lacey, hugh - há alternativas ao uso de transgênicos

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  • 7/24/2019 LACEY, Hugh - H Alternativas Ao Uso de Transgnicos

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    H ALTERNATIVAS AO USODOS TRANSGNICOS?

    Hugh Lacey

    RESUMO

    A existncia ou no de alternativa ao uso de transgnicos capaz

    de satisfazer a demanda mundial por alimento e nutrientes uma questo que permanece aberta investigao cientfica.

    A importncia dos transgnicos ainda no est bem fundamentada no conhecimento cientfico disponvel,em parte por-

    que as conquistas e o potencial da agroecologia no foram objeto de ateno cientfica suficiente.

    PALAVRAS-CHAVE: Transgnicos;agroecologia;pesquisa cientfica;

    agricultura.

    SUMMARY

    Whether or not there are alternatives to using transgenics,that would be able to satisfy the worlds food and nutrition

    needs,remains open to further scientific investigation.The necessity for using transgenics is not currently well based on

    available scientific knowledge, in part because the achievements and potential of agroecology have received insufficient

    scientific attention.

    KEYWORDS: Transgenics;agroecology;scientific research;agricultural

    alternatives.

    31NOVOS ESTUDOS 78 JULHO 2007

    A biotecnologia tornou-se um fator decisivo para atrajetria da economia internacional. Esse cenrio bem recebidopelas instituies cientficas, porque assegura financiamentos parapesquisas e empregos para cientistas, numa poca em que o apoiogovernamental cincia cada vez menor.O mesmo acontece com as

    instituies comerciais,uma vez que o desenvolvimento de inovaesbiotecnolgicas voltadas para o mercado (como a tecnologia dostransgnicos) dotado de uma aura cientfica, o que torna possvelminar a credibilidade dos seus crticos, cuja posio definida comoanticientfica e pautada por agendas ideolgicas.

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    [1] Lacey, H.A controvrs ia sobre os

    transgnicos: questes cientficas e ti-

    cas.So Paulo:Idias e Letras,2006.

    [2] Idem, On the interplay of the

    cognitive and the social in scientific

    practices.Philosophy of Science,n.72,

    pp.977-88,2005.

    [3] Para mais detalhes ver idem, Is

    science value free? Values and scientific

    understanding. Londres: Routledge,

    1999; e Existe uma distino relevan-

    te entre valores cognitivos e sociais?

    Scientiae Studia,n.1,pp.121-49,2003.

    As pesquisas cientficas decerto levaram ao desenvolvimento (bemcomo ratificao da eficcia) das aplicaes atuais dos transgnicos,como culturas de plantio resistentes a herbicidas especficos e outras squais incorporaram-se,por meio da engenharia gentica, caractersti-

    cas que funcionam como pesticidas.E possvel afirmar,com uma boamargem de segurana,que outras aplicaes estejam a caminho.A efi-ccia por si s e a pesquisa que a confirma,todavia,no liquidam todasas questes acerca do valor social e da legitimidade do uso disseminadode transgnicos,tampouco do lugar que cabe,nas polticas nacionais einternacionais, pesquisa,ao desenvolvimento e implementao pr-tica de uma agricultura baseada em transgnicos.Tais questes impli-cam algumas indagaes: 1. a agricultura baseada em transgnicos capaz de desempenhar um papel relevante e indispensvel para satisfa-

    zer as demandas de alimentao e nutrio de todas as populaes,epode-se esperar que isso acontea sob as condies socioeconmicasem que est sendo implantada? 2.h srios riscos implicados que noso compensados pelos benefcios e no podem ser administrados deforma adequada no contexto de uma poltica regulamentar judiciosa?3.existem alternativas melhores, ou seja, alternativas que propiciemmaiores benefcios e envolvam menos riscos?1 Neste artigo,abordareisobretudo a terceira questo:as alternativas ao uso dos transgnicos,suas possibilidades de implementao e os tipos de pesquisa cientficaque podem contribuir para esclarec-las.

