiev, que

são realmente compositores modernos, pode dizer-se que é tão clássica como uma

sinfonia de Beethoven, ou como uma tocata de Bach! O mesmo se aplica à

escultura!

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Bem, foi ali um conflito... aquilo foi para votos e eu ganhei por 1 voto! Porque havia

uma série deles que estavam contra mim... não vou citar os nomes porque é

desagradável... mais tarde... eu estou a escrever uma espécie de memórias,

percebe?! E aí conto isso tudo... Portanto, foi uma luta muito grande, mas que eu

venci. Portanto, eu faço com que essas esculturas entrem e começo a introduzir nos

referentes do desenho, para além da escultura, o universo natural, portanto, as

árvores, motores, uma bicicleta, uma moto! Houve um exame, que eu tenho esses

diapositivos, que foi feito no pátio da cisterna, sabes onde é?

B: Sei, sei!

L.H.: Em que estavam aquelas 4 esculturas do Manuelino, a Santa Maria Madalena,

o São Pedro, o São Paulo... o aluno tinha que fazer aquelas esculturas, o desenho

daquelas esculturas a carvão... e depois fazia a moto! Para além de que

apresentava em complementaridade aqueles Diários Gráficos, que eu,

modestamente, inventei! Portanto, está a ouvir aqui já um pouco aquilo que constitui

a minha intervenção como professor...

B: E a revolução que implementou no ensino...

L.H.: Sim , sim, sim, sim... é verdade! Mas isso é consequência da minha

descoberta das artes com os 3 anos que tive viajando... é o meu contacto directo,

com a arquitectura, com o espaço, com a escultura, com a pintura... com tudo isso!

E os grandes mestres que tive! Eu ia a todas as exposições, eu ia a todos os

concertos... o cinema! É impressionante, toda aquela geração que eu conheci de

perto! Anna Magnani, conheci o Cocteau... o Picasso só o vi, nunca falei com ele...

mas o Cocteau, Jean Cocteau a uma determinada altura fez uma exposição em

Roma de pintura e desenho, na galeria Renato Atanásio, que era um grande

antiquário e eu como tinha aquele cartão de jornalista, lá fui... e a uma certa altura já

estavam todos à espera que ele chegasse... e o gajo chegou com um automóvel

branco, lindíssimo (não me lembro agora qual) e quem vinha a conduzir era um

rapaz que esteve com ele bastante tempo e que era actor e que entrou em vários

filmes dele. E aquilo foi realmente um acontecimento cultural espantoso, táva toda

a gente do teatro, da cultura, escritores, tudo aquilo... porque ele é um poeta

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notável, era um filósofo fantástico. É um desenhador extraordinário. O Picasso tinha

por ele a maior admiração, e um pintor também interessante... e é nesta altura que

eu fiquei por ali um pedaço e a certa altura aproximei-me dele e disse:

- Olhe, eu sou jornalista, mas sou antes de tudo... estou aqui assim em Roma como

bolseiro. Mas também faço umas crónicas e gostava de falar consigo.

E ele disse:

- Ah! Mas com certeza! Mas de que nacionalidade é?

- Sou português!

- Ai, gostava imenso de ir a Portugal!

Nunca chegou a vir a Portugal. Conhecia várias personalidades, entre eles o

Eugénio de Andrade que lhe escreveu e ele mandou-lhe um desenho... o Eugénio

de Andrade tem um desenho do Cocteau... e eu uma vez comprei um desenho do

Cocteau, numa galeria em Paris... e que ardeu também no meu incêndio...

Bem, estava a contar destas personalidades...

B: A maneira como isso tudo se reflectiu no seu ensino...

L.H.: ... sim e depois na Escola de Belas Artes do Porto, o Carlos Ramos trazia ali

as grandes figuras, não só da altura portuguesa, professores aqui de Lisboa,

professores de História da Arte, pintores... o Almada Negreiros foi lá fazer uma

conferência que nos marcou a todos... nessa altura já eu era assistente. Porque,

quando eu venho da bolsa, começa a nascer a Fundação Gulbenkian, portanto o

Gulbenkian morre e com aquela herança que deixa vai-se fazer o museu

Gulbenkian, compra-se aquele espaço todo que pertencia ao Conde de Vilalva, de

quem eu fiz ultimamente o busto para Évora e... então eles instalam-se naquele

terreno, antes de abrir o concurso para o Museu Gulbenkian, concorreram vários

arquitectos (não só portugueses como estrangeiros)... eles já tinham lá uns

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pavilhões e a uma certa altura começaram a desenvolver actividades culturais e

numa dessas actividades, estava lá o Fernando Azevedo, estava lá o Artur Nobre de

Gusmão... fizeram um ciclo de conferências que se chamavam: “Os artista falam de

arte!” e foram convidados imensos artistas, conheço alguns, eu não tenho... isso

ardeu tudo no incêndio, mas se tu quiseres saber isso, vai à Gulbenkian e pedes

essa documentação! E entre esses artistas... eu lembro-me é do Almada Negreiros,

os outros que foram não fixei. Eu era muito jovem naquela altura e eu conhecia o

nosso querido Almada Negreiros de o ver na Brasileira do Chiado, com o Diogo de

Macedo, com o Eduardo Vieira (que foi uma das pessoas que o Carlos Ramos

convidou para ir fazer uma exposição e para lá ir falar com os alunos) e eu faço a

minha conferência sobre o desenho... com uma quantidade enorme de diapositivos

“A aventura do desenho”, não cronologicamente, mas criando afinidades electivas

(como diria o nosso GUI) com uma argumentação visual fortíssima... eh, pá, aquilo

teve um sucesso enorme! Acabou a conferência... eu fui o último (porque era o mais

novo) e lembro-me que o Almada me veio dar um grande abraço e disse:

- Você realmente fez uma coisa deslumbrante, olhe eu emocionei-me imenso,

porque você suscitou todos os grandes momentos do desenho e agora vou-lhe dizer

uma coisa... As únicas duas boas conferências que houve foi a sua e a minha!

Apertou-me, deu-me um grande abraço, ficámos amigos até ele morrer!

Bem, tou-lhe a contar estas memórias, porque são realmente interessantes. Eu tive

esse privilégio de conhecer grandes artistas, o António Eduardo Viana, o Diogo de

Macedo, o Jorge Barradas... eu fiz uma exposição de escultura e pintura na Galeria

do Diário de Notícias... e quem lá ia muito era o Jorge Barradas e uma vez eu tinha

saído da escola (já estava aqui em Lisboa, porque eu depois pedi transferência) e

fui lá e ia a entrar e vi o Jorge Barradas com o Almada e ainda ouvi o Barradas a

dizer ao Almada:

- Este rapaz desenha extraordinariamente. Olha, eu não sei o que pensa o Almada

mas eu para mim é o artista que desenha melhor em Portugal neste momento!

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Eu ouvi aquilo e até tive vergonha de entrar, dou-lhe a minha palavra de honra! Fui

ver uns livros e entrei mais tarde... ele deu-me os parabéns... isto é também um

episódio interessante e que me marcou muito!

Estou a dispersar... mas eu não faço... como sabe a dispersão é um conto ou um

poema do Mário de Sá Carneiro!

B: Mas também já está na hora... já são 20.30!

L.H.: Olhe, eu tive muito prazer em conhecê-lo, em reconhecê-lo! Agora já sei o seu

nome: Bruno o ciclista! Para além disso é um rapaz com sensibilidade, é um rapaz

inteligente e eu sinto-me muito honrado de o senhor ter estas conversas comigo!

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5ª Entrevista – 12/01/2005

B: Vamos começar então a abordar a questão das colecções, que é a parte que me

vai interessar… como tema principal na Tese. Eu tinha feito, um pequeno

alinhamento com o Prof. Carlos Amado…

L.H.: Então diz lá… podes dizer! Vais dizer e vais fazer perguntas…

B: A ideia era…

L.H.: Agora estou aqui para te escutar…

B: A ideia era, queria que me falasse um bocadinho da sua ideia… da colecção à

necessidade de o homem colectar ao longo do tempo, um bocadinho da teoria da

colecção. Só para um enquadramento, antes ainda de falarmos da sua colecção.

L.H.: Sim, Sim, Sim…

B: Portanto, da questão de colectar por necessidade à questão de colectar por

gosto, por paixão, por amor a qualquer coisa. Abordámos a questão do espírito do

coleccionador, a questão metafísica da colecção. Um bocadinho esse tema, porque

gostava de ouvir a sua opinião.

L.H.: De resto, nós já tínhamos falado um bocadinho disso…

B: Sim, sim… Mas ainda fora mesmo da entrevista…

L.H.: Pois eu, no outro dia quando estivemos aqui a conversar, eu sublinhei… essa

raiz metafísica do coleccionador. Lembro-me que te disse que, os medos do homem

são: a solidão e a morte. É que é a minha visão, digamos filosófica, da condição

humana. Mas é capaz de não ser só da condição humana, julgo que, todos os seres

vivos, têm necessidade de se acompanharem uns aos outros. Já sabes que se me

perguntares, ou se eu reflectir: mas e então e as árvores, e as florestas, as plantas?

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São incógnitas, são enigmas, mas não há dúvida nenhuma que o facto de o homem

tratar dessas espécies, dá-se digamos… Conclui-se que é necessária a participação

do homem. E se calhar elas sentem-se melhores ou mais felizes. Já sabe que no

início do século XX, um grande biólogo alemão – que eu não me recordo o nome,

fez uma experiência espantosa. Num gabinete de Gestão, de um director de uma

grande empresa existia uma planta de tipo Philodendron. Sabes? É uma planta

chamada “Costelas de Adão”, em português… E então, ele foi visitar um amigo que

era director de uma empresa, e disse: “Mas esta planta está realmente lindíssima,

notável. Até porque as condições não são as melhores…”, e ele disse: “Pois bem,

eu trato-a o melhor que posso e realmente ela está espantosa”. É o caso de plantas

que eu tenho aqui, não é? E ele ficou impressionado, esse cientista, esse biólogo. E

disse: “Chegou o momento de eu fazer uma experiência, na qual eu já pensei várias

vezes, mas nunca fiz”. Como tu sabes, uma planta tal como um ser humano ou

como um bicho tem aquilo o que se chama circulação, não é propriamente o

sangue, mas é a seiva. Portanto é a seiva bruta, que depois se transforma em seiva

elaborada com a acção da fotossíntese, do sol, da luz… E portanto é possível medir

a tensão da circulação da seiva, como se mede a nossa tensão arterial. Então ele

ligou à planta um desses aparelhos de medir a tensão e entrou o director, as

empregadas das limpezas, e os gráficos: magníficos. Há uma certa altura em que

introduz no escritório um homem que chega lá, olha para a planta de uma forma

violenta, chega-se ao pé da planta e destrói uma folha. Depois desse experiência

vão medir a tensão e a planta, realmente manifesta uma alteração de circulação da

seiva, completamente anormal, incrível. Passados um dia ou dois, essas datas já

não sei, li isso há imenso tempo… Porque essa revista que eu tinha era em alemão,

e eu não sei alemão. E tinha uma tradução em inglês, e eu tinha essa revista, mas

não sei…

B: Claro…

L.H.: Vai lá o mesmo… A máquina está ligada, com o tempo daquele escritório,

com as pessoas que vão lá, da limpeza e tal… e a planta na maior. Passado dois

dias, vai lá o homem que tinha feito aquilo, e a planta imediatamente…

B: Reage…

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L.H.: Pois. Há uma percepção…

B: Como, não é?

L.H.: As plantas têm vista? Não terão certamente… mas há-de haver reacções. Até

se diz que há pessoas que têm as “mãos verdes”, as plantas crescem melhor com

elas. Nunca ouviste fizer isto?

B: Sim, sim…

L.H.: Diz o Povo… E então, imediatamente se começam a notar essas coisas…

B: Por uma reacção qualquer…

L.H.: Que alteram o comportamento que a planta tinha… Esse homem no fim dessa

segunda visita, chega-se ao pé da planta e novamente a agride. Faz-lhe mal,

arranca-lhe uma pequena folha, e depois vai-se embora. Aquilo começa logo a

subir, a marcar… o tal electrocardiograma no fim de contas. Deixa passar mais uma

semana, ela magnífica com as tais pessoas que não lhe faziam mal, e que tratavam

dela. Ás vezes faço festas às minhas plantas, percebes? A planta na maior… Volta

lá o homem, e sem ele fazer nada, só de entrar, a planta começa a reagir. Bem e,

fez isto com outras plantas, e chegou à conclusão que a planta tinha o

conhecimento, que não é fácil uma percepção, enigmática. Já sabe que um biólogo

hoje, é um líder… Já tenho falado com várias pessoas sobre isto, não é? Amanhã

vou com os meus alunos ao Museu de História Natural da Faculdade de Ciências,

ver o Museu. Museologia e Museografia… E depois ver uma exposição temporária

que lá está, que tem a ver com as coisas interactivas e não sei quê… Nunca te falei

disso?

B: Da Ciência, sim…

L.H.: E vou ver se estabeleço uma aproximação com um botânico, um professor de

botânica.

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B: Que provavelmente saberá…

L.H.: Pronto, isto vem a propósito, porque era um problema metafísico. Um

problema realmente da solidão, e da morte, da agressividade…

B: Os dois medos do homem, não é?

L.H.: Exactamente. Ora portanto, e talvez de todos os seres vivos. Portanto, nós

temos… Não sei se sabes, os japoneses em que certas classes menos favorecidas

viviam quase em contentores. Quem me contou isto até foi a Amália Rodrigues.

Quando ela ia exactamente ao Japão, houve uma série de artistas, um festival

qualquer, que eu agora já não me lembro. E ela teve conhecimento que essa

população que vivia em condições muito difíceis, muitas dessas pessoas as

relações não eram… não eram fáceis… as relações humanas. E alguns viviam, não

tinham propriamente amigos. Porque aquilo não eram propriamente contentores,

eram umas coisas cilíndricas. Como é que se chama isso, tem um nome até…

Alguns viviam nisso.

B: De cimento? Aqueles…

L.H.: Sim, sim… Como é que se chama isso? Mas sabes o que é, não é?

B: Sei, sei…

L.H.: E então viviam numas coisas dessas. Então como não tinham possibilidade,

aquilo era uma coisa sem grande espacialidade, nem tinham condições. Alguns

tinham, como nós aqui, nas festas populares do meu tempo, na Praça da Figueira

se vendiam numas banquinhas uns grilos que cantavam. Eles não era grilos que

tinham, tinham baratas… Era a companhia de alguns seres humanos eram as

baratas, que eles tratavam como se fossem pessoas. Isto vem a propósito então do

problema da solidão e do problema portanto da convivência. Mas essa solidão

quebra-se nas relações humanas, com os animais e com as pessoas, não é? E

muitas vezes quebra-se com outras espécies, como vimos, com as plantas

inclusivamente, e com os objectos… Os tais objectos de que o nosso Le Corbusier,

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que eu já no outro dia falei, não sei se gravaste essa vez. Mas que falava que eram

os objectos de reacção poética. É bom reler o Corbousier…

B: Diga-me só o nome dele?

L.H.: Le Corbusier, o grande arquitecto homem. O homem que é o chefe da

arquitectura racionalista. Na arquitectura moderna há duas grandes linhas, que

quase que se cruzam. É a arquitectura racionalista, que tem como chefe o Le

Corbusier, e a arquitectura orgânica do Frank Lloyd Wright, esse grande arquitecto

americano. Le Corbusier nasce na Suiça, é filho de um relojoeiro, depois vai para

Paris. E como sabes, Le Corbusier altera a escala, digamos o cânon da

arquitectura. Tudo isto a propósito realmente da solidão e da morte. Portanto a

colecção é uma companhia! Portanto a colecção nasce por.. Já se sabe que existem

dois tipos de coleccionadores ou coleccionistas. São aqueles que coleccionam por

número, por quantidade e também por valor. E aqueles que coleccionam por amor,

dentro de um comportamento digamos estético, por paixão. Como sabes eu sou um

coleccionador de búzios porque amo profundamente as formas naturais, como de

troncos, de raízes, tudo isso…

B: Claro…

L.H.: Depois vêm outras coisas… São os postais, percebes? São certos objectos,

por exemplo esta bola que está aqui de vidro, ainda aqui está (observa a bola)…

Equador, feita no Equador, na América do Sul. Eu muitas vezes não tiro estas

coisas, porque me dá notícia. Eu comprei isto numa loja em Campo de Ourique.

Olhei para isto, achei isto uma coisa encantadora, com estas bolas, esta respiração.

E fiz aqui uma assemblage, uma jarra chinesa vulgar – não é nada de especial,

tinha comprado esta jarra porque a achei bonita, ainda no tempo da minha mãe,

ofereci-lhe esta jarra. A minha mãe já morreu, aos anos que morreu! Conservei

sempre esta jarra, ela não ardeu no incêndio, porque estava na minha casa de São

Pedro do Estoril. E um dia compro isto em Campo de Ourique e fiz isto… Foi o que

eu fiz aqui também…

B: Com o Candeeiro…

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L.H.: Ora bem…Portanto estamos aqui nestas afinidades electivas, com diria o

Goethe, que não se passam com as pessoas, mas que se passam com os próprios

objectos. Objectos que jogam com outros, não é? É uma forma de criatividade, é um

jogo. É um jogo visual e plástico, aquilo que se chama hoje, pomposamente: as

instalações. Portanto falamos aqui nas colecções, e nas tais duas vertentes. A

colecção acompanha. Acompanha realmente as pessoas. É uma unidade, uma

diversidade na unidade… É aquela colecção de tulipas que eu tenho aqui em cima,

e lá em baixo. Uma pessoa compra uma, compra duas e depois… por uma razão

até de entendimento, daquilo a que se chama o design do equipamento. Como é

que a uma certa altura, isto ainda quase relacionado com a arte nova, tenho aqui

duas ou três que estão relacionadas com a arte nova, o sistema de iluminação tinha

aquelas tulipas. Hoje é um objecto já de grande luxo. Quer dizer, os franceses

tiveram a inteligência de voltar a produzir tulipas, e de criarem candeeiros… Como é

que se diz isto? Quando se volta… Com um estilo ultrapassado, isso tem um nome.

Que agora não me está a lembrar, percebes? Que acontece com a arquitectura e…

Pronto mas não me lembro. Não vamos cortar a…

B: Não faz mal…

L.H.: Porque é muito importante. Isso é também um fenómeno muito interessante

do ponto de vista… sob o ponto de vista psicológico, sob o ponto de vista estético. E

portanto a criação… Portanto, como é que dois objectos desempenham a mesma

função, se desmultiplicam em formas diferenciadas? No sistema de recorte depois

vais novamente olhar para a colecção que eu tenho lá em baixo, ou para esta que

eu tenho aqui em cima. Eu começo por comprar aquilo na Feira da Ladra. As

primeiras que eu comprei custaram-me dez escudos, depois passaram para vinte

escudos, depois passaram para cinquenta escudos, e estiveram naquilo um ano ou

dois. Depois passaram a cento e cinquenta. Hoje, uma tulipa destas vale quatro ou

cinco contos, num antiquário ou mesmo na Feira da Ladra… E a mais barata,

custará aí dois contos e quinhentos, três contos. Mas já quase que não há,

percebes? Isto foi um exemplo de colecção, no caso das tulipas. Mas depois eu

colecciono conchas como sabes, são essas coisas… Fotografias, Postais. De

postais tenho uma colecção louca de postais ilustrados. No fim de contas o acto de

fotografar, de registar fotograficamente um objecto como um acto de desenhar.

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Portanto há um registo gráfico, há um registo fotográfico. Nós aprisionamo-nos, nós

prendemo-nos a um suporte fixo aquilo que foge, que na vida está

permanentemente a fugir. Estou-me a fazer entender, não é?

B: Sim, sim. Perfeitamente…

L.H.: Portanto os poetas… Costuma dizer-se que a Poesia lírica, que é uma poesia

de ausência… Poesia Medieval portuguesa… Lembra-se do Dom Dinis, não é? E

das Cantigas de Amigo, as Cantigas de Escárnio e Mal Dizer, as Cantigas de Amor.

