la jete: um e outro, lidia mello

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La Jetée: um E outro, dissertação de mestrado de Lídia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. La Jetée: um E outro Este livro é fruto da minha dissertação de Mestrado em Letras/Literatura Comparada, desenvolvida na linha de pesquisa: Teorias literárias e interdisciplinaridade, sob a orientação da professora doutora Rita Lenira de Freitas Bittencourt, no Programa de Pós-graduação em Letras do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre-RS, concluída no fim de 2012.

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Dissertação de mestrado sobre o filme e livro La Jetee do francês Chris Marker.

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  • La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012.

    La Jete: um E outro

    Este livro fruto da minha dissertao de Mestrado em Letras/Literatura Comparada,

    desenvolvida na linha de pesquisa: Teorias literrias e interdisciplinaridade,

    sob a orientao da professora doutora Rita Lenira de Freitas Bittencourt,

    no Programa de Ps-graduao em Letras

    do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    Porto Alegre-RS, concluda no fim de 2012.

  • La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012.

    RESUMO

    Esta dissertao versa sobre imagens-textos, que, a partir do tempo e da memria fazem irromper encontros e tenses em La Jete

    photo e cin-roman, filme e livro, do contemporneo realizador-escritor francs Chris Marker. Busco perceber como se do os

    encontros e tenses entre o filme e o livro. Utilizo como pressuposto metodolgico a noo de rizoma de Deleuze e Guattari.

    Intento criar uma cartografia composta por plats, sustentada por leituras de filsofos modernos franceses e por tericos do

    cinema, da fotografia e da literatura. Os plats so entendidos como possibilidades, como intensidades que vibram e formam um

    rizoma sem unidade presumida, numa multiplicidade no-linear que condensa uma abordagem terica. Penso o filme e o livro La

    Jete no mbito do indiscernvel, como imagens-textos, pois, a meu ver, so ao mesmo tempo um e outro - imagticos e textuais. E

    abordo o tempo e a memria por serem temas principais dos objetos de estudo. No pretendo exaurir as possibilidades de

    explorar essas linguagens, pois so muitas, mas aproveito as entradas e sadas, prprias de uma cartografia rizomtica, para criar

    um agenciamento entre cinema e literatura, mirando expandir o horizonte esttico de tais artes, trazendo s vistas o que no

    flmico e no literrio de La Jete no esto aparentes.

    PALAVRAS-CHAVE: La Jete photo e cin-roman.Chris Marker.Cinema.Literatura. Tempo.Memria. Imagens. Textos.

  • La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012.

    RSUM

    Cette dissertation tisse une discussion propos des images-textes, qui partir du temps et de la mmoire font clater des

    rencontres et tensions dans La Jete photo et cin-roman, film et livre, de lcrivain contemporain et aussi, ralisateur franais,

    Chris Marker. Je cherche comprendre comment se produisent les rencontres et les tensions entre le film et le livre. Jutilise

    comme mthodologie la notion de rhizome de Deleuze et Guattari. Jessaie de crer une cartographie compose de plateaux,

    soutenue par la lecture de philosophes modernes franais, par des thoriciens du cinma, de la photographie et de la littrature.

    Les plateaux sont ici considrs comme des possibilits, comme des intensits qui vibrent et forment un rhizome sans unit

    prsume, mais dans une multiplicit non linaire qui condense une approche thorique. Je pense le film et le livre La Jete du

    point de vue de l'indiscernable, comme images-textes, car mon avis, ils sont en mme temps lun Et l'autre -images et textes. Et

    jaborde lapproche du temps et de la mmoire parce qu'ils sont les thmes principaux de ces objets d'tude. Je n'ai pas l'intention

    d'puiser les possibilits de ces langages, parce quils sont nombreux, mais je profite de ces entres et sorties, propres une

    cartographie rhizomatique pour crer un agencement entre le cinma et la littrature, em essayant dtendre lhorizon esthtique

    de ces arts, mettant en vidence ce qui, dans le film et le livre La Jete ne sont pas apparents.

    MOTS-CLS: La Jete photo et cin-roman.Chris Marker.Cinema.Littrature.Temps.Memoire.Images.Textes.

  • La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012.

    PONDERAES PRELIMINARES

    Criei uma experimentao que nomeio dispositivo Livro-filme La Jete, em DVD, anexada dissertao.

    Dispositivo que integra as imagens e os textos do livro e do filme La Jete, e tambm os sons do flmico.

    Dessa forma, tenses e encontros entre os objetos irrompem de modo diferente daquele que ocorre se lermos e vermos

    em separado um E outro. A inteno tambm auxiliar a visualizao e a leitura dos objetos de estudo.

    Outro motivo dessa criao deve-se ao fato do livro ainda no ter sido publicado no Brasil, e do filme no ser to fcil

    de ser encontrado em locadoras; porm, est disponvel no google videos

    http://www.youtube.com/watch?v=He8uZLPOT7A, acessado em 01.09.2012.

    Assim, pode tambm ser visto em separado do dispositivo Livro-filme.

    Os direitos das imagens, dos textos e dos sons de

    La Jete, livro e filme, pertencem aos herdeiros do recm-falecido realizador escritor

    Chris Marker; editora e produtora de tais obras.

    A proposta da dissertao rizomtica e foi composta por plats, impressos em separado um do outro.

    A ligao entre eles no se d por linearidade. As pginas so numeradas por plat separadamente. E dada a

    proposta rizomtica e o carter experimental da dissertao, digresses e repeties s vezes ocorreram.

  • La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012.

    SUMRIO

  • La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 1

    LA JETE: UM E OUTRO

    J de incio alerto que no sou filsofa, mas utilizo certas noes conceituais da filosofia da diferena, para pensar o cinema e a literatura,

    fao roubos, capturas, como propem os filsofos da diferena, meus intercessores.

    Para o filsofo francs Henri Bergson, na Introduo de seu livro A evoluo criadora (1907, livro o qual ele ganhou o Nobel de literatura

    em 1927). A vida como atividade consciente, inveno, criao. Cito: Uma teoria da vida que no vem acompanhada de uma crtica do

    conhecimento, forada a aceitar, tais e quais, os conceitos que o entendimento pe a sua disposio, no pode fazer mais que encerrar os

    fatos, por bem ou mal em quadros preexistentes o que ela considera como definitivos (...) E uma teoria do conhecimento que no reinsere a

    inteligncia na evoluo da vida, no nos ensinar nem como os quadros do conhecimento se constituram, nem como podemos ampli-los ou

    ultrapass-los. preciso que essas duas teorias se encontrem, e, num processo mtuo, se impulsionem uma outra, indefinidamente. Sendo

    assim, necessrio substituir, alterar nossas ferramentas cognitivas, no sentido de compreendermos como nossos esquemas conceituais foram

    formados e evoluram, como podem ser alterados e abertos para alm de seus limites atuais. Nesse sentido, nenhuma resposta definitiva pode

    ser dada questo das condies e possibilidades do conhecimento; e no h delimitao ao domnio daquilo que pode ser conhecido, pois no

    estamos condenados a uma forma de conhecimento acabado e que garanta certezas. Podemos produzir com nossos campos de foras internas,

    e externas, o impensvel, produzir novos modos de pensamento e de vida.

    Para Bergson, a vida um movimento criador incessante e as mudanas no nosso modo de pensar e agir so necessrias para lidar com a

    imprevisibilidade e complexidade do mundo em que se vive, seja no campo terico ou prtico, do pensamento elaborado ou da vida. Segundo

    ele precisamos ultrapassar nossas necessidades de agir e aumentar nossas experincias para alm de qualquer fronteira do que j sabemos ou

    percebemos, a priori. Nesse pensar, que trago aqui o cinema e a literatura, como matria de pensamento e problematizao da pesquisa.

    Gostaria de dizer que tive dificuldade de criar certa estrutura, uma ordem de montagem e de leitura da dissertao, diante da opo pelo

    rizoma. O E do ttulo La Jete: um E outro, como mencionei em algum plat, inspirado na seguinte noo deleuziana () no nem um nem

    outro, nem um que se torna o outro, mas o que constitui, precisamente, a multiplicidade (DELEUZE,1998, p.29). Multiplicidade dos objetos

    de estudo da minha dissertao, o filme e o livro La Jete do francs Chris Marker, escritor, fotgrafo, filsofo e realizador audiovisual. Entreguei

  • La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 2

    a cada professor/a da banca, a dissertao montada para ser lida em ordens diferentes, porque a metodologia e forma rizomtica, e o sumrio

    que criei, demandavam, pois, uma proposta de montagem diferenciada. Tal montagem, que se pretende no-linear da leitura da dissertao,

    provoca em si, tenses e encontros entre os plats e o pensamento de quem os l, colocando-os em movimento. E escolhi uma caixa para

    montar a dissertao, na inteno de que ela pudesse abrigar e conservar o tempo da escrita e a memria da pesquisa, como um lugar onde pode

    ser acessado os textos e as imagens de La Jete, e evocados quando se sentir vontade ou for til.

    Porque o rizoma como mtodo? Porque eu queria um no-mtodo por assim dizer, algo que me permitisse ser inventiva, um mtodo que

    no fosse apenas rigoroso, mas prazeroso, que me desse liberdade de pensar e criar. Sendo assim, desejo partilhar com vocs, um pensamento

    como possibilidade de composio de uma escrita dissertativa, a partir de enunciados que se constituem no ato mesmo da inveno, pois

    preciso se fazer sempre um outro da escrita. Me lancei na captura, no desejo pela construo do conhecimento e na descoberta de novos

    horizontes que s a elaborao produzida no ato de pensar e escrever, pode fazer surgir.

    A funo de uma escrita e de um pensamento menor contribuir no com a representao, mas com algo sempre inacabado, em devir,

    contribuir com a criao de algo que falta. Num pensar deleuziano, escrever criar a prpria lngua, agenciamento coletivo de enunciao, pois

    quando se fala ou escreve, no se est sozinho, mas com os intercessores que povoam e iluminam nosso pensamento. Argumenta Gilles

    Deleuze: O que produz enunciados em cada um de ns, no se deve apenas a ns como sujeitos, mas a outra coisa, s multiplicidades, () aos

    agenciamentos coletivos que nos atravessam e que nos so interiores.

