katia cilene da silva santos a antinomia da teoria do ......a antinomia da teoria do conhecimento de...

242
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017

Upload: others

Post on 18-Nov-2020

6 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos

UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIEcircNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA

Katia Cilene da Silva Santos

A antinomia da teoria do conhecimento de

Schopenhauer

(Versatildeo corrigida)

Satildeo Paulo 2017

Katia Cilene da Silva Santos

A antinomia da teoria do conhecimento de

Schopenhauer

(Versatildeo corrigida)

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia do

Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e

Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo para obtenccedilatildeo do

tiacutetulo de Doutora em Filosofia

Orientador Prof Dr Eduardo Brandatildeo

Satildeo Paulo 2017

Autorizo a reproduccedilatildeo e divulgaccedilatildeo total ou parcial deste trabalho por qualquer meio

convencional ou eletrocircnico para fins de estudo e pesquisa desde que citada a fonte

Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo

Serviccedilo de Biblioteca e Documentaccedilatildeo

Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo

Santos Katia Cilene da Silva

S237a A antinomia da teoria do conhecimento de

Schopenhauer Katia Cilene da Silva Santos

orientador Eduardo Brandatildeo - Satildeo Paulo 2017

240 f

Tese (Doutorado)-Faculdade de Filosofia Letras

e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo

Departamento de Filosofia Aacuterea de concentraccedilatildeo

Filosofia

1 Schopenhauer 2 Antinomia da faculdade de

conhecimento 3 Metafiacutesica 4 Teoria do

conhecimento 5 Idealismo I Brandatildeo Eduardo

orient II Tiacutetulo

Folha de Avaliaccedilatildeo

SANTOS Katia Cilene da Silva A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer 2017 Tese (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e

Ciecircncias Humanas Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2017

Aprovado em

Banca Examinadora

Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________

Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________

Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________

Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________

Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________

Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________

Dedico este trabalho agrave minha famiacutelia Luzia Artur Toni Jane Adriano Fernando Nadja Daniel

Luiz Fernando Arthur e Alessandro

Agradecimentos

Agradeccedilo ao meu orientador professor Dr Eduardo Brandatildeo por me

acompanhar desde o mestrado com sua forma especial de orientar Foi muito importante na minha trajetoacuteria ateacute aqui sua liberdade de pensamento e sua

abertura a diferentes horizontes e alternativas As anaacutelises sem preconceitos as correccedilotildees fundamentais as sugestotildees pertinentes e as indicaccedilotildees agudas e certeiras resultaram todas as vezes em um pensamento mais claro e um texto

melhor Agradeccedilo muito especialmente ao professor Dr Newton da Costa pela

generosidade com que me ajudou em vaacuterios momentos da minha pesquisa Sou grata pelas diversas duacutevidas que me sanou pelas indicaccedilotildees bibliograacuteficas e pelas orientaccedilotildees em questotildees de loacutegica Mas sou grata sobretudo por me

receber com hospitalidade pelos conselhos que me ensinaram sabedoria e pela solicitude com que sempre me atendeu

Agradeccedilo tambeacutem agrave professora Dra Macia Luacutecia Cacciola pela leitura criacutetica do texto da minha prova de qualificaccedilatildeo As correccedilotildees e os pontos falhos que me apresentou foram importantes para que eu repensasse os rumos do meu

trabalho e reavaliasse meus caminhos Agradeccedilo ainda ao professor Dr Joseacute Eduardo Baioni pelas relevantes

indicaccedilotildees bibliograacuteficas Por fim agradeccedilo ao CNPq pelo subsiacutedio financeiro de 2015 ateacute o teacutermino

da pesquisa

Nosso ponto de vista objetivo eacute realista e

portanto condicionado na medida em que tomando os seres naturais como dados daiacute

abstrai que a existecircncia objetiva deles pressupotildee um intelecto no qual se encontrem primeiro

como representaccedilatildeo mas o ponto de vista subjetivo e idealista de Kant tambeacutem eacute condicionado na medida em que emerge da

inteligecircncia a qual ela mesma tem a natureza como pressuposto e somente pode surgir como

resultado do desenvolvimento desta ateacute o seres animais

Schopenhauer

RESUMO

SANTOS Katia Cilene da Silva A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer 2017 240 p Tese (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e

Ciecircncias Humanas Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2017

Resumo Este trabalho versa sobre a antinomia da faculdade de conhecimento tambeacutem conhecida como paradoxo de Zeller que Schopenhauer refere no primeiro livro de O mundo como Vontade e representaccedilatildeo Essa questatildeo tem sido bastante discutida na histoacuteria do pensamento schopenhaueriano e

permanece ainda hoje como um problema em aberto Desde os primeiros leitores de Schopenhauer a antinomia da faculdade de conhecimento foi apontada como

um problema de soluccedilatildeo difiacutecil quando natildeo impossiacutevel e explicada de maneiras diversas Algumas vezes apontou-se a heterogeneidade das teorias sobre as

quais o pensamento schopenhaueriano se ergue em outras a antinomia foi atribuiacuteda a erros de interpretaccedilatildeo da filosofia kantiana por vezes remeteram-na a um dualismo em que se chocam materialismo e idealismo ou realismo e

idealismo e haacute ainda outras visotildees Nesta tese propomos uma interpretaccedilatildeo alternativa que toma as dificuldades da filosofia schopenhaueriana como

constitutivas e sem pretender justificaacute-la nem impugnaacute-la busca sua compreensatildeo a partir das questotildees teoacutericas com as quais o filoacutesofo se defrontou Como resultado encontramos que Schopenhauer evidencia a insuficiecircncia tanto

do idealismo quanto do realismo para a explicaccedilatildeo completa e correta do mundo bem como a muacutetua exigecircncia entre ambos A complementaridade entre os

pontos de vista opostos do idealismo e do realismo impotildee que sejam articulados embora sua combinaccedilatildeo origine os diversos problemas presentes na obra schopenhaueriana entre os quais estaacute a antinomia da faculdade de

conhecimento Adicionalmente analisamos outras questotildees e dificuldades que surgiram no pensamento de Schopenhauer algumas mencionadas pelo filoacutesofo

outras natildeo

Palavras-chave Schopenhauer Antinomia da faculdade de conhecimento Metafiacutesica Teoria do conhecimento Idealismo

ABSTRACT

SANTOS Katia Cilene da Silva The antinomy of Schopenhauers theory of knowledge 2017 240 p Tese (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e

Ciecircncias Humanas Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2017

Abstract This work deals with the antinomy of the faculty of knowledge also known as Zellers paradox to which Schopenhauer refers in the first book of The

world as Will and representation This question has been much discussed in the history of Schopenhauers thought and still remains today as an unsolved

problem Since the early readers of Schopenhauer the antinomy of the faculty of knowledge was pointed out as a problem of difficult solution if not impossible and explained in different ways At times the heterogeneity of the theories on

which Schopenhauers thought stands has been pointed out other times the antinomy was attributed to errors in the interpretation of Kantian philosophy for

many times referred to a dualism in which collide materialism and idealism or realism and idealism and there are still other viewpoints In this thesis we propose an alternative interpretation which takes the difficulties of

Schopenhauers philosophy as constitutive and not pretending to justify or contest it we search for an understanding from the theoretical questions with

which the philosopher faced As a result we find that Schopenhauer evidences the inadequacy of both idealism and realism for the complete and correct explanation of the world as well as the mutual demand between them The

complementarity between the opposing viewpoints of idealism and realism demands they to be articulated although their combination gives rise to the

various problems present in Schopenhauers work among which is the antinomy of the faculty of knowledge In addition we analyzed other issues and difficulties that arose in Schopenhauers thought some mentioned by the philosopher

Keywords Schopenhauer Antinomy of the faculty of knowledge Metaphysics

Theory of knowledge Idealism

Lista de abreviaturas

Traduzimos do alematildeo as citaccedilotildees das obras de Schopenhauer Indicamos em notas de rodapeacute

as localizaccedilotildees dos fragmentos transcritos nas ediccedilotildees originais utilizadas e tambeacutem em

traduccedilotildees referenciadas em portuguecircs ou espanhol Traduzimos as citaccedilotildees da obra de Ernst

Cassirer da ediccedilatildeo em espanhol da Fondo de Cultura Econoacutemica Retiramos as citaccedilotildees de

Criacutetica da Razatildeo Pura da ediccedilatildeo portuguesa da Calouste Gulbenkian e indicamos a

paginaccedilatildeo original da Koumlniglich Preuβischen Akademie der Wissenschaften Outros casos

seratildeo informados em notas de rodapeacute

WWV I = Die Welt als Wille und Vorstellung erster Band [Ediccedilatildeo alematilde Die Welt als Wille

und Vorstellung I und II Gesamtausgabe Muumlnchen Deutschen Taschenbuch 2011 (Nach

den Ausgaben letzter Hand herausgegeben von Ludger Luumltkehaus) ediccedilatildeo brasileira O

mundo como vontade e representaccedilatildeo 1ordm tomo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo notas e iacutendices de

Jair Barboza Satildeo Paulo UNESP 2005 (essa ediccedilatildeo seraacute referida como MI)]

KkP = Kritik der kantischen Philosophie [Ediccedilatildeo alematilde Die Welt als Wille und Vorstellung I

und II Gesamtausgabe Muumlnchen Deutschen Taschenbuch 2011 (Nach den Ausgaben letzter

Hand herausgegeben von Ludger Luumltkehaus) ediccedilatildeo brasileira Criacutetica da filosofia kantiana

Traduccedilatildeo de Wolfgang Leo Maar e Maria Luacutecia Mello e Oliveira Cacciola Satildeo Paulo Nova

Cultural 1988 (essa ediccedilatildeo seraacute referida como CFK)]

WWV II = Die Welt als Wille und Vorstellung zweiter Band [Ediccedilatildeo alematilde Die Welt als

Wille und Vorstellung I und II Gesamtausgabe Muumlnchen Deutschen Taschenbuch 2011

(Nach den Ausgaben letzter Hand herausgegeben von Ludger Luumltkehaus) ediccedilatildeo brasileira

O mundo como vontade e representaccedilatildeo 2ordf tomo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo notas e iacutendices de

Jair Barboza Satildeo Paulo UNESP 2015 (essa ediccedilatildeo seraacute referida como MII)]

UumlSF = Uumlber das Sehn und die Farben [Ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke Band III Kleinere

Schriften StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 2012 (Textkritisch bearbeitet und

herausgegeben von Wolfgang Frhr von Loumlhneysen) ediccedilatildeo brasileira Sobre a visatildeo e as

cores um tratado Traduccedilatildeo de Erlon Joseacute Paschoal Nova Alexandria Satildeo Paulo 2003 (essa

ediccedilatildeo seraacute referida como VC)]

UumlV = Uumlber die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde [Ediccedilatildeo alematilde

Saumlmtliche Werke Band III Kleinere Schriften StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 2012

(Textkritisch bearbeitet und herausgegeben von Wolfgang Frhr von Loumlhneysen) ediccedilatildeo

espanhola De la cuaacutedruple raiacutez del principio de razoacuten suficiente Traduccioacuten y proacutelogo de

Leopoldo-Eulogio Palacios Madrid Gredos 1981 (essa ediccedilatildeo seraacute referida como CR)]

WN = Uumlber den Willen in der Natur [Ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke Band III Kleinere

Schriften StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 2012 (Textkritisch bearbeitet und

herausgegeben von Wolfgang Frhr von Loumlhneysen) ediccedilatildeo espanhola Sobre la voluntad en

la naturaleza 1ordf ed 3ordf reimpr Traduccioacuten de Miguel de Unamuno Proacutelogo y notas de

Santiago Gonzaacutelez Noriega Madrid Alianza 1987 (essa ediccedilatildeo seraacute referida como VN)]

PP I = Parerga und paralipomena I [Ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke Band IV

StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 1986 (Textkritisch bearbeitet und herausgegeben von

Wolfgang Frhr von Loumlhneysen) As traduccedilotildees dos textos utilizados seratildeo indicadas em notas

de rodapeacute]

PP II = Parerga und paralipomena II [Ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke Baumlnde V1 V2

StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 1986 (Textkritisch bearbeitet und herausgegeben von

Wolfgang Frhr von Loumlhneysen) As traduccedilotildees dos textos utilizados seratildeo indicadas em notas

de rodapeacute]

KrV= Kritik der reinen Vernunft [Ediccedilatildeo alematilde Kantrsquos Gesammelte Schriften

Herausgegeben von der Koumlniglich Preuβischen Akademie der Wissenschaften 2 Auflage

Band III Berlin Georg Reimer 1904 ediccedilatildeo portuguesa Criacutetica da razatildeo pura 5ordf ed

Traduccedilatildeo de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujatildeo Introduccedilatildeo e notas de

Alexandre Fradique Morujatildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001 (essa ediccedilatildeo seraacute

referida como CRP)]

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo13

Capiacutetulo 1 ndash Introduccedilatildeo agrave antinomia da faculdade de conhecimento

11 ndash Apresentaccedilatildeo teoacuterica e histoacuterica da antinomia da faculdade de conhecimento17

12 ndash Outras questotildees presentes na filosofia schopenhaueriana23

13 ndash Investigaccedilatildeo acerca do conceito da antinomia da faculdade de conhecimento30

14 ndash Investigaccedilatildeo acerca dos conceitos das outras questotildees presentes na filosofia de

Schopenhauer41

15 ndash Estrutura histoacuterica da metafiacutesica de Schopenhauer o debate sobre a coisa em si44

16 ndash Desvelando o dilema e os conceitos envolvidos70

Capiacutetulo 2 ndash A construccedilatildeo do lado externo do mundo idealismo transcendental

21 ndash Philosophia prima

211 ndash O princiacutepio maacuteximo do conhecimento77

212 ndash Formas da sensibilidade intuiccedilotildees puras e sujeito da voliccedilatildeo85

213 ndash Dianoiologia91

214 ndash Teoria da razatildeo107

22 ndash O conhecimento filosoacutefico118

23 ndash Criacutetica de Schopenhauer ao idealismo de Kant123

24 ndash Idealismo schopenhaueriano e fisiologia do conhecimento131

25ndash Fundamentos do mundo como representaccedilatildeo134

Capiacutetulo 3 ndash A constituiccedilatildeo do lado interno do mundo metafiacutesica

31 ndash A Vontade como o em si do indiviacuteduo141

32 ndash A Vontade como o em si do mundo149

33 ndash Objetivaccedilatildeo da Vontade161

34 ndash Relaccedilotildees da Vontade com o intelecto e o ceacuterebro166

35 ndash Discoacuterdia da Vontade consigo mesma e teleologia172

36 ndash Fundamentos do mundo como Vontade182

Capiacutetulo 4 ndash Interpretaccedilotildees paradigmaacuteticas e anaacutelise pessoal

41 ndash Recepccedilatildeo da filosofia schopenhaueriana187

42 - Apreciaccedilotildees criacuteticas da antinomia da faculdade de conhecimento197

43 ndash Soluccedilotildees apologeacuteticas da antinomia da faculdade de conhecimento206

44 ndash Anaacutelise pessoal217

Referecircncias228

- 13 -

Introduccedilatildeo

Querer resolver todos os problemas e

responder a todas as interrogaccedilotildees seria

atrevida filaacuteucia e presunccedilatildeo tatildeo

extravagante que isso bastaria para se tornar

imediatamente indigno de toda a confianccedila

Kant

O tema de que se ocupa esta tese eacute uma questatildeo muito interessante Um

pensador de espiacuterito tatildeo vivo e de ideias tatildeo importantes na tradiccedilatildeo filosoacutefica como Arthur

Schopenhauer foi levado a reconhecer e a relatar no seu sistema o que entendeu ser uma

antinomia da faculdade de conhecimento Ao fazecirc-lo poreacutem ele indicou que sua filosofia

infringira o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo que estaacute na base do conceito de antinomia Embora

ele tenha justificado o problema pela bifurcaccedilatildeo dos pontos de vista do fenocircmeno e da coisa

em si a soluccedilatildeo natildeo foi convincente e as discussotildees iniciadas com seus contemporacircneos

ainda hoje subsistem Em 1869 seu amigo e disciacutepulo Julius Frauenstaumldt publicou um artigo

intitulado ldquoArthur Schopenhauer und seine Gegnerrdquo na revista Unsere Zeit deutsche Revue

der Gegenwart1 no qual informa sobre diversas criacuteticas de que a filosofia schopenhaueriana

foi alvo Frauenstaumldt menciona muitos opositores e muitas objeccedilotildees ao pensamento de

Schopenhauer entre as quais estaacute a antinomia da faculdade de conhecimento Menciona

tambeacutem a reaccedilatildeo do filoacutesofo a vaacuterias acusaccedilotildees de contradiccedilatildeo em cartas nas quais manifesta

revolta em ser chamado de contraditoacuterio

O espanto que as contradiccedilotildees provocam se deve a que desde a defesa

feita por Aristoacuteteles do princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo no livro Γ da Metafiacutesica a presenccedila de

antinomias aporias ou paradoxos em qualquer teoria equivale a uma condenaccedilatildeo O princiacutepio

de natildeo contradiccedilatildeo eacute uma das principais leis da loacutegica claacutessica entendidas como necessaacuterias e

suficientes para o pensamento correto e sua violaccedilatildeo tem sido vista como um erro capaz de

impugnar todo um sistema teoacuterico Apesar disso a presenccedila de contradiccedilotildees eacute muito comum

na Histoacuteria da Filosofia Diversos autores tiveram em algum momento uma contradiccedilatildeo ou

1 FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 686-707

- 14 -

outro problema loacutegico apontado no desenvolvimento de suas ideias A lista de exemplos seria

extensa mas basta lembrarmos o conhecido debate sobre a concepccedilatildeo kantiana de coisa em si

no qual diversos pensadores refletiram sobre a contradiccedilatildeo que significava sustentar a

existecircncia de um objeto irrepresentaacutevel na base de todas as representaccedilotildees Um filoacutesofo da

magnitude de Kant numa das questotildees mais importantes de toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica

precisou lidar com uma dificuldade ligada ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo O caso de

Schopenhauer talvez seja uacutenico na Histoacuteria da Filosofia porque seus opositores acusaram a

presenccedila de contradiccedilotildees paradoxos e antinomias em todas as frentes de seu pensamento O

proacuteprio filoacutesofo mencionou aleacutem da antinomia da faculdade de conhecimento outras trecircs

oposiccedilotildees decorrentes de suas ideias a saber entre a necessidade que rege a conduta humana

e a liberdade na negaccedilatildeo da Vontade entre mecanicismo e finalismo na natureza e entre a

contingecircncia no decorrer da vida do indiviacuteduo e a necessidade moral que intimamente a

determina

Nesta pesquisa natildeo buscamos redimir a filosofia schopenhaueriana

tampouco condenaacute-la Natildeo temos a pretensatildeo desmedida de destrinchar todas as questotildees que

ela suscita para entatildeo atribuir-lhe este ou aquele selo A perspectiva que adotamos eacute a de que

as dificuldades decorrentes do princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo podem indicar a necessidade de

uma abordagem diferente na qual natildeo se procure eliminaacute-las a qualquer custo ou invalidar a

teoria em que ocorrem Caso a violaccedilatildeo do princiacutepio seja inevitaacutevel os problemas talvez natildeo

sejam de ordem discursiva ou loacutegica mas tenham raiacutezes em profundas questotildees filosoacuteficas

Atualmente pensadores das loacutegicas paraconsistentes entre eles o professor Newton da Costa

tecircm evidenciado que as contradiccedilotildees natildeo satildeo aberraccedilotildees e que existem domiacutenios do discurso

onde elas satildeo inexpugnaacuteveis como a Medicina e o Direito Nessas loacutegicas mostrou-se

possiacutevel manter sistemas contraditoacuterios sem se incorrer em trivialidade isto eacute sem que se

deduzam quaisquer foacutermulas ou teoremas em uma teoria contraditoacuteria dada Com os

princiacutepios norteadores de um novo ramo dentro das loacutegicas paraconsistentes a loacutegica

paraclaacutessica argumentamos nesta tese que a filosofia schopenhaueriana embora

inconsistente natildeo eacute trivial

Com esse objetivo no primeiro capiacutetulo deste trabalho apresentamos a

antinomia da faculdade de conhecimento e investigamos sua natureza e o mesmo fazemos

com relaccedilatildeo a outras questotildees semelhantes Com base no discernimento de alguns conceitos

loacutegicos deliberamos sobre qual deles descreveraacute melhor cada um dos problemas de que

- 15 -

tratamos Expomos a trama conceitual do debate poacutes-kantiano sobre a coisa em si para

ressaltar as questotildees agraves quais Schopenhauer precisava responder bem como para iluminar as

suas opotildees teoacutericas Ao final do capiacutetulo trazemos agrave tona o dilema que estaacute na base da

metafiacutesica e da teoria do conhecimento schopenhauerianas bem como os conceitos nele

envolvidos

No segundo capiacutetulo examinamos a teoria da representaccedilatildeo e

explicitamos o mecanismo de produccedilatildeo desse lado do mundo pelo sujeito do conhecer

Detalhamos o modo como Schopenhauer encaixa as peccedilas do quebra-cabeccedila que se tornou o

problema do conhecimento apoacutes as discussotildees sobre a coisa em si Mostramos que o ponto

central da soluccedilatildeo que ele elabora eacute o princiacutepio de razatildeo suficiente por meio do qual responde

a todas as questotildees que se encontravam abertas naquele debate Ressaltamos essas relaccedilotildees e

indicamos como elas manifestam seu posicionamento especiacutefico frente ao idealismo

transcendental Expomos a concepccedilatildeo de Schopenhauer acerca do conhecimento filosoacutefico

algumas das criacuteticas que ele faz ao idealismo kantiano e a relaccedilatildeo que ele estabelece entre o

seu proacuteprio idealismo e a fisiologia com o objetivo de clarificar os caminhos que seu

pensamento vai urdindo Ao final destacamos os contornos do mundo como representaccedilatildeo

tal como concebido pelo filoacutesofo e trazemos agrave luz os seus fundamentos

O terceiro capiacutetulo trata da metafiacutesica schopenhaueriana na qual a coisa

em si eacute deduzida como o lado interno do mundo Apresentamos a argumentaccedilatildeo acerca da

Vontade como essecircncia do indiviacuteduo humano bem como sua extensatildeo posterior ao mundo

como um todo animado e inanimado Retratamos a objetivaccedilatildeo da Vontade sublinhando o

processo de refinamento das suas manifestaccedilotildees no decurso tempo e apontamos suas relaccedilotildees

com o intelecto e o ceacuterebro Discutimos as concepccedilotildees de autodiscoacuterdia e de teleologia e

finalizamos com uma reflexatildeo sobre os fundamentos do mundo como Vontade O quarto e

uacuteltimo capiacutetulo abrange algumas das mais relevantes apreciaccedilotildees histoacutericas da antinomia da

faculdade do conhecimento e da filosofia schopenhaueriana como um todo Delineamos a

recepccedilatildeo das obras de Schopenhauer por seus contemporacircneos destacamos algumas das

avaliaccedilotildees criacuteticas da antinomia da faculdade de conhecimento bem como outras

apologeacuteticas e apresentamos nossas conclusotildees Neste uacuteltimo item refletimos sobre a

complementaridade dos pontos de vista do idealismo e do realismo e concluiacutemos pela

necessidade de manter ambas as perspectivas A explicaccedilatildeo do mundo com base somente em

uma delas eacute vista como insuficiente por Schopenhauer e ainda que decirc origem a

- 16 -

inconsistecircncias sua junccedilatildeo natildeo torna seu pensamento trivial

Por fim queremos esclarecer que o tiacutetulo desta tese natildeo se refere apenas

agrave antinomia da faculdade de conhecimento mas agrave teoria do conhecimento de um modo mais

amplo porque a questatildeo envolve diferentes aspectos da filosofia de Schopenhauer De fato a

antinomia se relaciona com o intelecto mas tambeacutem com a Vontade e com a filosofia da

natureza schopenhaueriana O nuacutecleo estaacute na origem do conhecimento suas condiccedilotildees de

possibilidade e seu mecanismo interno de funcionamento que satildeo questotildees ligadas agrave

faculdade de conhecer no entanto a antinomia tambeacutem se refere ao surgimento do suporte

material do intelecto ligado agrave Vontade e ao desenvolvimento e aperfeiccediloamento fenomecircnicos

dela

- 17 -

Capiacutetulo 1 ndash Introduccedilatildeo agrave antinomia da faculdade de conhecimento

11 ndash Apresentaccedilatildeo teoacuterica e histoacuterica da antinomia da faculdade de conhecimento

No sect 7 do primeiro livro de O mundo como Vontade e representaccedilatildeo

(doravante O Mundo) Schopenhauer identifica um problema na sua filosofia ao qual ele

denomina antinomia da faculdade de conhecimento (Antinomie in unsern

Erkenntniβvermoumlgen)2 Esse problema desponta nos desdobramentos de duas teses

fundamentais de seu pensamento a saber a concepccedilatildeo de que todo o mundo conhecido se

reduz a representaccedilatildeo do sujeito e a de que as objetivaccedilotildees da Vontade base metafiacutesica de

tudo o que existe apresentam um progresso no tempo Essas teses fazem parte dos alicerces

da filosofia schopenhaueriana e sua confrontaccedilatildeo foi interpretada como levando a uma

contradiccedilatildeo tanto pelo filoacutesofo quanto por diversos comentadores de sua obra

De acordo com Schopenhauer o universo empiacuterico consiste em

representaccedilatildeo de um sujeito cognoscente de modo que todos os seres animados bem como

toda a natureza inanimada dependem de um intelecto e somente podem existir por meio dele

Nas palavras do filoacutesofo o mundo eacute ldquo[] simplesmente representaccedilatildeo e como tal exige o

sujeito cognoscente como portador de sua existecircncia []rdquo3 Essa relaccedilatildeo de implicaccedilatildeo entre o

sujeito e o mundo como representaccedilatildeo eacute radicalizada pela conexatildeo intriacutenseca entre a

faculdade cognoscitiva e o corpo material que lhe daacute suporte pois o ceacuterebro eacute apontado por

Schopenhauer como o oacutergatildeo no qual se situa o conhecimento Para ele o espaccedilo como

condiccedilatildeo da extensatildeo dos corpos o tempo como forma da sucessatildeo dos eventos e a lei de

causalidade como reguladora das transformaccedilotildees na natureza satildeo as bases da constituiccedilatildeo do

sujeito congnoscente e possuem uma origem cerebral Ernst Cassirer sublinha esse aspecto

2 WWV I ersters buch sect7 p 65 M I Livro I sect7 p 76

3 WWV I ersters buch sect7 p 64 M I Livro I sect7 p 75

- 18 -

ressaltando que Schopenhauer formula sua teoria do conhecimento sobre uma concepccedilatildeo que

eacute ao mesmo tempo metafiacutesica e fisioloacutegica

O ldquomundordquo que assim nasce existe somente na representaccedilatildeo e para a

representaccedilatildeo eacute pura e exclusivamente um produto do ceacuterebro Nunca se

poderaacute afirmar com a energia necessaacuteria sublinhar-se com forccedila o bastante

essa condicionalidade fisioloacutegica Sem o olho natildeo existiria jamais o mundo

das cores sem o ceacuterebro jamais existiria o mundo dos corpos no espaccedilo o

mundo das mudanccedilas e das dependecircncias causais no tempo O intelecto que

possui como seu patrimocircnio aprioriacutestico e original todas essas relaccedilotildees e

formas encontra-se absolutamente condicionado por fatores fiacutesicos eacute a

funccedilatildeo de um oacutergatildeo material subordinado portanto a este e sem o qual

seria tatildeo impossiacutevel como o ato de segurar sem a matildeo4

Da perspectiva de sua metafiacutesica contudo Schopenhauer sustenta a

existecircncia de uma gradaccedilatildeo nas objetivaccedilotildees da Vontade ancorada na complexidade e no

aperfeiccediloamento crescentes dos seres da natureza que culmina no animal cognoscente A

investigaccedilatildeo da natureza baseada na lei de causalidade diz o filoacutesofo leva necessariamente agrave

concepccedilatildeo de que ldquo[] no tempo cada estado da mateacuteria superiormente organizado sucedeu a

um mais rudimentar isto eacute que animais surgiram antes dos homens peixes antes dos animais

terrestres plantas antes destes o inorgacircnico antes de todo orgacircnico []rdquo5 Todos esses seres

seriam orientados por um princiacutepio de afirmaccedilatildeo em virtude do qual sua existecircncia teria

como uacutenico objetivo garantir agrave Vontade sua proacutepria objetivaccedilatildeo Em funccedilatildeo disso o

aprimoramento no decurso do tempo se daria no sentido de afirmarem a Vontade de modo

cada vez mais eficaz o que teria sido alcanccedilado com o ser humano Com efeito a razatildeo e o

conhecimento abstrato presentes apenas na humanidade seriam os instrumentos mais

eficientes para a satisfaccedilatildeo do querer individual Natildeo obstante a possibilidade de uma tal

gradaccedilatildeo exige que se admita a existecircncia de um processo temporal no qual uma longa cadeia

de causas e efeitos tenha transformado a natureza e sofisticado o mundo desde o inorgacircnico

ateacute o ceacuterebro dotado de razatildeo

A questatildeo que surge ao se confrontarem os dois aspectos expostos eacute

notada e descrita por Schopenhauer

Assim de um lado vemos necessariamente a existecircncia do mundo inteiro

dependente do primeiro ser cognoscente por mais imperfeito que possa ser

de outro lado tambeacutem necessariamente esse primeiro animal cognoscente eacute

completamente dependente de uma longa cadeia anterior de causas e efeitos

4 CASSIRER E El problema del conocimiento III 1ordf ed 4ordf reimpr Traduccioacuten de Wenceslao Roces Meacutexico

Fondo de Cultura Econoacutemica 1993 p 497 (grifos do autor) 5 WWV I ersters buch sect7 p 64 M I Livro I sect7 p 75

- 19 -

na qual ele entra como um pequeno elo Esses dois pontos de vista

contraditoacuterios aos quais na verdade fomos conduzidos com a mesma

necessidade podem de fato nomear-se novamente antinomia da nossa

faculdade de conhecimento e situar-se como contrapartida daquela

encontrada no primeiro extremo da ciecircncia da natureza []6

Para o filoacutesofo a questatildeo eacute dissolvida considerando-se que o espaccedilo o

tempo e a causalidade referem-se unicamente agrave representaccedilatildeo e natildeo ao nuacutecleo do mundo agrave

coisa em si A chave para essa soluccedilatildeo seria a compreensatildeo de que o tempo estaacute associado ao

conhecimento ou seja se eacute certo que natildeo havia conhecimento antes do intelecto natildeo haveria

tambeacutem tempo algum Ao surgir como atributo do primeiro ser cognoscente somente entatildeo eacute

que o tempo traria as noccedilotildees de passado e futuro infinitos bem como a representaccedilatildeo de uma

cadeia causal anterior Como ele explica

[] assim como o primeiro presente tambeacutem o passado de onde ele proveacutem

depende do primeiro sujeito cognoscente e sem ele nada eacute embora a

necessidade conduza a que esse primeiro presente natildeo se apresente como o

primeiro isto eacute como natildeo tendo nenhum passado como matildee e como o iniacutecio

do tempo mas sim como consequecircncia do passado conforme o princiacutepio

do ser no tempo da mesma forma que o fenocircmeno que preenche o passado

se apresenta como efeito de estados preacutevios que o preencheram segundo a

lei de causalidade7

Essa resposta elaborada por Schopenhauer no entanto natildeo remediou os

problemas aiacute encontrados pelos historiadores e filoacutesofos posteriores e a questatildeo passou agrave

Histoacuteria da Filosofia como uma falha um paradoxo descoberto por Eduard Zeller 8

Em 1875

na obra Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibniz Zeller expocircs a formulaccedilatildeo da

antinomia que tem sido a mais citada No seu livro ele afirma que quando confrontamos as

partes do sistema schopenhaueriano somos conduzidos agrave conclusatildeo de que o mundo resulta

da representaccedilatildeo a qual por sua vez resulta de um oacutergatildeo material que pressupotildee o mesmo

mundo Nas palavras dele

Encontramo-nos portanto no ciacuterculo evidente de que a representaccedilatildeo deve

ser um produto do ceacuterebro e o ceacuterebro um produto da representaccedilatildeo e que

este uacuteltimo natildeo seja o limite extremo da sua concepccedilatildeo mas apenas

enquanto ele eacute representado eacute um subterfuacutegio vazio pois somente enquanto

6 WWV I ersters buch sect7 p 65 M I Livro I sect7 p 76 Schopenhauer se refere nessa passagem ao que ele

chama de antinomia quiacutemica que natildeo discutiremos neste trabalho De acordo com o filoacutesofo a ciecircncia quiacutemica

tem como objeto o primeiro estado da mateacuteria que tenta encontrar pelo meacutetodo da causalidade Poreacutem estaria

condenada ao fracasso pois mesmo que um tal primeiro estado fosse encontrado ficaria inexplicado o modo

como teria podido sofrer alguma mudanccedila na ausecircncia de um outro estado diferente dele que pudesse dar

origem agrave primeira mutaccedilatildeo Cf WWV I ersters buch sect7 p 63-64 M I Livro I sect7 p 74-75 7 WWV I ersters buch sect7 p 66 M I Livro I sect7 p 77

8 Em verdade natildeo se pode falar em descoberta uma vez que o proacuteprio Schopenhauer menciona essa dificuldade

como de resto algumas outras que discutiremos adiante

- 20 -

mateacuteria somente ldquoenquanto se torna representadordquo eacute que pode existir

corporalmente o oacutergatildeo que gera as representaccedilotildees Aqui se situa uma

contradiccedilatildeo para cuja soluccedilatildeo o filoacutesofo nem minimamente contribuiu9

Como afirma Maria Luacutecia Cacciola em Schopenhauer e a questatildeo do

dogmatismo trata-se de uma criacutetica claacutessica agrave teoria da representaccedilatildeo schopenhaueriana que

foi por isso qualificada como contraditoacuteria10

De fato tanto antes quanto depois de Eduard

Zeller diversos comentadores apresentaram e discutiram essa dificuldade entre eles Kuno

Fischer Johannes Volkelt e Ernst Cassirer Jaacute em 1871 Julius Frauenstaumldt disciacutepulo e amigo

do filoacutesofo publicou seu Schopenhauer-Lexicon no qual haacute um verbete sobre a antinomia da

faculdade de conhecimento sob o nome de ldquoantinomia fisioloacutegicardquo (die physiologische

Antinomie)11

Ainda antes dele Adolf Cornill e Rudolf Seydel tocam no problema em 1856 e

1857 respectivamente O primeiro em sua obra Arthur Schopenhauer als

Uebergangsformation von einer idealistischen in eine realistische Weltanschauung12

atribui-

o a um dualismo que dilaceraria o sistema O segundo o remete a um hiato entre a teoria do

conhecimento schopenhaueriana e sua metafiacutesica na obra Schopenhauers Philosophisches

System13

Existem ainda muitas outras obras dedicadas a Schopenhauer que aludem

agrave antinomia natildeo necessariamente de modo criacutetico tanto escritas no passado como no

presente Dentre elas estatildeo diversas teses de doutorado alematildes datadas do final do seacuteculo

XIX ao iniacutecio do XX como por exemplo a de Dmitry Tzerteleff Schopenhauerrsquos

Erkenntniss-Theorie eine kritische Darstellung14

defendida na Universidade de Leipzig em

1879 Aleacutem dessa haacute a de Hugo Otczipka Kritische Bemerkungen zur Weltanschauung

Schopenhauers15

tambeacutem defendida na Universidade de Leipzig em 1892 e a de Otto

9 ZELLER E Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibniz Muumlnchen Didenbourg 1875 p 713

(traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 10

CACCIOLA M L Schopenhauer e a questatildeo do dogmatismo Satildeo Paulo EDUSP 1994 p 77 11

Cf FRAUENSTAumlDT J Schopenhauer-Lexicon ein Philosophisches Woumlrterbuch Erster Band Leipzig

Brockhaus 1871 p 37 et seq 12

CORNILL A Arthur Schopenhauer als Uebergangsformation von einer idealistischen in eine realistische

Weltanschauung Heidelberg Georg Mohr 1856 13

SEYDEL R Schopenhauers Philosophisches System Leipzig Breitkop und Haumlrtel 1857 14

TZERTELEFF Dmitry Schopenhauerrsquos Erkenntniss-Theorie eine kritische Darstellung Inaugural-

Dissertation zur Erlangung der philosophischen Doktorwuumlrde der Phiosophischen Fakultaumlt der Universitaumlt

Leipzig Leipzig G Reusche 1879 p 35 et seq 15

OTCZIPKA Hugo Kritische Bemerkungen zur Weltanschauung Schopenhauers Der Hohen philosophischen

Fakultaumlt der Universitaumlt Leipzig als Inaugural-Dissertation zur Erlangung der Doktorwuumlrde Leipzig-Reudnitz

Oswald Schmidt 1892 p 150 et seq

- 21 -

Suckau intitulada Schopenhauers falsche Auslegung der Kantischen Erkenntnistheorie Ihre

Erklaumlrung und Ihre Folgen16

defendida em Weimar em 191217

Uma das mais interessantes e profiacutecuas anaacutelises da teoria do

conhecimento schopenhaueriana eacute a realizada por Ernst Cassirer De acordo com esse

pensador Schopenhauer tenta realizar a intermediaccedilatildeo entre dois mundos a saber o da

metafiacutesica do ponto de vista do idealismo alematildeo e o das ciecircncias naturais apoiado

especialmente na psicologia francesa e na teoria fisioloacutegica das cores de Goethe Esse seria

um caraacuteter sui generis do pensamento de Schopenhauer que o teria levado agrave bifurcaccedilatildeo de

dois caminhos e de duas metas completamente diferentes em funccedilatildeo dos quais haveria

surgido uma antinomia jaacute na proacutepria formulaccedilatildeo do problema do conhecimento18

Cassirer considera que o fato de Schopenhauer apoiar sua teoria da

representaccedilatildeo sobre as ciecircncias naturais e natildeo sobre a loacutegica e a matemaacutetica assegura-lhe um

lugar especial entre os poacutes-kantianos mas em contrapartida envolve sua filosofia num

problema insoluacutevel Diferentemente dos outros disciacutepulos de Kant em Schopenhauer a

investigaccedilatildeo natildeo expotildee apenas a trajetoacuteria do conhecimento no sentido que vai do intelecto ao

objeto mas tambeacutem no inverso do mundo conhecido ao intelecto Schopenhauer portanto

teria decidido fundamentar sua visatildeo acerca da formaccedilatildeo do conhecimento natildeo somente em

uma operaccedilatildeo intelectual transcendental como os outros idealistas alematildees mas sustentando-

se tambeacutem no fisioloacutegico Sua intenccedilatildeo ao fazer isso teria sido a de rechaccedilar a construccedilatildeo

teoacuterica de tipo panteiacutesta em que um ser absoluto e originaacuterio engendra o mundo ao mesmo

tempo em que revela a si proacuteprio No entanto na concepccedilatildeo de Cassirer aiacute estaria o erro

fundamental de Schopenhauer pois o processo natildeo poderia ser entendido como a

manifestaccedilatildeo de uma entidade no tempo mas somente no sentido de uma emanaccedilatildeo loacutegica A

dificuldade de harmonizar o meacutetodo transcendental de Kant que se ocupa das verdades e da

validade ideal dos juiacutezos com as questotildees proacuteprias do lado empiacuterico da teoria fisioloacutegica seria

responsaacutevel por grande parte dos problemas da filosofia schopenhaueriana A partir daiacute um

ciacuterculo vicioso resultaria da derivaccedilatildeo dos juiacutezos com base nas coisas e escreve Cassirer

16

SUCKAU Otto Schopenhauers falsche Auslegung der Kantischen Erkenntnistheorie Ihre Erklaumlrung und Ihre

Folgen Dissertation zur Erlangung der Doktorwuumlrde bei der philosophischen Fakultaumlt der Groszligherzoglich

Hessischen Ludwigs-Universitaumlt zu Gieszligen Weimar R Wagner Sohn 1912 p 39 et seq 17

No quarto capiacutetulo deste trabalho delineamos a recepccedilatildeo da filosofia de Schopenhauer e algumas das

apreciaccedilotildees tanto criacuteticas quanto apologeacuteticas que a antinomia da faculdade do conhecimento recebeu 18

CASSIRER E op cit p 493

- 22 -

[] esse ciacuterculo vicioso tem necessariamente de produzir-se tatildeo logo o

problema da filosofia criacutetica saia de seu campo proacuteprio e verdadeiro isto eacute

tatildeo logo perguntemos natildeo por uma dependecircncia ideal com respeito a

verdades mas por uma dependecircncia real do sujeito com respeito ao objeto e

vice-versa19

No fundo do sistema schopenhaueriano haveria um ciacuterculo do anterior e

do posterior no tempo que estaria na base da teoria do conhecimento do filoacutesofo e seria

tambeacutem a origem da antinomia O proacuteprio Schopenhauer teria admitido aiacute uma circularidade

vendo-se obrigado a conceber o intelecto tanto como prius quanto como posterius20

Com

base nisso seriacuteamos forccedilados a concluir que o espaccedilo estaacute na cabeccedila e simultaneamente a

cabeccedila estaacute nele assim como que o tempo estaacute em noacutes e que tambeacutem estamos nele Do

mesmo modo a proacutepria derivaccedilatildeo do mundo como representaccedilatildeo no espaccedilo e no tempo

exigiria a existecircncia anterior de certos dados primaacuterios que na realidade jaacute seriam obra do

intelecto como no caso da intuiccedilatildeo dos objetos realizada pela retina

O ciacuterculo vicioso surgiria igualmente quando se analisa a exposiccedilatildeo

schopenhaueriana do ponto de vista metafiacutesico O intelecto juntamente com o ceacuterebro seria

um produto tardio da Vontade sua uacuteltima e superior objetivaccedilatildeo Nessa perspectiva o tempo

o espaccedilo e a causalidade que satildeo as condiccedilotildees do devir teriam de surgir posteriormente como

atributos do sujeito Entatildeo diz Cassirer

[] deveria estar claro segundo a proacutepria metafiacutesica de Schopenhauer que

natildeo pode haver nenhuma classe de objetivaccedilotildees da vontade anteriores ao

intelecto mas somente para este Soacute para o sujeito cognoscente e sua forma

de reflexatildeo se fragmenta o em si simplesmente unitaacuterio da vontade em uma

pluralidade de graus de objetivaccedilatildeo e na seacuterie ascendente do devir21

Em resumo natildeo se poderia apontar nenhuma origem material do

intelecto nenhuma demonstraccedilatildeo que apresentasse a derivaccedilatildeo dele a partir de outro ser ou

essecircncia Somente seria possiacutevel realizar algo desse tipo recorrendo-se a uma

autodeterminaccedilatildeo ou automovimento de um ser absoluto O proacuteprio Schopenhauer como

mostra Cassirer apontou o problema das metafiacutesicas geneacuteticas evidenciando que o princiacutepio

de razatildeo natildeo tem validade fora da experiecircncia e que portanto natildeo se pode supor nenhuma

causalidade entre a coisa em si e o fenocircmeno No entanto o filoacutesofo teria cometido o mesmo

erro no tocante agrave relaccedilatildeo entre Vontade e conhecimento na medida em que o princiacutepio de

razatildeo eacute utilizado para mostrar a origem uacuteltima do intelecto A filosofia schopenhaueriana

19

Ibidem p 510 (grifos do autor) 20

Ibidem p 512 21

Ibidem p 517 (grifos do autor)

- 23 -

como um todo resultaria entatildeo numa metafiacutesica geneacutetica de fundamento bioloacutegico22

12 ndash Outras questotildees presentes na filosofia schopenhaueriana

Aleacutem do nosso objeto de pesquisa podem-se mencionar ainda outras

questotildees entre elas trecircs contradiccedilotildees que foram expressamente referidas por Schopenhauer e

que adiante discutiremos Algumas das dificuldades que notamos nos parecem ser superficiais

ou aparentes enquanto outras talvez tenham raiacutezes mais profundas Em contextos superficiais

encontram-se embaraccedilos que natildeo comprometem a integridade do conjunto e podem ser

conciliados com suas premissas baacutesicas Em niacuteveis mais internos haacute aqueles que poderatildeo

estar radicados nas fundaccedilotildees do sistema Segundo pensamos no decurso da formulaccedilatildeo da

sua filosofia Schopenhauer acaba se deparando com diversos problemas que precisa resolver

tomando por base seu pensamento uacutenico Essa tarefa no entanto natildeo eacute nada faacutecil pois as

soluccedilotildees precisam ser harmonizadas com um mundo que possui dois lados mutuamente

excludentes Enquanto representaccedilatildeo o mundo se caracteriza pela necessidade em virtude de

ser construiacutedo pelo princiacutepio de razatildeo suficiente mas ao mesmo tempo tem sua essecircncia em

algo totalmente oposto uma Vontade imanente absolutamente livre cega e sem objetivo Em

funccedilatildeo disso constantemente surgem contrastes conflitos e oposiccedilotildees insuspeitadas que nem

sempre podem ser levadas a bom termo

Essa visatildeo natildeo eacute nova na histoacuteria da recepccedilatildeo da filosofia de

Schopenhauer e natildeo nos parece estar ultrapassada A tiacutetulo de exemplo mencionamos uma

obra do seacuteculo XIX e outra do XXI ambas com concepccedilotildees similares A primeira delas eacute a de

Louis Ducros intitulada Schopenhauer les origines de sa meacutetaphysique de 1883 que analisa

o pensamento schopenhaueriano na perspectiva da Vontade23

Esse autor delineia a trajetoacuteria

de construccedilatildeo da metafiacutesica do filoacutesofo que admite a presenccedila da coisa em si e a define como

22

Ibidem p 520 23

DUCROS L Schopenhauer les origines de sa meacutetaphysique ou les transformations de la chose en soi de

Kant a Schopenhauer Paris Germer Bailliegravere amp Co 1883

- 24 -

Vontade comparando-a com as de Kant Fichte e Schelling Nas filosofias destes uacuteltimos

conforme Ducros a vontade tomada como coisa em si tambeacutem ocupa um papel fundamental

tanto quanto na de Schopenhauer Sua conclusatildeo poreacutem eacute de que o pensamento deste uacuteltimo

eacute repleto de contradiccedilotildees devidas agrave combinaccedilatildeo de duas linhas teoacutericas antagocircnicas a saber

um idealismo criacutetico e um realismo dogmaacutetico24

Entatildeo ele escreve

Leiam o primeiro livro de O Mundo como representaccedilatildeo e vontade em

nome dos princiacutepios do criticismo Schopenhauer demonstra que o mundo

natildeo eacute senatildeo uma representaccedilatildeo menos que isso uma ilusatildeo do espiacuterito natildeo

se poderia ser mais idealista Abram o segundo livro e perceberatildeo uma

linguagem totalmente diferente os princiacutepios criacuteticos satildeo abandonados

ressuscitam-se as realidades elevam-nas ao posto de substacircncias de coisas

em si em uma palavra apresenta-se tanto dogmaacutetico e afirmativo no seu

realismo que se criticou quanto negativo no seu idealismo25

A segunda obra Aporie und Subjekt die erkenntnistheoretischen

Entfaltungslogik der Philosophie Schopenhauers26

foi publicada por Martim Booms em 2003

e analisa a teoria do conhecimento de Schopenhauer com base no conceito de sujeito Para

Booms a filosofia schopenhaueriana eacute repleta de aporias e de contradiccedilotildees que a seu ver

natildeo satildeo devidas agrave irracionalidade da Vontade mas ao subsolo loacutegico da sua concepccedilatildeo de

sujeito Com essa perspectiva ele argumenta que a filosofia schopenhaueriana se rebela

contra seus proacuteprios fundamentos Nas palavras dele

Um trabalho filosoacutefico que se ocupa da filosofia de Schopenhauer se vecirc em

face de enormes problemas de orientaccedilatildeo logo que algo atinge a

determinaccedilatildeo de um possiacutevel princiacutepio ou entatildeo um ponto de acesso um

dos mais notaacuteveis de todos os planos (ndash considerando o niacutevel de conteuacutedo

(11) o plano teoacuterico formal e o argumentativo (12) assim como a

correspondente delimitaccedilatildeo histoacuterico-filosoacutefica complementar (13) e a

histoacuteria da recepccedilatildeo (14) ndash responsaacutevel pela caracteriacutestica do pensamento de

Schopenhauer) consiste em sua anunciada heterogeneidade em uma

divergecircncia e polaridade entre pontos de vista e abordagem metoacutedica

distintos os quais por meio da permanente produccedilatildeo de mediaccedilotildees mantecircm

sua filosofia em um permanente estado de tensatildeo e com isso conduzem a

inegaacuteveis aporias ciacuterculos viciosos mudanccedilas de perspectiva e demoliccedilatildeo de

argumentaccedilotildees[]27

Do nosso ponto de vista haacute certos problemas que se situam na superfiacutecie

do edifiacutecio teoacuterico schopenhaueriano e que podem ser descritos de modo geral como

conclusotildees que o sistema natildeo permitiria logicamente extrair embora o filoacutesofo o faccedila Um

24

Ibidem p 150 25

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 26

BOOMS Martin Aporie und Subjekt die Erkenntnistheoretischen Entfaltungslogik der Philosophie

Schopenhauers Wurzburg Koumlnigshausen amp Neuman 2003 27

Ibidem p 16 (traduccedilatildeo nossa)

- 25 -

exemplo de tais dificuldades eacute a suposiccedilatildeo de poder expressar o enigma do mundo por meio

do conhecimento abstrato A formulaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo suficiente28

como forma uacutenica

do conhecimento29

cujas raiacutezes em uacuteltima instacircncia possibilitam apenas perguntar pelas

razotildees e responder ao ldquoporquecircrdquo das coisas30

contrasta com a pretensatildeo da filosofia

schopenhaueriana que embora seja fruto de uma das figuras dele do principium rationis

sufficientis cognoscendi pretende demonstrar o ldquoquecircrdquo do mundo seu mais iacutentimo interior Ou

seja se o princiacutepio de razatildeo somente pode expressar a necessidade de um fundamento para

tudo o que existe o enigma do mundo jamais poderia ser desvelado por meio dele nem

poderia ser traduzido em conceitos Em suma a essecircncia do mundo natildeo poderaacute ser encontrada

seguindo-se as relaccedilotildees causais que constituem a representaccedilatildeo tampouco se forem

oferecidas as razotildees de conhecimento dos juiacutezos verdadeiros Eacute necessaacuterio um conhecimento

de tipo diferente pode alcanccedilaacute-la a saber o esteacutetico ou o eacutetico mas nunca o racional De fato

afirma Schopenhauer ldquo[] a essecircncia iacutentima do mundo a coisa em si nunca pode ser

encontrada pelo seu meacutetodo [do princiacutepio de razatildeo] poreacutem tudo o que com ele se pode

alcanccedilar eacute sempre dependente e relativo apenas fenocircmeno natildeo a coisa em si[]rdquo31

Uma segunda dificuldade pode ser apontada no tocante ao conhecimento

do sujeito acerca de seu proacuteprio interior Conforme Schopenhauer nossa vontade individual

nos daacute a conhecer de modo imediato o processo interno da causalidade pois a lei de

motivaccedilatildeo eacute ela mesma vista por dentro32

Em Da quaacutedrupla raiz do princiacutepio de razatildeo

suficiente (doravante Da quaacutedrupla raiz) Schopenhauer afirma sobre esse ponto que ldquoA

atuaccedilatildeo do motivo natildeo eacute conhecida por noacutes apenas como satildeo todas as outras causas de fora e

de modo indireto mas ao mesmo tempo de dentro de modo totalmente imediato e portanto

em sua completa forma de accedilatildeordquo33

Em contraste com isso poreacutem no item intitulado

ldquoAstronomia Fiacutesicardquo de Sobre a Vontade na Natureza o filoacutesofo discorre sobre as diferenccedilas

que se notam entre causas e efeitos conforme se ascende na escala progressiva dos seres e

28 No segundo capiacutetulo abordaremos o princiacutepio de razatildeo suficiente de modo detido 29

Existe tambeacutem o modo de conhecimento esteacutetico no qual se abandona o fio condutor do princiacutepio de razatildeo e

alcanccedilam-se as Ideias entendidas como graus de objetivaccedilatildeo da Vontade e formas eternas das coisas Para

Schopenhauer elas satildeo refletidas pela obra de arte cuja contemplaccedilatildeo leva agrave intuiccedilatildeo imediata da vida e da

natureza por um indiviacuteduo transformado em puro sujeito do conhecer Haacute tambeacutem o conhecimento obtido pela

conversatildeo eacutetica que descortina a essecircncia da Vontade e leva a negaacute-la Natildeo obstante o conhecimento filosoacutefico

natildeo eacute do mesmo tipo do esteacutetico ou do eacutetico mas tem de seguir o princiacutepio de razatildeo suficiente do conhecer Eacute

segundo Schopenhauer a apresentaccedilatildeo in abstracto do que foi conhecido in concreto 30

UumlV sect4 p 15 CR sect4 p 33 31

WWV I ersters buch sect7 p 67 M I Livro I sect7 p 78 32

UumlV sect43 p 173 CR sect43 p 208 33

UumlV sect43 p 173 CR sect43 p 208

- 26 -

que determinam uma perda progressiva da compreensibilidade do processo de causaccedilatildeo34

A

maior inteligibilidade possiacutevel da causalidade estaacute nos processos mecacircnicos em que causas e

efeitos satildeo qualitativamente homogecircneos Quando a causa eacute de uma natureza e o efeito de

outra a conexatildeo causal vai deixando progressivamente de ser evidente Como ele explica

Aquela relaccedilatildeo inversa em que se esclarecem a causalidade e a Vontade

aquele modo alternante de avanccedilar e recuar de ambas deriva de que quanto

mais uma coisa nos eacute dada como simples fenocircmeno isto eacute como

representaccedilatildeo mais clara se mostra a forma a priori da representaccedilatildeo isto eacute

a causalidade assim eacute na natureza inanimada mas inversamente quanto

mais imediatamente a Vontade nos eacute consciente mais retrocede a forma da

representaccedilatildeo a causalidade como eacute conosco mesmos Assim quanto mais

um lado do mundo se aproxima mais perdemos o outro de vista35

Por conseguinte quanto mais a Vontade se manifesta nos fenocircmenos

mais incompreensiacuteveis eles satildeo porque se afastam da causalidade O princiacutepio de razatildeo

suficiente do devir estaria assim em uma relaccedilatildeo inversa de compreensibilidade com a

Vontade o que entra em conflito com o caraacuteter mais conhecido atribuiacutedo agrave vontade

individual em funccedilatildeo da lei de motivaccedilatildeo A questatildeo que se abre entatildeo eacute a de saber como

podemos conhecer melhor e mais profundamente algo sem o intermeacutedio da forma intelectual

responsaacutevel pelo conhecimento Mais que isso como a lei de motivaccedilatildeo pode ser a

causalidade vista por dentro se elas deveratildeo se excluir mutuamente

Apesar de serem complicadores da filosofia de Schopenhauer esses

impasses natildeo adentram profundamente no seu pensamento e talvez possam ser dissolvidos

com algum esforccedilo e boa vontade intelectual Haacute alguns outros no entanto cuja resoluccedilatildeo natildeo

eacute tatildeo simples e que o proacuteprio filoacutesofo admitiu terem sido resolvidos apenas imperfeitamente

Com efeito Schopenhauer assinala o que entende serem trecircs oposiccedilotildees (Gegensaumltze)36

imputadas por ele agrave distinccedilatildeo entre representaccedilatildeo e Vontade A primeira estudada por noacutes em

dissertaccedilatildeo de mestrado ocorre entre a afirmaccedilatildeo da existecircncia de uma accedilatildeo livre no mundo

fenomecircnico no momento de negaccedilatildeo da Vontade e a necessidade que rege todas as accedilotildees

humanas No fim de contas considerando-se o conjunto das colocaccedilotildees do filoacutesofo sobre essa

questatildeo sua filosofia refletiria um fato presente no proacuteprio mundo e na Vontade mesma

definida como autoconflitante e autodestrutiva Embora possa ser explicada a contradiccedilatildeo

34

WN p 411 ss VN p 138 ss 35

WN p 418 VN p 146 36 A exposiccedilatildeo desses problemas pode ser conferida em PP I Transzendente Spekulation uumlber die anscheinende

absichtlichkeit im Schicksale des Einzelnen p 271 Especulacioacuten transcendente sobre los visios de

intencionalidade en el destino del individuo In Los designios del destino Estudio preliminar traduccioacuten y notas

de Roberto Rodriacutegues Aramayo Madrid Tecnos 1994 p 44

- 27 -

acaba natildeo sendo dissolvida e permanece tanto no mundo quanto no discurso

A segunda oposiccedilatildeo estabelece simultaneamente o nexus effetivus e o

nexus finalis na natureza ou seja o mecanicismo e o finalismo que ocorrem ao mesmo tempo

nos fenocircmenos naturais37

Schopenhauer sustenta que entre objetos naturais distantes no

espaccedilo e heterogecircneos entre si haacute uma espeacutecie de compatibilidade que parece ser orientada

por algum tipo de finalidade Tal finalidade poreacutem natildeo pode ser explicada por processos

mecacircnicos e lineares que satildeo o escopo do princiacutepio de razatildeo nem pelo conceito de causa que

ele estabelece pois este natildeo se coaduna com a admissatildeo de um ser que se origine ou se

organize a si mesmo Dessa concepccedilatildeo da causalidade inclusive decorrem todas as diversas

criacuteticas que Schopenhauer tece ao conceito de causa sui Aleacutem disso por ser cega e sem

objetivo final a Vontade natildeo permitiria a afirmaccedilatildeo de uma teleologia na natureza Natildeo

obstante essa teleologia eacute afirmada como existente pelo filoacutesofo e explicada metaforicamente

A terceira oposiccedilatildeo mencionada por Schopenhauer concerne ao contraste

entre a contingecircncia dos acontecimentos da vida individual e a necessidade moral que a

determina38

De acordo com ele embora embotada e sem finalidade a Vontade originaria um

todo coerente e ordenado na vida humana No iacutentimo das pessoas e sem o seu conhecimento

ela dirigiria todas as accedilotildees em funccedilatildeo de seus proacuteprios fins de maneira que os eventos

isolados e aparentemente desconexos das trajetoacuterias de vida individuais concorreriam para

uma manifestaccedilatildeo uniforme do ser como um todo Por conseguinte haveria uma contradiccedilatildeo

entre a vida do indiviacuteduo constituiacuteda por uma seacuterie de acontecimentos fortuitos e os fins

morais da Vontade que ele perseguiria independentemente de seu proacuteprio consentimento No

fim de contas sem que soubesse o ser humano estaria sendo conduzido pela Vontade agrave meta

final de negaccedilatildeo de si mesma39

Poreacutem como eacute evidente tais ideias satildeo completamente

opostas agrave de uma Vontade obtusa sem fim e sem alvo um dos pilares da filosofia

schopenhaueriana

Outra dificuldade de consequecircncias significativas foi apontada por

Eduardo Brandatildeo em sua tese de doutorado intitulada A concepccedilatildeo de Mateacuteria na obra de

Schopenhauer40

Brandatildeo evidencia o modo como o filoacutesofo incorreu em contradiccedilotildees e

incoerecircncias de importantes desdobramentos na formulaccedilatildeo da sua visatildeo a respeito da

37

Ibidem loc cit ibidem loc cit 38

Ibidem loc cit ibidem loc cit 39

Ibidem p 272 ibidem p 44-45 40

BRANDAtildeO E A concepccedilatildeo de mateacuteria na obra de Schopenhauer Satildeo Paulo Humanitas 2008

- 28 -

mateacuteria Segundo esse autor o iniacutecio do processo se deu com as mudanccedilas realizadas por

Schopenhauer em sua teoria da representaccedilatildeo pelas quais a noccedilatildeo de mateacuteria passou a ter dois

sentidos O primeiro sentido consiste na definiccedilatildeo de mateacuteria como Stoff enquanto

determinada no tempo e no espaccedilo e identificada com os estados perceptiacuteveis da causalidade

O segundo sentido eacute o da mateacuteria enquanto Materie indeterminada fora do tempo e do

espaccedilo que passa a constituir a substacircncia que estaacute na base dos acidentes representados pela

mateacuteria como Stoff41

Essa reformulaccedilatildeo diz Brandatildeo acabou por obscurecer as relaccedilotildees entre

Vontade e mateacuteria bem como a ligaccedilatildeo desta uacuteltima com o sujeito cognoscente De um lado

a mateacuteria passaria a se confundir com o absoluto medida em que em diversas passagens

Schopenhauer afirma ser absolutum aquilo que nunca surge nem perece aquilo cujo quantum

nunca se altera que satildeo tambeacutem caracteriacutesticas da mateacuteria como Materie Nessa perspectiva

o filoacutesofo teria chegado ao mesmo resultado dos poacutes-kantianos que ele criticava assim como

agrave substacircncia tal como pensada por Espinosa42

De outro lado no tocante agraves relaccedilotildees entre

mateacuteria e sujeito cognoscente a reformulaccedilatildeo da teoria da representaccedilatildeo por Schopenhauer

teria levado a uma mudanccedila na noccedilatildeo de objeto Segundo Brandatildeo o mundo como

representaccedilatildeo deixa de ser entendido a partir da correlaccedilatildeo entre sujeito e objeto e passa a ter

dois polos distintos a saber sujeito e mateacuteria como Stoff Isso no entanto desloca a noccedilatildeo de

objeto que passa entatildeo a ser superposta agrave de mateacuteria Na opiniatildeo de Brandatildeo o

estabelecimento dos dois sentidos para o conceito de mateacuteria em O mundo como vontade e

representaccedilatildeo tomo II complementos (doravante O MundoII) foi importante para que a

noccedilatildeo de mundo mantivesse um traccedilo idealista Sem isso a filosofia de Schopenhauer recairia

em um materialismo jaacute que a uacutenica mateacuteria admitida seria a posteriori ou seja Stoff com

riscos agrave atribuiccedilatildeo de um sentido moral ao mundo No entanto o conceito de mateacuteria tambeacutem

teria sido pensado por Schopenhauer contra os idealistas do seu tempo daiacute a importacircncia de

colocaacute-la como visibilidade da Vontade Assim conclui Brandatildeo

Seguindo a liccedilatildeo de Lebrun talvez fosse entatildeo mais correto enxergar na

noccedilatildeo de Materie de Schopenhauer uma estrutura aporeacutetica em que cada

lado eacute realccedilado conforme o inimigo a ser combatido se o materialismo a

mateacuteria eacute abstraccedilatildeo ens rationis fenocircmeno se o idealismo absoluto ―

Berkeley incluso ― o fenocircmeno a mateacuteria o objeto precisa ser algo em si

41

BRANDAtildeO E ldquoA concepccedilatildeo de mateacuteria em Schopenhauer e o absolutordquo In SALLES JC (Org)

Schopenhauer e o Idealismo Alematildeo Salvador Quarteto 2004 p 52 42

Ibidem p 50

- 29 -

como ocorre nos Complementos de O Mundo43

Essa duplicidade de perspectiva bem como as transformaccedilotildees e

deslocamentos conceituais realizados por Schopenhauer na teoria da representaccedilatildeo teriam

repercutido na sua filosofia como um todo com efeitos profundos

Esta estrutura aporeacutetica tem suas caracteriacutesticas proacuteprias a Materie eacute

causalidade abstrata atividade abstrata mas tambeacutem inerte imoacutevel eacute dada a

priori mas soacute surge como abstraccedilatildeo No limite eacute preciso natildeo perder de vista

que se a lectio purissima sobre a mateacuteria ensina a imaterialidade da mateacuteria

que ela eacute um substrato loacutegico meramente acrescentado pelo pensamento

como o permanente dos fenocircmenos haacute em contrapartida passagens em que

ela parece de fato concreta44

Outra consequecircncia que segundo pensamos poderia ser daiacute extraiacuteda eacute a

de que no fim de contas a filosofia de Schopenhauer apresenta-se como um dualismo e natildeo

como um monismo Com efeito monista eacute aquela filosofia na qual haacute apenas um ser uma

substacircncia uma uacutenica essecircncia agrave qual tudo se refere seja no mundo animado seja no

inanimado A princiacutepio a Vontade seria essa substacircncia uacutenica pois eacute descrita como ldquotudo no

todordquo o α e o υ de toda a existecircncia e do proacuteprio mundo Poreacutem como entender o monismo

schopenhaueriano frente agraves caracteriacutesticas atribuiacutedas agrave mateacuteria como Materie conforme a

exposiccedilatildeo da obra de Eduardo Brandatildeo Schopenhauer declara sua filosofia como a exposiccedilatildeo

de um pensamento uacutenico no qual aparece a Vontade como a verdadeira substacircncia

subjacente ao mundo como um todo Quaisquer objetos existentes animados ou inanimados

satildeo vistos por essa filosofia como manifestaccedilatildeo desse ente uacutenico razatildeo pela qual teriacuteamos de

afirmar que se trata de um pensamento monista Todavia eacute possiacutevel perceber traccedilos de

dualismo no pensamento de Schopenhauer quando a mateacuteria eacute tratada como o absoluto ou

mesmo quando o intelecto se alccedila ao posto de superioridade que eacute necessaacuterio para negar a

Vontade a substacircncia primordial Agrave primeira vista esses poderiam parecer problemas

marginais que apenas realccedilariam o peso da mateacuteria ou do conhecimento no universo

conceitual schopenhaueriano como um todo No entanto eacute bastante embaraccediloso que mateacuteria e

conhecimento se coloquem mesmo que em circunstacircncias especiacuteficas em situaccedilatildeo de

igualdade com a Vontade

43

BRANDAtildeO E A concepccedilatildeo de mateacuteria na obra de Schopenhauer Satildeo Paulo Humanitas 2008 p 329-330

(grifos do autor) 44

Ibidem loc cit (grifos do autor)

- 30 -

13 ndash Investigaccedilatildeo acerca do conceito da antinomia da faculdade de conhecimento

Para uma boa compreensatildeo das questotildees mencionadas que satildeo de

naturezas distintas apresentaremos nossas opccedilotildees conceituais acerca de cada um delas De

fato verificamos frequentes divergecircncias nesse tocante tanto nas obras de Schopenhauer

quanto de seus comentadores o que prejudica o entendimento do nosso tema A questatildeo que

nos ocupa por exemplo eacute vista por Schopenhauer indistintamente como contradiccedilatildeo e como

antinomia45

Portanto eacute necessaacuterio explicitar com clareza onde estatildeo problemas para entatildeo

direcionarmos a atenccedilatildeo aos pontos exatos De nossa parte concordamos com Bacon quando

afirma que a verdade emerge mais rapidamente do erro do que da confusatildeo46

Os conceitos de contradiccedilatildeo paradoxo e antinomia satildeo definidos com

caracteriacutesticas especiacuteficas embora correlacionadas De um modo geral eacute possiacutevel definir a

contradiccedilatildeo como a atribuiccedilatildeo a um sujeito ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto de

qualidades ou relaccedilotildees mutuamente excludentes Todas as formas em que ela pode se

manifestar satildeo apoiadas no princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo pressuposto tambeacutem nas definiccedilotildees

de paradoxo e de antinomia O princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute entendido na loacutegica claacutessica

como uma das leis maacuteximas do pensamento ao lado dos de identidade e do terceiro excluiacutedo

os quais em conjunto satildeo considerados as condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para o

pensamento correto Embora natildeo tenham sido aceitos sem criacuteticas jaacute que em diversos

momentos ao longo da Histoacuteria questionou-se se teriam o estatuto de leis e se deveriam

mesmo ter primazia na loacutegica os trecircs princiacutepios foram admitidos em geral como

fundamentais

De uma perspectiva informal antinomia e paradoxo satildeo noccedilotildees anaacutelogas

e podem ser definidos como argumentos aparentemente corretos cujas premissas satildeo

aceitaacuteveis mas natildeo a conclusatildeo Em conformidade com essa posiccedilatildeo a maioria dos manuais e

dicionaacuterios de Loacutegica apresentam paradoxo e antinomia como sinocircnimos Natildeo obstante de

45

Schopenhauer escreve ldquoDiese zwei widersprechenden Ansichten auf jede von welchen wir in der That mit

gleicher Notwendigkeit gefuumlhrt werde koumlnnte man allerdings wieder eine Antinomie in unserm

Erkenntniᵦvermoumlgen nennen [hellip]rdquo Cf WWV I ersters buch sect7 p 65 M I Livro I sect7 p 76 46

BACON F The New organon New York Cambridge University Press 2000 Book II Aphorism XX p 130

- 31 -

um ponto de vista formal e mais rigoroso natildeo se pode entendecirc-los como conceitos idecircnticos

Eacute o que afirma o loacutegico Newton da Costa ao definir uma antinomia formal como sendo

aquela evidenciada em uma teoria formalizada que se mostre trivial metateoacuterica ou

epistemologicamente Paradoxo formal por seu turno eacute a derivaccedilatildeo de dois teoremas

contraditoacuterios em uma teoria formalizada Como explica Da Costa pela definiccedilatildeo usual da

loacutegica claacutessica ldquo[uma teoria] T eacute antinocircmica se e somente se nela se puder derivar um

paradoxordquo47

Embora natildeo tencionemos formalizar a filosofia Schopenhauer optamos

por natildeo considerar antinomia e paradoxo como sinocircnimos Natildeo obstante natildeo nos ateremos

estritamente agraves noccedilotildees formais de paradoxo e antinomia expostas por Da Costa se bem que os

conceitos que manteremos se aproximam claramente dos que ele propotildee Segundo pensamos

nosso propoacutesito nesta tese exige que preservemos no conceito de antinomia a marca das

discussotildees realizadas por Kant na Criacutetica da razatildeo pura por ser esse o entendimento que

Schopenhauer explicitamente adota Kant chama de antinomias os resultados teoacutericos do

conflito das leis da razatildeo surgidos no uso empiacuterico dessa faculdade48

Para ele na condiccedilatildeo

maacuteximas para a orientaccedilatildeo do entendimento acerca da totalidade do conhecimento do mundo

as ideias da razatildeo satildeo regulativas mas natildeo possuem validade empiacuterica As antinomias

consistem na contraposiccedilatildeo de teses e antiacuteteses que supostamente afirmariam verdades

empiacutericas relacionadas agrave totalidade incondicionada do mundo Por serem derivadas da

proacutepria razatildeo seriam naturais e inevitaacuteveis Nas palavras de Kant as antinomias originam-se

[] quando se aplica a razatildeo agrave siacutentese objetiva dos fenocircmenos aiacute pretende eacute

certo e com muita aparecircncia fazer valer o seu princiacutepio da unidade

incondicionada mas em breve se enreda em tais contradiccedilotildees que se vecirc

forccedilada a desistir da sua pretensatildeo em mateacuteria cosmoloacutegica49

Natildeo nos interessa discutir todas as implicaccedilotildees da teorizaccedilatildeo kantiana

sobre esse ponto mas apenas ressaltar sua conceituaccedilatildeo e mostrar o modo como teses e

antiacuteteses se contrapotildeem Para isso ressaltamos uma caracteriacutestica fundamental das antinomias

entendidas desse modo a saber embora sejam mutuamente excludentes tanto as teses quanto

as antiacuteteses satildeo legiacutetimas e demonstraacuteveis logicamente Nesse sentido Kant afirma que

Quando natildeo nos limitamos a aplicar a nossa razatildeo no uso dos princiacutepios do

entendimento aos objetos da experiecircncia mas ousamos alargar esses

47

DA COSTA N Ensaio sobre os fundamentos da loacutegica 3ordf ed Satildeo Paulo Hucitec 2008 p 221 48

KvR A406B433 ndash A408B435 CRP p 379-380 49

KvR A407B433 CRP p 379 (grifos do autor)

- 32 -

princiacutepios para aleacutem dos limites desta experiecircncia surgem teses sofisticas

que da experiecircncia natildeo tecircm a esperar confirmaccedilatildeo nem refutaccedilatildeo a temer e

cada uma delas natildeo somente natildeo encerra contradiccedilatildeo consigo proacutepria mas

encontra mesmo na natureza da razatildeo condiccedilotildees da sua necessidade a

proposiccedilatildeo contraacuteria poreacutem infelizmente tem por seu lado fundamentos de

afirmaccedilatildeo igualmente vaacutelidos e necessaacuterios50

Exporemos somente a primeira antinomia a tiacutetulo de exemplo pois o

procedimento kantiano em relaccedilatildeo agraves outras eacute o mesmo A primeira antinomia da razatildeo tem

como tese a proposiccedilatildeo ldquoO mundo tem um comeccedilo no tempo e eacute tambeacutem limitado no espaccedilordquo

e como antiacutetese ldquoO mundo natildeo tem comeccedilo nem limites no espaccedilo eacute infinito tanto no tempo

como no espaccedilordquo51

Cada uma delas eacute provada indiretamente pela refutaccedilatildeo da sua contraacuteria

Assim Kant busca a prova da tese por meio das consequecircncias que se podem extrair da

admissatildeo da antiacutetese segundo a qual o mundo natildeo eacute limitado no tempo nem no espaccedilo Por

um lado no caso de natildeo ser limitado no tempo um instante determinado exigiria um decurso

infinito de tempo e de estados sucessivos dos objetos antes que pudesse ser dado No entanto

diz Kant a infinitude dessa seacuterie anterior seraacute pensada como nunca concluiacuteda o que tornaria

impossiacutevel a proacutepria existecircncia do mundo Com isso um iniacutecio em um ponto do tempo torna-

se condiccedilatildeo necessaacuteria para a existecircncia do mundo52

Por outro lado se for admitida a

infinitude no espaccedilo o mundo teraacute de ser pensado como um todo infinito de objetos

simultacircneos Esse todo poreacutem soacute pode ser pensado por noacutes como siacutentese sucessiva das

partes e natildeo poderiacuteamos englobaacute-lo em uma intuiccedilatildeo com limites determinados A siacutentese

sucessiva das partes de um mundo infinito no espaccedilo precisaria ser completada e isso por sua

vez exigiria um tempo infinito para a enumeraccedilatildeo de todas as coisas que se justapotildeem Daiacute

conclui o filoacutesofo ldquo[] um agregado infinito de coisas reais natildeo pode considerar-se um todo

dado nem portanto dado ao mesmo tempo O mundo natildeo eacute pois infinito quanto agrave extensatildeo

no espaccedilo antes encerrado em limites []rdquo53

De modo semelhante a antiacutetese eacute provada pela refutaccedilatildeo da tese

Supondo-se que o mundo possui um iniacutecio eacute preciso admitir que houve um tempo vazio em

que natildeo existia Entretanto nada poderia surgir em um tempo vazio na medida em que natildeo se

poderia distinguir uma parte sua de outra tampouco a existecircncia de algo da natildeo existecircncia No

tocante ao espaccedilo admitindo-se que o mundo tem limites teraacute de ser suposto um vazio

ilimitado onde ele entatildeo se encontraraacute situado Nesse caso poreacutem o mundo estaria em

50

KvR A421B449 CRP p 389 (grifos do autor) 51

KvR A426B454 ndash A427B455 CRP p 392-393 52

KvR A426B454 CRP p 392 53

KvR A428B446 CRP p 394 (grifos do autor)

- 33 -

relaccedilatildeo com algo que natildeo eacute propriamente um objeto jaacute que fora dele mesmo natildeo haacute nenhum

E diz Kant ldquo[] semelhante relaccedilatildeo natildeo eacute nada e consequentemente tambeacutem eacute nada a

limitaccedilatildeo do mundo pelo espaccedilo vazio portanto o mundo natildeo eacute limitado quanto ao espaccedilo

quer dizer eacute infinito em extensatildeordquo54

Kant conclui acerca das quatro antinomias que nas duas primeiras as

contradiccedilotildees surgem porque o espaccedilo o tempo e a simplicidade satildeo pensados como coisas em

si quando satildeo na verdade conceitos com idealidade transcendental Em virtude disso o

mundo em si acabaria sendo convertido em objeto de conhecimento o que eacute impossiacutevel e

assim tanto as teses quanto as antiacuteteses seriam falsas Nas duas uacuteltimas antinomias por seu

turno as teses e as antiacuteteses seriam verdadeiras mas referentes a realidades distintas a saber

as teses aos nuacutemenos e as antiacuteteses aos fenocircmenos Como resultado Kant encontra que o

conflito de leis da razatildeo pura produz as antinomias as quais se configuram como a

formulaccedilatildeo de duas vias teoacutericas distintas que apresentam o mundo com caracteriacutesticas

excludentes mas que possui cada uma as suas justificaccedilotildees Enquanto derivadas da proacutepria

constituiccedilatildeo da razatildeo satildeo resultados naturais e natildeo podem ser extintas ou completamente

dissolvidas

O conceito de paradoxo possui uma raiz antiga (παπάδοξα) como

opiniatildeo que contraria os conhecimentos comumente aceitos como verdadeiros Do ponto de

vista informal trata-se de um argumento de vaacutelido mas cuja conclusatildeo natildeo pode ser aceita

porque implica um problema loacutegico ou de natureza empiacuterica Nas histoacuterias da loacutegica e da

filosofia verificaram-se e discutiram-se diversos tipos de paradoxos e a tiacutetulo de uma

organizaccedilatildeo miacutenima lanccedilaremos matildeo da classificaccedilatildeo feita por Da Costa55

Este teoacuterico

destaca em primeiro lugar os paradoxos loacutegico-matemaacuteticos que se relacionam com as

noccedilotildees formais da loacutegica e da matemaacutetica Um dos exemplos mais conhecidos desse tipo eacute o

ldquoparadoxo das classesrdquo apontado por Russell na loacutegica de Frege Nesse paradoxo surge um

problema com a classe de todas as classes que natildeo satildeo membros de si mesmas quando se

indaga se ela eacute ou natildeo membro de si mesma Caso a resposta seja afirmativa a classe de todas

as classes que natildeo satildeo membros de si mesmas teraacute um membro que eacute membro de si mesmo

Se a resposta for negativa a classe de todas as classes que natildeo satildeo membros de si mesmas natildeo

conteraacute a si mesma embora devesse conter pois seria uma classe que natildeo conteacutem a si mesma

Por conseguinte qualquer opccedilatildeo que se faccedila resultaraacute paradoxal

54

KvR A429B457 CRP p 395 55

DA COSTA N op cit p 225

- 34 -

O segundo tipo de paradoxos eacute o semacircntico derivado do uso da

linguagem cujo exemplo mais tiacutepico eacute o chamado ldquoparadoxo do mentirosordquo Nesse caso o

paradoxo surge da anaacutelise da proposiccedilatildeo ldquoEsta sentenccedila eacute falsardquo Por um lado se a

considerarmos verdadeira o que ela afirma eacute verdade e ela seraacute simultaneamente falsa pois

eacute isso que assevera Por outro lado se a considerarmos falsa aquilo que ela afirma natildeo eacute

verdadeiro e portanto a sentenccedila estaraacute negando sua falsidade e afirmando sua verdade Em

ambos os casos a verdade da proposiccedilatildeo ldquoEsta sentenccedila eacute falsardquo implica a proacutepria falsidade e

vice-versa O uacuteltimo grupo de paradoxos envolve conceitos e conhecimentos empiacutericos como

o conhecido ldquoparadoxo de Aquiles e a tartarugardquo formulado Zenatildeo de Eleia para negar a

realidade do movimento Nesse paradoxo estaacute envolvida a ideia de divisibilidade infinita do

espaccedilo um conceito apreensiacutevel apenas pela razatildeo sem correspondecircncia intuitiva Segundo a

formulaccedilatildeo claacutessica Aquiles e uma tartaruga apostam corrida e partem simultaneamente mas

com um metro de vantagem dado ao animal Embora Aquiles seja muito mais veloz quando

avanccedila o metro dado agrave tartaruga esta avanccedila dez centiacutemetros quando o heroacutei percorre esses

dez centiacutemetros a tartaruga corre um centiacutemetro e assim sucessivamente Por conseguinte

mesmo avanccedilando infinitamente a distacircncia entre ambos nunca seraacute igual a zero e Aquiles

jamais alcanccedilaraacute a tartaruga

De acordo com Da Costa pode-se solucionar um paradoxo de dois

modos diferentes Um deles eacute o negativo em que se prova que sua conclusatildeo eacute na verdade

uma falaacutecia formal ou material Caso se trate de uma falaacutecia formal deve-se demonstrar que o

argumento possui uma forma loacutegica invaacutelida caso se trate de uma falaacutecia material deve-se

provar que uma das premissas eacute factualmente falsa A segunda maneira positiva de se

solucionar um paradoxo eacute mostrando que sua conclusatildeo eacute realmente verdadeira Em suma

para resolver um paradoxo seria necessaacuterio reduzi-lo a falaacutecia ou justificar sua conclusatildeo

O conceito de aporia estaacute relacionado aos anteriores e se define por ser

uma dificuldade teoacuterica cuja soluccedilatildeo eacute muito trabalhosa ou impossiacutevel A forma em que

aparece pode ser a de uma antinomia ou de um paradoxo e o que a distingue eacute a exigecircncia de

grandes esforccedilos para seu desenlace ou a inexistecircncia de qualquer saiacuteda Os modos pelos

quais uma aporia poderia ser resolvida satildeo os mesmos que resolveriam um paradoxo isto eacute

sua reduccedilatildeo a falaacutecia ou a justificaccedilatildeo da sua conclusatildeo No entanto no caso especiacutefico das

aporias a resoluccedilatildeo demandaria esforccedilos teoacutericos excessivos e a revisatildeo dos princiacutepios

baacutesicos das teorias Normalmente segundo Da Costa as aporias satildeo solucionadas pela via

- 35 -

negativa mostrando-se que se tratam de falaacutecias ou que possuem uma premissa falsa para

que assim se evite uma revisatildeo completa dos fundamentos da teoria em questatildeo56

Portanto a

soluccedilatildeo positiva delas natildeo eacute tarefa faacutecil pois requer grandes mudanccedilas como a transformaccedilatildeo

completa do sistema formal em que se apoia ou a reestruturaccedilatildeo de teorias

Com base no exposto acima julgamos que a antinomia da faculdade de

conhecimento natildeo se revela uma contradiccedilatildeo um paradoxo e nem mesmo uma antinomia No

nosso entender como mostraremos a seguir trata-se mais propriamente de um tipo especial

de circulus in probando que envolve a possibilidade do conhecimento e sua relaccedilatildeo com o

tempo Na verdade a questatildeo natildeo eacute simples de ser decidida pois em termos latos o problema

poderia ser enquadrado em qualquer das noccedilotildees apresentadas mesmo com as diferenccedilas que

apontamos Todavia uma escolha deve forccedilosamente ser feita se quisermos compreender a

fundo e precisamente o problema com o qual nos ocupamos Para isso utilizaremos a

exposiccedilatildeo e a argumentaccedilatildeo anteriores como os apoios de que necessitamos para tornar nossas

opccedilotildees menos arbitraacuterias

Em primeiro lugar parece-nos que o problema da teoria do conhecimento

de Schopenhauer natildeo pode ser entendido como contradiccedilatildeo De fato o filoacutesofo escreve que ldquoa

existecircncia do mundo inteiro depende do primeiro ser cognoscenterdquo e tambeacutem que ldquoo primeiro

animal cognoscente depende de uma longa cadeia precedente de causas e efeitosrdquo57

isto eacute

subordina-se agrave existecircncia do mundo como representaccedilatildeo Quando analisamos esse problema

do ponto de vista do desrespeito agrave norma loacutegica baacutesica de que a conclusatildeo deve ser

consequecircncia das premissas isto eacute se as premissas forem verdadeiras que a conclusatildeo

tambeacutem o seja notamos que natildeo se aplica a esse caso O que temos aqui satildeo duas conclusotildees

provindas de dois lados distintos do pensamento schopenhaueriano tomado como um todo

Cada uma das conclusotildees tem suas ilaccedilotildees proacuteprias que satildeo suficientes para justificaacute-lo de

modo que natildeo se observam premissas verdadeiras levando a uma conclusatildeo falsa De modo

semelhante natildeo haacute a atribuiccedilatildeo simultacircnea ao primeiro ser cognoscente de qualidades ou

relaccedilotildees mutuamente excludentes Natildeo se afirma por exemplo que o mundo da representaccedilatildeo

depende e natildeo depende dele simultaneamente O mesmo se pode afirmar em relaccedilatildeo ao

desrespeito ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo segundo o qual um enunciado natildeo pode ser

tomado como verdadeiro e como falso a um soacute tempo e sob aspectos idecircnticos De fato

ambas as proposiccedilotildees da antinomia natildeo estatildeo em uma oposiccedilatildeo direta ou seja natildeo se pode

56

DA COSTA N op cit p 226 57

WWV I ersters buch sect7 p 65 M I Livro I sect7 p 75

- 36 -

dizer que uma eacute a negaccedilatildeo exata da outra

Uma possibilidade diferente seria a anaacutelise de cada sentenccedila da

antinomia como uma proposiccedilatildeo condicional Na primeira a existecircncia do animal

cognoscente (A) seria o antecedente do qual decorreria o consequente a existecircncia do mundo

como representaccedilatildeo (M) A rarr M Na segunda os termos estariam trocados e o mundo como

representaccedilatildeo seria o antecedente enquanto o primeiro animal seria o consequente M rarr A

Natildeo obstante a contradiccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo condicional resulta do rompimento da relaccedilatildeo

de implicaccedilatildeo entre o antecedente e o consequente isto eacute caso aconteccedila de o antecedente ser

verdadeiro e o consequente ser falso Portanto soacute poderiacuteamos falar em contradiccedilatildeo caso no

discurso schopenhaueriano estivesse afirmado ao lado das duas proposiccedilotildees da antinomia

que o animal cognoscente em algum momento existiu mas natildeo mundo como representaccedilatildeo

A ˄ notM ou inversamente que o mundo da representaccedilatildeo existe mas natildeo o animal

ognosente M ˄ notA A rigor A rarr M e M rarr A natildeo se contradizem

No nosso entender a antinomia da faculdade de conhecimento natildeo deve

tambeacutem ser enquadrada entre os paradoxos em sentido rigoroso Como jaacute expusemos

paradoxo formal eacute a derivaccedilatildeo de dois teoremas contraditoacuterios em uma teoria formalizada

mas nossa anaacutelise anterior demonstrou que os dois enunciados da antinomia natildeo estatildeo em

uma relaccedilatildeo de contraditoriedade Tomando em consideraccedilatildeo o conceito mais geral de

paradoxo talvez se pudesse afirmar que as duas conclusotildees paralelas satildeo paradoxais na

medida em que o argumento de cada uma possui premissas verdadeiras mas conclusotildees

inaceitaacuteveis quando comparadas entre si Poreacutem como estamos buscando uma precisatildeo

crescente do nosso objeto de estudo cremos que esse conceito de paradoxo eacute muito amplo a

ponto de abranger distintas classes de problemas o que natildeo nos auxilia

Aleacutem disso segundo pensamos nenhum dos tipos de paradoxos que

examinamos possui a forma da antinomia da faculdade de conhecimento Os paradoxos

loacutegicos-matemaacuteticos envolvem autocontradiccedilatildeo trazendo como consequecircncia que a atribuiccedilatildeo

de qualquer dos valores de verdade V ou F agraves proposiccedilotildees envolvidas resultaraacute sempre em

uma proposiccedilatildeo falsa Por exemplo no caso do paradoxo das classes de Russel se

respondermos afirmativamente agrave questatildeo de saber se a classe de todas as classes que satildeo natildeo

membros de si mesmas pertence a si mesma teremos uma proposiccedilatildeo falsa pois a classe de

todas classes que natildeo satildeo membros de si mesmas teraacute um membro que natildeo pertence a ela isto

eacute uma classe que eacute membro de si mesma Se respondermos negativamente a classe de todas

- 37 -

as classes que natildeo satildeo membros de si mesmas natildeo conteraacute a si mesma mas entatildeo seu caraacuteter

universal seraacute posto em xeque pois haveraacute um membro que deveria estar dentro dela e

todavia estaacute fora Nesse exemplo a resposta agrave pergunta sobre a classe de todas as classes natildeo

admite resposta verdadeira e eacute essa outra forma de conceituar a contradiccedilatildeo a saber se o

valor de verdade resultante de uma foacutermula eacute sempre falso No entanto o problema da

antinomia da faculdade de conhecer natildeo se assemelha a esse caso Se tomarmos como

verdadeira cada conclusatildeo em separado veremos que ldquoa existecircncia do mundo inteiro depende

necessariamente do primeiro ser cognoscenterdquo eacute uma proposiccedilatildeo perfeitamente consistente

consigo mesma natildeo levando a valores de verdade falsos nem implicando verdade e falsidade

simultacircneas O mesmo se pode dizer de ldquoo primeiro ser cognoscente depende de uma longa

cadeia de causas e efeitos que o precederdquo Na verdade os problemas surgem quando se

colocam ambas as sentenccedilas lado a lado

Considerando os paradoxos semacircnticos a relaccedilatildeo loacutegica estabelecida

entre as proposiccedilotildees envolvidas eacute ligeiramente diferente embora tambeacutem vejamos um tipo de

autocontradiccedilatildeo envolvida Tomando o exemplo do paradoxo do mentiroso observamos que a

verdade da proposiccedilatildeo ldquoEsta sentenccedila eacute falsardquo (S) acarreta sua proacutepria falsidade enquanto sua

falsidade acarreta a proacutepria verdade Com efeito se a proposiccedilatildeo eacute verdadeira o que ela

afirma deve ser falso e o resultado pode ser expresso assim (S)Vrarr(S)F Do mesmo modo

se o que a proposiccedilatildeo afirma eacute falso ela deve ser verdadeira (S)Frarr(S)V Mais uma vez natildeo

eacute esse o tipo de oposiccedilatildeo que se percebe na antinomia da teoria do conhecimento de

Schopenhauer Cada parte dela natildeo implica a proacutepria verdade e falsidade simultaneamente

nem mesmo a junccedilatildeo de ambas implica

No tocante aos paradoxos empiacutericos a semelhanccedila com o nosso objeto

de estudo parece ser maior pois a dificuldade loacutegica surge pela impossibilidade de se pensar

claramente a questatildeo como numa espeacutecie de interrupccedilatildeo do pensamento frente a um impasse

que envolve tambeacutem conhecimentos empiacutericos O exemplo do paradoxo de Aquiles e a

tartaruga evidencia uma necessidade decorrente do proacuteprio intelecto de continuar realizando

a divisatildeo da extensatildeo ao infinito embora a velocidade de Aquiles imponha ao pensamento a

ideia de que ele deve se sobrepor agrave divisibilidade contiacutenua do espaccedilo e ultrapassar a tartaruga

Contudo no nosso entendimento natildeo eacute exatamente isso o que comparece no nosso objeto de

estudo Realmente pensar que o mundo eacute dependente do primeiro ser cognoscente e que ao

mesmo tempo o primeiro ser cognoscente depende da existecircncia do mundo natildeo leva a um

- 38 -

impasse desse tipo eacute algo que se pode pensar ainda que somente tomando cada proposiccedilatildeo de

modo separado Os problemas surgem quando as pensamos juntas mas a possibilidade que

existe aqui de se considerar cada porccedilatildeo do problema estaacute excluiacuteda no caso dos paradoxos

empiacutericos pois eles se configuram como um todo indivisiacutevel

Sob a perspectiva do conflito de leis que eacute o conceito que adotamos para

antinomia tambeacutem natildeo se verifica algo semelhante no nosso objeto As antinomias no

sentido kantiano satildeo teses e antiacuteteses contraditoacuterias ou contraacuterias que surgem do conflito da

razatildeo pura consigo mesma Aparentemente esse seria o caso pois assim como as antinomias

kantianas as duas proposiccedilotildees conflitantes da teoria do conhecimento de Schopenhauer tecircm

cada uma sua justificaccedilatildeo loacutegica Por um lado das teses acerca do mundo tomado como

representaccedilatildeo decorre necessariamente que ele soacute pode existir com apoio no sujeito por

outro das teses que sustentam a Vontade como o em si do mundo decorre tambeacutem

necessariamente que ela se objetiva numa trajetoacuteria de refinamento ateacute chegar ao ceacuterebro

humano No entanto ambas as proposiccedilotildees natildeo estatildeo entre si na mesma relaccedilatildeo em que estatildeo

as teses e antiacuteteses das antinomias formuladas por Kant nas quais uma eacute sempre a negaccedilatildeo

expliacutecita da outra Aleacutem disso natildeo se observa um conflito propriamente entre leis da razatildeo ou

de outra coisa mas sim uma discrepacircncia entre duas formas de descrever e explicar o mundo

isto eacute entre dois discursos distintos um pelo lado da representaccedilatildeo e outro pelo lado da

Vontade As antinomias kantianas derivam da constituiccedilatildeo da razatildeo pura satildeo como ilusotildees

naturais e inevitaacuteveis A de Schopenhauer por seu turno eacute o resultado de um modo duplo de

compreender o mundo

Eacute importante ainda analisarmos a antinomia do ponto de vista do que se

entende por peticcedilatildeo de princiacutepio ou ciacuterculo vicioso pois eacute assim que ela foi entendida em

grande parte das vezes No sect 92 de Manual dos cursos de loacutegica geral Kant afirma que se

comete peticcedilatildeo de princiacutepio quando se toma por imediatamente certa uma proposiccedilatildeo que na

verdade precisa ser provada O ciacuterculo vicioso eacute ligeiramente distinto pois nele a proposiccedilatildeo

que deve ser provada eacute colocada como seu proacuteprio fundamento58

No Oacuterganon de Aristoacuteteles

encontramos uma discussatildeo mais detalhada desses conceitos Nos Analiacuteticos Anteriores esse

filoacutesofo distingue dois tipos de provas a saber as que se datildeo pela proacutepria natureza do objeto e

as que exigem o recurso a outros fatores Exemplo das primeiras satildeo os princiacutepios e das

segundas tudo o que eacute subordinado a eles Conforme Aristoacuteteles entatildeo comete-se uma

58

KANT I Manual dos cursos de loacutegica geral 2ordf ed Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e guia de leitura de Fausto

Castilho Campinas UNICAMP Uberlacircndia UFU 2003 p 269

- 39 -

peticcedilatildeo de princiacutepio quando se tenta provar por si mesma uma verdade que precisa apoiar-se

em outros dados59

Nos Toacutepicos ele resume as cinco formas em que se pode incorrer em

peticcedilatildeo de princiacutepio postulando-se aquilo mesmo que se quer demonstrar postulando-se

universalmente o que se quer provar em um caso particular postulando-se em casos

particulares o que se quer provar em geral postulando-se a conclusatildeo por partes e

postulando-se afirmaccedilotildees que se implicam mutuamente60

Em siacutentese diz Aristoacuteteles na

peticcedilatildeo de princiacutepio o que se faz eacute limitar-se a afirmar que algo eacute se eacute61

Segundo nos parece

natildeo podemos enquadrar nosso objeto de estudo em peticcedilatildeo de princiacutepio ou em ciacuterculo vicioso

pois como jaacute dissemos ele surge como consequecircncia de proposiccedilotildees situadas em partes

distintas da filosofia schopenhaueriana Por conseguinte nenhuma eacute posta como fundamento

de si mesma nem eacute provada com recurso apenas a si mesma mas cada uma delas eacute resultante

de sua argumentaccedilatildeo correspondente

Nos Analiacuteticos Posteriores Aristoacuteteles menciona um tipo de

argumentaccedilatildeo circular em que as premissas natildeo satildeo anteriores e mais conhecidas do que a

conclusatildeo como seria de se esperar62

Na sua explicaccedilatildeo o argumento eacute circular porque

Eacute impossiacutevel que as mesmas coisas sejam relativamente agraves mesmas coisas

anteriores e posteriores ao mesmo tempo a menos que estes termos se

concebam de outro modo e que digamos que uns satildeo anteriores e mais

claros para noacutes e os outros anteriores e mais claros em absoluto sendo

justamente deste modo que a induccedilatildeo gera o conhecimento63

O argumento circular natildeo eacute necessariamente vicioso Se premissas e

conclusotildees forem reciacuteprocas diz Aristoacuteteles poderatildeo ser convertidas entre si e entatildeo a

demonstraccedilatildeo seraacute possiacutevel Conforme o filoacutesofo um processo semelhante a uma geraccedilatildeo

circular pode servir para exemplificar e ilustrar esse tipo de demonstraccedilatildeo

[] quando a terra for molhada eleva-se necessariamente um vapor uma

vez produzido este vapor forma-se uma nuvem formada a nuvem produz-

se a chuva e uma vez ter chovido a terra fica necessariamente molhada Era

precisamente este o nosso ponto de partida de modo que fechamos o ciacuterculo

pois dado qualquer um destes termos outro se segue e deste um outro e

59

ARISTOacuteTELES Organon III Analiacuteticos Anteriores Traduccedilatildeo de Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees

1986 Livro II 16 64b p 214-215 60

ARISTOacuteTELES Organon V Toacutepicos Traduccedilatildeo de Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees 1987 Livro VIII

13 163a p 314-315 61

ARISTOacuteTELES Organon III Analiacuteticos Anteriores Traduccedilatildeo de Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees

1987 Livro II 16 65a p 215 62

ARISTOacuteTELES Organon IV Analiacuteticos Posteriores Traduccedilatildeo de Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees

1987 Livro I 3 72b-73a p 17 et seq 63

Ibidem Livro I 3 72b p 18-19

- 40 -

deste outro o primeiro64

Segundo pensamos a antinomia da faculdade de conhecimento65

causa

admiraccedilatildeo porque o animal cognoscente aparece em dois pontos distintos da mesma seacuterie

temporal No primeiro ele eacute o iniacutecio do mundo aquele que traz consigo pela primeira vez as

formas necessaacuterias para a construccedilatildeo de toda e qualquer representaccedilatildeo a saber o tempo o

espaccedilo e a lei de causalidade No segundo no mesmo mundo da representaccedilatildeo ele ocupa um

ponto avanccedilado em um processo temporal que vai no sentido do aperfeiccediloamento das

objetivaccedilotildees da Vontade no qual o mais complexo e perfeito eacute posterior ao mais simples e

rudimentar Por conseguinte de um lado esse animal cognoscente deve ser anterior agraves

plantas aos peixes e aos animais inferiores jaacute que seu intelecto eacute condiccedilatildeo da existecircncia

deles De outro ele eacute posterior agraves mesmas plantas peixes e animais inferiores jaacute que eacute um

animal mais perfeito e portanto ulterior no tempo

De acordo com o exposto entendemos que a antinomia da faculdade de

conhecimento forma uma imagem semelhante agravequela exposta por Aristoacuteteles na sua

exposiccedilatildeo do argumento circular A imagem construiacuteda pela antinomia como um todo eacute a de

um ciacuterculo formado pelo princiacutepio de razatildeo suficiente que tem origem no intelecto do animal

cognoscente mas que deveraacute originaacute-lo por sua vez na gradaccedilatildeo progressiva dos seres

naturais Cada proposiccedilatildeo em separado situa esse animal em um ponto distinto da mesma

linha temporal de um lado no iniacutecio do tempo que coincide com o iniacutecio do mundo como

representaccedilatildeo de outro num posto avanccedilado do desenvolvimento gradativo dos seres da

natureza o qual exige por seu turno que o tempo jaacute tenha iniciado e transcorrido ateacute ali

Portanto no exato momento em que abriu os olhos o primeiro animal cognoscente iniciou

uma sucessatildeo temporal para o futuro infinitamente Para abrir os olhos contudo precisou de

uma cadeia causal anterior que somente poderia surgir com o transcurso do tempo atributo

de seu proacuteprio intelecto Simplificadamente poderiacuteamos dizer que nesse ciacuterculo o animal

engendra o mundo e o mundo engendra o animal assim como a aacutegua da terra gera a chuva e

esta molha a terra no argumento de Aristoacuteteles Em verdade de acordo com a filosofia

schopenhaueriana a ideia de que o mundo como representaccedilatildeo tem iniacutecio com o animal

cognoscente eacute algo baacutesico um ponto paciacutefico A dificuldade maior eacute a segunda proposiccedilatildeo

porque ela perturba indiretamente a construccedilatildeo teoacuterica da Vontade e introduz nela um

64

Ibidem Livro II 96a p 142 65

Embora estejamos argumentando que o problema natildeo tem a forma de uma antinomia preservaremos esse

nome para designaacute-la pois assim foi que Schopenhauer a nomeou

- 41 -

processo temporal Quando o filoacutesofo escreve que a objetivaccedilatildeo mais simples precede a mais

complexa estaacute afirmando que a Vontade depende de alguma forma do tempo e que admite

um processo que postula a existecircncia dele antes mesmo de existir aquilo que eacute sua condiccedilatildeo

de possibilidade

14 ndash Investigaccedilatildeo acerca dos conceitos das outras questotildees presentes na filosofia de

Schopenhauer

Aleacutem da antinomia da faculdade de conhecer Schopenhauer aponta

tambeacutem as trecircs contradiccedilotildees que jaacute mencionamos acima Natildeo discutiremos a primeira sobre a

liberdade uma vez que jaacute nos dedicamos a ela em dissertaccedilatildeo de mestrado66

A segunda eacute a

existecircncia simultacircnea de mecanicismo e finalismo questatildeo cujo cerne natildeo estaacute propriamente

na possibilidade de que os fenocircmenos naturais sejam regidos ao mesmo tempo por causas

finais e causas eficientes Na verdade um primeiro problema se encontra na dificuldade de se

explicar o funcionamento dos corpos orgacircnicos por meio do princiacutepio de razatildeo suficiente que

soacute prevecirc causaccedilotildees mecacircnicas e lineares mas natildeo as finais Uma causalidade final exige a

pressuposiccedilatildeo de um conceito regulador uma ideia uma organizaccedilatildeo do corpo de si para si

algo que a lei de causalidade que implica somente accedilatildeo e reaccedilatildeo natildeo admite Um segundo

problema estaacute em que a Vontade sendo definida como um impulso cego e sem objetivo final

natildeo poderia apresentar uma finalidade nas suas objetivaccedilotildees No nosso entendimento o

embaraccedilo que daiacute se origina natildeo possui um caraacuteter loacutegico mas transparece na dificuldade de

se aplicar essas concepccedilotildees de Vontade e de causalidade agrave diversidade do mundo empiacuterico

Ao que nos parece a afirmaccedilatildeo simultacircnea de mecanicismo e finalismo natildeo resulta em

qualquer inconveniente e ambos poderiam ser inferidos do funcionamento dos mesmos seres

orgacircnicos O fato eacute que essa realidade custosamente encontraria explicaccedilatildeo na filosofia

schopenhaueriana

66

Cf SANTOS K C S O problema da liberdade na filosofia de Arthur Schopenhauer Dissertaccedilatildeo

(Mestrado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo Departamento

de Filosofia Orientador Prof Dr Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo 2010

- 42 -

A terceira contradiccedilatildeo indicada por Schopenhauer eacute a que ocorre entre a

contingecircncia aparente dos eventos que ocorrem na trajetoacuteria de vida dos indiviacuteduos e o teacutelos

que parece guiaacute-la Nesse caso a finalidade afirmada como subjacente agrave vida humana eacute ainda

mais discutiacutevel em funccedilatildeo de seu aspecto moral O que aqui se assevera eacute que o indiviacuteduo

estaria independente de seu proacuteprio conhecimento buscando os fins morais da Vontade

identificados com a negaccedilatildeo de si mesma Pareceria entatildeo que estamos realmente diante de

uma contradiccedilatildeo em sentido estrito porque a Vontade eacute apresentada simultaneamente como

sendo moral e natildeo moral Apesar disso acreditamos que essa contradiccedilatildeo eacute inofensiva em

relaccedilatildeo ao pensamento schopenhaueriano como um todo e embora o filoacutesofo discorra sobre a

moralidade do destino individual em todo um ensaio dos Parerga e paralipomena67

ele o faz

advertindo expressamente que satildeo meras especulaccedilotildees sem qualquer fundamento filosoacutefico

Em relaccedilatildeo aos paradoxos que apresentamos no item 12 pensamos que

satildeo tambeacutem objeccedilotildees de menores consequecircncias O primeiro deles atine ao que eacute ou natildeo

possiacutevel dentro dos pressupostos schopenhauerianos realizar-se mediante o discurso

filosoacutefico Com efeito Schopenhauer se propotildee descobrir o segredo mais iacutentimo do mundo

desvendar seu enigma o que soacute poderia ser feito a rigor com recurso a um conhecimento de

tipo esteacutetico ou eacutetico que natildeo seguem o princiacutepio de razatildeo suficiente O proacuteprio filoacutesofo

afirma curiosamente que ldquo[] a simples razatildeo de conhecimento permanece na superfiacutecie e

somente pode dar o conhecimento de o que algo eacute mas natildeo por que eacuterdquo68

No entanto sua

filosofia enquanto expressatildeo in abstrato do que ocorre in concreto soacute pode ser estruturada

por meio do principium sufficientis cognoscendi com o qual apenas se poderia expor

abstratamente o mundo como representaccedilatildeo mas nunca desvendar o iacutentimo da Vontade

Segundo pensamos trata-se de uma conclusatildeo assombrosa eacute verdade mas natildeo deixa de ser

meritoacuteria a tentativa de dizer o maacuteximo que se possa saber e afirmar acerca da essecircncia das

coisas Ao que nos parece natildeo se trata de uma contradiccedilatildeo nem de uma antinomia mas de

um paradoxo no sentido informal que apresentamos as premissas dos sistema satildeo aceitaacuteveis

mas natildeo essa conclusatildeo

O uacuteltimo paradoxo que discutiremos diz respeito ao conhecimento

67

Cf PP I Transzendente Spekulation uumlber die anscheinende absichtlichkeit im Schicksale des Einzelnen

Especulacioacuten transcendente sobre los visios de intencionalidade en el destino del individuo In Los designios

del destino Estudio preliminar traduccioacuten y notas de Roberto Rodriacutegues Aramayo Madrid Tecnos 1994 68

WWV I ersters buch p sect 15 115 M I Livro I sect 15 p 122 (grifos do autor)

- 43 -

possiacutevel ao sujeito a partir do seu proacuteprio interior do seu proacuteprio querer69

