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O conceito de "progresso" s foi criado no final

do sculo XVIII, quando se procurou nmero reunir de grande novas

experincias dos trs sculos anteriores. progresso O conceito e de uni-

nico

versal nutria-se de muitas novas viduais setoriais, experincias de que indi-

progressos interferiam

com profundidade cada vez maior diana e na que vida antes quotino

existiam. Menciono a revoluo copernicana, o lento desenvolvimento da

tcnica, o descobrimento do globo terrestre e de

suas populaes vivendo em diferentes fases e de por do (...) e variao social tinham O pro-

desenvolvimento, ltimo mundo gresso afetadas Um grupo, feudal reunia, por um um pas, pela a indstria pois, e o dissoluo capital.

experincias coeficiente uma de classe

expectativas temporal. cons-

cincia

de

estar

frente

dos

outros,

ou

ento

procuravam alcanar os outros ou ultrapass-los.

ISBN

85-85910-83-6

9788585910839

beinhart Koselleck

\

Contribuio semntica dos tempos histricos

2528818Ac. 87508Y'l';,t 90101

901 K86f

QOI K86f Autor: Koselleck. Reinhart Ttulo: FuturoN.Cham. BC

RIO

518

de 2006, aos 82 anos KoseUeck, um dos mais contemporneos, d histria dos con_______]. A Contraponto Critica e crise, sua tese Agora, junto com a Edii a primeira edio, desta coletnea de formam, em conjunto, sobre o tempo hisespao de experint de expectativas de uma i suscita a construo I icta especfica de tempo, 1 natureza. A histria, t em sua prpria : rastreia principal do conceito moderno i de a mais importante Idt modernidade, ratado XVIII, o termo t Historie) era sempre ir narrativas I entre si: a histria a histria de i Igreja. A funo l pioiu exemplos de l peioc contemporem essa relao do . No lugar da Histo> da lngua alet tcq&encia unificada um todo, cons14o

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se disso-

I

FUTURO PASSADO

8010-030 . Florianpolis . SC * < * ) 3 0 2 8 . 6 2 4 4 Lj. Hall C.F.H.(UFSC).(48) 3233.4096 " W. livroselivros.com br ^ivroselivrosgterrs.com.bj

j

Faleceu em fevereiro de 2006, aos 82 anos de idade, Reinhart Koselleck, um dos mais eruditos contemporneos, principal construtor da histria dos conceitos [Begriffsgeschichte]. A Contraponto j havia editado Crtica e crise, sua tese de doutoramento. Agora, junto com a Editora PUC-Rio, apresenta a primeira edio, em lngua portuguesa, que formam, desta de em coletnea obras-primas conjunto, uma notvel reflexo sobre o tempo histrico. A combinao do espao de experincias e do horizonte de expectativas de coletividade construo cultural de uma idia especfica de tempo, diferente do tempo da natureza. A histria, pois, deve ser apreendida em sua prpria historicidade. principalmente de o surgimento para do ele conceito a mais moderno histria, importante inovao conceituai da modernidade. At meados do sculo XVIII, o termo histria sempre usado no plural para designar narrativas particulares, descosidas entre si: a histria da Guerra do Peloponeso, a histria de Florena, funo dessas narrativas era prover a histria da Igreja. A (em alemo, Historie) era Koselleck rastreia humana suscita uma a historiadores

exemplos vida neos. relao Historie, m entra que a Geschichte, uma termo a O serem seguidos altera contemporIluminismo

de pelos essa do

homem com o tempo. No lugar da da aledesigna seqncia

lngua unificada

de eventos que, vistos como um todo, constituem a marcha da humanidade. Toda a humanidade inclui-se agora em um nico processo temporal, que contm em si a sua prpria narrativa. A histria torna-se o seu prprio objeto. Abrese da tria, que e pretende o futuro passado, presente totalidade dotada de sentido. A histria deixa de um futuro planejado que agora se trata. Nas sociedades modernas do Ocidente, o espao de experincias do passado e o horizonte de expectativas de futuro se dissoser a mestra da vida. da construo de como o hisapreender o o uma caminho para a criao da filosofia

FUTURO PASSADO

fr

R. Jernimo Coelho, 215 . Cenlro 88010-030 Florlaopol,s *( < 8 ) 3 0 2 8 . 6 2 4 4 Li. Hall C.F.H.(UFSC): (48) 3233.4096 "livrosellvroi.com br ||^[email protected]||

PUCReitor

RI O

Pe. Jesus Hortal Snchez, SJ.

Vice-Reitor Pe. Josaf Carlos de Siqueira, SJ.

Vice-Reitor para Assuntos Acadmicos Prof. Danilo Marcondes de Souza Filho

Vice-Reitor para Assuntos Administrativos Prof. Luiz Carlos Scavarda do Carmo

Vice-Reitor para Assuntos Comunitrios Prof. Augusto Sampaio

Vice-Reitor para Assuntos de Desenvolvimento Pe. Francisco Ivern, SJ.

Decanos Prof." Maria Clara Lucchetti Bingemer (CTCH) Prof> Gisele Cittadino (CCS) Prof. Reinaldo Calixto de Campos (CTC) Prof. Francisco de Paula Amarante Neto (CCBM)

Reinhart Koselleck

FUTURO PASSADOContribuio semntica dos tempos histricos

TRADUO DO ORIGINAL ALEMO

Wilma Patrcia Maas Carlos Almeida PereiraREVISO DA TRADUO

Csar Benjamin

CORTRAPOnTOEDITORA

PUCRIO

Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main, 1979 Direitos para o Brasil adquiridos por Contraponto Editora Ltda. UDESC - BC contraponto Editora Ltda. Caixa Postal 56066 Rio de Janeiro - RJ - CEP 22292-970 Telefax: (21) 2544-0206 / 2215-6148 Site: wwvv.contrapontoeditora.com.br E-mail: [email protected]

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TTfjA^ Guicciardini em menor escala, mas tambm Montesquieu e Robert

Michel puderam contar, falando em termos modernos, com tais condies estruturais. No entanto, uma vez que as prprias condies estruturais se modificam como, por exemplo, a tcnica, a economia e com isso tambm a sociedade como um todo e mesmo sua Constituio a histria ter

9ue informar sobre as prprias estruturas em processo de alterao, co-

mo o caso da histria moderna. As estruturas mostram-se cada vez mais instveis e modificveis, submetendo-se ao empuxo da temporalizao. Originou-se a o impulso inicial da escola historicista, a qual resultou da reflexo sobre o espantoso ineditismo de seu prprio presente. Pois o mbito da experincia se estreita na mesma medida em que tem que se adequar continuamente aos processos que outrora ocorriam no longo prazo e que hoje so abreviados com uma velocidade varivel ou simplesmente acelerada. Assim, a singularidade da histria pde se tornar um axioma de todo conhecimento histrico. A singularidade dos eventos principal premissa terica tanto do historicismo como das teorias do progresso no conhece a repetio e, por isso, no permite nenhuma indicao imediata quanto ao proveito das aes passadas. Neste ponto, a "histria" [Geschichte] moderna destronou a velha historia como magistra vitae. Mas o axioma do princpio da singularidade individual que determina o conceito moderno de histria se refere estruturalmente falando menos ao ineditismo efetivo dos eventos do que singularidade do conjunto das transformaes da modernidade. Isso comprova-se pelo que passamos a chamar de "mudanas estruturais". Da no resulta, entretanto, que o futuro se subtraia terminantemente a qualquer ensinamento que venha da histria. O que acontece que os ensinamentos se movimentam sobre um patamar temporal compreendido sob um ponto de vista terico diferente. Tanto a filosofia da histria quanto os procedimentos prognsticos dela decorrentes informam sobre o passado, de forma a deduzir, a partir dele, instrues e diretivas de ao para o futuro. Tocqueville, Lorenz von Stein ou Marx so testemunhas disso. Se, no entanto, abandonarmos o campo de experincia tradicional e nos aventurarmos em um futuro desconhecido, antes de tudo tentaremos compreender a experincia de um "tempo novo". A partir da, o carter pedaggico da "histria" se modifica. certo que o diagnstico e o prognstico podem continuar a apoiar-se, como sempre, em estruturas durveis, de modo a projetar respostas para questes futuras a partir da premissa terica da capacidade de repetio dos eventos. Porm, desde a Revoluo Industrial e da Revoluo Francesa, esse carter repetitivo no recobre mais o espao da experincia. As mudanas estruturais de longo prazo, com intervalos de tempo cada vez mais curtos, resultam em predies que tm por objeto no mais eventos concretos singulares, mas sim as condies de um determinado futuro possvel.

" possvel prever o que est por vir, desde que no se queira profetizlo em detalhe" (Lorenz von Stein).8 A histria singular deixa de ser exemplar por seu carter repetitivo, a no ser que se deseje evit-la. Seu valor est em enunciar proposies estruturais, que falam de um futuro construdo como um processo. Exatamente quando a heterogeneidade dos fins introduzida como fator constante de incerteza, a anlise histrica estrutural conserva seu potencial prognstico. Nenhum planejamento econmico hoje possvel sem que se tenha em conta as experincias advindas da crise da economia mundial nica no gnero de 1930. A histria como disciplina deveria ento renunciar a essa funo em nome do axioma da singularidade? A histria refere-se s condies de um futuro possvel, que no se deduz somente a partir da soma dos eventos isolados. Mas nos eventos que ela investiga delineiam-se estruturas que estabelecem ao mesmo tempo as condies e os limites da ao futura. Desse modo, a histria demarca os limites para um futuro possvel e distinto, sem que com isso possa renunciar s condies estruturais associadas a uma possvel repetio dos eventos. Em outras palavras, s se chegar a uma crtica bem fundamentada garantia voluntarista oferecida pelos planejadores de um futuro utpico quando a histria [Historie] como magistra vitae extrair seus ensinamentos no apenas das diferentes histrias, mas tambm das "estruturas dinmicas" de nossa prpria histria [Geschichte].