    A INVESTIGAO CIENTFICA E O CONTEXTO SOCIOECOLGICO

    A apreciao crtica dessas questes obviamente deve refletir oscompromissos ticos e socioeconmicos,e isto explica,em parte,porque permanece muitas vezes enredada em controvrsias insolveis2.No obstante isso, pode-se e deve-se fundament-las com informa-

    es oriundas de investigaes empricas sistemticas (ou seja,cient-ficas), relevantes e apropriadas, cuja metodologia deve levar em contaos contextos social e socioecolgico da produo e distribuio deprodutos agrcolas.Porm,as pesquisas que deram origem ao desen-

    volvimento dos transgnicos descontextualizam,ou seja,investigam ascaractersticas que se desejam dessas culturas,suas bases genticas eas condies qumicas e biolgicas das quais dependem, utilizandoestratgias usuais das pesquisas da biologia molecular e da biotecno-logia.Tais estratgias enquadram-se no que chamo de abordagem des-

    contextualizada:sujeitados s suas restries,os objetos e as respectivaspossibilidades so investigados nos termos dos seus componentes,processos,interaes e estruturas subjacentes,bem como das leis queos governam,de forma desassociada dos contextos humano,social eecolgico nos quais esto inseridos e so utilizados3.

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    [4] Considerar, como exemplo, os

    riscos em idem,A controvrsia sobre os

    transgnicos: questes cientficas e ticas,

    op. cit.,cap. 4; e O Princpio de Pre-

    cauo e a autonomia da cincia.

    Scientia Studia,n.4,pp.373-92,2006.

    Os transgnicos so claramente objetos biolgicos e uma boaquantidade de conhecimentos sobre eles e suas potencialidades podeser obtida por pesquisas que adotam a abordagem descontextuali-zada.Entretanto,os transgnicos no so apenas objetos biolgicos,

    mas tambm socioeconmicos:so,na maior parte,mercadorias oudetentores de direitos de propriedade intelectual.No levar em consi-derao o contexto socioeconmico impede que os benefcios,os ris-cos e as alternativas sejam investigados de forma apropriada.Emboraas pesquisas moleculares e biotecnolgicas subjacentes ao desenvol-

    vimento e implementao da tecnologia de transgnicos sejamindispensveis investigao, no so suficientes, pois esto aliena-das dos seus contextos.

    RISCOS

    Os riscos potenciais do uso dos transgnicos podem advir do seucarter biolgico ou socioeconmico4. As avaliaes de risco-padrolidam com os riscos diretos (de curto prazo) sade humana e aoambiente,associados a mecanismos biolgicos,qumicos,bioqumi-cos e fsicos,cujas quantidades possam ser quantificadas e as probabi-lidades,estimadas.So avaliaes que se fundamentam em pesquisasrealizadas pela abordagem descontextualizada.Portanto,ignoram osriscos de longo prazo e raramente colocam em prtica a monitorao sis-temtica dos efeitos acumulativos potenciais,sobre a sade e o meioambiente, do cultivo e do consumo de transgnicos; ignoram, igual-mente,os riscos indiretos potenciais implicados nos contextos e meca-nismos socioeconmicos, como os riscos biodiversidade pelo usodisseminado de monoculturas transgnicas,as ameaas viabilidadede formas alternativas de agricultura (por exemplo, a orgnica), e asameaas segurana do mundo resultantes de um cenrio onde corpo-

    raes privadas controlem de forma ainda mais ampla os recursosmundiais de alimentos e sementes.Esses riscos no so apenas largamente desconsiderados, como

    tambm descartados de forma efetiva, quando os cientistas alegam,com foros de autoridade, que o uso dos transgnicos no causa riscossrios que no possam ser compensados pelos benefcios que traz eadministrados mediante uma poltica regulamentar com base legal.Essa alegao, contudo,no representa,nem poderia representar, umdado cientfico estabelecido, a menos que os riscos indiretos fossem

    investigados. A no realizao de pesquisas relevantes sobre os riscosindiretos repercute essa convico,comum no meio cientfico,de que ainvestigao se torna menos cientfica caso no seja redutvel a pes-quisas que adotam a abordagem descontextualizada. Tal perspectiva,porm,no cumpre plenamente as finalidades da cincia.Isto pode ser

