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LUCY MIRANDA DO NASCIMENTO
LA ESCRITURA O LA VIDA: AS CICATRIZES
INDELÉVEIS DOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO
Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT Instituto de Linguagens – IL
Cuiabá – MT 2011
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LUCY MIRANDA DO NASCIMENTO
LA ESCRITURA O LA VIDA: AS CICATRIZES
INDELÉVEIS DOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem do Instituto de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem. Área de concentração: Estudos Literários Orientadora: Profª Drª Rhina Landos Martínez André
Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT Instituto de Linguagens – IL
Cuiabá – MT 2011
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Dados Internacionais de Catalogação na Fonte
Catalogação:Maurício Silva de Oliveira – B ibliotecário CRB/1-1860
N244e Nascimento, Lucy Miranda do.
La escritura o la vida: as cicatrizes indeléveis dos campos de concentração / Lucy Miranda do Nascimento, 2011.
xii, 101f. ; 30 cm (inclui figuras) Orientadora: Rhina Landos Martínez André. Dissertação (mestrado). Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de Linguagens. Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem, 2011.
Bibliografia: f. 93-101
1. La escritura o la vida. 2. Jorge Semprún. 3. Corpo dessacralizado. 4. Literatura de testemunho. I. Título.
CDU 82-94
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A Deus, meu refúgio e minha fortaleza.
À minha mãe, Atilia, porque seu amor incondicional me ampara e me conforta.
Ao meu pai, João, porque seu exemplo de honestidade e seu amor protetor estarão para sempre em minha memória.
Ao Alex, porque “tudo como você fica mais bonito, bem mais colorido”.
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AGRADECIMENTOS
À professora Rhina, que desde a graduação me incentivou e me deu
forças para continuar os meus estudos.
À FAPEMAT, pela bolsa ofertada.
À Flaviane e à Paloma, amigas que durante o mestrado, e sempre,
foram motivações para eu seguir em frente.
À Rosane e à Naira, por terem “segurado as pontas” quando decidi
mudar o curso da minha vida.
À Gislei, pela amizade sincera e pela disponibilidade em me ouvir.
Aos professores do Mestrado que, com suas disciplinas e discussões,
esclareceram muitas dúvidas.
E ao Semprún, por fazer parte do meu amadurecimento.
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Eu presto atenção no que eles dizem, mas eles não dizem nada Toda forma de poder é uma forma de morrer por nada
Toda forma de conduta se transforma numa luta armada (uma cruzada) Se tudo passa, talvez você passe por aqui
E me faça esquecer tudo que eu vi O fascismo é fascinante, deixa gente ignorante fascinada É tão fácil ir adiante, esquecer que a coisa toda tá errada
A história se repete, mas a força deixa a história mal contada (inacabada) Se tudo passa, talvez você passe por aqui
E me faça esquecer tudo que eu vi (...) Humberto Gessinger
A experiência que vivemos é indelével. Ela nos marcou para o resto dos nossos dias. Guardamos as suas cicatrizes, nem todas aparentes. Nem são,
nem salvos.
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Edmont Michelet RESUMO
MIRANDA-NASCIMENTO, Lucy. La escritura o la vida: As cicatrizes indeléveis
dos campos de concentração.
Este trabalho indaga o modo como a narrativa testemunhal, La escritura
o la vida (1995), do escritor Jorge Semprún, agencia a dessacralização do
corpo nos campos de concentração nazistas. Para tanto, dialoga com as
contribuições teóricas de Merleau-Ponty (1971), Foucault (2009), Agamben
(2004), Bauman (1999), Arendt (2004), dentre outros, que problematizam
acerca do papel da corporeidade na era moderna, bem como sua relevância
durante o regime concentracionário nazista. Investiga-se como a escritura
sempruniana desvela as estratégias e os mecanismos utilizados pelos nazistas
para torturar o corpo e causar-lhe dores indizíveis. Com isso, pensa-se nas
cicatrizes que ficam no corpo do sobrevivente e o modo como elas são
representadas literariamente. Propõe-se que o testemunho engendra tanto em
sua forma como em seu conteúdo as experiências do sujeito atravessado pela
catástrofe, pondo em pauta o modo pelo qual Semprún perfila esteticamente
essas questões. Reflete-se acerca da rememoração do passado traumático e a
sua configuração na escritura, pensando nos novos saberes possivelmente
agregados ao sobrevivente mediante esse processo.
Palavras-chave : La escritura o la vida, Jorge Semprún, Corpo dessacralizado,
Fragmentação, Literatura de Testemunho.
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ABSTRACT
MIRANDA-NASCIMENTO, Lucy. La escritura o la vida: The indelible scars of
concentration camps.
This paper investigates how the narrative witness, La escritura o la vida
(1995), by writer Jorge Semprún, shows the demystification of the body in Nazi
concentration camps. To this end, dialogues with the theoretical contributions of
Merleau-Ponty (1971), Foucault, Agamben (2009) (2004), Bauman (1999),
Arendt (2004), among others, that deals about the role of under construction in
the modern age, as well as its relevance during the Nazi regime. Investigates
how scripture of Semprún reveals the strategies and the mechanisms used by
the Nazis for torturing the body and cause unspeakable pain. With this thought
in scars that remain in the body of the survivor and how they are represented l
in literary form. It is proposed that the testimony shows both on their way in your
content the experiences of the subject that experienced the disaster, discussing
how aesthetically Semprún presents these questions. Reflected on the
recollection of past traumatic and your configuration in Scripture, thinking in new
knowledge possibly survivor aggregates by this process.
Keywords: La escritura o la vida, Jorge Semprún, Desecrated body,
Fragmentation, Witness literature.
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SUMÁRIO
Dedicatória .................................................................................................. iv Agradecimentos .......................................................................................... v Resumo ....................................................................................................... vi Abstract ....................................................................................................... vii Introdução ................................................................................................... 01 1 Corpo moderno: o entre-lugar do poder e do prazer ............................. 06 1.1 O corpo para e no nazismo ................................................................... 18 2 Jorge Semprún: Fragmentação do corpo. Escritura fragmentada ........ 31 2.1 Despersonalização, tortura e dor: A dessacralização do corpo e os reflexos da barbárie ....................................................................................
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2.2 Imagens metafóricas: Intertextos, elipses, anacronias. A representação fragmentada da catástrofe em La escritura o la vida ..........
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2.3 ¿La escritura o la vida? ¿La escritura o la muerte?: Do retorno à escritura mortífera ao esclarecimento libertador .........................................
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Considerações finais ................................................................................... 87 Referências Bibliográficas ........................................................................... 93
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Introdução
O nosso primeiro encontro com a obra La escritura o la vida (1995) de Jorge
Semprún, ocorreu alguns meses antes de iniciarmos as disciplinas do
mestrado; no decorrer da leitura vários aspectos dessa emblemática narrativa
chamaram-nos a atenção, mas nada foi mais perturbador do que a descrição
feita pelo escritor das violências que perpassaram tanto o seu corpo como o de
outros prisioneiros enquanto encontravam-se presos em um campo de
concentração nazista. O modo pelo qual Semprún trazia à baila a fragmentação
corporal, bem como sua aniquilação paulatina e os inúmeros mecanismos
usados pelos nazistas para exterminar e desmoralizar os deportados, intrigou-
nos ao ponto de propormos uma reflexão acerca da representação literária
desse corpo violentado e torturado exposto na narrativa de Semprún.
Cabe ressaltar, que Jorge Semprún, devido à sua militância anti-nazista,
aos dezenove anos foi capturado e encarcerado no campo de concentração
nazista de Buchenwald, ali ficou preso quase dois anos e pode constatar as
mais cruéis técnicas nazistas para despersonalizar e exterminar os corpos dos
prisioneiros. Após a libertação o escritor evitou dar o seu testemunho, pois para
ele, rememorar esse período traumático de sua vida era o mesmo que reviver
os horrores novamente. Entretanto, após quase cinqüenta anos de silêncio, ele
publicou o seu primeiro testemunho autobiográfico, o qual é perfilado na obra
em questão.
Depois de delimitarmos nossa proposta de estudo, buscamos a fortuna
crítica a respeito de Semprún e do que queríamos inquirir em sua narrativa.
Percebemos a existência de poucos estudos publicados sobre ele no Brasil,
principalmente, na região centro-oeste, e que a temática acerca do corpo
dessacralizado em suas obras não tinha sido ainda problematizada. Notamos
mediante as leituras críticas de Valéria de Marco (2004), Rhina Landos
Martínez André (2005) e Márcio Seligmann-Silva (2005), que o nome do nosso
escritor inseria-se nas pesquisas acerca da Literatura de Testemunho, gênero
literário que abarca os testemunhos de sobreviventes de regimes totalitários,
ditaduras, ou seja, de sistemas de dominação vinculados ao poder. Assim,
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essa literatura se torna um instrumento de denúncia do oprimido, para que ele
possa dar o grito que, em um dado momento, foi sufocado pelo opressor.
Segundo Valeria de Marco, em A Literatura de Testemunho e a violência
de Estado (2004), a literatura de testemunho é delineada por duas linhas
teóricas que procuram sistematizar o conhecimento dessa produção; sendo,
uma proveniente dos estudos dos testemunhos dos sobreviventes do
Holocausto, a Shoah, e a outra voltada às obras testemunhais latino-
americanas.
Dentro da corrente de testemunho latino-americano, Valeria De Marco
explana que há duas acepções distintas de testemunho que a concerne, a
primeira é oriunda do júri do Prêmio Casa das Américas, de 1969, que se
debruça sobre textos de cunho literário, documental ou jornalístico e retrata a
violência das ditaduras latino-americanas do século XX; a segunda emerge na
década de oitenta com o testemunho de Rigoberta Menchú1, inserindo-se no
espaço acadêmico norte-americano e de estudos culturais. Seus
pesquisadores mais importantes são Elzbieta Sklodowska e John Beverley,
ambos comungam da reflexão de que a inauguração do testemunho ocorreu
em 1966 com a obra Biografía de um cimarrón, de Miguel Barnet.
Confluente, Márcia Romero Marçal, em sua tese Jorge Semprún: Forma
precária e Literatura de Testemunho (2008), explica que o testemunho latino-
americano
tem como elemento definidor de sua forma a existência de um narrador mediador, normalmente intelectual letrado, que recolhe o testemunho da “voz” do outro (MARÇAL, 2008, p.6) [aspas da autora].
A voz desse outro, é a voz do subalterno e/ou marginalizado que através
d’outro narrador, tece o seu testemunho que vai de encontro à História “oficial”.
Para Seligmann–Silva (2005), nesse caso, se engendra o contrário do
testemunho superstes – o qual ocorre na narrativa sempruniana-, ocorrendo o
testis, que é o testemunho mediado por outra pessoa.
Mesmo com mediações, cumpre seu papel de testemunho no sentido de ser
um contra discurso, distinto do oficial, e parte de uma minoria, narrando
1 A indígena guatemalteca, Rigoberta Menchú, denuncia em seu testemunho as opressões que o povo da sua etnia, a Maya-quiché, sofreu durante anos, por parte do governo de seu país. Por não dominar a língua espanhola, seu testemunho foi redigido por Elizabeth Burgos.
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aspectos que são universais e atemporais, como a violência e a deterioração
humana. Consonante, Rhina Landos Martínez André (2005), ao se dedicar aos
estudos da obra Miguel Mármol, do escritor salvadorenho Roque Dalton,
constata que:
Miguel Mármol... me llevó a descubrir el inmenso corpus de obras similares que como lágrimas se riegan por toda América Latina. Compruebo que la violencia es la marca continental y que estas lágrimas la literatura las absorbe y las cristaliza en pequeñas piedras-diamante para guardarlas como testimonio del dolor y la humillación: son las metáforas de la lucha por la libertad (ANDRÉ, 2005, p.16).
No que tangencia à linha de estudo da Shoah, Valeria De Marco (2004) diz
que há duas tendências contraditórias que a compreende: uma nega a
aceitação da legitimidade dos testemunhos dos sobreviventes, por crer que o
que foi vivenciado no Holocausto é indizível, irrepresentável, impossível de ser
assimilado esteticamente; a outra, compreende a possibilidade da
representação estética do evento. Semprún afirma que somente com a
literatura encontraria os artifícios artísticos para narrar o horror:
Sólo alcanzarán esta sustancia, esta densidad transparente, aquellos que sepan convertir su testimonio en un objeto artístico, en un espacio de creación. O de recreación [...] (SEMPRÚN, 1995, p.25).
Dos que defendem que a catástrofe é inenarrável, Irving Howe (1999)
aponta que a proporção traumática desse evento impossibilita que o
sobrevivente narre de forma coesa e racional e encontre parâmetros para
traçar comparações. Indo ao encontro dessas questões, temos a célebre frase
de Theodor Adorno, no ensaio Crítica cultural e sociedade (1998), que afirma
que:
A crítica cultural encontra-se diante do último estágio da dialética entre cultura e barbárie: escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que se tornou impossível escrever poemas (apud DE MARCO, 2004, p.53).
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Inversamente, há outra tendência que defende a representação da
catástrofe que advém da necessidade dos sobreviventes de falar sobre o
ocorrido, apesar da vontade de esquecer e de não encontrarem ouvintes
interessados no horror. Contudo, era essencial para os ex-prisioneiros dizer,
narrar com minúcia, tanto para compartilhar suas dores e aflições, quanto para
representar as vozes dos seus companheiros que sucumbiram nos campos. A
escrita foi um meio de materialização dessa vontade de contar, que canalizou a
culpa que muitos sobreviventes sentiam por terem sobrevivido e foi também
uma maneira de expurgar seus traumas.
A materialidade mediante a escritura foi uma maneira de colaborar para que
o Holocausto não se resguardasse no olvido e nem fosse escamoteado por
discursos históricos oficiais, que na maioria das vezes, como é explicado por
Zygmunt Bauman (1999), manifesta as “múltiplas tentativas de exorcizar ou
marginalizar o Holocausto como um episódio histórico único” (1999, p.27); é
único no sentido da sua abrangência mundial, porém, as questões racistas e de
dominação ultrapassam os limites territoriais. Eis a importância da literatura e
da escrita, que são rastros deixados por outrem, que vão além da sua
existência e do seu tempo, segundo diz Jeanne Marie Gagnebin no ensaio O
rastro e a cicatriz: metáforas da memória (2006):
Quando alguém escreve um livro, ainda nutre a esperança de que deixa assim uma marca imortal, que inscreve um rastro duradouro no turbilhão das gerações sucessivas, como se seu texto fosse um derradeiro abrigo contra o esquecimento e o silêncio, contra a indiferença da morte (GAGNEBIN, 2006, p.112).
A partir desse legado interpretativo verificamos o modo pelo qual Jorge
Semprún desvela a dessacralização do corpo, se o faz mediante recursos
estéticos e quais são utilizados. Para tanto, é necessário entendermos a priori
a relevância do corpo no tempo moderno, como suporte teórico para embasar
tais ideias, utilizamo-nos das contribuições filosóficas de Maurice Merleau-
Ponty (1971), Michel Foucault (2009), Jean-Jacques Courtine (2008), Miguel
Almir L. de Araújo (1998).
Posteriormente, indagamos qual é o papel do corpo para o Estado,
pensando sobre a relação corpo e poder e os meios utilizados para garantir a
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dominação, para tanto, contamos com os estudos de Michel Foucault (2009),
Michele Perrot (2010) e Vicente Deocleciano Moreira (1998). Depois refletimos
sobre a representação do corpo para o nazismo, indagando qual era o seu
papel nesse regime totalitário e quais eram as concepções e práticas nazistas
que o permeavam. São os nomes de Hannah Arendt (2004), Zygmunt Bauman
(1999), Giorgio Agamben (2004), Primo Levi (1988), que auxilia-nos nesse
processo.
No segundo capítulo, refletimos acerca da escritura sempruniana, quanto à
sua forma e conteúdo, a fim de pensar como é encenada a catástrofe e quais
os artifícios que o escritor usa para dar o seu testemunho, averiguando
também as cicatrizes que ficam no corpo do sobrevivente e qual é o reflexo
delas na feitura artística. Nesse sentido, Alfredo Bosi (2004), Mario Fleig
(2004), Márcio Selligmann-Silva (2000), Artur Nestrovski (2000), embasa-nos
para analisarmos essas questões. De igual maneira, buscando compreender os
recursos estéticos existentes na narrativa, nos apoiamos nos estudos de Claüs
Cluver (2006), Samira Chalhub (1998), Roland Barthes (1971), Maurice
Blanchot (1983). Para em um último momento, tendo em vista a barbárie dos
campos nazi, questionarmos se o processo de violência corporal ofereceu ao
ex-prisioneiro novos saberes sobre sua existência.
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1. Corpo moderno: o entre-lugar do poder e do praze r
O meu corpo sabe mais que me sei Carlos Drummond de Andrade
Qualquer abordagem acerca do corpo humano mobiliza diversas áreas
do saber científico devido à própria heterogeneidade do objeto que é um ponto
fronteiriço entre a natureza e a cultura, pertencendo, simultaneamente, aos
mundos natural e social, individual e coletivo. A sociedade modela e regula as
necessidades corporais, tais como, os gestos, a postura, a aparência, os
desejos e a linguagem, a fim de enquadrá-las num projeto de civilidade e de
controle.
Mudanças históricas e sociais fazem com que os investimentos sobre o
corpo também mudem conforme a dinâmica cultural, sempre visando o
entendimento e o controle da corporeidade, pois, para Michel Foucault2 (2009)
o corpo é concebido como alvo do poder, objeto modelado e corrigido por ele,
no qual a sujeição física também reflete uma consciência subjugada, com
constantes cuidados e pedagogias que o perpassam, ora para civilizá-lo, ora
para ensiná-lo a ser útil e higiênico. Carmen Lúcia Soares (2004), em
consonância com a concepção foucaultiana, aborda em seu artigo Corpo,
conhecimento e educação: notas esparsas, que “governar o corpo é condição
para governar a sociedade. O controle do corpo é indissociável da esfera
política” (2004, p.112).
Deborah Thomé Sayão (2003) no texto Corpo, poder e dominação: um
diálogo com Michelle Perrot e Pierre Bourdieu, foca o modo pelo qual, esses
dois autores percebem as relações de poder, tanto no âmbito dos Estudos de
Gênero, que abarcam as manifestações feministas contra a sociedade
patriarcal, como nos estudos que referem-se à importância sócio-cultural do
2 Tomamos tal concepção de seus livros: Microfísica do poder (1985) e Vigiar e punir – história da violência nas prisões (2009).
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corpo, e concluem que independente das questões, essas relações visa o
corpo, pois ele é o lugar
onde se inscrevem os elementos culturais presentes nas experiências que os sujeitos humanos vivem ao longo de sua existência, é a primeira forma de identificação dos homens e das mulheres e locus do exercício do poder, e, portanto, não poderia ficar alheio a este debate (2003, p.122) [itálico da autora].
Entretanto, as relações de poder que perpassam o corpo não são
oriundas da modernidade, elas sempre existiram com o intuito de discipliná-lo, -
ora por intenções de embelezamento, ora religiosas, ora capitalistas -, pois, o
mesmo representa uma peça fundamental no artefato de sociedade civilizada.
No que remonta ao tempo clássico, o corpo era concebido como um
túmulo, uma moldura da alma, que prendia a inteligibilidade humana. Era a
parte obscura do homem, enquanto a alma era a sabedoria e o que o conduzia
à luz da verdade. Miguel Almir L. de Araújo em Os sentidos do corpo (1998),
explica que para os gregos
a superioridade da contemplação do mundo das idéias, da órbita do espírito na descoberta da verdade, ocorre na medida em que a alma desencarnasse da prisão sombria do corpo (ARAÚJO, 1998, p.143).
Como também notamos no fragmento abaixo de A República (1949), de
Platão, a inferioridade do corpo em relação à alma:
A mim não me parece ser o corpo, por perfeito que seja, que pela sua excelência, torne a alma boa, mas, pelo contrário, a alma boa, pela sua excelência, permite ao corpo ser o melhor possível (PLATÃO, 1949, p.136).
Na idade média, o pensamento religioso católico enfatizou ainda mais a
dicotomia entre corpo e alma. O corpo era concebido como materialidade
pecaminosa, a “abominável veste da alma” (GELIS, 2008, p. 20), que
encaminhava o homem às tentações da carne. O homem cristão deveria banir
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as vontades carnais e voltar seu corpo para ações puras aos olhos da igreja,
almejando, consequentemente, a salvação divina.
A corporeidade, no início da era moderna, passou a ser observada como
objeto de investigação científica, tendo sua anatomia e fisiologia analisada e
dissecada em laboratórios por experiências médicas. No século XVIII, com as
contribuições do filósofo e matemático René Descartes (1596-1650), o sentido
e utilidade do corpo são associados ao funcionamento do relógio e da máquina,
concebido como objeto e/ou coisa direcionado à utilidade e à produção de
capital. Confluente, Araújo (1998) fala que a lógica mecanicista e capitalista
que rege a corporeidade desdobra-se em posturas destrutivas que
desqualificam a vida humana, pois, o corpo, lugar de prazer e identificação, se
reduz em
instrumento que funcionaliza leis e normas, que operacionaliza as máquinas. Confinado à condição de máquina, de coisa produtiva, o corpo é exilado de sua potência de prazer, mutilado de sua sensibilidade. É mercadejado e consumido nos mercados de transações econômicas. Mercantilizado no consumo das imagens, tornando-se mero simulacro (ASSMAN apud ARAÚJO, 1998, p.145).
Contudo, no século XX, o corpo foi reinventado teoricamente, na medida
em que é apresentado como uma substância relacionada com a alma, existindo
ambos interativamente, sendo o ponto de percepção do ser com o mundo e
com a cultura. Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) no livro Fenomenologia da
percepção (1971), defende que é através do nosso corpo que nos situamos e
nos pomos em contato com o mundo e com o outro; assim, não estamos no
corpo, mas somos consubstanciado à ele,
porque nosso corpo é para nós o espelho de nosso ser, a não ser por ser ele um eu natural, uma corrente de existência dada, de maneira que nunca sabemos se as forças que nos conduzem são as suas ou as nossas (MERLEAU-PONTY, 1971, p.182).
Portanto, o corpo na era moderna encontra-se num espaço entre a
coação e a liberdade; é princípio de libertação e de recusa, dois movimentos
distintos que dão ao corpo moderno um perfil específico. Não é mais uma
moldura da alma ou um pedaço de matéria, como era considerado pela filosofia
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antiga, mas sim, constituição da subjetividade, visto que o ser identifica-se no e
com o mundo através de seu corpo.
Jean-Jacques Courtine, na introdução de História do corpo 3 – As
mutações do olhar: século XX (2008), aponta que três nomes foram
fundamentais na recriação teórica a respeito do corpo. O primeiro lugar ficaria
com o fundador da psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939), que ao observar a
exibição dos corpos mostrada pelo médico francês Jean-Martin Charcot (1825-
1893), decifrou a histeria e compreendeu o que constituiria o enunciado
essencial de muitas interrogações futuras: que o inconsciente fala através do
corpo. Fator fundamental que revelou a importância do somático e da imagem
do corpo na formação do sujeito, transformando o corpo humano no “berço
original de toda significação” (COURTINE, 2009, p.8). Para Maria Angélia
Teixeira (1998), o corpo que interessa à psicanálise distingue-se do organismo
e define-se “pela sua relação ao inconsciente estruturado como uma
linguagem” (1998, p.31), a qual, através do sintoma expressa uma “anatomia
significante”.
O segundo nome indicado por Courtine é o do filósofo Maurice Merleau-
Ponty que traduz a corporeidade como a encarnação da consciência que se
desdobra no tempo e no espaço como “pivô do mundo” (MERLEAU-PONTY
apud COURTINE, 2009, p.8). Segundo M.Ponty, é com o corpo próprio que
construímos a rede de significações da vida e é ele o nosso ponto de vista
sobre o mundo, ponto de abertura e revelação, sendo o corpo um todo que se
completa com todos os sentidos e percepções. E ele prossegue, dizendo que:
não estou diante do meu corpo, estou dentro do meu corpo, ou mais certamente, sou o meu corpo. Nem suas variações nem sua variante podem ser expressamente colocadas. Não contemplamos somente as relações dos segmentos de nosso corpo e as correlações do corpo visual e corpo tátil: somos nós mesmos aquele que ao mesmo tempo os vê e os toca (MERLEAU-PONTY, 1971, p.161) [grifo nosso].
O escritor e sobrevivente do Holocausto, Jorge Semprún, argumenta em
seu livro, O morto certo (2005), a importância das considerações do referido
filósofo a respeito do corpo:
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Dentre os filósofos franceses vivos, Merleau-Ponty era o mais original. A estrutura do comportamento era um livro inovador, pelo lugar dado ao corpo, à sua materialidade orgânica, à sua complexidade reflexiva, no campo da pesquisa fenomenológica (SEMPRÚN, 2005, p.143) [itálico do autor].
O terceiro e último nome mencionado é o do antropólogo e sociólogo,
Marcel Mauss (1872-1950), porque com seus estudos revela a importância do
corpo na primeira Guerra Mundial (1914–1918). Ao observar que o exército
britânico marchava diferente do francês e executavam as mesmas tarefas de
modo distinto, Mauss constata que o exército utilizava de técnicas corporais
durante os combates, usos que prosseguiriam durante a Segunda Guerra
(1939-1945). Essas técnicas mudavam conforme a sociedade e revelavam de
qual modo os soldados serviam-se de seus corpos. Stéphane Audoin-Rouzeau
(2008), com base nas pesquisas de Mauss, afirma que a postura ereta dos
soldados no combate, evidenciava que o mesmo enfrentava o perigo em pé,
postura importante para o combate, pois denunciavam que “no extremo perigo
do campo de batalha, fica-se de pé. Fisicamente, mas, ao mesmo tempo,
supõe-se moralmente” (AUDOIN-ROUZEAU, 2008, p.369).
