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LABIRINTO EMOCIONAL EVAN DO CARMO 1 DE JANEIRO DE 2007 EDITORA DO CARMO BRASÍLIA-DF

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LABIRINTO EMOCIONAL

EVAN DO CARMO

1 DE JANEIRO DE 2007 EDITORA DO CARMO

BRASÍLIA-DF

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© Copyright by Evan do Carmo 2017

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Programação Visual o Autor

Arte da capa o Autor

Revisão Iranete do Carmo

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C287l Carmo, Evan do

Labirinto Emocional / Evan do Carmo. – Brasília:

Editora do Carmo, 2017.

2010 p. 14x21 cm. ISBN- 978-85-922871-1-5

1. Literatura brasileira - romance. 2. Romance brasileiro. I. Título.

CDU: 821.134.3 (81) -31

---------------------------------------------------------------------------------------------

Todos os direitos em língua portuguesa, no Brasil, reservados de acordo com

a lei. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida de

qualquer forma ou por qualquer meio, incluindo fotocópia, gravação ou

informação computadorizada, sem permissão por escrito do Autor.

Composto e impresso no Brasil-

---------------------------------------------------------

Labirinto Emocional

Romance

Evan do Carmo

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Labirinto Emocional

Romance

Evan do Carmo

2017

À IRANETE, POR QUEM VIVO DE VERDADE.

Certo dia, quando eu já não acreditava em felicidade nesta terra,

quando eu andava em profundo desalento, andando como que sem

rumo ou norte, não sei se foi por obra do acaso ou por obra da sorte

predestinada, do quinhão que Deus me dera nesta vida, mas que

ainda não achara, que encontrei a mulher que logo se tornou o

melhor pedaço de mim, de minha essência e a força que me faltava.

Eu não a reconheci à primeira vista, mas ela, ao contrário, sem bem

me conhecer logo percebeu que eu era o amor da vida dela. Ela foi

me conquistando aos poucos…. Quando dei por mim ela já estava

dentro do meu coração. Foi graças a ela que alcancei o estado de

consciência e a plenitude de existência. Graças a ela hoje sou forte,

sou capaz de grandes realizações como este livro.

À Iranete, minha esposa, minha querida companheira. Refiro-me

sempre à sua pessoa quando quero expor de modo certo, até que

ponto pode o amor chegar, quantas barreiras uma pessoa pode

vencer ou ultrapassar para chegar a um objetivo com relação a

agradar o ser amado.

Para mim, a maior virtude do amor reside na capacidade de

suportar as diferenças de opiniões. Quem ama, a meu ver, não

insiste em mudar o ser amado, aceita suas virtudes e defeitos,

quando se ama verdadeiramente, embora não saiba até que

ponto esta expressão seja adequada, pois para o amor só existe

um nível, uma noção de juízo.

Quem vive um amor é porque avançou para um estado sublime

de tolerância, não se pode dar nome ao que se apresenta nos

nossos dias, sobretudo nas relações maritais, de amor, pelo

simples fato: vemos muitos casais que se suportam pelas

convenções sociais, basta que surjam dificuldades, seja de

origem prática ou sentimental para que venha à tona uma

verdadeira aversão à pessoa que se dizia amar, por quem até se

morreria. Discuto este assunto, para que possa causar alguma

reflexão nas pessoas que vivem juntas por comodismo ou

conformismo.

Acredito no amor, na cumplicidade marital, quando ambos

olham para o mesmo horizonte. É preciso que o tempo mostre o

que muitos fingem não ver, muito menos admitir: conviver com

alguém por vinte anos ou mais e não se tornarem inimigos literais,

isso pode ser um bom indício de que essas duas pessoas

no mínimo se respeitam.

Poderíamos trocar o sentido da palavra amor, talvez por

tolerância? Não é este o caso, a semântica talvez, o sentido não.

Sobre aquela pessoa que me é cara, minha afortunada metade,

devo dizer, o que me tem feito crer no amor, isso já por vinte

e sete anos: é o fato de apesar dos meus incontáveis defeitos, ela tem

me aguentado e sido sujeita a esse amor por quem ela vive.

Minha querida esposa, devo a ti a minha crença no amor, na

vida e até em Deus. Te amo, acredito que seja isso o que quer

dizer amar alguém, querer sempre o melhor para a pessoa

amada. Devo confessar que não sou o melhor, mas sou o que

sou para te agradar, para te fazer feliz, e para que nunca percas

a fé que tens no amor e na vida.

Evan do Carmo.

“A mente humana é parte do intelecto infinito de Deus. ”

― Baruch Spinoza

Labirinto Emocioanal

7

REPRESENTAÇÃO SACRIFICIAL DE UMA EXPERIÊNCIA

LABIRINTICA

O importante não é aquilo

que fazem de nós, mas o que

nós mesmos fazemos do que

os outros fizeram de nós.

Jean-Paul Sartre

Quando Evan do Carmo me enviou o seu livro, nada disse de seu teor.

Tampouco de seu gênero. De imediato surgiram alguns enigmas: Que

labirinto é esse? Do que trata estas emoções? Ao abri-lo percebi que

se tratava de um romance e logo veio a vontade de folheá-lo. Afinal,

se não grande conhecedor de sua obra, mas insuspeito admirador de

sua escrita não titubeei, alvorocei-me a devorar o livro, ou melhor,

estrangulá-lo o mais depressa possível, com a sanha de uma esfinge

diante do peregrino sem a devida resposta.

De pronto percebi que a estrutura labiríntica criada por Evan do

Carmo não teria por cenário o Palácio de Cnossos, mas a cidade do

Rio de Janeiro, em um período de pós-guerra bastante significativo. E

não traria como personagens principais Perseu e Ariadne, mas homens

e mulheres de carne e osso, de memórias e esquecimentos, cujas

histórias são construídas em um longo fio de existência, constituídas

em lastros de afetos familiares em que a cada descoberta há uma

representação sacrificial, não ao monstro minotauro, mas ao próprio

existir humano.

A narrativa construída por Evan do Carmo adquire aspecto dramático,

embora guarde uma tonalidade sensível de colo maternal. É esta a

característica primordial (e principal) exaltada (ou seria pincelada?)

neste Labirinto Emocional. As personagens evanianas dão-se-conta de

suas próprias existências em uma expericiação diária com suas

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emoções mais internas e intrínsecas, com suas faltas e carências, com

seus sonhos e anseios, em uma transmutação experiencial de-ser-no-

mundo vinculados entre si em um indissociável existir de-ser-em-si e

de ser-para-si, em uma relação dialógica de Eu-Isso e Eu-Tu, tendo o

amor por essência e a angústia por contingência.

Os meandros vivenciados por cada personagem, seja em grandes

feitos ou em gestos simples e contenciosos, possuem motivações a

mais para ler o livro. Pois ler o Labirinto Emocional, de Evan do

Carmo, é um reviver constante. Uma experiência afetiva ininterrupta.

Como se estivéssemos percorrendo os labirintos de Creta, e, diante do

grande monstro de Minos/Vida nos sentíssemos como se fossemos

Teseu/Walter sem o fio condutor de sua amada Ariadne/Beatriz. Cada

passo dado é um salto ao inesperado. Um se lançar ao vazio do existir

tão bem conhecido e não menos desesperadamente negado.

Já no primeiro capítulo fui apresentado a um eu-lírico que me dizia a

que veio. Com extremo cuidado ele tece o seu longo fio de Ariadne e

aponta a saída, quando diz: “Não sou literato, na verdade nem gosto

dos literatos, eles têm maldades disfarçadas, são cruéis ao extremo e

são manipulados por um espírito egoísta e arrogante, acham que

sempre têm a razão, ou que sempre têm a melhor opção ou saída para

qualquer eventualidade, que sabem explicar tudo e dominar qualquer

assunto −, sobretudo quando se trata de sentimentos envolvendo as

relações humanas.”

Os temas fundamentais (e recorrentes) tratados por Evan do Carmo,

em seu Labirinto Emocional, é o amor e a solidão. O vazio e a

loucura. Dor e a saudade. Resiliência e obstinação. Empatia e

alteridade. Melancolia e esperança. A cada entrelaçar de vida (e de

emoções) se percebe uma ‘silenciosa abertura’ ao que Frayze-Pereira

entende como ‘ao que não é nós e que em nós se faz dizer.’

Embora não apresente um olhar mais aprofundado das coisas, dos

lugares e das pessoas, Evan do Carmo indica/sugere os conteúdos

mais implícito de suas personagens, o que nos garante um aprofundar

9

de nossas próprias percepções emocionais ante os atos

comportamentais das personagens. Permitindo-nos uma construção

pessoal a partir de nossa singular experiência em interação com o

mundo. Estabelecendo assim uma analogia com nosso próprio existir,

em um fio condutor que nos leva além-labirinto, nos impulsionando a

prosseguir a vida apesar das circunstâncias traumáticas e de nossas

lutas internas, compreendendo que “sempre depois de uma

tempestade, depois de uma noite escura de trevas profundas é

inevitável que nasça o sol da esperança, e este quando vem pinta no

horizonte o quadro mais belo, seus raios multicores são pincéis a

colorir nosso amanhã e, neste estado de regozijo celeste não só

enxergamos o arco-íris, mas também misturamos as suas cores e as

transformamos em uma aquarela de luz...”

Portanto, é inequívoco o nosso encontro (entranhamento) e

desencontro (estranhamento) com o eu-lírico/Evan. Sua percepção e

sensibilidade não cabem ao texto “Já por algum tempo eu convivo

com uma vontade imensa de homenagear um amigo muito querido,

mas era só vontade, então aos poucos as coisas foram se

encaminhando para este meu livro”. Sua narrativa transborda ao

nosso raso olhar. “A vida dele pode ser considerada um drama triste

para alguns, uma história comum e corriqueira para outros, mas para

mim, humilde e necessária”. Isto nos encanta, pois enriquece nossa

leitura e nos dá argumentos para lê-lo mais e mais. Prova-nos que a

entrega do autor ao texto foi verdadeira.

O Labirinto Emocional de Evan do Carmo nos faz perceber (por

instinto ou por vivência) que, em alguns momentos de nossa vida

devemos nos guiar, de imediato, para o lado de fora dos nossos

intransponíveis labirintos (dores, angústias, solidão ou vazio), mas, tal

qual Walter, não sabemos como fazê-lo. O novelo de Ariadne nos foge

às mãos. É curto demais, como curta foi a vida de Walter Junior

diante do grande monstro devorador (guerra) e longo o desespero de

seu pai por encontra-lo, levando-o ao desespero, ao desejo de não-

existir, a se tornar “um vulto (...) um homem sem cor, sem carne, só

osso e desespero, que causava medo e compaixão.”

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Adentrar na alma de cada personagem (Walter, Beatriz, Walter Junior,

Armando, Paulo, Rose, Felipe, Isabel, Ruth, Ricardo, Seu Antônio,

Dona Francisca, Jorge Figueira e Cícero, passando por Oliveira

Gomes) nos traz a nítida sensação de um querer a mais, de uma

angústia tão familiar que nos impulsiona ao segundo passo, ainda que

este nos leve a lugar algum, ou, por circunstância de vida e escolha

pessoal, nos leve a um vazio que nos abocanha intensa, intrínseca e

visceral. Fazendo-nos a andar “dias e noites buscando abrigo e

consolo no coração dos amigos, afogando” as nossas “mágoas em

copos de desilusão”, tornando-nos “um ébrio, um louco sem norte e

sem direção”. Ainda que saibamos que viver é preencher o vazio que

só o existir contém.

Compreender os meandros (com suas sombras e arquétipos) deste

Labirinto Emocional descrito por Evan, é tarefa para poucos “Não

consigo a liberdade do espírito, quisera eu voar livre dos

pensamentos que me cercam por todos os lados da consciência, quem

me dera poder fugir deste mar de sombras, que me assombra” nos

leva, sintomática e imperdoavelmente, a adentrar a alma de Walter,

não tentando desvelar os seus labirintos/segredos mais profusos (e

confusos), mas a vivê-los em toda a sua intensidade.

É esta a sensação descrita em todo o livro. Como se sentíssemos parte

desse labirinto, mas que isso, como se adentrássemos nele e víssemos

o grande Minos a construir os entraves (e enrosco) que todo labirinto

tem. Como se quiséssemos estar no labirinto, enfrentar o monstro de

Minos (solidão voraz) com a intrepidez de Teseu, embora nos

soubéssemos Walter, a caminho de um bar qualquer, em busca de

nossas sete garrafas e sete copos de um bálsamo Rio/Cretano.

Percorrer este Labirinto Emocional nos leva a oferecer, como

Ariadne/Beatriz, nosso fio de existir-existindo em um pensar

constante, pois “pensamento é um dom divino e o nosso bem maior, só

nosso. Não há tesouro que se compare ao exercício mental e não há

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lei e nem território que o proíba. Ele é livre e habita em um universo

sem fronteiras. Embora tenha dono, quando ele nos deixa, quando sai

da esfera sensível, quando o lançamos no espaço, este filho pródigo

rebelde não volta mais para a casa do pai”.

Assim, entranhar o intricado percurso deste Labirinto Emocional nos

humaniza, voluntaria e corajosamente, nos fortalece a enfrentar nossos

obstáculos (ainda que pareçam intransponíveis e nos queria devorar a

todo o momento). Nisto reside a criatividade de Evan do Carmo. O

que torna a sua narrativa singular e bela. Oferece-nos o fio para

sairmos dos internos corredores, mesmo sabendo que, “Quando

pensamos que pegamos a estrada certa que nos leva ao sonho, ao

ideal, ao objetivo, à felicidade prevista, sentamos e até tiramos um

cochilo, então vem alguém e nos acorda para o desembarque, para

descermos na próxima parada”.

Portanto, assim como o oráculo em Atenas predisse à Teseu sua

vitória contra o monstro do labirinto, pelo amor de Ariadne, Evan do

Carmo nos mostra o quão forte é o amor de Beatriz por Walter. O fio

dourado que o conduz para fora de sua Creta/Angústia/Dor. Para as

paredes de tijolos sempre a mostras de Walter, Beatriz se faz fio,

prumo e reboco. E com o tempo, que “é mestre em assuntos do

coração, em sentimento mal-entendido”, entendemos que “os

sentimentos não envelhecem, amadurecem”, pois “tem a dieta certa

para engordar ou emagrecer estes vermes que nos alimentam e que

nos devoram”.

Com isso, percebemos que Ariadne/Beatriz tudo faz por seu amado

Teseu/Walter, contudo, o grande rei Minos/Vida o conduz, de igual

modo, ao inevitável confronto com o seu monstro voraz (vício,

insegurança, medo, tristeza, solidão) que a todo instante tenta devorá-

lo, o levando a crer que “é assim com os loucos da noite, não dormem

nem mesmo quando estão com sono”.

12

Como se fosse tarefa fácil o viver. Já que “No coração de um

apaixonado não há lugar para consciência ou razão, tudo é sangue,

instinto, força e domínio brutal”. Tampouco o morrer o é. Morre-se a

cada fôlego. Não por menos enlouquece o homem em seu existir de

vida sem ao menos ter visto sua tarefa de ser exitosa. Só o Minotauro

tem fome insaciável. E nem sempre temos Ariadne (Ruth, Beatriz,

Lurdinha) a nos oferecer o seu fio de amor. Sua valiosa presença. Sua

força para enfrentarmos as traiçoeiras armadilhas de nosso labirinto

emocional.

Só há uma forma para conhecer o labirinto construído por Evan.

Adentrando-o sem medo ou reservas. Eu o fiz. Aceitei o desafio e

naveguei os mistérios do Egeu e aportei em Creta/Rio, em um período

de pós-guerra muito significativo. O Minotauro/guerra exigiu seu

sacrifício e inúmeros Walter Junior sucumbiram diante do grande e

tenebroso monstro metálico. É assim que Evan do Carmo nos convida

a adentrar em seu Labirinto Emocional, ou melhor, nos intenciona a

uma descoberta a cada passo dado, ainda que haja monstros

assustadores prontos a nos devorar.

Uma vez dentro do labirinto Evaniano, o leitor é conduzido, imediata

e ininterruptamente à auto/reflexão. Já não é o mesmo que entrou.

Poucos passos/capítulos e já é sondado (implicitamente) a descobrir

saídas, a inventar enfrentamentos, a construir soluções, a se preparar

(olhos e coração) para o que vem a seguir. A assumir uma postura de

acolhimento existencial que envolve múltiplas possibilidades. A nos

colocarmos diante dos nossos monstros particulares em posição de

flutuante atenção e aguardo.

Evan do Carmo dá a devida importância à temporalidade do existir-

existindo. Sua relação com as personagens é muito significativa. É

explicito esta carnalidade do autor com sua obra. Neste contexto,

logicidade e cronologia se confluem interpretativamente em uma

construção narrativa analítica bastante singular, cabendo-nos, seus

leitores, uma consubstanciação de existir entre fatos, pessoas e

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cenários descritos. Possibilitando-nos uma experiência reflexiva e

compartilhada com os próprios atores da trama.

Desta forma, como bem enumera o autor: “quanto a mim respiro e

compartilho com os meus queridos, minha função na existência e

divido-a em partes distintas: como homem, como pai e, sobretudo

como irmão.” Assim, concluindo esta obra evaniana, confesso que o

livro trouxe a mim uma experiência labiríntica única, da qual sei (por

recorrente experiência) o enredo e o destino em cujo espaço teço (em

obediência ou teimosia) o fio do novelo de minha própria existência.

Com isso, resta-me então, recomendar o livro e instar a quem quer que

seja, a entrar em seus labirintos e, feito Teseu/Walter enfrentar os mais

ferozes minotauros tendo ao coração tão e somente o amor e a

esperança e às mãos, o tênue e frágil fio de Ariadne/Beatriz.

Boa leitura!

Alufa-Licuta Oxoronga

(Psicólogo e poeta)

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Comentário sobre o livro

Ao ler e vivenciar o episódio deste livro do escritor Evan do Carmo,

seu tão bem elaborado Labirinto... confesso que me fugiram as

palavras, apesar de tanto precisá-las neste exato momento, para fazer

um comentário de clareza e lucidez.

O autor nos faz um irrecusável convite a embarcar com

passagem só de ida numa viagem rumo ao desconhecido que habita

dentro de nós mesmo, e que nem sempre nos preocupamos em visitar.

O personagem Paulo, boêmio cantor da noite, é agraciado com a

grandeza e a compaixão de um dos seus expectadores que conhecera

na noite carioca: o Walter, que vem a ser o personagem principal da

trama. Este transfere para seu amigo Paulo, o seu lugar na vida e nos

negócios; lhe autorizando a condução dos seus bens e até mesmo da

sua própria família. Por sua vez, Paulo se sai tão bem no papel de

titular, que acaba casando-se com sua filha Rute, moça muito linda e

meiga, tanto quanto a generosidade do seu pai, jornalista intelectual.

Confesso ter ido às lágrimas ao viver a saga do personagem

Walter, homem que se fizera lunático por carregar uma grande culpa,

que acha que tem, por não ter conseguido evitar a morte de seu filho

15

mais velho e consequentemente de mais um outro filho seu e, também

de sua maravilhosa esposa Beatriz.

Acabando finalmente, confinado por vontade própria em uma

casa de repouso e recuperação para idosos, sem o prévio

conhecimento do que ainda restara da sua família.

Volto-me ao autor Evan do Carmo, para parabenizar-lhe por

seu tão intrigante LABIRINTO EMOCIONAL, e para dizer-lhe que

como passageiro dessa tão contagiante obra, não sinto deveras a

vontade de desembarcar, já que a mesma fora construída com todo o

seu amor, dedicação e esmero, dispensados pelo crivo da sua enorme

experiência. Portanto, me convenço de que este grande autor, é sem

dúvidas, uma mistura de sábio e de mestre... e ao mesmo tempo, sinto-

me lisonjeado por fazer parte, ainda que de longe, do seu ciclo de

convivência.

Poeta, Chico Mulungu 31/12/2016

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Prefácio

Este prefácio é importante, sobretudo para os leitores

iniciantes, já que nele eu preparo o leitor à descoberta de

“Labirinto Emocional”, indicando-lhe os seus traços gerais

(porém sem divulgar as guinadas inesperadas da obra), e

suscitar-lhe o desejo de irem em frente com a leitura.

Pode parecer estranho, mas é verdade. O Brasil, país

com mais de duzentos milhões de habitantes, tem apenas duas

mil livrarias e a maioria dos seus cidadãos não ganha o

suficiente para comprar uma cesta básica digna, que dirá livros,

por isso mesmo não podem absorver uma mínima porção

literária. Disso surge a miséria de quem escreve, dos homens

que vivem à margem da luxúria para produzir algo substancial.

Literalmente falando, são poucos os alienados que

vendem sua ideologia e sua crença no tesouro poético-filosófico

para viverem embriagados com o vinho da vaidade. Eles

escrevem um vasto lixo visando alimentar, como também saciar

o apetite das mentes deformadas pelo aleijo social e cultural.

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Há os que escrevem para milhões de rudes que fingem

entender o que leem, enquanto outros se satisfazem em escrever

para três ou quatro leitores conscientes que não só

compreendem como também partilham os pensamentos que

absorvem. O que estes colhem na seara infrutífera? Respondo:

morte prematura, cegueira e suicídio da incompreensão.

Vale lembrar ao leitor algo muito importante sobre o

assunto acima: o autor de “Dom Quixote, Miguel de Cervantes

morreu na miséria depois de ser enganado pelo editor da

primeira parte de sua obra singular”.

Eu não tenho nenhum amigo ilustre, não conheço

nenhum “imortal” da Academia Brasileira de Letras, por isso,

para que meu livro não saísse incompleto, eu mesmo escrevi

este mini argumento prefacial. Para tal, tive como referência o

prólogo de Machado de Assis em “Memórias Póstumas de Brás

Cubas”. Mas mui consciente do objetivo desta minha obra,

amarrarei com as correntes da indignação o meu espírito

crítico para não cansar leitor algum.

Não tenho a pretensão de convencer o leitor de que

“Labirinto Emocional” se trata de um novo fenômeno literário,

e até aconselho aos senhores que fujam dos ditos fenômenos, de

qualquer área de atividade profissional. “Labirinto Emocional”

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é uma obra de rascunho e inacabada, talvez o meu ponto mais

alto que eu poderia atingir.

Não quero falar muito do psicológico das personagens,

nem tampouco entregar em bandeja de prata suas cabeças, seus

defeitos e seus desvios de conduta. Eu espero astuto leitor, que

você se identifique com alguma personagem, pois “Labirinto

Emocional” traz personagens e situações comuns do cotidiano,

com defeitos e virtudes nossos. Mas vale assinalar que minha

intenção é revelar mais defeitos que virtudes.

Os romances, não raro, apresentam uma riqueza de

detalhes descritíveis. No entanto, em “Labirinto Emocional”, eu

não usei deste expediente psicológico material, porque cansaria

o leitor. Em Kafka e em Camus podemos verificar que a beleza

das suas obras não reside no lugar ou em uma cronologia

temporal. O mundo de Proust, ao contrário, talvez por ser mais

glorioso, agrega duas condutas, uma riqueza imensurável

psicológica, sobretudo na dissecação do espírito do ciúme, e

uma contextualização histórica com suas nuances materiais. Em

“Labirinto Emocional” além de agregar tais condutas, não há

espaços confortáveis nem passagens paradisíacas, contudo, as

alegrias, assim como na vida real são passageiras e a morte é

um tema constante.

19

Walter

Já por algum tempo eu convivo com uma vontade

imensa de homenagear um amigo muito querido, mas era só

vontade, então aos poucos as coisas foram se encaminhando

para este meu livro. A vida dele pode ser considerada um drama

triste para alguns, uma história comum e corriqueira para outros,

mas para mim, humilde e necessária.

Walter não é nem muito latino e nem tanto americano, é

descendente de família judia, que chegou ao Brasil durante o

êxodo moderno, êxodo que espalhou o povo santo para as

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nações pagãs. De estatura mediana, moreno claro e semblante

sereno, Walter se dispôs a ir longe para alcançar seu sonho. Aos

18 anos largou a casa dos pais, no sul do Brasil, para ir atrás do

que sempre quis ser, jornalista. Com muita dedicação chegou ao

topo da fama e do prestígio, porém fama e prestígio nunca lhe

subiram à cabeça, mantendo sempre uma postura firme para com

a vida, mas com muita humildade.

Não me importo com as críticas, porque sei que vou

agradar a uns e desagradar a outros. Não me considero

romancista, sou músico e não escritor, até porque tenho

consciência hoje da existência do mestre Machado de Assis e de

outros. Quero apenas apresentar ao leitor a vida de um grande

homem, vida que muito me serve de referência. Por outro lado,

não nego, homenagear o Walter é uma desculpa, porque no

fundo tenho ambições literárias de fato. Já li – não lembro em

qual jornal – que um prêmio Nobel de Literatura, entre os

poucos que conheço, atingiu tal sucesso por um empenho muito

mais fútil do que o meu. Não sou literato, na verdade nem gosto

dos literatos, eles têm maldades disfarçadas, são cruéis ao

extremo e são manipulados por um espírito egoísta e arrogante,

acham que sempre têm a razão, ou que sempre têm a melhor

opção ou saída para qualquer eventualidade, que sabem explicar

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tudo e dominar qualquer assunto −, sobretudo quando se trata de

sentimentos envolvendo as relações humanas.

Sou amigo íntimo do Walter, por isso não cometo

exagero algum sobre suas virtudes. Walter é leal com seus entes

queridos, companheiro fiel, sempre disposto a ajudar a quem

quer que seja. Ele não espera que lhe implore de joelhos (como

fazem alguns filantrópicos oficiais), age e se preciso, dá a

própria vida. Certa vez, fui testemunha de uma grande ação de

Walter. Com uma simples carta de recomendação, ajudou um

senhor nordestino a arrumar um bom emprego. O Senhor João

era casado, tinha seis filhos, padecia de carência extrema,

morava debaixo de um viaduto no centro da cidade, lugar dos

desvalidos da sorte. O que este homem queria era apenas um

emprego: “porque tenho que sustentar minha família”,

justificou-se para o Walter.

No início dos anos cinquenta, o mundo viveu um clima

de esperança, uma nova aurora fora desvendada, o sol da

felicidade parecia bem claro, esperavam-se dias de paz, talvez

um entendimento melhor dos conflitos mundiais, enfim,

acreditava-se na paz – digo “paz global” como nunca alcançada

e agora tão sonhada, desejada – e tudo isso por causa da

Segunda Guerra Mundial. Passada a guerra, Walter, jornalista

22

investigativo, procurou encontrar razões que levou o mundo a

entrar nesta guerra tão cruel e com resultado tão avassalador, e,

segundo ele, chegou à conclusão de que tudo era loucura,

loucura por um poder supremo, era o que almejava Hitler,

dominar o mundo e toda a humanidade.

Eu tive o prazer e o privilégio de viver um tempo de

ouro da música brasileira, a era da Bossa Nova. Cantava todo o

repertório da Bossa Nova em um bar de Copacabana, onde

conheci o Walter. Nos fins-de-semana ele assistia ao futebol por

ali com geladíssima cerveja e à noite me ouvia cantar. Após os

shows sempre conversávamos, mas Walter não era bom ouvinte,

só ele queria falar. O que me irrita é que alguns jornalistas

acham que são os donos da verdade e desqualificam qualquer

ideia diferente das suas. Walter não era diferente disso, gostava

de expor seu ponto de vista e exigia, por meio de uma força

moral descomunal que fosse aceito como final e absoluto.

Considero-me, até certo ponto, um bom observador, a tal

ponto de perceber que Walter, apesar de todo o sucesso como

jornalista, tinha um olhar triste e distante, um ar débil como que

se furtando de viver dentro da sua realidade. Como ele falava

muito pouco de sua vida pessoal, demorou alguns dias para se

abrir comigo. Até que um dia resolveu falar. E foi assim:

23

“Meu filho – o que eu mais amava, o meu preferido,

aquele em quem eu reconhecia minha própria alma, aquele da

minha esperança e razão da minha existência, – por uma

desgraça do destino foi para a guerra, foi muito valente pelo que

soube, mas morreu em batalha, quando resgatava outro soldado.

Com a morte do meu filho eu perdi a razão de viver. Atravesso

um mar de desilusão sem fim e creio que nunca mais terei forças

para alcançar a outra margem, porque fui tragado pelo monstro

feroz da depressão. Nem sei mais como é sorrir com a alma,

viver, ser feliz por inteiro! Esta tragédia atingiu-me como um

furacão, não deixando pedra sobre pedra, nem meios necessários

para a sobrevivência. Ando dias e noites buscando abrigo e

consolo no coração dos amigos, afogando as minhas mágoas em

copos de desilusão. Tornei-me um ébrio, um louco sem norte e

sem direção. Não vivo, e se ainda respiro é pela ilusão que me

ronda dizendo que eu ainda terei meu filho nos braços – um

sonho que acalento como única razão para minha existência.