É uma época brilhante da Poesia Portuguesa. Um soneto de Camões, no fim de

contas o que é? É o fixar por palavras, é o desenhar por palavras uma figura por

quem o poeta se apaixona. Estou-me a lembrar de um deles que é muito conhecido,

ah…Aquele da Ariadne, não é? Que morre e ele tem um desgosto enorme e então

faz-lhe um soneto em que evoca a sua ausência, neste caso. Deixa de viver, e

então retrata realmente de uma maneira espantosa… estou-me a lembrar de outro e

este sei mais ou menos… Espera um bocadinho… “O mover de olhos brando e

piedoso sem ver de quê/ Um doce e humilde gesto de qualquer alegria duvidoso/

Um encolhido ousar, uma brandura, um longo e obediente sofrimento/ Esta foi a

celeste formosura da minha Circe, e o mágico veneno/ Que pode transformar meu

pensamento”. Ora bem, eu fiz uma célebre conferência, no Porto, na casa dos

Humanistas e Homens de Letras, que teve um sucesso enorme, porque como

sabes, eu desde sempre relacionei a palavra com a imagem. E então, quando eu li

este poema pela primeira vez, este poema do,… do Camões, este soneto. O que é

que me imediatamente apareceu, na minha memória? Um fragmento de uma pintura

do Leonardo Da Vinci, que é a Sant´Ana, a Virgem e o Menino Jesus. A cabeça da

Sant´Ana… (pausa). Personifica o soneto do Camões. Ele certamente não o

conhecia… Cá está ela! Isto realmente, faz favor, não é? Isto são os grandes

mestres. Não é esta, é esta… Mas tem que ver, aqui já há um pouco a tal Circe.

Mas vais ver aqui a Sant´Ana e a Virgem… (pausa). É exactamente isto: um “mover

de olhos brando e piedoso sem ver de quê”.

B: Realmente…

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L.H.: “Um doce e humilde gesto de qualquer alegria duvidoso/ Um encolhido ousar,

uma brandura…”. Agora já me esqueci… “…um longo e obediente sofrimento”.

Porque ela estava a adivinhar o que ia acontecer ao Menino Jesus, que está aqui a

brincar com o S. João. A Sant´Ana, a Virgem, o Menino Jesus e o S. João. Existe

um desenho do Leonardo do tamanho desta parede, na National Gallery em

Londres. Quando fores a Londres vais ver esse desenho… É o maior desenho do

Leonardo que se conhece e, foi recuperado. A carvão… É deste tamanho, daqui até

ali… Eh, pá, eu quando entrei… Está muita bem exposto, percebes? Porque se

entra para uma espécie de…

B:…Museografia Excelente!?!

L.H.: Bem! Uma coisa espantosa… Pronto. E aqui viste portanto, como é que a

palavra se pode relacionar…

B: A articulação entre uma coisa e a outra.

L.H.: Pois, estás a ver? Estás a ver, é isto… É isto. Portanto é aqui… Nós vimo-lo…

Isto é um desenho… é um estudo para isto, o tal desenho. Que ele depois modifica.

Repara… que aqui a virgem está inclinada, a Sant´Ana está ali. É esta a Sant´Ana.

Estudos de panejamento… Cá estão os meninos, cá está esta gente toda, agora

entra-se já aqui. Mas é aqui, e há outro livro do Leonardo em que isto está numa

cabeça única, mas é esta: “O mover de olhos brando e piedoso sem ver de quê/ Um

doce e humilde gesto de qualquer alegria duvidoso/ Um encolhido ousar, uma

brandura…”. Estás a ver a serenidade disto tudo? E depois continua: “um longo e

obediente sofrimento”. Que ela está a adivinhar o que vai acontecer ao Cristo,

depois ele vai ser crucificado, estás a perceber? O Agostinho da Silva comentando

este quadro de Leonardo, diz: “é muito interessante, é uma composição em

pirâmide, em que se parte da pura animalidade do cordeirinho, para a pura

espiritualidade da Sant´Ana”…

B:…da Santa!

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L.H.: Eh, pá, isto… o Agostinho foi o meu grande Mestre. Mas qualquer um de nós,

hoje, pode ler uma biografia dessas. O Leonardo Da Vinci, o Zola, o Miguel Ângelo,

São Francisco de Assis… E eu tive a sorte de ter essa formação. Agora está-se a

editar isso tudo, mas em luxo, quando naquela altura custava quinze tostões, um

caderninho e, aquelas biografias custava sete e quinhentos ou coisa

assim…Portanto estás a ver a diferença? Portanto isto apareceu aqui, para nós…

Isto é muito interessante: os desenhos anatómicos, os desenhos técnicos… Bem,

este gajo é um dos maiores génios da Humanidade. Cá está o Cânone da

envergadura, portanto a relação entre o quadrado e o círculo: abrem-se os braços e

as pernas, temos o círculo, vertical e horizontal temos o quadrado.

B: Claro…

L.H.: Pronto…

B: Eu pegando nesta deixa da Poesia, gostava de lhe pedir se consegue recordar

um poema, que o Prof. Carlos Amado diz que como que “está na génese do seu

espírito de coleccionador”, em que ele só me conseguia dizer uma pequena frase…

L.H.: Diz lá…

B: Qualquer coisa de “colecciono deslumbrado”…

L.H.: Ah…

B: Que ele disse que o Mestre sabe de cor…

L.H.: Esse sei…

B: Pode-me enunciar esse? Teria muito gosto…

L.H.: Posso, posso.

B: Que ele diz que está… É uma bocado isso que o Mestre segue.

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L.H.: No fim de contas é um pouco, um auto-retrato do meu comportamento…

B: Exactamente, exactamente…

L.H.: Lembro-me tão bem como se fosse hoje, quando escrevi esse poema. Eu

estava a almoçar com o Prémio Nobel, que ainda não era Prémio Nobel nessa

altura, o José Saramago, que teve uma relação sentimental muito forte (amorosa),

com a Isabel da Nóbrega. Que ela descobriu… Ela uma vez foi aos Estúdios Cor,

trabalhava lá o Zé Saramago, na parte dos livros, daquela coisa… na parte de

realização e tal… Nessa altura o Zé Saramago era um poeta. Não era assim um

poeta de grande meada. Houve entre eles, um, aquilo a que se chama em francês,

um “coup de foudre”, uma espécie de paixão à primeira vista. E começou a haver

um entendimento entre eles. A primeira vez que eles aparecem em público juntos, é

numa célebre festa de Carnaval que eu dei no Ateliê (?). Foi célebre, em Lisboa…

Em que foi toda a gente: artistas de teatro, artistas plásticos, gente das… poetas! E

foi uma festa realmente espantosa. E a Isabel aparece aí por volta da meia-noite…

Aparecem. Batem à porta duas pessoas com dominó e com uma máscara. Sabes o

que é um dominó? Pronto, que era porque as pessoas não podiam aparecer antes

da meia-noite e tinham de vir mascaradas. Simplesmente, eu tinha imaginado um

sinal que era para não entrassem pessoas que eu não quisesse. E portanto, as

pessoas quando entravam ao cumprimentarem-me, marcavam um sinal e, entravam

ou não entravam… Depois à noite aquilo foi uma festa, as pessoas tiravam as

máscaras e ela ia lá precisamente com o Zé Saramago, e os dominós. Foi nessa

altura que eu a conheci… Passámos a dar-nos. Agora sou muito amigo da Isabel,

porque já a tinha conhecido com o José Gaspar Simões. E o Zé Saramago era um

homem sensível, de origem humilde, mas sensível indiscutivelmente, mas que

contudo… A Isabel é que o construiu e o apresentou às grandes personalidade,

digamos das Artes e das Letras. Que o ensinou a vestir, que o ensinou a comer,

porque ele não tinha, digamos assim, essa experiência, essa sabedoria digamos.

Pôr uma gravata e tal… E aquilo mantém-se um certo tempo. Ela teve muita

influência na sua própria encenação de Romancista. Porque a Isabel tem muita

imaginação. Aquele “Memorial do Convento”, aquilo há ali muitas coisas que

partiram da Isabel. Portanto, quem leia a obra do Saramago até ele estar com a

Isabel, e da Isabel em diante, vai notar como ele vai fraquejar. Técnica com certeza

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que sim, é um trabalhador das letras, mas imaginação era ela que muitas vezes,

mesmo de uma forma espontânea, lhe sugeria uma data de coisas…Estou a dizer

isto, porque ele tratou tão mal… Que estas coisas têm de, têm de… olha, têm de

ficar gravadas. A um certo momento, começa a ser importante e tinha-lhe dedicado

quase todos os livros. Entretanto começa a ser assediado por jornalistas e tal, e aí

conhece a tal espanhola. A Isabel tem informações do que se estava a passar e, um

dia, tem uma discussão com ele terrível, e diz-lhe: “Ó Zé, eu compreendo que essas

coisas possam acontecer, agora não deves é mentir. Porque acho que a nossa

relação, dura há bastantes anos, não pode funcionar dessa maneira.”. E então

resolvem separa-se. Separam-se e, ela fica naquela casa, há depois ali uns

problemas de pagamentos de água, electricidade e de rendas. Mas coisas

tristíssimas, tristíssimas…

B: Claro…

L.H.: E então o que é que acontece? Os livros, as segundas, terceiras, quartas

edições, o gajo tinha os livros todos dedicados à Isabel, e tira aquelas dedicatórias

todas. Isto não se faz… Dá entrevistas na televisão, nunca mais falou nela. Bem,

isto agora aconteceu porquê? Ah, por causa da poesia… Eu estava a almoçar com

eles, uma vez, num restaurante ali perto da… de Santa Apolónia, num restaurante

que tem uma vista muito linda pró Tejo. Com eles e com o Carlos… Nessa altura…

Sabes que eu sou um deslumbrado? Nessa altura comecei a olhar para o céu, para

as nuvens e para a outra margem e, quando eu dei por mim. Ah, e nessa altura

começo a escrever, assim como desenho, assim muitas vezes escrevo. E comecei a

escrever uma coisa… e eles tiveram a inteligência e a sensibilidade de não me

interromperem. E eu nessa altura, diz-me assim a Isabel: “Ora bom, o que é que

estiveste a escrever?”. E eu disse: “Ai, vocês desculpem. Olha, estive aqui a

escrever umas coisas e tal”. “Então, mas lê lá!”. “Não, tu és uma escritora, aqui o Zé

também é um escritor, eu até tenho vergonha, não é?”. “Ai lê, diz lá isso” e tal. “Tá

bem, eu vou ler”. Com a maior simplicidade. E então, como diria o Vinicius de

Moraes o “poema reza” assim: “De há muito colecciono deslumbrado/ memória de

perfis, corpos serenos,/ madrugadas de esperança, altos morenos campanários,

urbanos alcantis./ Viajo pelo céu impenitente/ repouso numa nuvem reclinado/

retomo a marcha sempre apaixonado/ astronauta de sonhos infantis”.

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B: Lindo…

L.H.: Já sabe que…

B: Porque não escrever também?

L.H.: Escrever como?!?

B: Não! Escrever, editar…

L.H.: Pois eu tenho essas propostas, agora é uma questão de organizar, porque eu

neste momento, eu tenho para ai livros – blocos e blocos, cheios de poemas. Eu

podia publicar quatro ou cinco livros! E tenho proposta para publicar um grosso

número, percebes? Mas eu tenho tantas coisas… Olha, o Fernando Pessoa – não

me estou a comparar ao Fernando Pessoa, atenção!, durante a sua vida inteira

(talvez o maior poeta do nosso século), apenas publicou um livro. Que foi a

“Mensagem”. E forçado pelo António Ferro, que tinha aberto um concurso de

poesia, e o António Ferro, disse-lhe: “Oh Fernando Pessoa concorre! Não tenhas…

Faz isso!”. E ele fez esse livro excepcional que é a “Mensagem”. Quem ganhou foi

um padre, o Vasco Reis, que hoje ninguém sabe quem é… só se sabe porque há

essa relação, que escreveu um livro que se chamava a “Romaria”. Ele ganhou o

primeiro prémio e portanto o Fernando Pessoa, não ganhou nada. Mas o nosso

caríssimo António Ferro atribui um prémio pós-concurso que o Fernando Pessoa

recebeu. E a… “Mensagem” foi publicada pela pareceria António Maria Pereira. Ora

bem, isto veio a propósito de publicar, ou não publicar… Eh, pá, eu não escrevo

para publicar, percebes? Está bem, com certeza que sim… mas, não está… Tenho

de estar a seleccionar, tenho de estar a ver… Olha estes blocos, olha para isto!

Todos estes blocos estão cheios de poemas. Quer ouvir esta?

B: Quero…

L.H.: Ora isto foi escrito no dia 3 de Julho de 2004. “Quem resiste a um gato, a um

corvo, a um papagaio/ A um gaio, a uma andorinha/ Quem resiste a uma folha, a

uma árvore, a uma montanha/ Quem resiste a uma nuvem, a uma vaga, a um

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crepúsculo iluminado, puro/ A dádiva que paga o desumano, o impuro…”. Portanto

isto continua-se, ah, mas continua… “Quem resiste à brancura dum muro/ Ao risco

inadiável de um olhar, de um sorriso/ À verdade e ao espanto, à serena quietude da

noite natural/ À música das vagas, ao grito das cagarras/ Às pragas do Egipto, quem

resiste?”. Eu repito… Já não me lembrava que tinha escrito isto. Isto foi escrito

portanto naquele dia que eu te disse…

B: 3 de Julho de 2004.

L.H.: 3 de Julho… No mesmo dia, aqui tens outro: “Este crescer das horas ou das

flores/ do amor ou da saudade tem diferença/ Do silêncio quebrando a solidão/ Do

amar consciência/ De ter em cada mão o afecto, a razão, a inocência…/ Este

crescer da vida adormecida/ A arquitrave do tempo abandonado/ A paisagem para

além do miradouro/ O precipício, o perigo, o trágico perfil dos sem-abrigo”. E no

mesmo dia ainda escrevi: “Desenho na memória ultrapassada as raízes do perigo/

Não consigo esquecer o desconcerto, a indiferença, os abusos da imprensa, a

cobardia/ O exercício, não o exibicionismo, o cinismo/ A cegueira voluntária perante

o mal do mundo/ A anedota, a traição, a incapacidade deliberada de reflectir/ O

atordoamento, o número, a quantidade… do sofrimento.”. E ainda no mesmo dia,

escrevo o seguinte: “A boca de um búzio, a estrela, a esfera de cristal/ As flores sem

fruto, a perspectiva das clarabóias/ O audível silêncio do crepúsculo/ A anatomia do

jovem atleta, a incompleta sinfonia do quotidiano/ A bruma, a quimera, a quietude, o

alaúde/ O gesto virtual, suspenso… atraiçoado”. Agora já é no dia a seguir, o dia 9

de Julho (risos): “Folhas de magnólia, o verso e o reverso, a unidade, nervuras e

perfis, o transverso percurso da idade/ A saudade da árvore, das pinhas, das flores,

do verde, da brancura da neve, da eleve oscilação”. Eh, pá, só te vou ler mais esta,

do dia 10 de Julho. Eu só sobre o gato posso fazer um livro: o gato, o gato, o gato…

Estou a falar com o gato: “Se agarro a tua pata dianteira, fico feliz/ E assim, dessa

maneira, ouço a mensagem que ninguém diz/ Do teu olhar frontal, enigmático/

Verde de um rio, seja o Nilo ou o Tejo/ Renasce a esperança, mantem-se o desejo

de construir o Templo da Harmonia, Inteligência, Força de Vontade/ Coerência no

Ser e no não ser, saber ouvir, Raiz da liberdade/ E ser capaz também, de

responder…”. Não vamos agora continuar, senão acho que ficava agora o resto da

minha vida a ler poemas…

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B: Tenho a impressão que tocaram à porta…

L.H.: Isto nunca mais acaba… portanto…

B: Ora bom, pegando agora no poema com que começámos agora este interlúdio…

L.H.: “De há muito colecciono deslumbrado”?!?

B: Ouvi a campainha…

L.H.: Mas não é esta é a outra, não ?

B: Não sei… de que lado é que vem..

L.H.: Vamos lá ver…

B: Portanto o seu poema em que colecciona deslumbrado…

L.H.: Já há muito que colecciono deslumbrado… Portanto há aqui muito do espírito

de colecção, uma colecção que tem muito a ver com as formas naturais. Na sua

dimensão estética e poética. Citando, como há pouco citei, mas não é demais: o

meu mestre Le Corbusier – nunca o conheci, podia tê-lo conhecido em Paris,

porque trabalhou no ateliê dele um homem arquitecto e pintor que, no Porto esteve

na mesma casa comigo de uma senhora viúva (a Dona Belmira), que era o Nadir

Afonso. O arquitecto e poeta Nadir Afonso… O poeta não…

B: O pintor…

L.H.: O pintor e arquitecto Nadir Afonso.

B: Por acaso tenho em casa um original do Nadir Afonso.

L.H.: Eu podia, quando fui lá a Paris, ter ido ter com ele e conhecer o Le Corbusier.

Não conheci, mas conheço profundamente, tenho imensos livros dele… Foi um dos

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meus grandes mestres. Com aquele programa que eu fiz, dos “Grandes Mestres do

Desenho”, o segundo é do Le Corbusier, em que eu falo realmente dos objectos de

reacção poética. Em que eu leio precisamente o que ele escreve... a importância

realmente do desenho, ele diz: “Se eu realmente tenho alguma qualidade de

arquitecto urbanista devo-o a esse secreto exercício que é o desenho”. E depois fala

nas conchas, nas raízes, nas pedras roladas, eh, pá… E vai-se vendo tudo isso

nessa sequência do programa. Portanto, a tal colecção de que nós estávamos a

falar.

B: Antes de fazer aqui a análise das linhas da sua colecção, as tais… a tal divisão

entre formas artísticas e formas naturais, queria começar um bocadinho antes e

saber… o como, o quando e o porquê de começar a coleccionar. Se se lembra…

como me disse no outro dia: desde miúdo que queria trazer a natureza consigo…

L.H.: Pois…

B: Pode-me falar um pouco desse…

L.H.: Pois, pois… Eu sempre fui um deslumbrado, eu sempre olhei para as coisas

com um certo, com um… Lembro-me de passear com a minha mãe, a minha mãe…

foi realmente também uma das minhas grandes mestras, digamos assim… Porque

eu vivia na Rua dos Douradores, onde também viveu Fernando Pessoa, mas ali

com aquele arpão de urina que dificilmente deixava ver o céu e as nuvens. Aquilo

são ruas comerciais, a rua dos Douradores, onde se douravam determinados

objectos, a rua dos Correeiros, portanto outro ofício, a Rua da Prata, onde havia os

ourives, do ouro também… Estás a ver? Portanto todas essas ruas tinham, eram

ruas comerciais e que tinham uma determinada função… Portanto, eu com

dificuldade… A minha mãe para me equilibrar, viver num sítio em que o contacto

com a Natureza era quase inexistente... já se sabe que o meu Avô tinha numa das

suas varandas da Rua dos Douradores uma nespereira, que dava nêsperas!

Portanto, também havia do meu Avô esse amor à natureza... e a minha mãe levava-

me ao Jardim Botânico, da Faculdade de Ciências levava almocinho... e portanto

isso marcou-me muito! E a minha mãe contava que eu apanhava folhas, que ainda

hoje continuo a apanhar, se eu for aqui ver os meus blocos, muitas vezes estão ali

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folhas que eu apanho... portanto, é o espírito de colecção! No fim de contas, estas

folhas são todas iguais e todas diferentes! Se eu da mesma árvore apanhar 6

folhas, pertencem à mesma espécie, elas são iguais na estrutura, mas o recorte é

diferenciado, elas têm a sua personalidade... lembras-te de eu falar isso nas aulas...

nós somos todos iguais e todos diferentes, e é precisamente a conquista da

diferença que vai dar, digamos, a expressividade e vai permitir que se possa viver!