Traduo de Wilma Patrcia Maas e Fabiana Anglica do Nascimento Reviso de Marcos Valrio Murad

CAPTULO

8

O acaso como resduo de motivao na historiografia

I. Falar do acaso na historiografia difcil, pois o acaso tem sua prpria histria dentro da historiografia, uma histria ainda no escrita. Para "explicar" o acaso de forma suficiente, preciso levar em conta em toda sua extenso o repertrio conceituai do historiador que se vale de um "acaso". Seria preciso, por exemplo, colocar a questo do conceito oposto que produz o acaso ou o conceito geral que o relativiza. Raymond Aron comea a sua introduo Filosofia da histria com uma anttese derivada por Cournot entre "ordre" [ordem] e "hasard" [acaso], concluindo que "o fato histrico , por sua essncia, irredutvel ordem: o acaso o fundamento da histria." 1 Avaliado a partir de um modelo fundamentado na regularidade das cincias naturais, o acaso parece constituir a essncia de toda histria, mas o carter datado dessas frmulas salta aos olhos. No curso de sua anlise, Aron dilui o carter radical da anttese e, com isso, transforma o significado do acaso na sua teoria do conhecimento histrico. Dependendo do ponto de vista do observador, um evento pode parecer casual ou no. Com isso, supera-se, historiograficamente, a anttese preguiosa entre necessidade e acaso. Em relao a um determinado conjunto de circunstncias um evento pode parecer casual; em relao a outro, pode parecer necessrio. Essa posio tambm compartilhada por Carr nos seus escritos sobre histria; o acaso se torna um conceito ligado perspectiva. 2 Dessa forma, atinge-se um patamar de reflexo capaz de dar conta, metodologicamente, do fenmeno "acaso". Entretanto, isso no bvio, e nem sempre foi assim. Do ponto de vista temporal, o acaso uma categoria que pertence exclusivamente ao presente, puramente contempornea. Ele no dedutvel a partir do horizonte de esperana que se volta para o futuro a no ser como fissura repentina desse mesmo horizonte e tampouco pode ser percebido como resultado de causas passadas: se assim fosse, deixaria de ser acaso. Portanto, enquanto a historiografia tiver como objetivo esclarecer as circunstncias de acontecimentos em sua dimenso temporal, o acaso permanece como uma categoria a-histrica. No se

trata de atribuir-lhe o estatuto de categoria no-histrica [ungeschichtlich] . Ao contrrio, o acaso bastante adequado para descrever o repentino, o novo, o imprevisto e tudo o mais que tenha sido assim percebido na histria. Tal ou qual conjunto de circunstncias s podem resultar do acaso, ou ento um conjunto cheio de instabilidades precisa do acaso como bode expiatrio. Sempre que o acaso for convocado pela historiografia, isso indicar uma inconsistncia dos dados e a incomensurabilidade de suas conseqncias. Exatamente a estar contido o que especificamente histrico. A metodologia histrica moderna evita o acaso tanto quanto possvel. At o sculo XVIII, entretanto, era comum se recorrer ao acaso ou s guinadas da sorte na interpretao das histrias [Historien]. Esse costume tem histria longa e movimentada, da qual trataremos aqui apenas de maneira genrica.3 A Fortuna foi uma das poucas divindades pagas transposta para o mundo cristo. Com a lgica amarga prpria do Iluminismo [Aufklrung] cristo, Santo Agostinho zombou das contradies suscitadas pela existncia de uma deusa do acaso: " Ubi est definitio illa Fortunae? Ubi est quod a fortuitis etiam nomen accepit? Nihil enim prodest eam colere, si fortuna est"4 Seu principal argumento consistia em deduzir todos os acasos das mos de Deus, dissipando assim a Fortuna da experincia histrica rigorosamente crist. Quando Otto von Freising refere-se aos acasos, e ele o faz freqentemente, apenas para expliclos como desgnio da vontade divina. 5 exatamente por causa de seu carter inapreensvel que a sorte remete aos desgnios ocultos da divina Providncia. Assim, a Fortuna foi assimilada pelo ponto de vista teolgico.

Se a fortuna foi aceita por um mundo que ento se cristianizava, quer como crena popular, quer na tradio de Bocio, porque seu lugar no cotidiano ou no contexto das histrias singulares no poderia ter permanecido vazio. Com toda a sua ambigidade, que se estende do acaso em direo a um destino bom ou mau, passando pela "prosperidade", a Fortuna oferecia um elemento estrutural para a representao de histrias [Historien] particulares.6 Ela indicava a existncia de mudanas que ultrapassavam os indivduos e escapavam do alcance dos homens. Qualquer que tenha sido sua relao com a virtude ou a crena, fosse ela entendida como decorrente da vontade de Deus ou mais tarde como Dele apartada, a Fortuna permaneceu como indicador da mudana dos tempos, da variao de constelaes que so mais fortes do que os planejamentos dos homens, transformados em ao.7 Tanto cristos quanto humanistas entenderam a Fortuna como "a filha da Providncia" ou "a me dos acasos".8 A metfora da roda da Fortuna,9 introduzida por Bocio na interpretao crist da histria, remete capacidade de repetio dos acontecimentos, de modo que, ao longo dos altos e baixos do percurso at o Juzo Final, nada de fundamentalmente novo pudesse acontecer neste mundo. Ao mesmo tempo, a fortuna foi instituda tambm com Bocio como smbolo do incomensurvel para a justificativa da existncia e dos atos de Deus. De ambos os aspectos resultou que a felicidade ou a infelicidade, que irrompiam em determinado conjunto de eventos humanos, tornassem mais ntido o sentido desse conjunto, exatamente porque no pareciam ser imanentes a ele. A dupla face da Fortuna abriu espao para todas as histrias possveis, seu rico dote de dons criou lugar mesa para "todos os sculos". 10 Sua maleabilidade assegurava que os acontecimentos humanos e suas interpretaes estivessem sujeitos a pressupostos sempre iguais. A fortuna faz parte, por assim dizer, da teoria das "histrias", e no das histrias como tais. Graas sua ajuda, a histria [Historie] foi alada at a exemplaridade. At aqui, a Fortuna pde ser racionalizada do ponto de vista teolgico ou filosfico e moral, mas no historicamente: ela se tornou um acaso puro e simples to logo passou a ser interpretada de forma emprica ou pragmtica. O problema do acaso na histria reapareceu metodologicamente, sobretudo quando se substituiu a Providncia por causas que no eram mais suficientes para esclarecer prodgios, milagres ou mesmo os prprios acasos. Tornava-se necessrio identificar um tipo determinado de causas de carter histrico imanente, algo como causae psicolgicas ou pragmticas que excluram a velha Fortuna e, com isso, fizeram do acaso um problema. O famoso nariz de Cleopatra que, segundo Pascal, tinha

mudado a face do mundo 11 ilustra a passagem de uma poca outra: o acaso se torna uma causa imanente da qual se podem deduzir grandes conseqncias. O acaso se torna causa justamente por conta de sua discrio e de sua superficialidade. Assim, Frederico II deduz, em seu Antimaquiavel, a paz de Utrecht de um par de luvas que a duquesa de Marlborough tinha encomendado precipitadamente.12 No sculo XVIII construiu-se toda uma perspectiva histrica baseada nessas justificativas, entre as quais se pode contar o Essay sur les granas venements par les petites causes [Ensaio sobre os grandes acontecimentos pelas pequenas causas], publicado em 1758 por Richer: a idia de que os negcios do Estado pudessem resultar de intrigas de amantes, ou,

como pensava Voltaire, que a devastao da Europa na Guerra dos Sete Anos tivesse sido desencadeada pelo amour-propre de umas poucas pessoas.13 Aqui, o acaso j se encontra colocado a servio daquelas justificativas que os historiadores legaram posteridade guarnecidas de argumentos morais. A propsito disso escreveu Duelos para o poltico Lus XIV, a ttulo de admoestao quanto poltica da poca: "Se considerarmos nossos infortnios, concluiremos que devem ser atribudos a ns mesmos, ao passo que nossa salvao deve-se ao acaso." 14 O acaso, de fato, remete ausncia dos comportamentos morais ou racionais que devem fazer parte de uma poltica bem-feita. Sob tal perspectiva, o advento da boa fortuna apenas a conseqncia de uma poltica racionalmente dirigida. La Fortune et le hasard sont des mots vides de sens [A Fortuna e o15

acaso brotaram

so palavras vazias de sentido], constatou o jovem Frederico;

da cabea dos poetas e se originaram na mais profunda ignorncia de um mundo que deu nomes imprecisos [des noms vagues] a efeitos de causas desconhecidas. O infortnio [Finfortune] de um Cato teria decorrido da imprevisibilidade de causas e efeitos que se precipitam uns sobre os outros, trazendo consigo contratempos que no puderam ser previstos. Reconhecendo isso, Frederico esforou-se para desenvolver um sistema poltico que lhe permitisse colocar a seu servio todas as circunstncias da poca. Frederico se despedia assim da velha Fortuna de Maquiavel, mas sem renunciar completamente aos seus significados. Conceitos temporais {temps e contre-temps) entraram no lugar da Fortuna, mas, ao se destacarem as causas e as intenes, seu espao de ao foi racionalmente delimitado. O acaso pontual revela-se ento como um feixe de causas, tornando-se um nome sem realidade. Isso deveria explicar, segundo Frederico, por que "fortuna" e "acaso" teriam sido os nicos deuses pagos a sobreviver at seus dias (observao que Voltaire expurgou ao realizar os cortes do manuscristo que seria entregue impresso). 16 Na obra de Archenholz veremos agora o quanto o acaso, para um historiador ilustrado, esvaiu-se ou se imps, seja por conta de uma situao histrica concreta ou de sua representao.//.

Von Archenholtz, antigo capito a servio do Regimento Real da Prssia, foi um dos historiadores mais lidos do sculo XVIII, assim como um dos autores daqueles "quadros de costumes" que prefiguram a moderna

sociologia. Na sua obra popular sobre a Guerra dos Sete Anos, recorre diversas vezes ao acaso. preciso ento que afaste a desconfiana que pesou contra ele de acordo com nossa investigao por supostamente ter se aventurado no territrio proibido dos conceitos extra-histricos a fim de encobrir, de forma elegante, a falta de justificativas para os acontecimentos em sua explanao. Examinemos mais de perto trs acasos invocados por Archenholtz. Citemos, para comear, a descrio da famigerada coalizo das cortes catlicas de Viena e Versalhes, que pareceu colocar de ponta-cabea todo o sistema poltico europeu conhecido at ento e cujo efeito foi to chocante quanto o pacto Hitler-Stalin em1939: "Essa unio da ustria e da Frana, que surpreendeu o mundo e

que foi considerada a grande obra-prima da poltica, foi um mero acaso."17 Pois assim explica Archenholtz esse acaso o rei da Frana no tinha o propsito de eliminar o rei da Prssia, apesar de muito irritado pelo acordo firmado entre Prssia e Inglaterra e a despeito das gestes de Kaunitz, em Paris, contra ele. O "projeto fundamental", o verdadeiro motivo para a Frana teria sido "[conquistar] o principado de Hanver para assim alcanar melhores perspectivas na Amrica". Com isso ele aponta uma causa citada como decisiva por Frederico em suas memrias, avaliada tambm pela historiografia ulterior como central porque caracteriza as circunstncias globais nas quais se deu a Guerra dos Sete Anos, a primeira guerra de dimenses mundiais em nosso planeta. O que era, pois, o acaso que Archenholtz introduziu aqui? Ele viu claramente a interdependncia de alcance mundial, dentro da qual a coalizo preenchia seus fins polticos. Mas aquilo que, do ponto de vista da corte de Versalhes tinha sido o "projeto fundamental" foi, para o leitor prussiano, um "mero acaso". Pois a coalizo se dirigia, segundo o ministrio francs (e no segundo madame Pompadour), em primeiro lugar, contra a Inglaterra, com quem a Frana disputava o domnio transocenico. O que pareceu absurdo, casual mesmo, no horizonte de sculos de equilbrio poltico interno europeu fazia sentido se considerado a partir de uma perspectiva global. Para Archenholtz, portanto, o acaso no era s um recurso estilstico para aumentar o contedo dramtico de sua representao o que, entretanto, tambm aconteceu , mas tambm uma forma de reproduzir determinada perspectiva: a perspectiva de seus contemporneos. Como contemporneo e combatente da grande guerra ele tambm compusera a sua histria. O acaso foi introduzido ao leitor da Europa Central