Meu filho tinha muitos sonhos, e a guerra não era um deles. O

sonho dele era ser engenheiro. Ele era um rapaz muito bonito e

alto, tão meigo quanto à outra filha, Rute, a caçula. Mas ela não

tem a mesma inteligência que ele tinha. Walter Júnior era muito

inteligente, eu não gostava de dizer isso diretamente pra ele, mas

24

Beatriz e eu sempre achamos que ele fosse um gênio, alguém

muito especial. Puxou a mim em algumas coisas, enquanto vivia

conosco sempre foi independente e capaz, meigo, carinhoso,

sensível e responsável – eis o meu orgulho. Eu investi tudo nele:

meus sentimentos, minha esperança. Ele era a minha própria

vida, a continuação do meu ser nesta jornada difícil que

conhecemos como vida humana. ”

Ele enxugou as lágrimas, virou um copo de cerveja na

boca e continuou.

Não há dor maior do que a de perder um filho. É

indescritível. Indescritível! Transmiti a ele tudo de mim, menos

meus defeitos e minhas fraquezas. Acresci as minhas virtudes

para lhe imprimir fundo na alma. E observei que ele assimilou

tudo, mais do que eu esperava. Nos desafios da curta vida que

viveu, sua força moral e firmeza de caráter eram inabaláveis – o

que me surpreendia. Lembro-me dele do tempo do colégio:

venceu barreiras e obstáculos intransponíveis para qualquer

menino do seu peso, de sua estatura culto-social. Ele não se

corrompia e defendia com paixão seus ideais e convicções, foi

graças a estes predicados que ele alcançou respeito e prestígio

perante os colegas e professores.

Eu entristeci como se acabasse de ver o fundo da alma de

25

Walter. Não disse nada: apenas estendi-lhe a mão. Ele

continuou.

Hitler era o seu próprio Deus e queria se tornar o Deus

de todos: decidia quem merecia viver e quem deveria morrer.

Meu filho não teve escolha: foi obrigado a entrar nesta cruel

brincadeira, nesta roleta russa. Não consigo entender e nem

perdoar um homem assim, e creio que Deus não seja tão

clemente para com ele, que de ser humano não tinha nada!

Eu tinha a impressão que, se Walter não desabafasse com

alguém, iria enlouquecer. “Cerveja”. Pediu ele ao garçom para

disfarçar a dor. “Paulo: estou mais morto que vivo! ”, disse entre

um gole e outro de cerveja. “Ah, deixe disso! ”, falei, “Você vai

superar esta tragédia. ” O garçom trouxe a cerveja, e eu disse a

Walter para que não bebesse mais, mas surtiu pouco efeito, além

daquela ele bebeu mais duas garrafas. Possivelmente, eu fui a

única pessoa em que Walter confiou para chorar pelo filho

morto. E eu não o desapontava, ao contrário, ouvi-lo passou a

ser a minha missão.

Do lado de fora, uma montanha do calor de dezembro

entrava, toda vez que Walter chorava. A lua e as estrelas

brilhavam prateadas no céu azul daquela noite de verão e

descreviam um arco de luz, mas ele nada disso viu de tão imerso

26

que estava em sua tristeza. Walter suspirou e abanou a cabeça,

continuou:

A insânia de doutrinas e ideologias desenvolvidas nas

mentes alucinadas, embriagadas dos intelectuais rebeldes, vazios

de conduta moral, alheios à vontade da maioria dos homens

comuns e de bem, é que atrasa toda a evolução cultural e

espiritual de uma geração, e é neste estágio mental que se

desenvolvem os preconceitos raciais, culturais e religiosos – e

que, não raro, são originários de filosofias de espíritos

desocupados e desprovidos de valores morais. Foi neste ano

crucial para a História e para mim, que meu filho foi estudar na

Europa – sonho não realizado, por conta de um decreto que o

convocou para a guerra. Somos cidadãos do mundo e é

inadmissível que ainda possam existir tantos patriotas fanáticos.

O mundo é agora um só, não se pode mais agir isoladamente

como nos tempos antigos, quando tribos faziam guerras entre si

e sem afetar o resto do mundo. No entanto, o que temos nós a

ver com o ariano de sangue azul? O que temos? A Segunda

Guerra não era minha, nem do meu filho e nem de ninguém!

Pouco antes de ele ir para a guerra, ele me escreveu uma carta –

esta aqui veja!

Abri o envelope, as palavras estavam quase

27

indecifráveis, já que o papel estava amarelado pelo tempo. E o

que ficou da carta no fundo do meu coração foi:

A Meu pai.

Pai, não sei se terei o prazer de revê-lo um dia. Não

sei! A guerra é insana! Acabei de chegar, mas posso lhe

assegurar que não há razão para esta maldita guerra, como

nenhuma outra tem. Está claro: é um ato covarde, de limpeza

étnica! Que direito tem este tirano de obrigar-me a lutar?

Não diga nada para a mãe: não é justo que ela sofra, diga-lhe

apenas que estou bem.

Pai, guarde as lembranças da minha infância, pois foi

a melhor parte da minha existência, um alvorecer de

esperança e que muito aprendi com você e com meu avô. Eu

sempre me espelhei em vocês, na conduta, no caráter, no

amor. Meu abrigo contra os temporais, sem dúvida alguma,

foi meu avô e você. Talvez eu não realize meus sonhos, porém

tenho o consolo de que você e meu avô realizaram os seus.

Não se sinta culpado, porque o sonho de estudar na

Europa foi meu. Nunca devemos desistir dos sonhos e a vida

primeiro deve ser sonhada e depois realizada. Eu não sou

covarde a tal ponto de lamentar decisões que tomei para

realizar os meus. O senhor foi meu amigo, companheiro de

28

todos os momentos. Pai, eu te amo e te respeito. Você sempre

me apoiou em tudo e nunca exigiu acima do que eu poderia

realizar. Pai, tenho orgulho de ser seu filho, espero que eu

tenha atingido o ponto que você esperava que eu alcançasse e

obrigado por tudo, principalmente por ter cuidado de mim tão

bem.

Um beijo e um abraço forte, do filho que jamais te

esquecerá,

Walter Junior. ”

Desculpe-me, leitor, se você é como acredito que seja −

de alma sensível, sentiu o mesmo que eu, muita comoção.

Mas enxuguemos as lágrimas e sigamos em frente com a

narrativa…

Eu me coloquei no lugar dele, graças a isso pude

compreender o porquê de seu olhar distante e das rugas

precoces. O que faz um homem tão novo parecer tão idoso, tão

acabado? O sofrimento? As rugas do tempo são inevitáveis,

porém as marcas do sofrer são irreparáveis.

Walter estava tão bêbado que não conseguia nem falar

mais direito…. Eu tive de levá-lo até sua casa. Amigo serve é

29

para estas horas de insegurança e de melancolia, de

reminiscências que maltratam e machucam, quando

atravessamos sombras do passado que não passam e que

persistem em nos assombrar. É aí que precisamos do ombro, da

palavra e da cumplicidade de um amigo.

Esta era a situação do Walter, vivia encarcerado em

grades inflexíveis do passado, preso ao tempo que marcou

indelével seu coração.

Minha intenção era apenas deixá-lo na porta de casa, mas

ele insistiu tanto que eu entrasse que aceitei, e tomei até um

café. Olhei de relance a casa: era grande, confortável, chique e

aconchegante. Revelava acima de tudo a personalidade da

esposa de Walter, bem cuidada com verdadeiro esmero. Notei a

maneira positiva como Beatriz recebeu Walter, apesar dele estar

alcoolizado. Tratou-o de meu amor e quis saber como foi a

diversão no bar. Quanto a mim, recebeu-me muito bem,

agradeceu-me por ser amigo do Walter e por ajudá-lo a chegar

em casa são e salvo. Então, como retribuição, serviu-me um

delicioso café.

O café chegou na hora certa porque curou minha

embriaguez, embriaguez motivada pela solidariedade ao Walter.

Não se pode negar que uma associação exerce grande influência

30

na vida de uma pessoa. Somos seres influenciáveis e

influenciados, muitas vezes fazemos algo apenas para agradar

aos amigos, sobretudo aos amigos que conhecemos

recentemente. Na verdade, eu estava encantado com a erudição

de Walter, como jornalista, que me superava na inteligência,

então fui me aproximando, aproximando, até que conheci toda a

vida pessoal dele. Resultado: durante este período passei a beber

tanto quanto ele.

Ainda sobre a esposa de Walter. Beatriz é uma mulher

austera, porém encantadora, de olhos altaneiros e orgulho de

raça. É do tipo daquelas almas que não deixam transparecer os

encantos, desencantos e segredos da personalidade no primeiro

encontro. É uma mulher forte e especial – isso me fez

compreender porque a morte do filho não desestruturou a toda

família. Sem dúvida, pude perceber facilmente, que Beatriz era

um porto seguro para todos da família.

Ela estava com sono – isso me trouxe à minha realidade.

Era hora de eu ir embora. Walter insistiu que eu ficasse mais um

pouquinho, “Não vai agora, não; amanhã você não trabalha!...”

Quem te disse que não? Retruquei. “E músico trabalha? ”,

ironizou ele. “Claro! No meu caso, ainda dou aula em um

conservatório. ” - Vida de artista não é fácil no Brasil, amigo. -

31

Concluiu Walter.

Saí dali com a alma leve. Havia tempos que eu não tinha

um momento tão acolhedor, como aquele na casa de Walter. Eu

levava uma vida sem muitos atrativos e sem razões para

acreditar em felicidade, mas isso me cansava. Também o

ambiente de bares não é lá grandes coisas! As pessoas que

frequentam os bares, geralmente vão ou para afogar as mágoas,

ou para esquecer amores não correspondidos, ou em busca de

uma aventura amorosa, enfim, não é um ambiente para reflexão

e meditação – diferente dos cafés. Os frequentadores de bares

são tolos ébrios de ilusão, fingem felicidade, sonham encontrar

na bebida, em cada copo da saudade, ou da tristeza adquirida, a

bendita e tão desejada felicidade.

32

Nostalgia

A ida à casa de Walter me fez refletir sobre a minha vida

e me fez lembrar a minha família. Sou acometido de uma

tristeza profunda, ao falar deste assunto, mas já tive esposa e

filho, ambos a razão da minha existência. Mas preciso falar!

Caro leitor, peço desculpas, mas vou interromper a sequência

desta narrativa para falar um pouco de mim. Preciso explicar

esta nostalgia, que não é barata!

O que matou meu filho e minha esposa foi a tuberculose.

Essa doença matava sem dó e sem piedade, não havia os

remédios que hoje existem. Minha adorável Rose, companheira

33

de todas as horas, meu filho amado, quantas saudades sinto

deles! Quantas! Eu conheci Rose com vinte anos de idade, ela

tinha apenas dezenove. Eu a amava muito, talvez ela mais a

mim. Vivíamos um sonho sem igual. Com menos de um ano de

casamento ela quis ter um filho, mas não para completar, era

para transbordar a taça cristalina da nossa felicidade. Com a

chegada dele parecia que tudo estava perfeito. Mas quando ele

completou um ano de idade, Rose caiu doente e, logo em

seguida, foi a vez do Felipe – “contaminado com o leite”, disse

minha sogra.

Foi tudo muito rápido… Rose morreu três meses depois

de ser diagnosticada e, duas semanas depois foi a vez de Felipe.

A partir daí, mergulhei num estado de lástima total, achei que

não tinha mais saída, que não seria capaz de viver sem eles,

afinal, eles eram tudo o que eu sonhava ter na vida, que

conseguira e que perdera tão abruptamente.

Anos passaram, mas acho que ainda não superei

totalmente a perda dos dois. A tuberculose era uma doença

cruel, não poupava ninguém, matava pessoas de todas as classes

sociais, mesmo a classe dos boêmios, dos escritores, poetas e

artistas. Reside aí um paradoxo na sabedoria humana: fomos à

lua, mas não conseguimos destruir o bacilo de koch. Esta doença

34

foi sem dúvida um pé nos freios da cultura e da inteligência da

nossa era.

Mas vamos voltar para o objetivo deste singelo

compêndio de cultura inútil, meu livro, que é a vida do Walter e

não a minha história de vida que é tão simples e vulgar.

No dia seguinte, eu estava no bar, cantando para espantar

os males dos outros, pois para os meus não acreditava que

existisse remédio. Um papel importante é o dos cantores da

noite, são como prostitutas de luxo, obrigados a sorrir e a dar

prazer, quando na verdade estão infelizes. Também eles podem

ser de algum alento para a vida dos que vagueiam pelas noites,

sem rumo, sem destino, sem futuro e sem passado.

Ainda assim, acredito que existem amizades eternas que

começaram nos bares. Eu mesmo conheço algumas que deram

muito certo, como também amores eternos que terminaram em

grandes e felizes famílias, ou em amores de uma noite só, mas

inesquecíveis por toda uma vida.

E minha amizade com o Walter, será para toda vida?

35

Lembrança Fugaz

Certa noite, Walter quis saber sobre a minha vida

amorosa.

− Paulo, conte-me uma coisa: durante estes dez anos em

que canta nas noites cariocas nunca se envolveu amorosamente

com alguém?

− Não, ou melhor, sim!

− Como assim, já ou não?

− Sim. Mas não passou de uma paquera.

− Acho até que sei quem é!

− Será?

36

− Deixe de mistério, homem, conte-me logo quem é!

− Não! E por favor, não me ligue ao passado, pois não

vale a pena lembrar-me dela.

− Ah, mas eu sei que há muito mais a se ver! Vai, conte-

me tudo porque eu quero saber!

− Está bem, eu conto. Está vendo aquela mulher linda ali,

bem em frente ao palco?

− A Isabel, aquela nossa amiga, ou melhor, mais tua

amiga do que minha? Sim, estou. Espere aí! Então é com ela?

Grande Paulo, você tinha mesmo que ser mineiro! Conheço um

ditado que diz que mineiro é um perigo porque age às

escondidas, é verdade? ((Há! Há! Há!)

− Deixe disso, Walter! Mas vou matar sua curiosidade de

uma vez. Pois bem, ela ficou também viúva em nove anos, mas

logo se casou novamente.

− Ah, chega de detalhes! Mas escute aqui, eu não me

lembro de ter visto vocês juntos, e olhe que já nos conhecemos

há anos e há anos que venho aqui!

− Mas você vinha aqui sempre correndo, tomava um ou

dois drinques e ia embora!

− Não está querendo me dizer que agora sou alcoólatra,

está? Que bom amigo é você, Paulo!

37

− Não quis dizer isso. Sabe do teu limite, eu sei do meu.

Para mim, basta um drinque para me deixar alegre, já outras

pessoas tomam uma garrafa e não acontece nada (Há! Há! Ha!).

− Ai, ai, ai, você está me enrolando! Vai ou não vai me

contar?

− Vou, mas não agora; tenho que voltar para o trabalho.

Eu pensei que agindo assim, o Walter esqueceria, mas

não.

É evidente que eu não lhe contaria algo que maculasse

minha conduta, mesmo se tratando do meu passado. Poderia

sim, ele fazer mau juízo de mim, da minha índole, que

imaginava ser de casta pura...

Este modo de agir é comum entre os homens, não

importam como moralmente vivam, esperam sempre que os

outros lhes revelem algo do seu modo de viver, – sobretudo, dos

erros − para assim, fazer comparações entre as suas ações e as

ações dos outros, e no fim da adição, eles possam sempre achar

que ainda estão em vantagem, em melhor posição que os

demais.

No fim da noite, Walter me esperou, queria saber

daquela história.

38

− Então, seu enrolado, vai ou não vai me contar? Agora

temos todo o tempo do mundo...

O que despertou esta curiosidade no Walter foi o fato

dele ver o quanto eu era assediado pelas mulheres. Sempre e ao

fim da noite, vinham elas, mulheres solteiras, mulheres

separadas, mulheres sem marido vivo, mulheres sem marido em

casa, enfim, estas criaturas solitárias que vão aos bares para

encontrar alguém, quando não os encontram, cismam com os

cantores e lhes fazem elogios vagos, sem cunho crítico, só para

testar seu talento na arte da conquista.

−Vou lhe contar tudo, seu curioso de uma figa...

Ela me chamava sempre para tomar cerveja depois do

trabalho e eu nunca recusava. As coisas não estavam saudáveis e

tanto ela quanto eu estávamos infelizes e carentes. Nestes dias

de aproximação, nestas noites de colóquio amistoso, ela chorava

muito no meu ombro ao falar do falecido marido. Quanto a mim,

nunca lhe dei detalhes da minha amargura, da minha viuvez, ao

passo que ela sim, sempre me contava tudo, como tinha sido

feliz com o finado.

− E você, claro, consolava a coitadinha!

− Pare de ironia, Walter! Do contrário, eu não te conto.

−Nossa! O que aconteceu a mais?

39

− Durante muito tempo eu a levei em casa, mas nunca

entrava sempre a deixava na portaria. Você sabe, aqueles

prédios grã-finos de Copacabana.... Pois bem, ficamos íntimos,

acho que bons amigos. Uma noite, porém, ela não estava muito

bem, tinha bebido um pouco mais da conta − esta foi a

impressão que tive. Quando a deixei em casa ela logo me

convidou para entrar, “Vamos tomar um café! ”, disse ela.

Entrei, era um luxo só aquela sala, meu amigo! Nunca vi

tamanha opulência. Eram dois ambientes, um de som, outro de

leitura, e, em cada ambiente, jogos de sofás de couro, sendo um

branco e outro preto, pratarias, quadros diversos. Não sabia

muito dos quadros, mas posso dizer que custavam uma grana,

pela fineza do local e cultura de sua dona.

Assim que entramos, ela me falou.

− Paulo, fique aí quietinho que vou fazer um cafezinho

pra nós, viu?

− Não se preocupe, porque tenho de ir embora.

− Se você não tomar o café, me fará uma grande desfeita.

− Então, um café eu aceito. Mas, por favor, não muito

forte, porque meu estômago é fraco. É uma bendita gastrite, que

me acompanha desde que me entendo por gente...

40

− Eu entendo, porque esta fraqueza física é bem comum

nos artistas.

− Não só física, mas de caráter também.

− Eu não acho. Eu vejo vocês, artistas, seres

privilegiados por Deus, as almas mais nobres, que aliviam as

dores dos mortais anônimos.

− Obrigado pela parte que me sobra, mesmo não achando

tudo isso!

− Vou buscar o café! Disse, ligou a vitrola e saiu para a

cozinha.

Enquanto eu esperava o café, fiquei observando toda a

sala tinha muitos discos, livros e quadros que ocupavam a

parede inteira, recordes e sucessos do Brasil e do exterior. Na

vitrola, rodava um clássico, Frank Sinatra. Isabel cantava na

cozinha e, pelo visto, ela sabia todas as músicas, na ordem em

que elas vinham no disco. E diante daquele acervo milionário,

um desvario me veio subitamente, imaginei-me dono de tudo,

inclusive de Isabel. Meu pesadelo não demorou muito − dez ou

quinze minutos − digo “pesadelo”, porque não há sonho pior do

que desejar algo que não é teu e nem ter os meios para alcançá-

lo.

41

Talvez o leitor pense que eu seja inconformado com a

minha situação social e econômica, mas não sou!

Eu ri de mim mesmo. Pus as mãos nas cadeiras e

expliquei para mim mesmo que eu ainda não estava velho

demais para trabalhar e ser alguém na vida.

Do lugar em que estava na sala, a última coisa que eu vi

foi o retrato do finado marido de Isabel. Nesse ponto não pude

evitar, cheguei perto, para vê-lo melhor, e, naquele momento,

lembrei-me do que a Isabel havia me contado sobre ele, um

homem de bem e marido exemplar.

No espaço de alguns minutos, Isabel apareceu com uma

bandeja, um bule e duas xícaras. Serviu-me o café sem deixar de

sorrir um minuto sequer.

−Walter, aquela mulher é encantadora, e, naquele dia,

tinha um ar de princesa, um semblante angelical e olhos de

serpente. Não foi fácil resistir ao seu encanto!

− É, então rolou coisa mais séria?

− Rolou. Certa hora, ela foi até ao quarto, quando voltou,

voltou vestida de um lingerie branca e transparente, perfumada.

− E aí?

42

− Aí que ela desligou a vitrola, perguntou: Calma gato -

está correndo da polícia ou coisa parecida? Quero te mostrar

alguns discos e se quiser posso até te emprestar.

Notei que havia um interesse dela além do normal.

Então, ela sentou-se do meu lado no sofá preto, que parecia

conspirar a favor dela e contra mim, tamanha era a maciez e o

aconchego que me oferecia. E ela continuou.

− Não se sente só no mundo, Paulo?

− Sinto. Acho que, como você, tenho sofrido muito; a

solidão é deveras malvada.

− Pois eu, já me cansei dela, você não?

− Como assim Isabel, você já arrumou alguém?

−Ainda não, mas estou resolvida a mudar, a parar de

sofrer pelo meu marido. Ele não voltará! Não vou mais chorar,

chega! Meu luto ficou velho, se eu não me cuidar quem vai ficar

velha sou eu, não achas?

− Que quer dizer com isso? Já tem algum pretendente?

Perguntei, enquanto ela ria de maneira dissimulada.

− Acho que sim – respondeu, e se jogou em cima de mim

e beijou-me – beijo-me à queima-roupa, ou melhor, à queima-

boca.

43

Não tive como cair fora, nem como me equilibrar diante

do abismo daquela paixão, tão superior a mim, que caiu sobre

meu corpo fraco e carente como uma avalanche de carícias.

− O restante da noite, Walter (e leitor), não preciso nem

contar, ou preciso?

Depois daquela noite, não aconteceu mais nada entre

nós, pois a Isabel nem sequer me olhou mais. Eu soube até que

ela se casou com um magnata de São Paulo.

─ Vai entender essas mulheres da noite! Que

experiência, Paulo!

44

Nos Bares

Eu cantava para os que precisavam de alento, para as

desventuras da vida e para as amarguras amorosas, pois para os

meus desalentos, eu acreditava não haver antídoto. De quando

em quando me lembrava da noite passada. Como seria minha

vida se eu não fosse um simples cantor da noite? Quem ou o

que me trouxe até aqui? Sou um homem de cultura abaixo da

média, regionalista, só fui à escola para aprender a ler e a

escrever, só fiz uma viagem da minha terrinha (Minas Gerais)

para cá − isso porque peguei carona com um motorista de

45

caminhão, logo depois da morte do meu tio querido, que o

considerava um pai, por ter cuidado de mim desde a tenra

infância. Vim tentar a sorte no Rio de Janeiro, porque no Vale

do Jequitinhonha não havia a menor chance de progresso para

mim, já que eu sonhava em ser cantor.

O tio que me criou era uma pessoa esforçada, mas sem

jeito para administrar seus poucos bens. Hipotecou a fazenda em

virtude da seca que assolava a região, mas não adiantou, perdeu

tudo. Ele era idoso, e quando se encontrava sem esperança, não

suportava a tristeza assassina que lhe cobrava o tributo maior, a

sua própria vida. Quando ele morreu, achei que estaria tudo

perdido para mim também, mas felizmente não. Conheci a mão

amiga de um músico velho, um amigo que me ensinou a cantar e

a tocar violão. Foi isso que me incentivou a sonhar com dias

melhores no futuro. Ele sempre dizia:

“O Rio de Janeiro te espera”! Serás músico famoso,

cantarás em rádios e televisão, realizarás teus sonhos de artista,

quem sabes vais até para o estrangeiro! Lá (no Rio de Janeiro)

corre muito dinheiro, não é como aqui, onde se alguém olhar

para uma nota de cem reais, morre de susto! Meu filho, se eu

tivesse menos idade eu iria com você hoje mesmo. Coitado do

Seu Antônio, se minha sorte se resumia àquilo, imagine a dele!

46

Imagine! Ele já tinha seus oitenta janeiros e sobrevivia dos

cuidados dos filhos, também miseráveis como ele, nunca

conseguiram nada da vida.

Pensando bem, sou tal qual o senhor Antônio: sem

alegria e frustrado na sua insignificância.

Eu conheci o pai do senhor Antônio, era forte e cheio de

vigor, morreu com 110 anos. Eu o olhava e toda sorte de

pensamento me vinha à mente, nada mudará, se aqui eu estou

só, no Rio de Janeiro também estarei, então é melhor que eu

parta logo, e sem demora.

O pensamento é um dom divino e o nosso bem maior, só

nosso. Não há tesouro que se compare ao exercício mental e não

há lei e nem território que o proíba. Ele é livre e habita em um

universo sem fronteiras. Embora tenha dono, quando ele nos

deixa, quando sai da esfera sensível, quando o lançamos no

espaço, este filho pródigo rebelde não volta mais para a casa do

pai.

A ideia de ir para o Rio de Janeiro ficou remoendo na

minha cabeça. Não decidi na hora, porque nem grana eu tinha

para viajar e nem onde ficar. Como me convencer, no entanto,

de que eu, músico pouco talentoso, que nunca tinha arredado o

pé do Vale do Jequitinhonha precisava ir para o Rio de Janeiro.

47

A resposta estava na própria pergunta, meu pouco talento me

trouxe para cá. Afinal de contas, por que não ir, que tinha eu a

perder?

“Quando morre uma flor, nasce uma semente; quando uma

semente morre, nasce uma planta. E a vida continua o seu

caminho, mais forte do que a morte. ”

― Tagore

48

Mais uma noite

Uma semana depois, lá estava o Walter de volta ao bar e

com uma cara bem melhor do que a da semana passada. Ele

puxou uma cadeira e sentou-se. Depois do “show”, digo no

intervalo, pois nunca considerei show o que fazia... cantar em

um bar... Fui cumprimentá-lo.

− Como vai? Meu amigo.

− Muito bem.... Vou levando. Quero agradecer a você

por tudo, sobretudo pela paciência em me ouvir naquele dia, e

por ter me levado para casa bêbado. Mostrou ser o que é - um

amigo para o que der e vier.

− Sou mesmo assim, acho que devemos ser assim, ter os

49

braços abertos para todos. Saiba que foi um grande prazer ouvi-

lo e ir até a sua casa, conhecer a sua esposa. A Beatriz é muito

simpática e generosa, por sinal uma dama incomparável! Vocês

formam um casal perfeito. Parabéns! Parecem muito felizes!

− Somos relativamente felizes, apesar do sofrimento

incomum. Almoça lá em casa no domingo, que tal? Emendou

com um sorriso cativante, acolhedor.

− Claro que irei, amigo. E com muito prazer!

− Então está combinado?

− Sim. Estarei lá no domingo.

Conversamos, mas nada muito especial aconteceu

naquela noite. Também não cansarei o leitor com miudezas da

minha vida... E como de costume, já era tarde quando voltei para

casa. Eu era um homem muito diferente, não tinha muitos

amigos, nem mesmo da minha profissão. Não sou puritano, mas

isso de não ter amigos faz parte do meu temperamento, do meu

caráter moral. Não sou dado às paixões inferiores, não me

divirto com a miséria alheia.... Eu não acredito nos prazeres

comprados. Nos bares vizinhos, de onde eu trabalhava, não raro,

eu via alguns músicos saírem com amigos e amigas, outros com

amantes. Não compreendia como eles poderiam ter tanto vigor!

Preciso dar vida a “Labirinto Emocional”,

50

homenageando também outro amigo, que é músico e poeta, um

homem talvez mais sofrido do que eu. Ele é canhoto, talvez a

razão de ser tão perito em sua arte. Toca bossa nova como os

grandes precursores. É a ele que recorro quando quero aprender

a cantar e a tocar alguma música nova. Leitor, refiro-me a

Oliveira Gomes, e se você o procurar nas redes sociais,

encontrará pelo menos algumas poucas canções que representam

sua arte musical e poética. Para que o leitor não pense que eu

sou um homem desprovido de gratidão, aqui deixo registrado o

nome dele mais uma vez, Oliveira Gomes. Este poeta e músico

merece ser imortalizado, assim com o Walter da minha ficção,

assim como os outros que chegaram a fazer grande sucesso.

Ele morava sozinho num barraco, pois nunca teve

condições de construir uma moradia melhor. Ele bebia mais do

que eu, mas nunca o vi completamente bêbado. Fui visitá-lo

algumas vezes, e fiquei pasmo em ver como ele gostava de

tomar café – duas garrafas por dia. A cada copo de café, ele me

dizia que não há felicidade sem vício. Eu nunca discordei dele,

pois sabia que ele era um sábio, apesar de anônimo. Todo prazer

gera um vício. Afinal o que é o amor, senão um vício da alma?