Portanto, para Courtine, o corpo, na virada do século, foi “ligado ao
inconsciente, amarrado ao sujeito e inserido nas formas sociais de cultura”
(2008, p.8), o que desvela a importância da corporeidade no âmbito sócio-
cultural na contemporaneidade, a qual não é mais vista como apenas um
invólucro de ossos e tecidos, mas sim, a forma de expressão e de identificação
do indivíduo.
Podemos agregar a esses nomes o de Michel Foucault (2009), que
também problematiza acerca do lugar do corpo na sociedade e considera a
sexualidade como uma forma de produção de saberes e de estratégias
políticas de controle corporal. Para ele, o corpo é mediado tanto pelo prazer
como pelo poder, pois técnicas austeras regulam o indivíduo e a população, o
que é característica da sociedade moderna que produz sistemas de poder que
almejam o constante domínio do corpo social. Criam-se normas e instituições
para esquadrinhar o corpo e, consequentemente, o pensamento humano.
Desse modo, o controle corporal é um projeto para controlar uma cidade, uma
nação, de maneira metonímia, de uma parte individual para um todo social.
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Foucault explana que a sexualidade por fazer parte do corpóreo,
também encontra-se inserida no cenário sócio-político de controle, mesmo
porque a mesma sempre esteve relacionada à disciplina do corpo, imposta por
esse poder, tanto no que diz respeito ao adestramento de forças e ao
ajustamento de energias para o trabalho, como na regulação da natalidade
populacional. No seu primeiro volume da História da sexualidade – a vontade
do saber (2009), o autor explica que o controle que se exerce sobre a
sexualidade
dá lugar a vigilâncias infinitesimais, a controles constantes, a ordenações espaciais de extrema meticulosidade, a exames médicos ou psicológicos infinitos, a todo um micropoder sobre o corpo; mas, também, dá margem a medidas maciças, a estimativas estatísticas, a intervenções que visam todo o corpo social ou grupos tomados globalmente. O sexo é acesso, ao mesmo tempo, à vida do corpo e à vida da espécie (FOUCAULT, 2009, p.159).
O sujeito encontra-se circunscrito em espaços que cerceiam seu corpo e
seu prazer, adequando-os às normas e às posturas determinadas pelo controle
social de dominação. As investigações acerca do corpo encontram-se
relacionadas à constante ambição de controlá-lo e organizá-lo conforme
interesses pessoais e coletivos. Como bem coloca Foucault no livro Microfísica
do poder (1985) que, na atualidade, o bom soberano não é aquele que governa
o maior espaço territorial, mas o que possui a arte de governar e manipular o
maior número de habitantes de um determinado espaço, sendo aquele que cria
os corpos dóceis necessários para a geração de riquezas. Assim, para que
haja a docialização dos corpos, são construídas instituições totais que
configuram-se em prisões, escolas, conventos, espaços para domesticar o
indivíduo.
Vicente Deocleciano Moreira, no seu estudo sobre Graciliano Ramos e
Antonio Gramsci, intitulado Graça e Gramsci, corpos adoçados pelo amaro da
intolerância (1998), aponta que são inúmeras as instituições totais que rodeiam
o ser; elas estão por toda a parte, mascaradas como escolas, conventos,
hospitais, manicômios, quartéis, internatos, e outras extremamente fechadas
como prisões de guerra, penitenciárias e os campos de concentração. Para
Erving Goffman, citado por Moreira, tais instituições são caracterizadas por um
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mesmo perfil físico que visa o fechamento total do sujeito em relação ao social
e esse isolamento é simbolizado por construções que possuem as mesmas
características arquitetônicas com “portas fechadas, paredes altas, arame
farpado, fossas, água, florestas ou pântanos” (GOFFMAN apud MOREIRA,
1998, p.175). São espaços que cercam o ser e o seu íntimo com a finalidade
de fabricar corpos submissos; o que a concepção foucaultiana trata como
“corpos dóceis”, corpos disciplinados e treinados pelo poder, transformados em
objetos, em utilidade produtiva e animal dócil.
As prisões singularizam-se por utilizarem poderes punitivos que
prescrevem técnicas de intervenção sobre os corpos; é um campo político que
tem alcance imediato sobre o ser. São instituições que marcam, corrigem,
torturam, supliciam e sujeitam o corpo, impregnando-lhe traumas e marcas.
Acerca do papel das prisões na sociedade, Michel Foucault, em Vigiar e
Punir: nascimento das prisões (2009), as qualifica como atrozes e completas
no sentido de domesticação do homem, pois
a prisão deve ser um aparelho disciplinar exaustivo. Em vários sentidos: deve tomar a seu cargo todos os aspectos do indivíduo, seu treinamento físico, sua aptidão para o trabalho, seu comportamento cotidiano, sua atitude moral, suas disposições; a prisão, muito mais que a escola, a oficina ou exército, que implicam sempre numa certa especialização, é “onidisciplinar”. Além disso a prisão é sem exterior e sem lacuna; não se interrompe, a não ser depois de terminada totalmente sua tarefa; sua ação sobre o indivíduo deve ser ininterrupta: disciplina incessante (2009, p.222) [aspas do autor].
Confluente, Michele Perrot, em Os excluídos da história – operários,
mulheres e prisioneiros (2010), traça um interessante estudo sobre o sistema
penitenciário francês do século XIX. Ela aponta algumas características que
nos remetem tanto às prisões atuais como aos campos de concentração
nazistas, denunciando as influências existentes entre os mesmos e o
desenvolvimento cada vez mais acentuado de suas políticas excludentes, o
que vai de encontro às “intenções” iniciais das prisões, que visavam e visam à
reintegração do preso, pois esse sistema
longe de reintegrar, ele expulsa, evacua, suprime os irrecuperáveis. Mas ao mesmo tempo revela talvez sua
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finalidade oculta e verdadeira: defender a sociedade industrial burguesa fundada sobre a propriedade e o trabalho. A prisão é a ilusória válvula de segurança dessa sociedade (PERROT, 2010, p.266).
Por propósitos de segurança social, o sistema carcerário do século XIX
arquitetou vários procedimentos de exclusão total e de rompimento de
identidade do preso. De imediato, ele perdia o seu nome e ganhava no lugar
um número como identificação, não podia se comunicar com ninguém, sua
comida era reduzida a uma ração diária, a qual tinha sua porção regulada
conforme a sua produtividade nos trabalhos efetuados na prisão. Perrot
explana que essas estratégias, e tantas outras, são instrumentos
disciplinadores pertencentes à prisão, “espaço extralegal sujeito ao arbítrio do
poder”, que tem “por excelência o domínio da manipulação. Pelo seu caráter
secreto e reservado, ela constitui o primeiro elo das instituições
concentracionárias. É por isso que sua gênese atualmente nos assedia”
(PERROT, 2010, p.278).
Além das instituições totais que, desde a infância – escolas, igrejas,
hospitais -, encontram-se nas redondezas do ser, existem os micro-olhares do
poder, que vigiam constante e exaustivamente os passos do indivíduo, na
medida em que têm sob vigilância as ações dos homens, representando o olho
do poder que se dilui em todas as esferas sociais. São as cidades que
cerceiam e controlam, mantendo a disciplina idealizada, já que não se sabe
quem e de onde se observa. É o “panoptismo” (2009, p.190), que Foucault
considera como um artefato do Estado para aprisionar a alma e o corpo, as
vontades e os desejos do ser humano. Os indivíduos encontram-se observados
por inúmeras câmeras e olhos que sempre revogam uma ordem, uma lei, uma
dominação. A cidade metamorfoseia-se em uma grande disciplinadora, com
punições espalhadas por toda a parte:
Eis, então, como devemos imaginar a cidade punitiva. Nas encruzilhadas, nos jardins, à beira das estradas que são refeitas ou das pontes que são construídas, em oficinas abertas a todos, no fundo de minas que serão visitadas, mil pequenos teatros de castigos. Para cada crime, sua lei; para cada criminoso, sua pena. Pena visível, pena loquaz, que diz tudo, que explica, se justifica, convence: placas, bonés, cartazes, tabuletas, símbolos, textos lidos ou impressos, isso
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tudo repete incansavelmente o Código (FOUCAULT, 2009, p.109).
O panóptico insere-se com maior força nos espaços fechados, como
prisões e campos de concentração e desencadeia na despersonalização do
prisioneiro, já que o circunscreve e o vigia. Espaços esses, onde tudo é
coletivo, dormitórios, latrinas, trabalho, sendo impossível estar só para
satisfazer sua menor necessidade corporal. Os campos de concentração se
caracterizam por ser um espaço onde de tudo se fez para desumanizar o
preso. Assim como as prisões, os campos foram arquitetados para internar e
“reeducar” os opositores ao nazismo. Porém, não demorou para que as
máscaras caíssem e mostrassem o seu real propósito de crueldades inauditas.
Em um relatório sobre o campo de Buchenwald encontra-se escrito o seu
verdadeiro objetivo:
Missão do campo: uma fábrica de extermínio [...]. Meios de extermínio: a fome, à qual se somavam os trabalhos pesados, os insultos, as pancadas e as torturas, as barracas incrivelmente abarrotadas e as doenças (WOOD apud BECKER, 2009, p.419).
Jorge Semprún, sobrevivente do campo de Buchenwald, no seu
testemunho exposto em O morto certo (2005), perfila acerca dessa política
paulatina de extermínio de Buchenwald. Um dos aspectos torturantes
ressaltados pelo escritor é sobre a escassez de comida: “sempre havia muito
pouco pão para que eu me lembrasse dele. Tinha acabado, não podia me
lembrar” (SEMPRÚN, 2005, p.25). Num outro episódio desse livro, Semprún
descreve acerca do olhar panóptico que existia no campo. Relata que sentia-se
espetacularizado e invadido com a aglomeração de olhares, tanto dos
prisioneiros como dos soldados nazistas, que o observavam como se estivesse
num reality show, como ele próprio destaca:
Não sei si se pode medir, objetivamente, um dado desses. Medir as conseqüências do fato que nem um único ato da vida privada podia ser realizado de outro modo se não sob o olhar dos outros. Não importava que esse olhar fosse, por vezes, fraterno ou piedoso, era o próprio olhar que era insuportável. Não há nada pior do que a transparência absoluta da vida privada, onde cada um se torna o big brother do outro (SEMPRÚN, 2005, p.157) [itálico do autor].
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Como vimos, o panoptismo é um dos recursos do poder para cercear
tanto o corpo do prisioneiro como do cidadão comum, que juntamente com
outros mecanismos visam à dominação total do corpo e estão espalhados por
todos os lugares. Mediante isso, as instituições totais, sendo abertas ou
fechadas, são mecanismos do poder que em prol da legitimação da ordem
possuem o respaldo legal do Estado para profanar e despersonalizar o corpo, e
paulatinamente, eliminá-lo. Esse é o corpo encenado nos campos de
concentração nazistas. De um lado os corpos desprovidos de direito, a mercê
da própria sorte e resistência, e de outro, o corpo soberano nazista assegurado
por pensamentos racistas e progressistas.
É importante ressaltar, com base na historicidade do corpo e do seu
papel na sociedade, seja ela clássica, medieval ou moderna, que o rejunte
dessas épocas são as relações de poder que permeiam o corpo, que o
aprisiona, suplicia, martiriza, tortura, julga, menospreza, disciplina, treina,
domestica, e que produz um corpo dolorido, torturado, recalcado,
despersonalizado e dessacralizado. Para compreender como isso ocorre
durante o nazismo, é necessário inquirirmos quais foram os meios utilizados
pelos nazistas para impregnar no corpo dores e traumas, baseados nos
testemunhos de sobreviventes desse regime totalitário, que ficaram confinados
em campos concentracionários.
A arte, de modo geral, sempre representou o corpo, pois o mesmo pelo
seu caráter interdisciplinar e prenhe de significados, encena a metáfora que
agrega em si saberes individuais e coletivos, esculpida por valores, desejos e
culturas. Para Nietzsche (1844–1900), “o corpo é a grande razão, uma
multiplicidade dotada dum sentido único, uma guerra e uma paz, um rebanho e
um pastor [...]. Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria”
(apud NUNES FILHO, 1994, p.90). Assim, o corpo engendra as imagens que
se elaboram, dissolvem-se e se (re)constroem, juntamente com a história e as
influências sócio-culturais, configurando-se em artes, representações e
imagens.
Yves Michaud, no ensaio Visualizações. O corpo e as artes visuais
(2008), explica que no século XX o imaginário do corpo desfigurado têm sido
refletido constantemente nas artes, com colagens, pinturas, desenhos e
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montagens que mostram “corpos desmembrados, desarticulados, mutilados, e
rostos desfigurados e massacrados” (2008, p.549). Michaud menciona uma tela
de Francis Bacon, de 1946, que faz parte da sua tradição pictórica conhecida
como Crucificações, há nela um “olhar direto sobre o horror” e o mundo é posto
como um matadouro, pois Bacon pinta “uma figura humana torturada, retorcida
sobre si mesma, tendo ao fundo uma carcaça de boi pendurada em um gancho
de açougue” (2008, p.551). Esta imagem nos remete, por associação, a
algumas imagens narradas por Jorge Semprún, em La escritura o la vida
(1995), que figuram a animalização do corpo humano nos campos nazis, bem
como as tecnologias utilizadas nas salas de tortura para provocar a dor no
corpo. O fragmento abaixo refere-se a um episódio semelhante ocorrido logo
depois da evacuação do campo de Buchenwald, no qual Semprún mostra para
algumas mulheres militares as instalações dos campos e as leva para a sala do
crematório onde havia vários instrumentos utilizados pelos nazis para torturar
os presos, inclusive um gancho que pendurava o corpo do prisioneiro que o
deixava exposto como um animal para o abate. Ao descrever, Semprún repete
com um paralelismo anafórico a conjugação verbal “les enseñé”, que reflete a
agitação do narrador-personagem ao reavivar na memória e sentir no corpo as
experiências do campo, ao mostrar e explicar o que cada objeto significava e a
dor que cada um produzia:
Las hice entrar por la puertecita del crematorio, que llevaba al sótano. […] Les enseñé los ganchos donde colgaban a los deportados, pues el sótano del crematorio también servía de sala de tortura. Les enseñé los látigos y las porras. Les enseñé los montacargas que subían los cadáveres a la planta baja, directamente delante de la hilera de hornos (1995, p137).
Entretanto, as imagens do corpo desfigurado não são recorrentes
somente no século XX, Silke Kapp (2004), aponta que a representação da dor
e da tortura do corpo nas artes existiu em todas as épocas, como
comprovação, remete às manifestações artísticas tanto na Literatura como na
escultura, por exemplo: “na narrativa homérica de Polifemo devorando os
companheiros de Ulisses; [...] na arte cristã com seu ícone central do corpo
crucificado; na escultural luta de morte do Laocoonte [...]” (2004, p.247). Para
17
Kapp (2004), todas essas manifestações artísticas estilizam a “dor do outro” e
causam no leitor ou no expectador uma repugnância e um mal-estar. Mal-estar
esse, que segundo Márcio Seligmann-Silva, em Arte, dor e Kátharsis ou
variações sobre a arte de pintar o grito (2004), é mediado pela identificação do
leitor/expectador com aquele que sofre, como se o mesmo vivenciasse
“imaginariamente a dor no próprio corpo”, que é transmitida pelo sensorial.
Essa arte da dor, do horror, do abjeto que têm o corpo representado, para
Seligmann-Silva, não pretende dar respostas aos dilemas do homem, mas
propõe um diálogo com a mesma, o que pode evidenciar não apenas as
fraturas das identidades dos indivíduos, mas,
pode ensinar a não esperar respostas completas e prontas para os desafios impostos pelo convívio em uma sociedade agredida pelas violências tecnológica, urbana e social e acuada pela questão da diferença e pelas duas vertentes mais irracionais da “solução” dessa questão: a da globalização – que nega as diferenças – e a do fundamentalismo – que reafirma a velha ontologia racista (2004, p. 80) [aspas do autor].
Um bom exemplo literário que metaforiza as relações de dominação que
atravessam o corpo é a obra Na colônia penal (1988), de Franz Kafka. O
escritor descreve um rastelo que gravava na pele de seus prisioneiros sua
sentença de morte. A punição ocorria de modo despersonalizado, pois era a
máquina que a realizava e tinha o corpo como alvo da tortura. Segundo Jeanne
Marie Gagnebin, em Escrituras do corpo (2006), tais aspectos sobre
a aplicação da sentença, refletem o caráter premonitório da narrativa de Kafka,
pois anuncia “os massacres anônimos do século XX, nos quais a matança se
torna uma operação técnica cada vez mais subtraída à intervenção direta dos
homens” (2006, p.141), e cada vez mais sofisticada e cruel.
Como vimos, o corpo, independente da época, é manipulado pelo poder
por inúmeros interesses, e a arte, como uma representação da sociedade,
problematiza e expõe os principais conflitos humanos, inclusive a desfiguração
e a despersonalização do corpo - que é a identificação primária do ser no
mundo - produzindo uma arte tensionada por essas questões, permeada pela
dor, pelo horror e pela morte. Conforme explana Theodor W. Adorno, em
Teoria Estetica (1980), “toda experiencia estetica depende del ambiente de la
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obra, de su concreto valor, de su lugar en sentido propio y metafórico” (1980,
p.453), ou seja, arte e sociedade são esferas indissociáveis, e é com esse
legado interpretativo que propomos refletir no próximo subcapítulo acerca da
fragmentação do corpo nos campos de concentração nazistas e os motivos que
garantiram essa ação atroz.
1.1. O corpo para e no nazismo
Os campos de concentração, de modo análogo às prisões, configuram-
se em espaços extralegais, criados pelo poder com intuito de prender os
indivíduos considerados uma ameaça ao progresso e à ordem social. No
entanto, os campos nazistas ultrapassaram todos os limites de crueldades já
formulados pelo Estado. A pretensão dos campos nazis não era apenas punir
seus prisioneiros, mas suprimi-los e exterminar o maior número possível,
aumentando cada vez mais o amontoado de corpos indesejáveis.
No campo a única meta era a morte, na maioria das vezes, ela ocorria
lentamente, o que também era uma das estratégias de tortura. Era necessário
que transparecesse como uma morte natural, entretanto, a verdade é que
inúmeras torturas, tanto físicas como psicológicas, foram elaboradas para
aniquilar a passos lentos. Torturas que desqualificavam o corpo e a alma,
provocando dores indizíveis nos deportados e são perfiladas por Jorge
Semprún, em La escritura o la vida (1995); essas diversas estratégias do
sistema serão analisadas mais adiante.
O escritor italiano Primo Levi, também sobreviveu aos horrores dos
campos. Em É isto um homem? (1988), expõe o reflexo desmoralizante das
inúmeras torturas que fragmentou o seu corpo, ao ponto de ele mesmo não se
reconhecer:
Aqui estou no fundo do poço. [...] Quinze dias depois da chegada, já tenho a fome regulamentar, essa fome crônica que os homens livres desconhecem; que faz sonhar, à noite; que fica dentro de cada fragmento de nossos corpos. [...] Já apareceram, no peito de meus pés, as torpes chagas que nunca irão sarar. Empurro vagões, trabalho com a pá, desfaleço na chuva, tremo no vento; mesmo meu corpo já não é meu; meu ventre está inchado, meus membros ressequidos, meu rosto túmido de manhã e chupado à noite; alguns de nós
19
têm a pele amarelada, outros cinzenta; quando não nos vemos três ou quatros dias, custamos a reconhecer-nos (LEVI, 1988, p.35). [grifo nosso].
Nesse fragmento é desnudado o processo de desfiguração corporal que
conduzia pausadamente muitos para a morte; estágios mortais construídos
com minúcia no intuito de desmoralizar, e posteriormente, exterminar.
Os prisioneiros que não sucumbiram no campo ficaram com cicatrizes
impagáveis tanto no corpo como na memória, dessa maneira os campos
singularizam exemplarmente a crueldade das estratégias para manipular o
corpo e são erguidos, propositalmente, como um estado de exceção próprio da
guerra. Esse espaço de exceção ou estado de sítio é colocado fora do
ordenamento jurídico e penal, mas não fora dos limites de decisão do
soberano, no caso, Hitler. Cabe ressaltar que Hitler não foi o único líder que
construiu campos de concentração, e o mesmo, em nome da manutenção da
ordem e por medidas de controle, prende sob custódia, indivíduos
considerados perigosos. Esses prisioneiros, dentro desse espaço, tornam-se
homo sacer, que são seres considerados matáveis e que não merecem viver, e
por serem uma vida indigna de ser vivida, o seu homicida fica impune.
O espaço de exceção, ou melhor, os campos de concentração,
caracterizam-se por ser um lugar onde tudo é possível, segundo a fala do
filósofo italiano Giorgio Agamben em Homo sacer – o poder soberano e a vida
nua (2004):
Quem entrava no campo movia-se em uma zona de indistinção entre o externo e interno, exceção e regra, lícito e ilícito, na qual os próprios conceitos de direito subjetivo e de proteção jurídica não faziam mais sentido; além disso, se era um hebreu, ele já tinha sido privado, pelas leis de Nuremberg, dos seus direitos de cidadão e, posteriormente, no momento da ‘solução final’, completamente desnacionalizado. Na medida em que seus habitantes foram despojados de todo estatuto político e reduzidos integralmente à vida nua, o campo é também o mais absoluto espaço biopolítico que jamais tenha sido realizado, no qual o poder não tem diante de si senão a vida sem qualquer mediação (AGAMBEM, 2004, p.178).
Esse espaço, difícil de descrever com palavras, teve como alvo o corpo
dos prisioneiros, causando-lhes indescritíveis violências que objetivavam a
20
anulação total de sua existência. Vários mecanismos de despersonalização
foram utilizados, citamos como um exemplo, a utilização de cercas nos
arredores do campo, que simbolizavam a domesticação dos presos. Eles eram
caçados, acuados, abatidos, domados e depois cercados como rebanhos como
nos mostra Stéphane Audoin-Rouzeau (2008):
O arame farpado inventado para cercar os animais, e depois modificado a fim de se tornar mais perigoso ainda para a fina pele humana, tornou-se, no século XX, e sobretudo na Europa, um dos meios simples para dar a entender aos seres humanos a sua transformação corporal em rebanho doméstico para o trabalho, a fome, a epidemia e, de modo geral, para a morte (AUDOIN-ROUZEAU, 2008, p.406).
Para entendermos a importância que o corpo tinha por sua contextura
física, pela cor e sua origem, durante o nazismo, é de suma relevância dizer
que no regime concentracionário existiam milhares de corpos envolvidos que
dividiam-se em dois conjuntos: de um lado estava o corpo ariano, formado por
alemães “puros”, os quais se consideravam um grupo étnico elevado; do outro,
o corpo semita, composto na grande maioria por judeus que eram apontados
como uma raça inferior e demoníaca, também faziam parte desse grupo os
homossexuais, ciganos, deficientes psíquicos e motores, anões e indivíduos
que eram contrários aos ideais nazistas. O corpo ariano para o nazismo era o
corpo superior e, ao mesmo tempo, era o corpo que inserido no campo de
concentração torturava, prendia, ordenava e matava, tornando-se o corpo do
torturador. Em contraponto, os que faziam parte do corpo semita eram
considerados como vermes, e no campo nazi sofriam violências atrozes,
compondo o corpo torturado.
A formação desses dois grupos corporais que se polarizam foi
fundamentada por ideias e situações sociais que serviram aos alemães para
consolidar e proliferar o ódio pelos judeus, ou seja, a judeofobia, e o objetivo
era exterminar o maior número possível de semitas. O anti-semitismo
acreditava que os judeus fomentavam a divisão das nações, em particular, a
alemã. Tal preconceito baseava-se em premissas raciais e econômicas que
diziam que os judeus exploravam os trabalhadores alemães e se enriqueciam
através deles. Em consonância, Anatol Rosenfeld (1993) diz que uma das
21
causas do nazismo foi o fator econômico, pois “este fator encontrou e criou
uma situação psicológica especial, situação esta que não desapareceu com o
extermínio do nazismo e continua predominante em vastas camadas das
populações” (ROSENFELD, 1993, p.172).
Os dirigentes nazi basearam-se em uma política racista engendrada por
ideologias biologizantes e cientificistas que propuseram uma visão apocalíptica
do mundo, onde os judeus representavam o papel do demônio. Mediante tais
premissas, o nazismo apresentou um projeto de embelezamento do mundo
através da erradicação do feio, sujo, maléfico, impuro; a beleza e a harmonia
representavam os ideais da nova Alemanha. Para manter esse padrão de
beleza se impôs o ódio, a violência e a morte. Propôs-se um ideal de raça que
tinha como base a comunidade racial germânica, pois pensava-se a revolução
mediante a criação do homem novo – ariano -, em face dos judeus.
No topo da pirâmide social estavam os arianos e, no degrau mais baixo,
os judeus e todos que compunham o corpo “inimigo”. Para Hitler, as
diversidades étnicas e lingüísticas haviam enfraquecido a nação alemã, é por
isso que todas as ações nazistas promoviam a supremacia dos germânicos em
detrimento de outros povos. Pois, na sua teoria, as grandes nações foram
desenvolvidas pelas raças puras e saudáveis e, em contraponto, as nações
fracas eram compostas de raças mestiças, consideradas como subumanas,
“parasitas”, “bacilos” e “vermes” (BECKER, 2008, p.439).
Acerca da inferioridade imposta aos judeus pelos nazistas, Primo Levi
em Os afogados e os sobreviventes – os delitos, os castigos, as penas, as
impunidades (1990), em uma cena que detalha os maus tratos recebidos
inicialmente nos trens de deportação, mostra o tratamento que os judeus
recebiam e a concepção que os nazistas tinham dos mesmos:
Os SS da escolta não escondiam seu divertimento ao ver homens e mulheres agacharem-se onde podiam, nas plataformas, no meio dos trilhos; e os passageiros alemães exprimiam abertamente seu desgosto: gente como essa merece seu destino, basta ver como se comportam. Não são Menschen, seres humanos, mas animais, porcos; é evidente como a luz do sol (LEVI, 1990, p.67) [itálico do autor].
