klinger, diana - escritas de si, escritas do outro

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  • 0

    UNIVERSIDADE DO RIO DE JANEIRO

    INSTITUTO DE LETRAS

    DIANA IRENE KLINGER

    ESCRITAS DE SI, ESCRITAS DO OUTRO:

    AUTOFICO E ETNOGRAFIA NA NARRATIVA LATINO-AMERICANA

    CONTEMPORNEA.

    Rio de Janeiro

    2006

  • 1

    DIANA IRENE KLINGER

    ESCRITAS DE SI, ESCRITAS DO OUTRO: AUTOFICO E ETNOGRAFIA NA

    NARRATIVA LATINO-AMERICANA CONTEMPORNEA.

    Tese apresentada ao Instituto de Letras da UERJ, como parte dos requisitos para obteno do ttulo de Doutor em Letras rea de concentrao:Literatura Comparada. Orientador: Prof. Dr. Italo Moriconi

    Rio de Janeiro 2006

  • CATALOGAO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CEH/B

    K65 Klinger, Diana Irene Escritas de si, escritas do outro: autofico e etnografia na

    narrativa latino-americana contempornea / Diana Irene Klinger. 2006.

    204 f. Orientador : talo Moriconi. Tese (doutorado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro,

    Instituto de Letras. 1. Fico latino-americana Teses. 2. Literatura e antropologia

    Teses. I. Moriconi, talo. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Letras. III. Ttulo.

    CDU 860(7/8)-3

  • 3

    KLINGER, Diana. Escritas de si e escritas do outro. Auto-fico e etnografia na literatura

    latino-americana contempornea. Tese de Doutorado em Letras. Literatura Comparada. Rio de Janeiro: UERJ, 2006.

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Dr. talo Moriconi (UERJ) (Orientador)

    Profa Dra. Beatriz Resende (UNIRIO) (Titular)

    Profa. Dra. Ana Cristina Chiara (UERJ) (Titular)

    Prof Dr. Vitor Hugo Pereira (UERJ) (Titular)

    Profa. Dra. Maria Antonieta Pereira (UFMG) (Titular)

    Profa. Dra. Marilia Rothier (UERJ )

    (Suplente)

    Profa. Dra. Clia Pedrosa (UFF) (Suplente)

    Defesa da Tese marcada para o dia 14 de maro de s 14 h.

  • 4

    A Hilde, com eterna saudade

    A meus pais, Zulema e Pedro

  • 5

    Agradecimentos

    A talo, no s pelas leituras atentas, os comentrios sagazes e as conversas frutferas, mas

    tambm pelo apio, o incentivo e a valorizao do meu trabalho.

    Um agradecimento muito especial aos membros da Banca, Maria Antonieta Pereira, Beatriz

    Resende, Ana Cristina Chiara e Vitor Hugo Adler Pereira.

    A Florncia Garramuo e a Gonzalo Aguilar, porque no fosse por eles eu no estaria no

    Brasil

    Aos professores da UERJ, especialmente a Gustavo Bernardo, a Carlinda Fragale Pat

    Nuez, a Joo Cezar de Castro Rocha, a Luiz Costa Lima, pelo incentivo.

    A Marildo, a Paloma, a meus amigos que me apoiaram e me ajudaram em momentos muito

    difceis, Nicole e Ricardo, Liliana, Mariela e Javier, Marina e Alejandro, Ktia e Ramiro, a

    meus amigos que esto longe, mas eu sinto perto.

    A Ypun Garcia pelas dicas de leitura e as conversas frutferas.

    A minha famlia pelo carinho de sempre.

    E, enfim, Capes pela bolsa sem a qual no poderia ter escrito esta tese.

  • 6

    RESUMO

    Este trabalho consiste na identificao de duas problemticas estticas que

    atravessam a fico brasileira e latino-americana contempornea: o retorno do autor e a

    virada etnogrfica. Nossa hiptese que o cruzamento de ambas perspectivas (a auto-

    fico e a etnografia) em alguns romances contemporneos, permite pensar as mltiplas

    relaes entre a literatura e a antropologia, em particular, e entre a literatura e a

    epistemologia num sentido mais amplo. As fices abordadas participam da condio de

    estarem nas fronteiras culturais e nas fronteiras da fico. Assim, elas apresentam pontos

    de contato com as premissas da chamada antropologia ps-moderna, enquanto proposta de

    re-considerar o lugar do autor e da linguagem na representao do outro culturalmente

    afastado. Nesses romances, a representao da alteridade se inscreve num paradoxo, entre a

    hermenutica do outro e a tautologia de uma linguagem que se dobra sobre si prpria. Na

    auto-reflexo sobre o conceito de representao, que tambm caracteriza um momento

    recente das disciplinas humansticas, a narrativa contempornea se situa numa posio

    ambivalente entre a fico e a no-fico.

    Palavras chave: Autofico; Etnografia; Narrativa latino-americana contempornea

  • 7

    RESUMEN

    Este trabajo consiste en la identificacin de dos problemticas estticas que atraviesan la ficcin latinoamericana contempornea: la escritura de autoficcin y la ficcin etnogrfica. Nuestra hiptesis es que el cruce de ambas perspectivas en algunas novelas contemporneas, permite pensar las mltiples relaciones entre literatura y antropologa, en particular, y entre literatura y epistemologa en un sentido ms amplio. Asi, podemos afirmar que los textos ledos aqu presentan una semejanza con las premisas de la llamada antropologa posmoderna, en cuanto propuesta de reconsiderar el lugar del autor y del lenguaje en la representacin del otro culturalmente distante. En las novelas, la representacin de la alteridad se inscribe en una paradoja, entre la hermenutica del otro y la tautologa de un lenguaje que se dobla sobre si mismo. En la autorreflexin sobre la representacin, que caracteriza un momento reciente de las disciplinas humansticas, la narrativa contempornea al mismo tiempo re-dimensiona la categora de narrador y se sita en una posicin ambivalente entre la ficcin y la no-ficcin.

    Palavras chave: Autoficcon; Etnografia; Narrativa latino-americana contempornea

  • 8

    SUMRIO

    Introduo 9

    Captulo I: A escrita de si (o retorno do autor) 16

    1.0 Aproximaes................................................................................................ 17

    1.1 A escrita de si: uma histria .......................................................................... 26

    1.2 A crise do sujeito e a morte do autor............................................................. 31

    1.3 O retorno do autor.......................................................................................... 37

    1.4 A auto-fico no campo da escrita de si ....................................................... 41

    1.5 Auto-fico e performance ........................................................................... 52

    1.6 Joo Gilberto Noll: os bastidores da escrita................................................... 62

    Captulo II: A escrita do outro (a virada etnogrfica)..................................... 68

    2.1 O artista como etngrafo................................................................................ 74

    2.2 A virada da etnografia.................................................................................... 81

    2.3 Antropologia do mundo contemporneo........................................................ 89

    2.4 Antropologia e Estudos Culturais................................................................... 94

    2.5 Antropologia e valor literrio......................................................................... 102

    Captulo III: Confluncia das perspectivas: a virada etnogrfica e a

    auto-fico na fico contempornea 110

    3.1 O narrador (ps)-etnogrfico........................................................................ 111

    3.2. Fernando Vallejo: um duelo lingstico....................................................... 121

    3.3 Washington Cucurto: a arte da performance................................................ 146

    3.4 Bernardo Carvalho: o ncleo duro do real................................................... 168

    Consideraes finais............................................................................................ 188

    Bibliografia.......................................................................................................... 192

  • 9

    INTRODUO

    Concete a ti mismo... es fcil decirlo, y aun ms creerlo; despus, en los momentos de ruptura, de implosin, de cada en uno mismo, lo que se descubre es otra cosa. Cebollas infinitas, no terminaremos jams de retirar las telas que nos abarcan, desde los siete velos de Salom hasta la prodigiosa espeleologa del psicoanlisis; debajo, siempre ms abajo, el centro rehsa dejarse ver tal como es. Estamos lejos de muchas cosas, pero de nada estamos ms lejos que de nosotros mismos. (Julio Cortazar, 19841). Toute personne qui dcide dcrire sa vie se comporte comme si elle tait son propore ngre. (Lejeune, Je est un autre2)

    Na novela de Fernando Vallejo, La virgen de los sicarios (1994), um anjo

    exterminador percorre as ruas de Medelln, uma das cidades mais violentas da terra,

    limpando-a de parte de seus moradores e ao mesmo tempo livrando seu amante do que mais

    parece incomod-lo: o prximo. O narrador da novela, gramtico de profisso, voltara j

    velho Colmbia da sua infncia e iniciara uma relao homossexual com o anjo, um

    rapaz chamado Alexis, um sicrio (ou assassino profissional), sem pai e sem lei. Dos

    subrbios de uma outra metrpole, Buenos Aires, o narrador de Noches Vacas (2003), do

    escritor argentino Washington Cucurto, relata suas aventuras noturnas no mundo marginal

    da cumbia (gnero musical que se produz, se ouve e se dana s margens da cultura

    oficial, comparvel ao funk brasileiro), povoado pelas recentes imigraes de latino-

    americanos que chegaram Argentina dos anos noventa com a iluso de encontrar

    melhores condies de vida. Em Nove Noites (2001), de Bernardo Carvalho, um jornalista

    1 Aqui la dignidad y la belleza. En Nicaragua tan violentamente dulce. Buenos Aires: Muchnik Editores, 1984. p.66 2 Je est un autre. Lautobiographie de la litteraure aux midias Paris: Ed. Du Seuil, 1980. p. 236

  • 10

    se interna na aldeia de ndios krah no Xingu em busca de dados sobre Bell Quain,

    promissor antroplogo norte-americano que, em 1938, aos 27 anos se suicidou em

    circunstncias misteriosas quando voltava da aldeia indgena para a cidade de Carolina.

    primeira vista, estas narrativas escritas na ltima dcada no tm nada em comum

    entre elas. No entanto, essa primeira percepo logo se revela falsa, quando se percebe que

    elas compartilham dois elementos que definem aspectos da narrativa contempornea: uma

    forte presena da primeira pessoa e um olhar sobre o outro culturalmente afastado. Por um

    lado, alter ego do escritor, o gramtico de Vallejo, o cumbiero de Cucurto e o jornalista

    de Carvalho, os trs narradores destas fices tm fortes marcas autobiogrficas; por outro

    lado, os trs atravessam uma fronteira cultural e escrevem sobre outro mundo, subalterno.

    Assim, nestas fices confluem duas perspectivas que analisaremos no captulo um e dois

    respectivamente: a escrita de si e a escrita do outro. Identificamos estas perspectivas com

    duas tendncias da narrativa contempornea: o retorno do autor e a virada etnogrfica.

    A escrita de si. Italo Moriconi acredita que o trao marcante na fico mais recente

    a presena autobiogrfica real do autor emprico em textos que por outro lado so

    ficcionais 3, de maneira que se trata de discursos explicitamente situados na interface entre

    real e ficcional.

