klein, caio - vidas precárias - performances de gênero e violência na experiência do cárcere
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Artigo publicado em anais de evento a respeito das identidades de gênero não dissidentes no cárcereTRANSCRIPT
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VIDAS PRECRIAS:
PERFORMANCES DE GNERO E VIOLNCIA NA EXPERINCIA DO CRCERE
KLEIN, Caio Cesar1
Resumo: O presente projeto de pesquisa pretende realizar uma anlise da relao entre
violncia e performances de gnero no interior de instituies carcerrias. Utilizando
como referenciais tericos os estudos feministas e de gnero, as abordagens da
criminologia crtica, feminista e queer, bem como os estudos das intersecionalidades,
pretende-se debater com aprofundamento analtico as formas como a violncia
experimentada por sujeitos cujas performances de gnero no se coadunam ao sistema
de sexo-gnero, nos termos do que Butler definiu enquanto heteronormatividade e
hegemonia heterossexual. Vinculada ao Programa de Ps Gradao em Cincias
Criminais da PUCRS, a presente pesquisa se encontra em fase de submisso aos
comits cientficos responsveis.
Palavras-chave: criminologia; violncia; gnero; travesti; transexual.
Ao analisar a questo de como certas existncias se constituem enquanto vidas
precrias, Judith Butler (2006) questiona o modo pelo qual a normatizao da noo de
corpo e a manuteno de representaes culturais do que vem a ser humanamente vivel
representaes culturais que, na anlise aqui proposta, dizem respeito ao que a autora
define em termos de hegemonia heterossexual origina um mbito de seres no
considerados humanos com base em tal percepo restritiva. A constituio desse
mbito de desumanizao, que para Butler (2006, p. 59-60) ocorre atravs de um
processo de desrealizao do humano, leva a autora a questionar
Qu vidas son reales? Cmo podra reconstruirse la realidad? Aquellos
que son irreales ya han sufrido, en algn sentido, la violencia de la
desrealizacin? Cul es entonces la relacin entre la violencia y essas vidas
consideradas irreales? La violencia produce esa irrealidad? Dicha irrealidad es la condicin de la violencia?
construo dessa realidade humana e consequente desrealizao de outras
vidas tornadas no-humanas se pode relacionar a constituio de discursos sobre o
corpo, o gnero e a sexualidade que definem algum enquanto culturalmente inteligvel
ou humanamente vivel. A proliferao desses discursos sobre o sexo no incio do
sculo XIX, perodo histrico em que se observava a modificao do poder de uma
tecnologia do poder que expulsa [e] que reprime, a um poder que enfim um poder
1 Mestrando em Cincias Criminais - PUCRS | [email protected]
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positivo, um poder que fabrica (FOUCAULT, 2002, p. 59), revela a busca da
normalidade enquanto efeito da agncia do poder normativo que, ao intervir e qualificar
repetidamente os indivduos, pretende produzir um sujeito plenamente integrado ao
corpo social.
A produo desses domnios de verdade sobre corpo-sexo-gnero pode ser
relacionada questo da construo da irrealidade mbito que foi excludo do real, do
humanamente vivel descrita anteriormente. Para Butler (2006, p. 183), a questo no
reside especificamente na produo de discursos desumanizadores, mas sim nos limites
estabelecidos pelos discursos que prescrevem as fronteiras da inteligibilidade humana,
sendo necessrio pensar os
esquemas normativos de inteligibilidad que estabelecen lo que va ser y no va
a ser humano, lo que es una vida vivible y una muerte lamentable. Estos
esquemas normativos funcionan no slo produciendo ideales que distinguen
entre quines son ms o menos humanos. A veces, producen imgenes de lo
que es menos que humano [...] amenazando com engaar a todos aquellos
que sean capaces de creer que all, en esa cara, hay outro humano.