Como dissemos

para Schopenhauer a vontade individual daacute acesso imediato ao interior do funcionamento da

lei de causalidade possibilitando um conhecimento mais profundo dos fenocircmenos por meio

da relaccedilatildeo imediata com a Vontade Ao lado disso o filoacutesofo sustenta que os fenocircmenos que

mais manifestam esta uacuteltima satildeo os mais incompreensiacuteveis em funccedilatildeo da heterogeneidade

completa entre as causas e os efeitos que aiacute se apresenta Ao que nos parece esses fenocircmenos

em que a Vontade eacute mais evidente deveriam tambeacutem ser os mais conhecidos para noacutes posto

que nesse caso poderiacuteamos enxergar ldquoatraacutes dos bastidoresrdquo70

O que notamos nesse caso eacute a

tentativa de unir os dois modos diferentes de conhecimento pela vontade e pelo princiacutepio de

razatildeo os quais poreacutem estatildeo em descompasso Em algumas passagens Schopenhauer afirma

que mesmo sendo mais profundo o conhecimento da vontade individual eacute obscuro Poreacutem

continua a indagaccedilatildeo sobre como um conhecimento ldquopor dentrordquo da causalidade pode ser ao

mesmo tempo obscuro e o melhor Trata-se tambeacutem de um paradoxo no sentido geral que

apontamos na medida em que temos uma conclusatildeo inaceitaacutevel partindo de premissas

coerentes do sistema

Para finalizar a discussatildeo sobre este uacuteltimo ponto observaremos somente

que no texto ldquoPensamentos acerca do intelecto em geral e em todas as suas relaccedilotildeesrdquo de

Parerga e Paralipomena Schopenhauer afirma que o intelecto eacute formado originalmente para

voltar-se para fora Quando dirige a atenccedilatildeo ao seu interior para conhecer-se a si mesmo cai

em uma total obscuridade um vazio total71

Na condiccedilatildeo de sujeito do conhecimento natildeo

pode voltar-se a si mesmo e conhecer-se e ainda que pudesse natildeo encontraria nada jaacute que

esse sujeito natildeo eacute nada em si mesmo mas somente uma aparecircncia cuja forma eacute o tempo

Certamente o sujeito cognoscente pode conhecer-se como vontade poreacutem Schopenhauer

esclarece que esse conhecimento natildeo se refere a si mesmo mas a outra coisa diferente dele

que no entanto situa-se dentro A vontade por seu turno natildeo eacute capaz de autoconhecimento

pois como ele escreve no texto mencionado acima ldquo[] em si e por si eacute algo que apenas

quer e natildeo algo que conhece como tal ela natildeo conhece nada portanto tambeacutem natildeo a si

69

Natildeo nos debruccedilaremos sobre as questotildees envolvidas no conceito de mateacuteria O leitor interessado pode

conferir BRANDAtildeO E A concepccedilatildeo de mateacuteria na obra de Schopenhauer Satildeo Paulo Humanitas 2008 70

UumlV sect 43 p 173 CR sect 43 p 208 71

PPII Kap 3 sect32 p 57-58 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de

Miguel Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 32 p 240

- 44 -

mesma O conhecimento eacute uma funccedilatildeo secundaacuteria e intermediaacuteria que natildeo corresponde

imediatamente a ela o primaacuterio na sua essecircnciardquo72

15 ndash Estrutura histoacuterica da metafiacutesica de Schopenhauer o debate sobre a coisa em si

Uma das possibilidades de se abordar o pensamento schopenhaueriano

com de resto de qualquer filoacutesofo eacute analisando suas origens histoacutericas Como afirma Victor

Goldschmidt em A religiatildeo de Platatildeo haacute basicamente dois modos de se interpretar um

pensamento filosoacutefico a saber investigando seu tempo loacutegico ou seu tempo histoacuterico73

No

primeiro caso ele explica o objeto de estudo eacute sua verdade e pede-se ao filoacutesofo que ofereccedila

razotildees no segundo investigam-se suas origens e interrogam-se suas causas74

Nossa

investigaccedilatildeo seraacute feita na perspectiva do tempo loacutegico do pensamento schopenhaueriano

meacutetodo que esse autor chama de dogmaacutetico e cujo objetivo eacute compreender uma filosofia

tendo em conta a intenccedilatildeo do pensador Apesar disso natildeo seraacute inuacutetil lanccedilar um olhar sobre os

iniacutecios do filosofar de Schopenhauer considerando-se que ao buscar as motivaccedilotildees que lhe

deram origem poderemos compreender melhor a estrutura em que foi erigido isto eacute seu

tempo loacutegico Combinando ambas as perspectivas a dogmaacutetica e a geneacutetica podemos

adquirir uma visatildeo coerente do conjunto tentando colher na medida do possiacutevel os

benefiacutecios dos dois meacutetodos como expostos por Goldschmidt

Enfim o meacutetodo dogmaacutetico examinando um sistema sobre sua verdade

subtrai-o ao tempo as contradiccedilotildees que eacute levado a constatar no interior de

um sistema ou na anarquia dos sistemas sucessivos provecircm precisamente

de que todas as teses de uma doutrina e de todas as doutrinas pretendem ser

conjuntamente verdadeiras ldquoao mesmo tempordquo O meacutetodo geneacutetico pelo

contraacuterio potildee com a causalidade o tempo aleacutem disso o recurso ao tempo e

72

PPII Kap 3 sect32 p 58-59 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de

Miguel Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 32 p 241 (grifos do autor) 73

GOLDSCHMIDT Victor Tempo histoacuterico e tempo loacutegico na interpretaccedilatildeo dos sistemas filosoacuteficos In A

religiatildeo de Platatildeo Traduccedilatildeo de Ieda e Oswaldo Porchat Pereira Prefaacutecio introdutoacuterio de Oswaldo Porchat

Pereira Satildeo Paulo Difusatildeo Europeia do Livro 1963 p 139 et seq 74

Ibidem p 139

- 45 -

a uma ldquoevoluccedilatildeordquo permite-lhe precisamente explicar e dissolver essas

contradiccedilotildees75

Natildeo pretendemos poreacutem realizar uma investigaccedilatildeo exaustiva da gecircnese

do pensamento de Schopenhauer mas apenas ressaltar certos aspectos que poderatildeo ser

instrutivos para a compreensatildeo da nossa questatildeo Ensaiaremos uma investigaccedilatildeo semelhante

de certo modo ao que Thomas Kuhn descreve no texto intitulado ldquoEstrutura histoacuterica da

descoberta cientiacuteficardquo da obra A tensatildeo essencial76

Nesse texto Kuhn argumenta que toda

descoberta cientiacutefica possui uma estrutura histoacuterica que a torna possiacutevel evidenciando um

processo longo e que envolve diversas pessoas De acordo com ele se natildeo se compreende

essa estrutura interna passa-se por cima dos desenvolvimentos teacutecnicos dos conceitos e teses

implicados no advento da descoberta adquirindo-se uma visatildeo simplista da Histoacuteria Eacute

bastante interessante o fato de que Schopenhauer tambeacutem manifeste absoluta clareza sobre a

complexidade histoacuterica dos desenvolvimentos teoacutericos como se pode ler no capiacutetulo 4 de O

MundoII sobre o conhecimento a priori77

Naturalmente natildeo estamos lidando com

nenhuma descoberta cientiacutefica Mas segundo pensamos a filosofia schopenhaueriana pode

ser encarada como um sistema de pensamento cujas conexotildees sistemaacuteticas e conceituais

assim como as das descobertas cientiacuteficas dialogam com aspectos teacutecnicos da discussatildeo

filosoacutefica do seu momento histoacuterico

No caso especiacutefico do problema ao qual nos dedicamos haacute uma parte da

histoacuteria do Idealismo Alematildeo de importantes consequecircncias em relaccedilatildeo agrave escolha da

abordagem e do meacutetodo por Schopenhauer Trata-se da discussatildeo a respeito do lugar da coisa

em si na filosofia criacutetica de que participaram diversos pensadores contemporacircneos de Kant

dentre os quais F Heinrich Jacobi Karl L Reinhold Gottlob Ernst Schulze Sigismund J

Beck e Salomon Maimon Schopenhauer natildeo esteve alheio a esse debate como atestam as

menccedilotildees a esses filoacutesofos que podem ser encontradas em suas obras bem como a discussatildeo

75

Ibidem p 139-140 (grifos do autor) 76

KUHN T A tensatildeo essencial Traduccedilatildeo de Rui Pacheco e revisatildeo de Artur Mouratildeo Lisboa Ediccedilotildees 70 1989

p 209-222 77

Na observaccedilatildeo a respeito do 4ordm predicado da mateacuteria (sobre a essecircncia dela) Schopenhauer menciona a

interaccedilatildeo histoacuterica intrincada que se observa entre teorias e pensadores Aponta predecessores de algumas das

mais importantes contribuiccedilotildees de Kant agrave filosofia por exemplo Priestley teria adiantado a parte referente agrave

Dinacircmica dos Princiacutepios metafiacutesicos da ciecircncia da natureza Kaspar F Wolff teria antecipado a diferenciaccedilatildeo

entre liacutequidos e soacutelidos da mesma obra de Kant e tambeacutem as ideias de Goethe sobre a metamorfose das plantas

Maupertius teria antecedido Kant na idealidade do espaccedilo e na existecircncia meramente fenomecircnica de tudo o que

conhecemos Do mesmo modo a teoria sobre a origem do sistema planetaacuterio de Laplace teria sido antecipada em

cinquenta anos por Kant e a gravitaccedilatildeo universal tida como descobrimento de Newton teria sido exposta por

Robert Hooke agrave Sociedade Real inglesa em 1666 Schopenhauer conclui sua exposiccedilatildeo com a seguinte frase ldquoA

histoacuteria da queda de uma maccedilatilde eacute tatildeo sem fundamento quanto um conto de fadas popular e sem nenhuma

autoridaderdquo Cf WWV II Kap IV p 65-66 MII cap IV p 60-63

- 46 -

que realiza sobre a questatildeo em Fragmentos para a Histoacuteria da Filosofia78

A maneira especial

em que edifica sua metafiacutesica e sua teoria do conhecimento evidencia as marcas dessa

polecircmica tornando interessante a reconstituiccedilatildeo da trama teoacuterica em que diversos conceitos

foram sendo lapidados e que na nossa interpretaccedilatildeo contribuiu para que seu sistema fosse

edificado como foi Embora possa ser duvidoso que o filoacutesofo a tenha compreendido tal como

exporemos aqui esperamos que nossos resultados a torne ao menos plausiacutevel79

A caracterizaccedilatildeo da metafiacutesica imanente de Schopenhauer em que a

coisa em si eacute apresentada como um lado do mundo que eacute um e o mesmo mundo da

representaccedilatildeo assim como a construccedilatildeo da experiecircncia pelo princiacutepio de razatildeo suficiente satildeo

maneiras de o filoacutesofo se posicionar no debate sobre a causaccedilatildeo do fenocircmeno pelo nuacutemeno e

sobre o lugar destinado a este uacuteltimo na filosofia Como veremos Schopenhauer procura

evitar os erros que Kant teria cometido sem prescindir do conceito de coisa em si

negligenciado pelos poacutes-kantianos Como afirma Alexis Philonenko em Schopenhauer

critique de Kant a separaccedilatildeo entre coisa em si e fenocircmeno eacute vista por Schopenhauer ao

mesmo tempo como o maior meacuterito de kantiano e como uma oportunidade de fechar a porta

violentamente aos poacutes-kantianos Antes de Schopenhauer a coisa em si havia sido ignorada

e escreve Philonenko ldquoSem tecirc-los lido [os textos Kant] atentamente nesse ponto a canalha

filosoacutefica havia descartado os textos e sonhado um kantismo sem coisa em si Ele mirava

entatildeo Reinhold S Maimon enquanto escutava Bardili Schulze Kiesewetterrdquo80

Natildeo

obstante como dissemos natildeo nos debruccedilaremos extensamente sobre essa histoacuteria que na

verdade jaacute foi bastante investigada e que de qualquer modo natildeo nos caberia expor de modo

minucioso81

O contexto do debate remete a 1785 quando Friedrich Heinrich Jacobi

78

Cf PP I Fragmente zur Geschichte der Philosophie sect 13 Fragmentos para a histoacuteria da filosofia Traduccedilatildeo

apresentaccedilatildeo e notas de Maria Luacutecia Cacciola Satildeo Paulo Iluminuras 2003 sect 13 79

Em geral comentadores que buscam as origens do pensamento de Schopenhauer procuram semelhanccedilas e

derivaccedilotildees de suas teses e conceitos a partir de pensadores contemporacircneos dele como Fichte e Schelling Nosso

propoacutesito eacute totalmente diferente mas o leitor interessado poderaacute encontrar uma interessante visatildeo alternativa agrave

nossa em ZOumlLLER Guumlnter German realism the self-limitation of idealist thinking in Fichte Schelling and

Schopenhauer In AMERIKS Karl (ed) The Cambridge Companion to German Idealism Cambridge

Cambridge University Press 2006 p 200-218 Nesse texto Zoumlller apresenta a proximidade entre as filosofias de

Fichte Schelling e Schopenhauer comparando-as no tocante agraves concepccedilotildees de real e ideal racional e irracional

conhecimento e voliccedilatildeo Explora aleacutem disso o que entende serem elementos de realismo em cada um deles

mostrando o que pode ser pensado como uma genealogia do pensamento de Schopenhauer 80

PHILONENKO A Schopenhauer critique de Kant Paris Les Belles Lettres 2005 p 250 (traduccedilatildeo nossa) 81

Uma histoacuteria pormenorizada pode ser encontrada em BONACCINI Juan Adolfo Kant e o problema da coisa

em si no Idealismo Alematildeo sua atualidade e relevacircncia para compreensatildeo do problema da Filosofia Rio de

Janeiro Relume Dumaraacute Natal UFRN Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia 2003

- 47 -

iniciou uma polecircmica que ficou conhecida como a ldquoquerela do panteiacutesmordquo

(Pantheismusstreit) e com ela um movimento que daria origem ao Idealismo Alematildeo o

chamado Spinoza-Renaissance A obra Sobre a doutrina de Espinosa em cartas o senhor

Moses Mendelssohn provocou uma disputa sobre Lessing morto em 1781 a quem Jacobi

acusou de espinozista o que significava entatildeo ser panteiacutesta e ateu Mendelssohn e outros

defendendo Lessing e o Iluminismo que ele representava fizeram frente a Jacobi e pediram a

intervenccedilatildeo de Kant Poreacutem ao entrar no debate depois de muita insistecircncia Kant posicionou-

se tanto contra Mendelssohn que lhe parecia um racionalista acriacutetico quanto contra Jacobi

cujas ideias lhe pareciam apenas fantasias82

Como se sabe a resposta kantiana se deu com o

texto O que quer dizer orientar-se no pensamento publicado na Berlinische Monatsschrift

em 1786 Para Jacobi no entanto a defesa que Kant elaborou significou o lanccedilamento de uma

nova questatildeo83

Em ldquoSobre o idealismo transcendentalrdquo escrito como apecircndice da obra

David Hume e a crenccedila idealismo e realismo Jacobi apresenta a emblemaacutetica aporia da coisa

em si notada por ele no sistema kantiano a qual orientou toda a discussatildeo Conforme Ernst

Cassirer Jacobi ldquo[] propotildee com brilhante sagacidade novos problemas e capta dificuldades

destinadas a determinar por muito tempo a forma da filosofia []rdquo84

No apecircndice

mencionado Jacobi expotildee o problema que nota na argumentaccedilatildeo kantiana citando lado a

lado passagens da esteacutetica transcendental e da criacutetica ao quarto paralogismo da razatildeo pura

sobre a idealidade Um esclarecimento adicional nesse ponto eacute interessante De acordo com

Paul Franks Jacobi lecirc a filosofia kantiana com uma motivaccedilatildeo e uma perspectiva particulares

a saber um fasciacutenio pela consideraccedilatildeo de seacuteries de condiccedilotildees infinitas85

Tanto a ideia de que

uma seacuterie pudesse ser infinita quanto a de que pudesse ser suprimida eram para ele fonte de

uma perplexidade que pode explicar muito de sua argumentaccedilatildeo Como escreve Franks

Jacobi procurava um ponto de vista estaacutevel como se sua proacutepria vida

dependesse disso Por isso a paacutegina do tiacutetulo de seu livro sobre Espinoza

trazia o lema ldquoδορ microοι πος ζηοrdquo (ldquoDecirc-me um ponto de apoiordquo) Eu suspeito

que ele tenha sido fortemente atraiacutedo pela ideia racionalista de

inteligibilidade infinita de uma serie finita que termina na causa sui Mas

ele comeccedilou a acreditar que essa ideia natildeo valia nada Desde que natildeo pocircde

viver com nenhuma das outras opccedilotildees sua soluccedilatildeo radical foi abandonar a

proacutepria ideia de razatildeo como condiccedilotildees explicativas e de razatildeo humana como

82

BECKENCAMP J Entre Kant e Hegel Porto Alegre EDUPUCRS 2004 p 13 83

Ibidem p 19 84

CASSIRER E op cit p 32 85

FRANKS P All or nothing systematicity and nihilism in Jacobi Reinhold and Maimon In AMERIKS Karl

(ed) The Cambridge Companion to German Idealism Cambridge Cambridge University Press 2006 p 97

- 48 -

a capacidade de compreender por que as coisas existem e satildeo como satildeo86

As passagens que Jacobi seleciona da criacutetica ao quarto paralogismo

expotildeem o pensamento de Kant acerca da possibilidade de harmonizaccedilatildeo numa perspectiva

dualista do idealismo transcendental com o realismo empiacuterico87

Nos fragmentos citados por

Jacobi Kant escreve que sem ir aleacutem da consciecircncia de si mesmo o idealismo transcendental

permite a admissatildeo da existecircncia da mateacuteria pois sendo esta uma representaccedilatildeo exterior

trata-se de mero fenocircmeno Jacobi ressalta o trecho em que Kant afirma ser a mateacuteria uma

intuiccedilatildeo chamada exterior apenas porque se refere ao espaccedilo que eacute a forma da sensibilidade

externa e natildeo porque os objetos mesmos sejam exteriores uma vez que o proacuteprio espaccedilo eacute

interno ao sujeito Na sequecircncia dos textos citados por Jacobi Kant argumenta acerca da

impossibilidade de se conhecer o objeto transcendental referente aos fenocircmenos O uacutenico que

se poderia fazer diz Kant nessas passagens seria admitir que a causa dos fenocircmenos estivesse

fora do sujeito o que natildeo permitiria poreacutem afirmar que essa exterioridade remetesse a um

objeto do tipo dos fiacutesicos pois a realidade destes se funda na consciecircncia imediata ou seja

natildeo eacute transcendente88

Kant reconhece a ambiguidade em se falar de algo ldquofora de noacutesrdquo jaacute que a

expressatildeo serve para designar tanto uma coisa em si como um fenocircmeno exterior preferindo

entatildeo para indicar este uacuteltimo denominaacute-lo ldquocoisa no espaccedilordquo89

Assim ficaria mais claro que

o acircmbito que estaacute sendo referido eacute o da representaccedilatildeo e que a possibilidade de se ter

consciecircncia imediata dos objetos representados se refere a objetos no espaccedilo que satildeo eles

proacuteprios somente representaccedilotildees e contecircm apenas o que neles eacute representado Determinaccedilotildees

semelhantes poreacutem natildeo poderiam ser feitas em relaccedilatildeo ao objeto transcendental nem ao

sujeito cognoscente uma vez que ambos remeteriam a um fundamento desconhecido natildeo

podendo ser chamados portanto nem de mateacuteria nem de ser pensante

No tocante agrave esteacutetica transcendental Jacobi cita passagens em que Kant

se refere agrave idealidade transcendental do tempo A argumentaccedilatildeo kantiana sobre esse ponto

mostra que a realidade do tempo natildeo deriva das alteraccedilotildees que percebemos nos objetos

empiacutericos o que faria parecer que de algum modo ela adveacutem de fora Na verdade essa

86

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 87

JACOBI F H Excertos de Uumlber den transzendentalen Idealismus Traduccedilatildeo de Leopoldina Almeida In GIL

Fernando (coord) Recepccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant (1786-1844) Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1992 p 102-103 88

Ibidem p 102 89

Ibidem p 103

- 49 -

realidade proveacutem de o tempo ser a forma real da intuiccedilatildeo interna tendo portanto uma

realidade subjetiva90

A representaccedilatildeo do tempo entatildeo deve ser tomada como modo de se

representar o sujeito enquanto objeto e essa eacute sua realidade A visatildeo habitual a respeito do

tempo toma as alteraccedilotildees dos objetos empiacutericos como manifestaccedilotildees da realidade dele mas

diz Kant sem a sucessatildeo que ele significa as proacuteprias alteraccedilotildees desapareceriam Os objetos

tomados por reais desse modo seriam determinaccedilotildees internas ao sujeito e natildeo possuiriam de

fato existecircncia em si seriam como um jogo de representaccedilotildees91

Da mesma maneira as leis

a ordem e a regularidade percebidas nos fenocircmenos da natureza seriam determinaccedilotildees

advindas do sujeito a priori natildeo sendo entatildeo reais no sentido comum A proacutepria experiecircncia

seria forjada desse modo e o entendimento seria a faculdade agrave qual cabe a legislaccedilatildeo da

natureza

A partir dos fragmentos que cita Jacobi conclui haver uma

incompatibilidade entre as afirmaccedilotildees de que os objetos causam impressotildees nos sentidos

provocando sensaccedilotildees e originando as representaccedilotildees e de que do objeto transcendental nada

se sabe Para ele os objetos que causam as impressotildees natildeo podem ser os empiacutericos que natildeo

se estendem aleacutem da representaccedilatildeo e ao mesmo tempo do objeto transcendental nada se

pode a rigor dizer O fenocircmeno escreve Jacobi ldquo[] natildeo pode estabelecer relaccedilatildeo alguma

entre essas tais representaccedilotildees e qualquer objetordquo92

No entanto ele continua mesmo sendo

estranho afirmar no acircmbito da filosofia kantiana que os objetos transcendentais

impressionam os sentidos e provocam representaccedilotildees essa pressuposiccedilatildeo eacute fundamental para

a doutrina Pois ele afirma

[] a palavra sensibilidade fica privada de todo e qualquer significado se natildeo

se entender por ela um meio distinto e real entre o real e o real um meio

efectivo de alguma coisa para alguma coisa e se no seu conceito natildeo

estiverem contidos os conceitos de estar separado e estar conectado de ser

ativo e ser passivo de causalidade e dependecircncia como determinaccedilotildees reais

e objectivas []93

Por conseguinte a admissatildeo de um objeto que natildeo seja meramente

fenocircmeno a agir sobre os sentidos eacute absolutamente necessaacuteria para que as representaccedilotildees e os

conceitos tenham validade objetiva isto eacute para que natildeo sejam pura e simplesmente jogo de

representaccedilotildees No entanto como o acesso agrave coisa em si eacute fechado pelo pensamento kantiano

90

Ibidem p 104 91

Ibidem p 105 92

Ibidem p 106 93

Ibidem p 106 (grifos do autor)

- 50 -

dela natildeo se poderia dizer nem mesmo que estaacute pressuposta Daiacute a ceacutelebre sentenccedila de Jacobi

ldquo[] eu ficava continuamente perplexo porque natildeo podia penetrar no sistema sem aquele

pressuposto e com ele natildeo podia aiacute permanecerrdquo94

Na formulaccedilatildeo de Cassirer

Ao longo de toda a Criacutetica da razatildeo pura percebe-se esse dualismo entre

pressupostos realistas e idealistas entre suas premissas objetivo-metafiacutesicas

e metodoloacutegico-conceituais Natildeo se pode prescindir de nenhuma delas na

construccedilatildeo do mundo especulativo kantiano embora cada uma delas se

encontre diretamente em oposiccedilatildeo agrave outra95

Mesmo se admitirmos uma causa transcendental dos fenocircmenos diz

Jacobi natildeo haveraacute como saber onde ela se situa nem sua relaccedilatildeo com o efeito Aleacutem disso ele

prossegue aquilo que daacute a forma agrave representaccedilatildeo que daacute a ela feiccedilatildeo de objeto estaacute fundado

em uma espontaneidade que ao fim eacute ancorada em uma faculdade desconhecida a saber

uma ldquo[] faculdade cega de estabelecer conexotildees progressivas e regressivas a que chamamos

imaginaccedilatildeordquo96

No fim de contas todo e qualquer conhecimento seria reduzido agrave consciecircncia

das representaccedilotildees das ligaccedilotildees de conceitos e de princiacutepios gerais que constituem o proacuteprio

sujeito A validade dessas determinaccedilotildees eacute entatildeo meramente relativa dada apenas pela sua

conexatildeo em uma consciecircncia transcendental No entanto Jacobi pergunta ldquo[] como eacute

possiacutevel combinar o pressuposto de objetos que causam impressotildees nos nossos sentidos

suscitando desse modo representaccedilotildees com uma doutrina que pretende anular todas as bases

em que se apoia este pressupostordquo97

No segundo prefaacutecio ao seu diaacutelogo David Hume e a crenccedila idealismo e

realismo escrito trinta anos depois da primeira ediccedilatildeo de 1797 Jacobi apresenta o problema

em outra perspectiva bastante interessante Nesse texto ele discorre a respeito da distinccedilatildeo

entre razatildeo e entendimento que teria sido feita de modo errocircneo e ambiacuteguo inclusive por ele

mesmo98

Jacobi argumenta que uma distinccedilatildeo rigorosa entre entendimento e razatildeo estaacute

pressuposta na separaccedilatildeo radical entre ser humano e animal a qual natildeo seria uma diferenccedila

meramente de graus mas de natureza O animal mesmo o mais inteligente possuiria somente

entendimento e natildeo perceberia nada aleacutem do sensiacutevel enquanto o ser humano em funccedilatildeo da

94

Ibidem p 107 (grifos do autor) 95

CASSIRER E op cit p44-45 96

JACOBI F H Excertos de Uumlber den transzendentalen Idealismus Traduccedilatildeo de Leopoldina Almeida In GIL

Fernando (coord) Recepccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant (1786-1844) Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1992 p 108 97

Ibidem loc cit 98

JACOBI F H David Hume et la croyance ideacutealisme et reacutealisme Dialogue Introduit traduit et annoteacute par

Louis Guillermit Paris Librarie Philosophique J Vrin 2000 p 127

- 51 -

razatildeo teria a possibilidade de conhecer o suprassensiacutevel O ponto central da visatildeo de Jacobi e

ao mesmo tempo o nuacutecleo de sua criacutetica agrave filosofia kantiana eacute que se a razatildeo apoiar-se

somente no sensiacutevel como sua pedra de toque acabaraacute por se tornar uma faculdade que

produz meras ficccedilotildees Para ele Kant apenas deu continuidade agrave tradiccedilatildeo de Aristoacuteteles cuja

influecircncia determinou que a razatildeo fosse entendida como uma faculdade de geraccedilatildeo de

conceitos e abstraccedilatildeo e nessa condiccedilatildeo fosse subordinada ao entendimento Entatildeo o

conhecimento imediato teria sido submetido ao mediato a percepccedilatildeo agrave reflexatildeo na verdade

ldquoo modelo agrave coacutepia o ser agrave palavrardquo99

Kant diz Jacobi inverteu as posiccedilotildees de razatildeo e

entendimento e permitiu a conclusatildeo de que passando por entre a sensibilidade e elevando-se

acima dela nunca se poderia alcanccedilar o suprassensiacutevel com a razatildeo ou com outra faculdade

qualquer

Natildeo obstante o caminho para se alcanccedilar o suprassensiacutevel existiria e

seria completamente diferente Como afirma Victor Delbos em De Kant aux postkantiens

ldquoJacobi sustenta que noacutes podemos atingir a realidade do mundo exterior como a dos objetos

suprassensiacuteveis mas pelo sentimento a intuiccedilatildeo ou a feacute de qualquer modo por uma

faculdade que natildeo se reporte ao entendimento loacutegicordquo100

No mesmo sentido Cassirer escreve

que ldquoA explicaccedilatildeo soacute eacute para ele um meio um caminho ateacute uma meta o fim proacuteximo mas

nunca o fim uacuteltimo Seu fim uacuteltimo eacute o que natildeo se pode explicar o indissoluacutevel o imediato o

simplesrdquo101

Jacobi admite que esse fim uacuteltimo possa ser alcanccedilado nas accedilotildees tal como

fundamentado na Criacutetica da Razatildeo Praacutetica isto eacute que somente no acircmbito praacutetico eacute que a

razatildeo poderia ultrapassar o entendimento e alcanccedilar o suprassensiacutevel Do ponto de vista da

razatildeo teoacuterica poreacutem Kant estabeleceu que o suprassensiacutevel natildeo pode ser alcanccedilado a partir

do sensiacutevel ao qual unicamente o intelecto se dirige

Todavia no entender de Jacobi com o mesmo procedimento que se

garantia isso eliminava-se a possibilidade de todo e qualquer conhecimento A depuraccedilatildeo

extrema da sensibilidade teria levado a uma dissoluccedilatildeo completa de toda possibilidade de

conhecer na medida em que ela deixava de ser faculdade de uma verdadeira percepccedilatildeo Com

isso o que os sentidos apresentam deixa de ser visto como verdadeiro e ateacute mesmo a mateacuteria

torna-se simples representaccedilatildeo e fenocircmeno Portanto escreve Jacobi ldquo[] o idealismo

99

Ibidem p 128 (traduccedilatildeo nossa) 100

DELBOS V De kant aux postkantiens Introduction par Alexis Philonenko Preface de Maurice Blondel

Paris Aubier 1992 p 141 (traduccedilatildeo nossa) 101

CASSIRER E op cit p 33

- 52 -

transcendental ou criticismo kantiano que devia comeccedilar tornando possiacutevel a verdadeira

ciecircncia deixa ao contraacuterio a ciecircncia se perder na ciecircncia o entendimento no entendimento

todo conhecimento sem exceccedilatildeo num abismo universal[]rdquo102

Partindo do sensiacutevel e sem

deixar espaccedilo a uma faculdade superior a essa esfera o que se consegue eacute apenas girar em

falso sobre o que pode ser objeto de intuiccedilatildeo sem nunca escapar ao ciacuterculo fechado da

experiecircncia Mais do que isso ao fim e ao cabo mesmo a ciecircncia empiacuterica se perderia jaacute que

o objeto conhecido natildeo poderia ser atrelado a nada que natildeo fosse o proacuteprio sujeito Em

resumo na exposiccedilatildeo de Cassirer

ldquoDeduzimosrdquo conclusotildees de suas premissas passamos de um elo a outro na

cadeia das deduccedilotildees para a frente e para traacutes avanccedilando ou retrocedendo ao

infinito sem que toda essa cadeia nos subtraia do vazio sobre o qual se

prende Por esse caminho das deduccedilotildees e conclusotildees natildeo chegaremos

jamais a um ponto originaacuterio sobre o qual possamos afirmar solidamente a

raiz de nosso conhecimento Assim pois ou nos vemos obrigados a negar

totalmente o postulado dessa proveniecircncia ou temos de buscar outro

caminho para dar-lhe realizaccedilatildeo descobrindo outro oacutergatildeo espiritual por meio

do qual possamos verdadeiramente alcanccedilar este objetivo103

O amigo e disciacutepulo de Kant Karl L Reinhold influenciou esse debate

embora de modo indireto Julgando estar oferecendo contribuiccedilotildees agrave filosofia criacutetica acabou

por evidenciar uma lacuna dela ao procurar uma saiacuteda para a ausecircncia de uma fundaccedilatildeo

soacutelida na teoria do conhecimento kantiana Cassirer informa a esse respeito que dentre os

primeiros partidaacuterios de Kant Reinhold figurava como o melhor inteacuterprete de suas ideias e

como aquele que havia oferecido autecircntica soluccedilatildeo aos problemas postos pela Criacutetica da

Razatildeo Pura104

Natildeo obstante ele forneceu ainda mais razotildees para que fossem apontadas as

falhas e o dualismo da filosofia kantiana Nesse sentido afirma Paul Franks

Reinhold tornou-se kantiano para responder agrave necessidade levantada por

Jacobi de um uacutenico ponto de vista estaacutevel que conectasse adequadamente

razatildeo e feacute Mas ele tambeacutem foi convencido por Jacobi de que tal ponto de

vista deveria ter o monismo sistemaacutetico do espinozismo E isso levou

Reinhold involuntariamente a minar o dualismo kantiano por meio do

proacuteprio procedimento que desenvolveu para defendecirc-lo105

Reinhold encontra na noccedilatildeo de representaccedilatildeo o fundamento que busca e

no tocante agrave coisa em si entende que embora tenha de estar pressuposta eacute desnecessaacuterio

102

JACOBI F H David Hume et la croyance ideacutealisme et reacutealisme Dialogue Introduit traduit et annoteacute par

Louis Guillermit Paris Librarie Philosophique J Vrin 2000 p 131 (traduccedilatildeo nossa) 103

CASSIRER E op cit p 33 (grifos do autor) 104

Ibidem p 50-51 105

FRANKS P op cit p 102 (traduccedilatildeo nossa)

- 53 -

discorrer sobre ela para embasar uma teoria da faculdade representativa Como explica

Delbos ldquoSem duacutevida ele evita dizer que as coisas em si nos afetam que elas fornecem a

mateacuteria de nossas sensaccedilotildees contudo da natureza da representaccedilatildeo ele tenta deduzir tanto a

impossibilidade de que as coisas em si sejam representadas quanto a necessidade de sua

existecircnciardquo106

A representaccedilatildeo diz Reinhold eacute distinta tanto do sujeito representante quanto

do objeto representado e eacute somente a ela que a teoria deve se ater ou nas palavras de

Cassirer ldquoO que se trata de indagar natildeo satildeo os fundamentos fiacutesicos ou metafiacutesicos dos

conteuacutedos aniacutemicos mas o que sejam esses conteuacutedos e as ordenaccedilotildees constantes em que se

enquadremrdquo107

Na concepccedilatildeo de Reinhold haacute uma diferenccedila inexpugnaacutevel entre o objeto

da representaccedilatildeo e a pura e simples representaccedilatildeo108

No seu entender esse era um ponto

paciacutefico da discussatildeo pois tanto os idealistas quanto os ceacuteticos estariam de acordo no tocante

agrave distinccedilatildeo entre a mera representaccedilatildeo o ser representante e o objeto representado Para ele

esse poderia ser o ponto inicial da investigaccedilatildeo com o que se tornaria inoacutecuo entrar no debate

acerca do que satildeo e de como existem os objetos fora do sujeito Entatildeo ele afirma ldquo[] como

eu quero simplesmente conhecer a diferenccedila que se admitiu acontecer na proacutepria consciecircncia

sem me meter com o seu fundamento situado fora da consciecircncia natildeo entro em conflito com

nenhum partido acerca do nome que a cada um lhe apetecer dar-lherdquo109

Do mesmo modo a

investigaccedilatildeo que busca encontrar a natureza e a estrutura da consciecircncia natildeo precisaria passar

pela alma mas somente pelas condiccedilotildees internas de possibilidade da representaccedilatildeo Como

escreve Cassirer ldquo[] Reinhold distingue agora a determinaccedilatildeo da funccedilatildeo do conhecimento

enquanto tal do problema da substacircncia a que esta funccedilatildeo pode ser inerente e dos objetos

externos que devem se acrescentar a ela para pocirc-la em atividaderdquo110

Seguindo essa linha de raciociacutenio Reinhold argumenta que a coisa em si

eacute absolutamente irrepresentaacutevel Mais que isso seria contraditoacuterio representaacute-la pois

equivaleria agrave representaccedilatildeo de um objeto sem as uacutenicas formas em que isso poderia se dar

Para ele a mateacuteria da representaccedilatildeo e sua forma jamais podem apresentar-se agrave consciecircncia

106

DELBOS V op cit p 144 (traduccedilatildeo nossa) 107

CASSIRER E op cit p 51 (grifos do autor) 108

REINHOLD K L Excertos de Briefe uumlber die kantische Philosophie e de Versuch einer neuen Theorie des

menschlichen Vorstellungsvermoumlgen Traduccedilatildeo de Irene Borges Duarte In GIL Fernando (coord) Recepccedilatildeo

da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant (1786-1844) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 1992 sect VII p 180 109

Ibidem loc cit (grifos do autor) 110

CASSIRER op cit p 55

- 54 -

isoladamente pois a separaccedilatildeo de mateacuteria e forma aniquilaria a proacutepria representaccedilatildeo111

O

objeto tomado como distinto da representaccedilatildeo somente pode surgir nesta como algo

representado isto eacute na forma dada por ela Portanto ele natildeo poderia aparecer-nos como coisa

em si isto eacute ldquo[] sob a forma que lhe correspondesse independentemente de toda a

representaccedilatildeo que seria indicada pela mera mateacuteria da representaccedilatildeo e que seria

necessariamente diferente da forma da representaccedilatildeordquo112

A mateacuteria da representaccedilatildeo seria

distinta tanto da proacutepria representaccedilatildeo quanto do objeto resumindo-se agraves modificaccedilotildees da

faculdade representativa as quais seriam determinadas de algum modo pelo objeto sem no

entanto confundirem-se com ele113

Na explicaccedilatildeo de Cassirer

O ser dado da mateacuteria natildeo significa senatildeo uma coisa a saber que sua

natureza especiacutefica natildeo pode se derivar das puras leis formais do

conhecimento o modo como se daacute isto eacute o processo mediante o qual o

dado se cria traz consigo pelo contraacuterio a ideia de uma causa transcendente

que eacute a que ldquodaacuterdquo algo ideia que necessariamente se deve descartar desde

logo laacute onde se trata simplesmente de definir as condiccedilotildees ldquointerioresrdquo da

representaccedilatildeo114

Por conseguinte a coisa em si soacute seria representaacutevel com a exclusatildeo da

forma da representaccedilatildeo o que eacute inconcebiacutevel Apesar disso para Reinhold o conceito

intelectual de coisa em si natildeo pode ser simplesmente eliminado mas tem de permanecer como

conceito de um objeto em geral um ente loacutegico ainda que natildeo dotado de realidade115

De

acordo com isso natildeo se poderaacute pensaacute-la como algo individualizado e realmente existente

pois desse modo seraacute transformada em representaccedilatildeo No entanto diz Reinhold a coisa em si

tambeacutem natildeo pode ser negada sendo ela o proacuteprio objeto naquilo que natildeo pode ser

representado o fundamento exterior da mateacuteria da representaccedilatildeo Da coisa em si pode-se

dizer que natildeo eacute representaacutevel natildeo adicionando a ela nenhum predicado positivo mas tambeacutem

que eacute indispensaacutevel agrave representaccedilatildeo jaacute que sem ela natildeo haveria a mateacuteria tatildeo necessaacuteria

quanto a forma Assim a coisa em si natildeo seria um ente real mas o conceito mais abstrato de

algo que natildeo pode ser representado um sujeito sem predicados Reinhold entatildeo extrai o

seguinte axioma ldquoAquilo que natildeo possa ser representado sob a forma da representaccedilatildeo eacute

111

REINHOLD op cit sect XVII p 191 112

Ibidem p 192 113

Reinhold ilustra este ponto do seguinte modo ldquoQuem quiser ter uma imagem intuitiva da diferenccedila entre

mateacuteria e objeto de uma representaccedilatildeo pense numa aacutervore a uma distacircncia que torne impossiacutevel divisar qual a

sua espeacutecie forma e tamanho assim como as suas qualidades mais proacuteximas Aproxime-se entatildeo pouco a

pouco da aacutervore nessa mesma proporccedilatildeo a sua representaccedilatildeo iraacute adquirindo mais e mais mateacuteria A mateacuteria da

sua representaccedilatildeo ir-se-aacute modificando aumentando enquanto que o objeto em si permaneceraacute sempre o mesmordquo

Ibidem sect VX p 183 (grifos do autor) 114

CASSIRER op cit p 68 (grifos do autor) 115

REINHOLD op cit sect XVII p 193

- 55 -

absolutamente irrepresentaacutevelrdquo116

O princiacutepio da consciecircncia definido como a conexatildeo de

elementos distintos na unidade de um intelecto seraacute o alicerce uacuteltimo da filosofia elementar

de Reinhold que natildeo poderia ser suprido por nenhuma coisa em si Por meio desse princiacutepio

a representaccedilatildeo eacute deduzida da consciecircncia que eacute diz Cassirer ldquo[] o fundamento da filosofia

elementar fundamento que natildeo pode sem incorrer em um ciacuterculo vicioso apoiar-se por sua

vez em nenhum outro princiacutepio filosoficamente demonstraacutevelrdquo117

Gottlob E Schulze tambeacutem acrescentou ideias importantes ao debate Em

seu texto Aenesidemus oder uumlber die Fundamente der von dem Hrn Prof Reinhold in Jena

gelieferten Elementar-philosophie publicado em 1792 ele critica a obra de Reinhold em uma

perspectiva ceacutetica visando atingir a filosofia de Kant No fim de contas como mostra

Cassirer o ceticismo de Schulze e o pensamento de Reinhold movem-se no mesmo terreno a

saber o de encontrar o primeiro princiacutepio evidente da filosofia e que com base nos seus

proacuteprios fundamentos a criacutetica kantiana deveria fornecer118

Schulze insiste no erro que

significa pressupor a coisa em si como fundamento dos fenocircmenos o que implicaria utilizar a

causalidade para aleacutem da experiecircncia isto eacute indevidamente Com Schulze o impasse jaacute

apontado por Jacobi fica ainda mais claro e evidente a coisa em si teria necessariamente de

estar pressuposta mas ao mesmo tempo natildeo se poderia afirmar absolutamente nada sobre

ela como por exemplo que existisse que causasse os fenocircmenos e nem mesmo isto a saber

que estivesse realmente pressuposta Permanece entatildeo de fundo e difusamente a questatildeo de

saber em que se apoiaraacute a aparecircncia fenomecircnica sem algo que seja de algum modo sua

fundaccedilatildeo Nesse sentido Schulze escreve em sua obra Kritik der theoretischen Philosophie

Se por conseguinte o que a criacutetica da razatildeo alega saber acerca dos

fundamentos da experiecircncia eacute um conhecimento real teraacute de reputar como

absolutamente falsa sua afirmaccedilatildeo de que toda visatildeo verdadeira de nosso

espiacuterito se circunscreve simplesmente aos objetos da experiecircncia Ao

contraacuterio se essa afirmaccedilatildeo fosse exata toda visatildeo das fontes da experiecircncia

como um todo teria de ser considerada como uma vazia aparecircncia119

No Aenesidemus Schulze descreve de modo claro e expliacutecito o embaraccedilo

que surge na filosofia criacutetica em funccedilatildeo da afirmaccedilatildeo de que a coisa em si tem de estar

necessariamente pressuposta na base de todo fenocircmeno e simultaneamente que os

conhecimentos possiacuteveis agrave sensibilidade ao entendimento e agrave razatildeo referem-se somente agrave

116

Ibidem p 195 (grifos do autor) 117

CASSIRER op cit p 61(grifos do autor) 118

CASSIRER op cit p 81 119

Apud CASSIRER op cit p 89

- 56 -

experiecircncia Para ele se for realmente assim deve-se concluir que todo conhecimento eacute

apenas aparecircncia para aleacutem da qual absolutamente nada se pode afirmar120

Nesse caso

resume Cassirer ldquoO resultado da Criacutetica da razatildeo pura consiste em que soacute podemos chegar a

um conhecimento seguro e necessaacuterio dos objetos da experiecircncia e que bdquotodo conhecimento

das coisas baseado no simples e puro entendimento ou na razatildeo pura eacute mera aparecircncia‟rdquo121

No entanto conforme Schulze a conclusatildeo de Kant eacute contraacuteria a isso pois este natildeo admite

que as representaccedilotildees sejam vazias e as apresenta como a uniatildeo da mateacuteria que seria externa

com a forma interna ao sujeito Assim as intuiccedilotildees natildeo seriam vistas como mera aparecircncia

por Kant e a existecircncia de objetos externos que afetam os sentidos seria aquilo que garantiria

o realismo empiacuterico ao lado do idealismo transcendental Nas palavras de Schulze

Embora pois a criacutetica da razatildeo afirme que todas as propriedades que

constituem a intuiccedilatildeo de um corpo apenas pertencem ao seu fenocircmeno natildeo

pretende com isso ter transformado o conhecimento sensorial em pura

aparecircncia ou ter anulado em absoluto o conhecimento da realidade

objectiva de certos objetos exteriores a noacutes antes deriva o que haacute de

acidental e mutaacutevel no nosso conhecimento da influecircncia destes objetos

sobre a alma humana122

A investigaccedilatildeo transcendental teria entatildeo de encontrar um fundamento

para a experiecircncia que natildeo fosse ele mesmo objeto de experiecircncia123

Embora Kant inicie a

Criacutetica da razatildeo pura afirmando que todo conhecimento comeccedila com objetos que afetam os

sentidos no desenvolvimento do seu pensamento ele tornaria essa afecccedilatildeo impossiacutevel Na

interpretaccedilatildeo de Delbos isso para Schulze significa que ldquoEm consequecircncia a proposiccedilatildeo

inicial da Criacutetica resulta desmentida pela Criacutetica mesmardquo124

Segundo Schulze Kant parte no

entanto da certeza da existecircncia de coisas em si que afetam os sentidos fundamentando com

ela os limites da faculdade de conhecer Soacute assim eacute que teria podido explicar e tornar

compreensiacutevel a origem dos objetos da experiecircncia e ao mesmo tempo demonstrar a

necessidade de uma fonte interna das representaccedilotildees distinta daquela fonte externa Na

concepccedilatildeo de Schulze resultam daiacute uma peticcedilatildeo de princiacutepio e uma anulaccedilatildeo de resultados

A proacutepria criacutetica da razatildeo avanccedila a proposiccedilatildeo todo o conhecimento

humano comeccedila com a influecircncia de objectos objectivamente existentes

sobre os nossos sentidos e estes objectos proporcionam o primeiro ensejo

120

SCHULZE G E Excerto de Aenesidemus Traduccedilatildeo de Sara Seruya In GIL Fernando (coord) Recepccedilatildeo

da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant (1786-1844) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 1992 p 259-260 121

CASSIRER E op cit p 88 (grifos do autor) 122

SCHULZE GE p 261 (grifos do autor) 123

CASSIRER E op cit p 88 124

DELBOS op cit p 147 (traduccedilatildeo nossa)

- 57 -

para que nosso acircnimo se manifeste natildeo soacute sem qualquer prova e como

proposiccedilatildeo em si totalmente assente e incontestavelmente certa e refutando

portanto os fantasmas do cepticismo e do idealismo atraveacutes de uma

proposiccedilatildeo aceite a modo de peticcedilatildeo cuja verdade ambos negavam mas

tambeacutem os seus proacuteprios resultados anulam completamente a verdade dessa

proposiccedilatildeo admitia a modo de peticcedilatildeo125

Schulze critica ainda a aplicaccedilatildeo do conceito de causalidade agraves coisas em

si como um uso indevido de um conceito puro Os objetos fora do sujeito teriam de ser

capazes de agir sobre ele isto eacute possuir causalidade sobre nosso intelecto para que

formaacutessemos representaccedilotildees deles Nesse caso poreacutem a causalidade seria atributo dos

objetos na condiccedilatildeo de coisas fora de noacutes e em si o que se oporia a todo o edifiacutecio da criacutetica

kantiana e faria as consequecircncias se voltarem contra as premissas126

O mesmo ocorre com a

categoria da existecircncia que natildeo pode ser aplicada a objetos que estejam fora do tempo No

entanto diz Schulze embora seja certo que o objeto para aleacutem das representaccedilotildees natildeo eacute uma

intuiccedilatildeo ele natildeo pode por isso ser um mero nada isto eacute ldquodeve ser algo de realiter distinto e

independente das mesmasrdquo127

o que estaacute completamente excluiacutedo do sistema kantiano Natildeo

se poder aplicar a esse algo os conceitos de causa ou de existecircncia e escreve Schulze ldquo[] se

eacute certa a deduccedilatildeo transcendental das categorias que a criacutetica da razatildeo apresentou tambeacutem eacute

errado e falso um dos princiacutepios fundamentais da mesma que todo o conhecimento comeccedila

com a acccedilatildeo de objectos objectivos sobre o nosso acircnimordquo128

Por conseguinte Kant deveria

ter demonstrado que o intelecto natildeo eacute a fonte uacutenica de todo conhecimento e explicado o

porquecirc disso

No mesmo sentido jaacute argumentado por Jacobi Schulze conclui que a

criacutetica kantiana acaba por demolir a possibilidade de todo e qualquer conhecimento

verdadeiro Sobre isso Cassirer afirma que ldquoNa trajetoacuteria dos pensamentos fundamentais

desenvolvidos na obra Aenesidemus haacute plena clareza sobre um ponto a saber o de que toda

duacutevida ilimitada toda duacutevida que recai sobre a totalidade do saber destroacutei-se a si mesma e

perde seu proacuteprio sentido e razatildeo de serrdquo129

Para que natildeo se reduza a mera aparecircncia o

conhecimento teraacute entatildeo de receber sua realidade de algo externo ao puro intelecto130

No

entanto ao se defender a incognoscibilidade da coisa em si e ao mesmo tempo a causalidade

como um princiacutepio subjetivo de conexatildeo de representaccedilotildees natildeo se poderaacute pressupor uma

125

SCHULZE op cit p 261 (grifos do autor) 126

Ibidem p 262 127

Ibidem p 263 128

Ibidem loc cit 129

CASSIRER E op cit p 79 (grifos do autor) 130

SCHULZE G E op cit p 264

- 58 -

accedilatildeo causal entre estas e algo distinto delas ldquoPoisrdquo diz Schulze ldquoo que me eacute totalmente e em

todos os seus atributos e propriedades desconhecido tambeacutem dele natildeo posso saber que

existe que se encontra realmente em uma ligaccedilatildeo comigo e que eacute capaz de efectuar ou

produzir algordquo131

Como resultado todo o conhecimento humano teraacute de ser considerado mera

aparecircncia e o idealismo radical que natildeo concede existecircncia real aos fenocircmenos natildeo estaraacute

refutado132

A contribuiccedilatildeo de Jacob S Beck a essa discussatildeo estaacute na sua

argumentaccedilatildeo tambeacutem em diaacutelogo criacutetico com Reinhold sobre o verdadeiro princiacutepio do

conhecimento Como informa Cassirer Beck considera que aquelas contradiccedilotildees e

dissonacircncias que parecem surgir no texto kantiano satildeo resultado natildeo da incompatibilidade

entre as ideias mas do modo exigido pela exposiccedilatildeo que deve ser paulatina e observar a

adaptaccedilatildeo do leitor a um ponto de vista totalmente novo133

A origem e o fundamento de todo

o conhecimento seria o ato original de representar jaacute descrito por Kant mas cujo ponto

central natildeo teria sido ainda adequadamente evidenciado134

Beck julga importante para isso

diferenciar as categorias que ele entende como representaccedilotildees originais dos simples

conceitos de objetos Ao se pensaacute-las como conceitos eacute que surgiriam o problema de saber

como a representaccedilatildeo se liga ao objeto e com isso todas as duacutevidas com relaccedilatildeo agrave coisa em

si Segundo Cassirer Beck revela de modo magistral a totalidade do sistema kantiano e

demonstra que natildeo haacute qualquer relaccedilatildeo entre a coisa em si e o objeto do conhecimento

tratando-se entatildeo de um problema vazio pois o proacuteprio nexo que aiacute se busca por assim dizer

natildeo tem nada dentro Como ele afirma

O autecircntico meacutetodo kantiano o meacutetodo transcendental natildeo consiste

simplesmente em deslocar agrave oacuterbita da consciecircncia os elementos que ateacute

agora se situavam na oacuterbita das coisas mas se apoia sobre a ideia de que a

separaccedilatildeo e a divisatildeo que serve de base a tudo isso responde a um conceito

falso e contraditoacuterio135

Sem que se perceba esse ponto fundamental da teoria kantiana diz Beck

natildeo se esclarece o modo como as categorias formam a base dos conceitos e os tornam

131

Ibidem loc cit 132

Ibidem p 265-266 133

CASSIRER op cit p 92 134

BECK J S Exerto de Erlaumluternder Auszug aus den Schriften des Herrn Professor Kant (Extracto elucidativo

dos escritos do Sr Prof Kant) Traduccedilatildeo de Ana Maria Benite In GIL Fernando (coord) Recepccedilatildeo da Criacutetica

da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant (1786-1844) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1992 p

283 135

CASSIRER op cit p 95

- 59 -

compreensiacuteveis O princiacutepio maacuteximo do conhecimento natildeo seria uma representaccedilatildeo

conceitual mas um postulado concebido como o ldquorepresentar originariamenterdquo136

Esse ato

de representar natildeo se identificaria com a representaccedilatildeo de um objeto qualquer que jaacute seria um

conceito determinado e com caracteriacutesticas essenciais Seria antes algo como uma

representaccedilatildeo original da geometria por exemplo que natildeo se ocupa da explicaccedilatildeo do espaccedilo

nem o busca em outra ciecircncia mas simplesmente o postula137

Delbos explica que Beck

concordava com a tese kantiana de afecccedilatildeo dos sentidos mas natildeo realizada por coisas em si e

sim por fenocircmenos O princiacutepio dessa afecccedilatildeo natildeo proviria de quaisquer tipos de entidades

mas do ato mesmo de representar Nas palavras de Delbos ldquo[] esse ato ligando

sinteticamente as representaccedilotildees segundo o princiacutepio de causalidade torna-as objetivas por

um tipo de reconhecimento originaacuterio e constitui assim os fenocircmenos pelos quais somos

afetadosrdquo138

O espaccedilo segundo Beck eacute ele proacuteprio a siacutentese originaacuteria do homogecircneo isto eacute

uma representaccedilatildeo primordial natildeo existente antes mas criada nesse mesmo ato que eacute mais

exatamente um intuir Para exemplificar esse ponto Beck afirma que

A representaccedilatildeo do espaccedilo eacute muito diferente deste representar original pois

ela jaacute eacute conceito Tenho um conceito de linha recta isto eacute algo de diferente

de traccedilar eu uma linha recta (sintetizar originariamente) Tenho tambeacutem o

conceito de um bi-acircngulo rectiliacuteneo embora neste caso natildeo haja

representaccedilatildeo original139

De acordo com isso a perspectiva correta a ser adotada eacute a de que o ato

de unificaccedilatildeo do muacuteltiplo na unidade da consciecircncia natildeo eacute dado por meio de um conceito A

conexatildeo do muacuteltiplo seria dada por um ato que natildeo estaria presente de antematildeo em nenhum

objeto e por meio do qual seriam formados esse mesmo objeto e o proacuteprio muacuteltiplo Entatildeo

diz Cassirer para Beck bastaria abrir os olhos do entendimento ldquoisto eacute restabelecer as

condiccedilotildees a que se ajusta a possibilidade da experiecircncia a uacutenica acerca da qual cabe emitir

juiacutezos sobre objetos para que se evaporem como vazios fantasmas de nossa proacutepria fantasia

as formas que no iniacutecio nos amedrontavamrdquo140

O esquematismo transcendental eacute outra atividade originaacuteria chamada por

Beck de reconhecimento original141

que tambeacutem natildeo conduz a um conceito de objeto mas a

outro tipo de representaccedilatildeo primordial a saber o tempo Como ele explica ldquoEacute atraveacutes desta

136

BECK op cit p 283 137

Ibidem loc cit 138

DELBOS op cit P 149 (traduccedilatildeo nossa) 139

BECK op cit p 284 140

CASSIRER op cit p 96 141

BECK op cit p 285

- 60 -

fixaccedilatildeo do tempo que eu fixo aquela siacutentese original e obtenho o conceito de uma determinada

forma []rdquo142

Natildeo se poderia falar em um muacuteltiplo dado antes da siacutentese originaacuteria e do

reconhecimento ou seja antes que o entendimento originalmente crie aquela unidade objetiva

sinteacutetica Perder essa perspectiva seria perder a clareza e cair em constantes embaraccedilos ldquopoisrdquo

diz Beck ldquofaccedila ele o que fizer nunca mais conseguiraacute achar uma conexatildeo entre a

representaccedilatildeo e o objetordquo143

Cassirer contribui para o esclarecimento desse ponto

Nesta expressatildeo de sua ideia fundamental Beck natildeo faz outra coisa que

seguir as indicaccedilotildees do proacuteprio Kant quem ao reduzir a unidade analiacutetica do

ldquoconceptus communisrdquo agrave unidade sinteacutetica da apercepccedilatildeo assinala esta

expressamente como o ldquoponto mais altordquo a que se deve referir todo o

emprego do entendimento inclusive toda a loacutegica e a filosofia

transcendental Nesta natildeo se trata de predicar ldquonotas caracteriacutesticasrdquo de uma

existecircncia dada ou de um conceito dado mas de determinar o conceito

mesmo de objeto com todas as caracteriacutesticas que lhe satildeo proacuteprias mediante

uma ldquoatribuiccedilatildeo originaacuteriardquo144

Por conseguinte o uso do entendimento eacute anterior aos conceitos isto eacute a

siacutentese da representaccedilatildeo eacute anterior agrave anaacutelise conceitual Assim pensando diz Beck ningueacutem

teraacute de se preocupar com a constituiccedilatildeo do sujeito ou do objeto pois estaraacute claro que os

conceitos ancoram-se no representar originaacuterio Em suma ele escreve ldquoUsando as palavras da

Criacutetica isso quer dizer portanto a unidade analiacutetica da consciecircncia (no conceito) pressupotildee

uma unidade original sinteacutetica (no acto originaacuterio de representar) ou tambeacutem toda anaacutelise soacute

eacute possiacutevel apoacutes uma siacutenteserdquo145

Desse modo para Beck eacute necessaacuterio que se escolha de

antematildeo se o objeto seraacute colocado no iniacutecio ou no fim da investigaccedilatildeo pois a contraposiccedilatildeo

estrutural entre essas perspectivas determinaraacute todo o restante Como explica Cassirer

O decisivo e determinante para todas as conclusotildees posteriores a que se

chegue eacute saber se a reflexatildeo filosoacutefica toma o conceito de objeto como ponto

de partida ou como meta No primeiro caso haacute para noacutes uma realidade

existente por si formada por relaccedilotildees e ordenaccedilotildees fixas tudo o que

podemos dizer acerca delas ao atribuir-lhes existecircncia no tempo e no

espaccedilo grandeza e nuacutemero substancialidade e causalidade seratildeo

simplesmente predicados dedutivos que a posteriori atribuiacutemos a essa

realidade [] Em seu sentido criacutetico natildeo cabe indagar o que o objeto

desligado de toda relaccedilatildeo com qualquer saber possiacutevel eacute em si e para si mas

apenas o que para o saber mesmo significa o postulado da validade

objetiva146

142

Ibidem loc cit 143

Ibidem p 286 144

CASSIRER op cit p 99 (grifos do autor) 145

BECK op cit p 287 146

CASSIRER op cit p 97 (grifos do autor)

- 61 -

Assim como Kant Beck considera que o entendimento eacute uma faculdade

de pensar natildeo de intuir o que significa que representa os objetos atraveacutes de conceitos Na sua

concepccedilatildeo a representaccedilatildeo conceitual de um objeto exige um ponto de referecircncia e exige

tambeacutem que ele seja subsumido em determinadas caracteriacutesticas Diferentemente na

representaccedilatildeo original o entendimento engendra a unidade objetiva sinteacutetica que deve ser

entatildeo transferida para a unidade analiacutetica de um conceito para que possa ser dada a

representaccedilatildeo de um objeto147

Interpretar o tempo o espaccedilo e a realidade das coisas como se

fossem dados antes da siacutentese originaacuteria do entendimento segundo Beck eacute falso e contraacuterio

ao que o pensamento criacutetico se propocircs Daiacute proviriam inclusive os pensamentos vagos

confusos e ininteligiacuteveis que lhe foram atribuiacutedos ldquoPoisrdquo ele escreve

se o espaccedilo for um dado antes da representaccedilatildeo original potildee-se a questatildeo de

o que ele eacute e somos portanto levados a consideraacute-lo como um absurdo

existente Igualmente nos surge a questatildeo da essecircncia das coisas (Sachheit)

se natildeo atendermos agrave representaccedilatildeo original desta categoria148

A dificuldade estaria em natildeo se poder expor a representaccedilatildeo original a

natildeo ser por meio de conceitos Por isso Beck considera necessaacuterio insistir na afirmaccedilatildeo de

que o princiacutepio supremo do entendimento eacute o postulado da representaccedilatildeo originaacuteria Com

isso natildeo surgiriam duacutevidas sobre a constituiccedilatildeo do sujeito dos objetos ou das relaccedilotildees entre

um e outros uma vez que diz ele ldquoNatildeo eacute numa articulaccedilatildeo de conceitos que aqui se pensa

mas numa composiccedilatildeo originaacuteria que previamente possibilita todos os conceitosrdquo149

Inverter

as posiccedilotildees seria confundir-se e natildeo atinar em que a filosofia criacutetica corresponde explica

Cassirer ldquo[] ao pensamento que daacute firmeza e compreensibilidade a qualquer conceito por

ele empregado ao reduzi-lo ao uso originaacuterio do entendimento []rdquo150

Dessa forma eacute

fundamental ao pensamento criacutetico a convicccedilatildeo de que a realidade natildeo pode existir sem as

relaccedilotildees dadas pela unidade sinteacutetica da consciecircncia que satildeo justamente as que criam os

nexos objetivos e necessaacuterios151

Salomon Maimon envolvendo-se tambeacutem na polecircmica caminha no

sentido de uma maior precisatildeo e de um aprofundamento acerca da perspectiva correta a ser

adotada para a compreensatildeo da filosofia kantiana A questatildeo principal a que nos remetem

suas reflexotildees liga-se ao modo como a siacutentese do muacuteltiplo poderaacute gerar a objetividade de um

147

BECK op cit p 286 148

Ibidem loc cit 149

Ibidem p 287 150

CASSIRER op cit p 99 151

Ibidem loc cit

- 62 -

ponto de vista real e natildeo apenas formalmente Segundo Cassirer esse filoacutesofo parte do

conceito de objetividade e se afasta das disputas sobre a coisa em si considerada por ele

apenas como o conceito simboacutelico de algo contraditoacuterio e irrealizaacutevel Para Maimon os

problemas surgiratildeo somente se se quiser dar um caraacuteter real e positivo agrave coisa em si

pretendendo-se fundamentar e garantir a objetividade por meio dela Nas palavras de Cassirer

ldquo[] seja esse siacutembolo o que se queira natildeo se pode duvidar de que o que eacute e significa

bdquoobjetividade‟ para o saber pode determinar-se e avaliar-se partindo do proacuteprio saberrdquo152

Maimon refletiu sobre esse ponto em sua obra Versuch uumlber die transzendentalphilosophie

de 1790 buscando uma soluccedilatildeo que harmonizasse as exigecircncias do ceticismo do dogmatismo

e do criticismo Na investigaccedilatildeo kantiana acerca da possibilidade dos juiacutezos sinteacuteticos a

priori ele vislumbra toda uma seacuterie de questotildees filosoacuteficas tradicionais embutidas no

problema mais geral de estabelecer a ligaccedilatildeo entre os planos formal e material do

conhecimento Nesse sentido afirma Paul Franks

Maimon discerniu uma uacutenica estrutura nos problemas fundamentais da

filosofia medieval da primeira filosofia moderna e da kantiana ldquoA questatildeo

quid juris [isto eacute a questatildeo sobre a legitimidade de aplicar as formas do

entendimento ao que eacute sensivelmente dado abordada na deduccedilatildeo

transcendental de Kant] eacute uma e a mesma importante questatildeo que foi tratada

por todos os filoacutesofos predecessores a saber a explicaccedilatildeo da concordacircncia

entre alma e corpo ou a explicaccedilatildeo da origem do mundo (em relaccedilatildeo agrave sua

mateacuteria) a partir de uma inteligecircnciardquo153

O objetivo e o subjetivo segundo Maimon distinguem-se como o

mutaacutevel e o imutaacutevel no conhecimento bastando entatildeo que se separem na consciecircncia os

conteuacutedos permanentes dos variaacuteveis O que permanece invariaacutevel na faculdade de conhecer

seria o objetivo e o que muda junto com ela seria o subjetivo desaparecendo entatildeo as

questotildees sobre o modo como sujeito e objeto se vinculam No dizer de Cassirer ldquoOs dois

termos natildeo podem portanto logicamente isolar-se um do outro nem caracterizar-se cada um

por si com base no que possam representar fora da capacidade de conhecer Apenas se coloca

e se pode colocar como problema bdquoreal‟ a relaccedilatildeo entre ambosrdquo154

Na medida em que o

fundamento do conhecimento eacute absolutamente incognosciacutevel diz Maimon natildeo importa se eacute

situado fora ou dentro do sujeito A justificaccedilatildeo da divisatildeo entre o que eacute objetivo e o que eacute

subjetivo tem de ser buscada portanto no proacuteprio conhecimento ldquoAssimrdquo escreve Cassirer

152

Ibidem p 108 (grifos do autor) 153

FRANKS P op cit p 105-106 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 154

CASSIRER op cit p 109 (grifos do autor)

- 63 -

encontramos por exemplo que prescindindo de todas as ideias que

possamos formar sobre a origem das percepccedilotildees dos sentidos ou da intuiccedilatildeo

do espaccedilo o momento do espacial representa o ldquoobjetivordquo com respeito agrave

qualidade sensorial das sensaccedilotildees por ser conhecido como o relativamente

estaacutevel em contraposiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees das impressotildees transmitidas pelos

sentidos155

O ponto central da discussatildeo no entender de Maimon eacute o de explicitar a

legitimidade da aplicaccedilatildeo das categorias aos objetos bem como a formulaccedilatildeo das proposiccedilotildees

a priori referidas a elas Em Versuch uumlber die transzendentalphilosophie em uma complexa

argumentaccedilatildeo repleta de conceitos matemaacuteticos esse filoacutesofo expotildee sua maneira de ver como

se daacute aquela aplicaccedilatildeo156

De fato como afirma Franks a atenccedilatildeo de Maimon agraves ciecircncias

exatas mais precisamente agrave fiacutesica matematizada eacute uma caracteriacutestica que o diferencia de

outros poacutes-kantianos157

Com efeito para Maimon a representaccedilatildeo sensiacutevel deve ser

entendida como um certo quantum de extensatildeo ou de grau de intensidade chamado por ele de

diferencial Assim por exemplo a representaccedilatildeo da cor vermelha natildeo deve ser entendida

como extensa ou como algo de natureza matemaacutetica mas como um ponto fiacutesico ou entatildeo

como o diferencial de uma extensatildeo ou de um grau finito de qualidade158

Por conseguinte os

elementos da percepccedilatildeo natildeo se distinguiriam pela grandeza mas por algo qualitativo e

determinado Cassirer explica que uma vez que o tempo e o espaccedilo satildeo apenas esquemas de

uma possiacutevel diferenccedila entre objetos esse elemento qualitativo eacute o que tornaria possiacuteveis as

distinccedilotildees no interior da extensatildeo159

De outra perspectiva segundo Maimon apenas por si

mesmas as representaccedilotildees sensiacuteveis natildeo constituem nenhuma consciecircncia que surge somente

pela atividade de pensar Para ele eacute certo que as representaccedilotildees sensiacuteveis satildeo assimiladas

passivamente mas a consciecircncia que temos delas indica uma accedilatildeo do sujeito e natildeo o saber

passivo de algo externo Entatildeo ele escreve

A palavra representaccedilatildeo (Vorstellung) usada pela primitiva consciecircncia

induz aqui em erro pois na verdade natildeo se trata de uma representaccedilatildeo isto

eacute de um mero acto de tornar presente o que natildeo eacute presente mas muito mais

de uma apresentaccedilatildeo (Darstellung) isto eacute de apresentar como existente o

que anteriormente natildeo era160

A consciecircncia de algo exigiria a accedilatildeo da imaginaccedilatildeo pela qual muacuteltiplas

155

Ibidem p 110 156

MAIMON S Excerto de Versuch uumlber die transzendentale Philosophie Traduccedilatildeo de Maria Helena

Rodrigues de Carvalho In GIL Fernando (coord) Recepccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos

sobre Kant (1786-1844) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1992 p 223 et seq 157

FRANKS P op cit p 105 158

MAIMON S op cit p 223 159

CASSIRER op cit p 125-126 160

MAIMON S op cit p 223 (grifos do autor)

- 64 -

representaccedilotildees sensiacuteveis singulares seriam reunidas e ordenadas segundo o tempo e o espaccedilo

Esse seria o modo de surgimento de uma intuiccedilatildeo empiacuterica numa espeacutecie de adiccedilatildeo contiacutenua

de diferenciais de intensidade ou de extensatildeo ateacute que se chegasse agravequele exigido pela

consciecircncia Eacute como no caso do movimento acelerado em que as velocidades somam-se

paulatinamente e determinam uma velocidade maior161

Natildeo obstante essa adiccedilatildeo natildeo

ocorreria pela comparaccedilatildeo entre as representaccedilotildees mas diz Maimon ldquo[] apenas pelas leis

gerais da natureza de Newton nomeadamente que nenhum efeito pode ser anulado por si

proacuteprio sem um efeito que lhe eacute contraacuteriordquo162

A funccedilatildeo do entendimento nesse processo eacute a

de relacionar os objetos jaacute dados na intuiccedilatildeo por meio dos seus conceitos puros Numa

palavra

A sensibilidade portanto fornece os diferenciais a uma determinada

consciecircncia a imaginaccedilatildeo extrai deles um objeto finito (determinado) da

intuiccedilatildeo o entendimento extrai da relaccedilatildeo destes diversos diferenciais que

satildeo seus objetos a relaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis resultantes163

Na concepccedilatildeo de Maimon os nuacutemenos satildeo exatamente esses

diferenciais enquanto os objetos formados a partir deles satildeo os fenocircmenos Portanto natildeo se

pode afirmar que cada objeto em si tenha um diferencial ou que se refira a um diferencial

mas somente que as relaccedilotildees entre os diversos diferenciais podem ser dadas nas intuiccedilotildees164

ldquoEsses nuacutemenosrdquo diz Maimon ldquosatildeo ideias da razatildeo que como princiacutepios servem para a

explicaccedilatildeo da gecircnese dos objetos segundo certas regras do entendimentordquo165

A diferenciaccedilatildeo

entre duas qualidades sensiacuteveis seria dada como relaccedilatildeo entre diferenciais ou ideias da razatildeo

a priori Este ponto eacute complicado e exige um esclarecimento maior Cassirer observa com

razatildeo que o conceito de diferencial de Maimon parece carregar uma imprecisatildeo sendo

entendido como algo subministrado pelos sentidos como conceitos da razatildeo ou ideias e ainda

como princiacutepios da aplicaccedilatildeo objetiva do entendimento Ele esclarece entatildeo que o conceito de

diferencial possui muacuteltiplas relaccedilotildees pois

Participa da sensaccedilatildeo somente enquanto esta em suas diferenccedilas

quantitativas e em suas gradaccedilotildees oferece agrave consciecircncia antes de tudo o

fenocircmeno da diversidade Mas ao colocar-se a partir de agora a tarefa de

compreender esse fenocircmeno ldquodadordquo manifesta-se ao mesmo tempo a

necessidade de transcender acima disso passando da intuiccedilatildeo e da percepccedilatildeo

empiacutericas a seus ldquoelementosrdquo natildeo intuiacuteveis E nesse processo ao

161

Ibidem p 224 162

Ibidem loc cit 163

Ibidem loc cit 164

Ibidem p 224 165

Ibidem loc cit

- 65 -

remontarmo-nos dos objetos empiacutericos aos princiacutepios de seu nascimento a

diversidade sensorial se converte em uma diversidade racional o

conhecimento dos fenocircmenos se converte em um conhecimento das leis

numecircnicas sobre o qual aqueles fenocircmenos descansam166

Delbos contribui tambeacutem agrave compreensatildeo desse ponto afirmando que

para explicar a presenccedila de um objeto que natildeo sabemos como se produz Maimon retoma o

conceito leibniziano de uma atividade espiritual que age anteriormente a toda consciecircncia

clara O dado puro e simples eacute a ideia de um limite de uma seacuterie dada do qual podemos nos

aproximar como de uma raiz irracional sem jamais atingi-la Assim escreve Delbos Maimon

declara que ldquodo ponto de vista da filosofia criacutetica deve-se falar da coisa em si como a aacutelgebra

fala de radic-a natildeo para determinar com ele um objeto mas para manifestar a impossibilidade de

um objeto correspondente a esse conceitordquo167

Caso um conceito puro do entendimento fosse utilizado por exemplo

para distinguir entre o vermelho e o verde a questatildeo de saber como pode um conceito puro

ser aplicado agrave sensibilidade seria mantida Um conceito puro apenas proporciona a regra e

aponta a gecircnese de um objeto sendo o pensar sua uacutenica funccedilatildeo que eacute a produccedilatildeo da unidade

na multiplicidade Nas palavras de Cassirer

O intelecto em virtude de sua funccedilatildeo caracteriacutestica e peculiar deduz as

diferenccedilas entre as coisas da diversidade dos princiacutepios de que nascem Sua

forma fundamental se situa com efeito na definiccedilatildeo geneacutetica de tal modo

que soacute pode conceber o objetivamente dado sob a forma e conforme a regra

de seu nascimento168

De acordo com isso para Maimon o entendimento natildeo pode pensar

nenhum objeto como jaacute originado mas apenas como estando em formaccedilatildeo processo que ele

denomina ldquodiscorrecircnciardquo169

O termo usado por Maimom eacute flieβend que daacute a ideia de uma

corrente um fluxo que verte num determinado sentido considerado por ele como a

caracteriacutestica da intuiccedilatildeo tanto a priori quanto a posteriori A regra do entendimento que

unifica o muacuteltiplo na intuiccedilatildeo poreacutem natildeo seria dada desse modo mas de uma uacutenica vez170

Esse eacute um ponto importante da concepccedilatildeo de Maimon que evidencia uma visatildeo profunda da

gecircnese da intuiccedilatildeo Ele diferencia a maneira como a intuiccedilatildeo eacute construiacuteda em conexatildeo com

dados externos determinados enquanto o entendimento por seu turno pensa a partir de

166

CASSIRER op cit p 129-130 (grifos do autor) 167

DELBOS op cit p 148 (traduccedilatildeo nossa) 168

CASSIRER op cit p126 169

MAIMON S op cit p 225 170

Ibidem loc cit

- 66 -

conceitos puros e indeterminados Tomando um triacircngulo como exemplo ele explica que o

entendimento pensa a regra de uma soacute vez mas essa regra envolve apenas a relaccedilatildeo geral

entre lados ficando indeterminada a grandeza de cada um deles Diferentemente a construccedilatildeo

do triacircngulo soacute poderaacute ser executada de modo determinado Como ele escreve

Temos pois aqui uma determinaccedilatildeo que natildeo estava contida na regra e que

estaacute necessariamente presa agrave intuiccedilatildeo esta pode mesmo com a manutenccedilatildeo

da mesma regra ou da mesma relaccedilatildeo ser diferente em diferentes

construccedilotildees Consequentemente este triacircngulo em vista de todas as

possiacuteveis construccedilotildees natildeo deve jamais ser pensado pelo entendimento como

jaacute formado mas em formaccedilatildeo isto eacute por discorrecircncia Em contrapartida a

faculdade da intuiccedilatildeo [que de facto eacute regular (regelmaumlβig) mas sem o

discernimento da regra (regelverstaumlndig)] natildeo pode representar regra ou

unidade alguma no muacuteltiplo mas sim o proacuteprio muacuteltiplo deve por isso

pensar os seus objetos natildeo em processo mas como jaacute surgidos171

Daiacute resulta que a intuiccedilatildeo possui uma ordenaccedilatildeo que natildeo ocorre por meio

de nenhuma regra isto eacute sua forma tem de ser pensada como jaacute terminada realizada Assim

fica claro segundo Cassirer que ldquo[] o entendimento natildeo se limita a submeter a suas regras a

priori algo dado a posteriori mas ao contraacuterio o faz nascer conforme a essas regras mesmas

o que constitui a uacutenica maneira de responder agrave questatildeo quid jurisrdquo172

De acordo com isso a sensibilidade natildeo opera qualquer tipo de ligaccedilatildeo a

qual se deve agrave imaginaccedilatildeo No entanto a ligaccedilatildeo realizada por esta se daacute em geral designando

a simultaneidade ou a sucessatildeo de objetos sem especificaacute-los A imaginaccedilatildeo diz Maimon

relaciona os objetos representando um como o antecedente e outro como o consequente no

tempo e no espaccedilo por exemplo mas natildeo determinando a cada um seu lugar especiacutefico de

antecedente ou de consequente Os conceitos puros estabeleceriam somente relaccedilotildees de

unificaccedilatildeo do muacuteltiplo mas para isso precisariam que os distintos elementos fossem

pensados simultaneamente reciprocamente ou unilateralmente173

Entatildeo segundo Maimon

quando o entendimento relaciona partes do muacuteltiplo de forma simultacircnea origina-se daiacute um

conceito pensado natildeo somente em relaccedilatildeo agrave forma mas tambeacutem agrave mateacuteria o que significa que

esta deve de algum modo determinar a simultaneidade da representaccedilatildeo Outra possibilidade

seria o surgimento de um conceito ldquo[] onde a mateacuteria e a forma satildeo da mesma espeacutecie e

consequentemente produzidos por um Actus uacutenico do entendimentordquo174

Esse seria o caso dos

conceitos de causa e efeito cuja identidade de espeacutecie determinaria que quando a primeira eacute

171

Ibidem p 226 (grifos do autor) 172

CASSIRER op cit p 128 173

MAIMON S op cit p 226 174

Ibidem p 227

- 67 -

posta o segundo necessariamente tem de secirc-lo Que uma causa tenha de ter um efeito natildeo

seria algo contido na definiccedilatildeo mas seria a proacutepria definiccedilatildeo desse conceito175

Daiacute decorre que as conexotildees de muacuteltiplos satildeo realizadas pelo

entendimento a partir de formas a priori as quais poreacutem por serem regras gerais soacute por

meio de intuiccedilotildees poderatildeo ser percebidas e adquirir seu significado Para que se possa

afirmar por exemplo que um objeto eacute causa de outro eacute exigida uma regra geral que

estabeleccedila uma dependecircncia entre dois elementos distintos isto eacute que vincule de um modo

especial os objetos de duas intuiccedilotildees No entanto a pura e simples regra natildeo informaraacute

especificamente qual eacute causa e qual eacute efeito O mesmo poderia ser dito de quaisquer

conceitos pois diz Maimon ldquo[] a sua essentia nominalis eacute determinada enquanto sua

essentia realis permanece duvidosa ateacute ter sido apresentada na intuiccedilatildeordquo176

Portanto a

realidade do conceito de causalidade eacute descoberta quando o entendimento encontra na

intuiccedilatildeo uma representaccedilatildeo que sempre traz outra consigo diferente de si A forma dos juiacutezos

hipoteacuteticos que estabelece o conceito da dependecircncia de um consequente em relaccedilatildeo a um

antecedente seria nesse caso aplicada a dois objetos quaisquer Nesse sentido escreve

Maimon

A dependecircncia pode portanto ser concebida sem referecircncia a objetos

determinados (como a forma dos juiacutezos hipoteacuteticos na loacutegica) a causa e o

efeito poreacutem natildeo podem ser concebidos sem referecircncia a objetos

determinados isto eacute a regra do entendimento dos juiacutezos hipoteacuteticos refere-se

meramente a objetos determinaacuteveis mas natildeo determinados a realidade

objetiva dos mesmos poreacutem soacute pode ser demonstrada pela aplicaccedilatildeo a

objetos determinados da intuiccedilatildeo177

Segundo Maimon eacute desse modo que a experiecircncia comprova a

possibilidade dos conceitos do entendimento e que inversamente os conceitos do

entendimento tornam a experiecircncia possiacutevel De um lado os conteuacutedos materiais das

intuiccedilotildees permitem que se note o elemento formal presente nelas isto eacute as formas da

sensibilidade e os conceitos puros que satildeo portanto inatos De outro as conceitos puros e os

juiacutezos natildeo podem ser concebidos empiricamente e isso demonstra que devem ser ligados agrave

experiecircncia para ganharem sentido178

A possibilidade das intuiccedilotildees seria como a da

construccedilatildeo de um triacircngulo isto eacute anterior agrave experiecircncia e em si Nas palavras de Maimon

175

Ibidem loc cit 176

Ibidem loc cit 177

Ibidem p 228 178

MAIMON S op cit p 230

- 68 -

Quando por exemplo se emite esse juiacutezo vermelho eacute diferente de verde

imagina-se na intuiccedilatildeo primeiro vermelho e em seguida verde depois do

que se comparam os dois e daqui resulta este juiacutezo Mas como eacute que

havemos de tornar concebiacutevel essa comparaccedilatildeo Natildeo pode ocorrer durante a

representaccedilatildeo do vermelho e a representaccedilatildeo do verde179

Por conseguinte todos os conceitos e juiacutezos seriam problemaacuteticos ateacute

que tivessem uma aplicaccedilatildeo concreta e sua possibilidade estaria nessa relaccedilatildeo com

experiecircncia Como ele explica

Uma figura (espaccedilo limitado) eacute possiacutevel em si Para compreender isto tenho

de construir uma figura particular por exemplo um ciacuterculo um triacircngulo

etc Estas figuras particulares poreacutem soacute satildeo possiacuteveis atraveacutes do conceito

geral de figura porque natildeo satildeo pensaacuteveis sem ele mas a inversa natildeo eacute

verdadeira porque uma figura [conceito] tambeacutem eacute possiacutevel sem esta

determinaccedilatildeo particular180

Eacute nesse sentido que se poderia afirmar que o entendimento produz por

meio de regras gerais os objetos que seratildeo pensados depois por um conceito Para isso

segundo Maimon satildeo necessaacuterias a intuiccedilatildeo a mateacuteria do pensamento e as formas deste que

satildeo as condiccedilotildees dos objetos181

Conforme a exegese de Cassirer na concepccedilatildeo maimoniana

se a intuiccedilatildeo se referisse diretamente a um objeto externo dado poderia ser tomada como

simples quimera poreacutem o objeto de que se trata natildeo deve ser tomado como dado mas sim

como pensado Nesse caso diz Cassirer a intuiccedilatildeo deve ser entendida ldquo[] como aquela

modificaccedilatildeo da capacidade de conhecimento que natildeo se refere a nada fora de si mesma como

seria a relaccedilatildeo da representaccedilatildeo a seu objeto mas eacute por si mesma o objeto sobre o qual

recairdquo182

A indagaccedilatildeo acerca da legitimidade da aplicaccedilatildeo dos conceitos agrave mateacuteria

intuitiva eacute respondida segundo Maimon com a consideraccedilatildeo de que os conceitos natildeo satildeo

aplicados diretamente agrave intuiccedilatildeo mas agrave forma a priori do tempo Sobre esse ponto ele afirma

que ldquo[] a eacute a e natildeo eacute b natildeo porque aquele tenha uma determinaccedilatildeo material que este natildeo

tem (porque este na medida em que eacute algo a posteriori natildeo pode ser subsumido na regra a

priori) mas porque tem uma determinaccedilatildeo formal que b natildeo temrdquo183

A determinaccedilatildeo formal

nesse caso eacute o anteceder ou suceder no tempo que eacute comum a ambos os objetos os quais

agem como o antecedente e o consequente de um juiacutezo condicional Na visatildeo de Maimon

179

Ibidem loc cit 180

Ibidem loc cit 181

Ibidem p 232 182

CASSIRER op cit 115 (grifos do autor) 183

MAIMON S op cit p 233 (grifos do autor)

- 69 -

ldquoPor este processo o entendimento tem capacidade natildeo soacute de pensar objetos em geral mas de

conhecer objetos determinadosrdquo184

Com essa argumentaccedilatildeo estaria respondida a questatildeo de saber com que

direito se aplicam os conceitos a priori aos objetos sem conceitos a priori natildeo poderiacuteamos

pensar objetos apenas intuiacute-los Do mesmo modo sem intuiccedilotildees poderiacuteamos pensar objetos

em geral mas natildeo conheceriacuteamos objetos determinados Por conseguinte sem a concorrecircncia

de ambas essas fontes nenhum objeto poderia ser de fato conhecido A faculdade de julgar

entendida como a capacidade de descobrir o geral no particular ou de subsumir o particular no

geral realizaria a mediaccedilatildeo entre intuiccedilotildees e conceitos Sem ela diz Maimon teriacuteamos as

partes integrantes de um juiacutezo ldquo[] mas natildeo teriacuteamos nenhum meio de levar isto a cabo de

uma forma justa porque os conceitos gerais ou regras a priori e os objectos particulares da

intuiccedilatildeo a posteriori satildeo absolutamente heterogecircneosrdquo185

Natildeo obstante o fundamento dessa

aplicaccedilatildeo da faculdade de julgar seria desconhecido embora a aplicaccedilatildeo mesma seja tomada

como fato da intuiccedilatildeo Poreacutem o importante natildeo seria provar e explicar essa aplicaccedilatildeo mas

compreender sua possibilidade por meio de um conhecimento a priori186

Em suma como

escreve Cassirer ldquo[] a Criacutetica da razatildeo pura entende por experiecircncia pelo conhecimento a

posteriori natildeo um conhecimento determinado pelas coisas em si mas um conhecimento natildeo

determinado pelas simples leis da capacidade de conhecerrdquo187

No fim de contas a questatildeo quid juris sobre a possibilidade de

aplicaccedilatildeo dos conceitos agrave intuiccedilatildeo seraacute sempre problemaacutetica na medida em que natildeo se pode

explicar exatamente o modo como a aplicaccedilatildeo se daacute Um conceito pode certamente ser

tornado intuitivo e ganhar um significado mas do ponto de vista contraacuterio o de explicar a

origem de um conceito de significado conhecido o problema seria insoluacutevel Nas palavras de

Maimon ldquo[] como eacute que se haacute-de conceber que o entendimento possa decidir com certeza

apodiacutectica que um conceito de relaccedilatildeo por ele proacuteprio pensado (a coexistecircncia necessaacuteria de

dois predicados) tenha de ser encontrado num dado objetordquo188

A separaccedilatildeo radical dada no

sistema kantiano entre sensibilidade e entendimento natildeo permitiria resposta agrave questatildeo pois

assim as regras do entendimento natildeo teriam como se aproximar dos objetos dados189

184

Ibidem p 233-234 (grifos do autor) 185

Ibidem p 234 186

Ibidem loc cit 187

CASSIRER op cit p 117 188

MAIMON S op cit p 237 189

Ibidem p 239

- 70 -

Portanto diz Maimon somente admitindo que entendimento e sensibilidade provenham da

mesma fonte como fazem Leibniz e Wolff pode-se resolver a questatildeo eacute preciso que espaccedilo e

tempo sejam tomados como conceitos do entendimento para que seja possiacutevel submetecirc-los agraves

regras deste uacuteltimo

16 - Desvelando o dilema e os conceitos envolvidos

No pano de fundo da discussatildeo acerca da coisa em si e da sua suposta

afecccedilatildeo sobre os sentidos subjaz uma questatildeo antiga e profunda Conhecemos o mundo e

ajuizamos sobre ele poreacutem natildeo logramos provar a verdade do nosso conhecimento isto eacute a

seguranccedila inequiacutevoca do que afirmamos com relaccedilatildeo agraves coisas A resposta a esse problema

exige que se apresente alguma forma de alicerce para o pensamento algo em que se apoie e

que o faccedila ser algo mais do que ficccedilatildeo A dificuldade nos parece estar em que a soluccedilatildeo

demanda a muacutetua adequaccedilatildeo entre duas esferas heterogecircneas a saber o mundo da

experiecircncia com seus objetos concretos determinados singulares e o mundo teoacuterico com

seus conceitos abstratos universais e suas relaccedilotildees gerais Acrescenta-se a isso que essa

heterogeneidade foi tradicionalmente pensada como enraizada na distinccedilatildeo entre corpo e

alma tomados como substacircncias separadas com implicaccedilotildees natildeo soacute teoacutericas mas tambeacutem

morais e religiosas Aleacutem disso desde Platatildeo e sua ldquosegunda navegaccedilatildeordquo consolidou-se o

distanciamento entre um mundo mais real e verdadeiro cuja caracteriacutestica fundamental estava

na sua idealidade e um mundo ilusoacuterio e falso ligado agrave concretude aos sentidos e ao

empiacuterico

Apesar de toda a distacircncia entre Platatildeo e Hume o resultado geral da

argumentaccedilatildeo deste uacuteltimo acerca da causalidade nos parece ter reforccedilado a concepccedilatildeo do

primeiro de que natildeo haacute conhecimento verdadeiro do mutaacutevel do empiacuterico Rebaixado ao

estatudo de crenccedila sem necessidade loacutegica nem garantia empiacuterica com Hume o saber

humano afastou-se mais da possibilidade de alcanccedilar uma correspondecircncia autecircntica em

- 71 -

relaccedilatildeo agraves coisas Ou na formulaccedilatildeo de Maimon tornou-se mais difiacutecil responder agrave questatildeo

ldquoquid jurisrdquo A filosofia criacutetica kantiana conseguiu pela descriccedilatildeo minuciosa do mecanismo

de produccedilatildeo do conhecimento recuperar a esperanccedila de que o intelecto pudesse encontrar

certezas por meio de investigaccedilatildeo Para noacutes o prodiacutegio da descoberta de Kant nesse ponto

foi apontar a accedilatildeo por meio da qual o intelecto fabrica o mundo por assim dizer Por um lado

esse achado solucionou o problema da ausecircncia de necessidade e de correspondecircncia do saber

em relaccedilatildeo aos objetos pois a necessidade mesma e os proacuteprios objetos descobriram sua

origem no sujeito cognoscente Natildeo se precisava mais buscar a necessidade e a

correspondecircncia alhures jaacute que se situavam no nosso intelecto do mesmo modo que os

objetos Por outro lado poreacutem a fabricaccedilatildeo intelectual do mundo trouxe outras questotildees tatildeo

difiacuteceis quanto aquela inicial

Na nossa interpretaccedilatildeo Kant e os pensadores de sua eacutepoca debruccedilaram-

se sobre a tarefa de sustentar a construccedilatildeo do mundo pelo sujeito conscientes de que sem

isso a questatildeo de Hume natildeo seria resolvida Tornou-se entatildeo imperioso demostrar claramente

o processo que tornaria vaacutelidos do ponto de vista objetivo as intuiccedilotildees e os conceitos uma

vez que sua origem seria subjetiva Kant acrescentou um terceiro termo a essa problemaacutetica

ao apontar para uma realidade por traacutes dos fenocircmenos produzidos pelo intelecto ainda que

atribuindo a ela uma posiccedilatildeo incerta no seu sistema Com isso a soluccedilatildeo daquela questatildeo

passou a ter de levar em conta novos aspectos o estatuto da experiecircncia empiacuterica entendida

agora como aparecircncia os detalhes do mecanismo de constituiccedilatildeo da realidade pelo sujeito

cognoscente o estatuto daquilo que estaacute por traacutes do fenocircmeno e a relaccedilatildeo entre ambos

A dificuldade entatildeo se aprofunda porque se eacute verdade que o sujeito

institui o mundo dos fenocircmenos natildeo pode fazecirc-lo a partir de si mesmo e o contato com algo

que garanta a realidade empiacuterica tem de ser descoberto Ao mesmo tempo poreacutem fecha-se o

acesso agraves coisas em si mesmas e o conhecimento humano fica inexpugnavelmente limitado agrave

esfera fenomecircnica Com efeito de um lado sem um fundamento para sua realidade o

conhecimento da experiecircncia seraacute fictiacutecio de pleno direito jaacute que natildeo passaraacute de produto de

um sujeito que natildeo conhece nada para aleacutem disso mesmo ou seja do fenocircmeno portanto de

uma aparecircncia De outro lado poreacutem o modo como Kant responde a Hume impede que algo

possa ser dado como subjacente aos fenocircmenos A rigor natildeo se pode nem mesmo postular a

existecircncia desse ser embora a afirmaccedilatildeo de que exista uma aparecircncia sem algo que apareccedila

seja absurda e insustentaacutevel

- 72 -

De acordo com isso ao que nos parece cada um dos filoacutesofos poacutes-

kantianos apresentados no item anterior realiza sua contribuiccedilatildeo endossando ou criticando

Kant mas de qualquer modo se enfrentando com essas dificuldades postas por sua filosofia

Jacobi evidencia que no sistema teoacuterico kantiano o exterior natildeo eacute realmente externo pois um

objeto no espaccedilo estaacute no fim de contas dentro do sujeito Sua argumentaccedilatildeo segundo

pensamos natildeo eacute tatildeo ingecircnua ou simploacuteria como pareceu a muitos pois toca em um ponto

importante que eacute o de saber como uma intuiccedilatildeo pode ser exterior sem se referir a algo em si

nem a algo fora do sujeito Eacute com razatildeo que duvida de que a mateacuteria dos fenocircmenos possa ser

criada sem que se saia da consciecircncia Eacute com razatildeo tambeacutem que questiona a ideia de uma

faculdade da sensibilidade sem a admissatildeo de impressotildees externas sobre os sentidos A uacutenica

saiacuteda coerente segundo Jacobi seria reconhecer que o sensiacutevel soacute conduz ao sensiacutevel e que a

demonstraccedilatildeo da validade objetiva do conhecimento demanda uma faculdade distinta

superior que leve ao suprassensiacutevel Sem isso tudo o que se faz eacute girar em falso sobre um

plano irreal que natildeo se refere a nada para aleacutem de si mesmo

Reinhold buscou um ponto de certeza incontestaacutevel a partir do qual a

teoria do conhecimento pudesse ser deduzida sem que fosse necessaacuterio invocar a coisa em si

Realmente eacute um ponto paciacutefico do pensamento criacutetico a concepccedilatildeo de que todo conhecimento

eacute representaccedilatildeo e esta era entatildeo um bom iniacutecio para um sistema Parece-nos que depois de

Reinhold os esforccedilos se concentraram no sentido de demonstrar que a representaccedilatildeo poderia

ser esclarecida e validada a partir de si mesma Para isso foi fundamental sua ecircnfase em que

mateacuteria e forma natildeo poderiam ser separadas na representaccedilatildeo sem extingui-la Schulze por

sua vez sublinhou que natildeo se pode admitir o surgimento do fenocircmeno por uma causalidade

da coisa em si sobre o sujeito e que isso deixa a aparecircncia sem nenhum ponto de apoio O

fundamento da experiecircncia contudo natildeo pode ser a proacutepria experiecircncia que eacute produto do

sujeito de modo que todo o sistema do conhecimento desmorona e toda representaccedilatildeo se

mostra vazia sem objetividade simples ficccedilatildeo

Com o intuito de dissolver a separaccedilatildeo entre a consciecircncia e os objetos

Beck traz agrave luz o ato originaacuterio pelo qual o fenocircmeno eacute composto pelo sujeito Sua

argumentaccedilatildeo mostra que a experiecircncia depende de uma siacutentese do muacuteltiplo anterior a toda e

qualquer anaacutelise conceitual Nessa linha de raciociacutenio evidenciando-se a falsidade da

separaccedilatildeo entre a consciecircncia e os objetos a investigaccedilatildeo da adequaccedilatildeo entre uma e outros se

torna inuacutetil isto eacute natildeo cabe a pergunta pela validade objetiva Beck entatildeo direciona os

- 73 -

holofotes para o ato originaacuterio de representar com o qual se formam todos os objetos

reforccedilando a importacircncia do tempo e do espaccedilo no processo Maimon por fim tambeacutem

evidencia o modo como a siacutentese do muacuteltiplo poderaacute gerar objetividade para assim resolver a

questatildeo ldquoquid jurisrdquo Para ele objetivo e subjetivo natildeo podem ser isolados e o problema real

acerca do conhecimento eacute o de saber qual a relaccedilatildeo que entre eles medeia O objetivo remete

agraves formas do sujeito estaacuteveis durante todo o processo de conhecer e o subjetivo remete agraves

sensaccedilotildees mutaacuteveis e inconstantes A sensibilidade natildeo fornece diretamente intuiccedilotildees ao

pensamento mas miacutenimos graus de intensidade ou de extensatildeo que se acrescentam uns aos

outros e satildeo ordenados pelo entendimento A observaccedilatildeo de Maimon sobre a distinccedilatildeo entre

Vorstellung e Darstellung eacute interessante nesse sentido pois ressalta que os objetos natildeo satildeo

apreendidos em uma representaccedilatildeo mas fornecidos em uma apresentaccedilatildeo O muacuteltiplo e o a

posteriori surgem durante o processo e a experiecircncia externa ao sujeito natildeo precisa ser

pensada como ligada agraves coisas em si podendo ser tomada como o a posteriori desprovido das

regras do conhecer Por conseguinte o conhecido imediatamente por noacutes natildeo eacute de fato um

objeto mas diferenciais de intensidade ou de extensatildeo O entendimento eacute que produz os

objetos que seratildeo pensados depois pelos conceitos enquanto a conexatildeo entre estes e a

intuiccedilatildeo natildeo se daacute diretamente mas por meio da forma a priori do tempo

Em relaccedilatildeo aos problemas envolvidos no conceito de coisa em si

Reinhold Beck e Maimon tentam eludir a necessidade de que ela esteja pressuposta como o

real por traacutes dos fenocircmenos Tanto sua causalidade sobre os sentidos quanto sua existecircncia

natildeo satildeo admitidas por eles que tratam entatildeo de relativizar sua importacircncia na filosofia criacutetica

Reinhold argumentou que partindo-se somente da representaccedilatildeo como objeto de investigaccedilatildeo

e do princiacutepio da consciecircncia como fundamento natildeo eacute preciso tomar a coisa em si em

consideraccedilatildeo Beck defedeu que a questatildeo sobre a coisa em si eacute um problema vazio pois a

relaccedilatildeo entre ela e os objetos eacute inexistente isto eacute natildeo haacute qualquer nexo a se buscar Maimon

por fim sustentou que o conceito de coisa em si eacute apenas um siacutembolo para algo que natildeo se

pode conceber o limite de uma seacuterie dada que nunca se atinge algo como uma raiz irracional

Na verdade eacute irrelevante o que esse siacutembolo possa realmente significar o que importa eacute natildeo

cracterizaacute-lo positivamente nem utilizaacute-lo como garantia da objetividade

O posicionamento de Schopenhauer sobre essas questotildees revela a marca

- 74 -

das criacuteticas que Kant recebeu de seus contemporacircneos190

Ele elimina a separaccedilatildeo entre

sujeito e objeto mostrando que satildeo polos distintos de uma mesma esfera a da representaccedilatildeo

tornando descabida a questatildeo de saber quais relaccedilotildees se estabelecem entre um e outro A

representaccedilatildeo eacute um ponto fixo um apoio que ele considera suficientemente firme para

alicerccedilar todo o seu edifiacutecio teoacuterico de certa forma ldquopara mover o mundordquo O problema da

validade objetiva eacute resolvido por Schopenhauer com a minuciosa descriccedilatildeo do modo como os

objetos satildeo criados por meio do princiacutepio de razatildeo suficiente Ele se empenha na

argumentaccedilatildeo que prova a dependecircncia da intuiccedilatildeo com relaccedilatildeo ao entendimento expondo a

radical diferenccedila entre ela e a simples sensaccedilatildeo Por conseguinte natildeo surgem do seu

pensamento uma esfera da representaccedilatildeo e outra dos objetos ambas as coisas satildeo idecircnticas

Sua demonstraccedilatildeo da aprioridade do princiacutepio de razatildeo eacute realizada com diversos exemplos e

ilustraccedilotildees que patenteiam a extrema subordinaccedilatildeo da representaccedilatildeo relativamente a ele Natildeo

resta qualquer espaccedilo para a questatildeo ldquoquid jurisrdquo

Outro ponto relevante a ser destacado eacute que a separaccedilatildeo irredutiacutevel entre

as faculdades do entendimento e da sensibilidade tornava muito difiacutecil relacionar conceitos

juiacutezos e intuiccedilotildees Schopenhauer assombrosamente reuacutene todas as questotildees que estavam em

jogo em torno de um uacutenico princiacutepio o de razatildeo suficiente por meio do qual interliga todas as

faculdades intelectuais e todos os tipos de objetos possiacuteveis Segundo pensamos isso eacute

realmente uma maravilha da criatividade e da genialidade schopenhauerianas pois o filoacutesofo

conseguiu extrair tudo a partir de um uacutenico ponto isto eacute deduzir dele tanto o mundo empiacuterico

quanto o conceitual Unificando numa mesma raiz sensibilidade entendimento e razatildeo seu

princiacutepio explica a um soacute tempo a conexatildeo entre as intuiccedilotildees e os conceitos o dado e o

pensado o universal e o particular o necessaacuterio e o contingente

Nos ldquoFragmentos para a histoacuteria da filosofiardquo dos Parerga e

Paralipomena Schopenhauer expotildee seu modo de entender a controveacutersia sobre a coisa em si

kantiana Ele afirma que a pressuposiccedilatildeo de que exista uma coisa em si sob os fenomenos eacute

correta e que apenas o modo como Kant a justificou foi ineficaz porque ela natildeo podia ser

harmonizada com os princiacutepios da sua filosofia E esse se tornou entatildeo seu ldquocalcanhar de

190

Victor Delbos observa bem que nos iniacutecios de seu filosofar Schopenhauer descarta conscientemente o

conceito de coisa em si ainda sob a influecircncia da argumentaccedilatildeo de Schulze Na primeira ediccedilatildeo de Da

quaacutedrupla raiz e nos Manuscritos Poacutestumos datados de 1812-1813 Schopenhauer aponta para a nulidade do

conceito de coisa em si e para o absurdo de se afirmar que ela cause o fenocircmeno Para noacutes isso sugere que

Schopenhauer foi modificando suas posiccedilotildees com atenccedilatildeo a esse debate Cf DELBOS op cit p 256-257

- 75 -

Aquilesrdquo cuja inconsistecircncia foi provada primeiro por Schulze depois por outros191

Para ele

no entanto eacute muito mais inaceitaacutevel a conclusatildeo da inexistecircncia da coisa em si e natildeo teria

sido exatamente esse o ponto visado pelos adversaacuterios de Kant mas somente sua exposiccedilatildeo

De certo modo diz Schopenhauer a argumentaccedilatildeo natildeo foi ad rem mas ad hominem192

Em

todo caso ele entende como realmente incorreta a utilizaccedilatildeo das leis a priori do intelecto para

derivar a existecircncia de uma coisa em si por traacutes dos fenocircmenos Essas leis natildeo podem

conduzir a nada que natildeo seja representaccedilatildeo de modo que o caminho para chegar ateacute aquela

teraacute de ser outro No entender do filoacutesofo Kant descobriu no conhecimento um conjunto de

elementos de origem subjetiva e outro de origem empiacuterica que foi considerado entatildeo como

objetivo em contraposiccedilatildeo agravequele Para ele isso foi bastante coerente porque Kant natildeo

poderia estender os elementos a priori a coisas independentes do intelecto

Conforme Schopenhauer haacute algo que permanece de fato desconhecido e

eacute precisamente a coisa em si Os elementos a posteriori satildeo inseparaacuteveis dos que satildeo a priori

e por isso diz ele ldquoKant ensina que podemos saber da existecircncia da coisa em si mas que daiacute

natildeo podemos extrair nada isto eacute apenas saber que ela eacute natildeo o que ela eacute por isso a essecircncia

da coisa em si permanece nele como uma grandeza desconhecida um Xrdquo193

As diferenccedilas

existentes entre os objetos provariam a existecircncia da coisa em si na medida em que formas a

priori satildeo as mesmas para todos eles mas eles natildeo satildeo todos idecircnticos essas diferenccedilas

segundo Schopenhauer devem-se agrave coisa em si194

O argumento poreacutem com que Kant a

introduziu eacute insustentaacutevel porque sua proacutepria filosofia natildeo permite que se passe do subjetivo

ao objetivo isto eacute do sujeito agraves coisas mesmas o que se fosse feito equivaleria a tomar a

causalidade como absoluta Schopenhauer conclui entatildeo que jamais se encontraraacute a coisa em

si seguindo-se o fio condutor da representaccedilatildeo mas apenas ele afirma ldquo[] mudando o ponto

de vista a saber ao inveacutes de partir do que representa como sempre se fez ateacute agora partir-se

do que eacute representadordquo195

Como consequecircncia na metafiacutesica schopenhaueriana a representaccedilatildeo eacute a

objetidade da coisa em si ou seja natildeo haacute nenhum elemento de mediaccedilatildeo entre ambas pois

ao fim e ao cabo satildeo um e o mesmo mundo observado de lados opostos Nesse caso nem a

191

PP I Fragmente zur Geschichte der Philosophie sect 13 p 113 Fragmentos para a histoacuteria da filosofia

Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas de Maria Luacutecia Cacciola Satildeo Paulo Iluminuras 2003 sect 13 p 79-80 192

Ibidem sect 13 p 114 ibidem sect 13 p 79 193

Ibidem sect 13 p 116 ibidem sect 13 p 81 (grifos do autor) 194

Ibidem sect 13 loc cit ibidem sect 13 loc cit 195

Ibidem sect 13 p 118 ibidem sect 13 p 83 (grifos do autor)

- 76 -

causalidade nem outro princiacutepio a priori satildeo exigidos para se conectar coisa em si e

representaccedilatildeo A coisa em si natildeo seraacute conhecida com recurso ao que estaacute fora do sujeito a um

objeto que lhe eacute inacessiacutevel mas por meio da sua proacutepria vontade individual daiacute a

elaboraccedilatildeo de uma metafiacutesica imanente Natildeo obstante a coisa em si de Schopenhauer ganha

outras determinaccedilotildees que conformam seu edifiacutecio teoacuterico de uma maneira peculiar A

Vontade eacute considerada por ele por exemplo o nuacutecleo mais real e verdadeiro do mundo em

contraposiccedilatildeo agrave representaccedilatildeo ilusoacuteria e efecircmera Na sua argumentaccedilatildeo preserva-se o caraacuteter

fenomecircnico do mundo empiacuterico e reforccedila-se a ideia de que o sensiacutevel conduz apenas ao

sensiacutevel de modo que o conhecimento que desvelaraacute a coisa em si natildeo seraacute o regido pelo

princiacutepio de razatildeo suficiente incluiacutedo aqui o do conhecer Como resultado a representaccedilatildeo eacute

mantida como aparecircncia a objetividade do conhecimento eacute garantida por um princiacutepio

intelectual e a coisa em si eacute preservada e desenvolvida

- 77 -

Capiacutetulo 2 ndash A construccedilatildeo do lado externo do mundo idealismo transcendental

21 ndash Philosophia prima

211 ndash O princiacutepio maacuteximo do conhecimento

Neste capiacutetulo detalhamos as relaccedilotildees e os conceitos apresentados no

capiacutetulo anterior no tocante agrave teoria do conhecimento de Schopenhauer Para isso utilizamos

o texto de Da quaacutedrupla raiz ediccedilatildeo de 1847 o primeiro livro de O mundo e os capiacutetulos

correspondentes de O mundoII ediccedilatildeo de 1859 Seguimos a indicaccedilatildeo dada pelo filoacutesofo no

prefaacutecio da primeira obra mencionada onde ele afirma que nesses textos juntamente com a