Há, portanto, que se admitir que haja almas mais viciadas que

outras.

51

Quem sabe eu volte a falar de Oliveira Gomes! As

agruras da vida do Walter podem tomar toda minha

generosidade e a arte da escrita, que já é deveras acanhada.

Encarei o trabalho como a razão única de viver. É assim

com os loucos da noite, não dormem nem mesmo quando estão

com sono. E eu tirava proveito destas noites mal dormidas para

compor canções como esta.

Leva meu pranto meu dissabor/Por isso eu canto

para espantar a dor/ Meu violão não aguenta mais

sofrer/ quebrou as cordas com saudades de você./. Não

tem papel, nem caneta para escrever/ falta argumento

para que eu possa te dizer/ Leva meu pranto meu

dissabor/ por isso eu canto para espantar a dor./. A dor

que dói deixa marcas sem furar/ e eu não consigo um

minuto me calar. / Leva meu pranto meu dissabor/ por

isso eu canto para espantar a dor... (uma canção

harmônica em mi menor)

As canções que eu componho são tristes, não entendo

esta melancolia que me assalta sempre às noites! Não entendo!

Pode ser a solidão voraz, que sempre me vence, por mais que eu

52

tente sair das suas garras, que me agarram com uma força

descomunal... Não consigo a liberdade do espírito, quisera eu

voar livre dos pensamentos que me cercam por todos os lados da

consciência, quem me dera poder fugir deste mar de sombras,

que me assombra!

O que é a vida? Um piscar de olhos, um instante

singular, uma paisagem na janela da eternidade. Quando

pensamos que pegamos a estrada certa que nos leva ao sonho, ao

ideal, ao objetivo, à felicidade prevista, sentamos e até tiramos

um cochilo, então vem alguém e nos acorda para o

desembarque, para descermos na próxima parada. Ou quando

pensamos que entramos na estrada, chegamos ao final da

viagem.

Outra noite sem novidades. Tudo correu como sempre, o

mesmo tédio diário da vida comum. Eu, um homem vulgar, sem

grandes feitos, sem realizações importantes, sou mais um

personagem fraco de personalidade, que às vezes conquista o

respeito dos seus coparticipantes do drama da existência

humana e, que em outras vezes, na maioria delas, é massacrado

pelo poder consciente do vil metal, do capitalismo burocrata

que dita o valor de cada ser vivo, humano ou não.

53

Aqui confirmo minha teoria, o amor romântico não

passa de uma grande piada de muito mau gosto. O homem é só

mais um verme que inventou e desenvolveu sentimentos para

preservar, para perpetuar a espécie, entre eles, o maior e

senhor de todos é o instinto de sobrevivência. Este atingiu um

estado maior de evolução, por isso não se satisfaz mais com o

pão de cada dia, com o exercício da manutenção diária da vida,

alcançou também o prazer da embriaguez e da luxúria, do

conforto material.

Todos estes pensamentos eu os atribuo ao meu vizinho,

um velho escritor que, vez por outra, me conta histórias dos

romances e dos livros de filosofia que leu. Eu detesto os

pensamentos deles, são depressivos, mas, muitas vezes, sem

querer, me pego repetindo as suas ideias funestas. Estes

filósofos são sempre uns desequilibrados mentais, que pensam

saber tudo da vida, mas as suas próprias vidas não são lá grandes

coisas, não raro são suicidas predestinados. Vivem sempre

isolados do mundo, não têm amigos, muito menos amores. Eu

evito sempre a companhia dele, para não me tornar mais amargo

do que já sou. O nome dele é Cícero. Não sei o que quer dizer

este nome, mas quem sabe se refira a algum autor de livros

inúteis e ultrapassados, ou a algum sábio grego ou romano.

54

Na semana passada, ele me perguntou o que eu esperava

da vida, já que eu, com quarenta anos, era um homem sem fama

e sem dinheiro, viúvo, sem amor, sem companhia? E emendou,

dizendo que a vida não valia a pena, que viver é algo muito

enfadonho. Para fundamentar seu pensamento, citou um tal de

Schopenhauer, que segundo ele morreu tendo como companhia

apenas um cão vira-lata. Eu confesso que fiquei sem resposta. O

que eu poderia lhe responder? Afinal, para mim não havia boas

expectativas futuras. Eu quase lhe disse que concordava com

ele, se não o fiz, foi só para não lhe deixar mais arrogante do que

já é. Este é um dos motivos, pelos quais eu não lhe dou muita

confiança, para que ele não mine mais a minha estrutura

emocional.

“Como libertar o homem comum de sua ignorância espiritual,

sem, contudo, lhe enganar com a promessa de um céu de

ociosidade nem lhe escravizar com um inferno de fogo, criado

por mente maligna com o fim de dominar inocentes? A

inteligência cósmica de Einstein pode ser o primeiro passo para

uma aurora iluminada. ”

― Evan Do Carmo

55

Um dia especial

Eram quase dez horas da manhã quando fui à casa do Walter.

Não sabia o porquê, mas o dia parecia ser diferente, com cara de

ser muito especial. Preferi ir andando pela orla marítima,

respirar ao ar livre e escutar o leve ruído das águas do mar se

batendo na areia. O sol estava brilhante como prata, o mar azul,

caprichosamente azul, não azul com tons de retórica. Apenas

azul, um azul celestial. Não conseguia conter os pensamentos,

pensava em como seria os filhos de Walter, e que idade teria a

filha que ele mencionara por nome de Rute…. Ao mesmo

tempo, questionava a mim mesmo, se eu tinha, por acaso

motivos para tais devaneios, afinal de contas eu estava há tanto

tempo sem pensar em romance, sobretudo em uma mulher,

56

exceto em minha inesquecível e já falecida Rose. Isso

desencadeou uma reação de censura, “Ainda devo ser fiel à

Rose”, disse em voz alta e aprecei os passos.

Ao chegar à casa do Walter, eu hesitei um pouco em

apertar a campainha, mas antes de ter a chance, vi um anjo

borboleteando ao lado, no jardim. A fascinação foi tanta, que fiz

um poema.

Quão formosa é a tua silhueta,

Borboleta que vem ao meu encontro

Tens as asas da cor de violeta

Assemelha-te à luz do pirilampo

Extasio-me com teu perfume santo.

A borboleta tinha cor azul ou lilás? Acho que tinha todas

as cores do arco-íris da esperança. A imagem foi de perfeita

sincronia estética - magnífica e incomparável. Nunca me

encantei tanto assim. Minhas pernas não me conduziram e

minha mente ficou no mesmo ponto, imóvel, não queria nem

podia desviar os olhos daquela flor divinal, que exalava um

cheiro especial, que me dominava, paralisava todos os meus

sentidos. Fiquei − acho que um quarto de hora - ou uma

57

eternidade - sem ação e reação.

A casa do Walter, como a maioria das casas daquele

tempo, conservava na frente um belo jardim. Era comum às

casas de famílias nobres terem uma área de jardins maior do que

a área construída, e em sua casa o jardim era de beleza singular,

e por que não haveria de ser? Quem cultivava as flores era a

mais linda rosa do jardim de Deus, a Rute. E ela estava ali no

jardim, então já não soube distinguir bem se era uma rosa ou um

anjo, a Rute que me encantou à primeira vista.

−Bom dia, senhor Paulo! Disse ela.

− Bom dia, moça! Você é filha do Walter?

−Sou sim.

Incomodou-me muito ela me chamar de senhor, muito

embora me parecesse um gesto educado, mas ignorei, quem sabe

depois ela percebe que não sou tão velho assim!

Houve um Silêncio intrigante. Depois eu quebrei-o com

uma pergunta simples, mas apropriada.

− O Walter se encontra?

− Sim, ele está esperando pelo senhor na sala. Entre!

Eu entrei.

− Olá Paulo, seja bem-vindo, vejo que é mesmo pontual!

– Exclamou, apertando a minha mão. É um prazer recebê-lo em

58

nossa casa.

− O prazer é todo meu, amigo!

Nesse momento, Beatriz entrou na sala com uma garrafa

de cerveja e dois copos. Cumprimentou-me, depois: “O almoço

já estava quase pronto”, disse, e nos deixou a sós.

Walter pediu que eu me acomodasse da melhor maneira

possível, então me sentei num sofá branco, onde podia olhar o

jardim pela janela, mas logo o Walter serviu-me um copo de

cerveja e sentou-se do meu lado.

Deu o primeiro gole de cerveja e disse que sem a cerveja

ninguém aguenta a dureza da vida. Um gole serve para muita

coisa, até para nos acalmar. Também nos faz esquecer as dores

de consciência, não acha?

−Sim. Mas não bebo esporadicamente ou socialmente

como dizem por aí. Você sabe que não tenho muita afinidade

com o álcool, bebo no máximo três copos, acredito até que seja

uma fraqueza minha, ou do meu estômago.

− Não vai me dizer que passa mal com um gole?

− Claro que não!

Houve uma pausa em nossa conversa, em seguida eu lhe

perguntei:

− Então, Walter, seu filho, onde está?

59

− Está na sala de jogos. Mas logo vai conhecer a todos.

Você já conheceu Rute?

− Sim. E com todo respeito, porque não sou um homem

galanteador por natureza, mas ela é um encanto.

Rute tinha vinte e nove anos, mas parecia que tinha vinte

três. Não era velha e nem nova para não se casar, estava na

idade ideal. Naquele dia, por acaso era o meu aniversário. Eu

estava completando quarenta anos, mas não disse nada para o

Walter, também nunca dei muita importância para aniversários,

especialmente nos últimos quinze anos.

Um homem sem família nem tem tempo para estas datas

ditas especiais. Aliás, o que há de especial nesta data é que

ficamos mais velhos. Eu não tenho parente, o trabalho é minha

família. Eu era o último e único da família, último de um ramo

genético de uma árvore maldita... Acho que daquela videira que

o Cristo amaldiçoou por não dar frutos.

Esta cena merece este adendo. O fato de o Cristo ter

amaldiçoado a videira, um erudito comenta. “Se trata de uma

ilustração intrigante, de uma lição com uma conotação

puramente simbólica. O tempo não estava adequado para a

videira ficar carregada de frutos. Com isso o Cristo queria dizer

60

que, aqueles que se tornassem ramos da videira original, que

era ele próprio, não teriam dificuldades para produzir frutos da

sua doutrina mesmo em qualquer estação.”.

Já no ultimo copo de cerveja, Beatriz entrou na sala. “O

almoço está na mesa!”, disse isso com um sorriso amável no

rosto. “Opa!”, exclamou Walter. “Vamos lá!”, emendou.

Nós ainda estávamos na sala quando o filho caçula de

Walter entrou. Armando era cadeirante, sorridente que só! −

Característica destes seres iluminados que veem ao mundo com

as limitações físicas, mas cheios de virtudes e de prazer pela

vida. Ele fitou-me profundamente, como se fôssemos amigos de

longa data. Amei aquele ser, não por ser limitado, mas por sua

sinceridade, segurança e a firmeza de olhar.

Nunca havia passado por esta emoção, a força que ele

possuía no olhar não me era compreensível, seu semblante,

apesar das deformidades da doença, era suave e sereno, seu

olhar passava um ar seguro, satisfeito e resignado e não

demonstrava irritação por ser cadeirante. Mergulhei

profundamente em sua alma para compreender um pouco do seu

modo de vida vegetativo e, quanto mais fixava meu olhar no

seu, mais tranquilo ele ficava, era como se ele entendesse meu

61

especular mental. Dizia-me que era feliz, sorria

incontrolavelmente como resposta para minhas indagações.

Sinceramente não compreendia sua alegria, que era para mim

imprevista e desproporcional para sua história e para o seu viver

emocional e físico.

Vamos almoçar minha gente! Disse Beatriz. E depois de

curta pausa: − A comida vai esfriar!

A mesa era farta. Uma tigela de frutas da época e carnes

diversas, outra de salada, guloseimas variadas, pães do Oriente,

muito azeite, castanhas e queijos suíços. Um banquete! A mesa

farta me lembrava de alguns natais com a minha família, época

em que minha esposa reunia nossa família para uma ceia em

grande estilo, apesar de sermos uma família humilde. O fato de

reunir os parentes era importante, mas isso só acontecia uma vez

por ano. Não raro, porém, eu faltava a estas festas por causa do

meu trabalho noturno e incomum. Mas toda esta fartura era

agora uma novidade para mim, já que eu almoçava sempre na

cantina da Dona Valdelice, uma mineira que mais parecia baiana

por sua intrépida personalidade e alegria contagiante. Ela era

cozinheira de mão cheia, mas não variava o cardápio. A cantina

muito me lembrava das minhas origens, do tempo de agregado

na fazenda do meu tio, onde todos os dias só se comia angu de

62

milho com carne de frango e quiabo.

Era comum na casa do Walter a oração antes do almoço,

apesar de eu suspeitar do seu ateísmo, e naquele dia não foi

diferente. Rute quem fez a oração. Não lembro quais foram as

suas palavras, mas foi tudo muito profundo e verdadeiro, aquele

instante sagrado, aquele colóquio com o Divino, com o Criador.

Eu não acreditava em nada, era ateu também, ou pensava que

era. Aliás, eu não poderia ser ateu, só há duas coisas que podem

tornar um homem ateu, a arrogância do intelecto e o

sofrimento, que o faz desacreditar de Deus ou em qualquer

plano divino. Perto de Rute eu não tinha sofrimento. Aquele

almoço, não só pela companhia, mas especialmente pelo clima

do ambiente familiar foi muito marcante para mim. Algo mais

importante do que um ritual sagrado, foi como se eu estivesse

participando de alguma cerimônia religiosa. Senti que minha

alma se alimentou e se elevou também com aquele banquete de

tantas virtudes morais e espirituais. Contudo, hoje eu tenho

consciência do quanto aprendi com as agruras da vida e acho

que não se crê em Deus por escolha. São as dores que nos

desvirtuam a visão do que é realmente sagrado ou divino. Um

lar, onde mora a harmonia e onde a paz impera entre seus

membros, pode ser uma representação fiel do que é sagrado.

63

Quando uma família se reúne num espírito de solidariedade,

quando vencem as disputas mesquinhas que só rebaixa a alma

humana, isso por si, já é um ato de adoração ao criador, que nos

legou uma inteligência singular.

Terminado o almoço, Walter convidou-me para irmos à

varanda.

− Vamos prosear mais um pouco, não é assim que se diz

em Minas? − Disse o Walter.

Walter gostava de me provocar, ora caçoando de meu

sotaque mineiro, ora das palavras que faziam parte da minha

etnia, do meu vocabulário vulgar.

− Paulo, o que achou da minha família? Que impressão

teve até aqui?

−A melhor possível. Você tem filhos e esposa

maravilhosos

−Sim, amigo. A vida não tem sido fácil para meu garoto

de ouro. Conviver com este destino, com esta doença, significa

um sofrer constante. Ele nasceu assim, não fala, não anda,

precisa de ajuda para tudo, exceto para respirar. Mas Beatriz e

Rute têm sido fortaleza e amparo, fazem tudo por ele. Rute não

tem vivido sua própria vida, ultimamente até parou com os

estudos, na verdade, há dez anos que vive só para ele. De lá para

64

cá, ficou mais fácil para Beatriz, mais leve, elas se revezam

nesta pesada luta diária... Rute nem pensa em se casar, diz que já

resolveu isso no coração, com o fim de ajudar mais a Beatriz, ela

ama a mãe e faz tudo para amenizar seu sofrimento. Rute é

mesmo um anjo.

“E que anjo! ” Pensei comigo.

Eu, que era cético, já começava a acreditar em anjos,

faltava pouco para eu acreditar em um milagre – milagre este

que seria ter aquele anjo nos meus braços para a vida toda.

O leitor pode achar estranho, porque ainda há pouco

tempo nem em Deus eu acreditava, agora já acredito em

anjos… Isso é porque você leitor, talvez nunca tenha lido o livro

de Jó! Pois então leia e verá que ele também teve seus

momentos de lamúrias Justas, e se não quiser ler Jó, leia

Hamlet −a essência real do que é humano.

Contei para o Walter um pouco sobre minha desventura

familiar e, após ouvir, Walter disse: “Amigo, lamento

profundamente! ” Só estranhei que Rute e Beatriz não ficaram

na varanda conosco. O Walter, parecendo adivinhar minha

indagação mental me falou.

− Elas estão dando atenção ao Armando, ele sempre tem

convulsão depois do almoço, mas não se preocupe Paulo, pois

65

elas tiram de letra, já são muitos anos de experiência.

−Armando já dormiu, disse Beatriz, entrando na varanda.

Logo atrás veio Rute, dizendo. “Agora podemos dar atenção ao

Paulo! ” Foi então que pude ver a cor dos olhos de Rute: azul.

Também foi naquele instante que aqueles olhos me roubaram os

meus e a minha alma.

Olhos, por que são tão poderosos na força de convencer,

de condenar e de perdoar? Até de dominar sem o uso das mãos,

sem o uso da força física e brutal? Fiquei escravo daqueles olhos

e daquela moça, que passou a ser a dona não só dos meus olhos,

mas também de minha vida, do meu futuro e do meu coração.

Que encantamento desmedido, diria uma pessoa de bom

senso, mas o amor não se explica só se sente, e por ele se é

dominado, sem rejeição consciente.

− Paulo, Walter me disse que você canta muito bem −

disse a Beatriz com seu riso peculiar e emblemático. Que tal

cantar agora? Já podemos ouvir, com a devida atenção que a

música e o cantor merecem.

− Com prazer, dona Beatriz! Se tiver por aqui um violão,

é claro.

− Vá buscar o seu violão, Rute, hoje teremos cantoria

66

com profissional! Gritou Walter entusiasmado, já sob a alegria

incomparável do álcool. Rute pegou o violão que estava em

outra sala, me entregou sem demora, atendendo ao comando do

pai.

O violão estava judiado, sem uma das cordas, e

desafinado. Tão judiado, que tive pena do coitado pelo mau trato

que sofrera. Enquanto o afinava travei uma conversa com o

maltratado violão.

E que sorte esta tua, amigo violão, estar tão perto de um

ser tão sublime e digno da devoção de todos os instrumentos!

Daria tudo para trocar de lugar contigo − mesmo que fosse

apenas por uma hora, e ficar na sua intimidade solitária. Ou

para ter sido a madeira da qual te forjaram, sortudo violão, não

me importaria com os golpes de machado que levaste, com sol e

água que pegaste na preparação para alcançar o estado de

madeira seca, para a fabricação. Daria tudo para ser você, e

ser acariciado por ela no início de sua dedicação à música,

quando aprendera e descobrira o encanto dos primeiros

acordes.

Bossa nova no Brasil era a bola da vez, por isso eu

cantei na casa do Walter. Todos aplaudiram sem nenhuma

67

observação digna de nota ou crítica. Durante a cantoria cruzei

olhares duas ou três vezes com Rute, não percebi nada, nem

recebi nenhuma admiração recíproca, ela não se empolgava

muito fácil com músicas, parecia-me até um pouco triste e

distante.

Mais tarde, Rute nos serviu um café − este não foi tão

amargo como me parecia a sua vida atual. Eu não queria muito

ir embora, queria ficar ali. E até o violão, companheiro dileto,

parecia ter encontrado em mim um irmão na solidão e na dor.

Disse-me ele.

“Não vá amigo! Toque mais uma canção, Rute está

gostando de nos ouvir! Cante aquela canção! Aquela, amigo!

Eu poderia ficar ali por toda a eternidade ou por toda a

vida que ainda me restava. O deus Crono, contudo, foi deveras

ingrato, por acelerar a rotação do relógio do tempo para

alcançar a velocidade do meu coração.

Como já era muito tarde, por volta de nove horas da

noite, e no outro dia eu tinha que acordar cedo. Fui embora:

deixando meu sonho para trás.

68

"O amor não se explica só se sente, e por ele se é dominado,

sem rejeição consciente”.

Evan do Carmo

69

De volta à realidade

Sabe quando falamos para nós mesmos: “hoje foi um dia

muito bom para se viver, valeu à pena acordar? ”.

Foi isso que senti. E minha alma pulava de alegria por eu

ter concedido a mim mesmo um dia tão singular, onde pude

distrair meu coração, e sentir que nem tudo estava perdido.

Poderia viver e até sonhar em ser feliz outra vez. Poderia, se eu

quisesse dar uma resposta para meu vizinho filósofo, dizer para

ele que a minha vida valia muito a pena ser vivida. Mas eu

poderia estar enganado em acreditar que, por conta daquele

almoço, tinha eu o direito de sonhar tão alto. Tudo foi real. Mas

tudo foi.... Eu estava feliz, e não precisava mostrar isto para

70

ninguém.

Porém, a minha realidade era bem diferente da de Rute:

Eu Morava num quarto-e-sala em Copacabana, eu mesmo

lavava e passava minha roupa, arrumava a casa… estes afazeres

sem importância, mas que alguém sempre precisa fazer para que

nosso lugar de morada não se torne um habitat de animais. Não

sou organizado, no entanto, aprendi às duras penas que os

afazeres de casa precisam ser feitos, afinal uma casa por mais

simples que seja, se for limpa se torna agradável para se viver.

Eu tinha uma vida corrida: Cantava nos bares e dava aula

num conservatório. A música era uma atividade que me dava

muito prazer. Cantar e ensinar aquilo que aprendi me dava um

senso de utilidade, de quase realização. Ser necessário para

alguém, na altura da minha existência me confortava bastante.

Não estou reclamando da vida, minha carga era um tanto mais

leve do que a do Armando ou mesmo das duas boas almas que

cuidavam dele. Um deficiente na sua condição precisa de

muitos cuidados e reclama doação total do tempo. Imagino

quanto desprendimento deve ter uma pessoa com esta

responsabilidade! Eu não me acho capaz para isso e nem mesmo

para entender esta faceta da vida, ou do destino! Qual a razão de

nascerem pessoas assim como o Armando, no seio de famílias,

71

como a do Walter, onde encontram pessoas abnegadas como

aquelas, especialmente as duas mulheres, Rute e Beatriz? Dizem

os “entendidos”: é por motivos de dívidas de vidas passadas. Eu

não aceito este argumento; quem recebe o pagamento? É Deus?

Outros dizem que Deus é amor. Que me perdoem os que

acreditam em teorias tão vazias como estas, penso que na

verdade, este tipo de crença atrapalha o desenvolvimento do

amor altruísta; quando as pessoas deviam fazer de forma

voluntária e não por achar que devem este amor para os

vitimados por distúrbios da natureza. Só sei que nós, os seres

dito “normais”, aprendemos muito com estes exemplos de vidas,

com suas vidas, que para nós mais se parecem com um vegetar

inútil. Embora não compreendamos bem o porquê dessas vidas,

tiramos muito proveito delas, quando pesamos e comparamos na

balança do existir o nosso sofrer com os deles... Principalmente

quem tem o privilégio de receber no berço familiar uma criatura

como Armando, aprende a ser agradecido a Deus e à vida pelo

que tem. São motivos que desconhecemos totalmente: O porquê

de nascerem aqui, neste mundo tão desumano, exemplares da

fauna de Deus, tão humanos. Mesmo aqueles que não

pronunciam nenhuma palavra têm o dom de nos ensinar a ópera

musical da vida...

72

Achei o amor

Achei o amor, o insolúvel enigma

para os deuses, mas real para homens.

Achei o amor, em meio à contradição,

entre o medo e o abismo.

Achei o improvável, o que ninguém presumia

o teorema das águas e do fogo.

Achei o amor, a soma do equilátero

do infinito, sem medida.

Achei a consumação de tudo, do fim e do meio,

achei o etéreo-efêmero.

Achei o amor, o impossível, o imanente,

o átomo divisível, sem cor, nem corpo ou gênero.

Evan do Carmo

73

O encargo

Walter trabalhava no Jornal do Brasil, jornal mais

importante do Rio de Janeiro e do Brasil, onde assinava uma

coluna sobre política, publicada diariamente e uma das mais

lidas e comentadas. Não há como negar, para mim Walter era o

homem mais sábio que já conhecera, pois entendia muito sobre

tudo, era um poliglota, e era dotado de linguagem e estilo

próprios. Com ele aprendi muito, aprendi teorias e leis

científicas, como da evolução, da relatividade e da gravidade. As

viagens de trabalho tiravam Walter do aconchego da família,

mas quando chegava ele era presença viva e intensa entre os

74

seus. Exceto quando ia ao bar me ver tocar e beber sua cerveja.

Eu, contudo, já nesta época, levantei suspeita sobre sua

conduta moral. O que fazia um homem casado, chefe de uma

família tão linda e tão especial, tanto tempo ausente de casa?

Algumas semanas se passaram até que eu o vi outra vez.

Foi quando ele apareceu no bar e me surpreendeu com uma

confiança que eu até então não sabia ter junto a ele e à sua

família. Depois de uma longa conversa, sempre agradável e

descontraída, Walter me disse:

−Paulo, meu grande amigo, eu vou viajar e não sei

quanto tempo ficarei ausente. Preciso que alguém de minha

inteira confiança ajude a minha Beatriz enquanto eu estiver fora.

Sabe muito bem o que é uma casa sem uma figura masculina,

fica vulnerável a perigos de predadores de toda sorte!

−Sinto-me lisonjeado por tamanho apreço e farei o

máximo para corresponder à altura desta digna missão. Será sem

dúvida um prazer ser útil a um amigo querido como você. Mas

me conte: O que realmente preciso fazer?

− Nada muito difícil para um homem de bom caráter e

inteligente como você. Quero apenas que dê suporte à minha

família. Diariamente Armando precisa ir ao hospital, Rute tem

feito isso de maneira muito terna e amorosa, mas quero que ela

75

aproveite mais a vida, que estude, trabalhe e namore... Rute não

reclama da vida que leva, mas sinto que ela anda muito cansada.

−Walter, fique tranquilo, darei o melhor de mim, embora

eu ache que a figura paterna, nestes casos não se pode substituir.

Mas me diga Walter, quando viaja e para onde?

−Viajo na próxima semana para Londres. Na próxima

sexta-feira quero que jante conosco, assim você vai se

familiarizando mais com os assuntos em pauta. E mais uma

coisa, no sábado quero que vá comigo à fazenda, pois tenho uns

assuntos pendentes por lá e quero que você os acompanhe

também. A fazenda não é de muitos alqueires, mas exige

administração, pois tenho alguns funcionários. Você já me falou

que seu tio era fazendeiro e que tem prática nisso, então se sairá

muito bem. Mas que fique claro isto, pagarei a você pelo

serviço. Afinal não devemos confundir nossa amizade, lhe serei

grato eternamente por este feito. Se recorri a você é porque não

tenho ninguém na família para este cargo de tamanha confiança!

Tenho o capataz, Juvenal, só que é muito idoso e ignorante, não

resolve todos os assuntos sozinho. Tenho alguns empregados na

fazenda que cuidam dos assuntos domésticos, e da casa aqui do

Rio quem cuida é a dona Francisca. Não gosto de ostentar

riqueza, a fazenda foi herança da mãe de Beatriz, confesso que

76

não tenho muito jeito para a vida no campo, só que alguém tinha

que tocar pra frente, até que um dia achemos quem compre

aquilo lá. A Beatriz não concorda comigo em vender, tem muito

valor sentimental para ela, coisa de família, você sabe como é.

Na sexta-feira, fui à casa do Walter, como havia

combinado. Fui recebido com cordialidade e carinho, que só é

dispensado a alguém muito querido, a alguém da família. Pude

rever a Rute, que até então não me parecia real aquela imagem

de tamanha beleza e sublime ternura. Na sua segunda aparição,

contudo, o anjo surgiu mais encantador ainda. Disse-me o anjo:

−Paulo, como tem passado? Estamos contentes de saber

que seremos auxiliados por você na ausência do papai. Prometo

não lhe dar trabalho, a não ser exigir que cante para alegrar

nossas noites tristes e solitárias. Não me esqueci daquele dia em

que almoçou conosco, em que cantou tão bem! Achei que você

tem um enorme bom gosto quanto à escolha do repertório, e

gostaria de ouvi-lo outra vez, isso quando puder, quando for

possível. Ela referia-se à canção que falava: “Aqueles olhos

negros... Rute me pareceu bem mais amável e feliz”.

Disse isso com um sorriso inebriante, e com um olhar

matreiro, como se quisesse me dizer algo mais. Será que ela

também estava enfeitiçada pelo anjo mágico do amor à primeira

77

vista? Teria eu, com toda a minha aparência vulgar despertado

nela algum sentimento além de piedade? Ela já se interessava

por mim? Ou era só o orgulho da luxúria, de ter aos seus pés um

escravo cantor?

As palavras de Rute me soaram um pouco intrigantes,

principalmente: “que cante para alegrar nossas noites tristes e

solitárias”. Então, pensei se eu não estava ciente sobre a minha

tarefa de administrador de fazenda e do lar. Mas esqueci por um

tempo este assunto.