22
Existem vários estudos que apontam diversas causas para o surgimento
do nazismo, mas nenhuma delas serve como justificativa para as barbáries e
os sofrimentos ocorridos nos campos. Theodor W. Adorno e Max Horkheimer,
em Dialética do esclarecimento (1985), tentam compreender “por que a
humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano está se
afundando em uma nova espécie de barbárie” (1985, p.11). Para eles, quanto
mais esclarecido o homem se torna, simultaneamente, aumenta sua vontade
de dominação, tornando-se cada vez mais cego pelo poder. No fragmento
abaixo, Adorno e Horkheimer explanam sobre o caráter aleatório e inexplicável
do nazismo, onde qualquer um podia ser considerado como inimigo e ser
punido por uma pena que não cometeu:
Só a cegueira do anti-semitismo, sua falta de objetivo, confere uma certa verdade à explicação de que ele seria uma válvula de escape. A cólera é descarregada sobre os desamparados que chamam a atenção. E como as vitimas são intercambiáveis segundo a conjuntura: vagabundos, judeus, protestantes, católicos, cada uma delas pode tomar o lugar do assassino, na mesma volúpia cega do homicídio, tão logo se converta na norma e se sinta poderosa enquanto tal (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.160).
Tal sistema de poder com características inexplicáveis surge no final da
Primeira Guerra Mundial na Europa (1914-1918), pois com a Alemanha
derrotada estrutural e psicologicamente, cria-se o solo fértil para a proliferação
do mesmo, o que acarretaria no aumento da sede de vingança dos alemães e
do seu ódio pelos judeus, por acreditarem que eles boicotaram a Alemanha
durante a primeira grande guerra. Todavia, observa Hannah Arendt no livro
Origens do Totalitarismo (2004), que a teoria que considera os judeus como
bode expiatório durante a primeira guerra, foi uma das desculpas criadas pelos
nazistas para justificar a xenofobia judaica. Para a autora, ao mesmo tempo
que os judeus dispunham de muitas riquezas, eles eram um grupo impotente
dissolvido nos conflitos bélicos, que não opinavam e, segundo mostram alguns
registros, não influenciaram na derrota alemã, conforme ela exemplifica,
ironicamente,
23
o melhor exemplo – e a melhor refutação – dessa explicação, que é tão grata ao coração de muitos liberais, está numa anedota contada após a Primeira Grande Guerra. Um anti-semita alegava que os judeus haviam causado a guerra. A resposta foi: “Sim, os judeus e os ciclistas?. “Por que os ciclistas?”, pergunta um. “E por que os judeus?”, pergunta outro (2004, p. 25).
Entretanto, o nazismo consolidou-se e, para tanto, era necessário o
surgimento de uma figura humana para representar essa multidão alemã
revoltada. O austríaco Adolf Hitler, um pintor fracassado, que em Viena
começou a ter contato com as ideias anti-semitas e, com o apoio do povo
alemão, deu voz às muitas tendências e crenças que borbulhavam na
Alemanha nesse período. Hitler estava convencido que os judeus comunistas
haviam feito propagandas contra a Alemanha, que foram disseminadas pela
imprensa semita e propagavam a derrota dos alemães na primeira guerra. Tal
suspeita aumentou o ódio de Hitler e do povo alemão pelos judeus, ódio que
ficou mais fortalecido com o fato dos judeus serem grandes empreendedores e
possuírem vários negócios na Alemanha.
O período que vai do fim da Primeira Guerra Mundial ao advento da
Segunda, foi uma época turbulenta devido às divisões étnicas e sociais
resultantes da primeira batalha. Vários países passavam por crises econômicas
e descontentamentos políticos, sendo governados por ditaduras; como alguns
exemplos temos: Portugal, Espanha, Rússia e Itália. Na Alemanha impôs-se o
nazismo, ou nacional-socialismo, que era um regime arbitrário e singular, pois
lançou o mundo numa outra guerra e criou campos de extermínios para
aniquilar populações consideradas indesejadas. Esse regime tinha
características típicas, tais como: nacionalismo radical com hierarquias
militares, uso incondicional da violência, culto de um líder carismático -que no
caso era o Hitler-, desconsideração dos direitos e das liberdades civis, postura
antidemocrática e antissocialista.
Segundo Zygmunt Bauman argumenta, em Modernidade e ambivalência
(1999), que o Estado moderno, imbuído dum projeto de nacionalidade, age
como um jardineiro que separa a população “em plantas úteis a serem
estimuladas e cuidadosamente cultivadas e ervas daninhas a serem removidas
ou arrancadas” (1999, p.29). Com a Alemanha impregnada por valores
24
nacionalistas, não foi diferente, pois as populações que não se enquadravam
nesse projeto de nacionalidade, ou seja, os que faziam parte do corpo semita
eram banidos em prol da ordem e da construção do novo Estado alemão
ariano. Bauman coloca que, tanto o campo político como o intelectual, têm
papéis importantíssimos na formulação duma nova “ordem”:
A tarefa de duas pontas funde-se em uma: a de tornar clara e nítida a fronteira da “estrutura orgânica”, quer dizer, “excluir o meio”, e suprimir ou exterminar tudo que seja ambíguo, tudo que fique em cima do muro e portanto comprometa a distinção vital entre dentro e fora. Instaurar e manter a ordem significa fazer amigos e lutar contra os inimigos. Primeiro e antes de mais nada, porém, significa expurgar a ambivalência. No reino político, expurgar a ambivalência significa segregar ou deportar os estranhos, sancionar alguns poderes locais e colocar fora da lei aqueles não sancionados, preenchendo assim as “brechas da lei”. No reino intelectual, expurgar a ambivalência significa acima de tudo deslegitimar todos os campos de conhecimento filosoficamente incontrolados ou incontroláveis (BAUMAN, 1999, p.33) [aspas e itálico do autor].
O estado alemão encontrava-se amparado legal e politicamente para
expurgar os que eram considerados como inimigos, como os judeus e os anti-
nazistas, com a finalidade de instauração de uma Alemanha formada somente
por arianos. Walter Benjamin comenta em Para una critica de la violencia y
otros ensayos (1991), que o Estado usa da violência como um meio fundador e
conservador de direto, legitimando novas normas, assegurando estados de
exceção e violando os direitos civis de uma parcela da sociedade, por causa
dos interesses de uma outra. Mediante isso, possibilita-se o estabelecimento
de regimes totalitários que violentam cidadãos aleatoriamente e disseminam o
terror na sociedade, o que para Arendt (2004) é um instrumento que coage e
governa os corpos dóceis:
O terror, como conhecemos hoje, ataca sem provocação preliminar, e suas vitimas são inocentes até mesmo do ponto de vista do perseguidor. Esse foi o caso da Alemanha nazista, quando a campanha de terror foi dirigida contra os judeus, isto é, contra pessoas cujas características comuns eram aleatórias e independentes da conduta individual específica (ARENDT, 2004, p.26).
25
A instauração dos campos de concentração denuncia como o poder
estatal tem se utilizado cada vez mais da vida natural como um mecanismo
e/ou estratégia para sua manutenção no poder, mostrando como a política
transformou-se, conforme explica Michel Foucault (2009) e Giorgio Agamben
(2004), em biopolítica, que é a destituição dos direitos do indivíduo, o que o
coloca numa situação de domínio e faz de sua vida um objeto nas mãos de
políticas arbitrárias e que imperam baseadas no terror.
Na esteira dessa reflexão muitos que aderiram ao nazismo não
atribuíam para si a culpa pelos atos de violência e de extermínio cometidos
contra os prisioneiros, pois, havia um estado de sítio que os amparava, bem
como, sancionaram-se leis que privavam os judeus de seus direitos políticos,
como as Leis de Nuremberg. Um exemplo é o caso de Otto Adolf, conhecido
também por Eichmann, ele era comandante nazista e em abril de 1961 foi
levado a julgamento em Jerusalém sob acusações de cometer crimes contra
judeus, contra a humanidade e crimes de guerra no período da Segunda
Guerra Mundial (1939 - 1945). Contudo, ele se considerava inocente. Na sua
concepção, conforme relata Hannah Arendt no livro Eichmann em Jerusalém –
um relato sobre a banalidade do mal (1999), ele estava somente cumprindo as
ordens de Hitler, o que para o sistema não era errado. Segundo Eichmann, as
“acusações não constituíam crimes, mas ‘atos de Estado’” (1999, p.33) e “era
seu dever obedecer”, pois, “somos condecorados se vencemos e condenados
à prisão se perdemos” (1999, p.33).
A partir da concepção de higienização étnica, os nazistas exterminavam
e faziam experimentações com os corpos indignos de vida com base em
premissas biológicas e teóricas criadas antes mesmo do nazismo. Bauman
(1999) destaca que é uma ilusão pensarmos que as maiores monstruosidades
ideológicas foram formuladas por monstros; ele explica que nem sempre a
violência surgiu do estado, e registra que toda e qualquer ideologia origina-se
de uma erudição, de um estudo acadêmico que, em muitos casos, é aceita pela
sociedade e legitimada como verdade. Não se pode desconsiderar que
pensamentos como os que defendem a supremacia de uma raça em
detrimento d’outra, foram gerados, muitas vezes, em espaços de discussões
intelectuais e em épocas anteriores às guerras, e que podem ressurgir a
qualquer momento, travestidos de outros discursos e objetivos, mesmo depois
26
da queda de Hitler e do nazismo, assim como ocorreu na Alemanha, conforme
explica-nos Bauman:
O programa nazista de extermínio foi um prolongamento lógico de idéias sociobiológicas e doutrinas eugênicas que não tinham nada a ver especificamente com os judeus e que floresceram amplamente na Alemanha muitos anos antes do Terceiro Reich (BAUMAN, 1999, p.49).
Por meio do programa de eutanásia e de esterilização nazista, eram
realizadas experimentações médicas com os corpos de prisioneiros, fazendo-
lhes de cobaias e causando-lhes dores indizíveis em nome da ciência. Anões e
gêmeos eram os mais analisados dentro dos laboratórios nazis; e os judeus,
para não destruírem a pureza racial dos arianos, eram esterilizados. Segue-se
o relato de Miklos Nyiszli3, um dos assistentes que trabalhavam no laboratório
de Aushwitz4, relatando acerca das suas obrigações cotidianas no campo e a
finalidade:
Banhei os corpos de inválidos e de anões em uma solução de cloreto de sódio, e os cozi em cubas para que esses esqueletos, preparados nas regras das artes, pudessem chegar aos museus do III Reich, onde deveriam servir às gerações futuras, às quais provariam a necessidade de exterminar as raças inferiores (apud COURTINE, 2008, p.311).
Questões sobre raças superiores e inferiores são refletidas de modo
implícito por Semprún em suas narrativas. Os alemães, tanto os que
compunham o exército nazista como os cidadãos comuns, são descritos na
maioria das vezes com olhos brilhantemente azuis e compondo um nível de
superioridade em relação aos outros. Há um trecho na obra La escritura o la
vida (1995) em que ele narra um encontro que teve com um soldado alemão
antes de ser preso. O encontro ocorreu numa floresta, enquanto ambos eram
combatentes da Segunda Guerra, porém ocupando lados opostos.
3 Nyiszli fazia as dissecações dos corpos das cobaias no laboratório de Aushwitz e era assistente do doutor Mengele, um obcecado pela hereditariedade, pela raça e as transmissões das deformidades genéticas (COURTINE, Jean-Jacques. O corpo anormal – história e antropologia da deformidade. In: História do corpo III – as mutações do olhar. Século XX. Orgs. CORBIN, A., COURTINE, J.J., VIGARELLO, G. Trad. Ephraim Ferreira Alves. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2008. 4 Auschwitz foi o maior e mais famoso campo de extermínio, com uma área de 30 km² na Alta Silésia e continha mais de cem mil prisioneiros, tanto judeus como não judeus.
27
El alemán era joven, era alto, era rubio. Era absolutamente conforme a la idea de un alemán: un alemán ideal, a fin de cuentas. […] El alemán apareció en la parte alta de la orilla, en motocicleta. El motor de la máquina ronroneaba suavemente. […] a decir verdad estábamos esperando a ese alemán en concreto. A ese muchacho rubio de ojos azules. […] Estábamos esperando un alemán cualquiera, a alemanes. Los que fueran (SEMPRÚN, 1995, p.45).
O escritor, nessa obra citada, faz uso recorrente de imagens anafóricas
para destacar as características físicas do alemão, “era joven, era alto, era
rubio”; sua posição era de superioridade em relação ao Semprún, pois estava
situado na parte alta da margem do rio. Configurava um alemão em
conformidade com os ideais da raça ariana: branco, com traços marcantes e
vigor corporal, igual à grande maioria de alemães nazistas, o que é enfatizado
pelo autor ao destacar adjetivamente a condição física do alemão. Então, não
importava se era esse ou aquele alemão que estava refrescando-se no rio, o
que estava em questão era o fato de ser um alemão que enquadrava-se nos
padrões corporais arianos, para nos mostrar a anatomia e a cor da “temida
raza superior”.
A superioridade dos alemães em relação aos demais é retratada em um
outro trecho de La escritura o la vida, no qual Semprún refere-se aos olhares
dos Sturmführer S.S, os soldados nazistas que comandavam os campos; eles
são descritos em posicionamento predominantemente elevado e com
características egolátricas que os tornam impenetráveis e rígidos. Suas
imagens e seus corpos se iluminam no espaço obscuro do campo penetrado
pela neve e fumaça:
También estaban los S.S., sin duda. Pero no era fácil captar su mirada. Estaban lejos: macizos, por encima, más allá. Nuestras miradas no podían cruzarse. Pasaban atareados, arrogantes, destacándose en el cielo pálido de Buchenwald, donde flotaba el humo del crematorio (1995, p.36).
Primo Levi, químico e escritor italiano, em sua obra É isto um homem?
(1988), narra os momentos em que teve contato com os alemães enquanto
estava encarcerado em Aushwitz:
28
Com estas nossas caras chupadas, com estes crânios raspados, com esta roupa que nos envergonha, prestar um exame de Química? É claro, em alemão. E teremos que nos apresentar a algum loiro ariano Doktor. [...] Pannwitz é alto, magro, loiro; tem olhos, cabelos, nariz como todos os alemães hão de tê-los, e está sentado, formidável, atrás de uma escrivaninha cheia de papeis. Eu, Häftling 174.517, estou de pé em seu escritório, que é realmente um escritório reluzente, limpo, bem arrumado; tenho a sensação de que, se tocasse em qualquer coisa, deixaria uma marca de sujeira (1988, p.105-106).
Diferentemente de Jorge Semprún, Levi era judeu e por conta disto, teve
um tratamento bem mais atroz. Para os alemães, ele não passava de um
parasita, ao ponto de ele próprio transfigurar para si a condição de imundo,
devido à sua degradação física: com “caras chupadas”, “crânios raspados” e
com trajes desajeitados. Não possuía mais um nome, uma identidade e sim,
um número tatuado no braço, “174.517”, era apenas mais um número em
Aushwitz. Tinha que usar a língua de seus verdugos para se comunicar, que
não era a sua língua materna. Ao ser prisioneiro, seus objetos pessoais foram
retirados e foi destituído de tudo aquilo que ele representava fora do campo. No
trecho, uma cadeia de adjetivos destacam as qualidades referentes ao alemão
denotando aspectos positivos, como: “formidável”, “alto”, “magro” é até mesmo
o uso do possessivo “seu”, em “seu escritório”, evidencia as marcações de
posse dos espaços de circulação: havia um espaço que favorecia o alemão,
pois era o “seu lugar” e um “não-lugar” para Primo Levi, o que o deixava em
uma situação de submissão.
Os espaços físicos também encenam os paradoxos da relação corpo
ariano versus corpo semita. O escritório alemão, segundo descrição detalhada
do ex-prisioneiro, era “limpo”, “reluzente” e não simplesmente arrumado, mas
“bem arrumado”; a expressão adverbial “bem” realça a organização. De modo
oposto, o autor descreve o paradoxo do espaço dos presos que consistiam em
lugares sujos, fétidos e sombrios, conforme ele relata ao descrever os locais
onde trabalhavam: “a fábrica é desesperadamente, essencialmente cinzenta e
opaca. Este emaranhado sem fim de ferro, cimento, fumaça e lama é a
negação da beleza” (LEVI, 1988, p.72), configurando a extensão da condição
imunda a qual os mesmos encontravam-se.
29
O corpo ariano era o corpo supremo que ordenava e torturava. Na outra
margem, do outro lado da mesa, na parte baixa, na inferioridade da existência,
estava o corpo abandonado pela lei e pela sorte. Na marginalidade do caos e
do horror, encontravam-se os corpos que sofriam as imposições violentas dos
nazistas e, a cada dia de sobrevivência, era mais um dia de descomunal
resistência. Porém, muitos prisioneiros não suportaram as atrocidades e
sucumbiram nas súplicas de seus corpos feridos. Esses eram conhecidos no
Lager5 como “mulçumanos”, “judeus”, “morto-vivos”, “cadáveres ambulantes” e
representavam o corpo abandonado pela esperança, aquele ser que não tinha
mais o controle sob seu corpo. Giorgio Agamben, em O que resta de Auschwitz
(2008), explica que o campo no Terceiro Reich foi o reino onde todas as
barreiras ruíram; era um não-lugar no qual o mulçumano era algo indefinido
que transitava entre a humanidade e a não humanidade, entre a vida e a morte,
e sua existência evidencia exemplarmente os propósitos nazistas de extermínio
ao extremo, segundo expõe o filósofo:
O mulçumano encarna o significado antropológico do poder absoluto de forma particularmente radical. No ato de matar, de fato, o poder se auto-suprime: a morte do outro põe fim à relação social. Pelo contrário, ao submeter as suas vítimas à fome e à degradação, ganha tempo, o que lhe permite fundar um terceiro reino entre a vida e a morte. Também o mulçumano, como o amontoado de cadáveres, atesta o seu completo triunfo sobre a humanidade do homem: mesmo que se mantenha ainda vivo, aquele homem é uma figura sem nome. Ao impor tal condição, o regime encontra o próprio cumprimento... (SOFSKY apud AGAMBEN, 2008, p.55).
Em Um belo domingo (1982), Jorge Semprún descreve a figura dos
mulçumanos, com os corpos descarnados de tez amarelada que
perambulavam sem sentido, pisoteando com seus tamancos a neve, a lama, as
fezes, os restos, num tempo e num espaço residual à espera da única coisa
que lhes restavam: a própria morte. Podemos observar a condição subumana
dos mulçumanos e a sua infinita agonia de espera no fragmento abaixo da obra
supracitada:
5 A palavra alemã Lager é empregada para referir aos campos de concentração.
30
Vendo-os assim, amontoados sob a chuva fina e persistente, podia-se imaginar sua paciência infinita, a espera resignada das catástrofes que a vida lhes reservara ferozmente. Não eram nada mais do que essa paciência infinita, essa resignação que nada mais pode ferir. Sua força vital não era mais do que essa fraqueza mortal de rebanho no redil. Não fizeram perguntas, não procuravam saber por que estavam agrupados lá, o que iam fazer com eles. [...] Estavam ali, desde então, não faziam perguntas, nem mesmo murmuravam entre si, esperavam. Tinham sido arrumados, manipulados, como se arranjam ou manipulam sacos de cimento, troncos de árvores, pedras. Uma centena por fileira, seis fileiras. Eram seiscentos, apertados uns contra os outros, esperando (SEMPRÚN, 1982, p.252).
O mulçumano reflete o estágio limite do indivíduo inserido em um
sistema de poder sem limites, tal como foi o regime nazista. Segundo registram
os estudiosos deste genocídio, as mais indescritíveis e inimagináveis violências
foram praticadas nos campos nazistas, todas elas se praticaram com o fim de
desumanizar, coisificar e animalizar os corpos dos prisioneiros. Aqueles que
não sucumbiram, ficaram marcados com tatuagens no corpo e na memória,
cicatrizes indeléveis que configuram todo o horror vivenciado durante o
encarceramento. Muitos foram libertos, mas a dor guardada em suas memórias
não parou de doer e mesmo querendo esquecer remetiam-lhes cotidianamente
para o espaço funesto dos campos.
A dessacralização do corpo, sua desfiguração paulatina, a tortura, a
aniquilação e os traumas são deixados ao descoberto em uma narrativa
carregada de ressentimento, dor e rancor na singular obra escrita por Semprún,
em La escritura o la vida (1995); sua experiência é exposta para nos mostrar
de que maneira o escritor sobrevivente configura artisticamente essa
fragmentação da existência no campo nazi.
31
2. Jorge Semprún: Fragmentação do corpo. Escritura fragmentada
No capítulo anterior, à luz de Merleau-Ponty (1971), refletimos acerca da
relevância do corpo na contemporaneidade, que é considerado como ponto de
abertura do ser com o mundo e configura em seus gestos e posturas a
metáfora viva de uma existência histórica e cultural, sendo, ao mesmo tempo,
objeto do poder que o domina e manipula conforme interesses políticos e
econômicos. Com esse legado interpretativo compreendemos a importância da
corporeidade durante o regime totalitário nazista, que baseado em premissas
raciais e biológicas, exterminou e torturou o corpo daqueles considerados como
uma raça inferior e opositores ao “progresso” civilizatório e econômico da
Alemanha liderada por Hitler.
O escritor espanhol e sobrevivente do Holocausto, Jorge Semprún, em
sua obra, La escritura o la vida (2005), perfila o seu testemunho acerca da
traumática experiência vivenciada no campo alemão de Buchenwald. Por meio
desse testemunho apreendemos o modo como o corpo foi dessacralizado e os
mecanismos utilizados pelos soldados nazistas para fragmentar e exterminar,
de maneira paulatina, os corpos dos prisioneiros. Jorge Semprún é o exemplo
vivo desta experiência catastrófica que o transformou corporal e
psicologicamente, influenciando relativamente em sua relação consigo, com os
outros e com o seu fazer artístico.
Notamos nessa obra de Semprún, uma narrativa prenhe de lacunas,
constantemente entrecortada por outros textos e pelo fluxo da memória. Este
gesto encena que sua arte literária ficou marcada pelo passado de horror e de
dor, fazendo com que suas narrativas tenham uma singularidade estética, um
estilo próprio que reflete e revela as impressões e experiências do escritor.
Portanto, refletimos que sua escritura é uma extensão plástica de si, um corpo
que engendra através de vários recursos elípticos, a fragmentação do corpo
nos campos de concentração. Fragmentação exposta tanto na estrutura como
na temática da obra e que será analisada no desenvolvimento deste trabalho.
32
La escritura o la vida (1995) desvela a cicatriz inscrita no corpo e na
memória do sobrevivente cindido pelo trauma. Trauma constante que
impossibilitou por quase cinqüenta anos a publicação dessa obra, a qual teve a
escritura iniciada e enlutada inúmeras vezes devido a um esquecimento
propositalmente projetado por Semprún, como um modo de sobrevivência. Isso
pode ser explicado pelo fato de que para o escritor espanhol o processo de
escritura o levaria de volta para a morte, da qual ele sempre tentava fugir.
Todavia, o escritor tinha consciência da importância de seu testemunho
na formação da memória coletiva acerca do Holocausto, sabia que competiria a
ele e aos outros escritores sobreviventes preservarem a memória da morte de
muitos companheiros. Ele próprio argumenta, em um episódio do texto acerca
de sua condição de sobrevivente:
Si yo no hubiera sido una parcela de la memoria colectiva de nuestra muerte, la pregunta no me habría irritado. En lo esencial, yo sólo era un resíduo consciente de toda esta muerte (SEMPRÚN, 1995, p.136).
Semprún compartilhou fraternalmente das mortes de seus companheiros
e inseriu-se nelas, pois, parte de si sucumbiu com eles. A outra parte restante,
o resíduo de uma existência traumatizada, deveria, na concepção do escritor,
fixar-se no tempo e no espaço como testemunho, representando as vozes
silenciadas no Lager. Seguindo essa perspectiva, Márcio Seligmann-Silva, no
artigo Testemunho e a política da memória: o tempo depois da catástrofe
(2005), descreve que a Literatura de Testemunho
possui um papel aglutinador de um grupo de pessoas [...] que constroem a sua identidade a partir dessa identificação em essa ‘memória coletiva’ de perseguições, de mortes e dos sobreviventes (SELIGMANN-SILVA, 2005, p.87).
Diante de tais considerações, observamos que o escritor publica sua
primeira obra, El largo viaje (1963), dezoito anos depois da sua libertação, na
qual ele narra episódios referentes ao campo de concentração. Todavia,
grande parte da crítica não a considera de cunho testemunhal, para o
pesquisador Seligmann-Silva, em Testemunho: entre ficção e o real (2005), a
grande maioria das obras de Semprún são romances, nos quais “a sua
33
experiência é narrada em meio a um enredo que mistura ficção e realidade”
(p.384), e segue dizendo que existem aquelas com caráter de testemunho
autobiográfico como La escritura o la vida (1995), que foi publicada quarenta e
nove anos depois da sua soltura. Contudo, neste ínterim Semprún publicou
outras obras, algumas delas são: El desvanecimiento (1967), La segunda
muerte de Ramón Mercader (1969), Autobiografía de Federico Sánchez (1977),
Aquel Domingo (1980), La Algarabía (1981), La montaña blanca (1986),
Netchaiev há vuelto (1987), Federico Sánchez se despide de ustedes (1993),
Adiós, luz de veranos (1998), Viviré con su nombre, morirá con el mío (2001),
Veinte años y un día (2003).