Imagina que os homens eram todos iguais uns aos outros e as mulheres todas

iguais umas às outras! `Tás a ver, as pessoas enlouqueciam...

B: Era uma monotonia!!

L.H.: Enlouqueciam! Repara que estes caminhos dos robôs e estes caminhos de

manipulação genética... não sei se estás a ver...

Portanto, meu querido amigo, estamos a ver a razão porque se colecciona, porque

eu colecciono! Pedras, pedrinhas... depois eu fui para a Nazaré, como te disse,

desde que nasci até aos meus 20 anos...apanhava muitas pedras e conchas, todas

essas coisas! Portanto, o meu espírito de colecção é um acto de amor! Em

simultâneo, é um espanto por formas diferentes, mas por outro lado o amor... e o

amor caracteriza-se, precisamente, pela apropriação, pela posse. Compreendes??

Por outro lado, é também um vencer da solidão! E a perpetuação da espécie, não é

verdade?! Mas essas espécies diferenciadas... vês ali aquelas conchas que estão

ali todas... tudo isto... depois começa a ser a colecção da escultura, começa a ser a

colecção dos postais, os livros... há muitos livros que eu comprei que ainda não li...

já se sabe que aqui assim eu tenho que lembrar o Almada Negreiros, naquele

célebre episódio (tens que ler os ensaios do Almada Negreiros, são 3 volumes. É

um grande mestre da cultura portuguesa, está à altura de A.S.. Já se sabe que o

A.S. é mais erudito, tem uma formação de Faculdade de Letras que ele não tem. O

Almada era um autodidacta...) em que ele diz:

- Entrei numa livraria! (que era a livraria Bertrand ) Comecei a olhar para aquelas

várias salas, para aqueles livros... mas a minha vida se calhar não dá pra ler estes

livros todos! Portanto o que é mais importante é eu escrever o meu próprio livro!

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Isto é um espanto!

Ora bem, esta situação aconteceu comigo a uma certa altura, já eu frequentava a

escola de Belas Artes, e às vezes ia comprar livros do Rembrandt ou deste, ou

daquele ou daquele outro e a uma certa altura eu digo assim:

- Eh, pá, eu tenho que parar com isto! Eu tenho é que comprar papel, papéis blocos,

materiais actuantes de... para fazer os meus próprios desenhos!

Não quer dizer que eu não... compreendes?! É a pessoa a uma certa altura passa a

ser simplesmente espectador! Já se sabe ganham uma dimensão e uma raiz

cultural que é fundamental... quando eu olho para o Giotto, olho para o Corbousier,

ou quando olho para o Leonardo ou quando olho para o Braque... compreendes?!

Eh, pá,110 eu estou a enriquecer o meu conhecimento, não é?! Mas no fim de contas,

a arte serve para mostrar o valor que a vida tem antes de ser transformada em

arte... ensina-nos a ver. Porque no fim de contas a maior parte da representação da

pintura, da escultura, da azulejaria... são situações... eu estou a olhar para ti e tu

neste momento és uma escultura, és uma pintura, percebes?! Tu és um desenho,

compreendes?! Simplesmente isto... tu podes vir aqui amanhã, daqui a um mês,

daqui a oito dias e não tens essa pose exactamente igual a esta! Razão porque,

nasce a fotografia, nasce o desenho, nasce a pintura! Portanto, o artista apaixona-

se por uma determinada realidade, compreendes?! E isso faz com que ele produza

realmente imagens que ajudam a viver... e quando eu disse agora ajudam a viver,

há um filme notável que se chamava “Ajuda-me a viver!”, extraído de uma peça de

teatro que foi representada no teatro de Cascais, que é a história de um jovem que

se quer suicidar por problemas de droga e há uma velhota (amiga de família) que a

certa altura sabe aquilo e procura encontrar-se com ele e então começa a falar com

ele e salva-o daquela crise que o levaria, digamos, ao suicídio. É um filme... e a

peça de teatro também é espantosa.

110 http://www.ciberduvidas.pt/pergunta.php?id=28270

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Estas coisas todas nos ajudam a viver, compreendes o que eu quero dizer?! Quer

dizer, quando eu olho para esta rosácea de Notre Dame, repara que para além da

iluminação, da composição, da geometria, isto não é por acaso que se chama

Rosácea. Se tu vires uma rosa em sua plenitude antes da morte, ela tem esta

geometria e muitas outras flores. Portanto, o homem medieval, porque a natureza é

mais forte que a arte do homem como dizia o jardineiro do MNAA, vai inventar esta

iluminação das igrejas, o gótico! O românico... as rosáceas são feitas em pedra, não

chegam a ter vidro. Bem, portanto estás a ver isto, não há palavras, não é?! Não é

por caso porque... aqui esta este CD do Rubinstein, este CD do List, esta

audioclássica serve-se de uma pintura de Rafael para valorizar... aqui é uma

fotografia, um perfil magnifico do Rubinstein , que eu tive oportunidade de ouvir em

Roma, já ele tinha setenta e muitos anos e eu vejo entrar um velhinho, estava um

piano de cauda e eu penso o que será que vai acontecer, eu conhecia-o de nome

só, ele senta-se ao piano, está uns cinco minutos só sentado, a concentrar-se e a

uma certa altura ataca! Bem, uma transfiguração, percebes?! Um recital de

Chopin... bem, eu fiquei doido com aquilo! Não podia acreditar... aconteceu a

mesma coisa com o Teixeira de Pascoais na Escola de Belas Artes do Porto, eu

estava a acabar o meu curso e a uma certa altura é anunciado que ia fazer uma

conferência na Sala Magna, nessa altura naquele Palácio dos Braguinhas, uma

conferência do poeta Teixeira de Pascoais, estávamos todos, professores, alunos...

e entra um velhinho também começa a falar, nessa altura ainda não havia quase

microfones, num tom baixo e penso o que irá acontecer... passado uns minutos o

tipo ganha uma energia! Bem, fez uma comunicação! Já se sabe, não se gravou,

não havia vídeo nessa altura ainda... mas oh meu amigo, nós estamos os dois

agora só aqui a falar... mas eu tenho feito algumas intervenções naquela escola,

únicas! Naqueles mestrados, início de mestrados e aquelas coisas todas... há

alguma gravação videográfica disso?! Não... não é por mim... eu por mim... mas era

um documento importante! Porque Lagoas Henriques não há muitos! Eu não sou

nem melhor, nem pior, sou diferente! E talvez achem que certas coisas que eu digo,

porque tenho determinado tipo de experiência e vão sempre chamar o senhor

Professor Lagoa Henriques para aquelas primeiras aulas... aconteceu isso este ano,

aconteceu quando foi o teu ano, quando se fez homenagem ao Garrett, foi uma

coisa lindíssima! Eu tinha lido e disse... e então ainda eu estava lá professor, peguei

numa aluna, desloquei o busto do Garrett que estava em frente à Academia e pu-lo

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naquele grande anfiteatro da escola, mandei uma rapariga ir buscar uma folha de

palmeira e aluna foi depor perante o pedestal aquela folha de palmeira como

homenagem ao Garrett e eu fiz uma síntese do Garrett. Projectei um programa que

eu fiz sobre o Garrett, um vídeo, o único praticamente que se fez... então as

“Viagens da minha terra” está tudo feito! É só passar aquilo ao cinema... não falando

noutras coisas! Bem... e meu querido amigo... e recitei depois uns poemas do

Garrett, como era natural e li depois um bocadinho de um discurso da assembleia

constituinte... porque o gajo era um orador, uma coisa espantosa!

Isto veio a propósito... de que é que foi?!... por causa destas coisas todas! Está aqui

assim o Caetano Veloso (uma fotografia deslumbrante!), o Botticelli, esta fotografia

de um Francês, porque isto é preciso virem cá os franceses para fazerem isto... isto

é uma cena de uma pisa de vinho... está aqui o nome do autor... leia faz favor!

B: George Rouse…

L.H.: Um grande fotógrafo Francês... e o que é que diz por baixo?

B: Alto Douro 1998!

L.H.: `Tá bom... isto é uma coisa espectacular como está vendo! Ondas do mar... e

música do séc. XIII... enfim... é que houve um tempo em que houve lá um professor

que se chamava Lagoa Henriques, eu não estou a endeusar-me, mas nas minhas

aulas de desenho... não eram discos CDs, eram dos outros que eu tenho ali que

comprei... eu punha música para os alunos! Os alunos faziam a transposição dos

ritmos sonoros para os ritmos gráficos! Explicando os movimentos, digamos, da

abstracção. Portanto, a figuração dos sons, o ritmo, o gráfico das harmonias...

compreendeu?! Nunca mais se fez nada disso... e esse senhor que fez tudo isso,

que revolucionou o ensino do desenho e da escultura tem uma reforma de 210

contos! Porque eu saí antes disto entrar para a universidade e os meus colegas da

pintura, não, não... houve um movimento para eu reentrar na escola... porque eu saí

por causa daquele sonho da televisão e como aquela oportunidade de me reformar

antes dos 70 anos, saí estupidamente! Eu hoje podia estar com uma reforma de 600

contos ou coisa assim... que é quanto recebe o João Conceição Ferreira ou o Luís

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Filipe de Abreu ou aqueles gajos lá da escultura, que já não sei o nome... `tás a

perceber?! E eu tenho 210 contos! Se eu não tivesse algum dinheiro que tenho no

banco e que ganhei honradamente... eu andava aí a pedir esmola! Isto é para tu

veres a cena...

B: Esta é a realidade do nosso país!

L.H.: Os gajos não viam estas coisas todas! Eu fiz aquelas conferências às sextas-

feiras, completamente sem receber um tostão, às vezes era a relação entre a

poesia, o desenho e a pintura e a escultura... em que relacionava a música da

época... quando eu fiz um programa sobre o Dürer consegui comprar um disco que

me custou uma loucura! Eu às vezes gastava 20 contos para fazer uma lição! Daí a

minha generosidade, no bom sentido, quer dizer... o meu desejo de dar a ouvir de

dar a ver... de dar a ouvir a palavra e a música precisamente do séc. XVI na

Alemanha, com a pintura e o desenho do Dürer, como o Rembrandt, como o

Picasso, compreendeu V. Exa?! Como o Nuno Gonçalves... fiz isso tudo! E iam lá

gajos da Faculdade de Letras assistir àquilo... não estou nada arrependido, tenho o

maior gosto em ter feito isso, fiz isso por amor... com ajuda de um homem notável

que era o José de Jesus Branco, que era técnico do gesso, vulgo Faiança, que

andou aqui na Casa Pia, que me dava apoio técnico naquelas coisas todas, porque

era também um homem apaixonado...

Pronto... isto caiu nas colecções, portanto um gajo colecciona discos também, a

música... já se sabe que a maior parte deles ouvi-os, mas há alguns que eu ainda

não ouvi! Há umas edições espanholas espantosas, que são muito baratas que

trazem uma revista... “Amadeus”, “A escola italiana”, “Mais além da cena lírica”...

isto são países civilizados não é?! Há alguma revista destas em Portugal?! Com os

discos todos, está a ver?! Olha, olha, “Os Grandes Maestros”, “Os Grandes

Cantores Líricos”, “A Festa do Órgão”, `tá a ver Sr. Dr.?! E depois com relação

também com a pintura... `tá a ver?! Sofre-se muito, mas também se curte! “A vida

com paixão”, este é um grande maestro... belíssimo perfil... “Beethoven em

Inglaterra”, quando era jovem... o senhor `tá a ver isto?! Tá a ver o que é a cultura?!

Nós aqui... isto é uma tristeza, não é?!

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B: E é já aqui ao lado, não é?

L.H.: Exactamente! E é já aqui ao lado... e são assim todas elas, vem um disco e

depois vem isto tudo!

B: Mas assina essa revista?!

L.H.: Não, vendem-se aí nos... “Mentores e discípulos”, `tá a ver tudo?! `Tá a curtir

ou não?!

B: `Tou bastante, e sem sofrer nada!

L.H.: Então veja isto, veja, veja... Isto é que se chama cultura! Compreende?! A

cultura é a concretização, é a corporização da mensagem dentro de um sistema de

comunicação organizado e qualificado!

Bem... então o que é que quer mais?!

B: Estávamos no quando, como e porquê! Não é?!

L.H.: E já vimos que... Quando? Sempre, na medida do possível! Como,

adquirindo, encontrando, eu não procuro encontro! Diz o Pablo Picasso... eu não

procuro, encontro e vou e vejo estas coisas que apanho. Os outros não vêem... eu

hoje apanhei aquele tampo de mesa, apanhei uma porta... que está lá em baixo e já

lhe vou mostrar depois... e apanhei também uma base para uma mesa em metal... E

quando vou à Praia dos Prodígios encontro aquelas coisas...

B: Ia exactamente falar na Praia dos Prodígios...

L.H.: Bem, a Praia dos Prodígios aconteceu, não é?! Eu sempre... quando vim para

aqui fiquei mais perto da Torre de Belém e portanto ia passear ali à Torre de Belém,

ia-me deitar ali à sombra dos pinheiros, daqueles pinheiros mansos magníficos. E a

uma certa altura descobri aquela praiazinha... uma praia fluvial... que é uma

minúscula praia onde o Tejo e o mar Atlântico me depositam, como vê, formas...

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não há memória! Agora já muito menos... agora o que vem são latas de Coca-Cola,

porque a poluição destruiu grande parte da fauna fluvial. Portanto, as conchas já

quase não aparecem, há umas pedras roladas, ainda há uns fósseis cristalizados,

que eu tenho aí variadíssimas coisas magníficas... portanto eu descubro essa... e

aquele tronco de árvore que está no meu museu... que parece um torso feminino,

lembra-se?!

B: Lembro perfeitamente!

L.H.: Que eu apliquei aquela máscara... portanto aqui está, não é?!

Depois, o coleccionar das memórias, os desenhos que faço nestes cadernos,

naqueles diários gráficos... que são pessoas que eu vejo acidentalmente, num

restaurante, num cinema, num café, no metro... compreendes?! Portanto, é outro

tipo de colecção. Em que a apropriação do real. Do real/concreto, a que muitas

vezes se acrescenta um real/imaginário porque eu muitas vezes olho mas não faço

exactamente, transfiguro! Portanto, eu sempre tive esse entendimento das artes ao

nível do desenho, da escultura e da escrita: que arte para além da representação é

transfiguração, é a transmutação do real! Passagem do real/concreto para o

real/imaginário! Toda esta linguagem e esta terminologia, se tem alguma raíz de

leituras que eu tenho feito, é muito personalizada. Porque eu às vezes falo nestas

coisas e perguntam-me os professores de História da arte, vários não vou citar

nomes, dizem:

- Oh Lagoa, onde é que leu isso?

E eu digo:

- Li na vida! Na minha experiência de professor, li nos segredos daquilo que eu fui

fazendo!

Eu tenho sempre medo de empregar os termos arte e criatividade, mas de qualquer

modo eu construí, compreendeu?! Portanto, isso nasce disso, dessa reflexão!

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Estávamos a falar, portanto, dessa colecção... “de há muito colecciono deslumbrado

memórias de perfis, corpos serenos, madrugadas de esperança, altos morenos,

campanários a arquitectura, urbanos alcantis”... portanto, um alcantil é o topo de um

monte ou de uma montanha, não é?! `Tou-me a lembrar do António Nobre: “e subo

aos alcantis para os tornar a ver!”. É um soneto lindíssimo do “Só” do António

Nobre... e quando eu escrevo isto, esta palavra alcantil surge para definir... tu estás

ali no Largo de São Carlos onde nasceu o Fernando Pessoa, a dois passos da

Escola de Belas Artes, sabes onde é?! E há lá um campanário da Igreja dos

Mártires, percebes tu?! Que é o tal que eu falo... o tal “urbano alcantil”, tás a

perceber?! Portanto, é uma coisa que sobressai para além da linha dos edifícios.

Compreendeu o meu querido amigo?!

Portanto, estamos aqui a coleccionar todas as coisas. Portanto, o homem vai

coleccionando. Eu gosto muito de vidros, portanto é umas das coisas que eu

também... que eu me fascina. Até garrafas, dessas simples garrafas de cerveja eu

tou sempre... tenho pena de deitar fora, percebes?! O vidro para mim é uma coisa

espantosa, de resto eu visitei a fábrica de vidros da Marinha Grande, devia ter os

meus 12 anos... porque eu conheci na Nazaré um homem espantoso que era o Dr.

José Maria Carvalho Júnior, é bom que isso fique gravado, que era médico, filho de

um homem que trabalhava... porque a Nazaré tem uma parte de praia e depois tem

também uma parte do campo e então ele tratava dos bois que iam puxar os

barcos... esse homem morreu cego! Eu ainda o conheci muito bem, o pai do Dr.

José Maria Carvalho Júnior. Porque ele a uma certa altura teve uma aventura com

outra mulher que não a mãe dos seus filhos e o homem que era o marido dela

soube, deu-lhe um tiro e ele ficou cego! Bem... o José Maria Carvalho Júnior,

médico, faz o seu curso de medicina e é um João Semana, quer dizer até mais que

um João Semana, quer dizer é um homem que às pessoas que tinham posses, às

pessoas ricas levava, aos pescadores não lhes levava um tostão! Ainda lhes dava

medicamentos! Tinha uma rara sensibilidade… teve o António, o João, o Zé, o Raul

e a Maria. Portanto teve 5 filhos! Que foram meus companheiros de infância. Porque

essa família Carvalho era, digamos… o irmão do Dr. José Maria Carvalho Júnior

que era professor de Matemática e de Ciências, casou-se com uma aluna da minha

Mãe, que era a D. Lucília Carvalho que era professora de francês e de inglês. E

essa D. Lucília Carvalho convida a minha mãe a passar um fim-de-semana na

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Nazaré, porque ela era da Nazaré, e a minha Mãe apaixona-se pela Nazaré e passa

a ir para a Nazaré e cria-se aquela relação e eu começo a ir para a Nazaré desde

miúdo… e então conheço, por essas relações, digamos, familiares e afectivas,

conheço o Dr. José Maria Carvalho Júnior que me revelou, tinha eu também os

meus 8 anos, a música clássica! Ele tinha uma daquelas grafonolas antigas na sala

e de espera do consultório, onde eu naqueles discos de 33 rotações grandes ouvi

pela primeira vez, eu e os filhos dele, o Mozart, o Beethoven, o Chopin… por outro

lado, levava-nos a dar longos passeios. Íamos a pé, aqueles miúdos todos, com ele

da Nazaré até São Martinho do Porto. E um dia resolveu levar-nos à Marinha

Grande! Onde eu vi o vidro… aquelas… são coisas mágicas… e a cor do vidro…

bem…

`Tou-te a contar as raízes da minha paixão e a revelação que eu tive do Pinhal de

Leiria, lembro-me daqueles pinheiros, tudo aquilo… São Pedro de Moel. Depois a

uma certa altura volto a São Pedro de Moel através do escultor, que foi meu vizinho

de ateliê, o Joaquim Correia, que foi Director da Escola de Belas Artes de Lisboa e

fomos a casa do Afonso Lopes Vieira que eu conheci nas matinés clássicas do

Teatro Nacional Almeida Garrett ou Dona Maria Segunda, que antigamente aos

Sábados fazia matinés clássicas com o Gil Vicente, com o António Ferreira, com os

grandes dramaturgos portugueses…

B: Porque é que não se fazem essas coisas hoje em dia?

L.H.: Óh filho porque… porque meu querido amigo, esses valores culturais foram-se

degradando! O que é preciso é a modernidade… a pseudomodernidade e pseudo-

vanguarda… porque, sabes que eu admiro imenso o teatro moderno, atenção, mas

o moderno não destrói o antigo… e há que defender uma determinada identidade…

então não retiraram o monumento à Amélia Rey Colaço?! Sabes disso? Onde

estavam todos os dramaturgos! Desde o Sófocles e Eurípedes… percebes tu?!