    Na definio de autobiografia de Philippe Lejeune, o que diferencia a fico da

    autobiografia no a relao que existe entre os acontecimentos da vida e sua transcrio

    no texto, mas o pacto implcito ou explcito que o autor estabelece com o leitor, atravs de

    vrios indicadores presentes na publicao do texto, que determina seu modo de leitura.

    Assim, a considerao de um texto como autobiografia ou fico independente do seu

    grau de elaborao estilstica: ela depende de que o pacto estabelecido seja ficcional ou

    referencial.4

    Os trs romances citados, assim como os outros que veremos no primeiro captulo,

    transgridem de alguma forma o pacto ficcional, incorporando elementos que exigem

    serem lidos em outra clave, referencial. Segundo o conceito de Lejeune, o espao

    autobiogrfico compreende o conjunto de todos os dados que circulam ao redor da idia

    do autor: suas memrias e biografias, seus (auto) retratos e suas declaraes sobre sua

    3 Moriconi, Italo. Circuitos contemporneos do literrio (Indicaes de pesquisa). Comunicao apresentada na Universidade de San Andres, Buenos Aires, 9 de Agosto de 2005. Indita. 4 cf. Lejeune, Phillipe. Le pacte autobiographique. Paris: ditions du Seuil, 1996 [1975]

  • 11

    prpria obra ficcional. Ora, se num sentido geral, todo texto de fico participa do espao

    autobiogrfico, as fices em primeira pessoa e com traos autobiogrficos analisadas no

    corpo da presente tese, ocupam a um lugar de destaque: estabelecem o que Lejeune chama

    de pactos indiretos, pois o autor, por meio de alguma indicao, os d a ler indiretamente

    como fantasmas reveladores do individuo. Si lhypocrisie est un hommage que le vice

    rend la vertu, ces jugements sont en ralit un hommage que le roman rend

    lautobiographie, diz Philippe Lejeune.5 Assim, nossos romances se inscrevem num

    espao no qual as duas categorias autobiografia e romance no so redutveis a

    nenhuma das duas 6, num jogo em que fico e no fico no remetem a territrios

    nitidamente separados.

    Em Noches Vacas, o nome do personagem coincide com o pseudnimo do autor,

    Washington Cucurto. Na novela de Fernando Vallejo, o narrador possui vrios traos da

    biografia do autor, fora o fato de que ele mesmo declarou para a imprensa que se trataria de

    uma histria de amor auto-biogrfica. Por sua parte, em Nove Noites, a figura do narrador

    tambm est montada com traos autobiogrficos e Bernardo Carvalho, ao colocar na

    orelha do livro uma foto sua, aos seis anos de idade de mos dadas com um ndio no Xingu,

    insere sua prpria imagem na trama romanesca. precisamente essa transgresso do pacto

    ficcional, em textos que - no entanto - continuam sendo fices o que os torna to

    instigantes: sendo ao mesmo tempo ficcionais e (auto)referenciais, estes romances

    problematizam a idia de referncia e assim incitam a abandonar os rgidos binarismos

    entre fato e fico.

    A escrita do outro. Por outro lado, as trs figuras narradoras do conta de um

    movimento na narrativa atual que, segundo Francine Massiello uma das faces da literatura

    latino-americana ps-boom e ps-ditaduras no Cone Sul. Massiello argumenta que haveria,

    na fico recente, uma atrao pelas figuras marginais da sociedade que expem o dilema

    acerca da representao da outridade.7 Com a recuperao da democracia, em meio de

    discusses intelectuais sobre os fracassos da histria e o destino da nao, a fico

    5 Se a hipocrisia uma homenagem que o vicio rende virtude, estas apreciaes so em realidade uma homenagem que o romance rende autobiografia. (Traduo minha do francs). Lejeune, Phillipe, 1996 [1975] p. 42. Lejeune encontra este pacto indireto ou fantasmtico na obra de Andr Gide. 6 Melo Miranda, Wander. Corpos Escritos. So Paulo: Editora: Edusp e Belo Horizonte: Editora UFMG, 1992. p.37 7 Masiello, Francine. El arte de la transicin. Buenos Aires: Norma, 2001. p. 17.

  • 12

    oferece uma interveno para examinar a idia de representao nos dois sentidos da

    palavra, o poltico (no sentido de delegao) e o artstico (reproduo mimtica). Os trs

    romances citados so relatos de outridades que habitam no corpo da sociedade latino-

    americana: delinqentes, imigrantes pobres e ndios. E os trs articulam de diferentes

    formas a tenso que define a relao entre o escritor e o outro. Na novela de Fernando

    Vallejo, o narrador se assume como tradutor da linguagem do garoto, dando conta da

    distncia que existe entre ele mesmo e o mundo da marginalidade no qual ele mergulha,

    reconhecendo, ao mesmo tempo, atravs da traduo, que essa distncia tambm a que

    separa o leitor desse outro mundo. O mecanismo da traduo constitui a possibilidade de

    passagem entre ambos mundos culturais e d conta da multiplicidade irredutvel das

    linguagens que circulam na sociedade colombiana de final de sculo.

    No romance de Bernardo Carvalho, trata-se do oposto, quer dizer, de um narrador

    cujo dilema consiste precisamente na impossibilidade de traduo dos mundos, da

    incomunicabilidade que resulta do confronto com a outridade. O relato est baseado

    numa histria real, e o narrador promete chegar, atravs de uma pesquisa histrica

    exaustiva, revelao de um enigma da histria da antropologia brasileira. Mas o intento

    fracassa no momento em que o narrador se rende perante a impossibilidade de dilogo com

    os krah e comea a se envolver pessoalmente de forma paranica na histria de Quain.

    No caso de Noches vacas, diferente dos dois textos anteriores, o narrador relata o

    mundo outro desde dentro. No h uma mediao no interior do texto, pois o narrador no

    traduz o jargo marginal nem faz concesses a um leitor que no pertence a esse mundo

    nem compreende a linguagem da cumbia. No entanto, o prprio escritor funciona como

    figura mediadora: Washington Cucurto, pseudnimo de quem assina a novela, na verdade

    um personagem criado por Santiago Vega. Como escritor que vive e escreve sob a mscara

    do personagem (e que, portanto, tem uma dupla personalidade), o autor transita pelo mundo

    letrado e o da cumbia com a mesma familiaridade.

    A atrao pelas figuras marginais e o dilema da representao da outridade so

    tambm, como mostra Hal Foster, problemticas das artes contemporneas. Foster prope a

    existncia, no final de sculo, de um paradigma do artista como etngrafo, semelhante ao

    paradigma de Benjamin do autor como produtor. No entanto, aqui consideramos que

    haveria uma virada etnogrfica que excede o campo das artes: ela implica tambm uma

  • 13

    transfronterizao do conhecimento a partir da problemtica da cultura. Com a ampla

    difuso dos estudos culturais, as fronteiras entre disciplinas humansticas foram se

    enfraquecendo, de maneira que, segundo argumentaremos no segundo captulo, aconteceu

    uma antropologizao do campo intelectual.

    Se estes trs relatos tm especial destaque no presente trabalho (nos centraremos

    neles no terceiro captulo) porque participam simultaneamente das duas tendncias da

    narrativa contempornea, que chamamos aqui de retorno do autor e de virada

    etnogrfica. A dupla inscrio das narrativas do nosso corpus, a construo da figura do

    outro vinculada presena marcante da primeira pessoa, desconfia da transparncia e da

    neutralidade, e assim questiona a idia de representao. Ora, o que resulta mais instigante

    notar que a prpria antropologia tem desenvolvido uma crtica da representao

    exatamente a partir do momento em que o antroplogo comeou a olhar a si prprio.

    Veremos que a combinao de auto-reflexo e olhar etnogrfico aproximam estes romances

    da antropologia ps-moderna, pois ela mesma pressupe um retorno do autor, no marco

    do discurso no ficcional. Deixando ao lado qualquer pretenso de objetividade e de

    neutralidade cientficas, os textos da antropologia ps-moderna narram experincias

    subjetivas de choque cultural. Trata-se de uma virada na antropologia, ps- estruturalista

    cujo ponto de partida foi o j clssico livro de Clifford Geertz, A interpretao das culturas

    (1973), e continuou com seus discpulos (especialmente James Clifford) - que parte do

    esgotamento da iluso cientificista fundada na ntida separao entre sujeito e objeto8.

    Esta antropologia, ps-moderna e antipositivista, que reflete tanto sobre seu objeto quanto

    sobre o sujeito da escrita etnogrfica, forma parte de um paradigma epistemolgico

    segundo o qual no h conhecimento independente do ato cognitivo que o constitui. Ou

    seja, a antropologia, ao mesmo tempo que se transformou numa lngua franca transversal

    aos diferentes campos das humanidades e da teoria atual, sofreu ela mesma uma virada, ao

    colocar a questo da escrita e do sujeito, redefinindo assim as polaridades sujeito-objeto.

    Ento, os trs romances de Vallejo, Cucurto e Carvalho que apresentamos se inscrevem no

    marco da virada etnogrfica na literatura, mas em relao com os princpios estabelecidos a

    partir da virada da etnografia.

    8 Moriconi, Italo. A provocao ps-moderna. Razo histrica e poltica da teoria hoje. Rio de Janeiro: Diadorim, 1994. p.148

  • 14

    No mesmo paradigma epistemolgico da antropologia ps-moderna se inscreve

    certa crtica contempornea, que valoriza a experincia da leitura e o ato da escrita.

    Acreditei profundamente que a crtica autobiogrfica, como a auto-etnografia, fosse a

    forma mais eficiente de transitar de uma experincia individual para uma coletiva, escreve

    Denilson Lopes, talvez o exemplo brasileiro mais instigante deste tipo de crtica.9 A partir

    dos estudos culturais e dos estudos de gnero, a crtica cada vez mais tende a refletir sobre

    o prprio sujeito da escrita, como o expressa Denilson Lopes: Para ampliar a afetividade

    no ato da pesquisa necessrio repensar o ato da escrita e sua relao com o sujeito

    pesquisador.10 No campo do ensasmo autobiogrfico, a experincia se sobrepe ao lugar

    da identidade, fazendo da narrativa importante recurso terico-metodolgico.11 De

    maneira que, o retorno do autor, entendido tanto como marcas autobiogrficas quanto

    como referncias situao de enunciao, o ponto de confluncia entre uma tendncia

    literria e uma epistemolgica.

    O objetivo deste trabalho estudar o cruzamento entre essas duas perspectivas, a

    partir dos trs romances escolhidos, o que implica pensar nas relaes entre a antropologia

    e a literatura, as transformaes que se vm produzindo na histria de ambos discursos e

    suas relaes com os paradigmas epistemolgicos mais abrangentes, assim como, e

    sobretudo, pensar estas relaes no contexto socio-cultural latino-americano.