Criacutetica da filosofia kantiana estaacute encerrada sua teoria acerca do intelecto humano1 Quando

uacutetil pela clareza e conveniente do ponto de vista explicativo utilizamos tambeacutem outras obras

indicadas oportunamente

No prefaacutecio de Da quaacutedrupla raiz Schopenhauer afirma que sua

abordagem da problemaacutetica do conhecimento eacute nova e peculiar realizada por meio da

formulaccedilatildeo demonstraccedilatildeo e justificaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo suficiente A despeito da

maneira enfaacutetica com a qual o filoacutesofo apresenta o princiacutepio de razatildeo como a condiccedilatildeo de

possibilidade de todo e qualquer conhecimento sua concepccedilatildeo sobre este uacuteltimo eacute mais

ampla Eacute possiacutevel notar diferentes conceitos e modos de conhecer matizados tanto pelo lado

da Vontade quanto da representaccedilatildeo Da perspectiva desta uacuteltima temos quatro formas do

princiacutepio de razatildeo suficiente intuiccedilotildees puras intuiccedilotildees empiacutericas intuiccedilotildees normais

representaccedilotildees fictiacutecias e representaccedilotildees abstratas Do lado da Vontade temos ideias

1 UumlV p 9 CR p 27

- 78 -

conhecimento eacutetico conhecimento esteacutetico e nenhum princiacutepio Eacute possiacutevel ainda matizar e

classificar modos distintos de conhecer por exemplo conhecimento interno externo

imediato mediato concreto abstrato pelo princiacutepio de razatildeo e tambeacutem com exclusatildeo dele

No texto Schopenhauer and Knowledge David Hamlyn chama a atenccedilatildeo para essa

complexidade que se manifesta em duas grandes maneiras de conhecer Esse autor observa

que o conhecimento de que trata Da quaacutedrupla raiz eacute consciente e condicionado enquanto

o que entra em jogo no quarto livro de O mundo referente agrave superaccedilatildeo da Vontade eacute de um

tipo totalmente oposto ou seja inconsciente e incondicionado Na interpretaccedilatildeo dele

Alguns objetos tornam-se objetos do conhecimento apenas quando estatildeo

sujeitos a condiccedilotildees quando por exemplo e esse eacute o caso das

representaccedilotildees eles ocorrem em estruturas regulares Outros objetos podem

ser objetos do conhecimento sem a satisfaccedilatildeo de tais condiccedilotildees e no caso de

certos objetos ndash a vontade por exemplo ndash natildeo apenas pode ser assim mas

deve ser assim e esse eacute o fato que torna incondicional o conhecimento em

questatildeo2

Para Hamlyn embora natildeo deixe claro em cada um dos quatro livros de

O Mundo Schopenhauer dedica-se a um objeto distinto respectivamente agraves representaccedilotildees

comuns agrave Vontade agraves ideias e ao saber que conduz agrave negaccedilatildeo do querer3 Concepccedilatildeo

semelhante apresenta Margit Ruffing para quem o filoacutesofo lida com uma teoria do

conhecimento distinta em cada livro de sua obra capital Na interpretaccedilatildeo dessa autora a

contemplaccedilatildeo esteacutetica abordada por Schopenhauer no terceiro livro de O Mundo tem um

papel de destaque no sistema pois representa o ponto de transiccedilatildeo entre o conhecimento

imperfeito da Vontade e sua compreensatildeo completa4 Os quatro livros na interpretaccedilatildeo dela

ldquo[] tecircm como base apenas duas questotildees de conhecimento ndash a questatildeo a respeito de o que do

conhecimento da essecircncia do significado do mundo e a questatildeo a respeito do acesso ao

conhecimento essencial a respeito do como do conhecimentordquo5

Nossa anaacutelise se concentraraacute no conhecimento pelo lado da representaccedilatildeo

e por isso exporemos grande parte das ideias contidas em Da quaacutedrupla raiz que discorre

minuciosamente sobre o princiacutepio de razatildeo Todavia natildeo adotamos exatamente a ordem que

2 HAMLYN D Schopenhauer and knowledge In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 46 (traduccedilatildeo nossa) 3 Ibidem p 45

4 Esse eacute o tema da dissertaccedilatildeo da autora defendida na Johannes Gutenberg Universitaumlt ndash Mainz em 2001 Cf

RUFFING M Wille zur Erkenntnis Die Selbsterkenntnis des Willens und die Idee des Menschen in der

aumlsthetischen Theorie Arthur Schopenhauers 5 RUFFING M A relevacircncia eacutetica da contemplaccedilatildeo esteacutetica Revista etich - An international Journal for

Moral Phylosophy Florianoacutepolis v11 n2 p 263-271 julho de 2012 p 264 (grifos da autora)

- 79 -

o filoacutesofo considerou a correta do ponto de vista sistemaacutetico a saber iniciar com o princiacutepio

de razatildeo do ser em relaccedilatildeo ao tempo passar para a mesma forma do princiacutepio com relaccedilatildeo ao

espaccedilo em seguida expor a lei de causalidade posteriormente a de motivaccedilatildeo e por fim o

princiacutepio com relaccedilatildeo ao conhecimento abstrato6 Essa ordem segue do mais simples e

imediato ao mais complexo e mediato sendo realmente uma boa sequecircncia expositiva

Apenas julgamos que ficam mais claras as teses e as relaccedilotildees que pretendemos ressaltar

quando mudamos a posiccedilatildeo da lei de motivaccedilatildeo e a expomos logo apoacutes o princiacutepio de razatildeo

do ser Ou seja iniciaremos com as intuiccedilotildees puras e o princiacutepio de razatildeo do ser passando ao

sujeito da voliccedilatildeo e agrave lei de motivaccedilatildeo em seguida ao entendimento suas intuiccedilotildees empiacutericas

e a causalidade por fim aos conceitos e ao princiacutepio de razatildeo do conhecer

Embora heterodoxa essa sequecircncia expositiva ao que nos parece natildeo eacute

de todo infundada Schopenhauer se baseia na complexidade das formas do princiacutepio de

razatildeo enquanto noacutes pensamos na complexidade dos objetos Ao que nos parece assim se

torna mais claro o caraacuteter especiacutefico do sujeito do querer bem como fica realccedilada sua relaccedilatildeo

com o sentido interno e com a intuiccedilatildeo singular de um objeto uacutenico para cada indiviacuteduo

Entendemos que natildeo haacute prejuiacutezo em nos debruccedilarmos somente depois sobre as intuiccedilotildees

empiacutericas que envolvem tanto o tempo quanto o espaccedilo ao passo que o sujeito do querer eacute

intuiacutedo somente no tempo Certamente a lei de motivaccedilatildeo exige que o agente conheccedila o

mundo o que passa pela lei de causalidade mas eacute possiacutevel compreender sua estrutura e seu

objeto especiacutefico sem detalhar como se datildeo concretamente as accedilotildees

Schopenhauer declara que a descoberta e a descriccedilatildeo do princiacutepio de

razatildeo foram feitas por meio de duas leis transcendentais da razatildeo as quais servem de regra

para o meacutetodo de toda a filosofia e todo o conhecimento a saber a especificaccedilatildeo e a

homogeneidade Por meio desta uacuteltima diz ele satildeo encontradas as semelhanccedilas e

concordacircncias nos objetos que satildeo agrupados em conceitos de espeacutecies estas em gecircneros e

estes em conceitos mais amplos A primeira por sua vez diferencia os conceitos das espeacutecies

em um determinado gecircnero os indiviacuteduos dentro das espeacutecies e quaisquer conceitos em geral

Para Schopenhauer tratam-se de satildeo leis da razatildeo pura agraves quais os objetos devem

necessariamente se adequar Nas palavras dele

Kant ensina que essas duas leis transcendentais satildeo princiacutepios da razatildeo que

postulam a priori a concordacircncia das coisas consigo mesmos e Platatildeo

6 UumlV sect46 p178 CR sect46 p 214-215

- 80 -

parece tambeacutem expressaacute-lo do seu modo na medida em que diz que essas

regras agraves quais toda ciecircncia deve sua origem foram-nos jogadas da morada

dos deuses com o fogo de Prometeu7

Eacute digno de nota que Schopenhauer mencione essas duas leis da razatildeo tal

como Kant as pensou como os fundamentos de seu meacutetodo de descoberta Como

mostraremos mais agrave frente o filoacutesofo reduziu muito o acircmbito de atuaccedilatildeo da razatildeo natildeo

contemplando os princiacutepios sinteacuteticos que Kant atribui a ela No caso dessas duas leis

Schopenhauer as utiliza para encontrar o ponto de partida que seraacute depois o fundamento de

todo e qualquer conhecimento o que leva a crer que elas estatildeo em um posto mais originaacuterio e

elevado do que o do princiacutepio de razatildeo Apesar disso o filoacutesofo as refere no seu tratado como

o meacutetodo heuriacutestico com o qual se deduz o princiacutepio

De qualquer forma as leis de homogeneidade e de especificaccedilatildeo satildeo

apontadas aqui como as regras do meacutetodo filosoacutefico Dentre as duas diz Schopenhauer a de

especificaccedilatildeo eacute particularmente relevante para o estudo do princiacutepio de razatildeo enquanto o uso

isolado da de homogeneidade teria conduzido a muitos erros Isso se explicaria porque

embora tenha sido bastante investigado atraveacutes da Histoacuteria natildeo se teria ainda compreendido

as aplicaccedilotildees e significaccedilotildees distintas dele Essa consideraccedilatildeo se torna importante porque

Schopenhauer formula o princiacutepio de razatildeo como uma estrutura uacutenica que permite interligar

as diferentes faculdades do intelecto o que eacute imprescindiacutevel para uma soluccedilatildeo satisfatoacuteria aos

problemas postos pelas criacuteticas feitas a Kant De acordo com isso ele escreve ldquo[] esforccedilo-

me nesse tratado em assentar o princiacutepio de razatildeo suficiente como um juiacutezo com um

fundamento quaacutedruplo natildeo quatro diferentes fundamentos que teriam levado por azar ao

mesmo juiacutezo mas um princiacutepio quaacutedruplo que nomeio figuradamente quaacutedrupla raizrdquo8 Daiacute a

utilidade maior do princiacutepio de especificaccedilatildeo que permite discernir no tronco uacutenico suas

diferentes aplicaccedilotildees e raiacutezes Especiacuteficos tambeacutem satildeo os modos em que se apresenta a

necessidade que ele possui enquanto elemento a priori a qual diz o filoacutesofo ldquo[] natildeo eacute a

uacutenica nem a mesma em toda parte mas sim muacuteltipla como as proacuteprias fontes do princiacutepiordquo9

Schopenhauer elege a formulaccedilatildeo com que Wolff enuncia o princiacutepio

ldquoNihil est sine ratione cur potius sit quam non sitrdquo10

considerando que ela possui a

generalidade exigida para enquadrar cada uma das quatro formas Em linhas gerais o

7 UumlV sect1 p 12 CR sect1 p 30

8 UumlV sect33 p 133-134 CR sect33 p 164

9 UumlV sect3 p 13 CR sect3 p 31

10 UumlV sect5 p 15 CR sect5 p 33

- 81 -

princiacutepio determina que nada pode ser sem uma razatildeo pela qual eacute ou nas palavras do

filoacutesofo ldquoO sentido geral do princiacutepio de razatildeo resume-se a que sempre e em toda parte cada

coisa somente eacute em razatildeo de outrardquo11

Em Da quaacutedrupla raiz Schopenhauer resume os

significados e as ideias anteriores agrave sua proacutepria concepccedilatildeo do princiacutepio jaacute conhecido desde a

Antiguidade12

De maneira ampla ele teria sido notado como algo importante por diversos

filoacutesofos mas as diferenccedilas existentes entre suas formas natildeo teria sido percebida e uma

confusatildeo teria se instalado principalmente entre causa e razatildeo de conhecimento Ateacute mesmo

Aristoacuteteles teria cometido esse erro pois embora tivesse divisado diferentes princiacutepios e

distintas causas atuando no mundo concreto13

natildeo teria separado estas uacuteltimas da razatildeo de

conhecimento14

Via de regra as causas fiacutesicas eram confundidas com as razotildees loacutegicas que

sustentam raciociacutenios resultando em argumentaccedilotildees que incorriam na falaacutecia non causae ut

causa15

Segundo o filoacutesofo esse eacute o caso do argumento ontoloacutegico em que se misturam a

razatildeo de conhecimento do conceito de Deus que eacute dada pela sua definiccedilatildeo com a causa fiacutesica

de um mundo dotado de realidade No fim de contas diz ele ldquo[] esse Deus tem com o

mundo a relaccedilatildeo de um conceito com sua definiccedilatildeordquo16

Eacute curioso que Schopenhauer natildeo tenha mencionado entre as formulaccedilotildees

anteriores agrave sua a concepccedilatildeo de Christian August Crusius No sect 11 de Da quaacutedrupla raiz

ele discorre brevemente sobre o entendimento dos filoacutesofos situados entre Wolff e Kant

passando por Baumgartem Reimarus Lambert e Platner mas natildeo se reporta agravequele17

Conforme se lecirc em Cassirer a compreensatildeo de Crusius a respeito do princiacutepio de razatildeo

suficiente eacute bastante proacutexima agrave de Schopenhauer inclusive com a posiccedilatildeo privilegiada que

este confere ao conhecimento intuitivo Um primeiro ponto de contato poderia ser apontado

em que para Crusius natildeo se pode remeter todo o conhecimento a conceitos abstratos mas

escreve Cassirer ldquoEm vez de comeccedilar pelos bdquoconceitos possiacuteveis‟ para partindo deles

como faz Wolff esforccedilar-se em determinar o real por meio de determinaccedilotildees loacutegicas

11

UumlV sect52 p 187 CR sect52 p 224 (grifos do autor) 12

No capiacutetulo II de Da quaacutedrupla raiz Schopenhauer discute diversas formulaccedilotildees e teorizaccedilotildees sobre o

princiacutepio de razatildeo Aleacutem dos de Leibniz e Wolff menciona o entendimento de Platatildeo Aristoacuteteles Plutarco

estoicos escolaacutesticos Suarez Hobbes Reimarus Schulze Fries Descartes Espinosa Baumgarten Lambert

Platner Hume Kant Eberhardt Hofbauer Maass Jakob Kiesewetter Jacobi Maimon e Schelling Cf UumlV

zweites Kap sectsect6-14 p 16-38 CR cap II sectsect6-14 p 34-56 13

Cf ARISTOacuteTELES An Post II 11 94a-95a Metafiacutesica Livro I (A) 3 983b-984a An Post I 32 88a-

89a 14

UumlV sect6 p 18 CR sect6 p 36-37 15

UumlV sect6 p 19 et seq CR sect6 p 36 et seq Na falaacutecia da falsa causa atribui-se a um efeito uma causa que natildeo

lhe corresponde 16

UumlV sect8 p 28 CR sect8 p 46 17

UumlV sect11 p 33-34 CR sect11 p 51-52

- 82 -

progressivas devemos seguir o caminho inversordquo18

Uma segunda conexatildeo poderia ser

indicada na visatildeo de que o conhecimento tem de comeccedilar pelos sentidos e de que a mera

anaacutelise loacutegica de conceitos natildeo constitui verdadeiro saber19

Um terceiro e mais importante

ponto de contato entre o pensamento de Schopenhauer e de Crusius acerca do princiacutepio de

razatildeo seria o de que este uacuteltimo distingue tatildeo clara e conscientemente quanto aquele a causa

real de um acontecimento e o fundamento do conhecer Nas palavras de Cassirer ldquo[] em

Crusius surge o esquema geral que haveraacute de manter-se em peacute ateacute chegar aos tempos

modernos e que reaparece por exemplo quase inalteraacutevel na obra de Schopenhauer Da

quaacutedrupla raiz do princiacutepio de razatildeo suficienterdquo20

De qualquer modo Schopenhauer considera que uma das suas grandes

contribuiccedilotildees eacute a diferenciaccedilatildeo e descriccedilatildeo de cada uma das quatro raiacutezes do princiacutepio bem

como de seu funcionamento e aplicaccedilatildeo a objetos especiacuteficos E ele se empenha nisso seguro

de que a distinccedilatildeo e a fundamentaccedilatildeo precisas satildeo realizaccedilotildees exclusivamente suas Leibniz e

Wolff teriam sido os que mais se acercaram da concepccedilatildeo que advoga mas cada qual teria

errado de um modo O primeiro diz ele chegou a perceber a diferenccedila entre causa e

fundamento do conhecer mas sem se deter nela claramente o segundo embora tivesse

realizado o que faltou agravequele teria confundido diversas vezes as formas do princiacutepio e errado

tambeacutem em consideraacute-lo ontoloacutegico e natildeo loacutegico como ele proacuteprio defende21

Com efeito o princiacutepio se manifesta em quatro leis loacutegicas de diferentes

faculdades intelectuais e se aplica ao pensamento de todos os objetos resumindo em si o

aparato cognitivo como um todo Na medida em que eacute a condiccedilatildeo de possibilidade do

conhecimento do pensamento e da proacutepria demonstraccedilatildeo ele eacute indemonstraacutevel Como

escreve o filoacutesofo ldquoToda prova eacute exatamente a apresentaccedilatildeo de uma razatildeo para um juiacutezo

proferido o qual por isso recebe o predicado de verdadeirordquo22

A raiz do princiacutepio consiste no

seu significado geral e tudo o que podemos conhecer deve passar por ele sem o seu

intermeacutedio nada pode tornar-se objeto para noacutes23

No livro I de O mundo Schopenhauer

resume sua realizaccedilatildeo ldquoNo meu tratado sobre o princiacutepio de razatildeo mostrei minuciosamente

como cada objeto possiacutevel estaacute submetido a ele isto eacute estaacute em uma relaccedilatildeo necessaacuteria com

18

CASSIRER op cit II p 481 (grifos do autor) 19

Ibidem p 483ss 20

Ibidem p 503 21

UumlV sect9 p 31 CR sect9 p 49 22

UumlV sect14 p 38 CR sect14 p 56 (grifos do autor) 23

UumlV sect16 p 41 CR sect16 p 59

- 83 -

outros objetos de um lado como determinado de outro determinando []rdquo24

Por

conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente estaacute na base dos objetos dos conceitos dos

raciociacutenios da loacutegica da matemaacutetica das ciecircncias numa palavra do mundo e do

conhecimento do mundo Todas as faculdades cognitivas descobertas por Schopenhauer a

saber sensibilidade entendimento e razatildeo assim como quaisquer objetos possiacuteveis estatildeo

intrinsecamente ligados ao princiacutepio e satildeo remetidos pelo filoacutesofo agraves relaccedilotildees entre sujeito e

objeto ou o que eacute o mesmo entre sujeito e representaccedilatildeo Esse pensamento eacute sintetizado com

as palavras seguintes

Nossa consciecircncia cognoscente que se apresenta como sensibilidade

exterior e interior (receptividade) entendimento e razatildeo divide-se em

sujeito e objeto e fora disso nada conteacutem Ser objeto para o sujeito e ser

nossa representaccedilatildeo eacute o mesmo Todas as nossas representaccedilotildees satildeo objetos

do sujeito e todos os objetos do sujeito satildeo nossas representaccedilotildees Com

efeito todas as nossas representaccedilotildees encontram-se relacionadas entre si de

modo regular e determinaacutevel a priori quanto agrave forma pela qual nada

existente por si e independente bem como isolado e fragmentado pode

tornar-se objeto par noacutes25

Como dissemos antes o princiacutepio de razatildeo eacute indemonstraacutevel jaacute que eacute o

fundamento de toda a demonstraccedilatildeo e explicaccedilatildeo De modo semelhante o sujeito do

conhecimento natildeo pode ser ele mesmo conhecido pois diz Schopenauer ldquo[] para isso se

exigiria que o sujeito se separasse do conhecer e entatildeo conhecesse o conhecer o que eacute

impossiacutevelrdquo26

De acordo com Cacciola o filoacutesofo assimilou essa liccedilatildeo de Kant para quem o

sujeito transcendental como mera forma natildeo pode ser conhecido por si mas apenas por meio

das suas representaccedilotildees Na criacutetica dos paralogismos da razatildeo pura diz a autora ldquo[]

Schopenhauer iraacute detectar a proposta idealista kantiana ou seja a afirmaccedilatildeo impliacutecita de que

bdquonatildeo haacute objeto sem sujeito‟rdquo27

No mesmo sentido o filoacutesofo argumenta que as faculdades

cognitivas natildeo podem ser conhecidas diretamente mas apenas inferidas a partir dos tipos de

objetos aos quais se aplicam As faculdades representativas satildeo vistas por ele como os

correlatos subjetivos das classes de objetos possiacuteveis como capacidades cognitivas abstraiacutedas

dos tipos de representaccedilatildeo28

Portanto sujeito e objeto satildeo definidos reciprocamente isto eacute

24

WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I Livro I sect2 p 46 25

UumlV sect16 p 41 CR sect16 p 59 (grifos do autor) 26

UumlV sect41 p 169 CR sect41 p 203 27

CACCIOLA M L A criacutetica da Razatildeo no pensamento de Schopenhauer Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Faculdade

de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo Departamento de Filosofia Satildeo Paulo

1981 p 13 28

UumlV sect41 p 169-170 CR sect41 p 204

- 84 -

todo objeto exige um sujeito que conhece como seu correlato necessaacuterio e vice-versa29

Nas

palavras do filoacutesofo

[] com um objeto determinado de certa forma coloca-se exatamente e de

modo imediato tambeacutem o sujeito como conhecendo dessa tal forma Assim

eacute indiferente se eu digo os objetos possuem tais e tais determinaccedilotildees

particulares e proacuteprias ou que o sujeito conhece de tais e tais modos

indiferente se eu digo os objetos satildeo divididos em tais classes ou que ao

sujeito satildeo proacuteprias tais diferentes faculdades cognoscitivas30

Mais do que isso cada classe de representaccedilotildees soacute possui existecircncia para

o seu correlato subjetivo ou faculdade de conhecimento correspondente31

A muacutetua

condicionalidade existente entre sujeito e objeto fica entatildeo ressaltada jaacute que a compreensatildeo

de um exige a do outro e a formulaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo expressaraacute a estrutura e o

funcionamento das faculdades intelectuais em ligaccedilatildeo intriacutenseca com os objetos Por

conseguinte a correlaccedilatildeo que Schopenhauer estabelece entre as faculdades e as

representaccedilotildees natildeo deixa lacuna para que se questione o mecanismo de adequaccedilatildeo entre

sujeito e objeto O princiacutepio de razatildeo sozinho fornece uma fundamentaccedilatildeo para o

conhecimento do mundo fenomecircnico que natildeo demanda nada para aleacutem de si proacuteprio Esse eacute o

modo em que Schopenhauer soluciona a questatildeo quid juris isto eacute ele demonstra que o

mundo eacute mera representaccedilatildeo do sujeito natildeo existindo antes ou separado deste Essa opiniatildeo eacute

semelhante agrave de F C White para quem

Uma vez fornecido esse resumo seletivo eacute possiacutevel dizer de uma soacute vez

onde reside a importacircncia de Da quaacutedrupla raiz com respeito ao sistema de

Schopenhauer Reside na sua tentativa de estabelecer que o mundo cotidiano

eacute representacional de estabelecer que os princiacutepios de razatildeo governam

aquele mundo sem licenccedila para nenhuma inferecircncia agrave realidade para aleacutem

dele e de refutar muitas das alegaccedilotildees dos que sustentam o contraacuterio32

29

WWV I ersters Buch sect5 p 44 M I Livro I sect5 p 56 30

UumlV sect41 p 170 CR sect41 p 204 (grifos do autor) 31

WWV I ersters Buch sect4 p 41 M I Livro I sect4 p 53 32

WHITE F C The fourfold root In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 64 (traduccedilatildeo nossa)

- 85 -

212 ndash Formas da sensibilidade intuiccedilotildees puras e sujeito da voliccedilatildeo

Na medida em que eacute fundada pelo princiacutepio de razatildeo a realidade

empiacuterica se reduz a representaccedilatildeo do sujeito que a origina e a condiciona por meio das suas

formas a priori eacute assim que a realidade do mundo como representaccedilatildeo coexiste com a sua

idealidade transcendental33

A demonstraccedilatildeo de Schopenhauer acerca da idealidade

transcendental do mundo segue dois caminhos distintos O primeiro jaacute elaborado antes por

Kant se bem que de modo diferente eacute o esclarecimento da anterioridade das noccedilotildees de tempo

e espaccedilo com relaccedilatildeo agrave experiecircncia como um todo O segundo que seraacute desenvolvido no

proacuteximo item refere-se agrave edificaccedilatildeo do universo empiacuterico com base no princiacutepio de razatildeo

suficiente

Kant demonstrou a aprioridade das formas do tempo e do espaccedilo dos

pontos de vista ontoloacutegico e transcendental No primeiro caso ele argumentou que natildeo nos eacute

possiacutevel representar nada que natildeo seja espacial e temporalmente situado As representaccedilotildees

do tempo e do espaccedilo se apresentariam a noacutes como dotadas de unidade e infinitude o que

evidenciaria natildeo se tratar de conceitos empiacutericos De um lado cada uma delas seria intuiacuteda

como una e como abrangendo em si as partes menores ou seja cada intuiccedilatildeo parcial do

tempo e do espaccedilo seria remetida a uma representaccedilatildeo total anterior de que natildeo se poderia de

antematildeo ter um conhecimento Com efeito a unidade do tempo e a do espaccedilo natildeo poderiam

ser obtidas pela junccedilatildeo de todas as partes respectivas jaacute que as proacuteprias partes seriam

limitaccedilotildees daquela unidade e seriam pensaacuteveis por meio dela De outro lado as intuiccedilotildees do

tempo e do espaccedilo seriam pensadas como infinitas e no entanto nenhum conceito poderia

abrarcar uma infinidade de representaccedilotildees Do ponto de vista do exame transcendental Kant

define tempo e espaccedilo como princiacutepios dos quais derivam conhecimentos sinteacuteticos a priori

A Geometria fundada sobre o espaccedilo a priori comprovaria a existecircncia desse tipo de

conhecimento em funccedilatildeo da necessidade das suas proposiccedilotildees Para Kant a necessidade e a

33

WWV I ersters Buch sect1 p 32 M I Livro I sect1 p 44

- 86 -

universalidade indicam tratar-se de conhecimento a priori jaacute que na experiecircncia natildeo haacute nada

que apresente a mesma apodicticidade34

A argumentaccedilatildeo schopenhaueriana acerca do tempo e do espaccedilo procura

demonstrar que o conjunto da realidade empiacuterica natildeo poderia existir sem aquelas formas que

portanto satildeo anteriores e constitutivas Na obra Schopenhauer Patrick Gardiner afirma sobre

esse ponto que tempo e espaccedilo ldquoSatildeo formas da nossa bdquosensibilidade‟ o que equivale a dizer

entre outras coisas que estamos constituiacutedos de tal modo que tudo aquilo de que somos

conscientes em nossa experiecircncia sensorial deve se apresentar a noacutes em termos espaccedilo-

temporaisrdquo35

Conforme Schopenhauer o tempo eacute a forma do sentido interno constituiacuteda pela

sucessatildeo pela qual os fenocircmenos aparecem sempre de modo subsequente O espaccedilo por sua

vez eacute a forma do sentido externo que determina a representaccedilatildeo dos fenocircmenos de modo

contiacuteguo constituiacuteda pela justaposiccedilatildeo Embora de certo modo antagocircnicas ambas essas

formas satildeo exigidas para a intuiccedilatildeo do mundo pois diz o filoacutesofo ldquoAs representaccedilotildees

empiacutericas que pertencem ao complexo organizado da realidade aparecem todavia nas duas

formas ao mesmo tempo e aleacutem disso a uniatildeo estreita de ambas eacute uma condiccedilatildeo da

realidade a qual surge ateacute certo ponto como um produto desses fatoresrdquo36

Schopenhauer sustenta entatildeo que as representaccedilotildees da simultaneidade e

da mudanccedila caracteriacutesticas estruturais da realidade empiacuterica satildeo dependentes das formas do

tempo e do espaccedilo Com isso ele demonstra que sua junccedilatildeo eacute a condiccedilatildeo de possibilidade do

conjunto da experiecircncia e que portanto tempo e espaccedilo satildeo formas a priori Todas as outras

representaccedilotildees possiacuteveis estariam vinculadas agraves da simultaneidade e da mudanccedila de forma

que a argumentaccedilatildeo acerca destas se estenderia agraves restantes Com relaccedilatildeo agrave representaccedilatildeo da

simultaneidade Schopenhauer explica que embora tenha caraacuteter temporal ela exige tanto o

tempo quanto o espaccedilo pois o tempo natildeo pode garantir a existecircncia paralela de duas

representaccedilotildees jaacute que eacute mera sucessatildeo exigindo-se tambeacutem o espaccedilo para que ambas sejam

situadas lado a lado num instante dado Do modo semelhante o espaccedilo eacute justaposiccedilatildeo natildeo

permitindo apenas por si a simultaneidade entre dois estados o que se daacute pela existecircncia de

suas representaccedilotildees ao mesmo tempo37

No tocante agrave mudanccedila dos objetos tempo e espaccedilo

tambeacutem seriam requeridos conjuntamente Somente com o espaccedilo natildeo poderia haver a

34

KrV B3 ndash B6 CRP p 37-39 35

GARDINER P Schopenhauer Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1997 p 133 (traduccedilatildeo nossa) (grifos

do autor) 36

UumlV sect18 p 43 CR sect18 p 63 (grifos do autor) 37

UumlV sect18 p 42-43 CR sect18 p 62

- 87 -

sucessatildeo de estados que caracteriza a mudanccedila somente com o tempo natildeo haveria qualquer

estado a ser modificado No primeiro livro de O mundo o filoacutesofo esclarece esse ponto

afirmando que ldquoA mudanccedila isto eacute a alteraccedilatildeo introduzida pela lei causal refere-se todas as

vezes a uma parte determinada do espaccedilo e a uma parte determinada do tempo

simultaneamente e juntasrdquo38

Por sua vez as noccedilotildees de duraccedilatildeo e permanecircncia tambeacutem

imprescindiacuteveis para a constituiccedilatildeo do mundo dos fenocircmenos seriam dependentes das de

mudanccedila e simultaneidade Em funccedilatildeo disso embora sejam noccedilotildees mais ligadas ao tempo

requerem tambeacutem a contribuiccedilatildeo do espaccedilo como forma Nas palavras de Schopenhauer ldquoA

permanecircncia de um objeto soacute eacute conhecida por meio da oposiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave mudanccedila de

outro com o qual eacute simultacircneordquo39

O mesmo pode ser afirmado sobre a duraccedilatildeo que tambeacutem

se liga agrave simultaneidade Assim a sucessatildeo e a justaposiccedilatildeo seriam condiccedilotildees fundamentais

do mundo empiacuterico pelas quais tempo e espaccedilo se tornariam o tecido onde se desenham os

fenocircmenos e sem as quais natildeo se poderia falar em duraccedilatildeo mutaccedilatildeo simultaneidade ou

permanecircncia Conforme a explicaccedilatildeo de Gardiner ldquoDaiacute que seja tatildeo impossiacutevel conceber

objetos materiais que existam em um mundo puramente temporal como conceber sua

existecircncia em um mundo puramente espacial supondo que mundos de uma ou outra classe

pudessem ser imaginaacuteveisrdquo40

A intuiccedilatildeo a priori do tempo e do espaccedilo constitui os objetos especiacuteficos

aos quais o princiacutepio de razatildeo suficiente se aplica nesse caso o do ser Tais objetos satildeo

intuiccedilotildees puras que natildeo podem ser extraiacutedas da experiecircncia como por exemplo o ponto a

linha a extensatildeo e a divisibilidade infinita e que se distinguem das intuiccedilotildees empiacutericas em

funccedilatildeo da ausecircncia de mateacuteria41

A sucessatildeo e a justaposiccedilatildeo satildeo as relaccedilotildees proacuteprias e

intriacutensecas respectivamente das partes do tempo e das do espaccedilo relaccedilotildees que satildeo de

condicionamento muacutetuo Gardiner ilustra esse ponto de modo interessante

Se por exemplo perguntam-me quando ocorreu algo posso responder

relacionando temporalmente o fato com outro momento ou ocasiatildeo cuja

posiccedilatildeo na escala do tempo jaacute eacute conhecida pela pessoa com quem estou

falando de modo parecido se me perguntam onde estaacute algo posso

38

WWV I ersters Buch sect4 p 39 M I Livro I sect4 p 51 (grifos do autor) 39

UumlV sect18 p 43 CR sect18 p 62 (grifos do autor) 40

GARDINER op cit p 146 (traduccedilatildeo nossa) 41

UumlV sect35 p 157 CR sect35 p 189-190

- 88 -

responder sempre indicando suas relaccedilotildees com outros pontos ou aacutereas

espaciais42

Como formas da sensibilidade a sucessatildeo e a justaposiccedilatildeo satildeo a priori e

natildeo podem ser remetidas a nada conhecido empiricamente mas antes qualquer representaccedilatildeo

de posicionamento antecedecircncia ou progressatildeo de objetos as exige Pois afirma

Schopenhauer

[] essa intuiccedilatildeo natildeo eacute como uma representaccedilatildeo fictiacutecia tomada de

empreacutestimo da repeticcedilatildeo da experiecircncia mas sim tatildeo independente desta

que pelo contraacuterio a experiecircncia eacute que deve ser pensada como dependente

daquela enquanto as qualidades do tempo e do espaccedilo como satildeo conhecidas

a priori na intuiccedilatildeo satildeo leis para toda a experiecircncia possiacutevel a qual tem de

concordar com elas em toda parte43

O princiacutepio de razatildeo suficiente do ser (Satz vom zureichenden Grunde

des Seins) ou principium rationis sufficientis essendi eacute a lei segundo a qual se datildeo as

relaccedilotildees no tempo e no espaccedilo Segundo Gardiner essa forma do princiacutepio difere claramente

de outras pois ele explica ldquo[] a igualdade dos lados de um triacircngulo eacute a ratio essendi da

igualdade dos acircngulos embora a relaccedilatildeo entre a bdquorazatildeo‟ e a bdquoconsequecircncia‟ seja aqui

necessaacuteria natildeo eacute uma relaccedilatildeo de causal ou uma relaccedilatildeo de vinculaccedilatildeo loacutegicardquo44

No caso do

espaccedilo a posiccedilatildeo de cada objeto determina a de todos os outros em uma relaccedilatildeo reciacuteproca de

consequecircncia a razatildeo sem que esteja implicada uma ordem de precedecircncia entre ambas45

Nas

palavras de Schopenhauer ldquo[] eacute indiferente qual seraacute entendida como determinante qual

como determinada isto eacute como ratio (fundamento) e a outra como rationata (fundada)rdquo46

Em virtude disso como tambeacutem da sua infinitude a cadeia das razotildees de ser no espaccedilo eacute

infinita tanto a parte ante quanto a parte post e todas as parcelas de espaccedilos possiacuteveis satildeo

figuras contiacuteguas que se limitam mutuamente Como o filoacutesofo escreve ldquoA series rationum

essendi (seacuterie das razotildees de ser) no espaccedilo assim como a series rationum fiendi (seacuterie das

razotildees do devir) segue in infinitum (ao infinito) e natildeo somente em uma soacute como esta uacuteltima

mas em todas as direccedilotildeesrdquo47

No caso do tempo o condicionamento das suas partes se daacute do

momento anterior para o posterior e o princiacutepio de razatildeo do ser eacute bastante simples a saber

apenas a lei de sucessatildeo num soacute sentido Entatildeo diz Schopenhauer ldquoCada momento eacute

42

GARDINER op cit p 143 (traduccedilatildeo nossa) 43

WWV I ersters Buch sect3 p 35-36 M I Livro I sect3 p 47 44

GARDINER op cit p 142 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 45

UumlV sect37 p 159 CR sect37 p 191 46

UumlV sect37 p 159 CR sect37 p 191 47

UumlV sect37 p 160 CR sect37 p 192

- 89 -

determinado pelo anterior somente por meio deste pode-se chegar agravequele apenas quando

aquele foi decorreu este eacuterdquo48

Na obra Schopenhauer uma filosofia da trageacutedia Alexis Philonenko

observa bem que o tempo possui uma expressatildeo mais simples e tambeacutem mais ampla do que o

espaccedilo Nesse sentido ele afirma ldquo[] Schopenhauer faz observar que o tempo natildeo eacute

somente a dimensatildeo na qual se produz toda a intuiccedilatildeo mas tambeacutem todo pensamento

incluiacutedas as noccedilotildees abstratas Ademais eacute no tempo onde se desenvolve a vontaderdquo49

De fato

aleacutem das intuiccedilotildees puras no tempo abordadas na aritmeacutetica o sentido interno intui um objeto

totalmente distinto dos mencionados ateacute agora a saber o sujeito da voliccedilatildeo Este eacute uma classe

de representaccedilotildees para o sujeito cognoscente mas que possui a peculiaridade de ser apenas

um objeto para cada indiviacuteduo Como o filoacutesofo explica essa classe abrange ldquo[] um objeto

para cada um o objeto imediato do sentido interno o sujeito do querer o qual eacute objeto para

o sujeito cognoscente e de fato eacute dado soacute no sentido interno soacute no tempo natildeo aparece no

espaccedilo e como veremos mesmo assim com uma significativa limitaccedilatildeordquo50

Em siacutentese o

sujeito da voliccedilatildeo eacute a consciecircncia que cada sujeito tem de si mesmo como ser desejante

Como expusemos acima o sujeito cognoscente natildeo pode conhecer-se

enquanto tal pois isso implicaria separar-se de si mesmo mas na condiccedilatildeo de desejante

torna-se possiacutevel conhecer-se No capiacutetulo 4 de O mundoII acerca do conhecimento a

priori Schopenhauer esclarece que ldquoO tempo eacute desse modo a forma por meio da qual a

vontade individual que originalmente e em si mesma natildeo possui qualquer conhecimento

pode autoconhecer-serdquo51

Sem esse conhecimento interno o sujeito conheceria a si mesmo

apenas como algo externo dado pelos sentidos isto eacute como objeto espacializado Seria uma

concepccedilatildeo singulariacutessima na Histoacuteria da Filosofia na qual o sujeito que conhece e age sempre

foi identificado com algo interno na maior parte das vezes como uma alma

Eacute interessante notar que na argumentaccedilatildeo schopenhaueriana a

consciecircncia apresenta uma cisatildeo interna dividindo-se ela tambeacutem em sujeito e objeto O

objeto eacute constituiacutedo por uma classe especial de representaccedilotildees dada no tempo e regida por

sua forma particular do princiacutepio de razatildeo o sujeito eacute o mesmo que conhece todos os outros

48

UumlV sect38 p 160 CR sect38 p 193 (grifos do autor) 49

PHILONENKO A Schopenhauer una filosofia de la tragedia Barcelona Anthropos 1989 p 94 (traduccedilatildeo

nossa) 50

UumlV sect40 p 168 CR sect40 p 202 (grifos do autor) 51

WWWII Kap 4 p 49 MII cap 4 p 43

- 90 -

objetos E assim encontramos um objeto especiacutefico e individualizado por assim dizer

inserido no sentido interno isto eacute dentro da consciecircncia No caso desse objeto Schopenhauer

natildeo fala em faculdade de conhecimento somente em um correlato subjetivo que eacute a

consciecircncia de si ou sentido interno52

A vontade individual eacute uacutenica para cada indiviacuteduo mas

pode apresentar-se em muacuteltiplos graus e intensidades os quais satildeo definidos como

sentimentos dados imediatamente ao sujeito do conhecer Em virtude disso diz o filoacutesofo ldquoA

partir do conhecimento pode-se dizer que ldquoeu conheccedilordquo seja uma sentenccedila analiacutetica ao

contraacuterio ldquoeu querordquo eacute sinteacutetica e na verdade a posteriori dada pela experiecircncia aqui pela

interna (isto eacute somente no tempo)rdquo53

O conhecimento do sujeito do querer eacute entatildeo o mais imediato de todos

posto que eacute dado na consciecircncia de si e eacute o que deveraacute mediar o conhecimento de quaisquer

outros objetos A forma do princiacutepio de razatildeo que rege o sujeito do querer eacute a lei de

motivaccedilatildeo (Satz vom zureichenden Grunde des Handelns) ou principium rationis sufficientis

agendi pela qual todas as accedilotildees e decisotildees dos indiviacuteduos satildeo resultantes de motivos do

mesmo modo como todo efeito implica uma causa Essa lei eacute apresentada por Schopenhauer

como completamente paralela agrave de causalidade que investigaremos em seguida e definida

como esta uacuteltima vista por dentro54

Em linhas gerais a lei de motivaccedilatildeo determina que as

decisotildees e os atos de vontade dos indiviacuteduos sejam originados a partir de motivos de modo

interno e imediato55

Por fim eacute importante ressaltar que essa classe de objetos eacute anunciada ao

sujeito cognoscente a partir de outra instacircncia a saber da vontade individual cuja raiz eacute

metafiacutesica Trata-se portanto de um ponto onde se encontram os dois lados do mundo

52

UumlV sect42 p 171-172 CR sect42 p 206 53

UumlV sect42 p 171 CR sect42 p 205 54

UumlV sect43 p 173 CR sect43 p 208 55

UumlV sect43 p 173 CR sect43 p 208

- 91 -

213 ndash Dianoiologia

Como dissemos no item anterior a prova schopenhaueriana da idealidade

transcendental do mundo como representaccedilatildeo segue dois caminhos Por um lado sustenta a

necessidade das formas da sensibilidade para o conjunto do mundo como representaccedilatildeo por

outro explica o mecanismo de construccedilatildeo dos objetos que o compotildeem com base no princiacutepio

de razatildeo Esta uacuteltima prova eacute realizada tambeacutem de duas perspectivas a saber pelo acircngulo do

conjunto da experiecircncia e pelo dos objetos singulares No tocante ao conjunto da experiecircncia

Schopenhauer argumenta que a uniatildeo de tempo e espaccedilo eacute obra do entendimento que ao

empreendecirc-la cria a realidade empiacuterica Essa prova poderia ser confundida com a referente agrave

aprioridade do tempo e do espaccedilo que tambeacutem satildeo acionados aqui Para a distinccedilatildeo poreacutem

basta notarmos que no primeiro caso o filoacutesofo expotildee a anterioridade das formas da

sensibilidade mostrando que a sucessatildeo e a justaposiccedilatildeo satildeo fundamentais para as

representaccedilotildees de simultaneidade e mudanccedila enquanto no segundo caso a construccedilatildeo da

realidade empiacuterica eacute explicada pelo ato de junccedilatildeo daquelas formas realizado pela lei de

causalidade No primeiro caso o alvo satildeo tempo e espaccedilo enquanto formas e no segundo o

princiacutepio de razatildeo e o entendimento White tambeacutem sublinha a necessidade do entendimento

para a formaccedilatildeo da experiecircncia ao afirmar que ldquoEmbora por essas razotildees tempo e espaccedilo

sejam necessaacuterios para a existecircncia real dos objetos eles natildeo satildeo suficientes Precisam ser

unidos por um terceiro componente e eacute a faculdade do entendimento que o fornece impondo

sua uacutenica categoria ao que lhe eacute dadordquo56

O princiacutepio de razatildeo referente ao entendimento harmoniza as

caracteriacutesticas transmitidas agrave experiecircncia pelo tempo em que tudo eacute sucessivo e pelo espaccedilo

em que tudo eacute justaposto Conforme Schopenhauer as propriedades do tempo e do espaccedilo satildeo

contrapostas isto eacute o fluxo constante do primeiro se opotildee agrave permanecircncia imoacutevel do

segundo57

Com a uniatildeo de ambos o entendimento agrupa e ordena o complexo de

representaccedilotildees que entatildeo surge e que abarca todas as intuiccedilotildees empiacutericas mesmo distantes

entre si no tempo e no espaccedilo Eacute o nascimento do universo total dos fenocircmenos onde diz o

56

WHITE op cit p 67 (traduccedilatildeo nossa) 57

WWVI ersters Buch sect4 p 39 MI Livro I sect4 p 51

- 92 -

filoacutesofo ldquo[] inumeraacuteveis objetos existem simultaneamente porque nele embora o tempo

natildeo possa ser detido a substacircncia isto eacute a mateacuteria permanece e apesar da imobilidade riacutegida

do espaccedilo seus objetos mudam no qual em uma palavra nos eacute dado todo o mundo real

objetivordquo58

Portanto o princiacutepio de razatildeo agrega as intuiccedilotildees empiacutericas que constituem a

classe de objetos relacionada aos dados concretos do mundo e assim edifica a realidade como

um todo Schopenhauer afirma que os objetos dessa classe satildeo intuitivos porque natildeo satildeo

meros pensamentos satildeo completos porque englobam forma e mateacuteria e satildeo empiacutericos pois

estatildeo em relaccedilatildeo direta com as sensaccedilotildees corporais e com o conjunto total da realidade59

Como jaacute exposto o tempo eacute o sentido interno e simultaneamente a

forma do sujeito cognoscente onde as representaccedilotildees encontram-se de modo imediato dentre

elas o sujeito da voliccedilatildeo Daiacute decorre em primeiro lugar que todas as representaccedilotildees passam

por ele inclusive as empiacutericas que tambeacutem exigem o intercurso do sentido externo E em

segundo lugar que elas fluem continuamente no sujeito Nas palavras do filoacutesofo

Desse modo como o sujeito em funccedilatildeo das leis tanto do mundo interno

como do externo natildeo pode ficar parado em uma representaccedilatildeo e no

entanto no mero tempo nada eacute simultacircneo entatildeo cada representaccedilatildeo estaraacute

sempre novamente desaparecendo substituiacuteda por outra em uma ordem natildeo

determinaacutevel a priori mas sim dependente de circunstacircncias que logo seratildeo

mencionadas60

Sobre esse ponto duas consequecircncias satildeo importantes Por um lado o

sujeito cognoscente por si soacute natildeo poderia engendrar a realidade empiacuterica pois sua forma eacute a

da sucessatildeo Por outro o conhecimento das representaccedilotildees se daacute de modo imediato no sentido

interno isto eacute no tempo e no presente de modo que passado e futuro natildeo satildeo representaccedilotildees

intuitivas

De acordo com o dito haacute uma discrepacircncia entre o caraacuteter fugidio e

isolado das representaccedilotildees tomadas individualmente e o complexo total da realidade no qual

elas aparecem como partes que se combinam de um modo ateacute certo ponto duradouro

Portanto a unificaccedilatildeo de tempo e espaccedilo pelo entendimento eacute condiccedilatildeo da experiecircncia e

nessa perspectiva diz Schopenhauer o realismo natildeo se sustenta pois considera o todo

empiacuterico como real e a representaccedilotildees isoladas como elementos meramente ideais Para ele o

idealismo entendeu a questatildeo de forma diferente e melhor porque conseguiu combinar a

58

UumlV sect18 p 44 CR sect18 p 63 59

UumlV sect17 p 42 CR sect17 p 61 60

UumlV sect19 p 45 CR sect19 p 65 (grifos do autor)

- 93 -

realidade empiacuterica dos objetos do universo corpoacutereo com a idealidade deles61

Parte

fundamental desse idealismo eacute a concepccedilatildeo de que o mundo concreto eacute um fenocircmeno do

sujeito e o erro do realismo teria sido natildeo compreender o caraacuteter de representaccedilatildeo das coisas

tomadas por reais nem a relaccedilatildeo intriacutenseca entre sujeito e objeto O realismo afirma o

filoacutesofo ldquo[] desconsidera que o objeto fora de sua relaccedilatildeo com o sujeito natildeo eacute mais objeto e

que se algueacutem lhe retira dessa relaccedilatildeo ou a abstrai imediatamente toda a existecircncia objetiva

tambeacutem eacute suspensardquo62

A forma do princiacutepio de razatildeo que estabelece a dinacircmica das

representaccedilotildees no todo empiacuterico eacute o principium rationis sufficientis fiendi (Satz vom

zureichenden Grunde des Werdens) ou princiacutepio de razatildeo suficiente do devir63

Trata-se da

lei de causalidade que determina o iniacutecio e o fim de estados da mateacuteria bem como todas as

mudanccedilas ocorridas nas representaccedilotildees no decurso do tempo Nas palavras de Schopenhauer

ldquo[] quando surge um novo estado de um ou mais objetos reais deve ter havido outro

anterior ao qual ele segue regularmente isto eacute todas as vezes em que o primeiro existe Tal

sequecircncia denomina-se derivar o primeiro estado causa e o segundo efeitordquo64

De um ponto

de vista mais preciso a lei de causalidade determina as transformaccedilotildees nos corpos materiais

iniciadas em instantes dados do tempo

Para Gardiner ldquo[] Schopenhauer natildeo considerou que a conexatildeo causal

entre fenocircmenos implicasse a existecircncia de uma espeacutecie de bdquouniatildeo‟ ou bdquolaccedilo‟ quase-loacutegico

que unisse misteriosamente a causa ao efeito nisso sua posiccedilatildeo natildeo difere da de Hume e

outros que atacaram essa ideiardquo65

Por nossa parte pensamos que o viacutenculo estabelecido por

Schopenhauer entre causa e efeito eacute sim loacutegico pois se baseia na ideia de uma uniatildeo

necessaacuteria entre ambos em qualquer das duas direccedilotildees possiacuteveis isto eacute do efeito para a causa

ou da causa para o efeito Eacute certo que na visatildeo schopenhaueriana sem recurso agrave experiecircncia

natildeo se pode determinar a causa concreta que engendrou um efeito mas se pode e se deve

afirmar com certeza que o efeito teve uma causa quando natildeo se puder apontaacute-la o estado

resultante seraacute visto como milagre Com efeito para o filoacutesofo toda causa acarreta

indefectivelmente o seu efeito sem exceccedilatildeo sendo exatamente esse seu conceito de

61

UumlV sect18 p 46 CR sect18 p 66 62

UumlV sect19 p 47 CR sect19 p 66 63

UumlV sect20 p 48 CR sect20 p 68 64

UumlV sect20 loc cit CR sect20 loc cit 65

Ibidem op cit p 152 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor)

- 94 -

necessidade Aleacutem disso Schopenhauer entende o princiacutepio como composto de quatro leis

loacutegicas como jaacute mostramos anteriormente

A natureza se configura como um complexo empiacuterico em constante

mutaccedilatildeo e alteraccedilatildeo de estados em que causas e efeitos alternam-se permanentemente como

elos de uma cadeia sem iniacutecio66

Que essa cadeia seja infinita na direccedilatildeo descendente isto eacute

no sentido do futuro decorre jaacute da definiccedilatildeo de tempo como a forma da sucessatildeo que

somente pode se dar do anterior para o posterior Que ela seja tambeacutem infinita na direccedilatildeo

ascendente Schopenhauer ilustra com o exemplo do processo de aquecimento de um corpo A

adiccedilatildeo do calor ao corpo diz ele ldquo[] eacute tambeacutem dependente de uma mudanccedila anterior por

exemplo a incidecircncia de raios de sol em uma lupa esta da saiacuteda de uma nuvem da frente do

sol esta por causa do vento isso pela diferenccedila de densidade do ar esta por outras

mudanccedilas in infinitumrdquo67

Para ele o que determina a apariccedilatildeo de um estado novo o

aquecimento do corpo por exemplo natildeo eacute a condiccedilatildeo que aparece por uacuteltimo a incidecircncia de

raios de sol e sim todas as condiccedilotildees em conjunto Embora a uacuteltima possa ser a decisiva o

que determina qualquer transformaccedilatildeo eacute o quadro causal completo

Por conseguinte natildeo eacute o fato de ser imediatamente anterior no tempo o

que indica a causa de uma mudanccedila mas sim a reuniatildeo dos fatores que juntos formam as

circunstacircncias determinantes Entatildeo o filoacutesofo explica no caso mencionado do aquecimento

do corpo a ordem em que ocorreram os eventos natildeo importa isto eacute em que instantes se datildeo a

retirada da nuvem da frente do sol o direcionamento da lupa ao objeto e assim por diante Um

evento acontecer antes e o outro depois natildeo tem nenhuma influecircncia especiacutefica sobre o efeito

pois diz ele ldquo[] o estado completo eacute a causa do estado seguinte para o qual eacute

essencialmente indiferente a sequecircncia temporal em que suas determinaccedilotildees se reuniramrdquo68

Natildeo obstante o quadro causal no seu conjunto deve necessariamente ser anterior ao efeito

que origina Nas palavras do filoacutesofo ldquoQualquer mudanccedila no mundo material somente pode

surgir se outra a precedeu de modo imediato esse eacute o verdadeiro e total conteuacutedo da lei de

causalidaderdquo69

O princiacutepio de razatildeo do devir se relaciona com as mudanccedilas de estados

na mateacuteria sem no entanto poder modificaacute-la Schopenhauer enfatiza esse ponto mostrando

66

UumlV sect20 p 48 et seq CR sect20 p 68 et seq 67

UumlV sect20 48 CR sect20 68 68

UumlV sect20 p 49 CR sect20 p 70 (grifos do autor) 69

WWWII Kap 4 p 54 MII cap 4 p 48 (grifos do autor)

- 95 -

que a causalidade natildeo se refere a objetos que nesse caso causariam uns aos outros mas

somente agrave entrada e saiacuteda dos estados no tempo70

A causalidade eacute entatildeo uma lei que rege as

alteraccedilotildees nos objetos e que introduz um nexo necessaacuterio entre as causas e os efeitos nas

mudanccedilas ocorridas na mateacuteria Poreacutem como dito ela natildeo determina o surgimento dos

objetos mesmos pois isso significaria originaacute-los tambeacutem no que tecircm de material o que natildeo eacute

caso Nesse sentido diz Schopenhauer ldquo[] evencia-se que a causalidade se liga apenas a

mudanccedilas de forma da mateacuteria incriada e indestrutiacutevel enquanto um verdadeiro surgimento

um vir a existir de algo que nunca foi eacute uma impossibilidaderdquo71

Eacute interessante a exegese que

Bryan Magee em sua obra Schopenhauer elabora sobre esse ponto

Schopenhauer insiste em que a causa de um acontecimento soacute pode ser outro

acontecimento natildeo pode ser um objeto ou um estado de coisas Os objetos e

os estados de coisas entram e saem da existecircncia mediante sequecircncias de

acontecimentos relacionados causalmente e que juntos constituem a histoacuteria

em curso do mundo natural isto eacute o universo fiacutesico em sua totalidade Essa

eacute a relaccedilatildeo causal tal como se concebe na ciecircncia e na fiacutesica newtoniana72

Por conseguinte tanto quanto o efeito a causa tambeacutem surge em um

momento determinado Em virtude disso natildeo se poderia afirmar a existecircncia de uma causa

objetiva primaacuteria como seria a postulaccedilatildeo de um ente originaacuterio nem se poderia assegurar

que fosse a primeira pois ela sempre teraacute de remeter a outra causa mais elevada Desse modo

causa prima e causa sui satildeo consideradas por Schopenhauer como contradictiones in adjeto

jaacute que a lei de causalidade nunca cessa de exigir a busca das causas e diz o filoacutesofo ldquo[] uma

causa primeira eacute tatildeo impensaacutevel como o lugar onde espaccedilo acaba e o instante em que o tempo

comeccedilardquo73

De modo semelhante natildeo se poderia encontrar por meio dessa lei um primeiro

estado da mateacuteria do qual todos os outros fossem decorrentes Em primeiro lugar porque

sendo nada nada dele se derivaria em segundo porque se o estado inicial fosse a causa dos

mais distantes estes tambeacutem existiriam desde sempre e o estado atual natildeo poderia estar

avanccedilado no tempo74

De outra perspectiva supondo-se que tenha havido um primeiro estado

que se tornou causa em um dado momento isso significaria o advento de uma transformaccedilatildeo

anterior a ele que por sua vez tem de ter sido decorrente de outra mudanccedila esta de outra e

assim sucessivamente Como escreve White

70

UumlV sect20 p 50 CR sect20 p 70 71

UumlV sect20 p 51 CR sect20 p 71 72

MAGEE B Schopenhauer Madrid Catedra 1991 p 37 (traduccedilatildeo nossa) 73

UumlV sect20 p 52 CR sect20 p 73 74

UumlV sect20 p 52-53 CR sect20 loc cit

- 96 -

Deus natildeo pode ser uma causa posto que Deus natildeo eacute uma mudanccedila e soacute

mudanccedilas podem ser causas nem mudanccedilas em Deus podem ser causas

posto que natildeo haacute mudanccedilas em Deus Aleacutem disso o mundo dos objetos reais

natildeo pode ser um efeito de Deus como causa pois objetos reais satildeo

substacircncias e portanto diferentemente dos efeitos natildeo possuem iniacutecio Em

qualquer evento a proacutepria noccedilatildeo de causa incausada eacute incoerente pois toda

causa eacute uma mudanccedila e portanto ela proacutepria exige uma causa75

Consequentemente o argumento cosmoloacutegico natildeo tem sentido porque

utiliza o princiacutepio de razatildeo suficiente do devir com o propoacutesito de revogar a validade dele76

ldquoPoisrdquo o filoacutesofo explica ldquosomente se chega agrave causa prima (absolutum) ascendendo do efeito

ao seu fundamento percorrendo-se uma seacuterie de tamanho arbitraacuterio mas natildeo se pode parar

nela sem anular o princiacutepio de razatildeordquo77

Na condiccedilatildeo de forma do princiacutepio de razatildeo a lei de causalidade eacute a

priori vaacutelida para toda a experiecircncia possiacutevel A relaccedilatildeo que ela estabelece determina de

modo necessaacuterio que um dos estados eacute anterior e causa enquanto outro eacute posterior e efeito

Daiacute a denominaccedilatildeo de princiacutepio do devir porque um evento emerge a partir de outro

inclusive com a ordem determinada em que a causa vem primeiro e o efeito depois Nas

palavras de Schopenhauer ldquoPertence ao seu caraacuteter essencial aleacutem disso que a causa sempre

preceda o efeito no tempo e soacute assim se conheceraacute originalmente qual de ambos os estados

ligados pelo nexo causal seria a causa e qual o efeitordquo78

Desse modo a existecircncia de causas

reciacuteprocas seria impossiacutevel pois isso significaria uma confusatildeo entre o que eacute anterior e o que

eacute posterior ou diz o filoacutesofo ldquo[] que o efeito fosse tambeacutem a causa de sua causa e assim

que o seguinte fosse simultacircneo ao precedenterdquo79

As leis da ineacutercia e da permanecircncia da substacircncia satildeo entendidas por

Schopenhauer como corolaacuterios da de causalidade A ineacutercia determina a perpetuaccedilatildeo do

movimento ou do repouso que somente satildeo alterados se alguma causa retirar o corpo do

estado em que se encontra A mudanccedila no estado de movimento ou de repouso eacute um efeito

que exige uma causa para ocorrer A lei da permanecircncia da substacircncia por seu turno eacute

relacionada pelo filoacutesofo agrave mateacuteria que natildeo se modifica com as mudanccedilas de estado

realizadas pela causalidade a qual somente altera o repouso o movimento a forma e a

75

WHITE op cit p 69 (traduccedilatildeo nossa) 76

UumlV sect20 p 55-56 CR sect20 p 76 77

UumlV sect20 p56 CR sect20 p 76-77 78

UumlV sect20 p 57 CR sect20 p 78 79

UumlV sect20 loc cit CR sect20 loc cit

- 97 -

qualidade dos corpos80

A causalidade diz Schopenhauer ldquo[] de modo algum se refere agrave

existecircncia do portador desses estados ao qual se deu o nome de substacircncia justamente para

expressar sua isenccedilatildeo de todo nascer e perecerrdquo81

Como natildeo haacute no entendimento uma forma

pela qual pudeacutessemos pensar o surgimento e o desaparecimento da substacircncia conheceriacuteamos

a priori a lei que afirma sua permanecircncia A explicaccedilatildeo de White sobre esse ponto eacute

elucidativa

Permita-nos imaginar que eu mova um martelo e bata um prego cravando-o

num pedaccedilo de madeira O movimento do martelo uma mudanccedila relativa no

seu estado eacute a causa e o movimento do prego uma mudanccedila relativa no seu

estado eacute o efeito Nesse modelo simplificado entatildeo causa e efeito satildeo

mudanccedilas em objetos reais e Schopenhauer sustenta que isso eacute verdadeiro

para todas as causas e efeitos todas e quaisquer mudanccedilas satildeo causas e

efeitos e consequentemente os objetos reais mesmos natildeo Seu raciociacutenio

aqui eacute que os objetos reais satildeo substacircncias isto eacute eles satildeo constituiacutedos por

mateacuteria e uma vez que para ele a mateacuteria eacute eterna e inalteraacutevel as

substacircncias natildeo tecircm iniacutecio nem fim Daiacute se segue que elas natildeo satildeo

mudanccedilas portanto nem causas nem efeitos82

A funccedilatildeo do entendimento eacute portanto conhecer a causalidade e aplicaacute-la

aos estados aos quadros causais fenomecircnicos Isso significa que ela se relaciona sempre a

algo especificamente determinado ou nas palavras de Schopenhauer ldquoQue estado deve

aparecer neste tempo e neste espaccedilo eacute a determinaccedilatildeo agrave qual unicamente se estende a

legislaccedilatildeo da causalidaderdquo83

Mesmo nos sendo invisiacutevel a substacircncia estaraacute sempre

pressuposta necessariamente e essa eacute outra razatildeo pela qual se pode dizer que o conhecimento

da lei da sua permanecircncia eacute a priori e natildeo a posteriori O filoacutesofo lembra nesse sentido que

o desaparecimento de um corpo natildeo demove a convicccedilatildeo de que ele deve estar em outro lugar

porque temos a certeza caracteriacutestica de um conhecimento a priori de que nada desaparece

pura e simplesmente Um conhecimento a posteriori adquirido por induccedilatildeo natildeo eacute capaz de

promover esse tipo de assentimento que contrapotildee de modo inexoraacutevel ateacute mesmo o que eacute

visto com os proacuteprios olhos Assim ele afirma

Tambeacutem natildeo obtivemos a posteriori a convicccedilatildeo acerca da permanecircncia da

substacircncia em parte porque eacute impossiacutevel na maioria dos casos comprovaacute-

los empiricamente em parte porque todo conhecimento empiacuterico

conhecido apenas por induccedilatildeo possui certeza apenas aproximativa por

consequecircncia precaacuteria e nunca incondicional por isso a seguranccedila da

nossa convicccedilatildeo em relaccedilatildeo agravequela lei eacute de um tipo e natureza totalmente

80

WWV I ersters Buch sect4 p 40 M I Livro I sect4 p 52 81

UumlV sect20 p 58 CR sect20 p 79 (grifos do autor) 82

WHITE op cit p 68 (traduccedilatildeo nossa) 83

WWV I ersters Buch sect4 p 40 M I Livro I sect4 p 52 (grifos do autor)

- 98 -

diferentes da seguranccedila sentida na exatidatildeo de qualquer lei natural

empiricamente descoberta posto que possui uma solidez totalmente

diferente completamente inabalaacutevel e nunca oscilante84

De acordo com isso a lei da permanecircncia da substacircncia eacute transcendental

natildeo proveacutem da experiecircncia ao contraacuterio determina-a Nessa condiccedilatildeo conforma o mundo da

representaccedilatildeo que diz Schopenhauer ldquo[] fica reduzido como um todo a um mero fenocircmeno

cerebralrdquo85

O caraacuteter de necessidade eacute essencial a um conhecimento transcendental e eacute

suficiente tambeacutem para distinguir um saber empiacuterico vaacutelido em certos contextos de outro a

priori vaacutelido em qualquer contexto da experiecircncia possiacutevel Como escreve o filoacutesofo ldquoO

princiacutepio de razatildeo suficiente em todas as suas formas eacute o uacutenico princiacutepio e o uacutenico portador

de toda e qualquer necessidade Pois necessidade natildeo tem outro sentido verdadeiro e claro do

que a inevitabilidade da consequecircncia quando a razatildeo eacute postardquo86

Mesmo no caso de leis empiacutericas providas de generalidade e grau alto de

certeza natildeo se pode tomaacute-las por apodiacuteticas como satildeo as leis da causalidade da ineacutercia e da

permanecircncia da substacircncia Sempre se poderaacute supor a existecircncia ou imaginar a

experimentaccedilatildeo de situaccedilotildees novas em que elas natildeo se verifiquem o que significa que satildeo em

alguma medida dependentes de circunstacircncias que soacute surgem a posteriori Esse eacute o caso

inclusive da lei da gravitaccedilatildeo universal que diz Schopenhauer eacute meramente empiacuterica e

deixa duacutevidas entre os astrocircnomos sobre se vigeria em outros sistemas solares entre corpos

separados pelo vazio absoluto e em outras situaccedilotildees87

Conhecimentos a priori poreacutem satildeo

ancorados no princiacutepio de razatildeo e natildeo deixam margem a questotildees que soacute possam ser

resolvidas com informaccedilotildees e dados empiacutericos Entatildeo ele escreve ldquoEu defendo aleacutem disso

que o princiacutepio de razatildeo eacute a expressatildeo geral para todas essas formas conhecidas por noacutes a

priori e que tudo o que podemos conhecer somente a priori nada mais eacute do que o conteuacutedo

daquele princiacutepio e do que dele se segue []88

Aleacutem da substacircncia a causalidade tambeacutem natildeo modifica as forccedilas da

natureza que conforme Schopenhauer possibilitam que as causas acarretem os efeitos As

forccedilas da natureza possuem um estatuto diferente diz ele ldquo[] satildeo isentas de toda mudanccedila e

nesse sentido fora de todo o tempo por isso mesmo contudo existem sempre e em toda a

84

UumlV sect20 p 59 CR sect20 p 80 (grifos do autor) 85

UumlV sect20 loc cit CR sect20 p 81 86

UumlV sect49 p 181 CR sect49 p 218 (grifos do autor) 87

UumlV sect20 p 59 CR sect20 p 81 88

WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I Livro I sect2 p 46

- 99 -

parte onipresentes e inesgotaacuteveis sempre prontas a se manifestarem logo que a guia da

causalidade oferece a oportunidaderdquo89

A causa e o efeito natildeo satildeo forccedilas universais desse tipo

satildeo mutaccedilotildees particularizadas em pontos especiacuteficos do tempo e do espaccedilo As forccedilas

naturais ao contraacuterio satildeo universais e ubiacutequas Em O mundo Schopenhauer esclarece a

esse respeito que ldquoO que eacute determinado pela lei de causalidade natildeo eacute a sucessatildeo de estados no

mero tempo mas essa sucessatildeo com respeito a um espaccedilo determinado e tambeacutem natildeo a

existecircncia de mudanccedilas meramente num certo espaccedilo mas nesse espaccedilo em um tempo

determinadordquo90

Causas e efeitos satildeo entatildeo acontecimentos singulares que desencadeiam

processos de mutaccedilatildeo com base em forccedilas imutaacuteveis e gerais cuja regularidade de apariccedilatildeo

em cadeias causais evidencia tratarem-se de leis91

Por conseguinte as forccedilas naturais

originaacuterias natildeo satildeo fiacutesicas natildeo possuem explicaccedilatildeo no acircmbito fenomecircnico mas sim

metafiacutesicas e satildeo chamadas por Schopenhauer de ldquoqualitas occultardquo92

A mutaccedilatildeo que desencadearaacute o efeito pode ser de trecircs tipos a saber

causa estrita (Ursache) relacionada aos corpos inorgacircnicos estiacutemulo (Reiz) ligado agraves plantas

e motivo (Motiv) proacuteprio dos animais Schopenhauer considera que as distintas

receptividades a esses tipos de causas satildeo as reais diferenccedilas entre os seres e natildeo suas

caracteriacutesticas de ordem fiacutesica ou quiacutemica93

Sem prejuiacutezo para a forma geral da causalidade

cada tipo de causa estabelece processos diferentes de causaccedilatildeo em uma de trecircs esferas

distintas A causa estrita vige na natureza inorgacircnica e segue a terceira lei de Newton que

estabelece a igualdade de accedilatildeo e reaccedilatildeo em direccedilotildees contraacuterias Os efeitos que daiacute se

originam satildeo parte dos estudos das ciecircncias fiacutesicas e quiacutemicas O estiacutemulo vigora na natureza

orgacircnica sem conhecimento como as plantas e a parte vegetativa da vida animal objetos das

ciecircncias bioloacutegicas Por fim o motivo eacute relacionado agrave vida consciente especificamente a

animal dando origem a decisotildees e accedilotildees Schopenhauer natildeo distingue seres humanos e

animais pelo conhecimento em sentido amplo pois o entendimento eacute suficiente para o influxo

dos motivos em todos eles O entendimento ele afirma ldquo[] eacute o mesmo em todos os animais

e em todos os homens tem em toda parte a mesma forma simples conhecimento da

causalidade passagem do efeito agrave causa e da causa ao efeito e nada aleacutem dissordquo94

89

UumlV sect20 p 60 CR sect20 p 82 90

WWV I ersters Buch sect4 p 39 M I Livro I sect4 p 51 91

UumlV sect20 p 61 CR sect20 p 83 92

UumlV sect20 loc cit CR sect20 loc cit 93

UumlV sect20 p 62 CR sect20 p 84 94

WWV I ersters Buch sect6 p 53 M I Livro I sect6 p 64

- 100 -

Aleacutem de estruturar o conjunto da experiecircncia e regular as interaccedilotildees entre

os fenocircmenos a causalidade possui outra funccedilatildeo a saber a constituiccedilatildeo dos objetos

empiacutericos Como dissemos antes essa eacute a segunda parte da demonstraccedilatildeo da idealidade

transcendental do mundo como representaccedilatildeo e aqui veremos entrar a soluccedilatildeo de

Schopenhauer para a questatildeo acerca da afecccedilatildeo dos sentidos por um objeto exterior Com

efeito a intuiccedilatildeo empiacuterica eacute produzida pelo entendimento com a causalidade juntamente com

as formas da sensibilidade pura tempo e espaccedilo95

Com suas formas diz o filoacutesofo o

entendimento ldquo[] a partir de elementos simples de algumas sensaccedilotildees dos oacutergatildeos dos

sentidos cria e produz esse mundo exterior objetivo []rdquo96

Ao identificar completamente

objeto e representaccedilatildeo Schopenhauer responde agrave questatildeo acerca da objetividade do

conhecimento tornando desnecessaacuterio e incoerente a busca dos mecanismos que conectariam

a representaccedilatildeo e o objeto ao qual supostamente pudesse se referir Com isso

adicionalmente ele considera demonstrada a convivecircncia harmocircnica entre a idealidade

transcendental do mundo como representaccedilatildeo e sua realidade empiacuterica Pois de acordo com

ele assim estaacute assegurado que ldquo[] o objeto natildeo eacute em verdade coisa em si mas como

objeto empiacuterico eacute realrdquo97

A soluccedilatildeo schopenhaueriana para a questatildeo da objetividade conduz

poreacutem a uma formulaccedilatildeo insoacutelita Conforme a argumentaccedilatildeo do filoacutesofo na medida em que a

causalidade soacute atua entre objetos natildeo outorga realidade absoluta ao mundo como

representaccedilatildeo Ela natildeo conecta as coisas em si ao conhecimento mas apenas os objetos entre

eles mesmos sem poder ultrapassaacute-los O mundo da representaccedilatildeo surge entatildeo como um

objeto condicionado pela existecircncia de um sujeito e pelas suas formas que o edificaratildeo de

uma maneira determinada98

E diz Schopenhauer a garantia simultacircnea da idealidade

transcendental e da realidade empiacuterica do mundo autoriza a sustentar como verdadeiro que

ldquo[] o espaccedilo existe somente na minha cabeccedila mas empiricamente minha cabeccedila estaacute no

espaccedilordquo99

Na opiniatildeo de Alexis Philonenko essa tese obscureceu a filosofia

schopenhaueriana para sempre100

Segundo esse autor Bergson foi quem evidenciou o

absurdo do paradoxo no qual se fundem uma parte do espaccedilo e sua totalidade a cabeccedila que

estaacute no espaccedilo eacute uma parte dele e no entanto deveraacute fornecer a representaccedilatildeo total onde ela

95

UumlV sect21 p 67 CR sect21 p 89 96

UumlV sect21 loc cit CR sect21 loc cit 97

WWWII Kap 2 p 30 MII cap 2 p 23 98

WWWII Kap 2 p 30 MII cap 2 p 23 99

WWWII Kap 2 p 30 MII cap 2 p 23 100

PHILONENKO A Schopenhauer Una filosofia de la tragedia Barcelona Anthropos 1989 p 82

- 101 -

mesma se situaraacute Poreacutem escreve Philonenko ldquoSchopenhauer natildeo parece ter sido consciente

da dificuldade Da presenccedila do espaccedilo em mim de sua existecircncia (sic) chega agrave realidade

fenomenal de todos os objetosrdquo101

No segundo capiacutetulo de O mundoII que trata do conhecimento

intuitivo Schopenhauer extrai as uacuteltimas consequecircncias dessa concepccedilatildeo da idealidade do

espaccedilo Ele afirma que percebemos as coisas instantacircnea e imediatamente como estando fora

de noacutes porque natildeo distinguimos a sensaccedilatildeo dos sentidos e o objeto que o entendimento

produz com ela Nunca tomamos consciecircncia da passagem do efeito agrave causa de modo que a

sensaccedilatildeo nos parece ser a proacutepria representaccedilatildeo102

Por isso embora a sensaccedilatildeo seja interna ao

corpo e imediata intuiacutemos as coisas como estando fora de noacutes Com ainda mais razatildeo diz ele

natildeo se distinguiratildeo para noacutes tambeacutem objeto e representaccedilatildeo jaacute que satildeo exatamente o mesmo

De modo semelhante embora o espaccedilo seja interior ao sujeito intuiacutemos os objetos como

exteriores Na verdade a intuiccedilatildeo eacute que tornaria as coisas externas o ldquofora de noacutesrdquo seria uma

criaccedilatildeo do intelecto que contudo natildeo deixaria de ser empiacuterica real e objetiva O que garante

a objetividade eacute ser um produto do entendimento cuja atividade engendra as representaccedilotildees

que se identificam com os objetos Nas palavras de Schopenhauer

Isso se explica porque o fora de noacutes eacute exclusivamente uma determinaccedilatildeo

espacial e o espaccedilo eacute apenas uma forma da nossa faculdade de intuiccedilatildeo isto

eacute uma funccedilatildeo do nosso ceacuterebro entatildeo o fora de noacutes onde situamos os

objetos em funccedilatildeo da sensaccedilatildeo visual estaacute ele proacuteprio na nossa cabeccedila por

isso laacute estaacute seu completo cenaacuterio Semelhante a quando vemos no teatro

montanhas floresta e mar mas estaacute tudo dentro dele103

No tocante ao tempo a objetividade tambeacutem pode ser considerada nessa

perspectiva No quarto capiacutetulo de O MundoII sobre o conhecimento a priori

Schopenhauer argumenta que mesmo sendo subjetivo o tempo se apresenta como algo

objetivo e separado do sujeito na medida em que independentemente de qualquer vontade

flui de modo contiacutenuo e permanente104

Entatildeo diz o filoacutesofo ldquoEle existe somente na cabeccedila

dos seres que conhecem mas a uniformidade de seu fluxo e a independecircncia da vontade daacute a

ele o direito da objetividaderdquo105

101

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 102

Isso eacute verdadeiro somente no caso da visatildeo Com os outros sentidos a transiccedilatildeo do efeito agrave causa pode ser

percebida Cf WWWII Kap 2 p 35 MII cap 2 p 28 103

WWWII Kap 2 p 34 MII cap 2 p 27 (grifos do autor) 104

WWWII Kap 4 p 48 MII cap 4 p 43 105

WWWII Kap 4 p 48 MII cap 4 p 43

- 102 -

Como vimos anteriormente a aprioridade da causalidade remete agrave uniatildeo

de tempo e espaccedilo pelo entendimento bem como agrave necessidade dela e de seus corolaacuterios para

a constituiccedilatildeo do conjunto da experiecircncia Pelo acircngulo dos objetos empiacutericos singulares a

prova da aprioridade da causalidade se daacute por diversas comparaccedilotildees entre as sensaccedilotildees dos

sentidos e a intuiccedilatildeo sensiacutevel Para Schopenhauer essa eacute a demonstraccedilatildeo mais apropriada do

caraacuteter a priori da lei causal qual seja a exposiccedilatildeo da sua necessidade para a constituiccedilatildeo de

toda e qualquer intuiccedilatildeo empiacuterica106

Ele ressalta a exigecircncia de uma forma intelectual para

que a sensaccedilatildeo ganhe feiccedilotildees de objeto e assevera que sem isso haveria somente estiacutemulos

locais sobre os oacutergatildeos dos sentidos Como ele afirma ldquoMesmo nos oacutergatildeos dos sentidos mais

nobres ela natildeo eacute mais do que algo local especiacutefico encerrado em seu tipo de capacidade para

sofrer alteraccedilotildees mas em si mesma sempre um sentimento subjetivo o qual natildeo pode conter

nada objetivo nem parecido a uma intuiccedilatildeordquo107

Por conseguinte a sensaccedilatildeo eacute entendida pelo filoacutesofo como um processo

que ocorre dentro do organismo sob a pele sem apontar para nada fora dele O corpo de cada

animal eacute o ponto inicial da intuiccedilatildeo do mundo e diz Schopenhauer ldquo[] nunca se poderia

chegar a ela se algum efeito natildeo fosse conhecido imediatamente e entatildeo servisse de ponto de

partida Mas este eacute o efeito nos corpos animais Desse modo estes satildeo os objetos imediatos108

do sujeito a intuiccedilatildeo de todos os outros objetos eacute mediada por elesrdquo109

Na obra Die Lehre

von der empirischen Anschauung bei Schopenhauer110

de Johann Baptist Rieffert haacute uma

observaccedilatildeo interessante sobre esse ponto Esse autor nota que considerando somente pelo

ponto de vista do mundo como representaccedilatildeo a sensaccedilatildeo quase natildeo difere da pura e simples

consciecircncia Nas palavras dele

Se enquanto nos mantemos nos domiacutenios do mundo como representaccedilatildeo

nenhuma vez compreendemos com ele [o entendimento] sob a causa de

nossas sensaccedilotildees algo de algum modo transcendente isto eacute se nenhuma vez

aceitamos que esse algo atua por menos que seja ou como atua entatildeo a

mera sensaccedilatildeo e sua representaccedilatildeo correspondente somente se diferenciam

da consciecircncia por serem situadas espaccedilo-temporalmente e esta uacuteltima natildeo

106

WWWII Kap 4 p 51 MII cap 2 p 45 107

UumlV sect21 p 68 CR sect21 p 91 108

No paraacutegrafo sect6 de O mundo e tambeacutem no sect22 de Da quaacutedrupla raiz Schopenhauer corrige a expressatildeo

ldquoobjeto imediatordquo em relaccedilatildeo ao corpo Ele explica que na condiccedilatildeo de ponto de partida do conhecimento o

corpo natildeo eacute de fato um objeto mas eacute apenas sentido difusamente como o lugar onde se datildeo as sensaccedilotildees dos

sentidos provocadas por outros corpos O corpo somente pode ser intuiacutedo como um objeto do modo como todos

os outros satildeo isto eacute como ocupando lugar no espaccedilo o que ocorre apenas com o concurso do entendimento 109

WWV I ersters Buch sect4 p 41 M I Livro I sect4 p 53 110

ERDMANN Benno (Herausgegeber) Abhandlungen zur Philosophie und irhre Geschichte 22 Heft

RIEFFERT J B Die Lehre von der empirische Anschauung bei Schopenhauer Halle Max Niemeyer 1914

- 103 -

Fora isso elas natildeo satildeo diferentes da consciecircncia em nada e interpretar uma

como causa e a outra como efeito seria equivalente a fazer coincidir causa e

efeito111

De qualquer modo Schopenhauer afirma que a mateacuteria do corpo eacute

suscetiacutevel a influecircncias externas mas toda sensaccedilatildeo assim produzida eacute subjetiva e adentra agrave

consciecircncia somente na forma do sentido interno no tempo112

Por isso mesmo para que

possa constituir um objeto exigiraacute algo mais que se combine a ela algo que possa exteriorizar

os dados que ela fornece E esse algo eacute exatamente o entendimento que por meio da

causalidade realiza a passagem do subjetivo ao objetivo Desse modo a formaccedilatildeo da intuiccedilatildeo

empiacuterica parte de um efeito interno aos corpos animais o qual ao ser relacionado agrave sua causa

permite a produccedilatildeo da representaccedilatildeo de um objeto externo113

Schopenhauer explica esse

processo esclarecendo que o entendimento ldquo[] em funccedilatildeo de sua proacutepria forma a priori

isto eacute antes de toda a experiecircncia (que antes disso natildeo eacute possiacutevel) sintetiza a sensaccedilatildeo dada

no corpo como um efeito (uma palavra que soacute ele entende) que como tal deve ter

necessariamente uma causardquo114

A forma do sentido externo eacute parte do intelecto e eacute por meio dela que o

entendimento aponta a causa como algo que estaacute fora do corpo Desse modo escreve o

filoacutesofo ldquo[] nasce para ele o exterior do qual o espaccedilo eacute a possibilidade assim a intuiccedilatildeo

pura a priori tem de fornecer o fundamento do empiacutericordquo115

Natildeo se trata de algo discursivo

ou seja natildeo haacute recurso a conceitos mas eacute uma construccedilatildeo imediata realizada no entendimento

e que soacute tem validade para ele mesmo A experiecircncia natildeo existe antes da accedilatildeo peculiar dele

que diz Schopenhauer ldquo[] tem de criar sozinho o mundo objetivo natildeo pode poreacutem

introduzi-lo na cabeccedila jaacute pronto previamente por meio dos sentidos e das entradas de seus

oacutergatildeosrdquo116

Como resultado todos os objetos empiacutericos e toda a experiecircncia possiacutevel

satildeo produtos do entendimento e das formas do tempo do espaccedilo e da causalidade Para a

construccedilatildeo desses objetos o entendimento utiliza a forma do espaccedilo e os dados das sensaccedilotildees

de certos sentidos sobretudo da visatildeo e do tato Segundo Schopenhauer o olfato a audiccedilatildeo e o

paladar natildeo fornecem informaccedilotildees com as quais se possa circunscrever um objeto no espaccedilo

111

Ibidem p 57 (traduccedilatildeo nossa) 112

UumlV sect21 p 68-69 CR sect21 p91 113

WWV I ersters Buch sect4 p 41 M I Livro I sect4 p 53 114

UumlV sect21 p 69 CR sect21 p 92 (grifos do autor) 115

UumlV sect21 p 69 CR sect21 p92 116

UumlV sect20 p 69 CR sect20 p 93

- 104 -

e portanto natildeo possibilitam nenhuma intuiccedilatildeo objetiva O que fazem diz ele eacute anunciar a

presenccedila de um objeto que jaacute foi conhecido antes por outros meios Apenas a visatildeo e o tato

oferecem elementos para que se aponte um corpo externo como causa de um efeito sentido

remetendo a relaccedilotildees espaciais que todavia natildeo satildeo elas mesmas as proacuteprias intuiccedilotildees117

Nesse sentido o filoacutesofo exemplifica ldquo[] um cego sem matildeos nem peacutes poderia construir para

si o espaccedilo com toda a sua regularidade a priori mas do mundo objetivo teria apenas uma

representaccedilatildeo muito confusardquo118

Esse exemplo eacute interessante pois serve de sustentaccedilatildeo para

as caracteriacutesticas do espaccedilo e do modo de atuaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo do ser referente a ele

A saber uma tal pessoa poderia ter conhecimento do espaccedilo usando apenas a forma do

sentido externo sem os dados advindos da visatildeo e do tato o que evidenciaria tratar-se de uma

forma a priori com relaccedilotildees proacuteprias

A anaacutelise schopenhaueriana sobre esse ponto eacute minuciosa Ele separa

detalhadamente o que eacute do campo da sensaccedilatildeo e o que eacute do campo da intuiccedilatildeo possibilitando

ver claramente o que eacute a forma e o que eacute a mateacuteria dos objetos De modo geral o processo se

daacute como se a sensaccedilatildeo fornecesse as premissas para que o entendimento extraiacutesse as

conclusotildees119

Natildeo seguiremos em pormenor toda a explanaccedilatildeo apenas sublinharemos os

aspectos em que se pode notar o que eacute acrescentado pelo entendimento aos dados dos sentidos

e que permite a produccedilatildeo da figura dos objetos sua magnitude sua distacircncia relativa sua

posiccedilatildeo e outras caracteriacutesticas natildeo devidas agrave sensaccedilatildeo120

Na concepccedilatildeo de Schopenhauer a

sensaccedilatildeo eacute um fato imediato diz ele ldquo[] um simples datum para o entendimento que

sozinho eacute capaz de interpretaacute-lo como efeito de uma causa totalmente diferente que ele intui

como algo externo isto eacute colocado no espaccedilo forma intelectual anterior a toda a experiecircncia

preenchendo-o e ocupando-ordquo121

Ele expotildee detalhadamente e com recurso a muitos exemplos

que a intuiccedilatildeo difere de modo radical da sensaccedilatildeo e que esta por si mesma natildeo apresenta

nada semelhante a um objeto De acordo com ele a conexatildeo entre o efeito e sua causa ldquo[] eacute

o modo de conhecimento do entendimento puro sem o qual nunca se teria intuiccedilatildeo mas

apenas sobraria uma consciecircncia embaccedilada vegetal das mudanccedilas no objeto imediato

[]rdquo122

Sua demonstraccedilatildeo da aprioridade da causalidade nesse aspecto deixa patente que ela

117

UumlV sect20 p 70 et seq CR sect20 p 93 et seq 118

UumlV sect20 p 71 CR sect20 p 94 119

UumlV sect21 p 71 CR sect21 p94 120

A exposiccedilatildeo completa pode ser conferida no sect 21 de UumlV 121

WWWII Kap 4 p 51 MII cap 4 p 45 122

WWV I ersters Buch sect4 p 41-42 M I Livro I sect4 p 54 (grifos do autor)

- 105 -

eacute condiccedilatildeo da intuiccedilatildeo empiacuterica que toda experiecircncia jaacute conteacutem o seu conceito e que por

tanto ela natildeo eacute obtida empiricamente123

Por conseguinte a passagem realizada pelo entendimento da sensaccedilatildeo

subjetiva agrave sua causa exterior conforma os objetos com suas caracteriacutesticas empiacutericas e

formais124

Conforme a argumentaccedilatildeo de Schopenhauer caso fosse obra da simples sensaccedilatildeo

a intuiccedilatildeo empiacuterica seria muito distinta de tudo o que conhecemos Na medida em que em

qualquer oacutergatildeo os sentidos as sensaccedilotildees natildeo satildeo simultacircneas e sim sucessivas o objeto seria

intuiacutedo em partes desconexas e sem referecircncia a nenhum todo coeso ou entatildeo cada sensaccedilatildeo

singular seria tomada por um objeto distinto De modo semelhante duas sensaccedilotildees idecircnticas

em um dos oacutergatildeos dos sentidos por exemplo no tato levaria a confundir ou a identificar

objetos diferentes pela indistinccedilatildeo das impressotildees No sentido da visatildeo natildeo poderiacuteamos

intuir nenhuma figura distacircncia entre objetos posiccedilatildeo ou perspectiva pois a mera sensaccedilatildeo

da retina eacute como uma tela manchada de muitas cores125

Natildeo obstante nada disso acontece em

virtude do entendimento que conforma os dados dos sentidos segundo a causalidade e aponta

uma causa externa uniforme para os diferentes efeitos sentidos no corpo126

De outra perspectiva haacute intuiccedilotildees para as quais a simples sensaccedilatildeo eacute

insuficiente o que mostra por outra via a mesma dependecircncia da representaccedilatildeo empiacuterica

com relaccedilatildeo ao entendimento Por exemplo diz Schopenhauer o deslocamento de um objeto

no espaccedilo num certo tempo natildeo eacute uma representaccedilatildeo que possa ser percebida nem que surja

somente com a sensaccedilatildeo Ao contraacuterio ele escreve eacute o ldquo[] intelecto que deve trazer antes

de toda experiecircncia a intuiccedilatildeo do espaccedilo do tempo e com elas a possibilidade do

movimento []rdquo127

Aleacutem do movimento muitas representaccedilotildees que satildeo fundamentos

realidade como a causalidade a materialidade as trecircs dimensotildees do espaccedilo a accedilatildeo de um

corpo sobre outro a extensatildeo a impenetrabilidade a coesatildeo a figura a dureza a perspectiva

e o repouso nenhuma delas pode ser obtida somente pelos sentidos128

As relaccedilotildees do

espaccedilo do tempo e da causalidade portanto natildeo satildeo apreendidas do mundo exterior e natildeo

adentram o intelecto por meio dos sentidos mas satildeo anteriores e de origem interna As

intuiccedilotildees do mundo da experiecircncia resultam de um processo em que o intelecto utiliza dados

123

WWV I ersters Buch sect4 p 43 M I Livro I sect4 p 55 124

WWV I ersters Buch sect4 p 42 M I Livro I sect4 p 54 125

UumlV sect21 p 74 CR sect21 p 98 126

UumlV sect21 p 69 CR sect21 p 92 127

UumlV sect21 p 73 CR sect21 p 96 128

UumlV sect21 p 73 CR sect21 96-97

- 106 -

sensoriais a posteriori determinando-os com formas a priori e somente nesse sentido

Schopenhauer admite que se fale em intuiccedilatildeo intelectual129

Uma prova adicional dessa teoria eacute o aprendizado do modo de utilizaccedilatildeo

do entendimento por meio de exerciacutecio e experiecircncia130

Embora faccedila parte do intelecto a

priori a maneira de utilizaacute-lo no conhecimento do mundo seria aprendida com tempo e uso

Bebecircs receacutem-nascidos diz Schopenhauer vivem durante um tempo em uma espeacutecie de

torpor em que o entendimento ainda natildeo comeccedilou a exercer sua funccedilatildeo de transformar

sensaccedilotildees em objetos Em seus primeiros meses de vida eles aprenderiam continuamente com

os dados providos pelos oacutergatildeos dos sentidos experimentando-os em muitas situaccedilotildees

diferentes e assim aprenderiam a usar seu entendimento Quando isso ocorre o mundo

objetivo vai se formando paulatinamente no seu intelecto o que afirma o filoacutesofo pode ser

notado ldquo[] no aspecto inteligente que seu olhar adquire e em certa intencionalidade nos seus

movimentos principalmente quando pela primeira vez eles demonstram com um sorriso

amaacutevel que reconhecem quem cuida delesrdquo131

Tambeacutem desse ponto de vista se revela que o

entendimento estaacute ligado ao conhecimento do mundo e que as meras sensaccedilotildees que os bebecircs

jaacute possuem ao nascer natildeo satildeo suficientes para conformarem objetos reconheciacuteveis

Schopenhauer apresenta ainda algumas confirmaccedilotildees adicionais da

aprioridade da causalidade dentre elas o aspecto de necessidade e o caraacuteter apodiacutetico da

convicccedilatildeo que a acompanha A seguranccedila que ela promove eacute como dissemos de um tipo

totalmente distinto da que se obteacutem atraveacutes de conhecimentos empiacutericos ainda que bastante

seguros No dizer do filoacutesofo ldquoPodemos por exemplo pensar que a lei da gravitaccedilatildeo

universal parasse de atuar uma vez mas natildeo que isso aconteccedila sem uma causardquo132

Do exposto seguem-se as duas funccedilotildees do entendimento De um lado a

conformaccedilatildeo do conjunto da experiecircncia pela uniatildeo de tempo e espaccedilo e de outro a

constituiccedilatildeo dos objetos empiacutericos pela passagem do efeito sentido internamente agrave causa

externa Nesse ponto Gardiner apresenta uma interessante indagaccedilatildeo ldquo[] ainda se pode

perguntar como os objetos perceptuais podem ao mesmo tempo ser considerados como

produzidos por nossa mente que age de um modo especial sobre os dados da sensaccedilatildeo e

129

WWV I ersters Buch sect4 p 41 M I Livro I sect4 p 53 130

UumlV sect21 p 90 CR sect21 p 117 131

UumlV sect21 p 90-91 CR sect21 p 117 132

UumlV sect23 p 112 CR sect23 p 140 (grifos do autor)

- 107 -

como causa e origem desses dadosrdquo133

De fato a indagaccedilatildeo eacute instigante mas tambeacutem natildeo

deixa de secirc-lo a deduccedilatildeo pela qual Schopenhauer somente por meio da causalidade deriva o

mundo e o conhecimento intuitivo do mundo No seu entender essa lei eacute a uacutenica forma do

entendimento a uacutenica de fato necessaacuteria diz ele e ldquo[] de modo nenhum aquela complicada

engrenagem das doze categorias kantianas cuja nulidade eu demonstreirdquo134

Como resultado

a causalidade existe a priori como condiccedilatildeo da intuiccedilatildeo e do universo empiacuterico aplica-se

somente ao mundo sensiacutevel natildeo agrave relaccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa em si nem aos objetos

tomados em si mesmos ldquoCom issordquo diz o filoacutesofo ldquoconcluiacutemos que se encontram em noacutes

todos os elementos da intuiccedilatildeo empiacuterica que natildeo conteacutem informaccedilatildeo de nada que seja pura e

simplesmente distinto de noacutes uma coisa em sirdquo135

214 ndash Teoria da razatildeo

A razatildeo eacute definida por Schopenhauer como a faculdade das

representaccedilotildees abstratas os conceitos que satildeo derivados das intuiccedilotildees Esses dois tipos de

representaccedilatildeo segundo o filoacutesofo relacionam-se como a luz do sol agrave da lua isto eacute uma eacute

imediata e proacutepria enquanto a outra eacute refletida e relativa136

Dentre os animais somente os

seres humanos possuem a faculdade da razatildeo com seus conceitos e inclusive tecircm o ceacuterebro

mais volumoso em funccedilatildeo disso137

Essa seria a uacutenica diferenccedila entre o intelecto humano e o

do animal responsaacutevel pela grande distinccedilatildeo entre os modos de vida de uns e de outros138

Para Schopenhauer os filoacutesofos de sua eacutepoca natildeo compreenderam corretamente a natureza da

razatildeo e contra a tradiccedilatildeo filosoacutefica e a opiniatildeo comum ignoraram a diferenccedila completa que

ela promove entre vida e o intelecto de homens e animais A visatildeo de Kant teria obscurecido e

mistificado conceito de razatildeo e por sua influecircncia os poacutes-kantianos teriam ampliado e

aprofundado seus erros Nesse sentido afirma Schopenhauer

133

GARDINER op cit p 160 (traduccedilatildeo nossa) 134

UumlV sect21 p 98 CR sect21 p 124 135

UumlV sect21 p 104 CR sect21 p 130 136

WWV I ersters Buch sect8 p 70 M I Livro I sect8 p 81 137

UumlV sect26 p 121 CR sect26 p 149 138

WWV I ersters Buch sect8 p 72 M I Livro I sect8 p 83

- 108 -

Quem quiser se dar ao trabalho de percorrer todo o volume de escritos

filosoacuteficos que surgiram desde Kant perceberaacute que assim como as falhas do

priacutencipe satildeo pagas por todo o povo tambeacutem os erros dos grandes espiacuteritos

espalham sua influecircncia prejudicial em geraccedilotildees inteiras agraves vezes se

difundem por seacuteculos sim crescendo e se propagando por fim degenerando

em monstruosidades []139

O principal erro dos filoacutesofos poacutes-kantianos teria sido o de transformar a

razatildeo em uma faculdade capaz de conhecimento imediato do suprassensiacutevel ao mesmo tempo

em que sua verdadeira capacidade de abstraccedilatildeo teria sido delegada ao entendimento e a

intuiccedilatildeo sensiacutevel agrave sensibilidade No entender de Schopenhauer eles utilizaram o nome da

razatildeo para esconder ldquo[] uma faculdade totalmente falsa de conhecimentos imediatos

metafiacutesicos chamados suprassensiacuteveis denominar entendimento agrave verdadeira razatildeo

negligenciar o real entendimento que eles natildeo possuem e atribuir sua funccedilatildeo intuitiva agrave

sensibilidaderdquo140

Na concepccedilatildeo schopenhaueriana os conceitos satildeo formados pela

decomposiccedilatildeo de representaccedilotildees intuitivas cujos traccedilos caracteriacutesticos satildeo isolados de modo a

identificarem-se qualidades e relaccedilotildees abstratas natildeo referidas a nenhum objeto em particular

A razatildeo desse modo eacute uma faculdade de abstraccedilatildeo (Abstraktionsvermoumlgen)141

Segundo a

explicaccedilatildeo de Magee ldquoA relaccedilatildeo que se daacute entre os conceitos e as experiecircncias e percepccedilotildees eacute

uma relaccedilatildeo do geral ao particular do abstrato ao concreto Toda experiecircncia ou percepccedilatildeo

real eacute imediata especiacutefica uacutenica Por isso natildeo podemos retecirc-la nem comunicaacute-lardquo142

Os

conceitos podem apenas ser pensados natildeo intuiacutedos porque natildeo possuem relaccedilatildeo direta com

os objetos e com sua intuitividade Em certo sentido eles satildeo mais elementares do que as

intuiccedilotildees pois diz Schopenhauer ldquoA constituiccedilatildeo de um conceito se daacute por meio da exclusatildeo

de muito do que eacute dado intuitivamente para que o restante possa ser pensado por si assim ele

seraacute um pensamento menor do que intuitivordquo143

Os conceitos mais abstratos e gerais seratildeo os

menos representaacuteveis empiricamente e os mais vazios aqueles cujo conteuacutedo eacute mais reduzido

como por exemplo os de ser essecircncia devir entre outros144

De acordo com isso diz o

filoacutesofo quanto mais eacute pensado sob um conceito menos eacute pensado nele145

139

WWV I ersters Buch sect8 p 75 M I Livro I sect8 p 85 140

WWWII Kap 6 p 81 MII cap 6 p 81 141

UumlV sect26 p 121 CR sect26 p 149 142

MAGEE B op cit p 48 (traduccedilatildeo nossa) 143

UumlV sect26 p 121 CR sect26 p 150 144

UumlV sect26 p 122 CR sect26 p 150 145

WWWII Kap 6 p 76 MII cap 6 p 76

- 109 -

Schopenhauer descreve os modos em que as representaccedilotildees abstratas

podem se ligar denominando-os ldquoesquematismo dos conceitosrdquo (Schematismus der

Begriffe)146

Todos os conceitos possuiriam esferas preenchidas pelos objetos aos quais se

estendem relacionadas entre si de cinco distintas maneiras segundo as interligaccedilotildees possiacuteveis

entre seus conteuacutedos As esferas conceituais se unem ou se separam de acordo com o que tecircm

ou natildeo em comum e suas interaccedilotildees podem ser expostas em circunferecircncias que se conectam

de modos especiacuteficos147

Schopenhauer entende que todas as combinaccedilotildees possiacuteveis de

conceitos podem ser reduzidas agravequeles cinco modos e que a partir deles se deduzem a teoria e

as propriedades dos juiacutezos Para ele julgar eacute precisamente reconhecer as ligaccedilotildees entre as

esferas formando-se silogismos ou cadeias mais longas de raciociacutenios A loacutegica se

identificaria com as regras de inferecircncia que orientam as combinaccedilotildees de esferas conceituais

de modo que diz o filoacutesofo ldquoEla eacute o conhecimento geral do modo de atuaccedilatildeo da razatildeo

expresso na forma de regras conhecido pela auto-observaccedilatildeo dela e pela abstraccedilatildeo de todo

conteuacutedo conhecidordquo148

Os conceitos satildeo simbolizados por palavras que os fixam e os tornam

utilizaacuteveis sem as quais eles natildeo poderiam servir agraves operaccedilotildees intelectuais a que se destinam

Os animais seriam desprovidos de fala em funccedilatildeo da ausecircncia de razatildeo pois afirma

Schopenhauer ldquo[] por natildeo possuiacuterem nenhuma abstraccedilatildeo natildeo satildeo capazes de nenhum

conceito e consequentemente natildeo possuem linguagemrdquo149

A riqueza de recursos das liacutenguas

sua enorme quantidade de vocaacutebulos com funccedilotildees e usos distintos suas regras gramaticais

formas loacutegicas conexotildees entre ideias tudo seria atribuiacutedo agrave razatildeo A linguagem seria entatildeo

o primeiro resultado da razatildeo e ao mesmo tempo seu instrumento necessaacuterio150

Com efeito a

linguagem eacute fundamental para que a razatildeo possa realizar sua funccedilatildeo proacutepria que eacute a de expor

a apreensatildeo intuitiva do mundo em conceitos tornando-se indispensaacutevel agraves grandes

realizaccedilotildees promovidas na vida humana pela abstraccedilatildeo151

Por conseguinte diz Schopenhauer

146

WWV I ersters Buch sect9 p 82 M I Livro I sect9 p 92 147

Esferas de conceitos idecircnticos satildeo representadas com um uacutenico ciacuterculo esferas de conceitos em que um

engloba o outro satildeo figuradas com um ciacuterculo menor dentro de outro maior esferas que compreendem em si

exatamente duas ou mais esferas satildeo expostas com um ciacuterculo dividido na quantidade correspondente de partes

duas esferas que possuem somente uma parte em comum satildeo representadas com dois ciacuterculos em intersecccedilatildeo

por fim uma esfera que conteacutem outras mas natildeo somente elas eacute representa com uma esfera maior englobando

outras menores com sobra de espaccedilo interno Cf WWV I ersters Buch sect9 p 80-81 M I Livro I sect9 p 90-91 148

WWV I ersters Buch sect9 p 83 M I Livro I sect9 p 93 149

UumlV sect26 p 122 CR sect26 p 149 150

WWV I ersters Buch sect8 p 73 M I Livro I sect8 p 83 151

WWV I ersters Buch sect8 p 73 M I Livro I sect8 p 83-84

- 110 -

ldquoCom o aprendizado dela torna-se consciente todo o mecanismo da razatildeo assim o essencial

da loacutegicardquo152

Os conceitos satildeo como foacutermulas ou algoritmos que contecircm as operaccedilotildees

de pensamento153

As intuiccedilotildees empiacutericas natildeo satildeo uacuteteis para esse propoacutesito porque trazem

muitas informaccedilotildees e inviabilizam a reflexatildeo sobre relaccedilotildees e caracteriacutesticas gerais dos

objetos Como o filoacutesofo explica ldquo[] se algueacutem quisesse manter cada representaccedilatildeo presente

na imaginaccedilatildeo teria de arrastar um peso desnecessaacuterio e seria assim desorientado com o uso

dos conceitos poreacutem pensam-se soacute as partes e relaccedilotildees de todas essas representaccedilotildees que

cada fim exigerdquo154

Pensar eacute portanto manejar intelectualmente os conceitos conhecer por

seu turno eacute consolidar conceitualmente o que foi conhecido de outra forma Eacute interessante

observarmos que para Schopenhauer os dois grandes tipos de objetos em que se divide o

pensamento natildeo satildeo os conceitos e as intuiccedilotildees como poderia parecer mas os conceitos e os

sentimentos Nas palavras dele ldquo[] seja o que for pertence ao conceito de sentimento em

cuja imensa esfera se abarca as coisas mais heterogecircneas as quais natildeo se compreende como

se reuacutenem enquanto natildeo se notou que concordam somente na consideraccedilatildeo negativa de natildeo

serem conceitos abstratosrdquo155

Nesse sentido as sensaccedilotildees dos sentidos e as intuiccedilotildees tanto

empiacutericas quanto puras encaixam-se no conceito de sentimento156

Schopenhauer prefere utilizar o termo ldquoreflexatildeordquo que lhe parece deixar

mais evidente o caraacuteter derivado e secundaacuterio da abstraccedilatildeo racional157

De acordo com ele

trata-se de ldquo[] uma aparecircncia repetida um conhecimento derivado do intuitivo mas com um

fundamento de outra natureza e composiccedilatildeo que natildeo conhece as formas daquele e aleacutem

disso o princiacutepio de razatildeo que rege todos os objetos possui aqui uma feiccedilatildeo totalmente

diferenterdquo158

Por meio dos conceitos pode-se tanto utilizar quanto dispensar informaccedilotildees

sobre passado e futuro prescindir da presenccedila dos objetos bem como deter-se sobre o

essencial de muacuteltiplas representaccedilotildees inclusive as ausentes159

Essas propriedades seriam a

origem da capacidade de planejar ponderar projetar o futuro com base nas memoacuterias do

passado para aleacutem das impressotildees intuitivas do momento Enfim satildeo os conceitos que

152

UumlV sect26 p 123 CR sect26 p 151 153

UumlV sect27 p 124 CR sect27 p 152-153 154

UumlV sect27 p 124 CR sect27 p 153 155

WWV I ersters Buch sect11 p 92-93 M I Livro I sect11 p 100 156

WWV I ersters Buch sect11 p 93-94 M I Livro I sect11 p 100-101 157

UumlV sect27 p 124 CR sect27 p 153 158

WWV I ersters Buch sect8 p 72 M I Livro I sect8 p 82-83 159

WWV I ersters Buch sect8 p 72-73 M I Livro I sect8 p 83

- 111 -

possibilitam todo tipo de conhecimento abstrato especialmente o das ciecircncias ao permitir o

pensamento do particular por meio do geral Isso soacute se torna possiacutevel diz o filoacutesofo ldquo[] por

meio do dictum de omni et nullo o qual por seu turno soacute eacute possiacutevel pela presenccedila dos

conceitosrdquo160

Sinteticamente nas palavras de Gardiner

Em geral Schopenhauer sustenta que a ldquorazatildeordquo eacute sempre e necessariamente

improdutiva natildeo criativa que isso seja assim para ele segue-se da

explicaccedilatildeo que deu de que os conceitos e juiacutezos ldquorefletemrdquo simplesmente ou

reproduzem aquilo de que tomamos consciecircncia por meio da percepccedilatildeo ou

experiecircncia diretas161

Ao lado dos conceitos haacute um tipo de representaccedilatildeo que Schopenhauer

denomina Phantasma e que corresponde agraves criaccedilotildees da imaginaccedilatildeo162

Ele utiliza a palavra

em latim que significa visatildeo apariccedilatildeo ou tambeacutem ideia ou noccedilatildeo fictiacutecia Trata-se de uma

representaccedilatildeo que embora intuitiva natildeo surge diretamente das sensaccedilotildees nem se liga

imediatamente agrave experiecircncia Representaccedilotildees desse tipo podem ser utilizadas pelo

pensamento no lugar dos conceitos mas se diferenciam destes porque se referem aos objetos

em particular enquanto eles satildeo sempre gerais Conforme a explicaccedilatildeo do filoacutesofo ldquo[]

quando se invoca a visatildeo imaginaacuteria de algum cachorro por exemplo como representaccedilatildeo

ele deve ser totalmente determinado isto eacute com certo tamanho forma cor e etc o conceito

poreacutem cujo representante ele eacute natildeo possui nenhuma dessas determinaccedilotildeesrdquo163