Depois do jantar, do usufruto da mesa farta e do vinho

saboroso e raro para mim, fomos à varanda conversar, como

fizemos da vez passada, da primeira vez que os visitei

formalmente, pois na primeira vez que estive em sua casa fora à

noite, no dia em que conduzi o Walter embriagado.

Walter expôs e com detalhes, meu encargo, me confiou

muitas responsabilidades, até sobre dinheiro, aplicações e

pagamentos de funcionários...

Eu estava disposto a organizar minha vida para assumir o

cargo que Walter me ofereceu. Durante a conversa na varanda,

ele me disse que era importante que eu pudesse ficar em sua

casa em tempo integral, pois o Armando estava bem pior na sua

78

luta pela vida, mostrava já sinais de cansaço terminal, e a família

temia que o pior estivesse para acontecer a qualquer momento.

Esperava a qualquer instante o desfecho da sua vida na morte,

que lhe traria o descanso eterno e merecido. (Palavras do

Walter.) Foi, então, que compreendi as palavras de Rute sobre

alegrar as suas “noites trises e solitárias”, para mim, as suas

palavras era como se ela soubesse o que estava para viver.

Ficamos conversando até altas horas. E aquele dia foi

inesquecível para mim, porque conheci melhor o anjo que eu

não sabia que podia existir de verdade. Ouvira falar de anjos,

porém nunca os havia visto assim tão de perto, assim em carne e

osso, tão perto de mim e com aquele sorriso, com aqueles olhos

azuis tão encantadores. Por que aqueles olhos decifravam os

pensamentos mais secretos da minha alma? Só havia visto a

Rute duas vezes e eu tinha consciência de que era muito pouco

tempo para tamanha perdição, embora eu soubesse que os

mortais tenham fascinação por seres celestiais, e que lhes bastam

apenas um contato, um aceno, para que se tornem eternamente

devotados desses seres superiores. Penso que é aí que reside o

ponto fundamental de encontro do ser humano com o ser divino,

o amor, o encantamento, a paixão carnal e avassaladora. E a

mulher sempre será nossa incógnita eterna, para distinguir o que

79

é santo e o que é profano.

Enquanto eu e Walter conversávamos, minha mente não

parou: Será que darei conta do recado, não iria eu decepcionar

meu amigo? Além disso, pensava: E se eu me envolver

emocionalmente com Rute? (O amigo leitor deve dizer que já

me envolvi da sola do pé até o pescoço). Mas o nosso coração é

um poço fundo de engano, e por mais que neguemos um

sentimento, mais óbvio nos revelamos aos olhos dos outros.

“Medes o meu espírito pelos afetos humanos; mas é porque não

sabes como saiu depurado do crisol de um padecer infernal. ”

“Examinas bem a tua consciência e diga-me qual é para os

corações nobres o motivo imenso, irresistível das ambições de

poder, de riqueza e renome”? “É um só, a mulher: É esse termo

final de todos os nossos sonhos, de todas as nossas esperanças,

de todos os nossos desejos”. Humberto de Campos

Outro desafio que enfrentei foi mudar minha rotina.

Nós, seres humanos temos muito medo de mudanças,

especialmente no que se refere ao trabalho. Ficamos

condicionados a um modo de vida, que embora não seja dos

melhores, não queremos arriscar tudo em algo novo. Lembrei

aqui algo muito interessante que apreendi sobre a águia:

80

“A águia aos quarenta anos, precisa passar por

um processo de reciclagem física e mental. Ela tem uma

escolha, para continuar vivendo, então sobe numa

montanha, lá fica por seis meses, para ganhar um novo

bico e penas novas, ela começa assim, sua auto

metamorfose, rala o bico nas pedras até cair todo o bico

velho, este processo leva em média dois meses, depois

que o bico novo nasce ela começa agora arrancar suas

unhas e penas velhas, depois que nascem e crescem suas

unhas novas e penas, ela está pronta, agora, para o novo

voo e uma nova vida, que pode chegar aos 70 anos. ”

Muitas vezes tentei mudar de emprego, mesmo

ganhando uma miséria nunca consegui sair do meu modo

simples de ver a vida, nunca faltou o pão, acho que na verdade

sempre fui feliz com o pouco que eu tinha.

Agora minha vida seria outra, passaria a viver em uma

casa com pessoas amáveis, trabalharia numa atividade diferente

do que eu idealizei.

Naquele dia, não consegui dormir. Era tudo demais e

81

especial para mim. Falo do meu amor por Rute. E se fosse

engano, uma carência, ilusão da minha parte? Um anjo daqueles

não iria me dar confiança…. Resolvi dar tempo ao tempo, assim

saberia se o que sentia por Rute era verdade e se ela também iria

corresponder ao que eu sentia.

O tempo é mestre em assuntos do coração, em

sentimento mal-entendido. Os sentimentos não envelhecem,

amadurecem, e o tempo tem a dieta certa para engordar ou

emagrecer estes vermes que nos alimentam e que nos devoram.

Walter e eu levantamos cedo, quando o dia ainda

amanhecia. Tomamos café e seguimos logo para a fazenda.

A fazenda não ficava muito longe – a uma hora do Rio

apenas. Fomos de carro – de carro novo, do ano, um Jeep muito

bonito, vermelho, um luxo daqueles dias. Beatriz e Rute não

foram. Logo que chegamos, Walter me apresentou ao senhor

Juvenal, que nos recebeu com muita alegria e hospitalidade –

uma característica de gente simples, que não vê maldade nos

nobres cavalheiros da cidade.

Lá pude perceber o tamanho da minha tarefa, quanto era

grande a minha futura responsabilidade. A fazenda não era de

muitos alqueires, mas tinha muitas atividades, criava-se ali gado

de corte, muito gado por sinal, isso no meu ponto de vista, que

82

por ser carente tudo me parecia grande. Nada ali combinava com

o que eu sabia a respeito do Walter, porém, ele já explicara que

a fazenda era herança da Beatriz. Entretanto, o Walter não era

nada interessado pela fazenda, falava sem muita preocupação,

como se não lhe pertencesse. Acho que tinha um quê de

despeito, por ter herdado aquilo tudo, era como se se sentisse

humilhado por ter que dizer que foi herdada da família de

Beatriz.

Conheci também o filho do senhor Juvenal. Ricardo.

Ricardo era um jovem de vinte e cinco anos e, pelo que percebi

sabia muito mais da fazenda do que o Juvenal e o Walter juntos.

Quando viu o Walter, logo perguntou:

− Seu Walter, a Dona Beatriz não quis vir hoje? E Rute,

como está ela? E o Armando, como vai?

O Ricardo demonstrava certa liberdade para com a

família, falava um tanto agitado e sem olhar para o Walter.

Achei-o fraco de personalidade, mas me enchi de ciúmes dele.

−Não Ricardo, Beatriz não veio. E Rute vai muito bem

obrigado, mas o Armando não está muito bem.

−Sinto muito, senhor Walter! Espero que Armando

melhore!

Depois desta breve conversa, fomos andar pela fazenda.

83

Aquela paisagem era muito familiar. Fez-me lembrar de minha

infância em Minas Gerais, quando cavalgava no campo com

meu tio. Ele tinha uma pequena fazenda, onde eu aprendi muita

coisa, como plantar, cultivar, regar e colher.

Durante este passeio, me mordi todo de ciúmes do

Ricardo, porque ele parecia muito íntimo de Rute. E todos os

pensamentos passaram pela minha cabeça… O que há entre os

dois, por ventura algo tipo de namoro? Por que ele fala muito

nela? Será que ele desconfia do meu amor por Rute? As pessoas

simples, não raro, se apresentam dessa forma, gostam de fingir

intimidade com desconhecidos ou com pessoas importantes, mas

no meu caso não se aplicava nem um nem outro.

Passei o dia na fazenda, me inteirei sobre quase tudo.

Mas uma dúvida me atormentava. Seria o Ricardo capaz de

cuidar de tudo da fazenda? Ele nasceu na fazenda, conhecia cada

canto daquele chão − com suas peculiaridades. Mas bobagem

minha…. Tudo na fazenda estava harmoniosamente colocado

nos seus lugares, funcionavam muito bem as coisas por ali.

Então, não vi necessidade da minha presença naquele lugar. Mas

por que Walter me quer ali?

84

“Como libertar o homem comum de sua ignorância espiritual,

sem, contudo, lhe enganar com a promessa de um céu de

ociosidade nem lhe escravizar com um inferno de fogo, criado

por mente maligna com o fim de dominar inocentes? A

inteligência cósmica de Einstein pode ser o primeiro passo para

uma aurora iluminada. ”

Evan Do Carmo

85

O ciúme

Eu fiquei intrigado com as feições do Ricardo quando ele falava

da minha querida Rute. Acreditei que os dois se amavam. No

coração de um apaixonado não há lugar para consciência ou

razão, tudo é sangue, instinto, força e domínio brutal. Um ser

apaixonado vira louco, perde a condição humana perante a

tragédia, como também perde o dom sublime de refletir sob a

luz da inteligência. Por mais que eu tentasse não demonstrar

minha fraqueza, terminei por revelar a quem não devia, as

minhas intenções futuras. Perguntei ao Walter.

−Walter, o que acha do Ricardo? Ele me parece bem

íntimo, como alguém muito próximo de sua família...

86

−Ele convive muito conosco, é verdade, também é amigo

de infância de Rute, cresceram praticamente juntos. Quando

íamos para a fazenda nos fins de semana, eles brincavam no

campo, tomavam banho de cachoeira, andavam a cavalo….

Estavam sempre juntos. Mas nunca tiveram nada, posso lhe

garantir e depois, Rute é muito madura e responsável, não se

envolve com empregados meus - disso eu tenho certeza.

Respirei bastante aliviado. Mas me arrependi de ter

perguntado ao Walter sobre o Ricardo, porque se Rute não se

envolvia com empregado do pai, quiçá com um músico velho e

pobre. Quiçá!

Todavia, o fato de Walter me garantir que sua filha

nunca tinha tido nada com o Ricardo me deixou deveras

convencido. Teria o Walter percebido o que se passava por

minha cabeça e pelo meu coração? Dizem que os pais querem

sempre o melhor para os seus filhos, e neste caso, poderia sim o

Walter ter vislumbrado esta possibilidade, a de ter um amigo de

confiança como seu genro?

87

Na cidade

Pela tarde do dia seguinte, Walter levou-me ao cartório no

centro do Rio de Janeiro, para assinar a procuração, pela qual ele

me nomeava seu representante legal, para agir em seu nome em

todas as situações em que não poderia estar presente. No ato de

assinar, quase voltei atrás, mas Walter me convenceu com

argumentos tão concisos, que acabei aceitando tudo sem mais

indagações. Walter agiu como alguém que não voltaria nunca mais.

Supondo assim, logo me justifiquei:

−Quero deixar bem claro que eu não tenho intenção alguma

de roubar-lhe o que por direito lhe pertence - seus bens nem a sua

família.

88

− E nem pode, pois esta procuração só tem valor jurídico

por algum tempo, sobretudo enquanto eu viver.

Estar à frente dos negócios do Walter significava mudança

radical de vida, e era isso o que de fato eu queria. Eu estava muito

acomodado e sem perspectivas.

A falta de ambição nos priva de asas para voar para outros

continentes, para respirar outros ares. Somos como animais feridos,

o natural, portanto seria o desejo de novas conquistas, não aceitar

uma situação perene. Por que os pássaros migram? Para doar suas

energias para que outras vidas venham à luz do mundo. O ser

humano em depressão esquece-se do seu papel natural que é

impulsionar a vida para outros destinos. Sentir-se assim, como eu

me sentia, não é algo benéfico, nem para quem sofre o mal e nem

para nossa espécie humana. É como se disséssemos que não somos

criaturas capazes de ir além do instinto, pois, além da verdade, o

instinto não cessa nunca seu trabalho de procriação e de respiração.

Entregar-se ao estado de vida vegetativo é um retrocesso de

inteligência. A natureza nos ensina lições todos os dias, a cada

nascer e a cada pôr - de- sol. À noite, as criaturas noturnas vão à

procura da sua sobrevivência. Há, portanto, um equilíbrio do

planeta que permite a convivência de criaturas muito distintas.

Quanto aos seres humanos, eles são uma espécie incomparável no

que tange a criar novos caminhos. Há uma ilimitada lista de opções

89

para engendrarmos nossa existência de modo nobre e produtivo.

Então, vamos criar novos caminhos para que outros que venham

depois de nós possam ter milhares de oportunidades para

impulsionar o crescimento da nossa espécie tão singular. Para a

inteligência não pode existir barreiras intransponíveis. Aprendamos

com os animais a exercer a força mental que nos legou a natureza

criativa de Deus!

90

A sobrevivência do homem e do planeta depende: se seremos ou

não capazes de desenvolver a tolerância. Este pensamento é

comum entre grandes espíritos humanistas. Cito dois pelo

menos, Russell e Saramago.

Evan do Carmo

91

No Rio de Janeiro

Quando cheguei ao Rio de Janeiro, era jovem – com

apenas 19 anos, − inexperiente e sem muita formação

profissional. Com isso, sofri como um condenado. Eu não tinha

dinheiro para viajar, vim de carona. Eu não conhecia ninguém

na cidade e nem a própria cidade. Foi a época em que eu mais

caminhava pela cidade, batia de porta em porta pedindo

emprego e com essa vontade de mudar de ares, bati na porta do

bar e do conservatório de música, onde estou até hoje.

Cheguei com duas peças de roupas na mochila e com um

violão debaixo do braço, violão que ganhei do meu tio. Quando

92

olho para o violão, lembro-me das palavras do meu tio: “Será

uma lembrança minha para toda sua vida, pois do primeiro

violão e do primeiro amor ninguém jamais esquece ou se

desfaz.”

Passei fome até encontrar um homem bom, daqueles

que Deus faz um e joga fora a receita. Com isso, comecei a

sobreviver, tendo o que comer e um pouco de paz de espírito.

Este homem bom a quem me referi, era um professor do

conservatório, onde dei aulas até me mudar para casa de Walter.

Lógico que eu não entraria pela janela, passei por um

teste simples no conservatório. Aprovado, comecei uma vida

nova. Assim aconteceu no bar. Se tais oportunidades não

aparecessem, eu estaria ainda vagando pelas ruas, dependendo

da bondade de algumas senhoras que me davam sempre algo

para comer e beber.

Comecei como professor auxiliar. Com o tempo, o

professor titular, Jorge Figueira (o mesmo que estendeu as mãos

para mim), viu a minha capacidade, sugeriu para o diretor uma

espécie de cadeira cativa para mim. O diretor concordou.

Jorge Figueira era cantor das noites também, era casado

com uma cantora francesa, mas de sangue latino, pois, o

convívio com os brasileiros fizera com que ela perdesse o

93

sotaque. Às vezes, ela aparecia no conservatório e cantava por

insistência minha a canção “La Boemia”, que muito me

fascinava e fascina até hoje. A língua francesa é sem dúvida a

voz que mais se aproxima da voz de Eva no Paraíso do Éden

perdido, quando ela dizia ao seu Amado Adão, que o amava na

língua mãe.

Embora eu fosse bom estudante e conhecedor de um

pouco de música, eu fiz questão de ser aluno de Jorge Figueira,

aulas inesquecíveis de música e de canto. Com isso, me

atualizava sempre. Morei na casa de Jorge Figueira por oito anos

e posso afirmar que foi ele a minha verdadeira faculdade de

música e de vida. Graças a ele conheci muita gente da música e

da arte. Depois fui morar na Zona Sul, porque ficava mais perto

do bar. Foi lá no bar que conheci o Walter...

No ano em que completei dez anos de bar, Jorge Figueira

ficou viúvo.

94

UMA DICA DO JAZZ

O que há de belo na velhice é a poesia da inutilidade. É claro

que esta ideia ou ponto de vista não é de um velho, mas pode

bem ser de uma jovem que tenta interagir com um velho em

profunda decadência física e mental...

Contudo, o velho tem a seu favor a experiência, conhece os

atalhos por onde teve que passar. Atalhos estes que certamente

um jovem ainda não trilhou e nem conhece...

Sempre há uma justificativa para o absurdo, uma causa, um

efeito e, a despeito do que podem pensar o velho e o jovem,

ambos estão trilhando a mesma estrada, escrita pelo caos.

Todavia, como no Jazz, aproveita melhor a falta de harmonia

aquele que souber improvisar. A propósito, sou velho e toco

jazz.

Evan do Carmo

95

A despedida

Foi muito doloroso me despedir de Walter, pois tive a

impressão de que nós não nos veríamos mais. Abraçamo-nos

demoradamente, foi quando percebi que em seus olhos havia um

quê de mistério e de loucura.

Quando voltei para a casa do Walter, vi Beatriz

preparando meu quarto, com carinho. Isso me deixou muito

feliz, porque sabia que eu era bem-vindo ali. Além disso, sabia

que podia contar com cada um, como se fossem minha própria

família.

A Beatriz me pareceu muito resignada, parecia já estar

96

acostumada com a ausência do esposo. Rute também não se

preocupou nem se queixou com a ausência do pai. Isso foi bom,

assim tirava dos meus ombros a responsabilidade de confortá-

las.

Meu papel não passava disso agora: ficar e estar atento

às necessidades dos membros daquela amável e solidária

família. Rute era pessoa muito reservada e muito ocupada com o

irmão. Com isso, eu mal a via, a não ser quando juntos

levávamos o Armando ao hospital.

Como motorista, eu não forçava a barra, não havia clima

para uma conversa amorosa e nem para expressar-lhe a minha

paixão. Entretanto, acreditava que chegaria uma hora em que eu

pudesse dizer-lhe o quanto a amava.

Uma vez por semana eu ia à fazenda. Como sempre tudo

por lá estava sob controle. Contudo, eu aproveitava para arejar a

cabeça, apreciar a natureza, e para andar a cavalo… E pensar na

minha adorável Rute.

97

A confissão

Numa das minhas idas à fazenda, o Ricardo me chamou

para conversar. E a conversa foi assim…

− Tudo em paz na cidade?

− Sim, Ricardo. E tudo sobre controle.

− Paulo, não sei se já chegou ao seu conhecimento que

eu vou embora para a Bahia…

− Sim, já. Juvenal falou – interrompi.

− Ele falou também que, antes de ir, vou me casar?

− Isso ele não me falou não. E quem é a moça?

− A Lurdinha.

− Lurdinha? Não conheço. De qualquer modo, torço para

98

que sejam felizes. Há quanto tempo vocês se conhecem?

− Ah, rapaz, há muito tempo!

− Amor de infância!

− Não é bem amor de infância. Pausa. Meu amor de

infância deixou de me amar quando virou moça.

− Hum, que chato! E quem é?

− A Rute... Na verdade, Paulo, acho que o verdadeiro

amor é o da infância, porque crescemos e nunca nos esquecemos

dele.

−Concordo!

Embora aliviado, eu senti ciúmes − e dos mais

mortíferos. Que coisa é o coração apaixonado, Rute e Ricardo

não estão juntos, mas, no entanto, estava eu louco de ciúmes!

Que coisa!

Agora meu presente era promissor. Rute era meu futuro,

meu presente e minha verdade.

− Mas não me chamou para falar apenas da Lurdinha,

ou foi?

− Não, Sr. Paulo, quero lhe pedir algo!

− Peça!

−Meu casamento está chegando e vou precisar de

dinheiro. Pretendo comprar um pedaço de terra na Bahia,

99

começar vida nova e segura ao lado da minha Lurdinha.

Gostaria de receber tudo o que é meu por direito, falo de direitos

trabalhistas, Senhor Paulo. Posso contar com o senhor neste

respeito?

−Não se preocupe, vou lhe pagar tudo que tem por

direito e mais alguma coisa por minha conta.

−Obrigado! Eu sabia que podia contar com o senhor.

Houve muito respeito da parte do Ricardo, mas me

impressionei com o olhar dele. Ficou evidente que ele morria de

inveja de mim. Eu também não morria de amores por ele, só que

não deixava transparecer. Hoje penso que neste ponto eu

demonstrei alguma superioridade sobre ele. Entendo que as

pessoas mais fracas, ou mais inocentes, são, não raro, muito

transparentes. Então, eu pensei comigo mesmo. Que Ricardo

suma de vez do meu caminho!

Na fazenda corria tudo muito bem, mas eu não estava

ainda confiante de que seria feliz nos meus empenhos, nos meus

projetos para vida amorosa, de uma vida feliz a dois outra vez.

Até que um dia aconteceu algo não desejado, mas

esperado por todos da casa. A morte de Armando. Coube a mim

resolver tudo na funerária e no cemitério. Nesta ocasião vi

Beatriz e Rute definharem. Pareciam não suportar o fel, aquela

100

segunda desventura da família. Os dois filhos herdeiros já não

existiam, e para Beatriz só lhe restava a filha querida,

companheira e inseparável. As duas passaram a viver

confinadas em casa, como duas prisioneiras das agruras da vida.

Todas as noites eu era um espectador solitário de um

drama incomum e sem fim. Na hora do jantar, durante as

orações de agradecimento pela comida, era Beatriz que sempre

se lembrava do último filho morto, porém tão presente naquela

mesa. À sua direita, estava ele com sorriso largo a responder

com os olhos vivos e sadios, às indagações de sua mãe, quando

esta lhe perguntava se estava tudo bem, se queria mais comida, e

se estava sentindo alguma dor. Ele era o primeiro a ser servido,

não raro com a ajuda de Rute. Agora à mesa, as duas almas se

alimentavam de lembranças, lembranças estas que sempre lhes

serviam como sobremesa um doce amargo e recheado com

desencanto e desilusão. E neste drama eu era apenas um

figurante, alguém anônimo. No entanto, eu não podia ficar como

observador passivo desta peça fúnebre, que possuía um só ato.

Quase sempre que as personagens saiam do palco abraçadas eu

ficava sozinho, como plateia, esperando ser convidado para ser

quem sabe, no outro dia, um ator coadjuvante. Mas, no dia

seguinte, a comédia era a mesma, apenas um breve e frio boa-

101

noite para mim, como plateia assídua e constante de uma

tragédia incomparável.

Muitas vezes eu tive o ímpeto de sair de cena, mudar

meus hábitos e horários de alimentação, mas sabia que se o

fizesse, seria falta de respeito para com as normas da casa. Foi

em meio a este desejo que constatei que a Rute estava muito

longe dos meus sonhos.

Eu fazia de tudo para ver Rute alegre e feliz, quase

sempre em vão. Ela vivia trancafiada no quarto, lendo seus

livros de psicologia e alguns romances clássicos que eu nunca

tive fôlego para ler. Era muito triste, parecia uma flor murcha,

sem perfume, em véspera de fenecer. Eu vivia a lhe falar que a

vida devia continuar e, sobretudo, as nossas vidas... Mas Rute

não tinha ouvidos para músicas novas.

À medida que os dias passavam, minha preocupação

com o Walter também aumentava. Ele não telefonava, e

ninguém sabia do seu paradeiro. Logo ele, um amigo perfeito e

um exemplo de marido e de pai de família. Era assim que o via,

pelo menos até aquele momento! Então resolvi investigar onde

ele estava e o que estava fazendo - logo participei esta minha

decisão à Rute.

− Rute, eu não consigo entender o comportamento do

102

Walter. Por que ele não nos telefona ou nos escreve?

− Eu gostaria de conversar sobre isso com você, mas

não posso sem o consentimento de minha mãe.

− Tudo bem. Mas não pense que sou intrometido nos

assuntos de vocês. É que sofro por vê-las tão sozinhas! Torço

muito para que você e sua mãe reajam a esta dolorosa perda e à

ausência do Walter. Embora entenda o lado de sua mãe, ainda

assim quero conversar com ela sobre o paradeiro do Walter.

− Concordo.

Aquela foi uma noite de inteira solidão. Eu não

descansava um minuto sequer o pensamento, a ansiedade me

devorava progressivamente. E a manhã do dia seguinte foi tão

igual às demais. Logo cedo fui ao banco e fiz as compras da

casa, os deveres de um serviçal. Felizmente, o mesmo não posso

dizer da noite porque tive a alegria de conversar com Rute e

Beatriz.

− Paulo, vamos conversar na varanda?

− Claro!

− Queremos saber um pouco mais sobre você. Com

certeza, você tem muitas histórias para nos contar, sobretudo dos

bares da vida, por onde cantou e viveu, e certamente foi muito

feliz.

103

Rute afundou a cabeça no peito da mãe e caminhou para

a varanda. Lá se sentou no sofá, bem ao meu lado.

− Sobre minha vida? – Falei. Não há muito que falar,

também devo lhe dizer que muito feliz eu não fui, não como a

senhora pode pensar. Na verdade, eu preferiria cantar para

vocês.

− Não, meu caro Paulo, não é hora para cantoria – disse

Beatriz, um pouco incomodada com minha atitude e palavras

inapropriadas.

Sim. Não era ainda hora para cantorias, ela tinha razão, e

muito menos para piadas de mau gosto. Cometi uma grande

tolice ao me oferecer para distrair as enlutadas. A insegurança

nos faz falar o que não devemos. Fui um verdadeiro imbecil,

uma besta insensível! Contudo, as duas estavam bem melhor do

que antes. Faces coradas, um leve sorriso nos lábios e passos

mais leves. Por isso, eu já me sentia mais alegre e percebia que a

noite compartilhava comigo, pelo menos na alegria de viver.

Que cem anos se passassem, ainda assim eu jamais

desistiria de ter aquela mulher em meus braços, pois algo me

dizia que ela já me pertencia! Não era nada de físico, ou de

paixão inferior, era um sentimento além da carne, além dos

desejos lascivos dos amantes do amor romântico vulgar. Era

104

amor sim! Amor de alma e de espírito. Embora

inconscientemente, eu e Rute tínhamos as mesmas aspirações,

caminhávamos na mesma direção, em busca do amor eterno, do

amor perfeito, e caso ele não existisse, nós o inventaríamos.

Como foi marcante e profunda a convicção que tive

naquela noite, uma certeza mais que absoluta de que eu desejava

Rute, com toda intensidade do meu coração, como mulher, a

mulher da minha vida, minha alma gêmea, a outra metade da

minha carne.

Quando o verbo em mim calar

cessará todo o julgamento do mundo

a consciência do medo se dissipará

e hão de se fechar todos os abismos

então reinará o imponderável silêncio

sobre o discurso da dúvida...

Evan do Carmo

105

O sonho

Fui dormir com a alma leve e sonhei a noite inteira com

a Rose, minha esposa morta, tão presente em meus pensamentos

e sonhos. Mas se antes meus sonhos com ela eram de saudade,

sofrimento e dor, agora não mais. Com uma face corada, como

se estivesse muito bem viva e saudável, ela me disse

−Paulo meu amado, fico feliz que tenha encontrado um

novo alento, um novo objetivo, uma alegria nova, um novo e

sincero amor. Saiba que os momentos que vivemos juntos aqui

na terra foram sublimes. Você foi um marido fiel e muito

presente, um verdadeiro pai e amigo. Não pense que eu o

condeno por buscar a felicidade nos braços de outra mulher,

106

pelo contrário, estou torcendo daqui para que dê tudo certo pra

vocês. Você tem o direito de tentar outra vez. Nós, meu Amado

Paulo, enquanto na carne não somos capazes de compreender as

razões da vida atual, dos amores e porque as almas se unem,

nem tampouco sabemos a razão das separações por morte

prematura como fora a minha. Agora entendo que deve tentar

outra vez ser feliz, deve viver e sonhar e até se divertir com os

prazeres temporários da carne decaída. A vida é uma dádiva

preciosa de Deus, um presente incomparável e não devemos

desperdiçar nenhum minuto dela. Devemos viver, tentar ser feliz

e fazer felizes os que vêm em nossa direção.

Aquele sonho foi tão real que eu não consigo descrever

em palavras o quanto fiquei aliviado, era como se ela realmente

aprovasse meu desejo de ser feliz, embora eu soubesse que era

meu inconsciente querendo e recebendo a sua aprovação, talvez

por sentir remorsos, porque eu lhe fiz a promessa absurda de

lealdade eterna. Mas a minha promessa não fora assim tão

estúpida, pois nunca me passou pela cabeça que uma mulher tão

jovem e saudável como ela viesse a falecer tão precocemente.

Contudo, devemos admitir que promessas são promessas

e não compromissos. Promessas são palavras faladas muitas

vezes sem pensar, sem medir o tamanho da distância a ser

107

percorrida, para cumprir, para alcançar o objetivo e o preço da

dívida acordada. E neste contexto eu não tinha o capital moral

para saldar a minha dívida - minha promessa. Também não acho

que quem morre tenha a capacidade e o poder para cobrar

alguma dívida de nós os mortais que ainda persistimos em viver!