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    [5] Idem,Existe uma distino rele-

    vante entre va lores cognit ivos e so -

    ciais?, cit. Marcelo Leite discute

    como as vises metafsicas, assim

    como o materialismo e o determi-

    nismo, serviram para privilegiar as

    metodologias reducionistas, em vez

    de as interacionistas, nas pesquisas

    biolgicas (Promessas do genoma.So

    Paulo:Editora da UNESP,2007).

    [6] Lacey,H. As formas nas quais as

    cincias so e no so livres de valo-

    res. Crtica,n.6,pp.89-111,2000;e

    Existe uma distino relevante entre

    valores cognitivos e sociais?, cit.

    [7] Idem, As formas nas quais as

    cincias so e no so livres de valo-

    res,cit.

    [8] Idem, A controvrsia sobre os trans-

    gnicos: questes cientficas e ticas,op.cit.

    difcil de aceitar, pois, segundo a tradio da cincia moderna, a pes-quisa cientfica caracteriza-se pela aplicao da abordagem descontex-tualizada,embora essa viso sempre estivesse em tenso com outra,que fundamenta o meu argumento:a de que a investigao cientfica

    deve ser sistemtica,emprica e mantida conforme os padres de obje-tividade, e, portanto, incluir no apenas a fsica nuclear e a biologiamolecular,entre outras,mas tambm as cincias sociais e ecolgicas.

    Para alguns,a convico de que a abordagem descontextualizada parte essencial da investigao cientfica baseia-se em pressupostosmaterialistas ou reducionistas,em uma viso metafsica segundo a qualtodos os fenmenos so passveis de explicao (por princpio) porcategorias admissveis no mbito da abordagem descontextualizada,uma viso que,ela prpria,no pode ser confirmada pela abordagem

    descontextualizada5. Para outros, a convico nessa abordagem estvinculada conscincia de que a sua adoo da abordagem descontex-tualizada seja a fonte das descobertas tecnocientficas e,de forma maisgeral, fundamente-se nas relaes de reforo mtuo existentes entre os

    valores do progresso tecnolgico e a aceitao da alegao de que a abor-dagem descontextualizada serve efetivamente para definir a metodolo-gia nica para a cincia6.Alm disso,uma outra convico impe-se,inconteste entre os progressistas,de que, primeiro,a tecnocincia sejauma fonte de inovaes, de valor e poder insuperveis,que aumenta obem-estar humano e soluciona problemas (incluindo aqueles causa-dos pelas aplicaes tecnolgicas dos resultados cientficos); e,segundo,que as inovaes tecnocientficasprima facie tenham valorsocial generalizado,no estando apenas a servio de interesses particu-lares,de forma que a sua implantao normalmente justificvel emtermos ticos e sociais7. Quando vises como essas preponderam, aspreocupaes com riscos indiretos esmaecem,tornam-se insignifican-tes,e at mesmo a sugesto de que a implementao dos transgnicos

    em larga escala deva ser desacelerada para dar tempo s investigaesempricas acerca dos riscos potenciais interpretada como uma oposi-o ao desenvolvimento cientfico8.Essa posio tende a predominaronde h poderosas relaes de reforo mtuo (fortalecidas pela impor-tncia cada vez maior da biotecnologia) entre os interesses comerciaise os valores do progresso tecnolgico.