    Interior tambm minha escolha de escrever e de privilegiar a literatura em sua relao com o cinema e com a fotografia, matria

    fundante dos objetos, tendo o pensamento filosfico como sustentao, principalmente o pensamento de Deleuze e Bergson. Outros tericos

    que tomo como guias na dissertao, que ora venho defender, transitam pelas artes as quais ponho em dilogo. As noes conceituais que

    tambm coloco em dilogo na pesquisa se interconectam e se atravessam. Coloco, portanto, juntos, o discurso filosfico moderno francs, a

    literatura e o cinema, territrios que se querem distintos, mas que tm relaes de afinidades, e se enriquecem mutuamente.

    A cartografia que me dispus a criar composta por imagens e textos, tempo e memria que fazem irromper encontros e tenses entre os

    objetos de pesquisa, o livro e o filme La Jete. E para pensar esses objetos, me apropriei de vrias noes conceituais filosficas e no

    filosficas, dentre elas: tempo durao, memria, imagens, textos, romance, agenciamento, heterogeneidade, multiplicidade, territrio, rizoma,

    cartografia e outras espalhadas pela minha escrita. Noes que foram importantes para pensar o rizoma, que propus criar a partir do

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    entrelaamento entre elas, e do filme e do livro, me colocando num movimento de desterritorializao em busca da produo de conhecimento

    da diferena. Ao me lanar na procura pela inveno, sei que corri riscos, mas ainda assim, desde o incio desejei forar o pensamento a pensar.

    Entretanto, como a percepo humana naturalmente limitada, muita coisa me escapa.

    O estudo elaborado versa, pois, sobre uma zona de indiscernibilidade da imagem com o texto, do tempo com a memria, de encontros e

    tenses, e de noes conceituais que permeiam os objetos de estudo: um romance fotogrfico que devm um romance cinematogrfico. Um E

    outro, um filme literrio e um livro cinematogrfico, um filme que irrompe no livro de mesmo nome, La Jete. La Jete em francs significa uma

    plataforma, um terrao; no caso dos objetos de estudo, uma plataforma de aeroporto que carrega o sentido de um corredor temporal. La jete

    pode ser tambm, o ato de me jogar, de transitar por novas paisagens, e de me relanar por novas veredas.

    O criador dos objetos da pesquisa, Chris Marker, se foi no dia 29/7/12, quando comemorava 91 anos de vida, partiu, mas nos deixou

    sua arte, seu livro e filme La Jete photo e cin-roman. A partir deles, criei o dispositivo Livro-filme La Jete, montado em DVD e que

    acompanha a dissertao. Esse dispositivo, alm da prpria dissertao uma experimentao de linguagem e forma, na busca de apresentar

    um trabalho acadmico que fuja do mesmo, que rompa com o j visto, que provoque e abra caminhos para alunos da Letras e do Cinema,

    ensaiarem outros modos de pensar uma dissertao. No acredito em frmulas, pois elas trazem poucos riscos, e frmulas numa perspectiva

    rizomtica reduzem as possibilidades de criao e descobertas, j que a trajetria da pesquisa e do conhecimento no so dados de partida e

    no so lineares.

    A pesquisa que desenvolvi me fez correr riscos, mas tambm me deu muito prazer. No percurso de pensar e escrever a dissertao, eu,

    uma pesquisadora menor, percorri caminhos conhecidos e desconhecidos, mas sempre desejados; transitei pelas imagens-textos, pelo tempo e

    memria que habitam o filme e o livro La Jete. Objetos que me permitiram inventar a dissertao e provocaram meu pensamento a mover-se, a

    se lanar por distintos, mas afins trajetos que percorri durante minha incurso em tais objetos.

    Desejo mencionar que coloquei em cada caixa, que contm a dissertao entregue a vocs professores, uma micro-cena diferente da

    outra, inspirao e fruto da contaminao das imagens-textos de La Jete livro e filme. Durante o processo da pesquisa fui me afetando tanto, pelos

    objetos de estudo, que acabei inventando uma proposta artstica com imagens e textos, proposta ainda em desenvolvimento. Me surpreendi

    revisitando meu passado atravs de imagens fotogrficas, e criando a partir delas micro-textos para comp-las. Textos e imagens que mesclam

    fico e realidade, conhecimento e vida, tempo e memria, arte e roubos. No por acaso, afirma Deleuze, que os afectos transbordam a fora

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    daqueles que so atravessados por ele. S me dei conta dessa relao, quase no trmino da dissertao. Das 34 micro cenas, que escrevi at o

    presente momento, escolhi cinco para acompanhar a dissertao, e uma delas lerei agora, e depois acompanhar o exemplar que ficar na

    biblioteca da UFRGS e que compor a verso que guardarei: Estou espreita de uma auto-fico inventiva, de uma nova possibilidade de ser eu mesma e

    outras. Me lano numa realidade incessantemente porvir, sofro, rio, choro, sinto alegria, prazer; tudo se mistura no museu da minha memria. Vou por caminhos incertos

    onde passam amores, amigos, livros, filmes, lugares, tudo vai se transformando nesse correr que a vida. Vou aprendendo que, esse meu modo de estar no mundo, a

    revelia, nessa reviravolta de estados do presente fugidio. No h portas fechadas, h um cu aberto invadindo meus olhos, pulsa o desejo de tanta coisa que ainda no sei

    como encontrar, me perco em dvidas que me alastram. boa essa aparente falta de coerncia que sinto: eu sou, no momento que j no sou mais, e estou por ser.

    Para findar no findando esse comeo, tomo emprestado de Roland Barthes uma frase: a gente escreve com nosso prprio desejo, e no

    se acaba nunca de desejar.

  • PLAT DOS VERBETES

    Acontecimento - O acontecimento pertence linguagem na sua relao com o mundo, no separa o sentido das frases e o devir do mundo; o que do mundo deixa-se envolver na linguagem e permite que ela funcione. O acontecimento sustenta-se em dois nveis: na condio sob a qual o pensamento pensa, um encontro com algo que fora a pensar; e nas objetividades do pensamento em que cada conceito a construo de um acontecimento sobre o plano. O acontecimento tambm est ligado temporalidade do tempo aions - que acabou de passar ou vai passar, o tempo em devir. No tempo aions, futuro e passado dividem a cada instante o presente. Presente que, por sua vez, se subdivide ao infinito, em passado e futuro, em ambas direes, ao mesmo tempo.

    Agenciamento - precisamente o crescimento das dimenses numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza medida que ela aumenta suas conexes.

    Afectos - No so mais sentimentos ou afeces, transbordam a fora daqueles que so atravessados por eles. a variao contnua da fora de existir.

    Devir - nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um modelo [...]. No h um termo do qual se parta, nem um ao qual se chegue, ou ao qual se deva chegar. [...] Os devires no so fenmenos de imitao, nem de assimilao, mas de dupla captura.

    Intercessor - algo ou algum que nos permite produzir, pensar, criar, desenvolver, ou ainda, qualquer ideia que promova algo novo. O essencial so os intercessores. A criao so os intercessores. Eles podem ser, por exemplo, pessoas - para um filsofo -, mas tambm coisas, plantas, at animais [...]. preciso criar seus prprios intercessores.

    Indiscernvel/indiscernibilidade - O indiscernvel constitui uma iluso objetiva e impossibilita designar uma coisa e outra separadamente, o aspecto duplo de algo.

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  • Linha de fuga - A linha de fuga uma desterritorializao. Fugir no absolutamente renunciar s aes. [] Fugir perder sua estanquidade ou sua clausura, esquivar, escapar [...] traar uma linha, ou mais linhas, toda uma cartografia.

    Perceptos - No so mais percepes, so independentes do estado daqueles que os experimentam.

    Potncia - Diz respeito a algo que existe, mesmo que no se tenha plena conscincia de sua existncia. Remete a uma fora que no se tem controle, que se deseja que realize.

    Ritornelo - O ritornelo vai em direo ao agenciamento territorial, ali se instala ou dali sai. Num sentido genrico, chama-se ritornelo todo conjunto de matrias de expresso que traa um territrio, e que se desenvolve em motivos territoriais, em paisagens territoriais (h ritornelos motrizes, gestuais, pticos etc.). O ritornelo como traado que retorna sobre si, se repete. Assim, todo comeo j um retorno, mas implica sempre uma distncia, uma diferena: a reterritorializao, correlato da desterritorializao, nunca um retorno ao mesmo ( repetio e diferena).

    Rizoma - Diferentemente das rvores ou de suas razes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer, e cada um de seus traos no remete necessariamente a traos de mesma natureza, ele pe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de no-signos. O rizoma no feito de unidades, mas de dimenses, ou antes, de direes movedias. No tem comeo nem fim, mas sempre um meio, pelo qual ele cresce e transborda.

    Virtual/virtualidade - O virtual algo que no est dado, est em vias de se atualizar, o que existe em potncia.

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  • PLAT DOS PENSAMENTOS TERICOS ORIENTADORES

    Lano-me num devir-pesquisadora, e acompanha meu pensamento a noo da escrita

    como algo inseparvel do devir, que se d no processo mesmo da escritura, conforme o pensar

    de Blanchot e Deleuze, citados nas epgrafes dessa dissertao. No busco, portanto atingir uma

    frmula, mas instaurar uma zona de vizinhana com os objetos de estudo, pois segundo Deleuze

    no h linha reta na linguagem, mas desvios, capturas, roubos, fendas.

    O rizoma cartogrfico que intentei criar na dissertao composto pelas paisagens e

    afetos do meu tempo; do tempo e memria, das imagens e textos de Marker, e dos intercessores

    que povoam meu pensamento e minhas palavras. Sendo assim, coloco-me na travessia como ser-

    mundo, ser de vida e de pesquisa, jorrando nesta pgina branca o contedo que resultou do

    estudo desenvolvido, sustentado por teorias e tericos orientadores.

    Desejo relatar que durante meu trajeto na graduao em comunicao, na

    especializao em cinema e, principalmente, durante o processo do mestrado, fui me sentindo

    afetada1 de forma potente por alguns pensamentos de autores que, no decorrer desta escrita,

    inevitavelmente, ainda bem, vieram tona. Pensamentos que me guiaram no ato de refletir as

    artes literatura e cinema e atravessam esta dissertao.