    A proposta aparece desenvolvida em trs etapas: a primeira consiste na discusso

    dos diversos discursos relacionados com a escrita de si, para situar no contexto terico e

    histrico - as particularidades dos textos do nosso corpus. Assim, veremos no primeiro

    captulo a convenincia de utilizar (e antes reformular) a categoria de auto-fico para estas

    fices contemporneas, pois ela deixa aparecer os paradoxos da subjetividade nos

    discursos contemporneos. Mostraremos que a auto-fico se insere no campo mas amplo

    da escrita de si, a partir do questionamento dos conceitos de representao e subjetividade.

    Finalmente veremos o funcionamento da auto-fico num romance de Joo Gilberto Noll.

    No segundo captulo, abordaremos duas problemticas paralelas e inter-

    relacionadas, aqui chamadas de virada etnogrfica e virada da etnografia. Discutiremos a

    9 Lopes, Denilson. Experincia e escritura. Em O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. p.248 10 Lopes, Denilson, 2002. p. 250 11 Lopes, Denilson, 2002 p. 39

  • 15

    proposta de H. Foster do paradigma do artista como etngrafo, formulando a necessidade

    de pens-lo em relao com as premissas da antropologia ps-moderna, especialmente o

    reconhecimento de seu carter discursivo e interpretativo, que a torna auto-refletiva.

    Finalmente, no terceiro captulo, analisaremos as trs obras mencionadas na

    presente introduo, a partir da combinao das duas perspectivas a auto-fico e a escrita

    etnogrfica -, como sintomas, na literatura, da produo discursiva na contemporaneidade.

    A possibilidade de estabelecer cruzamentos entre o discurso ficcional e o no ficcional, d

    lugar formulao de uma hiptese que subjaz a nosso trabalho: a de que estes trs

    romances compartilham tambm uma dissoluo que parece estar no horizonte destes

    tempos. Dissoluo dos limites precisos entre o real e o ficcional; dissoluo da categoria

    de narrador do romance moderno tal como a formulada por Walter Benjamin (1936) e

    tambm do narrador ps-moderno, segundo a caracterizao feita por Silviano Santiago

    (1986); o que implica a re-formulao da figura do autor e, em ltima instncia, do literrio,

    como ocorre nos textos de Washington Cucurto.

  • 16

    CAPITULO 1

    A ESCRITA DE SI

    (o retorno do autor)

  • 17

    1.0 Aproximaes Mi historia, la historia de como me hice monja, comenz muy temprano en mi vida: yo acababa de cumplir seis aos. El comienzo est marcado por un recuerdo vvido, que puedo reconstruir en su menor detalle. Antes de eso no hay nada: despus, todo sigui siendo un solo recuerdo vvido, continuo e ininterrumpido, incluidos los lapsos de sueo hasta que tom los hbitos.

    Assim comea a novela de Cesar Aira, Como me hice monja (1993) (Como virei

    freira). Esto presentes, neste comeo, todos os ingredientes da narrativa autobiogrfica. O

    narrador, em primeira pessoa, promete contar a histria da sua vida, que coincide, segundo

    ele informa, com a histria da sua transformao (virar freira). A idia da vida como devir e

    transformao caracterstica do Bildungsroman, mas tambm de todo relato

    autobiogrfico, que sempre pressupe uma mudana interna do narrador. De fato, como

    aponta Wander Melo Miranda, parece no haver motivo suficiente para uma autobiografia

    se no houver uma interveno, na existncia anterior do indivduo, de uma mudana ou

    transformao radical que a impulsione ou justifique.12 O ncleo do narrvel na

    autobiografia e nas memrias a experincia equivale transformao do indivduo:

    Como me tornei o que sou (Nietzsche). Por outro lado, a trama da novela de Aira est

    construda a partir de elementos que identificam o narrador-protagonista com o autor. O

    narrador, que ostenta permanentemente ter uma memria implacvel, perfeita, chamado

    de Cesar, Cesarito, el nio Aira. Ele evoca as lembranas da sua infncia, quando se

    mudou assim como o autor - do povoado do interior Coronel Pringles para a cidade de

    Rosrio. Na infncia conhecer - como o autor - um garoto que depois ser o famoso poeta

    Arturo Carrera.

    No entanto, o relato de Cesar Aira, saturado de ironia, desmente todas as

    expectativas do leitor de que se trate de uma fico autobiogrfica: os elementos

    autobiogrficos da fico chocam-se com as formas paradoxais em que o narrador constri

    12 Melo Miranda, Wander. Corpos Escritos. So Paulo: Editora Edusp e Belo Horizonte: Editora UFMG, 1992. p.31

  • 18

    sua histria. O gnero do nome do autor que figura na capa (Csar Aira) no concorda com

    a voz que enuncia o ttulo como virei freira, voz que remete a um sujeito feminino. A

    princpio, esse contraste de gnero no implica nenhuma contradio no terreno da fico:

    basta apenas que o leitor des-naturalize a identificao entre narrador e autor, para perceber

    que nada impede que este crie uma narradora feminina. Mas as primeiras pginas da novela

    desfazem essa primeira possibilidade. Logo percebemos de que se trata, efetivamente, de

    um narrador masculino. Os outros personagens o chamam de Cesar; mas ele se refere a si

    mesmo tanto com pronomes masculinos quanto femininos: la nia Cesar Aira. Eso era

    yo. La nia que no era. Viva, estaba muerta. (p.65)

    Assim, o enunciado entra em contradio com o enunciador, ou em outras palavras,

    o eu masculino Cesar - que enuncia em primeira pessoa entra em contradio com ela, a

    freira. Assim, o relato retrospectivo da vida no somente desfaz sua iluso da referncia,

    mas ao mesmo tempo resulta de uma ciso interna do narrador que problematiza a noo de

    identidade da prpria voz narrativa.

    Por outro lado, parodiando o relato confessional feminino, o episdio que funda o

    ato autobiogrfico um fato absolutamente corriqueiro e trivial que marca um antes e um

    depois na vida do narrador: a primeira vez que o pai leva o garoto a experimentar um

    sorvete: El comienzo est marcado con un recuerdo vvido, que puedo reconstruir en su

    menor detalle. Antes de eso no hay nada.... (p.9) O extremamente transcendente (o ponto

    de inflexo que marca um antes e um depois na vida) trazido ao relato como lembrana

    vvida que a memria perfeita pode reconstruir com os menores detalhes; , no entanto,

    inteiramente banal. Essa cena fundacional da vida do narrador (mi historia, la historia de

    como me hice monja, comenz muy temprano en mi vida: yo acababa de cumplir seis

    aos) acaba numa intoxicao que quase lhe custa a vida, o leva a um tratamentoe vrios

    meses num hospital, provoca a priso do pai por ter matado o vendedor de sorvete, a

    inadaptao do garoto na escola, a vida solitria com a me, o seu seqestro e finalmente a

    morte do prprio narrador.

    A narrativa autobiogrfica se revela ento, duplamente falsa: a transformao

    aludida no ttulo nunca se realiza, mas tambm no existe um sujeito que seja passvel de

    sofrer essa transformao, porque falta o prprio sujeito enquanto entidade que se conserva

    na mudana. De maneira que esta suposta fico autobiogrfica atenta contra a

  • 19

    verossimilhana no plano da enunciao: a coincidncia do nome do autor, do narrador e do

    protagonista desmentida pelo gnero feminino da voz; os elementos identificadores do

    autor se chocam com o fato da morte do narrador no final da novela. A fico se apropria

    da forma da autobiografia, mas para torn-la um discurso obsoleto: o texto falha em pr

    uma ordem na vivncia catica e fragmentria da identidade.

    Ora, pode-se pensar o paradoxo que articula esta novela, que diz respeito relao

    do texto com o sujeito autoral, como metfora de uma das questes que atravessam uma

    zona da prosa literria atual em Amrica Latina, marcada pela presena problemtica da

    primeira pessoa autobiogrfica.

    Obviamente, esta marca no privativa da literatura latino-americana, pelo

    contrrio: uma vertente que aparece na narrativa contempornea universal, especialmente

    na literatura francesa. Por exemplo em La Bataille de Pharsale (1969) de Claude Simon,

    Roland Barthes par Roland Barthes (1975), W ou le souvenir denfance (1975) de Georges

    Perec, Fils (1977) de Sergue Doubrvosky, e Romanesques de Alain Robbe-Grillet, um

    trptico que agrupa Le Miroir qui revient (1985), Anglique ou l'enchantement (1988) e Les

    Derniers jours de Corinthe (1994). So autores ligados seja ao Nouveu Roman, a Oulipo ou

    Tel quel, de maneira que se observa que o retorno do autor se produz no corao da

    vanguarda francesa, como um impasse do formalismo e o estruturalismo em literatura, dos

    quais o prprio Barthes uma das vozes mais importantes. No entanto, interessa aqui

    pensar no contexto de Amrica Latina, onde nossa interveno pretende contribuir para um

    pensamento sobre o presente. Em lngua espanhola e portuguesa, os exemplos no

    escasseiam. A problematizao da questo do sujeito autoral aparece, por exemplo, na obra

    inteira de Fernando Vallejo, assim como na do cubano Pedro Juan Gutierrez, estruturadas

    ambas como sagas autobiogrficas, nas quais se mantm o mesmo narrador em vrios

    romances, retornam uma e outra vez s mesmas histrias pessoais e familiares sob

    diferentes pontos de vista. Tambm boa parte da narrativa cubana dos ltimos anos est

    atravessada pela primeira pessoa autobiogrfica, por exemplo: La nada cotidiana (1995) de

    Zo Valds, e os trs romances de Jess Daz Las iniciales de la tierra (1987), La piel y la

    mscara (1996) e Las palabras perdidas (1997).

    No Brasil, este sintoma se manifesta, por exemplo, na obra de Marcelo Mirisola,

    que introduz vrios componentes biogrficos, repetidos em textos diversos e mesclados

  • 20

    parafernlia ficcional, por exemplo em Ftima fez os ps para mostrar na Choperia (1998),

    O Heri Devolvido (2000), O Azul do Filho Morto (2002) ou Bangal (2003). Por sua vez,

    os dois ltimos romances de Joo Gilberto Noll, Berkeley em Bellagio (2002) e Lord

    (2004), escritos em primeira pessoa, com fortes marcas autobiogrficas, narram a

    experincia do narrador-escritor na Europa, fazendo com que seja difcil descolar essa

    figura da do autor. Tambm se coloca essa questo na obra de Silviano Santiago: em Stella

    Manhattan (1985) e, em Viagem ao Mxico (1995), Santiago cria atravs da intromisso

    de um narrador em primeira pessoa que expe os bastidores da escrita - a iluso de uma

    contemporaneidade entre escritura e experincia. A questo da relao do eu ficcional com

    o sujeito autoral j estava em pauta, de maneira alegrica, no Em liberdade (1981), e

    retornar nos contos de Histrias mal contadas (2004), relatos que remetem s

    experincias da sua formao intelectual, e na forma de uma autobiografia falsa em O

    falso mentiroso (2004), fico que precisamente expe os paradoxos da identidade de quem

    narra.