Enquanto esquemas de inteligibilidade do corpo, o gnero e sexo seriam, nesse
sentido, mbitos discursivos nos quais uma vida pode ser tida como precria? Scott
(1995, p. 86) prope que a noo de gnero perpassa duas questes conexas: o gnero
uma elemento constitutivo das relaes sociais baseadas nas diferenas percebidas
entre os sexos e [...] o gnero uma forma primria de dar significado s relaes de
poder. Como elemento integrante das relaes sociais, a ideia de fixidez das categorias
de sexo e gnero estaria relacionada existncia de smbolos culturalmente disponveis
e de conceitos normativos que subtraem ou limitam as interpretaes possveis desses
smbolos. No processo histrico de luta e resistncia, a interpretao dominante passa a
ser reproduzida como a verdadeira e nica possvel, como se outras possibilidades
interpretativas nunca houvessem existido, o que confere a noo de fixidez
interpretao vencedora, de modo que a incluso da dimenso poltica e social nesse
debate o meio de desmistificar a qualidade atemporal que aquela significao
adquiriu. A significao dada mulher e ao feminino, por exemplo, nas relaes sociais
, nessa viso, a estruturao da percepo simblica e concreta da vida social
implicada na construo do prprio poder poltico, pois a mesma estrutura que nega
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outras formas de significao da mulher e constri a oposio binria homem/mulher
estabelece outras ordens de certeza e fixidez, necessrias manuteno do poder, como
se fossem alheias construo humana. Nesse sentido, o conceito de gnero passou a
ser utilizado entre feministas anglo-saxnicas a partir da dcada de 1960 a fim de
enfatizar o carter fundamentalmente social das distines baseadas no sexo [e indicar]
uma rejeio do determinismo biolgico implcito no uso de termos como sexo ou
diferena sexual (SCOTT, 1995, p. 72).
Os estudos de gnero pretendem, portanto, incluir no debate social a anlise das
relaes entre mulheres e homens, buscando as justificativas para as desigualdades a
partir do estudo dos arranjos e a papeis sociais, da histria e das formas de
representao do masculino e do feminino. A noo de gnero contrape a viso
biologista na medida em que afirma que
[...] no so propriamente as caractersticas sexuais, mas a forma como
essas caractersticas so representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou
pensa sobre elas que vai construir, efetivamente, o que feminino ou
masculino em dada sociedade e em um dado momento histrico (LOURO,
1997, p. 21).
Mas se o sexo no apenas biologia, tampouco o apenas cultura. Para Butler
(2001, p. 153), a materialidade do sexo se revela por ser esse uma categoria normativa,
aquilo que Foucault chamou de 'ideal regulatrio'. Nesse sentido, pois, o 'sexo' no
apenas funciona como uma norma, mas parte de uma prtica regulatria que produz os
corpos que governa. Ou seja, o ideal regulatrio do sexo, sua norma, na verdade
poder produtivo que nomeia, demarca, diferencia e d lugar ao corpo. Sexo e gnero,
assim, fazem parte de uma tecnologia cultural que pretende a regularidade dos corpos.
Tal normatizao se dar em relao s variantes sexo-gnero-sexualidade, na qual um
sexo aqui biolgico determinaria um gnero que, por sua vez, definiria uma
sexualidade, relao imediata que manteria a harmonia da norma heterossexual. A
norma opera na nomeao do corpo enquanto macho ou fmea a constituio do sexo
e uma vez feita esta distino, que este sujeito assuma um dos dois gneros
masculino ou feminino e experimente o desejo por algum do sexo/gnero oposto
(LOURO, 2010, p. 146). Deste modo, gnero pode ser pensando enquanto
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un sistema de reglas, convenciones, normas sociales y prcticas
institucionales que producen performativamente el sujeto que pretenden
describir. [...] no como una esencia o una verdad psicolgica, sino como una
prctica discursiva y corporal performativa a travs de la cual el sujeto
adquiere inteligibilidade social y reconocimiento poltico (PRECIADO,
2008, p. 86).