Para Jorge Semprún, somente a arte poderia configurar a essência mais
atroz da barbárie nos campos nazi, pois com seus recursos estéticos, ela
transmitiria o inimaginável. Entretanto, o escritor negou diversas vezes sua
condição de testemunha na medida em que considerava que ao colocar-se em
narrador e personagem em sua narrativa de testemunho, era o mesmo que
estar envolvido novamente com a matéria mortífera de Buchenwald. Em
algumas publicações anteriores à de 1995, ele relata sobre o campo de
concentração, no entanto, evita narrar a respeito das atrocidades vivenciadas
no campo. Às vezes, o escritor inventa personagens e episódios e faz uso do
narrador em terceira pessoa para manter uma proposital e necessária distância
narrativa, conforme o próprio ressalta:
Me expulsé del relato. Retomé el orden previsto, la articulación narrativa cuya progresión ya tenía establecida previamente. Volví a la tercera persona de lo universal: al “él” del dios de las novelas y de las mitologías (SEMPRÚN, 1995, p.247).
Em Aquel domingo (1980), ao invés de mostrar o árduo cotidiano
semanal de Buchenwald, o escritor narra os dias de domingo, que eram os dias
em que os prisioneiros tinham “uma folga” dos trabalhos forçados e podiam se
reunir. O domingo é mostrado como um dia de possível fugacidade dos outros
seis dias de eternas torturas. Ao falar sobre os dias de domingo, Semprún
descreve as atividades culturais praticadas pelos presos, as divisões políticas
existentes em Buchenwald que favoreciam alguns e as formas encontradas por
cada um para “amenizar” a carência e a dor:
34
- ¡La profundidad de los domingos! Está el burdel, para aquellos que tienen derecho a ello, que son pocos. Están los intercambios de todo tipo. Está el amor homosexual, con frecuencia relacionado con el interés o con el abuso de una posición de poder, pero no siempre… Fruto asimismo de la mera pasión, de la pasión pura. Están las canciones de Zarah Leander, las orquestras clandestinas, las representaciones teatrales improvisadas… Están las reuniones políticas, el entrenamiento de los grupos de combate de la Resistencia internacional (SEMPRÚN, 1995, p.181).
É importante ressaltar que a maioria de suas obras são, em certa
medida, potencialmente autobiográficas, pois, são produzidas por um eu
preenchido pelas suas impressões e experiências de vida, principalmente as
que foram vivenciadas nos campos nazi. O próprio autor argumenta que alguns
episódios descritos na obra de 1995, reaparecem em outras, embora quase
sempre de forma recriada e em contextos diferentes.
A pesquisadora Alba Olmi (2006), em um estudo que faz sobre a
escritora Virginia Woolf, explica que há uma confluência entre ficção e memória
nas narrativas da autora, onde a “ficção e o memorialismo se fundem como as
duas faces de uma mesma moeda, num binômio solidário em que a escritora
se realiza através de si mesma e da criação ficcional” (2006, p.107). Este
binômio é perceptível nas narrativas semprunianas, já que o mesmo não relata
ou documenta a sua experiência concentracionária, mas a traz permeada de
um cuidado estético para suscitar no leitor, através da imaginação, o que é
inefável. É no espaço literário que o escritor encontra os artifícios necessários
para plasmar o horror do Holocausto, segundo o mesmo afirma:
Me imagino que habrá testimonios en abundancia… Valdrán lo que valga la mirada del testigo, su agudeza, su perspicacia… Y luego habrá documentos… Más tarde, los historiadores recogerán, recopilarán, analizarán unos y otros: harán con todo ello obras muy eruditas… Todo se dirá, constará en ellas… Todo será verdad… Salvo que faltará la verdad esencial, aquella que jamás ninguna reconstrucción histórica podrá alcanzar, por perfecta y o omnicomprensiva que sea… la verdad esencial de la experiencia, no es transmisible… O mejor dicho, sólo lo es mediante la escritura literaria… (p.141).
35
A partir dessas reflexões acerca da narrativa sempruniana e sobre o
papel da arte no processo de representação da catástrofe, verificaremos nos
próximos capítulos, de que modo são engendradas, esteticamente, essas
questões tanto na forma como no conteúdo da obra La escritura o la vida
(1995).
36
2.1. Despersonalização, tortura e dor: A dessacrali zação do corpo e os
reflexos da barbárie
Como vimos, os campos de concentração nazistas foram espaços
especialmente arquitetados para profanar o que era mais sagrado no indivíduo:
o seu corpo. Não bastava prendê-lo ou matá-lo, mas sim causar-lhe dores
inauditas, por meio de vários mecanismos de torturas, que, a passos lentos,
desfiguravam o corpo do prisioneiro, ao ponto do mesmo, em poucos dias, não
se reconhecer mais no seu corpo. O corpo próprio, espaço de liberdade e
prazeres, dentro dos campos, tornava-se corpo-objeto, manipulado pelo ódio e
pela crueldade.
Nos campos, o mal foi totalmente banalizado, o extermínio era aleatório
e disseminava-se por toda parte, os prisioneiros aptos fisicamente eram
selecionados para o trabalho, enquanto os outros, morriam em furgões de gás
ou por envenenamento com monóxido de carbono. Até mesmo a retirada dos
cadáveres das câmaras de gás e dos fornos crematórios era realizada pelos
próprios prisioneiros. Eles recebiam ordens para extraírem os dentes e os
cabelos dos mortos, convertendo-se em carrascos de seus próprios
companheiros; os que executavam essa sórdida tarefa eram conhecidos como
Sonderkommando. Primo Levi, no livro Afogados e sobreviventes (1990), traz o
depoimento de dois sobreviventes que faziam parte do Sonderkommando e de
como foi para eles enfrentarem essa situação inexplicável:
Um deles declarou: “Ao realizar esse trabalho, ou se enlouquece no primeiro dia, ou então se acostuma”. Mas outro disse: “Por certo, teria podido matar-me ou deixar matar; mas eu queria sobreviver, para vingar-me e para dar testemunho. Vocês não devem acreditar que nós somos monstros, somos como vocês, só que muito mais infelizes” (LEVI,1990, p.28).
Os soldados nazistas, jogando com a existência dos detentos, os
colocavam em situações humilhantes. Semprún, em La escritura o la vida
(1995), relata que os SS ordenavam que os presos formassem duplas para a
37
execução de trabalhos forçados, e debaixo de socos e pontapés, faziam os
carregamentos de pedras. Os pares eram sempre díspares, compostos por
homens com capacidades e resistências físicas distintas, um gordo com um
alto, um forte com um aleijado, o que tinha por finalidade dificultar as tarefas e
originar conflitos entre eles, o que fazia com que os sádicos soldados se
deleitassem com o espetáculo como se assistissem a uma peça teatral.
Os campos nazistas eram lugares onde os limites não existiam e
qualquer abjeção contra os deportados era permitida. Os presos eram
transformados em simples objetos-máquinas para o trabalho e marionetes para
a satisfação dos SS que sentiam prazer em observá-lo nessas condições.
Anatol Rosenfeld (1993) comenta que entre os nazistas havia um exacerbado
sadomasoquismo que refletia “a vontade doentia de poder e dominação, ligada
a uma ânsia, igualmente doentia, de submissão e autodiminuição”
(ROSENFELD, 1993, p.174). Para Maria Rita Kehl (2004), toda forma de
dominação e de tortura reduz o ser à vida nua e anula a sua condição de
sociabilidade e cidadania. Assim, ele rompe com a sociedade e teme outras
pessoas, pois todos se transformam em estranhos torturadores. A autora
reflete sobre o fato de que
alguém seja capaz de gozar do nosso sofrimento, por sadismo ou por identificação, já constitui uma lesão no laço que nos une, com maior ou menor intimidade, a um outro qualquer (2004, p.15).
A banalidade do mal era tão extrema que matava-se um preso como se
fosse um inseto, sem mais nem menos. Ele podia morrer a qualquer instante,
por fome, por debilidade física ou porque o campo estava superlotado.
Entretanto, às vezes ocorria a redução de mortes por receio do esvaziamento
dos campos, configurando-se em um lugar permeado pela dúvida e pela
aleatoriedade, prenhe de perguntas e não respostas. Hannah Arendt (1989)
aponta que é difícil traçar um paralelo de comparação entre os campos nazi e
outras formas de prisão ou escravidão, devido ao fato de que sua configuração
de horror transborda os limites da imaginação humana, só podendo “ser
descritos com imagens extraterrenas” correlacionadas às três fases
38
correspondentes de uma vida após morte, as quais seriam “o Limbo, o
Purgatório e o Inferno” (ARENDT, 1989, p.496). E prossegue:
Os três tipos têm uma coisa em comum: as massas humanas que eles detêm são tratadas como se já não existissem, [...] como se já estivessem mortas e algum espírito mau, tomado de alguma loucura, brincasse de suspendê-las por certo tempo entre a vida e a morte, antes de admiti-las na paz eterna (1989, p.496).
A desmoralização e a violência era imediata à captura dos presos, a
própria precariedade dos vagões que os transportavam, indiciava o início da
projetada crueldade nazista, conforme retrata Levi:
Constante era o despojamento total dos vagões; as autoridades alemãs, para uma viagem que podia durar até duas semanas, [...] não providenciavam literalmente nada: nem víveres, nem água, nem esteiras ou palha no chão de madeira, nem recipientes para as necessidades corporais; e muito menos se preocupavam em advertir as autoridades locais, ou os dirigentes (quando existiam) dos campos de triagem, no sentido de providenciarem alguma coisa. Um aviso não custaria nada: mas, justamente, essa negligência sistemática se resolvia numa crueldade inútil, numa criação deliberada de dor como um fim em si mesma (LEVI, 1990, p.65).
Após longos e árduos dias de viagem, os deportados chegavam ao
Lager, cansados, assustados e sem compreender, segundo manifesta Levi. A
dessacralização do corpo iniciava-se nesse momento, pois recebiam ordens
para se despirem diante dos outros presos, seus objetos pessoais eram
tomados, seus cabelos e pêlos raspados e seus nomes eram trocados por um
número de matrícula. Em alguns campos, como em Auschwitz, o número era
tatuado no antebraço e o campo ficava inscrito no corpo. Evguenia Guinzbourg
relata que essas estratégias de desumanização eram praticadas com total
frieza e crueldade pelos soldados, como exemplo cita: “Um guarda que devia
atravessar o pátio nem se preocupou em contornar os montinhos de fotos e
pisou com o pé ali, bem no meio do rosto de nossos filhos” (apud BECKER,
2008, p. 431). A crise de identidade ocorria logo na chegada. Tamanha era a
39
ofensa, que eles não conseguiam encontrar palavras para expressar tudo o
que lhes ocorrera. Primo Levi tenta dimensiona-lo ao leitor:
Imagine-se, agora, um homem privado não apenas dos seres queridos, mas de sua casa, seus hábitos, suas roupas, tudo, enfim, rigorosamente tudo que possuía; ele será um ser vazio, reduzido a puro sofrimento e carência, esquecido de dignidade e discernimento – pois quem perde tudo, muitas vezes perde a sim mesmo (2008, p.25).
A frieza dos SS é relatada por Semprún num trecho que refere-se ao
momento da chegada dos deportados nos campos. Literariamente, ele
configura o processo de zoomorfização dos soldados, na medida em que são
descritos emitindo sons de modo “gutural y primitivo” e comunicando-se com
palavras curtas, simbolizando a brutalidade dois animais selvagens. Isso
evidencia que os SS não se sensibilizavam com a humanidade fragmentada,
pois suas atitudes eram de desprezo e expressando ódio no olhar: “un odio
obtuso, bien es verdad, presa de un desasosiego perceptible” (SEMPRÚN,
1995, p.36). No trecho que segue, é desvelada a animalização dos SS, bem
como, a retirada dos objetos e das roupas também é narrada com bastante
detalhe, o que mostra o início intempestivo da ruptura de identidade daqueles
que entravam nos campos:
Teníamos que desnudarnos, dejar todas nuestras ropas, nuestros objetos personales encima de una especie de mostrador. Los individuos que impartían las órdenes, en un alemán gutural y primitivo, casi monosilábico, eran jóvenes (SEMPRÚN, 1995, p.97).
O fato de ficar nu diante de outros representava a profanação do que era
mais sagrado para o preso, o seu corpo, pois afrontava o seu pudor e o seu
caráter, ao passo que era ridicularizado e humilhado. O corpo próprio de
outrora, que alude á existência, tornava-se corpo-objeto, exposto, manipulado e
infligido, causando-lhe, pouco a pouco, a despersonalização e a desfiguração.
Jorge Semprún tece, mediante seu testemunho, a exposição do corpo
desnudado e usa uma expressão hiperbólica, “en cueros vivos”, para referir-se
à nudez a que se expunha aos outros prisioneiros e, concomitantemente,
mostrar a condição animalesca imposta aos detentos:
40
Allí, unos peluqueros, armados con esquiladoras eléctricas cuyos cables colgaban del techo, nos afeitaban con rudeza el cráneo, todo el cuerpo. […] Ni tenía uno tiempo de morirse de risa o de asco, al contemplar el espectáculo que ofrecían todos esos cuerpos en cueros vivos (SEMPRÚN, 1995, p.98).
A partir desse gesto rude e violento de raspagem dos cabelos que sofreu
o mesmo autor, pode-se imaginar a despersonalização que começaram a
sofrer os deportados, mais ainda, com a repartição das roupas para serem
usadas como uniforme de presidiário, que na maioria das vezes, não eram
compatíveis às suas medidas ou estavam rasgadas, causando-lhes
desconforto e vergonha, já que partes de seus corpos ficavam sempre
desnudadas aos demais. Semprún descreve que os sapatos que recebiam
eram tamancos rudimentares de madeira, desconfortáveis e dificultavam a
locomoção para realizar os trabalhos: “correr por la nieve con semejante
calzado era un auténtico suplicio” (SEMPRUN, 1995, p.100). Consoante, Levi
narra que os próprios tamancos já eram instrumentos de tortura, pois após
algumas horas de uso eles criavam feridas e inchaços nos pés, o que
atrapalhava nas tarefas:
a gente, então caminha como se tivesse uma bola de ferro amarrado nos pés [...]; sempre chega por último, e sempre apanha” (1988, p.33).
Com o passar dos dias de detenção o corpo ia, progressivamente,
desfigurando-se, padecia de maneira permanente às violências que alteravam
o seu funcionamento, ao ponto do preso não tê-lo mais sob controle. Muitos
perdiam o controle de si e não discerniam mais entre o bem e o mal, apenas
transitavam com o corpo enfraquecido pela fome, pela insônia, pelo trabalho
exaustivo, pelas infinitas torturas físicas e psíquicas que os transformavam em
“zumbis”, “cadáveres ambulantes”, “mulçumano”, perambulando entre a vida e
a morte, sem nenhuma esperança. Acerca dos “mulçumanos”, Semprún explica
que esse estágio a que muitos presos chegavam, era desalentador; era
deprimente observar seus companheiros nessa forma subumana,
movimentando-se com enorme sofrimento e esforço, extremamente magros e
débeis:
41
Los había visto en el edificio de las letrinas, en las salas de la enfermería, despavoridos, desplazándose con infinita lentitud, a modo de cadáveres vivientes, semidesnudos, de interminables piernas esqueléticas, colgándose de los montantes de las literas para progresar paso a paso, con un movimiento imperceptible de sonámbulos (SEMPRÚN,1995, p.58).
A prisão diminuía o espaço de locomoção do corpo, atrofiava-lhe os
movimentos e a liberdade. O corpo emagrecia e se encolhia, rapidamente,
devido à sobrecarga de trabalho, a desnutrição, a sede e os maus tratos; em
poucas semanas, jovens viravam velhos, com corpos esqueleticamente
magros, com a pele flácida, amarelada e o rosto descarnado. Um dos maiores
tormentos era a fome. Os presos eram reduzidos a uma dieta mínima a base
de pão preto e sopa muito rala conhecida no campo como ração. Tal dieta não
oferecia a nutrição necessária para manterem-se vivos e, tampouco, para
executarem os trabalhos. A pouca e desnutrida comida não saciava a fome que
se tornava crônica, ao ponto de ocasionar, em muitos, a perda do paladar.
Conta-nos Semprún, que sempre havia muita fome para tão pouca comida:
Por mucho que se masticara lo más lentamente posible la rodaja de pan negro, cortada en pedazos diminutos, siempre llegaba el momento en el que se acababa. Era como si nada hubiera ocurrido: se había acabado el pan negro, la boca seguía vacía y el estómago también. Nada, sino el hambre que volvía en el acto (SEMPRÚN, 1995, p.219).
Estudos afirmam que a ração dos campos tinha menos de 200 calorias;
calcula-se que, com uma dieta dessa e sem se esforçar fisicamente, uma
pessoa consiga viver no máximo oito meses. Porém, muitos prisioneiros
ultrapassaram os limites da ciência, sobreviveram mais do que o previsto
simbolizando a resistência além do limite. Devido a fome e a falta de vitaminas
muitos sofriam de pelagra, ou também conhecida como a doença dos 3 D’s,
que consistia primeiro no surgimento de uma inflamação na pele, a dermatite, e
recorrentemente, a diarréia e a demência. O poeta russo, Varlam Chamalov em
A luva (2003), descreve essa doença que atingia a pele e a despedaçava: “Era
curioso ver a própria pele soltar-se da carne em placas inteiras, ver as costas
42
se esfolhando, o ventre, as mãos” (apud BECKER, 2008, p.423). A pele do
homem, tecido que pela espessura e consistência diferencia-se do animal, era
o primeiro elemento que no campo fragmentava-se devido à flacidez e às
inflamações, colocando-o na fronteira da animalização.
A distribuição de comida era outro ato de tortura. Muitas vezes o guarda
derramava, propositalmente, a sopa no chão, fazendo com que o faminto
deportado ficasse de quatro patas e rastejasse para lamber, utilizando a mão
como colher. Além de bestializá-lo, pondo-o em condição submissa de animal
selvagem, feria sua dignidade de homem. A tortura do corpo também ocorria
durante o trabalho nas pedreiras. Com a ausência de ferramentas todos os
procedimentos de cavação, retirada de árvores e mineração eram realizados
usando a força física dos prisioneiros. A falta de talheres era também uma
forma de torturar. Levi relata-nos que comer a sopa sem a colher era outro
suplício, o mesmo denuncia que após a libertação, foram encontradas nos
depósitos nazistas milhares de colheres de todos os tipos, o que revela que a
falta não se tratava de uma questão econômica, mas, de mais um recurso de
humilhação:
A mesma sensação debilitante de impotência e de destituição era provocada, nos primeiros dias de confinamento, pela falta de uma colher: é este um detalhe que pode parecer marginal a quem está habituado desde a infância à abundância de apetrechos de que dispõe até a mais pobre das cozinhas, mas marginal não era. Sem colher, a sopa cotidiana não podia ser consumida senão sorvendo-a como fazem os cães (LEVI, 1990, p.69).
A abstinência de comida imposta aos presos causou-lhes sérios
distúrbios, muitos, mesmo depois da libertação, morreram por causa da
comida, não da sua falta, mas do seu excesso. Semprún conta a história de
Morales, ex-companheiro de Buchenwald, descrito como bravo combatente,
sobrevivente de vários perigos, inclusive os do campo, que por alimentar-se
adequadamente após liberto sofreu um desajuste intestinal que o levou à
morte. Sobre a morte do amigo o escritor registra o fato com uma expressão
irônica e hiperbólica “no hay derecho, morirse tontamente de cagalera, tras
tantas ocasiones de morir empuñando las armas” (1995, p.207). O autor
indignado com a morte do companheiro alude a esse momento para mostrar
43
que mesmo depois de libertos, muitos padeciam com enfermidades oriundas
dos maus tratos dos campos:
Cuando se le ofrecía otra vez la ocasión de morir empuñando las armas, en la guerrilla anti-franquista, en España, como testimonio de libertad, precisamente, era estúpido morir de una disentería fulminante provocada por una alimentación que de repente se había vuelto demasiado abundante para su organismo debilitado (1995, p.208).
Dentre todas as táticas de profanação usadas pelos SS a tortura era
uma das mais brutais, tanto as físicas como as psicológicas visavam à
completa aniquilação do sujeito através do sofrimento. Na maioria das vezes
eram utilizadas para conseguirem informações sobre os inimigos, como nomes,
refúgios e planos do adversário. Muitos presos, apesar das dores indizíveis,
suportavam e não entregavam seus companheiros, mesmo que isso lhes
custasse a vida; mas, outros confessavam e sofriam ainda mais por delatar
segredos que faziam parte de sua existência. A tortura, abrupta e
simplesmente, dilacerava o ser deixando-lhe marcas visíveis no corpo para que
fossem sempre rememoradas. Para Ivete Keil (2004), a tortura causa a ruptura
do sujeito, pois o seu corpo é invadido e torturado por outro corpo, o que rompe
a sua relação com as outras pessoas e consigo mesmo. Conforme a ensaísta
coloca: “o corpo torturado é lugar de ruptura, da mais radical estranheza, mas
é, sobretudo, lugar de encontro com o mal” (KEIL, 2004, p.58).
O corpo aniquilado pela tortura produz em si um mundo permeado pelo
medo e pela dor, no qual existe apenas a imagem do torturador e do torturado.
Dicotomia que encena a ação do poder com suas tecnologias, estratégias e
instrumentos para infligir a dor, como uma repressão necessária e legitimada a
fim de propósitos de instauração da ordem ou da manutenção da mesma. Para
a autora, “o discurso do poder penetra em toda a sociedade, e cada indivíduo
passa a ser o seu próprio torturador e o torturador de seu próximo” (KEIL,
2004, p.59), refletindo que é através da tortura que o poder se mostra.
A tortura, como um dos instrumentos do poder, sempre existiu nas
sociedades, prescrevendo no corpo do prisioneiro as punições. O corpo torna-
se alvo por ser o ponto de percepção sócio-cultural de sua existência, que
44
encena uma metáfora viva de agregar em si sinais de uma essência e de uma
identidade. É por isto que o sofrimento se dimensiona mais intenso. O corpo
invadido pela dor, abala-se e aniquila-se, lentamente, pois fragmenta suas
estruturas físicas e psicológicas, causando o deterioração total.
Para Mario Fleig (2004) a dor corporal é aquela provocada pela lesão
dos tecidos, algo que fere o físico, enquanto que a dor psíquica é oriunda de
um rompimento do laço íntimo com a imagem de si mesmo, a partir do
momento que a pessoa não se reconhece mais naquela imagem desfigurada
de seu corpo. É através da dor que conhecemos nosso corpo, as suas queixas
denunciam a presença de estímulos prejudiciais; entrar em contato com a dor é
“um caminho de se experimentar e de se conhecer, sentir a densidade da
existência, de si mesmo e do outro” (FLEIG, 2004, p.134).
Jorge Semprún, ao relatar as torturas que sofreu, demonstra que as
dores que dilaceravam suas entranhas e seu íntimo, fizeram-lhe conhecer a
autoridade do seu corpo, sua importância e a sua ligação com ele. Pois,
mediante a dor paulatina da tortura, seu corpo pedia-lhe para que confessasse,
como o descreve através de imagens metafóricas e sinestésicas que revelam o
estranhamento e o subterrâneo que ocasiona a tortura ao travar uma luta
interior para separar o narrador-personagem de seu próprio corpo:
Había descubierto mi cuerpo de nuevo, su realidad por sí misma, su opacidad, también su autonomía en sublevación, a los diecinueve años en Auxerre, en un chalet de la Gestapo, en el transcurso de los interrogatorios. De repente mi cuerpo se volvía problemático, se despegaba de mí, vivía de esta separación, para sí, contra mí, en la agonía del dolor. Los esbirros de Haas, el jefe de la Gestapo local, me colgaban en el aire, con los brazos estirados hacia atrás y las manos sujetas en la espalda por unas esposas. Me sumergían la cabeza en el agua de bañera, que ensuciaban deliberadamente con desperdicios y excrementos. (SEMPRÚN, 1995, p.126).
O autor expõe que para sobreviver às torturas era necessário romper
com o corpo para não sucumbir nas suas súplicas, e esse suplício e
rompimento era cotidiano, pois viver nos campos nazi era o mesmo que
sobreviver aos mesmos maus tratos para estar pronto para outros sofrimentos.
Esse processo de ruptura entre o sujeito e o seu corpo frente às torturas
45
cotidianas do Lager, foi o modo de sobrevivência encontrado por muitos.
Todavia, muitos ficaram com seqüelas corporais e mentais, marcas que
singularizam a condição fragmentada desse indivíduo sobrevivente do
Holocausto.
Segundo Selligmann-Silva e Nestrovski (2000), a palavra holocausto6,
que em grego significa “oferenda sacrifical”, designa a barbárie nazista também
conhecida como “catástrofe”, que em grego quer dizer “virada para baixo”,
“desabamento”, ou “desastre” (2000, p.8), ou podendo ser substituída pela
palavra hebraica, Shoah, que têm o mesmo sentido e é mais apta ao contexto.
Todas elas remetem ao horror do campo nazista e às seqüelas deixadas por
ele mesmo depois do fim da guerra. Após ter atravessado a catástrofe e, ao
mesmo tempo, ter sido atravessado por ela, o sobrevivente traz em si cicatrizes
que se manifestam através de traumas, conduzindo-o sempre para o passado
aterrorizante dos campos. Com a vida “virada para baixo”, o sobrevivente
torna-se um outro, um desconhecido, regressa com traumas e esvaziado de
identificação, pois, conforme explica o psiquiatra mexicano Nestor Braunstein
(2002):
O trauma corta a vida em duas partes: antes e depois. Só que aquele que se foi não é o mesmo de antes. Um morreu; outro ficou em seu lugar (apud OLMI, 2006, p.38).