Depois ao Gil Vicente, ao Shakespeare… aquilo vai subindo tudo, compreendes?! A

todos os dramaturgos modernos… ela representou toda essa gente! Numa altura

em que havia uma censura terrível! Portanto, estás a ver isto é tudo… a vida é

profundamente difícil! Bem, mas isso não faz com que eu não continue

deslumbrado… quando compro esta lanternazinha, `tás a ver?! Isto é espantoso,

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como os chineses criam esta geometria que criou este sistema! Portanto, a minha

paixão vai de uma fotografia que eu faço de pedras… e no meio destas pedras,

nasce aqui uma flor de lótus! Isto é feito aqui num lagozinho que há ali no CCB. Cá

está uma colecção!

B: Mas isto afinal são aquelas folhas que ficam à tona de água…

L.H.: Isto são as folhas?! Ah pois… então são as folhas dos nenúfares! Mas tás a

ver que elas são todas iguais todas diferentes!?

B: Pois é, só que nem se vê a água, são tantas!

L.H.: Nem se vê a água… isto devia ter aqui por trás a data em que fiz esta

fotografia… mas eu estou sempre… bem, a minha colecção de diapositivos,

modestamente… é única!

B: É outra coisa que eu tenho que ver…

L.H.: Eu fiz sempre para meu prazer pessoal e como instrumento didáctico! Eu

sempre usei nas minhas aulas de comunicação e desenho uma argumentação

visual fortíssima!

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6ª Entrevista – 05/04/2005

B: Mestre, na última vez que falámos estávamos a começar a abordar o grande

tema das colecções, das suas colecções. Entrámos numa primeira parte mais

teórica, a necessidade do homem coleccionar desde sempre, da subsistência à

colecta por gosto, o espírito de coleccionador, enfim… já abordámos todos esses

temas.

Falámos do seu poema (“De há muito colecciono deslumbrado”…), fiquei com ele

gravado, lindíssimo!

O quando, como e o porquê de ter começado a coleccionar… enfim, abordámos

todos estes temas.

Agora, eu queria começar a analisar mais concretamente as colecções. O Mestre

falou que as suas colecções se dividiam em duas grandes linhas: as formas

artísticas e as formas naturais. Eu gostava que me falasse um pouco sobre isso,

para que depois analisássemos as colecções propriamente ditas.

L.H.: Pois… realmente as formas artísticas e as formas naturais! Esta reflexão, é

uma reflexão que se aplica à vida desde que sempre existiu, sobretudo ao nível da

raça humana, parece-me a mim.

Seria interessante, agora não que não é o caso, fazer uma investigação para saber

se outros seres vivos fazem colecções…

B: Se calhar fazem, não no mesmo sentido que nós pensamos, não é?!

L.H.: São temas… são temas realmente fascinantes, não é? Porque quando eu

agora estou a dizer isto, eu não me quero distanciar desta problemática, mas eu

gostava… nós, tudo o que dizemos, tudo o que fazemos, é consequente da nossa

experiência individual, mas também em relação ao plural que nos acompanha… e

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acontece que dentro desse… agora estava a falar em colecções e até que ponto

seria só o homem que coleccionava… em função da minha experiência pessoal, eu

neste momento para além das minhas relações humanas, ao nível dos seres vivos

eu tenho as minhas relações com os bichos! Com o meu corvo, com o meu

papagaio, com o meu gato… com as minhas plantas (que são também seres vivos)

e inclusivamente eu queria dizer que neste caso concreto o objectivo do papagaio,

do corvo ou do gato, eles coleccionam, talvez, emoções. Porque, eu já te disse ou

se não disse vou dizer, que estas duas árvores e este felino (neste caso) têm

percepção e conhecimento dos outros seres e eu direi até reconhecimento! Quando

eu desço daquele espaço junto à Av. Da Índia para o ateliê imediatamente o corvo

se manifesta, portanto ele… não se pode dizer que me veja porque já antes de ele

me ver, certamente pelos meus passos ou inclusivamente porque sabe… sabes que

estes bichos têm uma percepção muito mais forte que nós em determinados

aspectos, não é?! Ao nível dos cinco sentidos… ele começa imediatamente a

manifestar-se, a cumprimentar-me! Pela sua voz! E eu lá vou ter com ele

cumprimentá-lo mais de perto e a um certo momento eu gosto de, para além do

tratamento geral, lhe dar um bago de uva, ou um gomo de tangerina, percebes?! Ou

um...

B: Uma língua de veado? Eu já vi lá....

L.H.: Exactamente! Mas o que é que acontece!? É que ele antes de agarrar essas

ofertas, inclina a cabeça para eu lhe fazer uma festa... isto é um espanto!

O mesmo acontece com o papagaio, o mesmo acontece com o gato. O gato a

determinadas horas que sabe que eu lhe vou dar de comer começa a ronronar,

começa a dar marradinhas nas pernas... portanto, esta colecção de afectividades...

eu estou aqui, portanto, a desenvolver uma teoria de comportamentos que explica

talvez o espírito da colecção... porque não se coleccionam só objectos...

coleccionam-se sentimentos, coleccionam-se ideias!

É isso que faz com que apareçam as ditas artes! Porque as artes não são mais que

a tentativa permanente de agarrar o tempo que foge! Lá nos dizia o Mestre Almada

Negreiros com a definição de desenho: “o desenho é o nosso entendimento a fixar

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um instante!”. Ora bem, é essa colecção de instantes, que eu agora repito... essa

colecção de instantes que constitui o nosso tesouro maior. Esses instantes são

traduzidos por objectos concretos, que constituem, digamos, o sentido do

património, da realidade físico-química e depois são aqueles outros instantes que se

manifestam pelos tais sentimentos e pelas tais ideias, estou-me a fazer entender?!

Portanto, quando eu escrevo no fim do dia uma daquelas minhas páginas, são

coisas que me tocaram de uma forma especial e que eu “agarro” através daquele

registo das palavras. Mas também há momentos em que eu vou para uma página

de papel e não escrevo com letras, mas escrevo com formas! São os desenhos!

São os desenhos, que alguns são desenhos de ideias e de sentimentos, mas outros

são desenhos de realidades... eu por exemplo se tivesse agora aqui uma coisa

fazia-te um desenho! Porque este instante... nós já nos vimos muitas vezes, e

certamente nos tornaremos a ver enquanto nós existirmos, mas repara que mesmo

quando um de nós não exista, o que é natural é que seja eu que parta mais

rapidamente... o facto é que esses instantes existiram! Nós procuramos fixá-los,

através do desenho que eu te faria agora neste momento, através... sei lá! Logo à

noite eu sou capaz de estar ali sentado naquela cadeira e pegar num daqueles

meus blocos e desenhar através de palavras este nosso encontro! Porque com

tantas pessoas, é sempre um acontecimento singular... nós conhecemo-nos e não

nos conhecemos! E a diferença das experiências é que faz, digamos, a qualidade

das próprias experiências!

Isto estamos aqui a falar a propósito das colecções... das colecções para além das

colecções materiais, não é verdade?! Eu quando estive a podar aqui a minha

oliveira, este ramo foi cortado, ia para o lixo... eu fui buscá-lo e trouxe-o para aqui!

Porque ele tem para mim um significado particular! Quando se faz uma colecção

está-se a fazer colecções de significados! Significados que têm que ver com os

significantes e com os próprios referentes. Conheces esta linguagem de Saussure

referente, significante e significado. Portanto, repara que isto nos leva a

considerações gerais que são importantes, neste quotidiano que todos nós

construímos... ao mesmo tempo que nós estamos aqui a falar, quantos seres não

habitam nesta cidade de Lisboa?! Quantos seres não habitam neste bairro do Bom

Sucesso?! Que nós desconhecemos... mas eles são tão vivos ou mais vivos do que

nós!

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Ora bem... estas considerações filosóficas, quer dizer sobre a nossa condição, em

certos aspectos são importantes e explicam as tais colecções! Portanto nós... o

problema máximo do homem, e isso justifica a colecção – o nós rodearmo-nos de

objectos que não são propriamente formas vivas e algumas são porque já falei nos

bichos, já falei nas plantas...* é vencer as suas duas grandes preocupações: que é a

solidão e a morte! Isso vence-se através de toda uma inteligência, duma

sensibilidade ao nível dos comportamentos e ao nível da construção das nossas

gerações! `Tou-me a fazer entender?!

* mas depois com os tais objectos que estão ali em cima... aquela estrela do mar,

aquele búzio, aquele fóssil, percebes?! Este cálice que veio de Amesterdão... eu

gosto muito da Holanda e uma das vezes que fui a Amesterdão encontrei-me lá com

amigos e levaram-me lá a um licorista... e então fui lá provar (eles sabiam que eu

gostava muito de licor) e ele serviu-me licores neste copo e eu depois no fim...

tivemos assim uma conversa (sabes que eu falo com toda a gente) e eu perguntei-

lhe se ele me dava o privilégio de me vender um copo daqueles. E ele disse-me:

- Não, não vendo! Eu vendo a bebida porque eu tenho que viver, mas o copo... isto

não é uma loja de vidros, eu tenho muito prazer em oferecer-lhe este copo!

Portanto, este copo tem uma história! Todos os objectos têm uma história...

B: Estava a dizer que o grande problema do homem...

L.H.: Ah… O grande problema do homem, eu costumo dizer isto até inclusivamente

ao meus alunos, eu tenho todos os anos o privilégio de contactar com uma nova

geração, este ano tenho lá aquele 1º ano de Arquitectura da Universidade

Autónoma, rapazes e raparigas entre os 18 e os 20 anos... e para mim é um

privilégio enorme. E eu falo-lhes, a minha cadeira chama-se teoria, história e

funções do desenho na arquitectura, mas o que eu procuro é sensibilizá-los,

humanizá-los, percebes?! Dando-lhes uma notícia da importância do desenho na

formação de um arquitecto, mas chamando a atenção que o “desenho é o nosso

entendimento a fixar um instante”, em última análise, portanto o Almada

acompanha-me sempre e eu procuro sobretudo sensibilizá-los e consciencializá-los

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na medida em que eles, que são ainda o “Esplendor na Relva”... não sei se viste

esse filme. É um filme americano daquela geração do James Dean... que se passa

numa grande universidade americana e é o despertar daqueles jovens para uma

determinada época da sua vida, o descobrir espaços, sentimentos... é um filme

espantoso! E realmente quando se tem 18, 19, 20 anos tudo é um esplendor!

Embora eu que estou nesta minha provecta idade, continue num percurso de

deslumbramento contínuo, embora tenha uma forte consciência daquilo a que o

Unamuno chama o “sentimento trágico da vida”. Eu aconselho o meu querido amigo

a ler esse livro do Unamuno, estou-lhe a dar bibliografia... Miguel de Unamuno – O

sentimento trágico da vida. Sabe que o Unamuno era muito amigo dum grande

pensador português, nortenho que foi médico... escreveu muitas cartas e poesia...

essa grande personalidade que depois se suicidou... não me lembro do nome...esse

homem tem uma correspondência com o Unamuno que é uma coisa espantosa!

Mas então, eu chamo a atenção daquela “flor de juventude”, daquele “esplendor na

relva”:

- Vocês não têm bem a consciência daquilo que estão a viver!

Mas para que possam fruir desta dádiva que é a vida... é simultaneamente uma

dádiva e uma traição. Porque nós nascemos todos condenados à morte e

condenados à vida... mas enquanto cá estamos devemos realmente tirar o maior

partido da existência, mas dentro se um certo perfil de dignidade. Lembramo-nos

que pertencemos a uma sociedade... portanto há sempre esta dialéctica entre o

singular e o plural, entre o homem e a sociedade e por outro lado, pertencemos à

grande família dos homens de todas as raças, que habitam neste planeta, nesta

esfera terrestre que gira na esfera celeste...

E então digo-lhes... o problema do homem, fundamentalmente, é vencer as suas

duas grandes preocupações: que são a solidão e a morte! Isso Vê-se através de

toda uma inteligência, uma sensibilidade ao nível dos comportamentos e ao nível da

construção das nossas gerações. Estou-me a fazer entender? Portanto, a

responsabilidade... eu tenho intenção de criar responsabilidade numa juventude que

construa depois uma maturidade qualificada... enfim, é a minha preocupação ética!

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Portanto, toda esta conversa está a nascer do porque é que o homem se reúne de

objectos?! É para vencer a solidão! Ora, ele colecciona não só objectos que já não

são vivos (as conchas, o copo, um livro), como inclusivamente colecciona também

essas emoções dos seres vivos... o tal papagaio, o tal corvo, o tal gato... as

pessoas, nós conhecemos imensas pessoas com quem nos aproximamos ou

distanciamos... tudo isso depende do jogo das relações. Portanto, estamos aqui em

síntese e em palavra última a concluir que a colecção é consequente de nos

sentirmos acompanhados! Os grandes pensadores, os grandes filósofos, os

grandes poetas... eu já te disse várias vezes que vivo de certos segredos... está

aqui assim o Rainer Maria Rilke, num livro espantoso que foi muito importante na

minha formação e na minha geração e que deves tomar aí nota e que se chama

“Cartas a um jovem poeta” do Rainer Maria Rilke. Há uma belíssima tradução em

português... o Rainer Maria Rilke foi secretário do Rodin! Outro dia encontrei um

livro dele sobre o Rodin que é uma coisa excepcional! Mas ele tem esta frase: “Nos

momentos mais significativos, nós estamos fundamentalmente sós!” e agora está

aqui no meu outro ouvido o meu grande amigo e que eu tenho uma saudade

imensa, o escritor José Cardoso Pires... em que a uma certa altura fizeram-lhe uma

entrevista para o Diário de Lisboa (que tenho ali pendurado do outro lado) em que

ele diz o seguinte: “Sem a solidão não se pode viver!”. Tás a ver?! A aparente

contradição?

Bem, eu estou a tentar responder-te a estes problemas que não são fáceis, mas são

muito interessantes...

B: De uma forma mais abrangente, não é?! Mas eu agora gostava que tentássemos

concretizar um pouco, mesmo sobre as suas colecções... não as dos sentimentos

que o rodeiam, mas concretamente as dos objectos. Aquela divisão entre formas

artísticas e formas naturais... eu falei nisto porque me disse numa nossa conversa

que achava que eram as duas grandes linhas das suas colecções.

L.H.: São, são... indiscutivelmente! As formas naturais e as formas intencionais,

nomeadamente artísticas! Já se sabe... a arte e a natureza. A arte é aquilo que o

homem acrescenta à natureza. Tendo a percepção, o conhecimento, o

entendimento do que é realmente a vida, a realidade biológica e aquilo que está

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para ali assim, mas que enquadra, que emoldura... eu também colecciono

memórias! “De há muito colecciono deslumbrado memórias de perfis”... quer dizer,

eu amo fundamentalmente as nuvens e as árvores. Tanto ou mais que as pessoas!

Eu fico perplexo e apaixonado por uma árvore! Como pelas nuvens... são todas

diferentes e todas iguais! Não sei se me estou a fazer entender!?

Portanto, quando nós estamos aqui a fazer essa divisão das formas naturais e das

formas intencionais... depois foi para explicar que as formas intencionais eram ditas

artísticas, na medida em que a arte é aquilo que o homem acrescenta à natureza. A

arte e todo o equipamento, portanto já estamos... as Faculdades de Belas Artes com

as ditas artes visuais, as artes plásticas e o design. Mas antes de existir o design

com a sua expressão erudita, existiu um design, não se chamava assim, mas que

era o acrescentar à natureza de todo o equipamento para que os homens pudessem

viver. Vais ao Museu do Louvre em Paris, ou vais ao Museu do Cairo no Egipto e

vês o que foi a arte egípcia, para além da escultura, da pintura, do desenho e da

arquitectura, todo o equipamento! Mobiliário, as colheres egípcias, os vidros, os

pentes... eh, pá, tudo!

Eu fiz agora uma viagem à Tunísia, pela segunda vez, desta vez com o Prof. Carlos

Amado porque ele nunca tinha ido e comprei este tapete que está por trás de ti. Ora

bem, a razão... achei muito bonito, eu já tenho imensas coisas... já se sabe vi lá

tapetes deslumbrantes, espantosos, mas este tapete tinha para mim um significado

especial... o que está no centro do tapete é uma oliveira... tás a ver?! É a minha

oliveira! Depois tem aquele friso fascinante, daquelas ovelhas e cá em baixo

também há um ou dois coelhos. Ora bem, tás a ver o que se passa!? Quando nós

encontramos um objecto que tenha afinidades electivas connosco... portanto a

oliveira é uma coisa que eu sempre amei, que dentro das minhas memórias aparece

com frequência... ultimamente eu até consegui que me oferecessem aquela oliveira,

que está em perigo... não sei se ela vai morrer se não vai... e então pronto,

encontrei este tapete e comprei-o imediatamente! Portanto, as razões porque nós

seleccionamos os objectos que coleccionamos: há razões que tem que ver com o

nosso arquivo interior, como aquilo que quando tu foste meu aluno eu tinha proposto

que fizéssemos o “Museu Individual”! Daí o teu cognome! D. Afonso Henriques “O

Conquistador”, D. Sancho I “O Povoador”, D. Afonso II “O Gordo”... D. Bruno “O

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Ciclista”! Por isso tás a ver que estas coisas têm que ver connosco! São as nossas

experiências, são os objectos que nos ajudaram a viver, são realmente... isso é que

explica que as pessoas coleccionem... depois... porque há muita gente que só faz

colecções por negócio! Há os antiquários, que fazem negócio com as coisas

antigas, que vêm já de pessoas que fizeram colecções, mas que depois por

necessidades económicas têm que vender as suas colecções... é dramático às

vezes a venda... pessoas que já na última fase da sua idade, do seu tempo, têm que

para sobreviver têm que vender essas coisas... mas as coisas vão... isto passa de

mão em mão, compreendes?! As coisas não estão paradas, um objecto tem sempre

uma história!

Já se sabe que um dos fascínios, mas também um inconveniente, das pessoas que

têm já o peso da idade é que quando estão a falar vão aparecendo... a certa altura

houve um filme americano espantoso que era a história de uma casaca! Que

pertenceu a várias pessoas, e então o realizador e quem fez o argumento do filme...

diz?

B: Acompanhou o percurso... ?

L.H.: É um filme espantoso que eu já não me lembro quem era o realizador...

portanto, as coisas vão passando... por causa de passarem de mão em mão... a

gente vai... eu ia muito à Feira da Ladra... depois do incêndio fui muito, comprei

imensas coisas... ultimamente não tenho ido... tenho outras coisas que fazer, o

tempo cada vez também é menos... e naquela altura o que para mim era uma festa,

hoje ir à Feira da Ladra cria-me um certo sentido dramático da vida... tás a

perceber?! Porque eu próprio poderia ir vender coisas... ou pode-me acontecer...

aconteceu isso com uma prima minha que tinha umas colecções espantosas que

fez mal o seu testamento e as pessoas que herdaram foram vender a maior parte

das coisas à Feira da Ladra, e um dia eu vou lá e encontro uma série de coisas

dela! Ela a mim deixou-me um relógio, deixou-me uns livros... que arderam no meu

incêndio!

Portanto estás a ver, estamos aqui nas razões das colecções e estamos aqui assim

a falar nisso... objectivamente, essa linha das formas naturais e das formas

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intencionais (das formas artísticas) está perfeitamente certa. A razão porque nós

coleccionamos, é porque... no meu caso pessoal, talvez por eu ser escultor,

conforme fui adquirindo capacidades económicas eu comecei a comprar peças

artísticas, nos antiquários do porto... ia lá com o Sisa, ia lá com o Fernando

Távora... éramos um grupo de malta da Escola de Belas Artes que íamos ao

Bagalha... que começou por ter, vendia as coisas num andar, numa dos bairros do

Porto, mas depois alugou uma casa perto da Sé do Porto e da Casa-Museu Guerra

Junqueiro, onde nós íamos. Eu tinha pouco dinheiro e comprava aquilo que podia...

o Távora, por exemplo, que pertence a uma família com dinheiro, comprava com

facilidade, não é?! Agora eu, e até nessa altura o Sisa era uma rapaz que estava a

acabar o curso de arquitectura também não tinha... agora pode comprar aquilo que

quiser e ainda bem, felizmente que sim.