As conversas na varanda tornaram-se constantes. No

começo a Beatriz sempre nos acompanhava em palestras

amistosas. Trocávamos ideias sobre a vida, sobre os negócios e

quando surgiam assuntos de família, eu notava que a Beatriz não

se sentia muito bem, era a mágoa do desaparecimento do

marido, era visível a cicatriz ainda em carne viva e profunda.

Não era fácil sorrir sem se lembrar desse episódio triste...

Enquanto isso na fazenda, a vida dos funcionários ia de

vento em poupa. Recebemos o convite do casamento do

Ricardo. Beatriz disse que seria deselegante da nossa parte se

não comparecêssemos ao casamento do Ricardo. De fato, era.

A união de duas almas que acham que se amam de

verdade deve ser comemorada com tudo que se pode e se tenha

direito... E enfim, o casamento do Ricardo chegou! E eu não me

continha de tanta felicidade. Via nesta oportunidade a chance de

declarar meu sentimento, ali já maduro pelo tempo, para a tão

doce Rute... A família em peso esteve presente, inclusive

108

Francisca, que era a mais empolgada, afinal pegou os noivos,

que eram primos, no colo. Naquela época, era comum casar

primo com primo, e segundo a Francisca, eles se amavam já há

muito tempo, cresceram juntos, “E não entendo por que

demoraram tanto para se casarem. ” Disse ela, com lágrimas

nos olhos. Eu fingi não ouvir, afinal eu sabia o porquê da

demora. A moça era paciente, esperou o seu noivo de infância

desiludir-se do seu amor juvenil, para enfim lhe aceitar como

prêmio de consolação.

Lurdinha era uma moça bonita, morena de olhos

castanho-claros e muito simpática. Era mesmo bonita a danada,

especialmente de corpo, a natureza lhe fora generosa em vários

aspectos físicos. Não fez mal escolha o Ricardo, filha única de

pais humildes, como ele. Eram do mesmo nível social, por isso

tinham quase tudo para serem muito felizes.

Eu ganhei quase um amigo. Agora poderia descansar

com relação ao meu ciúme do Ricardo. Tornamo-nos mais

próximos, ele me falou bastante de seus planos para o futuro.

“Quero um pedaço de terra, quatro filhos e ser feliz com minha

esposa. ”

Para alguns pais, os filhos são a recompensa pecuniária,

ou seja, a segurança da velhice, pois eles (os pais) esperam que

109

lhes paguem o salário da compaixão, da dedicação que

dispensaram aos filhos enquanto crianças. Tolice, pensar assim,

porque os filhos crescem e esquecem-se dos pais. Trilham seus

próprios caminhos e arrumam suas próprias dívidas – dívidas

que só serão pagas no futuro, quando receberem da vida seus

próprios filhos “credores”, perdurando assim um saldo devedor

eterno, que passa dos pais para os filhos. Isso dá a entender que

alguém sai perdendo. Verdade? Se for pai, faça suas contas e

verá! Some tudo o que ofereceu, subtraia pelo que recebeu, aí

está o resultado: sua satisfação! Se é pai! Pois para as mães,

tenho outra receita...

Voltemos à festa de casamento: Tomamos muito vinho,

pois não há casamento sem vinho, assim como não há sem

noiva. Acreditam os festeiros de plantão que a bebida é o

melhor da festa do casamento e, que até o Cristo bebeu em um

casamento, dizem que quando acabou o vinho, não foi Ele

embora, mas que teria feito o seu primeiro milagre,

transformado água em vinho, em vinho de melhor qualidade do

que o que acabara. Isto se deu porque o rei Salomão também

gostava do vinho:

“É o vinho que alegra o coração do homem. ”

Diz um dos seus salmos. O vinho alegra também o coração das

110

mulheres? De fato, para ele, as mulheres, embora fossem mais

de mil, o seu quinhão hereditário como rei, não conseguiram lhe

fazer assim tão feliz, dizem até que foram as mulheres que o

levaram à morte e à desaprovação do seu Deus.... Diriam os

mais sensatos que o melhor do casamento é abraçar os noivos e

desejarem-lhes eternas felicidades!

Foi uma noite de encanto e de beleza para os pais e

amigos dos noivos, principalmente para mim, pois arrisquei até

uma dança. Não! Dancei primeiro com a noiva, é costume até

hoje os convidados dançarem com a noiva, para mostrar que

compartilham da alegria do casal.

A música era simples, mas autêntica e as modas eram de

primeiríssima linha. Com a música veio-me a nostalgia, pois

havia muito tempo que eu não ouvia aquelas canções sertanejas,

só mesmo em Minas e no tempo em que conheci a música em

sua real essência, em seu estado bruto. O meu amigo, o senhor

Antônio tocava dias e noites as mais lindas canções do

cancioneiro popular brasileiro.

No casamento, os músicos tocaram uma música muito

especial, a letra falava de dois passarinhos na mesma gaiola, que

se consolam mutuamente nas horas difíceis da vida. Foi nesta

hora que disse para Rute: “Venha comigo! ” – e ela veio

111

dançar…

− Mas só uma! - Ela disse - Não sei dançar direito,

perdoe-me se te pisar os pés.

− Não se preocupe, também nunca fui muito bom nisso.

Rimos juntos pela primeira vez, foi mágico, seu sorriso

largo e condescendente, como na segunda vez que a vi, só que

agora tinha um ar novo de cumplicidade. Não tive assunto para

conversar, mas não me importei, eu queria apenas sentir a

verdade daquele momento singular.

Dançamos agarradinhos, mas com muito respeito é claro,

apesar de Rute me fazer tremer sempre que se aproximava de

mim, mas naquela noite eu não tinha em mente nenhum

pensamento que não fosse puro e quase santo, para com um anjo

que me enfeitiçara. Não sei precisar nem escrever que perfume

era aquele, só que foi marcante e único, não me lembrava mais

como era o cheiro do amor. Porém, aquele era o cheiro que eu

sem dúvida não queria jamais esquecer, nem parar de sentir e de

respirar. Ao aconchegar seu corpo junto ao meu, senti-me como

alguém com a alma roubada; não tinha mais vida própria,

viveria para sempre ali, por aquele abraço, naqueles braços, que

era para mim o paraíso no seio de Deus.

Naquele instante comecei a acreditar verdadeiramente

112

em algo divino, em um Deus muito generoso que criara aquele

anjo e que permitia que eu, um simples mortal sem fé, sem

crença, usufruísse a sua meiguice e a sua ternura. Não seria eu

mais o mesmo homem, depois de ter chegado tão perto do céu.

Um novo pensamento morava e dominava na minha mente. Não

me importo se não concretizar meu sonho de viver ao lado de

Rute para sempre como marido. Até ali, já se passara um ano, e

eu esperaria uma vida inteira ao seu lado como amigo. Eu senti

que era o dono do momento e mais nada me bastava.

Mas vieram os questionamentos: O que será que Rute

sentiu ao dançar comigo? Ela me ama tanto quanto eu a amo?

Como saber se ela me ama? Mais uma vez esperarei por meu

amigo, o velho tempo, aquele mesmo tempo que amadurecera

meus sentimentos? Não! Tenho que agir! Afinal, não tenho a

vida toda para esperar pelo tempo, que não tem pressa e que não

envelhece.

Já no fim da festa, eu olhei para Rute e tive a clara

impressão de que ela me amava, pois ela não tirava os olhos de

mim. Eu ia falar-lhe do meu amor por ela, mas Beatriz chamou-

nos para ir embora, “Está tarde! ”, disse ela. Mesmo assim, eu

não podia reclamar da sorte, eu tive Rute nos braços – o que

significava o início da eternidade, eternidade que juntos

113

viveríamos um grande amor.

Porém, infelizmente, a vida continuou na mesma rotina

nos seis meses seguintes. O trabalho, a recuperação da Beatriz

(que já saia com a filha para um pouco de distração), compras,

passeios.... Minha alma não suportava mais tanto silêncio dos

meus sentimentos e dos de Rute. Que amor era este que

sobrevivia a tanto descaso? Por ventura, Rute e eu estávamos

entregues ao acaso? Eu tinha o direito de ainda sonhar com Rute

ou o que vigorava era verdadeiro e imbecil ditado. “O amor é

cego? ”

Nada disso! Rute me amava e eu a ela. Eu que nunca

tive coragem de lhe dizer o quanto a amo. Tinha eu o receio de

perdê-la com uma declaração intempestiva que poderia ser vista

por ela como amor de adolescente ou paixão irresponsável.

Muitas noites, ouvindo a música do mar e o canto das estrelas,

quis eu lhe contar e cantar meus sentimentos e derramá-los aos

seus pés, mas tinha medo, medo de que depois que derramasse

aos seus pés meus segredos, meu sangue e minha vida, não

pudesse mais apanhá-los, se por acaso ouvisse um não.

Se fosse poeta lhe escreveria um belo poema, contudo, a

vida real é distinta da fantasia que vivem os poetas, sinto que na

verdade, poeta algum teria condições de descrever ou de

114

escrever o que realmente é um grande amor. O que é o amor em

sua condição mais sublime, como era o meu amor por Rute.

Tinha que esperar, era só o que eu poderia fazer, e o

tempo seria o juiz magnânimo dessa minha condição de escravo

do amor.

É certo que é louco aquele que ama, pois quem ama ignora o

perigo de não ser amado. Contudo, é ainda mais louco aquele

que ignora a possibilidade de amar.

Evan do Carmo

115

Hora crucial

Até então, eu não tinha coragem para dizer que a amava.

O destino lançou a sorte, e que sorte de homem eu era, que não

tinha coragem para jogar o jogo do amor? Eu tinha isto a meu

favor, quanto à sorte, para alguns supersticiosos, quem for

miserável e excluído da fortuna pode ser vencedor na loteria dos

sentimentos. Isso me incentivou a arriscar.

Numa tarde encantadora de verão, após deixar Beatriz na

casa de uma amiga. Rute estava comigo, pois também tinha que

fazer alguma coisa no centro da cidade. Prometeu ficar comigo

116

o restante da tarde.

Então a convidei para irmos ao parque da cidade.

Durante a noite passada eu havia planejado um piquenique, era

só mais um plano igual a outros tantos que nunca tinham dado

certo, algo improvisado, mas de muito bom gosto.

Eu sabia que teria uma boa chance de ficar com ela

durante uma tarde inteira. Então comprei uma garrafa de vinho,

vinho fino, à altura do seu refinado bom gosto, afinei meu velho

violão, pois sabia que o dia seria especial. Seguimos para o

parque, Rute me parecia contente com o meu convite

imprevisto. Eu carregava uma toalha no carro, então forramos o

chão à beira de um lago. Eu sempre ia a este mesmo lago para

meditar na minha vida, tempos antes de conhecer o Walter e a

Rute. Na verdade, eu costumava passear com minha falecida

esposa neste mesmo parque, durante o tempo que namorávamos

e algumas vezes depois de casados, juntos admirávamos a beleza

do lago.

Não era um lugar muito original para uma ocasião tão

especial e única, mas eu não tinha outro plano em mente, então

não me sentia constrangido em levar Rute a um lugar onde já

conhecia tão bem, e onde guardava boas lembranças com outra

mulher.

117

Sentamos na grama como um casal normal. Eu abri o

vinho, pus meu violão ao lado, enquanto Rute me olhava com

um olhar inquisidor, admirada.

− Que surpresa agradável. Um piquenique no meio da

tarde de um dia útil? – Disse-me Rute com um sorriso

encantador, sorriso que me deixou muito mais à vontade e

confiante no desfecho do primeiro ato, ato de uma peça que eu

pretendia escrever e encenar.

− Beba o vinho, Rute. Comprei o vinho que você gosta,

para lhe contar um segredo sobre nós.

− Um segredo sobre nós?

− Não é isso, Rute. Estou brincando, apenas pretendo lhe

oferecer um momento de descontração, afinal você merece

relaxar um pouco. Como se sente após a morte do Armando? O

que pretende fazer da vida agora?

− Agora estou mais conformada, penso até em voltar a

estudar. O que acha?

− Isso é bom, Rute, que você volte a viver, digo a viver

para você mesma, sua própria vida. Pois sou conhecedor do seu

drama incomum, sei do fato de que até agora não realizou nada

no campo pessoal, nem profissional.

− Quero terminar o curso de Psicologia, que sempre foi

118

prioridade em minha juventude. O saber é a ponte para

felicidade e realização plena do ser humano, saber o porquê e as

razões de como funcionam os sistemas, sobretudo a mente

humana é algo fascinante. Psicologia foi um dos legados do meu

pai, sabia? Ele era um apaixonado por Psicologia, dominava

muito bem este campo do conhecimento, da personalidade

humana. Não sei por que me refiro a ele no passado, ele não

morreu.

− Sim, eu sei Rute. E é muito bonito ver como você

valoriza o conhecimento, eu também admiro, e se não estudei foi

porque não tive oportunidade. Mas hoje eu tenho algo muito

importante para lhe falar que…. Algo que você talvez não saiba

ainda.

− Sei, o tal segredo sobre nós. Vamos, conte-me logo

Paulo.

− Não posso mais viver com isso só para mim. Eu te

amo, Rute, mais do que a minha própria vida..., mas isso não

deve ser segredo para você. Desde o primeiro dia em que te vi,

mas não me permitia sentir isso verdadeiramente nem confessar.

Eu tinha remorsos, achava que te amar era trair a minha falecida

esposa. Mas o desejo de te ver em meus braços e poder dizer

“Eu te Amo” apagou tudo. E já não vejo a hora de ter você em

119

meus braços para sempre. Case comigo, Rute.

Ao ouvir isso, ela mudou o semblante, de sereno e calmo

para um ar aflito de espanto. Ela deu sinal que me aceitara, eu

então me aproximei. Aconteceu o esperado. Ela tocou-me o

braço, para fazer-me aproximar mais.

− Eu sempre soube dos seus sentimentos, e do seu amor

por mim e, muitas vezes tive vontade de lhe abordar com os

meus também, tive vontade de me atirar aos seus braços e,

definitivamente viver e ou morrer de amor por este amor que

sinto e vivo por você, até agora em profundo silêncio, mas as

circunstâncias não nos eram favoráveis, e a razão sempre vencia,

quando eu tentava agir pela emoção. Aquela noite em que

dançamos agarradinhos no casamento do Ricardo ficou mais

claro para mim o que eu sentia por você. Porém, pela educação

que recebi de minha mãe, não pude avançar o sinal, por isso

esperei que partisse de você a iniciativa, embora este tempo

passado, um ano e meio, me pareceu uma eternidade.

Eu a abracei, nossos lábios se uniram em um beijo de

paixão e, neste beijo, tive a certeza do amor de Rute por mim.

A alma feminina quando ama, ama sem reserva, sem

peso e sem medida, e não há como mensurar o tamanho dos

sentimentos, nem o amor de uma mulher apaixonada, sobretudo

120

quando esta mulher também é amada, como era minha Rute por

mim. E de mim, Rute ouviu esta música:

Alma irmã da minha alma,

ser metade do meu ser,

tu és eu quando te quero,

eu sou tu se quero ser,

tens prazer quando te dou,

sou feliz quando tu és.

Não há tempo nem espaço

que separes tu de mim,

meu sorriso em tua face,

faz sorrir teu rosto em mim.

Alma irmã da minha alma,

ser que habita no meu ser,

és a paz tão desejada,

plenitude do viver,

toda a aventura na terra

se resume em te querer.

Alma irmã da minha alma,

minha essência do saber,

toda a ciência do mundo

121

eu busquei pra te dizer,

nas estrelas, no universo,

nos romances dos poetas,

nem um verso pra você,

tudo falta, não se encaixa,

soa falso este querer,

juntei tudo quanto li,

somei tudo o quanto vi,

pra formar uma palavra

que traduza o meu querer;

que te amo, que te venero

é sabido pelo mundo,

o sentimento mais profundo,

talvez se resuma em ti.

Em querer-me como me queres,

isto é o que eu quero dizer,

que te quero quanto me queres,

isto é o que se revela em seres,

alma irmã da minha alma,

ser que habita no meu ser.

122

Ao terminar de cantar a canção, ela lavou minha alma e

a sua em doce pranto, em lágrimas de felicidade que eu também

vertia com uma alegria até então não conhecida por nenhum de

nós. E eu a abracei mais uma vez, fortemente.

Naquele instante juntamos as nossas almas para sempre

no elo indivisível do amor, da paixão superior, e eu senti voltar a

mim a vida que perdera no nosso último e primeiro abraço, no

dia em que dançamos.

Meu coração batia descompassado, ou em compassos

não registrados pelo metrônomo, pela matemática da música,

acho que alcançou a velocidade das fusas, ou das semifusas,

enquanto o de Rute batia com a calma dos ternários de uma das

valsas vienenses.

Eu não poderia usar outro símile, senão a música para

descrever a reação de Rute ao meu amor declarado. A música

dita e rege nossas emoções, ela faz vibrar dentro do peito e

acelera nosso sangue.

Todo bom romance tem como pano de fundo a música, a

virtuosidade de um gênio da ilusão sonora, seja perceptível ou

não. A paixão torna audível a música celeste da existência. A

vida veio a existir por meio de vibrações de melodias

inimitáveis. Ao passo que o grande maestro, com sua batuta de

123

ouro ordenava que houvesse luz, os anjos músicos executavam a

ópera sublime da criação.

Houve um minuto de silêncio.

−Rute, meu amor, este instante ficará eterno em nossa

existência, e mesmo que não concretizemos nosso sonho de

viver juntos para sempre, em um casamento feliz, mesmo assim

não esquecerei este dia de regozijo eterno, desse gozo celestial,

que foi saber que sou amado no mesmo grau, com a mesma

intensidade que amo!

As mulheres são (e serão) para sempre senhoras, de

quem os homens jamais serão donos absolutos.

Dali em diante, Rute e eu seríamos uma só alma em

essência, virtudes e defeitos, mais virtudes que defeitos, pois

dizem que o amor é cego, logo não enxerga as falhas do ser

amado.

“O amor é longânime e benigno. O amor não é

ciumento, não se gaba, não se enfuna, não se comporta

indecentemente, não procura os seus próprios interesses, não

fica encolerizado, não leva em conta o dano, não se alegra com

a injustiça, mas alegra-se com a verdade, suporta todas as

coisas, acredita todas as coisas, espera todas as coisas e

persevera em todas as coisas” (Paulo).

124

No amor tudo é lindo, perfeito, sem defeito. Eu diria

ainda que, o amor, o verdadeiro amor não se traduz, assim como

não se traduz e não se pode explicar Deus. Em outros tempos,

alguém disse: “Deus é amor” – é por isso que quando se ama,

tudo é possível, ou seja, quem ama pode tudo, tem força e poder

de um deus. Era assim que eu e Rute nos sentíamos para gritar

para o mundo que estávamos juntos para enfrentar qualquer

aversão ao nosso enlace, à nossa união física, esta que estava

consumada por nós e por Deus e que nem deuses nem homens

poderiam separar.

Tão logo chegamos em casa já fomos contando para a

Beatriz a novidade. “Não foi surpresa para mim, pensam que eu

não desconfiava? ”, disse ela.

Alma nobre tinha aquela mulher, que apesar do seu

drama singular, queria que sua única filha fosse feliz, não tinha

preconceito quanto à minha raça, cor e ou situação social.

Beatriz estava feliz com a nossa união, mas digo francamente

que se não ficasse eu não ia me importar. Sabe aquelas mulheres

que têm pose de rainha, ou que acham que tem a alma mais

nobre que os demais, que não se abaixam para cumprimentar os

mortais? Era esta a sensação que eu tinha, antes de conhecer

melhor a Beatriz.

125

Bem perto de Beatriz, Rute virou-se para mim e falou

com calma e segurança:

− Eu aceito me casar com você, Paulo.

Isto soou como música de Wagner aos meus ouvidos,

como uma terna alegria na minha alma. E a partir dali,

começamos os preparativos para o casamento.

À medida que os dias iam passando, eu era tomado por

uma vontade incontrolável de conversar a sós com Beatriz. E

Beatriz percebeu isso, e um dia, sem mais delongas ela me

convidou para a varanda.

−Muito bem, Paulo, vamos conversar.

−Dona Beatriz, sei que a senhora já sabe que vamos nos

casar em breve, porém eu não posso casar-me sem antes ter com

a senhora esta conversa franca, sobre nossa união e, sobretudo,

saber sua opinião verdadeiramente, saber como se sente a

respeito do nosso casamento, pois apesar de sermos maiores de

idade, devemos consideração à senhora como mãe e pai, neste

caso. E para mim, a sua posição é muito importante, até porque

não temos como saber o que o Walter pensaria sobre tudo isso.

− Paulo, não vou dizer que este foi o casamento que eu e

o Walter sonhamos para a Rute. Você sabe muito bem como

está a nossa vida no momento, tristeza e desilusão constantes!

126

Com isso, nada saiu como esperávamos, confiar na felicidade

futura de Rute, não cabe a mim julgar, isso somente vocês dois

poderão. Minha família e minha vida se resumem agora em

vocês dois, meu outro filho não quer saber de nada do que diz

respeito à família, desde que foi embora nunca mais nos deu

notícias.

Beatriz aqui falava do filho morto como se não soubesse

da cruel verdade, fora um lapso de memória ou fuga da

realidade.

Faço tudo, dou tudo de mim para que Rute seja feliz.

Quero e desejo, com todas as forças do meu coração de mãe que

Rute seja feliz, que faça as escolhas certas, embora eu entenda

bem que nada depende apenas de escolha, temos que contar

também com a sorte. Quem pode afirmar que ela será mais feliz

do que eu fui, quem? Ela já é adulta. Sabe o que quer e no que

acreditar. Quanto a mim, vou esperar que o tempo me prove e

traga-me esta mesma confiança que Rute deposita em você.

Não é nada pessoal, nada tenho contra você, que fique

bem claro isso − até porque você nunca nos desapontou com

seus deveres, com as obrigações que lhe confiou o meu marido,

só que agora não se trata de um bem físico, mas do bem mais

precioso que me resta: Rute. Assim, espero que você

127

corresponda de forma positiva a esta responsabilidade que Deus

está lhe confiando: amar a Rute. Que você seja digno de

conviver com uma pessoa de conduta e lealdade tão exemplar,

como é a minha filha. Pense nisso: Rute representa a família e

você é um membro desta família, você tem um nome a zelar,

uma família tradicional que quase se acabou; vocês têm agora o

privilégio e a responsabilidade de continuar esta nossa história.

Já dei meu consentimento e minha benção, desejo para o casal

toda felicidade do mundo, dos céus e da terra.

− Dona Beatriz...

− Por favor, Paulo, daqui em diante chame-me apenas de

Beatriz.

− Obrigado, Beatriz! Não posso garantir que serei o

melhor marido do mundo para sua filha, porém posso e devo lhe

dizer que farei o que for humanamente possível para um homem

amar, proteger e ser leal a uma mulher. Entenda isso, meu amor

será o limite para o respeito e para a devoção que dedicarei à

Rute. Já tive uma experiência no passado. Embora esta união

tenha sido um pouco precoce, eu pude pôr em prática meus

princípios de família, fazendo minha esposa feliz. Portanto, sei

que agora estou preparado para fazer uma mulher tão especial,

como a Rute, muito feliz. Com o passar dos anos vou provar

128

para a senhora o quanto eu amo a Rute.

− Paulo, é claro que é isso que eu quero, que vocês

possam fazer a nossa família crescer, se tornar outra vez forte,

como foi outrora, por isso quero netos. Eu tenho certeza de que

viverei para ver tudo isso acontecer. Acho que Deus sabe o que

faz, não poderia ser outra pessoa senão a Rute para resgatar

nossa dignidade e construir uma linda família para continuar

nossa história... Ela tem as melhores qualidades possíveis para

ser uma excelente esposa e mãe, já provou isso ao cuidar do

Armando.

A conversa encerrou neste ponto porque a Rute chegou.

Marcamos nosso casamento para seis meses depois, tempo este

que demorou um século. Durante estes meses de noivado

aprofundamos nossa amizade e intimidade, mas tudo dentro dos

padrões tradicionais de uma família conservadora. Planejamos a

nossa nova casa, móveis e até uma viagem para a Europa,

viagem que não estava nos meus planos, como não estava

também em minhas posses. Beatriz nos presenteou, é claro, já

que sempre foi o sonho de Rute conhecer a Europa, sobretudo

Paris.

Eu não tinha tempo para me deslumbrar com tudo isso.

Para mim, o presente mais valioso que a vida podia me ofertar já

129

havia ganhado: O amor e a dedicação de uma deusa, de um anjo,

dedicação de corpo e alma. Esta viagem teria o mesmo valor se

fosse para Minas, o lugar que eu mais queria rever,

principalmente agora em condições melhores... Rute e eu

planejamos uma festa sem glamour, discreta, apenas com

familiares, padrinhos e amigos mais íntimos.

130

O casamento

O dia do casamento chegou, e eu estava convicto de que

Rute era a mulher da minha vida. Todos os parentes e os amigos

compartilharam de nossa felicidade. A casa estava cheia, mal se

podia andar, mas estava prazeroso o reboliço. Isso fazia Rute

sorrir mais ainda: “Amo estar entre meus parentes e amigos”,

dizia ela.

Eu passei o dia todo conversando na varanda com a tia

de Rute, irmã de Walter. Eu quis saber do Walter, “Mesmo que

soubesse do paradeiro do meu irmão e quisesse revelá-lo a

você, pouco adiantaria, nem no casamento da filha ele veio. ”

131

Mas ela me contou que Walter era um pai para seus filhos,

“Meu irmão custeou os estudos dos meus dois filhos, e eu devo

isso a ele. ”

Nós nos casamos apenas no civil, num cartório no centro

da cidade e a festa foi no terraço da casa. Talvez eu não fosse o

genro perfeito de Beatriz, mas ela sabia do quanto eu seria capaz

de fazer Rute feliz.

Eu fui corajoso, tive a ousadia e a coragem de cantar

para Rute, ultrapassando as minhas emoções e desafiando a

crítica dos convidados. Eu cantei: “digo que você é um anjo

bom que desceu como um bombom para adoçar a minha vida.

Meu paraíso é você, meu universo e prazer, você é o que eu

preciso para viver”... (trecho de uma canção que o autor fez

para sua esposa).

No mesmo dia viajamos para Paris. No avião, o que mais

ouvi de Rute foi: “Eu te amo. ” E o que ela mais ouviu de mim

foi esta música:

“Olhos negros que me seguem... que me ronda e me

perseguem; olhos negros quem tu és, eu não sei o que fazer,

não consigo me esconder, deste olhar... Que me afronta e me

incomoda, que me prende e não me solta. (Para onde me

levarás, confesso ser prisioneiro, desde o meu olhar primeiro,

132

quando olhei no teu olhar...).

olhos negros minha paz, minha força, meu viver me

roubaste de assalto. Eu do alto do meu ser, não sabia que

podia Nestes olhos me perder!

Olhos negros tenha calma, minha alma vou te dar, Se

você me prometer, nos meus olhos não olhar.

Olhos negros eu me rendo, e me entrego nos seus

braços, tudo faço pra ganhar; sua paz; e seu viver... Eu

prometo vou lhe dar os meus olhos pra você...

Olhos negros tenha calma, minha alma vou te dar, Se

você me prometer, nos meus olhos não olhar”

133

Em Paris

Após tanta emoção, os preparativos, a chegada do dia, e o dia

em si mesmo, mal podíamos esperar pela nossa lua de mel. O

nosso refúgio, longe de tudo e de todos - só nós dois. O destino

escolhido por nós foi Paris, e não poderia ter sido melhor! Após

11 horas de voo, chegamos ao aeroporto Charle de Gaulle, sãos

e salvos. Foram quinze dias fantásticos, tudo incluído, à exceção

das excursões que também não foram tão caras quanto isso!

Visitamos teatros, cinemas, museus…. Enfim, tudo o que o

dinheiro podia pagar.

Embora em lua de mel, nos braços da minha amada, eu

134

não conseguia deixar de pensar em Walter. O que realmente

aconteceu com ele? Lembrei o quanto ele era inconformado com

a doença do Armando e com a morte do filho na guerra. Uma

coisa não saia da minha cabeça: Walter estava vivo. Preocupado,

eu perguntei para Rute, com cuidado e baixinho:

− Por que Walter abandonou vocês e foi embora?

− Preciso mesmo te contar, porque isso está a me sufocar

por dentro… A verdade é que meu pai nunca acreditou que meu

irmão morreu na guerra. Ele achava que o Valtinho estava vivo,

por isso largou tudo e foi atrás dele.

Silêncio.

Depois ela:

−Mas minha mãe não acredita nesta história do meu pai.

Ela acha que ele tem outra mulher.

−Outra mulher? Como assim? Ela viu? Tem certeza?