    O PROBLEMA DE PESQUISA

    Inicio com a questo do problema de pesquisa. Creio que o problema est na relao

    do livro com o filme, principalmente, nas tenses e encontros que da emergem, que surgem nos

    atravessamentos e no deslocamento do filme para o livro. Lembro que nesse estudo trato o

    1.Toda palavra sublinhada no corpo do texto um verbete, para saber mais consultar o plat dos Verbetes. Essa a noo de afeto para Baruch Spinoza (1632-1677) e pensada tambm por Gilles Deleuze e Flix Guattari, afeto como uma fora que aumenta ou diminui a potncia de existir, de agir.

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  • cinema e a literatura do ponto de vista filosfico, me apropriando de autores e noes

    conceituais para pensar essas artes a partir desse lugar de reflexo, que mltiplo. Gilles

    Deleuze2 afirma que a filosofia se pe em relao intrnseca com diferentes saberes, com outros

    modos de expresso para estabelecer ligaes ou ressonncias de um saber com o outro, levando

    em conta a questo a ser investigada. O terico brasileiro Roberto Machado (2011, p.12) relata

    que, para Deleuze, a filosofia no est em estado de reflexo externa sobre os outros

    domnios, mas em estado de aliana ativa e interna entre eles, e ela no nem mais

    abstrata, nem mais difcil. A filosofia , ento, uma arte de criao de conceitos3, ato/modo

    de organizar o pensamento que faa irromper algo novo.

    No sou filsofa, mas fao uso da filosofia como exerccio de interferncia ativa e

    criadora para pensar o cinema e a literatura, colocando a filosofia em relao com as artes

    estudadas. A filosofia como criadora de conceitos, se diferencia do cinema como criador de

    imagens audiovisuais e da literatura como criadora de escrituras, que so tambm, imagticas.

    Sem privilgios a tais formas de criao, sem a hierarquizao de uma rea do saber sobre o

    outro, entendo que todas elas tm sua potncia criadora, que podem construir alianas, produzir

    encontros e tm o poder de devir-outras, seja se deslocando ou se conectando, seja vibrando em

    zonas mltiplas ou de indistino. Desse modo, vou forando o pensamento a pensar, buscando

    expressar minha singularidade com vibraes, afetos e intensidades e, nesse movimento, criando

    possibilidades para este estudo. Lembro que a literatura e o cinema, alm, claro, a filosofia,

    ocupavam um lugar privilegiado principalmente no pensamento de Deleuze, mas tambm no de

    Henri Bergson4, os quais, no por acaso, so minhas escolhas principais nesse trabalho.

    Sobre o problema de pesquisa, argumenta Bergson: que preciso encontrar o

    problema, p-lo, muito mais do que resolv-lo, pois a soluo existe, est encoberta, s falta

    2.Filsofo moderno francs que teorizou sobre cinema, literatura e outras reas (1925-1995), muito estudado na atualidade.

    3.Em O que filosofia? (1992) Deleuze e Guattari definem a filosofia como uma criao de conceitos. Mas conceito entendido com multiplicidade heterognea de elementos colocados em relao, inseparveis, e agrupados em zonas de vizinhana ou indiscernveis.

    4.Filsofo moderno francs (1859-1941), que teve como um de seus intercessores o cinema - sobre o qual tambm teorizou. Foi um importante intercessor de Gilles Deleuze. Recebeu o Prmio Nobel de Literatura em 1927 com seu livro de filosofia A evoluo criadora (1907). Sua obra, assim como a de Deleuze, de grande atualidade e tm sido estudada em diferentes reas do saber.

    La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 2

  • descobri-la-invent-la; [...] a inveno confere ser quilo que no era, ela poderia no ter

    surgido nunca (2006a, p.54-55). O problema persiste, logo, no processo de definir as

    condies de consistncia do plano problemtico, tomado na sua virtualidade, como potncia,

    fora de determinaes atuais. Sendo assim, experimento na pesquisa tornar visvel aquilo que

    no poderia ser percebido e que existiria seno como devir. Devir encarnado, por exemplo, na

    forma filme La Jete que se tornou livro e nos encontros ou tenses resultantes da relao entre

    eles. E, na forma plats dessa dissertao, ou seja, um texto que no tem uma estrutura rgida, e

    no pretende apresentar uma sequncia nica de leitura, mas prope uma discusso que

    atravessa os plats que a compem.

    Pressupostos metodolgicos

    preciso abordar tambm, a questo metodolgica, mencionada no plat das

    palavras algumas. No desenvolver desse trabalho-rizoma, que tem como corpus o flmico e o

    literrio de La Jete photo e cin roman (1962/2008) de Chris Marker, me oriento por uma

    combinao de postura e procedimentos terico-metodolgicos abertos, com mltiplas entradas

    e sadas. Opto, portanto, pela cartografia e rizoma de inspirao deleuziana e guattariana como aporte metodolgico, alm de outras noes conceituais e teorias abordadas ao longo desse

    trabalho. Guio-me pelo que pedem os objetos. A cartografia, termo da geografia, procedimento

    rizomtico trabalhado por Deleuze e Guattari (1995), prope uma discusso que se atualiza na medida em que ocorrem encontros entre o sujeito pesquisador o cartgrafo e os objetos de

    pesquisa, buscando dar sentido ao processo de produo do conhecimento. Esse procedimento,

    que os autores caracterizam como um dos princpios do rizoma, uma espcie de mapa

    orientador, com linhas de fuga, sendo conectvel em todas as suas dimenses, desmontvel, La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 3

  • reversvel, suscetvel de receber constantemente, modificaes.

    Entendo que a cartografia me orientou nas escolhas dessa dissertao, dando a

    possibilidade de tramar e de selecionar rotas e tericos para desenvolver a pesquisa, me

    conduzindo a mltiplos lugares. Assim, no pensar e agir, no ato da escritura e forma da

    dissertao, a cartografia foi se dando. Alm disso, entendo que o conhecimento no est no

    sujeito nem no objeto, mas nos encontros e tenses que deles emergem.

    Como abordei em outro plat, novamente saliento que esses pressupostos

    metodolgicos por mim escolhidos, se aproximam da noo de Literatura Comparada proposta

    por Carvalhal5 (2004), como uma disciplina que preserva sua natureza mediadora acentuando

    sua mobilidade, criando possibilidades de movimento entre vrias reas, se apropriando de

    diversos mtodos, exigidos pelos objetos que coloca em relao. A terica tambm argumenta

    que a ampliao de campo de atuao da Literatura Comparada oportuniza estudar as relaes

    entre literatura e outros domnios do saber, tais como as artes, a filosofia, etc. E abre ao objeto a

    ser comparado a definio dos mtodos.

    , nesse sentido, no fato da Literatura Comparada oportunizar um dilogo com outras

    reas do saber, e tambm por seu carter aberto, que destaco aqui sua importncia. Trata-se de

    um campo terico que me permite pensar a respeito da multiplicidade do livro e do filme, do

    texto e da imagem estudados, avaliando o movimento entre eles. Todavia, sei desde o incio que

    um estudo que abarca mais de uma disciplina traz riscos e vantagens, entretanto, em busca de

    uma nova possibilidade investigativa, tento encontrar um equilbrio entre as reas escolhidas, o

    cinema e a literatura.

    5.Pesquisadora e doutora em Teoria Literria e Literatura Comparada pela Universidade de So Paulo (USP) e foi uma das fundadoras da ABRALIC Associao Brasileira de Literatura Comparada. Lecionava na UFRGS quando faleceu, em 2006.

    La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 4

  • OS OBJETOS DE ESTUDO La Jete Livro e filme: encontros e tenses

    Para pensar um dos objetos de estudo, o filme La Jete photoroman, realizado em 1962,

    pelo francs Chris Marker, considerado sua obra prima, e problematizar o filme a partir do livro

    La Jete cinroman e a relao entre eles, refletindo os encontros e tenses entre tempo e

    memria, imagens e textos, trago inicialmente alguns tericos do cinema que se ocuparam em

    estudar o filme.

    Raymond Bellour6 (1997, p.92) pontua que em La Jete filme no o movimento

    que define o cinema de forma mais profunda (Peter Wollen tinha razo, ao lembr-lo

    recentemente), mas o tempo (1997, p.92)7, uma vez que Marker fez o filme com imagens

    fixas e, alm disso, um cinema que opera entre-imagens (como lugar de passagem) flmicas e

    fotogrficas, no entre tempo da imagem fixa e da imagem movimento.

    A respeito do movimento, Deleuze (1990) argumenta que o cinema o sistema que

    reproduz o movimento em funo do momento qualquer, isto , em funo de instantes

    equidistantes, mas que juntos do a impresso de continuidade no flmico. Bergson diria que,

    no percebemos tudo que h na imagem, pois uma imagem pode existir independentemente que

    eu perceba, no sua presena que define sua existncia, mas minha percepo sobre ela. Na

    tela flmica, no est visvel o modo como criado o movimento da imagem do cinema, que

    construdo no arranjo da montagem e logo tornado possvel na projeo.

    Com referncia ao movimento e fixidez da imagem, afirma ainda Bellour (2007,

    p.129) que o congelamento da imagem (ou o congelamento na imagem),com sua

    ambiguidade peculiar, faz com que interrompa o movimento aparente sem com isso

    suspender o movimento fundado no decurso automtico das imagens. Nesse sentido,

    6.Pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), Paris, crtico e terico de cinema. francs, nasceu em 1939. Sua reflexo sobre La Jete est em especial no livro Entreimagens: foto, cinema, vdeo,1997.

    7.Bellour (1997) faz referncia ao artigo Feu et Glace Fogo e Gelo (1984,p.2) artigo o qual Peter Wollen afirma que: o movimento no uma necessidade inerente ao cinema" e que "a impresso de movimento tambm pode ser criada por uma decupagem de imagens fixas." (apud Ibid., p.129). P.Wollen nasceu em 1938 na Inglaterra, terico do cinema, alm de cineasta e escritor.

    La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 5

  • Marker usa a fixidez da imagem fotogrfica para criar movimento na imagem cinematogrfica,

    por meio do tempo, dando fluidez, pelas mltiplas duraes, enquadramentos e ngulos das

    fotos, assim, transforma fotos em planos cinematogrficos, usando a imagem fixa para criar

    movimento.