Mas depois a uma certa altura, a gente já não compra, porque já comprou tanto...

um dos problemas também do homem, é ter coisas a mais! Eu compreendo agora

perfeitamente o São Francisco de Assis…

São Francisco de Assis pertencia a uma família de Assis, uma família rica, poderosa

e vivia numa atmosfera em que nada faltava… e ele a um certo momento começou

sentir que tinha coisas a mais! Mas muito jovem… e sobretudo, enquanto ele tinha

muito e tanto, outros não tinham nada! Isso com a sua convicção religiosa, levou-o

de um momento para o outro a abandonar completamente o mundo e a ir para uma

organização religiosa!

Aconteceu isso com Santo António de Lisboa… que depois foi para Itália. É do

tempo do Afonso Henriques, pertencia a uma família nobre e de um momento para

o outro… tinha até tudo acertado para se casar, tudo já combinado e ele de um

momento para o outro resolve ir para frade… os pais têm um desgosto enorme e

toda a família e ele vai. Vai primeiro para uma ordem que está em Coimbra, depois

vai para outra ordem... depois embarca para ir para o Norte de África e há uma

tempestade e a Caravela em que ele vai é atirada... porque ele ia para Marrocos, e

vai até Itália e o gajo vai até Itália... e por lá fica. Depois, como sabes, em Pádua...

tanto que grande parte das pessoas julgam que é Santo António de Pádua e não

Santo António de Lisboa! Há ali uma rivalidade entre Lisboa e Pádua... não vamos

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agora falar do Santo António, embora o Santo António seja uma personalidade da

cultura portuguesa singular... era um grande orador sagrado!

Isto veio a propósito... porque eu comprei vários Santo António e mais tarde quando

eu estava em Roma tive uma encomenda do Arquitecto João de Almeida e de um

outro arquitecto... também da minha geração, para fazer um Santo António para a

Igreja de Moscavide... onde existe um Santo António em escala natural e um cristo

que foram feitos por mim. E no Altar-Mor, há uma parte superior do altar que foi

pintada pelo José Escada... bem isto são histórias de gerações... e então eu

comprei alguns Santo António e comecei a comprar algumas peças de escultura do

Baganha para coleccionar.

Já se sabe que por outro lado, a colecção cria um certo vício... a gente compra uma

coisa e quer comprar outra, percebes tu?! Eu tenho uma colecção de túlipas

espantosa... que já tinha antes do incêndio! Aquilo ardeu tudo e eu depois retomei

essa colecção do nada, do zero! Porque tenho uma colecção de túlipas louca!

Comprei na feira da Ladra... comprei ainda a 20 escudos! Depois passaram para 40,

depois passaram para 50, depois passaram para 100, depois passaram para 200!!

Hoje uma túlipa antiga já se vende aí por 5 ou 6 contos! Já se sabe que eu depois

encontrava uma justificação, como professor, de que as túlipas que eu tenho são

todas diferentes umas das outras... tenho poucas repetidas! Queria era comprar

diferentes... e então era para justificar a diferença relativamente à função! `Tou-me a

fazer entender?! Havia aqui uma intenção estética e plástica, de investigação

plástica... porque esses artesãos que faziam essas túlipas procuravam sempre dar

um toque pessoal. Porque vivia-se uma época que não era tão estandardizada...

hoje as coisas são todas iguais! Já reparaste?! Tu vais à IKEA, vais àquelas coisas

todas, e aquilo é tudo... estás a entender?! Oh, pá, é o sistema da sociedade de

consumo, são essas coisas... compreendes?! E portanto, a gente entra às vezes

numa casa e as casas são todas iguais...

Bem... especificamente estamos a ver colecção de escultura! Essa colecção de

escultura é consequente de eu ser escultor! Pintura praticamente não cheguei a

comprar no Baganha... comprei alguns objectos, algumas coisas de cerâmica...

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B: Mas desse tempo que comprou... ainda tem? Não perdeu assim muita coisa...

L.H.: A maior parte perdi, mas houve algumas coisas que ainda ficaram. Ou porque

estavam na minha casa da Rua dos Douradores, e em São Pedro do Estoril

algumas coisas... muito poucas. Portanto há alguns objectos que ainda vêm do

antes... porque na minha vida há o Antes do Incêndio e Depois do Incêndio! E há

peças que estavam na Escola... porque eu “obrigava” os alunos... porque enquanto

eu fui um sacrificado e desenhei durante um ano apenas a escultura greco-romana,

quando eu tomei conta da cadeira de desenho eu não neguei as formas artísticas,

simplesmente chamei à atenção do meu notável director Prof. Arquitecto Carlos

Ramos, director da Escola Superior de Belas Artes do Porto,

(…)

L.H.: ... sabes, a vida é a tal dádiva que nós não sabemos aproveitar! Tás a ver... ?

É que... tu és um rapaz sensível... qual é a tua formação, que curso é que fizeste?

B: Base, Relações Internacionais.

L.H.: Mas então vais para as Belas Artes para o Mestrado em Museologia...?

B: Sim, porque eu trabalho num museu...

L.H.: Pois, que é?

B: Pavilhão do Conhecimento, no Parque das Nações.

L.H.: Eu a ti considero-te... de resto naquela coisa tu és muito mais artista que

outros gajos, que eram teus colegas que tinham feito cursos na escola! A sério, tens

uma sensibilidade muito particular... não te estou a dizer para te fazer

cumprimentos, mas pronto é assim, acontece assim... eu gostava de ver uma

fotografia do teu Pai e da tua Mãe...

B: Bem, o meu Pai já o viu, no Montijo... na inauguração da tágide...

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7ª Entrevista – 26/04/2005

L.H.: ... No séc. XIX, as funções e as formas, tinham uma preocupação artística e

estética. Hoje uma coisa destas (um ralo) nunca se fará assim...

B: Estão horas de trabalho aí, não é?!

L.H.: Pois! Hoje é o mais fácil possível... só se pensa no dinheiro, portanto as

preocupações...

(Aproximar do armário das túlipas...)

L.H.: Comecei a fazer esta colecção de túlipas depois do meu incêndio... ia muitas

vezes à feira da Ladra e comecei a ver túlipas. Que naquela altura eram

baratíssimas... custavam dez escudos, sete e quinhentos, quinze escudos, vinte

escudos... algumas a cinquenta. Agora uma túlipa destas não se vende por menos

de 5 contos! É muito interessante porque são todas diferentes e todas iguais... quer

dizer, a função determina uma forma e é precisamente essa variação que me

interessou a mim como argumento visual para os meus alunos do desenho e do

design.

`Tás a ver?! Algumas são iguais, mas é muito interessante a afinidade de cores,

portanto as tecnologias, percebes?! Tudo isto é inspirado nas flores... Antigamente

havia esta preocupação. Os franceses são espertos porque estão a fazer isto

novamente...

A tal preocupação estética… vai a pouco e pouco desaparecendo. Nós estamos a

viver uma época de minimalismo em que as coisas são reduzidas ao mínimo! Para

custarem o menos dinheiro possível! E para se ganhar muito dinheiro! Mas de uma

forma muitas vezes desarmoniosa, não é?!

(...)

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Portanto, estas coisas de arte negra, tenho várias coisas. Porque as artes primitivas

a mim interessam-me muito...

Ora bem... isto vem a propósito das colecções, não é?! Sabe que eu colecciono

fósseis...

B: Mas nós de qualquer das maneiras, vamos ter que fazer uma selecção, não é?!

Não vamos estudá-las todas...

L.H.: Por isso é que o senhor vai escolher as formas que lhe parecem mais

significativas...

B: Mas eu também queria que o Mestre, me disse-se quais eram aquelas que para

si, eram mais...

L.H.: Pois... tá a ver... esta peça, por exemplo, é uma peça espectacular! Isto é um

tambor de iniciação... dos homens e das mulheres... a circuncisão masculina e

feminina. Que atinge simultaneamente um grau de sacrifício e de festa! Tudo isso

está muitíssimo bem estudado...

Portanto, estas peças de arte negra... aquela é muito boa! Depois há este leão que

eu trouxe da Tailândia que também é espantoso! Estas coisas de arte popular e arte

primitiva são coisas que me fascinam em primeiro lugar! Portanto, isto nasce muito

desta primeira peça que me foi oferecida por um aluno meu...foi-me oferecido por

este rapaz que está aqui (busto), que foi meu aluno no Porto... grande pintor e

grande desenhador... que a uma certa altura foi para a Guiné, e quando voltou

telefonou-me e eu disse:

- Eh, pá, aparece eu agora vou poucas vezes ao Porto, mas vem cá e tal...

Passado pouco tempo o pai dele telefonou-me e disse:

- Oh Mestre, eu queria ir aí com o meu filho... o meu filho está muito mal, está já a

ser tratado por um psiquiatra e isto está realmente muito complicado e a ver se o

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Mestre... ele tem por si uma admiração total e um grande respeito e se me desse

licença e ia aí com ele...

- Mas com certeza!

E ele veio cá com ele. Bem, foi uma coisa trágica. Mas este retrato é o retrato dele,

ele chama-se... (depois já me lembro)... e ele foi meu aluno no 1º, no 2º e no 3º...

era de pintura mas teve aqueles 3 anos de desenho comigo. E era realmente um

tipo espectacular! Eu tenho ali um desenho dele que é uma coisa notável... houve

uns que arderam no incêndio, mas eu aquele por acaso tinha-o em São Pedro do

Estoril, portanto salvei-o. Naqueles desenhos que eu mandava fazer para além dos

desenhos das aulas, eu sugeria temas... e lembro-me que um dos temas que dei foi

sobre cafés... o gajo fez uma série de desenhos no Majestic que é o fim! Um dia

entra na aula com o cabelo todo rapado e aquela malta começou-se toda a rir! E eu

disse:

- Mas eu não estou a perceber de que é que os senhores se estão a rir? Se ele

estivesse no Instituto Superior Técnico ou na Faculdade de Direito ou outra do

género... eu ainda entendia! Agora vocês querem ser artistas, pintores, escultores,

mas então de que é que vocês se estão a rir? O vosso colega teve a coragem...

apeteceu-lhe fazer isto! E teve a coragem de o fazer e vocês estão-se a rir? Eh, pá,

por favor!

Mas ele era um gajo tão bem formado um tipo com tanta qualidade, um aluno

distintíssimo, dos melhores alunos. E eu disse-lhe:

- Ó Alexandre, não te importas... pareces um Egípcio! É espectacular o que fizeste!

Sentas-te aqui num banco, numa cadeira e os teus colegas vão desenhar-te!

O gajo sentou-se impecável! Fizeram-se alguns desenhos muito bonitos e depois eu

disse-lhe:

- Se puderes, ainda hoje, passa pelo meu ateliê que eu queria fazer-te um desenho!

Como os teus colegas te fizeram!

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O gajo apareceu lá eram 18h... e eu disse:

- Nem é um desenho! Vou fazer-te um retrato!

Comecei às 18.15 acabei à 1.30 da manhã! Isto foi feito nestas horas. É uma peça

que eu estimo extraordinariamente! Mas tás a ver?! Esta peça... vê o perfil, vê o

perfil. Ora bem, este querido amigo vem com o pai e o pai bateu-me à porta e disse:

- Oh Mestre, veja se fala com ele sozinho, porque ele está muito mal e eu não sei o

que é que hei-de fazer...

- Vamos ver o que é que se pode resolver...

E então lá falei com ele:

- Mas então o que é que te aconteceu?

O gajo já estava com uma expressão terrível! E diz-me o gajo assim:

- Oh Mestre...

- Diz Alexandre, diz lá pá...

- É que eu matei! Eu matei, matei... eu sei lá se 7 ou 8 rapazes... eu não consigo...

Começou a chorar... E eu disse:

- Eh, pá, mas isso fizeste para não seres morto! Que culpa tiveste tu de seres

agarrado nesta guerra? Tu não tiveste culpa nenhuma! Eu compreendo

perfeitamente! Tu és uma pessoa extremamente sensível, mas tu não fizeste isso

voluntariamente! Tu foste agarrado numa organização, numa máquina que te

obrigou a esta coisa toda! Bem, por favor promete-me que se vai vencer esta crise!

Olha, a primeira coisa que se vai fazer e vou já telefonar para a Fundação

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Gulbenkian, para o Arquitecto Sober e para o homem que está à frente das bolsas o

Pedro Tamen... espera aí um bocadinho.

E naquele momento peguei no telefone e disse:

- Oh Pedro Tamen, eu estou aqui com um rapaz meu aluno que esteve na Guiné e

que veio completamente descontrolado e portanto, era importante que todos nós o

ajudássemos! E eu estava a ver se seria possível arranjar-lhe uma bolsa, porque ele

é um rapaz extremamente dotado!

E ele disse:

- Lagoa Henriques! Pode dizer-lhe que nós dentro de 15, 20 dias lhe arranjamos

uma bolsa!

E ele ouviu a conversa e eu disse-lhe:

- Portanto vê lá!

Arranjou-se a bolsa, ele ainda aqui veio mais uma vez... passado um mês e tal

suicidou-se!

Mas entretanto ofereceu-me esta peça! Isto tudo foi por causa da peça que ele me

trouxe lá da Guiné! Que é das primeiras coisas que eu tenho de arte negra... e é um

macaco a ser mordido por uma cobra e a segurar uma flor de lótus! Como vês tem

um aspecto extremamente fálico! Mas isto é uma peça espantosa! Se tu a vires de

todos os lados isto é uma coisa extraordinária! Portanto, cada peça tem uma

história! E essa componente humana que acompanha digamos os objectos é

extremamente importante!

Eu estou aqui assim a olhar para isto... já se sabe que eu depois colecciono as tais

pedras! Tás a ver estas coisas todas que eu tenho... agora vê esta maravilha! Um

gajo... um botânico lê a idade desta árvore! Ela está incompleta não é?!

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Bem! Estamos a ver os objectos, não é?! Objectos artísticos, objectos naturais.

Formas naturais, formas intencionais. Temos que seleccionar! Portanto, o Prof.

Lagoa Henriques é uma pessoa muito tocada pelas artes primitivas, isso não há

dúvida nenhuma! E então, começou a coleccionar e o arranque foi uma peça que

lhe foi oferecida por um aluno!

B: Considera que esta peça foi o início...

L.H.: Foi o arranque foi! Nitidamente! Eu nunca tinha comprado nenhuma peça!

B: Lembra-se mais ou menos da altura?

L.H.: Lembro, lembro... isto já é depois do incêndio! Antes tinha algumas coisas que

comprei antes do incêndio, mas não tinham...

B: Terá sido algures depois do 25 de Abril, não?! Dado que ele tinha regressado da

guerra... o incêndio foi em 72, não foi?!

L.H.: Pois, por aí! Sabes que eu datas não sei bem...

Pronto, e cá está a arte primitiva, a arte popular... isto não é popular, isto é um

design popular... isto é uma das peças que eu mais gosto! Que é uma canga, não é

verdade?! Que tem aqui matrícula, como se fosse um automóvel! Leia lá...

B: ... 9... 1960!

L.H.: Pronto, cá está! É como se fosse um automóvel! Esta canga de bois... agora

veja o valor plástico disto! Podia ser uma escultura!

B: Lembra-se onde é que...

L.H.: Onde é que comprei? Num antiquário ali no Bairro Alto... fiquei doido!

B: Assim por acaso?

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L.H.: Sim pronto, a gente... já se sabe que há coisas que... quer dizer... isto, estas

miniaturas... isto é ali perto de Sintra... é uma capela que há ali numa povoação

perto de São João das Lapas... que eu agora não me lembro...

Portanto, estas coisas vão aparecendo todas, compreendes?! Portanto, temos que

seleccionar! Eu posso ajudar- te na medida em que... por exemplo, esta peça é uma

peça que tem que entrar! Aquela peça, é uma peça que tem que entrar, esta peça é

uma peça que tem que entrar...depois logo se vê... por exemplo aquela máscara

cantante... que é uma coisa que eu comprei em Paris... Eh, pá é uma peça

excepcional! Tás a ver? Isto é um pássaro! Bem, isto ajustasse ao rosto de uma

maneira espantosa! Bem, tudo isso são coisas formidáveis! São coisas notáveis!

Portanto, o senhor tem que definir um critérios das colecções... portanto o Senhor

escultor Lagoa Henriques dentro do seu conceito de análise das formas, sempre

relacionou o material em que a forma vive, a forma em si própria e a sua função!

`Tás a compreender?! Esta trilogia: forma, função e material. Esse triângulo

sagrado, como eu lhe chamo, define realmente o objecto! Portanto, são formas

concretas, são realidades físico-químicas e que... já sabe que eu depois colecciono

folhas... eu quando encontro uma folha de que gosto muito... fico doido com isto!

Isto para mim vale mais... isto não tem preço!

B: Mas por exemplo, uma das suas colecções muito importantes é a das búzios!

Essa temos que lhe dar um grande destaque...

L.H.: Pois, pois, pois... são as tais formas naturais e as formas intencionais! Olhe

este monumento... olhe esta maravilha! E quando eu colecciono aqueles objectos

inúteis... estas luvas com que depois fiz uma série de instalações...

B: Depois tem várias...

L.H.: Tenho, tenho... depois inclusivamente esta peça que tu conheces aqui muito

bem... que eu agora acrescentei-lhe um elemento... `tás a ver?! Depois acrescentei-

-lhe esta gaiola e agora há aqui umas coisas... e eu como tenho aí gaiolas que já

não funcionam, vou fazer uma série com gaiolas e formas aprisionadas que ganham

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uma determinada simbólica! Isto tinha que ver um pouco com o 25 de Abril... a mão

do trabalhador que agarrava a paz, neste brinquedo popular...

B: Mas no entanto preso... não é?

L.H.: Mas o facto é que... é muito bonito!

B: É subtil, é subtil...

L.H.: É... sofre-se muito, mas também se curte! Ora bem... como é que vamos

fazer?! Vamos lá pra cima? Vamos ver aqui mais coisas?

E... é isto que estou a dizer...Olhe para este tronco!

B: Como é que trouxe isto para aqui?

L.H.: Eu vou explicar... eu fiz para Ourique duas estátuas! O Dom Dinis e o Dom

Afonso Henriques. E depois a uma certa altura... eu disse ao Presidente da Câmara,

que era amigo lá de um arquitecto que tinha sido meu colega na escola, e eu disse-

-lhe:

- Sim senhor, eu tive muito gosto em fazer isto, mas o senhor devia... para além de

fazer monumentos tradicionais aos reis, que acho que sim senhor. O Dom Dinis foi

um extraordinário poeta, um extraordinário político, um homem fantástico! E o Dom

Afonso Henriques é uma figura notável! Mas, era interessante que o senhor fizesse

também um monumento a pessoas anónimas que levantaram esta cidade de

Ourique, porque a vida continuou! Porque é que não faz um monumento aos

trabalhadores?

E então eu sugeri-lhe... que depois acabou por não se fazer porque depois na

assembleia municipal houve uns gajos que votaram contra e aquilo não se fez... E

então eu disse-lhe:

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- O senhor vai-me arranjar um tronco duma azinheira, um tronco bonito... depois

arranja-me uma roda... depois arranja-me um arado...

Tenho essas coisas todas! E cheguei a fazer um esboceto... depois acabei por ficar

com estas coisas... e depois o tronco permitiu-me colocar aqui esta figura que fazia

parte da praia das palmeiras na Madeira. Pronto, isto aqui não foi propriamente uma

colecção mas tem que ver com o meu amor à natureza... essas coisas todas!

Ora bem... naturezas vivas, naturezas mortas... temos aqui mais... tudo isto me deu

a praia dos prodígios! Não esquecer isso...

B: Sim, sim... fundamental nas suas colecções!