    Ora, o fato de muitos romances contemporneos se voltarem sobre a prpria

    experincia do autor no parece destoar da sociedade marcada pelo falar de si, pela

    espetacularizao do sujeito.13 O avano da cultura miditica de fim de sculo oferece

    um cenrio privilegiado para a afirmao desta tendncia. Nela se produz uma crescente

    visibilidade do privado, uma espetacularizao da intimidade e a explorao da lgica da

    celebridade, que se manifesta numa nfase tal do autobiogrfico, que possvel afirmar que

    a televiso se tornou um substituto secular do confessionrio eclesistico e uma verso

    exibicionista do confessionrio psicanaltico. Assistimos hoje a uma proliferao de

    narrativas vivenciais, ao grande sucesso mercadolgico das memrias, das biografias, das

    autobiografias e ods testemunhos; aos inmeros registros biogrficos na mdia, retratos,

    perfis, entrevistas, confisses, talk shows e reality shows; ao surto dos blogs na internet, ao

    auge de autobiografias intelectuais, de relatos pessoais nas cincias sociais, a exerccios de

    ego- histria, ao uso dos testemunhos e dos relatos de vida na investigao social, e

    narrao auto-referente nas discusses tericas e epistemolgicas.13

    13 Lopes, Denilson. Por uma crtica com afeto e com corpo. Em Revista Grumo, Buenos Aires/ Rio de Janeiro, n. 2, p.52-55, 2003 13 Arfuch, Leonor. El espacio biogrfico. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econmica, 2005 [2002]. P. 51

  • 21

    Portanto, uma primeira aproximao escrita de si na fico contempornea

    deveria, sem dvida, inscrev-la no espao interdiscursivo desses outros textos no

    literrios - da cultura contempornea, que evidenciam que esta fico est em sintonia com

    o clima da poca (Zeitgast). No entanto, preciso levar em conta que se a escrita de si

    aparece como um sintoma do final de sculo, no por isso significa que ela seja uma

    novidade para a literatura latino-americana. De fato, uma olhada retrospectiva revela o

    contrrio, pois a escrita de si tem uma presena forte na histria da literatura latino-

    americana.

    Assinalemos, brevemente, dois momentos dessa histria. Primeiro, aquele momento

    em que a escrita de si se inscreve no horizonte da formao da identidade nacional, seus

    conflitos e suas transformaes. A crtica argumenta que neste perodo a escrita

    autobiogrfica geralmente apresenta uma trama na qual indiscernvel o individual do

    coletivo (Arfuch, 2005, p.109; Santiago, 1987, p. 34 /ss). De fato, na Argentina do sculo

    XIX, a literatura autobiogrfica, que remete a figuras pblicas relevantes no processo de

    construo da nacionalidade, inseparvel da construo dessa identidade. A importncia

    da escrita autobiogrfica tal que No Jitrik chega afirmar que lo que llamamos literatura

    argentina para el siglo XIX es memorias, como las del General Paz, autobiografas, como

    las de Sarmiento, o diarios, como los de Mansilla, por dar ejemplos contundentes.14

    Em La literatura autobiogrfica argentina, Adolfo Prieto mostra que o contedo do

    que se rememora nesses textos tende a recuperar ou exaltar os valores de uma elite, de uma

    classe: a oligarquia, funcionando ao mesmo tempo como reao contra as novas identidades

    emergentes, produtos da imigrao.15 Para Silvia Molloy, precisamente a definio do eu

    atravs da famlia, da linhagem, o que caracteriza a autobiografia hispano-americana de

    final do sculo XIX e comeo do XX, que apresenta a peripcia pessoal no quadro maior da

    engrenagem histrica, como olhar-testemunha de um mundo que est prestes a

    desaparecer.16

    14 Jitrik, No. El ejemplo de la familia. Buenos Aires: Eudeba, 1998. p. 21 O que chamamos de literatura argentina para o sculo XIX memrias, como as do General Paz, autobiografias, como as de Sarmiento, ou dirios, como os de Mansilla, por dar alguns exemplos contundentes (traduo minha do espanhol). 15 Prieto, Adolfo. La literatura autobiogrfica argentina. Rosario: Facultad de Filosofa y Letras, 1966. 16 Molloy, Silvia. Acto de presencia. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1996. [1991] p.199 Citada por Arfuch, 2005, p.109

  • 22

    Nesse mesmo sentido Silviano Santiago argumenta, a respeito da escrita

    autobiogrfica no modernismo brasileiro dos anos 20 e 30, que sua ambio era a de

    recapturar uma experincia no s pessoal, mas tambm do cl no qual se insere o

    indivduo. Os textos dos modernistas, segundo Santiago, tendem a apresentar uma viso

    conservadora da sociedade patriarcal brasileira: o narrador modernista pactua com os

    antepassados patriarcais e com a atitude estica daqueles que, tendo j uma experincia

    longa de vida, se resguardam das intempries existenciais.12

    Em marcado contraste com essa tendncia, apresenta-se o que consideramos aqui

    um segundo momento de destaque da escrita de si, nos anos da transio ou da recuperao

    democrtica nos pases do Cone Sul que sofreram as ditaduras militares dos anos 70 e 80.

    Nesse contexto aparecem inmeros relatos memorialistas das experincias dos jovens

    polticos ou dos exilados, romance-reportagem ou romance-depoimento, testemunhos

    autobiogrficos que, de alguma maneira, podem ser considerados como testemunho de uma

    gerao. (Santiago, 1988. p. 35, Sussekind, 2002 [1986], p. 248, Melo Miranda, 1992, p.

    18).

    Silviano Santiago avalia essa produo em termos de um neo-romantismo e

    argumenta que o crtico falseia a inteno da obra a ser analisada se no levar em conta

    tambm o seu carter de depoimento, se no observar a garantia da experincia do corpo-

    vivo que est por detrs da escrita.17 Mas ele assinala tambm que o aspecto

    autobiogrfico nos romances dos anos 70 e 80 no responde a uma autocontemplao

    narcisista, seno que a experincia pessoal relatada traz como pano de fundo problemas de

    ordem filosfica, social e poltica: o testemunho autobiogrfico se pretende como

    testemunho de uma gerao. Dado que esses relatos visam conscientizao poltica do

    leitor, tanto Flora Sussekind (2002 [1986]) quanto Wander Melo Miranda argumentam que

    o valor literrio desses textos no especialmente relevante, uma vez que a informao

    veiculada pelos relatos importa mais do que o cuidado com as formas de veiculao (Melo

    Miranda, 1992, p. 19).

    12 Santiago, Silviano. Prosa Literria atual no Brasil, em Nas malhas da Letra. Rio de Janeiro: Rocco, 2002 [1988] p 39 17 Santiago, Silviano, , 2002 [1988] p 36

  • 23

    Se no Brasil est datado nos anos 80, na Argentina e no Chile18 o romance

    memorialista sobre a ditadura militar continua vigente at os dias de hoje, at o ponto que

    pode-se dizer que desde o retorno da democracia, a recuperao da memria e a luta contra

    o esquecimento definem boa parte das prticas culturais e literrias desses pases. Por

    exemplo, En estado de memoria (1990) de Tununa Mercado coloca, com base num registro

    ntimo, o conflito da lembrana dos ltimos quarenta anos de histria argentina a partir de

    uma subjetividade transtornada pelo exlio.Vinte anos depois do fim da ditadura militar, na

    Argentina ainda o presente est cheio de memria, nas palavras de Josefina Ludmer, num

    ensaio que trata da incidncia da memria no presente do ano 2000, e que a partir da leitura

    tanto dos jornais quanto dos romances publicados nesse ano, postula a identificao entre a

    memria poltica e a memria familiar.13 Nos textos por ela analisados, a procura da

    identidade pessoal - ameaada tanto pelo exlio quanto pelas rupturas familiares causadas

    pela represso poltica, com as apropriaes ilegais de crianas e as mudanas de nomes

    nos registros passa pela recuperao da memria familiar, que se torna assim memria

    poltica e conforma um dos eixos culturais e polticos da Argentina atual.

    Na escrita de si dos anos da ps-ditadura se produz, ento, uma inverso, pois a

    memria no mais dispositivo ao servio da conservao dos valores de classe mas, pelo

    contrrio, funciona como testemunho e legado de uma gerao que precisamente teve um

    projeto de mudana de valores.

    Dentro da histria da escrita de si no contexto latino-americano, a produo aqui

    abordada conforma um terceiro momento que, embora relacionado com a chamada

    literatura verdade 14, se afasta da tradio do depoimento. Nos romances do nosso

    corpus, a escrita de si no se apresenta sob a marca da memria da classe, do grupo ou do

    cl, mas aparece como indagao de um eu que, a princpio, parece ligado ao narcisismo

    miditico contemporneo. verdade que toda contemplao da prpria vida est inserida

    numa trama de relaes sociais, e portanto todo relato autobiogrfico remete a um para

    18 Sobre Chile ver Richard, Nelly. Residuos y metforas. (Ensayos de crtica cultural sobre el Chile de la Transicin). Santiago: Editorial Cuarto Propio, 2001. 13 Ludmer, Josefina. Temporalidades del presente. Comunicao apresentada no VIII Congresso Internacional Abralic, Belo Horizonte, 2002, publicado em CDRom. 14 Avelar, Idelber. Alegoras de la derrota. La ficcin postdictatorial y el trabajo del duelo. Santiago: Editorial Cuarto Propio, 2000. p. 251 Avelar retoma a classificao de Ricardo Piglia e Juan Jos Saer em Por un realto futuro. Santa Fe: Universidad del Litoral, 1990. p.14

  • 24

    alm de si mesmo. Como argumenta Leonor Arfuch, com base no conceito de

    interdiscursividade de Michael Bajtin, todo relato de experincia , at certo ponto,

    expresso de uma poca, uma gerao, uma classe. No possvel se pensar em um eu

    solitrio, fora de uma urdidura de interlocuo: eu no me separo valorativamente do

    mundo dos outros, seno que me percebo dentro de uma coletividade, uma famlia, uma

    nao, a humanidade cultural.15 No entanto, cada narrativa de si se posiciona de diferente

    maneira segundo a nfase que coloque na exaltao de si mesmo, na auto-indagao, ou na

    restaurao da memria coletiva.

    Para alm da relao que se pode estabelecer entre o retorno do autor e o

    exibicionismo da cultura miditica, devemos tambm situ-lo no contexto discursivo da

    crtica filosfica do sujeito, que se produziu ao longo do sculo XX, e que chegou at sua

    negao com o estruturalismo, o anncio da morte do autor na literatura e da morte do

    sujeito na filosofia. Os textos do nosso corpus no se apresentam como expresso de uma

    singularidade dona de si mesma e da sua escrita, o que permite esboar uma primeira

    hiptese: estes textos parecem responder ao mesmo tempo e paradoxalmente ao narcisismo

    miditico e crtica do sujeito. Portanto, parece conveniente considerar estes textos a partir

    da categoria de auto-fico, conceito que redefinido aqui por ns - capaz de dar conta

    desse paradoxo. Inventado em 1971 por Sergue Doubrovsky, o conceito de auto-fico

    ainda carece de uma definio acabada e satisfatria. No presente captulo, revisaremos as

    diferentes definies e chegaremos a uma prpria. Segundo a hiptese que

    desenvolveremos, a auto-fico se inscreve no corao do paradoxo deste final de sculo

    XX: entre o desejo narcisista de falar de si e o reconhecimento da impossibilidade de

    exprimir uma verdade na escrita.