    ALTERNATIVAS

    As metodologias das pesquisas biotecnolgicas so insuficientes(embora necessrias) para a investigao no apenas da gama com-pleta de riscos potenciais resultantes da utilizao de transgnicos,mas tambm das possibilidades produtivas, entre outras, de formasalternativas de agricultura, como a agroecologia. No pargrafo ante-

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    [9] Ibidem,cap.5.

    rior, mencionei dois conjuntos de relaes de reforo mtuo: 1. entreprogresso tecnolgico e exclusividade da abordagem descontextuali-zada;e 2. entre comrcio e progresso tecnolgico.Quando as relaesdo segundo conjunto so fortes, as instituies cientficas tendem a

    no levar a srio a possibilidade de haver alternativas corroborveispor conhecimentos cientficos obtidos por meio de metodologias noredutveis abordagem descontextualizada.

    Na verdade, os porta-vozes das instituies cientficas e agroin-dustriais proeminentes reiteram com insistncia que no h alternati-

    vas de cultivo que possam substituir as tcnicas baseadas em trans-gnicos, e que possam produzir, de forma satisfatria, maioresbenefcios em termos de produtividade,sustentabilidade e satisfaodas necessidades humanas,sem incorrer em riscos inaceitveis,como

    no produzir alimentos suficientes para alimentar e nutrir a crescentepopulao mundial ou ser inviveis nas regies do mundo que sofremcom a fome crnica, intensificada ainda mais pelas mudanas climti-cas.Os transgnicos,insistem,so necessrios para alimentar o mundonas prximas dcadas e, sobretudo, exigidos em carter de urgncianas regies mais pobres,onde as condies agrcolas foram devasta-das. Essa insistncia fundamentada em resultados cientficos ratifi-cados ou demonstra um alinhamento s instituies polticas esocioeconmicas predominantes,cujas trajetrias solapam as condi-es necessrias para que as alternativas se desenvolvam e prosperem?

    As evidncias de que as pesquisas cientficas atuais no confirmama no-existncia de alternativas so cada vez maiores. Tais evidnciassustentam que os mtodos agroecolgicos (em conjunto com outrasalternativas) que esto sendo e podem ser desenvolvidos tm capaci-dade para gerar uma alta produtividade em culturas essenciais e, aomesmo tempo, com menos riscos.Alm disso, mesmo que a agricul-tura baseada em transgnicos seja capaz de alimentar o mundo,podem

    existir alternativas melhores. Mais especificamente, pode existiruma diversidade de mtodos alternativos complementares, especfi-cos ao local, que, a um s tempo,(a) produzam gneros alimentciosnutritivos, ambientalmente sustentveis, que protejam a biodiversi-dade e fortaleam as comunidades locais; (b) estejam mais em sinto-nia com as aspiraes das comunidades rurais e as variaes regionaise culturais; (c) sejam capazes de desempenhar um papel integral naproduo dos alimentos necessrios para abastecer a crescente popu-lao mundial;e (d) sejam particularmente apropriados para garantir

    que as populaes rurais dos pases em desenvolvimento recebamalimentos e nutrientes suficientes,de forma que,sem a sua consolida-o, provvel que os padres atuais de fome persistam9.

    A agroecologia , em particular,uma alternativa que se destaca. uma forma de agricultura fundamentada por resultados cientficos

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    [10]EMBRAPA (Grupo de trabalho em

    agroecologia). Marco referencial em

    agroecologia. Braslia: EMBRAPA In-

    formao Tecnolgica,2006, p. 42. A

    propsito do pluralismo de metodolo-

    gias nas pesquisas agrcolas, ver Go-

    mes,J.C.C.& Rosenstein,S.A gerao

    do conhecimento na transio agro-

    ambiental: em defesa da pluralidade

    epistemolgica e metodolgica na pr-

    tica cientfica. Cadernos de Cincia e

    Tecnologia,n.17,pp.29-57,2000;Go-

    mes,J. C. C. Bases epistemolgicas

    da agroecologia.In:Aquino, A. M.de

    & Assis, R. L.de (orgs.).Agroecologia:

    princpios tcnicos para uma agricultura

    orgnica sustentvel.Braslia:EMBRA-

    PA Informao Tecnolgica,2005, pp.