Para Butler (2012), se o gnero diz respeito produo da relao binria
homem/mulher, seu estudo deve buscar a compreenso de como tal relao tornada
real, consolidada e usada como argumento para a hegemonia e auto-naturalizao em
certas configuraes culturais. O gnero enquanto ato performtico est relacionado,
portanto, ao carter de repetio e reproduo de enunciados que dizem respeito a um
sistema de regras que produzem a inteligibilidade cultural do masculino e do feminino.
Atuando a partir da diferenciao, um enunciado performativo como isso coisa de
homem institui um domnio do masculino a partir do qual so identificados os sujeitos
no-homens, os que no se coadunam s prticas estabelecidas como coisa de homem.
Elabora-se um conceito de identidade por essncia e representao de um indivduo
indivisvel e universal. Esse conceito de identidade normatiza sujeitos atravs do ato
que se prope a descrev-los, controlando, pela excluso e pr-definio,
comportamentos lingusticos e sociais em geral (PINTO, 2007, p. 15).
Se o gnero diz respeito a uma forma de inteligibilidade do sujeito em
determinado contexto cultural, nas descontinuidades dessa norma reguladora estaro os
corpos tidos por ininteligveis, um domnio de seres abjetos, aqueles que ainda no so
sujeitos, mas que formam o interior constitutivo relativamente ao domnio do sujeito
(BUTLER, 2001, p. 155). Ou seja, a abjeo ou ininteligibilidade desses corpos
constituda no interior da prpria matriz reguladora do gnero: travestis, assexuais,
andrginos, queers. A existncia de um ideal regulador do gnero pressupe a formao
desse mbito de sujeitos tidos como desviantes e cujos corpos, no interior da norma,
sero considerados abjetos. Para Butler, se a construo de um ideal regulatrio
pressupe certo grau de normatividade, seu efeito ser a produo de sujeitos fora de
ordem. A abjeo, nesse sentido, se relacionaria a todo tipo de corpos cujas vidas no
so consideradas vidas e cuja materialidade entendida como no importante
(PRINS; MEIJER, 2002, p. 161). O corpo abjeto, por ser ininteligvel a partir da matriz
cultural que define o humanamente vivel, o corpo cuja existncia tem menor
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importncia. No obstante, precisam estar l, ainda que numa higinica distncia, para
demarcar as fronteiras da normalidade (PELCIO, 2009, p. 47), ou seja, reforar a
norma atuando enquanto referncia daquilo que no normal ou desejvel.
Haveria, assim, relao entre a abjeo de um corpo e a ideia de vida precria
defendida por Judith Butler? Sobre sua noo de vida precria, Butler inicialmente
reflete sobre quais so as mortes que ensejam o luto na cena pblica. Fazendo referncia
a como na mdia norte-americana no existe, nos obiturios, referncias s mortes de
guerras infligidas pelos Estados Unidos atribuindo ao obiturio a funo de
distribuio pblica do luto a autora denuncia que nunca tendran de haber sido
vidas, vidas dignas de atencin, vidas que valiera la pena preservar, vidas que
merecieran reconocimiento (BUTLER, 2006, p. 61). Portanto, a abjeo e a
precarizao da vida enquanto efeito da desrealizao ou desqualificao do corpo
abjeto no particular aos corpos que subvertem a matriz de inteligibilidade cultural
de sexo e gnero, podendo se referir a processos discursivos que se instituem em relao
pobreza, psiquiatrizao de certas vidas, ou marginalizao de identidades
nacionais ou culturais (como no caso da crescente averso norte-americana a pessoas de
origem rabe e da deportao de ciganos da Frana). Para Butler, possvel verificar
essas vidas precrias enquanto corpos que no importam
[...] na imprensa alem quando refugiados turcos so mortos ou mutilados.
Seguidamente podemos obter os nomes dos alemes que cometem o crime e
suas complexas histrias familiares e psicolgicas, mas nenhum turco tem
uma histria familiar ou psicolgica complexa que o Die Zeit alguma vez
mencione [...]. Assim, recebemos uma produo diferenciada, ou uma
materializao diferenciada, do humano. E tambm recebemos, acho eu, uma
produo do abjeto (PRINS; MEIJER, 2002, p. 162).