    Consideramos enriquecedor pensar o conceito de auto-fico junto com o de

    performance, que, como veremos, tambm implica uma des-naturalizao do sujeito. De

    forma que esta reafirmao do eu na literatura, tal como ela aparece nos textos de nosso

    corpus, bem mais complexa do que pode parecer num primeiro momento; e o maior

    interesse desta prtica paradoxal que aqui definimos como auto-fico que ela cristaliza

    vrios problemas epistemolgicos e estticos da contemporaneidade.

    15 Bajtin, Michael. Esttica de la creacin verbal. Mxico: Siglo XXI, 1982 [1979] p. 135. citado por Arfuch, 2005 p. 108 (traduo minha do espanhol)

  • 25

    Mas antes de entrarmos na categoria de auto-fico, preciso em primeiro lugar,

    inseri-la no conjunto mais amplo dos discursos sobre o eu, que denominamos, seguindo

    Foucault, a escrita de si. Foucault mostra de que forma a escrita de si no apenas um

    registro do eu, mas desde a Antigidade clssica at hoje, passando pelo cristianismo da

    Idade Mdia - constitui o prprio sujeito, performa a noo de individuo. O discurso

    autobiogrfico, que se constitui na modernidade em continuidade com esse paradigma,

    como exacerbao do individualismo burgus, ser o pano de fundo sobre o qual se

    constri e, ao mesmo tempo, se destaca o discurso da auto-fico, que implica uma nova

    noo de sujeito.

    Portanto, em segundo lugar se impe revisar brevemente o alcance da crtica

    estruturalista noo de autor, articulada no pensamento de Foucault com a crise

    filosfica da noo de sujeito operada no sculo XX, atravs do postulado da morte do

    autor, em favor da funo autor.

    Em terceiro lugar, preciso discutir a hiptese (defendida especialmente por Hal

    Foster) de que haveria, na arte e na crtica contemporneas, um retorno do autor. Foster

    enxerga o renascimento do autor no discurso do trauma: In trauma discourse, the subject

    is evacuated and elevated at once.16 Segundo a perspectiva que defendemos aqui,

    possvel sustentar a hiptese de Foster, mas devemos levar em considerao as

    especificidades deste retorno no terreno da literatura. Nos textos do nosso corpus, o autor

    que retorna no o sujeito do trauma. Tambm no o mesmo sujeito romntico,

    protagonista da cultura humanista, cuja morte sentenciara Foucault. Como veremos, a

    categoria de auto-fico um conceito capaz de dar conta do retorno do autor depois da

    crtica filosfica da noo de sujeito.

    16 Foster, Hal. The return of the real. The avant-garde at the end of the century. Cambridge and London: MIT Press, 2001.[1996] p.168

  • 26

    1.1 - A escrita de si: uma histria

    Sustentar a existncia de um retorno do autor implica necessariamente entrar no

    debate sobre a produo da subjetividade em relao com a escrita. De fato, esses dois

    termos esto em estreita relao: da Antigidade at hoje, a escrita performa a noo de

    sujeito. Embora exacerbada na cultura burguesa da Ilustrao, a escrita de si no nem um

    aspecto moderno nascido da Reforma, nem um produto do romantismo; uma das tradies

    mais antigas do Ocidente uma tradio j bem estabelecida, profundamente enraizada, j

    quando Agostinho comea a escrever suas Confisses, que geralmente so citadas como o

    primeiro referente de uma escrita autobiogrfica. Como mostra Foucault17, na Antigidade

    Greco-romana o eu no apenas um assunto sobre o qual escrever, pelo contrrio, a

    escrita de si contribui especificamente para a formao de si. Foucault argumenta que de

    todas as formas de asksis, ou seja do treino de si por si mesmo, focado arte de viver

    (abstinncias, meditaes, exames de conscincia, memorizaes, silncio e escuta do

    outro) a escrita para si e para o outro - desempenhou um papel considervel por muito

    tempo. A escrita como exerccio pessoal, associada ao exerccio do pensamento sobre si

    mesmo, constitui uma etapa essencial no processo para o qual tende toda a asksis: a

    elaborao dos discursos recebidos e reconhecidos como verdadeiros em princpios

    racionais de ao. De maneira que a escrita opera a transformao da verdade em ethos.

    Nos sculos I e II, a escrita de si se apresenta sob duas formas principais: os

    hupomnmata e a correspondncia. Os hupomnmata, cadernetas individuais nas quais se

    anotavam citaes, fragmentos de obras, reflexes ou pensamentos ouvidos, eram

    oferecidos como tesouro acumulado para a releitura e meditao posteriores. Constituam

    um material para ler, reler, meditar e conversar consigo mesmo e com os outros. No

    entanto, esses hupomnmata no constituem uma narrativa de si mesmo, no podem ser

    entendidos como os dirios que aparecem posteriormente na literatura crist, que tem o

    valor da purificao. O movimento que eles procuram o inverso: trata-se no de revelar o

    oculto, de dizer o no-dito, mas, pelo contrrio, de dizer o j dito, com a finalidade da

    constituio de si. Inseridos em uma cultura fortemente marcada pelo valor reconhecido

    23 Foucault, Michel. A escrita de si. Ditos e escritos. Vol. V. tica, sexualidade e poltica. Traduo de Elisa Monteiro e Ins Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense, 2004 [1983] p. 144-162

  • 27

    tradio, recorrncia do discurso, prtica da citao, o objetivo dos hupomnmata

    recolher o logos fragmentrio transmitido pelo ensino e fazer dele um meio para o

    estabelecimento de uma relao consigo mesmo. Argumenta Foucault:

    O papel da escrita constituir, com tudo o que a leitura constituiu, um corpo. E preciso compreender esse corpo no como um corpo de doutrina, mas sim segundo a metfora da digesto, to freqentemente evocada - como o prprio corpo daquele que, transcrevendo suas leituras, delas se apropriou e fez sua a verdade delas: a escrita transforma a coisa vista ou ouvida em foras e em sangue.18

    Quanto correspondncia, embora seja um texto por definio destinado a outro,

    tambm permite o exerccio pessoal. A carta que enviada para ajudar ou aconselhar seu

    correspondente constitui para aquele que a escreve uma espcie de treino, desempenha o

    papel de um princpio de reativao: conselhos dados aos outros so uma forma de preparar

    a si prprio para uma eventualidade semelhante. Mas a carta alguma coisa a mais que um

    adestramento de si mesmo pela escrita: ela torna o escritor presente para aquele a quem

    a envia. Escrever se mostrar, se expor. De maneira que a carta, que trabalha para a

    subjetivao do discurso, constitui ao mesmo tempo uma objetivao da alma. Ela uma

    maneira de se oferecer ao olhar do outro: ao mesmo tempo opera uma introspeco e uma

    abertura ao outro sobre si mesmo.

    Segundo Foucault, as cartas de Sneca evocam freqentemente dois princpios: o de

    que necessrio adestrar-se durante toda a vida, e o de que sempre se precisa da ajuda de

    outro na elaborao da alma sobre si mesma. A carta se articula assim com a prtica do

    exame de conscincia. Mas, no caso do relato epistolar pr-cristo, no se trata, como na

    posterior anotao monstica, de desalojar do interior da alma os movimentos mais

    escondidos de forma a poder deles se libertar; trata-se de fazer coincidir o olhar do outro e

    aquele que se lana sobre si mesmo ao comparar suas aes cotidianas com as regras de

    uma tcnica de vida.19

    18 Foucault, Michel. A escrita de si. Ditos e escritos. Vol. V. tica, sexualidade e poltica. Traduo de Elisa Monteiro e Ins Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense, 2004 [1983] p. 152 19 Foucault, Michel, 2004 [1983] p. 162

  • 28

    Em sntese, os hupomnmata e a correspondncia mostram que para os gregos, o

    cuidado de si configura uma das grandes regras de conduta da vida social e pessoal, um

    dos fundamentos da arte de viver. Nossa tradio filosfica ocidental esqueceu esse

    princpio, em favor do conhece-te a ti mesmo explcito no Alcibades I, de Plato, que

    no entanto - sempre estava associado e subordinado ao primeiro, ao tomar conta de si. A

    obrigao de conhecer-se um dos elementos centrais do ascetismo cristo, mas j no

    como um movimento que conduz o indivduo a cuidar de si mesmo, mas como forma pela

    qual o indivduo renuncia ao mundo e se desapega da carne. Assim, ao constituir o mundo

    da transcendncia, separando o mundo celeste do terreno, o cristianismo constri outra

    concepo da subjetividade, em cujo fundamento est a renncia: pela renncia ao mundo

    terreno que a subjetividade se forja face a um Deus impessoal e onipotente. As Confisses

    de Santo Agostino, que inauguram uma certa autobiografia espiritual, procedem dessa

    exigncia dogmtica de apresentar ante Deus o balano de todos os atos, pensamentos e

    intenes da alma. O penitente, a imagem de Santo Agostino, no pode seno se

    manifestar culpvel ante seu criador. O espelho teolgico da alma crist um espelho

    deformante, que explora sem complacncia os menores defeitos da pessoa moral.20 Para o

    cristianismo, a categoria da subjetividade (permeada pelos valores de culpa e pecado) tem

    correlao com a categoria de verdade; atravs do mecanismo da confisso como a tcnica

    fundamental para a construo de si mesmo enunciando para um outro as culpas e pecados,

    como caminho para a ascese purificadora da individualidade em direo transcendncia

    divina.

    Resumindo, na passagem da cultura pag cultura crist, o conhece-te a ti mesmo

    passou a modelar o pensamento de ocidente, eclipsando o cuida de ti mesmo, que era o

    princpio que fundamenta a arte de viver da Antigidade. Com a herana da moral crist,

    que faz da renncia de si a condio da salvao, paradoxalmente, conhecer-se a si mesmo

    constituiu um meio de renunciar a si mesmo. A partir de ento nossa moral, uma moral do

    ascetismo, no parou de dizer que o si a instncia que se pode rejeitar. Inclinamo-nos, diz

    Foucault, em princpio, a considerar o cuidado de si como qualquer coisa suspeita, imoral,

    como uma forma de egosmo em contradio com o interesse que necessrio ter em

    20 Gusdorf, Georges. Condiciones y lmites de la autobiografa. Em Anthropos, Barcelona, n. 29, p. 9-18, dezembro 1991. p. 12. (Traduo minha do espanhol.)