    Quando esse realizador opta por construir o filme com tomadas fotogrficas (suporte

    que fixa para sempre um instante preciso e transitrio), a captao pelo imvel como linha de

    fuga, ele no quer usar as caractersticas de testemunho e prova do real prprio da fotografia,

    mas inventar um novo tempo para as imagens congeladas, dar liberdade a elas, criando um

    movimento entre as fotos. Esse movimento acontece por meio dos enquadramentos, mas

    tambm pelo texto/narrao e pela trilha sonora de intensidade dramtica. As fotos,

    transformadas em cinema (captadas e reproduzidas a uma velocidade de 24 quadros por

    segundo), os instantes-fotogramas do a impresso de movimento e se transformam em

    fotogramas-temporais, proporcionando uma nova condio de leitura, fazendo irromper os

    planos cinematogrficos e deixando aberto ao espectador sua participao na construo das

    relaes indissociveis entre imagem e texto, propondo o pensamento como algo necessrio ao

    olhar e criao de sentidos.

    Assim, as imagens que afligem o protagonista de La Jete movem o espectador junto

    com ele por suas viagens no tempo. La Jete ultrapassa a fronteira do estritamente fotogrfico,

    construindo uma narrativa cinematogrfica, com o fotogrfico e com recursos do literrio. Nas

    palavras de Bellour, como se Marker fosse proustiano aos olhos do cinema, pois desloca o

    regime de enunciao e toca as imagens pelo seu exterior, atravs da narrao/texto,

    aproximando e tensionando o tempo do cinema, o tempo da fotografia e o tempo da literatura.

    Diferente da fotografia, o tempo no cinema no definido pelo espectador, mas pela

    montagem, pelo encadeamento das imagens, que so submetidas a uma durao especfica, se La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 6

  • estou vendo um filme e desloco meu olhar da tela, a imagem escorre, enquanto que a imagem

    fotogrfica e o livro esto sempre disponvel, minha espera, ou espera do meu olhar.

    O olhar de Bellour (1997, p.170), sobre La Jete amplo, segundo ele, as imagens

    desse filme condensam:Uma histria de amor, uma trajetria rumo infncia, um fascnio violento pela imagem nica (o nico da imagem), uma representao combinada da guerra, do perigo nuclear e dos campos de concentrao, uma homenagem ao cinema (Hitchcock, Langlois, Ledoux, etc.), fotografia (CAPA), uma viso da memria, uma paixo pelos museus, uma atrao pelos animais e, em meio a tudo isso, um sentido agudo do instante.

    No pensar desse terico, atravs dos instantes congelados das imagens fotogrficas,

    que no tem o movimento interno dos planos, tpico do cinema, mas tornadas filme de fico

    cientfica, do passado, imaginamos ver tudo isso, ver uma espiral do tempo e as passagens da

    memria que Marker condensa em 27 minutos.

    Ainda para Bellour (1997, p.170)a fotografia [...] no duplica o tempo [...]; ela o

    suspende, fratura, congela e, desse modo documenta. Isso quer dizer que a fotografia

    registra, conserva o tempo, preserva um momento, eterniza uma imagem na imobilidade, a torna

    estvel. Ela est, pois, intimamente ligada a um tempo especfico. No entanto, a opo de

    Marker por realizar La Jete com fotografias, no confere a esse filme um carter documental,

    no garante nenhuma verdade, pois o real, para Marker, no est na imagem. O realizador usa a

    imagem-foto como matria que torna possvel a fico do cinema, e no como uma prova ou

    documento. Assim, as imagens tomadas como cinema so mltiplas e abertas a novas

    possibilidades, voltadas para alm do que se v, l ou ouve no flmico, para alm dos limites de

    representao, a fim de abrir rasgos na tela e de provocar uma reflexo sobre elas.

    La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 7

  • Bellour salienta que o objetivo da fotografia sua relao entre a memria e o olhar,

    isto , seria sustentar o contato entre o pensar e o ver, aproximando o que contm a foto e a

    possvel leitura de cada olhar que a v. O que est na fotografia algo que j passou e congelou-

    se no tempo, uma lembrana guardada de um momento que no volta mais, uma imagem

    como memria, mas que pode ser evocada a qualquer momento. No h na foto nada de

    presente e ela nos chama ateno contra o esquecimento. O movimento da imagem est para o

    presente, assim como a imobilidade para o passado, uma imagem que passa e outra que se

    conserva. Nesse sentido possvel pensar com Deleuze (1985, p.27)tudo que muda est no

    tempo [...], no momento em que a imagem cinematogrfica confronta-se mais

    estreitamente com a fotografia, tambm se distingue dela mais radicalmente. La Jete

    transita pela durao de estados moventes do cinema e do estado imutvel da fotografia e da

    literatura, e tambm pela passagem de um estado a outro, seja da imagem ou do texto, do filme

    ao livro.

    Philippe Dubois8, outro terico do cinema, num artigo publicado em Thorme 6

    recherches sur Chris Marker, reflete tanto a respeito do dispositivo formal (flmico e fotogrfico),

    quanto do contedo do filme La Jete filme que ele chama de cinematograma da conscincia. Em seu

    texto, o terico comea pontuando o modo como feito o filme. Descreve que as imagens

    fotogrficas em branco e preto que compem La Jete foram criadas, registradas, depois filmadas

    e trabalhadas em laboratrio, montadas como cinema, acrescido da narrao, sendo pois na

    montagem que as imagens fotogrficas tomaram forma de filme. La Jete para ele une image d

    image.

    Para Dubois (2009, p.161)a imagem fotogrfica interrompe, detm, fixa,

    imobiliza, destaca, separa a durao captando dela um nico instante. Assim, a

    8. Professor e pesquisador de Audiovisual, da Universidade de Paris III - Sorbonne Nouvellle. Nasceu na Blgica em 1952, e vive em Paris. Seu texto sobre La Jete intitulado: La Jete de Chris Marker ou le cinmatogramme de la conscience(2002) publicado em Thorme 6 recherches sur Chris Marker.

    La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 8

  • fotografia, matria base de La Jtee, imobiliza instantes no tempo, mas o tempo flmico continua

    a fluir. O ato fotogrfico permite fixar imagens de momentos vividos pelo protagonista,

    buscando conservar em sua memria o que foi significativo, como se ele no quisesse esquecer o

    passado e seguir o fluxo temporal do presente flmico. Congela aquilo que afetou sua vida no

    passado, restitui a lembrana (ou a criao) de uma imagem, a da Mulher, que recorrente e que

    no se apagou em seu pensamento, ou seja, cria a imagem de uma imagem, ancorada no tempo.

    Ainda segundo esse terico, a natureza visual de La Jete paradoxal, pois, mesmo

    sendo um filme, a dimenso fotogrfica que predomina e no a cinematogrfica.

    Conforme Gilles Deleuze (1990, p.34):[...] os elementos de uma imagem, no s visuais, mas sonoros, entram em relaes internas e fazem com que a imagem inteira deva ser lida, no menos que vista, legvel tanto quanto visvel.

    Assim sendo, a montagem, ou seja, a imagem fotogrfica e sua composio, a

    narrao, os outros sons e as relaes mentais que o espectador capaz de tecer no tecido

    flmico, vm em La Jete deslocar o suposto movimento da imagem do cinema, irrompendo

    outro movimento: o da relao a ser construda entre esses elementos no ato de ver e ler o filme,

    no trnsito entre o visvel e o legvel. Alm disso, o texto/narrao desdobra o que a fotografia

    mostra, busca escapar do tempo congelado, dando foto uma nova temporalidade no

    eternizada, rompe a fixidez da imagem fotogrfica e cria o movimento atravs do tempo, no

    transcorrer da imagem do cinema. Movimento que se refora por meio dos tempos coexistentes,

    passado e presente, juntamente com a narrao/voz off, que produz o efeito de dinamizar a

    parada do instante fotogrfico.

    Em La Jete, Marker, ao realizar o tempo, torna passado o presente, cria uma

    dimenso de futuro, nem mesmo o passado se mantm estvel, tudo est em devir, uma vez que

    La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 9

  • o protagonista no tem certeza do que viveu. So imagens e textos que interrogam o

    protagonista e o espectador/leitor. De outro modo, argumenta Deleuze (1985, p.52) que cada

    presente coexiste com um passado e um futuro sem os quais ele prprio no passaria.

    Compete ao cinema apreender o passado e o futuro que coexistem com a imagem presente.

    Portanto, entendo que h em La Jete um deslocamento no tempo, uma temporalizao da

    imagem evocada no passado, que expressa, por exemplo, na opo de Marker, ao usar os

    recursos cinematogrficos de fade in/fade out e fuses das imagens (entradas e sadas, junes das

    imagens) e os diferenciados enquadramentos dos planos (panormicas, travellings, zoom, closes, etc),

    no vai e vem do protagonista, num tempo como memria, como durao. no fluir do tempo da

    imagem, que os planos transbordam a imagem em movimento, expressando a fora do tempo

    mltiplo e bifurcador.

    Bellour (1997), sobre o tempo da imagem, chama a ateno para o incio do filme,

    quando aparecem o texto na tela e a voz do narrador anunciando: Esta uma histria de um

    homem marcado por uma imagem de infncia. Tal frase , para ele, um ato discursivo que

    provoca um potente efeito performtico, pois a histria de um instante petrificado, que j

    passou, mas que se atualiza ao ser lembrado, evocado na memria desse Homem. Sobre o ato

    fotogrfico como um instante petrificado, afirma Dubois (2009, p.168), implica um gesto de

    corte na continuidade do real, mas tambm a ideia de uma passagem, de uma

    transposio irredutvel, de um tempo embalsamado, de perpetuao. A imagem que

    perpetuada na memria do protagonista de La Jete pe em movimento sua perfomance no fluir

    flmico, no tempo presente que ele vivencia, perpassando zonas da memria.

    Marker cria, nesse filme, uma imagem-tempo em desordem temporal, na qual diferentes

    La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 10

  • tempos coexistem, sem linearidade. Na viso de Deleuze (1990), uma imagem-tempo no

    automatiza, mas provoca o pensamento; no refora maneiras habituais de ver e de pensar, no

    descreve na tela um movimento ordenado e lgico do tempo cronolgico da vida e do cinema

    da imagem-movimento, da imagem transparente, em que o tempo subordinado ao movimento.

    Em La Jete predomina a imagem-tempo, instvel, mltipla e opaca, e o movimento que sucumbe

    ao tempo.