Questo semelhante levantada por Jos de Souza Martins acerca da
considerao de certas vidas como menos importantes, de modo que a investigao
sobre esse fenmeno deve ter em conta as formas de diferenciao que imputam a
determinadas pessoas lugares sociais no participativos, excludentes, como se elas no
pertencessem ao mesmo gnero humano das demais (MARTINS, 2002, p. 15). Nesse
ponto, embora o escopo deste projeto de pesquisa seja a relao entre a subverso das
normas de gnero e a violncia, ser produtiva a incluso dos debates acerca das
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intersecionalidades enquanto categoria que alude multiplicidade de diferenciaes
que, articulando-se a gnero, permeiam o social (PISCITELLI, 2012, p. 199), como
raa/etnia, classe social, sexualidade, enfim, outras determinaes que, enquanto formas
excludentes de diferenciao e em combinaes de processos diferenciadores,
aprofundam as desigualdades de gnero e constroem experincias sociais distintas.
No caso brasileiro, as travestis2 so vtimas notrias da violncia impulsionada
pelo apagamento de suas condies humanas. Segundo a Secretaria de Direitos
Humanos da Presidncia da Repblica, as travestis representam 50,5% das cerca de 300
vtimas de homicdios cometidos contra a populao de lsbicas, gays, bissexuais,
travestis e transexuais (LGBT) no Brasil em 2011 (GLOBAL RIGHTS, 2013).
Enquanto sujeitos que subvertem a norma sexo-gnero ao produzirem performances
femininas em corpos que so socialmente interpretados enquanto masculinos, no so
inteligveis (um argumento epistemolgico) e no tm uma existncia legtima (um
argumento poltico ou normativo) (PRINS; MEIJER, 2002, p. 160). Paralela abjeo
de seus corpos sexuados, a pobreza marca de suas experincias ao se constatar que a
grande maioria das travestis [] proveniente das classes populares e mdia baixa
(PELCIO, 2006, p. 94) e que muitas continuam pobres por toda a vida, levando uma
existncia miservel, morrendo antes dos 50 anos em virtude da violncia, do uso de
drogas, de problemas de sade relacionados s aplicaes de silicone (KULICK, 2008,
p. 24). Entre as travestis brasileiras se percebe tambm que h predominncia de
negros e pardos, indicativo de seu pertencimento aos extratos mais pobres da sociedade
brasileira (CARRARA; VIANNA, 2006, p. 235). Essas interseces entre identidade
de gnero, classe social e raa/etnia indicam os nveis de desigualdade social,
econmica e cultural experimentados pelas travestis brasileiras, o que pode explicar o
quanto o projeto do corpo travesti est relacionado, em termos de padres
socioeconmicos mais abrangentes de desigualdade (KULICK, 2008, p. 61), com o
2 Travesti um termo que sobreviveu at a poca contempornea e utilizado na Amrica Latina para descrever as pessoas que transitam entre gneros, sexos e vestimentas. As travestis vieram de uma dessas
identidades reprimidas. O prprio conceito de travesti (literalmente vestir-se com roupas do outro sexo)
nasceu da fixao dos colonizadores com os binrios de gnero, incluindo o imperativo de vestir de
acordo com seu lugar numa rgida dicotomia de gnero [...]. (CAMPUZANO, 2008. p. 82).
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estigma da prostituio e do crime, tornando-as especialmente selecionveis pelo
sistema penal.