  • 29

    relao aos outros ou com o necessrio sacrifcio de si mesmo. Mas na Antigidade, a tica

    como prtica racional da liberdade girou em torno do cuida de ti mesmo. 21

    Se na tradio crist o homem no pode contemplar sem angstia a prpria imagem,

    somente com a desintegrao dos dogmas, sob a fora conjunta do Renascimento e da

    Reforma, comea o interesse do homem em se ver tal como ele (Gusdorf, 1991, 12),

    longe de qualquer premissa transcendental. Os Ensaios de Montaigne, desprovidos da

    obedincia doutrinria num mundo em vias de crescente secularizao, consagram o direito

    de o sujeito individual expressar sua experincia pessoalizada do mundo sem recorrer a

    modelos legitimados. Portanto, na obra de Montaigne se encontram traados os contornos

    da literatura no sentido moderno, fundada no sujeito individual. Para Luiz Costa Lima, o

    primado do eu pe em questo a vigncia da lei antiga, mesmo porque ela o exclua, e

    pressiona em favor do aparecimento de outra, que o previsse, o reconhecesse e destacasse.

    Essa outra lei comea, nos tempos modernos, a assumir feio definida com Descartes e se

    plenificar com a primeira crtica kantiana.22 Desta perspectiva, a relevncia da escrita

    tal que se conclui que os conceitos modernos de individuo e de literatura se pressupem

    mutuamente: no existe a forma moderna da literatura antes de que se possa falar de

    indivduo no sentido moderno, mas tambm no existe este sem aquela. A concepo

    normal e mais extensa de literatura combina duas determinaes de origem diversa; uma do

    Renascimento, que a identifica com uma forma nobre de eloqncia, e a outra do

    romantismo, segundo a qual se trata de comover pela fora dos sentimentos que se

    confessavam. O cnone literrio desde ento majoritariamente propagado combina os dois

    extratos e considera a literatura a manifestao eloqente, i. e., verbalmente bem tramada,

    de um eu que a, de modo direto ou transposto, se confessa. 23

    No Romantismo, a virtude da individualidade se completa com a da sinceridade,

    que Rousseau retoma de Montaigne. Para Rousseau, a sinceridade tinha de ser o axioma, o

    ponto atrs do qual nada mais se depositaria ou se poderia demonstrar. Rousseau pretende

    dar ao corao a irredutibilidade que Descartes concedera ao cogito.24 No entanto, como

    21 Foucault, Michel. A escrita de si. Ditos e escritos. Vol. V. tica, sexualidade e poltica. Traduo de Elisa Monteiro e Ins Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense, 2004 [1983] p. 268 22 Costa Lima, Luiz Os limites da voz. Os limites da voz. Montaigne, Schlegel. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 36 23 Costa Lima, Luiz. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. p. 249 24 Costa Lima, Luiz. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986. p.295

  • 30

    argumenta Costa Lima, no existe uma irredutibilidade que possamos conquistar e

    converter em palavras. Nessa impossibilidade de Rousseau se tornar a transparncia que

    desejou ser, Costa Lima enxerga os traos do indivduo moderno. A Rousseau ainda no

    ocorre que a vontade de ser sincero pode ser motivada por algo a ela anterior; que a vontade

    de destruir todas as mscaras pode alimentar outra mscara.25 Esse ser o insight de

    Nietzsche, que inaugura uma nova concepo do sujeito e da verdade, como veremos a

    seguir.

    25 Costa Lima, Luiz, 1986. p. 295.

  • 31

    1.2- A crise do sujeito e a morte do autor

    A deconstruo da categoria do sujeito cartesiano operada por Nietzsche, implica

    assumir os efeitos da morte de Deus e do homem, ou seja, da figura construda tanto pela

    tradio da filosofia moderna, fundada no cogito cartesiano, quanto pela tradio crist na

    qual interioridade, renncia e conscincia de si seriam seus eixos fundantes. A crtica do

    sujeito levada a cabo por Nietzsche implica tambm a deconstruo da categoria a ele

    associada de verdade. Em Para alm do bem e do mal, Nietzsche se pergunta: O que me

    d o direito de falar de um eu, e em fim de um eu como causa de pensamentos? E

    responde que um pensamento vem quando ele quer, e no quando eu quero; de maneira

    que um falseamento dos fatos dizer que o sujeito eu a condio do predicado penso.

    A crtica do sujeito cartesiano se transforma assim em crtica da vontade de verdade:

    Quem invoncando uma espcie de intuio do conhecimento, se aventura a responder de pronto essas questes metafsicas, como faz aquele que diz eu penso e sei que ao menos isso verdadeiro, real e certo esse encontrar hoje sua espera, num filsofo, um sorriso e dois pontos de interrogao. Caro senhor, dir talvez o filsofo, improvvel que o senhor no esteja errado: mas por que sempre a verdade?26

    Em A genealogia da moral, Nietzsche argumenta que na origem da moral se

    encontra o ressentimento contra a vontade de fora, de dominao. Mas seria um erro da

    razo entender que o atuar determinado por um atuante, um sujeito. No existe tal

    substrato; no existe ser por trs do fazer, do atuar, do devir; o agente uma fico

    acrescentada ao e a ao tudo. E mais adiante conclui que, o sujeito foi at o

    momento o mais slido artigo de f sobre a terra, talvez por haver possibilitado grande

    maioria dos mortais, aos fracos e oprimidos de toda espcie, enganar a si mesmos com a

    sublime falcia de interpretar a fraqueza como liberdade, e seu ser assim como mrito. 27

    Depois de Nietzsche, o sculo XX continuar a crtica e a deconstruo do sujeito,

    cuja culminao se encontra na declarao de Foucault da morte do autor na literatura e o

    26 Nietzsche, Friedrich. Alm do bem e do mal. Traduo Paulo Cezar de Souza. So Paulo: Companhia das letras:2000. [1885] p.40 27 Nietzsche, Friedrich. A genealogia da moral. So Paulo: Editora Schwarcz, 2004.[1887] Traduo de Paulo Czar Lima de Costa. p.36/37

  • 32

    apagamento do homem comme la limite de la mer um visage de sable.28 O grande corte

    se produziu com o estruturalismo, que estabeleceu um paradigma transdisciplinar cujo eixo

    seria uma concepo lgico-formal da linguagem. Assim, na sua reformulao do conceito

    de inconsciente freudiano, J. Lacan afirma que ele est estruturado como uma linguagem e

    que nele existem relaes determinadas. a estrutura que d seu estatuto ao inconsciente.29

    Seguindo o mesmo raciocnio de Lacan, tambm R. Barthes pensa o sujeito como signo

    vazio: o sujeito apenas um efeito da linguagem30.

    Com o intuito de evitar a sacralizao burguesa do nome do autor, a teoria herdeira

    desta concepo do sujeito (o formalismo russo, o new criticism), passa a conceber a

    literatura como um vasto empreendimento annimo e como uma propriedade pblica, em

    que escrever e ler so percursos indistintos, autor e leitor papis intercambiveis, nesse

    universo onde tudo escrita31. A crtica que sustenta essa acepo da literatura desconfia

    de qualquer relao exterior ao texto, marginalizando e considerando gneros menores

    por serem gneros da realidade, ou seja, textos fronteirios entre o literrio e o no

    literrio, a toda uma srie de discursos relacionados com o eu que escreve: crnicas,

    memrias, confisses, cartas, dirios, auto-retratos.32 No entanto, se como assinala

    Beatriz Sarlo os leitores ainda nos interessamos pelos escritores porque no fuimos

    convencidos, ni por la teora ni por nuestra experiencia, de que la ficcin es, siempre y

    antes que nada, un borramiento completo de la vida.33 Do que se trata neste trabalho

    precisamente da possibilidade de pensar o sujeito da escrita depois da crtica estruturalista

    do sujeito, ou seja de sua descentralizao, pois a desconstruo da categoria do sujeito

    cartesiano ter um efeito profundo na concepo da relao entre subjetividade e escritura.

    Ora, vejamos em que consiste esta crtica.

    28 Foucault, Michel. Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966. p.398 como na beira do mar, um rosto de aria (trad. minha do francs) 29 Lacan, Jacques. O seminrio. Livro XI. Trad. Leyla Perrone-Moiss. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 1985 [1964] p. 27 30 R. Barthes por R Barthes. Trad. Leyla Perrone-Moiss. So Paulo, Cultrix, 1977. p.85 31 Melo Miranda. Corpos Escritos. So Paulo: Editora Edusp e Belo Horizonte: Editora UFMG, 1992. p.93 32 Ludmer, Josefina. Las tretas del dbil". Em La sartn por el mango. Encuentro de escritoras latinoamericanas. Gonzlez, Patricia Elena e Ortega, Eliana (Eds.). Ro Piedras: Ediciones Huracn, 1984. pp. 47-54. Segundo Ludmer, estes gneros costumam ser associados pela crtica ao feminino e, portanto, sofrem uma dupla marginalizao. 33 Sarlo, Beatriz. Prlogo a Graciela Speranza. Primera Persona. Conversaciones con quince narradores argentinos. Buenos Aires: Norma, 1995. p. 11 No fomos convencidos, nem pela teoria nem na nossa experincia, de que a fico seja, sempre e no primeiro lugar, um apagamento completo da vida (trad. minha do espanhol)

  • 33

    Em seu texto O que um autor? (1969), Foucault faz uma anlise do conceito de

    autor centrando-se na relao do texto com o sujeito da escrita, quer dizer, no modo como o

    texto aponta para essa figura que agora s aparentemente exterior e anterior a ele. O

    ensaio uma declarao da morte do autor que, como ponto de partida toma as palavras do

    personagem de Beckett em Esperando Godot: Que importa quem fala, algum disse que

    importa quem fala. Nessa indiferena, Foucault reconhece um dos princpios ticos

    fundamentais da escrita contempornea; ticos porque se trata de um princpio que no

    marca a escritura como resultado, mas que a domina como prtica. Na escritura, diz

    Foucault, ne sagit pas du lpinglage dun sujet dans un langage; il est question de

    louverture dun espace o le sujet criviant ne cesse de disparaitre. 34

    Foucault percebe uma passagem de uma relao da escrita com a imortalidade (por

    exemplo, a epopia grega estava destinada a perpetuar a imortalidade do heri, Sherazade

    conta uma histria a cada noite para no morrer) para uma relao da escrita com a morte.

    (No entanto, se observamos os exemplos da relao da escritura com a imortalidade,

    veremos que eles correspondem tradio oral, enquanto que talvez a escrita tenha estado

    sempre relacionada morte do autor; a morte no sentido de sacrifcio da vida,

    desaparecimento voluntrio). Diz Foucault: louvre qui avait le devoir dapporter

    limmortalit a reu maintenant le droit de tuer, dtre meurtrire de son auteur. Fala-se da

    morte do autor, porque tm desaparecido os caracteres individuais do sujeito escritor, de

    maneira que la marque de lcrivian nest plus que la singularit de son absence35 (p. 793) .