    71-99.;e Lacey,H.A controvrsia sobre os

    transgnicos: questes cientficas e ticas,

    op.cit.,cap.2.

    [11] Analisados de forma breve em

    EMBRAPA. Marco referencial em

    agroecologia,op.cit.

    [12]Ver osite da AS-PTA:Assessoria eServios a Projetos em Agricultura

    Alternativa.http://www.aspta.org.br.

    [13] As estratgias de pesquisas multi

    e interdisciplinares em agroecologia

    so bem adequadas para investigar os

    riscos indiretos e as incertezas de

    longo prazo relacionados aos trans-

    gnicos,ao passo que integram, na

    qualidade de componentes, sistemas

    agroecolgicos que tambm incluem

    iniciativas de investimento intensivo

    de capital e pertencentes ao sistemado mercado internacional.

    [14] Ver EMBRAPAMarco referencial

    em agroecologia,op.cit.,p.27;Altieri,

    Miguel.Agroecologia: a dinmica pro-

    dutiva da agricultura sustentvel.Porto

    Alegre: Editora da UFRGS, 1998.

    [15] Lacey, H.A controvrsia sobre os

    transgnicos: questes cientficas e ti-

    cas,op.cit.,pp.151-7.

    [16]Uma vez que as pesquisas rele-vantes no fo ram realizadas, evi-

    dente que no h provas cientficas

    disponveis de que h alternativas;

    porm, isso no implica a existncia

    de comprovaes cientficas de que

    no haja alternativas.

    derivados da utilizao de metodologias no enquadradas pela abor-dagem descontextualizada:

    A agroecologia considerada uma disciplina cientfica que transcende os

    limites da prpria cincia,ao pretender incorporar questes no tratadas pelacincia clssica (relaes sociais de produo,eqidade,segurana alimentar,

    produo para auto consumo,qualidade de vida,sustentabilidade)10.

    Mais que isso,os seus mtodos so apropriados para a investiga-o das trs questes mencionadas, os benefcios,os riscos e as alter-nativas;e,no Brasil,estudos cientficos11 e um crescente movimentorural do uma forte sustentao agroecologia12.O principal objeto deinvestigao da agroecologia, como disciplina cientfica, o agroecossis-

    tema,isto ,o sistema socioecolgico em que a produo agrcola e adistribuio dos seus produtos acontecem. Logo, a investigaoagroecolgica, diferentemente das realizadas por meio da abordagemdescontextualizada,no pode ser reduzida a uma pesquisa sobre pro-cessos, interaes, estruturas e legislaes subjacentes aos compo-nentes dos agroecossistemas.Os ecossistemas,nesse tipo de investi-gao, so tratados a um s tempo como locais e integrantes de umsistema socioeconmico mundial13, incluindo anlises de como serelacionam com os requisitos almejados:produtividade, sustentabili-dade (integridade ecolgica e preservao da biodiversidade), sadesocial, respeito s tradies culturais e fortalecimento da atuao daspopulaes locais. Todas essas anlises incluem, ainda, descobrir ascondies sob as quais os requisitos desejados podem ou no ser con-cretizados em um equilbrio adequado (e como variam de acordo como local),bem como os princpios que os explicam14.

    Em outro trabalho,documentei alguns dos sucessos da agroecolo-gia como uma abordagem s atividades agrcolas, e ofereci uma perspectiva

    geral dos estudos que demonstram como,em determinadas condi-es,a capacidade produtiva da agroecologia no inferior s tcnicasagrcolas convencionais ou baseadas em transgnicos15.Esses suces-sos comprovam a promessa da agroecologia,em particular aos queno so beneficirios da expanso das empresas agroindustriais;porm, sem esforos maiores de pesquisa,a extenso de tal promessano pode ser determinada.Mesmo assim,em razo do nmero insufi-ciente de pesquisas relevantes que possam fornecer as evidncias,osdefensores da utilizao de transgnicos podem retorquir correta-

    mente,ainda que de forma enganosa que no h prova cientfica deque uma das abordagens alternativas,ou mesmo todas em conjunto,complementando-se, apresente uma produtividade suficiente paraabastecer o mundo com alimentos16. No entanto,esta rplica irrele-

    vante,como deixa claro a seguinte passagem:

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    [17] Tavares, Edson Diogo. Mensa-

    gem de e-mail, 26 set. 2006. Sou

    grato ao Edson D. Tavares,agrnomo

    e membro do grupo de autores da

    EMBRAPA Marco referencial em

    agroecologia, e ao Miguel Guerra, pe-

    las informaes teis.

    Quanto questo sobre se a agroecologia poderia produzir alimentosuficiente para a populao mundial, considero-a como uma falsa questo.

    1. Hoje (segundo dados da FAO) a produo mundial de alimentos suficiente para alimentar toda a humanidade e ainda sobra. Portanto,o pro-

    blema no a produo de alimentos (pois seno no haveria mais fome nomundo) e sim o acesso renda que permita a sua aquisio.

    2. A cincia agronmica convencional (modelo da agricultura mo-derna ou baseada na revoluo verde) organizou-se baseada nos seguin-tes princpios:mecanizao, uso de adubos industrializados,uso de agrotxi-cos,e seleo de variedades que respondessem s demais tecnologias;tudo issobaseado no uso de combustveis fsseis que permitiam trazer a agricultura

    para a lgica e a dinmica das cadeias produtivas industriais (agora agroin-dustriais).Tudo isso foi possvel graas a elevados investimentos em pesquisa,

    difuso de tecnologias,crdito,garantia de preos mnimos aos agricultores esubsdios produo industrial de insumos e sua comercializao e utiliza-o.No Brasil e na maioria dos pases em desenvolvimento tudo isso foi pro-movido com recursos pblicos e utilizaram-se como paradigma modelosdesenvolvidos em pases de clima temperado.O desenvolvimento de todo essecomplexo tem se dado durante os ltimos cinqenta anos.Se a agroecologiativer todo esse apoio,ser que daqui a cinqenta anos no teremos uma agri-cultura sustentvel?

    Voltando para a realidade brasileira, hoje posso lhe dizer que a agroeco-logia tem se desenvolvido principalmente em comunidades, cooperativas eorganizaes de agricultores que no tm acesso a crdito,a assistncia tc-nica nem a tecnologia para seus sistemas de produo que no prescindam dealtos investimentos em insumos.Nesse cenrio esto se desenvolvendo mode-los de agricultura com baixo uso de insumos externos,prticas de rotao econsrcio de culturas,policultivo,prticas de conservao do solo e da gua.

    Modelos que tm permitido a famlias sobreviver,se alimentar e se desenvol-ver sem depender de recursos externos.Se este modelo est dando certo sem

    apoio estatal, no dar mais certo com apoio? nisso que estamos pensandona EMBRAPA17.

    POLTICA AGRCOLA PBLICA

    O argumento apresentado aqui no determina que a utilizao detransgnicos em culturas de plantio seja ilegtima ou que, de formageral,a agroecologia se mostrar a longo prazo uma alternativa melhorque a agricultura baseada em transgnicos.Em vez disso,sustenta que

    a cincia ainda no solucionou as questes acerca das alternativas.Mais ainda,tendo em vista as pesquisas j realizadas at o presente,oargumento refuta-se aqui a idia de nega que a autoridade da cinciaseja um sustentculo para legitimar a priorizao do desenvolvimentode transgnicos nas polticas agrcolas pblicas, e questiona-se que

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    [18] Acontece que a autoridade cient-

    fica exercida de forma apropriada no

    apia a concesso de privilgios espe-

    ciais e pesos indevidos participao

    de especialistas em pesquisas biotec-

    nolgicas em instituies (como a

    CTN-Bio) que so responsveis pelas

    decises sobre o uso comercial dos

    transgnicos e outras inovaes de

    biotecnologia, tampouco a priorida-

    des e a mtodos de pesquisa quesejam eticamente admissveis nas

    cincias agronmicas e mdicas.