    Embora o enfoque nesse estudo no seja fazer anlise flmica ou pensar o filme em si,

    isto , levar em conta s os recursos do cinema, considero importante fazer uma parada para

    comentar o som usado por Marker. Uma trilha sonora, diga-se de passagem, com forte apelo

    dramtico, que inclui rudos diversos que tensionam e intensificam as sensaes dos

    personagens e anunciam, junto com a voz do narrador, o que estaria por vir. Antes mesmo da

    primeira imagem do filme, ouvimos um estridente rudo de turbinas de avies, que situa o

    espectador sobre a importncia dessa locao um aeroporto, lugar de passagem e ponto de

    partida da trama e, em seguida, ouvimos a msica composta pelo ingls Trevor Ducan (1924-

    2005) com trechos da Liturgie russe du samedi saint, interpretada pelo coro de vozes Choeurs de la

    cathedrale de St.Alexandre Newsky, como uma espcie de premonio, antecipao ou anunciao

    de algo terrvel, que s o desenrolar da narrativa flmica revelar, e que carrega um certo tom

    apocalptico e expressa o sentimento do filme. uma trilha indissocivel da concepo geral do

    filme, que acompanha e prope o ritmo desordenado das viagens mentais do personagem

    principal no tempo, a variao de suas sensaes, valoriza a voz impactante do narrador ausente

    ao conduzir a trama com seus comentrios. Alm disso, ouvimos outros sons, silncios e rudos

    que permeiam o flmico. A msica tem uma intrnseca relao com o tempo, conecta os

    diferentes lugares, por onde o protagonista transita, e age sobre o tempo da imagem, pontuando

    a ao do viajante temporal. Quando o protagonista est na sala de experincias do laboratrio,

    La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 11

  • ouvimos silncios, os rudos de seus sussurros e delrios causados pelas injees que lhe do, a

    pulsao do ritmo da sua respirao e do corao, intensificada pelo medo e expressa em sua

    face pela imagem que se v, medo do que poder lhe acontecer durante suas idas e vindas

    temporais.

    E ainda possvel ouvir os cochichos da equipe de experimentadores, palavras que

    parecem ser da lngua alem. No pude entender o que ali estava sendo dito, mas tal

    deslocamento me levou a pensar em questes para fora da trama de La Jete, que dialogam com

    o filme, mas que esto fora de suas bordas. Embora tivesse acabada a 2 guerra h alguns anos,

    certos eventos ficam na memria, perduram no tempo, atravessam o imaginrio flmico. Teria a

    ver com o fato dos alemes terem ocupado Paris durante a 2 guerra mundial? Serviria para

    pontuar a relao entre Frana e Alemanha e pr em evidncia as experincias drsticas da 2

    guerra? So essas relaes possveis entre imagem, texto e som que extrapolam o visvel e o

    audvel.

    Movido por uma imagem de infncia guardada em sua memria, o protagonista

    levado a correr riscos e a submeter-se experincia de viajar no tempo. Em momentos onde no

    h dilogos, a msica e outros sons, tm a potencialidade de expressar a subjetividade da

    personagem ou questes relacionadas ao entorno flmico. (MICHEL CHION, 1997). na sua

    relao com a imagem que os sons acham o seu lugar no filme e, de modo recproco, a

    percepo da imagem influenciada pelo som.

    Desloco o pensamento agora, para o outro objeto de estudo, o livro La Jete cin-

    roman. At o presente momento, ainda no localizei no Brasil trabalhos que o abordem, e, sendo La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 12

  • indito, tampouco localizei publicaes sobre tal obra. Por isso, senti necessidade de criar o

    dispositivo Livro-filme9 que j no nem o filme, nem o livro, mas os dois ao mesmo tempo e na

    mesma tela, um tensionando e encontrando o outro por meio das imagens-textos, do tempo e

    memria, e das diferentes leituras possveis de se fazer sobre La Jete.

    A questo do design do livro, assim como a trilha sonora, no so os focos desse

    estudo. Porm, considero tambm importante abordar a concepo grfica do livro, feita no

    pelo escritor-fotgrafo-realizador Marker, mas pelo designer canadense Bruce Mau10. De sbito,

    possvel perceber que Mau deixa at mesmo pginas vazias, sem imagem ou texto, como se

    quisesse expressar o pensamento do protagonista nos momentos de suas viagens no tempo ou

    abrir imaginao do leitor. Por vezes, mantm a mesma imagem do filme no livro, sem alterar

    o enquadramento, exemplo que poder ser visualizado no dispositivo Livro-filme, durante toda a

    dissertao vou pontuando encontros e tenses entre os objetos de pesquisa.

    O design das imagens de Mau, atualiza La Jete filme, criado por Marker no ano de

    196211. Juntos, realizador e designer, recuperam e atualizam o filme em uma nova forma de usar

    as imagens fotogrficas para lidar com acontecimentos dramticos, criando uma narrativa no

    somente flmica, mas tambm literria. Eles deram um novo significado s imagens, pois j no

    se trata de um filme, mas de um livro feito por um designer, com imagens de um fotgrafo-

    cineasta-escritor. Um livro, em seu prprio suporte, de certo modo, algo que j havia sido

    anunciado por Marker no ttulo do filme La Jete um romance fotogrfico. Evidentemente que

    no se trata de um livro puro e simples, montado apenas com recursos do literrio. Esse jogo

    com os suportes e as linguagens acontece sempre, em todos trabalhos de Marker, estilhaando

    as fronteiras entre elas.

    O escritor/realizador, ao compor La Jete livro, com as fotografias e o texto/narrao

    do filme, usa os enquadramentos das fotos ora fechados, ora abertos, para expressar

    9. Como mencionei num outro plat, criei num DVD, uma montagem, que junta o contedo do filme com o do livro, e acompanha a dissertao, abordo-o com mais detalhes no plat das palavras outras. Optei por no usar muitas imagens no corpo da dissertao, pois no dispositivo Livro-filme, a totalidade das imagens pode ser acessada.

    10. Nascido em 1959, um respeitado design canadense da atualidade. Diretor de criao da Bruce Mau Design, fundador do Institute Without Boundaries (Instiuto sem fronteiras), foi diretor da Editora Zone Books at 2004, professor no Instituto de Arte de Chicago, publicou vrios livros sobre design; entre outros trabalhos que desenvolve.

    11. O contexto em que o filme foi realizado, dcada de 60, era momento na Frana do surgimento da nova vanguarda cinematogrfica chamada Nouvelle Vague, da qual Chris Marker fez parte. Nessa poca, o filme La Jete inovou a esttica cinematogrfica, ao propor um filme feito com fotografias - imagens estticas. Marker cria assim sua prpria conveno sobre cinema e desvela a iluso do movimento do cinema.

    La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 13

  • respectivamente os afectos e os perceptos dos personagens, elementos que, conforme Deleuze, destacam o que est no interior e no fora do sujeito, e que tensionam a vida do protagonista

    durante as viagens no tempo, durante os deslocamentos no tempo, quando revive, ou cr

    reviver, as lembranas de um passado, que existe em forma de imagens. Um presente em que o

    protagonista vive, mas no qual parece no estar, e que, por sua vez, se apresenta como uma

    espcie de futuro que j aconteceu, tudo coexiste nesse museu de sua memria.

    Segundo Bergson (2006a), afeco decorre da percepo, logo, no existe percepo

    sem afeco. Os perceptos esto fora do corpo, nas coisas, nas imagens, e dependem da nossa

    ao; j os afectos esto no corpo, so um estado interior que experimentamos, quando somos

    afetados por algo que muito signicativo para ns. Nesse sentido, a afeco e a percepo que

    envolvem o protagonista e beiram o indiscernvel, ele no tem certeza se o que est no seu interior

    compe, de fato o plano da sua vivncia exterior, todavia, conserva em si a imagem da Mulher.

    Extrai o percepto a partir de percepes vividas e/ou inventadas - lembranas que evoca ou

    inventa - que conserva como imagens, se afeta com elas, e vai de um estado a outro, de uma

    viagem a outra num tempo que, assim como a memria coexiste, heterogneo e simultneo.

    Sobre os encontros do tempo com a memria e das imagens com os textos, presentes

    nos dois objetos, no filme e no livro, instiga-me pensar a contaminao, o tensionamento, o

    atravessamento de um no outro, o deslocamento de um para o outro, um livro criado a partir do

    filme, objetos feitos da mesma matria as imagens fotogrficas e o texto/narrao, com a

    mesma temtica e trama.

    No livro La Jete esto os elementos do filme: seu tempo, sua memria, suas imagens

    e textos, e os recursos do cinema, atualizados de outro modo, tornados literatura, ou melhor,

    para usar a fala de Bellour (1997, p.42): O livro folheado reduplica desse modo o trabalho do

    filme, depositando as imagens sobre as outras, como na memria, em volume, por La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 14

  • esquecimento, acumulao e retorno. Nesse deslocamento filme>livro, surge uma nova

    forma de leitura das imagens-textos, que j no se dissociam, mas se atravessam, se rizomam e

    irrompem tempo e memria atravessado por esquecimento, lembrana, ausncia e distncia;

    imagens e textos que imergem e submergem uns nos outros, permitindo recriaes, evocaes e

    apagamentos temporais.

    O tempo, por natureza, tem seu uso diferente na literatura e no cinema. O suporte

    literrio tem suas pginas abertas, espera do leitor, enquanto o suporte flmico dado a partir

    do limite da tela e da projeo. O livro melhor ser lido de dia ou com auxlio de luz; o filme

    melhor ser visto noite ou no escuro. Nas pginas do livro ou na tela flmica de La Jete, as

    imagens so pensadas em termos de temporalidade ou, conforme assinala Bergson (2006c), em

    termos de potncia, de virtualidade, como um conjunto de imagens a se atualizar. E a durao de tais imagens suspende ou faz fluir, no filme e no livro, tempo e memria, traz um tempo do

    cinema que um construto, uma sucesso de instantes, de planos encadeados, montados para

    dar ao espectador, atravs da projeo a iluso de movimento. Presente, passado e futuro so

    montados. Marker os constri no filme e reconstri no livro, como se fosse o tempo durao,

    proposto por Bergson, que dura e muda continuamente, em que o presente prolongamento do

    passado, que opera incessantemente at o porvir (o futuro): ao presente que pertence o tempo

    passado e futuro e nele que tudo se desenrola, se passa.