    Esse o espao filosfico-filolgico que Nietzsche abriu ao se perguntar, no o que eram o bem e

    o mal em si mesmos, mas o que era designado como tal e, ento, quem que sustenta esses

    conceitos. pergunta de Nietzsche - quem fala? - Mallarm responde que quem fala, en sa

    solitude, en sa vibration fragile, en son nant, le mot lui-mme - non ps le sans du mot, mais son

    tre nigmatique et prcaire . Enquanto Nietzsche mantinha at o extremo a interrogao sobre

    34 Foucault, Michel. Qu'est-ce qu'un auteur? Dits et crits. Vol I, Paris: Gallimard, 1994. [1969] p. 793 no se trata da sujeio de um sujeito a uma linguagem, trata-se da abertura de um espao no qual o sujeito que escreve no deixa de desaparecer. (trad. minha do francs) 35 a obra que tinha o dever de conduzir imortalidade do heri tem recebido agora o direito de matar, de ser assassina do seu autor.(...) a marca do escritor j no mais que a singularidade de sua ausncia. (trad. minha do francs)

  • 34

    aquele que fala, Mallarm - diz Foucault ne cesse de seffacer lui-mme de son propre

    langage36.

    Mas, por outro lado, adverte Foucault, no to simples descartar a categoria de autor,

    porque o prprio conceito de obra e a unidade que esta designa dependem daquela categoria. Por

    isso Foucault busca localizar o espao que ficou vazio com o desaparecimento do autor (um

    acontecimento que no cessa desde Mallarm), e rastrear as funes que este desaparecimento

    faz aparecer. De fato, para Foucault, o autor existe como funo autor: um nome de autor no

    simplesmente um elemento num discurso, mas ele exerce um certo papel em relao aos

    discursos, assegura uma funo classificadora, manifesta o acontecimento de um certo conjunto

    de discursos e se refere ao estatuto deste discurso no interior de uma sociedade e no interior de

    uma cultura. Nem todos os discursos possuem uma funo autor, mas em nossos dias, essa

    funo existe plenamente nas obras literrias. Para a crtica literria moderna, o autor quem

    permite explicar tanto a presena de certos acontecimentos numa obra como suas transformaes,

    suas deformaes, suas modificaes diversas. O autor tambm o princpio de uma certa

    unidade de escritura preciso que todas as diferenas se reduzam ao mnimo graas a princpios

    de evoluo, de amadurecimento ou de influncia. Finalmente, o autor um certo lar de

    expresso que, sob formas mais ou menos acabadas, se manifesta tanto e com o mesmo valor

    em obras, em rascunhos, em cartas, em fragmentos, etc. Quer dizer que, para Foucault, o vazio

    deixado pela morte do autor preenchido pela categoria funo autor que se constri em

    dilogo com a obra.

    Seguindo esse mesmo rumo de pensamento, no clssico ensaio A morte do autor,

    Roland Barthes se pergunta, a propsito de uma passagem de Sarrasine, de Balzac: Quem

    fala assim? o heri da novela, interessado em ignorar o castrado que se esconde sob a

    mulher? o indivduo Balzac, dotado por sua experincia pessoal de uma filosofia da

    mulher? o autor Balzac, professando idias literrias sobre a mulher? a sabedoria

    universal? A psicologia romntica? Barthes conclui que impossvel responder a essas

    perguntas porque a escritura a destruio de toda voz, de toda origem. A escritura esse

    36 Foucault, Michel. Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966. p.317 - Mallarm responde que quem fala, em sua solido, em sua frgil vibrao, em seu nada, fala a palavra mesma, em seu ser enigmtico e precrio. (...) Mallarm - diz Foucault no pra de apagar-se a si mesmo de sua prpria linguagem (trad. minha do francs)

  • 35

    neutro, esse composto, esse oblquo, aonde foje nosso sujeito, o branco-e-preto aonde vem

    se perder toda identidade, a comear pela do corpo que escreve.37

    No entanto, ser que a destruio da identidade do corpo que escreve no menos

    um produto da escritura do que de uma concepo modernista da escritura? No ser que

    ela no depende de uma perspectiva da autonomia da arte, segundo a qual a realidade

    externa irrelevante, pois a arte cria sua prpria realidade (cf. Hutcheon, 1988, p. 146)?

    Sendo assim, a escritura como destruio da voz e do corpo que escreve seria um conceito

    datado, e talvez historicamente ultrapassado.

    Esboamos aqui a hiptese de que o retorno do autor - a auto-referncia da

    primeira pessoa - talvez seja uma forma de questionamento do recalque modernista do

    sujeito. Retorno remeteria assim no apenas ao devir temporal, mas especialmente ao

    sentido freudiano de Wiederkehr, de reapario do recalcado. Segundo a nossa hiptese, na

    atualidade j no possvel reduzir a categoria de autor a uma funo. Como produto da lgica da

    cultura de massas, cada vez mais o autor percebido e atua como sujeito miditico. Se alm

    disso, o autor joga sua imagem e suas intervenes pblicas com a estratgia do escndalo ou da

    provocao, como o caso de Vallejo e de Cucurto por exemplo, torna-se problemtico afirmar

    ainda que no importa quem fala.

    Neste mesmo sentido Daniel Link argumenta que haveria um paradoxo no sculo

    XIX, pois ao mesmo tempo que comeam a se verificar processos de profissionalizao do

    escritor (e talvez por isso mesmo), o autor morre, ou se torna um simples efeito do

    campo intelectual, ou no melhor dos casos, em instaurador de discursividade, segundo a

    expresso de M. Foucault.38 somente no final do sculo XX, cuando el campo

    intelectual agoniza y los intelectuales son especies en vas de extincin, el autor puede

    volver a ser hipostasiado como una figura con algn valor en el mercado literrio.39

    preciso, ento, reconsiderar a afirmao da morte do autor ou sua reduo a uma funo da

    obra. Como assinala Andras Huyssen negar a validez s perguntas sobre quem escreve ou

    quem fala, simplesmente duplica, no nvel da esttica e da teoria, o que o capitalismo como

    sistema de relaes de intercmbio produz na vida cotidiana: a negao da subjetividade no

    37 Barthes, Roland. O rumor da lngua . Traduo Leyla Perrone Moiss. So Paulo/Campinas: Brasiliense/ Ed. da Unicamp, 1988 [1984] p.65 38 Link, Daniel. Literatura e mercado. Em Como se l e outras intervenes crticas. Chapec: Argos, 2002. p.253 39 Link, Daniel, 2002, p.253.

  • 36

    mesmo processo de sua constituio.40 No entanto, justo remarcar que tanto Barthes

    quanto Foucault, que no auge do estruturalismo criticaram a noo do autor, nos seus

    trabalhos seguintes deixaram cada vez mais pistas para afirmar no novas experincias

    cientificistas, que distanciam pesquisador e pesquisado, mas como lidar com o pessoal na

    escrita, sem recorrer a velhos biografismos como assinala Denilson Lopes (2002, p.252).

    De fato, desde os anos setenta, os debates ps-estruturalistas, feministas e ps-coloniais,

    devedores do pensamento de Foucault, no cessaram de retornar pergunta pelo lugar da

    fala.

    40 Huyssen, Andreas. Guia del posmodernismo. New German Critique, n.33, 1984. Em Punto de Vista, n.29, abril 1987. (traduo minha do espanhol)

  • 37

    1.3- O retorno do autor ou The personal is theoretical

    A expresso the personal is theoretical da antroploga Judith Okely41, e se

    refere importncia do aspecto autobiogrfico na escrita etnogrfica, parafraseando o lema

    do feminismo dos anos 70, the personal is political. O que se percebe hoje que tanto na

    antropologia, na filosofia, como na teoria literria, h um movimento de retorno

    problemtica do sujeito, uma busca de um meio termo entre deconstruo e hipstase do

    sujeito que caracteriza muitas investigaes filosficas contemporneas, como as de Paul

    Ricoeur, Giorgio Agamben, ou Slavoj Zizek42.

    O retorno do sujeito na antropologia, a relao entre esta e a autobiografia,

    particularmente importante para nossa argumentao, mas voltaremos a isso no segundo

    captulo. Na teoria e na crtica literria contemporneas podemos tomar o exemplo que

    mencionamos do trabalho de Denilson Lopes, que vem desenvolvendo um tipo de crtica na

    qual a autobiografia decisiva, uma crtica com afeto e com corpo. Seu primeiro livro

    publicado, Ns os mortos43, verso reduzida da sua tese de doutorado em sociologia, uma

    prosa ficcional erudita, na qual o narrador em primeira pessoa est colado a seu objeto

    de estudo a melancolia -, como j sugere o pronome ns do ttulo44. A sensibilidade neo-

    barroca e melanclica no apenas tema, objeto, mas permeia a prpria escritura do ensaio.

    A sensibilidade tanto se refere a uma potica quanto a uma afetividade do prprio sujeito,

    quer dizer, uma potica que identifica o autor do ensaio com seu objeto. Ensaio como auto-

    etnografia, auto-exame: a arte que me conduz para dentro de mim e para o mundo, para

    a cincia e para a religio, para o pensar e para o sentir, minha teoria e minha prtica,

    possibilidade frgil, desesperada de alguma beleza. por esse pouco de beleza que vivo.

    (p.19). A crtica literria e a anlise da cultura como escrita de si faz-se ainda mais evidente

    no seu segundo livro, O homem que amava rapazes (2002), onde o crtico confessa:

    41 Okely, Judith. Anthropology and autobiography. Participatory experience and embodied knowledge. In Anthropology and Autobiography. Okely, Judith and Helen Callaway (ed). London and New York: Routledge, 1995. p.9 42 Ricoeur, Paul. Si mesmo como um outro. Papirus, S. Paulo, 1991. Agamben, Giorgio. Infncia e histria: destruio da experincia e origem da histria. Belo Horizonte: UFMG, 2005 e Homo Sacer o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002. Zizek, Slavoj. El espinoso sujeto. El centro ausente de la ontologa poltica. Buenos Aires: Editorial Paidos, 2001. 43 Lopes, Denilson. Ns os mortos. Rio de Janeiro: Sette letras, 1999. 44 Santiago, Silviano. orelha do livro.

  • 38

    Antes escrevia para explicar, me justificar; maquiava sentimentos com idias e teorias, me escondia por trs do professor. Pegava os restos de leitura e construa textos, me criava uma impostura, o intelectual iniciante. O que resta agora sou eu diante do texto. No quero mais idias como muletas ou escudos, que elas morram se no forem vivas, se no fizerem o mundo falar. Troco de roupas. Me sinto desafiado, inseguro. Mergulho na experincia.45

    Em texto posterior46, Denilson Lopes cita outros ensaios que, como o seu, fogem da

    cientificidade e da preciso metodolgica para se engajar numa ficcionalidade na qual

    aparea a voz do autor: Trem fantasma de Francisco Foot Hardman (1998), Orfeu exttico

    da metrpole de Sevcenko (1998), Humildade paixo e morte de Davi Arrigucci (1992),

    Atentados Poticos de Jomard Muniz de Brito (2002) e Ana Cristina Cesar, Sangue de uma

    poeta, biografia da que mexe com a autobiografia do autor, Italo Moriconi (1996). Nesta

    biografia, o bigrafo reflete sobre o prprio gnero autobiogrfico e, apresentando o texto

    como um ensaio que poderia ser um prtico para uma possvel biografia, ele reconhece

    uma certa impossibilidade do gnero: a biografia como gnero literrio trabalha no oco,

    trabalha no impossvel: definir o mago de uma pessoa.47 Dessa forma, o ensaio

    biogrfico de Moriconi foge das convenes de um gnero de grande sucesso no mercado

    editorial.