Semprún explica que após a libertação sentia-se um outro, ao ponto de
comparar-se a um fantasma por ter atravessado e vivido tantas morte. Como
se ele próprio fosse uma assombração que saiu do túmulo, o que causava
espanto em quem o mirava, escreve:
He comprendido de repente que tenían razón esos militares para asustarse, para evitar mi mirada. Pues no había realmente sobrevivido a la muerte, no la había evitado. No me había librado de ella. La había recorrido, más bien, de una punta a otra. Había recorrido sus caminos, me había perdido en ellos y me había vuelto a encontrar, comarca inmensa donde chorrea la ausencia. Yo era un aparecido, en suma. Siempre asustan los aparecidos (1995, p.27).
6 Estima-se, aproximadamente, que dezoito milhões de pessoas foram exterminadas no holocausto, o número de mortos divide-se em seis milhões de judeus e doze milhões de não-judeus.
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Sobre o trauma deixado nos sobreviventes do Holocausto, Jeanne Marie
Gagnebin (2006) reflete que ele é a “ferida aberta na alma, ou no corpo, por
acontecimentos violentos, recalcados ou não” (2006, p.110), os quais não
conseguem ser elaborados pela linguagem. A autora conclui que “depois das
duas Guerras Mundiais e, sobretudo, depois da Shoah, a temática do trauma
torna-se predominante na reflexão sobre a memória” (GAGNEBIN, 2006,
p.110) [itálico da autora].
Para o sobrevivente do Holocausto, Jorge Semprún, o trauma
simbolizava a cicatriz indelével, os resquícios da violência que marcou o seu
corpo e sua memória. A qualquer momento, mesmo depois de liberto, ele se
sufocava com as lembranças das imagens, os sons e o odor do campo,
provocando distúrbios psíquicos oriundos de sua experiência inscrita na
memória, provocando-lhe o subterrâneo dos campos. Mario Fleig explica que:
“Além da dor física há a dor que se origina no íntimo e da qual não há como
fugir, pois invade os pensamentos, os sonos, as imagens e o próprio corpo”
(2004, p.134).
Semprún narra que em seus sonhos suscitavam sempre imagens de
Buchenwald, permeadas por neves e fumaças. Imagens embaçadas e
cinzentas que metaforizam a nebulosidade existente em sua vida após a
liberdade, como se o espaço do campo fosse algo impenetrável, ou algo que o
escritor não quisesse penetrar, deixando-o velado pela neblina da dor. Alfredo
Bosi, em O ser e o tempo da poesia (2004), explica que a experiência da
imagem é anterior à palavra e fica enraizada no corpo; o olho, por ser “o mais
espiritual dos sentidos” (p.24), captura “o objeto sem tocá-lo, degustá-lo,
cheirá-lo, degluti-lo” (p.24) e constrói a imagem por semelhanças e analogias.
Na narrativa, a construção imagética do campo ocorre por analogias opacas
que plasmam a obscuridade que permeia o sujeito ao não conseguir mais
reconhecer-se depois do trauma e que transita entre a incompreensão, a
dúvida e a tristeza. Após quase um mês de liberto, Semprún é surpreendido
por um conjunto de imagens antitéticas que o fazem retornar para o passado
sombrio da morte e com uma expressiva prosa poética descreve a vertigem
que provocam as lembranças:
47
Una especie de vértigo me arrastró consigo en el recuerdo de la nieve en el Ettersberg. La nieve y el humo en el Ettersberg. Un vértigo perfectamente sereno, lúcido hasta el desgarramiento. Me sentía flotar en el futuro de ese recuerdo. Siempre había ese recuerdo, esa soledad: esta nieve en todos los soles, este humo en todas las primaveras (SEMPRÚN, 1995, p.156)
As antíteses “nieve” e “soles”, “humo” e “primaveras”, encenam a
dicotomia do narrador-personagem, que mesmo liberto, encontrava-se preso
em Buchenwald, representando os paradoxos que perfilam em sua vida, como:
vida e morte, lembrança e esquecimento, escrita e silêncio, todas elas
formando uma organização imagética que tangencia entre a luz da libertação e
a escuridão da morte, um jogo lusco-fusco que o persegue constantemente.
Segundo Bosi, “a imagem amada e a temida tendem a perpetuar-se:
virará ídolo ou tabu e a sua forma nos ronda como doce ou pungente
obsessão” (2004, p.20). Em outro trecho literário, Semprún retrata a
perpetuação da imagem defumada dos campos, que quinze anos depois de
regressar à “vida”, mesmo com todas as tentativas de esquecimento e
distanciamento da morte, eram involuntariamente evocadas em seus sonhos,
causando-lhe profundo mal-estar. Através de figuras oníricas mesclam-se as
imagens opacas do Lager e a do período em que ele foi repatriado. As
bandeiras brancas e a data citada fazem analogia ao 1º de maio de 1945, dia
do trabalhador e dia que os sobreviventes desfilaram na praça central de Paris.
Esta data marcou a memória do narrador, pois foi neste dia que ele sentiu pela
primeira vez a vertigem em rememorar os dias de prisão. Em meio à
festividade da data e da alegria do regresso, ele sentiu que apesar de estar na
França, seus pensamentos continuavam permeados pela neve e pela fumaça
de Buchenwald:
Una noche, de repente, tras una dilatada semana de relatos de estas características, se puso a nevar en mi sueño. La nieve de antaño: nieve profunda sobre el bosque de hayas que rodeaba el campo, deslumbrante en la luz de los reflectores. Tormenta de nieve sobre las banderas del 1 de mayo, a la vuelta, perturbador recuerdo del horror y del valor. La nieve de la memoria, por primera vez desde hacía quince años (SEMPRÚN, 1995, p.259).
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Acerca da imagem suscitada pelo sonho ou pela reminiscência, poderia
ser explicada nos termos de Alfredo Bosi:
A imagem, fantasma, ora dói, ora consola, persegue sempre, não se dá jamais de todo. A aparência, desde que vira semelhança, sela a morte da unidade (2004, p.21).
Outra imagem que persistia em sua lembrança é a que se refere a
experiência permanente de conviver com os corpos desfigurados e com os
cadáveres de companheiros amontoados no pátio dos campos. O choque
visual pelo espetáculo do cadáver ou do corpo desmembrado projetava no
preso a antecipação do futuro de seu próprio corpo. O corpo nu, da mesma
maneira, figurava a imagem do corpo profanado, violado pelo outro e
desnudado de identificação. As imagens dos cadáveres denunciam a
grandiosidade do horror nos campos, impactando o expectador.
O modo pelo qual Semprún descreve os corpos, com os olhos
arregalados e os corpos retorcidos, numa cadeia de metáforas descritivas
reflete a agonia e o pavor desses prisioneiros na hora da morte
Los cuerpos descarnados, cubiertos de harapos, yacían estirados en los tres niveles superpuestos de los camastros. Estaban imbricados unos dentro de otros, a veces petrificados en una inmovilidad aterradora […]. No quedaban supervivientes en aquel barracón del Campo Pequeño. Con los ojos abiertos de par en par, desmesuradamente abiertos al horror del mundo, las miradas dilatadas, impenetrable, acusadoras, eran ojos apagados, miradas muertas (SEMPRÚN, 1995, p.39).
Essas imagens abjetas figuram todo o horror que circunscrevia
Buchenwald; suscitam o desespero e lembram sempre a barbárie; elas dizem
por si próprias e singularizam de modo explícito a dessacralização do corpo
nos campos. A forma como ficavam expostos chocava qualquer um que as
visualizasse, como se houvesse uma identificação e uma compaixão por
aquele monte de cadáveres desconhecidos.
Há dois trechos que mostram o choque visual dessas imagens e as
reações suscitadas no expectador, registradas numa série de imagens
sinestésicas. O primeiro trecho relata o momento que Semprún mostra as
49
imagens para militares femininas que queriam conhecer o interior do campo.
Ele não explica nada sobre o cotidiano concentracionário, apenas expõe, e
espera que as mesmas elaborem suas opiniões. No segundo, as imagens
funestas são mostradas para um soldado, que ao visualizá-las fica transtornado
e busca um consolo em orações, como podemos verificar abaixo:
Casi no les hablaba. Les nombraba sencillamente las cosas, sin comentarios. Era necesario que vieran, que trataran de imaginar. Después las hice salir del crematorio, al patio interior rodeado de una alta empalizada. Una vez ahí, ya no dije nada, nada en absoluto. Las dejé que vieran. Había, en medio del patio, un amasijo de cadáveres que superaba con mucho los tres metros de altura. Un amasijo de esqueletos macilentos, torsionados, con ojos de espanto (SEMPRÚN, 1995, p.137). […] me había fijado en un jovencísimo soldado americano. Su mirada, dilatada por el horror, estaba clavada sobre el montón de cadáveres que se apilaban a la entrada del edificio de los hornos. Un montón de cuerpos descarnados, macilentos, torcidos, de huesos puntiagudos bajo la piel áspera y tensa, de ojos desorbitados. Había observado la mirada despavorida, sublevada, del joven soldado americano, cuyos labios habían empezado a temblar. De repente, a unos pasos de distancia, le había oído susurrar. En voz baja pero clara, en español, se había puesto a rezar. “Padre nuestro que estás en los cielos…” (SEMPRÚN, 1995, p.117).
As imagens abjetas das montanhas de corpos causavam desconforto
em quem as observava, como se a partir da visualização do cadáver fosse
projetado na mente do observador a imagem de seu próprio corpo, pois,
conscientizava-se de sua finitude e compreendia que o mesmo corpo,
constantemente cuidado e adornado, teria num futuro, próximo ou não, a
mesma figura esquelética dos cadáveres vistos. Além da visão, a audição de
grande parte dos prisioneiros ficou com seqüelas. Muitos despertavam durante
o sono com vibrações sonoras referentes aos campos; a audição saturava-se
com os gritos desesperados dos companheiros, com latidos de cães e com as
vozes dos soldados nazistas.
Semprún retrata em vários momentos o seu despertar traumático com as
vozes dos SS dando ordens, o que retornava-lhe a impressão de ainda estar
no campo e que, o sonho invadido pelas vozes alemães, era a sua verdadeira
50
realidade. Todas as vezes que o narrador-personagem rememorava esses
sons, um imenso vazio lhe sufocava, ao ponto de sentir-se sozinho e perdido,
indo ao encontro, no meio da madrugada, de alguma fugacidade que
apaziguasse por alguns instantes sua dor. Sua amiga de faculdade, Claude-
Edmonde Magny, era seu apoio e lhe ajudava sempre que era solicitada sua
solidariedade. Jorge Semprún explica que a procurava porque ela não
incomodava-lhe com perguntas sobre os campos e não o submergia em seu
passado de horror, apenas o acolhia.
Ao descrever as vozes nazistas em seus sonhos, o escritor as constroe
com atributos que refletem a brutalidade dos soldados; eram vozes altivas e de
dominação que ditavam as regras e as verdades dentro do campo. Faz uso
também de paralelismos sintáticos como: “que jamás había salido de allí”, “que
jamás saldría de allí”, para enfatizar a constante presença do campo em sua
vida pós-campo. As reiterações do advérbio “allí” denotam a proximidade
espacial de Buchenwald na memória do narrador mesmo com o passar dos
anos, pois para ele, sua existência era uma incógnita.
Me desperté sobresaltado a las dos de la madrugada […]. “Krematorium, ausmachen!”, decía la voz alemana. “¡Crematorio, apaguen!” Una voz sorda, irritada, imperativa, que resonaba en mi sueño y que, curiosamente, en vez de hacerme comprender que estaba soñando, como suele ocurrir en los casos semejantes, me hacía creer que por fin me había despertado, otra vez – o todavía, o para siempre – en la realidad de Buchenwald: que jamás había salido de allí, a pesar de las apariencias, que jamás saldría de allí, a pesar de los simulacros y melindres de la existencia (SEMPRÚN, 1995, p.169).
Dentre todas as agressões sensoriais, as que se direcionavam as
sensações olfativas são as mais intensas no decorrer da narrativa
sempruniana. Os odores de Buchenwald recorrentemente ressurgiam na
lembrança, o que lhe suscitava muito temor, pois, a maioria dos cheiros,
configurava o “odor da morte”. Certos odores causavam-lhe atitudes de raiva,
como os dos soldados que circulavam diariamente ao aludir à presença
imperativa do poder nazista. O cheiro espalhado pelos nazistas é representado
na obra por uma serie de imagens metonímicas pelo odor dos objetos que os
mesmos usavam: “olor a cuero y a colonia de los Sturmführer SS” (SEMPRÚN,
51
1995, p.55). O cheiro da fumaça do crematório para o narrador era um cheiro
indescritível, pois, somente quem o sentiu, conheceu a sua verdadeira
essência, era um cheiro de carne queimada, que segundo Semprún, espantou
até mesmo os pássaros que sobrevoavam Buchenwald. Era um odor “dulzón,
insinuante, com tufos acres, propriamente nauseabundo” (1995, p.18),
descrição do escritor que denota a estranheza desse odor que lhe invadia a
qualquer momento, como notamos na narração abaixo:
Bastaría con cerrar de los ojos, aún hoy. Bastaría no con un esfuerzo, sino todo lo contrario, bastaría con una distracción de la memoria, atiborrada de futilidades, de dichas insignificantes, para que reapareciera. Bastaría con distraerse de la opacidad irisada de las cosas de la vida. Un breve momento bastaría, en cualquier momento. […] Bastaría con un instante de autentica distracción de propio ser, del prójimo, del mundo: instante de no-deseo, de quietud de más acá de la vida, en el podría aflorar la verdad de ese acontecimiento antiguo, originario, donde flotaría el extraño olor sobre la colina del Etterberg, patria extranjera a la que siempre acabo volviendo (SEMPRÚN, 1995, p.18).
A palavra “bastaría” nesse trecho é reiterada seis vezes, destacando,
através do uso de anáforas a invasão involuntária do odor e a sua presença na
memória do narrador-personagem; desvela, além da involuntariedade do odor,
a saturação que essa invasão lhe causou. Ao repetir “bastaría... bastaría…
bastaría...”, denota-se o cansaço de alguém que não tinha paz, que a todo o
momento era fisgado pela dor que nunca tinha fim. Acerca do constante odor
ele continua: “El extraño olor surgiria en el acto en la realidad de la memória.
Renacería en él, moriría por revivir en él. Me abriría, permeable, al olor a limo
de ese estuario de muerte, mareante” (SEMPRÚN, 1995, p.18). Percebemos
no texto que o sujeito narrativo é permeado de modo reiterado pelo odor, pois o
prefixo “re” representa a persistência do odor e a fragmentação que produzia.
Para o sobrevivente o odor do crematório personificava a morte, porém, outros
odores a identificavam, como o cheiro de putrefação dos cadáveres e o do
desfalecimento do corpo em fezes, devido às intermináveis diarréias que
sinalizavam a proximidade do fim de algum companheiro.
Jorge Semprún ao narrar o episódio em que visitava Maurice
Halbwachs, - renomado filósofo que além de companheiro de infortúnio no
52
campo, foi professor de Semprún antes de ambos serem capturados -,
reconhece a chegada da morte de Maurice pelo cheiro que emanava dele. Era
o sinal da decomposição de seu corpo, resultante das fortes disenterias, o que
refletia sua debilidade corporal. O forte odor metaforiza os efeitos corrosivos da
morte, que de modo análogo ao de uma planta carnívora, devora as entranhas
do ser. Entretanto, diferentemente da maioria das plantas, essa exala o odor
repugnante e obsessivo da morte que ao nascer no ser o destrói:
Lo tomé entre mis brazos, acerqué mi rostro al suyo, quedé sumergido por el olor fétido, fecal, de la muerte que crecía dentro de él como una planta carnívora, flor venenosa, deslumbrante podredumbre (SEMPRÚN, 1995, p.55).
Adorno e Horckheimer (1985) afirmam que de todos os sentidos, o ato
de cheirar é o mais atrativo e o que mais proporciona a identificação entre os
seres, pois, “ao ver, a gente permanece quem a gente é, ao cheirar, a gente se
deixa absorver” (1985, p.172). Contudo, com Semprún os cheiros eram o
paradoxo da vida, pois ao sentir os odores mortais do campo identificava-se
com eles por configurarem as mortes de seus companheiros: “El tiempo pasó,
Halbwachs estaba muerto. Yo había vivido la muerte de Halbwachs” (1995,
p.57). É dessa maneira que o odor da morte foi absorvido por Semprún,
impregnando seus pulmões e seu cérebro, eternamente.
Através da narrativa sempruniana, em La escritura o la vida (1995),
podemos sentir, quase vivenciar na pele, o que foi feito ao homem e ao seu
corpo nos campos nazi, em prol de uma ideologia doentia e perversa. O corpo
dessacralizado no Holocausto regressa prenhe de cicatrizes. O trauma é essa
cicatriz que não some. Fica ali presente, mesmo pertencendo ao passado.
Assim como Ulisses é reconhecido pela criada através da cicatriz que têm na
perna, o sobrevivente dos campos é reconhecido pelas cicatrizes que traz na
memória, após liberto. Nem todas são visíveis, mas estão em seu corpo
encenando o sinal de reconhecimento de uma existência cindida pelo trauma.
Traumas que manifestam-se nos sonhos, na casualidade do cotidiano, nas
reminiscências da memória, através de imagens, sons e odores que levam o
escritor para o passado da morte, da dor e do horror. Para Freud, as
constantes repetições que permeiam o traumatizado, é devido ao fato de que
53
“a história do trauma, é a história de um choque violento, mas também de um
desencontro com o real” (apud SELLIGMAN-SILVA, 2005, p.49).
O corpo nos campos foi banalmente dessacralizado, torturado, ferido,
massacrado, para reduzi-lo, subjugá-lo, profaná-lo, desfigurá-lo, e deixá-lo com
cicatrizes que nunca cessaram de doer. Jorge Semprún é esse sujeito que
volta com marcas no corpo e fragmentado pela violência nos campos. Sua vida
após regressar da morte, é um doloroso e permanente rememorar; torna-se um
assombrado, um desconhecido para si próprio. Encontra-se preso no nebuloso
passado do campo e apesar da sua “libertação”, a morte não termina, tal como
uma cicatriz que fica inscrita no corpo, na memória, e consequentemente, na
sua arte.
54
2.2. Imagens metafóricas: intertextos, elipses, ana cronias. A
representação fragmentada da catástrofe em La escritura o la vida
Conforme dito, no decorrer do nosso trabalho, verificaremos quais os
recursos estéticos utilizados por Jorge Semprún para plasmar a verdade
essencial do horror em La escritura o la vida (1995), considerando sua forma e
seu conteúdo como um conjunto mediador da barbárie dos campos de
concentração nazistas. No que concerne à estrutura observamos que a versão
em espanhol, possui trezentas e trinta páginas e está dividida em três partes. A
primeira está organizada em cinco capítulos, a segunda, dois e a terceira, três.
Os capítulos são nomeados sequencialmente em: 1. La mirada; 2. El Kaddish;
3. La línea blanca; 4. El teniente Rosenfeld; 5. La trompeta de Louis Armstrong;
6. El poder de escribir; 7. El paraguas de Bakunin; 8. El día de la muerte de
Primo Levi; 9. Oh estaciones, oh castillos… ; 10. Retorno a Weimar.
Refletiremos acerca de algumas cenas de alguns capítulos, no intuito de
demonstrar a questão acima problematizada, é pertinente ressaltar que nessa
narrativa não há uma seqüência cronológica entre os capítulos, tampouco,
linearidade narrativa entre os episódios, o que denota inicialmente aspectos
importantes a serem analisados sobre a estruturação da obra em questão. A
desconexão linear é figurada mediante o uso de anacronias, que segundo
Gérard Genette, em Discurso da Narrativa (1979), são as rupturas temporais
que ocorrem no decorrer da narrativa. Essas mudanças anacrônicas são
constituídas pela prolepse e pela analepse, sendo a primeira na concepção de
Genette:
Toda manobra consistindo em contar ou evocar de antemão um acontecimento ulterior e, por analepse, toda ulterior evocação de um acontecimento anterior ao ponto da historia em que se está (GENETTE, 1979, p.38).
Logo no primeiro capítulo, La mirada, notamos o caráter emblemático da
obra, pois, ao invés do narrador-personagem começá-la seguindo as ordens
cronológicas dos fatos, ele inverte o tempo. O impacto da mirada de uns olhos
azuis devolve intempestivamente as imagens da vivência no campo. Começa
55
com a lembrança das humilhações sofridas no momento de sua libertação, e
todo um acúmulo de experiências retornam a sua memória, o que denota que a
organização da narração não se dá pelo tempo cronológico, mas pelo da
memória. A narrativa, cronologicamente, inicia-se com a chegada, em doze de
abril de 1945, dos soldados norte-americanos no campo de Buchenwald para
evacuá-lo e repatriar os sobreviventes. Contudo, os soldados se chocaram com
as imagens desfiguradas dos prisioneiros e evitavam olhar diretamente para
eles. Incômodo tanto para quem observava, como para os que eram
observados, devido ao fato de que muitos presos não dimensionavam o estado
deplorável de seus corpos.
Semprún sentiu-se interrogado com os olhares de espanto dos soldados,
sua imagem refletida na retina de outrem espelhou a monstruosidade de sua
condição subumana, conforme narra: “están delante de mí, abriendo los ojos
enormemente, y yo me veo de golpe en esa mirada de espanto: en su pavor.
Desde hacía dos años, yo vivía sin rostro. No hay espejos en Buchenwald”
(1995, p.15). O narrador-personagem explica que durante os banhos ele via a
deformação paulatina de seu corpo pela “su delgadez creciente” (p.15), com
“ningún rostro, sobre ese cuerpo irrisório. Con la mano, a veces, reseguía el
perfil de las cejas, los pómulos prominentes, las mejillas hundidas” (p.15).
Apesar de notar a sua desfiguração corporal e sentir a transformação de sua
face, foi o pavor espelhado nos olhares dos soldados que o fez compreender o
seu estado.
Na descrição desse episódio inicial o narrador não usa o tempo pretérito,
e sim verbos no presente do indicativo, como se o fato ocorresse
paralelamente à narração, evidenciando que o choque visual entre o narrador e
os militares mantém uma proximidade em sua memória e em seu presente.
Para os soldados havia uma opacidade nas imagens que os impossibilitava de
defini-las como humanas, ao ponto do próprio narrador-personagem não se
reconhecer no seu reflexo. O não reconhecimento configura a ruptura da
identidade do narrador que se torna um outro após a libertação; a narração no
presente, mostra que essa ruptura ainda persiste no momento da escritura,
quase cinqüenta anos depois do fim dos campos nazis.
O narrador-personagem, como um meio de compreender a perplexidade
dos soldados, inicia um diálogo com os mesmos. Entretanto, no devaneio do
56
encontro, percebem a estranheza do silêncio, pois nem os pássaros se ouvem
cantar. Semprún conta aos soldados que a ausência de pássaros é devido ao
cheiro da carne queimada e da fumaça dos crematórios que os espantou ou os
exterminou: “se sobresaltan, se miran unos a otros. Con un malestar casi
palpable. Una especie de hipido, de náusea” (p.17). A partir dessa cena, há
uma suspensão narrativa e mediante o uso da analepse, o narrador divaga
sobre o “extraño olor” de Buchenwald e o seu constante reaparecimento na sua
memória. Nesse momento, o narrador volta a nove dias anteriores ao dia
12/04, para explicar que os deportados sabiam da derrota de Hitler antes
mesmo da chegada da tropa aliada, e que os soldados nazistas planejavam a
aniquilação total dos presos antes da liberação, porém, devido à vinda da
tropa, não conseguiram executar. Há um corte narrativo, que traz o narrador-
personagem de volta para o presente da narrativa acerca da liberação, que
com base na concepção de Gérard Genette, em Discurso da narrativa (1979),
trata-se da narrativa primeira, a qual possui vários episódios subordinados a
ela, que serão perfilados no decorrer da narrativa pelas anacronias. O narrador
chama a atenção do leitor sobre o corte narrativo:
No voy a contar nuestras vidas, no tengo tiempo. Por lo menos, no el de entrar en los pormenores, que constituyen la sal del relato. Pues los tres oficiales con uniforme británico están ahí, plantados delante de mí, con los ojos desorbitados (SEMPRÚN, 1995, p.20).
O uso do advérbio de lugar “ahí” denota a presença desse episódio na
memória do narrador, o que faz com que ele regresse de suas divagações e
continue a narração. Essa cena, apesar do estranhamento pelo confronto
visual entre Semprún e os soldados, é crucial para o personagem, pois, trata-
se de um dia que para ele foi, simultaneamente, sonhado e considerado como
impossível: o dia da liberação.
Sobrevivir, sencillamente, incluso despojado, mermado, deshecho, ya habría constituido un sueño un poco disparatado. Nadie se habría atrevido a soñar eso, es verdad. No obstante, de repente era como un sueño: era verdad (SEMPRÚN, 1995, p.22).
57
Há uma euforia por parte do narrador ao descrever a lembrança do dia
12/04, pois, após passar durante dois anos por inúmeras torturas físicas e
psicológicas, ele tinha conseguido sobreviver: “yo reía, me daba risa estar vivo”
(p.22). Mesmo invadido pela alegria da sobrevivência, o espanto e o
desconforto dos olhares dos soldados, continuava a lhe intrigar:
Están a unos pasos de mí, silenciosos. Evitan a mirarme. Hay uno que tiene la boca seca, se le nota. El segundo tiene un tic nervioso en el párpado. En cuanto al francés, está buscando algo en el bolsillo de su guerrera militar, cosa que lo permite desviar la mirada (SEMPRÚN, 1995, p.22).