de um modo completamente justificado, na plenitude de seu sentido de algo no motivado, para passar ento a ter um motivo a partir da perspectiva ampla do historiador. Mas a motivao nasce de outros elos causais, de outra dinmica de razes, diferentes daquelas que poderiam ser apreendidas por um leitor hipottico. Desse modo, o acaso introduzido por Archenholtz mostra-se tanto acaso quanto circunstncia motivada. Um historiador cientfico do sculo seguinte, como Ranke, por exemplo, renunciaria a tal mudana de perspectiva; mas os historiadores do Iluminismo tardio foram instrudos como poucos a tratar a histria no s como cincia, mas tambm retoricamente, como representao, de modo a facilitar a transmisso do conhecimento. Tornava-se assim perceptvel a falta de consistncia do horizonte de expectativa [Erwartungshorizont) dos leitores alemes da o "mero acaso" daquela coalizo , ao mesmo tempo em que se tratava de emend-lo, pois Archenholz, por volta de1790, j procurava, onde fosse possvel, causas de cunho histrico mun-

dial para explicar os fatos. Que importncia tem outra casualidade invocada por Archenholtz para explicar a primeira batalha decisiva da Guerra dos Sete Anos? Archenholtz escreve: "Foi um acontecimento totalmente casual que salvou Praga e a monarquia (austraca): o passeio de um sbio monge nos primeiros dias do cerco. Este homem, Setzling, no totalmente desconhecido pela histria da literatura, avistou uma coluna de poeira que se aproximava pelo lado norte da cidade." 18 Segue-se uma descrio detalhada sobre o lugar onde o nosso monge sups que estavam os prussianos, como ele correu at o observatrio astronmico e l confirmou a suspeita pelo telescpio. Graas a isso, pde avisar a tempo o comandante da cidade, que ocupou uma posio ttica decisiva antes da chegada do inimigo. O antigo debate dos historiadores sobre o pirronismo permitira que Archenholtz avaliasse as questes relativas certeza e verossimilhana. Por isso, para no ser associado ao reino das narrativas fabulosas, ele se apressa a relativizar o seu acaso. Ele o toma a srio como fato, mas somente para medi-lo e avali-lo em relao ao poderio blico. Archenholtz diz:O assalto de surpresa a uma cidade ocupada por um exrcito de 5 0 mil soldados treinados e isso em pleno dia nunca fora mencionado nos livros de guerras e era incompreensvel para qualquer militar. A gerao da poca no acreditaria nisso, e a posteridade o consideraria como uma fabulao.

Um acaso decisivo para o decurso da Batalha de Praga o qual, originado em um mundo completamente estranho aos assuntos blicos, causa grande efeito sobre o desenrolar da guerra transposto por Archenholtz para o campo das possibilidades das foras militares. Assim considerado, o acaso muda de natureza: ele se torna uma anedota que lana uma luz irnica sobre a oposio catlico-protestante na luta pela Bomia; mas, inserido no mbito das tcnicas de guerra e dos tipos de armas fatores racionalmente apreensveis , o acaso pode ser aceito como tal. Inexplicvel como causa da salvao de Praga a no ser que Archenholtz aceitasse a lenda de Praga como vontade de Deus, opinio com a qual ele, como prussiano esclarecido, no teria compartilhado , o acaso, por meio de seus efeitos, integra-se a uma circunstncia crvel. Se levarmos em conta seus efeitos, o passeio de nosso monge, decisivo para a batalha, despe-se de seu carter casual. Tensionada entre as razes e as conseqncias racionalizveis advindas da arte da guerra de ento, essa interveno exterior foi registrada por Archenholz, mas tambm foi indiretamente desvalorizada, como um evento substituvel. O autor d a entender que, se no fosse esse o evento que protegeu Praga do ataque surpresa, teria sido outro. Que tenha sido precisamente esse evento, ou seja, o passeio do clrigo, algo singular e fruto do acaso; entretanto, do ponto de vista estratgico, isso irrelevante. A fim de deslocar o acaso e eliminar seus efeitos, Archenholtz lana mo de duas linhas de pensamento: uma refere-se estrutura das possibilidades militares, a outra vale-se da comparao entre histria e literatura. A antiga oposio ciceriana entre resfactae transmitida aos historiadores, de gerao em gerao, desde Isidoro, 19 citada para distinguir a possibilidade militar provvel (e no factual) e a improvvel (portanto, "fictcia").20 A ausncia do acaso teria levado ao domnio do possvel e do pensvel, mas, de todo modo, tambm ao inverossmil. Praga teria tombado de forma quase absurda. Ento seria o acaso completo, e o improvvel se tornaria acontecimento. Que tais experincias no escaparam compreenso dos contemporneos de ento mostra-o a moeda comemorativa que a cidade de Kolberg cunhou em 1760, depois de ter sido libertada dos 23 mil russos que a sitiavam. A inscrio da moeda diz, repetindo Ovdio, res similis fictae, que Archenholtz traduziu "real como a fico". 21 O exemplo da moeda de Kolberg esclarece mais uma vez como Archenholtz pensou o evento de Praga. O monge, em sua marcha meditativa, tratado com a e resfictae,

mediao do ponto de vista histrico militar. O acaso despido posteriormente de seu carter fortuito. Portanto, a Fortuna permanece no jogo. Mas, na estrutura causai, permanece em segundo plano, ainda que parea ter sido a primeira e nica a agir. Em seus escritos sobre a grandeza e a queda do Imprio Romano, Montesquieu forneceu uma explicao to simples quanto racional para esse fato. Todos os acasos permanecem submetidos s causas gerais: "E se o acaso de uma batalha, isto , uma causa particular, arruinou um Estado, havia uma causa geral que fazia com que esse Estado devesse perecer em uma s batalha. Em uma palavra, a aura principal produz todos os acidentes particulares."22 Aquele que procura causas certamente as encontrar. Seria leviano menosprezar o negcio do historiador dessa maneira. A arte de Archenholtz como historiador consiste em fazer com que grandezas com valores incomensurveis existam lado a lado, fornecendo, ao mesmo tempo, uma resposta suficientemente satisfatria do ponto de vista histrico. Mais tarde ele descreveu o cerco de Breslau em 1760. Diante do muro encontravam-se 50 mil austracos sob o comando de seu general mais capaz, Laudon. Na cidade encontravam-se9

mil prisioneiros de guerra aus3

tracos preparados para a rebelio, junto de alguns cidados simpatizantes da ustria; o nmero de defensores era de como um acontecimento que(...) no melhor dos casos aparece ao filsofo como um problema, ao passo que o sagaz historiador mal ousa mencion-lo por causa de sua improbabilidade. Tal milagre somente pde realizar-se pelo poder da disciplina militar prussiana.23

mil homens, sendo

apenas 1 mil soldados ativos. Archenholtz cita a defesa bem-sucedida

Pode-se discordar dessa justificativa do milagre, introduzindo-se outras causas a fim de retirar seu carter prodigioso; a tendncia, no entanto, clara: fala-se aqui em milagres e prodgios a fim de instruir o leitor mediano, que aguarda honestamente por eles.

Citemos o ltimo exemplo, que escolhemos aleatoriamente a partir da histria da Guerra dos Sete Anos. Como procede nosso autor para explicar a derrota de Kolin? "No foi a valentia e nem a arte da guerra, mas sim os acasos que decidiram o desfecho desse dia memorvel." Em Leuthen, ao contrrio, foram justamente a "valentia e a arte da guerra" os nicos responsveis pela vitria."24 Aqui, o orgulho nacional prussiano parece acompanhar o antigo soldado. Em Kolin, o acaso foi levado ao campo de batalha, claramente, por razes apologticas. Archenholtz esclarece, ao longo da narrativa, cada um dos acasos da batalha; como se sabe, ela foi perdida taticamente, porque a linha de frente de Frederico II se rompeu e ele, face superioridade austraca, no pde enviar tropas de reserva para preencher as lacunas que se abriam. Archenholtz explica em detalhes, pela psicologia, por que essa linha de frente se rompeu. As tropas, que deviam esperar, atacaram, contrariando as ordens do rei; os soldados mantiveram-se impetuosamente na linha de frente, em vez de retroceder para apoiar sucessivamente o flanco atacado de cada vez. "Insensatez e ardor blico" dos subcomandantes so tidos como os responsveis pelo acaso. Nesse ponto, uma questo poderia ser colocada ao nosso autor: a derrota no teria sido produzida por essas qualidades militares, por uma estratgia ruim e por uma valentia equivocada? Nas suas narrativas posteriores, o velho Frederico nunca invocou o acaso para atenuar a derrota. Ele nomeia cada erro que poderia ter levado seus planos a soobrar, calando-se eventualmente a respeito de seus erros pessoais. Atribui a derrota de Kolin aos erros tticos de seus generais, que agiram contra as suas ordens. O terceiro acaso que conhecemos por intermdio de Archenholtz desfaz-se, portanto, de maneira mais ostensiva que os outros, se observado a partir do ponto de vista causai, ainda que seu autor no tenha conscincia do processo. Resumindo: no primeiro caso da aliana entre a Frana e a ustria, o acaso foi uma questo de perspectiva. O disparate europeu continental, o carter indito e inesperado da aliana franco-austraca, torna-se compreensvel quando observado sob uma ptica histrico-universal. O segundo acaso, o monge que gostava de passear, decorreu de outras circunstncias de motivao que no a Batalha de Praga. A coincidncia foi, pontualmente falando, casual; entretanto, transposto para o nvel de possibilidades estratgicas, o acaso adquire um valor racional que pode ser calculado; seu carter fortuito desaparece na perspectiva geral. No o que acontece com o terceiro exemplo. Nesse caso, o acaso foi uma palavra colocada patrioticamente no tempo certo, que deveria obscurecer e diminuir a superioridade dos austracos e o ataque decisivo dos saxes. As categorias psicolgicas, das quais Archenholtz se serve,

encontravamse, de fato, no mesmo nvel de argumentao. Trata-se aqui de um acaso preguioso, que dispensa explicaes mais longas e a necessidade de autocrtica. Como disse Gibbon a respeito dos