    [19]Alternativas que rejeitam a utili-

    zao de transgnicos podem aprovei-

    tar os resultados de pesquisas em bio-

    tecnologia, como: de genoma para

    mapear ecossistemas; de culturas de

    tecidos para aprimorar a reproduo

    de plantas que possam ser importan-

    tes para ecossistemas sustentveis;ou

    do conhecimento do genoma de plan-

    tas de cultivo como auxlio a fazendei-

    ros na seleo de variedades para cul-

    tivo (Guerra,M.P.;Nodari,R.O.;Reis,

    M. S. dos;Schmidt, W.Agriculture,

    biodiversity and appropriate tech-

    nologies in Brazil. Cincia e Cultura,

    n.50,pp.408-16,1998,Guerra,M.P.;

    Nodari,R.O.;Reis,M.S.dos;Orth,

    A.I. A diversidade dos recursos gen-ticos vegetais e a nova pesquisa agr-

    cola. Cincia Rural, Santa Maria, n.

    28,pp.521-8,1998;Lacey,H.A contro-

    vrsia sobre os transgnicos: questes

    cientficas e ticas,op.cit.,p.129).O

    meu argumento levanta questes

    sobre o uso de transgnicos,mas no

    exclui a possibilidade de existirem

    funes indispensveis da biotecno-

    logia na agricultura, ou funes com-

    plementares entre a agricultura inten-

    siva de transgnicos e a agroecologia.

    Essas funes, todavia, estariamsubordinadas a finalidades agrcolas

    mais amplas, implcitas questo

    aberta colocada anteriormente.

    essa legitimidade possa ser obtida antes da realizao de pesquisascapazes (em princpio) de determinar que a produtividade da agroeco-logia (e de outras alternativas) seja intrinsecamente limitada. Almdisso, estreitar em demasia uma concepo de cincia, restringindo

    suas metodologias s que se enquadrem na abordagem descontextua-lizada,inibe,a meu ver,no apenas a realizao de pesquisas relevan-tes,mas tambm a conscincia da sua necessidade18.

    No entanto,talvez o aspecto mais significativo do meu argumentoseja contribuir para o reconhecimento de que as questes de polticaagrcola pblica devam confluir para a seguinte pergunta:Quais mto-dos agrcolas (convencional, transgnico,orgnico, agroecolgico,biodinmico, de subsistncia), e em quais combinaes e variaes,

    poderiam ser sustentveis e suficientemente produtivos quando acom-

    panhados de mtodos de distribuio viveis para atender s necessida-des de alimentos e nutrientes da populao mundial em um futuro pre-

    visvel?.Esta questo no influencia os resultados das pesquisas, maspermite,embora no garanta,que a agricultura baseada em transgnicosfaa parte da resposta ou mesmo do seu ncleo;e, ademais ,d liberdadepara que as metodologias apropriadas,como as da biologia molecular eda agroecologia19,possam ser determinadas de acordo com as caracters-ticas do objeto da investigao (por exemplo,estrutura genmica ouagroecossistema). Porm, o uso de transgnicos no foi introduzidocomo resposta a essa pergunta muito abrangente,mas a estas especifica-mente relacionadas aos transgnicos:Quais caractersticas podem serinseridas por engenharia gentica nas plantas? Quais delas podem ser ex-ploradas comercialmente? A utilizao de transgnicos pode aumentar aprodutividade de culturas de forma mais sustentvel que o uso dosmtodos agrcolas chamados convencionais?.E,em seguida,para res-ponder a questes sobre o valor social geral dos transgnicos:Como osresultados de pesquisas com transgnicos podem ser utilizados para

    ajudar a resolver os problemas de pequenos fazendeiros (por exemplo,aproduo em agroecossistemas pobres) e suas comunidades (por exem-plo, fome e desnutrio) nos pases pobres?. Em outras palavras,embora o desenvolvimento dos transgnicos fundamente-se nos resul-tados comprovados da biologia molecular e da biotecnologia,a tendn-cia da sua aplicao prtica pressupor,sem investigaes pertinentesterem sido realizadas,que a disseminao rpida e ampla da agriculturabaseada em transgnicos tenha um valor social geral.