    Da a pergunta de D. Lopes: Qual seria a resposta de nossa crtica a esta pulso

    autobiogrfica em tempos em que o sexo rei h muito virou espetculo de milhes, em que

    qualquer amante de celebridade se julga no direito de contar sua estria, em que a internet

    povoada por chats e dirios pblicos? Seria possvel uma nova potica da expresso sem as

    iluses romnticas? (Lopes, 2003, p. 54) Aparentemente sim. A biografia de Ana Cristina

    Csar, de I. Moriconi, assim como os outros ensaios citados por D. Lopes, ao mesmo tempo

    trazem um gesto maior de ficcionalidade tradio conciliadora e elegante do ensaio

    (Lopes, 2003, p.55) e se contrapem espetacularizao da intimidade, fazendo com que o

    45 Lopes, Denilson. O homem que amava rapazes e outros ensaios. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. p. 77 46 Lopes, Denilson. Por uma crtica com afeto e com corpo. Em Revista Grumo, n.2, Buenos Aires/ Rio de Janeiro, 2003, p.52-55 47 Moriconi, talo. Ana Cristina Cesar, Sangue de uma poeta. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1996. p. 21

  • 39

    desejo maior de auto-exposio se transforme numa possibilidade sutil da voz do sujeito na

    crtica e na autobiografia.

    Voltamos ento a nossa pergunta: que sentido dar ao retorno na cena literria de

    uma escrita do eu? Essa primeira pessoa uma mscara produzida pelo teatro irnico da

    cultura miditica ou ela implica uma outra viso da obra? O termo retorno tambm no

    evidente: quando datar esse retorno, e se h retorno um retorno do mesmo ? Qual o

    sujeito que retorna? Evidentemente, no se trata da figura sacrossanta do autor, tal como ela

    sustentada pelo projeto autobiogrfico tradicional. Nos textos do nosso corpus o lugar da

    fico entranha uma dssemantizao do eu, que perde sua coerncia biogrfica e

    psicolgica.

    Segundo Hal Foster, o retorno do autor uma virada significativa tanto na arte

    contempornea, como na crtica, nas quais ele coincide com o retorno do real.48 Na

    argumentao de Foster, o retorno do autor e o retorno do real no implicam nenhuma

    volta substancialista, uma vez que ele parte do conceito de real de J. Lacan, que o define

    como aquilo que o sujeito est condenado a ter em falta, mas que essa falta mesma

    revela49. Para Lacan, o real (um evento traumtico), seria aquilo no simbolizvel, uma

    falta, uma ausncia. Assim, na hiptese de Foster, atravs do discurso do trauma, a arte e a

    teoria contemporneas continuam a crtica ps-estruturalista do sujeito. Desta perspectiva, o

    retorno do autor no se ope, mas, pelo contrrio, d continuidade crtica do sujeito,

    mostrando sua inacessibilidade. Esta constatao coerente com a hiptese esboada

    acima, de que o retorno do autor seria uma crtica ao recalque modernista do sujeito da

    escrita. Porm no seria um retorno de um sujeito pleno no sentido moderno, mas haveria

    um deslocamento: nas prticas contemporneas da literatura do eu a primeira pessoa se

    inscreve de maneira paradoxal num quadro de questionamento da identidade. De fato, na

    fico do nosso corpus, assim como na crtica autobiogrfica contempornea, parece existir

    a conscincia de que toda experincia que o autor pode narrar se aproxima do invivvel,

    que requer um mximo de intensidade e ao mesmo tempo de impossibilidade (Lopes,

    254). A diferena da nossa hiptese com a de Foster consiste em que no corpus estudado

    prescindimos da noo de trauma. O termo auto-fico capaz de dar conta do retorno do

    48 Foster, Hal. The return of the real. The avant-garde at the end of the century. Cambridge and London: MIT Press, 2001 [1996] p. 168 49 Lacan, Jaques. O seminrio. Livro XI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1985 [ 1964] p.52

  • 40

    autor pois ele problematiza a relao entre as noes de real (ou referencial) e de ficcional,

    assim como a tenso entre a presena e a falta - retorno e recalque - ainda que no

    necessariamente em relao com o discurso do trauma.

  • 41

    1.4 A auto-fico no campo da escrita de si

    A auto-fico ainda uma categoria controvertida e em curso de elaborao, que

    surge no contexto da exploso contempornea do que Philippe Forest chama de ego-

    literatura nos anos 8050. Para circunscrev-la, preciso inseri-la no campo mais amplo do

    que aqui chamamos escrita de si, que compreende no somente os discursos assinalados

    por Foucault, mas tambm outras formas modernas, que compem uma certa constelao

    autobiogrfica: memrias, dirios, autobiografias e fices sobre o eu.

    A constelao autobiogrfica est rodeada de certa polmica, que envolve a

    questo dos gneros, pois ela se move entre dois extremos: da constatao de que at

    certo ponto - toda obra literria autobiogrfica at o fato de que a autobiografia pura

    no existe. A posio de Paul de Man sintetiza ambas vises, pois ele indica que assim

    como afirmamos que todos os textos so autobiogrficos, devemos dizer que por isso

    mesmo nenhum deles o ou pode ser51. De Man argumenta que, por exemplo, no caso da

    obra de Proust, todo aspecto tomado da Recherche pode promover um debate infinito entre

    a leitura dessa obra como fico e uma leitura como autobiografia. Assim, a distino entre

    autobiografia e fico no seria para ele uma polaridade ou/ ou, mas um indecidvel. A

    autobiografia no seria um gnero, mas uma figura de leitura ou do entendimento que se

    d, de alguma maneira, em todo texto. O interesse dela no radica, ento, em que ela

    oferea algum conhecimento veraz de si mesmo, mas em que ela demonstra a

    impossibilidade de totalizao de todo sistema.

    O tema complexo, e nos depoimentos de muitos escritores se vislumbra uma

    inteno de intensificar a ambigidade, quando eles sustentam uma idia de verdade da

    arte, ou seja, da superioridade do texto artstico sobre o referencial. Por exemplo, em

    vrios contos includos no seu ltimo livro, Histrias mal contadas (2005) Silviano

    Santiago faz uma ficcionalizao da sua experincia de jovem universitrio brasileiro no

    seu primeiro contato com as sociedades francesa e norte-americana nos anos 1960. Para

    50 Forest, Philippe. Le roman, le je. Pars: ditions Pleins Feux, 2001. Citado por Emilie Lucas-Leclin. Reflexion sur le retour du je en litterature a travers la notion d autofiction : partir de La Bataille de Pharsale de C.Simon, du Roland Barthes par Roland Barthes, et de W ou le souvenir denfance de G.Perec. Tese de Doutorado apresentada na Universidade da Sorbonne, 2005. Indita. 51 De Man, Paul. "La autobiografa como desfiguracin". Traduccin de ngel L. Loureiro. Anthropos. Suplementos, n.29, pp. 113-118, Barcelona, diciembre 1991, Original: Autobiography as De-facement. Modern Language Notes 94 (1979): 919-930. Traduo minha do espanhol.

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    Santiago, a prpria ficcionalidade dos contos que os aproxima de certa verdade: As

    histrias mal contadas so escritas por um falso mentiroso, bem semelhante ao narrador do

    meu ltimo romance (...) A fico nos aproxima muito mais da verdade do que o mero

    relato sincero do que aconteceu.52 Nessa perspectiva, a fico seria superior ao discurso

    autobiogrfico pois o romancista (ou o contista) no tem como prioridade contar sua vida

    mas elaborar um texto artstico, no qual sua vida uma matria contingente. Por meio das

    verses elaboradas literariamente, estaria se aproximando mais da verdade daquele sujeito

    que o autor delas. Assim, o texto literrio, privilegiando a funo artstica sobre a

    referencial, seria uma forma mais elaborada, e portanto mais verdadeira que a

    autobiografia. A respeito, afirma o crtico argentino Nicols Rosa: Si las novelas (...) son

    ms verdaderas que las autobiografias del verdadero secreto de la vida, es porque dicen lo

    que deben decir y como se debe decir: la verdad no puede ser dicha toda, solo puede decirse

    a medias y transformada. La verdad slo se dice indirectamente.53

    Herdeira da psicanlise, a noo de verdade ligada escrita autobiogrfica se

    associa assim com um estrato profundo, inconsciente, inatingvel seno atravs da

    mediao do ficcional. O imaginrio, - diz Barthes - matria fatal do romance e labirinto

    de redentes nos quais se extravia aquele que fala de si mesmo, o imaginrio assumido por

    vrias mscaras (personae), escalonadas segundo a profundidade do palco (e, no entanto

    ningum por detrs). Da que ele enuncie em Roland Barthes por Roland Barthes, um

    texto autobiogrfico, que tudo o que aqui se diz deve ser considerado como dito por um

    personagem de romance.54 Trata-se da posio oposta: no que a verdade sobre si

    mesmo s pode ser dita na fico, mas quando se diz uma verdade sobre si mesmo deve

    ser considerada fico. No final das contas, uma e outra posio so duas faces da mesma

    moeda.

    52 Ilha, Flvio. So contos mas tambm so uma aula de literatura. Resenha de Histrias mal contadas . Disponvel em http://www.aplauso.com.br/site/portal/detalhe_notas.asp?campo=277&secao_id=35. Acesso em 8 de agosto de 2005. 53 Rosa, Nicols. El arte del olvido, Buenos Aires, Punto Sur, 1990, p. 50 citado por Contreras, Sandra. Las vueltas de Cesar Aira. Rosario, Beatriz Viterbo, 2002. p. 259 Se os romances (...) so mais verdadeiros do que as autobiografias do verdadeiro segredo da vida, porque dizem o que devem dizer e como se deve dizer: a verdade no pode ser dita toda, somente pode ser dita por partes e transformada. A verdade s se diz indireitamente. (trad. Minha do espanhol) 54 Barthes, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Traduo de Leyla Perrone Moiss. So Paulo: Cultrix, 1975. p.129

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    Como sair desse paradoxo? Devemos abandonar a classificao dos gneros? Antes

    de assumir uma posio, vejamos aqui duas tentativas de resposta a esta questo: a de

    Philippe Lejeune (L Pacte autobiographique, 1975; Je est un autre, 1980) e a de Luiz

    Costa Lima (Sociedade e Discurso Ficcional, 1986). A posio do primeiro exatamente

    oposta idia da autobiografia como um indecidvel. Para Lejeune a autobiografia uma

    questo de tudo ou nada (1975, p.25). J Costa Lima considera que seu estatuto

    ambguo.

    Em L Pacte autobiographique , Lejeune sustenta que todas as formas ficcionais de

    enunciao que implicam uma escritura