gregos: "Depois que sua nao foi reduzida a uma provncia, os gregos atriburam o triunfo de Roma no ao merecimento, mas sorte da Repblica."25 A censura que fazemos hoje a Archenholtz o quo sensatamente ele soube integrar os dois primeiros acasos aqui apontados, ao passo que reduziu o terceiro a um clich capaz de expressar sua reao pessoal a um infortnio coletivo , essa censura s pde ser formulada porque, no sculo XVIII, o acaso foi banido da teoria da histria e da poltica. J convocamos aqui Gibbon e Montesquieu como testemunhas principais. Poderamos citar o prprio Frederico II. Sob a terrvel impresso da batalha perdida de Kolin, ele escreve ao marechal Keith, seu amigo, que "a Fortuna" o tinha abandonado: "A Fortuna me deu as costas naquele dia. Eu deveria ter suspeitado, uma mulher e eu no sou elegante. Ela ficou ao lado das mulheres que conduziram a guerra contra mim." Em 1760 ele escreveu ao Marqus dArgens, dizendo que no podia controlar a sorte, que teria que considerar mais o acaso, pois lhe faltavam os meios para concluir seus planos de modo independente. Com esta constatao, tambm de carter privado, Frederico no abandona o sistema de referncia que formulara no Antimaquiavel e sobre o qual se comprazia a lanar comentrios irnicos, como em sua carta a Keith. Em suas memrias da guerra, de maneira conseqente, Frederico II renunciou sorte, a qual, se adotarmos uma perspectiva a-histrica, por fim lhe foi favorvel. Nas memrias, trata-se sempre, de modo racional, de um equilbrio contbil dos erros e dos xitos do adversrio face aos seus respectivos planos. A interseco desse clculo aparece ento como a ao e seu resultado. Um resultado que quase nunca corresponde ao plano original de um dos agentes. Assim, Frederico II reconheceu, a partir das conseqncias de seu mtodo racionalizante, que a histria produz sempre mais, ou menos, conseqncias do que as que esto contidas em suas circunstncias prvias. Com isso, ultrapassou a explicao puramente causai em direo quela que se chamar, no sculo XIX, de a escola histrica compreensiva [die verstehende historische Schule]. III. A escola histrica do sculo XIX eliminou at o ltimo resduo do acaso, como se ver aqui, menos por uma ampliao conseqente do princpio causai do que por implicaes teolgicas, filosficas ou estticas ineren-

tes ao conceito moderno de histria. Para elucidar isso precisamos nos reportar mais uma vez a Archenholtz. Se at aqui tratamos do quanto Archenholtz pde racionalizar o acaso como um conceito estilstico a fim de criar um espao estruturado de forma causai, agora a velha Fortuna adentra o campo de batalha de uma forma historicamente inadmissvel: a morte da czarina Elisabeth em1762.

Em tom dramtico, a morte se introduz como destino. Enquanto Frederico II, na sua Histria da Guerra dos Sete Anos, menciona que esta morte havia jogado por terra todos os planos e acordos polticos, enquanto Ranke, mais tarde, demonstra que essa morte desvelou algo como uma "necessidade inerente" "combinao de circunstncias", 26 Archenholtz introduz a morte como senhora do destino. Caracteriza esse fato como "o maior benefcio da Fortuna", que teria evitado o declnio de Frederico II e da Prssia.27 Archenholtz serve-se do antigo conceito de Fortuna, algo que no era imanente aos eventos, mas estava acima deles. No se trata de um recurso estilstico para atingir a racionalizao, mas sim da referncia irrupo de possibilidades naturais no decurso de uma guerra planejada por todas as partes. A Fortuna no aqui um substituto da causalidade, ela se antecipa ao acontecimento. Com isso, Archenholtz permanece ligado a uma antiga experincia, que compartilha com os humanistas e tambm com os historiadores cristos: a histria [Historie] permanece instalada em seu eixo natural, ao passo que as histrias sobre a Fortuna so novamente remetidas a circunstncias extra-histricas. Embora a morte de um governante estivesse geralmente sujeita ao clculo de probabilidades, ela no podia ser influenciada por nenhum planejamento racional (a no ser pelo uso do veneno ou do punhal), subtraindo-se s causae pragmticas, ainda que tenha sido sempre possvel calcular ou planejar suas possveis conseqncias, como, por exemplo, na "sano pragmtica" de 1713. As guerras e questes diplomticas se justificavam quando a linha de sucesso das monarquias era interrompida, pois o horizonte poltico do futuro era delimitado pela expectativa de vida do governante.28 Portanto, se Archenholtz invocava a Fortuna nesse mbito de uma histria ainda "natural", no cometia com isso nenhuma infrao de estilo. A despeito de toda modernidade, Archenholtz vivia em um continuum que abrangia todas as histrias at ento conhecidas, o que pode ser ilustrado pelo fato de que, em suas narrativas, ele se valia freqentemente de eventos e fatos de tempos antigos, a fim de compar-los com os eventos e fatos da Guerra dos Sete Anos.

Os paralelos que ele desenha no servem interpretao histricofilosfica do evento, visto como um todo; eles se baseiam, acima de tudo, na identidade natural, tacitamente pressuposta, entre as condies de existncia de todas as possveis histrias; nesse caso, a Fortuna permaneceu como uma medida da comparao e de julgamento que permitia considerar Frederico II, Anbal ou Alexandre como contemporneos potenciais, Cannae e Leuthen como batalhas de natureza semelhante. 29 A ambivalncia de Archenholtz que consiste, por um lado, em diluir o acaso racionalmente e, por outro, em conservar a idia da Fortuna nos mostra a grande distncia que o separa da escola histrica. Humboldt, seu precursor terico, no nega o princpio do sculo XVIII segundo o qual era possvel tratar "a histria universal no passado e no futuro" sob uma perspectiva causai; os limites desse clculo dependeriam da extenso dos nossos conhecimentos sobre as causas atuantes. Dessa forma elimina-se o acaso, mas, com esse princpio, pensava Humboldt, no se consegue encontrar a especificidade da histria. O que distingue a histria sempre o indito, o nunca antes experimentado, as individualidades criadoras e as foras internas, que certamente dependem umas das outras na sucesso externa, mas que, "em sua singularidade e direcionamento, jamais poderiam ser deduzidas das circunstncias que as acompanham".30 A coeso interna e a singularidade da histria escapam a uma deduo causai (reside a o carter progressivo da perspectiva histrica) e, por isso, no se deixou nem Fortuna (como smbolo de retorno) e nem ao acaso um espao de manobra, uma vez que a singularidade do acaso j se integrava singularidade da 'histria em si". Humboldt experimentou uma nova experincia da histria, provendo-a de um conceito prprio, que por sua vez possibilitou o subseqente historicismo. A histria, na sua singularidade, devorou e incorporou o acaso. Dizendo de outro modo: se a histria, em sua singularidade, ultrapassa todas as causas, ento tambm o acaso, causa acidental que , perde seu peso histrico.31 Quando Leibniz definiu duas formas da verdade aquela da razo, que no suporta qualquer contradio, e aquela dos fatos, que, mesmo suficientemente fundamentados, esto sujeitos a contradio ele delimita ali, como "verdades de fato" [verits de fait] o domnio que mais tarde se caracterizou como "histria" [Geschichte]. Os fatos histricos do passado, assim como os do futuro, so possibilidades realizadas ou por se realizar, possibilidades que excluem uma necessidade obrigatria. A despeito de toda possibilidade de justificativa causai, os fatos perma-

necem contingentes, surgem no espao da liberdade humana. Sob esse aspecto, o futuro passado, assim com o futuro em devir, so sempre frutos do acaso. Mas, para Leibniz, essa seqncia de "acasos" tem, no transcorrer das coisas do mundo, a sua certeza singular, ela tem seu lugar no plano divino do mundo ideal. Sob a tutela da Teodicia, tambm os eventos contingentes e histricos mostram-se necessrios, mas no da mesma forma que uma comprovao geomtrica necessria. Eles so "necessrios (...) ex hipothesi, por acidente, por dizer assim".32 Considerado em uma perspectiva superior, o acaso, como se formular mais tarde, mostra-se historicamente necessrio. Desde ento, a motivao residual no mais ocultada pelo acaso; o que acontece que a teoria dessa histria moderna, na medida em que ela se desenvolve no sculo XVIII, lentamente, exclui a priori a motivao residual. Tanto o theologoumenorf da singularidade de tudo que terreno, sob o olhos de Deus, quanto a categoria esttica da unidade interna da histria foram integrados moderna filosofia da histria, resultando no conceito moderno de histria [Geschichte]. Desse modo, Wieland pde falar, em1770,

dos "mil acasos inevitveis" que impeliram os homens para o caminho sem volta da perfeio infinita. 33 Desse modo, Kant pde descrever a "astcia da natureza", que antecipa a "astcia da razo" de Hegel, com a qual tudo o que aparentemente casual adquire sentido.A considerao filosfica no tem outro propsito que no seja o de eliminar tudo o que casual. A casualidade apenas a necessidade exterior, ou seja, a necessidade que remete s causas, que por sua vez nada mais so do que circunstncias exteriores. Temos de buscar na histria um objetivo universal, o objetivo final do mundo.

Essa passagem de Hegel mostra o quanto ele j havia ultrapassado a racionalizao do acaso, na forma em que ela se dera no sculo anterior, e o quanto a coeso e unidade teleolgica da histria universal excluiu o acaso de maneira muito mais conseqente do que jamais fora possvel ao Iluminismo. "Deve-se levar a crena e o pensamento histria, de forma que o mundo do querer no seja entregue ao poder do acaso." 34 Mas no foi apenas a herana teolgica que excluiu toda manifestao do acaso no mbito do conceito idealista de histria. Tambm as reflexes literrias e estticas, as quais submeteram a arte de representao da historiografia exigncia de uma verossimilhana interna esta-

* Palavra de origem grega: constructo teolgico pessoal, fantasia teolgica particular, idiossincrasia teolgica. [N.R.]

belecendo, com isso, um contedo de "realidade" acima do comum , expulsaram o acaso aparentemente sem sentido. Em 1799 Novalis escreveu, resumindo a discusso corrente da poca: o amontoado de dados e fatos aos quais os historiadores se dedicam(...) faz com que esqueamos daquilo que , de fato, o objeto mais digno de nossa cincia, aquilo que constitui a histria como tal, unindo diferentes acasos em um todo agradvel e instrutivo. Quando reflito sobre tudo isso, parece-me que um historiador deve ser tambm, necessariamente, um poeta.35

A escola histrica recebeu impulso da potica e tambm da filosofia idealista, tendo ambas contribudo para que se compreendesse a histria previamente a todos os eventos como uma unidade imanente de sentido, cuja reflexo se d sob uma perspectiva cientfica. "Que outros meam e pesem; nossa tarefa a Teodicia", Droysen escreveu. Quando todos os eventos se tornam singulares, quando "todas as pocas [se relacionam] imediatamente com Deus", 36 o que acontece no a destituio do milagre: toda a histria se torna um nico milagre. "Aprende-se a idolatrar",37 acrescenta Droysen. Com isso, rouba-se ao acaso sua liberdade de ser casual. Seria desnecessrio considerar separadamente as implicaes teolgicas, filosficas ou estticas que se fundem na escola histrica: para a nossa investigao basta atestar o resultado do processo, ou seja, o fato de que todas essas implicaes atuaram para a formao de um conceito de histria que no permite mais a intervenincia de um acaso. O componente esttico do historicismo implica motivaes residuais que se ampliam para alm das justificativas teolgicas. Se, com isso, o conhecimento histrico se torna satisfatrio, mais do que quando Fortuna estava em jogo, uma questo que deve ser retomada. Talvez seja possvel demonstrar que a eliminao do acaso levou a uma exigncia mais alta de consistncia histrica, exatamente porque, no horizonte da singularidade histrica, a eliminao de cada acaso torna absoluta a relao causai como grandeza. Na modernidade, os resultados da atuao de Fortuna, no mbito de uma compreenso ainda no-histrica da hist-

ria, assumir o carter de ideologia, a qual impe a necessidade de manipulaes sempre renovadas, quando entra em cena revestida de uma legitimidade definitiva.