Enquanto elemento estruturante do exerccio do poder punitivo nos sistemas
penais contemporneos, a seletividade penal pode ser entendida enquanto tecnologia
social atravs da qual os comportamentos e identidades de grupos subalternos
considerados lesivos ou indesejveis so criminalizados a fim de proteger interesses de
um grupo ou classe dominante (ZAFFARONI, 1999). Essa orientao seletiva, que para
Zaffaroni et al (2003) ocorre no interior do processo de criminalizao secundria3,
balizada por determinantes de cunho social, econmico, poltico e cultural, cumpriria
funo de conservao e de reproduo social: a punio de determinados
comportamentos e sujeitos contribuiria para manter a escala social vertical e serviria de
cobertura ideolgica a comportamentos e sujeitos socialmente imunizados
(BARATTA, 2002, p. 15). No caso das travestis, por serem reconhecidas socialmente
enquanto pessoas desvaloradas, possvel associar-lhes todas as cargas negativas
existentes na sociedade sob a forma de preconceitos, o que resulta em fixar uma
imagem pblica do delinquente com componentes de classe social, tnicos, etrios, de
gnero e estticos (ZAFFARONI et al, 2003, p. 46).
Ao passo em que as travestis experimentam determinadas formas de violncia e
preconceito ao transformar seus corpos e neles realizar uma performance de gnero
feminina, as lsbicas e, sobretudo, as mulheres masculinizadas ou butch4, possuem
experincias sociais algumas vezes semelhantes na medida em que subvertem o
comportamento feminino considerado ideal ou normal no interior das normas de gnero.
Socialmente invisibilizadas, as identidades lsbicas compreendem culturalmente uma
maneira de classificar as mulheres [que] faz aluso direta atividade e passividade
que, por sua vez, remetem tanto a prticas sexuais quanto a atributos estticos, corporais
e gestuais (AGUIO, 2008, p. 301). Sapato, butch, caminhoneira, ativa, sargenta e
fancha so tipologias da cultura lsbica usualmente empregados para designar mulheres,
3 Nessa perspectiva [...] a criminalizao secundria a ao punitiva exercida sobre pessoas concretas, que acontece quando as agncias policias detectam uma pessoa que supe-se tenha praticado certo ato
criminalizado primariamente (ZAFFARONI et al, 2003. p. 43). 4 O termo utilizado no possui um correspondente adequado em lngua portuguesa. Refere-se lsbica
masculinizada, em posio femme.
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no necessariamente homossexuais, que performatizam o masculino em seus corpos.
Realizar a performance de gnero masculina em corpos tidos enquanto femininos
ressaltando-se a impossibilidade de determinar, muitas vezes, a fronteira entre as
identidades femininas masculinizadas e/ou lsbicas e identidades transgnero (homem
transexual, trans-homem, entre outras designaes) perpassa a assuno de signos e
prticas culturalmente identificadas como masculinas. Nesse sentido, uma das hipteses
da pesquisa proposta a da possvel reproduo, por mulheres masculinizadas, de
discursos masculinistas como o machismo, inclusive atravs de prticas de
subordinao e violncia contra a mulher.
Essa hiptese compe uma anlise comparativa entre a possvel violncia
impingida por mulheres masculinizadas em contraposio notria violncia sofrida
por travestis, no em uma lgica de culpabilizao de uns e vitimizao de outros, mas
como reflexo acerca do masculino como lugar da violncia a partir da reproduo
social de uma lgica binria de gnero na qual a virilidade sempre foi entendida como
um atributo dos homens, pois atravs de sua fora fsica, atividade, [...] o macho foi
sendo associado a imagens de sexo forte e racional, e a fmea associada a imagens de
fragilidade, passividade e sensibilidade (CARVALHAES, 2001, p. 96).
A escolha do crcere enquanto cenrio desta proposta de pesquisa no ocorre por
acaso, mas porque as prises so instituies cujas dinmicas esto permanentemente
associadas sustentao da moralidade e da sexualidade viril (COLARES; CHIES,
2010, p. 421), bem como um mundo parte [no qual] a segurana e disciplina
demarcam justificativas racionais para prticas que expressam apenas autoridade e
descumprimento de direitos (WOLFF, 2005, p. 114). Igualmente, tomada a
seletividade penal enquanto instrumento de criminalizao de pessoas fora da norma, no
crcere as questes de raa/etnia e pobreza sero responsveis pela potencializao da
violncia impingida nas e pelas agncias punitivas, sobretudo por se tratar de uma
instituio que, ao exercer fora poltica, atua colocando distncia entre a ordem e a
desordem, entre a pureza e o perigo, com a tentativa de eliminao do estranho, do
desigual e impedindo que ele se torne um perigo ameaador da homogeneidade
(GAUER, 2011, p. 80).