A cena que remete aos oficiais da tropa aliada é reiterada no decorrer da
narrativa, suspendendo outros episódios tanto posteriores, quanto anteriores a
ela, não havendo um desfecho para a mesma, ficando suspensa, tal como ficou
na memória do narrador. Sua (re)tomada narrativa, bem como, sua construção
no presente do indicativo, recupera uma sensação que apesar de pertencer ao
passado, é ao mesmo tempo, constante e presente. Afirma Alfredo Bosi (2004),
que a “partícula re vale não só para indicar que algo se refaz, mas também
para dar maior efeito de presença à imagem, e conduzi-la à plenitude” (p.42), o
que (re)significa a proporção traumática dessa experiência para Semprún e a
impossibilidade de esquecê-la. Afinal, os soldados norte-americanos foram as
primeiras pessoas, fora de Buchenwald, vistas por Semprún, sendo também,
os primeiros que viram a sua condição de desmoralização.
Desse modo, o narrador-personagem relembra a exposição de seu
corpo desfigurada e o seu reflexo perturbador nos olhares dos soldados que
encena o desconforto e a vergonha existente em sua memória. Na concepção
de Bosi, o ato de reiterar representa uma operação dupla que perfila entre o
progressivo-regressivo e vice-versa, operação essa, existente na narrativa
sempruniana, que ondeia entre idas e vindas anacrônicas, representando o
trauma deixado por esse episódio. Pois, reflete Bosi, “as exigências da situação
em que age ou sofre o sujeito regem também o andamento da elocução” (2004,
p.82) [itálico do autor].
Além do estranhamento da exposição, as miradas dos oficiais, mediante
a prolepse, projetam outros questionamentos ao sobrevivente que concernem
58
no contar ou não contar sua experiência após a saída do campo, já que o terror
nos olhares, mostrou à Semprún a dificuldade de encontrar ouvintes para o
relato de tantas mortes e sofrimentos:
¿Pero puede oírse todo, imaginarse todo? ¿Podrá hacerse alguna vez? ¿Tendrán la paciencia, la pasión, la compasión, el rigor necesarios? La duda me asalta desde este primer momento, este primer encuentro con unos hombres de antes, de afuera – procedentes de la vida -, viendo la mirada espantada, casi hostil, desconfiada al menos, de los tres oficiales (SEMPRÚN, 1995, p.26).
Tais questionamentos fizeram com que Semprún pensasse sobre o
modo que deveria contar sua experiência, e de quais estratégias narrativas
utilizaria para fazê-lo. Nesse sentido, trazemos a consideração de Valeria De
Marco, em La escritura o la vida: a impossibilidade de ver (2010), segundo a
qual o escritor-sobrevivente se adentra em aspectos que problematizam acerca
da representação do Holocausto. Confluente, De Marco explica que o fato de
Semprún defender que somente a arte é capaz de transmitir a verdade
essencial do horror dos campos, vai de encontro às correntes que entendem
ser impossível representar a barbárie por ela tocar no domínio do inefável. Para
muitos artistas e teóricos, somente no campo estético encontram-se os
artifícios ideais para a transmissibilidade da catástrofe, conforme expõe Jorge
Semprún:
No obstante, una duda me asalta sobre la posibilidad de contar. No porque la experiencia vivida es indecible. Ha sido invivible, algo de todo diferente, como se comprende sin dificultad. Algo que no atañe a la forma de un relato posible, sino a su sustancia. No a su articulación, sino a su densidad. Sólo alcanzarán esta sustancia, esta densidad transparente, aquellos que sepan convertir su testimonio en un objeto artístico, en un espacio de creación. O de recreación (SEMPRÚN, 1995, p.26).
Apesar da necessidade dos sobreviventes de narrar a traumática
experiência, eles se encontravam incapacitados, por crerem na impossibilidade
de representação da catástrofe. Para muitos, devido ao caráter de
inverosimilhança do vivenciado, a narração dessa realidade inenarrável
somente seria enfrentada através do uso da imaginação, pois, “só com a arte a
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intraduzibilidade pode ser desafiada – mas nunca totalmente submetida”
(SELIGMANN-SILVA, 2005, p.46). Em consonância, afirma Semprún:
[...] La verdad que tenemos que decir (en el supuesto de que tengamos ganas, ¡muchos son los que no las tendrán jamás!) no resulta fácilmente creíble… Resulta incluso inimaginable… […] - ¿Cómo contar una historia poco creíble, cómo suscitar la imaginación de lo inimaginable si no es elaborando, trabajando la realidad, poniéndola en perspectiva? ¡Pues con un poco de artificio! (SEMPRÚN, 1995, p.140-141).
Os que sobreviveram ficaram com feridas impossíveis de serem
assimiladas pela linguagem. Pôr o Holocausto em perspectiva é um processo
que não se dá sem tensões, justamente devido ao choque deixado por ele nos
sobreviventes. Segundo Jeanne Marie Gagnebin, em Memória, História e
Testemunho (2006), a concepção freudiana aponta que a impossibilidade de
assimilação do choque pela fala cotidiana, ocorre porque o trauma, “por
definição, fere, separa, corta ao sujeito o acesso ao simbólico, em particular, à
linguagem” (GAGNEBIN, 2006, p.51). Muitos sobreviventes regressaram
emudecidos dos campos, porque o que vivenciaram não era análogo a
nenhuma outra experiência, era algo único que a objetividade dos relatos
documentais e históricos não alcançava.
Walter Benjamin argumenta no texto Experiência e Pobreza (1996), que
a troca de experiências comunicativas está perdendo espaço no tempo
moderno; segundo ele, após tantas guerras, tragédias e desmoralizações, os
homens tornaram-se cada vez mais “pobres em experiências comunicáveis, e
não mais ricos” (p.115). Em outro texto, O narrador: considerações sobre a
obra de Nikolai Leskov (1996), Benjamin esclarece que a natureza da
verdadeira narrativa tem sempre um aspecto utilitário, que pode consistir em
um “ensinamento moral” ou “numa sugestão prática”, pois, “o narrador é um
homem que sabe dar conselhos”, contudo, ele ressalta que aconselhar alguém
na atualidade é algo defasado, porque “as experiências estão deixando de ser
comunicáveis” (1996, p.200). O próprio Jorge Semprún sabia que o seu
testemunho teria uma utilidade social, pois denunciaria o horror vivenciado, e
consequentemente,
60
ao transmitir o inenarrável poderia manter viva a memória dos sem-nomes, ser fiel aos mortos que não puderam ser enterrados. [...] Tarefa altamente política: lutar contra o esquecimento e a denegação é também lutar contra a repetição do horror (que, infelizmente, se reproduz constantemente) (GAGNEBIN, 2006, p.47).
Porém, o escritor preferiu o silêncio após a libertação. Mesmo crendo
que o uso da imaginação e da arte, em certa medida, auxiliaria na composição
do seu testemunho, emudeceu-se por quase cinqüenta anos. Para ele,
escrever era reviver a sua morte e as de seus companheiros de Lager, visto
que havia penetrado e sido penetrado por ela:
He tenido una idea, de golpe – si puede llamar idea a esta bocanada de calor, tónica, a este aflujo de sangre, a este orgullo de un conocimiento del cuerpo, pertinente -, la sensación, en cualquier caso repentina, muy fuerte, no de haberme librado de la muerte, sino de haberla atravesado. De haber sido, mejor dicho, atravesado por ella. De haberla vivido, en cierto modo. De haber regresado de la muerte como quien regresa de un viaje que le ha transformado: transfigurado tal vez (SEMPRÚN, 1995, p.27).
O fato de ter atravessado a morte, fez com que o narrador-personagem
acreditasse por muitos anos na sua imortalidade. Para ele, o passar dos anos
não lhe aproximaria da morte, mas o afastaria dela. Teve sua vida cortada em
duas partes, uma se refere ao dia do seu nascimento em 10 de dezembro de
1923, e a outra, ao dia 12 de abril de 1945, que inaugura a sua mais nova
identidade, a de sobrevivente: “tal vez no me había limitado a sobrevivir
tontamente a la muerte, sino que había resucitado de ella: tal vez fuera inmortal
desde ese momento” (SEMPRÚN, 1995, p.27).
Semprún, ao afirmar que vivenciou as mortes de seus companheiros,
mostra a fraternidade existente entre os mesmos, independente de etnia e
classe social. No episódio El Kaddish, o narrador-personagem descreve a sua
busca incansável e a de seu companheiro judeu Albert para salvar um
sobrevivente após a libertação. Em uma das rondas que ambos faziam nos
interiores dos barracões de Buchenwald para encontrarem possíveis
sobreviventes, escutaram um murmúrio e procuraram entre os amontoados de
cadáveres quem pronunciava os sussurros agonizantes: “oía aquella voz
61
inhumana, aquel sollozo canturreado, aquel estertor curiosamente
acompasado, aquella rapsódia del más allá” (SEMPRÚN, 1995, p.41). Após
muitas buscas, eles encontraram um judeu muito debilitado e em fase terminal
que murmurava o Kaddish, a oração dos mortos, conforme Semprún descreve:
Me inclino hacia él, le ausculto. Me parece que algo late todavía en el hueco de su pecho. Algo muy apagado y muy lejano: un rumor que se agota y se esfuma, un corazón que se para, me parece (SEMPRÚN, 1995, p.50).
Simultâneo a esse episódio, o personagem-narrador regressa a um
outro, anterior a sua entrada em Buchenwald. Conforme explicado, escritor faz
diversos usos da anacronia na composição de sua narrativa, ocasionando um
movimento de vaivém na mesma, na qual não há a preocupação com as
marcações temporais de passado, presente ou futuro. Ao leitor cabe o
reconhecimento dessas mudanças anacrônicas.
A suspensão narrativa citada se dá por intermédio de uma analepse,
pois o narrador-personagem volta a um encontro que teve com um soldado
alemão antes de ser preso. O encontro ocorreu numa floresta, enquanto ambos
eram combatentes da Segunda Guerra, porém ocupando lados opostos. O
narrador tece a descrição do soldado alemão, “era joven, era rubio. Era
absolutamente conforme a la idea de un alemán: un alemán ideal” (SEMPRÚN,
1995, p.45), e destaca a questão dos ideais de superioridade da raça ariana.
Entretanto, mesmo com a presença onipotente do soldado alemão, um fato fez
com que Semprún não conseguisse atirar nele. De repente, o soldado que
ainda não tinha percebido a presença dos inimigos ao refrescar-se num rio,
começa a cantar uma canção nostálgica para o narrador-personagem: La
paloma, o que traz à tona as lembranças de sua infância na Espanha, seu país
de origem.
De modo análogo à cena do livro Em busca do tempo perdido (2006), do
escritor Marcel Proust, o qual ao sentir o gosto do biscoito Madeleine molhado
no chá, sente aflorar, involuntariamente, a lembrança da cidade em que
passava as férias quando criança, o que suscita a emoção das recordações
ressurgindo na memória do narrador, o tempo perdido da infância e o ambiente
dessa época. Como o fio de Ariadne, a canção La paloma conduz Semprún
62
para um tempo imperado pela inocência do cotidiano infantil. Inocência essa,
que o narrador-personagem transfere para o seu inimigo alemão, que assim
como ele, lutava por ideais que acreditava: “tal vez aquel joven soldado no
tuviera nada que reprocharse, nada salvo el haber nacido alemán en la época
de Adolf Hitler” (SEMPRÚN, 1995, P.46). Assim, o jovem soldado alemão “con
su hermosa voz rubia” (p.46), traz ao narrador:
La infancia, las criadas que cantan en los lavaderos, las músicas de los kioscos de música, en los parques sombreados de los lugares de veraneo, ¡La paloma! ¿Cómo no iba a sobresaltarme escuchando esa canción? […] Me está pasando La paloma, eso es todo: la infancia española que me golpea en pleno rostro (SEMPRÚN, 1995, p.46-47) [itálico do autor].
Apesar das recordações suscitadas pela canção, Semprún não poderia
deixar o alemão fugir, e ele com seu companheiro de combate, Julien, atiram
no soldado, matando-o. Infelizmente, eles eram protagonistas de uma guerra
sanguinária, na qual, um perdia para outro ganhar. Dessa maneira, a frieza
dessa constatação fez com que o narrador-personagem fosse penetrado pela
revolta: “me desmorono, hundiendo el rostro en la hierba fresca, pegando
rabiosos puñetazos sobre la roca plana que nos protegia. -¡Mierda, mierda,
mierda!” (SEMPRÚN, 1995, p.47). No desfecho desse episódio acerca da
canção, o autor faz uso de uma prolepse ao projetar uma cena ocorrida anos
depois de sua libertação. Semprún explica que o episódio do soldado que
cantava La paloma já foi narrado por ele numa outra obra sua chamada El
desvanecimiento (1967). Porém, o narrador-personagem ressalta que na obra
de 1967, ao invés de colocar o real personagem que acompanhou-lhe, que no
caso era o soldado de Borgoña chamado Julien, ele inventou um personagem
fictício chamado Hans, um alemão judeu que na narrativa “encarnaba a mis
amigos judíos reales” (SEMPRÚN, 1995, p.49).
Esse feito narrativo de Semprún mostra seu posicionamento ideológico
que como combatente da Resistência francesa acreditava na igualdade e na
fraternidade entre os homens, sendo eles judeus ou não. Ao inventar um
personagem fictício judeu após o fim do nazismo, ele evidencia que a sua luta
contra ideais de dominação continua, não mais com armas, mas com as letras:
63
“Habríamos inventado a Hans, está escrito, como la imagen de nosotros mismos, la más pura, la más cercana a nuestros sueños. Habría sido alemán porque éramos internacionalistas: en cada soldado alemán liquidado en una emboscada no apuntábamos al extranjero, sino a la esencia más mortífera y más llamativa de nuestras propias burguesías, es decir, a unas relaciones sociales que tratábamos de cambiar nosotros mismos. Habría sido judío porque queríamos aniquilar cualquier opresión y el judío era, incluso pasivo, resignado incluso, la figura intolerable del oprimido…” Ese es el motivo por el que inventé a Hans, por el que lo coloqué a mi lado el día de aquel soldado alemán que cantaba La paloma (SEMPRÚN, 1995, p.50) [aspas e itálico do autor].
Outra cena que denota o comprometimento político do escritor trata-se
de uma que narra os encontros dos presos nas latrinas coletivas de
Buchenwald. Nesse espaço insalubre, eles faziam reuniões clandestinas do
grupo comunista que havia dentro do campo, e concomitantemente, trocavam
informações, folhinhas de tabaco, recordações, comida contrabandeada, risos,
qualquer gestos ou objetos que, de alguma maneira, renovassem suas
esperanças. É descrito como um espaço onde os deportados experimentavam
a liberdade. Devido o seu odor de podridão, os soldados nazistas tinham pavor
aos barracões das latrinas por receio de contrair alguma enfermidade,
singularizando o refúgio ideal das espreitas nazistas, conforme Semprún narra:
En esas letrinas colectivas, en el ambiente deletéreo donde se mezclaban las pestilencias de los orines, de las defecaciones, de los sudores malsanos y del áspero tabaco de machorka, nos encontramos, a causa y alrededor de una misma colilla compartida, de una misma impresión de irrisión, de una idéntica curiosidad combativa y fraterna (SEMPRÚN, 1995, p.53) [itálico do autor].
Ao falar sobre os cadáveres e os “mulçumanos”, o narrador busca
parâmetros de comparação para elaborar a descrição da desfiguração corporal
desses personagens. É na arte plástica que o escritor encontra as figuras
necessárias para suscitar na imaginação do leitor essas imagens humanas
inimagináveis. Mediante esse recurso, notamos uma interação entre duas artes
distintas, o que Claüs Cluver, em Inter Textus/ Inter Artes/ Inter Medias (2006),
explica como Intermidialidade. Clüver aponta que as obras de arte são
compreendidas como uma estrutura prenhe de significações, “o que faz com
que tais objetos sejam denominados ‘textos’, independente do sistema sígnico
64
a que pertençam” (2006, p.15), e segue: “portanto, um balé, um soneto, um
desenho, uma sonata, um filme e uma catedral, todos figuram como ‘textos’
que se ‘lêem’” (2006, p.15). A intermidialidade propõe um estudo entre artes
que independente “dos tipos de textos e das formas de relacionamento
envolvidos” (p.14), refletem a comparação e a analogia existente nessa
relação. Para Clüver:
Quando se trata de obras que, seja lá em que forma, nas Artes Plásticas, na Música, na Dança, no Cinema, representam aspectos da realidade sensorialmente apreensível, sempre existe nos processos intertextuais de produção e recepção textual um componente intermidiático - tanto na Literatura quanto, frequentemente, nas outras artes. Aos poucos isso passa a dizer respeito a fenômenos mais abstratos, como, por exemplo, a narratividade e a critérios de forma e estilo (CLUVER, 2006, p.15).
O narrador-personagem ao buscar outros textos, doa para a sua
narrativa, - reflexo dessa relação interartes -, novos sentidos que são
absorvidos pelo leitor no ato da leitura. Processo de relação que opera
metalinguisticamente, pois, faz referência a uma linguagem anterior. Samira
Chalhub em A meta-linguagem (1998), afirma que “tratando-se de literatura
haverá sempre esse diálogo intertextual” (1998, p.52), figurado pela
metalinguagem que “é sempre um processo relacional entre linguagens” (p.52).
Assim, Semprún traz à baila na sua narrativa a possibilidade de uma leitura
intermidiática, que através do uso de analogias entre artes distintas, propicia
uma reinterpretação imaginativa. É à arte pictórica, que o narrador-personagem
alude primeiramente na tessitura da imagem dos cadáveres:
Los cadáveres, contorsionados como personajes del Greco, parecían haber reunido sus últimas fuerzas para reptar hasta los tablones de los camastros más próximos al pasillo central del barracón, por donde podría haber surgido un último socorro (SEMPRÚN, 1995, p.41) [grifo nosso].
As imagens dos cadáveres descritas pelo narrador-personagem,
compostas com enormes pernas e braços contorcidos recorrente a magreza, e
com a pele em coloração acinzentada devido a sua flacidez, correspondem às
figuras de El Greco, Doménikos Theotokópoulos, pintor e escultor que nasceu
65
na Grécia em 1541 e faleceu na Espanha em 1614. É conhecido no campo
pictórico como um dos principais representantes do Maneirismo, movimento
artístico do século XVI. A analogia das figuras realiza-se porque aquelas estão
desenhadas com formas tortuosas e alongadas, com alguns pontos de
luminosidade, deixando-as levemente opacas. El Greco também se destaca
por colocar tons dramáticos e expressivos em suas obras, o que marca os
gestos e as posturas de suas figuras. Na tela Laocoonte (Figura1:
http://www.artehistoria.jcyl.es/genios/cuadros/1737.htm), as figuras expressam
com seus olhares voltados para cima e com a tortuosidade de seus corpos, a
agonia de uma luta. Assim como, a agonia expressada pelos cadáveres
“contorsionados como personajes del Greco” descritos na obra, que com
las miradas muertas, heladas por la angustia de la espera, habían acechado sin duda hasta el fin alguna llegada súbita y salvadora. La desesperación que se leía en aquellos ojos estaba a la altura de esa espera, de esa violencia última de la esperanza (SEMPRÚN, 1995, p.41).
Desespero expressado de igual maneira na tela supracitada de El Greco
na Figura 1:
Fig. 1: El Greco (1541 – 1614)
Laocoonte c. 1610/1614
66
Óleo sobre tela, 137.5 x 172.5 cm
O personagem-narrador também traça paralelos com as esculturas do
artista suíço Alberto Giacometti (1901-1965) para metaforizar a debilidade e a
desfiguração dos corpos de muitos prisioneiros, denominados em Buchenwald
como “mulçumanos”, “cadáveres ambulantes” e/ou “morto-vivos”. Giacometti é
conhecido por representar o corpo humano em suas esculturas, as quais
possuem os membros esticados e finíssimos como os de um esqueleto.
Timothy Mathews, estudioso da relação entre obras literárias e artes visuais, no
artigo Reading W.G. Sebald with Alberto Giacometti (2007), afirma que devido
à influência de Jean-Paul Sartre, as obras de Giacometti traduzem, em meios
expressivos, o existencialismo. Desse modo, a verticalidade das figuras
alongadas confronta-se com o posicionamento horizontal do mundo, e
expressam o individualismo e o desencontro do homem com o mundo
moderno. Aspectos existenciais igualmente encenados na narrativa
sempruniana, mediante a composição imagética dos “cadáveres vivientes,
semidesnudos, de interminables piernas esqueléticas” (1995, p.57), que
conforme o narrador destaca: “jamás podré contemplar las figuras de
Giacometti sin acordarme de los extraños paseantes de Buchenwald:
cadáveres ambulantes en la penumbra azulada del barracón” (1995, p.57-58).
Os prisioneiros que chegavam a esse estágio de larga agonia a espera da
morte, tinham seus corpos abandonados pela força e dominados pelo
sofrimento, caminhavam a passos contados para poupar o pouco de vida que
restavam-lhes:
[…] Contar los pasos, en efecto, contarlos uno a uno para ahorrar fuerzas, para no dar ni uno de más, cuyo precio sería demasiado elevado; alinear los pasos despegando los zuecos del barro, de la gravedad del mundo que tira de las piernas, que aspira hacia la nada (SEMPRÚN, 1995, p.59) [grifo nosso].
A infinita lentidão dos mulçumanos que pisoteavam a lama configura o
vazio de uma existência esquecida pela esperança. As esculturas com pernas
alongadas de Giacometti, assim como os andantes de Buchenwald, são
67
imagens emblemáticas “de mirada indiferente dirigida hacia unos cielos
indecisos, infinitos” (1995, p.59), que com pernas esqueléticas e envoltos à
solidão, caminham “nonada”, rumo a um futuro incerto, o que vai ao encontro
da teoria existencialista.
A caráter de compreensão, segue uma das esculturas mais famosas de
Giacometti (Figura 2: http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/AlbGiaco.html):
Figura 2: “L’Homme Qui Marche I ,” (“Homem que Caminha I” de 1961) do
artista Alberto Giacometti (1901-1965).
Walter Moser, em As relações entre as artes: por uma arqueologia da
intermidialidade (2006), defende que as relações entre artes, que são
encenadas pelos artistas, desenvolvem uma “função heurística na medida em
que dá a ver e a conhecer a midialidade da arte” (2006, p.63), possibilitando
novas modalidades de representação, expressão e narração. O processo
intermidiático na narrativa sempruniana, que funde conceitos da arte visual com
a linguagem, cria uma expressividade metafórica mais ampla. Explana Paul
Ricoeur, no livro A metáfora viva (1975), que a metáfora engendrada à
linguagem libera o poder da ficção de reescrever a realidade, e que ela se
apresenta, como “uma estratégia de discurso que, ao preservar e desenvolver
a potência criadora da linguagem preserva e desenvolve o poder heurístico
desdobrado pela ficção” (RICOEUR, 1975, p.13).
As imagens expressivas dos “mulçumanos” e dos cadáveres,
metaforizam a aniquilação total dos prisioneiros, que com os olhos abertos para
68
o horror dos campos e os corpos desfigurados pelas torturas físicas e
psicológicas, padeciam, pouco a pouco, à espera de uma saída, fosse ela para
a vida ou para a morte.
As desfigurações corporais e as inúmeras torturas mostram como que
nos campos o mal foi banalizado em prol de uma ideologia perversa e doentia.
Antes da evacuação de Buchenwald, Semprún ao dialogar com um funcionário
do campo sobre o fim do nazismo, obtêm uma resposta fundamental que o faz
refletir: “–¡El fin del nazismo no significará el fin de la lucha de clases!”
(SEMPRÚN, 1995, p.71). O narrador-personagem compreende que a essência
do mal pode ser encontrada em qualquer experiência. Nos campos ela foi
crucial e devoradora, mas não única, pois, “el Mal no es lo inhumano, por
supuesto... O entonces el lo inhumano en el hombre” (1995, p.104), podendo
ressurgir a qualquer instante já que o Mal faz parte de “uno de los proyectos
posibles de la libertad constitutiva de la humanidad del hombre… De la libertad
en la que arraigan a la vez la humanidad del ser humano” (1995, p.104).
No quinto capítulo, intitulado La trompeta de Louis Armstrong, o
narrador-personagem descreve os seus primeiros passos, após vivenciar, por
dois anos, o Mal absoluto. Esse episódio ocorre alguns dias depois da
libertação, numa festa entre os sobreviventes. Ao contrário dos passos
pausados e sem força de outrora, os passos nessa cena, são alegres e
dançantes ao som da música On the sunny side of the street (No lado
ensolarado da rua), do cantor americano Louis Armstrong (1901-1971).
Novamente notamos a relação entre diferentes artes na narrativa de Semprún,
pois, através dum processo de intermidialidade, o narrador recorre ao jazz,
para encenar o ritmo alegre e febril do corpo liberto. Assim como o eu-lírico da
canção sai da obscuridade, conforme é refletido em um de seus trechos: “I
used to walk in the shade/ With my blues on parade/ Now i'm not afraid” (Eu
costumava andar na sombra/ Com minha tristeza em desfile/ Agora eu não
tenho medo), o narrador-personagem sai das trevas do Lager, rumo à luz da
liberdade. Na narrativa, o prazer provocado pela música embalava os
movimentos do corpo do ex-prisioneiro, que a partir desse instante, sentiu-se
livre para novas redescobertas corporais. Assim, o corpo torturado de
Buchenwald refaz a sua sensualidade e seu prazer: “la voz de cobre de Louis
69
Armstrong abría avenidas de deseo infinito, de nostalgia ácida y violenta”
(SEMPRÚN, 1995, p.123).
Walter Moser (2006) ao analisar as interações da música na literatura de
Ernst Theodor Wilhelm Amadeus Hoffmann (1776-1822), aponta que em um
conto de Hoffmann, o personagem ao escutar o som de uma música sente-se
impregnado por ela, pois, “mesmo mal tocada, ela provoca nele uma energia
emotiva que escolherá seu corpo para se exprimir” (MOSER, 2006, p.51).