Traduo de Wilma Patrcia Maas e Fabiana Anglica do Nascimento Reviso de Marcos Valrio Murad

CAPTULO

9

Ponto de vista, perspectiva e temporalidade Contribuio apreenso historio grfica da histria

antiga a certeza do historiador quanto ao fato de que sua tarefa consiste primordialmente em buscar a verdade e transmiti-la. Essa certeza, vlida at hoje, em geral tem aprovao unnime. J a afirmao de que s se pode encontrar a verdade quando se adota um ponto de vista fixo ou mesmo quando se toma um partido, essa nasce nos tempos modernos. Ningum poderia contradizer, nos dias de hoje, a idia de que toda afirmao histrica est associada a um determinado ponto de vista. Pois quem poderia negar que a histria observada a partir de diferentes perspectivas e que uma alterao no mbito da histria corresponder necessariamente a uma alterao no mbito do discurso que a expressa? A velha trade lugar, tempo e pessoa tambm est presente na obra do historiador. Caso se altere um desses trs elementos, trata-se j de uma outra obra, ainda que se debruce ou parea debruar-se sobre o mesmo objeto. Quem, partindo da teoria do conhecimento, tentar investigar esse ponto de vista corrente ou melhor, essa mudana de ponto de vista logo encontrar dificuldade. Defrontar-se- com a crtica ao subjetivismo, ao relativismo ou at mesmo ao historicismo, a ele associados. Qualquer que seja hoje o significado do termo historicismo (do qual se abusou perversamente), ele com certeza inclui as alteraes de perspectiva forosamente decorrentes do transcorrer da histria. Novas experincias se agregam, antigas so ultrapassadas, novas expectativas se abrem. Logo colocam-se novas questes em relao ao passado, que nos levam a repensar a histria, a observ-la sob outros olhos, a demandar novas investigaes. A cincia histrica atual se encontra, portanto, sob duas exigncias mutuamente excludentes: fazer afirmaes verdadeiras e, apesar disso, admitir e considerar a relatividade delas. Nesse dilema, ela se defende com diferentes argumentos. Citamos dois: primeiramente, os historiadores podem referir-se ao enorme xito que a cincia histrica, lentamente constituda desde os incios da poca moderna, alcanou com seus mtodos. Em duzentos anos, aprendemos mais sobre o passado da huma-

nidade do que ela antes jamais pudera saber sobre si mesma. certo que deixamos de conhecer muita coisa, por conta do mau estado de conservao (ou ausncia) das fontes, mas, por outro lado, tivemos acesso a informaes que escaparam aos que foram contemporneos dos acontecimentos. Portanto, de certa maneira, sabemos mais do que antes e, freqentemente, temos mais informao a respeito do passado do que jamais fora possvel ter. Uma tal defesa do historiador, baseada na pesquisa emprica, conclusiva e difcil de contestar. O segundo argumento procura enfraquecer, do ponto de vista metodolgico e terico, a crtica ao subjetivismo ou ao relativismo. Tambm a cincia histrica teria desenvolvido uma arte metodolgica que lhe permitiria atingir proposies objetivas. A crtica de fontes, por sua vez, estaria submetida a critrios sempre acessveis, comprovveis e racionais. A isso se acrescenta a teoria da interpretao, ou hermenutica, que, por meio de Schleiermacher ou de Dilthey, teve acesso cincia histrica. Nas palavras de Dilthey:A compreenso e a interpretao constituem o mtodo adequado para as cincias humanas. Todas as funes encontram-se integradas nesse mtodo. Em si, ele contm todas as verdades das cincias humanas. A interpretao cria, em cada ponto, um novo mundo.1

Embora a essncia do mundo histrico sejam as transformaes, por meio da interpretao possvel apreender completamente cada situao singular. Tambm o passado longnquo, estranho e dessemelhante se torna apreensvel, traduzvel e reconhecvel pela integrao e empatia entre os intelectos. Tal teoria das cincias humanas fundamenta-se em uma natureza humana que permanece sempre a mesma, qual nada do que humano estranho. Graas ao processo de interpretao e compreenso, possvel chegar aos significados dos textos, os quais so, fundamentalmente, passveis de traduo. Graas ao processo de interpretao e compreenso, logramos analisar aes, planos, sucessos e fracassos do passado; graas compreenso e interpretao, as paixes do passado podem ser recuperadas e apreendidas. Admite-se que, como parte da humanidade, tambm o historiador tenha um ponto de vista condicionado pelas circunstncias. Fundamen-

talmente, por meio da crtica de fontes e da interpretao, a totalidade do mundo histrico se abre a ele. Dessa forma, o indivduo histrico

contemporneo, ao participar da objetivao histrica do passado ou do futuro, torna-se capaz de objetivar ele mesmo a histria. Temos, at aqui, um critrio emprico e um terico, com o fim de atenuar a crtica ao historicismo, sempre em processo de autocrtica e de auto-superao. Segundo o ponto de vista da pesquisa e da interpretao hermenutica, a histria fica como que suspensa, congelada, ainda que o historiador se saiba e se experimente como parte mutvel e mutante dessa histria. Encontramo-nos, portanto, diante de um impasse. Todo conhecimento histrico condicionado pelo ponto de vista e, por isso, relativo. Mas, a partir dessa constatao, a histria se deixa apropriar de maneira crtica, por meio de um ato de compreenso, o que conduz formulao de declaraes verdadeiras sobre ela. Formulando de modo mais agudo: parcialidade e objetividade excluem-se mutuamente, mas remetem uma a outra ao longo do desenvolvimento da tarefa histrica. Quero trazer baila, mais uma vez, esse dilema epistemolgico. Tentarei demonstrar, por meio de uma passagem histrica, que o nascimento do relativismo histrico coincide perfeitamente com a descoberta do mundo histrico. Buscarei, assim, extrair uma conseqncia terica que talvez seja adequada, se no para solucionar o dilema, ao menos para torn-lo mais palatvel.

I. A propsito das metforas pr-modernas da imparcialidade J h muito que a arte e a cincia histricas adotaram o princpio segundo o qual os relatos sobre o fazer e o sofrer humanos devem ser compostos de modo fiel verdade. A certeza de estar procedendo dessa maneira aflora freqentemente nas obras de historiografia. Desde Luciano ou Ccero, as normas que obrigam a dizer sempre a verdade, em toda a sua extenso, pertencem profisso de f do historiador, 2 de modo a resguard-lo de adentrar o reino dos fabulistas. O que chama a ateno nessa posio no , certamente, o apelo verdade em si, mas sim a exigncia que o acompanha, ou seja, de permitir que a verdade irrompa pura e imediatamente. Somente sob a abstrao da prpria pessoa, sem paixo e vaidade, sine ira et studio3 portanto, imparcial e objetivamente que a verdade poderia falar por si mesma.

Por trs dessas opinies polmicas, que poderiam conter observaes contra adversrios ou colegas de ofcio, esconde-se uma forma de realismo ingnuo, expresso adequada para designar contemporaneamente, do ponto de vista da teoria do conhecimento, as pocas que desconheciam esse tipo de formulao. Um indcio inequvoco desse realismo ingnuo, que acredita poder fazer com que a verdade das histrias se manifeste intacta, a metfora do espelho. A imagem que o historiador, semelhante ao espelho, deve refletir no deve ser deturpada, empalidecida ou deformada. 4 Esta metfora manifesta-se desde Luciano at pelo menos o sculo XVIII, seja por meio de Voss, que define ainda a histria [Historie], em 1623, ainda como speculum vitae humanae,5 seja por meio da nfase dada pelos iluministas ao proveito moral, exigindo por isso que a representao histrica oferea ao homem "um espelho imparcial de suas obrigaes e relaes". 6 Uma variante igualmente comum da despreocupao com o ponto de vista epistemolgico est na alegoria da "verdade nua e crua". 7 Neste ponto, no se deve subestimar o impulso, de carter duradouro, que se expressa a partir dessa metfora, ou seja, o de permitir que a verdade de uma histria fale por si mesma, se quisermos que essa verdade seja de fato conhecida e surta seus devidos efeitos. Entretanto, tomada ao p da letra, essa exigncia obriga o autor a se abster de qualquer julgamento, o que acaba por reforar a metfora do espelho. Fnlon escreve, em 1714, que a histria teria uma "nudit si noble et si majestueuse"8 de forma que podia dispensar quaisquer adornos poticos. Gottsched9 legitima a tarefa do historiador como sendo a de "dizer a verdade nua, isto , narrar os acontecimentos sem qualquer maquiagem ou adorno". Em 1814, o jovem Ranke refere-se "verdade nua, despida de quaisquer adornos", para, por meio desse "conceito de histria, desmascarar as narrativas falsas de Guicciardini".10 Blumenberg aponta, com razo, que se trata aqui de um anacronismo iluminista, 11 ainda que o prprio Iluminismo tenha colocado em questo a eficcia da metfora da verdade nua. Mais tarde o velho Ranke, em 1860, mantm-se, ainda que com reservas, fiel ao velho preceito, quando formula a confisso ainda hoje to citada: "Eu gostaria de poder apagar meu prprio eu, dando voz apenas s coisas que se manifestam por meio de foras poderosas."12 Uma terceira figura de linguagem, herdada, como as outras, da Antigidade, leva ao centro de nossa questo. A expresso uapolis" tambm foi introduzida por Luciano. Um historiador deveria ser "em sua tarefa