    Bellour (1997, p. 43), citando Mallarm, argumenta que o livro no seu absoluto de

    linguagem, visa produo de um efeito psquico no qual a enunciao, que se torna

    paginao, concebida como encenao. Ele prossegue: o livro no realmente uma

    imagem a ser interpretada; ele a imagem em pleno trabalho (Ibidem, p,43)12 . Quando

    Marker recria o filme em livro, ele no reinterpreta a imagem filme, mas acessa o bloco imagens-

    12. O projeto do livro de Stphane Mallarm (1842-1898), ficou inconcluso, pois ele morreu antes de termin-lo. Deveria conter infinitas possibi lidades de leitura, seu Livre trabalharia o texto como forma grfica, com tipos e tamanhos variveis, sugerindo a leitura como apreenso de uma estrutura visual, onde o branco da pgina seria tambm elemento significante, algo j experimentado no poema Un coup de ds. Essa proposta de Mallarm se aproxima da criao e design do livro La Jete de Marker, por exemplo, quando ele deixa pginas inteiras em preto, abertas a criao de diferentes sentidos pelo leitor e imprime em papel a condio, ali , intermediria e provisria da palavra escrita - que antes foi palavra falada, encenada, narrada no fi lme. E de certa forma da proposta desta dissertao.

    La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 15

  • memria do filme e inventa uma imagem-livro. Repete para diferenciar-se, em sintonia com as

    noes de diferena e repetio de Deleuze (2009), repensadas a partir de um objeto, que ponto de

    partida para outras bifurcaes, suportes, formas e, nesse agenciamento e deslocamento, por meio

    das imagens-textos de La Jete da repetio, surge o novo a diferena; um objeto que desde sua

    criao j um mltiplo.

    Com relao s imagens fotogrficas do filme e do livro La Jete, penso-as nesse

    momento, com a ideia de Raymond Bellour (1997, p.76), a de que a fotografia metarfoseia o

    passado em presente, fazendo com que ela se junte s palavras escritas e faladas, dos dois

    suportes, para fundar a apreenso na durao. A imagem fotogrfica por sua prpria natureza

    pertence ao passado, enquanto a imagem do cinema pertence ao tempo presente. Marker

    aborda, por meio da voz do narrador, em certo trecho do filme, que as imagens do protagonista

    se misturam no museu que pode ser aquele de sua memria. Elas so evocadas e buscadas no

    passado, so trazidas para o presente flmico, quando se atualizam na memria desse Homem

    viajante do tempo.

    Na fotografia, a imagem est mostra, oferece uma durao diferenciada a quem a

    olha, testemunha prestes a se revelar, carregada de palavras e sentidos esperando ser

    apreendidos e dependentes do olhar de quem a v, assim como o texto est espera de algum

    que o leia para fazer sentido. J a imagem do cinema tem uma durao precisa, afeta de imediato

    o espectador no ato da exibio, no tem como no ser percebida de imediato, ela est ali,

    revelada no momento da projeo, fora ser vista naquele momento que est sendo projetada.

    Nesse sentido, o cinema seria a projeo acelerada da fotografia e no d tempo contemplao.

    No entanto, sei que, na atualidade com as novas tecnologias e janelas de exibio de filmes,

    o espectador pode ver um filme em partes, mas a durao do filme, de fato, no muda; e sua La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 16

  • apreenso, quando fragmentada tem outro sentido, diferente de ver o filme por inteiro, de uma

    s vez.

    Na imagem cinema o tempo se duplica, na imagem fotogrfica o tempo se esvae; uma

    presente, a outra passado, uma movimento, a outra imobilidade. Assim, se no cinema o

    movimento da imagem criado na montagem e dado na projeo, como j mencionei, na

    fotografia, posso fechar os olhos e abrir, e ela continuar ali minha espera, ela passado, mas

    pode se repetir, no fugiu ou desaparece como a imagem flmica faz. Bellour (1997, p.85) afirma

    que no cinema a foto est presa no encadeamento, no transcorrer da imagem, o filme parece

    congelar-se, suspender-se. Assim, de algum modo, a fotografia mantm seu poder, mesmo se

    j cinema, e o cinema reproduz, em alguma medida, a fora que a foto exerce sobre o

    espectador. Na relao fotografia-filme em La Jete, o que move a trama do filme e do livro,

    uma imagem-memria, uma imagem do passado tornada presente atualizada na conscincia ou

    na imaginao do protagonista e ativada no percurso que deve fazer a prpria memria do

    leitor-espectador.

    Nesse rastro das imagens fotogrficas, que se tornaram ponto de partida de filmes,

    atualizando o passado em suas tramas, posso citar o curta-metragem Ulisses (1983), da francesa

    Agns Varda, desencadeado a partir da foto seguinte, feita numa praia francesa, em 1954, pela

    prpria Varda.

    La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 17

  • Figura: Homem e criana nus, e uma cabra morta na praia, a 1 min 30s do filme (Ulisses, 1954).

    A partir dessa imagem fotogrfica, Varda decide investigar sua composio, cerca de

    30 anos depois, em busca de saber o que vivenciavam as pessoas que ali estavam. Assim, ela

    (re)constri a histria dos personagens que compunham a foto, ficcionalizando, criando uma

    narrativa que parte da imagem fotogrfica e se torna filme, explora o imaginrio e o real, a fico

    a realidade, o tempo e a memria investigao e inveno nas quais Varda acaba por

    questionar sua prpria memria. Como La Jete de Marker, Varda tambm faz outro filme apenas

    com fotos fixas Salut les Cubains (1963), dando sentido as 1.800 fotos que usa na montagem.

    Assim como Varda, Marker torna a imagem fotogrfica/fixa, matria do seu filme, e parte dela

    para criar tambm La Jete livro, ficcionalizando as imagens que fez, criando o romance, que

    narra a histria de um homem marcado por uma imagem de infncia, uma imagem do passado.

    Em O Espao literrio, Maurice Blanchot (1907-2003), aborda a possibilidade da La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 18

  • literatura como imagem, no uma linguagem em imagens, mas uma linguagem que seria imagem

    de si mesma, ou imaginria, que pode no ser revelada na ao. Segundo o terico:[...] Ver supe a distncia, a deciso separadora... Ver significa que esta separao tornou-se, porm, reencontro. [...] O olhar atrado,arrastado e absorvido num movimento imvel e para um fundo sem profundidade. O que nos dado por um contato distncia a imagem. (BLANCHOT, 2011, p. 22-23).

    Assim, a literatura, o texto, seriam prticas da escritura que desterritorializariam o

    visvel e o legvel, e, nesse processo, livro e filme La Jete seriam um devir imagem-texto e texto-

    imagem, jogados a um fora dos prprios objetos, criando fissuras para fora da escrita e da

    imagem. Texto e imagem que em La Jete, desdobram-se uns nos outros, fazendo irromper a

    noo imagens-textos. Esse terico defende tambm que a literatura deve escapar a qualquer

    determinao, a toda a afirmao que a estabilize e limite, pois as palavras esto sempre busca

    de encontros ou por se reinventarem.

    Outro terico que participa do dilogo experimentado nesse estudo Roland Barthes

    (2002), com a ideia de texto como tecido: escritura vocal, entrelaamento, textura,

    transformao, produo em constante movimento de diferena e sentido, em permanente fluxo

    que, por um lado, impossibilita uma cristalizao hierrquica entre as linguagens; por outro,

    possibilita a coabitao entre elas. Um texto cujo enunciado pode cair na ambiguidade, a partir

    do que se l ou v. No se deve ficar preso ao que est visvel, um texto deve por em crise sua

    relao com a linguagem, provocar fendas na linguagem e deixar a interpretao num estado de

    deriva, em devir. Em La Jete, o texto assim pensado, tal como a imagem, polissmico, aberto

    significncia fruio. O que o narrador, criado por Marker relata, anuncia nem sempre

    condiz com a imagem, e essa relao de foras contrrias permite a fruio e a fluidez, tanto da

    narrativa romance do livro, quanto do filme.La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 19

  • Sobre a noo de romance, me apoio no terico da literatura e escritor Milan

    Kundera (2009), que entende o romance como narrativa e potica da complexidade, da

    ambiguidade, que busca apreender a ao dos personagens de modo paradoxal, como

    possibilidade de interrogao das situaes que eles vivem no desenrolar da trama. Noo que

    busco aproximar do filme e do livro La Jete, um romance como campo de possibilidades, de

    inveno, montado com textos e imagens dbias, mesclando os tempos passado, presente e

    futuro, ditos e no-ditos, e promovem deslocamentos e tenses. Um tipo de romance que lida

    com incertezas e incompletudes. Kundera afirma que os personagens dos seus romances so as

    suas prprias possibilidades no realizadas, que cada uma delas transps uma fronteira que o

    autor pessoalmente nunca atravessou, a fronteira do eu. Segundo ele, a funo do romance no

    outra seno a de explorar a vida humana, explorar dimenses possveis da existncia fora do eu.

    De outro modo, diria Deleuze que no h arte literria sem essa travessia, sem essa

    passagem do horizonte vivido, essa entrada numa vida outra. O protagonista do romance La

    Jete carrega consigo afetos, delrios, devires-outros, tempos outros, outros dele mesmo; num

    momento, ele se lembra de si enquanto criana, noutro adulto, e, ainda, num outro momento,

    adulto de uma outra vida. Tudo se amalgama no museu da sua memria e ele vai traando suas

    linhas de fuga para existir e persistir nessa travessia do romance literrio e cinematogrfico do qual

    protagoniza, percorrendo diferentes paisagens imagtico-textuais.

    Marker cria imagens e usa palavras para embaralhar aquilo que elas representam, pois

    as imagens, para ele enganam, iludem, no so o real, so um campo aberto de sentidos, a serem

    pensados e transformados em possveis leituras. H um ponto de partida, de criao, mas no h

    limites de sentidos, no h nelas uma verdade dada. Nesse pensar, a narrativa do filme e livro La

    Jete se funda na imagem como memria, como lembrana e esquecimento, esgaramento

    temporal, como construo e recriao de experincia. O personagem principal movido por

    La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 20

  • uma imagem do passado, ela o aflige no presente e o faz transitar de um tempo a outro.