Uma

representaccedilatildeo assim como dissemos pode ser utilizada como exemplar de um conceito

poreacutem impropriamente pois este uacuteltimo natildeo pode conter determinaccedilotildees arbitrariamente

pensadas De qualquer modo para que atividade do pensamento se realize satildeo requeridas

palavras ou essas imagens pois sem nenhuma delas o pensamento natildeo teria nenhum meio

onde se desenvolver164

Schopenhauer menciona ainda outro tipo de representaccedilatildeo que ele

nomeia ldquointuiccedilotildees normaisrdquo (Normalanschauungen)165

Analisando a primeira ediccedilatildeo de Da

quaacutedrupla raiz e os escritos schopenhaerianos de juventude Yasuo Kamata informa que

essa expressatildeo foi inspirada pela Criacutetica do Juiacutezo de Kant No texto ldquoSchopenhauer e Kant

160

UumlV sect27 p 125 CR sect27 p 154 Dictum de omni e Dictum de nullo satildeo dois princiacutepios considerados

durante a Idade Meacutedia como as bases das conclusotildees dos silogismos O primeiro significa que tudo o que se

pode afirmar de modo universal sobre algo pode tambeacutem ser afirmado de modo particular O segundo que tudo

o que se nega de modo universal sobre algo pode-se tambeacutem negar de modo particular 161

Ibidem p 170 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 162

UumlV sect28 p 125 CR sect28 p 154 163

UumlV sect28 p 126 CR sect28 p 155 164

UumlV sect28 p 126 CR sect28 p 155-156 165

UumlV sect39 p 161 CR sect39 p 193

- 112 -

A recepccedilatildeo da bdquoAnaliacutetica transcendental‟ da Criacutetica da razatildeo pura na filosofia primeira de

Schopenhauerrdquo esse autor escreve que ldquoA expressatildeo bdquointuiccedilatildeo normal‟ foi inspirada

evidentemente pela bdquoideia normal esteacutetica‟ (Normalidee) na Criacutetica do juiacutezo como atesta seu

caderno de anotaccedilotildees (HNII 288)rdquo166

Para Schopenhauer tais representaccedilotildees satildeo intuitivas

isto eacute determinadas e ao mesmo tempo gerais pois satildeo formas dos fenocircmenos e se aplicam a

todos os objetos possiacuteveis Ele as define como ldquofiguras e nuacutemeros que legislam para toda a

experiecircncia e por isso unem a grande amplitude do conceito com a determinaccedilatildeo total da

representaccedilatildeo singularrdquo167

No caso do espaccedilo elas satildeo as intuiccedilotildees tiacutepicas da geometria no

caso do tempo as intuiccedilotildees normais satildeo representadas pelos nuacutemeros Em nota Schopenhauer

afirma que as ideias de Platatildeo poderiam ser entendidas como intuiccedilotildees normais pois seriam

vaacutelidas tanto para a parte formal quanto para a parte material dos objetos Seriam portanto

ldquo[] representaccedilotildees completas que como tais seriam totalmente determinadas e ao mesmo

tempo como os conceitos abarcariam muito sob si []rdquo168

Conforme Schopenhauer pensar eacute raciocinar utilizando palavras e as

intuiccedilotildees empiacutericas satildeo mais bem compreendidas quando relacionadas aos conceitos por

meio do juiacutezo Isso ocorre quando os conceitos satildeo buscados como regras que regem

representaccedilotildees sensiacuteveis dadas ou ao contraacuterio quando se buscam os dados empiacutericos nas

intuiccedilotildees para justificar um conceito Essa atividade eacute realizada pela faculdade de julgar

(Urteilskraft) cujo produto seraacute um juiacutezo reflexionante no primeiro caso ou determinante no

segundo169

Como escreve o filoacutesofo ldquoA faculdade do juiacutezo eacute assim a mediadora entre o

conhecimento intuitivo e o abstrato ou entre o entendimento e a razatildeordquo170

Embora tambeacutem

possa relacionar conceitos em um juiacutezo sua funccedilatildeo preciacutepua eacute a de subsumir a intuiccedilatildeo sob

conceitos ldquoDaiacuterdquo conclui Schopenhauer ldquoa dificuldade das ciecircncias estaacute tambeacutem nos juiacutezos

fundamentais e natildeo nas conclusotildees a partir deles Deduzir eacute faacutecil julgar difiacutecilrdquo171

Apesar de toda a importacircncia dos conceitos o conhecimento intuitivo

tem precedecircncia sobre o abstrato pois eacute o nuacutecleo ao qual este se refere e o pressuposto dele

Para Schopenhauer as concepccedilotildees e pensamentos originais assim como as grandes invenccedilotildees

166

KAMATA Y Schopenhauer e Kant A recepccedilatildeo da ldquoAnaliacutetica transcendentalrdquo da Criacutetica da razatildeo pura na

filosofia primeira de Schopenhauer Revista ethic Florianoacutepolis v 11 n 1 p 68 ndash 81 julho de 2012 p 73

(grifos do autor) 167

UumlV sect39 p 161 CR sect39 p 193-194 168

UumlV sect39 p 161 CR sect39 p 194 169

UumlV sect28 p 127 CR sect28 p 156 170

UumlV sect28 p 127 CR sect28 p 156 171

WWWII Kap 7 p 105 MII cap 7 p 106

- 113 -

que desvendam mecanismos da natureza satildeo obra do entendimento natildeo da razatildeo satildeo a

apresentaccedilatildeo correta da causa de um efeito e a compreensatildeo da forccedila natural subjacente172

Toda teoria filosofia ou ciecircncia precisa ter por base uma intuiccedilatildeo empiacuterica caso contraacuterio

careceraacute de relaccedilatildeo com o real e na verdade natildeo ensinaraacute nada sobre o mundo Nas palavras

dele ldquoSe a explicaccedilatildeo possui um tal nuacutecleo assemelha-se com uma nota bancaacuteria que tem o

equivalente em caixa qualquer outra que provenha de meras combinaccedilotildees de conceitos eacute

como uma nota bancaacuteria que deposita como garantia de novo apenas outro papelrdquo173

Em

suma um discurso feito apenas com conceitos e seus desmembramentos natildeo se refere a nada

existente concretamente pois a razatildeo pode fixar o conhecido intuitivamente ligaacute-lo mas

nunca produzi-lo174

Os conceitos sempre ficaratildeo aqueacutem das sutis distinccedilotildees das intuiccedilotildees diz

Schopenhauer aproximando-se delas como um mosaico se aproxima da imagem que

representa isto eacute com falhas e descontinuidades175

Sobre esse ponto Gardiner observa de

modo interessante que

Como ilustraccedilatildeo Schopenhauer menciona a forma em que com frequecircncia

somos conscientes da impossibilidade de verbalizar a expressatildeo do rosto de

uma pessoa ldquoo sentido dos traccedilosrdquo parece atrapalhar toda descriccedilatildeo precisa

ou adequada apesar de natildeo haver duacutevida de que bdquosentimos‟ e

compreendemos perfeitamente e podemos falar sobre ele com autecircntica

propriedade176

Por conseguinte a natureza dos conceitos eacute peculiar e essa peculiaridade

se mostra tambeacutem no tipo de conhecimento que eles fornecem Natildeo se pode conhecer de

modo evidente de sua essecircncia tampouco exigir uma comprovaccedilatildeo concreta deles pois isso

soacute poderia ser feito com algo de natureza totalmente distinta a saber com uma intuiccedilatildeo

empiacuterica177

Como explica o filoacutesofo ldquoEles se deixam somente pensar natildeo intuir e apenas os

efeitos que por meio deles os homens produzem satildeo realmente objetos de experiecircnciardquo178

Um conceito poderaacute ser fundamentado por outro ou por uma intuiccedilatildeo no entanto no fim da

cadeia de raciociacutenios deveraacute estar um conhecimento intuitivo Segundo Schopenhauer essa eacute

uma diferenccedila fundamental entre as classes abstrata e intuitiva de representaccedilotildees pois ele

afirma ldquo[] nesta o princiacutepio de razatildeo sempre exige apenas ligaccedilatildeo com outra representaccedilatildeo

da mesma classe enquanto as representaccedilotildees abstratas poreacutem ao fim exigem uma referecircncia

172

WWV I ersters Buch sect6 p 53-54 M I Livro I sect6 p 65 173

UumlV sect28 p 128 CR sect28 p 158 174

WWV I ersters Buch sect6 p 53 M I Livro I sect6 p 65 175

WWV I ersters Buch sect12 p 99 M I Livro I sect12 p 106-107 176

GARDINER op cit p 169 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 177

WWV I ersters Buch sect9 p 76 M I Livro I sect9 p 86 178

WWV I ersters Buch sect9 p 76 M I Livro I sect9 p 86

- 114 -

a uma representaccedilatildeo de outra classerdquo179

Numa palavra os conceitos englobam e refletem os

objetos do mundo empiacuterico relacionando-se entre si de acordo com as relaccedilotildees possiacuteveis

entre suas esferas Na interpretaccedilatildeo de Gardiner

Os conceitos estatildeo em realidade essencialmente adaptados a fins praacuteticos

toda filosofia que passe por alto sobre esse ponto estaraacute condenada em

algum momento a interpretar mal e a distorcer a relaccedilatildeo entre pensamento e

realidade Por isso quando trata de pensamento e linguagem assim como da

nossa consciecircncia perceptiva do mundo fenomecircnico Schopenhauer insiste

primariamente nos fatores pragmaacuteticos que segundo ele entende

determinam os traccedilos caracteriacutesticos do conhecimento comum180

O princiacutepio de razatildeo do conhecer (Satz vom zureichenden Grunde des

Erkennens) ou principium sufficientis cognoscendi estabelece uma relaccedilatildeo necessaacuteria entre

os conceitos segundo a qual todo e qualquer juiacutezo teraacute de ser justificado Se a razatildeo eacute dada o

juiacutezo pode ser tomado por verdadeiro e a verdade eacute entatildeo definida por Schopenhauer como

bdquo[] a relaccedilatildeo de um juiacutezo com algo diferente dele que seraacute chamado seu fundamento

[]rdquo181

Portanto natildeo eacute possiacutevel nenhum conhecimento que seja imediatamente verdadeiro

pois escreve o filoacutesofo ldquoToda verdade eacute uma relaccedilatildeo de um juiacutezo com algo fora dele e

verdade intriacutenseca eacute uma contradiccedilatildeordquo182

O fundamento de um juiacutezo pode ser de quatro tipos a saber loacutegico

empiacuterico transcendental e metaloacutegico cada um com uma espeacutecie de verdade correspondente

Schopenhauer define a verdade loacutegica como a fundamentaccedilatildeo de um juiacutezo em outro o que

pode ser feito de modo imediato ou mediato pela interferecircncia de um terceiro entre eles183

A

silogiacutestica seria o cacircnone da verdade loacutegica que reuniria as regras de aplicaccedilatildeo do princiacutepio

de razatildeo suficiente do conhecer entre os juiacutezos Nesse sentido diz o filoacutesofo ldquo[] a loacutegica eacute

uma simples paraacutefrase dele [do princiacutepio] na verdade apenas no caso em que o fundamento

da verdade natildeo eacute empiacuterico ou metafiacutesico mas loacutegico ou metaloacutegicordquo184

Gardiner chama a

atenccedilatildeo para esse ponto sublinhando que Schopenhauer resumia a loacutegica agrave silogiacutestica e natildeo

considerava as regras de deduccedilatildeo como criaccedilotildees dos loacutegicos Para o ele praticariacuteamos os

cacircnones de inferecircncias loacutegicas naturalmente e sem necessidade de estudo Portanto como

afirma Gardiner

179

WWV I ersters Buch sect9 p 78 M I Livro I sect9 p 88 (grifos do autor) 180

Ibidem p 176 (traduccedilatildeo nossa) 181

UumlV sect29 p 129 CR sect29 p 159 182

UumlV sect30 p 131 CR sect30 p 161 (grifos do autor) 183

UumlV sect30 p 130 CR sect30 159 184

WWV I ersters Buch sect9 p 84 M I Livro I sect9 p 94

- 115 -

Daiacute que seja enganoso falar como se pudeacutessemos aprender algo novo com as

regras fundamentais e os princiacutepios que os loacutegicos estabelecem jaacute que esses

princiacutepios jaacute subjazem implicitamente em nosso pensamento ordinaacuterio e

formas de falar tendo sido derivadas do exame deles185

Eacute interessante que Schopenhauer introduza essa forma do princiacutepio de

razatildeo entre aquelas conhecidas como as trecircs leis fundamentais do pensamento De acordo com

ele o princiacutepio de razatildeo do conhecer se soma agraves leis de identidade de contradiccedilatildeo e do

terceiro excluiacutedo na condiccedilatildeo de juiacutezo que fundamenta a verdade de outros juiacutezos186

Tais leis

seriam como premissas das quais se deduziriam outros juiacutezos sem a necessidade de que

fossem explicitamente enunciadas Na explicaccedilatildeo dele quando se afirma ldquoNingueacutem pode

tomar algo como verdadeiro sem saber o porquecircrdquo admite-se como fundamento dessa verdade

o princiacutepio de razatildeo suficiente do conhecer187

As leis fundamentais do pensamento satildeo

ademais as quatro verdades metaloacutegicas que se ancoram na estrutura do intelecto e originam

o modo de ser da razatildeo Enquanto fundadas nas condiccedilotildees do pensar natildeo se poderia

raciocinar em desacordo com elas

Aleacutem das verdades loacutegicas e metaloacutegicas um juiacutezo tambeacutem pode ser

fundamentado por uma verdade empiacuterica ou por uma verdade transcendental Verdade

empiacuterica eacute entendida por Schopenhauer como um juiacutezo cujo fundamento eacute uma intuiccedilatildeo

sensiacutevel Esse tipo de conhecimento seria obra da faculdade do juiacutezo mediadora entre o

entendimento e a razatildeo e responsaacutevel por garantir que as ligaccedilotildees entre conceitos sejam feitas

de acordo com as intuiccedilotildees188

Verdade transcendental por fim eacute aquela sustentada pelas

formas da sensibilidade pura nos juiacutezos sinteacuteticos a priori O juiacutezo nesse caso funda-se nas

condiccedilotildees da experiecircncia como no caso da proposiccedilatildeo ldquonada acontece sem causardquo fundada

lei de causalidade189

Assim como ocorre com as verdades metaloacutegicas natildeo se pode pensar

em oposiccedilatildeo agraves formas do tempo do espaccedilo e da causalidade e tentar fazecirc-lo diz o filoacutesofo

seria como ldquo[] mover nossos membros no sentido contraacuterio das suas articulaccedilotildeesrdquo190

Supor

uma mudanccedila sem causa precedente ele continua eacute algo que nem mesmo se pode pensar e

que por isso nos parece uma impossibilidade objetiva embora seja de fato subjetiva De

acordo com isso as diferenccedilas entre os conhecimentos intuitivo e racional decorrem de serem

oriundos cada um de uma faculdade tornando impossiacutevel algo como uma intuiccedilatildeo racional

185

GARDINER op cit p 172 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 186

UumlV sect30 p 130-131 CR sect30 160 187

UumlV sect30 p 130 CR sect30 p 160 188

UumlV sect31 p 131 CR sect31 p 161 189

UumlV sect32 p 132 CR sect32 p 162 190

UumlV sect33 p 133 CR sect33 p 163

- 116 -

pois afirma Schopenhauer ldquoA razatildeo pode sempre apenas saber ao entendimento sozinho e

livre de sua influecircncia resta a intuiccedilatildeordquo191

A loacutegica seria entatildeo o modus operandi da razatildeo

enquanto a razatildeo pura seria a parte meramente formal do intelecto com a qual se produzem

proposiccedilotildees de verdade transcendental e metaloacutegica192

Schopenhauer acrescenta ainda que a verdade dos raciociacutenios

assentados sobre a intuiccedilatildeo a priori do espaccedilo e do tempo isto eacute sobre proposiccedilotildees de

verdade transcendental natildeo pode ser demonstrada193

Nesse ponto eacute interessante expor a

distinccedilatildeo realizada por ele entre esse tipo de verdade e as demonstraccedilotildees No primeiro caso

trata-se de um conhecimento semelhante aos da aritmeacutetica e da geometria que somente satildeo

possiacuteveis por intuiccedilatildeo O segundo caso remete aos conhecimentos que dependem de

representaccedilotildees abstratas cuja prova eacute demonstrativa As diferenccedilas entre ambos os casos

estatildeo fundadas nas especificidades do princiacutepio de razatildeo suficiente o ser e do conhecer isto eacute

na diferenccedila entre se conhecer algo por intuiccedilatildeo pura ou por conceitos Nas demonstraccedilotildees

satildeo oferecidas as razotildees de conhecimento para as proposiccedilotildees sua verdade loacutegica enquanto

nas verdades transcendentais o que se oferece eacute uma intuiccedilatildeo em que se evidencia a razatildeo de

ser194

Em funccedilatildeo disso o tipo de assentimento que se tem em cada caso eacute tambeacutem distinto a

saber no princiacutepio do conhecer eacute a convicccedilatildeo (convictio) resultante de se saber ldquoquerdquo e no

do ser eacute a compreensatildeo (cognitio) resultado de se saber o ldquoporquecircrdquo195

Para Schopenhauer a

compreensatildeo eacute mais forte do que a convicccedilatildeo e diz ele ldquoQuando se tem esta [a razatildeo de ser]

entatildeo a seguranccedila sobre a verdade da proposiccedilatildeo se apoia somente nela de modo algum na

razatildeo de conhecimento dada por demonstraccedilatildeo []rdquo196

A demonstraccedilatildeo possui entatildeo uma importacircncia relativa no pensamento

schopenhaueriano A forma sistemaacutetica e dedutiva eacute vista pelo filoacutesofo como a caracteriacutestica

essencial do conhecimento cientiacutefico no qual por meio de interligaccedilotildees das esferas de

conceitos parte-se do geral de esferas mais amplas e conceitos superiores e atinge-se o

particular determinando-o e compreendendo-o A persuasatildeo e a firmeza que um

conhecimento cientiacutefico pode conseguir natildeo estatildeo poreacutem no grau maacuteximo de certeza que

pode ser alcanccedilada tambeacutem em conhecimentos sensiacuteveis mas numa possibilidade de

191

WWV I ersters Buch sect6 p 58 M I Livro I sect6 p 69 192

UumlV sect34 p 141-142 CR sect34 p 172-173 193

UumlV sect37 p 160 CR sect37 p 192 194

UumlV sect39 p 162-163 CR sect39 p 195 195

UumlV sect39 p 163 CR sect39 p 196 196

UumlV sect39 p 163 CR sect39 p 196

- 117 -

integralidade dada pela forma sistemaacutetica197

Nesse sentido como afirma Gardiner ldquoA ideia

de que uma explicaccedilatildeo da realidade pudesse ser intelectualmente aceitaacutevel apenas quando se

apresentasse em termos de proposiccedilotildees cujas verdades estivessem logicamente garantidas

teria lhe parecido absurdardquo198

Na visatildeo de Schopenhauer consolidou-se ao longo da Histoacuteria

a conclusatildeo falsa de que apenas o demonstrado deveria ser tomado por verdadeiro

dificultando a compreensatildeo de que toda demonstraccedilatildeo deriva no iniacutecio da cadeia

argumentativa de uma verdade indemonstraacutevel Ele sustenta ao contraacuterio que todas as

demonstraccedilotildees precisam ser remetidas a algo intuitivo e sem demonstraccedilatildeo possiacutevel pois ele

escreve ldquoNatildeo pode haver nenhuma verdade que seja necessariamente trazida agrave tona apenas

por conclusotildeesrdquo199

As intuiccedilotildees a priori do tempo e do espaccedilo por exemplo seriam as

verdades indemonstraacuteveis que fundamentam a aritmeacutetica e a geometria De modo semelhante

como formas a priori verdades transcendentais que fundamentariam conhecimentos

metafiacutesicos como o da permanecircncia da mateacuteria ainda que negativamente Por fim verdades

empiacutericas alcanccediladas por induccedilatildeo sustentariam conhecimentos empiacutericos embora a

evidecircncias delas seja apenas aproximativa200

Na opiniatildeo de Magee essa concepccedilatildeo mostra que Schopenhauer tinha

uma ideia muito clara das limitaccedilotildees da argumentaccedilatildeo loacutegica Qualquer raciociacutenio apenas

demonstra que a conclusatildeo se segue das premissas mas natildeo pode fornecer nenhuma

informaccedilatildeo nova201

Aleacutem disso esse autor enfatiza que um raciociacutenio teraacute sempre de apoiar-

se em pelo menos duas hipoacuteteses natildeo demonstradas a saber uma premissa e uma regra de

inferecircncia Portanto a exigecircncia de uma demonstraccedilatildeo para toda e qualquer ideia natildeo se

coadunaria com o que realmente acontece pois no fim de contas toda prova se fundaria em

algo natildeo demonstrado Do mesmo modo eacute preciso que se remeta o argumento a algo que natildeo

seja a proacutepria conclusatildeo isto eacute a argumentaccedilatildeo natildeo pode se reduzir somente ao ciacuterculo de

proposiccedilotildees de que eacute feita202

Nas palavras de Magee

[] se sabemos algo a respeito do mundo o sabemos natildeo porque tenha sido

demonstrado ou provado mas porque experimentamos ou percebemos

diretamente ou entatildeo porque mediante processos loacutegicos que natildeo

acrescentam nenhum conteuacutedo empiacuterico se segue do que experimentamos

197

WWV I ersters Buch sect14 p 108 M I Livro I sect14 p 115 198

GARDINER op cit p 207 (traduccedilatildeo nossa) 199

WWV I ersters Buch sect14 p 110 MI Livro I sect14 p 117 200

WWV I ersters Buch sect14 p 111-113 MI Livro I sect14 p 118-120 201

MAGEE B op cit p 45 202

Ibidem p 46

- 118 -

ou percebemos diretamente Nesse sentido fundamental todo conhecimento

precede a toda demonstraccedilatildeo203

22 ndash O conhecimento filosoacutefico

Na interpretaccedilatildeo de Magee o texto de Da quaacutedrupla raiz foi elaborado

como uma teoria da explicaccedilatildeo que seria entendida por Schopenhauer como uma

investigaccedilatildeo imprescindiacutevel para o intento de desvendar o mundo204

Cada uma das formas do

princiacutepio de razatildeo seria uma maneira de responder agrave questatildeo sobre como fundamentar

suficientemente um conhecimento No entanto conforme esse autor a razatildeo suficiente dada

por aquelas formas evidencia as relaccedilotildees necessaacuterias entre as classes de objetos possiacuteveis sem

oferecer a possibilidade de se parar em nenhum ponto alcanccedilado As explicaccedilotildees por meio do

princiacutepio seriam portanto sempre incompletas e insatisfatoacuterias Magee considera que da

perspectiva da praacutetica as explicaccedilotildees podem se deter onde seja suficiente para os respectivos

propoacutesitos sem que isso represente qualquer problema Da perspectiva da teoria contudo as

passagens em que a investigaccedilatildeo normalmente se interrompe satildeo aquelas onde estatildeo as

questotildees filosoacuteficas Nesse sentido escreve Magee ldquoUma vez que enumerou todas as formas

possiacuteveis de explicaccedilatildeo o que Schopenhauer faz no passo seguinte de sua investigaccedilatildeo eacute

determinar o ponto em que cada uma das explicaccedilotildees costumam se deter na praacutetica pontos

em que surgem importantes problemas filosoacuteficosrdquo205

Na concepccedilatildeo de Schopenhauer o conhecimento filosoacutefico eacute aquele que

vai aleacutem do cientiacutefico isto eacute que prossegue quando este tem de parar Ser cientiacutefico significa

ser sistematizado e ordenado com base no princiacutepio de razatildeo que conecta as partes de um

sistema e o torna coerente e coeso Toda ciecircncia estudaria um objeto especiacutefico tendo o

203

Ibidem p 46 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 204

Ibidem p 35 205

Ibidem p 39-40 (traduccedilatildeo nossa)

- 119 -

princiacutepio de razatildeo como seu meacutetodo de pesquisa206

Com efeito o filoacutesofo escreve ldquoO que

justamente diferencia cada ciecircncia de um simples agregado eacute que seus conhecimentos

seguem-se uns dos outros como de seus fundamentosrdquo207

Como dissemos o princiacutepio de

razatildeo exige sempre a busca pelo porquecirc de tudo e isso o torna a ldquomatildee de todas as

ciecircnciasrdquo208

Inversamente a resposta agrave pergunta pelo porquecirc soacute pode ser oferecida com uma

razatildeo suficiente numa das formas do princiacutepio

Nessa perspectiva o princiacutepio de razatildeo e a coisa em si permaneceratildeo

absolutamente inexplicaacuteveis O primeiro como jaacute dissemos eacute o que torna possiacutevel qualquer

explicaccedilatildeo de modo que explicaacute-lo a partir de outra coisa natildeo faria sentido a segunda por

sua vez porque natildeo se submete a ele Diferentemente as diversas ciecircncias tecircm de seguir o

princiacutepio de razatildeo e com isso detecircm-se no fenocircmeno e deixam sempre incompreendidos os

pontos onde resvalam na coisa em si Somente o conhecimento filosoacutefico seria capaz de

ultrapassar o princiacutepio de razatildeo e o fenocircmeno pois diz Schopenhauer ldquo[] o que as ciecircncias

pressupotildeem o que colocam como fundamento de suas explicaccedilotildees e estabelecem como

limites eacute exatamente o verdadeiro problema da filosofia que em consequecircncia comeccedila onde

essas ciecircncias paramrdquo209

Em Schopenhauer critique de Kant Philonenko observa de modo

interessante que a filosofia schopenhaueriana se situa numa certa tensatildeo entre o objetivo e o

subjetivo Nas palavras do autor

Far-se-ia melhor em sublinhar que a filosofia segundo Schopenhauer reside

numa tensatildeo reativa ao mesmo tempo subjetiva e objetiva subjetiva na

medida em que a consciecircncia se desgarra de seu lugar de nascimento e se

abre aos fenocircmenos objetiva na medida em que experimenta o real e

desposa a coisa em si210

Schopenhauer ressalta como caracteriacutesticas distintivas da filosofia em

primeiro lugar tomar tudo por incerto e problemaacutetico ateacute mesmo o princiacutepio de razatildeo Em

segundo natildeo ter demonstraccedilotildees por fundamento nem ser encontrada por deduccedilatildeo a partir de

princiacutepios supostamente firmes Sobre esse ponto no texto ldquoSobre filosofia e seu meacutetodordquo de

Parerga e Paralipomena ele afirma que ldquoO fundamento e o solo sobre os quais todos os

nossos conhecimentos e ciecircncias descansam eacute o inexplicaacutevelrdquo o qual ele acrescenta ldquo[] cai

206

WWV I ersters Buch sect7 p 62 M I Livo I sect7 p 73 207

UumlV sect4 p 14 CR sect4 p 32 208

UumlV sect4 p 15 CR sect4 p 33 209

WWV I ersters Buch sect15 p 130 MI Livro I sect15 p 136 210

PHILONENKO A Schopenhauer critique de Kant Paris Les Belles Lettres 2005 p 99 (traduccedilatildeo nossa)

(grifos do autor)

- 120 -

no campo da metafiacutesicardquo211

Em terceiro e uacuteltimo lugar eacute carateriacutestico da filosofia ser um

conhecimento universal a partir do qual natildeo se alcanccedila outros superiores Natildeo obstante diz o

filoacutesofo natildeo se deve buscar por meio dela uma causa final nem uma causa eficiente do

mundo posto que isso seria utilizar o princiacutepio de razatildeo indevidamente Nesse caso a

pergunta pelo ldquoporquecircrdquo da existecircncia do mundo deve ceder lugar agrave pergunta sobre ldquoo querdquo ele

eacute agrave qual toda pessoa estaria apta a responder212

A filosofia deve entatildeo representar em

conceitos o que eacute apreendido imediatamente como sentimento do mundo ldquoPortantordquo escreve

Schopenhauer

a filosofia seraacute uma soma de juiacutezos muito gerais cujo fundamento imediato

de conhecimento eacute o mundo mesmo em sua totalidade sem nada excluir ou

seja tudo o que se encontra na consciecircncia humana seraacute uma repeticcedilatildeo

completa algo como um espelhamento do mundo em conceitos abstratos o

que soacute eacute possiacutevel pela uniatildeo do essencialmente idecircntico em um conceito e

pela separaccedilatildeo do diferente em outro213

Tanto a ciecircncia quanto a filosofia ocupam-se da experiecircncia mas

enquanto a primeira se debruccedila sobre o que nela haacute de particular a segunda a investiga

segundo sua possibilidade essecircncia forma e mateacuteria214

Schopenhauer divide em dois ramos

os objetos de estudo da filosofia a saber em philosophia prima e metafiacutesica A investigaccedilatildeo

do intelecto com suas formas leis validade e limites eacute a philosophia prima que conta com

uma dianoiologia dedicada ao entendimento e agraves intuiccedilotildees empiacutericas e uma teoria da razatildeo

voltada aos conceitos e suas regras215

O objetivo da philosophia prima seria compreender o

meio pelo qual o empiacuterico se apresenta enquanto a metafiacutesica examinaria a experiecircncia como

uma aparecircncia que representa a coisa em si dividindo-se em metafiacutesica do belo da natureza e

dos costumes216

A investigaccedilatildeo da metafiacutesica segundo o filoacutesofo exige a uniatildeo da

experiecircncia externa com a interna e a compreensatildeo da realidade empiacuterica como um todo algo

semelhante a encontrar a coesatildeo e o sentido de um escrito redigido com caracteres

desconhecidos ldquoDesse modordquo ele escreve ldquochega-se da aparecircncia ao que ao que aparece ao

que estaacute sob ela por isso ηὰ μεηὰ ηὰ θςζισὰ (o que se segue agrave fiacutesica)rdquo217

211

PP II Kap 1 sect1 p 9 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de Miguel

Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 1 p 187 212

WWV I ersters Buch sect15 p 131 M I Livro I sect15 p 137 213

WWV I ersters Buch sect15 p 131 M I Livro I sect15 p 137-138 (grifos do autor) 214

PPII Kap 1 sect21 p 26 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de Miguel

Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 21 p 205 215

Ibidem loc cit ibidem loc cit 216

Ibidem Kap 1 sect21 p 27 ibidem sect 21 p 206 217

Ibidem loc cit ibidem loc cit (grifos do autor)

- 121 -

Para alcanccedilar seu objetivo a filosofia soacute poderaacute lidar com a consciecircncia

empiacuterica a uacutenica que nos eacute dada imediatamente e que abrange a consciecircncia de si e a dos

objetos externos Conforme Schopenhauer ao contraacuterio do que pensaram diversos filoacutesofos

ela natildeo pode ser erigida como edifiacutecio meramente abstrato jaacute que diz ele ldquoOs conceitos satildeo

certamente o material da filosofia mas apenas como o maacutermore eacute o material do escultor ela

natildeo deve proceder a partir deles somente se realizar neles isto eacute expor seus resultados com

eles mas natildeo partir deles como os seus dadosrdquo218

E o modo como ele entende que isso pode

ser conseguido eacute captando-se o geral no particular por meio da compreensatildeo das ideias

platocircnicas219

Nesse sentido ele afirma ldquo[] aquele direcionamento do espiacuterito para o geral eacute

a condiccedilatildeo indispensaacutevel para o trabalho genuiacuteno em filosofia e poesia de modo amplo para

as ciecircncias e as artesrdquo220

Por conseguinte natildeo se poderia fazer verdadeiramente filosofia

apenas combinando conceitos sendo preciso fundamentaacute-los em observaccedilotildees e experiecircncias

internas ou externas Filosofar a partir de conceitos eacute exatamente o que Schopenhauer

entende por dogmatismo Na concepccedilatildeo de Paul Guyer essa eacute uma carateriacutestica fundamental

da filosofia schopenhaueriana que ele considera por isso ser um tipo de fenomenologia221

Conforme esse autor

Como os empiristas preacute-kantianos Schopenhauer parece basear sua anaacutelise

da natureza do pensamento numa fenomenologia na qual percepccedilotildees jaacute satildeo

sempre vistas como consciecircncia de objetos e parece pensar que a categoria

da causalidade eacute a uacutenica adiccedilatildeo essencial agrave percepccedilatildeo isso porque um juiacutezo

que designa um objeto ou seu estado como causa de outro pode ser pensado

como um ato de pensamento fenomenologicamente distinguiacutevel da

percepccedilatildeo antecedente e independente do objeto mesmo222

Natildeo obstante a filosofia tampouco pode assentar-se somente na

experiecircncia exterior jaacute que nela segundo o filoacutesofo encontramos apenas cinzas223

O ponto

de partida genuiacuteno para ela estaacute na consciecircncia imediata no reconhecimento de si mesmo que

se consegue quando se ldquoolha para dentrordquo E esse ponto de partida seria a consciecircncia de si

originaacuteria existente em todo ser humano pela qual cada um se julgaria como o centro do

mundo e a fonte da realidade Em virtude disso a concepccedilatildeo schopenhaueriana de filosofia

218

WWWII Kap 7 p 98 MII cap 7 p 99 (grifos do autor) 219

No proacuteximo capiacutetulo analisaremos a concepccedilatildeo schopenhaueriana de Ideia 220

PPII Kap 1 sect2 p 10 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de Miguel

Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 1 p 188 221

GUYER P Schopenhauer Kant and the Methods of Philosophy In JANAWAY C (ed) The Cambridge

Companion to Schopenhauer Cambridge Cambridge University Press 1999 p 117 222

Ibidem p 117 (traduccedilatildeo nossa) 223

PPII Kap 1 sect20 p 24 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de Miguel

Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 20 p 204

- 122 -

natildeo pode ser vista como um procedimento meramente loacutegico ou demonstrativo Nas palavras

do filoacutesofo

Ela deve como a arte e a poesia ter sua fonte na compreensatildeo sensiacutevel do

mundo por mais que a cabeccedila fique no alto natildeo se pode persegui-la com

sangue frio de modo que ao fim natildeo reste o homem completo como

coraccedilatildeo e cabeccedila que venha a agir e pouco a pouco se comova Filosofia natildeo

eacute uma equaccedilatildeo algeacutebrica Mais razatildeo tem Vauvenarges quando diz les

grandes penseacutees viennent du coeur (Os grandes pensamentos vecircm do

coraccedilatildeo Reflexotildees e Maacuteximas Nr 127)224

Em diversas passagens de suas obras Schopenhauer relaciona a filosofia

agrave arte Poreacutem segundo pensamos ele natildeo estabelece uma relaccedilatildeo de identidade entre ambas

mas apenas uma aproximaccedilatildeo geral e difusa ainda mais se considerarmos que haacute diversos

tipos de arte com diferentes modos de expressatildeo Em ldquoSobre filosofia e seu meacutetodordquo por

exemplo ele declara que o poeta apresenta imagens da vida e das pessoas de um modo que

deixa a reflexatildeo ao leitor que a faraacute de acordo com suas possibilidades O filoacutesofo por seu

turno trataria de outra forma os mesmos objetos por meio de pensamentos abstratos Tanto a

arte como a filosofia ocupam-se do geral de espeacutecies classes e conceitos mas escreve

Schopenhauer ldquo[] o poeta se compara agravequele que exibe a flor e o filoacutesofo agravequele que

apresenta a quintessecircnciardquo225

Volker Spierling observa tambeacutem esse ponto e ressalta uma ambiguidade

no aspecto artiacutestico que Schopenhauer daacute ao conhecimento filosoacutefico Na sua obra Arthur

Schopenhauer eine Einfuumlhrung in Leben und Werk esse autor analisa os manuscritos

poacutestumos e mostra que Schopenhauer sempre associou a filosofia agrave arte226

Na transformaccedilatildeo

do conhecimento intuitivo em abstrato Spierling encontra o que chama de diferenccedila

problemaacutetica (problematische Differenz) Para ele consciente do problema mas sem discuti-

lo Schopenhauer tenta fazer o impossiacutevel conceituar o natildeo definiacutevel em conceitos e captar

abstratamente o que eacute vedado ao pensamento227

Nas palavras desse autor

Nesse ponto trata-se de chamar a atenccedilatildeo para uma diferenccedila problemaacutetica

que tambeacutem eacute pensada com a filosofia de Schopenhauer A vivacidade o

caraacuteter imediato das experiecircncias intuitivas da ldquovisatildeo artiacutestica do filosofordquo

tecircm de ser realizados antes de toda reflexatildeo conceitual e satildeo um lado

totalmente diferente de uma investigaccedilatildeo indispensaacutevel para Schopenhauer

224

Ibidem Kap 1 sect9 p 15-16 ibidem p 194 (grifos do autor) 225

Ibidem Kap 1 sect4 p 16 Ibidem sect 4 p 189 226

SPIERLING V Arthur Schopenhauer eine Einfuumlhrung in Leben und Werk Leipzig Reclam Verlag 1998

p 61 227

Ibidem p 62

- 123 -

a saber refletir essas experiecircncias no meio inadequado do conceito conforme

o princiacutepio de razatildeo como que para as transformar e prender

conceitualmente228

23 ndash Criacutetica de Schopenhauer ao idealismo de Kant

Schopenhauer afirma ter escrito a Criacutetica da filosofia kantiana para

justificar a doutrina que expocircs em O mundo naquilo que ela tem de contraacuterio ao

pensamento de Kant Informa ele que desde a escrita da Criacutetica da razatildeo pura a metafiacutesica

teve de abrir novos caminhos e o propoacutesito daquela obra eacute defender o seu229

Ele declara que

sua proacutepria filosofia decorre de uma parte da de Kant purificada poreacutem dos erros deste e

que suas discordacircncias referem-se agraves incorreccedilotildees que ele entende deverem ser expurgadas

para que a verdade da filosofia kantiana possa brilhar clara e segura230

No entender de

Schopenhauer o meacuterito de Kant natildeo eacute afetado por essas imperfeiccedilotildees porque o valor de sua

contribuiccedilatildeo agrave filosofia as supera em muito Como observa Alexis Philonenko em sua obra

Schopenhauer critique de Kant o filoacutesofo considerava que a criacutetica pertinente deveria ser

precedida pelo reconhecimento dos meacuteritos Em funccedilatildeo disso afirma esse autor ldquoA criacutetica eacute

portanto um momento fundante na filosofia de Schopenhauerrdquo231

Natildeo exporemos a criacutetica completa que Schopenhauer faz a Kant porque

ela eacute minuciosa e vai aleacutem do nosso escopo Ele analisa toda a Criacutetica da razatildeo pura aleacutem da

eacutetica kantiana mas pretendemos nos ater somente aos pontos diretamente ligados agrave nossa

investigaccedilatildeo Com efeito a distinccedilatildeo kantiana entre fenocircmeno e coisa em si tem uma

importacircncia fundamental para Schopenhauer Kant teria demonstrado que o intelecto se

interpotildee necessariamente entre as coisas e o nosso conhecimento delas e que portanto nunca

228

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 229

KkP p 555-546 CFK p 94-95 230

KkP p 533 CFK p 86 231

PHILONENKO A Schopenhauer critique de Kant Paris Les Belles Lettres 2005 p 91 (traduccedilatildeo nossa)

(grifos do autor)

- 124 -

poderemos saber o que satildeo em si mesmas232

Ao separar rigorosamente o que conhecemos a

priori do conhecido a posteriori Kant teria realizado uma revoluccedilatildeo na histoacuteria das ideias

estabelecendo uma relaccedilatildeo tripla com a filosofia anterior

[] primeiro de confirmaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo com a de Locke como acabamos

de ver segundo de correccedilatildeo e utilizaccedilatildeo com a de Hume que se encontra

claramente expressa no prefaacutecio dos ldquoProlegomenardquo (o mais belo e

compreensiacutevel de todos os principais escritos de Kant pois facilita

extraordinariamente o estudo de sua filosofia mas que eacute muito pouco lido)

terceiro de decidida polecircmica e de demoliccedilatildeo com a filosofia Leibniz-

wolffiana233

Pela posiccedilatildeo central do discernimento entre fenocircmeno em coisa em si

Schopenhauer entende que a doutrina acerca a distinccedilatildeo completa entre o real e o ideal eacute o

nuacutecleo da filosofia de Kant Nesse aspecto o pensamento kantiano aparece para ele como

continuador de uma tradiccedilatildeo filosoacutefica antiga iniciada por Platatildeo de separaccedilatildeo e

diferenciaccedilatildeo entre um mundo real e outro ideal Conforme o filoacutesofo seguindo um caminho

proacuteprio Kant descobriu a mesma verdade que Platatildeo enunciara de forma miacutetica na Alegoria

da Caverna no livro seacutetimo de A Repuacuteblica passagem que ele considera a mais importante de

a toda filosofia platocircnica234

Nesse ponto especiacutefico o pensamento de Platatildeo e de Kant teria

sido expresso tambeacutem embora de modo diferente nos ensinamentos contidos na doutrina de

Maya encontrada nos Vedas e nos Puranas Schopenhauer entende que Platatildeo Kant e a

doutrina de Maya expressam igualmente a concepccedilatildeo de que o mundo que acessamos pelo

conhecimento eacute ilusoacuterio transitoacuterio secundaacuterio e inconsistente algo como um sonho diz ele

ldquo[] um veacuteu que envolve a consciecircncia humana algo do qual eacute tatildeo verdadeiro quanto falso

afirmar que eacute assim como que natildeo eacuterdquo235

A superioridade de Kant poreacutem teria sido a de

apresentar essa verdade demonstrativa e incontestavelmente enquanto Platatildeo e o hinduiacutesmo a

teriam expressado de modo poeacutetico e miacutetico Assim a atribuiccedilatildeo de uma ldquonatureza oniacutericardquo

(traumartigen Beschaffenheit) ao mundo seria comum a todos eles e tal visatildeo teria permitido

que compreendessem a impossibilidade de se conhecer a essecircncia das coisas com base no

conhecimento do mundo supostamente real236

Schopenhauer formula uma metaacutefora interessante para designar aqueles

que partindo apenas do conhecimento empiacuterico entenderam ser possiacutevel conhecer as coisas

232

KkP p 534 CFK p 87 233

KkP p 535 CFK p 88 234

KkP p 536 CFK p 88 235

KkP p 536 CFK p 88 236

KkP p 537 CFK p 89

- 125 -

em si Eles seriam como um ldquoesquilo na rodardquo ou tambeacutem como aqueles que pensam poder

alcanccedilar o fim do mundo andando em linha reta Como se tivesse circundado o planeta diz o

filoacutesofo Kant mostrou que ldquo[] porque ele eacute redondo natildeo se pode sair por meio de

movimento horizontal mas que por um movimento perpendicular talvez natildeo seja

impossiacutevelrdquo237

Portanto o conhecimento empiacuterico nunca conduziraacute agrave soluccedilatildeo do problema

de modo que a direccedilatildeo do movimento deve ser perpendicular isto eacute ou para fora ou para

dentro do mundo

O segundo meacuterito de Kant teria sido o de abrir espaccedilo para a deduccedilatildeo da

coisa em si como Vontade ao mostrar que o sentido moral das accedilotildees humanas natildeo se remete

ao fenomecircnico Se bem que Kant natildeo a tivesse deduzido corretamente sua exposiccedilatildeo teria

apontado para a ligaccedilatildeo entre a coisa em si e a moral238

O terceiro meacuterito de Kant no

entender de Schopenhauer foi o de subverter o pensamento escolaacutestico que desde Santo

Agostinho havia submetido a filosofia agrave religiatildeo Uma atitude arriscada jaacute que Kant se

atreveu a minar crenccedilas arraigadas durante seacuteculos e defendidas com violecircncia ao demonstrar

a fragilidade e falta de sustentaccedilatildeo de dogmas tidos por incontestaacuteveis Aleacutem disso como

resultado da filosofia kantiana o realismo teria sido combatido posto que no idealismo as

leis do fenocircmeno foram tomadas como parte do sujeito e natildeo mais como verdades eternas

possibilitando que a realidade do mundo fosse percebida como aparente

Em relaccedilatildeo agraves criacuteticas de Schopenhauer a Kant consideramos que haacute

dois pontos centrais O primeiro eacute a acusaccedilatildeo de que Kant teria realizado suas investigaccedilotildees

com base em um princiacutepio arbitraacuterio e natildeo condizente com a natureza das coisas Para

Schopenhauer Kant busca e encontra em toda parte uma simetria que estaacute somente em si

mesmo distanciando-se da verdade com frequecircncia Nas suas palavras ldquo[] uma propriedade

muito individual do espiacuterito de Kant eacute um prazer singular na simetria que ama a

multiplicidade matizada para ordenaacute-la e repetir a ordenaccedilatildeo em subordinaccedilotildees e assim

continuamente exatamente como nas igrejas goacuteticasrdquo239

Longe de ser algo irrelevante esse

amor agrave simetria teria levado Kant a deduccedilotildees ilegiacutetimas ao uso de sofismas e agrave imposiccedilatildeo de

um edifiacutecio teoacuterico repleto de paralelismos correspondecircncias e equivalecircncias muitas vezes

inexistentes de fato Exemplos disso satildeo segundo Schopenhauer a deduccedilatildeo de doze

categorias em quatro tiacutetulos cada um contando trecircs delas a partir das categorias a deduccedilatildeo

237

KkP p 538 CFK p 89-90 238

KkP p 539-540 CFK p 90-91 239

KkP p 549 CFK p 97 (grifos do autor)

- 126 -

da taacutebua dos princiacutepios da ciecircncia da natureza em nuacutemero de quatro dentre os quais dois

ramificam-se em trecircs galhos cada a criaccedilatildeo de trecircs ideias pela razatildeo com fundamento nas

categorias da relaccedilatildeo na sua busca ao incondicionado a deduccedilatildeo de trecircs ideias a partir dos

silogismos resultantes da categoria da relaccedilatildeo respectivamente alma mundo e Deus por fim

a produccedilatildeo de quatro teses pela ideia de mundo com correlato simeacutetrico em quatro

antiacuteteses240

Entatildeo ele escreve Kant ldquo[] segue seu caminho perseguindo sua simetria

ordenando tudo de acordo com ela sem nunca tomar em consideraccedilatildeo os proacuteprios objetos

assim tratadosrdquo241

Essa mania de equivalecircncia teria sido o verdadeiro fio condutor da

Criacutetica da razatildeo pura Ao descobrir que tempo e espaccedilo satildeo conhecidos a priori Kant teria

ido longe demais ao rastrear tudo o que se poderia encontrar no intelecto antes de toda a

experiecircncia Assim diz Schopenhauer encontrando de iniacutecio intuiccedilotildees a priori procurou

conceitos igualmente puros como fundamento dos empiacutericos Com a taacutebua dos juiacutezos

construiu as doze categorias como fundamento da loacutegica transcendental que entrou como

correlato da esteacutetica transcendental resultando no surgimento de uma sensibilidade e de um

entendimento puros242

Em consequecircncia disso Kant teria esquecido o objeto da investigaccedilatildeo

e seguido uma miragem pois nas palavras de Schopenhauer ldquo[] depois da feliz descoberta

das duas formas da intuiccedilatildeo a priori orientando-se pela guia da analogia passou a se esforccedilar

em demonstrar para cada determinaccedilatildeo de nosso conhecimento empiacuterico um anaacutelogo a

priori []rdquo243

Na visatildeo schopehaueriana portanto os doze conceitos puros de Kant satildeo

inuacuteteis e ateacute mesmo nocivos Como observa Philonenko as categorias satildeo descartadas no seu

conjunto por Schopenhauer e embora a causalidade seja mantida natildeo possui o estatuto de

conceito puro Entatildeo escreve esse autor ldquoAiacute reside uma grande diferenccedila entre Kant e

Schopenhauer para este o princiacutepio de causalidade [] natildeo eacute de fato uma categoria

heterogecircnea agraves formas sensiacuteveis do tempo e do espaccedilo Vemos a consequecircncia a deduccedilatildeo

transcendental em sentido kantiano natildeo se impotildeerdquo244

O segundo ponto nodal da criacutetica de Schopenhauer a Kant estaacute na

confusatildeo que este teria gerado entre intuiccedilatildeo e conceito e por conseguinte entre

240

KkP p 549-550 CFK p 97-98 241

KkP p 550 CFK p 98 242

KkP p 573 CFK p 112 243

KkP p 575 CFK p 114 244

PHILONENKO A Schopenhauer Una filosofia de la tragedia Barcelona Anthropos 1989 p 88 (traduccedilatildeo

nossa) (grifos do autor)

- 127 -

entendimento e razatildeo Para Schopenhauer essa foi a verdadeira origem das contradiccedilotildees

insoluacuteveis a que filosofia kantiana chegara Na sua interpretaccedilatildeo o mundo dos sentidos eacute

remetido em conjunto a um ldquodadordquo do qual pouco se fala e o fundamento do edifiacutecio

kantiano eacute fornecido pela taacutebua loacutegica dos juiacutezos245

Sem indagar a essecircncia dos conceitos

Kant natildeo teria podido perceber a relaccedilatildeo deles com a intuiccedilatildeo nem o que cabia ao

entendimento e o que cabia agrave razatildeo no processo do conhecer Kant teria compreendido a razatildeo

de modo confuso e oferecido definiccedilotildees e explicaccedilotildees insuficientes ainda que tivesse

elaborado muitas como por exemplo ldquofaculdade dos princiacutepios a priorirdquo ldquofaculdade das

inferecircncias mediatasrdquo e ldquofaculdade de unificaccedilatildeo dos conceitos do entendimento em

ideiasrdquo246

Analogamente o entendimento tambeacutem teria sido definido de modo hesitante e

oscilante com sentidos como ldquofaculdade das regrasrdquo ldquofonte dos princiacutepiosrdquo e ldquofaculdade de

julgarrdquo247

No entender de Schopenhauer por natildeo ter investigado a natureza do

conceito Kant natildeo teria distinguido representaccedilotildees abstratas de intuitivas nem percebido que

era necessaacuterio definir rigorosamente a intuiccedilatildeo a razatildeo o entendimento o objeto o sujeito a

representaccedilatildeo a verdade dentre outros termos Uma consequecircncia importante dessa confusatildeo

teria sido o modo como Kant conceituou o objeto da experiecircncia misturando e separando

simultaneamente o conceito abstrato e a incoacutegnita a que se aplicam as categorias Assim

fazendo diz Schopenhauer ele natildeo pocircde esclarecer ldquo[] se seu bdquoobjeto da experiecircncia isto eacute

o conhecimento que se origina da aplicaccedilatildeo das categorias‟ eacute a representaccedilatildeo intuitiva no

tempo e no espaccedilo (minha primeira classe de representaccedilotildees) ou um simples conceito

abstratordquo248

Essa imprecisatildeo teria impossibilitado explicar o conteuacutedo da intuiccedilatildeo empiacuterica

que Kant teria entatildeo tomado como algo dado Daiacute poreacutem teria advindo o erro capital de

embaralhar a impressatildeo nos sentidos e a representaccedilatildeo ou seja a mera sensaccedilatildeo com o

objeto Em virtude disso diz Schopenhauer por um lado a intuiccedilatildeo kantiana natildeo se serve do

entendimento porque eacute recebida passivamente embora o objeto soacute possa ser pensado pelas

categorias Por outro o objeto do pensamento se torna algo individual natildeo universalizado

isto eacute coisas e natildeo conceitos249

Por conseguinte ele afirma

245

KkP p 551 CFK p 98 246

KkP p 552-552 CFK p 99 247

KkP p 553 CFK p 99-100 248

KkP p 558 CFK p 103 (grifos do autor) 249

KkP p 560-561 CFK p 105

- 128 -

Daiacute resulta que esse mundo intuitivo existiria para noacutes mesmo se natildeo

tiveacutessemos nenhum entendimento que ele entra na nossa cabeccedila de um

modo em tudo inexplicaacutevel modo esse que sempre denota com sua estranha

expressatildeo de que a intuiccedilatildeo seria dada sem explicar depois essa expressatildeo

indeterminada e figurada250

Outra consequecircncia daquela confusatildeo teria sido a primazia dada por Kant

aos conceitos que o teria levado ao extremo de afirmar que sem eles natildeo haveria qualquer

conhecimento Nessa perspectiva a intuiccedilatildeo se resume a mera afecccedilatildeo da sensibilidade algo

vazio ao mesmo tempo em que sem ela os conceitos ainda seriam alguma coisa251

Cacciola

esclarece sobre esse ponto que no fim de contas a noccedilatildeo kantiana de objeto em geral

remeteria agrave determinaccedilatildeo da experiecircncia como resultado dos predicados atribuiacutedos a ele pelos

conceitos puros do entendimento252

Guyer considera espantoso esse julgamento de Schopenhauer

entendendo que o filoacutesofo acabaria acusando Kant de duas posturas opostas Por um lado o

filoacutesofo afirmaria que Kant misturou intuiccedilatildeo e conceito e por outro censuraria o fato de ter

colocado os conceitos em ordem de prioridade253

Para Guyer Kant entendeu a diferenciaccedilatildeo

entre intuiccedilotildees e conceitos como uma das suas mais importantes e fundamentais descobertas

das quais teria advindo a base para sua criacutetica da filosofia anterior e para a soluccedilatildeo do

problema do conhecimento sinteacutetico a priori Aleacutem disso Kant natildeo teria deixado de sublinhar

que pensamentos sem conteuacutedo intuitivo satildeo vazios Natildeo obstante diz Guyer Schopenhauer

estaacute mais proacuteximo de Kant do que pensa e a real diferenccedila entre ambos estaria no modo como

cada um concebe a consciecircncia de um objeto Para Kant toda consciecircncia exige uma uniatildeo

sinteacutetica de intuiccedilatildeo e conceito e os papeacuteis que cada um desempenha depende de se

relacionarem nos juiacutezos com propriedades particulares ou comuns Schopenhauer poreacutem

parte do exame detalhado da consciecircncia de um objeto e do processo de conhececirc-lo e entatildeo

toma a distinccedilatildeo de Kant como se ela tivesse feita com seus proacuteprios propoacutesitos ou seja

como um tipo de distinccedilatildeo fenomenologicamente autoevidente254

No entendimento do

filoacutesofo escreve Guyer

[] Kant natildeo reconhece que o estado inicial da consciecircncia que

Schopenhauer identifica com a percepccedilatildeo jaacute eacute conhecimento de objetos

Mas distinguindo entre intuiccedilotildees e conceitos Kant claramente natildeo pretende

250

KkP p 561-562 CFK p 105 (grifos do autor) 251

KkP p 603 CFK p 132 252

CACCIOLA M L Schopenhauer e a questatildeo do dogmatismo Satildeo Paulo EDUSP 1994 p 36 253

GUYER op cit p 113-114 254

Ibidem p 115

- 129 -

estar distinguindo entre estados conscientes sequenciais ao inveacutes disso o

argumento de Kant eacute o de que nossa consciecircncia de objetos jaacute eacute um

conhecimento deles precisamente porque jaacute representa a siacutentese de intuiccedilatildeo

e conceitos ndash algo muito mais proacuteximo daquilo em que Schopenhauer

acredita Porque Schopenhauer acredita que o meacutetodo de Kant eacute

fenomenoloacutegico como o seu quando natildeo eacute ele pensa que haacute uma maior

diferenccedila entre suas visotildees do que realmente haacute255

Schopenhauer conclui que no fundo Kant considerava haver um objeto

sob a intuiccedilatildeo o qual seria mateacuteria para a aplicaccedilatildeo do entendimento um objeto no entanto

irrepresentaacutevel Pela operaccedilatildeo proacutepria do entendimento o conceito seria aplicado agrave intuiccedilatildeo e

esta se tornaria experiecircncia pela intuiccedilatildeo o objeto seria dado pelo entendimento seria

pensado Assim Kant consideraria como funccedilatildeo do entendimento pensar os objetos e natildeo

intuiacute-los e isso explicaria o motivo pelo qual ele afirmava que as coisas soacute poderiam tornar-se

reais atraveacutes do pensamento pela aplicaccedilatildeo das doze categorias256

Ficaria entatildeo manifesto

que ele distinguia a representaccedilatildeo o objeto da representaccedilatildeo e a coisa em si Nas palavras de

Schopenhauer ldquoA primeira eacute assunto da sensibilidade que ao lado da sensaccedilatildeo tambeacutem

compreende as formas puras do tempo e do espaccedilo O segundo eacute coisa do entendimento que

ele acrescenta em pensamento por meio de suas doze categorias A terceira fica aleacutem de toda

cognoscibilidaderdquo257

Na concepccedilatildeo de Schopenhauer poreacutem se o objeto natildeo for a proacutepria

representaccedilatildeo teraacute de ser a coisa em si e a introduccedilatildeo do ldquoobjeto da representaccedilatildeordquo como um

intermediaacuterio eacute uma grande fonte de erros Por conseguinte diz ele se o ldquoobjeto da

representaccedilatildeordquo eacute uma concepccedilatildeo falsa toda a doutrina das categorias tambeacutem o seraacute posto

que sua finalidade eacute justamente pensaacute-lo Tanto o primeiro quanto as segundas seriam inuacuteteis

e prejudiciais pois natildeo serviriam agrave intuiccedilatildeo nem agrave coisa em si mas apenas para transformar o

objeto da representaccedilatildeo em experiecircncia258

No fim de contas tudo isso seria inoacutecuo pois a

intuiccedilatildeo jaacute seria a proacutepria experiecircncia que precisa apenas do espaccedilo do tempo e da

causalidade para se formar

Portanto para Schopenhauer teria sido importante que se explicasse a

gecircnese da intuiccedilatildeo empiacuterica Para seguir no seu caminho simeacutetrico poreacutem Kant teria mantido

o entendimento na funccedilatildeo de pensar ligada agrave loacutegica transcendental e afastado dele a intuiccedilatildeo

Assim no entender do filoacutesofo teria restado para si mesmo a tarefa de provar a aprioridade

causalidade por meio da demonstraccedilatildeo de que ela eacute a condiccedilatildeo da realidade tanto do ponto

255

Ibidem p 116 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 256

KkP p 565 CFK p 108 257

KkP p 566 CFK p 108 258

KkP p 567 CFK p 109

- 130 -

de vista intuiccedilatildeo empiacuterica quanto do conjunto da experiecircncia259

Teria restado para ele

tambeacutem a elaboraccedilatildeo de uma resposta satisfatoacuteria ao problema da coisa em si ao qual ele

teria se dedicado em toda a sua obra260

Schopenhauer considera que as modificaccedilotildees que

Kant realiza na segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da razatildeo pura mitigaram seu idealismo no intuito

de disfarccedilar a contradiccedilatildeo subjacente agrave noccedilatildeo de coisa em si Depois de demonstrar que a

causalidade era parte a priori do intelecto e que servia apenas para o conhecimento do mundo

concreto Kant a teria utilizado para sustentar que a intuiccedilatildeo era causada por algo

absolutamente externo ao sujeito

Por todas essas razotildees a exclusatildeo da experiecircncia do domiacutenio metafiacutesico

teria sido feita de forma arbitraacuteria simplesmente pela etimologia da palavra Nesse aspecto

Kant natildeo teria deixado de seguir os filoacutesofos dogmaacuteticos anteriores na medida em que

identificou a metafiacutesica com o conhecimento a priori e natildeo admitiu a experiecircncia interna nem

a externa como fontes dela No entanto ele cometeria com isso uma peticcedilatildeo de princiacutepio

pois diz Schopenhauer ldquo[] haveria de se demonstrar antes que a mateacuteria para a soluccedilatildeo do

enigma do mundo natildeo poderia absolutamente ser encontrada nele mesmo apenas fora em

algo a que portanto somente pela guia do nosso conhecimento a priori se pudesse chegarrdquo261

Uma vez que natildeo estaria suficientemente provado que a fonte uacutenica da metafiacutesica estivesse no

conhecimento a priori natildeo se poderia descartar sem mais o conhecimento a posteriori Como

esclarece Cacciola ldquoSoacute a partir da identificaccedilatildeo entre metafiacutesica e conhecimento a priori eacute

que Kant criticando o alcance desse tipo de conhecimento chega a um resultado negativo De

acordo com Schopenhauer Kant natildeo prova que a metafiacutesica natildeo possa provir da

experiecircnciardquo262

Na verdade segundo a concepccedilatildeo schopenhaueriana a metafiacutesica natildeo tem

outra fonte com que contar para aleacutem da experiecircncia interna e externa e sua tarefa eacute interligaacute-

las corretamente para solucionar o grande problema da filosofia Natildeo se pode deslizar acima

da experiecircncia e a soluccedilatildeo do enigma deve provir do proacuteprio mundo263

259

KkP p 568 CFK p 109 260

KkP p 567 CFK p 109 261

KkP p 546 CFK p 95 262

CACCIOLA M L A criacutetica da Razatildeo no pensamento de Schopenhauer Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Faculdade

de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo Departamento de Filosofia Satildeo Paulo

1981 p 107 263

KkP p 547 CFK p 95

- 131 -

24 ndash Idealismo schopenhaueriano e fisiologia do conhecimento

Neste item tratamos da concepccedilatildeo fisioloacutegica de Schopenhauer no

tocante ao conhecimento Interessa-nos nesse ponto a influecircncia da fisiologia dos sentidos

sobre o entendimento isto eacute de que maneira eles fornecem os dados para a representaccedilatildeo Haacute

tambeacutem outra perspectiva em que Schopenhauer aborda a fisiologia a saber na deduccedilatildeo do

ceacuterebro como um oacutergatildeo material onde se situa o intelecto aspecto que seraacute abordado no

proacuteximo capiacutetulo No texto Sobre a visatildeo e as cores o filoacutesofo declara que pretende

complementar a doutrina Goethe que lhe parecer ser uma apresentaccedilatildeo embora completa e

sistemaacutetica de meros fatos acerca das cores De acordo com ele a concepccedilatildeo goethiana natildeo eacute

realmente uma teoria porque natildeo expotildee um ponto ou um princiacutepio de conexatildeo do todo que

pudesse evidenciar a relaccedilatildeo de dependecircncia entre os fenocircmenos expostos e ao mesmo

tempo esclarecer cada um em particular264

Ela funcionaria como uma espeacutecie de descriccedilatildeo

de fatos empiacutericos numa perspectiva fisioloacutegica agrave qual faltaria ainda o enquadramento em

uma perspectiva filosoacutefica Schopenhauer propotildee-se entatildeo realizar aquilo que considera

como a tarefa da filosofia isto eacute transpor em conceitos o que conhecemos concretamente

ldquoNesse sentidordquo ele escreve ldquocompletar a obra de Goethe estabelecer in abstracto aquele

princiacutepio supremo do qual tudo o que eacute dado nela depende e oferecer a teoria das cores no

sentido estrito da palavra eacute isso o que o presente tratado tentaraacute fazer []rdquo265

Conforme Schopenhauer a atividade intelectual que estaacute na base da

formaccedilatildeo das cores eacute explicada com dados fisioloacutegicos Na obra Die Lehre von der

empirischen Anschauung bei Schopenhauer mencionada anteriormente Johann Rieffert

investiga entre outras coisas as relaccedilotildees entre a teoria da intuiccedilatildeo empiacuterica de Schopenhauer

e a de Thomas Reid Rieffert informa que a concepccedilatildeo do filoacutesofo acerca da fisiologia foi

inspirada em diversos pensadores entre eles Thomas Reid Erasmus Darwin e Cabanis

Segundo o autor Schopenhauer natildeo foi influenciado exatamente pelo conteuacutedo das teorias

deles e sim pela direccedilatildeo metodoloacutegica adotada natildeo soacute por Reid mas por um grupo de

264

UumlSF p 200 VC p 23 265

UumlSF p 200 VC p 23

- 132 -

filoacutesofos ingleses e franceses a saber o espiritualismo266

De acordo com Rieffert

Schopenhauer assimilou de Reid especificamente a concepccedilatildeo de que a sensaccedilatildeo remete de

modo imediato aos objetos reais Nas palavras desse autor ldquoNatildeo a interpretaccedilatildeo causal da

sensaccedilatildeo mas seu conhecimento imediato como pertencente a coisas reais foi apontada

tambeacutem na doutrina de Thomas Reid que o proacuteprio Schopenhauer indica como influecircncia

histoacutericardquo267

A concepccedilatildeo fisioloacutegica defendida por Schopenhauer em Sobre a visatildeo e

as cores eacute uma parte da sua teoria do conhecimento mais ampla Essa concepccedilatildeo eacute

generalizada para todos os objetos e propriedades de modo que a teoria do conhecimento em

seu conjunto relaciona-se intrinsecamente com um fundamento fisioloacutegico Com efeito a

fisiologia fornece a base para a compreensatildeo dos dados fornecidos pelos sentidos e do modo

como o intelecto os utiliza para a construccedilatildeo da representaccedilatildeo Como jaacute mencionamos antes

as impressotildees sentidas pelos animais nos seus corpos satildeo o impulso de onde partem e a

mateacuteria sobre a qual se formam as intuiccedilotildees por meio da causalidade a priori Ou como

afirma Cacciola ldquoSatildeo as afecccedilotildees deste corpo que permitem a intuiccedilatildeo do mundo pelo

entendimento e portanto o conhecerrdquo268

Cada sentido tem sua especificidade percebida em um modo proacuteprio de

recepccedilatildeo aos influxos segundo a maneira em que o sistema nervoso eacute afetado pelos seus

dados269

Segundo Schopenhauer a substacircncia dos nervos eacute a mesma no corpo todo de modo

que as singularidades das diferentes sensaccedilotildees dos sentidos satildeo dadas pela receptividade

especial de cada um deles isto eacute dos olhos para a luz do som para os ouvidos e assim por

diante270

Citando Cabanis o filoacutesofo escreve

Que o nervo do labirinto e a coacuteclea nadando na aacutegua do ouvido recebam as

vibraccedilotildees do ar por meio dessa aacutegua enquanto o nervo oacutetico recebe a

influecircncia da luz por meio da refraccedilatildeo desta na umidade e no cristalino essa

eacute a causa das diferenccedilas especiacuteficas de ambas as sensaccedilotildees natildeo o nervo em

si271

266

ERDMANN Benno (Herausgegeber) Abhandlungen zur Philosophie und irhre Geschichte 42 Heft

RIEFFERT J B Die Lehre von der empirische Anschauung bei Schopenhauer Halle Max Niemeyer 1914 p

190 267

Ibidem p 191 (traduccedilatildeo nossa) 268

CACCIOLA M L Schopenhauer e a questatildeo do dogmatismo Satildeo Paulo EDUSP 1994 p 39 269

UumlSF sect1 p 205 VC sect 1 p 31 270

UumlSF sect1 p 206 VC sect1 p 31 271

UumlSF sect1 p 206 VC sect1 p 31

- 133 -

Nessa perspectiva as distintas sensaccedilotildees natildeo se formam nos oacutergatildeos

mesmos mas na conjunccedilatildeo dos nervos no ceacuterebro o que explica a simplicidade das

impressotildees272

Na interpretaccedilatildeo de Philonenko Schopenhauer considerava a vontade de um

lado como expressatildeo do espiritualismo de Kant e de outro o ceacuterebro como expressatildeo do

materialismo de Cabanis O filoacutesofo diz esse autor ldquo[] acreditava realizar uma verdadeira

siacutentese filosoacutefica e histoacuterica (entre a Alemanha e a Franccedila)rdquo273

Com base nos dados sensoacuterios o mundo da representaccedilatildeo seria edificado

pelo intelecto sem o qual as informaccedilotildees dos sentidos natildeo formariam nenhum objeto Uma

paisagem por exemplo seria conhecida apenas como uma tela manchada de muitas cores

que eacute ao que se resume a mateacuteria bruta oferecida pela sensaccedilatildeo na retina274

Segundo

Schopenhauer os sentidos ligam-se ao intelecto por meio do ceacuterebro ou melhor ldquoOs sentidos

satildeo apenas as prolongaccedilotildees do ceacuterebro pelas quais ele recebe a mateacuteria de fora (na forma da

sensaccedilatildeo) para processaacute-la em representaccedilatildeo intuitivardquo275

No fim de contas todos os sentidos

poderiam ser reduzidos agrave susceptibilidade dos corpos animais aos estiacutemulos externos como

meio de alcanccedilar dados para o entendimento Essa susceptibilidade diz o filoacutesofo dividiu-se

em cinco sentidos para que pudesse se adequar aos quatro elementos e ao que ele chama de

estado de imponderabilidade (Inponderabilitaumlt) o tato para o soacutelido (terra) o paladar para o

liacutequido (aacutegua) o olfato para o volaacutetil (gasoso) a audiccedilatildeo para o elaacutestico (ar) e a visatildeo para o

imponderaacutevel (fogo luz)276

ldquoPoisrdquo ele conclui ldquoesse mundo real e intuitivo eacute

manifestamente um fenocircmeno cerebral daiacute a admissatildeo de que ele tambeacutem devesse existir

independente de qualquer ceacuterebro eacute uma contradiccedilatildeordquo277

25 ndash Fundamentos do mundo como representaccedilatildeo

272

WWV II Kap 3 p 41-42 M II cap 3 p 34 273

PHILONENKO A Schopenhauer critique de Kant Paris Les Belles Lettres 2005 p 108 (traduccedilatildeo nossa)

(grifos do autor) 274

UumlSF sect1 p 206 VC sect1 p 32 275

WWV II Kap 3 p 38 M II cap 3 p 31 276

WWV II Kap 3 p 39 M II cap 3 p 32 277

WWV II Kap 1 p 14 M II cap 1 p 8

- 134 -

Diante dos desafios e questotildees que pretende resolver Schopenhauer

assenta o mundo como representaccedilatildeo em uma estrutura composta de dois pilares a saber o

intelecto e a fisiologia dos sentidos Haacute duas exigecircncias principais que a nosso ver sua trama

conceitual procura satisfazer simultaneamente Em primeiro lugar legitimar a posiccedilatildeo do

idealismo transcendental corrigindo ou eliminando os erros apontados na deduccedilatildeo que Kant

realizou da coisa em si sem suprimi-la Diferentemente dos outros poacutes-kantianos

Schopenhauer natildeo deseja desfazer-se dessa noccedilatildeo de modo que sua teoria do conhecimento

natildeo pode fechar as portas a ela como fez a de Kant Em segundo lugar tornou-se necessaacuterio

garantir que a realidade empiacuterica pudesse conviver pacificamente com a idealidade

transcendental do mundo evitando que o sujeito cognoscente perdesse para sempre o caminho

de acesso agraves coisas reais Daiacute a importacircncia que Schopenhauer confere agrave exposiccedilatildeo da origem

da intuiccedilatildeo empiacuterica como meio de conectar o conhecimento a algo externo ou material Eacute

preciso que o sujeito toque em algo que de alguma forma esteja fora de si e que ao mesmo

tempo natildeo seja o objeto em si Segundo pensamos a formulaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo

suficiente e a teoria da construccedilatildeo do mundo empiacuterico com recurso agrave sensaccedilatildeo satildeo as repostas

que Schopenhauer idealiza agravequelas questotildees e suas exigecircncias

Na elaboraccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo o filoacutesofo faz um inventaacuterio do

intelecto humano no qual contabiliza um princiacutepio ordenador uacutenico trecircs faculdades e quatro

classes de objetos todos intrinsecamente vinculados O princiacutepio de razatildeo eacute o modo geral da

atividade do intelecto e a busca do fundamento suficiente de uma consequecircncia dada se

encontra em cada faculdade e em seus objetos A sensibilidade lida com intuiccedilotildees puras e

dados sensoacuterios os quais enquadra no tempo e no espaccedilo e o princiacutepio de razatildeo do ser

determina em todos a sucessatildeo e a posiccedilatildeo O entendimento engendra os objetos empiacutericos e o

conjunto da experiecircncia utilizando as formas do tempo do espaccedilo e da causalidade e

tambeacutem o material fornecido pelos sentidos A causalidade faz do mundo como representaccedilatildeo

um grande emaranhado de cadeias causais sem iniacutecio ou fim as quais conformam o universo

natural como um todo Essa parte da teoria segundo pensamos foi a que exigiu maior

criatividade e inventividade porque era onde estava o desafio mais difiacutecil O mundo

engendrado pelo entendimento tinha de ter garantidas simultaneamente sua idealidade e sua

realidade sem tocar a coisa em si e sem minar a validade objetiva das representaccedilotildees isto eacute

sem que fossem construiacutedas como puras quimeras de um intelecto Por conseguinte sua

- 135 -

origem intelectual teria de ser demonstrada para que se garantisse o idealismo criacutetico e ao

mesmo tempo a conexatildeo com algo real fora do sujeito teria de ser assegurada para que se

evitasse o solipsismo e a reduccedilatildeo do mundo a nada Esse algo fora do sujeito entretanto natildeo

poderia ser a coisa em si mesma A faculdade da razatildeo por fim produz conceitos a partir de

intuiccedilotildees cujas caracteriacutesticas satildeo abstraiacutedas e fixadas em palavras As regras de inferecircncia e

as leis que a ela pertencem entre elas o princiacutepio de razatildeo satildeo o modo de operar dessa

faculdade que exige um fundamento para todo juiacutezo o qual no fim de todas as cadeias

dedutivas teraacute de ser uma intuiccedilatildeo

Natildeo obstante haacute dois casos agrave parte O primeiro deles eacute a faculdade do

juiacutezo responsaacutevel pelo pensar e pelas verdades empiacutericas Segundo Schopenhauer eacute ela que

governa os conceitos mediando entre o intuitivo e o abstrato entre o entendimento e a razatildeo

Natildeo estaacute poreacutem ligada ao princiacutepio de razatildeo suficiente natildeo lida com fundamentos e

consequecircncias mas com reflexotildees e subordinaccedilotildees de conceitos e intuiccedilotildees O segundo caso agrave

parte satildeo duas classes de objetos natildeo listadas entre as quatro principais abordadas em lugares

distintos Uma delas eacute a que o filoacutesofo chama de Phantasma que podemos entender como

representaccedilotildees produzidas pela imaginaccedilatildeo das quais se pode dizer que satildeo empiacutericas porque

satildeo determinadas e tambeacutem que natildeo satildeo empiacutericas porque natildeo se originam com sensaccedilotildees A

outra classe abrange as chamadas intuiccedilotildees normais comparadas agraves Ideias platocircnicas

definidas como representaccedilotildees tiacutepicas da matemaacutetica que satildeo ao mesmo tempo determinadas

e gerais e se aplicam a todos os objetos possiacuteveis Contudo o filoacutesofo natildeo chega a ancorar a

faculdade do juiacutezo nem as classes adicionais de objetos no princiacutepio de razatildeo de modo que

fica a duacutevida sobre como e onde se originam

Segundo pensamos no desenvolvimento de suas respostas Schopenhauer

busca um ponto firme uma primeira verdade com a qual iniciar seu sistema de modo

satisfatoacuterio Na sua concepccedilatildeo como vimos toda teoria se realiza em conceitos mas o apoio

uacuteltimo deve ser uma verdade intuitiva Nesse sentido natildeo eacute uma mera casualidade que ele

inicie sua obra fundamental com a sentenccedila ldquoO mundo eacute minha representaccedilatildeordquo Essa

proposiccedilatildeo eacute o axioma perfeito para que ele deduza seu sistema completo acerca do

conhecimento como ele mesmo afirma aliaacutes no primeiro capiacutetulo de O MundoII que trata

do ponto de vista fundamental do idealismo278

A partir dela vemos o filoacutesofo desdobrar suas

concepccedilotildees de sujeito objeto coisa em si conhecimento idealismo dentre outras O

278

WWV II Kap 1 p 11 M II cap 1 p 5

- 136 -

princiacutepio de razatildeo suficiente fornece o meacutetodo mas a representaccedilatildeo eacute a primeira verdade

autoevidente da qual ele extrai diligentemente todo o restante Para Schopenhauer esse eacute um

diferencial de seu procedimento filosoacutefico que parte da representaccedilatildeo como primeiro fato da

consciecircncia279

Essa seria tambeacutem a caracteriacutestica que distingue sua filosofia do dogmatismo

como mostra Cacciola pois ele natildeo toma como causas do mundo nem o sujeito nem o

objeto280

Schopenhauer considera a verdade daquela sentenccedila como imediata e evidente e de

modo sintomaacutetico afirma que poderia ser expressa numa foacutermula semelhante agrave de Descartes

ldquoCogito ergo estrdquo (penso logo eacutes)281

Para o filoacutesofo a divisatildeo da consciecircncia entre sujeito e objeto eacute

inexpugnaacutevel porque eacute pressuposta em qualquer pensamento ou intuiccedilatildeo possiacutevel Segue-se

do fato indubitaacutevel da representaccedilatildeo sendo ainda mais radical do que as classes de objetos e

as formas do princiacutepio de razatildeo Essa divisatildeo seria a mais geral e universal concebiacutevel diz

ele pois ldquo[] a decomposiccedilatildeo entre sujeito e objeto eacute a forma comum agravequelas classes eacute a

forma sob a qual somente eacute possiacutevel em geral e pensaacutevel qualquer tipo que seja de

representaccedilatildeo abstrata ou intuitiva pura ou empiacutericardquo282

Seria uma verdade a priori e toda e

qualquer experiecircncia possiacutevel teria de ser pensada dentro dos paracircmetros de sujeito e objeto

Natildeo obstante o sujeito do conhecimento natildeo precisa ser humano pode ser qualquer animal

existente jaacute que o mundo intuitivo natildeo exige o intercurso da razatildeo283

Desse modo a

condicionalidade entre sujeito e objeto eacute dada de um lado pela proacutepria significaccedilatildeo desses

termos que soacute fazem sentido um em relaccedilatildeo ao outro e natildeo podem ser arbitrariamente

separados De outro sujeito e objeto satildeo as duas metades de qualquer representaccedilatildeo satildeo

inseparaacuteveis e existem ou desaparecem um pelo outro e um no outro284

Portanto em relaccedilatildeo

ao sujeito cognoscente Schopenhauer afirma que ldquoo mundo que o cerca soacute existe como

representaccedilatildeo isto eacute apenas e tatildeo somente em relaccedilatildeo a outra coisa o representador que eacute ele

mesmordquo285

Desse modo natildeo teria nenhum fundamento imaginar que a supressatildeo de

uma das partes da consciecircncia cognoscente deixasse intacta a outra pois ambas se

implicariam mutuamente no fato da representaccedilatildeo Haveria uma interdependecircncia muacutetua entre

279

WWV I ersters Buch sect7 p 58 M I Livro I sect7 p 69 280

CACCIOLA M L Schopenhauer e a questatildeo do dogmatismo Satildeo Paulo EDUSP 1994 p 33 281

WWV II Kap 4 p 45 M II cap 4 p 39 282

WWV I ersters Buch sect1 p 31 M I Livro I sect1 p 43 283

WWV I ersters Buch sect1 p 31 M I Livro I sect1 p 43 284

WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I sect2 p 46 285

WWV I ersters Buch sect1 p 31 M I Livro I sect1 p 43

- 137 -

sujeito e objeto representador e representaccedilatildeo de um modo tal que a exclusatildeo do sujeito natildeo

significaria a existecircncia de uma objetividade pura mas a inexistecircncia de qualquer mundo Nas

palavras de Schopenhauer [] o todo objetivo enquanto tal eacute dependente de inumeraacuteveis

modos do sujeito cognoscente com suas formas que tem pressupostas consequentemente

desaparece totalmente se se abstrai o sujeitordquo286

Nesse sentido a fundamentaccedilatildeo do

materialismo eacute falha por considerar que o sujeito eacute determinado pela realidade concreta ou

entatildeo que a deturpa com ideias falsas Do mesmo modo supor a exclusatildeo do objeto

representado natildeo conduziria agrave subsistecircncia de um mundo mais real por si existente pois

nesse caso sobraria apenas o sujeito287

O caraacuteter transcendental de uma filosofia significa para Schopenhauer a

compreensatildeo de que haacute aspectos do conhecimento natildeo devidos agrave experiecircncia e que impotildeem

suas regras aos dados empiacutericos Nas suas palavras ldquoTranscendental eacute a filosofia que traz agrave

consciecircncia que as primeiras e essenciais leis desse mundo que se nos apresenta enraiacutezam-se

no nosso ceacuterebro e por isso satildeo conhecidas a priori Chama-se transcendental pois transpotildee

toda a fantasmagoria dada em direccedilatildeo agrave sua origemrdquo288

Por isso o mundo que assim nos eacute

apresentado natildeo pode ser tomado como absoluto somente como condicionado e dependente

do intelecto animal Em funccedilatildeo disso diz ele questotildees sobre os limites do mundo seu iniacutecio e

fim assim como os nossos satildeo transcendentes isto eacute vatildeo aleacutem de toda e qualquer

experiecircncia possiacutevel Na verdade ele escreve ldquoTodas elas repousam portanto no falso

pressuposto de que aquilo que soacute eacute forma do fenocircmeno ou seja o que eacute representaccedilatildeo

mediada pela consciecircncia cerebral animal liga-se agrave coisa em si mesma e portanto fornece a

natureza primeira e fundamental do mundordquo289

Por conseguinte no mundo como representaccedilatildeo o sujeito imprime suas

formas proacuteprias aos objetos intuiacutedos os quais entatildeo se apresentam em diversidade e

pluralidade O sujeito mesmo poreacutem natildeo participa dessas caracteriacutesticas e se configura como

um todo indiviso em cada ser existente que cria para si mesmo o mundo completo da

representaccedilatildeo290

Como Schopenhauer afirma ldquo[] um uacutenico deles com o objeto

complementa o mundo como representaccedilatildeo como os milhotildees existentes mas se aquele uacutenico

286

WWV I ersters Buch sect7 p 61-62 M I Livro I sect7 p 72 287

UumlV sect19 p 47 CR sect19 p 66 288

PP I Fragmente zur Geschichte der Philosophie sect 13 p 106 Fragmentos para a histoacuteria da filosofia

Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas de Maria Luacutecia Cacciola Satildeo Paulo Iluminuras 2003 sect 13 p 73 (grifos do

autor) 289

Ibidem sect 13 p 107 ibidem sect 13 p 73-74 (grifos do autor) 290

WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I Livro I sect2 p 46

- 138 -

desaparecesse entatildeo o mundo como representaccedilatildeo natildeo existiria maisrdquo291

De acordo com isso

tudo o que depende das formas do tempo do espaccedilo e da causalidade o mundo todo como

representaccedilatildeo possui uma existecircncia relativa existe apenas por meio de outro292

Somente

existe no entendimento pelo entendimento e para ele ldquo[] assim natildeo antes mas apenas

depois de seu empregordquo293

Essa relatividade no entanto natildeo se estabelece por uma

dependecircncia causal do objeto no tocante ao sujeito A causalidade como jaacute vimos produz o

conhecimento do mundo e as proacuteprias intuiccedilotildees empiacutericas mas sua legislaccedilatildeo eacute vaacutelida apenas

para as relaccedilotildees entre os corpos animais e os objetos que os afetam ou entre ldquoobjeto imediato

e mediatordquo294

Nenhuma relaccedilatildeo entre sujeito e objeto eacute estabelecida pelo princiacutepio de razatildeo

suficiente de modo que nem o sujeito causa o objeto nem este causa aquele Nas palavras do

filoacutesofo ldquo[] entre ambos natildeo pode haver nenhuma relaccedilatildeo de fundamento a

consequecircnciardquo295

Pode-se apenas dizer que as formas do sujeito satildeo o limite comum entre ele

e objeto como pertencendo a ambos As duas metades do mundo como representaccedilatildeo

limitam-se mutuamente e ele afirma

A comunidade desse limite mostra-se em que as formas essenciais e por

isso gerais de todos os objetos tempo espaccedilo e causalidade tambeacutem

possam ser encontradas e completamente compreendidas a partir do sujeito

sem o conhecimento do objeto isto eacute na linguagem de Kant situam-se a

priori na nossa consciecircncia296

Idealismo transcendental eacute entatildeo a concepccedilatildeo de que o sujeito do

conhecimento possui em si as condiccedilotildees de existecircncia do mundo objetivo Contudo para

Schopenhauer isso natildeo pode significar que a realidade empiacuterica seja inexistente ou

simplesmente aparecircncia Significa apenas que diz ele ldquo[] natildeo eacute incondicional posto que ela

possui como condiccedilatildeo nossa funccedilatildeo cerebral na qual se originam as formas da intuiccedilatildeo isto

eacute tempo espaccedilo e causalidade que portanto essa realidade empiacuterica eacute apenas a realidade de

um fenocircmenordquo297

A partir daiacute o filoacutesofo extrai trecircs princiacutepios que julga constituiacuterem o

espiacuterito do idealismo transcendental Em primeiro lugar que a realidade empiacuterica existe

291

WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I Livro I sect2 p 46 292

WWV I ersters Buch sect3 p 36 M I Livro I sect3 p 48-49 293

WWV I ersters Buch sect6 p 52 M I Livro I sect6 p 63 294

WWV I ersters Buch sect5 p 43 M I Livro I sect5 p 55 295

WWV I ersters Buch sect5 p 44 M I Livro I sect5 p 56 296

WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I Livro I sect2 p 46 297

Ibidem sect 13 p 107 ibidem sect 13 p 74

- 139 -

apenas no presente em segundo que o que eacute verdadeiramente real eacute independente do tempo

e em terceiro que o tempo natildeo se remete agrave coisa em si298

Natildeo obstante como dissemos a idealidade transcendental do mundo que

faz dele um fenocircmeno natildeo pode anular sua veracidade A representaccedilatildeo eacute ideal mas natildeo

pode ser por isso uma miragem ou quimera Ela tem de se apoiar em algo mas natildeo em algo

dado pronto que simplesmente entre no intelecto por algum tipo de osmose Ela natildeo deve

tambeacutem apoiar-se na coisa em si que natildeo pode ser causa de nenhuma impressatildeo nos sentidos

e agrave qual as formas da representaccedilatildeo natildeo podem acessar Torna-se necessaacuterio entatildeo

demonstrar a gecircnese da intuiccedilatildeo sensiacutevel de um modo tal que garanta sua relaccedilatildeo com o

empiacuterico sem que seja um ato de assimilaccedilatildeo pura e simples dele nem uma referecircncia direta

agrave coisa em si Schopenhauer censurou Kant por natildeo ter realizado essa investigaccedilatildeo e dedicou-

se entatildeo agrave tarefa que levou a cabo com a explicaccedilatildeo detalhada do nascimento da intuiccedilatildeo

empiacuterica e do conjunto da experiecircncia como produtos da combinaccedilatildeo entre entendimento e

sensaccedilotildees dos sentidos

A fisiologia se torna o segundo pilar do mundo como representaccedilatildeo ao

lado das formas do sujeito cognoscente pois eacute ela que fornece a origem dos dados sensoriais

como a mateacuteria com a qual o entendimento criaraacute os objetos empiacutericos Daiacute o porquecirc de

Schopenhauer considerar Kant e Cabanis como seus precursores299

De uma forma que lembra

a teoria de Maimon sobre os diferenciais Schopenhauer argumenta que as sensaccedilotildees natildeo

apresentam nenhum objeto a ser conhecido mas apenas impressotildees abafadas no corpo das

quais sem o entendimento nada se concluiria Por conseguinte tambeacutem sua representaccedilatildeo

(Vorstellung) eacute antes uma apresentaccedilatildeo (Darstellung) posto que o objeto empiacuterico natildeo existe

na simples sensaccedilatildeo Ao remeter agrave sensaccedilatildeo sentida nos corpos animais o filoacutesofo

complementa sua argumentaccedilatildeo fundamentando-se em outro conhecimento tatildeo imediato

quanto o fato da representaccedilatildeo isto eacute em um sentimento subjetivo Por isso ele ressalta

inuacutemeras vezes que as sensaccedilotildees permanecem sempre dentro do organismo sob a pele e que

diferem totalmente dos objetos intuiacutedos Numa palavra a intuiccedilatildeo eacute fabricada pelo

entendimento com os dados dos sentidos e ela eacute o proacuteprio objeto

Como resultado na medida em que eacute construiacutedo pelo sujeito

cognoscente o mundo da representaccedilatildeo natildeo possui um ser para aleacutem de ser representado

298

Ibidem sect 13 p 108 ibidem sect 13 p 74-75 299

Ibidem sect 12 p 101 ibidem sect 12 p 69

- 140 -

Como mostramos ser objeto e ser representado eacute o mesmo e isso significa que natildeo haacute um

objeto mais real como a causa da representaccedilatildeo Haacute apenas os efeitos que os corpos causam

entre si e que constituem junto com as formas e a accedilatildeo do entendimento o mundo da

experiecircncia Em funccedilatildeo disso Schopenhauer afirma que o ser dos objetos intuiacutedos eacute

exatamente essa accedilatildeo muacutetua e a produccedilatildeo de efeitos entre si a proacutepria realidade das coisas

se resume a isso300

Nesse sentido diz ele ldquo[] a exigecircncia da existecircncia do objeto fora da

representaccedilatildeo do sujeito e tambeacutem um ser das coisas reais diferente de seu produzir efeito

natildeo tem nenhum sentido e eacute uma contradiccedilatildeo []rdquo301

Portanto o objeto natildeo pode ser pensado

sem o sujeito assim como a proacutepria realidade do mundo externo natildeo pode E

consequentemente o mundo como representaccedilatildeo estaraacute sempre em uma ambiguidade surge

como objeto construiacutedo pelo sujeito com suas formas proacuteprias e com base em sensaccedilotildees

internamente sentidas mas ao mesmo tempo natildeo pode ser declarado irreal ou pura fantasia

porque o intelecto o engendra interpretando efeitos materiais no corpo que lhe corresponde

Dito de outra maneira eacute uma forma do intelecto que cria o ldquoexternordquo com o que se pode

afirmar que o ldquoexternordquo estaacute inserido no ldquointernordquo mas ela o faz com dados sensiacuteveis que

nada representam por si mesmos que natildeo satildeo propriamente objetos de modo que a

objetividade eacute criaccedilatildeo do entendimento

300

WWV I ersters Buch sect5 p 45 M I Livro I sect5 p 57 301

WWV I ersters Buch sect5 p 45 M I Livro I sect5 p 57

- 141 -

Capiacutetulo 3 ndash A constituiccedilatildeo do lado interno do mundo metafiacutesica

31 ndash A Vontade como o em si do indiviacuteduo

Como vimos no capiacutetulo anterior Schopenhauer sustenta que o mundo

como representaccedilatildeo embora ideal possui realidade empiacuterica Essa realidade poreacutem eacute

relativa e condicionada pois natildeo tem apoio em nada verdadeiramente real nada

incondicionado ou metafiacutesico Conforme Schopenhauer a relatividade e o condicionamento

do mundo como representaccedilatildeo natildeo permitem saciar o anseio de saber da filosofia que sempre

se pergunta pelos fundamentos as essecircncias as origens Para ele assim como para Jacobi um

mundo que fosse pura e simplesmente representaccedilatildeo natildeo seria mais do que uma ilusatildeo

tornando-se necessaacuterio encontrar os alicerces que o fixassem a algo verdadeiro Nas palavras

do filoacutesofo ldquoNoacutes queremos conhecer o sentido dessa representaccedilatildeo perguntamos se esse

mundo natildeo eacute nada aleacutem de representaccedilatildeo Nesse caso teria de passar diante de noacutes como um

sonho vazio ou uma formaccedilatildeo fantasmagoacuterica de ar que natildeo merece nossa atenccedilatildeo []rdquo1

Trata-se de mais um aspecto singular do pensamento de Schopenhauer para quem eacute possiacutevel

sem utilizar as leis do fenocircmeno adentrar o iacutentimo do mundo como representaccedilatildeo e conhececirc-

lo No capiacutetulo 18 de O MundoII sobre a cognoscibilidade da coisa em si ele afirma ser

esse o traccedilo mais caracteriacutestico de sua filosofia e tambeacutem o mais importante pelo qual teria

realizado aquilo que Kant entendeu ser impossiacutevel a saber a transiccedilatildeo do fenocircmeno para a

coisa em si2

Na concepccedilatildeo de Schopenhauer o exame detalhado da representaccedilatildeo

intuitiva permite ter um conhecimento de seu conteuacutedo de suas determinaccedilotildees e figuras bem

como esclarecer a significaccedilatildeo deles para que ldquonos falem diretamenterdquo3 E o que esse exame

deveraacute solucionar eacute o antigo problema da relaccedilatildeo entre o real e o ideal isto eacute apontar o

1 WWW I zweites Buch sect17 p 150 M I livro II sect17 p 155

2 WWW II Kap 18 p 221 M II cap 18 p 231

3 WWW I zweites Buch sect17 p 145 M I livro II sect17 p 151

- 142 -

fundamento da representaccedilatildeo que diz o filoacutesofo com exceccedilatildeo do ceticismo e do idealismo

foi considerado por muitas filosofias como totalmente diferente no ser e na essecircncia do

mundo real Embora se coloque entre os membros da escola idealista Schopenhauer concorda

com a distinccedilatildeo radical entre o real e o ideal que se configuraria como um verdadeiro abismo

percebido claramente apenas depois de Descartes4 Natildeo obstante diz o filoacutesofo a

experiecircncia deve ser investigada e delimitada de um modo especiacutefico diferente do cientiacutefico

para que seu nuacutecleo possa ser revelado e natildeo nos mostre apenas um conjunto de hieroacuteglifos

incompreendidos5 A ciecircncia da natureza conforme o filoacutesofo divide-se em dois grandes

ramos a saber a morfologia que descreve as formas permanentes dos objetos e a etiologia

que explica as transformaccedilotildees da mateacuteria segundo a lei de causalidade Nenhum desses ramos

no entanto seria capaz de dar a conhecer o sentido profundo do mundo como representaccedilatildeo

Tampouco a matemaacutetica o seria uma vez que lida com as representaccedilotildees do ponto de vista

das quantidades e soacute se refere a comparaccedilatildeo de grandezas sem fornecer quaisquer

informaccedilotildees sobre o conteuacutedo da intuiccedilatildeo Nesse sentido Gardiner afirma que

[] por muita informaccedilatildeo que as diversas ciecircncias nos proporcionem sobre

as relaccedilotildees que os distintos fenocircmenos da experiecircncia sensorial possuem em

entre si esses fenocircmenos nos parecem falando metaforicamente

ldquoestrangeirosrdquo natildeo se esclareceu ou captou sua autecircntica identidade e

significaccedilatildeo6

O que o estudo cientiacutefico da natureza deixa velado eacute algo que estaacute fora do

seu acircmbito de explicaccedilatildeo isto eacute a essecircncia dos fenocircmenos Segundo Schopenhauer tratam-se

das forccedilas naturais que se exteriorizam de modo regular quando as condiccedilotildees satildeo dadas Nas

palavras dele ldquoA forccedila mesma que se exterioriza a essecircncia interna dos fenocircmenos que

surgem conforme aquelas leis permanece um eterno misteacuterio para ela [a etiologia] totalmente

estranho e desconhecido tanto para os fenocircmenos mais simples quanto para os mais

complexosrdquo7 No caso da mecacircnica por exemplo os conceitos mais baacutesicos natildeo poderiam ser

demonstrados e teriam de ser pressupostos como os de mateacuteria gravidade e

impenetrabilidade Tais conceitos satildeo entatildeo remetidos agrave expressatildeo ldquoforccedilas naturaisrdquo cuja

regularidade de apariccedilatildeo eacute nomeada lei natural mas diz Schopenhauer as ciecircncias da

natureza natildeo resolvem a questatildeo de saber qual eacute essecircncia desses fenocircmenos Ele ilustra esse

aspecto com uma metaacutefora interessante afirmando que o estudo cientiacutefico da natureza se

4 WWW II Kap 18 p 222 M II cap 18 p 232

5 WWW I zweites Buch sect17 p 147 M I livro II sect17 p 153

6 GARDINER op cit p 195 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor)

7 WWW I zweites Buch sect17 p 148 M I livro II sect17 p 154

- 143 -

assemelha agrave explicaccedilatildeo dos sulcos de um corte maacutermore que o perpassam de um lado a outro

mas natildeo mostram o caminho que os levou agrave superfiacutecie8 Essa metaacutefora eacute significativa porque

ilustra bem sua concepccedilatildeo de natureza e de mundo como a exteriorizaccedilatildeo de uma essecircncia que

determina a partir de dentro tudo o que ocorre do lado de fora Sobre esse ponto Gardiner

afirma que as forccedilas naturais ldquoConstituem dito de outro modo um resiacuteduo inexpugnaacutevel em

toda a explicaccedilatildeo cientiacutefica e desse ponto de vista deve-se admitir que a ciecircncia se choca em

todas as partes com algo que eacute incapaz de compreender com seus proacuteprios termos com o

bdquometafiacutesico‟rdquo9

A investigaccedilatildeo schopenhaueriana pretende justamente mostrar aquele

percurso isto eacute o caminho que define internamente as manifestaccedilotildees externas da Vontade A

argumentaccedilatildeo que Schopenhauer formula para deduzir a Vontade como coisa em si

concentra-se no indiviacuteduo humano e em seguida eacute generalizada para todo o restante do

mundo Ele utiliza a autoconsciecircncia como ponto de partida apontando o modo duplo em que

cada um conhece a si mesmo e extraindo daiacute algumas conclusotildees Como sabemos o lado

exterior do mundo eacute objetivo e portanto somente pode ser conhecido por meio do princiacutepio

de razatildeo que eacute o princiacutepio do conhecimento dos objetos As leis do fenocircmeno natildeo podem

conduzir a nada que tenha outra natureza e isso significa que o lado interno do mundo teria

de ser inacessiacutevel conhecimento caso o sujeito se reduzisse ao conhecer Poreacutem diz o

filoacutesofo haacute uma circunstacircncia que torna a situaccedilatildeo em tudo diferente a saber a relaccedilatildeo do

sujeito do conhecer com o mundo que seu intelecto constroacutei eacute intermediada pelo seu proacuteprio

corpo Assim na medida em que o sujeito do conhecer eacute um indiviacuteduo seu corpo poderia ser

conhecido de duas formas distintas a partir de fora e a partir de dentro A partir de fora seria

conhecido como qualquer objeto ou melhor seria construiacutedo pelo sujeito do conhecer com

base nas suas formas a priori e na sensaccedilatildeo a posteriori A partir de dentro por sua vez o

corpo poderia ser conhecido como vontade individual E conforme Schopenhauer ldquoEsta e

somente esta fornece a ele a chave do seu proacuteprio fenocircmeno revela a ele o significado mostra

a ele o interior da engrenagem de seu ser de suas accedilotildees e de seus movimentosrdquo10

O sujeito do conhecimento portanto aleacutem de conhecer seu corpo como

um objeto tem a possibilidade de conhececirc-lo a partir de dentro e de modo imediato Na

verdade segundo Schopenhauer o sujeito eacute idecircntico ao corpo e cada ato de vontade eacute

8 WWW I zweites Buch sect17 p 149 M I livro II sect17 p 154-155

9 GARDINER op cit p 202 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor)

10 WWW I zweites Buch sect18 p 151 M I livro II sect18 p 156-157

- 144 -

imediata e simultaneamente um movimento do corpo11

No texto ldquoAstronomia fiacutesicardquo de

Sobre a Vontade na natureza ele afirma que sua filosofia refuta a tradiccedilatildeo antiga e difundida

de separar como diferentes o movimento por causas e o movimento por vontade12

Nas

palavras dele

O ato de vontade e a accedilatildeo do corpo natildeo satildeo dois estados diferentes

conhecidos objetivamente e ligados pelo elo da causalidade natildeo estatildeo em

relaccedilatildeo de causa e efeito mas eles satildeo um e o mesmo apenas dados de

modo em tudo diferente uma vez muito imediatamente e outra na intuiccedilatildeo

do entendimento13

Por um lado o que se entende por accedilatildeo do corpo seria o ato de vontade

visto pelo lado da intuiccedilatildeo isto eacute tornado objeto por outro o corpo como um todo seria

vontade tornada objeto Desse modo o princiacutepio do movimento seria sempre o mesmo a

vontade como condiccedilatildeo interna e a causa como condiccedilatildeo externa14

Gardiner nota sobre esse

ponto que sem a possibilidade desse conhecimento interno do corpo individual

conheceriacuteamos nossos proacuteprios movimentos apenas como os cientistas conhecem os

fenocircmenos naturais isto eacute ldquonossas accedilotildees seriam somente inteligiacuteveis por referirem-se agraves

regularidades ou leis agraves quais segundo a observaccedilatildeo nos diz conformam-se [os

movimentos]rdquo15

Desse ponto de vista conforme Schopenhauer o corpo eacute chamado

objetidade da vontade (Objektitaumlt des Willens) e as relaccedilotildees entre ele e a vontade podem ser

consideradas em dois sentidos diferentes Tanto se pode pensar a vontade do ponto de vista de

sua exteriorizaccedilatildeo em ato quanto do ponto de vista das influecircncias que ela sofre por meio da

accedilatildeo sobre o corpo No primeiro caso ela se objetiva no segundo um ato sobre o corpo tem

efeito sobre ela Uma accedilatildeo sentida no corpo que esteja de acordo com a vontade seraacute fonte de

prazer enquanto a que esteja em desacordo resultaraacute em dor No texto ldquoSchopenhauer on the

selfrdquo Guumlnter Zoumlller afirma sobre esse ponto que ldquo[] ao enfatizar a centralidade da vontade

no eu Schopenhauer revecirc radicalmente o estatuto do corpo humano substituindo a relaccedilatildeo

tradicional mente-corpo pela identidade vontade-corpordquo16

Para o filoacutesofo entatildeo conhecer o

corpo eacute conhecer a vontade embora assim ela natildeo se revele como unidade nem de modo

11

WWW I zweites Buch sect18 p 151 M I livro II sect18 p 157 12

WN p 409 VN p 135-136 13

WWW I zweites Buch sect18 p 151 M I livro II sect18 p 157 14

WN p 409 VN p 136 15

GARDINER op cit p 208 (traduccedilatildeo nossa) 16

ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 19 (traduccedilatildeo nossa)

- 145 -

perfeito jaacute que os atos do corpo se datildeo isoladamente e no tempo como quaisquer objetos

Portanto conheceriacuteamos a vontade em resoluccedilotildees e accedilotildees que se datildeo sucessivamente mas

natildeo poderiacuteamos associaacute-la a um substrato ou substacircncia permanente17

Na interpretaccedilatildeo de

Zoumlller tomada nesse sentido a vontade individual tambeacutem eacute uma condiccedilatildeo do conhecimento

Como ele explica

[] nem o sujeito do conhecimento nem o sujeito do querer satildeo dados

como tais O sujeito do conhecimento eacute o que conhece em todo o conhecido

e nunca eacute conhecido em si mesmo exceto no sentido atenuado de que os

estados do sujeito do conhecimento podem ser conhecidos por meio de

reflexatildeo Analogamente o sujeito do querer eacute aquele que sente em todo

sentimento (quer em todo desejo) mas nunca eacute sentido em si mesmo exceto

no sentido atenuado de que os estados do sujeito do querer podem ser

sentidos internamente As funccedilotildees subjetivas cognitivas e conativas

[conative] do eu tecircm o estatuto de condiccedilotildees natildeo-empiacutericas de toda a

experiecircncia tanto interna quanto externa tanto cognitiva como afetiva18

Do nosso ponto de vista a relaccedilatildeo da vontade individual com o sujeito do

conhecer natildeo eacute uniacutevoca A vontade eacute apresentada por Schopenhauer como o corpo dado no

fenocircmeno como acabamos de mostrar e simultaneamente como o objeto uacutenico da quarta

classe de representaccedilotildees Conforme o que vimos no capiacutetulo anterior o sujeito do querer eacute

intuiacutedo pelo sujeito do conhecimento como um objeto especial natildeo espacializado pois eacute dado

somente na forma do tempo Em Da quaacutedrupla raiz o filoacutesofo chamou de milagre agrave

identidade do sujeito do querer com o sujeito do conhecer que poderia ser resumida na

identidade da lei de causalidade com a de motivaccedilatildeo19

Segundo Schopenhauer todo o

segundo livro de O Mundo eacute a justificaccedilatildeo desse milagre isto eacute a explicaccedilatildeo do modo como

a vontade pode ser sujeito na medida em que eacute corpo e objeto na medida em que eacute

conhecida pelo sujeito do conhecer20

Zoumlller chama a atenccedilatildeo para a estrutura una que sustenta

essa relaccedilatildeo especiacutefica de sujeito e objeto ao afirmar que ldquoPara Schopenhauer a

correlatividade estrutural natildeo causal que haacute entre o sujeito do conhecimento e o sujeito do

querer em uacuteltima instacircncia equivale agrave identidade delesrdquo21

Em siacutentese a vontade objetivada

seria o corpo na intuiccedilatildeo e a vontade individual internamente conhecida seria o objeto interno

do sujeito do conhecer22

Nesse sentido a identidade entre sujeito e objeto eacute que garante a

17

WWW II Kap 20 p 289 M II cap 20 p 300 18

ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 24 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 19

UumlV sect 42 p 171 CR sect42 p 206 20

WWW I zweites Buch sect18 p 153 M I livro II sect18 p 159 21

ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 26 (traduccedilatildeo nossa) 22

WWW I zweites Buch sect18 p 153 M I livro II sect18 p 159

- 146 -

identidade entre as leis de motivaccedilatildeo e de causalidade Pois escreve o filoacutesofo devemos

compreender que

[] a primeira classe de representaccedilotildees encontra sua explicaccedilatildeo sua

decifraccedilatildeo somente na quarta classe laacute apresentada a qual natildeo deve mais ser

oposta ao sujeito propriamente como objeto e tambeacutem que noacutes temos de

aprender a compreender a correspondecircncia da quarta classe de

representaccedilotildees que cai no domiacutenio da lei de motivaccedilatildeo com a essecircncia

interna da lei de causalidade vaacutelida na primeira classe de representaccedilotildees e

com o que acontece conforme a ela23

Natildeo obstante Schopenhauer ressalta que a identidade da vontade com o

corpo natildeo pode ser demonstrada ou provada pois eacute algo completamente imediato e que natildeo

pode ser deduzido de nada supostamente mais imediato Aquela identidade poderia apenas ser

indicada assinalada e transposta do conhecimento imediato ao discurso conceitual sem que a

exposiccedilatildeo in abstrato pudesse ser respaldada por nenhuma das quatro formas de

fundamentaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo do conhecer isto eacute loacutegica empiacuterica metafiacutesica ou

metalogicamente Conforme o filoacutesofo a verdade a que aqui se refere eacute de um tipo totalmente

distinto a saber a do juiacutezo que afirma a relaccedilatildeo do corpo com algo que difere totalmente dele

que eacute a vontade24

Essa eacute para ele a grande descoberta a verdade filosoacutefica por excelecircncia

que pode ser expressa de vaacuterios modos

[] meu corpo e minha vontade satildeo um soacute ou o que eu chamo corpo na

representaccedilatildeo intuitiva em outro modo totalmente distinto no qual sou

consciente dele de uma maneira a nada comparaacutevel chamo de minha

vontade ou meu corpo eacute objetidade da minha vontade ou abstraindo de

que meu corpo eacute minha representaccedilatildeo ele eacute apenas minha vontade e assim

por diante25

Schopenhauer reconhece que o modo em que cada um conhece sua

proacutepria vontade eacute distinto de tudo o que ateacute agora designou por conhecimento No capiacutetulo