um estrangeiro, sem ptria, autnomo, no submetido a qualquer senhor". Somente em um espao livre de dominao seria possvel manter-se fiel verdade e "relatar, sem reservas, os acontecimentos que ocorreram."13 No parece ter sido muito maior o passo que o separa de Ranke, quando este definiu seu princpio histrico: sua inteno no era instruir ou doutrinar, "queria apenas mostrar como as coisas efetivamente aconteceram".14 O postulado cientfico da imparcialidade no sentido do apartidarismo, da neutralidade ou da absteno mantm-se intacto at o sculo XVIII. Bayle, Gottfried Arnold, Voltaire e Wieland mantiveram-se tributrios dele, assim como Niebuhr, o qual "buscava a verdade, sem partido nem polmica".15 Mesmo um historiador politicamente engajado como Gervinus partia do princpio de que crena, hierarquia ou ptria no devem confundir os sentidos, de modo que se possa escrever "sem observar limites ou partidos".16 Escrevia Ranke, seu distante adversrio:17 "Tudo se interpenetra: estudo crtico das fontes autnticas, interpretao apartidria, representao objetiva; a meta a presentificao da verdade completa", ainda que ela no esteja totalmente a nosso alcance. Mas logo Ranke acrescentava: "Pois a verdade s pode ser uma."18 Tratamos at aqui da descrio do terreno, da topografia, que inclui ainda um sem-nmero de eventos. Sem prejuzo de que os contextos se diferenciam, resta um ponto de conexo metodologicamente ineludvel no curso da investigao: aspirar imparcialidade e conceder a palavra ao lado contrrio. Seja para contestar sua acuidade, seja para (e isso mais moderno) relacionar reciprocamente todas as foras e partidos integrantes de um processo histrico, de modo que o processo como um todo possa ser apreendido a partir de um nico olhar. At a, o apelo imparcialidade mantm-se legtimo. Mas o mundo histrico no foi constitudo por essa velha e incontornvel dmarche dos procedimentos de investigao, ou seja, a necessidade de aspirar imparcialidade. A histria moderna surgiu a partir do movimento reflexivo da histria sobre seus pressupostos de ao e de conhecimento, o que deu origem a um novo conceito de "histria" [ Geschichte"}.19 O que distingue a histria moderna das histrias anteriores , antes de tudo, o estabelecimento, com a reflexo dos iluministas [Aufklrer], de uma histria em si e para si, destituda de um objeto de

conhecimento. A histria tornou-se um conceito reflexivo. Desde o Iluminismo, se relacionam entre si as condies do fluxo da histria e as

condies para a ao e o conhecimento dela. Isso no teria sido possvel sem a fixao de um determinado ponto de vista em meio ao movimento histrico. Certamente, mestres anteriores da arte histrica consideraram a influncia do narrador sobre a forma da representao. A associao da histria gramtica, retrica e tica, e, mais tarde, a crescente associao potica e esttica que levaram necessidade de se considerar tambm a produo criativa do autor. O historiador sempre teve um papel produtivo como artista ou como juiz moral, ainda que freqentemente confrontado com a funo de mero receptor. J o prprio Luciano cuidara de relativizar sua metfora do espelho, quando, no mesmo pargrafo, comparava o historiador ao escultor, a quem a matria-prima previamente dada, mas que, como Fdias, deve trabalhar da forma mais fiel possvel realidade. Pois assim justifica Luciano o leitor deve ser capaz de ver com seus prprios olhos os acontecimentos que lhe so narrados. Assim, a metfora do escultor criativo permanece presa ao crculo estreito da viso, da demonstrao e do espelhamento. Todas as metforas acima citadas, que em ltima instncia remetem a uma verdade nua e sem adornos, a ser reproduzida de forma precisa e objetiva, esto associadas forma de percepo da realidade que constitui, at o sculo XVIII, a representao histrica. As metforas, que contm em si um realismo ingnuo, alimentam-se mais dos testemunhos oculares do que dos testemunhos auditivos que atestariam a verdade da histria.20 Metodologicamente, o ponto de partida a histria do presente ou do passado mais recente. A ela foi possvel, da mesma forma que a Herdoto, compreender trs diferentes geraes, a fim de recuperar acontecimentos passados valendo-se do testemunho auditivo de sobreviventes, conferindo assim credibilidade ao contedo narrado. Permaneceu intacta a precedncia dada ao registro da histria contempornea, acrescida da contribuio dada, nos incios da poca moderna, pela literatura memorialstica. E assim permaneceu tambm quando a investigao estendeu-se ao passado imediato. Os ndices de verossimilhana permaneceram associados ao testemunho ocular, e, se possvel, ao de agentes e participantes, seja no que diz respeito histria da Revelao, seja nas histrias dos eventos eclesiais ou mundanos. A experincia histrica manteve-se associada a um presente que se movia continuamente para a frente, recolhendo fatos do passado, sem

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tipo de deduo da realidade e a exigncia de imparcialidade, ainda que o acontecimento tenha que ser analisado a partir de todas as perspectivas e o julgamento tenha que levar em conta todos os envolvidos. A histria como presente contnuo vive do interrogatrio de suas testemunhas oculares, ~* imparcialidade. **[ No resta dvida de que esse cnone, cuja simbologia remete a um espao de experincia ininterrupto e no fragmentrio, pode ainda hoje reclamar sua validade metodolgica. Mas as coisas no ficam por a. II. O compromisso com uma posio como pressuposto do conhecimento histrico Parece ironia da linguagem o fato de que, no mbito da viso e dos testemunhos oculares, da metfora do espelho e da verdade indisfarvel, justamente o posicionamento tenha assumido um papel fundamental para o conhecimento, sem que esse repertrio das metforas e da experincia, a elas associadas, tenha sofrido desgaste. Se o historiador tem que interrogar suas testemunhas, levando em conta o depoimento das melhores e colocando de lado as outras, como pode ser que seu prprio ponto de vista no exera influncia sobre a representao que faz dos fatos? Naturalmente, a questo j emergira antes, no menos sob a influncia da doutrina da perspectiva, conhecida j desde o Renascimento. Comenius, em 1623, compara a atividade do historiador com a perspectiva do telescpio, colocado sobre os ombros como uma trombeta que aponta para trs. Com esse olhar em direo ao passado, acrescenta, busca-se adquirir ensinamentos para o prprio tempo e tambm para o futuro. Seriam surpreendentes as perspectivas curvas, que, por sua vez, e a conduo desses interrogatrios exige distanciamentoc

o ^ e Sij

mostram tudo sob luz diferente. por isso que no se deve "confiar que (...) uma coisa se comporte na realidade da mesma forma como ela se apresenta a quem a contempla".21 Cada um confia apenas em seus prprios culos; da s podem advir controvrsias e discrdia. A dvida cartesiana e o ceticismo pirronista contriburam, da mesma forma, para a m conscincia do historiador no que diz respeito a ser capaz, efetivamente, de oferecer representaes da histria de acordo com a verdade. Por conta disso, o Dicionrio Zedier diz, ainda orientandose pelo ideal realista de conhecimento e traduzindo, cheio de precaues, a metfora de Luciano: seria muito difcil, quase impossvel, "ser um historiador perfeito em seu ofcio. Aquele que se propusesse a isso, deveria, se conseguisse,22

desligar-se

de

qualquer

corporao,

partido

ou

religio."

Coube a Chladenius comprovar que isso seria impossvel. 23 Chladenius (1710-1759) ainda estava submetido ao crculo vicioso "testemunho ocular-autenticidade" quando desenvolveu a noo do objeto da histria a partir das histrias simultneas das diferentes geraes coexistentes, delineando, a partir da, a noo de histrias futuras e de "velhas histrias".24 Mas essa distino j no se orientava por circunstncias cronolgicas ou de contedo e no se aplicava a uma poca particular, tendo sido concebida a partir da perspectiva da teoria do conhecimento. "Autor", "agente" ou "expectador" so mais confiveis que "narrador" [Nachsager]: a transmisso oral predomina sobre a escrita. A velha histria se inicia, ento, quando no h mais testemunhas oculares sobreviventes e nem se pode mais interrogar testemunhas auditivas vinculadas aos acontecimentos. Com a morte das testemunhas estendem-se os limites da velha histria, limites que aumentam na mesma medida em que as testemunhas desaparecem. O contedo da histria no se deixa mais organizar por uma ordenao temporal previamente estabelecida eventualmente, por Deus. As histrias futuras e as histrias passadas so determinadas por desejos e planos, assim como pelas questes que surgem de hoje. Do ponto de vista da teoria do conhecimento, o espao contemporneo da experincia torna-se o centro de todas as histrias. Assim, Chladenius finaliza a epistemologia das histrias pr-modernas, formalizando-a em um conceito vlido at hoje. Assim, Chladenius torna-se um fundador da modernidade, pois a articulao temporal da histria passa a depender do ponto de vista ao qual for relacionada.

Chladenius partiu do princpio de que a histria e sua representao seriam coincidentes. Mas uma separao metodolgica se faria necessria para que se pudesse interpret-la e julg-la. "Uma histria constitui uma unidade em si mesma; sua representao, entretanto, distinta e diversificada." Uma histria como tal, em sua singularidade, s pode ser pensada a partir de uma perspectiva isenta de contradies; mas todo relato que se faz dela fragmentado, fraturado pela viso perspectivista. decisivo o fato de essa histria ser avaliada por meio da perspectiva de um "envolvido nos acontecimentos" ou de um "forasteiro", de um "amigo" ou "inimigo", de um homem "cultivado" ou "no-cultivado", de um "homem da corte", de um "burgus" ou de um "campons", de um "agitador" ou de um "sdito fiel". 25 A partir desse fundamento, Chladenius extrai duas concluses. Em primeiro lugar, a relatividade de toda perspectiva de julgamento, de toda experincia. Pois pode haver dois relatos contraditrios entre si que pleiteiem, cada um deles, a verdade.H uma razo pela qual conhecemos algo dessa maneira e no de outra. Trata-se do ponto de vista a partir do qual se contempla a mesma coisa. (...) Desse conceito decorre que aqueles que contemplam algo a partir de diferentes pontos de vista devam necessariamente construir representaes diferentes desse objeto (...). Quod capita, tot sensus.26

Em segundo lugar, Chladenius extrai de sua anlise do testemunho ocular e das tendncias de comportamento social e poltico a perspectiva da investigao e da representao histrica posteriores. Certamente deve-se buscar conhecer a histria passada pela adequada inquirio de testemunhas e da correta interpretao dos indcios at aqui, Chladenius suporta um ideal de conhecimento moderadamente realista , mas as circunstncias nas quais se deram os acontecimentos no podem mais ser recuperadas em sua totalidade por qualquer forma de representao. A "imagem original da histria" transforma-se em narrativa durante o prprio depoimento.27 A determinao pelo ponto de vista limita no apenas as testemunhas; atinge tambm o historiador. Uma histria j ocorrida permanece irrevogavelmente igual a si mesma, mas as perspectivas do historiador fragmentam-se como um caleidoscpio, conforme seu ponto de partida. O bom historiador, que deseja relatar uma "histria que faa sentido", s pode reproduzir essa "imagem original" por meio de "imagens mais novas." 28 Ele precisa escolher e abreviar, faz uso

de metforas e certamente precisar lanar mo de conceitos universais;

com isso, o historiador cria novas ambigidades incontornveis, que, por sua vez, fazem supor a necessidade de interpretao. Pois o historiador, quando emprega "imagens mais novas, tem em vista algo" 29 que tambm o leitor ter de vislumbrar, se quiser fazer um julgamento sobre a histria da qual se trata. Tanto a histria vivida quanto aquela cientificamente elaborada so constitudas por perspectivas portadoras e formadoras de sentido, social e pessoalmente condicionadas. "Esto muito equivocados aqueles que exigem que o historiador se comporte como um homem sem religio, sem ptria e sem famlia, pois exigem algo impossvel." 30 A partir de Chladenius, os historiadores passaram a ter mais certeza sobre o fato de que podem vislumbrar na verossimilhana uma forma particular, mas ainda assim histrica, da verdade. Desde ento, a posio do historiador deixa de ser um argumento contra o conhecimento histrico, passando a constituir um pressuposto desse conhecimento. Chladenius no esqueceu de traar um limite preciso para excluir falsrios ou criadores de fatos, que no se baseiam no cnone racionalmente controlvel da inquirio de testemunhas ou do estudo de fontes. O inevitvel perspectivismo no conduz a uma(...) narrao de carter parcial, que, contra a cincia e a conscincia, obscurece e inverte [os fatos]. (...) Uma narrao imparcial no pode significar o mesmo que narrar algo sem ter um ponto de vista, pois isso impossvel; por sua vez, narrar algo de forma parcial no pode significar o mesmo que narrar segundo seu prprio [do narrador] ponto de vista, pois, nesse caso, todas as narrativas seriam igualmente parciais.31