− Ver ela não viu, mas no coração ela tem certeza. Ela

acredita que meu pai mora aqui em Paris com a amante. Dá

para você entender o motivo que também me trouxe para cá?

Eu a olhei e disse que sim.

A partir dali, saímos à procura de Walter. Cerca de três dias

depois, avistamos um homem numa rua de Paris, que pelas

características físicas nos convencemos se tratar do Walter.

135

Quando o homem nos viu, correu e entrou num carro, sem

deixar pista.

Rute não quis mais saber do paradeiro do pai, tinha

certeza de que seu pai a tinha evitado, por isso ficou muito

chateada com a atitude do pai. “Para quê? Se ele escolheu

isso que fique com isso, - Disse ela. Eu também desisti, eu

tinha receio de Walter achar que eu havia me casado com

Rute simplesmente para usurpar sua herança e seu lugar na

família.

Os dias se passaram com passeios, nós acordando tarde,

amando cada vez mais, pensando já em ter filhos (dois ou

três) e sem tocar no assunto sobre o Walter.

Não abrimos espaço para lembrarmo-nos dos infelizes,

pobres mortais, como o Walter, muito menos dos mortos….

Porém o último dia de nossa lua de mel mudou nosso modo de

pensar. Ao chegarmos ao aeroporto, ouvimos uma voz rouca e

cansada, “Morte para Hitler, morte para Hitler, o maldito

general que, quase dominou o mundo, que lutou com os

demônios para destruir as nações e para instituir um só governo

na terra! Morte para Hitler! ” Era a voz de Walter.

− Não posso acreditar, Paulo! Gritou Rute, meu pai! –

Gritava Rute em desespero, aos prantos. E aos prantos correu ao

136

encontro do homem que ela sabia ser o Walter, seu pai − ao

encontro de um vulto, de um homem sem cor, sem carne, só

osso e desespero, que causava medo e compaixão ao mesmo

tempo, aquela imagem, que não era mais de jeito algum, nem de

perto nem de longe, a imagem do homem digno e capaz que

conhecera.

Rute o abraçou, mas ele não foi recíproco, continuou sua

ladainha... Era como se com aquela lamúria, que parecia

penitência religiosa, uma ladainha católica, ou petições a um

Deus, que pudesse lhe fazer vingança e devolver a vida do seu

amado filho. Foi quando eu percebi isso: Walter havia perdido

toda a lucidez, enlouquecera de fato.

E vieram os problemas: Como convencer Walter doente,

que Rute era sua filha?

Adiamos a viagem até encontrarmos meios para trazer

Walter para casa. Telefonamos para Beatriz, que quase

enlouqueceu com a notícia de que seu amado estava vivo e que

não a deixara por outra mulher, como todos pensavam. Tudo

mudou para aquela alma solitária, que já não via nem sentia

razão para viver, para ser feliz. Beatriz disfarçava muito bem.

Jamais desconfiei que ela houvesse morrido junto com os filhos

e com a ausência do marido. Mas naquela hora ela superou tudo

137

isso. Arrumou as malas e embarcou, viajou imediatamente para

Paris ao nosso encontro. Enquanto isso em Paris, provamos com

documentos e fotos de Rute com o pai, quem era o Walter, e que

ele era de fato pai de Rute, mas as autoridades locais só o

liberaram com a chegada de Beatriz.

Não pude deixar de registrar a aflição de Beatriz, daquela

alma generosa, trazia nos olhos todo seu desejo e esperança de

abraçar e perdoar seu marido. Talvez até pedir desculpas por

fazer mau juízo do seu amor eterno, por não compreender suas

angústias diante a tragédia do filho.

No estado em que Walter se encontrava, achamos melhor

dar-lhe um tratamento médico antes da volta ao Brasil. Beatriz

não saiu do lado dele nenhum dia sequer, “Ele não merece esta

sorte”, dizia a esposa inconformada, diante da demência do

marido. Ao fim de trinta dias de tratamento, ele já podia viajar,

embora ainda sem sinal algum de lucidez − razão que fez Rute e

Beatriz multiplicar os cuidados para com ele.

138

Dentro de um conceito filosófico quântico, devemos inverter a

máxima de Descartes, "existo porque penso."

Evan do Carmo

139

No Brasil

Então eu resolvi morar na casa dos meus sogros para dar

mais atenção ao Walter, o que deixou Rute muito feliz. O

médico que o acompanhava disse que havia cura e só dependia

do Walter. Com isso, nós redobramos o carinho e os cuidados,

nos revezávamos, sobretudo à noite, pois Walter sonhava, falava

muito dormindo, ficava agitado e inquieto; durante o dia, eu

fazia-lhe companhia e deixava Rute e Beatriz descansarem. Eu

contava-lhe histórias das crendices mineiras, cantava as músicas

que mais ele gostava e declamava versos de Camões – ele era

um apaixonado pela loquacidade poética lusitana. Mas apesar

140

de todo nosso esforço, algumas vezes tive de amarrá-lo na cama,

tamanha era a sua inquietação.

A recuperação de Walter era lenta, mas nunca

desistimos. Passados alguns meses, ele já se mostrava mais

calmo, tinha o olhar sereno e alguns momentos de lucidez –

lembrando-se do seu próprio nome. Este lampejo de luz nas

trevas de sua inconsciente existência nos encheu de alegria,

parecia que tudo poderia voltar a ser como era. Enfim, teríamos

paz e um ambiente propício para tocarmos em frente as nossas

próprias vidas.

Leitor, sabe quando passamos por uma tragédia e não

suportamos? Foi exatamente isso que aconteceu com Walter: Ele

não suportou a perda dos dois filhos homens. Seria um homem

amaldiçoado, sem herdeiro macho para continuar a sua dinastia,

sua história na epopeia na evolução da humanidade na Terra,

não viveria eternamente, nem seus genes por meio deles.

Certa noite, eu estava na varanda com Walter,

subitamente ele se lembrou dele mesmo, de todos e de tudo.

Então, ele me contou tudo o que tinha acontecido – até então era

um assunto evitado por todos nós, pois temíamos que fazê-lo

recordar agravaria mais ainda o seu estado.

− Paulo: não me enganei com você. Você cuidou muito

141

bem da minha família enquanto eu estive fora. Você se saiu

muito bem, amigo, diria até bem demais. (Rimos juntos). Até se

casou com Rute! Não me leve a mal, pois estou muito feliz com

a união de vocês. Ela não teria encontrado alguém melhor que

você, assim como eu também não teria. Estou, de fato, muito

contente com tudo isso.

Quero lhe contar as razões que me levaram a cometer

este desatino: Você sabia da minha angústia, eu sempre lhe

contei sobre minha desventura. Você sabe bem como sofrera a

falta do Walter Júnior. Aquela dor foi aumentando tanto que me

deixou quase louco, ou louco de fato. Então comecei a ter visões

do meu filho em Paris. Via ele preso em um campo de

concentração nazista. A visão não me dava sossego nem paz,

não pude compartilhar minha dor com Beatriz, nem com mais

ninguém. Afinal, era loucura da minha mente perturbada de pai

desesperado. Acho que era a minha fuga desesperada de

Nêmesis, o meu teste de realidade, o meu encontro com a morte

ainda em vida. Uma sensação que não pode ser posta em

descrição, nem mesmo em Hamlet se encontraria. O ponto

crucial em que a mente chega ao limiar da razão e não aceita

mais a realidade como verdade. Foi quando eu resolvi partir para

tirar a limpo toda esta história. Por isso, eu lhe procurei para

142

assumir meu lugar, para tomar conta das minhas coisas, das

minhas obrigações e da minha família. Quando cheguei a Paris,

verifiquei que não era ali o cenário das minhas visões, nem

tampouco encontrei ali campos de concentração. Informei-me,

sobretudo da guerra, dos lugares onde havia existido os tais

campos − coisas que não podia conceber. Então fui para a

Alemanha, acreditando que lá eu poderia descobrir o paradeiro

do meu filho, ou o motivo daquela visão que passou a ser o meu

Walter Júnior vivo. Associei-me com grupos de pessoas, que

como eu procuravam por desaparecidos da guerra, vítimas do

nazismo. Foi quando piorei de vez, mas ainda bem que eu tinha

recurso mental e financeiro para retornar a Paris. Lá afundei

mais na bebida, perdi total e definitivamente a razão. Não sei

exatamente quanto tempo fiquei até você aparecer com a minha

adorável Rute − só podia ser ela mesma com sua fé

inquebrantável para resgatar-me para a vida! Deus não escreve

em linhas tortas, do contrário eu não estaria aqui.

− Walter, sinto muito por você ter passado tamanha

desventura, como queria ter ajudado você, sofrer em seu lugar,

dividir com você de alguma forma sua dor! Quisera eu ter

adivinhado tudo e ir te buscar mais cedo. Quisera eu! Muitas

noites não dormi pensando no que lhe realmente havia

143

acontecido, sofria ao ver a Rute e a Beatriz em profundo

desalento, fiz o que pude para lhes ajudar, não tive forças, só o

tempo pôde fazer isso. Sua volta trouxe a luz do sol em nossas

vidas. Tive dó da Beatriz: Você não imagina como foi difícil

para ela. Contempla o que tens em tua casa, esta que é tua

amiga e companheira de cada dia, além de esposa dedicada e

leal, fiel a ti em todas as horas de dificuldade, mãe incomparável

dos teus filhos; essa criatura linda, uma verdadeira heroína

silenciosa. Por acaso você acredita que tua dor seja maior do que

a dela? Teus filhos eram carne da sua carne, sangue do seu

sangue, carregou-os no ventre alimentou-os com seu leite.

Enquanto você dormia teu sono reparador em paz, era ela quem

passava as noites em claro junto ao leito, quando os filhos

sentiam alguma dor. Ela era como uma sentinela. Nas noites

quentes refrigerava suas almas e suas dores e nas noites frias, os

aqueciam e o acalmavam em silêncio, para não te incomodar.

Enquanto Walter Júnior vivia, quanto susto teve no seu coração

de mãe cuidadosa nas suas travessuras perigosas! E isto, amigo,

ela passou por duas vezes. No caso do Armando, ao chegar a

hora crucial da prova final, da provação suprema, que

transformação da sua fraqueza aparente! De quanta coragem e

sofreguidão se revestiu aquela alma doce, frágil e sensível, para

144

receber o golpe fatal, a falta do carinho e do calor do seu último

filho, o Armando, que a morte infâmia levara! Depois do golpe,

do primeiro, que foi sem dúvida o mais doído, quanta força e

energia imprevista ela buscou para não sucumbir nem te dar

exemplo de covardia diante da fatalidade que alcançara. Todos

os dias, você saia para as ruas e teu sofrimento era amenizado,

ela não. Ela ficava em casa junto da sombra ingrata que

encobrira seu lar de tormento e solidão. O gênero feminino

quando sofre e assim afronta a dor, fica acima da humanidade.

Esta é a Beatriz que conheci durante este tempo, que você,

amigo, conhece mais do que eu, seu valor e sua força!

Ao fim deste diálogo, vi nos olhos de Walter muita dor e

remorso. E continuei:

− Walter, estamos pensando em dar uma festa em sua

homenagem, o que acha?

− Concordo. Nesta festa quero brindar o seu casamento

com Rute. Afinal, vocês merecem! Nesta casa não terá mais

lugar para a tristeza, e dependendo de mim a luz do sol, meu

amigo poeta, não se afastará mais da nossa sala, nem das nossas

vidas. Eu via que, apesar de Walter estar sofrendo muito com a

doença, se esforçava bastante para não demonstrar tanta dor.

Não era fácil para ele também, nem para ninguém, conviver com

145

esse remorso, que o acompanhava em todo canto e a cada

momento de solidão, por isso não conseguia se manter sóbrio

por muito tempo!

146

Somos poetas

Estamos destinados à tragédia

a vida simples e comum

dos homens não nos alimenta,

queremos mais que o absurdo

dos amores correspondidos.

Queremos a fatalidade e o imprevisto

a morte no drama do gozo proibido

somos poetas, pintores, artistas

de toda sorte, contamos sempre

com o azar em forma de destino.

Queremos a vida nas cinzas da fênix

queremos o calvário do Cristo

e a cicuta de Sócrates

queremos as asas frágeis de ícaro..

Somos a flor murcha da beira da estrada

que o amante não conseguiu ofertar

à namorada da infância.

somos o medo vestido de Aquiles

somos a fuga e a desesperança

somos o verbo na língua de Deus

e o barro nas mãos do homem.

Evan do Carmo

147

A cura de Walter

Era fim do ano de 1953. Fomos tomados por uma

novidade: a gravidez de Rute, que, segundo meu sogro, mais um

bom motivo para se comemorar. Eu concordei com ele. Afinal,

teríamos um novo membro na família, que Walter chamava de

“Meu herdeiro varão”.

Tudo estava perfeito em nossas vidas: a festa foi um

grande momento de alegria para todos e a gravidez de Rute

corria muito bem. Walter e Beatriz estavam mais felizes do que

nunca, porém, em momentos solitários, eu ainda notava um

148

olhar triste em Walter – talvez ele ainda sentisse por dentro a

falta do filho, mas, esse sentimento era agora reprimido, e

sinceramente, eu não sabia se isso era bom ou ruim, de qualquer

jeito não tirei os olhos dele receando uma recaída – o que veio a

acontecer dias depois, quando eu estava na varanda, numa noite

de insônia, por preocupação com o futuro do meu filho que logo

nasceria. Ouvi sons vindos da sala grande, percebi que Walter

estava inquieto e sussurra no escuro: “Junior, meu filho, me

responda onde você está! ” Eu o acalmei e o levei para seu

quarto. Em seguida, voltei para o meu, mas não disse nada para

Rute e nem para Beatriz.

O tempo se passou. Walter estava na mesma. Meu filho,

Walter, o neto, nasceu, e Rute e eu resolvemos oferecer um

jantar para apresentá-lo à família e aos amigos – naturalmente

uma tradição da família de Rute e não da minha, mas concordei

com ela em me adaptar a estes costumes sociais. E tudo esteve

muito bom, inclusive o discurso de Walter. Este:

“Quero parabenizar a você, meu fiel amigo e genro,

Paulo, homem de bom caráter, e desejar a você e à minha filha

Rute, felicidades! Que vocês saibam cuidar e proteger muito

bem o meu neto para que ele tenha uma vida longa e feliz.

Façam isso com carinho, para não se arrependerem depois,

149

como eu… − interrompeu-se. Depois continuou: “Como me

arrependo de não ter cuidado melhor do Walter Júnior e de

todos os outros meus filhos... Mas vocês farão diferente, tenho

certeza”.

Depois se sentou na varanda, a olhar para o jardim, a

chorar desesperadamente. Eu fui atrás dele. Repreendi-o com

uma interjeição; Ele quis continuar, mas eu interrompi-o.

− Walter, não sou senhor de seus pensamentos, mas é

bom que pare de se culpar, isso não faz bem para você nem para

nós, pense em sua família, agora feliz com sua volta à lucidez e

à vida. Walter Júnior não morreu por sua culpa, você não

poderia fazer nada a respeito para livrá-lo de tal destino, você

cuidou dele o quanto pôde, ajudou para que ele não se

machucasse quando criança. Ajudou para que não se magoasse

quando adolescente, para que não tomasse decisões erradas

quando jovem adulto…, mas isso não quer dizer que ele não se

machucou que não se magoou e nem tomou decisões erradas,

assim também a sua morte. Ninguém pode evitar a morte. “O

tempo e o imprevisto sobrevêm a todos. ” A culpa não foi sua!

Não, amigo, não se culpe por tal tragédia, elas nos pegam

sempre de surpresa, por isso são tragédias, não há como as

evitar.

150

− Paulo, eu não sei o que seria da minha vida sem você,

amigo querido. Muito obrigado por tudo.

Depois disso ele se acalmou. Voltamos para a sala.

Jantamos. Três dias mais Walter passou deprimido, por mais um

motivo: a morte do senhor Juvenal, fatalidade que me obrigou a

mudar para a fazenda.

A casa da fazenda era grande: três salas, cinco quartos e

quatro banheiros. As pessoas conheciam o tamanho, a potência

de uma fazenda, pelo tamanho e luxo da casa grande (ou sede).

Digo que na cidade parecíamos mais humildes que na fazenda. E

para falar a verdade, eu nem lembrava mais da minha vida de

inquilino de quartos apertados, onde morei tanto tempo. Não era

difícil me adaptar ao luxo e poderio de fazendeiro, era seu Paulo

pra lá, patrão pra cá… Seu Paulo, a vaca pintada pariu dois

bezerros lindos esta noite… aquela boiada que vinha de Mato

Grosso chegou… quero saber se mando os vaqueiros para casa,

pois não temos por hora trabalhos para eles…

Sim. Tudo transcorria em plena paz e segurança. Na

família, era tudo perfeito, meu Waltinho crescia com saúde sob

os cuidados maternos e quase divinos de Rute. Ele completaria

dois anos em uma semana. Planejávamos reunir toda a família

151

para festejarmos a felicidade de todos nós: nosso filho.

Eu quase não via mais o Walter, a fazenda, Rute e o

Waltinho tomavam conta do meu tempo.

No dia do aniversário do Waltinho, ainda na festa,

Walter nos deu uma notícia bombástica, em forma de discurso.

“Meus amigos e parentes queridos, sou o mais feliz dos

homens! Sinto-me como Jó que perdera tudo e que lhe fora

restituído em dobro, por um milagre da sua fé e devoção a

Deus. Eu também perdi tudo, ou quase tudo, perdi minha

lucidez, meus filhos e a razão de viver. Vi-me no deserto como

Abraão vagando perdido sem rumo certo, esperando por um

milagre, que uma divindade até então desconhecida me

indicasse o caminho que devia seguir até a terra prometida. Foi

quando me apareceu um anjo e me disse que eu seria outra vez

feliz e que eu teria tudo de volta. Claro que eu não acreditei,

achava que isso era história dos meus antepassados (os judeus)

.... Passou o tempo, e eu fui aos poucos recobrando a lucidez,

ganhei um filho: Paulo, e um neto - voltei a trabalhar…. Foi

como aconteceu com Sara: ela riu do anjo que lhe falara que

teria outro filho, que seria como Isaque; para dele gerar uma

descendência de prosperidade e de paz. Quero anunciar que

serei Pai de um filho varão e lhe darei o nome de Paulo Prado

152

de Mendonça, em homenagem ao meu amigo, filho e genro,

Paulo, que me salvou das trevas e trouxe a felicidade em nossas

vidas. ”

Foi deveras inesquecível aquela noite para todos. Fiquei

lisonjeado com aquele anúncio, com aquela homenagem

imprevista do Walter. Pela primeira vez pude ver que ele tinha

realmente apreço por mim, sobretudo como parente!

Os amigos verdadeiros nos fazem muito bem e nos

fazem sentir e ver que vale a pena viver e dar o nosso melhor

para aqueles que tanto amamos!

Nossas vidas pareciam um conto de fadas. Nesse instante

glorioso, tudo estava em seu devido lugar, momento este que

nos metia medo. Logo eu que não acreditava em final feliz − não

que eu fosse por natureza um pessimista, mas, ultimamente, eu

passei a acreditar, esperava sempre o melhor da vida. E por que

não acreditar se a vida estava generosa demais comigo?

Minha família imediata, minha Rute amada e meu filho,

não podiam ser mais do que eram para mim, estava eu saciado

de prazer pela vida, todos os desejos do meu coração

concretizaram-se, não sofria mais e não lembrava mais de minha

desventura passada, da minha vida miserável dos bares nem da

minha viuvez precoce.

153

Logo depois que eu soube da novidade de Walter,

agradeci a Deus por permitir a mim e aos meus familiares,

tamanha felicidade. Pedi para ele: “Oh Deus grande e poderoso,

Deus de Abraão e de Jó, Deus de Walter e de Rute,

especialmente de Rute, que sempre lhe indaga e lhe agradece

por tudo. Peço-te que protejas minha família e que o meu

amigo, Walter, alcance a glória de ver este novo filho adulto, e

que ele seja sua razão de viver como era o outro Walter Jr”.

Mas o meu coração continuava preocupado: agora com

o desfecho daquele novo episódio: a gravidez da Beatriz, que era

de alto risco. Com isso, toda a família ficou mobilizada:

voltando para ela os melhores cuidados, a maior paciência e o

máximo de carinho e atenção, dignos de uma rainha Mãe.

Walter e Beatriz estavam apaixonados. Estavam se

deleitando naquele sublime momento de casamento, quando a

vida parecia que não podia se tornar maravilhosa. Mal

conseguiam ficar longe um do outro. Mas Walter não iria se

sentir feliz completamente longe do jornal. Seus dias – ou

melhor, suas horas – como jornalista também foram

privilegiadas.

Nem muito depois do prestígio e a fama voltarem a fazer

parte da vida de Walter, Beatriz começou a sentir as primeiras

154

contrações – os sinais de que o bebê estava para nascer. Tivemos

que ir às pressas para o hospital. Walter todo o caminho ligava

hora a para o médico hora para o hospital.

O parto correu bem. Assim que Paulo nasceu, levaram-

no para a UTI para entubá-lo. Para nossa surpresa, mesmo

prematuro, ele nasceu tão forte que foi possível trazerem-no para

vermos. Minha emoção foi enorme quando vi Walter beijá-lo.

Eu sabia, porque Walter botara o nome do filho de

Paulo, foi para não por Walter Jr, para não dá azar, pois se lhe

pusesse o seu nome, voltaria toda má sorte que teve com seu

primeiro filho.

Quando vi Paulo, fiz esta oração:

“Obrigado grande Deus e pai de todos nós, por este instante

feliz, para o meu amigo Walter. Obrigado! ”

Em oração, era como se eu falasse para o divino: até aqui

está tudo bem, espero que cumpras tua promessa até o fim.

Pobre de mim, já me sentia íntimo de Deus para exigir proteção

para toda vida! Pobre de mim, que só pedia ajuda na hora da

dúvida e da insegurança! Quando tudo corria sem problemas, eu

não queria tal liberdade e intimidade com o altíssimo. Quanta

hipocrisia de minha parte!

Nada de especial aconteceu após o nascimento de Paulo.

155

É que, quando passa a tempestade não percebemos a beleza e a

paz que vêm com a calmaria, com a serenidade prevista. Quando

o trem que leva as nossas vidas está firme nos trilhos dos nossos

desejos, não notamos muito bem as suaves paradas e paisagens

paradisíacas pelas quais passamos. É claro que poderia narrar

alguns momentos felizes que vivi, que foram marcantes para

todos nós, no entanto, estas coisas comuns não prendem a

atenção dos leitores ávidos por conflitos e sofrimentos das

personagens de um bom romance.

Muitos anos se passaram. O filho do Walter crescia no

favor de Deus e dos homens. Completara dez anos de vida, vida

cheia de alegrias, amor, harmonia e paz. Walter estava feliz com

sua vida pessoal e profissional – ganhou vários prêmios, entre

eles: o jornalista do ano, por dois anos consecutivos. Minha vida

também ia de vento em popa, como fazendeiro e pai de família.

Tinha três filhos: Valtinho, Lívia e Rose – adoráveis como a

mãe, Rute.

Mas dois meses depois de Paulo completar dez anos,

Beatriz adoeceu e morreu de uma doença neurológica. Este foi o

golpe mais doloroso para Walter, o fel mais difícil de engolir, na

porção da sua existência tumultuada. E tudo que acontecia com

ele nos atingia diretamente. Era como se um punhal estivesse

156

cravado em nosso peito.

A morte de Beatriz foi como um rolo compressor que

esmagou a todos nós. Beatriz, como mulher e esposa, talvez eu

não soubesse precisar seu inteiro valor, isto só o Walter saberia.

Porém como ser humano eu já a conhecia e lhe prestava

homenagem, como a uma rainha. Alma de uma dignidade

incomparável...

Inconformado com a morte de Beatriz, logo voltei a

conversar com o criador: “Por que haveríamos de passar por

tamanha dor”? Não era o bastante? Seria um tipo de

brincadeira? Ou era um jogo para testar a nossa capacidade de

suportar sofrimento?... Logo a Beatriz tão cheia de fé e

coragem!

Eu não compreendia isso: Que cumplicidade eu poderia

ter com um Deus tão cruel? Não compreendia!

Walter abraçou seus afazeres, sempre movido pelo seu

temperamento dinâmico e amor ao jornalismo. Mas no meio da

dor, a ausência de Beatriz cresceu, tomou conta de Walter e fez

morada.

Um dia, em um café perto do seu trabalho, tivemos esta

conversa:

− Oh Paulo, não é justo! Não é justo esse meu sofrer!

157

Que mal eu fiz para ser punido tão cruelmente assim? Primeiro

foi meu primogênito, agora Beatriz! Será porque não fui tão

presente na vida do Armando, meu filho especial? Só pode ser

isso! Não amei Armando na medida em que ele merecia, eu o

tratei com desprezo; muitas noites eu sequer voltava para casa,

ou quando voltava não era eu quem chegava, porque era o álcool

que me trazia para casa, mas minha mente não tinha

conhecimento do que se passava em minha casa, em minha vida.

Durante muitos anos eu não existi como marido e como amigo,

o suficiente para apoiar Beatriz. Assim penso que o Armando foi

um estágio, um treinamento para sofrimentos maiores, e eu não

fiz minha lição de casa, no livro da vida. Então como um

monstro cruel e covarde, fugi achando que assim escaparia do

meu infeliz destino, toda alegria que usufruí na vida não foi por

mérito ou competência própria, foi a recompensa de Deus para a

minha fiel e obediente Beatriz, que ao contrário de mim soube

aceitar resignadamente seu calvário, sua estaca de tortura, um

tanto mais pesada que a minha, pois não me acho em igual nível

de evolução, ou de desprendimento e de amor altruísta, como o

que ela sempre demonstrou para com todos os seus queridos,

para mim em especial. Agora purgarei todo o meu pecado: não

sou digno nem sequer de continuar vivendo; no entanto, acho

158

que viver agora será deveras muito difícil para mim, embora seja

um castigo necessário para me educar e encarar meu dilema.

Preciso muito de você e de Rute, amigo, não me deixe sucumbir

neste mar de desilusão sozinho! Será menos doído se eu puder

contar sempre com um amigo como você, sempre presente nas

minhas desventuras e nas poucas alegrias.

− Se acalme companheiro! Nunca te deixei, não vai ser

agora que vou me acovardar. Juntos enfrentaremos toda esta

tormenta. Fique certo de que sua dor também será sempre minha

dor, assim como as suas alegrias sempre foram minhas....

Também sabes que tens deveras minha afeição, meu profundo

respeito. O que fizeste por mim, amigo, nunca pagarei nem que

eu vivesse outras vidas retribuiria o bem que me causaste.

Walter ficou assim, em crise de depressão profunda e

constante, voltou a beber aos poucos na tentativa de aliviar a dor

que a falta do seu amor lhe causara. Como antídoto para

amargura e a solidão, sempre ia buscar nos braços do vinho, no

poder indolor do álcool a ilusão anestésica, para suportar a

incisão, cirúrgica do tempo. Tempo, que como um deus, crono,

tem o poder de curar e o dom de fazermos esquecer as piores

experiências do nosso viver... O álcool não funciona, ou talvez

nos engane por algumas horas, é claro. Por isso muitos se

159

tornam alcoólatras inveterados e esquecem para sempre o que

são e como é estar sóbrio. Veja o que um sábio falou sobre o

poder e os riscos do abuso álcool! “Quem tem ais? Quem tem

apreensão? Quem tem contendas? Quem tem preocupação?

Quem tem ferimentos sem razão alguma? Quem tem

embaçamento dos olhos? Os que ficam muito tempo com o

vinho, os que entram para descobrir vinho misturado. Não olhes

para o vinho quando apresenta uma cor vermelha, quando está

cintilando no copo, [quando] escorre suavemente. No seu fim

morde igual a uma serpente e segrega veneno igual a uma

víbora. Teus próprios olhos verão coisas estranhas e teu

próprio coração falará coisas perversas. E hás de tornar-te

como quem se deita no coração do mar, sim, como quem se

deita no topo de um mastro. Golpearam-me, mas não adoeci;

surraram-me, mas eu não o sabia. Quando é que acordarei? Eu

o procurarei ainda mais. ”1 * “provérbios 23:29-35”.

Foi assim com o Walter: suas fugas se tornaram

constantes, não trabalhava mais e não tinha tempo para o filho e

nem para a família.

Rute e eu levamos o Paulinho para nossa casa, para ser

criado como um dos nossos filhos, e era assim que ele se sentia.

Ele amava a Rute como a uma mãe dedicada e muito carinhosa.