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Embora intersecional, a anlise dos tipos de violncia abordados privilegiar o
gnero enquanto questo fundante da desumanizao dos corpos dissidentes da norma
heterossexual. Para tanto, os recentes estudos sobre criminologia queer (queer
criminology) ou uma abordagem queer da criminologia (queering criminology)
proporcionaro uma anlise mais atenta s trs formas de violncia homofbica
descritas por Carvalho (2012a) considerada em seu sentindo ampliado ao contemplar a
homo-lesbo-transfobia quais sejam: (i) a violncia homofbica interpessoal, referente
violncia fsica e sexual praticada contra sujeitos femininos e de masculinidades no
hegemnicas; (ii) a violncia homofbica simblica, a partir dos processos de
reproduo social da heteronormatividade; e (iii) a violncia homofbica institucional,
ou homofobia de Estado, de especial importncia para este trabalho pois
se traduz, por um lado, na construo, interpretao e aplicao sexista
(misgina e homofbica) da lei penal em situaes que invariavelmente
reproduzem e potencializam as violncias interpessoais (revitimizao) e, por
outro, na construo de prticas sexistas nas, e atravs das, agncias punitivas
(violncia policial, carcerria e manicomial) (CARVALHO, 2012a, p. 161).
Aliada criminologia crtica e com agenda semelhante criminologia
feminista5, a abordagem criminolgica queer pretende no apenas a desconstruo dos
padres de violncia sexistas e misginos, mas a desconstruo do prprio sentido
dicotmico dado a partir de um ideal de masculinidades hegemnicas social e
institucionalmente hierarquizadas [que subordinam] as feminilidades e masculinidades
no-hegemnicas (CARVALHO, 2012b, p. 161), bem como os sujeitos que
experimentam a transgeneridade.
Consideraes Finais
Valendo-se das perspectivas tericas apresentadas, e retomando as categorias de
vida precria e abjeo construdas por Butler a partir da ideia de desrealizao do
5 A pauta criminolgica feminista no apenas evidencia o processo de objetificao da mulher que a torna vulnervel violncia no espao privado, mas denuncia o sexismo institucional que reproduz
distintas formas de violncia contra a mulher na elaborao, na interpretao, na aplicao e na execuo
da lei (penal). Correto, pois, o diagnstico de a mulher ser duplamente violentada pelo sistema penal,
independentemente do papel que represente no episdio delitivo, seja atravs da invisibilizao ou
subvalorizao da violncia sofrida, seja pela hiper ou sobrepunio de suas condutas quando autora de
crime (CARVALHO, 2012b, p. 159).
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humano, pretende-se investigar, nos limites propostos, se a violncia direcionada a esses
sujeitos fora da norma produz a sua irrealidade abjeo e precarizao da vida ou se
essa irrealidade a prvia condio da violncia a eles impingida. A partir de dados
empricos prvios acerca da violncia direcionada a travestis e mulheres trans no
interior das instituies prisionais masculinas, a pesquisa prev um aprofundamento da
anlise desse fenmeno para, em uma perspectiva intersecional, verificar a existncia e
as formas de violncia que envolvem as performances de gnero masculinas em corpos
socialmente tomados como femininos, por ser essa uma temtica abordada com menor
intensidade no campo dos estudos de gnero e de sexualidades. A pesquisa tambm
pretende aprofundar a incurso das temticas de gnero nos estudos de criminologia e
segurana pblica devido escassez dessa abordagem nessas reas do conhecimento.
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