    Os proponentes do uso de transgnicos preferem concentrar-se

    nas discusses sobre as questes especificamente relacionadas aostransgnicos,e no considerar a questo mais abrangente proposta nopargrafo anterior, que no pressupe a importncia dos transgni-cos, dando a entender que essa a maneira cientfica a ser adotada.Essa questo, contudo, no est fechada investigao cientfica,

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  • 7/24/2019 LACEY, Hugh - H Alternativas Ao Uso de Transgnicos

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    contanto que se reconhea a necessidade de aplicar metodologias queno se limitem somente quelas que possam ser enquadradas pelaabordagem descontextualizada. Alm do mais, pode-se questionar oquo cientfica uma investigao da questo (referente ao uso de

    transgnicos para abordar o problema da pobreza) que prope ofere-cer solues (derivadas das pesquisas sobre a tecnologia de transg-nicos) sem considerar o contexto socioeconmico do qual advm aorigem e a manuteno do problema a ser estudado.

    Separar a questo mais abrangente das agendas cientficas predomi-nantes no justificvel pelos termos da metodologia cientfica, tam-pouco pelas finalidades da cincia.Proponho que se possa compreendermelhor a questo, levando-se em conta as duas relaes de reforomtuo apresentadas anteriormente: 1. entre progresso tecnolgico e

    exclusividade da abordagem descontextualizada; e 2. entre comrcio eprogresso tecnolgico.Tudo se passa como se a alegao feita pelos pro-ponentes dos transgnicos,de que no h alternativas,estivesse inques-tionavelmente identificada alegao de que no h alternativas viveisde cultivo (a no ser em nichos especficos) no mbito do sistema socioeco-nmico baseado no capital e no mercado.Isto ajuda a explicar o sentido de ine-xorabilidade da dominao final do cultivo de transgnicos que apareceem tantas discusses.A alegao de que no h alternativas no refleteconhecimento cientfico,mas sim poder econmico.E esse aspecto ficaoculto quando as polticas sobre o uso de transgnicos so encobertaspelo manto da cincia.Isto tambm ajuda a explicar por que h obstcu-los significativos s pesquisas em agroecologia e aos mtodos de cultivoque buscam se desenvolver e expandir. Neste contexto,no suficienteproduzir evidncias do potencial produtivo da agroecologia: necess-rio torn-la socialmente vivel em ampla escala.Contudo,os interessesconjuntos das alianas entre grandes corporaes agroindustriais egovernos so bem diferentes.O fato que as possibilidades da realizao

    bem-sucedida de pesquisas em agroecologia;da expanso e do aperfei-oamento de cultivos agroecolgicos;das atividades e do crescimento demovimentos que englobam os valores representados pelas finalidadesda agroecologia (sustentabilidade,fortalecimento popular etc.);e doredirecionamento das prioridades das instituies de pesquisa, estoindissociavelmente interconectadas.

    Hugh Lacey professor emrito de filosofia no Swarthmore College (Pensilvnia,EUA) e atua com

    freqencia como professor visitante na FFLCH-USP.Ultimamente tem escrito sobre o papel dos valo-

    res na pesquisa cientfica e sobretudo sobre a controvrsia em torno dos transgnicos.

    39NOVOS ESTUDOS 78 JULHO 2007

    Recebido para publicao

    em 10 de junho de 2007.

    NOVOS ESTUDOS

    CEBRAP

    78,julho 2007

    pp. 31-39