160

Já com seus quinze anos era visto por todos como um homem

sério, educado e responsável. Praticamente não notávamos a sua

presença dentro de casa, pois vivia em seu quarto a maior parte

do tempo, lendo e fazendo pesquisas. Ele era muito semelhante a

seu pai neste aspecto cultural, demonstrando com isso que seria,

sem dúvida alguém muito especial, um engenheiro ou um

cientista. Eram estes campos que ele vivia a explorar por conta

própria, se adiantando naquilo que era seu objetivo de vida.

Certo dia, longe dos estudos, ele me perguntou como

estava o pai dele. Depois ele fez uma pausa e sorriu tristemente

antes de continuar:

− Sinto muito a falta dele. Ele mora longe? A última vez

que ele veio-me ver foi há um ano.

− Não filho, o seu pai não mora longe e se ele não vem

aqui, é porque ainda está em depressão.

− Meu pai é fraco de espírito, não acha? Tudo bem que a

vida lhe tenha pregado algumas peças difíceis, porém todos nós

passamos por isso algum dia na vida. Veja: Eu perdi minha mãe

muito cedo, tenho o pai que tenho, um homem fraco moralmente

que se entregou ao vício para fugir de sua verdade, da sua

realidade. Mas nem por isso acho que a vida não valha a pena.

Eu quero viver, ser feliz e queria muito que ele estivesse

161

comigo, do meu lado, presente. Quero dedicar a ele tudo o que

eu alcançar, mas como? Não posso negar as virtudes dele, seu

apreço, seu amor para com a minha mãe durante o tempo em

que ela viveu. Sei que ele tem valor, até porque, se não o tivesse,

não teria a família que tem. Rute me contou sobre meu irmão:

que era inteligente e que meu pai o adorava. Tio: meu pai me

ama mesmo?

− Claro que ama, Paulinho! Eu sei de toda a história do

seu irmão, sei o tamanho do afeto que seu pai tinha por ele.

Posso lhe garantir que ele te ama muito mais, porque você foi o

filho que ele mais desejou nascer. Seu pai vivia fazendo

discursos em sua homenagem: uma vez ele fez um memorável,

no qual se comparou a Abrão e chamou a sua mãe de Sarah.

− Ele vem para a minha formatura?

− Tenho certeza que sim.

− Tio, você me tutelou. Eu sei que o papai lhe designou

como meu padrinho, para cuidar de tudo referente à minha

educação e o senhor e a Rute têm se saído muito bem, às vezes,

nem me lembro que não tenho mãe e nem pai presentes. Quero

aproveitar esta hora para lhe dizer que sou muito agradecido aos

dois. O problema agora é que eu terminando o Ginasial quero

ingressar logo na faculdade ou num curso técnico, o que o

162

senhor acha que devo fazer? Não tenho bem definida a minha

opção, quanto a isso.

− Paulinho: você tem sim! Desde garotinho você tem

optado por ciências. Quantos livros me pediu nessa linha de

estudo? Sem dúvida alguma, sua vocação está aí.

Paulinho sacudiu a cabeça alegremente. Imediatamente

todas as tristezas e todas as incertezas foram esquecidas: ele

pegou a bicicleta e saiu pela fazenda a pedalar. Enquanto eu fui

até à casa de Walter.

− Ele não está – disse Francisca, tossindo muito devido a

uma bronquite crônica provocada pelo cigarro.

“A Companhia de cigarros admite que fumar causa

câncer. ” Após contestar por décadas as descobertas de

diversas autoridades médicas, a Philip Morris, maior

companhia de cigarro nos Estados Unidos, agora admite que

fumar provoca câncer do pulmão e outras doenças mortíferas.

Num comunicado à imprensa, ela declara: “Existe forte

consenso médico e científico de que fumar cigarros causa

câncer do pulmão e doenças cardíacas. ” Segundo o jornal The

New York Times, antes a companhia dizia que fumar era um

‘fator de risco’ ou ‘um fator relacionado com doenças’, como

câncer pulmonar e não que provocasse tais doenças‟. No

163

entanto, apesar dessa admissão, a companhia diz: “Temos

muito orgulho de nossas marcas de cigarro e das campanhas

publicitárias que as têm promovido no decorrer dos anos.”.

Mas não saí imediatamente da casa do Walter. Francisca

não me deixou ir embora sem que antes eu tomasse café.

Enquanto eu tomava café, ela me contou mais uma de suas

histórias. Esta:

“Meu avô foi vendido como escravo para um

fazendeiro”. Mas o fazendeiro não soube de quem se tratava.

Mais de três anos depois, veio a surpresa: o fazendeiro era o

pai de meu avô. Com um plano traiçoeiro, ele mandou matar

meu avô. Desconfiado do risco que corria, meu avô fugiu. Mas

a valentia do fazendeiro foi superior a dele. Ele mesmo foi atrás

do meu avô. E, o fazendeiro não teve piedade: pendurou-o no

tronco, deu-lhe chibatadas – milhares. Assim, durante três dias

meu avô ficou. Mas não aguentou os ferimentos e morreu.

Eu sabia tudo sobre a epopeia dos negros, graças à

cultura e conhecimento de causa de dona Francisca. Toda vez

que eu a encontrava, ela sempre tinha uma história para contar.

Eu não tinha como fugir dela, de suas estórias, estórias de maus

tratos sofridos por seu povo. Os idosos são quase todos assim:

carentes de atenção, por isso falam tanto, quando têm ao seu

164

lado os que os escutam.

Ela levantou-se da cadeira, mas não foi a lugar nenhum.

Havia apenas um pedido que ela precisava fazer, antes que eu

fosse embora.

−Não sei se você sabe, mas fico sozinha aqui. O Walter

trabalha muito, pouco fica aqui. Eu tenho medo de morrer

sozinha! Não medo da morte, mas medo de morrer sozinha.

Eu a escutei silenciosamente. A explicação era a um

tempo sincera e justa, mas de tal modo preocupante.

Eu a abracei com força. – Não se preocupe, eu disse; vou

resolver isso.

−Não vá agora, ela disse. Tenho algo de muito grave

para lhe dizer.

− Diga!

− Walter está cuspindo sangue. Pausa. Leve-o ao

médico, antes que o problema se agrave – se já não está!

Quando saí dali, encontrei com o Zezão, um amigo e

músico das noites cariocas. Às vezes – não era frequente, mas às

vezes – ele tocava lá no bar, e nessas ocasiões conversávamos

com frequência. Ele passou a beber porque achava que isso o

ajudaria a esquecer um amor não correspondido.

O alcoolismo é um caminho sem volta, ainda mais

165

quando se escolhe por conta própria, como se fosse um veneno

mortífero para enterrar uma existência, ou como saída para a dor

e o sofrimento da sobriedade da vida real!

Zezão amou como nunca amou ninguém, sua esposa.

Mas ela não lhe deu valor. Numa noite, ele comentou comigo:

“Ela me traiu. E para piorar: fui despedido do emprego. ” “Sinto

muito, amigo! ”, eu disse. E ele continuou: “Adoraria não saber

da traição. Adoraria que ela tivesse me deixado continuar

vivendo na ignorância. Mas eu a peguei me traindo na minha

própria casa. No entanto, jura de pé firme que está arrependida

e que não fará novamente. Eu a amo muito, mas não confio

mais nela.”.

Encontrei Zezão comprando cigarros na padaria. Não era

mais o mesmo Zezão triste, mas feliz. Disse-me, então, que

decidiu se casar pela segunda vez, e a cerimônia aconteceu no

último sábado, no interior do Rio de Janeiro. “Estou orgulhoso

de você”, eu disse. Em seguida, ele me contou que a ex-esposa

morreu. “Mas como? ”, perguntei. Respondeu: “Assassinada

pelo amante. ” Zezão tinha os seus motivos para não aceitar

mais a esposa. A esposa tinha os seus. Mas ele não desejava mal

algum para ela. “Nem de longe! ”, confessou. Ele abriu a boca e

quase me contou como a esposa tinha morrido. Mas não disse

166

nada. Comecei a achar que, em muitos aspectos, Zezão era uma

pessoa melhor que eu. Bondade era apenas um deles.

Eu saí dali e fui para casa. Quando estava fechando a

porta da sala, Rute perguntou:

−E aí: encontrou meu pai em casa?

−Não. Mas Francisca deu-me notícias dele. Disse que ele

não está bem de saúde. Segundo ela, ele cospe sangue.

−Mas também ele vira a noite na rua bebendo! Pausa.

Isso ele não larga, mas com a gente nem se importa! Só isso

que ele sabe fazer: dá-nos mau exemplo. Só isso!

−Rute, não condene seu pai antes de ouvi-lo!

−Mas Francisca não mente!

−Mas ela é como um papagaio: fala demais e tudo o que

fala é o que lhe contam na rua.

E Rute desabafou: − Meu pai padece. A saudade é tanta

em seu peito, que ele não aguenta. Assim vive, assim se

encontra tantas vezes: pitando o bico do narguilé e bebendo.

Mas ele não escuta meus conselhos; escuta sua própria voz

chamar para a orgia.

−Orgia?

Eis a fórmula da orgia organizada por Walter: prostitutas e

álcool. Porém eu não tinha o direito de desnudar em público a

167

sua conduta e destruir a imagem construída na mente de Rute,

que tinha pelo pai um alto grau de apreço moral; e daquele que

era para mim, até então, também exemplo de caráter e conduta.

Rute me mostrou o caminho: Tirar o Walter daquela vida

de orgia. Depois de pensar um pouco sobre o fato, eu não pude

tirar a razão de Rute: Walter precisava de ajuda.

Eu agi. Zanzei pela cidade atrás do Walter: De bar em

bar, de hotel em hotel. Perto do amanhecer, eu o encontrei no

Copacabana Palace. Ele me dizia sem olhar para mim, talvez

sem sentir a minha presença, que não queria voltar para casa. Eu

lhe falei de Rute e de Paulinho:

−Eles sentem a sua falta.

Ele pôs as mãos na cabeça, chorou. Eu disse: − Você vai

ficar aí, com esse olhar de peixe morto? Mas ele ficou calado.

Um perfume desconhecido pairava no ar, eu sabia das

orgias de artistas, músicos, atores e de políticos internacionais

que vinham ao Brasil no carnaval. “Não era um lugar

recomendável. ” Diziam os que não podiam ali habitar, nem que

fosse por uma noite apenas. Mas acho que isso era despeito da

classe pobre, por não poder usufruir daquele pedaço de império

romano, ou de paraíso. E eu? Quantas vezes eu sonhei morar

ali. Quantas! Meu bar ficava muito perto dali e eu nunca tive

168

dinheiro para tal prazer mundano.

Então era ali, no Copacabana Palace, que Walter gastava

o dinheiro da família, pensei. Eu não me preocupava com isso,

só administrava a fortuna da família que havia crescido bastante

em poucos anos; éramos de fato bem abastados. Eu olhei de

relance o quarto, parecia um altar dedicado a um deus do

Olimpo, e a aparência de Walter era horrível, um semimorto que

não notava a presença de vida ali tão perto.

Walter pôs as mãos novamente na cabeça e culpou Deus

por toda a sua desgraça.

− Não digas tolices homem, não deves mexer assim com

Deus, isso é terreno perigoso. Não sabemos como ELE age

nestes casos e creio que nunca saberemos. Além do mais,

falando assim parece-me que não crês mais em Deus. Porque

quando falas de Deus vejo em teus pensamentos uma ironia e

um desdém sem par, até quando falas de virtudes é ao homem

que dás todo o mérito. Acho-te vago e vazio quando afirmas crer

em um ser supremo.

− Por que não és mais claro?

−Não é isso. Porém, eu nunca ouvi da tua boca as

palavras: Se Deus quiser farei isso ou aquilo.

Walter tossia sem parar. Eu tive pena dele.

169

−Paulo: há homens que não professam publicamente

suas crenças nem sua fé em Deus, no entanto as suas atitudes

gritam em praças públicas que são crentes à maneira do filósofo

alemão Kierkegaard, já outros são frequentadores assíduos de

igrejas e nem por isso nos convencem que creem em Deus. São

estes os crentes mais incrédulos. A força da didática repetição

perde o poder sobre eles, então em pouco tempo não acreditam

mais em nada, daí partem para outros credos, para outras

deidades, para estes seus deuses têm prazo de validade. São

como os amores das prostitutas, acaba-se o estímulo perde-se a

paixão. Estes seres confusos e instáveis são criadores de

mitologias irresponsáveis, onde para tudo existe um deus, um

poder sobrenatural para resolver e explicar uma ação ou reação

natural do rolar dos dados, das leis físicas pré-estabelecidas pelo

caos, no desenvolvimento da natureza. Você não sabe mais e é

aí que entra a tese do Eterno Retorno de Nietzsche. Por

exemplo: estes atribuem suas fraquezas e seus desvios de

conduta às forças do mal invisível, responsabilizam terceiros

pelos seus próprios erros. Segundos estes covardes, tudo de ruim

que lhes sobrevém, o mal que praticam advém das trevas do

príncipe do mal, do opositor de um deus bom que os criou

cheios de virtudes e que estas virtudes não seriam corrompidas

170

por seu livre-arbítrio, por suas próprias escolhas. Em outras

ocasiões culpam ao próprio Deus seu criador, quando tentam

justificar sua febre moral adquirida, dizendo: “A carne é fraca”

E esta atitude depõe contra Deus no tribunal da existência

humana. Será que Deus não foi bem-sucedido em seu projeto?

Por isso, sou cauteloso quando tenho que afirmar ou discordar

da maioria dos homens. Acho que nesta vida, para tudo se

precisa de base científica e de um pouco de lógica. Meu

pensamento é o mesmo de Russel: sempre defendo a razão, e

nego a superstição. O inexperiente é como criança nova: dá

crédito a tudo que ouve falar. Analisando todas as crenças,

encontro um grande buraco negro, um abismo de incoerência:

princípio sem fim, ou fim sem começo, e para explicar a falta de

resposta, inventaram deuses, e estes nem sempre são bem-

sucedidos. Vejo aí também a escassez da virtude humana no

tocante à humildade, para admitir que não sabe nada neste

campo do invisível; os homens são arrogantes quando afirmam

algo sem provas, reside aí também uma enorme contradição, um

gigantesco paradoxo, pois ao passo que julgam que a vida no

além-túmulo seja melhor que esta; não abrem mão da vida atual,

dos prazeres da carne decaída, e nem dos desejos da carne

“fraca” como eles mesmo cognominaram, nem mesmo quando

171

esta carne cai doente. É uma insensatez sem fim.... Olhe para

mim e diga se não enxerga um verme que apesar da decadência

físico-moral ainda busca a distração na ilusão de um prazer

momentâneo nos braços de Baco e de ninfas prostitutas. Eu

prefiro as pessoas sinceras: que assumem seu estado animal e

que não tentam desculpar o que fazem nem o que são. E neste

contexto, eu também me perco por labirintos escuros e diversos:

não creio nem nego, às vezes creio, outras descreio. Não tenho

respostas para todas as perguntas. Posso hoje afirmar

categoricamente que tenho a verdade sobre tudo ou para algum

assunto; mas amanhã pode ser que eu procure as provas e elas

não estejam mais lá ou eu mesmo as destruí.

Contudo, penso que a epígrafe de toda sabedoria humana

deve ser: "Conhece a ti mesmo," não dentro de um raciocínio

Pré-socrático ou neoplatônico. Contudo, como criatura pensante,

dentro da vastidão abismal do cosmo. Portanto, procuras saber o

tamanho da tua mediocridade vaidosa, ante o universo

assombroso que ainda se expande para um fim apoteótico, sem

plateia, dentro do caos. A inteligência emocional deve construir

pontes sobre o nada, para se suportar a vida sem causas ou

objetivos, mas a razão e a lógica devem destruir mitos e ilusões,

que não são necessários para uma vida otimista e produtiva. ”

172

− O que quis dizer: Não tem certeza naquilo que crê, se

existe ou não algo além do horizonte?

− Nem sempre vejo o horizonte! A fé é isso: É como um

arco-íris: nós o vemos, porém ele não está lá; não temos o dom

para descobrir ou tocá-lo e se tentarmos, ele desaparece, é pura

ilusão de ótica. Saber que algo existe sem precisar possuí-lo.

− Afinal: o que quer provar? Por ventura apagar com a

borracha da desconfiança a escrita indelével do sacrifício do

carpinteiro nazareno dos anais da história do cristianismo que

ainda vive?

− Não, nada disso! Apenas não tive ainda a honra de ver

a face de Deus. Discordo dos que dizem que não se pode ver a

Deus e continuar vivendo, falo ver no sentido de sentir, de saber

que ele está aqui ou ali, presente, e este ser real para nós. Para

algumas pessoas, talvez isso seja fácil de acontecer. Admiro

pessoas que mudaram de proceder depois de uma constatação da

existência do divino. Eu espero que este dia chegue para mim

também, estou à espera do meu quinhão na distribuição da fé, no

sobrenatural, em Deus, só que quero ver a Deus e viver para

contar minha experiência, e caso isto aconteça espero que seja

proveitosa e única

− Você é louco, Walter! Espero que mude de opinião – e

173

o mais rápido possível!

− Veremos!

− Eu não condeno você por pensar assim, já tive meus

dias de descrença, passei por estado de incredulidade total, não

achava razão para vida que levava, no entanto agora vejo o que

me fez pensar assim. A infelicidade, a carência de amor, de

afeição, pode levar qualquer um bom cristão a desacreditar de

Deus... Porém, o sábio sabe esperar, a natureza é fiel: sempre

depois de uma tempestade, depois de uma noite escura de trevas

profundas é inevitável que nasça o sol da esperança, e este

quando vem pinta no horizonte o quadro mais belo, seus raios

multicores são pincéis a colorir nosso amanhã e, neste estado de

regozijo celeste não só enxergamos o arco-íris, mas também

misturamos as suas cores e as transformamos em uma aquarela

de luz... Walter: Não estou aqui para questionar a sua fé em

Deus, mas para lhe comunicar uma coisa, uma data importante:

seu filho se formará em um mês.

−Sei, sei! Não me esqueci! Não se preocupe: lá estarei

para a festa, quero que providencie o melhor que possa existir

para o deleite e prazer do Paulinho.

Não tínhamos mais como acreditar em Walter. Como ele

chegou a esse ponto? Sempre o tive como um homem de

174

coragem, capaz de reagir. No entanto, já o via diferente, não me

parecia que fosse um dia ser de novo o mesmo Walter que

conhecera austero, homem de convicções firmes e personalidade

imutável. Esta cena fez vibrar as mais finas e profundas cordas

do meu ser, do meu coração de irmão e amigo tão achegado,

sentira que perderia o meu amado amigo, sogro e pai, era assim

que melhor poderia o definir!

Walter não parava, não conseguia parar de pensar na

morte da esposa e dos filhos. No entanto, aceitou ir comigo para

a fazenda.

Com o tempo, passou a perguntar a si mesmo se era um

homem triste ou feliz. E era Paulinho quem o respondia:

− Quanta tolice, pai! Sua pergunta não procede, pois ao

homem não foi dada tal percepção divina. Os homens não

conhecem esses dois extremos, esses dois sentimentos

corretamente, não sabem de fato como é ser completamente feliz

ou triste. Eu digo isso com uma simplicidade audaz: sendo eu

também um ser humano da casta dos inconstantes, que não

encontra em parte alguma razão para usufruir esses dois

sentidos. Uma vez que não fazem parte dos nossos sentidos

comuns.... Não temos capacidade para determinar com exatidão

quando estamos felizes ou tristes.... Enquanto homem, ser

175

atrasado, insuficiente, incapaz de ser completo consigo, viaja em

vias tortas em busca do que não tem.

Estamos sempre querendo algo novo seja em que campo

for... Temos sempre a impressão de que, o que nos pode fazer

feliz está sempre fora de nós, nas coisas concretas, e não no

abstrato da nossa subjetividade “essencial”. Inconscientemente

procuramos este estado de espírito sem saber onde esta busca

nos levará. Mesmo sem nunca encontrar, teremos sempre a

sensação de que estamos muito perto de atingi-lo. E nesta

incansável corrida gastamos todos os nossos bens, para adquirir

aquilo que não conhecemos, nem sabemos o seu valor exato...

E Walter se orgulhava do filho.

− Meu filho já é um homem, fala como um sábio apesar

de tão jovem! E eu quase não o vi crescer! Perdoe-me! Este

meu fracasso não tem desculpas, sou um infeliz! Eu lhe prometo

isso: Vou ficar agora perto de você, não me afastarei mais tanto

tempo, quero que tenhas uma grande festa de formatura, você

merece, todos vocês merecem.

E Paulinho sempre generoso, respondia:

− Pai, não se canse com isso! O que quero é que o senhor

esteja e seja presente não só na minha festa, mas em minha vida,

certo? Quanto ao senhor ficar comigo o tempo todo, isso não

176

será possível, nem necessário, pois vou estudar na Europa!

Isso calou fundo n’alma do Walter que ficou mudo e, no

fundo, provavelmente pensou: outra vez não, não iria aguentar,

meu filho vai embora e eu não o verei mais. Fez forças para

voltar o tempo e acompanhar seu filho em suas horas mais

importantes, como a formatura do primeiro grau, que não

aparecera porque estava embriagado...

O tempo, leitor, o tempo não volta atrás para satisfazer

nossos caprichos, para consertar nossos erros. O tempo, amigo

leitor não é amigo neste sentido.

Walter tentou tirar da cabeça de Paulinho a ideia de ir

estudar na Europa. Mas Paulinho era categórico: O sonho é meu,

não do senhor!

A festa de formatura não foi como as festas anteriores.

Não teve o discurso do Walter. Foi uma festa com cara quase

fúnebre, impessoal para nós, que não esquecera que ali faltava a

rainha do lar, a peça principal do jogo das nossas vidas. Era um

reino sem rainha, sem realeza. Todos bebiam a uma felicidade

fugaz. A festa terminou muito cedo: Os convidados que

compareceram, compareceram mais pela hipocrisia da obrigação

social, do que pela gentileza da amizade e consideração do

momento.

177

No fim da noite, quando eu e Walter estávamos

conversando na varanda, encontramos um homem à nossa

espera. Era o seu João, que só ali teve a oportunidade de

agradecer ao Walter, por este ter lhe arrumado um emprego

(aquele episódio do bar, lembra?). O seu João era agora meu

gerente na fazenda, depois de ter passado por vários setores:

Vaqueiro e chefe dos vaqueiros. Com a morte do Juvenal, ele

assumira agora mais responsabilidades na fazenda.

− Senhor Walter, agora enfim posso lhe dizer o quanto

sou grato por sua generosidade. Trabalho para sua família há

tantos anos e ainda não tive o prazer de revê-lo, para dizer-lhe o

tamanho da minha gratidão, porém tudo na vida tem sua hora. O

senhor foi para mim e para os meus, um verdadeiro anjo da

guarda. Que Deus na sua infinita bondade colocou-o na minha

direção naquela manhã tão inesquecível para mim, possa Ele

retribuir-lhe em dobro o que fez por nós.

− Não precisa agradecer. Isso faz parte da vida, eu estava

lá no momento certo e não fiz nada demais, você é que mereceu,

como você mesmo disse, foi Deus quem planejou tudo, não por

mim é claro, pois não merecia e nem mereço tanta consideração

de sua parte; foi sim por você e seus filhos necessitados.

− Mesmo assim sou escravo do senhor e sempre lhe serei

178

grato, e estarei para o senhor disponível para o que der e vier.

−Obrigado seu João, não se apoquente com isso!

Depois que Walter e João foram dormir, eu ainda fiquei

ali a observar o céu. Ele estava perfeito, todo iluminado de

estrelas e a lua estava lá, quase cheia, magnífica. E à noite ficou

mais bonita com a presença de Rute ao meu lado na varanda.

− Você me ama?

− Claro, seu bobo!

Eu refleti e continuei:

− Quero nosso amor tão perfeito como o céu.

−Nosso amor não precisa ser perfeito, meu marido,

apenas verdadeiro.

Ao lado tinha uma rede armada, lugar onde sempre

namorávamos, nas noites em que as crianças nos davam

sossego, era nosso cantinho secreto. Era nosso esconderijo.

Eu disse:

− Olhe ali o nosso esconderijo, onde fazíamos amor,

lembra?

− Claro meu amor, sussurrou Rute: quero ir para lá

agora... e fomos para a rede, foi magnifico, nosso amor era

sempre como uma primeira vez.

Depois continuamos a conversar sobre a vida do Walter.

179

Rute estava muito preocupada com o comportamento do

pai.

− Rute, não fique tão preocupada, ele está bem! Ele

prometeu que não vai beber mais.

− Paulo, será que ele parou mesmo de beber? A mente

humana é terreno ainda desconhecido pelo homem, os

profissionais desta área não sabem praticamente nada sobre ela

e, como psicóloga, asseguro que o achei muito estranho. Há algo

novo em seu pensamento, em seu semblante. Temos que vigiar

para ajudá-lo. Tenho medo que ele tire a sua própria vida.

− Conheço o Walter mais do que a mim mesmo! Sempre

soube quando ele está prestes a cometer algum desatino.... Vou

cuidar dele para você!

− Outra coisa que me preocupa: Não acho certo que o

Paulinho vá estudar agora na Europa. Ele está muito novo, acho

que deve ficar mais tempo com o papai, talvez ele não o veja

outra vez, se ele for para tão longe...

− Concordo com você, já falei com ele a respeito, ele

está decidido, acha que deve dá orgulho ao seu pai, por ir fazer o

que o Walter Júnior fez, mas não conseguira.

− Por favor, Paulo, fale com ele!

− Claro!

180

O Paulinho considerou o pedido da família e aceitou

ficar até que completasse dezoito anos.

Durante os dois anos seguintes, Walter cumpriu a

promessa: não bebeu. Éramos todos alegria. As crianças

começavam a namorar e a fazer suas escolhas na vida, o meu já

com vinte anos se formara em veterinária, meu braço direito na

fazenda! Cuidava quase de tudo para mim, era nosso arrimo na

velhice, não precisávamos nos preocupar com nada, Rute dizia

que nunca pensara em alcançar tanta alegria, com uma família

que aos trinta ainda não tivera, que agora aos cinquenta, era a

mulher mais feliz do mundo.... Lamentava a falta de sua mãe,

que não vivera o bastante para ver sua família tão feliz e unida!

Ao completar dezoito anos, o nosso jovem em questão,

partiria sem demora para a Europa, não adiantou os pedidos e os

lamentos de todos e do pai, os apelos mais dolorosos de se ver e

ouvir, era agora a hora do maior padecimento para um pai viúvo

e órfão de um filho varão.

Mas veio a recaída. Walter achava que Paulinho teria o

mesmo fim do Walter Júnior. Com isso, ele não aguentou a

pressão: entregou-se ao desatino e ao álcool outra vez. E para

um sofrimento maior ainda para a família, ele passou a morar na

rua. Agia como um adolescente irresponsável, como um tolo. A

181

Rute não tinha paz, “Como posso dormir sem saber por onde

anda meu pai? ”, dizia ela. Eu passei dias e dias à procura de

Walter. Até que um amigo meu me falou que ele estava

morando debaixo de um viaduto na zona norte do Rio − notícia

que Rute não aceitou com facilidade. Ela chorava dia e noite:

“Como meu pai foi fazer isso, descer tão baixo no subterrâneo

humano? ”.

Eu não sabia o que fazer e pensava comigo: “A vida é

uma caixinha de surpresa! E o homem é um viajante solitário

que vaga por campos hostis, que pega o trem da vida com a

passagem só de ida, em busca de descanso e de morada, exausto

da longa caminhada, tropeça em pedras do destino. O homem

dorme em cama de ilusão, sufoca seus desejos, com isso, os

sonhos adormecem. Perdura em seu peito a angústia da razão.

Perdido no deserto vagueia dia e noite, sem luz, sem guia, sem

sombra ou companhia. Mal sabe que está só, andando em sua

volta o peso em suas costas, que lhe arrasta para o chão, o seu

termo é o pó, o gen da criação.

Como um dia podemos acordar e tudo em nossa volta

pode está diferente, mudado, fora de lugar, quem realmente é

sábio para prever e se proteger do amanhã? Quem suporta as

desventuras e as amarguras? A inconstância da vida é algo

182

assustador! Não estamos seguros e nunca temos a certeza de ter

alcançado a felicidade plena. Quando em algum instante da

nossa existência achamos que é agora e a hora em que

atingiremos o alvo por todos almejado, o tiro nos sai pela

culatra, somos pegos de surpresa e de um instante para outro se

invertem os papeis, deixamos de ser caçadores e passamos a ser

caça...”.

Lembrei-me da tolice que Walter falava sobre a vida em

outro planeta: A mente humana não tem limites para desvarios e

alucinações, sobretudo quando se encontra encurralada pela

realidade, muitas vezes cruel. E nesses momentos verificamos

quão fugaz é a vida: “Como um poema escrito na areia que a

onda do mar do tempo apaga tudo com sua voracidade”...