L.H.: Portanto isto vem tudo da praia dos prodígios, a maior parte destas coisas,

não é?! Isto também foi lá apanhado, este cajado que é bestial! Tu pega nisto!

B: É ergonómico!

L.H.: Tem um apoio.... tu vês isto nos homens do povo! Isto foi cortado por um

homem, por um pastor, por um gajo qualquer... para se apoiar... um velhinho pá! Eu

felizmente ainda ando assim!

Olha, fui ontem àquela coisa ali no Palácio da Ajuda com o Presidente da República,

do 25 de Abril e tal... para encontrar algumas pessoas que ainda estão vivas,

rapazes do meu tempo. E encontrei aquele grande arquitecto que teve uma grande

exposição ali na Gulbenkian... um tipo formidável do meu tempo que fez várias

igrejas... enfim, não me lembro... mas coitadinho, anda com uma bengala! Se ele

tivesse isto era muito melhor que a bengala! Palavra de honra! Já se sabe que não

ia andar aí pela cidade de Lisboa com isto, mas é pena!

Mas agora, já se sabe... eu sou um gajo privilegiado! Quem me ofereceu isto?! O

Oceano Atlântico e o Rio Tejo! Não é verdade?! Encontrei isto misturado com

bocados de cortiça... com coisas, com bocados de madeira... isto são tudo coisas

que eu trago de lá! Eu já tenho isto há muito tempo! `Tás a perceber?

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Estas pedras todas vieram de lá... com elas eu fiz estas instalações todas... como

está V. Exa. a ver, não é?! Estas pedras determinaram-me algumas composições,

algumas pequenas esculturas que eu fiz para mim! Porque a minha obra, como

sabe, determina-se por escultura íntima que eu não posso deixar de fazer por

prazer, por inquietação e escultura pública. A chamada escultura de encomenda.

Sofre-se muito, mas também se curte!

Depois estas coisas servem-me todas para eu colocar as minhas esculturas, essas

coisas e tal... tá a ver?! Olhe outra peça muito bonita, que eu comprei... já não sei

onde... que é uma peça de arte negra de altíssima qualidade! É um bastão de

comando! Veja esta maravilha! Veja esta estilização, veja a modernidade disto

porra! Já viu isto?! A estilização destes seios, o cabelo! Eh, pá, isto não há palavras!

Este banquinho...

B: Tudo muito esguio, não é?

L.H.: A elegância disto tudo! Depois é preciso fazer fotografias...

B: Sim, sim depois repito o percurso a fotografar.

L.H.: É que eu nunca tinha reparado nisto!

B: Ainda bem que estamos a descobrir coisas juntos!

L.H.: Eh, pá, pois é... mas é assim que acontecem as coisas! Quando eu fico feliz

até ao infinito quando encontro esta pedra... isto é uma peça notável! Parece que

houve aqui uma coisa que a enrolou... já se sabe que podia fazer-se agora aqui com

um cordel ou coisa assim... tudo isto é susceptível de metamorfoses e

transformações muitíssimo interessantes... portanto sofreu-se mas também se

curtiu...

Já se sabe que quando o Professor Lagoa Henriques encontra esta folha fica doido!

Já viu isto?!

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Portanto, o senhor Professor Escultor Lagoa Henriques quando foi professor de

escultura na Escola de Belas Artes do Porto, o Professor Barate Feyo todos os anos

me dava o 1º ano ou o 2º ano ou 3º ou 4º... e ele dizia sempre:

- Oh, Lagoa Henriques, você esteve lá fora aqueles 3 anos, dê uma nova

interpretação a isto!

E eu tomei conta do 2º ano de escultura... em que estava o Carlos Amado, a Clara

Menéres e eles começaram a fazer estas coisas... as formas naturais. Só se fazia o

modelo masculino e feminino e acabou! Também fiz o modelo, simplesmente em 3

idades: 7, 20 e 50 (mais ou menos) e aconteceu o mesmo com a figura feminina e

depois para além do modelo vivo, como era escultura do natural eu disse:

- Oh, Mestre Barata Feyo, a natureza é também um pássaro, é também uma árvore,

é também uma pedra... portanto é bom que eles se aproximem...

E assim fiz, revolucionei aquilo totalmente! Colecções, tudo através das

colecções!...

E depois começa a haver uma colecção de pintura... com certeza que tenho aí uma

série de coisas feitas pelos meus alunos! Uns ofereceram-me, outros eu comprei

por importâncias simbólicas... mas hoje tenho já uma colecção de pintura com

algumas coisas muito bonitas, não é?!

Olhe para este... feito por uma rapariga que também foi minha aluna!

Caixinhas chinesas...

Trevos...

Bóias das redes...

Gravuras japonesas...

Tríptico + quadro da mãe + bilhetes postais + cântabro de seda do pai... pode

constituir

Portanto, a colecção como tesouro afectivo...

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B: Até porque, eu estou já no... no que já estou a escrever e a imaginar na minha

cabeça, e também segundo as palavras que me foi dizendo... parece-me que há

uma grande influência artística na sua casa, não é?

L.H.: É o ADN!!

B: O facto de o seu pai ser amador dramático, da sua mãe ser professora de

desenho, francês e inglês... os passeios com o seu avô... tudo isso é fundamental

para o seu percurso, não é?!

L.H.: Pois... e depois Cesário Verde e Fernando Pessoa...

(...)

Ora bem, isto continua... são as colecções! Depois começam as colecções, não é?!

As conchas começam a aparecer aqui... depois as colecções das coisas que nós

gostamos, dos nossos amigos... as gaiolas também comecei... o problema da

colecção... repare que ela nasce no sentido de demonstrar a variedade das formas,

respondendo à mesma função! As minhas colecções são muito motivadas pela

minha actividade de professor! Os meus alunos, muitos desenharam estas coisas!

Eu levava duas gaiolas destas para a aula... o que eram as minhas aulas de

desenho e o que são agora! Eu não estou a dizer mal de ninguém... mas

compreendes o que eu quero dizer?!

... Passeio pelas colecções...

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8ª Entrevista – 16/07/2006

L.H.: ... e quando ele foi meu aluno, estava lá com uns colegas e tal... e a uma certa

altura batem à porta... e eu pensei:

- Quem será?

- Ah, desculpe incomodar eu vinha à procura de um amigo meu que está a fazer um

mestrado em museologia... o Sr. Pelos vistos é o professor?

- Sou, sou diga?

- Ah... eu queria falar com o BAG!

E eu BAG... fiquei...

- BAG?!

- Bruno Araújo-Gomes!

(...)

Ora bem, tudo isto é uma pura invenção da minha parte como os senhores sabem...

mas eu vivo dessas coisas!

B: Sabe que por acaso, nos trabalhos que eu faço, nos cantos ponho sempre essas

3 siglas! Por acaso coincide!

Carlos Amado (C.A.): Da invenção...

L.H.:... nasce a luz!

(...)

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... (L.H. à procura de um poema...)

L.H.: Há aqui duas ou três coisas que eu lhe vou falar porque neste momento, e

sempre existiu em mim um diário poético digamos, a que... nessa altura não era

diário! Porque havia muitos dias, e talvez meses, em que eu não escrevia nada.

Mas, com o crescer do tempo, esta árvore de idade que sou eu... agora escrevo

todos os dias! Porque não posso deixar de escrever... por exemplo ontem escrevi 7

poemas! 7 páginas! Eu não lhe quero chamar poemas... Mas como há uma

transfiguração no relato e há um determinado ritmo e até a rima... porque a rima

para mim é um monumento altamente criativo! Porque no fim de contas o povo

explica desta maneira: palavra puxa palavra! Portanto, a rima obriga a descobrir

uma palavra que rime com a anterior e portanto, dá uma criatividade muito

particular... Estou a ser claro?

Como vêem, estou aqui a participar na elaboração de uma obra de rara qualidade!

BAG!

(...)

L.H.: Eu sou muito desorganizado, sempre fui durante toda a minha vida! Tenho

dezenas destes blocos... e pronto, escrevo num, escrevo noutro...

Ah! Pronto! Porra!

C.A.: Encontrou!

B: E afinal já cá estava!

L.H.: Estava aqui... Isto foi escrito no dia 14 de Julho de 2006... digo 15! Foi escrito

no dia 15 de Julho... Passo a ler:

(risos)... Isto tem graça! Tem a ver com o coleccionismo! Até porque todas estas

coisas que eu escrevo são colecções de memórias e de acontecimentos! Então o

registo reza assim, como diria o Vinícius de Morais:

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Pedras, Líquenes, borboletas

Concretas atenções às plantas e às aves

Naves de catedral, memórias deslumbradas

Estradas, caminhos, perspectivas

Esquivas, acusações fundamentadas

Generosas acções, palavras dadas

(...)

Como vê isto é uma síntese destes encontros, destas descobertas e das minhas

colecções... eu quando encontro uma pena, tenho várias penas de pombo que

apanhei em Paris, que apanhei na Tunísia, que apanho aqui muitas vezes... mas a

tal referência é esta...

(...)

São os objectos recuperados... cá está outra arqueologia que tem que ver com as

colecções! Porque é que nós fazemos fotografia?! Nós fazemos fotografia para

COLECCIONAR A VIDA! O Sr. Professor (C.A.) então agora é um fotógrafo

compulsivo!

(...)

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9ª Entrevista – 04/08/2006

B.: Eu tenho aqui uma série de pontas que estão soltas, relativamente à primeira

parte do trabalho...

L.H.: Então faz favor!

B.: Eu gostava de ir recordando assim por tópicos.... para começar, fez referencia

aqui numa conversa anterior ao seu exame de final da quarta classe que eu sei que

teve que ir fazer a outro sítio que não a escola onde estava... e quem assistiu foi a

sua tia Elvira... foi assim, ou estou a fazer confusão? Recorda-se desse episódio?

L.H.: Lembro-me perfeitamente... eu andei numa escola ali na rua dos Douradores,

que ficava junto à igreja de São Nicolau que se chamava Junção do Bem! Tinha que

subir aqueles quatro... era num 4º andar! As janelas deixavam entrar uma luz

agradável e não tinha aquele sentido de uma aula fechada... era simpático! Tenho

essa boa memória! Já lhe fiz o elogio da minha professora D. Cândida... uma

pessoa realmente notável, que me alertou para uma série de.... ela tinha um sentido

pedagógico muito particular.... contei-lhe também que nos tinha trazido a nós aqui à

cordoaria... e isso foi para mim muito importante... eu nessa altura devia ter os meus

oito anos... e para mim foi importante porque foi uma viagem de eléctrico que nós

fizemos até aqui à cordoaria... estavam a trabalhar a fazer as cordas e esse

espectáculo de um oficio, percebes? Ela como era uma mulher realmente criativa,

chamou-nos à atenção da importância das cordas, nas navegações, nas

descobertas, na história que tínhamos estado a estudar... os descobrimentos. O D.

Manuel, o Bartolomeu Dias.... toda aquela época realmente das descobertas... e

depois teve a inteligência, nós viemos de manhã para aqui, todos trouxemos um

lanchezinho... e depois fomos aqui ao Jerónimos! Isso foi muito engraçado, essa

relação entre a fabricação das cordas e a presença das cordas como elemento

característico do estilo manuelino! Que aparecem não só ali, como também na torre

de Belém...

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B: Falou que o Armando Lucena foi seu professor de história da arte...

L.H.: Na Sociedade Nacional de Belas Artes!

B: Mas naquela altura em que frequentava aqueles cursos nocturnos?

L.H.: Exactamente! Eu até disse que o Armando Lucena lembrava um pouco o

Delacroix! A forma de vestir, a barba... e era um homem extremamente sensível e

que já naquela altura fazia umas projecções... uma máquina onde se punham umas

imagens e que depois projectava...

B: É que por pura coincidência eu tenho, a minha avó tem em casa um pequeno

quadro, um original do Armando Lucena... porque ele era primo do marido da irmã

da minha avó! Acabou por ficar em casa da minha avó um quadro que ele dedicou

ao primo... Esse meu tio chamava-se José Lucena...até tem dedicatória...

L.H.: Não me diga! Que engraçado... é uma paisagem? Um jardim...

B: É uma paisagem... era um sítio onde eles passavam férias...

L.H.: Ele fazia muito!! Ele chegou a ter, o Armando Lucena, um ateliê no Jardim da

Estrela!

B: Outra coisa importante... Quando o professor Agostinho da Silva lhe fez aquele

pedido para que fosse comprar aqueles 5 quilos de barro à Olaria do Desterro... eu

precisava que me descrevesse, se conseguir, as peças que fez...

L.H.: Ah… Quando cheguei a casa? Posso lhe dizer... eu fiz 3 figuras com um

palmo de altura a conversar. Duas figuras masculinas e uma figura feminina... que

estavam com a sua aparência de verticalidade... estavam de pé a conversar!

Portanto, é um registo um pouco urbano! Depois fiz uma figura reclinada... essa

uma figura nua, uma figura de mulher. E fiz uma pequena cabeça!

B: Mas isso foi verdadeiramente o seu primeiro contacto com as três dimensões...?

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L.H.: Contacto com a tridimensionalidade!

B: Consegue recordar essa sensação da primeira vez que modelou?

L.H.: Sim ,sim... lembro-me! Foi uma experiência que me deu realmente muito

prazer. Mexer aquela matéria plástica, o barro, e conseguir criar realmente essa

relação dos volumes com os espaços com uma determinada intencionalidade que

manifestava já que as formas, nomeadamente a escultura, podiam construir uma

relação que exprimia uma determinada... um determinado estado de espírito... quer

dizer, o... aquelas 3 figuras conversavam, havia ali uma aproximação. A outra era

uma figura reclinada que descansava um pouco contemplativa... a cabeça, era uma

cabeça imaginada, um retrato! Um retrato imaginário do escritor... também tinha um

palmo!

B: Foi logo a partir daí que o Prof. Agostinho da Silva foi lá a sua casa falar com os

seus pais...

L.H.: Exactamente... foi lá a minha casa ver!

B: Agora vou dar aqui mais um salto no tempo e vou entrar aqui numa fase da sua

vida, bastante mais avançada, em que eu queria verificar se acha correcto ou

incorrecto usar aqui uma informação que me passou, mas que poderá não ser

politicamente correcta... mas que eu gostava de saber...

L.H.: Diga Sôtor...

B: Há uma altura em que faz referência, durante o seu primeiro ano ainda em

Lisboa, que havia dois factores que não lhe “agradavam”... a disciplina de desenho

leccionada pelo escultor Leopoldo de Almeida...

L.H.: Não, não... vamos lá ver uma coisa... o Professor Escultor Leopoldo de

Almeida era um professor extremamente interessado... e ele procurava orientar os

alunos no sentido da percepção e do registo da escultura clássica. Portanto, os

referentes do desenho era a escultura greco-latina simplesmente! Durante um ano

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só se desenhava esse documentário da escultura greco-latina... primeiro aquelas

cabeças, o Vitélio... certos imperadores romanos, depois a célebre Vénus de Milo,

um torso de Policleto.... portanto é isso, é a escultura greco-romana! Naquele papel

ingre a carvão... com uma modelação que exprimisse a estrutura anatómica desses

modelos... em gesso.

B: Mas coisas que não se passavam no Porto, portanto?

L.H.: Pois não... no Porto já havia outra abertura e outra liberdade! Embora se

chamasse desenho de estátua, percebe? Mas eu fiz o desenho de estátua em

Lisboa... eu não o fiz no Porto. Eu no Porto fiz já o desenho de modelo com o

Professor Pintor Dórdio Gomes, que era realmente um homem digamos da

modernidade, que tinha estado na escola de Paris... contrariamente o Leopoldo era

um homem clássico, de uma formação clássica, mas era um homem que dominava

perfeitamente a anatomia, dominava perfeitamente a estrutura digamos do corpo

humano, isso indiscutivelmente... vamos ver, eu não estou aqui a menosprezar o

Leopoldo de Almeida! Simplesmente eu, pela minha formação e porque já tinha

visto, digamos de livros de arte, compreende? Achava limitativo uma pessoa passar

um ano inteiro só a desenhar escultura clássica... fiz-me entender?? Ele comigo foi

sempre muito atencioso e classificou-me bem e tinha por mim muita simpatia e

admiração...

B: Eu agora sugeria, se não se importasse, ler-lhe aqui este parágrafo para ver se

concorda, mas antes queria perguntar só mais uma coisa...

L.H.: Muito bem! E eu vou ouvir atentamente! Diga..

B: Fala aqui no Mestre Piloto... ele foi seu professor de… ?

L.H.: Ah, muito bem! Isso era outra coisa... O Piloto era um arquitecto, mas que

dava também aulas de modelação! E portanto, nós fazíamos o desenho, sobretudo

de elementos arquitectónicos e escultóricos! Mas aí já não era propriamente a

escultura ou a arquitectura clássica... não! Era já a arquitectura gótica ou

renascentista! Percebe? Fragmentos do... também gessos, mas sobretudo do

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Manuelino, aqui dos Jerónimos. Não vínhamos aqui ao local desenhar,

contrariamente aquilo que eu depois fiz quando fui professor, que levava os alunos

ao local... e aqui ao Museu de Arqueologia, todas essas coisas, portanto eu procurei

que os alunos tivessem um contacto com uma realidade que não fosse apenas...

que não fosse uma reprodução em gesso! O gesso é um material frio... quer dizer,

repare quer ver a Vénus de Milo que está em Paris ou ver o modelo em gesso, é

uma diferença enorme! Como inclusivamente a estátua do imperador Augusto!

Portanto, a diferença... os materiais têm em si um poder expressivo que a

reprodução em gesso diminui francamente!

B: Eu ia então ler aqui esta parte... (leitura do parágrafo)

L.H.: É verdade! Isso está bem, a verdade não é elegante, nem deselegante, é a

verdade... mas continue. Mas inclusivamente não sou eu que estou a dizer isso!

Ouviu realmente eu a falar nisso, mas...

B: Não, não... eu sei até porque o meu avô foi aluno dele e eu sei que era assim,

que era uma pedra no sapato de muita gente!

L.H.: Pois... o Cunha Bruto era realmente... aquela disciplina de desenho

arquitectónico, apesar de tudo deu-nos uma certa... também só se estudava

arquitectura clássica! Greco-Romana e parou! Isso é que é bom frisar! É que o

problema da Escola de Lisboa é que era uma escola fundamentalmente de

expressão académica e clássica! Isso é que é importante... e para a minha maneira

de ser, que através de ver exposições, através de ler livros, tinha já outra ansiedade

e outra inquietação... isto para mim era limitativo! Agora reconheço que as tais aulas

do desenho arquitectónico que eram terríveis, porque eram extremamente... não

havia qualquer tipo de liberdade! Aquilo era... não havia propriamente criatividade,

era um puro exercício técnico da descoberta das ordens arquitectónicas...

compreendeu? E realmente dentro disso a aula funcionava porque nós saíamos dali

com conhecimento seguro do que foi a ordem Dórica, a ordem Jónica, a ordem

Coríntia e a ordem Compósita! Isso indiscutivelmente, através de umas estampas...

porque as coisas eram feitas através de umas estampas que ainda na escola

existem... que mostravam as ordens greco-romanas.... que no fundo se limitaram...

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os romanos limitaram-se a... vá lá eu generosamente digo a “interpretar” as ordens

gregas! Acrescentaram-lhes umas pequenas coisas...

Mas continue a ler...

B: Só ler mais um bocadinho... (leitura)

L.H.: O Barata Feyo eu conheço das exposições do secretariado... que eram

exposições notáveis! Onde não só expunham artistas que estavam ligados ao

regime, como também artistas de oposição! Como o Abel Manta, como Júlio

Pomar... e muitos outros! Ali expunham... agora, houve artistas, como é o meu caso,

que por razões de convicção e familiares, eu nunca expus no SNI! Razão pq... eu

teria tido a oportunidade de apanhar uma série de prémios que eu nunca tive! Tive

uma vez um prémio, porque era um prémio que o Secretariado entregava à

Sociedade Nacional de Belas Artes, nas várias modalidades... na pintura, na

escultura e tal... Portanto é daí que eu conheço o Barata Feyo... onde vi lá peças

dele realmente notáveis! Porque era um grande escultor! E muitos outros... o Júlio

de Sousa, que hoje tá esquecido! Sabe que isto do tempo... mesmo o próprio Barata

Feyo... se falar agora com as alunos da Faculdade de Belas Artes... eles já não

sabem quem é o Barata Feyo! Não existe... Estão lá as esculturas que fez, notáveis,

por todo o país e não só... e elas existem! Mas não há um livro sobre o Barata Feyo!