Com essa constatao, com a qual fica claro que a formao de um juzo sobre algo, a partir de uma perspectiva prpria, no idntica parcialidade, Chladenius logrou formar um arcabouo terico que ainda hoje no foi ultrapassado. Pois o estudo de fontes possui uma resistncia intrnseca e um peso prprio que no podem simplesmente ser deslocados depois, ao bel-prazer, por partidarismos a favor ou contra. No entanto, certo que as fontes podem informar resultados diferentes a partir de abordagens diferentes. Voltaremos a isso, na concluso. A teoria do conhecimento de Chladenius significou um ato de libertao. Com o alargamento da perspectiva testemunhai, at ento objeto da inquirio histrica, em direo prpria perspectiva do historiador, esta ltima ganhou um espao antes impensvel. Fazendo uso desses

critrios, o historiador pde se dar ao luxo de "produzir" histria: avaliar as causas, acompanhar circunstncias de longo prazo, alterar a disposio do comeo e do fim de uma histria; pde esboar sistemas mais adequados complexidade das histrias do que a mera adio de conhecimentos. Da "poli-histria" [Polyhistorey] fez-se a "politeoria" [Polytheorey], nas palavras de Klopstock.32 Por fim, considerando o controle das fontes, o historiador pde criar histrias hipotticas, que conduziam o olhar mais para os pressupostos de todas as histrias do que em direo s histrias em si. Em suma, sob os auspcios do conceito criado por Voltaire, o historiador pde tornar-se o filsofo da histria, o que antes era possvel. Fnlon previra essa ruptura quando postulou, em 1714, que a verdadeira perfectibilidade da histria residia no arranjo que se fazia dela. A fim de lograr uma boa organizao dos fatos, o historiador deveria ser capaz de abarcar sua histria, como um todo, em um nico olhar; deveria vir-la e revir-la em todos os seus ngulos at encontrar o verdadeiro ponto de vista. Assim ele poderia finalmente esboar a histria como unidade coesa e conduzir os eventos mais importantes a sua causa inicial comum.33 Chladenius fundou esse princpio em teoria, mas de forma a relativizar, a historicizar, se quisermos dizer assim, a questo sobre o verdadeiro ponto de vista do historiador. Ele se confrontou com uma pluralidade de pontos de vista, que pertencem necessariamente ao conhecimento histrico, sem desistir de buscar aquilo que lhes comum, a verdade histrica. Entretanto, deslocou a nfase que incidia sobre a prpria verdade para as condies de conhecimento dessa verdade. Desde ento, inspirados por ele, os historiadores tiveram coragem de referir-se aberta e conscientemente sua "posio", uma vez que deveriam refletir seu ponto de vista. Essa ruptura no horizonte da teoria da histria completou-se na segunda metade do sculo XVIII. III. Temporalizao da perspectiva histrica A obra de Chladenius como uma espada de dois gumes. Sua teoria do conhecimento alimentou-se at o limite de imagens e alegorias, sob o primado do aspecto visual. A testemunha ocular, como garantia da representao de um acontecimento, permaneceu como o principal tipo de testemunha histrica. O espao histrico da experincia que correspon-

de a esse princpio aquele que contm sujeitos que praticam e sofrem aes, o espao de eventos cuja capacidade testemunhai aumenta com a proximidade desses mesmos sujeitos em relao aos eventos e diminui com seu afastamento. Coerentemente, a "Cincia histrica universal" [Allgemeine predominantemente das condies que determinam o conhecimento histrico do presente, para depois, com base nisso, ocupar-se das fontes e de sua interpretao. As histrias do passado, situadas fora da lembrana coletiva, constituam mero complemento da experincia histrica do presente. Mas tambm as histrias futuras pertenciam ao organon da interpretao histrica, uma vez que planos, expectativas e desejos faziam parte tanto da histria futura quanto da contempornea, assim como daquela do passado recente. As trs dimenses do tempo fundiram-se sob uma perspectiva antropolgica, ao mesmo tempo em que passaram a remeter umas s outras, mantendo sua localizao determinada. Esse quadro alterou-se rapidamente desde ento. A segunda parte da teoria de Chladenius, com sua moderna doutrina da histria perspectivista, teve no pouca responsabilidade nessa alterao. A partir de um uso predominantemente metafrico em direo ao espao de um presente contemporneo, a viso perspectivista adentra mais e mais as profundezas temporais. Ao mesmo tempo, adquire um significado temporal capaz de articular uma crescente distino entre as histrias do passado, do presente e do futuro. As diferentes maneiras de ver adquiriram uma capacidade temporal de alterao, que correspondia ento a uma crescente capacidade de acelerao da histria. Faamos um breve esboo desse processo na historiografia. O uso dos termos "ponto de vista" [Sehepunkt], "posio" ou "ponto de observao" [Standort ou Standpunkt] tornou-se cada vez mais freqente. Tambm Stolzer, Wegelin, Semler ou Kstler fizeram uso deles e, medida que a abordagem perspectivista passou a ser levada a srio, alterou-se tambm o Status da histria passada. Ela perdeu a caracterstica que a obrigava a ser sempre igual a si mesma. nesse esprito que Thomas Abbt escreve Geschichte menschlichen Geschlechts, soweit selbige in Europa bekannt worden [Histria do gnero humano onde conhecida na Europa, sie]34 deduzindo, a partir de sua prpria "posio", que "a histria de um mesmo povo ser diferente na sia e na Europa". Com certeza se faz sentir aqui a crescente des Geschichtswissenschaft] de Chladenius trata

experincia das invases no alm-mar, onde inmeras histrias ainda no integra-

das ao cristianismo europeu aguardavam elaborao. Mas o fato de que as perspectivas deveriam ser espacialmente determinadas, associadas a uma localizao geogrfica, e que textos diferentes, igualmente legtimos, poderiam ser escritos sobre os mesmos fatos, isso sim era indito. relatividade geogrfica das proposies histricas acrescentou-se a relatividade temporal. Chladenius ainda no tinha pensado na possibilidade de que o passar do tempo fosse capaz de alterar posteriormente a qualidade da histria. Pois ele distinguia rigorosamente entre um passado j transcorrido e consistente consigo mesmo e os diferentes relatos que o tinham por objeto. Gatterer, por sua vez, no tinha tanta certeza dessa distino: "A verdade da histria permanece, em essncia, a mesma. Ao menos, possvel pressup-lo, ainda que seja essa uma pressuposio que no se possa fazer sempre." Gatterer procurou demonstrar, em seu Abhandlung vom Standort und Gesichtspunct des Geschichtsschreibers [Ensaio sobre a localizao geogrfica e o ponto de vista do historiador] que, em ltima instncia, a histria constituda pelo procedimento de seleo. Essa seleo, entretanto, no depende apenas de circunstncias sociais ou polticas ou dos destinatrios virtuais, mas tambm da distncia temporal. Em vista disso, Gatterer desenvolveu os critrios que hoje seriam necessrios a uma espcie de Tito Lvio alemo, talvez um professor universitrio protestante que vivesse sob um regime constitucional de carter misto, critrios que esse hipottico Lvio teria de usar para reescrever e reorganizar a histria romana do autntico Lvio, assim como para corrigi-la a partir de novos pontos de vista, possveis apenas nos dias de hoje.35

Pouco a pouco, o tempo histrico foi adquirindo uma qualidade capaz de consolidar a experincia, por meio da qual se aprendeu a ver o passado de maneira nova, por obra de um efeito retroativo. Bsch declara em 1775: "Neste momento, acontecimentos que s agora se tornaram perceptveis conferem importncia a uma histria que antes teria nos interessado muito pouco, ou que absolutamente no nos teria interessado."36 Bsch refere-se histria do Hindusto, que s vinte anos antes fora integrada pelos ingleses ao quadro de circunstncias atuantes sobre a histria universal. A par disso, a histria dos efeitos e a reflexo sobre ela foram se constituindo de maneira recproca. Nove anos depois, Schlzer se expressa da seguinte maneira: "Um determinado fato pode parecer, neste momento, completamente irrelevante e, cedo ou tarde, tornar-se decisivo para a prpria histria ou mesmo para a crtica."37 Mas o deslocamento da nfase sobre os acontecimentos passados e mesmo sobre sua prpria qualidade histrica no foi obra apenas das transformaes sofridas pela experincia contempornea. Tambm a concepo metodolgica e o prprio know-how do ofcio do historiador alteraram a relao das dimenses temporais entre si. O registro de uma "histria do tempo presente" [Zeitgeschichte] foi perdendo pouco a pouco a sua dignidade. Planck foi um dos primeiros a observar que as chances de se atingir o conhecimento da histria no diminuam, ao contrrio, aumentavam, medida que aumentava tambm a distncia temporal. Com isso, a testemunha ocular foi derrubada de sua posio privilegiada, j relativizada antes por Chladenius. O passado deixou de ser mantido na memria pela tradio escrita ou oral, passando a ser reconstrudo pelo procedimento crtico. "Os grandes acontecimentos oferecem-se viso dos contemporneos, sobre os quais exercem efeito imediato, recobertos em nvoa, a qual vai se dissipando muito lentamente, depois de algumas geraes." Uma vez decorrido tempo suficiente, o passado se manifesta "sob uma configurao completamente diferente" por meio da "crtica histrica", capaz de levar em conta a estreiteza da viso dos contemporneos de ento.38 Dessa forma, o velho espao da experincia, que compreende a cada vez trs geraes, torna-se metodologicamente acessvel. O presente do passado no mais um tema da histria [Historie] que perpetua e transmite as histrias. O prprio passado passa a ser problematizado como tal, de forma que s hoje somos capazes de perceber sua peculiaridade, "sob uma configurao completamente diferente". A mera narrao de um presente do passado torna-se uma presentificao refletida do passado. A cincia histrica, ao levar em conta o ponto de vista temporal, transforma-se em uma disciplina investigativa do passado. Essa temporalizao das perspectivas foi certamente favorecida pelas rpidas transforma-