Lembrei-me também da virtuosidade do Walter: podia

ver claramente que ele só podia ser mesmo de outro mundo, um

homem além do seu tempo e exímio conhecedor de todas as

ciências e de todos os cultos. Ele me insinuou como a

virtuosidade do Alemão que tinha admiração pela filosofia

nazista, que fora a paixão intelectual-musical de Nietzsche e

mais tarde de Hitler, transformara para sempre sua noção e

conhecimento das óperas do mundo clássico europeu. Eu nada

compreendia − pelo menos como ele queria que eu

183

compreendesse. Walter não era advogado, mas sabia tudo sobre

Direito Constitucional e Penal. Ele acreditava que o universo ia

se desintegrar. Acreditava na evolução e na criação ao mesmo

tempo e explicava de forma didática como isso podia se dar.

Tinha até um esquema que mostrava o universo em evolução.

Afirmava: visto ser a sua origem de uma explosão, seria

inevitavelmente conduzido à outra explosão ainda maior do que

a que lhe dera origem. Eu o achava inteligente, mas achava estas

ideias dele absurdas.

Walter conhecia todas as teorias sobre o mito da criação.

A este respeito, ele me disse:

“Paulo, meu bom e inocente amigo: Para o homem, toda

esta ideia de deuses e mitos foi simples defesa que o instinto de

sobrevivência criou para se proteger do acaso e do caos. Quer

saber como posso provar o que eu digo? Veja bem, todas as leis

que demos à luz. Ética, Justiça, e esta história de ser honrando

e de ter bom caráter, todos estes símbolos são reflexos da

necessidade que temos de buscar a melhoria da nossa própria

conduta. Ao passo que descobrimos em nossas ações atos de

injustiça, criamos a justiça para nos aprimorar e nos proteger

da violência que podemos causar aos nossos irmãos e também

sermos vítimas. Eu penso que é aí que mora o abismo que

184

separa a lucidez da loucura: o conhecimento. Dizia um sábio,

que melhor seria que o homem continuasse na inocência, talvez

assim fosse feliz ou mais feliz, ou pelo menos não conheceria o

pecado. Falo da inocência total, não da religiosa e do pecado

capital, do que desagrada a Deus. Falo do pecado da vaidade,

que escraviza todos que dominam o conhecimento.

Tenho uma teoria sobre uma metafisica cósmica, que há

muito tempo está em desenvolvimento na minha mente, esta

teoria na verdade não é muito original, pois já aprendi algo

sobre ela nos escritos de Espinoza e com a intuição mística de

Einstein.

Nesta minha ilação ou loucura sobre uma religião

perfeita, capaz de satisfazer o desejo dos intelectos mais

poderosos entre os homens, Deus seria a totalidade de todas as

coisas, a fonte de todas as energias renováveis do universo, o

próprio “universo é alma de Deus. ” Então tudo se torna claro

para mim, quando penso no futuro da humanidade, nos medos e

superstições produzidas pela ignorância tribal do homem em

desenvolvimento espiritual e psicológico. Para onde iremos,

caso a inteligência suportasse a morte física do corpo, do corpo

que até hoje conhecemos como simples matéria orgânica?

185

Com este meu sistema religioso eu resolvo todas estas

questões supra-humanas, que tanto afligem a mente imperfeita

do homem, pois para mim não pode existir céu nem inferno,

tudo que há é um universo em expansão constante, Deus sendo

tudo em todos e para todos, não haverá angústias morais sobre

o que é certo ou errado, pois até o pecado estaria reduzido a pó,

como diz o livro de Gênesis. “Tu és pó e ao pó voltarás”

Se você pensar bem esta minha teoria encontrará

respaldo bíblico para lhe embasar. Lembre-se que em algum

lugar dos evangelhos, Jesus diz para seus apóstolos que, assim

que eles atingissem um estado maior de percepção espiritual,

todos eles seriam um, assim como ele e PAI eram um. Pense em

uma grande usina nuclear, que produz energia para todos os

fins, assim seria Deus. Ah, lembre-se também que quando Deus

enviou Moises ao Egito para libertar seu povo, ele disse para

seu escolhido e líder, Moises, que ele seria o que precisasse se

tornar para libertar os israelitas do julgo egípcio. Gosto de

citar textos sagrados, pois assim não será difícil convencer

cristão e bárbaro sobre minha tese. O livro de Eclesiastes, por

exemplo, diz que o homem tem a mesma sorte do animal, e lá,

para ser meigo com o homem crédulo, ele usou o cão como

modelo, diz ele, “assim como morre o homem morre o cão...”

186

Sou um velho tolo, queria ser um poeta, e não ter consciência de

nada em sentido metafísico e filosófico, contudo, sou movido

por um espírito cientifico, não poderia ser poeta. Tenho um fraco

incontestável por três musas, características humanas: Amor, beleza e

justiça! Contudo, tendo a me perder facilmente pela beleza, mas o

amor sempre me socorre, me conduz à justiça...

É Claro que esta minha TEORIA CÓSMICA-

METAFISICA não vai servir para os homens que estão

confortáveis em seus castelos emocionais, em suas crenças

milenares, ela servirá apenas para aqueles que como eu

habitam em labirintos emocionais, sem a menor chance de

saírem de lá. Esta teoria, como todas as outras do campo da

metafisica, servem para consolar o espírito humano abatido

com sua cruel sina, a ciência irredutível da morte certa. Não é

assim que diz o senso comum? o homem é o único animal que

sabe que vai morrer.

Pois bem, com esta minha teoria provada, caso fosse

possível comprovar minha alucinação teológica, o homem

venceria a morte, pois passaria a ter consciência de que é uma

partícula cósmica divina, portanto não pode ser apagada. Outra

citação bíblica nos ajuda a entender este fato. No início da

187

criação lá no Éden, Deus soprou nas narinas de Adão e ele

passou a ser uma alma vivente. ”

Eu sugeri a ele que escrevesse um livro. Ele respondeu:

− Claro! Um livro de registro das minhas teorias, como

esta: “Veja bem, meu caro Paulo, mitos sobre a criação há

muitos, mas nenhum deles tem a lógica simples do registro da

criação apresentado na Bíblia. (Gênesis, capítulos 1, 2) Por

exemplo, os relatos na mitologia grega têm requintes de

barbarismo. O primeiro grego a assentar mitos por escrito

sistematicamente foi Hesíodo, que escreveu sua Teogonia no

oitavo século AEC. Ele explica como é que os deuses e o mundo

começaram. Ele começa com Géia, ou Gaia (Terra), que dá à luz

Urano (Céu). Hesíodo narra a história, que Homero conhece, da

sucessão de deuses celestes. De início, Urano era supremo, mas

ele suprimia seus filhos e Gaia incentivou seu filho Cronos a

castrá-lo. Cronos, por sua vez, devorou seus próprios filhos, até

que sua esposa Réia deu-lhe de comer uma pedra, em lugar de

Zeus; o filho Zeus foi criado em Creta, obrigou seu pai a vomitar

seus irmãos, e, junto com estes e com ajuda adicional derrotou

Cronos e seus Titãs, lançando-os no Tártaro. ” De que fonte

obtiveram os gregos essa estranha mitologia? O mesmo autor

responde: A sua derradeira origem parece ter sido sumeriana.

188

Nessas histórias orientais encontramos uma sucessão de deuses, e

os temas da castração, da engulição e o de uma pedra se repetem

de tal modo que, embora variem mostram que a semelhança com

Hesíodo não é coincidência. Temos de recorrer às antigas

Mesopotâmia e Babilônia como a origem de muitos mitos que

permeavam outras culturas.

Eu gostava de conversar com Walter, mas confesso que

meu intelecto não suportava tanta informação, e às vezes

informações ou especulações inúteis.

Um ano se passou sem Walter dar notícias. Até que

recebemos uma carta anônima dizendo que ele estava preso em

um país da América do Sul. Esta notícia era algo totalmente

novo para todos nós, apesar de na época estarmos vivendo sob o

regime totalitário (a ditadura) Era só uma carta anônima, era

uma mentira maldosa ou uma brincadeira de mau gosto, não

demos atenção à carta.

“Após a queda de Goulart, sucederam-se governos

militares pelo período de 21 anos: de Marechal Humberto de

Alencar Castelo Branco (1964-1967), de Marechal Arthur da

Costa e Silva (1967-1969), do general Emílio Garrastazu

189

Médici (1969-1974), do general Ernesto Geisel (1974-1979) e

do general João Batista Figueiredo (1979-1985) ”.

Era o ano de 1972. O Walter era jornalista de direita,

embora os de esquerda não se reconhecia publicamente. Aliás,

para eles não havia jornalista, senão de esquerda, contra o

regime. Nessa época, podia se reconhecer as pessoas

importantes mais pela ideologia política do que pela

competência profissional.

Não sabíamos de nenhum episódio que envolvesse o

nome do Walter, ou talvez não o conhecesse como achava que o

conhecia, sabia dos abusos dos militares, não me interessava por

política, vivia uma vida calma e alienada...

Isso me pareceu um tanto misterioso, pois qual era o

intuito daquela carta ou de quem a mandara?... Procurei em

todos os lugares possíveis, hospitais, delegacias e cemitérios

clandestinos, pois sempre apareciam lugares como estes com

corpos não reconhecidos por parentes. Enfim: tudo em vão.

Apesar de tudo, a esperança ainda reinava na família.

“Papai está vivo”, dizia Rute. Mas já tinha para mim que, se não

o encontrasse, eu ia dizer para todos que nós devíamos continuar

a vida.... Acho que eu já estava um pouco cansado destes

190

problemas com o meu sogro, das suas inúmeras recaídas.

Esperaria que o velho tempo trouxesse as novidades do meu

velho e cansado amigo. Era triste o fim do meu amigo sogro!

Mas o que eu podia fazer?

Depois de todo este vagar em vão, voltei para casa, para

o seio dos meus queridos: minha família que só me dava prazer

e alegria. Tirando o Walter, tudo estava muito bem.

Rute não se consolava, nem se alegrara mais com nada, e

isto sim me deixava sem paz, não podia ser feliz, se minha outra

metade não era, enquanto este drama persistisse, drama que era

deveras um fato, uma realidade. Chegamos a cogitar a ideia de

irmos para Paris. Dizem que os loucos e os assassinos sempre

voltam ao lugar do crime, pois não é um crime bárbaro afogar a

mente em um poço tão fundo de agonia, de angústia e

depressão? Existem vários tipos de loucura, eu disse para Rute.

A loucura do Walter era a meu ver, loucura sem razão,

afinal problemas todos os têm, e ele tinha muito por quem viver.

Tivera filhos, esposa, netos, filho quando não esperava ter, como

uma dádiva do criador. A vida por si já vale a pena viver,

mesmo para aqueles que na vida nada têm, se não os pulmões

para respirar, viver. Acho que nem Freud explicaria, muito

menos eu o poderia...

191

Quanto a mim, vivo embriagado com uma volúpia

celeste ao contemplar o prazer que a vida pode proporcionar-me,

quantas alegrias advindas deste instante glorioso que é usufruir o

fôlego de Deus e do êxtase de ser humano, o projeto mais

imponente a ser elaborado na esfera mais alta da inteligência. E

todos os seres que respiram como eu devem se sentir ébrios de

satisfação pela realização alcançada, que é o respirar, o vir a ser,

privilégio de que o criador abre mãos para sustentar nossa vida

do lado de cá, do lado sensível... E sei que esta centelha divina

não se apagará, enquanto for alimentada com o azeite do amor

supremo. Quanto a mim respiro e compartilho com os meus

queridos, minha função na existência e divido-a em partes

distintas: como homem, como pai e, sobretudo como irmão. A

providência foi deveras generosa para comigo... Aqui fica minha

insignificante apreciação pela vida e meu reconhecimento da

existência de um criador, de um Deus... Meu julgamento, em si

não tem nenhum valor, homem comum, sem cultura, “apenas

penso que sou capaz de pensar” (não tenho certeza se já li isso,

na dúvida...), pois como todos os homens, sou movido pela santa

vaidade, vaidade que alimenta e destrói, que derruba e edifica,

que dissolve e solidifica. A vaidade que nos sustenta a vida, que

nos faz ser honrados e sem honra, quando essa vaidade nos põe

192

em uma posição de pessoa honrada, pois se agimos pela honra é

por não aceitarmos ser visto como alguém sem honra, sem

palavra, como alguém que não cumpre com seus deveres, ou

seja, nossa vaidade nesse aspecto não suporta a condenação da

reputação; pela vaidade dos outros. Se julgo e condeno o Walter

como homem fraco e o acuso de desequilíbrio moral e mental, é

sem dúvida porque eu não incorri no mesmo erro que ele. Porém

ele poderia me acusar também de homem fraco e desequilibrado

moral, pelo fato de que eu assumira tão prontamente seu lugar,

além de conquistar sua filha carente de amor e de atenção

paternal; não seria isso também falta grave de caráter e de moral

apurados?

Quanto à loucura quem não é louco? Diria Erasmo de

Roterdã, que todos são! A loucura é o nome dado à ausência de

consciência, ao mesmo tempo em que a consciência, dizem os

cônscios de lucidez que é um estado de embriaguez existencial,

onde o ser pensante acha que tem a razão e o dom do discurso.

Eu não me atrevo a classificar este expediente da psicologia

humana, pois, só enlouquecem os racionais.... Dizem que os

cães enlouquecem, no entanto é a consciência dos homens que

acomete de demência os animais... A loucura é o estado maior

da vaidade; quando esta não atinge o sucesso almejado, então

193

para escapar dos escárnios do orgulho, lança-se no abismo da

demência, dissimulando e negando a consciência...

A vida é uma caixinha de surpresa! E o homem é um viajante

solitário que vaga por campos hostis, que pega o trem da vida

com a passagem só de ida, em busca de descanso e de morada,

exausto da longa caminhada, tropeça em pedras do destino. O

homem dorme em cama de ilusão, sufoca seus desejos, com isso,

os sonhos adormecem. Perdura em seu peito a angústia da

razão. Perdido no deserto vagueia dia e noite, sem luz, sem

guia, sem sombra ou companhia. Mal sabe que está só, andando

em sua volta o peso em suas costas, que lhe arrasta para o

chão, o seu termo é o pó, o gen da criação.

194

O milagre

Era 1974. Já havíamos visitado todos os hospícios de São Paulo

e do Rio de Janeiro. Não tínhamos mais esperanças. Até que,

numa tarde de domingo, movidos mais pela força do hábito do

que pela crença de encontrá-lo; estávamos nós a caminho de

uma Casa de Repouso de Idosos, que por abandono ou por

vontade própria, ali viviam isolados do mundo exterior.

Encontramos o meu amigo Walter, que se fizera refém do

remorso e de sua amargura, para se punir por erros, como pai e

195

marido. Não estava muito bem, é claro! Porém, não estava

totalmente louco, pois, desta vez, não fugiu nem fingiu que não

nos conhecia, nos abraçou e pediu à filha perdão, por sua

fraqueza. Dizia:

− Minha filha: Não há mais razão para o meu viver, é

demais o meu sofrer. Eu não consegui viver à altura das

criaturas que Deus me deu para o meu deleite na vida. Depois da

morte de Beatriz e dos meninos, não posso mais e nem mereço

viver na companhia de vocês, por isso me bani da tribo da minha

consciência. Saiba isso, não vou mais causar dor e sofrimento a

vocês. Estou em paz comigo mesmo e, depois de tanto refletir

sobre minhas ações, verifiquei que só cabe a mim mesmo julgar-

me, condenado ou inocente. Então por me sentir culpado

continuei aqui e daqui não sairei – e nem insista em me tirar

daqui! Espero que o Deus de ternas misericórdias, o lavrador

celestial, me conceda ainda muitos anos aqui no seu jardim

terrestre; como planta imprestável que sou, que ELE não corte

minha herança eterna na videira da vida, que ELE permita que

minha semente perdure e dure para sempre em você e em meus

netos. Quanto a mim espero viver muitos anos ainda para pagar

meus erros nesta prisão que eu mesmo edifiquei e me tornei o

mais cruel e o mais justo de todos os condenados. Vivo preso

196

em um LABIRINTO EMOCIONAL que, por mais que eu

caminhe mais longe me encontro da saída!

Eu ia visitar o Walter no residencial para idosos

semanalmente por dez anos. A cada visita eu percebia que ele

piorava. Pouco se lembrava de nós. A última vez que o encontrei

lúcido, ele falou:

− Paulo, meu filho, eu considero você meu filho, embora

eu não tenha idade biológica para tal privilégio, porém o que é

um filho senão aquele que se comporta como tal? E o que é um

pai, senão aquele que vela, ama e protege um filho do coração?

Sei que é quase hora de eu me desligar desta vida, então quero

pedir-lhe isso a você, que seja para minha família o pai e avô

que eu não fui. Pausa. Choros. Não leve em conta meus erros,

não os valorize mais do que eles merecem. Sabe você que as

virtudes e os erros nos humanos são inerentes e são até

compatíveis e necessários. Claro que eu não fui um exemplo,

como ser humano, também nunca esperei nem cobrei isso de

mim mesmo. A vida e a experiência me ensinaram que todos os

homens erram por repetição, ou por herança. Meus pais, por

exemplo, não foram perfeitos para mim, meu pai foi um homem

exemplar e como filho me espelhei no seu exemplo; no entanto,

há quem diga que ele fora um fraco e um falso moralista. Certa

197

vez minha mãe me contou que ele, quando jovem teve uma

amante por dez anos e que, por este motivo foi considerado um

covarde pela família, sobretudo por minha mãe – embora ele

jamais tenha deixado de nos amparar. Paulo, eu não espero

perfeição também de sua parte, mas o que me incomoda é pensar

que todos falham e que você pode falhar ou ter falhado, mas

nunca faça minha Rute sofrer!

− Quer me contar algo, meu amigo? Fique à vontade,

abra o teu coração!

− Sim! Quero que saiba isso: Eu não tive apenas a

Beatriz como mulher, tive a Vera também. Vivi com Vera por

vinte anos e com ela tive uma filha, Patrícia, que mora em São

Paulo. Assim como a morte separou Beatriz de mim, também

Vera, ela morreu há quatro anos. Silêncio. Depois, ele: Nunca

contei esta outra fraqueza minha para ninguém. Agora é hora de

lavar minha alma, não devo morrer sem confessar este meu

último e talvez maior pecado... Pausa. Por favor, Paulo: Só conte

este meu segredo para Rute quando eu morrer! E por favor:

Quando puder, vá visitar a Patrícia. Sei que ela tem filhos e eu

netos – mas eu não os conheço. Quando resolvi sair de casa para

meu exílio moral, fui a São Paulo para reencontrá-la, mas não

fui bem recebido. Isso me marcou muito, choro até hoje por não

198

aceitar o desprezo de minha filha. Vi meus netos de longe

porque ela não permitiu que eu me aproximasse deles. Vejo isso

como uma consequência dos meus atos de covardia. Poucos

homens estão dispostos a pagar o preço exigido por suas

escolhas, eu sempre achei justo o preço pago pelas minhas.

− Walter, há quanto tempo você não via sua filha? Como

você e Vera se conheceram?

−Eu conheci Vera durante uma viagem que fiz a São

Paulo. Eu estava na biblioteca da Universidade de São Paulo

(USP) pesquisando sobre o desenvolvimento industrial paulista

e ela também. Esta pesquisa seria base para um de meus livros e

para uma matéria do jornal. A pesquisa nos uniu, a princípio

como amigos, mas depois amantes apaixonados. Paulo, eu não

resisti aos encantos de Vera, moça jovem com 24 anos, de

beleza singular, independente e desafiadora. Nossa cidade de

referência para nossos encontros era São Paulo, mas ela gostava

de variar: íamos ora para a Europa ora para a Ásia. Quando ela

engravidou, nossa relação mudou completamente. Ela pouco me

olhava como homem, mas como o pai da filha dela. Mas ela

nunca me cobrou além do que eu podia lhe oferecer – nem a

pensão para a menina ela queria. Nossa relação chegou ao

199

limite. Terminamos, então fui me encontrar com minha filha

quando ela tinha dezesseis anos – ela já com um filho nos

braços. Depois disso, eu a vi mais duas vezes apenas. Todavia,

estou preparado para morrer. Todo homem só deve morrer

quando for cabalmente instruído sobre a sua insignificância na

eternidade!!!

Ao olhar Walter mais de perto, cheguei a esta conclusão:

que eu deveria respeitá-lo, não o criticar, pois sua integridade e

resignação eram invejáveis: Walter abriu mão dos bens materiais

e morais que lhe eram devidos para terminar seus dias à margem

da sociedade, sociedade que ele não fazia questão alguma de

usufruir de seus bens, já que não se considerava merecedor por

não se comportar à altura dos princípios e valores que a regem.

Nem todos aceitaram a decisão de Walter morar no

residencial para idosos, contudo foram capazes de entender a

razão que o levara a este modo de pensar: ele achava que com

esta autocondenação seria absolvido não por Deus, porque sabia

que Deus perdoa todo pecador arrependido, mas por sua própria

consciência, a qual fora implacável ao sentenciá-lo à morte em

espírito, um homem de carne e osso que não conseguia mais se

mover com suas próprias pernas e mente, enfim, era deveras um

morto vivo! Ele pensava que agindo assim abrandaria seu

200

pecado e sua culpa, diminuindo um pouco o sofrimento dos que

ele havia feito sofrer, ou pelo menos não tinha evitado o que

podia evitar, ou tornar mais leve o drama vivido pelos seus

entes- queridos...

Eu passei a não questionar mais suas razões, só lhe ouvia

e o amparava na dor. Por exigência dele, não falava como os

filhos e netos estavam. Paulinho, por sua vez, até então morava

na Europa, quase não dava notícias e quando dava, nem

perguntava pelo pai.

Confesso não ter sido fácil ver Walter morrer aos

poucos.

Os filhos: Seus juízos são implacáveis para com os erros

dos pais, não conseguem ver com bons olhos as falhas dos seus

pais, mas quando se tornam também adultos e pais, cometem os

mesmos erros, então se dão conta de que todos os homens são

passíveis de erros. Aliás, muitos pais e muitos filhos não

atingem o refrigério n’alma e a paz que produz o perdão;

poucos, ou quase nenhum sabem ou dão o valor que os pais

merecem, esquecem que ao nascerem não são capazes de

sobreviver sozinhos, se os pais não os protegessem e os

alimentassem, não viveriam nem um dia à mercê de sua própria

201

sorte. “Não pediram para vir ao mundo”, dizem alguns

revoltados com suas fraquezas e limitações, pois bem: os pais

também nasceram pelo mesmo processo humano das paixões

inferiores, ou por amores arrebatadores que deram à luz filhos

bastardos; outros a filhos amados e nenhum é super-homem ou

perfeito... No entanto, todos têm a mesma natureza: são

humanos e, assim como seus pais tiveram a mesma origem: a

fecundação natural.

Quando completou 10 anos que Walter residia ali, seu

estado físico também piorou, sofria do coração e respirava com

ajuda de aparelhos. Não sei se foi uma boa, mas pedimos aos

médicos para levá-lo para casa, “Assim ele terá uma morte

digna: perto da família”, disse Rute. Comovida com o estado

do pai, Rute pediu para que Paulinho retornasse para o Brasil.

Não apenas ele retornou, mas sua esposa e os dois filhos.

Chegaram para ver o final daquele que não tinha conseguido seu

respeito como pai, mas que merecia, como último afeto, um

abraço, pelo menos como caridade cristã. Um final que era o

começo de uma vida sem o nosso amado Walter, principalmente

para o Paulinho, que durante quatro meses perdoou e amou seu

velho pai, apesar dos seus erros, que antes eram para ele

imperdoáveis.

202

Uma semana após a morte de Walter, eu chamei Rute e o

Paulinho para participar-lhes da existência de Patrícia. A

princípio ficaram revoltados com Walter, mas depois aceitaram,

afinal, como disse Paulinho: “Que culpa tem nossa irmã

Patrícia, pelos erros do nosso pai? ”.

Walter morreu no Rio de Janeiro. E para nós, que ainda

ficamos por aqui, ficou o peso e a responsabilidade de

continuarmos levando a carga pesada da vida.

Sim, perdoe-me. Eu com a pressa de levar o livro para

meu editor, havia me esquecido de matar e de enterrar a Dona

Francisca. Ela morreu dias depois do Walter, com 99 anos, “Eu

não morro antes do Walter e não chego aos 100”, dizia ela para

a família. Profecia cumprida! Levei-a para sua casa, para morrer

perto de sua família, como ela queria.

203

FIM

204

Epílogo

No romance que acabamos de ler, Paulo é o narrador

presente de um drama muito rico em poesia, contudo, um pouco

pobre em descrição física e psicológica. Um drama em que a

personagem principal, seu protagonista é o Walter, seu bom

amigo, sogro e protetor.

Pois bem eu sou o Walter e devo acrescentar algumas

informações sobre o romance em que Paulo, meu grande e

único amigo me deu a honra de ser enredo, embora sua

narrativa tenha sido fiel ao que realmente se propôs, todavia,

muitos abismos poderiam ser descortinados, caso eu resolvesse

escrever e descrever, com detalhes, os fatos narrados

superficialmente por Paulo, que como ele mesmo admitiu não

tem aptidão para romancista.

Paulo é um homem simples, e toda cultural que

conseguiu acumular foram histórias contadas por pessoas com

as quais conviveu. Vamos citar aqui alguns: seu primeiro

professor de música, o velho Antônio. Depois o outro professor

do conservatório de música, no Rio de Janeiro. Por último, sua

convivência comigo, onde assimilou muito do que eu, às vezes

em boas conversas lhe transmiti.

Como conheci o Paulo, foi exatamente como ele contou,

mas a cena, se for contada do meu ponto de vista, claro que a

história pode ter outro impacto no leitor. Eu sempre ia aos

bares da orla de Copacabana, não só ao bar onde Paulo

cantava, eu frequentei todos os bares e bordeis de Copacabana

205

nesta época, e, não raro, gostava de variar meus hábitos, o tipo

de bebida, mas, amigos, eu nunca consegui arrumar,

especialmente durante este tempo em que vaguei pelos bares da

Zona Sul.

Entre as minhas idas aos bares de Copacabana, logo

comecei a me interessar pela música que Paulo tocava,

sobretudo por ser um tanto distinta dos demais músicos

cariocas. Paulo não era um grande músico, não era um virtuoso

instrumentista, todavia a sua voz, em conjunto com sua forma

de harmonizar as canções, foram aos poucos me conquistando.

Sua aparência era simplória, um homem negro de meia idade e

que não se vestia lá muito bem, tudo isso é claro por conta da

miséria que ganhava como cantor da noite, então sua condição

econômica não lhe ajudava neste aspecto.

Qual era então o motivo de eu beber tanto? Não era só o

fato trágico que conta o Paulo sobre a morte do meu filho.

Nesta época meu casamento não estava nada bem, eu não me

sentia bem em casa, e minha relação com Beatriz estava em vias

de se complicar ainda mais, pois eu não a ouvia, nem lhe

apoiava, ela sofria sua dor de mãe calada, sozinha, eu

realmente fui um covarde, como ficou implícito na narrativa do

nosso romancista estreante.

É claro que se eu fosse escrever tudo o que Paulo não foi

capaz de captar com sua pena, com seus olhos de observador

envolvido emocionalmente com os fatos e pessoas que tentou

retratar com sua escrita, teria que escrever outro romance,

talvez mais volumoso. Contudo, não será necessário, pois o que

faltava de fato ao leitor da minha biografia era saber quem foi

seu narrador, suas intenções, motivações, e como se comportou

nas suas relações com as personagens da minha história.

Paulo era um homem como muitos outros, que procuram

se superar, sair da sua história simples para viver outra vida,

206

em outro lugar, com outras pessoas, alguém que procura seu

espaço no mundo, e pelo que ficou aqui exposto podemos

concluir que Paulo foi bem-sucedido em seu empenho de

autossuperação. Claro que pôde contar com a sorte, e teve o

bom empurrão, mas não podemos negar que ele se esforçou

bastante, e por isso mereceu o seu lugar ao sol. Toda sua

conquista está baseada na verdade, na justiça, e, sobretudo no

amor, amor este que ele dedicou à minha família, especialmente

à Rute, sua musa e esposa, por isso não o condeno, penso que se

eu estivesse no lugar dele teria feito da mesma maneira...

207

“Os sentimentos não envelhecem, amadurecem, e o tempo tem

a dieta certa para engordar ou emagrecer os vermes que nos

alimentam e nos devoram. ”

208

O artista necessita de tempo para lapidar sua habilidade, para

forjar do efêmero a eternidade.

Evan do Carmo 03/02/2017

209

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