18 de O MundoII ele ressalta essa singularidade e declara esse conhecimento como uma

exceccedilatildeo agrave regra kantiana segundo a qual conceitos natildeo extraiacutedos de intuiccedilotildees satildeo vazios Nas

palavras dele

Eu aceito isso com relaccedilatildeo a tudo menos ao conhecimento que cada um tem

de sua proacutepria vontade ele natildeo eacute uma intuiccedilatildeo (pois toda intuiccedilatildeo eacute

23

WWW I zweites Buch sect18 p 153 M I livro II sect18 p 159 24

WWW I zweites Buch sect18 p 154 M I livro II sect18 p 160 25

WWW I zweites Buch sect18 p 154-155 M I livro II sect18 p 160 (grifos do autor)

- 147 -

espacial) nem eacute vazio antes eacute mais real do que qualquer outro Tambeacutem

natildeo eacute a priori como o meramente formal mas totalmente a posteriori []26

De certa forma o conhecimento que temos de nossa vontade individual eacute

o autoconhecimento da coisa em si isto eacute o modo pelo qual ela se torna consciente de si

mesma27

Trata-se entatildeo de um saber direto impossiacutevel de tornar-se objetivo ao qual

Schopenhauer se refere como uma ldquoapreensatildeo totalmente imediata de seus movimentos

sucessivosrdquo28

Aleacutem disso somente esse conhecimento nos seria dado desse modo e diz o

filoacutesofo ele eacute ldquo[] o uacutenico datum apto a tornar-se a chave para todo o resto ou como eu jaacute

disse a uacutenica porta estreita para a verdaderdquo29

Ao que nos parece nesse ponto surge outra questatildeo relacionada agrave

ambiguidade do conhecimento que cada um tem da proacutepria vontade Schopenhauer afirma que

se trata do melhor e mais imediato conhecimento que temos o que serve de meio para se

conhecer quaisquer outras coisas mesmo os fenocircmenos mais distantes de noacutes No entanto ele

ressalta que esse conhecimento natildeo eacute completo nem perfeito por ser mediado por um

intelecto corporificado em um ceacuterebro30

Assim ao que tudo indica natildeo se poderia dizer que

esse conhecimento fosse realmente imediato jaacute que haveria um oacutergatildeo fiacutesico como uma

espeacutecie de filtro diante da vontade individual De fato na condiccedilatildeo de representaccedilatildeo o

conhecimento que se tem dela divide-se em sujeito e objeto conhecer e querer

respectivamente Em funccedilatildeo disso conforme o filoacutesofo a vontade nunca se torna diaacutefana eacute

conhecida somente de modo ldquo[] opaco e portanto permanece um enigma para si mesmardquo31

De outro ponto de vista uma vez que a vontade individual se daacute somente na forma do tempo

sem as do espaccedilo e da causalidade Schopenhauer afirma que ldquo[] nesse conhecimento

interno a coisa em si retirou grande parte de seu veacuteu mas ainda natildeo aparece totalmente

nuardquo32

Somente por meio de atos isolados e no decurso do tempo eacute que cada um poderaacute

conhecer sua vontade individual isto eacute natildeo no seu conjunto ou em si e para si Por

conseguinte natildeo se trataria de um conhecimento perfeito mas seria o melhor de que

dispomos pois nele a coisa em si apareceria o mais proacutexima possiacutevel do sujeito cognoscente

ldquoDessa maneirardquo escreve o filoacutesofo

26

WWW II Kap 18 p 227 M II cap 18 p 236-237 (grifos do autor) 27

WWW II Kap 18 p 227 M II cap 18 p 236 28

WWW II Kap 20 p 289 M II cap 20 p 300 29

WWW II Kap 18 p 227 M II cap 18 p 237 30

WWW II Kap 18 p 228 M II cap 18 p 237 31

WWW II Kap 18 p 228 M II cap 18 p 237-238 32

WWW II Kap 18 p 228 M II cap 18 p 238

- 148 -

a doutrina de Kant acerca da incognoscibilidade da coisa em si eacute modificada

esta soacute natildeo eacute cognosciacutevel absolutamente e em seu fundamento poreacutem o seu

fenocircmeno que eacute de longe o mais imediato de todos que se diferencia de

todos os outros toto genere por essa imediaticidade representa a coisa em si

para noacutes []33

Gardiner apresenta interessantes consideraccedilotildees sobre esse ponto Para

ele o pensamento sobre o conhecimento da vontade proacutepria eacute exposto por Schopenhauer de

forma obscura e aleacutem disso conduz a um dilema34

Tomando como correta a distinccedilatildeo entre a

consciecircncia natildeo perceptual que temos de noacutes mesmos como vontade e o conhecimento que

temos das nossas proacuteprias accedilotildees duas consequecircncias se seguiriam Por um lado diz Gardiner

a afirmaccedilatildeo de uma consciecircncia direta da vontade na intuiccedilatildeo interna significaria que a coisa

em si estaacute ao alcance da nossa experiecircncia Ao mesmo tempo essa consciecircncia deveria ser

representaccedilatildeo sem condiccedilotildees de dar acesso agrave coisa em si Por outro lado se a vontade eacute

nuacutemeno natildeo haveria como assegurar que possamos ter experiecircncia dela35

Natildeo obstante de acordo com Schopenhauer embora os atos do corpo se

deem no tempo e fragmentariamente eles expressam um caraacuteter individual uno Ainda que

em atos isolados o corpo manifestaria a vontade integralmente do mesmo modo que o caraacuteter

empiacuterico dado no fenocircmeno manifestaria o caraacuteter inteligiacutevel do indiviacuteduo no seu conjunto

Para o filoacutesofo o corpo humano assim como o do animal satildeo adequados agrave vontade de cada

um isto eacute todos os seus oacutergatildeos e membros correspondem os principais desejos de suas

respectivas vontades A feiccedilatildeo as formas a conformaccedilatildeo dos membros e oacutergatildeos em suma o

corpo no todo e em cada uma de suas partes seria objetidade de uma vontade individual Nas

palavras dele

Cada forma animal eacute um anseio da Vontade de vida invocado pelas

circunstacircncias por exemplo tomada pelo desejo de viver nas aacutervores a

pendurar-se nos seus galhos a alimentar-se de suas folhas sem luta com

outros animais e sem nunca pisar no solo esse anseio apresenta-se pelo

tempo infinito na forma (Ideia platocircnica) do bicho-preguiccedila Quase natildeo

pode andar pois foi projetado apenas para escalar indefeso no chatildeo eacute aacutegil

nas aacutervores e se assemelha a um ramo coberto de musgo para que nenhum

predador o perceba36

Portanto o corpo como um todo eacute fenocircmeno da vontade tornada visiacutevel

como objeto na intuiccedilatildeo Essa tese se confirmaria de um lado porque qualquer accedilatildeo sobre o

33

WWW II Kap 18 p 229 M II cap 18 p 238 (grifos do autor) 34

GARDINER op cit p 257 et seq 35

GARDINER op cit p 258 36

WN p 357 VN p 79-80

- 149 -

corpo eacute simultaneamente accedilatildeo sobre a vontade sentida como prazer ou dor e de outro porque

todo afeto ou paixatildeo violenta abala o corpo e suas funccedilotildees vitais Zoumlller observa sobre esse

ponto que ldquobdquoVontade‟ eacute aqui usada como um termo abrangente para o lado afetivo e volicional

completo do eu juntando efetivamente o que Kant distinguiu como a faculdade do desejo e o

sentimento de prazer e desprazerrdquo37

Tanto o corpo como uma unidade quanto os processos

que levam ao seu crescimento e desenvolvimento que produzem seus movimentos e atos

isolados cada accedilatildeo e suas condiccedilotildees tudo no indiviacuteduo eacute fenocircmeno da vontade Em suma

diz o filoacutesofo ldquo[] noacutes natildeo somos apenas sujeito cognoscente mas de outro lado tambeacutem

pertencemos aos seres cognosciacuteveis somos a proacutepria coisa em si []rdquo38

32 ndash A Vontade como o em si do mundo

Conforme Schopenhauer cada indiviacuteduo conhece seu proacuteprio corpo

duplamente e natildeo apenas do modo unilateral pelo qual conhece os demais objetos Aleacutem de

ser conhecido como fenocircmeno isto eacute como um objeto entre outros o corpo individual pode

ser conhecido tambeacutem como coisa em si Para o filoacutesofo o corpo pode ser conhecido como

coisa em si porque aparece agrave consciecircncia como vontade dando a conhecer internamente seu

atuar seu movimento por motivos e o que sofre em funccedilatildeo de accedilotildees externas Em todos esses

casos ele escreve o corpo ensina ldquo[] sobre o que eacute natildeo como representaccedilatildeo mas fora disso

como em si informaccedilotildees essas que natildeo temos de modo imediato sobre o ser o atuar e o sofrer

de nenhum outro objeto realrdquo39

Essa especificidade no modo de o indiviacuteduo conhecer o corpo

proacuteprio que eacute diferente do modo como conhece todos os outros eacute um ponto muito delicado

da argumentaccedilatildeo porque aqui Schopenhauer tem de evitar um perigo que certamente estaacute agrave

espreita De fato eacute faacutecil perceber que seu trajeto o direcionaria para o egoiacutesmo teoacuterico ou no

37

ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 19 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 38

WWW II Kap 18 p 226 M II cap 18 p 236 (grifos do autor) 39

WWW I zweites Buch sect19 p 155 M I livro II sect19 p 161 (grifos do autor)

- 150 -

miacutenimo dificultaria a fundamentaccedilatildeo da existecircncia do mundo a partir de um indiviacuteduo assim

tatildeo autocentrado

Ele apresenta entatildeo uma escolha como inexpugnaacutevel o sujeito deve

proclamar sua identidade ou sua distinccedilatildeo com relaccedilatildeo aos restantes objetos do mundo No

primeiro caso o indiviacuteduo admitiria que sua representaccedilatildeo de si mesmo se diferencia de todas

as outras somente pelo modo duplo em que ele conhece seu proacuteprio corpo sendo igual a elas

em essecircncia no segundo sustentaria que seu corpo eacute distinto de todos os demais de modo

que apenas e tatildeo somente ele se constituiria como representaccedilatildeo e vontade ao mesmo tempo

No primeiro caso a diferenccedila eacute de perspectiva ou seja somente o modo pelo qual o sujeito se

conhece natildeo poderia ser estendido aos outros objetos enquanto sua essecircncia sim No

segundo afirma-se uma diferenccedila positiva e o indiviacuteduo eacute considerado distinto dos demais

objetos de um ponto de vista real e concreto Daqui poreacutem o indiviacuteduo poderia cair

facilmente para o egoiacutesmo teoacuterico isto eacute para a conclusatildeo de que somente ele proacuteprio eacute real e

todos os outros satildeo apenas representaccedilotildees ilusoacuterias Nesse sentido no capiacutetulo 18 de O

MundoII Schopenhauer escreve

Mas o objeto intuiacutedo tem de ser algo em si mesmo e natildeo apenas algo para

outro pois nesse caso seria absolutamente representaccedilatildeo e teriacuteamos um

idealismo absoluto que ao fim seria egoiacutesmo teoacuterico pelo qual toda a

realidade some e o mundo torna-se a mero fantasma subjetivo40

Eacute clara para ele a importacircncia dessa passagem de sua filosofia

relacionada com a problemaacutetica da realidade do mundo exterior No nosso entendimento a

fundamentaccedilatildeo idealista da realidade empiacuterica acabou por acentuar sua fragilidade pois a

origem subjetiva dela teve de ser desenvolvida e ressaltada Por isso o filoacutesofo teve de

atribuir a todos os outros corpos tanto o ser representaccedilatildeo quanto o ser vontade para que

pudesse garantir a realidade externa da perspectiva metafiacutesica Nas palavras dele ldquoSe os

objetos conhecidos pelo indiviacuteduo apenas como representaccedilotildees satildeo assim como seu proacuteprio

corpo fenocircmenos de uma vontade como jaacute dito no livro anterior este eacute o sentido verdadeiro

da questatildeo sobre a realidade do mundo exterior negaacute-lo eacute o sentido do egoiacutesmo teoacuterico

[]rdquo41

Daiacute a necessidade de se admitir que a diferenccedila natildeo esteja na coisa mas na nossa

relaccedilatildeo com ela42

Segundo Schopenhauer apesar de natildeo se poder demonstrar cabalmente a

falsidade do egoiacutesmo teoacuterico isso seria desnecessaacuterio pois ningueacutem teria uma convicccedilatildeo

40

WWW II Kap 18 p 224 M II cap 18 p 233 (grifos do autor) 41

WWW I zweites Buch sect19 p 156 M I livro II sect19 p 162 (grifos do autor) 42

WN p 349 VN p 70-71

- 151 -

seacuteria dele Embora seja um argumento ceacutetico recorrente sua defesa seria meramente

performaacutetica ou entatildeo fruto de loucura E assim ele daacute por encerrada a necessidade de

desdobrar a argumentaccedilatildeo descrevendo a situaccedilatildeo metaforicamente

[] noacutes que buscamos pela filosofia alargar os limites do nosso

conhecimento veremos o argumento ceacutetico do egoiacutesmo teoacuterico como uma

pequena fortaleza de fronteira que de fato eacute intransponiacutevel mas de onde suas

tropas nunca podem sair podendo-se entatildeo passar e dar as costas sem

perigordquo43

Com fundamento nessas razotildees o filoacutesofo propotildee que o duplo

conhecimento que o sujeito possui da essecircncia e da accedilatildeo do proacuteprio corpo seja estendido ao

conjunto da natureza como padratildeo para a compreensatildeo de todos os fenocircmenos Trata-se do

conhecido argumento da analogia que estabelece uma semelhanccedila necessaacuteria entre o corpo

individual e os restantes objetos Esse eacute um ponto crucial da filosofia schopenhaueriana o que

torna digno de nota o tom hipoteacutetico empregado em toda a exposiccedilatildeo O filoacutesofo defende que

o indiviacuteduo deve reconhecer como anaacutelogos a si mesmo todos os outros objetos isto eacute

reconhecer que satildeo por um lado vontade e por outro represenaccedilatildeo Natildeo haveria alternativa

possiacutevel pois natildeo conheceriacuteamos nada aleacutem de coisa em si e representaccedilatildeo de modo que se

natildeo se atribuiacutesse vontade aos objetos externos eles estariam desprovidos de realidade44

Na

interpretaccedilatildeo de Zoumlller ldquoO mundo eacute aqui entendido com o modelo do eu humano o papel do

intelecto na iluminaccedilatildeo da vontade humana eacute comparado ao papel das formas de vida

inteligentes e racionais no fornecimento do autoconhecimento agrave vontade coacutesmica que em

outra perspectiva eacute cegardquo45

Sem a adoccedilatildeo desse ponto de vista portanto o mundo objetivo como um

todo estaria reduzido a mera representaccedilatildeo isto eacute a aparecircncia sem vinculaccedilatildeo a nada mais

real No entanto ao que nos parece o argumento da analogia eacute o apelo a uma concessatildeo e natildeo

a consideraccedilatildeo de uma evidecircncia ou prova qualquer Em todo caso como afirma Janaway no

texto ldquoWill and Naturerdquo esse procedimento eacute coerente com o ponto de partida de

Schopenhauer uma vez que o filoacutesofo deliberadamente partiu da autoconsciecircncia como

aquilo que nos eacute imediatamente dado e que deve explicar tudo o que eacute mediato Um monismo

seria entatildeo o fundamento da analogia e conforme desse autor ldquoSua posiccedilatildeo moniacutestica de que

minha natureza fundamental natildeo pode ser diferente daquela do todo da realidade natildeo eacute

43

WWW I zweites Buch sect19 p 157 M I livro II sect19 p 162 44

WWW I zweites Buch sect19 p 157-158 M I livro II sect19 p 163 45

ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 19 (traduccedilatildeo nossa)

- 152 -

obviamente despreziacutevel embora possa bem parecer um pensamento extenso demais (ou vago

demais) para se manusear confortavelmenterdquo46

A despeito disso a comparaccedilatildeo que Schopenhauer realiza entre o corpo

do indiviacuteduo como representaccedilatildeo e vontade e os outros objetos intuiacutedos nos parece bem

delineada e justificada Na lei de causalidade haacute sempre trecircs termos cuja interaccedilatildeo eacute

responsaacutevel pelas cadeias causais que compotildeem o mundo empiacuterico a saber leis naturais

causa (ou estiacutemulo) e efeito Na lei de motivaccedilatildeo observamos a mesma estrutura as accedilotildees

exteriorizam-se como efeitos dados na intuiccedilatildeo surgidos a partir de motivos e de uma vontade

individual ou caraacuteter inteligiacutevel De modo semelhante Janaway explica que

Haacute trecircs tipos baacutesicos de relaccedilatildeo causal causa pura e simples estiacutemulo e

motivo Enquanto outros processos na natureza satildeo exemplos de causa e

efeito elementares ou da relaccedilatildeo de estiacutemulo e reposta o querer humano (ou

um ato de vontade) ocorre quando os movimentos do corpo satildeo causados por

motivos sendo estes os estados mentais nos quais um mundo objetivo eacute

apresentado agrave consciecircncia entre eles julgamentos conceituais que podem ter

advindo por raciociacutenio47

Por conseguinte assim como as causas e os efeitos satildeo determinados no

tempo e no espaccedilo os motivos tambeacutem determinam o que se quer num certo tempo e num

certo espaccedilo Poreacutem a vontade individual em si natildeo eacute regida pela lei de motivaccedilatildeo da mesma

forma que as forccedilas naturais permanecem fora do domiacutenio da causalidade

Com essa argumentaccedilatildeo Schopenhauer estende ao restante da natureza a

vontade que cada um conhece imediatamente em si mesmo colocando-a como fundamento

tanto o mundo orgacircnico como o inorgacircnico No caso do mundo orgacircnico como afirma

Janaway ldquoA natureza interna do ser humano eacute a inclinaccedilatildeo no sentido da manutenccedilatildeo e

propagaccedilatildeo da vida e essa mesma natureza interna eacute comum a todos os habitantes do mundo

orgacircnico Um tigre um girassol ou um organismo unicelular tecircm a mesma natureza interna ou

essecircnciardquo48

Por meio de vaacuterios exemplos Schopenhauer sustenta a desvinculaccedilatildeo da vontade

em relaccedilatildeo ao conhecimento e mostra como a conduta de diversos animais eacute guiada por

instinto e habilidade construtiva sem nenhum saber anterior Nas palavras dele ldquoNessas

accedilotildees desses animais eacute evidente como em suas restantes accedilotildees que a vontade eacute ativa mas ela

46

JANAWAY C Will and nature In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 146 (traduccedilatildeo nossa) 47

Ibidem p 143 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 48

Ibidem p 144 (traduccedilatildeo nossa)

- 153 -

estaacute aiacute em uma atividade cega acompanhada certamente de conhecimento mas natildeo guiada

por elerdquo49

Evidenciar que a vontade age sem conhecimento eacute imprescindiacutevel para

que se possa estendecirc-la ao conjunto da natureza De acordo com Schopenhauer uma casa

construiacuteda por um ser humano e a concha de um caracol por exemplo satildeo produtos da

vontade que diferem somente porque no primeiro caso ela age por meio de motivos

enquanto no segundo age cegamente por impulso Do mesmo modo diversas funccedilotildees do

corpo humano como a digestatildeo e a circulaccedilatildeo sanguiacutenea natildeo seriam dirigidas por

conhecimento algum mas por uma vontade que agiria nele cegamente50

No capiacutetulo 23 de O

MundoII Schopenhauer afirma sobre esse ponto

Que a vontade que encontramos em nosso interior natildeo seja como presumiu a

filosofia ateacute agora derivada do conhecimento ou uma mera modificaccedilatildeo

deste isto eacute algo derivado deduzido e como o proacuteprio conhecimento

dependente do ceacuterebro mas que ela seja o prius dele o nuacutecleo do nosso ser e

aquela forccedila originaacuteria que cria e manteacutem o corpo animal enquanto efetua

suas funccedilotildees inconscientes tanto quanto as conscientes esse eacute o primeiro

passo no conhecimento fundamental da minha metafiacutesica51

O mesmo poderia ser dito em relaccedilatildeo agraves plantas e aos objetos

inanimados isto eacute todos seriam expressotildees e manifestaccedilotildees da mesma coisa em si Embora

os objetos inorgacircnicos se mostrem muito diferentes de animais e plantas as leis universais e

imutaacuteveis que regem seus corpos e seus movimentos natildeo deixariam de ser constituiacutedas pela

uacutenica e mesma coisa em si No entender do filoacutesofo natildeo seria preciso muito esforccedilo para ldquo[]

reconhecer de novo mesmo a tatildeo grande distacircncia nosso proacuteprio ser aquilo mesmo que em

noacutes persegue seus objetivos com a luz do conhecimento mas que aqui nos mais fracos dos

seus fenocircmenos se esforccedila cega abafada unilateral e invariavelmente []rdquo52

Em suma a

distinccedilatildeo e a separaccedilatildeo da Vontade em relaccedilatildeo ao conhecimento satildeo entendidas por

Schopenhauer como uma grande contribuiccedilatildeo sua agrave Histoacuteria da Filosofia que sempre uniu

ambos no conceito de alma Para ele trata-se de um feito tatildeo importante como foi para a

Quiacutemica a decomposiccedilatildeo da aacutegua53

49

WWW I zweites Buch sect23 p 169 M I livro II sect23 p 174 50

WWW I zweites Buch sect23 p 169 M I livro II sect23 p 174 51

WWW II Kap 23 p 341 M II cap 23 p 353 52

WWW I zweites Buch sect23 p 173 M I livro II sect23 p 178 53

WN p 339 VN p 61

- 154 -

Embora a coisa em si mesma natildeo seja um objeto nem possa ser pensada

objetivamente seria necessaacuterio pensaacute-la de algum modo o que justificaria a busca de um

meio de aproximar-se dela Para isso Schopenhauer considera que se deve adotar o nome e o

conceito do objeto que mais evidencia sua essecircncia o qual nas palavras dele ldquo[] natildeo pode

ser outro dentre todos senatildeo o seu fenocircmeno mais perfeito isto eacute o mais claro o mais

desenvolvido iluminado pelo conhecimento imediato e esse eacute precisamente a vontade

humanardquo54

Ele utiliza calculadamente o procedimento chamado denominatio a potiori

cunhado na Idade Meacutedia pelo qual se denomina alguma coisa pela sua caracteriacutestica mais

elevada Com isso ele entende que se pode compreender a identidade existente entre a

Vontade e todas as forccedilas naturais bem como a comunidade de todos os fenocircmenos

aparentemente tatildeo heterogecircneos do mundo como representaccedilatildeo ldquoPortantordquo ele escreve ldquoEu

nomeio o gecircnero pela espeacutecie mais excelente cujo caraacuteter mais proacuteximo e imediato a noacutes

conduz ao conhecimento mediato de todas as outras coisasrdquo55

Como visto anteriormente o

que o ser humano tem de especiacutefico em relaccedilatildeo a todos os outros animais eacute a faculdade da

razatildeo que deveraacute entatildeo ser o fenocircmeno mais claro e elevado da Vontade

Schopenhauer enfatiza que a escolha do nome ldquoVontaderdquo natildeo eacute uma

denominaccedilatildeo arbitraacuteria mas sim fundamental para designar a coisa em si pois o que o termo

indica eacute o que conhecemos melhor do que qualquer outra coisa Uma vez que a conhecemos

imediata e inteiramente diz ele ldquo[] eacute o mais real dos conhecimentos reais que eacute aqui

trazido agrave linguagemrdquo56

Para ele caso a conhececircssemos por inferecircncia ou deduccedilatildeo qualquer

nome serviria pois natildeo haveria nada a que devecircssemos ligaacute-la de modo necessaacuterio No

entanto o conceito de Vontade natildeo designaria nada proveniente do fenocircmeno mas o nuacutecleo

interior a consciecircncia imediata em que cada um conheceria sua proacutepria essecircncia diretamente

Essa consciecircncia seria completamente diferente de qualquer outro conhecimento pois nela as

duas metades da representaccedilatildeo sujeito e objeto seriam coincidentes57

Schopenhauer afirma

entatildeo que o conceito de Vontade anaacutelogo ao de vontade individual deve ser alccedilado ao posto

mais elevado e subordinar o conceito de forccedila sob o qual ateacute entatildeo havia sido situado O

conceito de forccedila seria extraiacutedo da experiecircncia e denotaria o caraacuteter de causalidade da causa

com o que seria um conhecimento na verdade mediato Conforme sua explicaccedilatildeo ldquoSe ao

contraacuterio subsumimos o conceito de vontade no de forccedila como feito ateacute agora abdicamos do

54

WWW I zweites Buch sect22 p 164 M I livro II sect22 p 169 (grifos do autor) 55

WWW I zweites Buch sect22 p 164 M I livro II sect22 p 169-170 56

WWW II Kap 23 p 342 M II cap 23 p 354 57

WWW I zweites Buch sect22 p 165-166 M I livro II sect22 p 170-171

- 155 -

nosso uacutenico conhecimento imediato da essecircncia do mundo deixando-o se perder num

conceito abstraiacutedo do fenocircmeno com o qual portanto nunca podemos ir aleacutem desterdquo58

No capiacutetulo 28 de O MundoII Schopenhauer apresenta alguns aspectos

que caracterizariam a Vontade Nas palavras dele ldquoTudo urge e se impele agrave existecircncia onde

possiacutevel agrave orgacircnica isto eacute agrave vida assim ao maior crescimento possiacutevel dela na natureza

animal se torna evidente que a Vontade de vida eacute o tom fundamental de sua essecircncia sua

uacutenica caracteriacutestica imutaacutevel e incondicionadardquo59

Considerada objetivamente a Vontade

mostraria como sua uacutenica intenccedilatildeo a conservaccedilatildeo de todas as espeacutecies o que se poderia notar

segundo o filoacutesofo na prodigalidade com a qual a natureza despende e se desfaz de multidotildees

de indiviacuteduos de quaisquer delas O indiviacuteduo diz ele tem valor relativo como mero meio de

conservaccedilatildeo da espeacutecie que por seu turno eacute eterna como se a natureza se preocupasse

apenas em natildeo perder nenhuma de suas Ideias60

Haacute ainda outras caracteriacutesticas que Schopenhauer confere agrave Vontade

deduzidas da sua contraposiccedilatildeo agrave representaccedilatildeo Pela negaccedilatildeo do que o fenocircmeno eacute ele infere

os atributos da Vontade e defende uma completa incongruecircncia entre ambos Como ele

afirma ldquoO lado real tem de ser algo toto genere diferente do mundo como representaccedilatildeo

nomeadamente o que as coisas satildeo em si mesmas e essa total distinccedilatildeo entre o ideal e o real eacute

o que Kant demonstrou de modo mais fundamentalrdquo61

Nesse sentido o principal ponto de

distanciamento eacute a liberaccedilatildeo da Vontade em relaccedilatildeo agrave estrutura sujeito-objeto e

consequentemente ao princiacutepio de razatildeo62

Tempo e espaccedilo na media em que se ligam ao

princiacutepio tambeacutem natildeo lhe concernem Daiacute o filoacutesofo conclui que natildeo haacute multiplicidade na

coisa em si tampouco relaccedilotildees temporais ou espaciais isto eacute ela eacute una e alheia ao tempo e ao

espaccedilo ldquoPoisrdquo ele escreve ldquotempo e espaccedilo satildeo os uacutenicos pelos quais o que eacute um e o mesmo

segundo a essecircncia e o conceito aparece como diferente como multiplicidade simultacircnea ou

sucessiva satildeo portanto o principium individuationis []rdquo63

Ademais por estar apartada do

princiacutepio de razatildeo a Vontade seria tambeacutem absolutamente sem fundamento tendo sido por

isso considerada sempre como livre Como ele explica ldquo[] posto que a Vontade eacute conhecida

58

WWW I zweites Buch sect22 p 166 M I livro II sect22 p 171 (grifos do autor) 59

WWW II Kap 28 p 410 M II cap 28 p423 (grifos do autor) 60

WWW II Kap 28 p 412 M II cap 28 p424 61

WWW II Kap 18 p 224 M II cap 18 p 234 (grifos do autor) 62

WWW I zweites Buch sect23 p 166 M I livro II sect23 p 171 63

WWW I zweites Buch sect23 p 166-167 M I livro II sect23 p 171

- 156 -

imediatamente e em si na autoconsciecircncia entatildeo nessa consciecircncia situa-se tambeacutem a da

liberdaderdquo64

Como aludimos atraacutes a Vontade eacute o alicerce da representaccedilatildeo o ser

verdadeiramente existente que impede que esta seja mera ilusatildeo ou falsa aparecircncia A

representaccedilatildeo precisa ser expressatildeo de algo que natildeo eacute apenas condicionado e relativo a um

sujeito isto eacute tem de exprimir um ser que esteja para aleacutem de tempo espaccedilo e causalidade

que diz Schopenhauer estatildeo ldquo[] atrelados ao ser representaccedilatildeo enquanto tal natildeo agravequilo que

ser torna representaccedilatildeordquo65

Por conseguinte essas formas natildeo interfeririam nas propriedades

do que eacute representado isto eacute mostrariam apenas o ldquocomordquo natildeo o ldquoquecircrdquo do fenocircmeno sua

forma natildeo seu conteuacutedo66

De modo semelhante tudo aquilo que soacute possa existir por meio

dessas formas como a multiplicidade a mudanccedila a duraccedilatildeo e a representaccedilatildeo da mateacuteria natildeo

se vincularatildeo ao ser da Vontade Assim diz o filoacutesofo ldquo[] tudo isso em conjunto natildeo eacute

essencialmente proacuteprio agravequilo que laacute aparece agravequilo que entrou na forma da representaccedilatildeo

mas se prende unicamente a essa forma mesmardquo67

Schopenhauer aponta uma dicotomia fundamental entre o subjetivo e o

objetivo que se espelharia tambeacutem na relaccedilatildeo entre a Vontade e as formas do conhecimento

Ele considera que conhecer eacute exatamente representar e por isso nunca seraacute idecircntico ao ser em

si da coisa representada O ser em si das coisas ele afirma eacute necessariamente subjetivo mas

na representaccedilatildeo de outrem teraacute sempre de ser objetivo e essa cisatildeo jamais poderaacute ser

remediada68

ldquoPoisrdquo ele escreve

por meio disso [dessa diferenccedila] seu modo de existecircncia foi radicalmente

modificado como algo objetivo exige um sujeito estranho em cuja

representaccedilatildeo existe aleacutem disso como Kant demonstrou entra em formas

que satildeo estranhas agrave sua proacutepria essecircncia justamente porque pertencem

agravequele sujeito cujo conhecer somente elas tornam possiacutevel69

Mesmo os corpos inanimados possuiriam um ser subjetivo natildeo alcanccedilado

pela representaccedilatildeo objetiva e que seria tambeacutem a essecircncia deles Resumidamente a aparecircncia

externa formada na representaccedilatildeo eacute o lado objetivo das coisas o qual por sua vez remete a

64

WWW I zweites Buch sect23 p 167 M I livro II sect23 p 172 65

WWW I zweites Buch sect24 p 175 M I livro II sect24 p 180 (grifos do autor) 66

WWW I zweites Buch sect24 p 177-178 M I livro II sect24 p 182 67

WWW I zweites Buch sect24 p 176 M I livro II sect24 p 180 (grifos do autor) 68

WWW II Kap 18 p 224-225 M II cap 18 p 234 69

WWW II Kap 18 p 225 M II cap 18 p 234 (grifos do autor)

- 157 -

algo em si o subjetivo anunciado pelas propriedades inescrutaacuteveis que o determinam de

dentro para fora como no exemplo dos sulcos no maacutermore70

Schopenhauer considera possiacutevel observarem-se elementos fenomecircnicos

natildeo condicionados por tempo espaccedilo e causalidade e que natildeo podem ser remetidos a eles ou

explicados com base neles Esses elementos revelariam a Vontade pois indicariam a presenccedila

dela imediatamente na representaccedilatildeo71

Na concepccedilatildeo schopenhaueriana somente a

matemaacutetica e a ciecircncia pura da natureza permitem cognoscibilidade total sem que nada reste

obscuro porque lidam apenas com formas intelectuais Assim natildeo poderiam nem

necessitariam ser remetidas a outra coisa Diferentemente os conteuacutedos empiacutericos

introduziriam elementos natildeo completamente cognosciacuteveis ao acrescentarem ldquo[] algo sem

fundamento por meio do qual o conhecimento perde em evidecircncia e a completa transparecircncia

diminuirdquo72

Segundo pensamos desse ponto de vista reaparece aquela relaccedilatildeo inversa de

compreensibilidade entre a Vontade e as formas da representaccedilatildeo que mencionamos

anteriormente Para Schopenhauer quanto mais vinculado agraves formas de tempo espaccedilo e

causalidade estaacute um fenocircmeno menos conteuacutedo empiacuterico exige e mais necessaacuterio claro e

suficiente eacute o seu conhecimento Quanto mais poreacutem algo eacute apreendido empiacuterica e

objetivamente mais distante estaraacute das formas do princiacutepio de razatildeo e das suas condiccedilotildees de

fundamentaccedilatildeo tornando-se mais inexplicaacutevel e contingente73

Haacute um aspecto interessante a ser considerado nesse tocante

Schopenhauer critica severamente o materialismo e sua intenccedilatildeo de reduzir todas as forccedilas

naturais umas agraves outras e todas em conjunto agrave aritmeacutetica Se isso fosse possiacutevel ele afirma

tudo poderia ser explicado com absoluta certeza ateacute seu uacuteltimo fundamento e o conteuacutedo

fenomecircnico seria paulatinamente afastado ateacute estar ausente No entanto essa certeza e essa

necessidade seriam resultado da remissatildeo do mundo todo como representaccedilatildeo ao sujeito o

que significaria ser reduzido a mero fantasma Juntamente com o conteuacutedo empiacuterico do

mundo estariam perdidas a coisa em si bem como toda possibilidade de dar agrave representaccedilatildeo

uma existecircncia real reduzindo-se tudo a fantasias sofismas e castelos de ar74

Isso poreacutem

nunca aconteceraacute escreve o filoacutesofo porque ldquo[] sempre restaratildeo as forccedilas naturais sempre

restaraacute como resiacuteduo insoluacutevel um conteuacutedo do fenocircmeno que natildeo pode ser remetido agrave sua

70

WWW II Kap 18 p 225 M II cap 18 p 235 71

WWW I zweites Buch sect24 p 176 M I livro II sect24 p 180 72

WWW I zweites Buch sect24 p 177 M I livro II sect24 p 181 73

WWW I zweites Buch sect24 p 178 M I livro II sect24 p 182 74

WWW I zweites Buch sect24 p 180 M I livro II sect24 p 184

- 158 -

forma isto eacute que natildeo pode ser esclarecido a partir de outra coisa por meio do princiacutepio de

razatildeordquo75

O caraacuteter insondaacutevel da realidade empiacuterica seria adicionalmente uma evidecircncia a

posteriori da idealidade e mera aparecircncia desse lado do mundo76

De acordo com o dito aquilo que se manteacutem desconhecido em todos os

fenocircmenos que natildeo pode ser explicado pelas causas que desencadeiam cada modo especiacutefico

de accedilatildeo tambeacutem revelaria sua essecircncia Para Schopenhauer as causas os estiacutemulos e os

motivos podem ser descobertos os efeitos podem ateacute ser previstos mas natildeo o porquecirc de cada

modo particular de atuaccedilatildeo A mesma obscuridade e ausecircncia de fundamento existiriam tanto

no fenocircmeno mais simples quanto no mais complexo desde uma gota de aacutegua ateacute o caraacuteter

individual de um ser humano a Vontade eacute a mesma em toda parte Como vimos para que a

essecircncia escondida das coisas seja revelada o conhecimento que cada um tem da sua proacutepria

vontade individual eacute o uacutenico caminho pois eacute ele que pode conectar os dois lados do mundo o

externo e o interno a coisa em si e a representaccedilatildeo Como resultado de um lado o meacutetodo da

analogia estendeu a essecircncia Vontade ao universo da experiecircncia e de outro a relaccedilatildeo causal

foi demonstrada como o princiacutepio subjetivo de formaccedilatildeo e de coesatildeo do mundo objetivo

Com isso Schopenhauer julga ter encontrado por meio da reflexatildeo o ldquoponto certordquo em que

se unem as perspectivas interna e externa do sujeito77

Nas palavras dele

Consumando ao contraacuterio a ligaccedilatildeo acima requerida do conhecimento

externo com o interno laacute onde se tocam entatildeo compreenderemos apesar de

todas as diferenccedilas acidentais duas identidades a saber da causalidade

consigo mesma em todos os graus e a daquele x antes desconhecido (isto eacute

as forccedilas naturais e fenocircmenos vitais) com a Vontade em noacutes78

Portanto as propriedades essenciais de todos os fenocircmenos seu modo de

ser e sua proacutepria existecircncia satildeo objetidade da coisa em si sua visibilidade Isso natildeo significa

dizer que sejam efeitos da Vontade como causa pois afirma Schopenhauer ldquoCoisa nenhuma

no mundo possui uma causa absoluta e geral de sua existecircncia apenas uma causa pela qual eacute

justamente aqui e agorardquo79

Em qualquer dos trecircs tipos de causaccedilatildeo por causa estrita estiacutemulo

ou motivo a causa eacute sempre ocasional ou seja uma mudanccedila especiacutefica dada num instante do

tempo A forccedila natural por seu turno eacute aquilo que originariamente daacute agrave causa a capacidade de

75

WWW I zweites Buch sect24 p 180 M I livro II sect24 p 184 76

WWW II Kap 18 p 226 M II cap 18 p 236 77

WN p 415 VN p 143 78

WN p 416 VN p 144 79

WWW I zweites Buch sect26 p 197 M I livro II sect26 p 201

- 159 -

atuar enquanto a Vontade eacute a essecircncia em si da forccedila80

Entretanto e isso eacute importante de

nenhum modo a causa pode faltar pois eacute o que oferece a oportunidade para a manifestaccedilatildeo

das forccedilas naturais num ponto do tempo e do espaccedilo81

Daiacute resulta por um lado que as forccedilas

naturais as espeacutecies animais e o caraacuteter individual humano satildeo todos fenocircmenos imediatos da

Vontade e portanto sem fundamento assim como ela De outro que o exerciacutecio em si das

forccedilas a essecircncia interna de cada espeacutecie e de cada caraacuteter humano natildeo podem ser explicados

com base nas causas exteriores que desencadeiam sua accedilatildeo Como o filoacutesofo afirma

Mas que ele tenha este caraacuteter que ele queira em geral que entre muitos

motivos exatamente este e natildeo outro sim que algum motivo mova sua

Vontade disso natildeo se pode apontar nenhum motivo O que no homem eacute seu

caraacuteter infundado pressuposto em todo esclarecimento de suas accedilotildees por

motivos eacute exatamente a qualidade essencial de cada corpo inorgacircnico seu

modo de produzir efeito cujas exteriorizaccedilotildees satildeo provocadas por influecircncia

de fora enquanto ela ao contraacuterio natildeo eacute determinada por nada externo isto

eacute natildeo eacute explicaacutevel []82

Schopenhauer procura evitar que essa concepccedilatildeo de forccedilas naturais seja

relacionada a entidades miacutesticas ou de algum modo eteacutereas Embora essas forccedilas tenham

caraacuteter metafiacutesico natildeo devem ser remetidas agrave religiatildeo ou a entes sobrenaturais mas devem

ser investigadas empiricamente ateacute o limite pelas ciecircncias Na concepccedilatildeo do filoacutesofo as

forccedilas naturais satildeo a condiccedilatildeo que daacute sentido agrave explicaccedilatildeo por causas isto eacute estatildeo

relacionadas a eventos empiricamente cognosciacuteveis ainda que na condiccedilatildeo de qualitas oculta

O mesmo natildeo poderia ser dito no tocante agraves entidades religiosas e miacutesticas As forccedilas naturais

portanto estatildeo ligadas agrave etiologia como aquilo que estaacute pressuposto nela natildeo no sentido de

um primeiro elo da cadeia causal do mundo como representaccedilatildeo mas como aquilo sem o qual

natildeo se poderia explicar nada83

ldquoPoisrdquo escreve Schopenhauer

a fiacutesica exige causas mas a Vontade nunca eacute causa sua relaccedilatildeo com o

fenocircmeno de modo algum eacute dada pelo princiacutepio de razatildeo mas o que em si eacute

Vontade de outro lado eacute representaccedilatildeo ou seja fenocircmeno e como tal segue

as leis que constituem a forma do fenocircmeno Assim por exemplo todo

movimento embora seja sempre fenocircmeno da Vontade deve ter apesar disso

uma causa pela qual eacute explicado em relaccedilatildeo com um tempo e um espaccedilo

determinados isto eacute natildeo em geral segundo sua essecircncia interna mas como

fenocircmeno singular84

80

WWW II Kap 23 p 349 M II cap 23 p 360 81

WWW I zweites Buch sect27 p 199 M I livro II sect27 p 203 82

WWW I zweites Buch sect24 p 181 M I livro II sect24 p 185 83

WWW I zweites Buch sect26 p 200 M I livro II sect26 p 203 84

WWW I zweites Buch sect27 p 199 M I livro II sect27 p 203 (grifos do autor)

- 160 -

Do exposto resulta que natildeo se pode utilizar a etiologia para chegar a um

fundamento que ela natildeo pode encontrar e que de qualquer modo natildeo saberia reconhecer Em

funccedilatildeo disso Schopenhauer parte de um conhecimento especial do que nos eacute mais proacuteximo

de um saber imediato para desvendar o mais distante e desconhecido Ao comparar o que

ocorre em si mesmo no momento em que seu corpo age com o modo de accedilatildeo de quaisquer

corpos orgacircnicos ou inorgacircnicos o indiviacuteduo poderia compreender que seu processo de

mudanccedila eacute idecircntico ao destes uacuteltimos e que suas essecircncias tambeacutem o satildeo85

Schopenhauer

exemplifica divertidamente que uma pedra teria razatildeo se julgasse que sua trajetoacuteria no ar

causada por uma colisatildeo fosse fruto de sua vontade proacutepria ldquoO choque eacute para ela o que o

motivo eacute para mim e o que aparece nela como coesatildeo gravidade e resistecircncia no estado

advindo eacute segundo a essecircncia interna o mesmo que reconheccedilo em mim como vontade e que

se ela adquirisse conhecimento tambeacutem entenderia como Vontaderdquo86

Nesse ponto eacute interessante observar que Schopenhauer identificou nas

ciecircncias de seu tempo uma confirmaccedilatildeo de seus principais resultados metafiacutesicos Para ele

esse aspecto distingue sua filosofia de todas as outras porque natildeo deixa como estas um

abismo intransponiacutevel entre a metafisica e a experiecircncia87

De fato como afirma Gardiner

essa eacute uma posiccedilatildeo fundamental de Schopenhauer a saber que ldquo[] nenhuma explicaccedilatildeo

filosoacutefica de nossa existecircncia enquanto seres inteligentes pode ser aceita se natildeo se faz justiccedila

aos fatos evidentes de nossa situaccedilatildeo na natureza fiacutesica na condiccedilatildeo de criaturas dotadas de

certa constituiccedilatildeo e organizaccedilatildeo corporalrdquo88

A obra Sobre a Vontade na natureza se dedica

justamente a apresentar essas comprovaccedilotildees mostrando no entender do filoacutesofo que sua

metafiacutesica natildeo ldquoflutua no arrdquo como as anteriores mas estaacute ancorada no solo firme das ciecircncias

empiacutericas89

E essa comprovaccedilatildeo natildeo seria relativa a um ponto qualquer do seu pensamento

mas agravequele mais fundamental a saber o que estabelece a Vontade como o nuacutecleo metafiacutesico

de tudo Nesse caso diz Schopenhauer cientistas e filoacutesofo se encontram de modo

inesperado

Pois aqueles pesquisadores reconhecem agora que alcanccedilaram o ponto de

encontro procurado inutilmente por muito tempo entre fiacutesica e metafiacutesica

que como ceacuteu e Terra nunca quiseram se tocar reconhecem que se iniciou a

conciliaccedilatildeo entre ambas as ciecircncias e que o ponto de ligaccedilatildeo entre elas foi

85

WWW I zweites Buch sect24 p 182 M I livro II sect24 p 186 86

WWW I zweites Buch sect24 p 183 M I livro II sect24 p 187 87

WN p 320 VN p 39 88

GARDINER op cit p 224 (traduccedilatildeo nossa) 89

WN p 320-321 VN p 40

- 161 -

encontrado Mas o sistema filosoacutefico que vivencia essa vitoacuteria alcanccedila com

isso uma prova externa tatildeo forte e suficiente de sua verdade e correccedilatildeo que

nenhuma outra maior eacute possiacutevel90

Em siacutentese a accedilatildeo e o movimento do indiviacuteduo por motivos que

conhecemos em noacutes mesmos a partir de dentro explicam o modo de atuaccedilatildeo e o movimento

em toda a natureza As forccedilas naturais seriam distintas da vontade individual somente em

grau e as diferenccedilas entre os objetos naturais existiriam apenas na representaccedilatildeo todos

seriam exteriorizaccedilotildees da mesma coisa em si No entender de Schopenhauer esse eacute o uacutenico

uso da reflexatildeo que pode seguir aleacutem do fenocircmeno e alcanccedilar a Vontade em si91

Nesse

sentido ele escreve

Que aleacutem disso eacute aquela mesma Vontade que situa a gema da planta para

que folha ou flor se desenvolvam sim que a forma regular do cristal eacute

apenas o vestiacutegio restante de sua aspiraccedilatildeo momentacircnea que ela em geral

como o verdadeiro e uacutenico ἀςηόμαηον no sentido proacuteprio do termo subjaz

como fundamento de todas as forccedilas da natureza inorgacircnica joga e atua em

todos os seus variados fenocircmenos empresta forccedila a suas leis e se daacute a

conhecer na massa mais bruta como gravidade ndash essa concepccedilatildeo eacute o segundo

passo naquele conhecimento fundamental jaacute proporcionado por uma

reflexatildeo mais ampla92

33 ndash Objetivaccedilatildeo da Vontade

Schopenhauer define como objetivaccedilatildeo da Vontade sua

ldquoautoapresentaccedilatildeo no mundo real corpoacutereordquo93

De acordo com ele a coisa em si se objetiva

em uma infinidade de seres e de graus cuja essecircncia no entanto eacute a mesma pois satildeo

diferentes apenas em aparecircncia94

Haveria graus maiores e menores de manifestaccedilatildeo da

Vontade dispostos numa hierarquia a planta seria um grau maior do que a pedra o animal

90

WN p 324 VN p 43-44 91

WWW I zweites Buch sect21 p 163 M I livro II sect21 p 168 92

WWW II Kap 23 p 341-342 M II cap 23 p 353-354 93

WWW II Kap 20 p 286 M II cap 20 p 297 94

WWW I zweites Buch sect24 p 185 M I livro II sect24 p 189

- 162 -

maior do que a planta e o ser humano maior do que o animal Por conseguinte a gradaccedilatildeo dos

fenocircmenos resultantes da objetivaccedilatildeo da Vontade conduziria da mateacuteria sem vida ao ser

humano racional sem que ela deixasse de ser idecircntica em todos eles Conforme o filoacutesofo as

infinitas gradaccedilotildees satildeo como graus mais fracos ou mais fortes de uma mesma luz de modo

que a Vontade se manifesta completamente em cada um e em todos os fenocircmenos

No texto ldquoSchopenhauer et la physiologie franccedilaiserdquo Paul Janet aponta

as origens dessa concepccedilatildeo nas obras de Cabanis e de Bichat Segundo esse autor Bichat

divisou certas pequenas vontades nas atividades e funccedilotildees orgacircnicas certas hierarquias

subconscientes de ldquopequenos eurdquo (petits moi) que se encaixam infinitamente95

Generalizando

essa perspectiva Cabanis teria buscado uma causa geral dos fenocircmenos vitais que pudesse ser

atribuiacuteda a toda a natureza Conforme Janet ldquoEle suspeita que haja bdquoalguma analogia entre a

sensibilidade animal o instinto das plantas as afinidades eletivas e a simples atraccedilatildeo

gravitacional‟ e em todos esses fenocircmenos ele vecirc um fato comum bdquoa tendecircncia dos corpos

uns aos outros‟rdquo96

Essa concepccedilatildeo segundo o autor conteacutem em germe toda a filosofia de

Schopenhauer com a uacutenica diferenccedila de que Cabanis chama sensibilidade o que o filoacutesofo

chama vontade Em ambos os casos todas as forccedilas naturais do mundo orgacircnico e do

inorgacircnico poderiam ser remetidas a um mesmo princiacutepio apenas nomeado distintamente

pelo filoacutesofo e pelo fisioacutelogo97

Na filosofia schopenhaueriana os graus mais altos de objetivaccedilatildeo da

Vontade satildeo aqueles que manifestam individualidade Os seres humanos teriam chegado ao

cume dessa gradaccedilatildeo diz Schopenhauer pois somente neles a individualidade teria atingido o

ponto em que se tem personalidade e fisionomia completamente particulares Alguns animais

se aproximariam disso mas natildeo possuiriam individualizaccedilatildeo do caraacuteter e expressariam apenas

o da sua espeacutecie Para o filoacutesofo em virtude de distinccedilotildees fisioloacutegicas no desenvolvimento de

seus ceacuterebros o caraacuteter da espeacutecie determina as accedilotildees individuais deles enquanto nos seres

humanos cada caraacuteter se expressa de modo pessoal Nas palavras dele ldquoEnquanto cada

homem deve ser visto como fenocircmeno especialmente determinado e caracterizado da

Vontade ateacute mesmo de certo modo como uma Ideia proacutepria no animal esse caraacuteter individual

falta completamente e somente a espeacutecie possui significaccedilatildeo particular []rdquo98

Jaacute nas plantas

95

JANET P Schopenhauer et la physiologie franccedilaise Cabanis et Bichat Revue des deux mondes Tome 9

Paris Bureau de la Revue de deux mondes Mai-1880 p 46 96

Ibidem p 46-47 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 97

Ibidem p 46-47 98

WWW I zweites Buch sect26 p 189 M I livro II sect26 p 193-194

- 163 -

e na natureza inorgacircnica a individualidade seria completamente ausente e conforme o

filoacutesofo ldquoQuanto mais se desce mais se perde cada vestiacutegio de caraacuteter individual no caraacuteter

geral da espeacutecie restando somente a fisionomia destardquo99

Cada um dos graus de objetivaccedilatildeo da Vontade satildeo denominados Ideia por

Schopenhauer em sentido platocircnico As forccedilas naturais seriam Ideias de uma objetivaccedilatildeo de

niacutevel inferior e as leis naturais seriam o modo de relaccedilatildeo entre elas e as formas do fenocircmeno

Por obra do tempo e do espaccedilo a Ideia se multiplicaria em inumeraacuteveis seres cujo

aparecimento seria determinado pela causalidade que ademais seria a regra por meio da qual

a mateacuteria seria dividida entre as forccedilas naturais100

ldquoPortantordquo explica o filoacutesofo ldquoessa norma

se relaciona necessariamente com a identidade da mateacuteria total existente a qual eacute o substrato

comum de todos aqueles diferentes fenocircmenosrdquo101

Assim Vontade e Ideias manifestam-se de

modo idecircntico nos fenocircmenos por mais numerosos que sejam e natildeo satildeo afetadas por

quaisquer mudanccedilas oriundas de tempo espaccedilo e causalidade

Revela-se nesse ponto novamente a relaccedilatildeo entre a lei de causalidade e

a da permanecircncia da substacircncia bem como a conexatildeo de espaccedilo e tempo no tocante a ambas

Segundo Schopenhauer o tempo eacute a possibilidade de que a mesma mateacuteria possa ter

determinaccedilotildees opostas e o espaccedilo eacute a possibilidade de que a mesma mateacuteria possa

permanecer sob determinaccedilotildees opostas102

ldquoPor issordquo ele escreve ldquoesclarecemos a mateacuteria no

livro anterior como uniatildeo de tempo e espaccedilo essa uniatildeo se apresenta como mudanccedila dos

acidentes na permanecircncia da substacircncia da qual a causalidade ou o devir eacute a possibilidade

universalrdquo103

Natildeo obstante no capiacutetulo 24 de O MundoII ele afirma que essa perspectiva eacute

unilateral porque soacute examina a mateacuteria do ponto de vista de suas relaccedilotildees com as formas do

intelecto Fora dessas relaccedilotildees isto eacute do seu fazer efeito a mateacuteria seria uma abstraccedilatildeo um

pensamento pois natildeo possuiria determinaccedilatildeo alguma que pudesse ser intuiacuteda104

Por conseguinte a mateacuteria se identificaria com a causalidade e

corresponderia ao conceito de substacircncia ldquoDe acordo com issordquo Schopenhauer afirma ldquoa

essecircncia total da mateacuteria consiste em fazer efeito somente por meio deste ela preenche o

espaccedilo e permanece no tempo ela eacute completamente pura causalidade Portanto onde eacute

99

WWW I zweites Buch sect26 p 189 M I livro II sect26 p 193 100

WWW I zweites Buch sect26 p 192-193 M I livro II sect26 p 196-197 101

WWW I zweites Buch sect26 p 193 M I livro II sect26 p 197 102

WWW I zweites Buch sect26 p 193 M I livro II sect26 p 197 103

WWW I zweites Buch sect26 p 193 M I livro II sect26 p 197 104

WWW II Kap 24 p 356 M II cap 24 p 367

- 164 -

produzido efeito haacute mateacuteria e material eacute o que faz efeito em geralrdquo105

Desse ponto de vista a

mateacuteria seria a forma a priori da causalidade poreacutem objetivada isto eacute ligada ao tempo e ao

espaccedilo Natildeo consiste em objeto empiacuterico e natildeo eacute dada em experiecircncia alguma mas diz o

filoacutesofo assim como o entendimento eacute condiccedilatildeo da experiecircncia e um elemento necessaacuterio

dela Eacute entatildeo o substrato permanente de todas as exteriorizaccedilotildees das forccedilas naturais dos

seres vivos numa palavra do mundo todo como representaccedilatildeo106

Sem forma sem

qualidades sem determinaccedilotildees e inerte a mateacuteria estaria sempre pronta a assumir a aparecircncia

de quaisquer manifestaccedilotildees da Vontade natildeo podendo pode ser subtraiacuteda completamente do

mundo como representaccedilatildeo sem que ele deixasse por isso mesmo de ser o que eacute

Apesar de natildeo ser um objeto a mateacuteria conteria um elemento dado

apenas a posteriori Nas palavras de Schopenhauer ldquoEla eacute na verdade o ponto de contato do

lado empiacuterico do nosso conhecimento com o puro e aprioriacutestico portanto a pedra angular

proacutepria do mundo da experiecircnciardquo107

Nessa perspectiva a mateacuteria se configuraria como a

proacutepria Vontade na medida em que esta se manifesta na parte empiacuterica dos corpos Assim

ele explica a mateacuteria como aquilo atraveacutes do qual a coisa em si se torna visiacutevel intuiacutevel e que

constitui a ligaccedilatildeo entre o mundo como Vontade e como representaccedilatildeo Conforme o filoacutesofo

ldquoPertence a este enquanto eacute produto das funccedilotildees do intelecto agravequele na medida em que o

que se manifesta em todos os seres materiais isto eacute fenocircmenos eacute a Vontaderdquo108

Como

consequecircncia sem as formas do conhecimento a mateacuteria se revela como a coisa em si pois eacute

exatamente aquilo que se torna extenso e produz efeito ao tomar as formas do tempo espaccedilo

e causalidade Entatildeo diz Schopenhauer ldquoA mateacuteria eacute por conseguinte a proacutepria Vontade

mas natildeo em si e sim enquanto eacute intuiacuteda isto eacute enquanto adota a forma da representaccedilatildeo

objetiva assim o que objetivamente eacute mateacuteria subjetivamente eacute Vontaderdquo109

As forccedilas naturais objetivariam uma Ideia menos perfeita da Vontade um

impulso cego e sem conhecimento que se manifestaria de modo idecircntico em inumeraacuteveis

fenocircmenos Nesse niacutevel de objetivaccedilatildeo natildeo haveria caraacuteter individual em parte alguma e

cada Ideia expressaria o mesmo impulso multiplicado milhares de vezes110

Os fenocircmenos do

mundo orgacircnico por sua vez objetivariam uma Ideia mais perfeita da Vontade mas ainda de

105

WWW II Kap 24 p 357 M II cap 24 p 368 (grifos do autor) 106

WWW II Kap 24 p 357 M II cap 24 p 368 107

WWW II Kap 24 p 358 M II cap 24 p 369 108

WWW II Kap 24 p 359 M II cap 24 p 370 (grifos do autor) 109

WWW II Kap 24 p 360 M II cap 24 p 371 110

WWW I zweites Buch sect27 p 211-212 M I livro II sect27 p 214

- 165 -

modo cego Mesmo no reino vegetal onde a Vontade eacute mais clara sua objetivaccedilatildeo ainda se daacute

como o impulso cego que governa a vida das plantas e a parte vegetativa do corpo animal111

Nesse caso cada Ideia deve expressar sem nenhum sinal de individualidade espeacutecies de

plantas e estiacutemulos dos corpos orgacircnicos com vistas agrave sua geraccedilatildeo desenvolvimento e

conservaccedilatildeo

Nos graus mais aprimorados de objetivaccedilatildeo da Vontade por seu turno os

indiviacuteduos expressariam Ideias Nesse niacutevel estatildeo os animais cuja individualidade estaacute

relacionada com a necessidade de buscar o alimento que diz Schopenhauer natildeo chega

facilmente ateacute eles mas ldquo[] tem de ser procurado escolhido desde o instante em que o

animal saiu do ovo ou do ventre materno onde vegetava sem conhecimentordquo112

Os animais

precisam movimentar-se e entatildeo os motivos satildeo o meio necessaacuterio para a preservaccedilatildeo do

indiviacuteduo e com ele da espeacutecie Uma vez que o conhecimento passa a ser fundamental o

ceacuterebro surge para satisfazer essa necessidade como oacutergatildeo que expressa esse esforccedilo e cria o

mundo o como representaccedilatildeo113

Conforme o filoacutesofo ldquoO mundo mostra agora seu segundo

lado Ateacute entatildeo pura Vontade agora eacute simultaneamente representaccedilatildeo objeto do sujeito

cognoscenterdquo114

Com o surgimento do conhecimento nos universos animal e humano

poreacutem perde-se a infalibilidade com a qual a Vontade segue seus alvos no restante da

natureza Enquanto era pura e simplesmente impulso cego natildeo se via atrapalhada ou

complicada por nenhum saber mas na medida em que os motivos passaram a fazer parte das

cadeias causais trouxeram consigo o engano e a ilusatildeo Nesse sentido diz Schopenhauer o

mundo como representaccedilatildeo eacute ldquo[] de fato apenas a imagem de sua proacutepria essecircncia mas de

natureza totalmente distinta e que agora interfere na coesatildeo de seus fenocircmenosrdquo115

Motivos

falsos passam assim a poder influir sobre as vontades como se fossem os corretos podendo

levar ao erro e agrave distorccedilatildeo nas exteriorizaccedilotildees da essecircncia individual116

No caso dos seres

humanos as carecircncias e vulnerabilidades exigiram uma potecircncia mais elevada de

conhecimento que seria entatildeo a origem da superioridade do seu intelecto No entanto ao

mesmo tempo em que o instinto ficou em segundo plano a seguranccedila e o caraacuteter infaliacutevel das

111

WWW I zweites Buch sect27 p212 M I livro II sect27 p 214-215 112

WWW I zweites Buch sect27 p 212 M I livro II sect27 p 215 113

WWW I zweites Buch sect27 p 212 M I livro II sect27 p 215 114

WWW I zweites Buch sect27 p 212-0213 M I livro II sect27 p 215 (grifos do autor) 115

WWW I zweites Buch sect77 p 213 M I livro II sect27 p 216 116

WWW I zweites Buch sect27 p 214 M I livro II sect27 p 217

- 166 -

exteriorizaccedilotildees da Vontade se perderam completamente Com isso a melhor objetivaccedilatildeo seraacute

de certo modo a pior delas pois ao substituir o instinto e a regularidade das leis naturais a

reflexatildeo deu origem a erros e hesitaccedilotildees que em muitos casos prejudicam a exteriorizaccedilatildeo

adequada em accedilotildees isto eacute exatamente aquilo para o que existe

34 ndash Relaccedilotildees da Vontade com o intelecto e o ceacuterebro

No capiacutetulo 22 de O MundoII Schopenhauer aborda o intelecto do

acircngulo da objetividade isto eacute como uma representaccedilatildeo e afirma que esse ponto de vista

precisa ser harmonizado com o subjetivo117

A perspectiva subjetiva jaacute abordada por noacutes no

segundo capiacutetulo deste trabalho examina o que eacute dado na consciecircncia com o fim descrever o

mecanismo de construccedilatildeo do mundo pelo intelecto A objetiva por sua vez investiga o

intelecto do ponto de vista externo isto eacute como um objeto empiacuterico Esse modo de

consideraccedilatildeo segundo o filoacutesofo ldquoEacute portanto em primeiro lugar zooloacutegico anatocircmico e

fisioloacutegico tornando-se filosoacutefico somente pela ligaccedilatildeo com aquele primeiro ponto de vista

pelo qual se torna superiorrdquo118

Na nossa interpretaccedilatildeo a perspectiva fisioloacutegica de

consideraccedilatildeo tem tanto peso e valor no pensamento schopenhaueriano quanto a filosoacutefica

Janet observa nesse sentido que as investigaccedilotildees fisioloacutegicas tiveram uma influecircncia decisiva

sobre o filoacutesofo pois ele afirma ldquoSe o primeiro livro de sua obra vem de Kant pode-se dizer

que o segundo vem em grande parte de Cabanis e Bichatrdquo119

De fato Schopenhauer

considera que as contribuiccedilotildees desses pensadores natildeo podem ser ignoradas por filoacutesofos se

estes natildeo quiserem oferecer apenas um ponto de vista unilateral e insuficiente do intelecto

como teria sido o de Kant120

Nesse sentido ele escreve que

117

WWW II Kap 22 p 316 M II cap 22 p 329 118

WWW II Kap 22 p 317 M II cap 22 p 329 119

JANET op cit p 36 (traduccedilatildeo nossa) 120

WWW II Kap 22 p 317 M II cap 22 p 330

- 167 -

A verdadeira fisiologia no que tem de mais elevado demonstra o espiritual

do homem (o conhecimento) como produto do seu fiacutesico e isso Cabanis fez

como nenhum outro mas a verdadeira metafiacutesica nos ensina que esse fiacutesico

mesmo eacute mero produto ou antes fenocircmeno de algo espiritual (a Vontade)

sim que a proacutepria mateacuteria eacute condicionada pela representaccedilatildeo unicamente na

qual ela existe121

No entender de Schopenhauer os pontos de vista subjetivo e objetivo satildeo

contrastantes O que eacute pensamento viacutevido e consciente na primeira perspectiva na segunda

natildeo eacute mais do que funccedilatildeo fisioloacutegica do ceacuterebro semelhante a quaisquer outras funccedilotildees da

vida animal ou vegetal Em virtude disso diz o filoacutesofo ldquo[] eacute legiacutetimo afirmar-se que a

totalidade do mundo objetivo tatildeo ilimitado no espaccedilo tatildeo infinito no tempo tatildeo impenetraacutevel

na perfeiccedilatildeo eacute na verdade apenas um certo movimento ou afecccedilatildeo da massa mole dentro do

cracircniordquo122

Embora seja o fenocircmeno mais aprimorado da natureza essa mateacuteria cerebral nos

aproxima de todos os outros animais e da vida orgacircnica mais simples na medida em que toma

parte no universo de objetivaccedilotildees da Vontade Isso porque Schopenhauer escreve ldquo[]

aquela massa orgacircnica gelatinosa eacute o uacuteltimo produto da natureza que jaacute pressupotildee todos os

outrosrdquo123

Portanto como tudo o mais o intelecto eacute fenocircmeno da Vontade Do

ponto de vista fenomecircnico a pluralidade e separaccedilatildeo dos seres torna o conhecimento

necessaacuterio no mundo como representaccedilatildeo De acordo com Schopenhauer o conhecimento eacute

exigido somente quando haacute no miacutenimo dois seres distintos para que um possa conhecer o

outro Caso houvesse um uacutenico ser natildeo haveria nada cuja existecircncia pudesse ser conhecida

pois ele escreve ldquoEle mesmo jaacute seria tudo em tudo consequentemente nada restaria a

conhecer isto eacute nada estranho que pudesse ser interpretado como coisa objetordquo124

A

multiplicidade separaria os indiviacuteduos que teriam entatildeo de transpor os limites materiais dos

seus proacuteprios ceacuterebros ou melhor os intelectos precisariam romper suas fronteiras por meio

da causalidade para produzir a intuiccedilatildeo de outras coisas125

Pluralidade e conhecimento

seriam mutuamente condicionantes e diz o filoacutesofo ldquoConclui-se daiacute que para aleacutem do

fenocircmeno no ser em si de todas as coisas elas devem ser estranhas a tempo e espaccedilo

portanto tambeacutem a multiplicidade e tampouco pode existir nenhum conhecimentordquo126

121

WN p 340 VN p 61 (grifos do autor) 122

WWW II Kap 22 p 318 M II cap 22 p 330 123

WWW II Kap 22 p 318 M II cap 22 p 331 124

WWW II Kap 22 p 319 M II cap 22 p 331-332 (grifos do autor) 125

WWW II Kap 22 p 319 M II cap 22 p 332 126

WWW II Kap 22 p 320 M II cap 22 p 332

- 168 -

O intelecto surgiria entatildeo no animal como um meio de satisfazer

necessidades de sobrevivecircncia e progrediria em graus crescentes de aperfeiccediloamento O

ceacuterebro humano seria o ponto mais alto de perfeiccedilatildeo a que o conhecimento teria chegado e

sua diferenccedila especiacutefica em relaccedilatildeo ao ceacuterebro de todos os outros animais seria a capacidade

de influenciar a Vontade com motivos abstratos Segundo o filoacutesofo o mundo como

representaccedilatildeo nasce simploacuterio e humilde ldquomas ele se manifesta de modo cada vez mais

niacutetido mais amplo e profundo na medida em que na seacuterie ascendente das organizaccedilotildees

animais o ceacuterebro eacute produzido cada vez mais perfeitamenterdquo127

Nas plantas e no mundo

inorgacircnico os estiacutemulos e as causas estritas seriam anaacutelogos do conhecimento enquanto

meios pelos quais cada ser recebe as influecircncias de fora As distintas receptividades agraves causas

aos estiacutemulos e ao conhecimento teriam a mesma funccedilatildeo de satisfazer as necessidades dos

seres com vistas agrave manutenccedilatildeo da vida do indiviacuteduo e da espeacutecie128

Nesse sentido como

afirma Gardiner ldquoTodas as formas comuns de conhecimento inclusive o cientiacutefico devem

levar sobre si a marca da vontade por ser esta sua raison drsquoecirctrerdquo129

Em virtude de o ceacuterebro ser o niacutevel maacuteximo de perfeiccedilatildeo e complexidade

do organismo as afecccedilotildees dos sentidos mais nobres visatildeo e audiccedilatildeo satildeo meramente

percebidas por ele e natildeo afetam a vontade isto eacute natildeo provocam dor ou prazer130

O alto grau

de sensibilidade desse oacutergatildeo permitiria ao entendimento realizar espontaneamente sem

relaccedilatildeo com a vontade a transiccedilatildeo da impressatildeo sentida no corpo ao objeto externo ldquoAssimrdquo

escreve Schopenhauer

o ponto onde o entendimento da sensaccedilatildeo na retina que ainda eacute uma mera

afecccedilatildeo do corpo e nesse aspecto da Vontade realiza a transiccedilatildeo de cada

sensaccedilatildeo agrave causa que ele projeta com suas formas do tempo e do espaccedilo

como algo externo e diferente da proacutepria pessoa pode ser considerado como

o limite entre o mundo como Vontade e o mundo como representaccedilatildeo ou

tambeacutem como o local de nascimento deste uacuteltimo131

Por conseguinte a produccedilatildeo de conceitos e abstraccedilotildees eacute uma atividade

espontacircnea do ceacuterebro ancorada na Vontade A autoconsciecircncia tambeacutem eacute produzida nesse

oacutergatildeo nasce juntamente com ele e com o mundo como representaccedilatildeo do mesmo modo que

diz Schopenhauer ldquo[] a luz soacute se torna visiacutevel por meio dos corpos que a refletem e sem

127

WWW II Kap 22 p 324 M II cap 22 p 337 128

WN p 394 VN p 120 129

GARDINER op cit p 215 (traduccedilatildeo nossa) 130

WWW II Kap 22 p 320 M II cap 22 p 333 131

WWW II Kap 22 p 321 M II cap 22 p 333

- 169 -

eles perde-se sem efeito na escuridatildeordquo132

Por conseguinte pela necessidade de apreensatildeo do

mundo como representaccedilatildeo a Vontade produziria o ceacuterebro e dele despontaria a consciecircncia

de si Segundo o filoacutesofo ao unir as distintas atividades da sensibilidade em um ponto

preciso o ceacuterebro as fixa em uma linha do tempo e origina a forma mais essencial do

conhecimento133

Nas palavras dele

Esse foco da atividade cerebral eacute o que Kant nomeou unidade sinteacutetica da

apercepccedilatildeo apenas por meio dele a Vontade se torna consciente de si na

medida em que esse foco da atividade cerebral ou o cognoscente interpreta-

se como idecircntico agrave proacutepria base da qual derivou o desejante e assim surge o

ldquoeurdquo134

Entendido dessa maneira o sujeito cognoscente eacute meramente um estado

que conhece a vontade de modo refletido e indireto Natildeo pode ser tomado por uma substacircncia

ou alma pois natildeo eacute algo primaacuterio ou originaacuterio e sim derivado do organismo que por sua vez

deriva da Vontade Nesse ponto Schopenhauer reconhece o caraacuteter metafoacuterico de suas

afirmaccedilotildees ldquoEu admito que tudo o que foi dito aqui seja de fato apenas imagem e paraacutebola

ateacute mesmo em parte hipoacutetese estamos em um ponto em que o pensamento mal alcanccedila

menos ainda as demonstraccedilotildeesrdquo135

Apesar dessa declaraccedilatildeo no capiacutetulo 19 de O MundoII ele argumenta

sobre a primazia da Vontade na autoconsciecircncia136

Desse ponto de vista o intelecto seria um

fenocircmeno secundaacuterio um acidente do organismo animal ou melhor funccedilatildeo de um oacutergatildeo

material produzido por esse mesmo organismo Nas palavras de Schopenhauer ldquo[] a

Vontade eacute metafiacutesica o intelecto fiacutesico como seus objetos o intelecto eacute mero fenocircmeno

coisa em si eacute apenas a Vontade portanto num sentido cada vez mais figurado logo

metaforicamente a Vontade eacute a substacircncia do homem o intelecto o acidente []rdquo137

Embora em diversas circunstacircncias possa parecer que a Vontade seja comandada pelo

intelecto ao ser posta em movimento com imagens e pensamentos eacute a ela que sempre caberaacute a

decisatildeo final ldquoNa verdaderdquo ele escreve ldquoa comparaccedilatildeo mais adequada para a relaccedilatildeo entre

ambos eacute a do cego forte que carrega nos ombros o paraliacutetico que vecircrdquo138

Essa relaccedilatildeo de

subordinaccedilatildeo do intelecto agrave Vontade eacute ilustrada por Schopenhauer com diversas

132

WWW II Kap 22 p 322-323 M II cap 22 p 335 133

WWW II Kap 22 p 323 M II cap 22 p 335 134

WWW II Kap 22 p 323 M II cap 22 p 335 (grifos do autor) 135

WWW II Kap 22 p 324 M II cap 22 p 336 136

WWW II Kap 19 p 232 M II cap 19 p 243 137

WWW II Kap 19 p 233 M II cap 19 p 243-244 (grifos do autor) 138

WWW II Kap 19 p 242 M II cap 19 p 253

- 170 -

consideraccedilotildees de ordem psicoloacutegica que poreacutem natildeo detalharemos aqui139

Basta-nos ressaltar

que ele entende a Vontade como o prius e o intelecto como o posterius razatildeo pela qual

inclusive este uacuteltimo morreria com o corpo enquanto aquela natildeo140

Guumlnter Zoumlller tece interessantes consideraccedilotildees a esse respeito De acordo

com ele Schopenhauer natildeo apenas inverte as posiccedilotildees de vontade e intelecto no ldquoeurdquo mas

tambeacutem estabelece relaccedilotildees complexas e dinacircmicas entre ambos Para Zoumlller o filoacutesofo

discerne duas concepccedilotildees alternativas e complementares a saber uma em que a vontade eacute o

centro do ser humano e outra em que a individualidade eacute alcanccedilada pelo cultivo intelecto141

Na noccedilatildeo de individualidade haveria um ldquoeurdquo desenvolvido em que a centralidade do

conhecimento substituiria a da vontade e cuja autorrealizaccedilatildeo seria autonegaccedilatildeo Resultaria

entatildeo uma psicomaquia tornada ainda mais dramaacutetica na relaccedilatildeo do ldquoeurdquo com o mundo

Mais especificamente a cosmomaquia que envolve ldquoeurdquo e mundo se

converte em um duplo papel do ldquoeurdquo como inteligecircncia e como vontade

Como inteligecircncia o ldquoeurdquo eacute a inexpugnaacutevel e indispensaacutevel condiccedilatildeo formal

de objetos de todas as classes Como vontade o ldquoeurdquo eacute a manifestaccedilatildeo mais

articulada do esforccedilo cegamente dirigido que fundamenta toda a realidade142

A concepccedilatildeo schopenhaueriana acerca do intelecto tambeacutem foi inspirada

na fisiologia francesa especialmente em Bichat Com efeito Janet esclarece que Bichat

contrapocircs o que chamou de vida animal equivalente a vida intelectual agrave vida orgacircnica

comum ao vegetal e ao animal distinguindo em cada uma diversas funccedilotildees proacuteprias e

mutuamente opostas143

Assim escreve esse autor ldquoO que Bichat chamou oposiccedilatildeo da vida

animal e da vida orgacircnica diz Schopenhauer eacute o que eu chamo oposiccedilatildeo do intelecto e da

vontaderdquo144

Para Janet Bichat jaacute teria defendido a visatildeo schopenhaueriana a respeito da

separaccedilatildeo e anterioridade da Vontade em relaccedilatildeo ao intelecto isto eacute uma visatildeo fisioloacutegica da

mesma filosofia145

Com base no exposto observamos de um lado que o aperfeiccediloamento

do ceacuterebro acompanhou a escala do aprofundamento das necessidades como um meio de

conservaccedilatildeo de indiviacuteduos e espeacutecies De outro a complexidade crescente dos organismos

139

Cf WWW II Kap 19 p 232 et seq M II cap 19 p 243 et seq 140

WWW II Kap 21 p 315 M II cap 21 p 327 141

ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 19-20 142

Ibidem p 20 (traduccedilatildeo nossa) 143

JANET op cit p 50-51 144

Ibidem p 56 (traduccedilatildeo nossa) 145

Ibidem p 59

- 171 -

mais elevados aumentava e complicava as necessidades tornando mais difiacutecil sua satisfaccedilatildeo e

exigindo sentidos e inteligecircncia mais potentes146

Uma trajetoacuteria progressiva teve entatildeo de ser

percorrida e nela as faculdades cerebrais se aperfeiccediloaram e tornaram o mundo como

representaccedilatildeo cada vez mais perfeito intrincado complexo Schopenhauer resume assim essa

concepccedilatildeo

Quanto mais pois a organizaccedilatildeo se torna complicada na seacuterie ascendente

dos animais mais diversificadas se tornam tambeacutem suas necessidades bem

como mais variados e mais especificamente determinados os objetos que

servem agrave sua satisfaccedilatildeo com isso mais difiacuteceis e distantes os caminhos para

consegui-los os quais agora tecircm de ser todos conhecidos e encontrados na

mesma medida as representaccedilotildees dos animais tambeacutem tecircm de se tornar mais

multifacetadas exatas determinadas e coesas como tambeacutem sua atenccedilatildeo

tem de se tornar mais aacutevida mais detida e excitaacutevel e por consequecircncia seu

intelecto tem de ser mais desenvolvido e aperfeiccediloado147

Portanto o intelecto emerge das necessidades e exigecircncias da Vontade

com tendecircncia totalmente praacutetica para servi-la com a apreensatildeo dos motivos148

O aumento

da inteligecircncia acompanharia expressotildees cada vez mais veementes dela e a intensidade de

suas manifestaccedilotildees nas distintas espeacutecies se ligaria ao incremento fisioloacutegico da atividade do

ceacuterebro149

Em virtude disso os seres naturais seriam infinitamente diferentes nos niacuteveis de

consciecircncia mas seriam todos rigorosamente iguais no tocante agrave essecircncia Vontade E

completa Schopenhauer ldquo[] eacute o grau de consciecircncia o que determina o grau de existecircncia de

um serrdquo150

A perspectiva fisioloacutegica de investigaccedilatildeo tem assim uma importacircncia

fundamental na medida em que mostra o surgimento e aperfeiccediloamento do ceacuterebro no mundo

fenomecircnico como instrumento da Vontade Nesse sentido escreve o filoacutesofo

[] a visatildeo objetiva do intelecto aqui fornecida que conteacutem uma gecircnese

dele torna compreensiacutevel que determinado exclusivamente para objetivos

praacuteticos ele eacute mero meio dos motivos consequentemente cumpre sua

funccedilatildeo pela correta apresentaccedilatildeo destes e tambeacutem que se empreendemos

construir a coisa em si a partir do complexo e da legalidade dos fenocircmenos

que aqui se apresentam a noacutes objetivamente isso se daacute por risco e

responsabilidade proacuteprios151

Na nossa interpretaccedilatildeo as duas perspectivas de abordagem do intelecto

conduzem a duas visotildees sobre a origem o uso e a importacircncia do conhecimento De um lado

146

WWW II Kap 22 p 325 M II cap 22 p 337 147

WWW II Kap 18 p 237 M II cap 19 p 248 148

WWW II Kap 22 p 332 M II cap 22 p 344 149

WWW II Kap 22 p 326-327 M II cap 22 p 339 150

WWW II Kap 22 p 327-328 M II cap 22 p 340 151

WWW II Kap 22 p 334 M II cap 22 p 345-346 (grifos do autor)

- 172 -

enquanto condiccedilatildeo transcendental do mundo empiacuterico o intelecto produz um conhecimento

que passa ao largo do que as coisas satildeo em si mesmas tratando apenas de relaccedilotildees entre

objetos Ele natildeo adentra o interior do mundo a sua essecircncia que existe independentemente

dele mais ainda antes e depois dele152

Nessa perspectiva o conhecimento eacute anterior ao

mundo como representaccedilatildeo De outro lado o conhecimento pressupotildee a existecircncia do mundo

empiacuterico na medida em que eacute funccedilatildeo fisioloacutegica de um oacutergatildeo material que surge tardiamente

na natureza Nessa perspectiva eacute posterior e dependente de uma gradaccedilatildeo de objetivaccedilotildees que

o tornam necessaacuterio como aprimoramento dos meios de satisfaccedilatildeo da Vontade Nesse sentido

afirma Schopenhauer

[] o intelecto soacute nos eacute conhecido a partir da natureza animal portanto

como um princiacutepio completamente secundaacuterio e subordinado no mundo um

produto de origem tardia assim ele natildeo pode jamais ser ter sido a condiccedilatildeo

da existecircncia do mundo nem um mundus intellegibilis (mundo inteligiacutevel)

pode preceder um mundus sensibilis (mundo sensiacutevel) isso porque aquele

somente obteacutem sua mateacuteria deste Natildeo foi um intelecto que produziu a

natureza mas a natureza que produziu o intelecto153

35 ndash Discoacuterdia da Vontade consigo mesma e teleologia

A identidade da Vontade em tudo o que existe natildeo se traduz em

identidade das Ideias em que ela se objetiva Os graus em que os fenocircmenos se objetivam natildeo

podem ser reduzidos uns aos outros isto eacute natildeo se pode remeter umas agraves outras as forccedilas

naturais distintas entre si tampouco misturar espeacutecies anaacutelogas de animais as mais perfeitas

natildeo satildeo variedades surgidas por acaso das mais imperfeitas154

Na concepccedilatildeo de

Schopenhauer os graus mais proeminentes de objetivaccedilatildeo da Vontade satildeo Ideias superiores

surgidas como vencedoras na disputa que travam entre si por mateacuteria No reino inorgacircnico

por exemplo os niacuteveis inferiores de objetivaccedilatildeo disputariam a mateacuteria por meio da

152

WWW II Kap 22 p 334 M II cap 22 p 346 153

WN p 360 VN p 82-83 154

WWW I zweites Buch sect27 p 214-215 M I livro II sect27 p 208

- 173 -

causalidade e daiacute surgiria o fenocircmeno de uma Ideia superior que dominaria as preexistentes

Gardiner considera em relaccedilatildeo a esse ponto que haacute uma incompatibilidade entre a concepccedilatildeo

schopenhaueriana de que as Ideias ou forccedilas naturais estatildeo fora do tempo e do espaccedilo como

expusemos anteriormente e a luta entre elas aqui exposta Para esse autor

[] eacute difiacutecil natildeo considerar sua teoria das forccedilas concebidas como existentes

ldquofora do espaccedilo e do tempordquo mas ao mesmo tempo lutando competindo

em realidade entre si para encontrar expressatildeo no reino da manifestaccedilatildeo

espaccedilo-temporal como uma fantasia animista que reflete uma ideia

basicamente confusa das relaccedilotildees que existem entre as terminologias

cientiacuteficas e os esquemas conceituais por um lado e o pensamento e

linguagem cotidianos por outro []155

De qualquer modo Schopenhauer sustenta que desse embate surgem

Ideias novas e superiores agraves demais Num processo que ele denomina assimilaccedilatildeo dominante

(uumlberwaumlltigende Assimilation) a Ideia vitoriosa abrangeria em si todas as que foram

dominadas e expressaria o mesmo esforccedilo das inferiores poreacutem num grau mais vigoroso156

A ideia vencedora seria um anaacutelogo mais perfeito a objetivaccedilatildeo de uma espeacutecie nova

diferente e mais aprimorada Segundo o filoacutesofo esse processo se deu ldquo[] originalmente

por generatio aequivoca em seguida pela assimilaccedilatildeo do germe disponiacutevel seiva orgacircnica

planta animal homemrdquo157

Por se tratar da conquista de Ideias inferiores por outras

superiores os fenocircmenos do mundo orgacircnico natildeo poderatildeo simplesmente ser reduzidos aos do

mundo inorgacircnico isto eacute as forccedilas vitais agraves leis naturais universais Os seres orgacircnicos seriam

fenocircmenos de uma Ideia mais distinta e natildeo fruto de combinaccedilotildees ou interaccedilotildees fortuitas de

forccedilas quiacutemicas ou fiacutesicas Nas palavras de Schopenhauer ldquo[] pois a Vontade una que se

objetiva em todas as Ideias na medida em que se esforccedila pela mais alta objetivaccedilatildeo possiacutevel

abandona os niacuteveis inferiores do seu fenocircmeno depois de um conflito entre eles para

aparecer em um mais elevado e tanto mais poderosordquo158

Com relaccedilatildeo a esse aspecto surge uma das divergecircncias de

Schopenhauer em relaccedilatildeo a Lamarck Para o filoacutesofo ao julgar que a vida pudesse ser

explicada pelo calor e a eletricidade Lamarck estaria pressupondo que o organismo fosse

resultado de forccedilas fiacutesicas e quiacutemicas159

Se assim fosse os eventos fiacutesicos acidentais

explicariam tudo exaustivamente sem que se pudesse relacionar nada agrave essecircncia das coisas

155

GARDINER op cit p 204 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 156

WWW I zweites Buch sect27 p 216 M I livro II sect27 p 210 157

WWW I zweites Buch sect27 p 216 M I livro II sect27 p 209 158

WWW I zweites Buch sect27 p 216 M I livro II sect27 p 210 (grifos do autor) 159

WWW I zweites Buch sect27 p 211 M I livro II sect27 p 205

- 174 -

e diz Schopenhauer ldquo[] ao fim um caacutelculo solucionaria o enigma do mundordquo160

Poreacutem no

entender do filoacutesofo um processo como esse soacute poderia dar surgimento a seres sem

significaccedilatildeo aleatoriamente formados tal como as nuvens compotildeem figuras ou como se

formam as estalactites No fim das contas equivaleria a degradar a forma substantialis nome

que Aristoacuteteles teria dado a algo equivalente aos graus de objetivaccedilatildeo da Vontade em forma

accidentalis161

Segundo Schopenhauer os eventos fiacutesicos natildeo satildeo aleatoacuterios e indicam

uma ordenaccedilatildeo de procedimentos na qual as Ideias dominadas subsistem nas vencedoras em

funccedilatildeo de resistirem e lutarem por sua proacutepria exteriorizaccedilatildeo162

Como ele explica ldquo[] esse

processo soacute eacute compreensiacutevel pela identidade da Vontade que se manifesta em todas as Ideias e

pelo seu esforccedilo por uma objetivaccedilatildeo cada vez mais elevadardquo163

No caso do organismo

humano por exemplo a tendecircncia de um braccedilo levantado a baixar em funccedilatildeo da gravidade

evidenciaria a luta do fenocircmeno de uma Ideia mais elevada contra as forccedilas quiacutemicas e

fiacutesicas Essa mesma luta se poderia notar tambeacutem nos diversos pequenos incocircmodos que

sempre sente a parte vegetativa do nosso corpo e que seriam devidos agrave resistecircncia das Ideias

inferiores das leis fiacutesicas e quiacutemicas com relaccedilatildeo agrave Ideia superior do organismo164

Ao fim de

tudo poreacutem a vitoacuteria seria das forccedilas naturais universais ldquoPor issordquo escreve Schopenhauer

em geral o fardo da vida fiacutesica a necessidade do sono e por fim da morte

pela qual finalmente por circunstacircncias favoraacuteveis aquelas forccedilas naturais

subjugadas recuperam novamente a mateacuteria arrancada pelo organismo

cansado jaacute pela vitoacuteria reiterada chegando agrave apresentaccedilatildeo de sua essecircncia

sem impedimentos165

A discoacuterdia e a luta portanto satildeo onipresentes na natureza e fazem parte

da essecircncia da Vontade melhor dizendo a natureza consiste precisamente apenas nesses

conflitos166

No mundo animal a discoacuterdia eacute muito niacutetida na medida em que a sobrevivecircncia

de uns depende da supressatildeo de outros No homem por fim a rivalidade chegaria ao ponto

maacuteximo de clareza e terror ou como afirma o filoacutesofo ldquo[] a Vontade de viver se consome a

si mesma e em diferentes figuras eacute seu proacuteprio alimento ateacute chegar por fim no gecircnero

160

WWW I zweites Buch sect27 p 211 M I livro II sect27 p 205 161

WWW I zweites Buch sect27 p 212-213 M I livro II sect27 p 206 162

WWW I zweites Buch sect27 p 215 M I livro II sect27 p 208-209 163

WWW I zweites Buch sect27 p 215 M I livro II sect27 p 209 164

WWW I zweites Buch sect27 p 217 M I livro II sect27 p 210 165

WWW I zweites Buch sect27 p 217 M I livro II sect27 p 210 166

WWW I zweites Buch sect27 p 218 M I livro II sect27 p 211 O filoacutesofo apresenta bastantes e interessantes

exemplos dessa luta universal na natureza que no entanto natildeo temos espaccedilo para detalhar Cf WWW I zweites

Buch sect27 p 208-211 M I livro II sect27 p 211-214

- 175 -

humano que por dominar todos os outros vecirc a natureza como produto para seu uso []rdquo167

Na interpretaccedilatildeo de Cacciola essa divisatildeo interna da Vontade eacute responsaacutevel pelo caraacuteter de

imanecircncia dela pois representa um impulso interno aos fenocircmenos168

Segundo a autora uma

vez que a Vontade eacute una a discoacuterdia interna natildeo pode pertencer a ela enquanto coisa em si

pois isso remeteria a uma divisatildeo que natildeo poderia ser aceita Da perspectiva do fenocircmeno

poreacutem a Vontade eacute fragmentada em muacuteltiplos indiviacuteduos entre os quais os combates satildeo

constantes ldquoErdquo ela escreve

no seu caraacuteter de unicidade natildeo poderia manifestar-se diretamente em forccedilas

e indiviacuteduos que lutam Assim de uma metafiacutesica transcendente monista

passa-se para uma metafiacutesica imanente que adota o ponto de vista da

polaridade exigiacutevel para sua manifestaccedilatildeo ao niacutevel fenomecircnico169

Para Schopenhauer a unidade da Vontade natildeo eacute prejudicada por essa luta

intestina assim como natildeo o eacute em virtude da gradaccedilatildeo das Ideias ou da multidatildeo de indiviacuteduos

existentes Ele considera que a gradaccedilatildeo a multiplicidade e a luta referem-se apenas agrave

objetivaccedilatildeo que expressa mediatamente a essecircncia da Vontade na representaccedilatildeo170

Aleacutem

dessa perspectiva filoacutesofo afirma que a unidade da Vontade tambeacutem pode ser pensada por

outro acircngulo a saber pela dependecircncia que as Ideias superiores mantecircm com relaccedilatildeo agraves

inferiores Com efeito para que possam expressar a Vontade em graus elevados elas

precisam assimilar os graus mais elementares A Ideia de homem por exemplo a mais

aprimorada dentre todas natildeo seria suficiente para expressar sozinha a essecircncia da Vontade e

para que pudesse surgir teria precisado se seguir a uma sequecircncia de graus inferiores

representados por animais plantas e objetos inanimados171

Nas palavras do filoacutesofo ldquo[]

todos eles se complementam para a perfeita objetivaccedilatildeo da Vontade satildeo tatildeo pressupostos na

Ideia de homem quanto as flores das aacutervores pressupotildeem as folhas ramos tronco e raiz

formam uma piracircmide cujo aacutepice eacute o homemrdquo172

Desse modo para que a Vontade se objetive adequadamente suas

gradaccedilotildees devem apresentar um tipo de necessidade interior representada pelo uso que os

seres da natureza fazem uns dos outros em funccedilatildeo de sua preservaccedilatildeo Essa necessidade

interior se manifesta exteriormente diz Schopenhauer no fato de que

167

WWW I zweites Buch sect27 p 218 M I livro II sect27 p 211 168

CACCIOLA M L A questatildeo do finalismo na filosofia de Schopenhauer Discurso ndash Revista do

Departamento de Filosofia da USP nordm 20 1993 79-98 169

Ibidem p 82 170

WWW I zweites Buch sect28 p 215 M I livro II sect 28 p 218 171

WWW I zweites Buch sect28 p 216 M I livro II sect 28 p 218-219 172

WWW I zweites Buch sect28 p 216 M I livro II sect 28 p 219

- 176 -

[] o homem precisa dos animais para sua conservaccedilatildeo estes precisam uns

dos outros conforme seus graus em seguida tambeacutem das plantas que por sua

vez precisam do solo da aacutegua dos elementos quiacutemicos e sua mistura dos

planetas do sol da rotaccedilatildeo e da translaccedilatildeo em torno dele da inclinaccedilatildeo da

ecliacuteptica e assim por diante173

A unidade da Vontade esclareceria uma aparente teleologia da natureza

anunciada pela analogia e a semelhanccedila entre os seres do mundo orgacircnico Esclareceria

tambeacutem a harmonia e a conexatildeo entre todos os pontos e partes do mundo mesmo distantes no

tempo e no espaccedilo bem como a importacircncia da gradaccedilatildeo das objetivaccedilotildees Com efeito

segundo Schopenhauer embora a Vontade seja una os graus de objetivaccedilatildeo natildeo podem se

manifestar de um salto ou de uma soacute vez e eacute que isso explica a essecircncia e a finalidade da

natureza No entender do filoacutesofo

Isso tudo indica um princiacutepio independente da teleologia que entretanto eacute o

fundamento com o qual ela constroacutei ou o material dado previamente para

suas obras e eacute exatamente aquilo que Geoffroy de Saint-Hilaire apresentou

como ldquoelemento anatocircmicordquo Eacute a uniteacute de plan o protoacutetipo fundamental o

mundo animal mais elevado como se fosse o tom voluntariamente

escolhido com o qual aqui a natureza toca174

Tomado em si mesmo cada organismo possuiria uma finalidade interna

voltada para a conservaccedilatildeo do indiviacuteduo e sua espeacutecie expressa na coordenaccedilatildeo e accedilatildeo

integrada entre suas partes A interaccedilatildeo que se pode notar entre os reinos inorgacircnico e

orgacircnico evidenciaria tambeacutem uma finalidade nesse caso externa direcionada para a

conservaccedilatildeo da natureza orgacircnica como um todo ou da vida175

Como dissemos a aparente

teleologia da natureza eacute devida agrave unidade da Vontade que se manifesta completamente em

cada um dos seus fenocircmenos Isso significa que cada uma das Ideias eacute um ato singular

simples e distinto no qual a Vontade exprime sua essecircncia em um niacutevel maior ou menor

enquanto cada indiviacuteduo eacute um desses atos no tempo e no espaccedilo176

Assim a maior ou menor

perfeiccedilatildeo de cada Ideia determinaria o modo de sua objetivaccedilatildeo nos mais imperfeitos a Ideia

seria uma e a mesma em todos os fenocircmenos que a expressam enquanto nos mais perfeitos

seriam necessaacuterios diversos desenvolvimentos no tempo para completar a expressatildeo da sua

essecircncia

173

WWW I zweites Buch sect28 p 217 M I livro II sect 28 p 219 174

WWW II Kap 26 p 388 M II cap 26 p 399-400 (grifos do autor) 175

WWW I zweites Buch sect28 p 217 M I livro II sect28 p 220 176

WWW I zweites Buch sect28 p 218 M I livro II sect28 p 220

- 177 -

De acordo com isso uma forccedila universal da natureza se expressaria de

forma simples num ato uacutenico e idecircntico em todos os fenocircmenos Jaacute a planta natildeo manifestaria

a Ideia correspondente de uma soacute vez e de modo simples mas precisaria do desenvolvimento

sucessivo de seus oacutergatildeos no tempo Schopenhauer oferece uma imagem ilustrativa desse

processo por meio da repeticcedilatildeo que uma fibra inicial realiza de si mesma uma aacutervore se

forma como um complexo que manifesta uma Ideia una A Vontade seria verificada no todo e

em cada uma das partes como as folhas ou galhos de modo que cada um desses fenocircmenos

particulares da planta seria a exteriorizaccedilatildeo de um ldquoagregado sistemaacuteticordquo177

O animal

manifestaria sua Ideia pelo desenvolvimento da sua figura no tempo finalizando o processo

com as accedilotildees que expressariam seu caraacuteter empiacuterico o mesmo de sua espeacutecie Por fim o ser

humano objetivaria a Ideia que lhe corresponde por meio do seu caraacuteter empiacuterico

desenvolvido tambeacutem no tempo e em atos singulares ancorados no caraacuteter inteligiacutevel

ldquoAssimrdquo explica Schopenhauer ldquocomo a forma humana em geral corresponde agrave vontade

humana em geral a vontade individual modificada o caraacuteter do indiviacuteduo corresponde agrave

formaccedilatildeo corporal individual que eacute absolutamente e em todas as partes carateriacutestica e

expressivardquo178

Por conseguinte cada forccedila natural cada espeacutecie vegetal ou espeacutecie

animal expressa sua Ideia respectiva ou seja eacute fenocircmeno de um caraacuteter inteligiacutevel ou ato

indiviso da Vontade dado fora do tempo No caso da natureza inorgacircnica as exteriorizaccedilotildees

da Ideia satildeo sempre iguais e dadas de modo uacutenico e o caraacuteter empiacuterico coincide com o

inteligiacutevel Sem deixar de ser una a Ideia seria expressa no organismo por atos sucessivos

que constituiriam suas partes e o caraacuteter inteligiacutevel seria conhecido pela soma das

exteriorizaccedilotildees do caraacuteter empiacuterico Nesse caso a harmonia e encadeamento das partes do

corpo orgacircnico mostraratildeo a unidade da Ideia e ldquoPor issordquo escreve Schopenhauer

ldquoentendemos essas diferentes partes e funccedilotildees do organismo como reciprocamente meios e

fins umas das outras e o organismo como o fim de todas elasrdquo179

Natildeo obstante o filoacutesofo

ressalta que o desdobramento da Ideia em atos constitutivos do organismo assim como a

relaccedilatildeo entre as partes e funccedilotildees dele guiada pela causalidade natildeo podem ser referidos agrave

Vontade como coisa em si Esse seria apenas seu modo de manifestaccedilatildeo sua objetidade e

tanto a legalidade dos fenocircmenos inorgacircnicos quanto a finalidade dos orgacircnicos seriam

produtos do intelecto Conforme a explicaccedilatildeo de Cacciola

177

WWW I zweites Buch sect26 p 190 M I livro II sect26 p 194 178

WWW I zweites Buch sect20 p 162 M I livro II sect20 p 167 179

WWW I zweites Buch sect28 p 221 M I livro II sect 28 p 223

- 178 -

Eacute o caraacuteter inteligiacutevel como ato uacutenico e livre de manifestaccedilatildeo da Vontade

que permite compreender o acordo e a interaccedilatildeo das partes do organismo e a

harmonia da natureza Isto significa em resumo a aboliccedilatildeo da

temporalidade para que se exiba o caraacuteter aparente da regularidade e

intencionalidade do mundo dos fenocircmenos ligado a uma multiplicidade

tambeacutem aparente Excluindo-se a referecircncia ao tempo ressurgem sob a

aparecircncia a unidade o em si o caraacuteter inteligiacutevel A remissatildeo a uma

Vontade sem fim natildeo pode mesmo ser fundamento de uma finalidade em-si

das coisas do mundo mas apenas esclarece que elas parecem ser assim por

se referirem enquanto muacuteltiplas a uma unidade A teleologia natildeo passa de

uma harmonia da natureza que evoca a unidade da Vontade ou o ponto de

vista da Vontade una180

A finalidade externa isto eacute a harmonia entre os fenocircmenos da natureza

empiacuterica como um todo expressaria a unidade da Vontade do ponto de vista do conjunto do

mundo como representaccedilatildeo Nas palavras de Schopenhauer ela eacute a ldquo[] eacute objetidade da

Vontade una e indivisa a Ideia que se relaciona com todas as demais Ideias como a harmonia

com as vozes isoladas daiacute que aquela unidade da Vontade tenha de se mostrar tambeacutem na

concordacircncia de todos os fenocircmenos entre sirdquo181

Seria entatildeo uma adaptaccedilatildeo e adequaccedilatildeo

muacutetua entre todos os fenocircmenos um consensus naturae natildeo dado poreacutem de um ponto de

vista temporal uma vez que a Ideia estaacute fora do tempo182

Para compreender esse ponto

segundo o filoacutesofo o correto eacute pensar retrospectivamente observando o modo como cada

espeacutecie se adapta a condiccedilotildees preacutevias assim como essas circunstacircncias preacutevias adiantam os

seres vindouros No texto ldquoSchopenhauer lecteur de Lamarck le probleme des causes

finalesrdquo Goldschmidt afirma que a noccedilatildeo de adaptaccedilatildeo ao meio implicada no consensus

naturae aproxima o filoacutesofo das ideias de Lamarck183

Para esse autor Schopenhauer natildeo

citaria Lamarck nominalmente por discordar do modo como este explica a adaptaccedilatildeo a saber

confundindo o fenocircmeno com a coisa em si Por desconhecer a idealidade do tempo Lamarck

natildeo teria percebido que as transformaccedilotildees nas espeacutecies animais se deviam a algo que estaacute para

aleacutem de todas as relaccedilotildees temporais184

Em funccedilatildeo disso teria concebido a constituiccedilatildeo dos

corpos dos animais como algo formado pouco a pouco no decurso do tempo

Na sua argumentaccedilatildeo sobre a teleologia Schopenhauer natildeo daacute espaccedilo agrave

pressuposiccedilatildeo de que a formaccedilatildeo dos organismos seja guiada por um intelecto externo ao

mundo Como escreve Goldschmidt ldquoO finalismo segundo Schopenhauer eacute o mesmo que

180

CACCIOLA M L A questatildeo do finalismo na filosofia de Schopenhauer Discurso ndash Revista do

Departamento de Filosofia da USP nordm 20 1993 p 88 181

WWW I zweites Buch sect28 p 222 M I livro II sect 28 p 224 182

WWW I zweites Buch sect28 p 223 M I livro II sect 28 p 225 183

GOLDSCHMIDT V Eacutecrits Eacutetudes de Philosophie Moderne Tome II Paris VRIN 1984 p 215 184

Ibidem p 215-216

- 179 -

havia sido definido e aplicado por Aristoacuteteles isto eacute uma teleologia sem teologiardquo185

Cacciola explica de modo interessante como a argumentaccedilatildeo de Schopenhauer exclui a

teologia De acordo com ela a concepccedilatildeo do filoacutesofo acerca das causas finais ao contraacuterio do

que poderia parecer natildeo reforccedila a hipoacutetese de uma inteligecircncia ordenadora Na verdade a

convicccedilatildeo da inexistecircncia de qualquer finalidade intriacutenseca eacute que exigiria um desiacutegnio

exterior enquanto a admissatildeo de que cada organismo eacute sua proacutepria vontade legitimaria a

noccedilatildeo de finalidade sem se apelar para algo externo186

Na medida em que cada parte do

organismo existe para sua preservaccedilatildeo diz ela ldquoTudo nele tem de ser conforme a um fim O

que garante a autonomia do organismo em relaccedilatildeo a qualquer interferecircncia externa tanto de

um entendimento quanto de uma vontade eacute o rigoroso finalismo natildeo-antropomoacuterfico de sua

constituiccedilatildeordquo187

Dessa forma a anterioridade no tempo seria relativa aos fenocircmenos das

Ideias mas natildeo a elas mesmas Natildeo se pode dizer que haja Ideias anteriores ou posteriores

pois os fenocircmenos mais elevados (Ideias novas) adaptam-se ao seu meio (Ideias preacutevias)

tanto quanto este se adapta a eles e todos possuem entatildeo os mesmos direitos188

Para

Schopenhauer Lamarck erra ao introduzir um elemento temporal na ideia do consensus

naturae a saber a concepccedilatildeo de que os oacutergatildeos animais satildeo formados paulatinamente no

decurso do tempo Se assim fosse diz o filoacutesofo na busca de adaptaccedilatildeo entre o ambiente e

seus proacuteprios instrumentos e atributos todas as espeacutecies teriam de estar extintas189

No seu

modo de ver uma interpretaccedilatildeo correta tem de considerar que o tempo se refere apenas ao

fenocircmeno ou seja a adaptaccedilatildeo das espeacutecies tem de ser colocada na conta da objetivaccedilatildeo da

Vontade natildeo dela em si mesma Assim ao contraacuterio do que pensava Lamarck os oacutergatildeos ou

instrumentos das espeacutecies animais natildeo seriam utilizados em funccedilatildeo de sua existecircncia preacutevia

mas a vontade de viver de determinado modo eacute que levaria agrave constituiccedilatildeo de oacutergatildeos e

instrumentos especiacuteficos Conforme Goldschmindt Schopenhauer avaliou que Lamarck natildeo

teria podido supor que a vontade do animal era a coisa em si e por isso o inseriu no grupo dos

que julgavam o intelecto como precedente ldquoNesse casordquo afirma Goldschmidt

[] o entendimento precederia a vontade eacute porque teria compreendido o uso

que poderia fazer de sua organizaccedilatildeo que o animal teria escolhido usaacute-lo

185

Ibidem p 219 186

CACCIOLA M L A questatildeo do finalismo na filosofia de Schopenhauer Discurso ndash Revista do

Departamento de Filosofia da USP nordm 20 1993 p 90 187

Ibidem loc cit 188

WWW I zweites Buch sect28 p 224 M I livro II sect28 p 226 189

WN p 365 VN p 88

- 180 -

Mas de fato sabemos que a vontade eacute que eacute primeira Deve-se entatildeo

preferir o outro termo da alternativa eacute porque o animal desejaria adotar tal

modo de vida que sua organizaccedilatildeo eacute adaptada a ele []190

Portanto assim como os animais agem por instinto sem conhecimento

algum mas parecem estar seguindo um conceito tambeacutem a natureza como um todo o faz isto

eacute aparenta seguir uma finalidade que na verdade natildeo segue

Em siacutentese na concepccedilatildeo de Schopenhauer a teleologia da natureza natildeo

foi produzida por um intelecto apenas evidencia ldquo[] o fenocircmeno da unidade de uma

Vontade que concorda consigo mesmardquo191

No capiacutetulo 26 de O MundoII ele argumenta

que embora o ser humano soacute possa criar algo que possua finalidade utilizando um conceito de

fim isso natildeo autoriza a concluir que o mesmo ocorra na natureza192

Nas palavras dele ldquoEla

realiza sem ponderaccedilatildeo e sem conceito de fim o que parece tatildeo intencional e tatildeo ponderado

porque o faz sem representaccedilatildeo cuja origem eacute totalmente secundaacuteriardquo193

Sobre esse ponto

Cacciola explica que Schopenhauer assimilou a liccedilatildeo kantiana segundo a qual o intelecto soacute

consegue compreender a natureza dos processos orgacircnicos comparando-os com as produccedilotildees

humanas que levam em conta uma finalidade preacutevia O conceito de causaccedilatildeo linear e

mecacircnica eacute inuacutetil no esclarecimento da natureza orgacircnica e ela afirma ldquoEacute diante disso que a

analogia com as obras humanas torna-se eficaz para servir de fio condutor para o estudo dos

seres organizados natildeo podendo no entanto explicar objetivamente a origem e a existecircncia de

tais seres jaacute que a necessidade de compreendecirc-los eacute somente subjetivardquo194

Como resultado a ligaccedilatildeo dos seres naturais com o conceito de fim natildeo

seria procedente da proacutepria coisa e sim realizada pelo intelecto que acrescentaria os fins aos

seres orgacircnicos do mesmo modo como cria a regularidade das figuras geomeacutetricas Entatildeo diz

Schopenhauer ldquo[] em certo sentido admira-se com sua proacutepria obrardquo195