    Convidado a se lanar, a viver no futuro, ele recusa, e se d conta que no pode escapar do

    tempo que escorre sem parar. Esse carter paradoxal da sua ao e a voz do narrador, que

    parece ser a de sua memria, nos coloca em dvida com relao existncia de tal imagem

    guardada, desse seu conflito ntimo, uma imagem presente que coexiste com um passado

    conservado e um futuro porvir. O narrador inventa para si um lugar no interior da narrativa,

    para tentar nos conduzir atravs da teia de acontecimentos que compem a vida do

    protagonista.

    Diferente da narrativa linear, tpica do cinema clssico da imagem-movimento em que

    o tempo decorre do movimento e que muito faz uso do flashback (volta ao passado) e de

    imagens de arquivo, o passado retratado por Marker em La Jete com recursos do cinema

    moderno da imagem-tempo que produz narrativas orgnicas, em que o movimento decorre do

    tempo. Conforme Deleuze (1985), o cinema moderno cria novas imagens, que evitam os

    recursos do flashback e do extra-campo, inventando outros recursos capazes de estabelecer

    novas relaes dos planos, no tempo e no espao cinematogrficos. Nesse sentido, Chris Marker

    inventa para La Jete, seus prprios recursos para retratar o tempo passado, por exemplo, as

    imagens de um museu real e de Paris destruda pela guerra,etc.

    O realizador/escritor, por meio das viagens do protagonista, de uma memria que

    dilata e se contrai, e do tempo coexistente, vai tecendo uma narrativa em que tudo perpassa

    zonas de fronteiras tnues. Com isso, descontri a ideia flmica de que o sentido de uma imagem

    depende daquela que a precede, fazendo tambm uso da narrao e at mesmo de elementos

    supostamente ausentes de memria, como o silncio e rudos diferenciados. Costura, na fico

    de La Jete, possibilidades de sentidos entre imagens-textos, tempo e memria, no trajeto mvel da

    trama, e, dessa maneira, o movimento entre passado, presente e porvir vai se dando de modo a

    La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 21

  • beirar o indiscernvel. O protagonista evoca o passado em forma de imagem, se abstraindo da ao

    presente, mas sem fronteiras ntidas entre a passagem de um tempo ao outro.

    Henri Bergson (2006c) vem iluminar esta escritura com sua noo de imagem de uma

    imagem que movimento, que expressa a mudana na durao. Uma imagem no como

    representao da realidade (platnica), pose imvel, mas, ao contrrio, como mobilidade, algo

    movente, uma percepo contnua. Na viso de Marker, ao se fazer um filme, nunca se sabe o

    que se filma, o que vem depois, dada a infinitude de possibilidades de uma imagem. Essa

    imagem que movimento, proposta por esse filsofo e praticada por Marker, estaria alm da

    projeo da conscincia ou da representao mental, ela o prprio movimento e entra em

    relao com o tempo e com o pensamento do protagonista de La Jete, pois, segundo Bergson

    (Ibidem), um objeto existe independentemente da conscincia que o percebe. Percebemos

    sempre menos e nunca tudo o que h na imagem, selecionamos o que nos interessa, a percepo

    contnua, e se revela em funo da nossa ateno, seleo, ao; ela est na matria, nas coisas,

    nas imagens. O que move o protagonista de La Jete seria, portanto, uma imagem movimento, a

    imagem de infncia, da Mulher que ficara em sua memria, que afeta sua ateno e percepo e

    o faz transitar em tempos diferentes, colocando-lhe num movimento contnuo.

    Ainda segundo esse filsofo, a percepo ocupa uma certa durao e exige um esforo

    da memria, que impregnada de lembranas. O protagonista de La Jete faz as viagens no

    tempo, amalgama sua experincia passada com os dados imediatos do presente, deslocando sua

    percepo para uma antiga imagem e criando iluses, j que a memria acrescenta e suprime

    informaes. Talvez por isso ele no saiba se a imagem que tanto o aflige existiu ou se ele a

    inventou. Mas ela o coloca em movimento. No atravessamento entre teorias e tericos, imagens

    e textos, tempo e memria, creio que tanto o cinema, quanto a literatura se enriquecem e se

    abrem para novos agenciamentos .La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 22

  • PLAT DAS PALAVRAS ALGUMAS

    O texto e a imagem, o tempo e a memria percorrem na nossa vida caminhos que

    se fecundam, se bifurcam, se ecoam, se tensionam, se encontram. Escrevemos e lemos,

    construmos e vemos a todo momento imagens e textos, textos e imagens, seja no campo da

    literatura, do cinema, de qualquer outra arte ou rea do saber, e com eles percorremos o

    fluxo temporal, guardando ou evocando na nossa memria o que deles nos interessam para

    seguir pensando, agindo, vivendo. A imagem cinematogrfica sempre me afetou de modo

    intenso e, ao meu ver, ela sempre esteve carregada de texto, ainda que no existisse nenhum

    dilogo no flmico. Foi esse entrelaamento da imagem com o texto e do tempo com a

    memria que inspirou-me a tecer essa dissertao.

    O cinema a chamada stima arte surge tardiamente no fim do sculo 19,

    consolidando-se no sculo 20. J a literatura1 comea com a expresso oral do homem,

    embora se concretize com a expresso escrita. Logo, precede, e muito, o cinema. Na viso

    do filsofo Gilles Deleuze: A teoria do cinema no tem por objeto o cinema, mas os conceitos do cinema. [...] Os conceitos do cinema no so dados no cinema. E, no entanto, so conceitos do cinema, no teorias sobre o cinema. [...] O prprio cinema uma nova prtica das imagens e dos signos, cuja teoria a filosofia deve fazer como prtica conceitual. Pois nenhuma determinao tcnica, nem aplicada [...], nem reflexiva, basta para constituir os prprios conceitos do cinema. (DELEUZE, 1990, p.332)

    Para se constituir como arte, desde seu surgimento datado oficialmente em 1895, o

    1. O terico Eagleton (1997), aborda diferentes possibilidades de definio para literatura, mas conclui dizendo que classificar algo como literatura um ato instvel. Porque textos que em determinado momento so classificados como literatura, em outros momentos podem no ser, uma vez quesero inevitavelmente reescritos, reciclados, tero usos diferentes e sero inseridos em diferentes relaes e prticas(EAGLETON,1997,p.292). Aguiar e Silva (1967), tambm discorre sobre vrias noes de literatura, e afirma que dos mltiplos sentidos, por ele mencionados, o que o interessa o de literatura como atividade esttica, e, consequentemente, os produtos das obras da resultantes. E declara ainda, que definies do que literatura so muitas vezes inexatas e sempre insuficientes, dado o carter heterogneo da literatura, nem a ficcionalidade, nem a particular ordem sobreposta s exigncias da comunicao lingustica usual, nem a plurissignificao constituem fatores que isoladamente, possam definir satisfatoriamente a literariedade (Ibidem, p.69). Assim, no busco, uma definio precisa do que literatura, mas promover encontros e tenses entre essa arte e a arte cinema.

    La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 1

  • cinema utiliza elementos da fotografia, do teatro, da pintura, da msica e da prpria

    literatura. Ou de outro modo, diria Deleuze, o cinema est sempre num devir 2 outro, e essas artes, das quais o cinema composto, juntas, esto numa zona de indiscernibilidade e se

    constituem pela prpria relao que as une de forma dinmica; existe, pois, o devir cinema da

    fotografia, o devir cinema da literatura, etc.

    Sobre o uso do literrio no cinema, desde Griffith3 j se fazia; um exemplo de

    cineasta, contemporneo, que muito incorpora a literatura em seus filmes o do francs

    Jean-Luc Godard4. Um de seus filmes O desprezo, de 19635, inspirado no romance

    homnimo de Alberto Moravia, publicado em Roma, em 1954, narra o drama de um casal

    em crise em viagem Itlia, o homem abandonado pela mulher. Nesse filme, Godard cita

    vrios escritores: Homero, Mallarm, Blanchot, Faulkner, etc. Uma das contaminaes

    literrias no filme O desprezo, alm do livro de Moravia, a meno direta a Odisseia de

    Homero. Obra em que o personagem Ulisses enfrenta a fria dos deuses, perigosos inimigos

    e monstros mitolgicos, demonstrando bravura e resistncia para retornar aos braos de sua

    amada Penlope. No filme O desprezo, o personagem Paul ao reecrever e adaptar a Odissia

    para a tela flmica, argumenta que talvez Ulisses no quisesse voltar para Penlope. Isso

    possibilitaria estabelecer uma aproximao entre a relao dos personagens de Homero:

    Ulisses e Penlope, com os personagens da trama flmica de Godard: Paul e Camille, pois a

    personagem Camille se ausenta por um longo tempo, quando, na verdade, tinha ido embora com o amante (o produtor de cinema americano Prokosh), tinha abandonado o marido Paul,

    deixando a iluso de que ela um dia voltaria. As tramas se relacionam, todavia saliento que o

    tema mesmo do filme O desprezo o prprio cinema, assim como o tema da Odissia de

    Homero a prpria Odissia. A odissia um poema pico da Grcia antiga, que retrata uma

    2.Toda palavra sublinhada no corpo do texto da dissertao, um verbete, se necessrio poder ser consultada no plat dos Verbetes.

    3.David L.D.W.Griffith(1875-1948) foi um diretor de cinema estadunidense. J na dcada de 20, esse diretor recorria literatura. Por exemplo, recorreu literatura do romancista ingls Charles Dickens (1812-1870), para criar tcnicas de montagem linear, enquadramentos e simbolismos no seu cinema.

    4. Nascido em 1930, Godard um cineasta franco-suo, integrante do movimento cinematogrfico francs Nouvelle Vague, reconhecido por fazer um cinema vanguardista e com forte ligao com a literatura.

    5. Tem como principais personagens Camille (Brigitte Bardot) e seu marido, o escritor Paul Javal (Michel Piccoli). Na trama, Paul para garantir o conforto da esposa e evitar o fim da relao, aceita trabalhar como roteirista para fazer uma adaptao da Odissia de Homero para o cinema, a ser rodada na Itlia e dirigida por ningum menos que o cineasta Fritz Lang, no papel de diretor, ou seja, dele mesmo.