Expressividade diluída no texto, que para figurar a intensidade da energia, faz
uso de um “vocabulário que se condensa em uma verdadeira isotopia
energética: ‘viva’, ‘furor’, ‘inflamar’, ‘fogo’, ‘brilham’, ‘delira’, ‘sacudir
convulsivamente’” (MOSER, 2006, p.51). De modo análogo a Hoffmann,
Semprún, intermidiaticamente, transpõe o sentimento interior de liberdade na
descrição dos movimentos corporais ao dançar o jazz. Moser justifica que esse
recurso é possível porque é “confiado como objeto de representação à obra
literária, objeto que lhe é acessível graças ao semantismo de sua mídia” (2006,
p.51).
Além da utilização do jazz para metaforizar a alegria rítmica do corpo
liberto, o narrador-personagem na procura de uma forma capaz de expressar o
“Mal radical” dos campos, encontra na música elementos que auxiliariam na
transposição literária de sua experiência. Anos depois de sua saída de
Buchenwald, em um bar em Paris, Semprún ao escutar o repertório de
Armstrong, reflete que o jazz, “esta música de libertad, violenta y tierna, de una
fantasía rigurosa” (SEMPRÚN, 1995, p.174), estruturaria a escritura do livro
que ele iniciara por diversas vezes:
Esta música, estos solos desolados o irisados de trompeta y saxo, estas baterías apagadas o tónicas como los latidos de una sangre vivaz, se situaban paradójicamente en el centro del universo que yo quería describir: del libro que quería escribir (SEMPRÚN, 1955, p.174).
O narrador-personagem ressalta que vários estilos musicais
configurariam a sua narrativa, e conclui: “construiría el texto como una pieza de
música, ¿por qué no? Estaría inmerso en la atmósfera de todas las músicas de
esta vivencia, no sólo la de jazz”. As diferentes músicas ritmariam o desenrolar
da narrativa, que seria ora pausada, ora acelerada, conforme a emoção
70
suscitada no relato, revelando a essência da atroz experiência. Confluente,
Valéria De Marco explica que
a analogia com a música constrói uma metáfora da estrutura da narração: a voz solitária, a dissonância e a descontinuidade da improvisação, sempre retomando o mesmo tema, a mesma frase. À semelhança da espiral, os ecos do solo poderiam representar o movimento da voz narrativa, o andamento da narração (DE MARCO, 2010, p.4 ).
Porém, mesmo crendo que havia encontrado a forma ideal para o seu
livro, com base nas músicas de sua experiência, o escritor não conseguiu
escrever, pois, a lembrança de Buchenwald era excessivamente traumática
para ser absorvida pela escritura. Escrever era o mesmo que despertar suas
dores e sofrimentos, segundo narra:
Cuando me despertaba a las dos de la madrugada con la voz del oficial S.S. en el oído, con la llana anaranjada del crematorio cegándome los ojos, la armonía sutil y sofisticada de mi proyecto se hacía añicos entre brutales disonancias (SEMPRÚN, 1995, p.175).
Muitos sobreviventes do Holocausto conviveram com a polaridade entre
o viver e o esquecer, às vezes, colocada sem deixar opção de escolha, e o
silêncio caminhava junto com a vida do ex-prisioneiro. Em A História como
trauma (2000), Márcio Seligmann-Silva, coloca que “libertação significa luta
pela sobrevivência, pelo ver-se livre do passado e por liberar esse passado da
sua terrível presença e literalidade” (2000, p.90). Assim, Jorge Semprún
escolhe o esquecimento deliberado e evita falar ou escrever sobre o seu
trauma. Para ele, escrever era como recusar a nova vida que tanto lhe custara
e regressar para a morte:
En Ascona, pues, bajo un sol de invierno, decidí optar por el silencio rumoroso de la vida en contra del lenguaje asesino de la escritura. Lo convertí en la elección radical, no cabía otra forma de proceder. Escogí el olvido, dispuse, sin demasiada complacencia para con mi propia identidad, fundamentada esencialmente en el horror de la experiencia del campo, todas la estratagemas, la estrategia de la amnesia voluntaria,
71
cruelmente sistemática. Me convertí en otro para poder seguir siendo yo mismo (SEMPRÚN, 1995, p.244).
Tzevetan Todorov, em Los abusos de la memoria (2002), explica que o
esquecimento de Semprún “en un momento dado, lo curó de su experiencia en
los campos de concentración” (2002, p.25), cabendo ao escritor decidir quando
deverá rememorar o passado, pois, “la recuperación del pasado es
indispensable; lo cual no significa que el pasado deba regir el presente, sino
que, al contrario, éste hará del pasado el uso que prefiera” (TODOROV, 2002,
p.25).
Um fato fez com que Semprún repensasse acerca da retomada da
escritura e saísse do proposital esquecimento: a morte do escritor italiano e ex-
prisioneiro de Auschwitz, Primo Levi. Relatado no capítulo El día de la muerte
de Primo Levi, o suicídio de Levi, ocorrido em 12 de abril de 1987,
coincidentemente, quarenta e dois anos depois da libertação, marcou o
narrador-personagem, pois, nesse momento ele percebeu que não era imortal
como pensou no ato da libertação: “comprendí que la muerte volvía a estar en
mi porvenir, en el horizonte del futuro” (SEMPRÚN, 1995, p.266). Não
adiantava fugir da escritura que o remetia para o passado da morte, já que a
mesma estava no seu futuro e no seu presente, pois, constantemente, ele era
“agarrado” pelas recordações traumáticas do Lager. O narrador-personagem
sabia do seu comprometimento com a memória coletiva do Holocausto, que
cabia a ele e aos outros sobreviventes, evitar o esquecimento da catástrofe. A
escritura do seu testemunho seria o rastro que “inscreve a lembrança de uma
presença que não existe mais e que sempre corre o risco de se apagar
definitivamente” (GAGNEBIN, 2006, p.44).
No rastro dessas reflexões, Michael Pollak argumenta no artigo
Memória, esquecimento, silêncio (1989), que existem inúmeras razões que
defendem o esquecimento da catástrofe, uma delas é de caráter pessoal, pois
muitas famílias querem poupar os filhos de crescerem na lembrança das
cicatrizes dos pais. Porém, com o passar dos anos, essas razões cruzam-se
para romper o silêncio “no momento em que as testemunhas oculares sabem
que vão desaparecer em breve, elas querem inscrever suas lembranças contra
o esquecimento” (POLLAK, 1989, p.6).
72
No mês de março de 1992, o narrador-personagem tomou uma atitude
que foi fundamental em seu retorno para a escritura. Após muita insistência de
um programa de televisão, ele regressou à Buchenwald para gravar uma
entrevista sobre sua experiência, episódio relatado no último capítulo, intitulado
Retorno a Weimar. Nunca mais ele tinha visitado ou visto imagens dos campos,
mas em uma noite anterior ao convite, Semprún teve um sonho que interpretou
como um bom presságio. Ao invés de sonhar com as vozes imperativas dos
nazistas, como era de costume, ele sonhou com a voz de uma cantora que ele
escutava em Buchenwald:
Una hermosa voz de mujer, un poco ronca, dorada: la voz de Zarah Leander. Cantaba una canción de amor. En cualquier caso, jamás ha cantado sino canciones de amor la hermosa voz cobriza de Zarah Leander. Por lo menos en Buchenwald, por el circuito de altavoces de Buchenwald, los domingos… […] Oía en mi sueño la voz de Zarah Leander en vez de aquélla, sin embargo esperada, habitual, repetitiva y lancinante, del Sturmführer S.S. ordenando apagar el horno crematorio. La oía proseguir su canción de amor, como tantos domingos de entonces de Buchenwald. Entonces me desperté. Había comprendido el mensaje que me enviaba a mí mismo, en este sueño transparente (SEMPRÚN, 1995, p.299) [itálico do autor].
Buchenwald não refletia a nebulosidade de horror de quase cinqüenta
anos atrás, mas a renovação da esperança. Os pássaros tinham voltado a
sobrevoá-lo, e com a demolição dos barracões, a floresta cresceu, cobrindo
grande parte do campo. O narrador-personagem teve a estranha sensação de
ter voltado para casa, só que não era mais como antigamente, a neve que caia
sobre ela, era diferente daquela que invadia de modo repentino sua memória.
Buchenwald de 1992, ao mesmo tempo que guardava a terrível memória da
catástrofe, encenava a restauração com o passar do tempo. Restauração que
ocorre imediatamente com Semprún, pois a partir desse retorno, decidiu voltar
à escritura do seu testemunho autobiográfico, que por diversas vezes foi
iniciado e interrompido: “me imponía a mí mismo la orden de concluir el libro
tanto tiempo, tan a menudo pospuesto [...]” (SEMPRÚN, 1995, p.299). Dessa
maneira, o narrador-personagem reconcilia-se com a escritura e com o seu
passado traumático, refletindo a possibilidade de libertar-se interiormente:
73
No puedo decir que estuviera emocionado, el término es demasiado débil. Supe que volvía a casa. No era la esperanza lo que tenía que abandonar, en la puerta de este infierno, sino todo lo contrario. Abandonaba mi vejez, mis decepciones, los fracasos y los errores de la vida. Volvía a casa, quiero decir al mundo de mis veinte años: a sus iras, a sus pasiones, a su curiosidad, a sus risas. A su esperanza, sobre todo. Abandonaba todas las desesperaciones mortales que se van acumulando en el alma, a lo largo de una vida, para recobrar la esperanza de mis veinte años que la muerte había arrinconado (SEMPRÚN, 1995, p.311).
Sigrid Weigel (1999), com base nos estudos de Walter Benjamin, afirma
que a transformação da existência em escritura, dá-se mediante o processo
figurativo de “la vuelta”, o que vai ao encontro da escritura sempruniana, em La
escritura o la vida, a qual inicia-se com a saída do narrador-personagem de
Buchenwald e termina com o seu retorno para o mesmo espaço, desvelando
uma volta à origem: “volvía a casa”. Essa volta ao começo, sugere o novo início
que Semprún deseja dar a sua vida, como também mostra o efeito circular do
tempo, no qual as lembranças de Buchenwald não somem, estão sempre
voltando, assim, o personagem fica preso nesse círculo mnemônico da
catástrofe, não conseguindo sair do mesmo. Com isso, sua narrativa é
constantemente entrecortada pelo círculo da memória, representado pelo uso
da anacronia, que através da analepse e da prolepse, traça um ziguezague
narrativo. Tal como observamos logo no início da obra, pois, a partir da
narrativa principal do relato do dia da libertação, irrompem-se inúmeras cenas
rememorativas, tanto anteriores como posteriores a ela, algumas tendo um
desfecho e outras não. A cada nova lembrança surgida o autor deixa um
espaçamento duplo na página, fazendo uso estético do espaço disponível para
encenar as lacunas do esquecer e do lembrar, conforme explica Jô Gondar em
Lembrar e esquecer: desejo de memória (2000):
Pensar implica em esquecer, segregar, excluir. Não devemos, pois, nos iludir com a pretensão do pensamento à universalidade: há, em todo pensar, uma segregação envolvida, o que torna impossível a constituição de qualquer universal. É preciso admitir essa segregação, mas não devemos deixar de entender o motivo que nos impede de realizá-la (GONDAR, 2000, p.35).
74
As elipses, as lacunas e os espaçamentos em branco existentes na
estrutura e no conteúdo da narrativa, metaforizam os lapsos da memória, bem
como, as pausas da dor e as fugas da mesma, já que a reaproximação com o
evento traumático, está metaforizada na narração. O campo é representado
como um espaço impenetrável, fechado pela opacidade da neve e da fumaça e
pelas recordações de sofrimento, conforme é exposto na obra:
Mi problema, que no es técnico sino moral, es que no consigo, por medio de la escritura, penetrar en el presente del campo, narrarlo en presente… Como si existiera una prohibición de la figuración en presente… De este modo, en todos mis borradores la cosa empieza antes, o después, o alrededor, pero nunca empieza dentro del campo. Y cuando por fin he conseguido llegar al interior, cuando estoy dentro, la escritura se bloquea… Me alcanza la angustia, vuelvo a sumirme en el vacío, abandono… Para volver a empezar de otro modo, en otro lugar, de forma distinta… Y el mismo proceso vuelve a repetirse… (SEMPRÚN, 1995, p.182).
Consonante, Romar Rudolfo Beling, em sua dissertação Uma poética da
memória: o holocausto na obra de Jorge Semprún (2007), explica que a
memória de Semprún tece um sinuoso jogo de lembranças, o que quebra a
lógica do enredo, deixando de lado a linearidade para render-se ao fluxo da
memória. Segundo Márcia Romero Marçal (2008), a forma precária do enredo
em La escritura o la vida, representa a debilidade do sujeito cindido pelo
trauma. No âmbito desse legado interpretativo pensamos que a obra em
questão é oriunda dum estilo próprio do escritor sobrevivente, engendrado
pelas suas impressões e pelas suas experiências.
Para Roland Barthes (1971), o estilo, juntamente com as imagens, o
fluxo verbal, o léxico, ou seja, todos os artifícios estéticos escolhidos na feitura
de uma obra “nascem do corpo e do passado do escritor e tornam-se pouco a
pouco os próprios automatismos de sua arte” (1971, p.20). Dessa maneira, o
estilo elíptico sempruniano metaforiza o narrador-personagem invadido pela
catástrofe e que regressa “aos pedaços” da mesma. Maurice Blanchot (1983),
explica que não é o sujeito que fala do desastre, mas é o desastre que fala
através do sujeito, ainda que seja pelo seu esquecimento ou pelo seu silêncio.
Igualmente, consideramos a escritura como uma das possibilidades de
linguagem, seja ela fragmentada e não linear, pois, “cuando todo está dicho, lo
75
que queda por decir es el desastre, ruína del habla, desfallecimiento por la
escritura, rumor que murmura: lo que queda sin sobra (lo fragmentário)”
(BLANCHOT, 1983, p.35). “Lo fragmentario” no enredo, também evidencia a
reordenação dos cacos de uma existência por intermédio da escrita, sendo a
mesma parte do processo de reconstituição do narrador-personagem.
Portanto, o percurso da composição artística é lançado na própria
narrativa, refletindo o duplo itinerário de (re)construção do sujeito escritor e do
sujeito sobrevivente. Recurso estético operado pela metalinguagem, que pensa
acerca da linguagem através de si mesma, expondo e desnudando o fazer
artístico: “o que a metalinguagem indica é a perda da aura, uma vez que
dessacraliza o mito da criação, colocando a nu o processo de produção da
obra” (Chalhub, 1998, p.42) [itálico da autora], trazendo à baila, de modo
análogo, a desnudação e a dessacralização do corpo do narrador sobrevivente
no campo nazista. As escolhas feitas, a forma desejada, os modelos a serem
seguidos, os fatos a serem retratados, ou seja, o passo a passo artístico é
mostrado ao leitor, o que reflete a dificuldade do escritor em encontrar uma
forma que conseguisse plasmar a catástrofe, e a impossibilidade do narrador
de regressar ao passado traumático.
Chalhub (1998) afirma que a estética moderna considera o
leitor/receptor um relevante colaborador na construção de sentidos do objeto
artístico. É pertinente ressaltar, que na narrativa de Semprún o leitor é
recorrentemente incluso, tendo um papel ativo na ação criadora, já que o
mesmo necessita atentar-se às rupturas da linearidade e ao jogo anacrônico do
enredo para compreendê-lo. O narrador-personagem, diversas vezes, transpõe
o leitor para a narrativa ao usar o presente verbal e advérbios, como: “hoy”,
“ahí”, “ahora”, dando a impressão que escritor e leitor vivenciam no mesmo
instante a cena. Em outros momentos, as chamadas são diretas, como
percebemos em dois fragmentos:
Hablamos en alemán, Rosenfeld es un oficial del III Ejército de Patton, pero hablamos en alemán. Desde el día en que nos conocimos, hemos hablado en alemán. Traduciré nuestra conversación para la comodidad del lector (SEMPRÚN, 1995, p.93) [grifo nosso].
76
[…] Después llegaré al Ettersberg, al azar que condujo a Blum, prisionero de la GESTAPO, al lugar exacto donde se desarrollaron las conversaciones de Goethe con Eckermann, y eso me llevará algún tiempo, justo el que necesito para presentarles al teniente Rosenfeld (SEMPRÚN, 1995, p.112) [grifo nosso].
A intermidialidade da Literatura com outras artes: a pintura, a escultura e
a música, é uma performance narrativa que visa dar ao leitor a noção imagética
e sensorial do fato narrado, criando metáforas para que o mesmo as
decodifique e desvele os seus sentidos. Outro recurso estético de Semprún
refere-se ao diálogo que ele traça com outros autores, sejam eles literários ou
filosóficos. São inúmeros os nomes de pensadores citados na narrativa,
pontuamos alguns: Kant, Heidegger, Theodor Adorno, Hannah Arendt, Max
Horkheimer, Sartre, e tantos outros da literatura: Kafka, René Char, Baudelaire,
Goethe, Paul Celan, André Malraux, Proust, Mallarmé, Bertolt Brecht, Victor
Hugo, André Breton. Tendo também variados trechos literários recitados no
decorrer do enredo, bem como, a reflexão do narrador sobre muitos livros que
leu, e alusões às outras obras suas. Diálogo intertextual que denota o
repertório da memória poética e filosófica do narrador-personagem e o seu
posicionamento crítico sobre os fatos narrados. A intertextualidade evidencia a
resistência às lembranças do Holocausto, o que faz com que o narrador-
personagem preencha o seu testemunho com outros textos e outras obras,
encenando a impossibilidade da escritura da experiência. De modo mais
aprofundado, também compreendemos esse recurso de inclusão de vários
trechos de diversas obras e de variadas línguas, como um conjunto de vozes
que representam os gritos dos vários companheiros de campo de Semprún,
pertencentes a nacionalidades distintas, e que ecoam na memória do escritor.
As interferências artísticas e textuais, juntamente, com o estilo elíptico
sempruniano, compõem um relato desconexo e fragmentário, processo que
não interfere na validação de seu testemunho. Segundo Izidoro Blikstein
(1995), por mais que o discurso apresente falhas em sua estrutura, uma
coerência interna pode ser detectada com a análise minuciosa de outros
detalhes, “como os lapsos, as confusões, as observações ‘insignificantes’, as
vacilações e o não-dito, distribuídos de maneira um pouco descosturada no
enunciado” (1995, p.149). É preciso apreender os sentidos do que,
77
aparentemente, não tem sentido, pois, os recursos utilizados revelam um estilo
que
mergulha na lembrança fechada da pessoa, compõem sua opacidade a partir de certa experiência da matéria. O estilo é sempre um segredo. Seu segredo é uma lembrança encerrada no corpo do escritor (BARTHES, 1971, p.21).
Confluente, Anatol Rosenfeld (1996), explica que, quanto mais há o
envolvimento do narrador na situação narrada, “mais os contornos nítidos se
confundem; o mundo narrado se torna opaco e caótico” (1996, p.92). Com isso,
a arte moderna desvela, tanto no seu conteúdo como em sua forma, “a
precariedade da posição do indivíduo no mundo moderno” (1996, p.97). A
ruptura da linearidade, o enredo circular, a intermidialidade, os intertextos, o
efeito anacrônico, a narrativa e a estrutura elíptica, o fluxo da memória, são
adaptações estéticas de Semprún para representar a sua condição de sujeito
fragmentado, o qual teve o corpo desfigurado e violentado no campo de
concentração e regressou com cicatrizes impossíveis de serem olvidadas.
Fragmentos narrativos que metaforizam a fragmentação de uma existência.
78
2.3 ¿La escritura o la vida? ¿La escritura o la mue rte?: Do retorno à
escritura mortífera ao esclarecimento libertador
Mas voltarei a essa lembrança, como se volta à vida. Voltarei a essa lembrança, deliberadamente, nos momentos em que precisar tomar
novamente pé, recolocar o mundo em questão, e eu mesmo no mundo, repartir, relançar a vontade de viver esgotada pela opaca
insignificância da vida Jorge Semprún
Em 1992 ao regressar à Buchenwald, Semprún resolveu retornar ao livro
que foi iniciado em 1987, - no dia da morte de Primo Levi -, o qual, por diversas
vezes, teve a escrita sufocada pela dor. Para ele, voltar ao campo através da
escritura era algo necessário, mesmo que não sobrevivesse a ela, visto que
seria a possibilidade de reconciliar-se com o passado e falar por aqueles que
foram silenciados pela morte.
Processo duplo de dor e de cura que refletimos à luz dos pensamentos
filosóficos de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer que analisam em Dialética
do esclarecimento (1985), o desenvolvimento do esclarecimento na sociedade
e buscam no passado mitológico as suas origens. É na narrativa de Homero,
especificamente em Odisséia (2008), que os filósofos traçam suas reflexões,
para eles, os infortúnios enfrentados pelo personagem Ulisses ao regressar
para casa, ilustram a constituição do sujeito, que para tornar-se emancipado e
esclarecido racionalmente, enfrenta e domina os mitos estabelecidos e se
transforma em senhor de si mesmo, processo de desencantamento do mundo,
que mediante a ruptura da magia mitológica, o ser constrói o saber.
Esclarecimento também de mão dupla, visto que ocorre, dialeticamente, a
libertação e a dominação, pois para libertar-se o homem trava uma luta para
dominar tanto a natureza externa como a natureza interna, ocorrendo a
autodominação de si próprio. Segundo explana Adorno e Horkheimer:
No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos
79
e substituir a imaginação pelo saber (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.19).
A calamidade instaura-se na medida em que saber é poder, e ambos
não conhecem nenhuma barreira. O uso dos mesmos “está a serviço de todos
os fins da economia burguesa na fábrica e no campo de batalha, assim
também está à disposição dos empresários, não importa sua origem”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.20), configurando-se num uso aleatório
baseado em interesses próprios, onde não importa o prazer dos novos
saberes, mas a sua utilização para obtenção de novos poderes, pois,
o que os homens querem aprender da natureza é como empregá-la para dominar completamente a ela e aos homens. Nada mais importa. Sem a menor consideração consigo mesmo, o esclarecimento eliminou com seu cautério o último resto de sua própria autoconsciência. Só o pensamento que se faz violência a si mesmo é suficientemente duro para destruir os mitos (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.20).
Conforme dito, é por meio de episódios da viagem de Ulisses, dos
cantos da Odisséia (2008), que os autores exemplificam o caminho percorrido
pela racionalidade na história. O primeiro trecho escolhido para exemplificar
essas questões é o que descreve as artimanhas de Ulisses para enganar o
ciclope Polifemo. Ao encontrar-se sob o poder de Polifemo, Ulisses arquiteta
um plano para fugir, dessa maneira, embriaga o seu inimigo que antes de
dormir pergunta o seu nome e ele responde ardilosamente: “Ninguém”. O
personagem nota que o ciclope dorme e aproveita para ferir com uma estaca o
seu único olho; ele desperta urrando de dor e solicita a ajuda dos outros
ciclopes, mas quando os outros chegam à caverna para ajudar, eles perguntam
quem o tinha ferido e quem estava lá com ele, e têm como resposta:
“Ninguém”. Sem entenderem, os ciclopes vão embora, deixando Polifemo
agonizando de dor, com isso, no dia seguinte Ulisses e seus companheiros
conseguem fugir da caverna do ciclope. Para Adorno e Horkheimer, a
artimanha de Ulisses para enganar o ciclope, foi “uma transparente
racionalização”, pois ao se autodenominar como Ninguém, ele nega a sua
própria existência, o que o “transforma em sujeito e preserva a vida por uma
imitação mimética do amorfo” (1985, p.71).
80
Negação também operada pelo narrador-personagem em La escritura o
la vida, que para resistir às violências de Bunchenwald refuta o seu corpo-
próprio e transforma-se em corpo-objeto para sobreviver, embate entre o
sujeito e seu corpo que Semprún mostra ao relatar uma das torturas sofridas
enquanto esteve preso:
Mi cuerpo se ahogaba, se volvía loco, pedía piedad, innoblemente. Mi cuerpo se afirmaba a través de una insurrección visceral que pretendía negarme en tanto que ser moral. Me pedía que capitulara ante la tortura, lo exigía. Para salir vencedor de este enfrentamiento con mi cuerpo, tenía que someterlo, dominarlo, abandonándolo al sufrimiento del dolor y de la humillación (SEMPRÚN, 1995, p.126).
Esse trecho da narrativa sempruniana é confluente ao conceito de
esclarecimento defendido por Adorno e Horkheimer, tendo em vista que para o
sobrevivente não dizer as informações que os torturadores nazistas queriam, e
consequentemente, não entregar-se aos mesmos, ele renega o seu ponto de
percepção no mundo: o seu próprio corpo. Notamos que ele pune e domina
violentamente o seu corpo fragilizado, para conseguir dominar o inimigo e
resistir a ele. Desse modo, a liberdade e a autopunição fazem parte do mesmo
processo de salvação.
Semprún narra que antes de ser preso, convivia bem com seu corpo,
para ele, o físico e a alma eram uma única matéria que conviviam
harmoniosamente: “yo estava dentro de mi cuerpo como pez en el água.
Estaba metido en él con toda mi alma, si se me permite ser tan categórico”
(SEMPRÚN, 1995, p.126), porém, depois que entrou em Buchenwald e teve
que enfrentar vários tipos de esgotamentos, ele desvinculou-se de seu corpo-
próprio para conseguir sobreviver às torturas impostas pelo inimigo, ou seja,
desvincula-se da sua identidade primeira e identifica-se com a não existência
para salvar sua vida.