Por essas razotildees

do mesmo modo como as causas eficientes se mostram um bom fio condutor para o estudo da

natureza inorgacircnica a finalidade tambeacutem se configura um bom fio condutor para a

investigaccedilatildeo da natureza orgacircnica Natildeo obstante natildeo se pode por isso dizer que a finalidade

seja constitutiva dos seres naturais nem que explique a existecircncia deles Ela pode ser tomada

190

GOLDSCHMIDT V Eacutecrits Eacutetudes de Philosophie Moderne Tome II Paris VRIN 1984 p 217 (traduccedilatildeo

nossa) 191

WWW I zweites Buch sect28 p 226 M I livro II sect28 p 227 (grifos do autor) 192

WWW II Kap 26 p 383-384 M II cap 26 p 395-396 193

WWW II Kap 26 p 384 M II cap 26 p 396 194

CACCIOLA M L A questatildeo do finalismo na filosofia de Schopenhauer Discurso ndash Revista do

Departamento de Filosofia da USP nordm 20 1993 p 83 195

WWW II Kap 26 p 385 M II cap 26 p 396

- 181 -

apenas como regulativa pois embora os fins e as causas sejam supostos pelo intelecto como

necessaacuterios natildeo podem ser atribuiacutedos agraves coisas em si mesmas

Na interpretaccedilatildeo de Victor Goldschmidt quando a noccedilatildeo de finalidade eacute

indicada por Schopenhauer em O MundoII como fio condutor das ciecircncias do organismo

adquire com isso o estatuto de um princiacutepio constitutivo e natildeo meramente regulador196

Caso

natildeo fosse assim os fenocircmenos orgacircnicos teriam de ser reduzidos agraves leis fiacutesicas baacutesicas algo

que o filoacutesofo natildeo aprovaria Como esse autor escreve

A finalidade eacute o uacutenico conceito adequado que nos permite compreender o

mundo orgacircnico Sem ela isto eacute se se reduzisse a ciecircncia natural agrave simples

causalidade o mundo orgacircnico natildeo apenas nos permaneceria impenetraacutevel

como tambeacutem seria entregue agraves explicaccedilotildees reducionistas e reconduzido agraves

forccedilas gerais que a fiacutesica toma em consideraccedilatildeo []197

Natildeo obstante Schopenhauer argumentaria cuidadosamente acerca da

finalidade para que natildeo fosse tomada como a escolha intencional de um alvo Para

Goldschmidt o filoacutesofo retorna ao ensinamento de Aristoacuteteles que sustenta a ideia de causa

final sem remetecirc-la a uma providecircncia divina e afasta qualquer antropomorfismo da sua

noccedilatildeo de finalidade com a identificaccedilatildeo de fins e meios na atividade da natureza198

Na visatildeo de Schopenhauer os objetos da arte humana possuem realmente

uma analogia com as criaccedilotildees da natureza mas a analogia natildeo seria exata No caso da arte a

vontade para a realizaccedilatildeo da obra eacute distinta da proacutepria obra e o material e a representaccedilatildeo satildeo

requeridos anteriormente agrave existecircncia dela199

Portanto a finalidade tem de preceder agrave

produccedilatildeo e orientaacute-la Nos produtos da natureza ao contraacuterio natildeo existiria nem seria

necessaacuteria nenhuma representaccedilatildeo tampouco haveria separaccedilatildeo entre a vontade a obra e a

mateacuteria com que eacute feita Posto que o processo de criaccedilatildeo na arte difere do procedimento da

natureza natildeo pode servir para explicaacute-la ldquoPoisrdquo escreve o filoacutesofo

aqui o mestre a obra e o material satildeo um e o mesmo Por isso todo

organismo eacute uma obra-prima ostensivamente perfeita Aqui a Vontade natildeo

teve primeiro a intenccedilatildeo conheceu depois a finalidade entatildeo adaptou os

meios a ela e venceu o material mas seu querer eacute imediatamente tambeacutem a

finalidade e a consumaccedilatildeo portanto ela natildeo precisou antes de nenhum meio

estranho para dominar Aqui foram um e o mesmo o querer o fazer e o

resultar Por conseguinte o organismo se apresenta como uma maravilha e

196

GOLDSCHMIDT V Eacutecrits Eacutetudes de Philosophie Moderne Tome II Paris VRIN 1984 p 214 197

Ibidem p 214-215 (traduccedilatildeo nossa) 198

Ibidem p 216 199

WN p 378 VN p 102

- 182 -

natildeo se pode comparaacute-lo com nenhuma obra humana projetada pela lacircmpada

do conhecimento200

36 ndash Fundamentos do mundo como Vontade

Assim como a teoria do conhecimento a metafiacutesica schopenhaueriana

nasce com diversos requisitos a cumprir O filoacutesofo estava convencido de que a coisa em si

natildeo deveria ser descartada do seu sistema mas a justificaccedilatildeo da necessidade dela sua

deduccedilatildeo e sua conceituaccedilatildeo natildeo poderiam distanciaacute-lo dos fundamentos do idealismo O

principal aspecto deste uacuteltimo a ser preservado segundo pensamos eacute a interdiccedilatildeo do acesso agrave

transcendecircncia que parece ter orientado toda a estruturaccedilatildeo da metafiacutesica da Vontade O

estabelecimento de um ponto de apoio firme para os fenocircmenos era imprescindiacutevel para

Schopenhauer assim como foi para Jacobi mas teria de ser encontrado sem se recorrer a

elementos transcendentes E na nossa interpretaccedilatildeo a uacutenica maneira de satisfazer essa

exigecircncia era pelo estabelecimento de um lastro metafiacutesico imanente ao mundo como

representaccedilatildeo acessando-se a coisa em si com um movimento perpendicular para dentro

Esse movimento perpendicular por seu turno teve de ser

milimetricamente pensado porque tambeacutem teria de atender a quesitos muito exigentes Por

um lado teria de escapar ao ciacuterculo do conhecimento meramente empiacuterico caso natildeo quisesse

ser apenas o produto de mais um ldquoesquilo na rodardquo Por outro natildeo poderia apelar para

entidades espirituais miacutesticas ou de qualquer esfera separada do mundo concreto da

experiecircncia Por isso Schopenhauer tentou formular um modo especial de exame da

representaccedilatildeo que sem ir aleacutem dela permitisse interpretar a realidade conhecer diretamente

seu nuacutecleo e desvendar seus hieroacuteglifos Assim para compreender o centro das coisas aquilo

sempre que resta desconhecido pelo estudo empiacuterico do mundo ele propotildee uma investigaccedilatildeo

que parte do interior de noacutes mesmos e demostra nossa identidade com o restante do mundo

200

WN p 377 VN p 101

- 183 -

isto eacute do microcosmo com o macrocosmo O mundo como Vontade eacute entatildeo deduzido do

querer individual como de seu alicerce embora permaneccedila ambiacuteguo o conhecimento que cada

um possui dele assim como a relaccedilatildeo desse conhecimento com a representaccedilatildeo De um lado

em algumas obras schopenhauerianas o conhecimento do querer individual aparece como

obscuro em outras como o mais claro dentre todos De outro eacute difiacutecil precisar o estatuto

desse conhecimento que deve acessar a coisa em si mas natildeo pode fazecirc-lo diretamente posto

que preserva a forma a priori do tempo

A identificaccedilatildeo do corpo com a vontade individual e o argumento da

analogia satildeo os passos que Schopenhauer daacute para demonstrar a Vontade como a base de todo

o existente Segundo pensamos o conceito de objetidade foi o que permitiu que sem o

recurso agrave transcendecircncia a Vontade fosse identificada com o nuacutecleo metafisico do indiviacuteduo

Na medida em que corpo e coisa em si satildeo descritos como um e o mesmo natildeo resta espaccedilo

para causaccedilatildeo de nenhuma espeacutecie isto eacute nem para a deduccedilatildeo de uma inteligecircncia criadora

externa ao mundo nem para a busca de uma relaccedilatildeo causal entre vontade individual e corpo

individual O argumento a analogia por sua vez permitiu a ampliaccedilatildeo do escopo daquela

demonstraccedilatildeo e apontou para a identidade de todos os objetos do universo empiacuterico Entatildeo

vontade individual e corpo individual revelaram-se o mesmo e o mundo se identificou com a

Vontade que se manifesta inteira em cada representaccedilatildeo e no conjunto da experiecircncia

A unidade da Vontade e a identidade do mundo como um todo coeso

tornam necessaacuterio detalhar a origem dos infinitos indiviacuteduos e objetos No entanto o

desmembramento do qual surgem os muacuteltiplos fenocircmenos natildeo pode atingir a Vontade pois a

coisa em si natildeo participa das formas da representaccedilatildeo e permanece una e indivisa O problema

se torna entatildeo explicar o modo como o tempo pode introduzir modificaccedilotildees nas objetivaccedilotildees

sem anular unidade da coisa em si Nesse sentido as Ideias foram definidas como as formas

eternas e imutaacuteveis das coisas responsaacuteveis pela intermediaccedilatildeo entre e objetos singulares e a

Vontade una O filoacutesofo defende entatildeo que cada Ideia eacute um grau de objetivaccedilatildeo da Vontade

um ato uacutenico desta que contudo tem seu desenvolvimento no tempo Os conceitos de caraacuteter

inteligiacutevel e caraacuteter empiacuterico foram imprescindiacuteveis para vincular o tempo somente ao lado do

mundo correspondente agrave representaccedilatildeo

Por todas essas razotildees a metafiacutesica schopenhaueriana natildeo poderia se

deter num idealismo radical Segundo pensamos eacute parte fundamental dela uma relaccedilatildeo

especial com o empiacuterico uma vez que seu ente metafiacutesico proacuteprio eacute imanente ao mundo ou

- 184 -

seja natildeo eacute um espiacuterito criador apartado e transcendente nem um sujeito transcendental

absoluto que o gerasse a partir de si mesmo A metafiacutesica tambeacutem natildeo pode ser baseada em

conceitos e abstraccedilotildees cujos resultados satildeo paacutelidos reflexos de intuiccedilotildees e Schopenhauer

insiste que natildeo se deve deslizar acima da experiecircncia ou partir de teologias Para ele a

metafiacutesica deve estar estreitamente ligada ao mundo de modo que a fisiologia e o

conhecimento empiacuterico em geral tecircm de dar sustentaccedilatildeo a ela como as realidades a que no

fim das contas estaacute relacionada Sua filosofia natildeo gostaria de pairar sobre o mundo natildeo

pretende ser um devaneio criado por uma cabeccedila de anjo alada

Por conseguinte o ponto de vista objetivo de consideraccedilatildeo eacute tatildeo

importante quanto o subjetivo os hieroacuteglifos a serem decifrados natildeo satildeo outros senatildeo aqueles

que o mundo daacute a conhecer empiricamente O nascimento e desenvolvimento de plantas e

animais a atuaccedilatildeo das leis naturais as condutas humanas nos mais variados acircmbitos da vida

tudo deve ser explicado pela metafiacutesica da Vontade O lado externo desta que natildeo eacute

causado mas idecircntico ao interno eacute seu caraacuteter de objeto sua objetidade cuja compreensatildeo e

descriccedilatildeo satildeo realizadas pelas ciecircncias naturais As caracteriacutesticas fiacutesicas e quiacutemicas dos

corpos orgacircnicos dos inorgacircnicos e do mundo natural como um todo satildeo exteriorizaccedilotildees da

Vontade e conhecer o corpo eacute conhececirc-la Daiacute que para o filoacutesofo haja elementos no acircmbito

fenomecircnico que sempre resistem a qualquer explicaccedilatildeo e que por isso mesmo indicam a coisa

em si na representaccedilatildeo Essa eacute inclusive a diferenccedila entre os conhecimentos empiacutericos e os

puros os quais podem ser explicados ateacute o limite enquanto aqueles natildeo De fato conteuacutedos

ligados apenas ao princiacutepio de razatildeo estatildeo a priori no intelecto podem ser desdobrados sem

quaisquer obstaacuteculos enquanto os conteuacutedos empiacutericos a posteriori natildeo satildeo completamente

cognosciacuteveis pois remetem a algo que natildeo participa das formas da representaccedilatildeo

Ao que nos parece as questotildees relativas agrave teleologia e agrave discoacuterdia

presentes na natureza se tornam complicadas porque tecircm de levar em conta esse aspecto

empiacuterico da filosofia schopenhaueriana As funccedilotildees e a materialidade de todas as partes dos

seres orgacircnicos adaptam-se e moldam-se mutuamente assim como o universo empiacuterico

tomado em seu conjunto adapta e conforma todos os seus objetos Trata-se de algo que

nenhuma consideraccedilatildeo objetiva do mundo poderia negligenciar Finalidade interna e

finalidade externa satildeo entatildeo reconhecidas por Schopenhauer na natureza mas dificilmente

podem ser acomodadas agrave parte transcendental de sua filosofia Eacute certo que ele afirma ser o

conceito de finalidade um mero fio condutor para a investigaccedilatildeo da natureza natildeo constitutivo

- 185 -

dela Assim como a regularidade das figuras geomeacutetricas a finalidade seria uma criaccedilatildeo do

intelecto Poreacutem se eacute inequiacutevoco que as caracteriacutesticas das figuras geomeacutetricas adveacutem do

princiacutepio de razatildeo do ser caberia perguntar de onde proveacutem a noccedilatildeo de finalidade

A discoacuterdia intriacutenseca agrave natureza tambeacutem natildeo pode ser ignorada por uma

filosofia que valoriza a investigaccedilatildeo empiacuterica Os fenocircmenos se alimentam dos proacuteprios

fenocircmenos dividem os mesmos espaccedilos e os mesmos tempos e o pessimismo

schopenhaueriano enfatiza que todos os indiviacuteduos satildeo simultaneamente algozes e viacutetimas

uns dos outros No entanto como explicar o porquecirc de a Vontade lutar contra si mesma de

querendo ferozmente se afirmar mortificar-se e aniquilar-se A saiacuteda eacute entatildeo acrescentar um

predicado que a joga contra si mesma a saber a autocontradiccedilatildeo Com isso entretanto

surgem outras questotildees como a de conciliar a autocontradiccedilatildeo com a unidade da Vontade

pela qual ela estaacute inteira e indivisa em cada ser animado e cada objeto inanimado O problema

aqui eacute que na medida em que todas e cada um das coisas existentes satildeo exteriorizaccedilotildees da

Vontade uacutenica a luta entre seus fenocircmenos eacute luta dela consigo mesma

Por fim na nossa interpretaccedilatildeo a importacircncia crucial dada por

Schopenhauer ao lado empiacuterico de sua filosofia daacute origem a impasses cada vez que tem de

ser aproximado do lado metafiacutesico O ideal e o real estatildeo em oposiccedilatildeo mas devem ser

conectados no tratamento dos problemas filosoacuteficos que exigem explicaccedilatildeo tanto

transcendental quanto metafiacutesica Esse eacute o caso por exemplo da antinomia da faculdade de

conhecimento e das outras trecircs questotildees que o filoacutesofo lista O intelecto eacute tanto fiacutesico quanto

metafiacutesico e as caracteriacutesticas que tem em uma perspectiva satildeo excluiacutedas ou deslocadas na

outra Enquanto fiacutesico sua origem deve estar ligada ao princiacutepio de razatildeo suficiente e

enquanto metafiacutesico sua origem deve estar ligada agrave Vontade De um lado tem um nascimento

no tempo no outro eacute atemporal de um lado ocupa lugar no espaccedilo de outro eacute inextenso de

um lado eacute material de outro imaterial A dificuldade eacute que o intelecto eacute tudo isso

simultaneamente e faz parte de um uacutenico mundo Cada vez que se investiga qualquer questatildeo

relacionada a ele sua origem por exemplo obtecircm-se respostas incompatiacuteveis A consideraccedilatildeo

de que satildeo dois lados dois pontos de vista diferentes de observaccedilatildeo segundo pensamos natildeo

atenua a situaccedilatildeo A natildeo ser que queiramos sustentar uma espeacutecie de esquizofrenia na qual

Vontade e representaccedilatildeo sejam eternamente paralelas

A questatildeo relativa a mecanicismo e finalismo segundo pensamos revela

uma estrutura semelhante Do ponto de vista metafiacutesico natildeo podemos falar em finalidade

- 186 -

pois a Vontade natildeo possui fim algum mas da perspectiva empiacuterica eacute difiacutecil sustentar que as

causas na natureza satildeo apenas de tipo mecacircnico O problema da liberdade por sua vez coloca

em contraste a determinaccedilatildeo inflexiacutevel dos eventos empiacutericos pelo princiacutepio de razatildeo entre

eles as accedilotildees humanas e a liberdade absoluta da Vontade metafiacutesica que irrompe na vontade

individual De modo semelhante a aparecircncia de intencionalidade no destino que se nota

considerando a vida concreta de um indiviacuteduo diverge do caraacuteter natildeo racional e da ausecircncia

de objetivos que foram sustentados no lado metafiacutesico da filosofia

- 187 -

Capiacutetulo 4 ndash Interpretaccedilotildees paradigmaacuteticas e anaacutelise pessoal

41 ndash Recepccedilatildeo da filosofia schopenhaueriana

Em 1965 Arthur Huumlbscher proferiu duas palestras sobre a posiccedilatildeo de

Schopenhauer no contexto da filosofia criacutetica uma na Sociedade Real Norueguesa de

Ciecircncias e outra na Universidade de Frankfurt Em 1966 as duas palestras foram reunidas e

desenvolvidas no texto ldquoSchopenhauer in der philosophischen Kritikrdquo publicado no Jahrbuch

der Schopenhauer-Gesellschaft daquele ano1 Nesse texto Huumlbscher aborda a trajetoacuteria do

pensamento schopenhaueriano desde o iniacutecio com as avaliaccedilotildees que Da quaacutedrupla raiz

recebeu jaacute na sua primeira ediccedilatildeo Segundo o relato desse autor as ideias de Schopenhauer

quase sempre foram mal compreendidas ou mal interpretadas e muitas vezes recebidas com

desdeacutem2 Todas as obras e todos os campos da sua filosofia receberam criacuteticas e avaliaccedilotildees

nas quais o tema da contradiccedilatildeo eacute constante Huumlbscher avanccedila ateacute seus contemporacircneos

apontando tambeacutem as influecircncias que o filoacutesofo exerceu sobre grandes pensadores

posteriores

Entre os primeiros leitores de Schopenhauer estiveram Schulze Georg

Michael Klein e um escritor anocircnimo os quais pouco depois da publicaccedilatildeo de Da quaacutedrupla

raiz ainda em 1814 teriam se debruccedilado sobre a dissertaccedilatildeo de modo criacutetico3 Em 1820

Johann F Herbart teria feito o mesmo baseando-se na primeira ediccedilatildeo da obra capital do

filoacutesofo Antes de Herbart em 1819 Friedrich Ast tambeacutem teria analisado O Mundo

identificando-se como A bem como um autor anocircnimo tendo ambos concordado

parcialmente com a obra schopenhaueriana Diversos outros se somaram a esses como J G

Raumltze e Friedrich Eduard Beneke ambos em 1820 Whilhelm Traugott Krug em 1821 Carl

1 HUumlBSCHER A Schopenhauer in der philosophischen Kritik In Schopenhauer-Jahrbuch 47 1966 p 29-71

2 Ibidem p 30

3 Ibidem p 33-35

- 188 -

Fortlage em 1845 Adolph Cornill em 1856 e Friedrich Ueberweg em 18664 De acordo

com Huumlbscher houve muita incompreensatildeo sobre o significado da Vontade frequentemente

associado ao conhecimento que Schopenhauer teria adquirido do pensamento de Jakob

Boumlhme em suas leituras dos textos de Schelling Aleacutem disso um traccedilo caracteriacutestico

avaliaccedilotildees da filosofia schopenhaueriana teria sido a aceitaccedilatildeo parcial da sua esteacutetica e a

rejeiccedilatildeo da sua eacutetica como um todo5

A partir de 1830 iniciou-se um movimento de resposta agraves criacuteticas feitas a

Schopenhauer do qual participaram principalmente Frauenstaumldt Friedrich Dorguth C G

Baumlhr e Julius Bahnsen Naquele momento o tema das contradiccedilotildees era o mais importante e

conforme Huumlbscher ainda era discutido em sua proacutepria eacutepoca6 Huumlbscher descreveu trecircs das

criacuteticas mais destacadas relacionadas a contradiccedilotildees entre as quais estaacute em primeiro lugar o

tema deste trabalho que foi apontado por Adolf Cornill Rudolf Seydel Kuno Fischer

Johannes Volkelt Ernst Cassirer e outros Em segundo lugar estaria uma questatildeo intitulada

ciacuterculo do fenomenalismo apontado por Karl Ludwig Michelet Albert Thilo Eduard von

Hartmann e outros Nesse ciacuterculo o problema estaria na possibilidade de conhecimento da

Vontade na autoconsciecircncia que natildeo pode ser conciliada com a descriccedilatildeo dela como coisa em

si Para os defensores dessa posiccedilatildeo se a Vontade eacute a coisa em si natildeo pode se tornar objeto

de conhecimento e inversamente se pode ser conhecida natildeo eacute a coisa em si7 Em uacuteltimo

lugar Huumlbscher menciona o problema que considera o mais preocupante relativo agrave

autocontradiccedilatildeo da Vontade na sua negaccedilatildeo eacutetica A apariccedilatildeo da liberdade metafiacutesica da

Vontade no seu fenocircmeno que no entanto continua existindo na seacuterie temporal teria sido

apontada por Herbart e considerada insoluacutevel ateacute mesmo por seguidores de Schopenhauer

como Frauenstaumldt Becker e Adam von Doss8 Aliada a esse ponto estaria ainda a dificuldade

de justificar por que a supressatildeo de um indiviacuteduo natildeo significa a supressatildeo do mundo uma

vez que a Vontade eacute una e indivisiacutevel9

Os escritos de Frauenstaumldt permitem acompanhar mais de perto esse

contexto de avaliaccedilotildees do pensamento de Schopenhauer Ele publicou pela primeira vez as

obras completas do filoacutesofo escreveu introduccedilotildees artigos cartas e memoacuterias nos quais

4 Ibidem p 35-40

5 Ibidem p 40-41

6 Ibidem p 48

7 Ibidem p 50

8 Ibidem p 50-51

9 Ibidem p 51

- 189 -

apresenta seu entendimento da filosofia schopenhaueriana bem como responde a diversas

criacuteticas feitas a ela por contemporacircneos Abordaremos brevemente as avaliaccedilotildees discutidas

por Frauenstaumldt para situarmos as objeccedilotildees feitas especificamente agrave antinomia da faculdade

de conhecimento que seratildeo analisadas no proacuteximo item

Em 1854 Frauenstaumldt publicou suas Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche

Philosophie10

nas quais expotildee e explica os temas centrais da filosofia schopenhaueriana e

especialmente nas cartas 27 e 28 argumenta contra alguns de seus criacuteticos Na carta 27 ele

menciona um texto publicado em 1852 na Zeitschrift uumlber Philosophie und philosophische

Kritik no qual Johann E Erdmann aponta uma antiacutetese entre as filosofias de Schopenhauer e

de Herbart11

Para Frauenstaumldt essa avaliaccedilatildeo eacute errocircnea pois embora em sentidos opostos

ambos seriam kantianos e teriam em comum tambeacutem as criacuteticas a Fichte e a Schelling

Frauenstaumldt menciona ainda o posfaacutecio de Immanuel Hermann von Fichte agravequele texto no

qual este afirma que o sistema schopenhaueriano eacute fraco e vulneraacutevel um idealismo unilateral

que teria sido refutado por Herbart12

No entendimento de Frauenstaumldt a questatildeo remete ao

modo como idealismo e realismo se relacionam em Schopenhauer modo esse que deveria ser

entendido dinamicamente e natildeo como um idealismo puro e simples tampouco como um

realismo nu e cru13

A filosofia schopenhaueriana seria simultaneamente idealista e realista14

A carta 28 expotildee trecircs objeccedilotildees que foram feitas a Schopenhauer nessa

eacutepoca15

Frauenstaumldt responde ao seu interlocutor que supostamente apontou contradiccedilotildees e

afirmaccedilotildees natildeo fundamentadas na obra do filoacutesofo apoiado nas posiccedilotildees que o professor da

Universidade de Jena Carl Fortlage havia defendido na obra Genetische Geschichte der

Philosophie seit Kant16

publicada em 1852 A primeira e a segunda contradiccedilotildees

apresentadas por Frauenstaumldt podem ser remetidas ao segundo caso apontado por Huumlbscher

que indicamos acima Em primeiro lugar haveria uma contradiccedilatildeo fundamental entre a

indestrutibilidade da Vontade como coisa em si e a possibilidade de autossupressatildeo metafiacutesica

10

FRAUENSTAumlDT J Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1854 11

ERDMANN J E Schopenhauer und Herbart eine Antithese Zeitschrift fuumlr Philosophie und philosophische

Kritik Herausgegeben von Dr I H Fichte Dr Hermann Ulrici und J U Wirth Neue Folge Band 21 Halle

1852 p 209-225 12

FICHTE I H Ein Wort uumlber die Zukunft der Philosophie Als Nachschrift zum vorigen Auffaβe Zeitschrift

fuumlr Philosophie und philosophische Kritik Herausgegeben von Dr I H Fichte Dr Hermann Ulrici und J U

Wirth Neue Folge Band 21 Halle 1852 p 226-240 13

A concepccedilatildeo de Frauenstaumldt seraacute abordada no item 43 14

FRAUENSTAumlDT J Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1854 p 318-319 15

Ibidem p 332-344 16

FORTLAGE C Genetische Geschichte der Philosophie seit Kant Leipzig Brockhaus 1852

- 190 -

dela resultando no fim do mundo como um todo17

O ponto central dessa criacutetica eacute que a

negaccedilatildeo da Vontade introduziria um dilema impossiacutevel de solucionar se ela for a coisa em si

natildeo poderaacute ser negada se puder ser negada natildeo seraacute a coisa em si mas representaccedilatildeo18

Em

segundo lugar haveria uma contradiccedilatildeo na negaccedilatildeo que embora levada a cabo apenas

individualmente deveria resultar na superaccedilatildeo da Vontade metafisicamente considerada e

natildeo apenas do indiviacuteduo singular que a realiza19

Uma vez que a Vontade eacute una e indivisiacutevel

que o que se manifesta no mundo inorgacircnico eacute o mesmo que se manifesta em noacutes como coisa

em si e que a multiplicidade dos objetos se deve ao princiacutepio de individuaccedilatildeo que eacute um

componente subjetivo entatildeo a supressatildeo de uma vontade individual deveria significar a

supressatildeo do todo Assim ao citar seu interlocutor Frauenstaumldt escreve ldquoPortanto

consequentemente um homem que primeiro a realizasse teria de estar apto a reconduzir tudo

ao nadardquo20

A terceira objeccedilatildeo referida por Frauenstaumldt aborda a liberdade da

Vontade como coisa em si em sua relaccedilatildeo com a lei de motivaccedilatildeo Essa questatildeo de acordo

com o que ele afirma na carta foi antecipada e discutida pelo proacuteprio Schopenhauer21

O

nuacutecleo dessa criacutetica estaacute em que na medida em que o caraacuteter humano natildeo se diferencia das

forccedilas naturais teria de ser determinado e essencialmente imutaacutevel como elas devendo

produzir seus efeitos com necessidade O interlocutor de Frauenstaumldt argumenta que o caraacuteter

natildeo pode ser indeterminado pois assim como do nada natildeo pode surgir algo de uma coisa em

si que fosse indeterminada e vazia natildeo poderia surgir algo de determinado e definido como

satildeo as accedilotildees Inversamente seria impensaacutevel que uma liberdade da vontade pudesse modificar

ou anular um caraacuteter pois isso equivaleria a tornaacute-lo vazio e indeterminado Em suma para

que possa produzir seus efeitos o caraacuteter inteligiacutevel deve ter uma essecircncia determinada e

imutaacutevel que natildeo poderaacute ser reduzida a nada por meio da liberdade A negaccedilatildeo da liberdade

ao operari e sua concessatildeo ao esse realizaria entatildeo o estranho feito de possibilitar a escolha de

um caraacuteter de forma totalmente infundada Nesse sentido escreve Frauenstaumldt

Finalmente o senhor [o interlocutor] apresenta a alternativa ou a Vontade eacute

eternamente qualitativamente determinada natildeo podendo abandonar ou

modificar sua qualidade originaacuteria ou ela eacute originalmente indeterminada

17

FRAUENSTAumlDT J Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1854 p 333 18

Ibidem p 333 19

Ibidem p 338 20

Ibidem p 339 (traduccedilatildeo nossa) 21

Ibidem p 342

- 191 -

natildeo podendo por toda a eternidade tornar-se algo determinado pois nela

natildeo haacute fundamento para esta ou aquela determinaccedilatildeo22

Em 1869 Frauenstaumldt publicou um artigo na revista Unsere Zeit

deutsche Revue der Gegenwart intitulado ldquoArthur Schopenhauer und seine Gegnerrdquo23

no

qual discute outras contradiccedilotildees que foram apontadas no pensamento schopenhaueriano Nas

palavras dele ldquoEu li mais de uma duacutezia de escritos criacuteticos sobre Schopenhauer e em todos

encontrei acusaccedilotildees de contradiccedilotildees a ele que se orgulhava de ser o filoacutesofo mais

consequente e de ter oferecido um sistema em uma uacutenica peccedilardquo24

Entre os antagonistas

Frauenstaumldt cita Adolf Cornill que identificaria dualismo e contradiccedilotildees em diversos pontos

bem como Rudolf Seydel para quem Schopenhauer oscilaria entre uma concepccedilatildeo realista e

outra idealista acerca da objetivaccedilatildeo da Vontade e que estaria na raiz da contradiccedilatildeo mais

fundamental do sistema schopenhaueriano a antinomia da faculdade de conhecimento25

Naquele artigo Frauenstaumldt menciona a segunda ediccedilatildeo de Logische

Untersuchungen26

de 1862 na qual Friedrich A Trendelenburg teria acusado Schopenhauer

de ser meramente idealista jaacute que seu mundo fenomecircnico seria uma construccedilatildeo causal e

portanto subjetiva27

No mesmo sentido Rudolf Haym em Arthur Schopenhauer28

de 1864

teria julgado encontrar uma contradiccedilatildeo no fato de que embora situasse o princiacutepio de razatildeo

dentro dos limites da representaccedilatildeo Schopenhauer teria buscado pelo fundamento dela

Apelando inclusive para insultos agrave pessoa do filoacutesofo Haym teria criticado tambeacutem a

complementaccedilatildeo do idealismo kantiano com a fundamentaccedilatildeo fisioloacutegica da representaccedilatildeo

Para ele essa seria uma tentativa ingecircnua de conciliar dois pontos de vista excludentes e que

resultaria em diversos problemas dentre eles o nosso tema29

Para Haym aleacutem disso

Schopenhauer justifica o surgimento do conhecimento nos animais em funccedilatildeo da necessidade

gerada pela multiplicidade e separaccedilatildeo dos seres contudo essa mesma multiplicidade e

separaccedilatildeo soacute poderiam surgir com o princiacutepio de individuaccedilatildeo que exige o proacuteprio

22

Ibidem p 341 (traduccedilatildeo nossa) 23

FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 686-707 24

Ibidem p 686 (traduccedilatildeo nossa) 25

Ibidem p 694-695 26

TRENDELENBURG F A Logische Untersuchungen Zweite ergaumlnzte Auflage Leipzig Hirzel 1862 27

FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 697 28

HAYM R Arthur Schopenhauer Berlin Georg Reimer 1864 29

FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 700

- 192 -

conhecimento Daiacute teria se originado um ciacuterculo vicioso que foi apontado tambeacutem por Chr

Albert Thilo no artigo intitulado Ueber Schopenhauerrsquos ethischen Atheismus30

de 186831

Haym e Trendelenburg tiveram em comum a criacutetica relativa agrave

generalizaccedilatildeo da Vontade a toda a natureza orgacircnica e inorgacircnica Trendelenburg considerou

que teria sido necessaacuterio mostrar como o conceito de forccedila eacute derivado do de Vontade o

conceito mais geral da filosofia schopenhaueriana que poreacutem natildeo teria sido demostrado

como tal32

O argumento da analogia seria enganoso porque com ele a essecircncia da vontade

humana se perderia e no entanto conforme a conveniecircncia suas caracteriacutesticas especiacuteficas e

determinadas seriam confundidas com a da Vontade coacutesmica33

A identidade da Vontade no

mundo como um todo exigiria que ela fosse pensada em geral o que a aproximaria de um

conceito amplo de forccedila poreacutem sua ligaccedilatildeo com a vontade humana possibilitaria que

Schopenhauer estendesse as propriedades desta a tudo arbitrariamente No entender de Haym

e de Trendelenbug esse seria o ππῶηον τεῦδορ de Schopenhauer34

Esses dois pensadores

teriam visto ainda uma contradiccedilatildeo na afirmaccedilatildeo de que a Vontade eacute cega sem conhecimento

algum mas ao mesmo tempo comporta-se como algo repleto de intenccedilotildees e fins

pressupostos nos conceitos de Vontade de Vida e Vontade de conhecimento por exemplo35

Aleacutem disso na experiecircncia eacutetica e no gecircnio Haym apontou uma inversatildeo das relaccedilotildees entre

Vontade e conhecimento em que este deixa de ser subordinado e dependente superando

aquela Assim diz Haym de forccedila da natureza que a tudo constitui a Vontade passa ao nada

pelo conhecimento cada vez mais claro das Ideias O conhecimento por seu turno de

efetivador da aparecircncia empiacuterica passa agrave genialidade e agrave santidade isto eacute a um verdadeiro

conhecimento metafiacutesico36

Otto Liebmann na obra Ueber den Objectiven Anblick37

publicada em

1869 teria afirmado que Schopenhauer misturou verdades com absurdos e ideias imisciacuteveis

entre si que levariam a um ciacuterculo vicioso acerca da relaccedilatildeo entre intelecto e ceacuterebro38

Ainda

30

THILO Chr A Ueber Schopenhauerrsquos ethische Atheismus Leipzig Louis Pernitzsch 1868 31

FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 702 32

Ibidem loc cit 33

Ibidem loc cit 34

Ibidem loc cit 35

Ibidem p 704 36

Ibidem p 706 37

LIEBMANN O Ueber den Objektiven Anblick Wiesbaden Carl Schober 1869 38

FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 690-691

- 193 -

antes em 1866 na obra Ueber den individuellen Beweis fuumlr die Freiheit des Willens39

Liebmann teria criticado a concepccedilatildeo schopenhaueriana acerca da liberdade e sua localizaccedilatildeo

no esse entendendo que assim se anularia a responsabilidade40

De modo semelhante em

1869 Eduard von Hartmann teria criticado a reduccedilatildeo do intelecto ao ceacuterebro na obra

Philosophie des Unbewussten41

como uma postura fundamentalmente materialista42

Em 1873 Frauenstaumldt publicou as obras completas de Schopenhauer com

uma extensa introduccedilatildeo de sua autoria cuja maior parte eacute dedicada a refutar os antagonistas

do filoacutesofo e a mostrar o que entende ser o verdadeiro sentido de seu pensamento43

Ele

reafirma que os opositores de Schopenhauer acusaram sua filosofia de ser completamente

contraditoacuteria resultado de uma confusa mistura de elementos heterogecircneos44

Diligentemente

Frauenstaumldt descreve e discute criacuteticas a diversos aspectos do pensamento schopenhaueriano

passando por metafiacutesica teoria do conhecimento eacutetica misantropia pessimismo e a recepccedilatildeo

das obras pelo grande puacuteblico Como satildeo muitas e diferentes as objeccedilotildees apresentadas na

introduccedilatildeo natildeo passaremos por todas elas e restringiremos nossa anaacutelise apenas agravequelas

relativas agrave metafiacutesica e agrave teoria do conhecimento

Nesse texto Frauenstaumldt repete as partes relativas a Trendelenburg e a

Haym do artigo mencionado acima e afirma que diversos professores ignorando sua

resposta reincidiram nas mesmas criacuteticas deles Seria o caso do jurista e professor Heinrich

Ahrens que criticou a generalizaccedilatildeo da Vontade a todo o mundo empiacuterico bem como o que

considerou um retorno agrave indiferenccedila entre natureza e espiacuterito O mesmo se daria com Zeller

que teria indicado um falso dilema como sendo a base do argumento da analogia a saber ou

apenas noacutes seriamos Vontade ou entatildeo tudo seria Vontade45

Para Zeller poreacutem uma terceira

alternativa seria pensaacutevel que existissem simultaneamente seres volitivos e seres natildeo

volitivos determinados por forccedilas de outro tipo46

Por um lado Schopenhauer deveria ter

mostrado com que direito o mundo objetivo como um todo deveria ser subsumido na

39

LIEBMANN O Ueber den individuellen Beweis fuumlr die Freiheit des Willens Stuttgart Carl Schober 1866 40

FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 692 41

HARTMAN E Philosophie des Unbewussten Berlin Carl Duncker 1869 42

FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 692 43

Cf SCHOPENHAUER A Saumlmmtliche Werke Herausgegeben von Julius Frauenstaumldt Band 1 Leipzig

Brockhaus 1873 ldquoEinleitung des Herausgebers III Wahrer Sinn der Schopenhauer‟schen Philosophie und

Widerlegung ihrer Gegnerrdquo p XXVIII-CXXXIII 44

Ibidem p XXXIII 45

Ibidem p XLIX 46

ZELLER E Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibniz Muumlnchen Didenbourg 1875 p 709

- 194 -

Vontade por outro surgiriam duacutevidas sobre se sendo a essecircncia de tudo uma soacute natildeo

deveriacuteamos pressupor intenccedilotildees e motivaccedilotildees humanas na natureza47

Zeller teria estranhado a

mudanccedila repentina do ponto de vista do idealismo para o do realismo o que Frauenstaumldt no

entanto aponta como algo natural uma vez que Schopenhauer entendia que a representaccedilatildeo

era apenas um dos dois lados do mundo Para o ldquoapoacutestolordquo o erro de compreensatildeo desse

aspecto da filosofia schopenhaueriana seria inclusive a razatildeo de Zeller e diversos outros

opositores do filoacutesofo terem criticado a antinomia da faculdade do conhecimento48

Aleacutem

disso seriam problemaacuteticos para Zeller a autossupressatildeo da Vontade o sucesso de puacuteblico

dos uacuteltimos anos de Schopenhauer que seria devido agrave adequaccedilatildeo da linguagem ao grande

puacuteblico com objetivo adulador e o romantismo pressuposto na visatildeo schopenhaueriana do

gecircnio49

Esta uacuteltima questatildeo segundo Frauenstaumldt teria sido criticada tambeacutem por Ahrens50

Conforme a exposiccedilatildeo de Frauenstaumldt na obra Arthur Schopenhauer als

Mensch und Denker51

o professor Juumlrgen Bona Meyer buscava contradiccedilotildees em toda parte52

Frauenstaumldt menciona especialmente a contradiccedilatildeo apontada por esse autor segundo a qual

Schopenhauer de um lado demonstra a impossibilidade da liberdade da vontade e de outro

a afirma em relaccedilatildeo agrave Vontade primordial Menciona tambeacutem a concordacircncia de Meyer com

Trendelenbug no tocante agrave criacutetica deste de que o mundo schopenhaueriano se reduz a uma

aparecircncia meramente subjetiva53

Aleacutem desses pontos Frauenstaumldt refere a criacutetica de Thilo

sobre a inviabilidade de um sujeito puro do conhecimento isto eacute a impossibilidade de

esquivar-se da sujeiccedilatildeo agrave Vontade Esse ponto traria problemas tambeacutem para a concepccedilatildeo

schopenhaueriana das Ideias as quais natildeo poderiam ser conhecidas de modo nenhum jaacute que

conhecer eacute tornar-se objeto e entrar nas formas do tempo espaccedilo e causalidade

Em 1876 Frauenstaumldt publicou a segunda ediccedilatildeo de sua obra epistolar

aumentada em 18 cartas referindo uma quantidade maior de objeccedilotildees agrave filosofia

schopenhaueriana incluindo diversas de sua autoria54

Ele relata um grande nuacutemero de

opositores e de criacuteticas praticamente sobre todos os temas do pensamento de Schopenhauer

Menciona tambeacutem teorias que partindo da filosofia dele tentaram melhoraacute-la como a de

47

Ibidem p L 48

Ibidem p LXXI 49

Ibidem p LXXXV CXXIII-CXVI CXXVI-CXXVII 50

Ibidem p CXXV 51

MEYER J B Schopenhauer als Mensch und Denker Berlin Carl Habel 1872 52

Ibidem p LIII 53

Ibidem p LXVIII 54

FRAUENSTAumlDT J Neue Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1876

- 195 -

Eduard von Hartmann sobre o inconsciente bem como outras que aparentemente a

refutariam como a de Darwin55

Nessa nova ediccedilatildeo Frauenstaumldt esclarece que natildeo eacute um

defensor incondicional do seu mestre como muitos pensavam e que se desviou dele em

pontos importantes De fato em vaacuterias das novas cartas ele apresenta as proacuteprias

discordacircncias em relaccedilatildeo ao pensamento schopenhaueriano na intenccedilatildeo de mostrar sua

verdade essencial corrigi-lo e melhoraacute-lo No entender de Frauenstaumldt embora as obras do

filoacutesofo respondam agrave maioria das criacuteticas que lhes foram feitas haacute questotildees natildeo solucionadas

e ainda muitas outras objeccedilotildees possiacuteveis Natildeo passaremos por todas as criacuteticas que ele relata

nas novas cartas tampouco por todas as que ele mesmo dirige agrave filosofia schopenhaueriana

Exporemos somente suas proacuteprias objeccedilotildees pertinentes ao nosso problema uma vez que

muitas das que referimos anteriormente satildeo retomadas nas novas cartas e que aleacutem disso a

maioria delas estaacute fora do nosso escopo

Entre as principais objeccedilotildees de Frauenstaumldt haacute duas relativas ao que ele

chamou de ldquorestordquo natildeo dissolvido Em primeiro lugar permaneceria um resquiacutecio do

dualismo kantiano que se sobreporia ao monismo do pensamento uacutenico de Schopenhauer Em

segundo haveria tambeacutem um resto natildeo resolvido na contradiccedilatildeo da Vontade consigo mesma

Frauenstaumldt trata do primeiro ponto na carta 17 de suas Neue Briefe uumlber die

Schopenhauerrsquosche Philosophie criticando o que entendeu ser uma oposiccedilatildeo entre a Vontade

em si e sua objetivaccedilatildeo fundada numa visatildeo dualista56

Ele argumenta que a Vontade eacute

completamente estranha agraves formas da representaccedilatildeo nunca podendo adotaacute-las e no entanto

Schopenhauer apresenta os graus de objetivaccedilatildeo como o fenocircmeno proacuteprio dela como sua

objetidade Segundo Frauenstaumldt por um lado as formas da representaccedilatildeo natildeo poderiam

entatildeo ser estranhas agrave Vontade por outro se cada grau de objetivaccedilatildeo manifesta a Vontade

completamente natildeo haveria motivo para que ela se objetivasse em graus e indiviacuteduos

distintos Nesse sentido escreve Frauenstaumldt ldquoSe a Vontade estaacute completamente objetivada

na pedra entatildeo natildeo haacute razatildeo para a objetivaccedilatildeo nas plantas e nos animais Se aleacutem disso a

Vontade jaacute se objetiva completamente em um carvalho para que entatildeo os milhotildees de

carvalhosrdquo57

De acordo com a interpretaccedilatildeo dele assim como a humanidade natildeo

poderia se objetivar completamente em um dos seus troncos ou em um indiviacuteduo pela mesma

55

Ibidem p 2 56

Ibidem p 89 57

Ibidem p 90 (traduccedilatildeo nossa)

- 196 -

razatildeo a vontade da natureza natildeo poderia se objetivar inteiramente em uma uacutenica espeacutecie ou

indiviacuteduo58

E se esse fosse realmente o caso haveria um sem nuacutemero de objetivaccedilotildees

supeacuterfluas Para Frauenstaumldt do mesmo modo como cada membro do corpo objetiva uma

funccedilatildeo distinta da vontade corporal natildeo a vontade completa cada espeacutecie ou indiviacuteduo natildeo

objetiva a Vontade como um todo mas apenas uma funccedilatildeo especial Entatildeo ele afirma

ldquoMicrocosmo e macrocosmo se esclarecem tambeacutem aqui reciprocamenterdquo59

A unidade e a

indivisibilidade da Vontade natildeo se explicam porque ela estaacute inteira em cada objetivaccedilatildeo mas

diz ele porque ela eacute a abrangecircncia unitaacuteria do conjunto dos fenocircmenos matizados e

individualizados60

ldquoAssimrdquo ele afirma ldquoa unidade como algo que se organiza natildeo exclui a

multiplicidade mas a incluirdquo61

Portanto soacute se poderia conhecer o ser completo do fenocircmeno

por meio do todo natildeo por meras partes Uma parte somente poderia explicar o todo caso o

mundo natildeo estivesse no tempo e no espaccedilo pois entatildeo seria possiacutevel conhecer o conjunto

completo tanto por meio de muacuteltiplos indiviacuteduos quanto por um uacutenico deles

Na carta 43 Frauenstaumldt aborda a contradiccedilatildeo da Vontade consigo

mesma que ele entende ser o segundo resto natildeo resolvido na filosofia schopenhaueriana Ele

concorda que a compaixatildeo seja uma consequecircncia correta da unidade da Vontade poreacutem

nem o seu conceito nem sua necessidade no mundo estariam bem fundamentados62

Para ele

compaixatildeo pressupotildee sofrimento e este surge do conflito da Vontade consigo mesma algo

que seria injustificaacutevel Se a Vontade eacute una deveria entatildeo mostrar indivisibilidade e harmonia

em todos os seus fenocircmenos e nesse caso a compaixatildeo natildeo seria necessaacuteria Por

conseguinte ou a Vontade natildeo seria una ou o sofrimento seria um enigma por esclarecer63

Frauenstaumldt enxerga aqui o mesmo problema do teiacutesmo e do panteiacutesmo em explicar o

sofrimento e remete a Schopenhauer as objeccedilotildees que ele proacuteprio fez a ambas aquelas

perspectivas teoacutericas como o fundamento uno e essencial se desuniu em seus fenocircmenos

entrou em luta consigo mesmo gerando males conflitos e sofrimento Nas palavras dele

ldquoComo no fenocircmeno do um-todo essencial eacute possiacutevel o egoiacutesmo a fonte de todos os

malesrdquo64

58

Ibidem p 90-91 59

Ibidem p 91 (traduccedilatildeo nossa) 60

Ibidem loc cit 61

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 62

Ibidem p 266 63

Ibidem loc cit 64

Ibidem p 267 (traduccedilatildeo nossa)

- 197 -

Na concepccedilatildeo de Frauenstaumldt o egoiacutesmo insere uma oposiccedilatildeo entre o

microcosmo o macrocosmo na medida em que cada indiviacuteduo se entende como o uacutenico ser

real existente em detrimento do restante do mundo Entretanto diz ele natildeo se pode explicar

como a Vontade que existe natildeo em um indiviacuteduo mas em todos possa ter chegado em cada

um deles agrave colossal cegueira de tomar apenas a si mesmo como real e esquecer todos os

demais65

Na verdade segundo Frauenstaumldt a harmonia e a unidade da Vontade existiriam

apenas no macrocosmo na adequaccedilatildeo muacutetua de todos os fenocircmenos mas natildeo seria forte o

suficiente para suprimir a luta dos indiviacuteduos entre si Entatildeo ele escreve ldquoA unidade da

Vontade natildeo se estende ateacute o indiviacuteduo permanece conectada ao macrocosmo ela natildeo eacute

radical Mas de onde ela proveacutem Schopenhauer natildeo explicourdquo66

42 ndash Apreciaccedilotildees criacuteticas da antinomia da faculdade de conhecimento

Neste item apresentaremos algumas das apreciaccedilotildees criacuteticas que a

antinomia que a faculdade de conhecimento recebeu Nossa exposiccedilatildeo poreacutem natildeo seraacute

exaustiva do ponto de vista da quantidade dos comentaacuterios o que seria cansativo e

desnecessaacuterio mas privilegiaraacute apenas as argumentaccedilotildees que nos parecerem mais

contundentes e profiacutecuas Com efeito na obra Arthur Schopenhauer als Uebergangsformation

von einer idealistischen in eine realistische Weltanschauung Adolf Cornill aborda entre

outros assuntos tambeacutem o nosso tema de pesquisa Esse autor ressalta que Schopenhauer

interditou o acesso da razatildeo ao acircmbito do metafiacutesico tornando-se necessaacuterio outro caminho

que levasse ateacute ele Ao mesmo tempo numa tentativa de fundamentar a metafiacutesica

indutivamente teria associado a faculdade do conhecimento a algo meramente fiacutesico e

reconstruiacutedo via de acesso agrave essecircncia do mundo com base na Vontade67

Para Cornill a

filosofia schopenhaueriana se torna dualista na medida em que ao lado de um mundo

65

Ibidem p 269 66

Ibidem p 270 (traduccedilatildeo nossa) 67

CORNILL A Arthur Schopenhauer als Uebergangsformation von einer idealistischen in eine realistische

Weltanschauung Heidelberg Georg Mohr 1856 p 99-100

- 198 -

material extenso temporal e causal estabelece um mundo metafiacutesico destituiacutedo dessas

formas Esse dualismo seria o responsaacutevel por tornar o sistema uma peccedila dilacerada

internamente e repleta de contradiccedilotildees

Especificamente no caso da nossa antinomia Cornill considera que o

problema tem sua raiz na desconsideraccedilatildeo dos argumentos acerca dos paralogismos da razatildeo

pura pois contrariando o entendimento kantiano Schopenhauer teria tomado a representaccedilatildeo

do sujeito pelo seu ser em si68

Para ele o filoacutesofo se lanccedilaria de um extremo ao outro entre

materialismo e idealismo e um irremediaacutevel dualismo natildeo permitiria que se decidisse sobre

se possuiriacuteamos ou natildeo um conhecimento do ser em si da vida espiritual69

(geistigen

Lebens)70

O mesmo dualismo e a mesma oscilaccedilatildeo repercutiriam na compreensatildeo

schopenhaueriana acerca da faculdade de conhecimento levando-o agrave antinomia o

pensamento que parece ser o mais ideal em toda a natureza eacute considerado como uma funccedilatildeo

fisioloacutegica do ceacuterebro71

O mundo objetivo diz Cornill com todos os seus atributos eacute

somente um movimento da massa cerebral dentro do cracircnio mas esse mesmo ceacuterebro cuja

funccedilatildeo eacute produzir todos os fenocircmenos eacute tambeacutem apenas um fenocircmeno72

Em uacuteltima

instacircncia a concepccedilatildeo de que o ceacuterebro eacute o refinamento maacuteximo da mateacuteria seria a mesma

adotada no materialismo segundo o qual a mateacuteria eacute indestrutiacutevel eterna e permanente de

modo que no fim de contas tudo acabaria se remetendo a ela No sect 27 da sua obra Cornill

afirma que

Uma tal concepccedilatildeo natildeo satisfaz nem aos idealistas pelos quais

Schopenhauer seraacute sempre tomado como materialista nem aos materialistas

para quem ele sempre deve parecer idealista Seu sistema eacute um dualismo em

si dilacerado e esse eacute o fundamento das inumeraacuteveis contradiccedilotildees nas quais

um pensador claro um espiacuterito profundo permaneceu enredado durante sua

longa e profunda vida73

A obra de Rudolf Seydel Schopenhauers Philosophisches System foi

escrita para um concurso realizado pela Faculdade de Filosofia da Universidade de Leipzig

em 1856 no qual se solicitava que os candidatos elaborassem uma exposiccedilatildeo e criacutetica do

68

Ibidem p 101-102 69

Em uma carta endereccedilada a Frauenstaumldt datada de 31 de outubro de 1856 Schopenhauer acusa Cornill de

confundir idealismo com espiritualismo De fato pode-se perceber essa confusatildeo em toda a obra de Cornill Cf

FRAUENSTAumlDT J LINDNER Ernst O T Arthur Schopenhaper vom Ihm uumlber ihn Ein Wort der

Vertheidigung Berlin A W Hayn 1863 p 711 70

CORNILL op cit p 102 71

Ibidem p 102-103 72

Ibidem p 103 73

Ibidem p 125 (traduccedilatildeo nossa)

- 199 -

pensamento de Schopenhauer Estudante de filosofia na eacutepoca Seydel venceu o concurso do

qual participou tambeacutem Carl Georg Baumlhr entatildeo estudante de direito74

No entender de Seydel

a metafiacutesica e a teoria do conhecimento schopenhauerianas seriam incompatiacuteveis entre si

gerando uma oscilaccedilatildeo entre ambas em funccedilatildeo da qual se formariam um hiato dentro do

sistema como um todo e diversas pequenas contradiccedilotildees75

Ele compara os resultados da

metafiacutesica e da teoria do conhecimento de Schopenhauer chegando ao que julgou ser uma

dupla identidade entre sujeito e objeto De um lado esses dois polos formariam a

representaccedilatildeo isto eacute o objeto e na medida em que a representaccedilatildeo eacute a objetidade da

Vontade o objeto se identificaria com o sujeito De outro a representaccedilatildeo representa a

Vontade e nada mais ldquoPortantordquo ele explica ldquotemos dois sujeitos que satildeo reciprocamente

seus objetos o sujeito do querer e o sujeito da representaccedilatildeo ou dois objetos que satildeo

reciprocamente seus sujeitos o desejado (a representaccedilatildeo) e o representado (a Vontade)rdquo76

Seydel considera que embora Schopenhauer natildeo reconheccedila sua

concordacircncia em diversos pontos com Fichte Schelling e Hegel teria absorvido as duas

formas da filosofia da identidade a saber o ldquoideal-realismordquo do primeiro bem como o ldquoreal-

idealismordquo do segundo e do terceiro77

A junccedilatildeo do princiacutepio especulativo do idealismo com

uma concepccedilatildeo realista teria resultado na visatildeo da objetivaccedilatildeo da Vontade como um processo

gradual no qual toda a riqueza da natureza empiacuterica se apresentaria Assim diz Seydel a

objetivaccedilatildeo se daacute no entendimento e para ele ao mesmo tempo em que o intelecto soacute pode se

realizar por meio do decurso de uma cadeia de objetivaccedilotildees anteriores ao conhecimento De

acordo com ele formam-se um hiato e uma discordacircncia interna na metafiacutesica de

Schopenhauer que separam sua concepccedilatildeo de uma identidade subjetiva e sua filosofia da

natureza78

Schopenhauer teria extraiacutedo de Schelling e Hegel a objetivaccedilatildeo da Vontade por

uma operaccedilatildeo baseada na natureza empiacuterica e de Fichte teria extraiacutedo a concepccedilatildeo da

identidade da Vontade e da representaccedilatildeo Em funccedilatildeo disso afirma Seydel

[] a objetivaccedilatildeo natildeo eacute explicada como atividade real da Vontade mas

como objetivaccedilatildeo apenas no entendimento e para ele enquanto a realizaccedilatildeo

74

SPIERLING Volker Materialien zu Schopenhauers ldquoDie Welt als Wille und Vorstellungrdquo Herausgegeber

kommentiert und eingeleitet von Volker Spierling Frankfurt am Main Suhrkamp 1984 p 129 75

SEYDEL R Schopenhauers Philosophisches System Leipzig Breitkopf amp Haumlrtel 1857 p 7 76

Ibidem p 58 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 77

Ibidem p 69 78

Ibidem p 70

- 200 -

filosoacutefico-natural do intelecto entra expressamente apenas depois do decurso

de uma cadeia de objetivaccedilotildees carente de conhecimento79

Em Gesammelte philosophische Abhandlungen zur Philosophie des

Unbewussten80

publicada em 1872 Eduard von Hartmann aborda criticamente o pensamento

de Schopenhauer No terceiro item dessa obra intitulado ldquoUeber die nothwendige Umbildung

der Schopenhauerschen Philosophie aus ihre Gundprincip herausrdquo ele apresenta uma

avaliaccedilatildeo da filosofia schopenhaueriana na qual relaciona a antinomia da faculdade de

conhecimento a uma mistura de elementos de realismo espiritualismo idealismo e

materialismo O realismo e o espiritualismo estariam do lado da Vontade enquanto o

idealismo subjetivo e o materialismo estariam do lado do fenocircmeno Para Hartmann o

princiacutepio fundamental da filosofia schopenhaueriana eacute o que ele chama de pantelismo

identificado com a fantaacutestica descoberta de que a Vontade eacute una e age sem conhecimento em

toda a natureza81

Nas palavras dele ldquoEsse eacute o nuacutecleo mais interno e irrefutaacutevel da filosofia

schopenhaueriana o foco para o qual todos os seus raios convergem e eacute a concepccedilatildeo que o

ser das coisas oferece quando se abstrai de seu fenocircmenordquo82

Embora haja contradiccedilotildees no

sistema schopenhaueriano voltadas contra esse princiacutepio o que se deveria corrigir satildeo

somente as afirmaccedilotildees que conduzem a elas natildeo o princiacutepio mesmo

A antinomia da faculdade de conhecimento conforme Hartmann estaacute

inserida na problemaacutetica do materialismo Na interpretaccedilatildeo dele a Vontade eacute um princiacutepio

imaterial conhecido por noacutes como o momento mais essencial do espiacuterito pelo que deveria ser

tomada por um princiacutepio espiritual83

No entanto ao associar o intelecto a um produto

material e tentar associar espiritualismo e materialismo Schopenhauer acabaria reforccedilando

este uacuteltimo Para Hartmann o materialismo estaacute correto quando afirma que a integridade das

funccedilotildees cerebrais relaciona-se de modo necessaacuterio com a consciecircncia e que seu mau

funcionamento acarreta problemas nos desiacutegnios sentimentos e representaccedilotildees do indiviacuteduo

Poreacutem o materialismo natildeo permitiria explicar o processo de formaccedilatildeo do mundo que ficaria

reduzido a um jogo cego de efeitos sem sentido dificultando a compreensatildeo da origem dos

organismos e seus significados84

O idealismo teria substituiacutedo o processo objetivo do

materialismo pelo processo interno e subjetivo da representaccedilatildeo mas teria mantido no

79

Ibidem p 69 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 80

HARTMANN E v Gesammelte philosophische Abhandlungen zur Philosophie des Unbewussten Berlin

Carl Duncker 1872 81

Ibidem p 57 82

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 83

Ibidem p 59 84

Ibidem p 60

- 201 -

tocante a esta uacuteltima o mesmo problema daquele assim como o mundo cheio de sentido se

originaria de algo sem sentido a representaccedilatildeo plena de significados nasceria tambeacutem de algo

sem significado85

Conforme Hartmann Schopenhauer cometeu os erros tanto do

materialismo quanto do idealismo subjetivo e sua tentativa de uni-los foi a responsaacutevel pela

antinomia da faculdade de conhecimento Como ele explica ldquo[] um ser independente do

tempo bem pode iniciar a partir de si uma cadeia de desenvolvimentos mas nunca pode

determinar por si o ponto no tempo numa cadeia temporal jaacute iniciada no qual se deve

encontrar a nova consciecircncia que emergerdquo86

Aleacutem disso de nada teria adiantado

Schopenhauer ter retirado a Vontade do domiacutenio do materialismo pois ela seria um princiacutepio

irracional e cego do mesmo modo que a mateacuteria e as forccedilas materiais satildeo concebidas nele Na

concepccedilatildeo de Hartmann somente pela diferenciaccedilatildeo entre consciente e inconsciente eacute que a

verdade fisioloacutegica do materialismo poderia ser reconhecida e mantida Com efeito diz ele as

relaccedilotildees entre a materialidade cerebral e o funcionamento das suas funccedilotildees de pensar sentir e

desejar valem apenas para a consciecircncia Nessa perspectiva de um lado a atividade

inconsciente do espiacuterito permaneceria como uma funccedilatildeo puramente imaterial inserida naquela

mateacuteria e de outro as atividades conscientes seriam produzidas pelo inconsciente e pelo

ceacuterebro87

Em sua obra Schopenhauers Leben Werke und Lehre88

Kuno Fischer

associa a antinomia da faculdade de conhecimento agrave diferenciaccedilatildeo entre ideal e real que ele

entende ser o verdadeiro problema filosoacutefico da sua eacutepoca Na interpretaccedilatildeo de Fischer a

explicaccedilatildeo do mundo concreto como sendo um fenocircmeno cerebral entraria em conflito com a

afirmaccedilatildeo de que seria manifestaccedilatildeo da coisa em si Haveria na verdade dois sentidos

diferentes para o conceito de fenocircmeno no primeiro caso seria inteiramente ideal um

fenocircmeno do ceacuterebro enquanto no segundo ao contraacuterio seria o mais real a objetidade da

Vontade89

Para Fischer essa ambiguidade se deveu ao desvirtuamento da doutrina kantiana

sobre tempo e espaccedilo e agrave influecircncia do sensualismo francecircs que teriam levado Schopenhauer

85

Ibidem loc cit 86

HARTMANN E v Geschichte der Methaphysik Zweiter Teil seit Kant Ausgewaumlhlte Werke Band XII

Leipzig Hermann Haacke 1900 p 188 (traduccedilatildeo nossa) 87

HARTMANN E v Gesammelte philosophische Abhandlungen zur Philosophie des Unbewussten Berlin

Carl Duncker 1872 p 60 88

FISCHER K Schopenhauers Leben Werke und Lehre Heidelberg Carl Winter‟s Universitaumltsbuchhandlung

1908 89

Ibidem p 508

- 202 -

a identificar o ceacuterebro e o intelecto como um oacutergatildeo e sua funccedilatildeo Como esse autor escreve

ldquoPois bem ele quis unir em seu sistema as duas doutrinas incompatiacuteveis daiacute adveio a

antinomia que se enredou naquela explicaccedilatildeo circular defeituosardquo90

Fischer argumenta que para que o ceacuterebro fosse representado como um

oacutergatildeo sua funccedilatildeo representativa teria de se separar de si mesmo Uma vez que isso eacute

impossiacutevel tempo e espaccedilo teriam de se situar no ceacuterebro o qual por sua vez teria de estar

situado no tempo e no espaccedilo Fischer entende ser esse o ponto mais obscuro da filosofia

schopenhaueriana pois a objetivaccedilatildeo graduada da Vontade natildeo poderia ser pensada sem a

multiplicidade e a variedade da natureza isto eacute sem que tempo e espaccedilo estivessem

pressupostos91

Por conseguinte diz ele ldquoUma coisa eacute ser organicamente dependente outra

diferente eacute ser organicamente produzido Kant admitiu o primeiro com relaccedilatildeo ao

conhecimento mas o segundo natildeordquo92

Essas seriam as bases a partir das quais teriam

emergido diversos problemas entre os quais o nosso objeto que ele expotildee em tese e antiacutetese

A tese afirma nosso conhecimento eacute um produto orgacircnico e como tal tem

como suas condiccedilotildees a escala completa da organizaccedilatildeo animal-humana o

mundo das plantas a histoacuteria do desenvolvimento do universo e da Terra A

antiacutetese afirma o universo inteiro em sua multiplicidade variedade e

regularidade tem o sujeito do conhecimento (o intelecto) como seu

pressuposto e portador93

Na obra Arthur Schopenhauer seine Persoumlnlichkeit seine Lehre sein

Glaube Johannes Volkelt aborda a antinomia da faculdade de conhecimento pelo acircngulo do

que chamou de ldquocorrelativismordquo entre sujeito e objeto que se apresentaria tambeacutem entre

intelecto e mateacuteria94

Na medida em que se limitam mutuamente haveria uma correlatividade

estrita entre sujeito e objeto que Schopenhauer explicaria com o conceito de fronteira

(Grenze) De acordo com Volkelt a mesma correlatividade se estende ao intelecto e agrave mateacuteria

jaacute que o filoacutesofo entende esta uacuteltima como sendo o objeto destituiacutedo de forma e qualidade

isto eacute como um conceito95

Em princiacutepio o correlativismo seria correto e baseado no fato

inquestionaacutevel de que o objeto soacute pode ser dado em uma consciecircncia e inversamente a

consciecircncia soacute pode ser consciecircncia de um objeto Poreacutem na interpretaccedilatildeo de Volkelt em

90

Ibidem p 510 (traduccedilatildeo nossa) 91

Ibidem p 509 92

Ibidem p 510 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 93

Ibidem p 508-509 (traduccedilatildeo nossa) 94

VOLKELT Johannes Arthur Schopenhauer seine Persoumlnlichkeit seine Lehre sein Glaube Stuttgart Fr

Frommanns 1900 p 82 et seq 95

Ibidem p 83

- 203 -

certos momentos Schopenhauer imprime uma mudanccedila nesse correlativismo tornando

ambiacuteguo o conceito de sujeito e entrando em contradiccedilatildeo com a teoria do mundo enquanto

representaccedilatildeo96

De iniacutecio a correlatividade entre sujeito e objeto teria sido pensada pelo

filoacutesofo da perspectiva das duas metades indissociaacuteveis que compotildeem consciecircncia do mundo

como representaccedilatildeo Tomada nesse sentido diz Volkelt a correlatividade evidenciaria uma

caracteriacutestica essencial do sujeito que eacute sua relaccedilatildeo com a existecircncia do mundo como

representaccedilatildeo de modo que sua posiccedilatildeo natildeo poderia ser comparada com qualquer outra A

partir daiacute contudo surgiriam dois conceitos de sujeito De um lado na medida em que a

consciecircncia conteacutem em si o sujeito e o objeto o que representa e eacute representado ela seria o

ponto de partida e o campo inicial da filosofia de outro o sujeito seria tambeacutem um dos dois

lados incluiacutedos na consciecircncia97

Para Volkelt parece que em alguns momentos

Schopenhauer natildeo podia dispor do solo ideal-subjetivo do sujeito ldquoCom outras palavrasrdquo ele

esclarece

fala como se o sujeito possuiacutesse o correlato que tem no mundo

independentemente da representaccedilatildeo como se esse mundo independente da

consciecircncia defrontasse igualitariamente a consciecircncia O segundo sentido

da palavra ldquosujeitordquo isto eacute o sentido que ele soacute pode possuir no interior do

correlativismo imperceptivelmente adentrou aquele primeiro sentido e

nessa junccedilatildeo transformou o sentido proibido Assim agora ficam frente a

frente o mundo subjetivo e o transobjetivo98

Uma correlaccedilatildeo semelhante entre intelecto e mateacuteria eacute o que daria origem

agraves duas sentenccedilas conflitantes da antinomia faculdade de conhecimento De um lado estaria a

mateacuteria como simples representaccedilatildeo de um sujeito e de outro o sujeito como produto da

mateacuteria uma modificaccedilatildeo desta99

Nesse ponto o aspecto idealista se perderia e o

pensamento schopenhaueriano passaria a apresentar dois pontos de partida com iguais

direitos No entanto para Volkelt a afirmaccedilatildeo da correlatividade entre intelecto e mateacuteria eacute

falsa Dizer que a mateacuteria eacute mera representaccedilatildeo do sujeito seria uma expressatildeo do idealismo

mas natildeo seria compatiacutevel com a correlatividade entre sujeito e objeto Correlativismo

implicaria proporcionalidade no peso dos polos opostos que nesse caso natildeo se apresenta

Aleacutem disso a afirmaccedilatildeo de que a representaccedilatildeo eacute um produto da mateacuteria tambeacutem natildeo se

96

Ibidem op cit 97

Ibidem p 83-84 98

Ibidem p 84 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 99

Ibidem p 85

- 204 -

adaptaria agravequele correlativismo mas seria apenas um modo de pensar que ignora o idealismo

e daacute mais razatildeo ao materialismo100

No texto Schopenhauer et Fichte101

Martial Gueroult apresenta uma

visatildeo criacutetica da filosofia schopenhaueriana em que aborda entre outros o nosso problema Na

interpretaccedilatildeo de Gueroult a caracteriacutestica proacutepria do pensamento de Schopenhauer eacute a

mistura de posiccedilotildees e teorias diferentes e inconciliaacuteveis102

O coraccedilatildeo da doutrina do filoacutesofo

seria a justaposiccedilatildeo de idealismo e realismo em funccedilatildeo da qual um mundo de representaccedilatildeo

se desdobraria como coacutepia de outro real o da Vontade103

A partir daiacute segundo esse autor

surgiriam graves dificuldades porque o idealismo estancaria diante da representaccedilatildeo tomada

como um fato tornando-se necessaacuteria a formulaccedilatildeo de um acesso de tipo diferente agrave coisa em

si Nas palavras de Gueroult

Ora essa justaposiccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel nesse caso senatildeo em virtude da

limitaccedilatildeo do idealismo ao fato da representaccedilatildeo Por essa estagnaccedilatildeo diante

do fato eacute efetivada uma soluccedilatildeo de continuidade absoluta entre a esfera da

representaccedilatildeo e o que estaacute aleacutem dela Graccedilas a esse corte eacute compreensiacutevel

uma experiecircncia de ordem totalmente diferente do conhecimento fenomenal

(representaccedilatildeo) em suma uma experiecircncia de alcance metafiacutesico por meio

da qual o mundo da representaccedilatildeo pode ser verdadeiramente

transcendente104

Essa separaccedilatildeo estrita entre a Vontade e o conhecimento bem como a

restriccedilatildeo do idealismo ao interior da representaccedilatildeo teriam obrigado Schopenhauer a reduzir a

consciecircncia ao intelecto e este agrave representaccedilatildeo Uma das questotildees que essa perspectiva

origina segundo Gueroult eacute referente agrave passagem do ideal ao real isto eacute da representaccedilatildeo agrave

Vontade Para ele Schopenhauer descobriu o ceacuterebro como uma via simples e ineacutedita de

passagem do ideal ao real apta a atuar tambeacutem no sentido inverso no qual aquele oacutergatildeo

aparece como a encarnaccedilatildeo suprema da Vontade e conteacutem em si as formas do

conhecimento105

O mundo da representaccedilatildeo daiacute advindo expotildee a Vontade ou melhor eacute

precisamente a Vontade tornada visiacutevel pelas formas de conhecimento do ceacuterebro tempo

espaccedilo e causalidade Poreacutem diz Gueroult essa teoria exigiria uma concepccedilatildeo de ceacuterebro

100

Ibidem p 86 101

GUEROULT M Etudes de Philosophie allemande HildesheimNew York Georg Olms 1977 p 202-261 102

Ibidem p 221 103

Ibidem p 226 104

Ibidem p 226-227 (traduccedilatildeo nossa) 105

Ibidem p 240

- 205 -

como instrumento e de representaccedilatildeo como motor ideal e sensoacuterio as quais natildeo teriam sido

desenvolvidas por Schopenhauer106

Na concepccedilatildeo schopenhaueriana o ceacuterebro uniria uma esfera do real tal

como pensada pelo senso comum e outra do ideal como formulada pelo idealismo

transcendental Para Gueroult trata-se de um escacircndalo filosoacutefico pois esse oacutergatildeo pertenceraacute

inteiramente tanto ao mundo real como ao ideal onde eacute apenas uma representaccedilatildeo entre

outras No entanto como parte de qualquer dos lados natildeo poderia ser concebido como

produzindo o outro Na medida em que em qualquer dos mundos seraacute apenas uma parte

iacutenfima natildeo poderia produzir o outro em sua totalidade107

Gueroult observa que

Schopenhauer substituiu a palavra e a noccedilatildeo de ceacuterebro pela de faculdade de conhecimento

como se natildeo houvesse aiacute nenhum problema dando poreacutem um salto mais perigoso e arriscado

do que todos os de Jacobi Mas entatildeo o ceacuterebro seria apresentado como o criador das

representaccedilotildees colocando-as no tempo e no espaccedilo e ao mesmo tempo seria condicionado

pelas formas que o constituem ele as produziria e seria produzido por elas Nesse sentido

escreve Gueroult

Aqui como laacute Schopenhauer se contentou em justapor teorias heterogecircneas

o idealismo transcendental de Kant e o materialismo dos franceses de

Cabanis de Bichat etc segundo o qual o pensamento eacute uma secreccedilatildeo do

ceacuterebro ldquoO organismo eacute objetivaccedilatildeo da vontade o ceacuterebro eacute a

eflorescecircncia do organismordquo (Welt Ergaumlnzungen ch xxii R II p 321)108

Na obra Aporie und Subjekt Martim Booms se dedica especificamente ao

estudo das dificuldades do pensamento schopenhaueriano Segundo ele haacute uma estrutura

aporeacutetica que se expressa no conteuacutedo e no meacutetodo de Schopenhauer bem como uma relaccedilatildeo

de tensatildeo de sua filosofia consigo mesma109

A aporia se encontraria jaacute nas bases do sistema

no dualismo que apresenta o mundo como estritamente representaccedilatildeo objeto de

conhecimento em uma consciecircncia e ao mesmo tempo como Vontade em si objeto de uma

visatildeo essencialmente metafiacutesica estendida agrave eacutetica e agrave esteacutetica Nesse dualismo de um lado o

mundo deve ser entendido como fenocircmeno como deficitaacuterio e secundaacuterio em relaccedilatildeo agrave

Vontade sem poder livrar-se da submissatildeo a ela De outro esse fenocircmeno deve superar a

coisa em si natildeo apenas do ponto de vista teoacuterico mas tambeacutem existencial e ontologicamente

106

Ibidem p 241 107

Ibidem loc cit 108

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 109

BOOMS M Aporie und Subjekt Die erkenntnistheoretische Entfaltungslogik der Philosophie

Schopenhauers Beitraumlge zur Philosophie Schopenhauers herausgegeben von Dieter Birnbacher und Heinz Gerd

Ingekamp Band 6 Wurzburg Koumlnigshausen amp Neuman 2003 p 17

- 206 -

diz Booms ldquo[] num tipo de rebeliatildeo do secundaacuterio contra o primaacuterio do criado contra seu

senhorrdquo110

Essa seria a aporia fundamental que colocaria o conhecimento e a Vontade em

uma paradoxal aniquilaccedilatildeo muacutetua intitulada por Schopenhauer ldquocontradiccedilatildeo do fenocircmeno

consigo mesmordquo (Widerspruch der Erscheinung mit sich selbst)

No entender de Booms o conceito de sujeito eacute construiacutedo por

Schopenhauer com base tanto nesse dualismo como no realismo promovendo a expulsatildeo da

coisa em si da teoria do conhecimento de um modo radical Em virtude dessa concepccedilatildeo

surge uma primeira inconsistecircncia uma aporia na qual se coloca o domiacutenio do externo no

proacuteprio sujeito e que rebatendo na teoria do conhecimento emaranha-a em um ciacuterculo

manifesto111

Nas palavras desse autor a antinomia da teoria do conhecimento ldquo[] resulta

dos pontos de vista circulares e entrelaccedilados de uma explicaccedilatildeo natural-materialista de um

lado assim como de uma deduccedilatildeo ideal-filosoacutefica a partir da consciecircncia do sujeito que

conhece e constroacutei o mundo de outrordquo112

De acordo com isso aquele problema natildeo seria um

produto secundaacuterio da teoria da representaccedilatildeo schopenhaueriana mas ldquo[] o centro e a

estrutura fundamental do bdquopensamento uacutenico‟ como um todordquo113

E assim como um genoacutetipo

se expressa em fenoacutetipos diferenciados mas uniformes tambeacutem a antinomia seria refletida em

diferentes dimensotildees114

43 ndash Soluccedilotildees apologeacuteticas agrave antinomia da faculdade de conhecimento

Na introduccedilatildeo que escreve agrave sua ediccedilatildeo das obras completas de

Schopenhauer Frauenstaumldt apresenta seu posicionamento quanto agraves criacuteticas que o filoacutesofo

110

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 111

Ibidem p 230 112

Ibidem p 18 (traduccedilatildeo nossa) 113

Ibidem p 157 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 114

Ibidem p 230

- 207 -

recebeu115

Para ele as falhas encontradas natildeo se deviam agrave proacutepria filosofia

schopenhaueriana mas a uma interpretaccedilatildeo feita a partir do exterior do sistema e de sentenccedilas

avulsas com as quais se julgavam o todo A partir de frases soltas diz ele pode-se fazer o

que se quiser de modo que a justiccedila para com um autor exige que se siga no sentido contraacuterio

isto eacute que as sentenccedilas avulsas sejam interpretadas a partir do conjunto teoacuterico completo116

Para Frauenstaumldt Schopenhauer teria indicado o modo correto de ler suas obras justamente

no intuito de evitar ser julgado dessa forma

Como se pressentisse que isso aconteceria com ele como de fato aconteceu

de abordarem seu sistema a partir de fora planejando extrair sentenccedilas do

contexto para entatildeo bradar sobre contradiccedilotildees absurdos inconsequecircncias e

assim por diante ele jaacute esclareceu na introduccedilatildeo da primeira ediccedilatildeo de ldquoO

mundo como vontade e representaccedilatildeordquo como ele deve ser lido para que seja

compreendido117

Esse seria o motivo pelo qual Schopenhauer teria exigido que sua obra

fosse lida duas vezes na primeira com paciecircncia para que na segunda tudo pudesse ser visto

sob nova luz Por isso tambeacutem a recomendaccedilatildeo de que nunca se perdesse de vista a conexatildeo

necessaacuteria entre as sentenccedilas separadas e o pensamento principal nem a progressatildeo da

exposiccedilatildeo A divisatildeo do pensamento uacutenico em livros distintos e em diferentes pontos de vista

seria algo inevitaacutevel pois natildeo haveria como remeter todas as ramificaccedilotildees do pensamento a

um uacutenico ponto e adicionalmente expor clara e minuciosamente meditaccedilotildees e provas que

ocuparam muitos anos

Aleacutem disso o entendimento da filosofia schopenhaueriana tambeacutem teria

sido dificultado pelas discrepacircncias de linguagem e de expressatildeo da primeira ediccedilatildeo de O

Mundo em relaccedilatildeo agrave segunda e ao O MundoII Contudo afirma Frauenstaumldt tendo-se em

mente o fato de que aquelas ediccedilotildees foram escritas uma na juventude e outra na maturidade

seria possiacutevel superar os obstaacuteculos por meio da elaboraccedilatildeo completa e posterior118

Trata-se

de uma limitaccedilatildeo inexpugnaacutevel mas ele escreve

Schopenhauer de fato admitiu que haja uma diferenccedila na elaboraccedilatildeo e na

fundamentaccedilatildeo entre a primeira exposiccedilatildeo de seu sistema e a que apareceu

25 anos depois como haacute entre a juventude e a velhice mas que ambas se

115

SCHOPENHAUER A Saumlmmtliche Werke Herausgegeben von Julius Frauenstaumldt Band 1 Leipzig

Brockhaus 1873 p XXVIII et seq 116

Ibidem p XXVIII 117

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 118

Ibidem p XXIX-XXX

- 208 -

contradigam ele admitiu tatildeo pouco como que a natureza se contradiga ao dar

caracteriacutesticas diferentes para o jovem e o velho119

Frauenstaumldt argumenta ainda que a consistecircncia no sistema

schopenhaueriano natildeo se apresenta da mesma forma que nas obras dos outros filoacutesofos Os

outros sistemas diz ele constroem sua coerecircncia por meio de deduccedilotildees de sentenccedilas entre si

desenvolvendo e repetindo o que jaacute estaacute contido nas proposiccedilotildees fundamentais

Diferentemente o sistema de Schopenhauer natildeo se fundamenta em cadeias de raciociacutenios

mas imediatamente no mundo intuitivo de modo que sua coerecircncia natildeo se apoia em meras

regras loacutegicas mas na concordacircncia natural das sentenccedilas com o mundo real dado na

consciecircncia120

Por isso de acordo com ele Schopenhauer natildeo precisou se preocupar com a

harmonia entre todas as suas sentenccedilas nem quando vez por outra proposiccedilotildees avulsas

pareciam ser incompatiacuteveis entre si Nas palavras dele ldquo[] a concordacircncia surgiu depois por

si mesma na medida em que as sentenccedilas se reuniram completamente porque ela natildeo eacute outra

coisa senatildeo a concordacircncia da realidade consigo mesma que nunca pode falharrdquo121

Na segunda carta das suas Neue Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche

Philosophie Frauenstaumldt tece consideraccedilotildees gerais sobre a presenccedila de inconsequecircncias e

contradiccedilotildees em grandes pensadores Para ele esses problemas natildeo diminuiriam o valor do

pensamento e uma vez que filoacutesofo algum jamais esteve totalmente livre deles seria

necessaacuterio entatildeo declarar todos os sistemas como invaacutelidos122

Incoerecircncias e contradiccedilotildees

natildeo significariam ausecircncia de verdades as quais nada teriam a ver com consequecircncia loacutegica

Assim diz Frauenstaumldt a harmonia formal pode comparecer inclusive em sistemas

dogmaacuteticos mas eacute a relaccedilatildeo com a experiecircncia que decide sobre a verdade deles Uma

filosofia livre de contradiccedilotildees que esteja fundamentada em conceitos e princiacutepios abstratos

sem correspondecircncia com a realidade seria menos vantajosa do que um sistema contraditoacuterio

ele explica ldquoPois de duas afirmaccedilotildees contraditoacuterias entre si pelo menos uma pode ser uma

verdadeira enquanto de duas natildeo contraditoacuterias entre si ambas podem ser falsasrdquo123

A

verdadeira contradiccedilatildeo se daria com relaccedilatildeo agrave experiecircncia aos fatos os uacutenicos que poderiam

servir de medida para se julgar se uma filosofia possui ou natildeo relevacircncia se deve ou natildeo ser

abandonada Na concepccedilatildeo de Frauenstaumldt embora possa ser repleto de contradiccedilotildees o

119

Ibidem p XXXI (traduccedilatildeo nossa) 120

Ibidem p XXXII-XXXIII 121

Ibidem p XXXIII (traduccedilatildeo nossa) 122

FRAUENSTAumlDT J Neue Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1876 p 4 123

Ibidem p 5 (traduccedilatildeo nossa)

- 209 -

pensamento schopenhaueriano natildeo carece de valor e na verdade o possui em maior grau do

que um sistema racional construiacutedo a priori124

Especificamente sobre o problema a que nos dedicamos Frauenstaumldt

defende Schopenhauer contra Zeller Na carta 27 ele afirma haver muita confusatildeo sobre a

relaccedilatildeo de Schopenhauer com o materialismo o que levaria os diversos comentadores a

sustentar diferentes posiccedilotildees Enquanto alguns entenderiam o filoacutesofo como materialista pela

sua concepccedilatildeo do intelecto como funccedilatildeo do ceacuterebro outros o acusariam de esvaziar a mateacuteria

em uma concepccedilatildeo idealista ao apresentaacute-la como representaccedilatildeo Outros ainda veriam um

ciacuterculo no fato de que o espiacuterito eacute derivado por Schopenhauer a partir da mateacuteria e ao mesmo

tempo a mateacuteria eacute esclarecida como representaccedilatildeo do espiacuterito125

No seu entendimento poreacutem a filosofia schopenhaueriana se diferencia

essencialmente do materialismo embora tambeacutem admita a mateacuteria como uma substacircncia

eterna e incriada que permanece sob todas as mudanccedilas perceptiacuteveis no mundo fenomecircnico e

agrave qual nenhuma substacircncia espiritual pode ser equiparada A mateacuteria no sentido

schopenhaueriano natildeo se relacionaria agrave intuiccedilatildeo apenas ao pensamento na medida em que

seria meramente um fazer feito isto eacute pura abstraccedilatildeo Ela natildeo seria um objeto da experiecircncia

mas como fundamento desta pertenceria agraves condiccedilotildees formais e a priori do conhecimento126

As determinaccedilotildees e os elementos que soacute se encontram a posteriori ao contraacuterio fariam parte

do lado empiacuterico do mundo e anunciariam a coisa em si Portanto diz Frauenstaumldt

Schopenhauer eacute materialista no sentido do antiespiritualismo mas eacute antimaterialista na

medida em que natildeo toma a mateacuteria como a coisa em si127

Na carta 28 Frauenstaumldt afirma que Schopenhauer diluiu a mateacuteria em

Vontade e em representaccedilatildeo tornando falsa tanto a afirmaccedilatildeo de que ele a dissolveu em uma

concepccedilatildeo idealista de fenocircmeno quanto a de que ele eacute um materialista puro e simples128

De

um lado contra a reduccedilatildeo da mateacuteria a representaccedilatildeo Schopenhauer teria apontado a Vontade

como o nuacutecleo dela De outro contra visatildeo de uma independecircncia realista da mateacuteria teria

argumentado que ela natildeo eacute a coisa em si que natildeo eacute independente de um sujeito cognoscente

De acordo com isso Frauenstaumldt entende que tambeacutem eacute falsa a acusaccedilatildeo de haver um ciacuterculo

124

Ibidem p 5 125

Ibidem p 138 126

Ibidem p 142 127

Ibidem p 145 128

Ibidem p 161

- 210 -

no qual a mateacuteria deriva da representaccedilatildeo e inversamente a representaccedilatildeo deriva da mateacuteria

pois os termos seriam usados em sentidos diferentes em ambas as sentenccedilas Nas palavras

dele ldquoO lado da mateacuteria que aparece que eacute condicionado a priori ele deduz da

representaccedilatildeo a representaccedilatildeo ao contraacuterio ele deduz do lado real da mateacuteria da Vontade

nos graus da vida animal Onde estaacute aqui o ciacuterculordquo129

Assim como a mateacuteria o ceacuterebro

tambeacutem possuiria um lado concernente agrave representaccedilatildeo e outro concernente agrave Vontade Do

ponto de vista ideal aquele oacutergatildeo eacute produto da representaccedilatildeo mas do ponto de vista real

enquanto coisa em si eacute o produtor da representaccedilatildeo Entatildeo diz Frauenstaumldt ldquoSegundo

Schopenhauer o ceacuterebro natildeo eacute produto da representaccedilatildeo no mesmo sentido em que eacute produtor

dela eacute produto da representaccedilatildeo enquanto objeto da intuiccedilatildeo externa e ao contraacuterio eacute

produtor da representaccedilatildeo segundo seu ser interno isto eacute como Vontade de conhecerrdquo130

Na interpretaccedilatildeo de Paul Deussen Schopenhauer foi o uacutenico poacutes-

kantiano que conseguiu desenvolver a filosofia de Kant a contento Na obra Allgemeine

Geschichte der Philosophie131

ele escreve que Kant realizou a separaccedilatildeo precisa entre os

elementos a priori e a posteriori da consciecircncia bem como demonstrou a necessidade de

ambos para a constituiccedilatildeo da experiecircncia Com isso contribuiu para a tarefa de toda a

filosofia que afirma Deussen sempre foi e sempre seraacute tornar compreensiacuteveis o objetivo e

subjetivo que formam a unidade do mundo132

Para ele Fichte Schelling Hegel e Herbart

passaram por cima da argumentaccedilatildeo kantiana e tentaram deduzir o mundo como um todo

partindo apenas de um daqueles dois elementos acreditando que assim poderiam eliminar as

supostas contradiccedilotildees entre eles Nas palavras de Deussen

Schopenhauer tomou um caminho totalmente diferente de todos os

pensadores mencionados posto que ele e somente ele entre todos os ilustres

sucessores de Kant apropriou-se perfeita e completamente dos resultados da

investigaccedilatildeo kantiana ndash reconhecidos por ele como irrefutaacuteveis e apenas

purgados de falsos abusos ndash trabalhou sobre eles e por assim dizer

atualizando no mesmo estilo Kant desenvolveu as consequecircncias das

doutrinas em todas as regiotildees da filosofia deste assim com todo direito

considera somente sua filosofia como desdobramento ateacute o fim da filosofia

kantiana133

129

Ibidem p 161 (traduccedilatildeo nossa) 130

Ibidem p 162 (traduccedilatildeo nossa) 131

DEUSSEN P Allgemeine Geschichte der Philosophie 2 Band 3 Abteilung 2 Auflage (Neuere

Philosophie von Descartes bis Schopenhauer) Leipzig Brockhaus 1920 132

Ibidem p 377 133

Ibidem p 378 (traduccedilatildeo nossa)

- 211 -

A respeito do problema que nos ocupa Deussen considera tratar-se de

uma questatildeo inevitaacutevel apontada natildeo somente no pensamento de Schopenhauer mas tambeacutem

no kantiano O ciacuterculo no qual a mateacuteria e a consciecircncia exigem-se mutuamente como

condiccedilatildeo uma da outra seria inexpugnaacutevel134

De um lado uma vez que o tempo o espaccedilo e a

causalidade satildeo formas da consciecircncia sem as quais a mateacuteria natildeo existe o mundo material

como um todo natildeo existiria sem a consciecircncia Em segundo natildeo se poderia negar que

conhecemos a consciecircncia unicamente como funccedilatildeo de um oacutergatildeo material o ceacuterebro o qual

diz Deussen ldquo[] para surgir teve como condiccedilatildeo um longo desenvolvimento da mateacuteria no

tempo e no espaccedilordquo135

Para ele as ciecircncias da natureza demonstram que o ciacuterculo eacute

irremediaacutevel pois apoacutes todas as pesquisas e descobertas o pesquisador retornaraacute ao ponto de

iniacutecio isto eacute agrave sua consciecircncia como condiccedilatildeo para os inumeraacuteveis desenvolvimentos da

mateacuteria descobertos O investigador perceberaacute entatildeo que partindo-se do inorgacircnico chega-se

por aperfeiccediloamentos contiacutenuos da mateacuteria ateacute o ceacuterebro humano isto eacute ateacute a consciecircncia

que poreacutem jaacute estava pressuposta desde o iniacutecio como condiccedilatildeo Portanto perceberaacute que tudo

aquilo natildeo passa de uma cadeia de representaccedilotildees na sua proacutepria consciecircncia136

Assim como Frauensaumldt Deussen tambeacutem considera que natildeo haacute de fato

um problema loacutegico na antinomia da faculdade do conhecimento pois a consciecircncia estaria

sendo tomada em sentidos diferentes aquela que origina o mundo seria distinta da que eacute

originada por este No primeiro caso seria a consciecircncia transcendental da qual surgem

tempo espaccedilo e mateacuteria no segundo seria a consciecircncia empiacuterica que somente pode surgir a

partir do tempo do espaccedilo e da mateacuteria137

Conforme Deussen o mundo eacute ao mesmo tempo

eterno e dependente das formas do intelecto de modo que a consciecircncia transcendental seria

tatildeo eterna ou alheia ao tempo quanto o proacuteprio mundo O ser das formas intelectuais estaria

entatildeo garantido e neles surgiriam todos os fenocircmenos incluindo as funccedilotildees cerebrais da

consciecircncia empiacuterica humana Esta uacuteltima surgiria no fenocircmeno a partir da transcendental de

modo que ambas teriam de ser distinguidas embora natildeo diferenciadas138

134

Ibidem p 456 135

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 136

Ibidem p 457 137

Ibidem loc cit 138

Ibidem p 458-459

- 212 -

Na obra Denker gegen den Strom139

Arthur Huumlbscher avalia que todos os

opositores de Schopenhauer agem de modo semelhante a saber valendo-se de objeccedilotildees e

argumentos chegam em um problema formal Para Huumlbscher eacute preciso lembrar que o

filoacutesofo realiza a passagem do primeiro para o segundo livro de O Mundo de modo

imediato e que a mudanccedila de pontos de vista natildeo eacute realizada por um tipo de inspiraccedilatildeo uacutenica

ou excepcional Na verdade diz ele a mudanccedila de pontos de vista faz parte do meacutetodo de

Schopenhauer que sempre obteacutem seus resultados pela alternacircncia de consideraccedilotildees e pela

surpreendente junccedilatildeo de observaccedilotildees opostas140

Como ele escreve ldquoHaacute transiccedilotildees de anaacutelise

epistemoloacutegica para a fisioloacutegica de loacutegica para psicoloacutegica Haacute um opor e unir de fatos da

experiecircncia com fatos para aleacutem da experiecircnciardquo141

Uma mesma linguagem tem de dar conta

de avanccedilos e retornos entre dois os reinos distintos o da representaccedilatildeo e o da coisa em si o

que no entanto exigiria o uso de dois oacutergatildeos diferentes Natildeo possuiacutemos um oacutergatildeo de

conhecimento que nos leve aleacutem da experiecircncia diz Huumlbscher ldquo[] nenhuma palavra ou

conceito que livre de qualquer ligaccedilatildeo com a intuiccedilatildeo possa ser expressatildeo imediata da visatildeo

metafiacutesicardquo142

Eacute aiacute entatildeo que deveraacute entrar a metaacutefora e a interpretaccedilatildeo para que se possa

expressar um sentido verdadeiro para se registrar e iluminar o desconhecido e intangiacutevel por

meio do conhecido e tangiacutevel

Huumlbscher considera que as objeccedilotildees ao pensamento de Schopenhauer

podem ser todas remetidas agravequelas mudanccedilas de pontos de vista e que a antinomia da teoria

do conhecimento eacute o exemplo mais conhecido entre as criacuteticas No fim de contas a questatildeo

giraria em torno do confronto irreconciliaacutevel entre o modo de consideraccedilatildeo realista e o

idealista no qual ambos os lados teriam razatildeo Portanto como ressaltado pelo proacuteprio

Schopenhauer seria tatildeo verdadeiro que a mateacuteria seja uma mera representaccedilatildeo do sujeito

cognoscente quanto que o sujeito cognoscente seja um produto da mateacuteria143

O mundo seria

entatildeo real do ponto de vista empiacuterico e ideal do ponto de vista transcendental sem que para

isso se exigisse um sujeito supraempiacuterico ou uma consciecircncia transcendente Colocado de

forma metafoacuterica ldquoEacute como se daacute no caso de duas afirmaccedilotildees contrapostas sobre uma esfera

139

HUumlBSCHER A Denker gegen den Strom Schopenhauer Gestern ndash Heute ndash Morgen 4 Durchgesehene

Auflage Bonn Bouvier 1988 140

Ibidem p 254 141

Ibidem p 255 (traduccedilatildeo nossa) 142

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 143

Ibidem p 256

- 213 -

oca ndash que seja cocircncava e que seja convexa ndash agraves quais se chega por meio da unificaccedilatildeo da visatildeo

que se tem no ponto de vista do observador ndash dentro ou fora da bolardquo144

Conforme Rudolf Malter a objetivaccedilatildeo da Vontade parece colocar o

transcendentalismo e a metafiacutesica de Schopenhauer em conflito Na obra Arthur

Schopenhauer Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens145

ele afirma que do

ponto de vista transcendental a representaccedilatildeo tem de ser tomada como dada enquanto do

ponto de vista da metafiacutesica ela somente pode existir por meio de um processo em que a

Vontade se objetiva a si mesma146

De fato diz Malter da perspectiva metafiacutesica a Vontade

se manifesta por meio da mateacuteria que eacute sua visibilidade e uma representaccedilatildeo imaterial eacute

impossiacutevel Como ele explica ldquoA presenccedila material da Vontade na objetivaccedilatildeo graduada da

bdquorepresentaccedilatildeo‟ eacute o organismo animal no qual por sua vez existe o proacuteprio representar

(consciecircncia) objetivamente no ceacuterebrordquo147

No entanto para Malter natildeo se poderia daiacute concluir que devesse haver

um ponto de vista objetivo a ser adotado antes mesmo que o mundo entrasse no horizonte da

representaccedilatildeo pois isso equivaleria a um salto da metafiacutesica da Vontade por sobre o

idealismo Quando Schopenhauer fala da representaccedilatildeo como uma objetivaccedilatildeo da Vontade

natildeo estaria afirmando que o entendimento ou a razatildeo alcanccedilariam o autoconhecimento mas

simplesmente que nas palavras desse autor ldquo[] o intelecto (que abrange entendimento e

razatildeo) enquanto intelecto eacute fenocircmeno e nesse sentido existe (natildeo como sujeito

transcendental) como mateacuteria enquanto eacute objetivaccedilatildeo da Vontaderdquo148

O ponto de vista do

idealismo natildeo seria aniquilado nem limitado por essa visatildeo objetiva do intelecto pois mesmo

quando o ser deste se torna visiacutevel pela sua realizaccedilatildeo material no ceacuterebro isso natildeo

significaria que este fosse condiccedilatildeo da representaccedilatildeo do ponto de vista transcendental do

mesmo modo que o idealismo eacute condiccedilatildeo da consideraccedilatildeo metafiacutesica No entender de Malter

Schopenhauer estava convicto de que o ponto de vista objetivo do intelecto soacute eacute possiacutevel

quando o ponto de vista subjetivo estaacute pressuposto149

Por conseguinte ele escreve

O ensinamento sobre a ldquovisatildeo objetiva do intelectordquo deve ser lido

metafisicamente mas a metafiacutesica da Vontade eacute concebida

144

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 145

MALTER R Arthur Schopenhauer Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens Sttutgart-Bad

Cannstatt FrommannHolzboog 1991 146

Ibidem p 268 147

Ibidem p 269 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 148

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 149

Ibidem p 270

- 214 -

transcendentalmente em muacuteltiplas camadas ndash e isso significa na concepccedilatildeo

transcendental da filosofia schopenhaueriana como um todo a ldquovisatildeo

objetiva do intelectordquo natildeo muda nada Ela apenas liberta a interpretaccedilatildeo

metafiacutesica da natureza adquirida no horizonte transcendental para a

consideraccedilatildeo empiacuterica posterior em especial nas ciecircncias anatocircmico-

fisioloacutegicas150

Volker Spierling expotildee seu entendimento sobre nosso tema na sua

introduccedilatildeo a Materialien zu Schopenhauers ldquoDie Welt als Wille und Vorstellungrdquo Para ele eacute

preciso considerar que Schopenhauer natildeo fundamenta sua filosofia no realismo nem no

idealismo mas sim na experiecircncia O filoacutesofo natildeo apoiaria seu pensamento em um objeto

independente de qualquer sujeito nem em um sujeito independente de qualquer objeto mas

na experiecircncia que implica ambos e os tem igualmente como condiccedilotildees151

Conforme

Spierling essa unidade natildeo pode ser rompida tomando-se qualquer um dois lados como

absoluto nem se pode deduzir a outra metade da experiecircncia a partir de apenas um deles Nas

suas palavras ldquoDesse modo eacute quebrada a unidade sujeito-objeto que Schopennhauer levou

para dentro da consciecircncia (como tambeacutem o princiacutepio de razatildeo suficiente) e por uma

problemaacutetica abstraccedilatildeo ou o subjetivo ou o objetivo eacute suposto original e filosoficamente

como o primeiro absolutordquo152

O cerne do idealismo schopenhaueriano seria a anaacutelise do surgimento da

realidade objetiva por meio da exposiccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo das classes de objetos e das

faculdades intelectuais Nessa anaacutelise embora a experiecircncia seja um produto subjetivo a

aparecircncia surgiria como algo real factual porque o trabalho do entendimento natildeo pode ser

sentido ou percebido pelo sujeito cognoscente153

No entendimento de Spierling daiacute resultaraacute

uma visatildeo transcendente do aspecto fisioloacutegico ou nas palavras dele ldquoAqui fica evidente que

Schopenhauer ao lado de determinaccedilotildees transcendental-imanentes utiliza tambeacutem

determinaccedilotildees fisioloacutegicas em sentido transcendenterdquo154

Poreacutem Schopenhauer teria boas

razotildees para conectar o intelecto ao ceacuterebro isto eacute natildeo seria uma associaccedilatildeo gratuita ou

arbitraacuteria Com efeito diz Spierling a operaccedilatildeo proacutepria do entendimento natildeo passa por

conceitos nem se relaciona com o pensamento racional mas eacute descrita pelo filoacutesofo como

uma funccedilatildeo fisioloacutegica do ceacuterebro presente em todos os animais e meramente subjetiva Da

subjetividade da accedilatildeo do entendimento bem como da sensaccedilatildeo dos sentidos resultaria o

150

Ibidem p 270-271 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 151

SPIERLING Volker Materialien zu Schopenhauers ldquoDie Welt als Wille und Vorstellungrdquo Herausgegeber

kommentiert und eingeleitet von Volker Spierling Frankfurt am Main Suhrkamp 1984 p 41 152

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 153

Ibidem p 45 154

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa)

- 215 -

verdadeiro idealismo transcendental e a natureza ilusoacuteria do mundo bem como o aparente

antimaterialismo radical de Schopenhauer155

A partir daiacute surge segundo Spierling um inevitaacutevel dilema As ciecircncias

devem necessariamente ultrapassar o idealismo transcendental pois suas conclusotildees mostram

que no decurso do tempo haacute um aperfeiccediloamento no sentido dos seres do mais simples aos

mais complexos contrariando a dependecircncia subjetiva de todos os objetos empiacutericos O

mesmo entendimento que criaria o mundo com sua causalidade a priori teria de ser

compreendido por sua vez como uma criaccedilatildeo causal156

Entatildeo escreve Spierling

ldquoSchopenhauer se enreda com isso em um ciacuterculo que consiste em que as condiccedilotildees

transcendental-idealistas do mundo teratildeo de ser pensadas simultaneamente como seus

resultados materialistasrdquo157

Natildeo obstante para esse autor a dependecircncia extrema e unilateral do

objeto em relaccedilatildeo ao sujeito tem necessariamente de ser completada com a investigaccedilatildeo das

suas condiccedilotildees objetivas e reais A proacutepria investigaccedilatildeo filosoacutefico-transcendental eacute que teria

conduzido Schopenhauer agraves duas posiccedilotildees divergentes de modo que o filoacutesofo teria sido

obrigado a seguir os dois caminhos opostos e admitir ambos com os mesmos direitos como

complementos muacutetuos Parar no idealismo transcendental teria sido o mesmo que tomar as

condiccedilotildees subjetivas do pensamento por conhecimento do objeto158

O correto na

interpretaccedilatildeo de Spierling eacute entender a questatildeo no sentido da metaacutefora que Schopenhauer

apresenta no sect 391 de ldquoMetaacuteforas paraacutebolas e faacutebulasrdquo de Parerga e Paralipomena Nesse

texto o filoacutesofo afirma que se trata de misteacuterio a razatildeo pela qual uma pessoa que se eleva

dentro de um balatildeo natildeo enxerga a si mesma subindo mas sim a Terra descendo159

Nesse

sentido escreve Spierling

Mas Schopenhauer quer ambos ele se eleva por assim dizer dentro do

balatildeo e reflete as proacuteprias condiccedilotildees subjetivas que decisivamente estatildeo laacute

para isso e tambeacutem o modo como ele deixa o mundo abaixo de si []

simultaneamente ele permanece abaixo no chatildeo portanto fora do balatildeo de

onde ele procura verificar as condiccedilotildees objetivo-realistas de sua elevaccedilatildeo

portanto tambeacutem de sua proacutepria reflexatildeo Ambos os tipos de condiccedilotildees

155

Ibidem p 47 156

Ibidem p 48 157

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 158

Ibidem p 49 159

PP II Gleichnisse Parabeln und Fabeln sect 391 p 763

- 216 -

valem para ele aqui de modo fundamentalmente equivalente isto eacute nenhuma

pode ser subsumida na outra160

Por fim no texto ldquoSchopenhauers subjektive und objektive

Betrachtungsweise des Intellektsrdquo161

Alfred Schmidt se dedica agrave antinomia da teoria do

conhecimento considerando que a questatildeo precisa ser conectada agrave visatildeo schopenhaueriana

acerca da eacutetica Sem tentar encontrar uma soluccedilatildeo para a questatildeo ele ressalta que o filoacutesofo

separa radicalmente o acircmbito do fiacutesico e o do moral na medida em que afasta a liberdade e a

responsabilidade do domiacutenio da natureza A natureza se conecta agrave representaccedilatildeo e com isso agrave

consciecircncia e agrave subjetividade na medida em que diz Schmidt todos os seres intuitivos

existem por meio das formas da representaccedilatildeo Natildeo obstante em razatildeo de sua dependecircncia

relativamente ao ceacuterebro o mundo intuitivo possuiria aleacutem das condiccedilotildees subjetivas tambeacutem

pressupostos objetivos e a questatildeo seria novamente a relaccedilatildeo entre real e ideal162

Assim

afirma Schmidt ldquoEle [Schopenhauer] indaga a bdquorelaccedilatildeo do ideal com o real‟ equiparando este

com a Vontade aquele com o mundo como fenocircmeno cerebral Este uacuteltimo eacute o bdquomundo na

cabeccedila‟ aquele o bdquomundo fora da cabeccedila‟rdquo163

Em vista disso o conhecimento mais puro e

mais perfeito seria o que se liberta da Vontade e entra no campo da eacutetica

Schmidt enfatiza que para Schopenhauer a perspectiva subjetiva dos

objetos eacute unilateral e relativa tendo necessariamente de ser completada pelo ponto de vista

objetivo que por seu turno exige a consideraccedilatildeo fisioloacutegica do intelecto Nas palavras dele

ldquoSeu ponto de vista empiacuterico pressupotildee a bdquodependecircncia universal e completa da consciecircncia

cognoscente em relaccedilatildeo ao ceacuterebro‟rdquo164

Daiacute decorreriam as afirmaccedilotildees simultacircneas de que a

cadeia hieraacuterquica e graduada dos seres naturais tem de ser pensada como fora do tempo e

tambeacutem de que o intelecto associado ao ceacuterebro eacute um produto tardio que exige uma histoacuteria

natural a qual por sua vez exige a correlaccedilatildeo entre sujeito e objeto dada no proacuteprio

intelecto165

Entatildeo escreve Schmidt ldquoA dificuldade de Schopenhauer se baseia em que ele

acredita poder incorporar verdades elementares do materialismo sem diminuiccedilatildeo da sua

bdquoconcepccedilatildeo idealista fundamental‟rdquo166

A representaccedilatildeo seria vista como o lado externo do

160

SPIERLING Volker Materialien zu Schopenhauers ldquoDie Welt als Wille und Vorstellungrdquo Herausgegeber

kommentiert und eingeleitet von Volker Spierling Frankfurt am Main Suhrkamp 1984 p 49-50 (traduccedilatildeo

nossa) (grifos do autor) 161

SCHMIDT A Schopenhauer subjektive und objektive Betrachtungsweise des Intellekts Schopenhauer-

Jahrbuch 86 2005 p 105-132 162

Ibidem p 107 163

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 164

Ibidem p 110-111 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 165

Ibidem p 112 166

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor)

- 217 -

mundo cujo centro eacute a Vontade entendida poreacutem como transcendente em relaccedilatildeo aos

elementos subjetivos do conhecimento O filoacutesofo misturaria o dualismo kantiano com o

monismo de Espinosa e diz Schmidt sua

Metafiacutesica a posteriori ultrapassa a natureza dada no cotidiano e na ciecircncia

na medida em que a interpreta e expotildee Ao decifrar o ldquoconjunto a

experiecircnciardquo alcanccedilam-se visotildees ldquoque natildeo vecircm agrave consciecircnciardquo O que se

oculta ldquodentro ou atraacutesrdquo da natureza eacute sempre apenas o que ldquoaparece nelardquo167