    La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 2

  • viagem cheia de aventuras do protagonista Ulisses, heri da guerra de Tria (guerra que

    durou 10 anos). Ulisses lutou pela vida e demorou 17 anos para retornar a sua cidade natal e

    para Penlope. A trama no-linear e faz uso de flashbacks. A traduo, verso moderna

    dessa obra contm 24 livros (dados retirados do site wipedia).

    Em outro de seus filmes, Histoires du Cinema (1998), Godard utiliza muitos

    elementos da literatura e chega at mesmo a se encenar no flmico como escritor, ele aparece

    na tela, escrevendo e dialogando com o espectador e leitor, por meio de imagens e textos.

    Destaco que no me interessa nesse estudo, discutir a noo de adaptao literria

    no cinema, mas apontar, refletir relaes de uma arte com a outra, por meio dos objetos da

    pesquisa. No meu ponto de vista puro e simples que importante, mas estabelecer um

    dilogo entre e com os autores que abordam tais reas, sem limitar o pensamento.

    Na literatura, penso que a relao com o cinema no seja muito diferente, so os

    muitos escritores se inspiram no cinema para contar suas histrias. O prprio Willian

    Faulkner possui uma escrita bastante cinematogrfica, permeada de visualidade 6. Percebo

    afinidades entre a literatura e o cinema; afinidades que se interceptam, se fendam e tambm

    dialogam. Valorizo tanto a literatura quanto o cinema, por serem linguagens criadoras,

    artsticas, por permitirem leituras textuais e imagticas simultaneamente, e por dialogarem

    com outros campos tericos, duvidam do privilgio de um sobre o outro, de uma linguagem

    ou arte sobre a outra. , pois, sobre a relao entre essas artes, sobre um livro e um filme,

    que escrevi essa dissertao, mirando expandir o conhecimento esttico da literatura e do

    cinema.

    6.No livro Palmeiras Selvagens (2009), as aes dos personagens descritas por Faulkner so claramente possveis de visualiz-las como imagens e texto ao mesmo tempo, como se estivssemos de fato vendo na tela dos nossos olhos e ouvindo os personagens em ao, e no apenas imaginando-os.

    La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 3

  • Para a tessitura da dissertao optei pela forma cartogrfica e rizomtica como

    mtodos - noes propostas por Deleuze e Flix Guattari7, (1995) e, por meio delas,

    apresento o conhecimento elaborado, composto de plats8, ao invs de captulos, na inteno

    de que cada plat possa ser conectado, retomado e, na medida do possvel, ser lido

    separadamente um do outro. A escrita foi se dando em separado, um dia escrevia parte de

    um, outro dia parte de outro plat, e por vezes tudo ao mesmo tempo. Abri uma

    possibilidade, e me lancei na criao de linhas de uma escrita desviante, pois eu no quis

    fazer um decalque ou imitao da proposta de Deleuze e Guattari, mas experimentar por em

    prtica uma escrita menor9, tomando o pensamento filosfico moderno francs como base

    principal de sustentao terica desse estudo. A filosofia moderna considerada a dos

    filsofos do sc 15 at metade do sculo 19, utilizo na dissertao, sobretudo, o pensamento dos filsofos Bergson e Deleuze.

    A filosofia a disciplina que consiste em criar conceitos (DELEUZE e

    GUATTARI, 1992, p.13), uma maneira de pensar e criar, que no superior a nenhuma

    outra, um processo de criao do pensamento da diferena, formada por conceitos inter-

    relacionados, em que um compe o outro, estabelece alianas, se conectam um com o outro,

    conceitos que no so apenas filosficos. Pensando com Deleuze, um conceito uma

    multiplicidade, um agenciamento de componentes distintos, mas inseparveis e agrupados por

    zonas de vizinhana ou indiscernibilidade, um conceito no criado do nada, vem e devm

    outros. Esse filsofo se utilizou da literatura, do cinema, pintura, etc., como um novo modo

    de filosofar e de colocar a filosofia e a criao artstica transitando por uma mesma trilha de

    pensamento, j que, segundo ele, a filosofia e essas artes lidam com a criao. Segundo o

    terico Roberto Machado (2011, p.206), o filsofo Deleuze utilizou a literatura para

    7.Psicanalista e filsofo francs (1930-1992)

    8.Plats so possibilidades, so intensidades que formam um rizoma sem unidade presumida, nem linear, mas numa multiplicidade. Eu no poderia compor a dissertao em forma de captulos porque presume uma unidade, linearidade textual e semntica de um captulo a outro (a sequncia: introduo, desenvolvimento e concluso) com base em linhas molares (duras), no apenas no ato de pensar e escrever, mas tambm de ler. Na minha proposta o pensamento e escritura acontecem tendo como fluxo linhas moleculares (fluidas) e de fuga, h um agenciamento entres os plats, mas no uma sequncia explcita, os encontros se do por diferentes entradas e sadas.Essa noo de linhas molares, moleculares e de fuga proposta por Deleuze (1995), a linha molar diz respeito a uma referncia dada, a um modelo, pe limite no pensamento, enquanto a molecular est ligada aos fluxos, devires e intensidades; a fuga diz respeito a perder sua clausura, esquivar, escapar de limites.

    9.Segundo Deleuze uma escrita que no est presa a modelos prontos de pensamento, mas que busca linhas de fuga, experimenta traar rotas, e como uma espcie de resistncia, busca

    La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 4

  • pensar conceitos importantes de sua filosofia: o devir, a diferena, o limite, a

    intensidade, as foras [...] conceitos suscitados pela leitura de seus principais

    intercessores literrios, tais como: Kafka, Proust, Faulkner, Fitzgerald, Melville, Carroll,

    etc. Conforme Deleuze e Guattari (2003), esses escritores fazem a lngua variar. E assim

    como a filosofia da diferena, tais escritores resistem modelos dados, servido, ao

    intolervel, ao pensamento da representao ou da identidade, so capazes de produzir uma gagueira na linguagem, criam uma linguagem vibrtil, bifurcadora, com variaes contnuas.

    E traam linhas de fuga para escrever, para criar seus personagens e fices, para pensar uma literatura da diferena10.

    Sobre a relao da literatura com a filosofia, Franklin Leopoldo e Silva, num artigo

    publicado no livro Tempo e Histria (1992), disse que a distncia que separa a filosofia da

    literatura a mesma que as aproxima: Quando lemos um texto de filosofia, no precisamos nos perguntar por que o autor se d ali, ao trabalho de, descrevendo a realidade que a de todos ns, tentar transmitir-nos, a respeito dela, uma compreenso que nos ajude a perceb-la ao mesmo tempo de uma forma mais refinada, e mais ingnua, no sentido de mais imediata.[...] Mas quando, diante de uma obra literria, questionamos a razo da escrita e indagamos o porqu daquela descrio do mundo que nos apresentada, a resposta j no to fcil. (LEOPOLDO E SILVA, 1992, p.141)

    O autor segue tecendo consideraes sobre tal questo, e possvel perceber que a

    aproximao da literatura com a filosofia se d pelo modo que o literrio nos proporciona

    apreender o real. Pelo modo artstico que a literatura expressa e nos permite lidar com a

    contrapor-se a qualquer tipo de cristalizao ou perda de singularidade. Escrita minoritria entendida como um devir potencial que se desvia de um modelo. Devir entendido como algo que desterritorializa-se, como algo novo que pode surgir no processo da escrita.

    10.Sobre a literatura da diferena, em Critica e Clnica (1993), Deleuze d o exemplo do livro Bartleby de Melville, personagem ttulo. Um escrivo que contratado para copiar documentos em um escritrio de advocacia. Quando convocado a copiar documentos de outros escrives, o personagem, traando uma linha de fuga, responde ao advogado preferiria no (I wolud prefer not to) no recusa, nem aceita. Melville introduz assim um vazio, um rasgo na linguagem.

    La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 5

  • verdade, ela nos apresenta o inesperado do mundo e o insuspeitado do real, nos fazendo perceber e compreender o mundo e a ns prprios para alm do visvel num texto literrio, ou para alm do verdadeiro da realidade. Leopoldo e Silva (1992), na esteira de Bergson, vai

    argumentar ainda que o alargamento da nossa percepo habitual, para alm da nossa necessidade de agir no real, nos permite entrever as coisas pelo literrio e pela filosofia, e

    que a nossa percepo no nos apresenta o verdadeiro real, ela seleciona o que nos interessa

    para agir no mundo. Todavia, devemos nos guiar, seja pelo literrio ou pela filosofia, por

    uma percepo atenta e no habitual, por uma percepo que permita ver alm do aparente.

    Lembro que, como uma pesquisadora-cartgrafa, estou tambm em consonncia

    com o pensamento de Suely Rolnik (1989), no sentido que busco mergulhar na geografia

    dos afetos, nas intensidades e territrios de meu tempo e nas paisagens de minha formao.

    Procuro aqui inventar pontes para travessias, pontes de linguagem, de criao; e

    experimentar modos de escrever e de expressar o pensamento no ato de compor essa

    cartografia dissertativa. Para um cartgrafo todas as entradas so boas, desde que as sadas sejam

    mltiplas, ele se serve de fontes e capturas variadas, no s escritas e no s tericas. O que

    deseja um cartgrafo por em movimento o pensamento pensamento que devir e tenta

    escapar da estrutura e da representao, pois elas estancam o fluxo motor da criao e da

    diferena. Alm disso, o prprio pensamento no comporta um centro, uma unidade, em

    si rizomtico, heterogneo, mltiplo, aberto; comporta linhas de fuga, rupturas, fendas. A

    cartografia rizomtica se oferece como trilha para acessar o que fora a pensar. Como

    mtodo, d ao pesquisador possibilidades de acompanhamento daquilo que no se curva

    representao (DELEUZE e GUATTARI, 1995).

    Um cartgrafo no traz certezas, no faz promessas, mas tentativas,

    La Jete: um E outro, dissertao de mestrado de Ldia A.R.S.Mello, Letras UFRGS, 2012. 6

  • experimentaes, invenes de estratgias e planos moventes, abertos. Numa cartografia, as

    coisas no se explicam de modo direto, uma vez que os dados so sempre relanados de

    outro modo, em outro lugar, em outro plat; eles se implicam, se colocam em movimento.

    Esses so os critrios das escolhas de um cartgrafo, das minhas escolhas. Entretanto, o fato

    de no me prender a uma linha dura(molar) de pensamento e de ser a dissertao uma

    cartografia riz