É estranho não é? Porque os próprios filhos... ele que deixou um material fotográfico

da sua obra completo! Ele fazia uma estátua e vinha o Mário de Novais e

fotografava... eu uma vez tentei ainda que isso se viesse a fazer, mas repare, as

coisas tinham mudado... e os filhos é que tinham tido a obrigação de fazer isso! Ele

teve 3 filhos! Um que é professor na Faculdade de Belas Artes do Porto! Professor

de escultura... outro que é médico e outro que é arquitecto... mas lá se fez um

museu nas Caldas da Rainha! Que foi projectado pelo filho arquitecto, pelo António

Barata Feyo. É até um museu interessante... e que dá um panorama da obra

notável do Barata Feyo ao nível da escultura e do desenho! Porque o Barata Feyo

era um desenhador espantoso!

B: Eu gostava agora que recordasse um bocadinho a fase em que foi professor no

ensino secundário...

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L.H.: Ora bem, isso passa-se já quando eu estava a acabar o meu curso! Eu fui um

estudante trabalhador avant la lettre, o termo é um termo francês, naquela altura

ainda não se chamava estudante trabalhador! Eu estava a acabar o final mesmo do

meu curso de escultura e por razões económicas, eu resolvi concorrer... e até pq eu

gostava muito de ensinar! E concorri para uma escola do Porto, mas não tive,

digamos, a classificação possivelmente suficiente... e então fui ter à Póvoa do

Varzim... e ainda bem que fui ter à Póvoa do Varzim! Foi um ano notável para mim!

Pela descoberta daquela vila piscatória, o contacto com aqueles miúdos de 10/11

anos com uma intuição espantosa e sem o estigma da cidade! Da grande cidade ou

até da cidade média...Havia ali uma grande presença da natureza, naquele caso do

mar! E relações humanas puras!

B: Recorda-se que disciplinas é que foi ensinar?

L.H.: Fui professor de desenho! Tinha várias classificações... era o desenho

objectivo matemático que era o desenho geométrico. Era um desenho de

observação e depois havia o desenho imaginativo. Eu quando tomei conta dessa

cadeira, também lhe dei uma expressão muito pessoal... e quando lá foram os dois

inspectores escolares... que era um escultor e um pintor. Ficaram muito satisfeitos

com o meu trabalho e entusiasmados! Porque eu tinha acrescentado alguma coisa

para além daqueles programas que eram tradicionais no Ciclo Preparatório!

Professor de desenho do Ciclo Preparatório na Escola Comercial e Industrial da

Póvoa do Varzim!

B: Mas depois mudou para o Porto...?

L.H.: Pois... isto foi durante um ano. Depois concorri para o Porto e fiquei na Escola

de artes decorativas Soares dos Reis!

B: Mas isso já ensino secundário, não é? Portanto, alunos mais velhos...

L.H.: Exactamente! E aqui fui professor de desenho, mas não só dos alunos de dia,

como dos alunos da noite! O que também para mim foi muito importante! Esse

contacto com duas situações etárias completamente diferentes! Essa mudança de

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ambiente, de geografia de população, de espaço! Foi muito importante na minha

formação! Não se esqueça que eu nunca tinha ido ao Porto... e o Porto é uma

cidade extraordinariamente expressiva! Com uma arquitectura extremamente

personalizada! Depois aquele rio... o Douro é muito diferente do Tejo! Depois o

próprio clima... estamos entendidos? Depois aquele alcantilado da cidade... e os

jardins... tudo isso é notável! Porque o clima é outro, a exuberância, digamos... eu

até tive aquela frase uma vez: Lisboa é uma aguarela, o Porto é uma água forte!

Portanto, o granito da cidade, as construções, a estrutura! E depois o clima... no

Porto não há esta claridade... não há esta luz que Lisboa tem! Há umas brumas que

são de uma grande beleza também... Depois aquelas pontes! A Ponte D. Luís e a

Ponte D. Maria...

(Pausa)

Apanhei ali em cima este diário do Delacroix ... esta fotografia é boa porque o

Armando Lucena imitava um pouco este estilo da barba e do bigode do Delacroix!

Era uma imagem... não é? Aqui como muitas vezes em determinadas gerações os

artistas integram-se um pouco num determinado modelo! Tem aquela célebre frase,

citada pelo Almada Negreiros: O moderno é tudo o que há de mais antigo! E

encontra-se muito esse espírito, a arte moderna está enraizada na arte primitiva, na

arte popular e na arte infantil! Segundo a minha leitura...

B: Passada esta fase do Porto e destes dois anos a ensinar... entramos no período

de bolsa...

L.H.: Entramos no período em que eu faço um concurso para uma bolsa do Instituto

de Alta Cultura!

B: Nas conversas anteriores que tivemos, focámos muito... os episódios que relatou

eram todos muito só sobre acontecimentos em Itália! E como esteve numa série de

países... gostava de ter um pouco mais...

L.H.: Então temos que complementar... então vai ouvir...

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A minha permanência em Itália foi extremamente importante porque a própria Itália

era formada por cidades estados! Portanto a unificação italiana só se faz no século

XIX... portanto eram cidades todas elas rivais! O que fazia com que houvesse uma

competição estética importantíssima! Portanto, isso deu-me um documentário e um

espectáculo de diferença extremamente importante ao nível da arquitectura, da

escultura, da pintura, da organização da cidade! Mas depois de eu ter feito toda a

Itália... eu faço Paris-Roma de comboio, tive no museu das termas (estação términe)

e depois pronto é a aventura, a matricula na Scuolla del marmore... até lhe contei

que aqui em Lisboa e até no Porto fazia-se um curso inteiro apenas a trabalhar no

barro como material intermédio, para depois se passar a gesso e depois do gesso

passava-se a bronze ou a pedra! O que é sob o ponto de vista da formação e da

aprendizagem... extremamente limitativo!

Então cheguei à conclusão, quando eu estava já no sul de Itália, Nápoles depois

Sicília... que era fundamental eu ir até à Grécia! Como era fundamental depois da

Grécia ir ao Egipto! E quando eu estava na Grécia... lembrei-me de um daqueles

caderninhos do Agostinho da Silva, da Antologia... que diz Heródoto (que é

conhecido como o pai da história) – Viagem ao Egipto! É o primeiro grande jornalista

da história da comunicação. Ele desloca-se ao Egipto para conhecer o Egipto e a

partir desse contacto directo com o real, não através de livros, não através de

segundas e terceiras informações... o gajo vai ver ao vivo! E portanto, eu resolvi ir

ao Egipto! Portanto, para mim foi fundamental ter ido à Grécia e ter ido ao Egipto... e

na Grécia eu visitei as cidades mais importantes! Estive em Olímpia, estive em

Atenas, fiz uma série de ilhas gregas... portanto conheço a arquitectura, conheço a

escultura, integrada na paisagem grega! E até que ponto esse quadro natural vai

explicar a escultura, a arquitectura, a mitologia, a história... tudo! Esse entendimento

é-me dado por eu não me ter ficado... quer dizer fiz um concurso para uma bolsa em

Itália e ficava ali em Itália a curtir! Não! Eu achei q tinha que ir a outros locais para

entender o fenómeno da criatividade, dos secretos mecanismos da criatividade e a

relação que há entre o espaço personalizado de cada país, de cada civilização e a

sua produção artística!

B: Tem a noção de que idade teria nessa altura?

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L.H.: Devia ter aí os meus 23 anos... por aí! Talvez até se for ao instituto Camões,

talvez eles tenham lá um arquivo (se não queimaram tudo!)...

E depois quando voltei a Itália vindo do Egipto eu ainda fui à Holanda, à Bélgica, à

Inglaterra.. o que fez com que a um certo momento, quando se fez a célebre

reforma…quando a Escola de Belas Artes, passou a ser Escola Superior de Belas

Artes! E essa reforma é feita sobretudo pelos professores do Porto! E depois houve

um acordo também com os professores de Lisboa... com certeza que sim! E mais

uma vez eu lhe sublinho a viagem que fez o Professor Arquitecto Carlos Ramos,

director da Escola de Belas Artes do Porto, para contactar com o bolseiro Lagoa

Henriques, por sugestão do Prof. Barata Feyo, que lhe disse:

Era bom falar com ele, que tem estado praticamente em todas as escolas de Belas

Artes de Itália!

E ele foi a Roma! Eu servi-lhe de cicerone! É importantíssimo, as tecnologias...

começou-se a trabalhar a pedra! Começou-se a trabalhar a madeira! Não falando

depois da minha revolução pedagógica do ensino do Desenho e da Escultura! Que

deixaram de ser aquelas coisas tradicionais e académicas em que se fazia sempre

a mesma coisa! Portanto, há uma abertura dos referentes do desenho e da

escultura e há realmente uma descoberta do exterior...

B: Um grande salto no tempo agora... queria que me recordasse o tema da sua

última lição...

L.H.: Chamou-se... depois do meu incêndio, eu fiz uma grande exposição na

Sociedade Nacional de Belas Artes onde realizei uma conferência que teve uma

grande ressonância, na atmosfera cultural do tempo! Onde estiveram presentes

todos os críticos de arte... lembro-me também do Rui Mário Gonçalves ter lá estado

também... toda aquela malta lá esteve! E essa conferência chamava-se O Risco

Inadiável! Era sobre o desenho. Ora esse título vai aparecer depois na minha

primeira série de programas de televisão do Ver Com Olhos de Ver, Os Grandes

Mestres do Desenho, o Risco Inadiável! E a minha última lição chamava-se O

Círculo Inadiável!

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Texto da lição:

“Fundamentalmente apenas oferecer-vos uma mão cheia de imagens, pontos de

reflexão, da leitura do universo das formas. Raízes de entendimento do panorama

criativo ao nível dos significantes, sinais, símbolos e dos significados,

temporalidade, intemporalidade. Dialéctica de metamorfose, a terra e o mar. O

percurso, a viagem, o equipamento, a comunicação, o erudito e o popular, o

património, a defesa e a conservação, o restauro, a arqueologia, os objectos

memórias, os materiais, a natureza, a água, a terra, o ar e o fogo. Lembramos

Parménides, a evocação dos materiais, a transformação, o aproveitamento, a

construção, a estrutura intencional, a geometria, a perspectiva, a distância, o curso

e o percurso, o movimento, depois o repouso, a reflexão, a variedade na unidade, o

género próximo e a diferença especifica, valores de superfície, texturas, o número e

a letra, o sinal, a luz e a sombra, o desenho e a cor, o ponto e o contraponto... quem

conta um conto acrescenta um ponto! O círculo, a lua, o sol, a secção, o ponto, a

linha, o plano, Kandinsky e Platão, moinhos de marés, água mole em pedra dura,

água de serra e sombra de pedra, palavra e pedra solta não voltam. Pedra

acompanhada, disposta, composta, a histerotomia da estrutura, a mitologia, o

reaparecimento de um vocabulário formal vencendo séculos de hibernação, o sono

e o sonho, duas formas não podem ocupar simultaneamente o mesmo espaço.

Planeamento, construção, arquitectura, a teimosia da permanência num espaço em

mutação, uma singularidade que assusta os poderosos, a força do desenho, o

grafismo violento do entendimento adolescente, depois... para além de tudo,

contudo, em tudo, a floração inadiável, mágica da forma e da côr, o milagre sempre

renovado do renascimento, a interrogação, a metafísica de São Jerónimo, o

espanto! De onde viemos? Onde estamos? Para onde vamos? Qual o sentido da

existência?

Aqui lhes deixo uma última palavra: início de uma fascinante aprendizagem cuja

intenção maior é sem dúvida a capacidade, a disponibilidade para olhar o mundo

que nos envolve, saber ouvir, caminhar para a percepção total, não esquecer os 5

sentidos de Garrett, ser capaz do equilibrar o sentido trágico da vida, segundo as

palavras do Unamuno, com o deslumbramento, a interrogação permanente...”

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Claro que isto tudo foi acompanhado de uma argumentação visual muito forte!

Conforme ia falando iam disparando os diapositivos! Aquilo constituiu um

diaporama. Tenho isso tudo guardado... E teve um impacto! Aquilo foi aquela

grande sala da escola cheia, várias salas com televisões...

B: E as personalidades?

L.H.: Sim, o Presidente da República, o Ministro da Cultura... reitores de

universidades, mas realmente o meu ensino e a minha complementaridade

cultural... Os Grandes Mestres do desenho às sextas-feiras, em que eu relacionava

o desenho com a música...

B: Queria que me explicasse melhor a ideia e o conceito da criação dos seus diários

gráficos...

L.H.: Os meus Diários Gráficos nascem fundamentalmente das minhas viagens... eu

chegava a uma cidade e desenhava aquilo que via! Tenho alguns cadernos que

conservei, outros arderam no meu incêndio (infelizmente)...

B: Mas depois implementou isso aos alunos... não foi?

L.H.: Implementei isso aos alunos e criei realmente o Diário Gráfico que foi

importantíssimo, não só no desenho, como na comunicação visual... mas é preciso

não esquecer que os diário gráficos... já uma vez lhe mostrei este volume de nosso

querido Le Corbusier... eu faço um pouco o que ele fez! Porque tal como dizia o

nosso António Aleixo:

E assim lição por lição,

Que pouco a pouco aprendemos doutros.

A outros daremos

Que a muitos outros darão!

O Corbusier para mim foi um grande mestre! Nunca falei com ele directamente, não

tive esse privilégio, mas sempre tive a maior adoração por ele! Tanto que quando eu

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fiz aqueles programas sobre os mestres do desenho... o primeiro programa era

sobre o Le Corbusier!

Eu reconheço que... porque o nosso querido Corbousier, o rapaz até nem... ele

começou a frequentar as escolas de belas artes de Paris, depois achou que aquilo

não tinha interesse nenhum e pôs uma mochila às costas e andou a dar a volta ao

mundo e aqui temos o resultado dessa volta ao mundo! Se não o gajo tinha

aprendido a história de arte nos volumes da história de arte, visto umas fotografias e

pronto acabou! Ora ele foi aos locais!

B: Gostava que recordasse uma frase que cita muita vez do Jardineiro do Museu

Nacional de Arte Antiga (MNAA)...

L.H.: Isso é como lhe digo... a minha formação veio... eu aprendi imenso quando fiz

aqueles meus programas Portugal Passado e Presente em contacto com o povo

(isto não é demagogia), com os trabalhadores... com as pessoas que não estão

simplesmente sentadas num escritório a fazer, a trabalhar... não! É um contacto

com o real, é a vida que cresce que corre como um rio, é a natureza que

generosamente nos dá tudo! Sem nos pedir nada praticamente... está a ver o que é

uma laranjeira ou uma pereira... eh, pá, isto é verdade, não é poesia... isto é

verdade! E os peixes, e as carnes, os animais?

Num curso de conservação e restauro, eu dava o desenho desse curso, que era

dado no Palácio de Pombal, ali junto ao MNAA e eu dentro da minha pedagogia

renovada saía da aula tradicional e levava os meus alunos aos museus! E ali no

MNAA, que era mesmo ao lado, eu ia lá não só para ver o mobiliário, a joalharia, a

pintura, a escultura e tudo mais... como os levava ao jardim! Onde havia umas

estátuas neoclássicas que figuravam certos deuses da mitologia grega e não só... o

jardim era magnifico, tinha árvores espantosas, é debruçado sobre o Tejo... e uma

das vezes iniciou-se um novo ano lectivo, eram poucos alunos, e eu fui com eles

mostrar-lhes o jardim e eu disse-lhes:

- É que isto que os senhores agora vão ver, é tão importante... eu arrisco, ou talvez

mais importante do que a própria obra, a chamada obra de arte! Vejam estas

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árvores que aqui se encontram... e então quando eu estava nestas cenas, aparece

o jardineiro do MNAA, vem ter comigo:

- Oh Sr. Professor! Então como está, mais um ano...

- Olhe cá estou, tenho o privilégio de acompanhar mais uma nova geração!

E ele, terceira classe, tinha sido pastor no Alentejo e poeta popular, vira-se para os

alunos e diz:

- Aproveitem bem aqui o Prof. Lagoa Henriques, é um grande amigo... muitas vezes

me pede opiniões, pede para eu lhe contar episódios da minha vida... e já agora já

repararam naquela árvore?

E ele disse:

- Afastem-se!

Terceira classe! Nem mestrados, nem universidades, nem doutoramentos... a noção

de que é preciso a distância, para se ter uma noção de conjunto e para se

surpreender a escala! E a integração inclusivamente na paisagem!

E vira-se para os alunos e diz assim:

- Os senhores não se esqueçam que a natureza é mais forte que a arte do homem!

Arrumou! Eu fiquei espantado... fez-se um silêncio. Eu mantive aquele silêncio e

depois disse:

- Meus caríssimos amigos escrevam imediatamente a frase aqui do Sr. José

Rogado! Do Mestre José Rogado! Jardineiro do Museu de Arte Antiga, poeta

popular! Mas que fez aqui uma síntese de natureza estética fantástica, notável,

filosófica: a natureza é mais forte que a arte do homem!

Passam-se 2 anos ou 3, já não me lembro... eu vou a um congresso aos E.U.A. e na

Universidade de Boston faço uma longa intervenção sobre o ensino e a um certo

momento chamo a atenção que o mais importante é surpreender a realidade natural

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e a realidade intencional construída pelo homem. Que é o panorama do património,

da arquitectura, da pintura, da escultura, dos jardins, tudo isso... e vou-lhes agora

dizer uma frase que é fundamental. É preciso que não só nos vários graus de

ensino se comece a entender a estrutura das formas naturais. É tão importante um

pinheiro como é importante um arbusto de alfazema ou de alecrim, é tão importante

um limoeiro como é importante um eucalipto... bem, isto dentro do universo

botânico. Porque depois a natureza do mundo mineral, a natureza do mundo

animal... estão a ver a variedade, o espectáculo, a dádiva! Dizia o nosso caríssimo

Le Corbusier: que tudo é Biologia! E portanto acaba a minha intervenção... e vêm 3

ou 4 jovens professores catedráticos da Universidade de Boston ter comigo para eu

lhes dizer quem era o filósofo que tinha dito aquela frase: a natureza é mais forte

que a arte do homem! E eu tive o privilégio de dizer:

- Não... não é nenhum filósofo, não é nenhum esteta, não é nenhum professor... é

um simples jardineiro! Que felizmente ainda é vivo, do MNAA! Quando os senhores

forem a Portugal e a Lisboa, vão ver o museu de arte antiga, que é um museu

notável em qualquer parte do mundo, e procurem ir ao jardim, pode ser que o

descubram!

Bem, ficou tudo doido!

B: Bem... gostava que falássemos agora daquele período da televisão! Quando sai

do ensino e faz aqueles programas...

L.H.: Não... eu começo a fazer os meus primeiros programas de televisão era eu

professor da escola! Esteve aí sentado exactamente nessa cadeira, o cineasta que

me veio fazer o convite p eu fazer programas para televisão!

O primeiro programa que eu faço é: Ver com olhos de ver, o risco inadiável, os

grandes mestres do desenho. Em que eu sou digamos o inventor do programa e o

realizador é o Eduardo Geada! Ficámos amicíssimos, fizemos uma aventura

espantosa e eu aprendi imenso! Com recursos económicos mínimos... as coisas

foram todas feitas... as que eram de artistas não portugueses, através de livros!