Num outro episódio, o autor relata que ao chegar a Buchenwald teve
uma febre alta causada por uma furunculose, no entanto, havia um ditado entre
os veteranos que dizia que quem entrava na enfermaria do Lager, saía pela
chaminé do crematório; mediante a essa constatação fatal, ele novamente
desprezou as súplicas de seu corpo: “pedí a un compañero francés, médico del
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Revier, que me abriera los furúnculos que invadían mis axilas, y continué mi
vida de trabajo reglamentario. Todo volvió al orden” (SEMPRÚN, 1995, p.127)
[itálico do autor], para que ele não entrasse na lógica mortal do campo,
elaborou racionalmente sua condição violenta de auto-conservação. Portanto, o
corpo, ponto de ligação entre a natureza e a cultura, é renunciado pelo
narrador-sobrevivente, suas dores e seus extintos são repreendidos,
prefigurando a dominação tanto da natureza externa quanto da interna. Jorge
Semprún na medida em que repreende seu corpo, que o renega e domina seus
desejos internos, ele o faz para conservar sua existência e ludibriar a morte
que tentava dominá-lo.
Outro trecho da obra de Homero, ressaltado pelos filósofos, é o do
encontro de Ulisses com as sereias. Ao retornar à ilha de Circe, Ulisses recebe
instruções da mesma para prepará-lo para os novos infortúnios que enfrentaria
na volta para casa. Ela o alerta que em alto mar existe uma ilha habitada por
sereias que com suas canções sedutoras, atraem os marinheiros para a morte.
Devidamente precavido, Ulisses tampou os ouvidos da tripulação com cera,
enquanto ele próprio foi amarrado ao mastro, de modo que pudesse passar a
salvo pelo perigo e ainda ouvir a canção. Jeanne Marie Gagnebin (2006),
aponta que a vitória de Ulisses sobre as sereias, não representa somente a
vitória da racionalidade sobre os encantos do mito, mas também significa
a consagração de Ulisses como narrador de suas aventuras. Primeiro, porque se ele não tivesse passado incólume ao lado das sereias, mas tivesse se deixado seduzir e devorar por elas, ninguém teria sobrevivido para recordar a beleza do seu canto. Ulisses precisa não se entregar à sedução do canto para dele poder falar, para poder perpetuar a memória de sua beleza (GAGNEBIN, 2006, p.36).
De modo análogo o narrador-personagem, em La escritura o la vida
(1995), recusa o insidioso chamado da morte, que configuraria um possível
refúgio do espaço infernal do campo. Isso porque, em Buchenwald, a morte
estava por todos os lados, nos corpos desfigurados e esqueléticos dos
“mulçumanos”, nos odores de putrefação dos corpos e de carne queimada que
diluíam-se na fumaça do forno crematório, nas imagens dos amontoados de
corpos tortuosos, nos últimos suplícios dos companheiros, ou seja, a morte era
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carnal, palpável, sentida e penetrante, figurava para muitos, o destino certo e a
única saída do campo. Submergidos nessa atmosfera mortal, muitos
prisioneiros, após passarem por diversas violências, cansavam de resistir e
entregavam-se aos encantos da morte e aos seus chamados: “la muerte ha
callado, ya no hay modo de orientarse hacia la fuente de aquella salmodia.
Pero siempre vuelve a empezar: inagotable, la voz de la muerte, inmortal”
(SEMPRÚN, 1995, p.43).
No entanto, Semprún não se deixa conduzir pelo canto fúnebre para
poder transmitir os horrores do campo e perpetuar a sua memória de morte.
Confluente à reflexão feita por Gagnebin acerca das peripécias de Ulisses,
pensamos que a negação da identidade do narrador-personagem, bem como,
a auto-repressão para fugir e dominar o mito da morte metaforizam a
configuração do sujeito moderno esclarecido, que a partir do violento processo
de renúncias, agrega novos saberes sobre si e sobre seu corpo. Tal como a
volta do viajante, do sujeito errante, que, ao regressar para casa, traz na
bagagem de suas lembranças, novas experiências para serem compartilhadas.
Segundo Adorno e Horkheimer, “onde há o perigo, cresce também o que salva”
(1985, p.56), assim, mediante as estratégias arquitetadas pelo narrador-
personagem para dominar o inimigo e a si mesmo, ele se torna senhor de si:
O saber em que consiste sua identidade e que lhe possibilita sobreviver tira sua substância da experiência daquilo que é múltiplo, que desvia, que dissolve, e o sobrevivente sábio é ao mesmo tempo aquele que se expõe mais audaciosamente à ameaça da morte, na qual se torna duro e forte para a vida (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.56).
O escritor recusa as súplicas do corpo dolorido com a finalidade de
ganhar a libertação e contar o que vivenciou. Ao contrário de Ulisses, que
descreve para os seus a beleza do canto sedutor das sereias, Semprún
transmite os horrores vistos e vividos no Lager, uma tarefa árdua por tratar-se
de uma experiência indescritível e que se configurou num trauma em sua
memória. Assim, o holocausto caracteriza-se por ser inefável e exceder os
limites da imaginação, o que o projeta para a “estética do irrepresentável, do
indizível, ou do sublime” (GAGNEBIN, 2006, p.79). Para o filósofo Longino
(213-273 d.C), em Do Sublime (1996), a estética do sublime “exige força e
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mesmo violência, juventude, agilidade” (p.10) no ato artístico, o qual trata “de
situações limites e radicais” (p.21), que não são conseguem ser assimiladas
por imagens ou signos, sendo assim, o sublime é “a percepção disso” (p.21),
dessa “violência que desequilibra” (p.37). De algo que causa desconforto no
observador ou no leitor, pois, “o choque surpreende o julgamento e faz-nos sair
de nós mesmos, mergulha-nos no êxtase. É grande o que nos tira o fôlego, de
emoção e de surpresa. O que se admira, sempre, é o inesperado” (LONGINO,
1996, p.37) [itálico do autor].
Esse objeto obscurecido pelo horror, que “vai além dos ‘limites’ de nossa
percepção e torna-se para nós, algo sem forma” (SELIGMANN-SILVA, 2000,
p.84), é encenado na narrativa sempruniana. Uma arte impactante que não
designa a beleza esplêndida, entretanto, refere-se ao baixo, ao subterrâneo do
ser e ao que causa temor. Para Edmund Burke (1757), o “sublime é tratado
como pertencente ao campo do medo: medo da perda total do eu, da morte, do
inconcebível” (apud SELLIGMAN-SILVA, 2000, p.83). O escritor sobrevivente
enquanto esteve preso, vivenciou o que é mais temido pelo ser: a morte. Ela
habitava todos os espaços de Buchenwald, sendo desvelada na narrativa
através das imagens dos corpos magérrimos dos “mulçumanos”, dos
cadáveres descarnados com olhos arregalados, dos ambientes fétidos das
latrinas coletivas, das torturas desumanas, da nudez dos corpos, do corpo
dolorido; ou seja, são imagens que chocam por retratar o que é temido pelo ser
e que apesar de serem elaboradas ficcionalmente, fazem parte de uma
experiência de um corpo real que foi impregnado por essas mortes e por essas
dores. Gagnebin explana que o sublime não abarca somente aquilo que se
encontra além do homem, mas também questões que fazem parte do homem e
de suas atitudes, o que de modo paralelo “delineia uma outra região, escura e
ameaçadora, que gangrena o belo país da liberdade e da dignidade humanas.
Um ‘sublime’ de lama e de cuspe, um sublime por baixo, sem enlevo nem
gozo” (2006, p.79).
Seligmann-Silva (2000) afirma que muitas vezes na história das artes
associou-se a representação da dor ao sublime, vínculo que é perfilado em La
escritura o la vida (1995), pois as imagens citadas são reflexos de uma dor e
causam no leitor um desequilíbrio, pois, de certa maneira ele identifica-se com
o sofrimento. Essa narrativa desconcertante é oriunda do espaço marginal do
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campo, onde o que é desprezível, enojador e subliminar é escancarado pelo
escritor com a finalidade de expor a baixeza e a monstruosidade humana.
Mediante isso, o narrador-personagem da obra em questão, é a alegoria,
segundo a concepção de Walter Benjamin (1975), da figura do trapeiro, o qual
encontra “na rua o lixo da sociedade e a partir dele faz sua crítica heróica”
(BENJAMIN, 1975, p.15). Jorge Semprún apanha o que é ignorado tanto pelos
ouvintes despreparados como pela história oficial, para elaborar sua arte: “é o
passo do poeta que erra pela cidade procurando rimas; também deve ser o
passo do trapeiro, que a todo instante pára no seu caminho, apanhando os
lixos que encontra” (1975, p.16). Portanto, os excrementos, os cadáveres, as
dores, as mortes por exaustão, o odor de podridão, a fome enlouquecedora, as
montanhas de ossos e cabelos, enfim, tudo que remete ao horror do Lager faz
parte da feitura do testemunho de Semprún.
No entanto, o resgate desses resíduos de dor e de morte nas
lembranças, foi um processo doloroso para Jorge Semprún, já que as cicatrizes
que ficaram em sua memória impediram-lhe por muito tempo seu retorno à
escritura, conforme o escritor expõe:
Cual un cáncer luminoso, el relato que me arrancaba de la memoria, trozo a trozo, frase a frase, me devoraba la vida. Mi afán de vivir, por lo menos, mis ganas de perseverar en esta dicha miserable. Tenía el convencimiento de que llegaría a un punto último, en el que tendría que levantar acta de mi fracaso. No porque no consiguiera escribir: sino porque no conseguía sobrevivir a la escritura, más bien. Sólo un suicidio podría rubricar, concluir voluntariamente esta tarea de luto inacabada: interminable. O entonces la propia falta de conclusión le pondría término, arbitrariamente, mediante el abandono del libro en curso (SEMPRÚN, 1995, p.211).
Nesse fragmento literário percebemos a dificuldade do sobrevivente em
escrever; a metáfora antitética “cáncer luminoso”, encena que apesar da
escritura relampejar na mente do escritor, ela era para o mesmo a configuração
da morte. Há nessa metáfora o paradoxo luz versus sombra que representa a
polaridade da escrita, que tangenciava entre a possibilidade de libertação e a
morte definitiva. Através da reiteração de “trozo a trozo, frase a frase”, o
escritor enfatiza o processo lento de composição da narrativa, bem como seu
efeito corrosivo que teria como assinatura a morte voluntária de Semprún.
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Em 1987, numa das tentativas de elaboração de seu testemunho, o
narrador-personagem escolhe o nome que daria ao livro iniciado e interrompido
muitas vezes: “habitualmente, mis libros tardan en encontrar un título
satisfactorio. Este lo tuvo de antemano. Lo escribí con un rotulador de punta
gruesa: LA ESCRITURA O LA MUERTE...” (SEMPRÚN, 1995, p.249).
Contudo, não há no decorrer da narrativa algo que explique a não escolha
desse título e o porquê da mudança para La escritura o la vida, mediante isso,
interpretamos nesse processo de troca de nomes, um outro momento de
esclarecimento para o narrador-personagem.
Para Jorge Semprún, escrever era o mesmo que morrer, pois, o ato da
escritura singularizaria o retorno ao passado da morte. Porém, ele enfrentou
novamente o mito da morte, não mais a morte que rodeava Buchenwald, mas
aquela que invadia sua memória causando-lhe dores infinitas e a que ele
tentava constantemente esquecer, como ele afirma num outro momento que
justifica o seu silêncio: “tenía que escoger entre la escritura o la vida, había
escogido ésta. Había escogido uma prolongada cura de afasia, de amnesia
deliberada, para sobrevivir” (SEMPRÚN, 1995, p.212). Ao rememorar os
horrores de Buchenwald e ressuscitar seus fantasmas, o narrador-personagem
ignora seus traumas e suas cicatrizes e engendra o autodomínio para vencer a
morte. De igual maneira que renega o silêncio do seu presente para voltar para
ao passado turbulento, encena a reconstituição do sujeito esclarecido, que
através da escritura dolorosa do tempo pretérito (re)elabora o seu presente.
A escritura para Semprún foi uma tentativa de apaziguamento da dor,
um modo de descarregar a memória e compartilhar seus sofrimentos. Dessa
maneira, ela foi uma medida terapêutica, pois, segundo Walter Benjamin citado
por Fernandes Vaz (2004), o ato de narrar é uma comunicação que pressupõe
presenças corpóreas, havendo uma cumplicidade virtual, assim, a “narrativa é
capaz, até mesmo, de curar” (p.59), visto que ao trazer ao nível da consciência
as suas dores, a narração compõe processos de cura e libertação. Além da
cicatrização de suas feridas, o narrador-personagem constrói novos saberes
sobre si e sobre a humanidade, percebe a dimensão da monstruosidade
humana, que na busca de poder legitima ideologias asquerosas e doentias. Ao
fim, o narrador-personagem repudia sua condição de militante comunista, e
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conclui que ela era impulsionada por pensamentos que eram contrários aos
seus ideais de um mundo igualitário e pacífico:
Una especie de malestar, como una leve náusea, se apodera de mí hoy cuando evoco ese pasado. Los viajes clandestinos, la ilusión de un porvenir, el compromiso político, la fraternidad auténtica de los militantes comunistas, la moneda falsa de nuestro discurso ideológico: todo eso, que constituyó mi vida, que también habrá sido el horizonte trágico de este siglo, todo esto parece hoy harto trasnochado: vetusto e irrisorio (SEMPRÚN, 1995, p.275).
Para Semprún a libertação e os novos saberes são conquistados através
da reescritura do passado de dor, retorno ao tempo perdido, que inicialmente
mostrava-se irrealizável. A mudança do nome do livro para La escritura o la
vida, não foi involuntária, na medida em que a palavra “escritura” em ambos os
títulos singularizaria a morte. A primeira opção, La escritura o la muerte,
representaria o fracasso do escritor que voltou a morte e sucumbiu a ela, seria
a não sobrevivência da escrita que teria como conclusão o suicídio do escritor.
Todavia, o segundo e acertado nome, metaforiza a vitória do escritor, que para
lograr novos saberes e reconciliar-se com o passado, sacrifica a si próprio e
vence mais uma vez a morte.
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Considerações Finais
Os pousos se parecem uns com os outros. São necessários ao fôlego do viajor,
mas na marcha cada passo, mesmo o que leva
ao pouso, é um novo passo Alfredo Bosi
No início deste trabalho nos propomos a demonstrar de que modo o
escritor Jorge Semprún representava literariamente a dessacralização do corpo
durante o nazismo, na obra A escritura o la vida. No desenvolvimento da obra o
autor nos revela quais os mecanismos e os instrumentos operados pelos
nazistas para torturar, despersonalizar e exterminar o corpo dos prisioneiros.
Para tanto, tracejamos um percurso teórico para refletir sobre o que é e qual é
o papel do corpo no tempo moderno. De tal modo, constatamos que o corpo
moderno não é mais considerado como um “pedaço de matéria” ou “o invólucro
da alma”, mas sim, a identidade primeira do indivíduo, é através dele que
percebemos e sentimos o outro e o mundo. Porém, esse ponto de percepção
do ser é, ao mesmo tempo, um espaço de libertação e prazer e de dominação
e repressão, o que denota que o corpo é constantemente permeado por
relações de poder que visam manipulá-lo conforme interesses ideológicos e
capitalistas.
Baseados nesses pressupostos, verificamos o que representava o corpo
para o regime totalitário nazista, com isso compreendemos que dentro da
lógica perversa e doentia do nazismo o corpo foi dividido em corpo superior e
corpo inferior, concepção essa, com base em teorias raciais e científicas.
Portanto, todos os corpos contrários a essa lógica de superioridade, como o
corpo dos judeus e dos anti-nazistas, eram corpos indignos de terem vidas.
Esses corpos dentro dos campos de concentração nazistas sofreram cruéis
torturas e milhões foram exterminados.
O escritor espanhol, Jorge Semprún, por quase dois anos ficou preso no
campo de concentração nazista de Buchenwald, em 1994 publicou, em La
escritura o la vida (1995), o seu testemunho autobiográfico sobre sua
experiência no Lager. Para ele, somente a arte conseguiria representar os
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horrores do Holocausto, daquilo que ultrapassava os limites da compreensão
humana por ser algo indizível. Por essas questões o escritor ofereceu-nos as
impressões necessárias para refletirmos sobre esse corpo torturado durante o
nazismo, entretanto, era necessário verificarmos de que modo o escritor
perfilava essa violência em sua narrativa e se a mesma era configurada através
dos recursos estéticos.
Portanto, no segundo capítulo realizamos uma leitura analítica tanto do
conteúdo como da estrutura da obra em questão, pensando ambos como um
conjunto que desvela as impressões e experiências do escritor, configurando-
se em um estilo, ou seja, uma “voz decorativa de uma carne desconhecida e
secreta” (BARTHES, 1971, p.20), carne essa, que traz em si cicatrizes e dores
de uma experiência inesquecível. A respeito da influência do meio externo na
expressão artística, Michel Foucault (1990) explica que é de extrema
dificuldade haver uma linguagem que seja fiel, pois “todo o discurso puramente
reflexivo corre o risco, com efeito, de devolver a experiência do exterior à
dimensão da interioridade” (FOUCAULT, 1990, p.27). Dessa maneira,
concebemos que todos os recursos utilizados por Semprún na feitura de sua
narrativa testemunhal refletem e representam a catástrofe vivida.
Vimos que através de metáforas e figuras de construção o escritor
consegue expor a essência da crueldade dos soldados nazistas de
Buchenwald. Ele descreve a dessacralização do corpo dos deportados que
começava a partir do momento que eles chegavam ao campo, o que ocorria
com a troca de seus nomes por números, a retirada de seus objetos, a
raspagem brutal de seus cabelos e pêlos, os xingamentos, as violências
físicas, ou seja, com todas as estratégias possíveis para desmoralizar e
despersonalizar o prisioneiro. Após esse processo inicial, os presos conviviam
diariamente com torturas físicas e psicológicas que tornavam-se cada vez mais
atrozes. O escritor reflete sobre este momento ao narrar sobre as salas de
torturas, os instrumentos utilizados pelos nazistas para ferir o corpo causar-lhes
dores indizíveis.
A fome, o trabalho exaustivo, a insônia, o frio eram outros tipos de
torturas enfrentadas, mostrando que a aniquilação não ocorria de imediato,
mas a passos lentos, até o momento que não suportassem mais e se
entregassem à morte. Os que chegavam a esse estágio de entrega total são
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denominados por Semprún como “mulçumanos”, “cadáveres ambulantes”, e
são detalhados pelo escritor com uma construção imagética que metaforiza a
condição subumana desses prisioneiros que transitavam entre a vida e a
morte. Através da intermidiliadade com as artes visuais ele dimensiona ao leitor
a desfiguração corporal. Faz uso da arte pictórica para expressar o desespero
e a angústia desses homens, e da arte escultórica para plasmar a magreza de
seus corpos.
Com imagens anafóricas e reiterativas são figuradas as cicatrizes que
ficaram no corpo e na mente do sobrevivente, pois as utiliza para enfatizar o
constante retorno das imagens, dos odores e dos sons de Buchenwald em sua
memória. Toda essa vexação constitui-se em traumas que agrediram suas
percepções e os transformaram em um outro após a libertação, pois sempre se
sentia invadido pela morte que o atravessou no Lager.
É configurada, também, como a proporção traumática do Holocausto
impedia que o escritor sobrevivente regressasse à escritura, o qual criou
deliberadamente estratégias para tentar esquecer o horror vivenciado. Com
isso, o seu testemunho foi propositalmente evitado por quase cinqüenta anos, o
que só foi retomado após a morte de Primo Levi e do seu retorno à
Buchenwald. O próprio processo da elaboração de seu testemunho é
metalinguisticamente encenado no decorrer de sua narrativa, o que denota,
duplamente, a dificuldade do escritor em rememorar o passado, e que cada
passo e cada pausa desvelados no decorrer da narrativa, eram os fôlegos
necessários para que o mesmo alcançasse o seu objetivo de concretizar o seu
testemunho com vida.
As pausas e as elipses existentes tanto na forma como no conteúdo,
bem como, o efeito ziguezague funcionalizado pela anacronia, reflete a
interferência do fluxo da memória durante o processo de composição artística,
pois seu testemunho parte da rememoração de seu passado traumático.
Michael Pollak (1992), assim como Tzevetan Todorov (2000), abordam que a
memória é seletiva, onde “nem tudo fica gravado, nem tudo fica registrado”
(POLLAK, 1992, p.4), já que a mesma também sofre “flutuações que são
funções do momento em que ela é articulada, em que ela está sendo expressa.
As preocupações do momento constituem um elemento de estruturação da
memória” (POLLAK, 1992, p.4), assim, as flutuações e as seleções
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mnemônicas influenciaram na estruturação e na composição da narrativa
sempruniana, sendo figuradas por recursos elípticos.
Outro aspecto observado é o uso da intertextualidade, pois o autor traça
um diálogo com vários escritores literários e filosóficos, trazendo para dentro do
enredo fragmentos literários de obras diversas, o que representa os ecos dos
gritos e das vozes dos companheiros do campo que ficaram gravados em sua
memória, como também, um modo de preencher as lacunas do processo
dialético do lembrar e esquecer, que ocorre durante a feitura de seu
testemunho. A inserção recorrente do leitor é um modo também de construir
um interlocutor presente e disposto em escutá-lo, visto que os sobreviventes
não encontravam ouvintes preparados para os seus relatos de sofrimentos e
horrores inimagináveis, podendo assim, ter com quem, mesmo que de modo
ficcional, compartilhar o peso da dor existente em sua memória.
Portanto, é com um enredo entrecortado por outros textos e pelo jogo
anacrônico composto com uma narrativa fragmentada por elipses e lacunas na
estrutura e no conteúdo, e um discurso engendrado por metáforas, imagens e
figuras, que Semprún representa esteticamente o corpo dessacralizado nos
campos nazis. Processo de dessacralização que fez com que a composição de
sua narrativa fosse tecida mediante fragmentos, aos poucos e às pausas,
composição artística que reflete a fragmentação do corpo daquele que
regressou da morte.
Além de todas essas questões extremamente importantes, ele traz como
que se deu o processo de rememoração desse passado traumático e da sua
configuração em testemunho, o que encena a dificuldade do escritor em
publicar essa obra. Como uma reflexão final sobre esse singular escritor e essa
emblemática narrativa, pensamos na representação desse retorno de Semprún
à escritura, considerando que para o mesmo esse regresso era algo
necessário, porém, impossível. Mas, ele consegue a liberação mental para
deixar o registro.
A partir das reflexões de Adorno e Horkheimer, em Dialética do
esclarecimento (1975), pensamos que Jorge Semprún, como tantos outros
sobreviventes do Holocausto e de outros sistemas opressores do poder,
metaforizam o indivíduo moderno que para tornar-se emancipado
racionalmente renega sua própria identidade e se sacrifica para lograr novos
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saberes. Esclarecimento que ocorre primeiramente com Semprún através da
negação de seu próprio corpo, tendo em vista que enquanto esteve
encarcerado, por diversas vezes, ele exerceu um autodomínio sobre o seu
corpo na medida em que ignorou as suas súplicas de dor para não entregar-se
a morte, alcançando novos conhecimentos sobre si e resistindo ao inimigo.
Dessa maneira, evidencia-se o incessante interesse do poder de manipular o
corpo dos indivíduos, principalmente durante o nazismo, pois, conforme
demonstra Adorno e Horkheimer, a história do progresso de um país está
associada à história de dominação do corpo:
Sob a história da Europa corre, subterrânea, uma outra história. Ela consiste no destino dos instintos e paixões humanas recalcados e desfigurados pela civilização. O fascismo atual, onde o que estava oculto aparece à luz do dia, revela também a história manifesta em sua conexão com esse lado noturno que é ignorado tanto na legenda oficial dos Estados nacionais, quanto em sua crítica progressista. Essa espécie de mutilação afeta sobretudo a relação com o corpo (Körper) (ADORNO; HORKHEIMER, 1975, p.216) [itálico dos autores].
Num outro momento, após a libertação, ele novamente se sacrifica e
ignora suas dores e angústias para dar o seu testemunho, o que lhe
proporcionou a reconciliação com o seu passado traumático, um novo
entendimento acerca de seu presente e a renovação das esperanças para o
seu futuro. Processo de (re)elaboração e reconstrução mnemônica altamente
política que pôde manter viva a memória dos que não regressaram para contar
e ser uma maneira de “também lutar contra a repetição do horror” (GAGNEBIN,
2006, p.470). Infelizmente, como aponta André (2005), “no hay fronteras para
la impunidad, la aniquilación masiva y sistemática de la población”. No entanto,
afirma que
en momentos históricos como estos, tan brumosos y permeables de vida coloreada por tonalidades grisáceas y rojizas, las voces prematuramente enmudecidas se elevan en la belleza lírica de la poética testimonial, en esta “era de las catástrofes” (ANDRÉ, 2005, p. 30).
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O seu testemunho configurou-se em um novo rastro sobre a história do
Holocausto que se opõe as teses revisionistas, as quais buscam apagar todos
os rastros e provas sobre a aniquilação dos judeus e não judeus. Semprún não
traz em sua narrativa as estatísticas da quantidade de mortos durante o
nazismo, tampouco, a precisão das datas sobre essa catástrofe, pois segundo
ele, “acordarse y memorizar fechas no es lo mismo. [...] No se trata meramente
de una fecha para manuales escolares” (SEMPRÚN, 1995, p.129). Ao recordar
os momentos infernais vivenciados, ele imprime em suas páginas a morte e o
sofrimento impregnados em sua memória, plasma com minúcia a frieza dos
nazistas, reflete plasticamente a dor e o pavor dos deportados na agonia da
morte e com êxito relata-nos, de modo metafórico, a desestruturação paulatina
dos corpos no Lager.
Ao transmitir esteticamente todas essas questões inenarráveis, ele nos
transforma em novas testemunhas, pois não “fechamos o livro ao horror
relatado e prefiguramos também um rastro que busca juntamente com a arte,
humanizar o presente” (GAGNEBIN, 2006, p.57). Desse modo, contribuímos
para que esse passado de morte seja retomado de modo consciente,
colaborando na perpetuação dessa memória de horror que se configurou em
uma ferida aberta na memória coletiva da humanidade.
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