es da experincia provocadas pela Revoluo Francesa. Tais rupturas de continuidade pareciam querer livrar-se de um passado cuja crescente estranheza s poderia ser esclarecida e recuperada pela pesquisa histrica. Mas isso no significou, de maneira alguma, que a pesquisa histrica eo ipso tenha tido carter nostlgico ou restaurativo. Pelo contrrio, a idia de que quanto mais o tempo avana mais compreensvel se torna o passado um produto da filosofia do progresso pr-revolucionria. Essa filosofia descobriu uma certa qualidade temporal na histria que se esforava por ver o ontem como fundamentalmente diferente do

hoje, o qual, por sua vez, seria fundamentalmente diferente do amanh. O princpio de uma possvel repetio dos eventos foi abandonado. Uma vez, ento, que toda a histria nica e singular, o passado tem que ser, por conseqncia, diferente tanto do presente quanto do futuro. Em uma palavra: a "historicizao" da histria e sua interpretao progressista so dois lados da mesma moeda. Histria e progresso encontraram seu denominador comum na experincia de um tempo genuinamente histrico. Reconhec-los como tal demanda um ponto de vista que teve de reconhecer a si mesmo como historicamente condicionado. Na Alemanha, isso se mostra de forma especialmente clara na historiografia da Igreja protestante, a qual, de histria "esclarecida" passou sub-repticiamente a teologia da histria, vindo em socorro da nova filosofia da histria. A antecipao de um tempo autenticamente histrico d-se especialmente com Bengel,39 cuja interpretao do Apocalipse de Joo implica a irrevogvel singularidade dos processos histricos. Ali, Bengel procede ao mesmo tempo de forma emprica e reflexiva. Ele considerou as diferentes interpretaes do Apocalipse, at ento existentes, no como um amontoado de equvocos, mas sim como uma histria de descobertas progressivas. Cada interpretao anterior foi compreendida como um ponto obscuro advindo da vontade de Deus, que caberia ao prximo intrprete desvendar. A partir da sucesso de interpretaes falhas e de sua transmisso, resultava a ltima e por fim verdadeira compreenso. Estabelece-se assim a maneira reflexiva de interpretao, fundada na crena. Mas Bengel admitiu tambm os eventos profetizados na Bblia, medida que a interpretao desses eventos se confirmava. Ao mesmo tempo, a excluso dos antigos equvocos tornou-se possvel com o transcorrer da histria. Com isso, delimitou-se a estrutura de uma fenomenologia do esprito. A interpretao da experincia tornou-se um momento integrante de uma histria que conduziria ao conhecimento verdadeiro. Como se pde demonstrar depois, Bengel estabeleceu um modelo progressista da histria. A Revelao deveria ser buscada no avano da histria, melhor dizendo: na progressiva co-incidncia dos acontecimentos empricos e de sua interpretao histrica de significado teolgico. Acontecimento e interpretao convergiam progressivamente, isto , atravs de um medium constitudo pelo tempo genuinamente histrico. O modo de interpretao da histria permanecia o mesmo. Mudara o seu contedo.

Em Semler, essa proposio se amplia no contexto de uma historiografia racional. A nfase se desloca de uma economia teolgica da salvao para uma economia histrica do tempo, que no apenas permitia a interpretao de carter progressivo dos eventos prenunciados na Bblia, como tambm de todos os acontecimentos histricos. Do ponto de vista epistemolgico, Semler fincou razes no mesmo terreno da doutrina da cincia de Chladenius, com a diferena de que, no seu caso, a perspectiva histrica foi temporalizada de maneira conseqente. certo que Semler distinguia entre a "histria real" e sua reproduo narrativa, mas, para ele, a histria dessa reproduo tornou-se um momento intrnseco da prpria "histria real". O ofcio do historiador deixou de ser apenas o de relatar histrias; ele passou a "cri-las".A influncia da vontade, da inteno, dos objetivos finais, ainda que no neste momento, confere narrativa um direcionamento efetivo, antes ausente prprias circunstncias analisadas. das tenha estado presente como tal na poca, sendo reconhecida apenas

Essa estruturao reflexiva do passado no levou a intenes "perversas" ou "parciais", como ocorre com freqncia; constitui, ao contrrio, uma "distino reconhecidamente inevitvel". 40 Com o passar do tempo, alteram-se continuamente as condies e circunstncias de elaborao da histria: " exatamente essa diferena dos tempos sucessivos que permite e obriga existncia de sempre novos e distintos historiadores." 41 A partir dessa perspectiva temporalizada, Semler conclui que o exerccio da historiografia s possvel por meio da elaborao crtica da historiografia anterior. Dito de maneira generalizante, o conhecimento histrico tambm, ao mesmo tempo, a histria da prpria histria como disciplina. Pois os pressupostos sob os quais as notcias surgem e so elaboradas tambm devem ser, eles mesmos, parte do processo, por meio de uma anlise crtica. "At hoje, deu-se muito pouca ateno quela histria que precedeu a histria de todos os assim chamados historiadores." Com essa observao, Semler elabora um princpio metodolgico que no se pde mais deixar de considerar desde ento. A teoria da mudana de perspectiva temporal foi assim diluda em uma teologia progressiva, que atribui sentido mudana. Deus a teria planejado de modo a favorecer a "sempre cambiante educao moral do homem". Por conta de seu princpio temporal, Semler foi forosamente conduzido posio de relativista histrico, para quem todas as hist-

rias, em menor ou maior medida, so parciais. Ele s foi capaz de escapar a esse dilema ao inscrever seu prprio ponto de vista no contexto de um conhecimento progressivo e de uma moral crescente. "Os estgios reais de uma cultura sempre desigual"42 foram entendidos por ele como os estgios de um conhecimento histrico, que permitiu s geraes posteriores reconhecer e desmascarar os interesses partidaristas das geraes anteriores e de seus historiadores. Era exatamente essa a inteno de Semler ao tratar dos trs primeiros sculos da era crist. Teria sido uma ddiva da Providncia "situar nossa vida e nossa poca to distante desses primeiros sculos cristos." Pois s agora fora possvel proceder a uma "livre reviso" que torna acessveis "a ns, considerando nossa perspectiva, (...) a verdadeira histria"43 da Igreja antiga. No se pode mais separar a verdade e a perspectiva temporal. Aquele que ainda hoje afirmasse "a imutabilidade do sistema eclesistico" estaria submetido a preconceitos e servindo a interesses hierrquicos. Estaria assim impedindo o desenvolvimento moral da religio crist, e "no pode haver pecado maior contra toda verdade histrica".44 Desde que mergulhou na perspectiva temporal de seu desenvolvimento histrico, a verdade historicamente relativa tornou-se uma verdade superior. O pressuposto terico dessa superioridade era a alteridade advinda da viso em perspectiva e, portanto, factual do passado, comparada experincia prpria do presente e expectativa do amanh. "Em nossos dias j no se duvida de que a histria tem que ser, de tempos em tempos, reescrita", diria Goethe em breve.Uma tal necessidade no se impe porque muita coisa nova tenha sido descoberta, mas sim porque novas perspectivas se oferecem, porque os contemporneos de um tempo que progride so conduzidos a pontos de vista a partir dos quais o passado se deixa contemplar e julgar de maneira nova.45

Goethe evocava aqui uma experincia histrica que crescia lentamente, cuja elaborao terica, na Alemanha, vinha se dando desde Chladenius: a noo de que a referncia a um posicionamento constitutiva do conhecimento histrico. A ela correspondia uma forma de apreenso do real capaz de, com o auxlio do "tempo progressivo", favorecer a fissura entre as dimenses de passado, presente e futuro. Com a

temporalizao dessa histria fraturada pela perspectiva, passou a ser necessrio refletir sobre o prprio ponto de observao, uma vez que este se alterava em meio ao e por causa do movimento histrico. Essa experincia moder-

na, at ento deduzida apenas na teoria, foi concretizada a partir dos acontecimentos vertiginosos da Revoluo Francesa. Desde ento, passou a ser obrigatrio tomar partido. IV. A obrigao de tomar partido e sua elaborao historiogrfica No mbito da historiografia alem, o conceito de "partido", at o sculo XVIII, encontrava-se associado a divises de cunho confessional e s respectivas frentes de luta. A partir de ento, o conceito adquire novo vigor com os conflitos de carter social, originados da ruptura do sistema de estamentos na Frana que, em breve, se alastraria por toda a Europa. Desde ento, como observou Gentz em 1793:46Na Alemanha, como em toda parte, cada partido, fosse ele democrtico ou antidemocrtico, dividiu-se em um sem-nmero de subpartidos. (...) Nos dias de hoje, podem se encontrar democratas at o 5 de outubro de1789,

democratas at o surgimento da nova legislatura, democratas at o 1 0 de agosto de 1 7 9 2 , democratas at o assassinato de Lus XVI, democratas at expulso da Faco Brissot, em junho desse ano. a

Nessa perspectiva temporal, Gentz descreveu de forma concisa e articulada ainda antes da queda de Robespierre o processo de radicalizao que a Revoluo percorrera at ali, criando cada vez mais ncleos partidrios. A constituio de partidos polticos, sem deixar de ser elemento integrante da estrutura de qualquer histria, passou, desde ento, a pertencer experincia quotidiana da modernidade europia. trao caracterstico dessa modernidade o fato de que os partidos no se distinguiam uns dos outros apenas pelo contedo poltico e social de seus programas, mas tambm pela distino temporal advinda dessas delimitaes. Essas distines podem ser graduadas ao longo do processo de desenvolvimento de uma histria em contnua alterao: o movimento para adiante era o mesmo que "progressista", a permanncia no centro ou o movimento para trs significava "conservador". Todos os instrumentos de legitimao que se pretendiam efetivos tiveram de se submeter a essa escala temporal. Rivarol, fazendo uso metafrico da disposio das cadeiras no Parlamento, escreveu: "A Revoluo manca. A direita vai sempre para a esquerda, mas a esquerda nunca vai para a direita." A marcha em direo a um futuro aberto evoca perspectivas partidaristas e parciais que, destitudas de critrios de movimento ou direo, no do resultado.

Como a histria reagiu frente a esse novo estado de coisas? Vejamos algumas respostas. O prprio Gentz considerou que o processo de autoatribuio de um critrio temporal pelos partidos era um erro de perspectiva. "O escritor que pretendesse tomar a Revoluo como um todo" confrontar-se-ia com os princpios internos do movimento, comparados aos quais os processos de constituio partidria seriam apenas manifestaes superficiais. Gentz chegou assim a uma resposta que, em ltima instncia, remete a uma teoria da Revoluo. Tais teorias, que desejavam levar em conta a pluralidade dos partidos, proliferaram nas pocas seguintes e penetraram, por exemplo, no sistema do idealismo alemo. Com isso, transformou-se totalmente o desafio de ter que tomar partido. Friedrich Schlegel que, ao longo do tempo, mudara de posio poltica e religiosa expressa claramente essa idia: seria uma iluso acreditar na possibilidade de encontrar "a verdade histria, em estado puro, apenas nos assim chamados autores apartidrios ou neutros". 47 O partidarismo seria um fator prprio histria. Se os partidos, como o caso na Inglaterra, sobreviveram at hoje, no se poderia escapar necessidade de tomar posio. Dessa maneira, Schlegel prescreve como mandamento terico ao historiador que apresente aberta