Natildeo obstante Schopenhauer admitiria o naturalismo na concepccedilatildeo

fisioloacutegica do ceacuterebro somente ateacute o ponto em que o idealismo se impusesse e promovesse a

exclusatildeo daquele Isso ocorreria por meio da perspectiva eacutetica na medida em que a teoria do

conhecimento teria evidenciado o caraacuteter secundaacuterio e ilusoacuterio do mundo fenomecircnico

segundo uma tendecircncia moral fundamental Nas palavras de Schmidt

Quanto agrave convicccedilatildeo de Schopenhauer de uma ordem do mundo uma

segunda moral ela seraacute possibilitada pela sua concepccedilatildeo filosoacutefico-

transcendental que relativiza a realidade objetiva do mundo entatildeo fica

evidente que este por sua vez eacute relativo agrave dependecircncia natural do intelecto

que Schopenhauer continuamente sublinha Como o proacuteprio intelecto eacute uma

parte da natureza natildeo pode contrapor-se a ela ndash que reduz suas pretensotildees

transcendentais ndash ldquocomo algo totalmente estranhordquo168

44 ndash Anaacutelise pessoal

Como a exposiccedilatildeo anterior deixou claro a filosofia de Schopenhauer tem

sido avaliada das mais diversas maneiras ao longo da Histoacuteria Com exceccedilatildeo das

apresentaccedilotildees de cunho geral cada inteacuterprete de sua obra procura um fio condutor que possa

guiar a compreensatildeo das vaacuterias facetas que ela apresenta e em funccedilatildeo disso podemos

encontrar interpretaccedilotildees que situam o ponto central do sistema no materialismo no idealismo

no pessimismo na esteacutetica na moral no consolo na trageacutedia na salvaccedilatildeo entre outros

167

Ibidem p 113 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 168

Ibidem p 125 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor)

- 218 -

Proporemos aqui uma leitura alternativa cuja motivaccedilatildeo estaacute nas tensotildees e dificuldades que o

pensamento schopenhaueriano revela aos seus leitores Ao que nos parece essas tensotildees e

dificuldades satildeo constitutivas essenciais isto eacute fazem parte da sua estrutura e natildeo podem ser

eliminadas Sintomaticamente o problema das contradiccedilotildees e dos conflitos entre teses opostas

tem permanecido no decurso do tempo e as tentativas de resoluccedilatildeo natildeo tiveram resultado

definitivo Para noacutes isso significa que a questatildeo eacute mais complexa do que se tem pensado e

exige uma mudanccedila de perspectiva e de abordagem

Partindo dessa convicccedilatildeo pensamos que eacute possiacutevel esclarecer a estrutura

da filosofia schopenhaueriana e as decisotildees teoacutericas tomadas pelo filoacutesofo com base na

concepccedilatildeo das chamadas loacutegicas paraconsistentes Nossa intenccedilatildeo natildeo eacute eliminar ou resolver

os problemas mas apontar uma perspectiva em que eles natildeo sejam estagnadores isto eacute natildeo

interrompam a investigaccedilatildeo como obstaacuteculos intransponiacuteveis Nesse sentido lembramos a

concepccedilatildeo de Schopenhauer sobre deduccedilotildees demonstraccedilotildees verdades e certezas Como

vimos para ele nem tudo pode ser demonstrado de modo exaustivo e isso natildeo significa

prejuiacutezo algum para a verdade ou a certeza acerca das afirmaccedilotildees Haacute diversos conhecimentos

indemonstraacuteveis e simultaneamente verdadeiros e certos como as intuiccedilotildees a priori do

tempo e do espaccedilo o uacuteltimo elo das cadeias de raciociacutenios e o proacuteprio princiacutepio de razatildeo De

fato Schopenhauer considera que as verdades trazidas agrave tona por demonstraccedilatildeo satildeo as

abstratas conhecidas somente por conceitos e que sua persuasatildeo natildeo eacute tatildeo forte como as

ligadas a intuiccedilotildees ou a conhecimentos a priori Eacute a diferenccedila entre convictio e cognitio que

faz a uacuteltima preferiacutevel agrave primeira Em vista disso julgamos que a loacutegica natildeo pode ser tratada

como um entrave agrave compreensatildeo e avaliaccedilatildeo do pensamento schopenhaueriano

principalmente na atualidade em que os pressupostos claacutessicos tecircm sido relativizados e que

diferentes tipos de loacutegica tecircm servido a distintos objetos de estudo

A perspectiva segundo a qual consideramos possiacutevel compreender a

filosofia de Schopenhauer com todas as suas tensotildees eacute a da loacutegica paraclaacutessica novo ramo

das loacutegicas paraconsistentes desenvolvido pelo loacutegico brasileiro Newton da Costa Dentro do

abrangente campo das loacutegicas natildeo claacutessicas as loacutegicas paraconsistentes voltam-se para o

princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo que estaacute na base de todas as questotildees que discutimos neste

trabalho com resultados uacuteteis para noacutes Sem duacutevida o surgimento e o desenvolvimento

dessas loacutegicas satildeo fenocircmenos recentes localizados no seacuteculo XX o que significa que natildeo

havia nada semelhante nos tempos em que Schopenhauer vivia e pensava Dessa perspectiva

- 219 -

a anaacutelise que pretendemos poderia parecer inusitada e fora de propoacutesito ainda mais se

considerarmos que o proacuteprio Schopenhauer remeteu todas as contradiccedilotildees que detectou agrave

oposiccedilatildeo dos pontos de vista da Vontade e da reprentaccedilatildeo Estariacuteamos nesse caso utilizando

ideias posteriores como recurso para avaliaccedilatildeo de pensamentos aos quais historicamente elas

natildeo se aplicariam Contudo natildeo empregaremos as criacuteticas contemporacircneas ao princiacutepio de

natildeo contradiccedilatildeo para afirmar que a filosofia schopenhaueriana estaria isenta de observaacute-lo Ao

contraacuterio tomamos suas dificuldades como fatos que todavia podem ser mais bem

compreendidos se adotarmos um ponto de partida diferente E no nosso entendimento ao se

investigar e tentar compreender qualquer questatildeo relacionada ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo

nos seus significados loacutegico ou filosoacutefico natildeo se pode prescindir das contribuiccedilotildees teoacutericas

mais recentes

Desse modo analisaremos a estrutura do mundo projetado pela filosofia

schopenhaueriana com base na conceituaccedilatildeo e discussatildeo da loacutegica paraclaacutessica O objeto da

anaacutelise aqui natildeo eacute exatamente o discurso de Schopenhauer ou o possiacutevel desrespeito ao

princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo nas suas obras mas os eixos do mundo delineado por ele que

nos parecem formar uma composiccedilatildeo paraclaacutessica Assim eacute agrave concepccedilatildeo schopenhaueriana

de mundo apoiada firmemente na intuiccedilatildeo empiacuterica que queremos aplicar as ideias acerca da

paraconsistecircncia Como dissemos anteriormente natildeo queremos formalizar a filosofia de

Schopenhauer natildeo pretendemos calcular seus teoremas ou conclusotildees para provar se eacute ou natildeo

inconsistente Ademais nossa pesquisa mostrou que nada disso eacute necessaacuterio pois a

inconsistecircncia eacute uma de suas caracteriacutesticas mais fundamentais

Newton da Costa eacute reconhecido como fundador das loacutegicas

paraconsistentes e como um dos mais importantes loacutegicos da atualidade pelo

desenvolvimento dos caacutelculos Cn Nesses caacutelculos a violaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo

natildeo representa obstaacuteculo agraves deduccedilotildees de forma que natildeo eacute necessaacuterio eliminarem-se as

inconsistecircncias A atenccedilatildeo se volta para a supressatildeo da trivialidade que representa o

verdadeiro problema da contradiccedilatildeo e uma consequecircncia das teorias inconsistentes nas quais

se podem deduzir quaisquer proposiccedilotildees mesmo as contraditoacuterias entre si Com efeito em

funccedilatildeo da trivialidade em uma mesma teoria eacute possiacutevel deduzir uma proposiccedilatildeo sua

contraditoacuteria e na verdade quaisquer proposiccedilotildees Daiacute resulta que uma teoria contraditoacuteria

natildeo ofereceria condiccedilotildees para que se pudesse estabelecer e demonstrar a diferenccedila entre o

verdadeiro e o falso dentro de seus proacuteprios pressupostos O desenvolvimento das loacutegicas

- 220 -

paraconsistentes poreacutem abriu a possibilidade de que as inconsistecircncias sejam admitidas

pressupondo que existem diversas situaccedilotildees em que elas natildeo conduzem necessariamente agrave

trivialidade E o meio de fazecirc-lo eacute desenvolvendo o caacutelculo de um modo tal que duas

premissas contraditoacuterias possam ser verdadeiras mas que sua conjunccedilatildeo natildeo possa ser

deduzida

Conforme Da Costa entre os objetivos das loacutegicas paraconsistentes estaacute

o de contribuir para o entendimento das leis claacutessicas do conceito de negaccedilatildeo e de

contradiccedilatildeo bem como de sistemas inconsistentes169

Natildeo abordaremos as teacutecnicas de caacutelculo

que fogem ao nosso escopo mas as consideraccedilotildees sobre o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo e

sobre o fundamento da loacutegica paraclaacutessica satildeo interessantes para noacutes170

No acircmbito da loacutegica

claacutessica o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute visto como necessariamente verdadeiro evidente

por si mesmo indemonstraacutevel e universal valendo para todo objeto e todo raciociacutenio Sobre

esse ponto Da Costa argumenta que a loacutegica contemporacircnea relativizou o conceito de

demonstraccedilatildeo e que jaacute natildeo se aceita a existecircncia de princiacutepios loacutegicos uacuteltimos Conforme a

posiccedilatildeo recente cada princiacutepio deve ser demonstrado a partir de outros que jaacute o foram de

modo que mesmo sendo utilizada em mecanismos dedutivos a lei de natildeo contradiccedilatildeo natildeo

poderia ser tomada como indemonstraacutevel171

De acordo com isso as leis empregadas devem ser justificadas

pragmaticamente dentro de um conjunto concatenado de postulados A justificaccedilatildeo de

quaisquer princiacutepios teria de ser feita tomando os sistemas loacutegicos como um conjunto e natildeo

princiacutepio por princiacutepio separadamente A negaccedilatildeo a conjunccedilatildeo a disjunccedilatildeo e quaisquer

conceitos podem ter significados distintos em diferentes sistemas de forma que natildeo se

poderia aplicar uma noccedilatildeo uacutenica a quaisquer objetos de estudo possiacuteveis Como escreve Da

Costa ldquo[] como defender a lei da contradiccedilatildeo isoladamente sem se levar em conta os

demais postulados que definem os conceitos basilares envolvidos no seu enunciadordquo172

A

justificaccedilatildeo adequada entatildeo eacute aquela que leva em conta um uso localizado do princiacutepio natildeo

universalizado dentro de um sistema loacutegico determinado e com um fim especiacutefico A

extrapolaccedilatildeo dele para todos os objetos e relaccedilotildees seria algo arbitraacuterio e injustificado pois sua

169

DA COSTA Newton Carneiro Affonso Ensaio sobre os fundamentos da loacutegica 3ordf ed Satildeo Paulo Hucitec

2008 p 172 170

Para um detalhamento maior dos caacutelculos paraconsistentes cf DA COSTA Newton Carneiro Affonso

Sistemas formais inconsistentes Curitiba UFPR 1993 171

DA COSTA op cit p 122 172

Ibidem p 126

- 221 -

supressatildeo natildeo significaria necessariamente a inviabilizaccedilatildeo pensamento do discurso ou da

comunicaccedilatildeo de ideias

Aleacutem disso embora jamais tenham sido observadas contradiccedilotildees reais e

concretas em objetos empiacutericos natildeo estaria provado que elas natildeo existam no mundo Na

verdade conforme Da Costa elas poderiam ser constatadas apenas mediatamente por meio

de inferecircncias na medida em que diz dele ldquonatildeo haacute contradiccedilotildees diretamente perceptiacuteveis

pois as negaccedilotildees correlacionadas a juiacutezos de percepccedilatildeo natildeo satildeo elas mesmas perceptiacuteveis

(pelo menos em nossa experiecircncia cotidiana)rdquo173

Nesse sentido o princiacutepio de natildeo

contradiccedilatildeo natildeo estaria demonstrado tampouco a impossibilidade de haver contradiccedilotildees reais

Sua validade seria a de um postulado em um sistema loacutegico especiacutefico que teria de ser

escolhido conforme o campo particular no qual seria aplicado Um princiacutepio como esse seria

como uma hipoacutetese acerca do funcionamento da realidade e deveria ser aceito na medida em

que se liga ou natildeo a ela Como afirma Da Costa

Positivamente sem se recorrer agrave especulaccedilatildeo soacute se pode sustentar que as

normas loacutegicas regem certas categorias que empregamos como andaimes

para nos assenhorearmos de nosso contorno no tocante ao seu significado

empiacuterico ndash encaradas como parte da ciecircncia satildeo a posteriori e entre

limites pragmaacuteticas regras para jogar174

A escolha de um sistema loacutegico portanto deve ser pautada pela

compatibilidade com o objeto ao qual se aplicaraacute e pela maior clareza e significaccedilatildeo que

imprime agraves teses e conceitos Por conseguinte a inconsistecircncia de uma teoria natildeo pode ser

tomada como implicando necessariamente sua inadequaccedilatildeo ao mundo empiacuterico nem a

invalidade da sua cadeia argumentativa como um todo Com recurso apenas agrave loacutegica diz Da

Costa natildeo se pode garantir que natildeo existam contradiccedilotildees reais e concretas no mundo as quais

poderatildeo estar escondidas ou ser imperceptiacuteveis Caso existam elas seratildeo concluiacutedas

inferidas posto que as negaccedilotildees de juiacutezos de percepccedilatildeo natildeo podem elas mesmas ser intuiacutedas

Sobre esse ponto lembramos que Schopenhauer tambeacutem considerou a contradiccedilatildeo como uma

impossibilidade loacutegica e natildeo de ordem fiacutesica ou matemaacutetica175

A loacutegica paraclaacutessica eacute um ramo bastante novo das loacutegicas

paraconsistentes pensado por Da Costa com relaccedilatildeo a uma das interpretaccedilotildees possiacuteveis do

173

Ibidem p 130 174

Ibidem p 134-135 175

WWWII Kap 4 p 46 MII cap 4 p 40-41

- 222 -

chamado Princiacutepio da Complementaridade de Niels Bohr176

No texto Complementarity and

paraconsistency177

escrito por ele em conjunto com Deacutecio Krause os autores ressaltam que

natildeo haacute consenso entre os estudiosos sobre o sentido exato que Bohr teria atribuiacutedo ao

princiacutepio e que natildeo pretendem realizar uma exegese das ideias do fiacutesico A intenccedilatildeo eacute

evidenciar a estrutura loacutegica de uma teoria que fosse elaborada com base nele entendido

numa perspectiva especiacutefica facultada por excertos de Bohr178

ldquoAssimrdquo escrevem os autores

ldquosugerimos que sob uma interpretaccedilatildeo possiacutevel do que deve ser entendido por

complementaridade a loacutegica subjacente a uma tal teoria eacute a loacutegica paraclaacutessica (proposta

primeiro por Da Costa e Vernengo 1999)rdquo179

O sentido que Da Costa e Krause referem ao conceito de

complementaridade eacute especialmente relevante para noacutes qual seja o de incompatibilidade

entre teses Como eles explicam ldquoEm outras palavras parece perfeitamente razoaacutevel

considerar aspectos complementares como incompatiacuteveis no sentido de que sua combinaccedilatildeo

numa descriccedilatildeo uacutenica pode levar a dificuldadesrdquo180

O conceito de complementaridade desse

modo relaciona-se a teses ou proposiccedilotildees que natildeo podem ser combinadas porque se excluem

reciprocamente Sobre esse ponto no artigo The logic of complementarity eles esclarecem

Deve ser enfatizado que nosso modo de caracterizar a complementaridade

natildeo significa que proposiccedilotildees complementares satildeo sempre contraditoacuterias

para α e β acima uma natildeo eacute necessariamente a negaccedilatildeo da outra No entanto

como proposiccedilotildees complementares podemos derivar delas (na loacutegica

claacutessica) uma contradiccedilatildeo para exemplificar observamos que bdquox eacute uma

partiacutecula‟ natildeo eacute a negaccedilatildeo direta de bdquox eacute uma onda‟ mas bdquox eacute uma partiacutecula‟

implica que x natildeo eacute uma onda Essa leitura da complementaridade como natildeo

indicando contradiccedilatildeo estrita como jaacute deixamos claro estaacute de acordo com o

proacuteprio Bohr []181

Apesar dessa muacutetua exclusatildeo ambos os aspectos complementares satildeo

176

Cf DA COSTA N VERNENGO R J Sobre algunas loacutegicas paraclaacutesicas y el anaacutelisis del razonamiento

juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho Universidad de Alicante Centro de Estudios

Constitucionales 19 1996 p 183-200 DA COSTA N KRAUSE D Complementary and paraconsistency In

RAHMAN Shahid et al (eds) Logic Epistemology and the Unity of Science (Book 1) Dordrecht Kluwer

Ademic Publishers 2004 DA COSTA N KRAUSE D The logic of complementarity Departamento de

Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina 2003 DA COSTA N KRAUSE D Remarks on the

applications of paraconsistency Grupo de pesquisa em Loacutegica e fundamentos da ciecircncia Departamento de

Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina 2003 177

DA COSTA N KRAUSE D Complementary and paraconsistency In RAHMAN Shahid et al (eds)

Logic Epistemology and the Unity of Science (Book 1) Dordrecht Kluwer Ademic Publishers 2004 178

Ibidem p 1-2 179

Ibidem p 2 (traduccedilatildeo nossa) (grifos dos autores) 180

Ibidem p 5 (traduccedilatildeo nossa) (grifos dos autores) 181

DA COSTA N KRAUSE D The logic of complementrity Departamento de Filosofia Universidade

Federal de Santa Catarina 2003 p 12 (traduccedilatildeo nossa) (grifos dos autores)

- 223 -

considerados imprescindiacuteveis para uma compreensatildeo completa e adequada do objeto Daiacute a

necessidade de se pensar numa forma de mantecirc-los sem que a teoria como um todo venha a

ser inviabilizada Do ponto de vista claacutessico a existecircncia de duas teses verdadeiras permite

deduzir a conjunccedilatildeo delas e isso eacute o que torna complicado manterem-se enunciados

mutuamente excludentes num mesmo sistema Em vista disso a proposta da loacutegica

paraclaacutessica eacute a de impedir que a conjunccedilatildeo de aspectos complementares possa ser deduzida

sem que a teoria tenha de abrir matildeo de algum deles Assim numa teoria cuja loacutegica de base eacute

a paraclaacutessica a existecircncia de proposiccedilotildees incompatiacuteveis natildeo eacute impugnada somente a

conjunccedilatildeo delas o seraacute ldquoEm outras palavrasrdquo explicam Da Costa e Krause ldquoas teorias que

caracterizaremos abaixo satildeo tais que de γ e not γ natildeo podemos deduzir γ ˄not γ isto eacute uma

contradiccedilatildeordquo182

Eacute importante observarmos que embora tenha sido pensado no contexto

da fiacutesica quacircntica nada impede que o Princiacutepio da Complementaridade seja tomado em

sentido mais amplo Da Costa e Krause argumentam que Bohr o considerou como parte de

uma atitude epistemoloacutegica geral capaz de evitar dificuldades tambeacutem em outros campos da

ciecircncia Para eles o Princiacutepio da Complementaridade natildeo se configura apenas como um

preceito especiacutefico de uma ciecircncia em particular a fiacutesica mas aleacutem disso como um princiacutepio

metodoloacutegico regulativo183

Em suma nas palavras dos autores ldquoDe qualquer modo nossa

definiccedilatildeo eacute muito geral e eacute claro natildeo eacute restrita agrave fiacutesica sendo uacutetil tambeacutem em outras

situaccedilotildeesrdquo184

Segundo pensamos essa concepccedilatildeo da loacutegica paraclaacutessica contribui para

uma compreensatildeo mais completa do pensamento schopenhaueriano e com isso tambeacutem da

antinomia com a qual nos ocupamos Como vimos Schopenhauer vincula sua filosofia agrave

discussatildeo histoacuterica sobre a relaccedilatildeo entre o ideal e o real Para ele Platatildeo Kant e os Vedas

ensinaram a total diferenccedila entre os dois domiacutenios e abriram caminho para sua proacutepria

interpretaccedilatildeo do mundo como representaccedilatildeo e Vontade O ideal e o real satildeo como dois lados

de uma mesma esfera um externo e o outro interno um ilusoacuterio e o outro genuiacuteno um

182

DA COSTA N KRAUSE D Complementary and paraconsistency In RAHMAN Shahid et al (eds)

Logic Epistemology and the Unity of Science (Book 1) Dordrecht Kluwer Ademic Publishers 2004 p 2

(traduccedilatildeo nossa) 183

DA COSTA N KRAUSE D The logic of complementrity Departamento de Filosofia Universidade

Federal de Santa Catarina 2003 p 2 184

DA COSTA N KRAUSE D Remarks on the applications of paraconsistency Grupo de pesquisa em

Loacutegica e fundamentos da ciecircncia Departamento de Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina 2003 p

16 (traduccedilatildeo nossa)

- 224 -

efecircmero e o outro perene Na condiccedilatildeo de representaccedilatildeo o lado externo do mundo eacute criaccedilatildeo

de um intelecto sendo por isso mesmo fenomecircnico mutaacutevel e pereciacutevel Na condiccedilatildeo de

coisa em si por sua vez a Vontade natildeo pode ser investida nas formas do conhecimento o que

a torna alheia ao tempo ao espaccedilo e agrave causalidade e a configura como o mais real o imutaacutevel

e o impereciacutevel Em que pese serem descritos por Schopenhauer como opostos ambos os

lados satildeo igualmente necessaacuterios para uma explicaccedilatildeo correta e completa do mundo Na nossa

interpretaccedilatildeo o real e o ideal satildeo apresentados em condicionamento muacutetuo pelo filoacutesofo na

medida em que ele enfatiza em diversos momentos que a representaccedilatildeo soacute o eacute com relaccedilatildeo agrave

Vontade e tambeacutem que o que conhecemos como a coisa em si soacute o eacute em relaccedilatildeo ao

fenocircmeno Natildeo faria sentido portanto imaginar o mundo sem uma das suas partes

constituintes fosse a coisa em si fosse o fenocircmeno do mesmo modo que natildeo faz sentido

separar sujeito e objeto Por conseguinte a filosofia schopenhaueriana parte de uma

convicccedilatildeo que envolve tanto exclusatildeo quanto exigecircncia muacutetua entre os acircmbitos do real e do

ideal sendo totalmente compatiacutevel com a concepccedilatildeo acerca do Princiacutepio de

Complementaridade tal como exposto por Da Costa e Krause no tocante agrave loacutegica

paraclaacutessica

No nosso entendimento eacute necessaacuterio realizarmos aqui uma

desambiguaccedilatildeo Schopenhauer tambeacutem associa o real e o ideal como complementares em

sentidos diferentes quais sejam o de ideal como o transcendental e o de real como o

empiacuterico Nesse caso como no anterior cada aspecto eacute exigido e excluiacutedo simultaneamente

em relaccedilatildeo ao outro e sua complementaridade transparece em certos pontos da investigaccedilatildeo

nos quais os fundamentos de ambos se cruzam Esses satildeo os momentos em que Schopenhauer

chega aos limites extremos do idealismo e onde seu discurso se torna obscuro e equiacutevoco

Com efeito o idealismo chega ao seu limite no ponto em que precisa assegurar a realidade

empiacuterica de um mundo que eacute criado por um intelecto Ou seja o idealismo tem de ser

radicalmente afirmado mas natildeo a ponto de se tornar absoluto e eliminar qualquer referecircncia agrave

experiecircncia Entatildeo a parte ideal do mundo deve ser completada com elementos reais nesse

caso os dados sensoriais advindos dos sentidos que garantiratildeo que o objeto seja

condicionado pelo sujeito sem deixar de ser empiricamente real No entanto a demonstraccedilatildeo

da idealidade se faz excluindo os conteuacutedos empiacutericos ou minimizando sua relevacircncia no

processo do conhecer para que se mantenha seu caraacuteter de criaccedilatildeo intelectual Daiacute deriva a

necessidade de se admitir que o espaccedilo esteja na cabeccedila e que esta ao mesmo tempo esteja

no espaccedilo natildeo se pode abrir matildeo do idealismo (que o espaccedilo seja uma forma a priori do

- 225 -

intelecto) nem do realismo (que a cabeccedila tenha existecircncia real no mundo dos objetos) Daiacute

tambeacutem a estranheza que sentimos ao observar o mesmo objeto nas duas perspectivas

mutuamente excludentes porque natildeo podemos abandonar nenhuma delas

Para considerarmos a complementaridade pelo prisma do realismo

precisamos atentar para os dois sentidos de real expostos acima Em primeira instacircncia o real

eacute o aspecto fiacutesico do mundo a sensaccedilatildeo as intuiccedilotildees o conjunto da experiecircncia numa

palavra eacute o fundamento objetivo que o idealismo natildeo deve anular Em segunda instacircncia o

real eacute o metafiacutesico o que estaacute aleacutem do conhecimento empiacuterico numa palavra a Vontade que

o idealismo natildeo permite acessar Tomado no primeiro sentido a argumentaccedilatildeo acerca do real

precisa garantir que elementos empiacutericos possam dar sustentaccedilatildeo ao idealismo sem que sejam

concebidos como em si isto eacute devem ancorar o lado ideal mas sem anular o aspecto de

relatividade do mundo como representaccedilatildeo Nesse caso poreacutem ideal e real distinguem-se

como o formado e o informe o regrado e o aleatoacuterio o subjetivo e o objetivo Tomado no

segundo sentido por sua vez o real eacute exatamente aquilo que ultrapassa a representaccedilatildeo que a

sustenta remediando sua relatividade e inconstacircncia e o que garante que o mundo natildeo seja

pura e simplesmente aparecircncia sem nada que apareccedila Nesse sentido contudo ideal e real se

excluem como o fenocircmeno e a coisa em si o externo e o interno o temporal e o atemporal o

extenso e o inextenso Daiacute deriva a necessidade de se admitir que o primeiro animal

cognoscente engendre o mundo da representaccedilatildeo e que o mundo da representaccedilatildeo engendre o

mesmo animal aqui tambeacutem natildeo se pode abrir matildeo do idealismo (que a representaccedilatildeo seja

produto do intelecto animal) nem do realismo (que a Vontade seja a essecircncia do mundo e

produza o intelecto animal para seus fins) A complementaridade das perspectivas nesse caso

situa o primeiro animal em dois pontos diferentes do tempo sem que possamos retiraacute-lo de

nenhum deles

Por conseguinte nos dois sentidos mencionados o lado real do mundo eacute

exigido e afastado simultaneamente em relaccedilatildeo ao lado ideal no primeiro sentido o real eacute a

necessaacuteria referecircncia agrave fisiologia ao corpo agrave comprovaccedilatildeo das ciecircncias empiacutericas ao mesmo

tempo em que deve ser controlado para natildeo inviabilizar o idealismo No segundo sentido o

real eacute o metafiacutesico o sustentaacuteculo necessaacuterio da representaccedilatildeo mas que natildeo pode tomar as

formas do intelecto isto eacute natildeo pode ser conhecido nem alcanccedilado No nosso modo de ver

todos esses aspectos se condensam na concepccedilatildeo de que os conteuacutedos empiacutericos introduzem

no pensamento elementos que natildeo podem ser completamente conhecidos por natildeo serem

- 226 -

condicionados pelas formas do sujeito Quanto menos elementos empiacutericos contiver mais um

objeto pode ser conhecido quanto mais conteuacutedos empiacutericos exibir menos poderaacute ser

compreendido Como resultado a Vontade se anuncia e se revela nos elementos sensiacuteveis do

mundo como representaccedilatildeo que satildeo conhecidos somente a posteriori tornando-se entatildeo

necessaacuterio aceitar como verdadeiro que ela se exibe na experiecircncia tanto quanto que a

ultrapassa

Com base nessa perspectiva esclarece-se por que Schopenhauer reafirma

e ressalta a unilateralidade do idealismo e do realismo para a compreensatildeo do mundo como

representaccedilatildeo185

Ambos contecircm fundamentos verdadeiros que natildeo podem ser excluiacutedos de

uma explicaccedilatildeo completa das coisas isto eacute precisam ser combinados para que um compense

as insuficiecircncias do outro A uniatildeo dos pontos de vista objetivo e subjetivo eacute entatildeo

imprescindiacutevel apesar de todos os conflitos e oposiccedilotildees que possam surgir a partir dela De

modo semelhante somente com o idealismo ou com o realismo dificilmente se esgotaraacute a

compreensatildeo da relaccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa em si Nesse uacuteltimo caso embora sejam

radicalmente contrapostas a exigecircncia muacutetua entre Vontade e representaccedilatildeo eacute ainda mais

necessaacuteria na medida em que no fim de contas constituem o mesmo ente De acordo com

isso a uniatildeo dos pontos de vista demonstraraacute que todas as coisas satildeo idecircnticas e que assim

como noacutes tudo eacute Vontade A complementaridade entre idealismo e realismo nesse aspecto

remete novamente agrave imagem circular formada pela antinomia da teoria do conhecimento

Com efeito do mesmo modo como a chuva que se forma pela evaporaccedilatildeo e a aacutegua que molha

a terra satildeo uma e a mesma coisa apenas cristalizada momentaneamente em pontos diferentes

na consideraccedilatildeo do processo tambeacutem o animal e o mundo satildeo um e o mesmo apenas

considerados imperfeitamente em pontos distintos de uma linha do tempo De fato tanto o

animal quanto o mundo satildeo representaccedilotildees e somente nesse sentido pode-se afirmar que haja

multiplicidade e que um engendre o outro No fundamento de tudo poreacutem a Vontade

permanece una e incoacutelume Sobre esse ponto em uma nota do texto ldquoPensamentos sobre o

intelecto em geral e no tocante a cada relaccedilatildeordquo de Parerga e Paralipomena Schopenhauer

escreve de modo interessante

Se olho algum objeto talvez uma paisagem e imagino que nesse momento

me cortassem a cabeccedila ndash sei que o objeto permaneceria estaacutetico e inabalaacutevel

185

Cf PP II Kap 1 sect13 p 20 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de

Miguel Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 13 p 198-199

- 227 -

mas isso implica nos seus fundamentos mais uacuteltimos que eu tambeacutem

existiria Isso seraacute claro para poucos mas para estes foi dito186

Por fim conforme exposto ao longo deste trabalho a filosofia

schopenhaueriana sustenta a identidade de todas as coisas a unidade da Vontade e a ilusatildeo da

multiplicidade Sustenta tambeacutem que a Vontade eacute idecircntica ao corpo e que este eacute

imprescindiacutevel para a construccedilatildeo do mundo como representaccedilatildeo Portanto segundo

pensamos a dimensatildeo corporal do mundo reuacutene todas as peccedilas que fazem dele um conjunto

inconsistente em que o interno e o externo o real e o ilusoacuterio o fenocircmeno e a coisa em si se

unem ao mesmo tempo em que se repelem mutuamente Essa inconsistecircncia como dissemos

pode ser mais bem compreendida se associarmos o mundo schopenhaueriano agrave loacutegica

paraclaacutessica na qual teses incompatiacuteveis natildeo resultam em problemas se natildeo conduzem agrave

trivialidade E esse nos parece ser exatamente o caso pois A rarr M e M rarr A podem ser

tomadas como proposiccedilotildees complementares sem que por isso levem a uma contradiccedilatildeo e por

conseguinte a filosofia schopenhaueriana natildeo pode ser classificada como trivial

186

Ibidem Kap 3 sect28 p 48 ibidem sect 28 p 232

- 228 -

Referecircncias

Obras de Schopenhauer consultadas

SCHOPENHAUER A Saumlmmtliche Werke 6 Baumlnde Leipzig Brockhaus 1873

Herausgegeben von Julius Frauenstaumldt

_____ Saumlmtliche Werke 16 Baumlnde Muumlnchen Piper 1911-1942 Herausgegeben von Paul

Deussen

_____ Zuumlrcher Ausgabe 10 Baumlnden Zuumlrich Diogenes Verlag 2007 Der Text folgt der

historisch-kritischen Ausgabe von Arthur Huumlbscher

_____ Die Welt als Wille und Vorstellung I und II Gesamtausgabe Muumlnchen Deutschen

Taschenbuch 2011 Nach den Ausgaben letzter Hand herausgegeben von Ludger Luumltkehaus

_____ Kritik der kantischen Philosophie In Die Welt als Wille und Vorstellung I und II

Gesamtausgabe Muumlnchen Deutschen Taschenbuch 2011 Nach den Ausgaben letzter Hand

herausgegeben von Ludger Luumltkehaus

_____ Saumlmtliche Werke 5 Baumlnde StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 2012 Textkritisch

bearbeitet und herausgegeben von Wolfgang Frhr von Loumlhneysen

_____ De la cuaacutedruple raiacutez del principio del razoacuten suficiente Traduccioacuten y proacutelogo de

Leopoldo-Eulogio Palacios Madrid Gredos 1981

_____ De la volonteacute dans la nature Traduction avec introduction et notes par Eacutedouard Sans

Paris Quadrige PUF 1986

_____ Sobre la voluntad en la naturaleza 1ordf ed 3ordf reimpr Traduccioacuten de Miguel de

Unamuno Proacutelogo y notas de Santiago Gonzaacutelez Noriega Madrid Alianza 1987

_____ Criacutetica da filosofia kantiana Traduccedilatildeo de Wolfgang Leo Maar e Maria Luacutecia Mello e

Oliveira Cacciola Satildeo Paulo Nova Cultural 1988 (Coleccedilatildeo Os pensadores)

_____ Los designios del destino Estudio preliminar traduccioacuten y notas de Roberto

Rodriacutegues Aramayo Madrid Tecnos 1994

- 229 -

_____ Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de Miguel

Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996

_____ Sobre a visatildeo e as cores um tratado Traduccedilatildeo de Erlon Joseacute Paschoal Nova

Alexandria Satildeo Paulo 2003

_____ Fragmentos para a histoacuteria da filosofia Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas de Maria

Luacutecia Cacciola Satildeo Paulo Iluminuras 2003

_____ El Mundo como Voluntad y Representacioacuten Traduccioacuten de Rafael-Joseacute Diacuteaz

Fernaacutendez y Mordf Montserrat Armas Concepcioacuten Revisioacuten de Joaquiacuten Chamorro Mielke

Madrid Akal Editores 2005

_____ O mundo como vontade e representaccedilatildeo 1ordf tomo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo notas e

iacutendices de Jair Barboza Satildeo Paulo UNESP 2005

_____ O mundo como vontade e representaccedilatildeo 2ordf tomo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo notas e

iacutendices de Jair Barboza Satildeo Paulo UNESP 2015

Obras gerais consultadas

AMERIKS Karl (ed) The Cambridge Companion to German Idealism Cambridge

Cambridge University Press 2006

ARISTOacuteTELES Organon 5 vol Traduccedilatildeo de Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees 1986

_____ Metafiacutesica Traduccioacuten de Valentiacuten Garciacutea Yebra 2ordf ed Triliacutengue 1ordf reimpr Madrid

Gredos 1987

ASHER David Das Endergebniss der Schopenhauerrsquoschen Philosophie in seiner

Uebereinstimmung mit eine der aumlltesten Religionen dargestellt Leipzig Arnoldische

Buchhandlung 1885

BACON F The New organon New York Cambridge University Press 2000

- 230 -

BAumlHR C G Die schopenhauerrsquosche Philosophie in ihren Grundzuumlgen dargestellt und

kritisch beleuchtet Dresden Rudolf Kuntze 1857

BECKENKAMP J Entre Kant e Hegel Porto Alegre EDIPUCRS 2004

BERG Jan Robert Idealismus und Voluntarismus in der Metaphysik Schellings und

Schopenhauers Wuumlrzburg Koumlnigshauser amp Neumann 2003

BIRNBACHER Dieter (Hrsg) Schopenhauer in der Philosophie der Gegenwart Wuumlrzburg

Koumlnigshausen amp Neumann 1996

BONACCINI Juan Adolfo Kant e o problema da coisa em si no Idealismo Alematildeo sua

atualidade e relevacircncia para compreensatildeo do problema da Filosofia Rio de Janeiro Relume

Dumaraacute Natal UFRN 2003

BOOMS Martin Aporie und Subjekt Die Erkenntnistheoretischen Entfaltungslogik der

Philosophie Schopenhauers Beitraumlge zur Philosophie Schopenhauers herausgegeben von

Dieter Birnbacher und Heinz Gerd Ingekamp Band 6 Wurzburg Koumlnigshausen amp Neuman

2003

BRANDAtildeO E A concepccedilatildeo de mateacuteria na obra de Schopenhauer Satildeo Paulo Humanitas

2008

CACCIOLA M L A criacutetica da Razatildeo no pensamento de Schopenhauer Dissertaccedilatildeo

(Mestrado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo

Paulo Departamento de Filosofia Satildeo Paulo 1981

_____ A questatildeo do finalismo na filosofia de Schopenhauer Discurso ndash Revista do

Departamento de Filosofia da USP nordm 20 1993 p 79-98

_____ Schopenhauer e a questatildeo do dogmatismo Satildeo Paulo EDUSP 1994

CALDWELL W Schopenhauerrsquos system in its philosophical significance New York

Charles Scribner‟s sons 1986

CARTWRIGHT David E Schopenhauer a biography Cambridge University Press 2010

- 231 -

CASSIRER E El problema del conocimiento 4 vol 1ordf ed 4ordf reimpr Traduccioacuten de

Wenceslao Roces Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1993

_____ Kant vida y doctrina 1ordf ed 6ordf reimpr Traduccioacuten de Wenceslao Roces Meacutexico

Fondo de Cultura Econoacutemica 2003

CORNILL A Arthur Schopenhauer als Uebergangsformation von einer idealistischen in

eine realistische Weltanschauung Heidelberg Mohr 1856 Disponiacutevel em

lthttpreaderdigitale-sammlungendedefs1objectdisplaybsb10045480_00007htmlgt

Acesso em 8 mai 2015

DA COSTA Newton Carneiro Affonso da Sistemas formais inconsistentes Curitiba UFPR

1993

_____ Ensaio sobre os fundamentos da loacutegica 3ordf ed Satildeo Paulo Hucitec 2008

_____ VERNENGO R J Sobre algunas loacutegicas paraclaacutesicas y el anaacutelisis del razonamiento

juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho Universidad de Alicante Centro de

Estudios Constitucionales 19 1996 p 183-200 Disponiacutevel em

lthttpwwwcervantesvirtualcomdescargaPdfsobre-algunas-lficas-paraclsicas-y-el-anlisis-

del-razonamiento-jurdico-0gt Acesso em 10 jan 2017

_____ KRAUSE D Complementary and paraconsistency In RAHMAN Shahid et al

(eds) Logic Epistemology and the Unity of Science (Book 1) Dordrecht Kluwer Ademic

Publishers 2004

_____ The logic of complementarity Departamento de Filosofia Universidade Federal de

Santa Catarina 2003 Disponivel em lthttpphilsci-archivepittedu15591CosKraPLpdfgt

Acesso em 10 jan 2017

_____ Remarks on the applications of paraconsistency Grupo de pesquisa em Loacutegica e

fundamentos da ciecircncia Departamento de Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina

2003 Disponiacutevel em lthttpphilsci-archivepittedu15661CosKraPATTYpdfgt Acesso

em 10 jan 2017

DELBOS V De kant aux postkantiens Introduction par Alexis Philonenko Preface de

Maurice Blondel Paris Aubier 1992

- 232 -

DEUSSEN P Allgemeine Geschichte der Philosophie 2 Auflage 2 Band 3 Abteilung

(Neuere Philosophie von Descartes bis Schopenhauer) Leipzig Brockhaus 1920 Disponiacutevel

em lthttpsarchiveorgdetailsallgemeinegeschi23deusuoftgt Acesso em 11 out 2015

_____ Die Elemente der Metaphysik Dritte durch eine Vorbetrachtung uumlber das Wesen des

Idealismus vermehrte Auflage Leipzig Brockhaus 1902 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsdieelementederm00deusgooggt Acesso em 3 jan 2012

DUCROS L Schopenhauer les origines de sa meacutetaphysique ou les transformations de la

chose en soi de Kant a Schopenhauer Paris Germer Bailliegravere 1883 Disponiacuteel em

lthttpsarchiveorgdetailsscopenhauerleso00ducrgooggt Acesso em 11 fev 2010

ERDMANN J E Schopenhauer und Herbart eine Antithese In Zeitschrift fuumlr Philosophie

und philosophische Kritik Herausgegeben von Dr I H Fichte Dr Hermann Ulrici und I U

Wirth Neue Folge Band 21 Halle 1852 p 209-225 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgstreamzeitschriftfrph19kritgoogpagen15mode2upgt Acesso em 5

jun 2013

FICHTE I H Ein Wort uumlber die Zukunft der Philosophie Als Nachschrift zum vorigen

Auffaβe In Zeitschrift fuumlr Philosophie und philosophische Kritik Herausgegeben von Dr I

H Fichte Dr Hermann Ulrici und J U Wirth Neue Folge Band 21 Halle 1852 p 226-240

Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgstreamzeitschriftfrph19kritgoogpagen15mode2upgt

Acesso em 5 jun 2013

FISCHER Ernst Von G E Schulze zu A Schopenhauer ein Beitrag zur Geschichte der

Kantischen Erkenntnistheorie Dissertation zur Erwerbung der Doktorwuumlrde der ersten

Sektion der hohen philosophischen Fakultaumlt der Universitaumlt Zuumlrich Aarau H R Sauerlaumlnder

1901

FISCHER Kuno Schopenhauers Leben Werke und Lehre Heidelberg Carl Winter‟s

Universitaumltsbuchhandlung 1908 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsschopenhauersle00fiscgooggt Acesso em 02 out 2014

FORTLAGE C Genetische Geschichte der Philosophie seit Kant Leipzig Brockhaus 1852

Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgstreamgenetischegeschi00forpagen5mode2upgt

Acesso em 15 abr 2015

FOX Michael (Ed) Schopenhauers philosophical achievement Sussex Harvester Press

1980

- 233 -

FRAUENSTAumlDT J Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus

1854 Disponiacutevel em lthttpreaderdigitale-

sammlungendedefs1objectdisplaybsb10045792_00005htmlgt Acesso em 18 fev 2013

_____ Arthur Schopenhauer und seine Gegner In Unsere Zeit deutsche Revue der

Gegenwart Monatsschrift zum Conversationslexikon Band 52 Leipzig 1869 p 686-707

Disponiacutevel em lthttpreaderdigitale-

sammlungendedefs1objectdisplaybsb10401694_00696htmlgt Acesso em 29 mar 2014

_____ Schopenhauer-Lexicon ein Philosophisches Woumlrterbuch Erster Band Leipzig

Brockhaus 1871 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgstreambub_gb_qQHnumNIwMsCpagen5mode2upgt Acesso em 25

jan 2012

_____ Schopenhauer-Lexicon ein Philosophisches Woumlrterbuch Zweiter Band Leipzig

Brockhaus 1871 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgstreambub_gb_mhF6YpMYGcoCpagen5mode2upgt Acesso em 25

jan 2012

_____ Neue Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1876

Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgstreamneuebriefeberdi00fraugoogpagen7mode2upgt

Acesso em 20 set 2013

_____ LINDNER E O Arthur Schopenhauer Von Ihm uumlber ihn Berlin Hayn 1863

GARDINER P Schopenhauer Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1997 p 133

GIL Fernando (coord) Recepccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant

(1786-1844) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1992

GOLDSCHMIDT Victor A religiatildeo de Platatildeo Satildeo Paulo Difusatildeo Europeia do Livro 1963

_____ Eacutecrits Eacutetudes de Philosophie Moderne Tome II Paris VRIN 1984

GRISEBACH E Schopenhauerrsquos Gespraumlche und Selbstgespraumlche Nach der Handschrift εἰρ

ἑαςηον Berlin Ernst Hofmann 1898

GRUBER Robert (Hrsg) Der Briefwechsel zwischen Arthur Schopenhauer und Otto

Lindner Wien Leipzig A Hartleben‟s 1913

- 234 -

GUEROULT M Etudes de Philosophie Allemande HildesheimNew York Georg Olms

1977

GWINNER W Arthur Schopenhauer aus persoumlnlichen Umgange dargestellt Zweite

umgearbeitete und vielfach vermehrte Auflage Leipzig Brockhaus 1878

HARTMAN E v Philosophie des Unbewussten Berlin Carl Duncker 1869 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsphilosophiedesun00hartgt Acesso em 16 set 2015

_____ Gesammelte philosophische Abhandlungen zur Philosophie des Unbewussten Berlin

Carl Duncker 1872 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsgesammeltephilo00hartgooggt Acesso em 7 jan 2016

_____ L‟eacutecole de Schopenhauer Revue philosophique de la France et de lrsquoeacutetranger Dirigeacutee

par Th Ribot XVI jul-deacutec 1883 pp 121-134 Disponiacutevel em

httpgallicabnffrark12148bpt6k17155drk=429184 Acesso em 15 dez 2016

_____ Gesammelte Studien und Aufsaumltze 3 auflage Leipzig Wilhelm Friedrich 1888

Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgdetailsgesammeltestudi01hartgooggt Acesso em 5 jan

2016

_____ Geschichte der Methaphysik Zweiter Teil seit Kant Ausgewaumlhlte Werke Band XII

Leipzig Hermann Haacke 1900

HASSE H Schopenhauers Erkenntnislehre als System einer Gemeinschaft des Rationalen

und Irrationalen Leipzig Felix Meiner 1913

HAYM R Arthur Schopenhauer Berlin Georg Reimer 1864 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsarthurschopenha00haymgooggt Acesso em 20 jan 2015

HUumlBSCHER A Schopenhauer in der philosophischen Kritik In Schopenhauer-Jahrbuch

Frankfuhrt Waldemar Kramer 47 1966 p 29-71 Disponiacutevel em

lthttpwwwschopenhauerphilosophieuni-

mainzdeAufsaetze_Jahrbuch47_1966Huebscher20-

20Schopenhauer20in20der20phil20Kritikpdf gt Acesso em 15 ago 2013

_____ Denker gegen den Strom Schopenhauer Gestern ndash Heute ndash Morgen 4

Durchgesehene Auflage Bonn Bouvier 1988

- 235 -

JACOBI F H David Hume et la croyance ideacutealisme et reacutealisme Dialogue Introduit traduit

et annoteacute par Louis Guillermit Paris Vrin 2000

JANAWAY C (ed) The Cambridge Companion to Schopenhauer Cambridge Cambridge

Universty Press 1999

JANET P Schopenhauer et la physiologie franccedilaise Cabanis et Bichat Revue des deux

mondes Tome 39 Paris Bureau de la Revue de deux mondes Mai-1880 p 36 Disponiacutevel

em lthttprddmrevuedesdeuxmondesfrarchivearticlephpcode=59892gt Acesso em 08

ago 2011

KAMATA Y Schopenhauer e Kant A recepccedilatildeo da ldquoAnaliacutetica transcendentalrdquo da Criacutetica da

razatildeo pura na filosofia primeira de Schopenhauer Revista etich - An international Journal

for Moral Phylosophy Florianoacutepolis v 11 n 1 p 68 ndash 81 julho de 2012

KANT I Kantrsquos Gesammelte Schriften Herausgegeben von der Koumlniglich Preuβischen

Akademie der Wissenschaften 29 Baumlnde Berlim Georg Reimer Gruyter 1902-

_____ Criacutetica da razatildeo pura 5ordf ed Traduccedilatildeo de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre

Fradique Morujatildeo Introduccedilatildeo e notas de Alexandre Fradique Morujatildeo Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001

KORFMACHER W Ideen und Ideenerkenntnis in der aumlsthetischen Theorie Arthur

Schopenhauers Pfaffenweiler Centaurus-Verlagsgesellschaft 1992

KOWALEWSKI A Arthur Schopenhauer und seine Weltanschauung Halle a S Carl

Marhold 1908

KUHN T A tensatildeo essencial Traduccedilatildeo de Rui Pacheco e revisatildeo de Artur Mouratildeo Lisboa

Ediccedilotildees 70 1989

LIEBMANN O Ueber den individuellen Beweis fuumlr die Freiheit des Willens Stuttgart Carl

Schober 1866 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgstreambub_gb_vNhAAAAAYAAJpagen3mode2upgt Acesso em 15

jun 2013

_____ Ueber den Objektiven Anblick Wiesbaden Carl Schober 1869 Disponiacutevel em

lthttpreaderdigitale-sammlungendedefs1objectdisplaybsb11017975_00005htmlgt

Acesso 15 jun 2013

- 236 -

LUKASIEWICZ Jan Sobre o princiacutepio de contradiccedilatildeo em Aristoacuteteles In Rue Descartes

Collegravege international de philosopie Paris Albin Michel avril 1991 1-2 p 10-32 traduzido

para o francecircs por Michel Narcy e Barbara Cassin do original alematildeo Publicado

originalmente em Bulletin Internacional de lrsquoAcadeacutemie de Sciences de Cracovie classe

drsquohistoire et de philosophie 1910 p 15-38

_____ Sobre a lei da contradiccedilatildeo em Aristoacuteteles In ZINGANO Marco (org) Sobre a

Metafiacutesica de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Odysseus 2005

MAGEE B Schopenhauer Traduccioacuten de Amaia Baacutercena Madrid Catedra 1991

MALTER Rudolf Der eine Gedanke Hinfuumlhrung zur Philosophie Arthur Schopenhaeurs

Darmstadt Wissenschaftliche Buchgesellschaft 1988

_____ Arthur Schopenhauer Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens

Sttutgart-Bad Cannstatt FrommannHolzboog 1991

MARCIN Raymond B In search of Schopenhauerrsquos cat Arthur Schopenhauer‟s quantum-

mystical theory of justice Washington DC Catholic University of America 2006

MARTIN G Kant ontologia y epistemologia Traducioacuten de Luis Felipe Carrer y Andreacutes R

Raggio Buenos Aires Faculdade de Filosofia y Humanidades da Universidade Nacional de

Coacuterdoba 1971

MENDELSON Elliott Introduction to mathematical logic 4th ed London Chapman amp

Hall 1997

METHLING Alexander Das Realitaumltsproblem im Denken Schopenhauers Eine

Untersuchung zur Struktur seines Systems Aachen Shaker 1993

MEYER J B Schopenhauer als Mensch und Denker Berlin Carl Habel 1872 Disponiacutevel

em

lthttpsia600300usarchiveorg20itemsarthurschopenhau00meyearthurschopenhau00mey

epdfgt Acesso em 30 mai 2014

NOIREacute Ludwig Der monistische Gedanke Eine Concordanz der Philosophie

Schopenhauer‟s Darwin‟s R Mayer‟s und L Geiger‟s Leipzig Beit amp Comp 1875

- 237 -

OTCZIPKA Hugo Kritische Bemerkungen zur Weltanschauung Schopenhauers Der Hohen

philosophischen Fakultaumlt der Universitaumlt Leipzig als Inaugural-Dissertation zur Erlangung der

Doktorwuumlrde Leipzig-Reudnitz Oswald Schmidt 1892 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgstreamkritischebemerku00otczpagen3mode2upgt Acesso em 5 jul

2012

PERNIN Marie-Joseacute La philosophie de Schopenhauer Au coeur de l‟existence la

souffrance Paris Bordas 2003

PHILONENKO A Schopenhauer Una filosofiacutea de la tragedia Barcelona Anthropos 1989

_____ Schopenhauer critique de Kant Paris Les Belles Lettres 2005

RENOUVIER C Histoire et solution des problegravemes meacutetaphysiques Paris Feacutelix Aucan

1901

RIBOT Th La philosophie de Schopenhauer Paris Feacutelix Alcan 1925

RIEFFERT J B Die Lehre von der empirische Anschauung bei Schopenhauer Halle Max

Niemeyer 1914 In Abhandlungen zur Philosophie und irhre Geschichte 22 Heft

Herausgegeben von Benno Erdmann

ROGLER E Das Gehirnparadox ndash ein Problem nicht nur bei Schopenhauer Schopenhauer-

Jahrbuch 88 2007 p 71-88 Disponiacutevel em httpwwwschopenhauerphilosophieuni-

mainzdeAufsaetze_Jahrbuch88_20072007_Roglerpdf Acesso em 20 jan 2017

ROSSET C Escritos sobre Schopenhauer Versioacuten castellana de Rafael del Hierro Oliva

Valencia Pre-textos 2005

_____ Schopenhauer philosophe de lrsquoabsurde Paris QuadrigePUF 2015

RUFFING M Wille zur Erkenntnis Die Selbsterkenntnis des Willens und die Idee des

Menschen in der aumlsthetischen Theorie Arthur Schopenhauers Tese (Doutorado) Johannes

Gutenberg Universitaumlt Mainz 2001 Disponiacutevel em lthttpspublicationsubuni-

mainzdethesesvolltexte2002297pdf297pdfgt Acesso em 3 mai 2012

_____ A relevacircncia eacutetica da contemplaccedilatildeo esteacutetica Revista etich - An international Journal

for Moral Phylosophy Florianoacutepolis v11 n2 p 263-271 julho de 2012

- 238 -

RUYSSEN T Schopenhauer Paris Feacutelix Alcan 1911

SALLES JC (Org) Schopenhauer e o Idealismo Alematildeo Salvador Quarteto 2004

SANTOS K C S O problema da liberdade na filosofia de Arthur Schopenhauer

Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade

de Satildeo Paulo Departamento de Filosofia Orientador Prof Dr Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo

2010 Disponiacutevel em lthttpwwwtesesuspbrtesesdisponiveis88133tde-23082010-

175510pt-brphpgt

SCHEMANN Ludwig (Hrsg) Schopenhauer-Briefe Sammlung meist ungedruckter oder

schwer zugaumlnglicher Briefe von an und uumlber Schopenhauer Leipzig Brockhaus 1893

SCHIRMACHER Wolfgang (Ed) Zeit der Ernte Festschrift fuumlr Arthur Huumlbscher zum 85

Geburtstag StuttgartBad Cannstatt FrommannHolzboog 1982

SCHMIDT A Schopenhauer und der Materialismus Schopenhauer-Jahrbuch 58 1977 p

IX-XLVIII Disponiacutevel em lthttpwwwschopenhauerphilosophieuni-

mainzdeAufsaetze_Jahrbuch58_1977Alfred20Schmidt20-

20Schopenhauer20und20der20Materialismuspdfgt Acesso em 30 mai 2016

_____ Physiologie und Transzendentalphilosophie bei Schopenhauer Schopenhauer-

Jahrbuch 70 1989 p 43-53 Disponiacutevel em lthttpwwwschopenhauerphilosophieuni-

mainzdeAufsaetze_Jahrbuch70_1989Physiologie20und20Transzendentalphilosophiep

dfgt Acesso em 30 mai 2016

_____ Schopenhauer subjektive und objektive Betrachtungsweise des Intellekts

Schopenhauer-Jahrbuch 86 2005 p 105-132 Disponiacutevel em

lthttpwwwschopenhauerphilosophieuni-

mainzdeAufsaetze_Jahrbuch86_20052005_Schmidtpdfgt Acesso em 30 mai 2016

SCHUBBE D Philosophie des Zwischen Hermeneutik und Aporetik bei Schopenhauer

Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann 2010

SEYDEL R Schopenhauers Philosophisches System Leipzig Breitkopf amp Haumlrtel 1857

Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgdetailsschopenhauersph00seydgooggt Acesso em 14

out 2013

SPIERLING V Arthur Schopenhauer eine Einfuumlhrung in Leben und Werk Leipzig Reclam

Verlag 1998

- 239 -

_____ Materialen zu Schopenhauers ldquoDie Welt als Wille und Vorstellungrdquo Herausgegeben

kommentiert und eingeleitet von Volker Spierling Frankfurt am Main Suhrkamp 1984

STROHM Harald Die Aporien in Schopenhauers Erkenntnistheorie Inaugural-Dissertation

zur Erlangung des Grades eines Doktors der Philosophie der Philosophischen Fakultaumlt der

Eberhard-Karls-Universitaumlt Tuumlbingen LindauB 1984

SUCKAU Otto Schopenhauers falsche Auslegung der Kantischen Erkenntnistheorie Ihre

Erklaumlrung und Ihre Folgen Dissertation zur Erlangung der Doktorwuumlrde bei der

philosophischen Fakultaumlt der Groszligherzoglich Hessischen Ludwigs-Universitaumlt zu Gieszligen

Weimar R Wagner Sohn 1912 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsschopenhauersfal00suckuoftgt Acesso em 15 jun 2012

THILO Chr A Ueber Schopenhauerrsquos ethische Atheismus Leipzig Louis Pernitzsch 1868

TRENDELENBURG A Logische Untersuchungen Erster Band Zweite ergaumlnzte Auflage

Leipzig Hirzel 1862 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailslogischeuntersu07trengooggt Acesso em 22 jul 2014

TZERTELEFF Dmitry Schopenhauerrsquos Erkenntniss-Theorie eine kritische Darstellung

Inaugural-Dissertation zur Erlangung der philosophischen Doktorwuumlrde der Phiosophischen

Fakultaumlt der Universitaumlt Leipzig Leipzig G Reusche 1879 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsschopenhauerserk00tzergt Acesso em 30 jan 2013

VENETIANER M Schopenhauer als Scholastiker Eine Kritik der Schopenhauer‟schen

Philosophie mit Ruumlcksicht auf die gesammte Kantische Neoscholastik Berlin Carl

Duncker‟s 1873

VOLKELT Johannes Arthur Schopenhauer seine Persoumlnlichkeit seine Lehre sein Glaube

Stuttgart Fr Frommanns 1900 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsarthurschopenha01volkgooggt Acesso em 22 nov 2010

WELSEN P Schopenhauers Theorie des Subjekts Ihre transzendentalphilosophischen

anthropologischen und naturmetaphysischen Grundlagen Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp

Neumann 1995

ZELLER E Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibniz Muumlnchen Didenbourg

1875 Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgdetailsgeschichtederdeu00zelluoftgt Acesso em

10 set 2013

- 240 -

ZINGANO M Notas sobre o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo em Aristoacuteteles In Cadernos de

Histoacuteria e Filosofia da Ciecircncia Campinas Seacuterie 3 v 13 n 1 p 7-32 jan-jun 2003

  • A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer
  • Agradecimentos
  • RESUMO
  • ABSTRACT
  • Lista de abreviaturas
  • SUMAacuteRIO
  • Introduccedilatildeo
  • Capiacutetulo 1 ndash Introduccedilatildeo agrave antinomia da faculdade de conhecimento
    • 11 ndash Apresentaccedilatildeo teoacuterica e histoacuterica da antinomia da faculdade de conhecimento
    • 12 ndash Outras questotildees presentes na filosofia schopenhaueriana
    • 13 ndash Investigaccedilatildeo acerca do conceito da antinomia da faculdade de conhecimento
    • 14 ndash Investigaccedilatildeo acerca dos conceitos das outras questotildees presentes na filosofia de Schopenhauer
    • 15 ndash Estrutura histoacuterica da metafiacutesica de Schopenhauer o debate sobre a coisa em si
    • 16 - Desvelando o dilema e os conceitos envolvidos
      • Capiacutetulo 2 ndash A construccedilatildeo do lado externo do mundo idealismo transcendental
        • 21 ndash Philosophia prima
          • 211 ndash O princiacutepio maacuteximo do conhecimento
          • 212 ndash Formas da sensibilidade intuiccedilotildees puras e sujeito da voliccedilatildeo
          • 213 ndash Dianoiologia
          • 214 ndash Teoria da razatildeo
            • 22 ndash O conhecimento filosoacutefico
            • 23 ndash Criacutetica de Schopenhauer ao idealismo de Kant
            • 24 ndash Idealismo schopenhaueriano e fisiologia do conhecimento
            • 25 ndash Fundamentos do mundo como representaccedilatildeo
              • Capiacutetulo 3 ndash A constituiccedilatildeo do lado interno do mundo metafiacutesica
                • 31 ndash A Vontade como o em si do indiviacuteduo
                • 32 ndash A Vontade como o em si do mundo
                • 33 ndash Objetivaccedilatildeo da Vontade
                • 34 ndash Relaccedilotildees da Vontade com o intelecto e o ceacuterebro
                • 35 ndash Discoacuterdia da Vontade consigo mesma e teleologia
                • 36 ndash Fundamentos do mundo como Vontade
                  • Capiacutetulo 4 ndash Interpretaccedilotildees paradigmaacuteticas e anaacutelise pessoal
                    • 41 ndash Recepccedilatildeo da filosofia schopenhaueriana
                    • 42 ndash Apreciaccedilotildees criacuteticas da antinomia da faculdade de conhecimento
                    • 43 ndash Soluccedilotildees apologeacuteticas agrave antinomia da faculdade de conhecimento
                    • 44 ndash Anaacutelise pessoal
                      • Referecircncias
Page 2: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos

Katia Cilene da Silva Santos

A antinomia da teoria do conhecimento de

Schopenhauer

(Versatildeo corrigida)

Tese apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia do

Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e

Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo para obtenccedilatildeo do

tiacutetulo de Doutora em Filosofia

Orientador Prof Dr Eduardo Brandatildeo

Satildeo Paulo 2017

Autorizo a reproduccedilatildeo e divulgaccedilatildeo total ou parcial deste trabalho por qualquer meio

convencional ou eletrocircnico para fins de estudo e pesquisa desde que citada a fonte

Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo

Serviccedilo de Biblioteca e Documentaccedilatildeo

Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo

Santos Katia Cilene da Silva

S237a A antinomia da teoria do conhecimento de

Schopenhauer Katia Cilene da Silva Santos

orientador Eduardo Brandatildeo - Satildeo Paulo 2017

240 f

Tese (Doutorado)-Faculdade de Filosofia Letras

e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo

Departamento de Filosofia Aacuterea de concentraccedilatildeo

Filosofia

1 Schopenhauer 2 Antinomia da faculdade de

conhecimento 3 Metafiacutesica 4 Teoria do

conhecimento 5 Idealismo I Brandatildeo Eduardo

orient II Tiacutetulo

Folha de Avaliaccedilatildeo

SANTOS Katia Cilene da Silva A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer 2017 Tese (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e

Ciecircncias Humanas Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2017

Aprovado em

Banca Examinadora

Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________

Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________

Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________

Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________

Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________

Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________

Dedico este trabalho agrave minha famiacutelia Luzia Artur Toni Jane Adriano Fernando Nadja Daniel

Luiz Fernando Arthur e Alessandro

Agradecimentos

Agradeccedilo ao meu orientador professor Dr Eduardo Brandatildeo por me

acompanhar desde o mestrado com sua forma especial de orientar Foi muito importante na minha trajetoacuteria ateacute aqui sua liberdade de pensamento e sua

abertura a diferentes horizontes e alternativas As anaacutelises sem preconceitos as correccedilotildees fundamentais as sugestotildees pertinentes e as indicaccedilotildees agudas e certeiras resultaram todas as vezes em um pensamento mais claro e um texto

melhor Agradeccedilo muito especialmente ao professor Dr Newton da Costa pela

generosidade com que me ajudou em vaacuterios momentos da minha pesquisa Sou grata pelas diversas duacutevidas que me sanou pelas indicaccedilotildees bibliograacuteficas e pelas orientaccedilotildees em questotildees de loacutegica Mas sou grata sobretudo por me

receber com hospitalidade pelos conselhos que me ensinaram sabedoria e pela solicitude com que sempre me atendeu

Agradeccedilo tambeacutem agrave professora Dra Macia Luacutecia Cacciola pela leitura criacutetica do texto da minha prova de qualificaccedilatildeo As correccedilotildees e os pontos falhos que me apresentou foram importantes para que eu repensasse os rumos do meu

trabalho e reavaliasse meus caminhos Agradeccedilo ainda ao professor Dr Joseacute Eduardo Baioni pelas relevantes

indicaccedilotildees bibliograacuteficas Por fim agradeccedilo ao CNPq pelo subsiacutedio financeiro de 2015 ateacute o teacutermino

da pesquisa

Nosso ponto de vista objetivo eacute realista e

portanto condicionado na medida em que tomando os seres naturais como dados daiacute

abstrai que a existecircncia objetiva deles pressupotildee um intelecto no qual se encontrem primeiro

como representaccedilatildeo mas o ponto de vista subjetivo e idealista de Kant tambeacutem eacute condicionado na medida em que emerge da

inteligecircncia a qual ela mesma tem a natureza como pressuposto e somente pode surgir como

resultado do desenvolvimento desta ateacute o seres animais

Schopenhauer

RESUMO

SANTOS Katia Cilene da Silva A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer 2017 240 p Tese (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e

Ciecircncias Humanas Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2017

Resumo Este trabalho versa sobre a antinomia da faculdade de conhecimento tambeacutem conhecida como paradoxo de Zeller que Schopenhauer refere no primeiro livro de O mundo como Vontade e representaccedilatildeo Essa questatildeo tem sido bastante discutida na histoacuteria do pensamento schopenhaueriano e

permanece ainda hoje como um problema em aberto Desde os primeiros leitores de Schopenhauer a antinomia da faculdade de conhecimento foi apontada como

um problema de soluccedilatildeo difiacutecil quando natildeo impossiacutevel e explicada de maneiras diversas Algumas vezes apontou-se a heterogeneidade das teorias sobre as

quais o pensamento schopenhaueriano se ergue em outras a antinomia foi atribuiacuteda a erros de interpretaccedilatildeo da filosofia kantiana por vezes remeteram-na a um dualismo em que se chocam materialismo e idealismo ou realismo e

idealismo e haacute ainda outras visotildees Nesta tese propomos uma interpretaccedilatildeo alternativa que toma as dificuldades da filosofia schopenhaueriana como

constitutivas e sem pretender justificaacute-la nem impugnaacute-la busca sua compreensatildeo a partir das questotildees teoacutericas com as quais o filoacutesofo se defrontou Como resultado encontramos que Schopenhauer evidencia a insuficiecircncia tanto

do idealismo quanto do realismo para a explicaccedilatildeo completa e correta do mundo bem como a muacutetua exigecircncia entre ambos A complementaridade entre os

pontos de vista opostos do idealismo e do realismo impotildee que sejam articulados embora sua combinaccedilatildeo origine os diversos problemas presentes na obra schopenhaueriana entre os quais estaacute a antinomia da faculdade de

conhecimento Adicionalmente analisamos outras questotildees e dificuldades que surgiram no pensamento de Schopenhauer algumas mencionadas pelo filoacutesofo

outras natildeo

Palavras-chave Schopenhauer Antinomia da faculdade de conhecimento Metafiacutesica Teoria do conhecimento Idealismo

ABSTRACT

SANTOS Katia Cilene da Silva The antinomy of Schopenhauers theory of knowledge 2017 240 p Tese (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e

Ciecircncias Humanas Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2017

Abstract This work deals with the antinomy of the faculty of knowledge also known as Zellers paradox to which Schopenhauer refers in the first book of The

world as Will and representation This question has been much discussed in the history of Schopenhauers thought and still remains today as an unsolved

problem Since the early readers of Schopenhauer the antinomy of the faculty of knowledge was pointed out as a problem of difficult solution if not impossible and explained in different ways At times the heterogeneity of the theories on

which Schopenhauers thought stands has been pointed out other times the antinomy was attributed to errors in the interpretation of Kantian philosophy for

many times referred to a dualism in which collide materialism and idealism or realism and idealism and there are still other viewpoints In this thesis we propose an alternative interpretation which takes the difficulties of

Schopenhauers philosophy as constitutive and not pretending to justify or contest it we search for an understanding from the theoretical questions with

which the philosopher faced As a result we find that Schopenhauer evidences the inadequacy of both idealism and realism for the complete and correct explanation of the world as well as the mutual demand between them The

complementarity between the opposing viewpoints of idealism and realism demands they to be articulated although their combination gives rise to the

various problems present in Schopenhauers work among which is the antinomy of the faculty of knowledge In addition we analyzed other issues and difficulties that arose in Schopenhauers thought some mentioned by the philosopher

Keywords Schopenhauer Antinomy of the faculty of knowledge Metaphysics

Theory of knowledge Idealism

Lista de abreviaturas

Traduzimos do alematildeo as citaccedilotildees das obras de Schopenhauer Indicamos em notas de rodapeacute

as localizaccedilotildees dos fragmentos transcritos nas ediccedilotildees originais utilizadas e tambeacutem em

traduccedilotildees referenciadas em portuguecircs ou espanhol Traduzimos as citaccedilotildees da obra de Ernst

Cassirer da ediccedilatildeo em espanhol da Fondo de Cultura Econoacutemica Retiramos as citaccedilotildees de

Criacutetica da Razatildeo Pura da ediccedilatildeo portuguesa da Calouste Gulbenkian e indicamos a

paginaccedilatildeo original da Koumlniglich Preuβischen Akademie der Wissenschaften Outros casos

seratildeo informados em notas de rodapeacute

WWV I = Die Welt als Wille und Vorstellung erster Band [Ediccedilatildeo alematilde Die Welt als Wille

und Vorstellung I und II Gesamtausgabe Muumlnchen Deutschen Taschenbuch 2011 (Nach

den Ausgaben letzter Hand herausgegeben von Ludger Luumltkehaus) ediccedilatildeo brasileira O

mundo como vontade e representaccedilatildeo 1ordm tomo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo notas e iacutendices de

Jair Barboza Satildeo Paulo UNESP 2005 (essa ediccedilatildeo seraacute referida como MI)]

KkP = Kritik der kantischen Philosophie [Ediccedilatildeo alematilde Die Welt als Wille und Vorstellung I

und II Gesamtausgabe Muumlnchen Deutschen Taschenbuch 2011 (Nach den Ausgaben letzter

Hand herausgegeben von Ludger Luumltkehaus) ediccedilatildeo brasileira Criacutetica da filosofia kantiana

Traduccedilatildeo de Wolfgang Leo Maar e Maria Luacutecia Mello e Oliveira Cacciola Satildeo Paulo Nova

Cultural 1988 (essa ediccedilatildeo seraacute referida como CFK)]

WWV II = Die Welt als Wille und Vorstellung zweiter Band [Ediccedilatildeo alematilde Die Welt als

Wille und Vorstellung I und II Gesamtausgabe Muumlnchen Deutschen Taschenbuch 2011

(Nach den Ausgaben letzter Hand herausgegeben von Ludger Luumltkehaus) ediccedilatildeo brasileira

O mundo como vontade e representaccedilatildeo 2ordf tomo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo notas e iacutendices de

Jair Barboza Satildeo Paulo UNESP 2015 (essa ediccedilatildeo seraacute referida como MII)]

UumlSF = Uumlber das Sehn und die Farben [Ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke Band III Kleinere

Schriften StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 2012 (Textkritisch bearbeitet und

herausgegeben von Wolfgang Frhr von Loumlhneysen) ediccedilatildeo brasileira Sobre a visatildeo e as

cores um tratado Traduccedilatildeo de Erlon Joseacute Paschoal Nova Alexandria Satildeo Paulo 2003 (essa

ediccedilatildeo seraacute referida como VC)]

UumlV = Uumlber die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde [Ediccedilatildeo alematilde

Saumlmtliche Werke Band III Kleinere Schriften StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 2012

(Textkritisch bearbeitet und herausgegeben von Wolfgang Frhr von Loumlhneysen) ediccedilatildeo

espanhola De la cuaacutedruple raiacutez del principio de razoacuten suficiente Traduccioacuten y proacutelogo de

Leopoldo-Eulogio Palacios Madrid Gredos 1981 (essa ediccedilatildeo seraacute referida como CR)]

WN = Uumlber den Willen in der Natur [Ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke Band III Kleinere

Schriften StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 2012 (Textkritisch bearbeitet und

herausgegeben von Wolfgang Frhr von Loumlhneysen) ediccedilatildeo espanhola Sobre la voluntad en

la naturaleza 1ordf ed 3ordf reimpr Traduccioacuten de Miguel de Unamuno Proacutelogo y notas de

Santiago Gonzaacutelez Noriega Madrid Alianza 1987 (essa ediccedilatildeo seraacute referida como VN)]

PP I = Parerga und paralipomena I [Ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke Band IV

StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 1986 (Textkritisch bearbeitet und herausgegeben von

Wolfgang Frhr von Loumlhneysen) As traduccedilotildees dos textos utilizados seratildeo indicadas em notas

de rodapeacute]

PP II = Parerga und paralipomena II [Ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke Baumlnde V1 V2

StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 1986 (Textkritisch bearbeitet und herausgegeben von

Wolfgang Frhr von Loumlhneysen) As traduccedilotildees dos textos utilizados seratildeo indicadas em notas

de rodapeacute]

KrV= Kritik der reinen Vernunft [Ediccedilatildeo alematilde Kantrsquos Gesammelte Schriften

Herausgegeben von der Koumlniglich Preuβischen Akademie der Wissenschaften 2 Auflage

Band III Berlin Georg Reimer 1904 ediccedilatildeo portuguesa Criacutetica da razatildeo pura 5ordf ed

Traduccedilatildeo de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujatildeo Introduccedilatildeo e notas de

Alexandre Fradique Morujatildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001 (essa ediccedilatildeo seraacute

referida como CRP)]

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo13

Capiacutetulo 1 ndash Introduccedilatildeo agrave antinomia da faculdade de conhecimento

11 ndash Apresentaccedilatildeo teoacuterica e histoacuterica da antinomia da faculdade de conhecimento17

12 ndash Outras questotildees presentes na filosofia schopenhaueriana23

13 ndash Investigaccedilatildeo acerca do conceito da antinomia da faculdade de conhecimento30

14 ndash Investigaccedilatildeo acerca dos conceitos das outras questotildees presentes na filosofia de

Schopenhauer41

15 ndash Estrutura histoacuterica da metafiacutesica de Schopenhauer o debate sobre a coisa em si44

16 ndash Desvelando o dilema e os conceitos envolvidos70

Capiacutetulo 2 ndash A construccedilatildeo do lado externo do mundo idealismo transcendental

21 ndash Philosophia prima

211 ndash O princiacutepio maacuteximo do conhecimento77

212 ndash Formas da sensibilidade intuiccedilotildees puras e sujeito da voliccedilatildeo85

213 ndash Dianoiologia91

214 ndash Teoria da razatildeo107

22 ndash O conhecimento filosoacutefico118

23 ndash Criacutetica de Schopenhauer ao idealismo de Kant123

24 ndash Idealismo schopenhaueriano e fisiologia do conhecimento131

25ndash Fundamentos do mundo como representaccedilatildeo134

Capiacutetulo 3 ndash A constituiccedilatildeo do lado interno do mundo metafiacutesica

31 ndash A Vontade como o em si do indiviacuteduo141

32 ndash A Vontade como o em si do mundo149

33 ndash Objetivaccedilatildeo da Vontade161

34 ndash Relaccedilotildees da Vontade com o intelecto e o ceacuterebro166

35 ndash Discoacuterdia da Vontade consigo mesma e teleologia172

36 ndash Fundamentos do mundo como Vontade182

Capiacutetulo 4 ndash Interpretaccedilotildees paradigmaacuteticas e anaacutelise pessoal

41 ndash Recepccedilatildeo da filosofia schopenhaueriana187

42 - Apreciaccedilotildees criacuteticas da antinomia da faculdade de conhecimento197

43 ndash Soluccedilotildees apologeacuteticas da antinomia da faculdade de conhecimento206

44 ndash Anaacutelise pessoal217

Referecircncias228

- 13 -

Introduccedilatildeo

Querer resolver todos os problemas e

responder a todas as interrogaccedilotildees seria

atrevida filaacuteucia e presunccedilatildeo tatildeo

extravagante que isso bastaria para se tornar

imediatamente indigno de toda a confianccedila

Kant

O tema de que se ocupa esta tese eacute uma questatildeo muito interessante Um

pensador de espiacuterito tatildeo vivo e de ideias tatildeo importantes na tradiccedilatildeo filosoacutefica como Arthur

Schopenhauer foi levado a reconhecer e a relatar no seu sistema o que entendeu ser uma

antinomia da faculdade de conhecimento Ao fazecirc-lo poreacutem ele indicou que sua filosofia

infringira o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo que estaacute na base do conceito de antinomia Embora

ele tenha justificado o problema pela bifurcaccedilatildeo dos pontos de vista do fenocircmeno e da coisa

em si a soluccedilatildeo natildeo foi convincente e as discussotildees iniciadas com seus contemporacircneos

ainda hoje subsistem Em 1869 seu amigo e disciacutepulo Julius Frauenstaumldt publicou um artigo

intitulado ldquoArthur Schopenhauer und seine Gegnerrdquo na revista Unsere Zeit deutsche Revue

der Gegenwart1 no qual informa sobre diversas criacuteticas de que a filosofia schopenhaueriana

foi alvo Frauenstaumldt menciona muitos opositores e muitas objeccedilotildees ao pensamento de

Schopenhauer entre as quais estaacute a antinomia da faculdade de conhecimento Menciona

tambeacutem a reaccedilatildeo do filoacutesofo a vaacuterias acusaccedilotildees de contradiccedilatildeo em cartas nas quais manifesta

revolta em ser chamado de contraditoacuterio

O espanto que as contradiccedilotildees provocam se deve a que desde a defesa

feita por Aristoacuteteles do princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo no livro Γ da Metafiacutesica a presenccedila de

antinomias aporias ou paradoxos em qualquer teoria equivale a uma condenaccedilatildeo O princiacutepio

de natildeo contradiccedilatildeo eacute uma das principais leis da loacutegica claacutessica entendidas como necessaacuterias e

suficientes para o pensamento correto e sua violaccedilatildeo tem sido vista como um erro capaz de

impugnar todo um sistema teoacuterico Apesar disso a presenccedila de contradiccedilotildees eacute muito comum

na Histoacuteria da Filosofia Diversos autores tiveram em algum momento uma contradiccedilatildeo ou

1 FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 686-707

- 14 -

outro problema loacutegico apontado no desenvolvimento de suas ideias A lista de exemplos seria

extensa mas basta lembrarmos o conhecido debate sobre a concepccedilatildeo kantiana de coisa em si

no qual diversos pensadores refletiram sobre a contradiccedilatildeo que significava sustentar a

existecircncia de um objeto irrepresentaacutevel na base de todas as representaccedilotildees Um filoacutesofo da

magnitude de Kant numa das questotildees mais importantes de toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica

precisou lidar com uma dificuldade ligada ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo O caso de

Schopenhauer talvez seja uacutenico na Histoacuteria da Filosofia porque seus opositores acusaram a

presenccedila de contradiccedilotildees paradoxos e antinomias em todas as frentes de seu pensamento O

proacuteprio filoacutesofo mencionou aleacutem da antinomia da faculdade de conhecimento outras trecircs

oposiccedilotildees decorrentes de suas ideias a saber entre a necessidade que rege a conduta humana

e a liberdade na negaccedilatildeo da Vontade entre mecanicismo e finalismo na natureza e entre a

contingecircncia no decorrer da vida do indiviacuteduo e a necessidade moral que intimamente a

determina

Nesta pesquisa natildeo buscamos redimir a filosofia schopenhaueriana

tampouco condenaacute-la Natildeo temos a pretensatildeo desmedida de destrinchar todas as questotildees que

ela suscita para entatildeo atribuir-lhe este ou aquele selo A perspectiva que adotamos eacute a de que

as dificuldades decorrentes do princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo podem indicar a necessidade de

uma abordagem diferente na qual natildeo se procure eliminaacute-las a qualquer custo ou invalidar a

teoria em que ocorrem Caso a violaccedilatildeo do princiacutepio seja inevitaacutevel os problemas talvez natildeo

sejam de ordem discursiva ou loacutegica mas tenham raiacutezes em profundas questotildees filosoacuteficas

Atualmente pensadores das loacutegicas paraconsistentes entre eles o professor Newton da Costa

tecircm evidenciado que as contradiccedilotildees natildeo satildeo aberraccedilotildees e que existem domiacutenios do discurso

onde elas satildeo inexpugnaacuteveis como a Medicina e o Direito Nessas loacutegicas mostrou-se

possiacutevel manter sistemas contraditoacuterios sem se incorrer em trivialidade isto eacute sem que se

deduzam quaisquer foacutermulas ou teoremas em uma teoria contraditoacuteria dada Com os

princiacutepios norteadores de um novo ramo dentro das loacutegicas paraconsistentes a loacutegica

paraclaacutessica argumentamos nesta tese que a filosofia schopenhaueriana embora

inconsistente natildeo eacute trivial

Com esse objetivo no primeiro capiacutetulo deste trabalho apresentamos a

antinomia da faculdade de conhecimento e investigamos sua natureza e o mesmo fazemos

com relaccedilatildeo a outras questotildees semelhantes Com base no discernimento de alguns conceitos

loacutegicos deliberamos sobre qual deles descreveraacute melhor cada um dos problemas de que

- 15 -

tratamos Expomos a trama conceitual do debate poacutes-kantiano sobre a coisa em si para

ressaltar as questotildees agraves quais Schopenhauer precisava responder bem como para iluminar as

suas opotildees teoacutericas Ao final do capiacutetulo trazemos agrave tona o dilema que estaacute na base da

metafiacutesica e da teoria do conhecimento schopenhauerianas bem como os conceitos nele

envolvidos

No segundo capiacutetulo examinamos a teoria da representaccedilatildeo e

explicitamos o mecanismo de produccedilatildeo desse lado do mundo pelo sujeito do conhecer

Detalhamos o modo como Schopenhauer encaixa as peccedilas do quebra-cabeccedila que se tornou o

problema do conhecimento apoacutes as discussotildees sobre a coisa em si Mostramos que o ponto

central da soluccedilatildeo que ele elabora eacute o princiacutepio de razatildeo suficiente por meio do qual responde

a todas as questotildees que se encontravam abertas naquele debate Ressaltamos essas relaccedilotildees e

indicamos como elas manifestam seu posicionamento especiacutefico frente ao idealismo

transcendental Expomos a concepccedilatildeo de Schopenhauer acerca do conhecimento filosoacutefico

algumas das criacuteticas que ele faz ao idealismo kantiano e a relaccedilatildeo que ele estabelece entre o

seu proacuteprio idealismo e a fisiologia com o objetivo de clarificar os caminhos que seu

pensamento vai urdindo Ao final destacamos os contornos do mundo como representaccedilatildeo

tal como concebido pelo filoacutesofo e trazemos agrave luz os seus fundamentos

O terceiro capiacutetulo trata da metafiacutesica schopenhaueriana na qual a coisa

em si eacute deduzida como o lado interno do mundo Apresentamos a argumentaccedilatildeo acerca da

Vontade como essecircncia do indiviacuteduo humano bem como sua extensatildeo posterior ao mundo

como um todo animado e inanimado Retratamos a objetivaccedilatildeo da Vontade sublinhando o

processo de refinamento das suas manifestaccedilotildees no decurso tempo e apontamos suas relaccedilotildees

com o intelecto e o ceacuterebro Discutimos as concepccedilotildees de autodiscoacuterdia e de teleologia e

finalizamos com uma reflexatildeo sobre os fundamentos do mundo como Vontade O quarto e

uacuteltimo capiacutetulo abrange algumas das mais relevantes apreciaccedilotildees histoacutericas da antinomia da

faculdade do conhecimento e da filosofia schopenhaueriana como um todo Delineamos a

recepccedilatildeo das obras de Schopenhauer por seus contemporacircneos destacamos algumas das

avaliaccedilotildees criacuteticas da antinomia da faculdade de conhecimento bem como outras

apologeacuteticas e apresentamos nossas conclusotildees Neste uacuteltimo item refletimos sobre a

complementaridade dos pontos de vista do idealismo e do realismo e concluiacutemos pela

necessidade de manter ambas as perspectivas A explicaccedilatildeo do mundo com base somente em

uma delas eacute vista como insuficiente por Schopenhauer e ainda que decirc origem a

- 16 -

inconsistecircncias sua junccedilatildeo natildeo torna seu pensamento trivial

Por fim queremos esclarecer que o tiacutetulo desta tese natildeo se refere apenas

agrave antinomia da faculdade de conhecimento mas agrave teoria do conhecimento de um modo mais

amplo porque a questatildeo envolve diferentes aspectos da filosofia de Schopenhauer De fato a

antinomia se relaciona com o intelecto mas tambeacutem com a Vontade e com a filosofia da

natureza schopenhaueriana O nuacutecleo estaacute na origem do conhecimento suas condiccedilotildees de

possibilidade e seu mecanismo interno de funcionamento que satildeo questotildees ligadas agrave

faculdade de conhecer no entanto a antinomia tambeacutem se refere ao surgimento do suporte

material do intelecto ligado agrave Vontade e ao desenvolvimento e aperfeiccediloamento fenomecircnicos

dela

- 17 -

Capiacutetulo 1 ndash Introduccedilatildeo agrave antinomia da faculdade de conhecimento

11 ndash Apresentaccedilatildeo teoacuterica e histoacuterica da antinomia da faculdade de conhecimento

No sect 7 do primeiro livro de O mundo como Vontade e representaccedilatildeo

(doravante O Mundo) Schopenhauer identifica um problema na sua filosofia ao qual ele

denomina antinomia da faculdade de conhecimento (Antinomie in unsern

Erkenntniβvermoumlgen)2 Esse problema desponta nos desdobramentos de duas teses

fundamentais de seu pensamento a saber a concepccedilatildeo de que todo o mundo conhecido se

reduz a representaccedilatildeo do sujeito e a de que as objetivaccedilotildees da Vontade base metafiacutesica de

tudo o que existe apresentam um progresso no tempo Essas teses fazem parte dos alicerces

da filosofia schopenhaueriana e sua confrontaccedilatildeo foi interpretada como levando a uma

contradiccedilatildeo tanto pelo filoacutesofo quanto por diversos comentadores de sua obra

De acordo com Schopenhauer o universo empiacuterico consiste em

representaccedilatildeo de um sujeito cognoscente de modo que todos os seres animados bem como

toda a natureza inanimada dependem de um intelecto e somente podem existir por meio dele

Nas palavras do filoacutesofo o mundo eacute ldquo[] simplesmente representaccedilatildeo e como tal exige o

sujeito cognoscente como portador de sua existecircncia []rdquo3 Essa relaccedilatildeo de implicaccedilatildeo entre o

sujeito e o mundo como representaccedilatildeo eacute radicalizada pela conexatildeo intriacutenseca entre a

faculdade cognoscitiva e o corpo material que lhe daacute suporte pois o ceacuterebro eacute apontado por

Schopenhauer como o oacutergatildeo no qual se situa o conhecimento Para ele o espaccedilo como

condiccedilatildeo da extensatildeo dos corpos o tempo como forma da sucessatildeo dos eventos e a lei de

causalidade como reguladora das transformaccedilotildees na natureza satildeo as bases da constituiccedilatildeo do

sujeito congnoscente e possuem uma origem cerebral Ernst Cassirer sublinha esse aspecto

2 WWV I ersters buch sect7 p 65 M I Livro I sect7 p 76

3 WWV I ersters buch sect7 p 64 M I Livro I sect7 p 75

- 18 -

ressaltando que Schopenhauer formula sua teoria do conhecimento sobre uma concepccedilatildeo que

eacute ao mesmo tempo metafiacutesica e fisioloacutegica

O ldquomundordquo que assim nasce existe somente na representaccedilatildeo e para a

representaccedilatildeo eacute pura e exclusivamente um produto do ceacuterebro Nunca se

poderaacute afirmar com a energia necessaacuteria sublinhar-se com forccedila o bastante

essa condicionalidade fisioloacutegica Sem o olho natildeo existiria jamais o mundo

das cores sem o ceacuterebro jamais existiria o mundo dos corpos no espaccedilo o

mundo das mudanccedilas e das dependecircncias causais no tempo O intelecto que

possui como seu patrimocircnio aprioriacutestico e original todas essas relaccedilotildees e

formas encontra-se absolutamente condicionado por fatores fiacutesicos eacute a

funccedilatildeo de um oacutergatildeo material subordinado portanto a este e sem o qual

seria tatildeo impossiacutevel como o ato de segurar sem a matildeo4

Da perspectiva de sua metafiacutesica contudo Schopenhauer sustenta a

existecircncia de uma gradaccedilatildeo nas objetivaccedilotildees da Vontade ancorada na complexidade e no

aperfeiccediloamento crescentes dos seres da natureza que culmina no animal cognoscente A

investigaccedilatildeo da natureza baseada na lei de causalidade diz o filoacutesofo leva necessariamente agrave

concepccedilatildeo de que ldquo[] no tempo cada estado da mateacuteria superiormente organizado sucedeu a

um mais rudimentar isto eacute que animais surgiram antes dos homens peixes antes dos animais

terrestres plantas antes destes o inorgacircnico antes de todo orgacircnico []rdquo5 Todos esses seres

seriam orientados por um princiacutepio de afirmaccedilatildeo em virtude do qual sua existecircncia teria

como uacutenico objetivo garantir agrave Vontade sua proacutepria objetivaccedilatildeo Em funccedilatildeo disso o

aprimoramento no decurso do tempo se daria no sentido de afirmarem a Vontade de modo

cada vez mais eficaz o que teria sido alcanccedilado com o ser humano Com efeito a razatildeo e o

conhecimento abstrato presentes apenas na humanidade seriam os instrumentos mais

eficientes para a satisfaccedilatildeo do querer individual Natildeo obstante a possibilidade de uma tal

gradaccedilatildeo exige que se admita a existecircncia de um processo temporal no qual uma longa cadeia

de causas e efeitos tenha transformado a natureza e sofisticado o mundo desde o inorgacircnico

ateacute o ceacuterebro dotado de razatildeo

A questatildeo que surge ao se confrontarem os dois aspectos expostos eacute

notada e descrita por Schopenhauer

Assim de um lado vemos necessariamente a existecircncia do mundo inteiro

dependente do primeiro ser cognoscente por mais imperfeito que possa ser

de outro lado tambeacutem necessariamente esse primeiro animal cognoscente eacute

completamente dependente de uma longa cadeia anterior de causas e efeitos

4 CASSIRER E El problema del conocimiento III 1ordf ed 4ordf reimpr Traduccioacuten de Wenceslao Roces Meacutexico

Fondo de Cultura Econoacutemica 1993 p 497 (grifos do autor) 5 WWV I ersters buch sect7 p 64 M I Livro I sect7 p 75

- 19 -

na qual ele entra como um pequeno elo Esses dois pontos de vista

contraditoacuterios aos quais na verdade fomos conduzidos com a mesma

necessidade podem de fato nomear-se novamente antinomia da nossa

faculdade de conhecimento e situar-se como contrapartida daquela

encontrada no primeiro extremo da ciecircncia da natureza []6

Para o filoacutesofo a questatildeo eacute dissolvida considerando-se que o espaccedilo o

tempo e a causalidade referem-se unicamente agrave representaccedilatildeo e natildeo ao nuacutecleo do mundo agrave

coisa em si A chave para essa soluccedilatildeo seria a compreensatildeo de que o tempo estaacute associado ao

conhecimento ou seja se eacute certo que natildeo havia conhecimento antes do intelecto natildeo haveria

tambeacutem tempo algum Ao surgir como atributo do primeiro ser cognoscente somente entatildeo eacute

que o tempo traria as noccedilotildees de passado e futuro infinitos bem como a representaccedilatildeo de uma

cadeia causal anterior Como ele explica

[] assim como o primeiro presente tambeacutem o passado de onde ele proveacutem

depende do primeiro sujeito cognoscente e sem ele nada eacute embora a

necessidade conduza a que esse primeiro presente natildeo se apresente como o

primeiro isto eacute como natildeo tendo nenhum passado como matildee e como o iniacutecio

do tempo mas sim como consequecircncia do passado conforme o princiacutepio

do ser no tempo da mesma forma que o fenocircmeno que preenche o passado

se apresenta como efeito de estados preacutevios que o preencheram segundo a

lei de causalidade7

Essa resposta elaborada por Schopenhauer no entanto natildeo remediou os

problemas aiacute encontrados pelos historiadores e filoacutesofos posteriores e a questatildeo passou agrave

Histoacuteria da Filosofia como uma falha um paradoxo descoberto por Eduard Zeller 8

Em 1875

na obra Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibniz Zeller expocircs a formulaccedilatildeo da

antinomia que tem sido a mais citada No seu livro ele afirma que quando confrontamos as

partes do sistema schopenhaueriano somos conduzidos agrave conclusatildeo de que o mundo resulta

da representaccedilatildeo a qual por sua vez resulta de um oacutergatildeo material que pressupotildee o mesmo

mundo Nas palavras dele

Encontramo-nos portanto no ciacuterculo evidente de que a representaccedilatildeo deve

ser um produto do ceacuterebro e o ceacuterebro um produto da representaccedilatildeo e que

este uacuteltimo natildeo seja o limite extremo da sua concepccedilatildeo mas apenas

enquanto ele eacute representado eacute um subterfuacutegio vazio pois somente enquanto

6 WWV I ersters buch sect7 p 65 M I Livro I sect7 p 76 Schopenhauer se refere nessa passagem ao que ele

chama de antinomia quiacutemica que natildeo discutiremos neste trabalho De acordo com o filoacutesofo a ciecircncia quiacutemica

tem como objeto o primeiro estado da mateacuteria que tenta encontrar pelo meacutetodo da causalidade Poreacutem estaria

condenada ao fracasso pois mesmo que um tal primeiro estado fosse encontrado ficaria inexplicado o modo

como teria podido sofrer alguma mudanccedila na ausecircncia de um outro estado diferente dele que pudesse dar

origem agrave primeira mutaccedilatildeo Cf WWV I ersters buch sect7 p 63-64 M I Livro I sect7 p 74-75 7 WWV I ersters buch sect7 p 66 M I Livro I sect7 p 77

8 Em verdade natildeo se pode falar em descoberta uma vez que o proacuteprio Schopenhauer menciona essa dificuldade

como de resto algumas outras que discutiremos adiante

- 20 -

mateacuteria somente ldquoenquanto se torna representadordquo eacute que pode existir

corporalmente o oacutergatildeo que gera as representaccedilotildees Aqui se situa uma

contradiccedilatildeo para cuja soluccedilatildeo o filoacutesofo nem minimamente contribuiu9

Como afirma Maria Luacutecia Cacciola em Schopenhauer e a questatildeo do

dogmatismo trata-se de uma criacutetica claacutessica agrave teoria da representaccedilatildeo schopenhaueriana que

foi por isso qualificada como contraditoacuteria10

De fato tanto antes quanto depois de Eduard

Zeller diversos comentadores apresentaram e discutiram essa dificuldade entre eles Kuno

Fischer Johannes Volkelt e Ernst Cassirer Jaacute em 1871 Julius Frauenstaumldt disciacutepulo e amigo

do filoacutesofo publicou seu Schopenhauer-Lexicon no qual haacute um verbete sobre a antinomia da

faculdade de conhecimento sob o nome de ldquoantinomia fisioloacutegicardquo (die physiologische

Antinomie)11

Ainda antes dele Adolf Cornill e Rudolf Seydel tocam no problema em 1856 e

1857 respectivamente O primeiro em sua obra Arthur Schopenhauer als

Uebergangsformation von einer idealistischen in eine realistische Weltanschauung12

atribui-

o a um dualismo que dilaceraria o sistema O segundo o remete a um hiato entre a teoria do

conhecimento schopenhaueriana e sua metafiacutesica na obra Schopenhauers Philosophisches

System13

Existem ainda muitas outras obras dedicadas a Schopenhauer que aludem

agrave antinomia natildeo necessariamente de modo criacutetico tanto escritas no passado como no

presente Dentre elas estatildeo diversas teses de doutorado alematildes datadas do final do seacuteculo

XIX ao iniacutecio do XX como por exemplo a de Dmitry Tzerteleff Schopenhauerrsquos

Erkenntniss-Theorie eine kritische Darstellung14

defendida na Universidade de Leipzig em

1879 Aleacutem dessa haacute a de Hugo Otczipka Kritische Bemerkungen zur Weltanschauung

Schopenhauers15

tambeacutem defendida na Universidade de Leipzig em 1892 e a de Otto

9 ZELLER E Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibniz Muumlnchen Didenbourg 1875 p 713

(traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 10

CACCIOLA M L Schopenhauer e a questatildeo do dogmatismo Satildeo Paulo EDUSP 1994 p 77 11

Cf FRAUENSTAumlDT J Schopenhauer-Lexicon ein Philosophisches Woumlrterbuch Erster Band Leipzig

Brockhaus 1871 p 37 et seq 12

CORNILL A Arthur Schopenhauer als Uebergangsformation von einer idealistischen in eine realistische

Weltanschauung Heidelberg Georg Mohr 1856 13

SEYDEL R Schopenhauers Philosophisches System Leipzig Breitkop und Haumlrtel 1857 14

TZERTELEFF Dmitry Schopenhauerrsquos Erkenntniss-Theorie eine kritische Darstellung Inaugural-

Dissertation zur Erlangung der philosophischen Doktorwuumlrde der Phiosophischen Fakultaumlt der Universitaumlt

Leipzig Leipzig G Reusche 1879 p 35 et seq 15

OTCZIPKA Hugo Kritische Bemerkungen zur Weltanschauung Schopenhauers Der Hohen philosophischen

Fakultaumlt der Universitaumlt Leipzig als Inaugural-Dissertation zur Erlangung der Doktorwuumlrde Leipzig-Reudnitz

Oswald Schmidt 1892 p 150 et seq

- 21 -

Suckau intitulada Schopenhauers falsche Auslegung der Kantischen Erkenntnistheorie Ihre

Erklaumlrung und Ihre Folgen16

defendida em Weimar em 191217

Uma das mais interessantes e profiacutecuas anaacutelises da teoria do

conhecimento schopenhaueriana eacute a realizada por Ernst Cassirer De acordo com esse

pensador Schopenhauer tenta realizar a intermediaccedilatildeo entre dois mundos a saber o da

metafiacutesica do ponto de vista do idealismo alematildeo e o das ciecircncias naturais apoiado

especialmente na psicologia francesa e na teoria fisioloacutegica das cores de Goethe Esse seria

um caraacuteter sui generis do pensamento de Schopenhauer que o teria levado agrave bifurcaccedilatildeo de

dois caminhos e de duas metas completamente diferentes em funccedilatildeo dos quais haveria

surgido uma antinomia jaacute na proacutepria formulaccedilatildeo do problema do conhecimento18

Cassirer considera que o fato de Schopenhauer apoiar sua teoria da

representaccedilatildeo sobre as ciecircncias naturais e natildeo sobre a loacutegica e a matemaacutetica assegura-lhe um

lugar especial entre os poacutes-kantianos mas em contrapartida envolve sua filosofia num

problema insoluacutevel Diferentemente dos outros disciacutepulos de Kant em Schopenhauer a

investigaccedilatildeo natildeo expotildee apenas a trajetoacuteria do conhecimento no sentido que vai do intelecto ao

objeto mas tambeacutem no inverso do mundo conhecido ao intelecto Schopenhauer portanto

teria decidido fundamentar sua visatildeo acerca da formaccedilatildeo do conhecimento natildeo somente em

uma operaccedilatildeo intelectual transcendental como os outros idealistas alematildees mas sustentando-

se tambeacutem no fisioloacutegico Sua intenccedilatildeo ao fazer isso teria sido a de rechaccedilar a construccedilatildeo

teoacuterica de tipo panteiacutesta em que um ser absoluto e originaacuterio engendra o mundo ao mesmo

tempo em que revela a si proacuteprio No entanto na concepccedilatildeo de Cassirer aiacute estaria o erro

fundamental de Schopenhauer pois o processo natildeo poderia ser entendido como a

manifestaccedilatildeo de uma entidade no tempo mas somente no sentido de uma emanaccedilatildeo loacutegica A

dificuldade de harmonizar o meacutetodo transcendental de Kant que se ocupa das verdades e da

validade ideal dos juiacutezos com as questotildees proacuteprias do lado empiacuterico da teoria fisioloacutegica seria

responsaacutevel por grande parte dos problemas da filosofia schopenhaueriana A partir daiacute um

ciacuterculo vicioso resultaria da derivaccedilatildeo dos juiacutezos com base nas coisas e escreve Cassirer

16

SUCKAU Otto Schopenhauers falsche Auslegung der Kantischen Erkenntnistheorie Ihre Erklaumlrung und Ihre

Folgen Dissertation zur Erlangung der Doktorwuumlrde bei der philosophischen Fakultaumlt der Groszligherzoglich

Hessischen Ludwigs-Universitaumlt zu Gieszligen Weimar R Wagner Sohn 1912 p 39 et seq 17

No quarto capiacutetulo deste trabalho delineamos a recepccedilatildeo da filosofia de Schopenhauer e algumas das

apreciaccedilotildees tanto criacuteticas quanto apologeacuteticas que a antinomia da faculdade do conhecimento recebeu 18

CASSIRER E op cit p 493

- 22 -

[] esse ciacuterculo vicioso tem necessariamente de produzir-se tatildeo logo o

problema da filosofia criacutetica saia de seu campo proacuteprio e verdadeiro isto eacute

tatildeo logo perguntemos natildeo por uma dependecircncia ideal com respeito a

verdades mas por uma dependecircncia real do sujeito com respeito ao objeto e

vice-versa19

No fundo do sistema schopenhaueriano haveria um ciacuterculo do anterior e

do posterior no tempo que estaria na base da teoria do conhecimento do filoacutesofo e seria

tambeacutem a origem da antinomia O proacuteprio Schopenhauer teria admitido aiacute uma circularidade

vendo-se obrigado a conceber o intelecto tanto como prius quanto como posterius20

Com

base nisso seriacuteamos forccedilados a concluir que o espaccedilo estaacute na cabeccedila e simultaneamente a

cabeccedila estaacute nele assim como que o tempo estaacute em noacutes e que tambeacutem estamos nele Do

mesmo modo a proacutepria derivaccedilatildeo do mundo como representaccedilatildeo no espaccedilo e no tempo

exigiria a existecircncia anterior de certos dados primaacuterios que na realidade jaacute seriam obra do

intelecto como no caso da intuiccedilatildeo dos objetos realizada pela retina

O ciacuterculo vicioso surgiria igualmente quando se analisa a exposiccedilatildeo

schopenhaueriana do ponto de vista metafiacutesico O intelecto juntamente com o ceacuterebro seria

um produto tardio da Vontade sua uacuteltima e superior objetivaccedilatildeo Nessa perspectiva o tempo

o espaccedilo e a causalidade que satildeo as condiccedilotildees do devir teriam de surgir posteriormente como

atributos do sujeito Entatildeo diz Cassirer

[] deveria estar claro segundo a proacutepria metafiacutesica de Schopenhauer que

natildeo pode haver nenhuma classe de objetivaccedilotildees da vontade anteriores ao

intelecto mas somente para este Soacute para o sujeito cognoscente e sua forma

de reflexatildeo se fragmenta o em si simplesmente unitaacuterio da vontade em uma

pluralidade de graus de objetivaccedilatildeo e na seacuterie ascendente do devir21

Em resumo natildeo se poderia apontar nenhuma origem material do

intelecto nenhuma demonstraccedilatildeo que apresentasse a derivaccedilatildeo dele a partir de outro ser ou

essecircncia Somente seria possiacutevel realizar algo desse tipo recorrendo-se a uma

autodeterminaccedilatildeo ou automovimento de um ser absoluto O proacuteprio Schopenhauer como

mostra Cassirer apontou o problema das metafiacutesicas geneacuteticas evidenciando que o princiacutepio

de razatildeo natildeo tem validade fora da experiecircncia e que portanto natildeo se pode supor nenhuma

causalidade entre a coisa em si e o fenocircmeno No entanto o filoacutesofo teria cometido o mesmo

erro no tocante agrave relaccedilatildeo entre Vontade e conhecimento na medida em que o princiacutepio de

razatildeo eacute utilizado para mostrar a origem uacuteltima do intelecto A filosofia schopenhaueriana

19

Ibidem p 510 (grifos do autor) 20

Ibidem p 512 21

Ibidem p 517 (grifos do autor)

- 23 -

como um todo resultaria entatildeo numa metafiacutesica geneacutetica de fundamento bioloacutegico22

12 ndash Outras questotildees presentes na filosofia schopenhaueriana

Aleacutem do nosso objeto de pesquisa podem-se mencionar ainda outras

questotildees entre elas trecircs contradiccedilotildees que foram expressamente referidas por Schopenhauer e

que adiante discutiremos Algumas das dificuldades que notamos nos parecem ser superficiais

ou aparentes enquanto outras talvez tenham raiacutezes mais profundas Em contextos superficiais

encontram-se embaraccedilos que natildeo comprometem a integridade do conjunto e podem ser

conciliados com suas premissas baacutesicas Em niacuteveis mais internos haacute aqueles que poderatildeo

estar radicados nas fundaccedilotildees do sistema Segundo pensamos no decurso da formulaccedilatildeo da

sua filosofia Schopenhauer acaba se deparando com diversos problemas que precisa resolver

tomando por base seu pensamento uacutenico Essa tarefa no entanto natildeo eacute nada faacutecil pois as

soluccedilotildees precisam ser harmonizadas com um mundo que possui dois lados mutuamente

excludentes Enquanto representaccedilatildeo o mundo se caracteriza pela necessidade em virtude de

ser construiacutedo pelo princiacutepio de razatildeo suficiente mas ao mesmo tempo tem sua essecircncia em

algo totalmente oposto uma Vontade imanente absolutamente livre cega e sem objetivo Em

funccedilatildeo disso constantemente surgem contrastes conflitos e oposiccedilotildees insuspeitadas que nem

sempre podem ser levadas a bom termo

Essa visatildeo natildeo eacute nova na histoacuteria da recepccedilatildeo da filosofia de

Schopenhauer e natildeo nos parece estar ultrapassada A tiacutetulo de exemplo mencionamos uma

obra do seacuteculo XIX e outra do XXI ambas com concepccedilotildees similares A primeira delas eacute a de

Louis Ducros intitulada Schopenhauer les origines de sa meacutetaphysique de 1883 que analisa

o pensamento schopenhaueriano na perspectiva da Vontade23

Esse autor delineia a trajetoacuteria

de construccedilatildeo da metafiacutesica do filoacutesofo que admite a presenccedila da coisa em si e a define como

22

Ibidem p 520 23

DUCROS L Schopenhauer les origines de sa meacutetaphysique ou les transformations de la chose en soi de