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274

Depois fui solicitado por uma outra “empresa” que era a Cinequipa, com os irmãos

Matos Silva, que me convidaram para eu fazer uma série de programas... a primeira

série era: Pare, escute e olhe! Era a relação entre a poesia e as artes visuais, as

artes plásticas... Dentro desse Pare, escute e olhe também fiz um desvio para, em

homenagem ao nosso querido Fernando António Nogueira Pessoa, Lisboa

Revisitada! Fiz a Graça, fiz Santo Amaro... dentro do mesmo programa! Para a

pessoa aprender a realidade, para a entender... necessita de utilizar os 5 sentidos!

E lá está o Garrett a sei citado como sempre... não é só os livros! Eu tenho tantos

livros, já é a minha segunda biblioteca, e foram muito úteis e alguns ainda nunca os

li! Mas tenho oportunidade agora neste final de vida de consultá-los... Mas, nada

substitui o contacto directo com as realidades! Isso que fique bem claro!

B: Nesse segundo projecto televisivo... continuou a dar aulas?

L.H.: Continuei a dar aulas! E ainda a minha terceira intervenção na televisão foi

com aqueles programas de Portugal Passado Presente! Que já eram com o

realizador e produtor Francisco Manso! E aí fiz, ainda na escola, fiz o Algarve, Baixo

Alentejo, Alto Alentejo e as ilhas encantadas: os Açores e a Madeira! E quando ia

saltar para as Beiras... cortaram-me a continuidade dos meus programas e eu tive

um desgosto enorme! E o que é que eu fiz?! É que eu tão burro... que a um certo

momento, o Ministério da Educação deu oportunidade aos professores do ensino

superior para se poderem reformar antes dos 70 anos! E eu para me entregar em

full-time àqueles programas que me pareciam importantíssimos na formação geral

das pessoas, através da televisão... eu saí da escola antes dos 70 anos e antes da

escola entrar para a universidade... Portanto, o meu sonho, o meu espírito de dádiva

e o meu fascínio e deslumbramento por um trabalho que eu achava fundamental,

porque o que eu aprendi com aqueles programas não há palavras... eu às vezes

estava a ver determinadas coisas no Alentejo ou no Algarve ou na Ilha do Pico,

bem... tive um consultor histórico notável que foi o professor Miguel Faria! Era um

espírito de equipe! Íamos aos locais!

B: Também parece lógico que precisasse de muita disponibilidade para poder fazer

isso...

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275

L.H.: E eu ainda fiz isso como professor da escola! Mas para me entregar de uma

forma mais profunda à continuidade dos meus programas, que não cheguei a

fazer... o que para mim foi um golpe terrível, como deve imaginar! Eu tenho na

minha vida feridas terríveis! De trabalhos que fiz que deixaram de existir, foram

retirados dos locais em que tinham sido postos... como aquele grupo do Banco

Fonseca & Burnay no Porto, como o meu monumento à Amélia Rey Colaço do

Teatro Nacional... quer dizer, eu tenho tido traições inacreditáveis! É preciso

aguentar muito!

B: Mas é importante saber que isso aconteceu porque faz parte da sua vida e como

tal deve ser relatado...

L.H.: Constitui matéria! Mas eu continuo a ser um deslumbrado! Precisamente com

a dádiva do fluir biológico da existência! Agora tenho, e é muito triste eu dizer isso...

tirando honrosas excepções, dentro do universo vivo da vida, realmente os seres

menos qualificados são... é o ser humano! Porque repare, os animais têm uma

ternura... é tudo espontâneo! Ainda têm natureza! Nós somos máquinas de produzir

dinheiro! Tenho pena de dizer isto, mas é assim mesmo! Repare que inclusivamente

a metamorfose da criatividade ganhou um sentido de lucro e de negócio que é

terrível! Eu já disse e mantenho aquilo que estou a dizer, já se sabe que eu pago

caro estas minhas opiniões! Mas é assim mesmo... Ou o senhor está convencido

que o Delacroix, ou que o Picasso, faziam as suas obras de pintura para as vender?

Também as vendiam... mas a arte não é negócio, é ócio! E depois com certeza que

o artista tem que viver, mas olhe que viveram com muita dificuldade! Olhe o Van

Gogh! Que deu um tiro na cabeça... que vivei realmente em circunstâncias terríveis!

O Zé Escada! Esse não deu um tiro na cabeça, morreu de outra forma, mas também

por necessidades terríveis! E hoje, as grandes galerias... vivem à custa destas

situações todas! Morreu o Escada, passado aí 20 dias os preços subiram aí

loucamente... Portanto, eu estou a falar nisto porque tenho que falar! Não posso

deixar de falar!

Eu um dia fiz uma proposta, ingénua, romântica, para que se propusesse às

sociedades de autores que uma percentagem mínima do preço dessas vendas e

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revendas desse negócio das artes, fosse dirigido para um fundo de auxílio a jovens

artistas! Como deve imaginar meu querido amigo...

B: Caiu-lhe tudo em cima... por assim dizer?

L.H.: Não... nem isso! Nunca se avançou em nada!

Portanto, eu sou um sonhador, ainda bem que sou um sonhador! Eu sou um poeta,

ainda bem que sou um poeta! Mas sofro muito com isso... Mas vamos lá ver... há

muitas pessoas hoje qualificadas, que desempenham funções de uma forma

honrada e honesta! Mas há muitas outras em que isso não acontece também por

falta de formação! Porque têm o tal ensino livresco, fundamentalmente o ensino

livresco, que é extremamente redutor!

Como dizia o nosso Camões, no canto décimo, da ilha dos amores, relativamente

ao amor propriamente dito:

Vale mais experimentá-lo que julgá-lo!

Mas julgue-o, quem não pode experimentá-lo!

Portanto, a experiência é a base do entendimento! É a base, digamos, da

construção, é a base da criatividade! É a base da harmonia possível e do concerto

do mundo! E eu estou a empregar esta palavra que vem de uma linguagem que tem

também uma raiz poética, que é a música. Portanto, chama-se um concerto... um

concerto pode ser provocado ou construído por uma orquestra, mas pode ser um

concerto para piano e orquestra, ou pode ser só um concerto p piano! O concerto é

a harmonia, é o equilíbrio! É o entendimento que a vida é qq coisa de efémero! Que

não há o direito de estar permanentemente a construir guerras e agressões,

intrigas... as pessoas só estão bem a dizer mal umas das outras! A arranjar coisas

para...

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Erros meus, má fortuna, amor ardente,

Em minha condição se conjuraram.

Que os erros e a fortuna sobejaram,

Que pra mim bastava o amor, somente!

Mas o próprio amor é traiçoeiro... repare quando ele diz:

Amor é fogo que arde sem se ver

É ferida que dói e não se sente

É um contentamento descontente

É um cuidar que se ganha em se perder

É um estar preso por vontade

É ter com quem nos mate a lealdade

(...)

Mas sendo assim tão contrário? Como é que ele consegue conquistar nos corações

humanos amizade?

B: Quando há esse projecto que depois não segue na televisão... volta a ser

professor? Não é?

L.H.: Aí é que o problema se complica muito! Eu devia ter sido professor convidado

nessa altura... nunca cheguei a ser! Estou agora a ser naquele mestrado do Prof.

Carlos Amado.

B: Mas então em termos de percurso... volta ao ensino?

L.H.: Volto! Mas eu gosto imenso de ensinar!

B: Mas que período é q temos aqui entre uma coisa e outra?

L.H.: Eu saio da escola... e logo a seguir convidam-me aqui para a Universidade

Moderna... com o Arquitecto Troufa Real... sou convidado e estou aqui na Moderna

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278

durante 2 anos! E depois sou convidado para a Universidade Autónoma... portanto

eu continuo sempre a ensinar!

Quando a Escola Superior de Belas Artes passou para a Universidade e entrou na

Universidade Clássica o dever dos meus colegas que estavam lá e passaram a

catedráticos, era terem chamado o seu colega Lagoa Henriques e integrá-lo na

Universidade, na Faculdade como prof. catedrático! Mandam-me os convites da

Escola e até da reitoria... Prof. Catedrático António Augusto Lagoa Henriques... mas

é uma nomenclatura! Eu nunca tive um doutoramento Honóris Causa que muitos

dos meus colegas tiveram...e ainda bem que sim, como por exemplo o Daciano

Costa... e muitos outros! Nada disso me foi feito! Ora bem, isso magoou-me muito

como deve imaginar... e eu lá tenho feito aquelas aulas de mestrado,

modestamente, julgo com alguma utilidade...

B: Fundamental, se não… não estava aqui! Não é?

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Anexo III

Artigos de Imprensa

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Notícias Magazine. Edição nº 440 de 29/10/00. Porto

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Diário de Lisboa. Edição de 14/09/1972. Lisboa

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Anexo IV

Listagem das Casas-Museu em Portugal

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Resultado da pesquisa por “Casa-Museu” na Base de Dados RPM111 Quadro 1 - 79 Registos para “Casa-Museu”

Museu Tutela Concelho Tipo Estrutura

Casa Tradicional / Casa-Museu de Maria

dos Anjos Rebelo Centro Social e Paroquial da

Ribeira Chã LAGOA Por definir Núcleo

Casa-Museu Abel Salazar

Associação Divulgadora da Casa-Museu Abel Salazar

MATOSINHOS Arte Museu

Casa-Museu Afonso Lopes Vieira

Câmara Municipal da Marinha Grande

MARINHA GRANDE História Museu

Casa-Museu António Pinto Peixoto

Comissão de Instalação do Casa-Museu José Pinto

PeixotoALMEIDA Por definir Museu

Casa-Museu Armando Cortês-Rodrigues

Instituto Cultural de Ponta Delgada

PONTA DELGADA História Núcleo

Casa-Museu Biblioteca da Fundação Aquilíno

Ribeiro Fundação Aquilíno Ribeiro MOIMENTA DA

BEIRA História Museu

Casa-Museu Bissaya Barreto Fundação Bissaya Barreto COIMBRA História Museu

Casa-Museu Camila Loureiro Sem Informação DESCONHECIDO Arte Museu

Casa-Museu Comendador Nunes

Corrêa Santa Casa da Misericórdia

de Pedrogão Grande PEDRÓGÃO

GRANDE Arte Museu

Casa-Museu Custódio Prato

Rancho Folclórico "Os Camponeses da Beira Ria"

MURTOSA Etnografia e Antropologia Museu

Casa-Museu D. Maria Emília Vasconcellos

Cabral Fundação D. Maria Emília

Vasconcelos Cabral OLIVEIRA DO

HOSPITAL Pluridisciplinares Museu

Casa-Museu da Cooperativa "Aliança

Artesanal" Câmara Municipal de Vila

Verde VILA VERDE Por definir Museu

Casa-Museu da Ordem Terceira de São

Francisco Ordem Terceira de São

Francisco de Assis de Ovar OVAR Arte Museu

Casa-Museu de Aljustrel Santuário de Fátima OURÉM Etnografia e

Antropologia Museu

Casa-Museu de Almeida Moreira

IMC - Instituto dos Museus e da Conservação

VISEU Arte Núcleo

Casa-Museu de Alpalhão Junta de Freguesia Alpalhão NISA Por definir Museu

Casa-Museu de Alvoco da Serra

Liga dos Amigos da Freguesia de Alvoco da Serra

SEIA Etnografia e Antropologia Museu

Casa-Museu de Carlos e João Reis Câmara Municipal da Lousã LOUSÃ Por definir Núcleo

Casa-Museu de Fernando de Castro

IMC - Instituto dos Museus e da Conservação

PORTO Por definir Núcleo

Casa-Museu de Ferro Junta de Freguesia Ferro COVILHÃ Pluridisciplinares Museu

Casa-Museu de Francisco Ernesto ANGRA DO Pluridisciplinares Colecção

111 Dados pedidos em Outubro de 2011 à RPM. Actualizados ao dia 09/06/2011.

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286

Museu Tutela Concelho Tipo Estrutura

Francisco Ernesto de Oliveira Martins

HEROÍSMO Particular

Casa-Museu de José Maria da Fonseca José Maria da Fonseca, SA SETÚBAL Especializados Museu

Casa-Museu de Monção Universidade do Minho MONÇÃO Por definir Museu

Casa-Museu de Monsenhor Ribeiro de

Almeida Indefinido 3 TAROUCA Por definir Museu

Casa-Museu de Pechão Junta de Freguesia Pechão OLHÃO Etnografia e Antropologia Museu

Casa-Museu de Penacova - Casa da

Freira Sociedade de Propaganda e

Progresso de Penacova PENACOVA Etnografia e Antropologia Museu

Casa-Museu de São Jorge da Beira

Junta de Freguesia São Jorge da Beira

COVILHÃ Por definir Museu

Casa-Museu do Carvalho

Liga de Melhoramentos de Carvalho

PAMPILHOSA DA SERRA

Etnografia e Antropologia Museu

Casa-Museu do Castelejo Junta de Freguesia Castelejo FUNDÃO Etnografia e

Antropologia Museu

Casa-Museu do Jarmelo

Junta de Freguesia São Pedro do Jarmelo

GUARDA Por definir Museu

Casa-Museu do Mineiro Câmara Municipal de Mértola MÉRTOLA Por definir Museu

Casa-Museu do Monte da Guerreira (Zezinho

de Beja) Particular 6 TAVIRA Por definir Museu

Casa-Museu do Paúl Casa do Povo do Paúl COVILHÃ Etnografia e Antropologia Museu

Casa-Museu do Pescador da Nazaré Manuel Limpinho Águeda NAZARÉ Etnografia e

Antropologia Museu

Casa-Museu do Rancho Folclórico do Juncal

Rancho Folclórico do Juncal do Campo

CASTELO BRANCOEtnografia e Antropologia Museu

Casa-Museu dos Bonecos de Emílio

Relvas Câmara Municipal de

Portalegre PORTALEGRE Por definir Museu

Casa-Museu dos Nichos

Câmara Municipal de Viana do Castelo

VIANA DO CASTELO

Arqueologia Museu

Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves

IMC - Instituto dos Museus e da Conservação

LISBOA Arte Museu

Casa-Museu Dr. Horácio Bento de

Gouveia Américo de Miranda Soares SÃO VICENTE Por definir Colecção

Particular

Casa-Museu Egas Moniz

Câmara Municipal de Estarreja

ESTARREJA História Museu

Casa-Museu Eng. António de Almeida

Fundação Eng. António de Almeida

PORTO Arte Museu

Casa-Museu Fernando Namora

Câmara Municipal de Condeixa-a-Nova

CONDEIXA-A-NOVA

História Museu

Casa-Museu Ferreira de Castro

Câmara Municipal de Oliveira de Azeméis

OLIVEIRA DE AZEMÉIS

História Museu

Casa-Museu Frederico de Freitas

Direcção Regional dos Assuntos Culturais da

MadeiraFUNCHAL Arte Museu

Casa-Museu Guerra Junqueiro Câmara Municipal do Porto PORTO Arte Museu

Casa-Museu João de Deus Câmara Municipal de Silves SILVES Especializados Museu

Casa-Museu João Fundação Mário Soares LEIRIA História Museu

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Museu Tutela Concelho Tipo Estrutura

Soares Casa-Museu João

Tomás Nunes Particular 5 ÁGUEDA Etnografia e Antropologia Museu

Casa-Museu Joaquim Ferreira

Grupo Cultural Recreativo e Desportivo de Belas

SINTRA Etnografia e Antropologia Museu

Casa-Museu José Antunes Pissarra Junta de Freguesia Arrifana GUARDA Especializados Museu

Casa-Museu José Pedro Sem Informação DESCONHECIDO História Museu

Casa-Museu José Régio

Câmara Municipal de Portalegre

PORTALEGRE Etnografia e Antropologia Museu

Casa-Museu Leal da Câmara Câmara Municipal de Sintra SINTRA Arte Museu

Casa-Museu Manuel Luciano da Silva

Associação Dr. Manuel Luciano da Silva

VALE DE CAMBRA Por definir Museu

Casa-Museu Manuel Mendes

IMC - Instituto dos Museus e da Conservação

LISBOA Por definir Núcleo

Casa-Museu Manuel Ribeiro de Pavia Câmara Municipal de Mora MORA Arte Museu

Casa-Museu Maria da Fontinha Arménio de Vasconcelos CASTRO DAIRE Pluridisciplinares Museu

Casa-Museu Maria de Lourdes Melo e Castro Câmara Municipal de Tomar TOMAR Por definir Museu

Casa-Museu Marieta Solheiro Madureira Fundação Solheiro Madureira ESTARREJA História Museu

Casa-Museu Mário Botas

Fundação Casa-Museu Mário Botas NAZARÉ Por definir Museu

Casa-Museu Mário Coelho Mário Coelho VILA FRANCA DE

XIRAPor definir Museu

Casa-Museu Marques da Silva

Instituto Marques da Silva (Universidade do Porto)

PORTO Por definir Museu

Casa-Museu Marta Ortigão Sampaio Câmara Municipal do Porto PORTO Arte Museu

Casa-Museu Mártir São Sebastião

Comissão Admin. De Mártir S. Sebastião

MATOSINHOS Por definir Museu

Casa-Museu Maurício Penha

Fundação da Casa-Museu Maurício Penha

ALIJÓ Pluridisciplinares Museu

Casa-Museu Mestre João da Silva Particular 1 LISBOA Arte Museu

Casa-Museu Miguel Torga Junta de Freguesia Sabrosa SABROSA Por definir Museu

Casa-Museu Padre Belo

Santa Casa da Misericórdia do Crato

CRATO História Museu

Casa-Museu Palmira Bastos

Junta de Freguesia Aldeia Gavinha

ALENQUER Por definir Museu

Casa-Museu Pimentel de Mesquita

Direcção Regional da Cultura dos Açores

SANTA CRUZ DAS FLORES(AÇORES)

Por definir Núcleo

Casa-Museu Pintor José Cercas Câmara Municipal de Aljezur ALJEZUR Arte Museu

Casa-Museu Pires de Campos

Câmara Municipal de Idanha-a-Nova

IDANHA-A-NOVA Por definir Museu

Casa-Museu Regional de Oliveira de Azeméis

Associação de Defesa e Conhecimento do Património

Cultural Oliveirense

OLIVEIRA DE AZEMÉIS

Etnografia e Antropologia Museu

Casa-Museu San Rafael

Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro, Lda

CALDAS DA RAINHA

Arte Museu

Casa-Museu Soledad Câmara Municipal de Vila VILA NOVA DE Por definir Museu

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ANEXOSLagoaHenriques:OColeccionadoreaCasa‐Museu FBAUL

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Museu Tutela Concelho Tipo Estrutura

Malvar Nova de Famalicão FAMALICÃO

Casa-Museu Teixeira Lopes / Galerias Diogo

de Macedo Gaia Nima - Equipamentos

Municipais, EM VILA NOVA DE

GAIA Arte Museu

Casa-Museu Vasco de Lima Couto José Ramoa Ferreira CONSTÂNCIA Arte Museu

Casa-Museu Vieira Natividade

IGESPAR-Instituto de Gestão do Património Arquitectónico

e ArqueológicoALCOBAÇA Por definir Museu

Centro Cultural de Figueiró dos Vinhos -

Casa-Museu José Malhoa

Particular 12 FIGUEIRÓ DOS VINHOS Por definir Museu

Quadro 2 - Distribuição Regional

Região Centro 26 Região Norte 21 Lisboa e Vale do Tejo 16 Alentejo 6 Arquipélago dos Açores 4

Algarve 4 Arquipélago da Madeira 2

Total 79 Quadro 3 – Entidades de Tutela

Câmaras Municipais 19 Associações Culturais e Outras 10 Particulares 10

Juntas de Freguesia 9 Fundações 8 Instituto dos Museus e Conservação 4 Direcções Regionais 3 Instituições Religiosas 3 Empresas 3

Sem informação 3 Universidades 2 Comissões Administrativas 2 Santa Casa da Misericórdia 2 IGESPAR 1

Total 79 Quadro 4 – Tipo de Colecção

Por definir 27

Arte 18 Etnografia e Antropologia 14 História 11 Pluridisciplinares 5 Especializados 3 Arqueologia 1

Total 79

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