Kant a Schopenhauer Paris Germer Bailliegravere amp Co 1883

- 24 -

Vontade comparando-a com as de Kant Fichte e Schelling Nas filosofias destes uacuteltimos

conforme Ducros a vontade tomada como coisa em si tambeacutem ocupa um papel fundamental

tanto quanto na de Schopenhauer Sua conclusatildeo poreacutem eacute de que o pensamento deste uacuteltimo

eacute repleto de contradiccedilotildees devidas agrave combinaccedilatildeo de duas linhas teoacutericas antagocircnicas a saber

um idealismo criacutetico e um realismo dogmaacutetico24

Entatildeo ele escreve

Leiam o primeiro livro de O Mundo como representaccedilatildeo e vontade em

nome dos princiacutepios do criticismo Schopenhauer demonstra que o mundo

natildeo eacute senatildeo uma representaccedilatildeo menos que isso uma ilusatildeo do espiacuterito natildeo

se poderia ser mais idealista Abram o segundo livro e perceberatildeo uma

linguagem totalmente diferente os princiacutepios criacuteticos satildeo abandonados

ressuscitam-se as realidades elevam-nas ao posto de substacircncias de coisas

em si em uma palavra apresenta-se tanto dogmaacutetico e afirmativo no seu

realismo que se criticou quanto negativo no seu idealismo25

A segunda obra Aporie und Subjekt die erkenntnistheoretischen

Entfaltungslogik der Philosophie Schopenhauers26

foi publicada por Martim Booms em 2003

e analisa a teoria do conhecimento de Schopenhauer com base no conceito de sujeito Para

Booms a filosofia schopenhaueriana eacute repleta de aporias e de contradiccedilotildees que a seu ver

natildeo satildeo devidas agrave irracionalidade da Vontade mas ao subsolo loacutegico da sua concepccedilatildeo de

sujeito Com essa perspectiva ele argumenta que a filosofia schopenhaueriana se rebela

contra seus proacuteprios fundamentos Nas palavras dele

Um trabalho filosoacutefico que se ocupa da filosofia de Schopenhauer se vecirc em

face de enormes problemas de orientaccedilatildeo logo que algo atinge a

determinaccedilatildeo de um possiacutevel princiacutepio ou entatildeo um ponto de acesso um

dos mais notaacuteveis de todos os planos (ndash considerando o niacutevel de conteuacutedo

(11) o plano teoacuterico formal e o argumentativo (12) assim como a

correspondente delimitaccedilatildeo histoacuterico-filosoacutefica complementar (13) e a

histoacuteria da recepccedilatildeo (14) ndash responsaacutevel pela caracteriacutestica do pensamento de

Schopenhauer) consiste em sua anunciada heterogeneidade em uma

divergecircncia e polaridade entre pontos de vista e abordagem metoacutedica

distintos os quais por meio da permanente produccedilatildeo de mediaccedilotildees mantecircm

sua filosofia em um permanente estado de tensatildeo e com isso conduzem a

inegaacuteveis aporias ciacuterculos viciosos mudanccedilas de perspectiva e demoliccedilatildeo de

argumentaccedilotildees[]27

Do nosso ponto de vista haacute certos problemas que se situam na superfiacutecie

do edifiacutecio teoacuterico schopenhaueriano e que podem ser descritos de modo geral como

conclusotildees que o sistema natildeo permitiria logicamente extrair embora o filoacutesofo o faccedila Um

24

Ibidem p 150 25

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 26

BOOMS Martin Aporie und Subjekt die Erkenntnistheoretischen Entfaltungslogik der Philosophie

Schopenhauers Wurzburg Koumlnigshausen amp Neuman 2003 27

Ibidem p 16 (traduccedilatildeo nossa)

- 25 -

exemplo de tais dificuldades eacute a suposiccedilatildeo de poder expressar o enigma do mundo por meio

do conhecimento abstrato A formulaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo suficiente28

como forma uacutenica

do conhecimento29

cujas raiacutezes em uacuteltima instacircncia possibilitam apenas perguntar pelas

razotildees e responder ao ldquoporquecircrdquo das coisas30

contrasta com a pretensatildeo da filosofia

schopenhaueriana que embora seja fruto de uma das figuras dele do principium rationis

sufficientis cognoscendi pretende demonstrar o ldquoquecircrdquo do mundo seu mais iacutentimo interior Ou

seja se o princiacutepio de razatildeo somente pode expressar a necessidade de um fundamento para

tudo o que existe o enigma do mundo jamais poderia ser desvelado por meio dele nem

poderia ser traduzido em conceitos Em suma a essecircncia do mundo natildeo poderaacute ser encontrada

seguindo-se as relaccedilotildees causais que constituem a representaccedilatildeo tampouco se forem

oferecidas as razotildees de conhecimento dos juiacutezos verdadeiros Eacute necessaacuterio um conhecimento

de tipo diferente pode alcanccedilaacute-la a saber o esteacutetico ou o eacutetico mas nunca o racional De fato

afirma Schopenhauer ldquo[] a essecircncia iacutentima do mundo a coisa em si nunca pode ser

encontrada pelo seu meacutetodo [do princiacutepio de razatildeo] poreacutem tudo o que com ele se pode

alcanccedilar eacute sempre dependente e relativo apenas fenocircmeno natildeo a coisa em si[]rdquo31

Uma segunda dificuldade pode ser apontada no tocante ao conhecimento

do sujeito acerca de seu proacuteprio interior Conforme Schopenhauer nossa vontade individual

nos daacute a conhecer de modo imediato o processo interno da causalidade pois a lei de

motivaccedilatildeo eacute ela mesma vista por dentro32

Em Da quaacutedrupla raiz do princiacutepio de razatildeo

suficiente (doravante Da quaacutedrupla raiz) Schopenhauer afirma sobre esse ponto que ldquoA

atuaccedilatildeo do motivo natildeo eacute conhecida por noacutes apenas como satildeo todas as outras causas de fora e

de modo indireto mas ao mesmo tempo de dentro de modo totalmente imediato e portanto

em sua completa forma de accedilatildeordquo33

Em contraste com isso poreacutem no item intitulado

ldquoAstronomia Fiacutesicardquo de Sobre a Vontade na Natureza o filoacutesofo discorre sobre as diferenccedilas

que se notam entre causas e efeitos conforme se ascende na escala progressiva dos seres e

28 No segundo capiacutetulo abordaremos o princiacutepio de razatildeo suficiente de modo detido 29

Existe tambeacutem o modo de conhecimento esteacutetico no qual se abandona o fio condutor do princiacutepio de razatildeo e

alcanccedilam-se as Ideias entendidas como graus de objetivaccedilatildeo da Vontade e formas eternas das coisas Para

Schopenhauer elas satildeo refletidas pela obra de arte cuja contemplaccedilatildeo leva agrave intuiccedilatildeo imediata da vida e da

natureza por um indiviacuteduo transformado em puro sujeito do conhecer Haacute tambeacutem o conhecimento obtido pela

conversatildeo eacutetica que descortina a essecircncia da Vontade e leva a negaacute-la Natildeo obstante o conhecimento filosoacutefico

natildeo eacute do mesmo tipo do esteacutetico ou do eacutetico mas tem de seguir o princiacutepio de razatildeo suficiente do conhecer Eacute

segundo Schopenhauer a apresentaccedilatildeo in abstracto do que foi conhecido in concreto 30

UumlV sect4 p 15 CR sect4 p 33 31

WWV I ersters buch sect7 p 67 M I Livro I sect7 p 78 32

UumlV sect43 p 173 CR sect43 p 208 33

UumlV sect43 p 173 CR sect43 p 208

- 26 -

que determinam uma perda progressiva da compreensibilidade do processo de causaccedilatildeo34

A

maior inteligibilidade possiacutevel da causalidade estaacute nos processos mecacircnicos em que causas e

efeitos satildeo qualitativamente homogecircneos Quando a causa eacute de uma natureza e o efeito de

outra a conexatildeo causal vai deixando progressivamente de ser evidente Como ele explica

Aquela relaccedilatildeo inversa em que se esclarecem a causalidade e a Vontade

aquele modo alternante de avanccedilar e recuar de ambas deriva de que quanto

mais uma coisa nos eacute dada como simples fenocircmeno isto eacute como

representaccedilatildeo mais clara se mostra a forma a priori da representaccedilatildeo isto eacute

a causalidade assim eacute na natureza inanimada mas inversamente quanto

mais imediatamente a Vontade nos eacute consciente mais retrocede a forma da

representaccedilatildeo a causalidade como eacute conosco mesmos Assim quanto mais

um lado do mundo se aproxima mais perdemos o outro de vista35

Por conseguinte quanto mais a Vontade se manifesta nos fenocircmenos

mais incompreensiacuteveis eles satildeo porque se afastam da causalidade O princiacutepio de razatildeo

suficiente do devir estaria assim em uma relaccedilatildeo inversa de compreensibilidade com a

Vontade o que entra em conflito com o caraacuteter mais conhecido atribuiacutedo agrave vontade

individual em funccedilatildeo da lei de motivaccedilatildeo A questatildeo que se abre entatildeo eacute a de saber como

podemos conhecer melhor e mais profundamente algo sem o intermeacutedio da forma intelectual

responsaacutevel pelo conhecimento Mais que isso como a lei de motivaccedilatildeo pode ser a

causalidade vista por dentro se elas deveratildeo se excluir mutuamente

Apesar de serem complicadores da filosofia de Schopenhauer esses

impasses natildeo adentram profundamente no seu pensamento e talvez possam ser dissolvidos

com algum esforccedilo e boa vontade intelectual Haacute alguns outros no entanto cuja resoluccedilatildeo natildeo

eacute tatildeo simples e que o proacuteprio filoacutesofo admitiu terem sido resolvidos apenas imperfeitamente

Com efeito Schopenhauer assinala o que entende serem trecircs oposiccedilotildees (Gegensaumltze)36

imputadas por ele agrave distinccedilatildeo entre representaccedilatildeo e Vontade A primeira estudada por noacutes em

dissertaccedilatildeo de mestrado ocorre entre a afirmaccedilatildeo da existecircncia de uma accedilatildeo livre no mundo

fenomecircnico no momento de negaccedilatildeo da Vontade e a necessidade que rege todas as accedilotildees

humanas No fim de contas considerando-se o conjunto das colocaccedilotildees do filoacutesofo sobre essa

questatildeo sua filosofia refletiria um fato presente no proacuteprio mundo e na Vontade mesma

definida como autoconflitante e autodestrutiva Embora possa ser explicada a contradiccedilatildeo

34

WN p 411 ss VN p 138 ss 35

WN p 418 VN p 146 36 A exposiccedilatildeo desses problemas pode ser conferida em PP I Transzendente Spekulation uumlber die anscheinende

absichtlichkeit im Schicksale des Einzelnen p 271 Especulacioacuten transcendente sobre los visios de

intencionalidade en el destino del individuo In Los designios del destino Estudio preliminar traduccioacuten y notas

de Roberto Rodriacutegues Aramayo Madrid Tecnos 1994 p 44

- 27 -

acaba natildeo sendo dissolvida e permanece tanto no mundo quanto no discurso

A segunda oposiccedilatildeo estabelece simultaneamente o nexus effetivus e o

nexus finalis na natureza ou seja o mecanicismo e o finalismo que ocorrem ao mesmo tempo

nos fenocircmenos naturais37

Schopenhauer sustenta que entre objetos naturais distantes no

espaccedilo e heterogecircneos entre si haacute uma espeacutecie de compatibilidade que parece ser orientada

por algum tipo de finalidade Tal finalidade poreacutem natildeo pode ser explicada por processos

mecacircnicos e lineares que satildeo o escopo do princiacutepio de razatildeo nem pelo conceito de causa que

ele estabelece pois este natildeo se coaduna com a admissatildeo de um ser que se origine ou se

organize a si mesmo Dessa concepccedilatildeo da causalidade inclusive decorrem todas as diversas

criacuteticas que Schopenhauer tece ao conceito de causa sui Aleacutem disso por ser cega e sem

objetivo final a Vontade natildeo permitiria a afirmaccedilatildeo de uma teleologia na natureza Natildeo

obstante essa teleologia eacute afirmada como existente pelo filoacutesofo e explicada metaforicamente

A terceira oposiccedilatildeo mencionada por Schopenhauer concerne ao contraste

entre a contingecircncia dos acontecimentos da vida individual e a necessidade moral que a

determina38

De acordo com ele embora embotada e sem finalidade a Vontade originaria um

todo coerente e ordenado na vida humana No iacutentimo das pessoas e sem o seu conhecimento

ela dirigiria todas as accedilotildees em funccedilatildeo de seus proacuteprios fins de maneira que os eventos

isolados e aparentemente desconexos das trajetoacuterias de vida individuais concorreriam para

uma manifestaccedilatildeo uniforme do ser como um todo Por conseguinte haveria uma contradiccedilatildeo

entre a vida do indiviacuteduo constituiacuteda por uma seacuterie de acontecimentos fortuitos e os fins

morais da Vontade que ele perseguiria independentemente de seu proacuteprio consentimento No

fim de contas sem que soubesse o ser humano estaria sendo conduzido pela Vontade agrave meta

final de negaccedilatildeo de si mesma39

Poreacutem como eacute evidente tais ideias satildeo completamente

opostas agrave de uma Vontade obtusa sem fim e sem alvo um dos pilares da filosofia

schopenhaueriana

Outra dificuldade de consequecircncias significativas foi apontada por

Eduardo Brandatildeo em sua tese de doutorado intitulada A concepccedilatildeo de Mateacuteria na obra de

Schopenhauer40

Brandatildeo evidencia o modo como o filoacutesofo incorreu em contradiccedilotildees e

incoerecircncias de importantes desdobramentos na formulaccedilatildeo da sua visatildeo a respeito da

37

Ibidem loc cit ibidem loc cit 38

Ibidem loc cit ibidem loc cit 39

Ibidem p 272 ibidem p 44-45 40

BRANDAtildeO E A concepccedilatildeo de mateacuteria na obra de Schopenhauer Satildeo Paulo Humanitas 2008

- 28 -

mateacuteria Segundo esse autor o iniacutecio do processo se deu com as mudanccedilas realizadas por

Schopenhauer em sua teoria da representaccedilatildeo pelas quais a noccedilatildeo de mateacuteria passou a ter dois

sentidos O primeiro sentido consiste na definiccedilatildeo de mateacuteria como Stoff enquanto

determinada no tempo e no espaccedilo e identificada com os estados perceptiacuteveis da causalidade

O segundo sentido eacute o da mateacuteria enquanto Materie indeterminada fora do tempo e do

espaccedilo que passa a constituir a substacircncia que estaacute na base dos acidentes representados pela

mateacuteria como Stoff41

Essa reformulaccedilatildeo diz Brandatildeo acabou por obscurecer as relaccedilotildees entre

Vontade e mateacuteria bem como a ligaccedilatildeo desta uacuteltima com o sujeito cognoscente De um lado

a mateacuteria passaria a se confundir com o absoluto medida em que em diversas passagens

Schopenhauer afirma ser absolutum aquilo que nunca surge nem perece aquilo cujo quantum

nunca se altera que satildeo tambeacutem caracteriacutesticas da mateacuteria como Materie Nessa perspectiva

o filoacutesofo teria chegado ao mesmo resultado dos poacutes-kantianos que ele criticava assim como

agrave substacircncia tal como pensada por Espinosa42

De outro lado no tocante agraves relaccedilotildees entre

mateacuteria e sujeito cognoscente a reformulaccedilatildeo da teoria da representaccedilatildeo por Schopenhauer

teria levado a uma mudanccedila na noccedilatildeo de objeto Segundo Brandatildeo o mundo como

representaccedilatildeo deixa de ser entendido a partir da correlaccedilatildeo entre sujeito e objeto e passa a ter

dois polos distintos a saber sujeito e mateacuteria como Stoff Isso no entanto desloca a noccedilatildeo de

objeto que passa entatildeo a ser superposta agrave de mateacuteria Na opiniatildeo de Brandatildeo o

estabelecimento dos dois sentidos para o conceito de mateacuteria em O mundo como vontade e

representaccedilatildeo tomo II complementos (doravante O MundoII) foi importante para que a

noccedilatildeo de mundo mantivesse um traccedilo idealista Sem isso a filosofia de Schopenhauer recairia

em um materialismo jaacute que a uacutenica mateacuteria admitida seria a posteriori ou seja Stoff com

riscos agrave atribuiccedilatildeo de um sentido moral ao mundo No entanto o conceito de mateacuteria tambeacutem

teria sido pensado por Schopenhauer contra os idealistas do seu tempo daiacute a importacircncia de

colocaacute-la como visibilidade da Vontade Assim conclui Brandatildeo

Seguindo a liccedilatildeo de Lebrun talvez fosse entatildeo mais correto enxergar na

noccedilatildeo de Materie de Schopenhauer uma estrutura aporeacutetica em que cada

lado eacute realccedilado conforme o inimigo a ser combatido se o materialismo a

mateacuteria eacute abstraccedilatildeo ens rationis fenocircmeno se o idealismo absoluto ―

Berkeley incluso ― o fenocircmeno a mateacuteria o objeto precisa ser algo em si

41

BRANDAtildeO E ldquoA concepccedilatildeo de mateacuteria em Schopenhauer e o absolutordquo In SALLES JC (Org)

Schopenhauer e o Idealismo Alematildeo Salvador Quarteto 2004 p 52 42

Ibidem p 50

- 29 -

como ocorre nos Complementos de O Mundo43

Essa duplicidade de perspectiva bem como as transformaccedilotildees e

deslocamentos conceituais realizados por Schopenhauer na teoria da representaccedilatildeo teriam

repercutido na sua filosofia como um todo com efeitos profundos

Esta estrutura aporeacutetica tem suas caracteriacutesticas proacuteprias a Materie eacute

causalidade abstrata atividade abstrata mas tambeacutem inerte imoacutevel eacute dada a

priori mas soacute surge como abstraccedilatildeo No limite eacute preciso natildeo perder de vista

que se a lectio purissima sobre a mateacuteria ensina a imaterialidade da mateacuteria

que ela eacute um substrato loacutegico meramente acrescentado pelo pensamento

como o permanente dos fenocircmenos haacute em contrapartida passagens em que

ela parece de fato concreta44

Outra consequecircncia que segundo pensamos poderia ser daiacute extraiacuteda eacute a

de que no fim de contas a filosofia de Schopenhauer apresenta-se como um dualismo e natildeo

como um monismo Com efeito monista eacute aquela filosofia na qual haacute apenas um ser uma

substacircncia uma uacutenica essecircncia agrave qual tudo se refere seja no mundo animado seja no

inanimado A princiacutepio a Vontade seria essa substacircncia uacutenica pois eacute descrita como ldquotudo no

todordquo o α e o υ de toda a existecircncia e do proacuteprio mundo Poreacutem como entender o monismo

schopenhaueriano frente agraves caracteriacutesticas atribuiacutedas agrave mateacuteria como Materie conforme a

exposiccedilatildeo da obra de Eduardo Brandatildeo Schopenhauer declara sua filosofia como a exposiccedilatildeo

de um pensamento uacutenico no qual aparece a Vontade como a verdadeira substacircncia

subjacente ao mundo como um todo Quaisquer objetos existentes animados ou inanimados

satildeo vistos por essa filosofia como manifestaccedilatildeo desse ente uacutenico razatildeo pela qual teriacuteamos de

afirmar que se trata de um pensamento monista Todavia eacute possiacutevel perceber traccedilos de

dualismo no pensamento de Schopenhauer quando a mateacuteria eacute tratada como o absoluto ou

mesmo quando o intelecto se alccedila ao posto de superioridade que eacute necessaacuterio para negar a

Vontade a substacircncia primordial Agrave primeira vista esses poderiam parecer problemas

marginais que apenas realccedilariam o peso da mateacuteria ou do conhecimento no universo

conceitual schopenhaueriano como um todo No entanto eacute bastante embaraccediloso que mateacuteria e

conhecimento se coloquem mesmo que em circunstacircncias especiacuteficas em situaccedilatildeo de

igualdade com a Vontade

43

BRANDAtildeO E A concepccedilatildeo de mateacuteria na obra de Schopenhauer Satildeo Paulo Humanitas 2008 p 329-330

(grifos do autor) 44

Ibidem loc cit (grifos do autor)

- 30 -

13 ndash Investigaccedilatildeo acerca do conceito da antinomia da faculdade de conhecimento

Para uma boa compreensatildeo das questotildees mencionadas que satildeo de

naturezas distintas apresentaremos nossas opccedilotildees conceituais acerca de cada um delas De

fato verificamos frequentes divergecircncias nesse tocante tanto nas obras de Schopenhauer

quanto de seus comentadores o que prejudica o entendimento do nosso tema A questatildeo que

nos ocupa por exemplo eacute vista por Schopenhauer indistintamente como contradiccedilatildeo e como

antinomia45

Portanto eacute necessaacuterio explicitar com clareza onde estatildeo problemas para entatildeo

direcionarmos a atenccedilatildeo aos pontos exatos De nossa parte concordamos com Bacon quando

afirma que a verdade emerge mais rapidamente do erro do que da confusatildeo46

Os conceitos de contradiccedilatildeo paradoxo e antinomia satildeo definidos com

caracteriacutesticas especiacuteficas embora correlacionadas De um modo geral eacute possiacutevel definir a

contradiccedilatildeo como a atribuiccedilatildeo a um sujeito ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto de

qualidades ou relaccedilotildees mutuamente excludentes Todas as formas em que ela pode se

manifestar satildeo apoiadas no princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo pressuposto tambeacutem nas definiccedilotildees

de paradoxo e de antinomia O princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute entendido na loacutegica claacutessica

como uma das leis maacuteximas do pensamento ao lado dos de identidade e do terceiro excluiacutedo

os quais em conjunto satildeo considerados as condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para o

pensamento correto Embora natildeo tenham sido aceitos sem criacuteticas jaacute que em diversos

momentos ao longo da Histoacuteria questionou-se se teriam o estatuto de leis e se deveriam

mesmo ter primazia na loacutegica os trecircs princiacutepios foram admitidos em geral como

fundamentais

De uma perspectiva informal antinomia e paradoxo satildeo noccedilotildees anaacutelogas

e podem ser definidos como argumentos aparentemente corretos cujas premissas satildeo

aceitaacuteveis mas natildeo a conclusatildeo Em conformidade com essa posiccedilatildeo a maioria dos manuais e

dicionaacuterios de Loacutegica apresentam paradoxo e antinomia como sinocircnimos Natildeo obstante de

45

Schopenhauer escreve ldquoDiese zwei widersprechenden Ansichten auf jede von welchen wir in der That mit

gleicher Notwendigkeit gefuumlhrt werde koumlnnte man allerdings wieder eine Antinomie in unserm

Erkenntniᵦvermoumlgen nennen [hellip]rdquo Cf WWV I ersters buch sect7 p 65 M I Livro I sect7 p 76 46

BACON F The New organon New York Cambridge University Press 2000 Book II Aphorism XX p 130

- 31 -

um ponto de vista formal e mais rigoroso natildeo se pode entendecirc-los como conceitos idecircnticos

Eacute o que afirma o loacutegico Newton da Costa ao definir uma antinomia formal como sendo

aquela evidenciada em uma teoria formalizada que se mostre trivial metateoacuterica ou

epistemologicamente Paradoxo formal por seu turno eacute a derivaccedilatildeo de dois teoremas

contraditoacuterios em uma teoria formalizada Como explica Da Costa pela definiccedilatildeo usual da

loacutegica claacutessica ldquo[uma teoria] T eacute antinocircmica se e somente se nela se puder derivar um

paradoxordquo47

Embora natildeo tencionemos formalizar a filosofia Schopenhauer optamos

por natildeo considerar antinomia e paradoxo como sinocircnimos Natildeo obstante natildeo nos ateremos

estritamente agraves noccedilotildees formais de paradoxo e antinomia expostas por Da Costa se bem que os

conceitos que manteremos se aproximam claramente dos que ele propotildee Segundo pensamos

nosso propoacutesito nesta tese exige que preservemos no conceito de antinomia a marca das

discussotildees realizadas por Kant na Criacutetica da razatildeo pura por ser esse o entendimento que

Schopenhauer explicitamente adota Kant chama de antinomias os resultados teoacutericos do

conflito das leis da razatildeo surgidos no uso empiacuterico dessa faculdade48

Para ele na condiccedilatildeo

maacuteximas para a orientaccedilatildeo do entendimento acerca da totalidade do conhecimento do mundo

as ideias da razatildeo satildeo regulativas mas natildeo possuem validade empiacuterica As antinomias

consistem na contraposiccedilatildeo de teses e antiacuteteses que supostamente afirmariam verdades

empiacutericas relacionadas agrave totalidade incondicionada do mundo Por serem derivadas da

proacutepria razatildeo seriam naturais e inevitaacuteveis Nas palavras de Kant as antinomias originam-se

[] quando se aplica a razatildeo agrave siacutentese objetiva dos fenocircmenos aiacute pretende eacute

certo e com muita aparecircncia fazer valer o seu princiacutepio da unidade

incondicionada mas em breve se enreda em tais contradiccedilotildees que se vecirc

forccedilada a desistir da sua pretensatildeo em mateacuteria cosmoloacutegica49

Natildeo nos interessa discutir todas as implicaccedilotildees da teorizaccedilatildeo kantiana

sobre esse ponto mas apenas ressaltar sua conceituaccedilatildeo e mostrar o modo como teses e

antiacuteteses se contrapotildeem Para isso ressaltamos uma caracteriacutestica fundamental das antinomias

entendidas desse modo a saber embora sejam mutuamente excludentes tanto as teses quanto

as antiacuteteses satildeo legiacutetimas e demonstraacuteveis logicamente Nesse sentido Kant afirma que

Quando natildeo nos limitamos a aplicar a nossa razatildeo no uso dos princiacutepios do

entendimento aos objetos da experiecircncia mas ousamos alargar esses

47

DA COSTA N Ensaio sobre os fundamentos da loacutegica 3ordf ed Satildeo Paulo Hucitec 2008 p 221 48

KvR A406B433 ndash A408B435 CRP p 379-380 49

KvR A407B433 CRP p 379 (grifos do autor)

- 32 -

princiacutepios para aleacutem dos limites desta experiecircncia surgem teses sofisticas

que da experiecircncia natildeo tecircm a esperar confirmaccedilatildeo nem refutaccedilatildeo a temer e

cada uma delas natildeo somente natildeo encerra contradiccedilatildeo consigo proacutepria mas

encontra mesmo na natureza da razatildeo condiccedilotildees da sua necessidade a

proposiccedilatildeo contraacuteria poreacutem infelizmente tem por seu lado fundamentos de

afirmaccedilatildeo igualmente vaacutelidos e necessaacuterios50

Exporemos somente a primeira antinomia a tiacutetulo de exemplo pois o

procedimento kantiano em relaccedilatildeo agraves outras eacute o mesmo A primeira antinomia da razatildeo tem

como tese a proposiccedilatildeo ldquoO mundo tem um comeccedilo no tempo e eacute tambeacutem limitado no espaccedilordquo

e como antiacutetese ldquoO mundo natildeo tem comeccedilo nem limites no espaccedilo eacute infinito tanto no tempo

como no espaccedilordquo51

Cada uma delas eacute provada indiretamente pela refutaccedilatildeo da sua contraacuteria

Assim Kant busca a prova da tese por meio das consequecircncias que se podem extrair da

admissatildeo da antiacutetese segundo a qual o mundo natildeo eacute limitado no tempo nem no espaccedilo Por

um lado no caso de natildeo ser limitado no tempo um instante determinado exigiria um decurso

infinito de tempo e de estados sucessivos dos objetos antes que pudesse ser dado No entanto

diz Kant a infinitude dessa seacuterie anterior seraacute pensada como nunca concluiacuteda o que tornaria

impossiacutevel a proacutepria existecircncia do mundo Com isso um iniacutecio em um ponto do tempo torna-

se condiccedilatildeo necessaacuteria para a existecircncia do mundo52

Por outro lado se for admitida a

infinitude no espaccedilo o mundo teraacute de ser pensado como um todo infinito de objetos

simultacircneos Esse todo poreacutem soacute pode ser pensado por noacutes como siacutentese sucessiva das

partes e natildeo poderiacuteamos englobaacute-lo em uma intuiccedilatildeo com limites determinados A siacutentese

sucessiva das partes de um mundo infinito no espaccedilo precisaria ser completada e isso por sua

vez exigiria um tempo infinito para a enumeraccedilatildeo de todas as coisas que se justapotildeem Daiacute

conclui o filoacutesofo ldquo[] um agregado infinito de coisas reais natildeo pode considerar-se um todo

dado nem portanto dado ao mesmo tempo O mundo natildeo eacute pois infinito quanto agrave extensatildeo

no espaccedilo antes encerrado em limites []rdquo53

De modo semelhante a antiacutetese eacute provada pela refutaccedilatildeo da tese

Supondo-se que o mundo possui um iniacutecio eacute preciso admitir que houve um tempo vazio em

que natildeo existia Entretanto nada poderia surgir em um tempo vazio na medida em que natildeo se

poderia distinguir uma parte sua de outra tampouco a existecircncia de algo da natildeo existecircncia No

tocante ao espaccedilo admitindo-se que o mundo tem limites teraacute de ser suposto um vazio

ilimitado onde ele entatildeo se encontraraacute situado Nesse caso poreacutem o mundo estaria em

50

KvR A421B449 CRP p 389 (grifos do autor) 51

KvR A426B454 ndash A427B455 CRP p 392-393 52

KvR A426B454 CRP p 392 53

KvR A428B446 CRP p 394 (grifos do autor)

- 33 -

relaccedilatildeo com algo que natildeo eacute propriamente um objeto jaacute que fora dele mesmo natildeo haacute nenhum

E diz Kant ldquo[] semelhante relaccedilatildeo natildeo eacute nada e consequentemente tambeacutem eacute nada a

limitaccedilatildeo do mundo pelo espaccedilo vazio portanto o mundo natildeo eacute limitado quanto ao espaccedilo

quer dizer eacute infinito em extensatildeordquo54

Kant conclui acerca das quatro antinomias que nas duas primeiras as

contradiccedilotildees surgem porque o espaccedilo o tempo e a simplicidade satildeo pensados como coisas em

si quando satildeo na verdade conceitos com idealidade transcendental Em virtude disso o

mundo em si acabaria sendo convertido em objeto de conhecimento o que eacute impossiacutevel e

assim tanto as teses quanto as antiacuteteses seriam falsas Nas duas uacuteltimas antinomias por seu

turno as teses e as antiacuteteses seriam verdadeiras mas referentes a realidades distintas a saber

as teses aos nuacutemenos e as antiacuteteses aos fenocircmenos Como resultado Kant encontra que o

conflito de leis da razatildeo pura produz as antinomias as quais se configuram como a

formulaccedilatildeo de duas vias teoacutericas distintas que apresentam o mundo com caracteriacutesticas

excludentes mas que possui cada uma as suas justificaccedilotildees Enquanto derivadas da proacutepria

constituiccedilatildeo da razatildeo satildeo resultados naturais e natildeo podem ser extintas ou completamente

dissolvidas

O conceito de paradoxo possui uma raiz antiga (παπάδοξα) como

opiniatildeo que contraria os conhecimentos comumente aceitos como verdadeiros Do ponto de

vista informal trata-se de um argumento de vaacutelido mas cuja conclusatildeo natildeo pode ser aceita

porque implica um problema loacutegico ou de natureza empiacuterica Nas histoacuterias da loacutegica e da

filosofia verificaram-se e discutiram-se diversos tipos de paradoxos e a tiacutetulo de uma

organizaccedilatildeo miacutenima lanccedilaremos matildeo da classificaccedilatildeo feita por Da Costa55

Este teoacuterico

destaca em primeiro lugar os paradoxos loacutegico-matemaacuteticos que se relacionam com as

noccedilotildees formais da loacutegica e da matemaacutetica Um dos exemplos mais conhecidos desse tipo eacute o

ldquoparadoxo das classesrdquo apontado por Russell na loacutegica de Frege Nesse paradoxo surge um

problema com a classe de todas as classes que natildeo satildeo membros de si mesmas quando se

indaga se ela eacute ou natildeo membro de si mesma Caso a resposta seja afirmativa a classe de todas

as classes que natildeo satildeo membros de si mesmas teraacute um membro que eacute membro de si mesmo

Se a resposta for negativa a classe de todas as classes que natildeo satildeo membros de si mesmas natildeo

conteraacute a si mesma embora devesse conter pois seria uma classe que natildeo conteacutem a si mesma

Por conseguinte qualquer opccedilatildeo que se faccedila resultaraacute paradoxal

54

KvR A429B457 CRP p 395 55

DA COSTA N op cit p 225

- 34 -

O segundo tipo de paradoxos eacute o semacircntico derivado do uso da

linguagem cujo exemplo mais tiacutepico eacute o chamado ldquoparadoxo do mentirosordquo Nesse caso o

paradoxo surge da anaacutelise da proposiccedilatildeo ldquoEsta sentenccedila eacute falsardquo Por um lado se a

considerarmos verdadeira o que ela afirma eacute verdade e ela seraacute simultaneamente falsa pois

eacute isso que assevera Por outro lado se a considerarmos falsa aquilo que ela afirma natildeo eacute

verdadeiro e portanto a sentenccedila estaraacute negando sua falsidade e afirmando sua verdade Em

ambos os casos a verdade da proposiccedilatildeo ldquoEsta sentenccedila eacute falsardquo implica a proacutepria falsidade e

vice-versa O uacuteltimo grupo de paradoxos envolve conceitos e conhecimentos empiacutericos como

o conhecido ldquoparadoxo de Aquiles e a tartarugardquo formulado Zenatildeo de Eleia para negar a

realidade do movimento Nesse paradoxo estaacute envolvida a ideia de divisibilidade infinita do

espaccedilo um conceito apreensiacutevel apenas pela razatildeo sem correspondecircncia intuitiva Segundo a

formulaccedilatildeo claacutessica Aquiles e uma tartaruga apostam corrida e partem simultaneamente mas

com um metro de vantagem dado ao animal Embora Aquiles seja muito mais veloz quando

avanccedila o metro dado agrave tartaruga esta avanccedila dez centiacutemetros quando o heroacutei percorre esses

dez centiacutemetros a tartaruga corre um centiacutemetro e assim sucessivamente Por conseguinte

mesmo avanccedilando infinitamente a distacircncia entre ambos nunca seraacute igual a zero e Aquiles

jamais alcanccedilaraacute a tartaruga

De acordo com Da Costa pode-se solucionar um paradoxo de dois

modos diferentes Um deles eacute o negativo em que se prova que sua conclusatildeo eacute na verdade

uma falaacutecia formal ou material Caso se trate de uma falaacutecia formal deve-se demonstrar que o

argumento possui uma forma loacutegica invaacutelida caso se trate de uma falaacutecia material deve-se

provar que uma das premissas eacute factualmente falsa A segunda maneira positiva de se

solucionar um paradoxo eacute mostrando que sua conclusatildeo eacute realmente verdadeira Em suma

para resolver um paradoxo seria necessaacuterio reduzi-lo a falaacutecia ou justificar sua conclusatildeo

O conceito de aporia estaacute relacionado aos anteriores e se define por ser

uma dificuldade teoacuterica cuja soluccedilatildeo eacute muito trabalhosa ou impossiacutevel A forma em que

aparece pode ser a de uma antinomia ou de um paradoxo e o que a distingue eacute a exigecircncia de

grandes esforccedilos para seu desenlace ou a inexistecircncia de qualquer saiacuteda Os modos pelos

quais uma aporia poderia ser resolvida satildeo os mesmos que resolveriam um paradoxo isto eacute

sua reduccedilatildeo a falaacutecia ou a justificaccedilatildeo da sua conclusatildeo No entanto no caso especiacutefico das

aporias a resoluccedilatildeo demandaria esforccedilos teoacutericos excessivos e a revisatildeo dos princiacutepios

baacutesicos das teorias Normalmente segundo Da Costa as aporias satildeo solucionadas pela via

- 35 -

negativa mostrando-se que se tratam de falaacutecias ou que possuem uma premissa falsa para

que assim se evite uma revisatildeo completa dos fundamentos da teoria em questatildeo56

Portanto a

soluccedilatildeo positiva delas natildeo eacute tarefa faacutecil pois requer grandes mudanccedilas como a transformaccedilatildeo

completa do sistema formal em que se apoia ou a reestruturaccedilatildeo de teorias

Com base no exposto acima julgamos que a antinomia da faculdade de

conhecimento natildeo se revela uma contradiccedilatildeo um paradoxo e nem mesmo uma antinomia No

nosso entender como mostraremos a seguir trata-se mais propriamente de um tipo especial

de circulus in probando que envolve a possibilidade do conhecimento e sua relaccedilatildeo com o

tempo Na verdade a questatildeo natildeo eacute simples de ser decidida pois em termos latos o problema

poderia ser enquadrado em qualquer das noccedilotildees apresentadas mesmo com as diferenccedilas que

apontamos Todavia uma escolha deve forccedilosamente ser feita se quisermos compreender a

fundo e precisamente o problema com o qual nos ocupamos Para isso utilizaremos a

exposiccedilatildeo e a argumentaccedilatildeo anteriores como os apoios de que necessitamos para tornar nossas

opccedilotildees menos arbitraacuterias

Em primeiro lugar parece-nos que o problema da teoria do conhecimento

de Schopenhauer natildeo pode ser entendido como contradiccedilatildeo De fato o filoacutesofo escreve que ldquoa

existecircncia do mundo inteiro depende do primeiro ser cognoscenterdquo e tambeacutem que ldquoo primeiro

animal cognoscente depende de uma longa cadeia precedente de causas e efeitosrdquo57

isto eacute

subordina-se agrave existecircncia do mundo como representaccedilatildeo Quando analisamos esse problema

do ponto de vista do desrespeito agrave norma loacutegica baacutesica de que a conclusatildeo deve ser

consequecircncia das premissas isto eacute se as premissas forem verdadeiras que a conclusatildeo

tambeacutem o seja notamos que natildeo se aplica a esse caso O que temos aqui satildeo duas conclusotildees

provindas de dois lados distintos do pensamento schopenhaueriano tomado como um todo

Cada uma das conclusotildees tem suas ilaccedilotildees proacuteprias que satildeo suficientes para justificaacute-lo de

modo que natildeo se observam premissas verdadeiras levando a uma conclusatildeo falsa De modo

semelhante natildeo haacute a atribuiccedilatildeo simultacircnea ao primeiro ser cognoscente de qualidades ou

relaccedilotildees mutuamente excludentes Natildeo se afirma por exemplo que o mundo da representaccedilatildeo

depende e natildeo depende dele simultaneamente O mesmo se pode afirmar em relaccedilatildeo ao

desrespeito ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo segundo o qual um enunciado natildeo pode ser

tomado como verdadeiro e como falso a um soacute tempo e sob aspectos idecircnticos De fato

ambas as proposiccedilotildees da antinomia natildeo estatildeo em uma oposiccedilatildeo direta ou seja natildeo se pode

56

DA COSTA N op cit p 226 57

WWV I ersters buch sect7 p 65 M I Livro I sect7 p 75

- 36 -

dizer que uma eacute a negaccedilatildeo exata da outra

Uma possibilidade diferente seria a anaacutelise de cada sentenccedila da

antinomia como uma proposiccedilatildeo condicional Na primeira a existecircncia do animal

cognoscente (A) seria o antecedente do qual decorreria o consequente a existecircncia do mundo

como representaccedilatildeo (M) A rarr M Na segunda os termos estariam trocados e o mundo como

representaccedilatildeo seria o antecedente enquanto o primeiro animal seria o consequente M rarr A

Natildeo obstante a contradiccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo condicional resulta do rompimento da relaccedilatildeo

de implicaccedilatildeo entre o antecedente e o consequente isto eacute caso aconteccedila de o antecedente ser

verdadeiro e o consequente ser falso Portanto soacute poderiacuteamos falar em contradiccedilatildeo caso no

discurso schopenhaueriano estivesse afirmado ao lado das duas proposiccedilotildees da antinomia

que o animal cognoscente em algum momento existiu mas natildeo mundo como representaccedilatildeo

A ˄ notM ou inversamente que o mundo da representaccedilatildeo existe mas natildeo o animal

ognosente M ˄ notA A rigor A rarr M e M rarr A natildeo se contradizem

No nosso entender a antinomia da faculdade de conhecimento natildeo deve

tambeacutem ser enquadrada entre os paradoxos em sentido rigoroso Como jaacute expusemos

paradoxo formal eacute a derivaccedilatildeo de dois teoremas contraditoacuterios em uma teoria formalizada

mas nossa anaacutelise anterior demonstrou que os dois enunciados da antinomia natildeo estatildeo em

uma relaccedilatildeo de contraditoriedade Tomando em consideraccedilatildeo o conceito mais geral de

paradoxo talvez se pudesse afirmar que as duas conclusotildees paralelas satildeo paradoxais na

medida em que o argumento de cada uma possui premissas verdadeiras mas conclusotildees

inaceitaacuteveis quando comparadas entre si Poreacutem como estamos buscando uma precisatildeo

crescente do nosso objeto de estudo cremos que esse conceito de paradoxo eacute muito amplo a

ponto de abranger distintas classes de problemas o que natildeo nos auxilia

Aleacutem disso segundo pensamos nenhum dos tipos de paradoxos que

examinamos possui a forma da antinomia da faculdade de conhecimento Os paradoxos

loacutegicos-matemaacuteticos envolvem autocontradiccedilatildeo trazendo como consequecircncia que a atribuiccedilatildeo

de qualquer dos valores de verdade V ou F agraves proposiccedilotildees envolvidas resultaraacute sempre em

uma proposiccedilatildeo falsa Por exemplo no caso do paradoxo das classes de Russel se

respondermos afirmativamente agrave questatildeo de saber se a classe de todas as classes que satildeo natildeo

membros de si mesmas pertence a si mesma teremos uma proposiccedilatildeo falsa pois a classe de

todas classes que natildeo satildeo membros de si mesmas teraacute um membro que natildeo pertence a ela isto

eacute uma classe que eacute membro de si mesma Se respondermos negativamente a classe de todas

- 37 -

as classes que natildeo satildeo membros de si mesmas natildeo conteraacute a si mesma mas entatildeo seu caraacuteter

universal seraacute posto em xeque pois haveraacute um membro que deveria estar dentro dela e

todavia estaacute fora Nesse exemplo a resposta agrave pergunta sobre a classe de todas as classes natildeo

admite resposta verdadeira e eacute essa outra forma de conceituar a contradiccedilatildeo a saber se o

valor de verdade resultante de uma foacutermula eacute sempre falso No entanto o problema da

antinomia da faculdade de conhecer natildeo se assemelha a esse caso Se tomarmos como

verdadeira cada conclusatildeo em separado veremos que ldquoa existecircncia do mundo inteiro depende

necessariamente do primeiro ser cognoscenterdquo eacute uma proposiccedilatildeo perfeitamente consistente

consigo mesma natildeo levando a valores de verdade falsos nem implicando verdade e falsidade

simultacircneas O mesmo se pode dizer de ldquoo primeiro ser cognoscente depende de uma longa

cadeia de causas e efeitos que o precederdquo Na verdade os problemas surgem quando se

colocam ambas as sentenccedilas lado a lado

Considerando os paradoxos semacircnticos a relaccedilatildeo loacutegica estabelecida

entre as proposiccedilotildees envolvidas eacute ligeiramente diferente embora tambeacutem vejamos um tipo de

autocontradiccedilatildeo envolvida Tomando o exemplo do paradoxo do mentiroso observamos que a

verdade da proposiccedilatildeo ldquoEsta sentenccedila eacute falsardquo (S) acarreta sua proacutepria falsidade enquanto sua

falsidade acarreta a proacutepria verdade Com efeito se a proposiccedilatildeo eacute verdadeira o que ela

afirma deve ser falso e o resultado pode ser expresso assim (S)Vrarr(S)F Do mesmo modo

se o que a proposiccedilatildeo afirma eacute falso ela deve ser verdadeira (S)Frarr(S)V Mais uma vez natildeo

eacute esse o tipo de oposiccedilatildeo que se percebe na antinomia da teoria do conhecimento de

Schopenhauer Cada parte dela natildeo implica a proacutepria verdade e falsidade simultaneamente

nem mesmo a junccedilatildeo de ambas implica

No tocante aos paradoxos empiacutericos a semelhanccedila com o nosso objeto

de estudo parece ser maior pois a dificuldade loacutegica surge pela impossibilidade de se pensar

claramente a questatildeo como numa espeacutecie de interrupccedilatildeo do pensamento frente a um impasse

que envolve tambeacutem conhecimentos empiacutericos O exemplo do paradoxo de Aquiles e a

tartaruga evidencia uma necessidade decorrente do proacuteprio intelecto de continuar realizando

a divisatildeo da extensatildeo ao infinito embora a velocidade de Aquiles imponha ao pensamento a

ideia de que ele deve se sobrepor agrave divisibilidade contiacutenua do espaccedilo e ultrapassar a tartaruga

Contudo no nosso entendimento natildeo eacute exatamente isso o que comparece no nosso objeto de

estudo Realmente pensar que o mundo eacute dependente do primeiro ser cognoscente e que ao

mesmo tempo o primeiro ser cognoscente depende da existecircncia do mundo natildeo leva a um

- 38 -

impasse desse tipo eacute algo que se pode pensar ainda que somente tomando cada proposiccedilatildeo de

modo separado Os problemas surgem quando as pensamos juntas mas a possibilidade que

existe aqui de se considerar cada porccedilatildeo do problema estaacute excluiacuteda no caso dos paradoxos

empiacutericos pois eles se configuram como um todo indivisiacutevel

Sob a perspectiva do conflito de leis que eacute o conceito que adotamos para

antinomia tambeacutem natildeo se verifica algo semelhante no nosso objeto As antinomias no

sentido kantiano satildeo teses e antiacuteteses contraditoacuterias ou contraacuterias que surgem do conflito da

razatildeo pura consigo mesma Aparentemente esse seria o caso pois assim como as antinomias

kantianas as duas proposiccedilotildees conflitantes da teoria do conhecimento de Schopenhauer tecircm

cada uma sua justificaccedilatildeo loacutegica Por um lado das teses acerca do mundo tomado como

representaccedilatildeo decorre necessariamente que ele soacute pode existir com apoio no sujeito por

outro das teses que sustentam a Vontade como o em si do mundo decorre tambeacutem

necessariamente que ela se objetiva numa trajetoacuteria de refinamento ateacute chegar ao ceacuterebro

humano No entanto ambas as proposiccedilotildees natildeo estatildeo entre si na mesma relaccedilatildeo em que estatildeo

as teses e antiacuteteses das antinomias formuladas por Kant nas quais uma eacute sempre a negaccedilatildeo

expliacutecita da outra Aleacutem disso natildeo se observa um conflito propriamente entre leis da razatildeo ou

de outra coisa mas sim uma discrepacircncia entre duas formas de descrever e explicar o mundo

isto eacute entre dois discursos distintos um pelo lado da representaccedilatildeo e outro pelo lado da

Vontade As antinomias kantianas derivam da constituiccedilatildeo da razatildeo pura satildeo como ilusotildees

naturais e inevitaacuteveis A de Schopenhauer por seu turno eacute o resultado de um modo duplo de

compreender o mundo

Eacute importante ainda analisarmos a antinomia do ponto de vista do que se

entende por peticcedilatildeo de princiacutepio ou ciacuterculo vicioso pois eacute assim que ela foi entendida em

grande parte das vezes No sect 92 de Manual dos cursos de loacutegica geral Kant afirma que se

comete peticcedilatildeo de princiacutepio quando se toma por imediatamente certa uma proposiccedilatildeo que na

verdade precisa ser provada O ciacuterculo vicioso eacute ligeiramente distinto pois nele a proposiccedilatildeo

que deve ser provada eacute colocada como seu proacuteprio fundamento58

No Oacuterganon de Aristoacuteteles

encontramos uma discussatildeo mais detalhada desses conceitos Nos Analiacuteticos Anteriores esse

filoacutesofo distingue dois tipos de provas a saber as que se datildeo pela proacutepria natureza do objeto e

as que exigem o recurso a outros fatores Exemplo das primeiras satildeo os princiacutepios e das

segundas tudo o que eacute subordinado a eles Conforme Aristoacuteteles entatildeo comete-se uma

58

KANT I Manual dos cursos de loacutegica geral 2ordf ed Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e guia de leitura de Fausto

Castilho Campinas UNICAMP Uberlacircndia UFU 2003 p 269

- 39 -

peticcedilatildeo de princiacutepio quando se tenta provar por si mesma uma verdade que precisa apoiar-se

em outros dados59

Nos Toacutepicos ele resume as cinco formas em que se pode incorrer em

peticcedilatildeo de princiacutepio postulando-se aquilo mesmo que se quer demonstrar postulando-se

universalmente o que se quer provar em um caso particular postulando-se em casos

particulares o que se quer provar em geral postulando-se a conclusatildeo por partes e

postulando-se afirmaccedilotildees que se implicam mutuamente60

Em siacutentese diz Aristoacuteteles na

peticcedilatildeo de princiacutepio o que se faz eacute limitar-se a afirmar que algo eacute se eacute61

Segundo nos parece

natildeo podemos enquadrar nosso objeto de estudo em peticcedilatildeo de princiacutepio ou em ciacuterculo vicioso

pois como jaacute dissemos ele surge como consequecircncia de proposiccedilotildees situadas em partes

distintas da filosofia schopenhaueriana Por conseguinte nenhuma eacute posta como fundamento

de si mesma nem eacute provada com recurso apenas a si mesma mas cada uma delas eacute resultante

de sua argumentaccedilatildeo correspondente

Nos Analiacuteticos Posteriores Aristoacuteteles menciona um tipo de

argumentaccedilatildeo circular em que as premissas natildeo satildeo anteriores e mais conhecidas do que a

conclusatildeo como seria de se esperar62

Na sua explicaccedilatildeo o argumento eacute circular porque

Eacute impossiacutevel que as mesmas coisas sejam relativamente agraves mesmas coisas

anteriores e posteriores ao mesmo tempo a menos que estes termos se

concebam de outro modo e que digamos que uns satildeo anteriores e mais

claros para noacutes e os outros anteriores e mais claros em absoluto sendo

justamente deste modo que a induccedilatildeo gera o conhecimento63

O argumento circular natildeo eacute necessariamente vicioso Se premissas e

conclusotildees forem reciacuteprocas diz Aristoacuteteles poderatildeo ser convertidas entre si e entatildeo a

demonstraccedilatildeo seraacute possiacutevel Conforme o filoacutesofo um processo semelhante a uma geraccedilatildeo

circular pode servir para exemplificar e ilustrar esse tipo de demonstraccedilatildeo

[] quando a terra for molhada eleva-se necessariamente um vapor uma

vez produzido este vapor forma-se uma nuvem formada a nuvem produz-

se a chuva e uma vez ter chovido a terra fica necessariamente molhada Era

precisamente este o nosso ponto de partida de modo que fechamos o ciacuterculo

pois dado qualquer um destes termos outro se segue e deste um outro e

59

ARISTOacuteTELES Organon III Analiacuteticos Anteriores Traduccedilatildeo de Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees

1986 Livro II 16 64b p 214-215 60

ARISTOacuteTELES Organon V Toacutepicos Traduccedilatildeo de Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees 1987 Livro VIII

13 163a p 314-315 61

ARISTOacuteTELES Organon III Analiacuteticos Anteriores Traduccedilatildeo de Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees

1987 Livro II 16 65a p 215 62

ARISTOacuteTELES Organon IV Analiacuteticos Posteriores Traduccedilatildeo de Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees

1987 Livro I 3 72b-73a p 17 et seq 63

Ibidem Livro I 3 72b p 18-19

- 40 -

deste outro o primeiro64

Segundo pensamos a antinomia da faculdade de conhecimento65

causa

admiraccedilatildeo porque o animal cognoscente aparece em dois pontos distintos da mesma seacuterie

temporal No primeiro ele eacute o iniacutecio do mundo aquele que traz consigo pela primeira vez as

formas necessaacuterias para a construccedilatildeo de toda e qualquer representaccedilatildeo a saber o tempo o

espaccedilo e a lei de causalidade No segundo no mesmo mundo da representaccedilatildeo ele ocupa um

ponto avanccedilado em um processo temporal que vai no sentido do aperfeiccediloamento das

objetivaccedilotildees da Vontade no qual o mais complexo e perfeito eacute posterior ao mais simples e

rudimentar Por conseguinte de um lado esse animal cognoscente deve ser anterior agraves

plantas aos peixes e aos animais inferiores jaacute que seu intelecto eacute condiccedilatildeo da existecircncia

deles De outro ele eacute posterior agraves mesmas plantas peixes e animais inferiores jaacute que eacute um

animal mais perfeito e portanto ulterior no tempo

De acordo com o exposto entendemos que a antinomia da faculdade de

conhecimento forma uma imagem semelhante agravequela exposta por Aristoacuteteles na sua

exposiccedilatildeo do argumento circular A imagem construiacuteda pela antinomia como um todo eacute a de

um ciacuterculo formado pelo princiacutepio de razatildeo suficiente que tem origem no intelecto do animal

cognoscente mas que deveraacute originaacute-lo por sua vez na gradaccedilatildeo progressiva dos seres

naturais Cada proposiccedilatildeo em separado situa esse animal em um ponto distinto da mesma

linha temporal de um lado no iniacutecio do tempo que coincide com o iniacutecio do mundo como

representaccedilatildeo de outro num posto avanccedilado do desenvolvimento gradativo dos seres da

natureza o qual exige por seu turno que o tempo jaacute tenha iniciado e transcorrido ateacute ali

Portanto no exato momento em que abriu os olhos o primeiro animal cognoscente iniciou

uma sucessatildeo temporal para o futuro infinitamente Para abrir os olhos contudo precisou de

uma cadeia causal anterior que somente poderia surgir com o transcurso do tempo atributo

de seu proacuteprio intelecto Simplificadamente poderiacuteamos dizer que nesse ciacuterculo o animal

engendra o mundo e o mundo engendra o animal assim como a aacutegua da terra gera a chuva e

esta molha a terra no argumento de Aristoacuteteles Em verdade de acordo com a filosofia

schopenhaueriana a ideia de que o mundo como representaccedilatildeo tem iniacutecio com o animal

cognoscente eacute algo baacutesico um ponto paciacutefico A dificuldade maior eacute a segunda proposiccedilatildeo

porque ela perturba indiretamente a construccedilatildeo teoacuterica da Vontade e introduz nela um

64

Ibidem Livro II 96a p 142 65

Embora estejamos argumentando que o problema natildeo tem a forma de uma antinomia preservaremos esse

nome para designaacute-la pois assim foi que Schopenhauer a nomeou

- 41 -

processo temporal Quando o filoacutesofo escreve que a objetivaccedilatildeo mais simples precede a mais

complexa estaacute afirmando que a Vontade depende de alguma forma do tempo e que admite

um processo que postula a existecircncia dele antes mesmo de existir aquilo que eacute sua condiccedilatildeo

de possibilidade

14 ndash Investigaccedilatildeo acerca dos conceitos das outras questotildees presentes na filosofia de

Schopenhauer

Aleacutem da antinomia da faculdade de conhecer Schopenhauer aponta

tambeacutem as trecircs contradiccedilotildees que jaacute mencionamos acima Natildeo discutiremos a primeira sobre a

liberdade uma vez que jaacute nos dedicamos a ela em dissertaccedilatildeo de mestrado66

A segunda eacute a

existecircncia simultacircnea de mecanicismo e finalismo questatildeo cujo cerne natildeo estaacute propriamente

na possibilidade de que os fenocircmenos naturais sejam regidos ao mesmo tempo por causas

finais e causas eficientes Na verdade um primeiro problema se encontra na dificuldade de se

explicar o funcionamento dos corpos orgacircnicos por meio do princiacutepio de razatildeo suficiente que

soacute prevecirc causaccedilotildees mecacircnicas e lineares mas natildeo as finais Uma causalidade final exige a

pressuposiccedilatildeo de um conceito regulador uma ideia uma organizaccedilatildeo do corpo de si para si

algo que a lei de causalidade que implica somente accedilatildeo e reaccedilatildeo natildeo admite Um segundo

problema estaacute em que a Vontade sendo definida como um impulso cego e sem objetivo final

natildeo poderia apresentar uma finalidade nas suas objetivaccedilotildees No nosso entendimento o

embaraccedilo que daiacute se origina natildeo possui um caraacuteter loacutegico mas transparece na dificuldade de

se aplicar essas concepccedilotildees de Vontade e de causalidade agrave diversidade do mundo empiacuterico

Ao que nos parece a afirmaccedilatildeo simultacircnea de mecanicismo e finalismo natildeo resulta em

qualquer inconveniente e ambos poderiam ser inferidos do funcionamento dos mesmos seres

orgacircnicos O fato eacute que essa realidade custosamente encontraria explicaccedilatildeo na filosofia

schopenhaueriana

66

Cf SANTOS K C S O problema da liberdade na filosofia de Arthur Schopenhauer Dissertaccedilatildeo

(Mestrado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo Departamento

de Filosofia Orientador Prof Dr Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo 2010

- 42 -

A terceira contradiccedilatildeo indicada por Schopenhauer eacute a que ocorre entre a

contingecircncia aparente dos eventos que ocorrem na trajetoacuteria de vida dos indiviacuteduos e o teacutelos

que parece guiaacute-la Nesse caso a finalidade afirmada como subjacente agrave vida humana eacute ainda

mais discutiacutevel em funccedilatildeo de seu aspecto moral O que aqui se assevera eacute que o indiviacuteduo

estaria independente de seu proacuteprio conhecimento buscando os fins morais da Vontade

identificados com a negaccedilatildeo de si mesma Pareceria entatildeo que estamos realmente diante de

uma contradiccedilatildeo em sentido estrito porque a Vontade eacute apresentada simultaneamente como

sendo moral e natildeo moral Apesar disso acreditamos que essa contradiccedilatildeo eacute inofensiva em

relaccedilatildeo ao pensamento schopenhaueriano como um todo e embora o filoacutesofo discorra sobre a

moralidade do destino individual em todo um ensaio dos Parerga e paralipomena67

ele o faz

advertindo expressamente que satildeo meras especulaccedilotildees sem qualquer fundamento filosoacutefico

Em relaccedilatildeo aos paradoxos que apresentamos no item 12 pensamos que

satildeo tambeacutem objeccedilotildees de menores consequecircncias O primeiro deles atine ao que eacute ou natildeo

possiacutevel dentro dos pressupostos schopenhauerianos realizar-se mediante o discurso

filosoacutefico Com efeito Schopenhauer se propotildee descobrir o segredo mais iacutentimo do mundo

desvendar seu enigma o que soacute poderia ser feito a rigor com recurso a um conhecimento de

tipo esteacutetico ou eacutetico que natildeo seguem o princiacutepio de razatildeo suficiente O proacuteprio filoacutesofo

afirma curiosamente que ldquo[] a simples razatildeo de conhecimento permanece na superfiacutecie e

somente pode dar o conhecimento de o que algo eacute mas natildeo por que eacuterdquo68

No entanto sua

filosofia enquanto expressatildeo in abstrato do que ocorre in concreto soacute pode ser estruturada

por meio do principium sufficientis cognoscendi com o qual apenas se poderia expor

abstratamente o mundo como representaccedilatildeo mas nunca desvendar o iacutentimo da Vontade

Segundo pensamos trata-se de uma conclusatildeo assombrosa eacute verdade mas natildeo deixa de ser

meritoacuteria a tentativa de dizer o maacuteximo que se possa saber e afirmar acerca da essecircncia das

coisas Ao que nos parece natildeo se trata de uma contradiccedilatildeo nem de uma antinomia mas de

um paradoxo no sentido informal que apresentamos as premissas dos sistema satildeo aceitaacuteveis

mas natildeo essa conclusatildeo

O uacuteltimo paradoxo que discutiremos diz respeito ao conhecimento

67

Cf PP I Transzendente Spekulation uumlber die anscheinende absichtlichkeit im Schicksale des Einzelnen

Especulacioacuten transcendente sobre los visios de intencionalidade en el destino del individuo In Los designios

del destino Estudio preliminar traduccioacuten y notas de Roberto Rodriacutegues Aramayo Madrid Tecnos 1994 68

WWV I ersters buch p sect 15 115 M I Livro I sect 15 p 122 (grifos do autor)

- 43 -

possiacutevel ao sujeito a partir do seu proacuteprio interior do seu proacuteprio querer69

Como dissemos

para Schopenhauer a vontade individual daacute acesso imediato ao interior do funcionamento da

lei de causalidade possibilitando um conhecimento mais profundo dos fenocircmenos por meio

da relaccedilatildeo imediata com a Vontade Ao lado disso o filoacutesofo sustenta que os fenocircmenos que

mais manifestam esta uacuteltima satildeo os mais incompreensiacuteveis em funccedilatildeo da heterogeneidade

completa entre as causas e os efeitos que aiacute se apresenta Ao que nos parece esses fenocircmenos

em que a Vontade eacute mais evidente deveriam tambeacutem ser os mais conhecidos para noacutes posto

que nesse caso poderiacuteamos enxergar ldquoatraacutes dos bastidoresrdquo70

O que notamos nesse caso eacute a

tentativa de unir os dois modos diferentes de conhecimento pela vontade e pelo princiacutepio de

razatildeo os quais poreacutem estatildeo em descompasso Em algumas passagens Schopenhauer afirma

que mesmo sendo mais profundo o conhecimento da vontade individual eacute obscuro Poreacutem

continua a indagaccedilatildeo sobre como um conhecimento ldquopor dentrordquo da causalidade pode ser ao

mesmo tempo obscuro e o melhor Trata-se tambeacutem de um paradoxo no sentido geral que

apontamos na medida em que temos uma conclusatildeo inaceitaacutevel partindo de premissas

coerentes do sistema

Para finalizar a discussatildeo sobre este uacuteltimo ponto observaremos somente

que no texto ldquoPensamentos acerca do intelecto em geral e em todas as suas relaccedilotildeesrdquo de

Parerga e Paralipomena Schopenhauer afirma que o intelecto eacute formado originalmente para

voltar-se para fora Quando dirige a atenccedilatildeo ao seu interior para conhecer-se a si mesmo cai

em uma total obscuridade um vazio total71

Na condiccedilatildeo de sujeito do conhecimento natildeo

pode voltar-se a si mesmo e conhecer-se e ainda que pudesse natildeo encontraria nada jaacute que

esse sujeito natildeo eacute nada em si mesmo mas somente uma aparecircncia cuja forma eacute o tempo

Certamente o sujeito cognoscente pode conhecer-se como vontade poreacutem Schopenhauer

esclarece que esse conhecimento natildeo se refere a si mesmo mas a outra coisa diferente dele

que no entanto situa-se dentro A vontade por seu turno natildeo eacute capaz de autoconhecimento

pois como ele escreve no texto mencionado acima ldquo[] em si e por si eacute algo que apenas

quer e natildeo algo que conhece como tal ela natildeo conhece nada portanto tambeacutem natildeo a si

69

Natildeo nos debruccedilaremos sobre as questotildees envolvidas no conceito de mateacuteria O leitor interessado pode

conferir BRANDAtildeO E A concepccedilatildeo de mateacuteria na obra de Schopenhauer Satildeo Paulo Humanitas 2008 70

UumlV sect 43 p 173 CR sect 43 p 208 71

PPII Kap 3 sect32 p 57-58 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de

Miguel Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 32 p 240

- 44 -

mesma O conhecimento eacute uma funccedilatildeo secundaacuteria e intermediaacuteria que natildeo corresponde

imediatamente a ela o primaacuterio na sua essecircnciardquo72

15 ndash Estrutura histoacuterica da metafiacutesica de Schopenhauer o debate sobre a coisa em si

Uma das possibilidades de se abordar o pensamento schopenhaueriano

com de resto de qualquer filoacutesofo eacute analisando suas origens histoacutericas Como afirma Victor

Goldschmidt em A religiatildeo de Platatildeo haacute basicamente dois modos de se interpretar um

pensamento filosoacutefico a saber investigando seu tempo loacutegico ou seu tempo histoacuterico73

No

primeiro caso ele explica o objeto de estudo eacute sua verdade e pede-se ao filoacutesofo que ofereccedila

razotildees no segundo investigam-se suas origens e interrogam-se suas causas74

Nossa

investigaccedilatildeo seraacute feita na perspectiva do tempo loacutegico do pensamento schopenhaueriano

meacutetodo que esse autor chama de dogmaacutetico e cujo objetivo eacute compreender uma filosofia

tendo em conta a intenccedilatildeo do pensador Apesar disso natildeo seraacute inuacutetil lanccedilar um olhar sobre os

iniacutecios do filosofar de Schopenhauer considerando-se que ao buscar as motivaccedilotildees que lhe

deram origem poderemos compreender melhor a estrutura em que foi erigido isto eacute seu

tempo loacutegico Combinando ambas as perspectivas a dogmaacutetica e a geneacutetica podemos

adquirir uma visatildeo coerente do conjunto tentando colher na medida do possiacutevel os

benefiacutecios dos dois meacutetodos como expostos por Goldschmidt

Enfim o meacutetodo dogmaacutetico examinando um sistema sobre sua verdade

subtrai-o ao tempo as contradiccedilotildees que eacute levado a constatar no interior de

um sistema ou na anarquia dos sistemas sucessivos provecircm precisamente

de que todas as teses de uma doutrina e de todas as doutrinas pretendem ser

conjuntamente verdadeiras ldquoao mesmo tempordquo O meacutetodo geneacutetico pelo

contraacuterio potildee com a causalidade o tempo aleacutem disso o recurso ao tempo e

72

PPII Kap 3 sect32 p 58-59 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de

Miguel Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 32 p 241 (grifos do autor) 73

GOLDSCHMIDT Victor Tempo histoacuterico e tempo loacutegico na interpretaccedilatildeo dos sistemas filosoacuteficos In A

religiatildeo de Platatildeo Traduccedilatildeo de Ieda e Oswaldo Porchat Pereira Prefaacutecio introdutoacuterio de Oswaldo Porchat

Pereira Satildeo Paulo Difusatildeo Europeia do Livro 1963 p 139 et seq 74

Ibidem p 139

- 45 -

a uma ldquoevoluccedilatildeordquo permite-lhe precisamente explicar e dissolver essas

contradiccedilotildees75

Natildeo pretendemos poreacutem realizar uma investigaccedilatildeo exaustiva da gecircnese

do pensamento de Schopenhauer mas apenas ressaltar certos aspectos que poderatildeo ser

instrutivos para a compreensatildeo da nossa questatildeo Ensaiaremos uma investigaccedilatildeo semelhante

de certo modo ao que Thomas Kuhn descreve no texto intitulado ldquoEstrutura histoacuterica da

descoberta cientiacuteficardquo da obra A tensatildeo essencial76

Nesse texto Kuhn argumenta que toda

descoberta cientiacutefica possui uma estrutura histoacuterica que a torna possiacutevel evidenciando um

processo longo e que envolve diversas pessoas De acordo com ele se natildeo se compreende

essa estrutura interna passa-se por cima dos desenvolvimentos teacutecnicos dos conceitos e teses

implicados no advento da descoberta adquirindo-se uma visatildeo simplista da Histoacuteria Eacute

bastante interessante o fato de que Schopenhauer tambeacutem manifeste absoluta clareza sobre a

complexidade histoacuterica dos desenvolvimentos teoacutericos como se pode ler no capiacutetulo 4 de O

MundoII sobre o conhecimento a priori77

Naturalmente natildeo estamos lidando com

nenhuma descoberta cientiacutefica Mas segundo pensamos a filosofia schopenhaueriana pode

ser encarada como um sistema de pensamento cujas conexotildees sistemaacuteticas e conceituais

assim como as das descobertas cientiacuteficas dialogam com aspectos teacutecnicos da discussatildeo

filosoacutefica do seu momento histoacuterico

No caso especiacutefico do problema ao qual nos dedicamos haacute uma parte da

histoacuteria do Idealismo Alematildeo de importantes consequecircncias em relaccedilatildeo agrave escolha da

abordagem e do meacutetodo por Schopenhauer Trata-se da discussatildeo a respeito do lugar da coisa

em si na filosofia criacutetica de que participaram diversos pensadores contemporacircneos de Kant

dentre os quais F Heinrich Jacobi Karl L Reinhold Gottlob Ernst Schulze Sigismund J

Beck e Salomon Maimon Schopenhauer natildeo esteve alheio a esse debate como atestam as

menccedilotildees a esses filoacutesofos que podem ser encontradas em suas obras bem como a discussatildeo

75

Ibidem p 139-140 (grifos do autor) 76

KUHN T A tensatildeo essencial Traduccedilatildeo de Rui Pacheco e revisatildeo de Artur Mouratildeo Lisboa Ediccedilotildees 70 1989

p 209-222 77

Na observaccedilatildeo a respeito do 4ordm predicado da mateacuteria (sobre a essecircncia dela) Schopenhauer menciona a

interaccedilatildeo histoacuterica intrincada que se observa entre teorias e pensadores Aponta predecessores de algumas das

mais importantes contribuiccedilotildees de Kant agrave filosofia por exemplo Priestley teria adiantado a parte referente agrave

Dinacircmica dos Princiacutepios metafiacutesicos da ciecircncia da natureza Kaspar F Wolff teria antecipado a diferenciaccedilatildeo

entre liacutequidos e soacutelidos da mesma obra de Kant e tambeacutem as ideias de Goethe sobre a metamorfose das plantas

Maupertius teria antecedido Kant na idealidade do espaccedilo e na existecircncia meramente fenomecircnica de tudo o que

conhecemos Do mesmo modo a teoria sobre a origem do sistema planetaacuterio de Laplace teria sido antecipada em

cinquenta anos por Kant e a gravitaccedilatildeo universal tida como descobrimento de Newton teria sido exposta por

Robert Hooke agrave Sociedade Real inglesa em 1666 Schopenhauer conclui sua exposiccedilatildeo com a seguinte frase ldquoA

histoacuteria da queda de uma maccedilatilde eacute tatildeo sem fundamento quanto um conto de fadas popular e sem nenhuma

autoridaderdquo Cf WWV II Kap IV p 65-66 MII cap IV p 60-63

- 46 -

que realiza sobre a questatildeo em Fragmentos para a Histoacuteria da Filosofia78

A maneira especial

em que edifica sua metafiacutesica e sua teoria do conhecimento evidencia as marcas dessa

polecircmica tornando interessante a reconstituiccedilatildeo da trama teoacuterica em que diversos conceitos

foram sendo lapidados e que na nossa interpretaccedilatildeo contribuiu para que seu sistema fosse

edificado como foi Embora possa ser duvidoso que o filoacutesofo a tenha compreendido tal como

exporemos aqui esperamos que nossos resultados a torne ao menos plausiacutevel79

A caracterizaccedilatildeo da metafiacutesica imanente de Schopenhauer em que a

coisa em si eacute apresentada como um lado do mundo que eacute um e o mesmo mundo da

representaccedilatildeo assim como a construccedilatildeo da experiecircncia pelo princiacutepio de razatildeo suficiente satildeo

maneiras de o filoacutesofo se posicionar no debate sobre a causaccedilatildeo do fenocircmeno pelo nuacutemeno e

sobre o lugar destinado a este uacuteltimo na filosofia Como veremos Schopenhauer procura

evitar os erros que Kant teria cometido sem prescindir do conceito de coisa em si

negligenciado pelos poacutes-kantianos Como afirma Alexis Philonenko em Schopenhauer

critique de Kant a separaccedilatildeo entre coisa em si e fenocircmeno eacute vista por Schopenhauer ao

mesmo tempo como o maior meacuterito de kantiano e como uma oportunidade de fechar a porta

violentamente aos poacutes-kantianos Antes de Schopenhauer a coisa em si havia sido ignorada

e escreve Philonenko ldquoSem tecirc-los lido [os textos Kant] atentamente nesse ponto a canalha

filosoacutefica havia descartado os textos e sonhado um kantismo sem coisa em si Ele mirava

entatildeo Reinhold S Maimon enquanto escutava Bardili Schulze Kiesewetterrdquo80

Natildeo

obstante como dissemos natildeo nos debruccedilaremos extensamente sobre essa histoacuteria que na

verdade jaacute foi bastante investigada e que de qualquer modo natildeo nos caberia expor de modo

minucioso81

O contexto do debate remete a 1785 quando Friedrich Heinrich Jacobi

78

Cf PP I Fragmente zur Geschichte der Philosophie sect 13 Fragmentos para a histoacuteria da filosofia Traduccedilatildeo

apresentaccedilatildeo e notas de Maria Luacutecia Cacciola Satildeo Paulo Iluminuras 2003 sect 13 79

Em geral comentadores que buscam as origens do pensamento de Schopenhauer procuram semelhanccedilas e

derivaccedilotildees de suas teses e conceitos a partir de pensadores contemporacircneos dele como Fichte e Schelling Nosso

propoacutesito eacute totalmente diferente mas o leitor interessado poderaacute encontrar uma interessante visatildeo alternativa agrave

nossa em ZOumlLLER Guumlnter German realism the self-limitation of idealist thinking in Fichte Schelling and

Schopenhauer In AMERIKS Karl (ed) The Cambridge Companion to German Idealism Cambridge

Cambridge University Press 2006 p 200-218 Nesse texto Zoumlller apresenta a proximidade entre as filosofias de

Fichte Schelling e Schopenhauer comparando-as no tocante agraves concepccedilotildees de real e ideal racional e irracional

conhecimento e voliccedilatildeo Explora aleacutem disso o que entende serem elementos de realismo em cada um deles

mostrando o que pode ser pensado como uma genealogia do pensamento de Schopenhauer 80

PHILONENKO A Schopenhauer critique de Kant Paris Les Belles Lettres 2005 p 250 (traduccedilatildeo nossa) 81

Uma histoacuteria pormenorizada pode ser encontrada em BONACCINI Juan Adolfo Kant e o problema da coisa

em si no Idealismo Alematildeo sua atualidade e relevacircncia para compreensatildeo do problema da Filosofia Rio de

Janeiro Relume Dumaraacute Natal UFRN Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia 2003

- 47 -

iniciou uma polecircmica que ficou conhecida como a ldquoquerela do panteiacutesmordquo

(Pantheismusstreit) e com ela um movimento que daria origem ao Idealismo Alematildeo o

chamado Spinoza-Renaissance A obra Sobre a doutrina de Espinosa em cartas o senhor

Moses Mendelssohn provocou uma disputa sobre Lessing morto em 1781 a quem Jacobi

acusou de espinozista o que significava entatildeo ser panteiacutesta e ateu Mendelssohn e outros

defendendo Lessing e o Iluminismo que ele representava fizeram frente a Jacobi e pediram a

intervenccedilatildeo de Kant Poreacutem ao entrar no debate depois de muita insistecircncia Kant posicionou-

se tanto contra Mendelssohn que lhe parecia um racionalista acriacutetico quanto contra Jacobi

cujas ideias lhe pareciam apenas fantasias82

Como se sabe a resposta kantiana se deu com o

texto O que quer dizer orientar-se no pensamento publicado na Berlinische Monatsschrift

em 1786 Para Jacobi no entanto a defesa que Kant elaborou significou o lanccedilamento de uma

nova questatildeo83

Em ldquoSobre o idealismo transcendentalrdquo escrito como apecircndice da obra

David Hume e a crenccedila idealismo e realismo Jacobi apresenta a emblemaacutetica aporia da coisa

em si notada por ele no sistema kantiano a qual orientou toda a discussatildeo Conforme Ernst

Cassirer Jacobi ldquo[] propotildee com brilhante sagacidade novos problemas e capta dificuldades

destinadas a determinar por muito tempo a forma da filosofia []rdquo84

No apecircndice

mencionado Jacobi expotildee o problema que nota na argumentaccedilatildeo kantiana citando lado a

lado passagens da esteacutetica transcendental e da criacutetica ao quarto paralogismo da razatildeo pura

sobre a idealidade Um esclarecimento adicional nesse ponto eacute interessante De acordo com

Paul Franks Jacobi lecirc a filosofia kantiana com uma motivaccedilatildeo e uma perspectiva particulares

a saber um fasciacutenio pela consideraccedilatildeo de seacuteries de condiccedilotildees infinitas85

Tanto a ideia de que

uma seacuterie pudesse ser infinita quanto a de que pudesse ser suprimida eram para ele fonte de

uma perplexidade que pode explicar muito de sua argumentaccedilatildeo Como escreve Franks

Jacobi procurava um ponto de vista estaacutevel como se sua proacutepria vida

dependesse disso Por isso a paacutegina do tiacutetulo de seu livro sobre Espinoza

trazia o lema ldquoδορ microοι πος ζηοrdquo (ldquoDecirc-me um ponto de apoiordquo) Eu suspeito

que ele tenha sido fortemente atraiacutedo pela ideia racionalista de

inteligibilidade infinita de uma serie finita que termina na causa sui Mas

ele comeccedilou a acreditar que essa ideia natildeo valia nada Desde que natildeo pocircde

viver com nenhuma das outras opccedilotildees sua soluccedilatildeo radical foi abandonar a

proacutepria ideia de razatildeo como condiccedilotildees explicativas e de razatildeo humana como

82

BECKENCAMP J Entre Kant e Hegel Porto Alegre EDUPUCRS 2004 p 13 83

Ibidem p 19 84

CASSIRER E op cit p 32 85

FRANKS P All or nothing systematicity and nihilism in Jacobi Reinhold and Maimon In AMERIKS Karl

(ed) The Cambridge Companion to German Idealism Cambridge Cambridge University Press 2006 p 97

- 48 -

a capacidade de compreender por que as coisas existem e satildeo como satildeo86

As passagens que Jacobi seleciona da criacutetica ao quarto paralogismo

expotildeem o pensamento de Kant acerca da possibilidade de harmonizaccedilatildeo numa perspectiva

dualista do idealismo transcendental com o realismo empiacuterico87

Nos fragmentos citados por

Jacobi Kant escreve que sem ir aleacutem da consciecircncia de si mesmo o idealismo transcendental

permite a admissatildeo da existecircncia da mateacuteria pois sendo esta uma representaccedilatildeo exterior

trata-se de mero fenocircmeno Jacobi ressalta o trecho em que Kant afirma ser a mateacuteria uma

intuiccedilatildeo chamada exterior apenas porque se refere ao espaccedilo que eacute a forma da sensibilidade

externa e natildeo porque os objetos mesmos sejam exteriores uma vez que o proacuteprio espaccedilo eacute

interno ao sujeito Na sequecircncia dos textos citados por Jacobi Kant argumenta acerca da

impossibilidade de se conhecer o objeto transcendental referente aos fenocircmenos O uacutenico que

se poderia fazer diz Kant nessas passagens seria admitir que a causa dos fenocircmenos estivesse

fora do sujeito o que natildeo permitiria poreacutem afirmar que essa exterioridade remetesse a um

objeto do tipo dos fiacutesicos pois a realidade destes se funda na consciecircncia imediata ou seja

natildeo eacute transcendente88

Kant reconhece a ambiguidade em se falar de algo ldquofora de noacutesrdquo jaacute que a

expressatildeo serve para designar tanto uma coisa em si como um fenocircmeno exterior preferindo

entatildeo para indicar este uacuteltimo denominaacute-lo ldquocoisa no espaccedilordquo89

Assim ficaria mais claro que

o acircmbito que estaacute sendo referido eacute o da representaccedilatildeo e que a possibilidade de se ter

consciecircncia imediata dos objetos representados se refere a objetos no espaccedilo que satildeo eles

proacuteprios somente representaccedilotildees e contecircm apenas o que neles eacute representado Determinaccedilotildees

semelhantes poreacutem natildeo poderiam ser feitas em relaccedilatildeo ao objeto transcendental nem ao

sujeito cognoscente uma vez que ambos remeteriam a um fundamento desconhecido natildeo

podendo ser chamados portanto nem de mateacuteria nem de ser pensante

No tocante agrave esteacutetica transcendental Jacobi cita passagens em que Kant

se refere agrave idealidade transcendental do tempo A argumentaccedilatildeo kantiana sobre esse ponto

mostra que a realidade do tempo natildeo deriva das alteraccedilotildees que percebemos nos objetos

empiacutericos o que faria parecer que de algum modo ela adveacutem de fora Na verdade essa

86

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 87

JACOBI F H Excertos de Uumlber den transzendentalen Idealismus Traduccedilatildeo de Leopoldina Almeida In GIL

Fernando (coord) Recepccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant (1786-1844) Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1992 p 102-103 88

Ibidem p 102 89

Ibidem p 103

- 49 -

realidade proveacutem de o tempo ser a forma real da intuiccedilatildeo interna tendo portanto uma

realidade subjetiva90

A representaccedilatildeo do tempo entatildeo deve ser tomada como modo de se

representar o sujeito enquanto objeto e essa eacute sua realidade A visatildeo habitual a respeito do

tempo toma as alteraccedilotildees dos objetos empiacutericos como manifestaccedilotildees da realidade dele mas

diz Kant sem a sucessatildeo que ele significa as proacuteprias alteraccedilotildees desapareceriam Os objetos

tomados por reais desse modo seriam determinaccedilotildees internas ao sujeito e natildeo possuiriam de

fato existecircncia em si seriam como um jogo de representaccedilotildees91

Da mesma maneira as leis

a ordem e a regularidade percebidas nos fenocircmenos da natureza seriam determinaccedilotildees

advindas do sujeito a priori natildeo sendo entatildeo reais no sentido comum A proacutepria experiecircncia

seria forjada desse modo e o entendimento seria a faculdade agrave qual cabe a legislaccedilatildeo da

natureza

A partir dos fragmentos que cita Jacobi conclui haver uma

incompatibilidade entre as afirmaccedilotildees de que os objetos causam impressotildees nos sentidos

provocando sensaccedilotildees e originando as representaccedilotildees e de que do objeto transcendental nada

se sabe Para ele os objetos que causam as impressotildees natildeo podem ser os empiacutericos que natildeo

se estendem aleacutem da representaccedilatildeo e ao mesmo tempo do objeto transcendental nada se

pode a rigor dizer O fenocircmeno escreve Jacobi ldquo[] natildeo pode estabelecer relaccedilatildeo alguma

entre essas tais representaccedilotildees e qualquer objetordquo92

No entanto ele continua mesmo sendo

estranho afirmar no acircmbito da filosofia kantiana que os objetos transcendentais

impressionam os sentidos e provocam representaccedilotildees essa pressuposiccedilatildeo eacute fundamental para

a doutrina Pois ele afirma

[] a palavra sensibilidade fica privada de todo e qualquer significado se natildeo

se entender por ela um meio distinto e real entre o real e o real um meio

efectivo de alguma coisa para alguma coisa e se no seu conceito natildeo

estiverem contidos os conceitos de estar separado e estar conectado de ser

ativo e ser passivo de causalidade e dependecircncia como determinaccedilotildees reais

e objectivas []93

Por conseguinte a admissatildeo de um objeto que natildeo seja meramente

fenocircmeno a agir sobre os sentidos eacute absolutamente necessaacuteria para que as representaccedilotildees e os

conceitos tenham validade objetiva isto eacute para que natildeo sejam pura e simplesmente jogo de

representaccedilotildees No entanto como o acesso agrave coisa em si eacute fechado pelo pensamento kantiano

90

Ibidem p 104 91

Ibidem p 105 92

Ibidem p 106 93

Ibidem p 106 (grifos do autor)

- 50 -

dela natildeo se poderia dizer nem mesmo que estaacute pressuposta Daiacute a ceacutelebre sentenccedila de Jacobi

ldquo[] eu ficava continuamente perplexo porque natildeo podia penetrar no sistema sem aquele

pressuposto e com ele natildeo podia aiacute permanecerrdquo94

Na formulaccedilatildeo de Cassirer

Ao longo de toda a Criacutetica da razatildeo pura percebe-se esse dualismo entre

pressupostos realistas e idealistas entre suas premissas objetivo-metafiacutesicas

e metodoloacutegico-conceituais Natildeo se pode prescindir de nenhuma delas na

construccedilatildeo do mundo especulativo kantiano embora cada uma delas se

encontre diretamente em oposiccedilatildeo agrave outra95

Mesmo se admitirmos uma causa transcendental dos fenocircmenos diz

Jacobi natildeo haveraacute como saber onde ela se situa nem sua relaccedilatildeo com o efeito Aleacutem disso ele

prossegue aquilo que daacute a forma agrave representaccedilatildeo que daacute a ela feiccedilatildeo de objeto estaacute fundado

em uma espontaneidade que ao fim eacute ancorada em uma faculdade desconhecida a saber

uma ldquo[] faculdade cega de estabelecer conexotildees progressivas e regressivas a que chamamos

imaginaccedilatildeordquo96

No fim de contas todo e qualquer conhecimento seria reduzido agrave consciecircncia

das representaccedilotildees das ligaccedilotildees de conceitos e de princiacutepios gerais que constituem o proacuteprio

sujeito A validade dessas determinaccedilotildees eacute entatildeo meramente relativa dada apenas pela sua

conexatildeo em uma consciecircncia transcendental No entanto Jacobi pergunta ldquo[] como eacute

possiacutevel combinar o pressuposto de objetos que causam impressotildees nos nossos sentidos

suscitando desse modo representaccedilotildees com uma doutrina que pretende anular todas as bases

em que se apoia este pressupostordquo97

No segundo prefaacutecio ao seu diaacutelogo David Hume e a crenccedila idealismo e

realismo escrito trinta anos depois da primeira ediccedilatildeo de 1797 Jacobi apresenta o problema

em outra perspectiva bastante interessante Nesse texto ele discorre a respeito da distinccedilatildeo

entre razatildeo e entendimento que teria sido feita de modo errocircneo e ambiacuteguo inclusive por ele

mesmo98

Jacobi argumenta que uma distinccedilatildeo rigorosa entre entendimento e razatildeo estaacute

pressuposta na separaccedilatildeo radical entre ser humano e animal a qual natildeo seria uma diferenccedila

meramente de graus mas de natureza O animal mesmo o mais inteligente possuiria somente

entendimento e natildeo perceberia nada aleacutem do sensiacutevel enquanto o ser humano em funccedilatildeo da

94

Ibidem p 107 (grifos do autor) 95

CASSIRER E op cit p44-45 96

JACOBI F H Excertos de Uumlber den transzendentalen Idealismus Traduccedilatildeo de Leopoldina Almeida In GIL

Fernando (coord) Recepccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant (1786-1844) Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1992 p 108 97

Ibidem loc cit 98

JACOBI F H David Hume et la croyance ideacutealisme et reacutealisme Dialogue Introduit traduit et annoteacute par

Louis Guillermit Paris Librarie Philosophique J Vrin 2000 p 127

- 51 -

razatildeo teria a possibilidade de conhecer o suprassensiacutevel O ponto central da visatildeo de Jacobi e

ao mesmo tempo o nuacutecleo de sua criacutetica agrave filosofia kantiana eacute que se a razatildeo apoiar-se

somente no sensiacutevel como sua pedra de toque acabaraacute por se tornar uma faculdade que

produz meras ficccedilotildees Para ele Kant apenas deu continuidade agrave tradiccedilatildeo de Aristoacuteteles cuja

influecircncia determinou que a razatildeo fosse entendida como uma faculdade de geraccedilatildeo de

conceitos e abstraccedilatildeo e nessa condiccedilatildeo fosse subordinada ao entendimento Entatildeo o

conhecimento imediato teria sido submetido ao mediato a percepccedilatildeo agrave reflexatildeo na verdade

ldquoo modelo agrave coacutepia o ser agrave palavrardquo99

Kant diz Jacobi inverteu as posiccedilotildees de razatildeo e

entendimento e permitiu a conclusatildeo de que passando por entre a sensibilidade e elevando-se

acima dela nunca se poderia alcanccedilar o suprassensiacutevel com a razatildeo ou com outra faculdade

qualquer

Natildeo obstante o caminho para se alcanccedilar o suprassensiacutevel existiria e

seria completamente diferente Como afirma Victor Delbos em De Kant aux postkantiens

ldquoJacobi sustenta que noacutes podemos atingir a realidade do mundo exterior como a dos objetos

suprassensiacuteveis mas pelo sentimento a intuiccedilatildeo ou a feacute de qualquer modo por uma

faculdade que natildeo se reporte ao entendimento loacutegicordquo100

No mesmo sentido Cassirer escreve

que ldquoA explicaccedilatildeo soacute eacute para ele um meio um caminho ateacute uma meta o fim proacuteximo mas

nunca o fim uacuteltimo Seu fim uacuteltimo eacute o que natildeo se pode explicar o indissoluacutevel o imediato o

simplesrdquo101

Jacobi admite que esse fim uacuteltimo possa ser alcanccedilado nas accedilotildees tal como

fundamentado na Criacutetica da Razatildeo Praacutetica isto eacute que somente no acircmbito praacutetico eacute que a

razatildeo poderia ultrapassar o entendimento e alcanccedilar o suprassensiacutevel Do ponto de vista da

razatildeo teoacuterica poreacutem Kant estabeleceu que o suprassensiacutevel natildeo pode ser alcanccedilado a partir

do sensiacutevel ao qual unicamente o intelecto se dirige

Todavia no entender de Jacobi com o mesmo procedimento que se

garantia isso eliminava-se a possibilidade de todo e qualquer conhecimento A depuraccedilatildeo

extrema da sensibilidade teria levado a uma dissoluccedilatildeo completa de toda possibilidade de

conhecer na medida em que ela deixava de ser faculdade de uma verdadeira percepccedilatildeo Com

isso o que os sentidos apresentam deixa de ser visto como verdadeiro e ateacute mesmo a mateacuteria

torna-se simples representaccedilatildeo e fenocircmeno Portanto escreve Jacobi ldquo[] o idealismo

99

Ibidem p 128 (traduccedilatildeo nossa) 100

DELBOS V De kant aux postkantiens Introduction par Alexis Philonenko Preface de Maurice Blondel

Paris Aubier 1992 p 141 (traduccedilatildeo nossa) 101

CASSIRER E op cit p 33

- 52 -

transcendental ou criticismo kantiano que devia comeccedilar tornando possiacutevel a verdadeira

ciecircncia deixa ao contraacuterio a ciecircncia se perder na ciecircncia o entendimento no entendimento

todo conhecimento sem exceccedilatildeo num abismo universal[]rdquo102

Partindo do sensiacutevel e sem

deixar espaccedilo a uma faculdade superior a essa esfera o que se consegue eacute apenas girar em

falso sobre o que pode ser objeto de intuiccedilatildeo sem nunca escapar ao ciacuterculo fechado da

experiecircncia Mais do que isso ao fim e ao cabo mesmo a ciecircncia empiacuterica se perderia jaacute que

o objeto conhecido natildeo poderia ser atrelado a nada que natildeo fosse o proacuteprio sujeito Em

resumo na exposiccedilatildeo de Cassirer

ldquoDeduzimosrdquo conclusotildees de suas premissas passamos de um elo a outro na

cadeia das deduccedilotildees para a frente e para traacutes avanccedilando ou retrocedendo ao

infinito sem que toda essa cadeia nos subtraia do vazio sobre o qual se

prende Por esse caminho das deduccedilotildees e conclusotildees natildeo chegaremos

jamais a um ponto originaacuterio sobre o qual possamos afirmar solidamente a

raiz de nosso conhecimento Assim pois ou nos vemos obrigados a negar

totalmente o postulado dessa proveniecircncia ou temos de buscar outro

caminho para dar-lhe realizaccedilatildeo descobrindo outro oacutergatildeo espiritual por meio

do qual possamos verdadeiramente alcanccedilar este objetivo103

O amigo e disciacutepulo de Kant Karl L Reinhold influenciou esse debate

embora de modo indireto Julgando estar oferecendo contribuiccedilotildees agrave filosofia criacutetica acabou

por evidenciar uma lacuna dela ao procurar uma saiacuteda para a ausecircncia de uma fundaccedilatildeo

soacutelida na teoria do conhecimento kantiana Cassirer informa a esse respeito que dentre os

primeiros partidaacuterios de Kant Reinhold figurava como o melhor inteacuterprete de suas ideias e

como aquele que havia oferecido autecircntica soluccedilatildeo aos problemas postos pela Criacutetica da

Razatildeo Pura104

Natildeo obstante ele forneceu ainda mais razotildees para que fossem apontadas as

falhas e o dualismo da filosofia kantiana Nesse sentido afirma Paul Franks

Reinhold tornou-se kantiano para responder agrave necessidade levantada por

Jacobi de um uacutenico ponto de vista estaacutevel que conectasse adequadamente

razatildeo e feacute Mas ele tambeacutem foi convencido por Jacobi de que tal ponto de

vista deveria ter o monismo sistemaacutetico do espinozismo E isso levou

Reinhold involuntariamente a minar o dualismo kantiano por meio do

proacuteprio procedimento que desenvolveu para defendecirc-lo105

Reinhold encontra na noccedilatildeo de representaccedilatildeo o fundamento que busca e

no tocante agrave coisa em si entende que embora tenha de estar pressuposta eacute desnecessaacuterio

102

JACOBI F H David Hume et la croyance ideacutealisme et reacutealisme Dialogue Introduit traduit et annoteacute par

Louis Guillermit Paris Librarie Philosophique J Vrin 2000 p 131 (traduccedilatildeo nossa) 103

CASSIRER E op cit p 33 (grifos do autor) 104

Ibidem p 50-51 105

FRANKS P op cit p 102 (traduccedilatildeo nossa)

- 53 -

discorrer sobre ela para embasar uma teoria da faculdade representativa Como explica

Delbos ldquoSem duacutevida ele evita dizer que as coisas em si nos afetam que elas fornecem a

mateacuteria de nossas sensaccedilotildees contudo da natureza da representaccedilatildeo ele tenta deduzir tanto a

impossibilidade de que as coisas em si sejam representadas quanto a necessidade de sua

existecircnciardquo106

A representaccedilatildeo diz Reinhold eacute distinta tanto do sujeito representante quanto

do objeto representado e eacute somente a ela que a teoria deve se ater ou nas palavras de

Cassirer ldquoO que se trata de indagar natildeo satildeo os fundamentos fiacutesicos ou metafiacutesicos dos

conteuacutedos aniacutemicos mas o que sejam esses conteuacutedos e as ordenaccedilotildees constantes em que se

enquadremrdquo107

Na concepccedilatildeo de Reinhold haacute uma diferenccedila inexpugnaacutevel entre o objeto

da representaccedilatildeo e a pura e simples representaccedilatildeo108

No seu entender esse era um ponto

paciacutefico da discussatildeo pois tanto os idealistas quanto os ceacuteticos estariam de acordo no tocante

agrave distinccedilatildeo entre a mera representaccedilatildeo o ser representante e o objeto representado Para ele

esse poderia ser o ponto inicial da investigaccedilatildeo com o que se tornaria inoacutecuo entrar no debate

acerca do que satildeo e de como existem os objetos fora do sujeito Entatildeo ele afirma ldquo[] como

eu quero simplesmente conhecer a diferenccedila que se admitiu acontecer na proacutepria consciecircncia

sem me meter com o seu fundamento situado fora da consciecircncia natildeo entro em conflito com

nenhum partido acerca do nome que a cada um lhe apetecer dar-lherdquo109

Do mesmo modo a

investigaccedilatildeo que busca encontrar a natureza e a estrutura da consciecircncia natildeo precisaria passar

pela alma mas somente pelas condiccedilotildees internas de possibilidade da representaccedilatildeo Como

escreve Cassirer ldquo[] Reinhold distingue agora a determinaccedilatildeo da funccedilatildeo do conhecimento

enquanto tal do problema da substacircncia a que esta funccedilatildeo pode ser inerente e dos objetos

externos que devem se acrescentar a ela para pocirc-la em atividaderdquo110

Seguindo essa linha de raciociacutenio Reinhold argumenta que a coisa em si

eacute absolutamente irrepresentaacutevel Mais que isso seria contraditoacuterio representaacute-la pois

equivaleria agrave representaccedilatildeo de um objeto sem as uacutenicas formas em que isso poderia se dar

Para ele a mateacuteria da representaccedilatildeo e sua forma jamais podem apresentar-se agrave consciecircncia

106

DELBOS V op cit p 144 (traduccedilatildeo nossa) 107

CASSIRER E op cit p 51 (grifos do autor) 108

REINHOLD K L Excertos de Briefe uumlber die kantische Philosophie e de Versuch einer neuen Theorie des

menschlichen Vorstellungsvermoumlgen Traduccedilatildeo de Irene Borges Duarte In GIL Fernando (coord) Recepccedilatildeo

da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant (1786-1844) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 1992 sect VII p 180 109

Ibidem loc cit (grifos do autor) 110

CASSIRER op cit p 55

- 54 -

isoladamente pois a separaccedilatildeo de mateacuteria e forma aniquilaria a proacutepria representaccedilatildeo111

O

objeto tomado como distinto da representaccedilatildeo somente pode surgir nesta como algo

representado isto eacute na forma dada por ela Portanto ele natildeo poderia aparecer-nos como coisa

em si isto eacute ldquo[] sob a forma que lhe correspondesse independentemente de toda a

representaccedilatildeo que seria indicada pela mera mateacuteria da representaccedilatildeo e que seria

necessariamente diferente da forma da representaccedilatildeordquo112

A mateacuteria da representaccedilatildeo seria

distinta tanto da proacutepria representaccedilatildeo quanto do objeto resumindo-se agraves modificaccedilotildees da

faculdade representativa as quais seriam determinadas de algum modo pelo objeto sem no

entanto confundirem-se com ele113

Na explicaccedilatildeo de Cassirer

O ser dado da mateacuteria natildeo significa senatildeo uma coisa a saber que sua

natureza especiacutefica natildeo pode se derivar das puras leis formais do

conhecimento o modo como se daacute isto eacute o processo mediante o qual o

dado se cria traz consigo pelo contraacuterio a ideia de uma causa transcendente

que eacute a que ldquodaacuterdquo algo ideia que necessariamente se deve descartar desde

logo laacute onde se trata simplesmente de definir as condiccedilotildees ldquointerioresrdquo da

representaccedilatildeo114

Por conseguinte a coisa em si soacute seria representaacutevel com a exclusatildeo da

forma da representaccedilatildeo o que eacute inconcebiacutevel Apesar disso para Reinhold o conceito

intelectual de coisa em si natildeo pode ser simplesmente eliminado mas tem de permanecer como

conceito de um objeto em geral um ente loacutegico ainda que natildeo dotado de realidade115

De

acordo com isso natildeo se poderaacute pensaacute-la como algo individualizado e realmente existente

pois desse modo seraacute transformada em representaccedilatildeo No entanto diz Reinhold a coisa em si

tambeacutem natildeo pode ser negada sendo ela o proacuteprio objeto naquilo que natildeo pode ser

representado o fundamento exterior da mateacuteria da representaccedilatildeo Da coisa em si pode-se

dizer que natildeo eacute representaacutevel natildeo adicionando a ela nenhum predicado positivo mas tambeacutem

que eacute indispensaacutevel agrave representaccedilatildeo jaacute que sem ela natildeo haveria a mateacuteria tatildeo necessaacuteria

quanto a forma Assim a coisa em si natildeo seria um ente real mas o conceito mais abstrato de

algo que natildeo pode ser representado um sujeito sem predicados Reinhold entatildeo extrai o

seguinte axioma ldquoAquilo que natildeo possa ser representado sob a forma da representaccedilatildeo eacute

111

REINHOLD op cit sect XVII p 191 112

Ibidem p 192 113

Reinhold ilustra este ponto do seguinte modo ldquoQuem quiser ter uma imagem intuitiva da diferenccedila entre

mateacuteria e objeto de uma representaccedilatildeo pense numa aacutervore a uma distacircncia que torne impossiacutevel divisar qual a

sua espeacutecie forma e tamanho assim como as suas qualidades mais proacuteximas Aproxime-se entatildeo pouco a

pouco da aacutervore nessa mesma proporccedilatildeo a sua representaccedilatildeo iraacute adquirindo mais e mais mateacuteria A mateacuteria da

sua representaccedilatildeo ir-se-aacute modificando aumentando enquanto que o objeto em si permaneceraacute sempre o mesmordquo

Ibidem sect VX p 183 (grifos do autor) 114

CASSIRER op cit p 68 (grifos do autor) 115

REINHOLD op cit sect XVII p 193

- 55 -

absolutamente irrepresentaacutevelrdquo116

O princiacutepio da consciecircncia definido como a conexatildeo de

elementos distintos na unidade de um intelecto seraacute o alicerce uacuteltimo da filosofia elementar

de Reinhold que natildeo poderia ser suprido por nenhuma coisa em si Por meio desse princiacutepio

a representaccedilatildeo eacute deduzida da consciecircncia que eacute diz Cassirer ldquo[] o fundamento da filosofia

elementar fundamento que natildeo pode sem incorrer em um ciacuterculo vicioso apoiar-se por sua

vez em nenhum outro princiacutepio filosoficamente demonstraacutevelrdquo117

Gottlob E Schulze tambeacutem acrescentou ideias importantes ao debate Em

seu texto Aenesidemus oder uumlber die Fundamente der von dem Hrn Prof Reinhold in Jena

gelieferten Elementar-philosophie publicado em 1792 ele critica a obra de Reinhold em uma

perspectiva ceacutetica visando atingir a filosofia de Kant No fim de contas como mostra

Cassirer o ceticismo de Schulze e o pensamento de Reinhold movem-se no mesmo terreno a

saber o de encontrar o primeiro princiacutepio evidente da filosofia e que com base nos seus

proacuteprios fundamentos a criacutetica kantiana deveria fornecer118

Schulze insiste no erro que

significa pressupor a coisa em si como fundamento dos fenocircmenos o que implicaria utilizar a

causalidade para aleacutem da experiecircncia isto eacute indevidamente Com Schulze o impasse jaacute

apontado por Jacobi fica ainda mais claro e evidente a coisa em si teria necessariamente de

estar pressuposta mas ao mesmo tempo natildeo se poderia afirmar absolutamente nada sobre

ela como por exemplo que existisse que causasse os fenocircmenos e nem mesmo isto a saber

que estivesse realmente pressuposta Permanece entatildeo de fundo e difusamente a questatildeo de

saber em que se apoiaraacute a aparecircncia fenomecircnica sem algo que seja de algum modo sua

fundaccedilatildeo Nesse sentido Schulze escreve em sua obra Kritik der theoretischen Philosophie

Se por conseguinte o que a criacutetica da razatildeo alega saber acerca dos

fundamentos da experiecircncia eacute um conhecimento real teraacute de reputar como

absolutamente falsa sua afirmaccedilatildeo de que toda visatildeo verdadeira de nosso

espiacuterito se circunscreve simplesmente aos objetos da experiecircncia Ao

contraacuterio se essa afirmaccedilatildeo fosse exata toda visatildeo das fontes da experiecircncia

como um todo teria de ser considerada como uma vazia aparecircncia119

No Aenesidemus Schulze descreve de modo claro e expliacutecito o embaraccedilo

que surge na filosofia criacutetica em funccedilatildeo da afirmaccedilatildeo de que a coisa em si tem de estar

necessariamente pressuposta na base de todo fenocircmeno e simultaneamente que os

conhecimentos possiacuteveis agrave sensibilidade ao entendimento e agrave razatildeo referem-se somente agrave

116

Ibidem p 195 (grifos do autor) 117

CASSIRER op cit p 61(grifos do autor) 118

CASSIRER op cit p 81 119

Apud CASSIRER op cit p 89

- 56 -

experiecircncia Para ele se for realmente assim deve-se concluir que todo conhecimento eacute

apenas aparecircncia para aleacutem da qual absolutamente nada se pode afirmar120

Nesse caso

resume Cassirer ldquoO resultado da Criacutetica da razatildeo pura consiste em que soacute podemos chegar a

um conhecimento seguro e necessaacuterio dos objetos da experiecircncia e que bdquotodo conhecimento

das coisas baseado no simples e puro entendimento ou na razatildeo pura eacute mera aparecircncia‟rdquo121

No entanto conforme Schulze a conclusatildeo de Kant eacute contraacuteria a isso pois este natildeo admite

que as representaccedilotildees sejam vazias e as apresenta como a uniatildeo da mateacuteria que seria externa

com a forma interna ao sujeito Assim as intuiccedilotildees natildeo seriam vistas como mera aparecircncia

por Kant e a existecircncia de objetos externos que afetam os sentidos seria aquilo que garantiria

o realismo empiacuterico ao lado do idealismo transcendental Nas palavras de Schulze

Embora pois a criacutetica da razatildeo afirme que todas as propriedades que

constituem a intuiccedilatildeo de um corpo apenas pertencem ao seu fenocircmeno natildeo

pretende com isso ter transformado o conhecimento sensorial em pura

aparecircncia ou ter anulado em absoluto o conhecimento da realidade

objectiva de certos objetos exteriores a noacutes antes deriva o que haacute de

acidental e mutaacutevel no nosso conhecimento da influecircncia destes objetos

sobre a alma humana122

A investigaccedilatildeo transcendental teria entatildeo de encontrar um fundamento

para a experiecircncia que natildeo fosse ele mesmo objeto de experiecircncia123

Embora Kant inicie a

Criacutetica da razatildeo pura afirmando que todo conhecimento comeccedila com objetos que afetam os

sentidos no desenvolvimento do seu pensamento ele tornaria essa afecccedilatildeo impossiacutevel Na

interpretaccedilatildeo de Delbos isso para Schulze significa que ldquoEm consequecircncia a proposiccedilatildeo

inicial da Criacutetica resulta desmentida pela Criacutetica mesmardquo124

Segundo Schulze Kant parte no

entanto da certeza da existecircncia de coisas em si que afetam os sentidos fundamentando com

ela os limites da faculdade de conhecer Soacute assim eacute que teria podido explicar e tornar

compreensiacutevel a origem dos objetos da experiecircncia e ao mesmo tempo demonstrar a

necessidade de uma fonte interna das representaccedilotildees distinta daquela fonte externa Na

concepccedilatildeo de Schulze resultam daiacute uma peticcedilatildeo de princiacutepio e uma anulaccedilatildeo de resultados

A proacutepria criacutetica da razatildeo avanccedila a proposiccedilatildeo todo o conhecimento

humano comeccedila com a influecircncia de objectos objectivamente existentes

sobre os nossos sentidos e estes objectos proporcionam o primeiro ensejo

120

SCHULZE G E Excerto de Aenesidemus Traduccedilatildeo de Sara Seruya In GIL Fernando (coord) Recepccedilatildeo

da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant (1786-1844) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 1992 p 259-260 121

CASSIRER E op cit p 88 (grifos do autor) 122

SCHULZE GE p 261 (grifos do autor) 123

CASSIRER E op cit p 88 124

DELBOS op cit p 147 (traduccedilatildeo nossa)

- 57 -

para que nosso acircnimo se manifeste natildeo soacute sem qualquer prova e como

proposiccedilatildeo em si totalmente assente e incontestavelmente certa e refutando

portanto os fantasmas do cepticismo e do idealismo atraveacutes de uma

proposiccedilatildeo aceite a modo de peticcedilatildeo cuja verdade ambos negavam mas

tambeacutem os seus proacuteprios resultados anulam completamente a verdade dessa

proposiccedilatildeo admitia a modo de peticcedilatildeo125

Schulze critica ainda a aplicaccedilatildeo do conceito de causalidade agraves coisas em

si como um uso indevido de um conceito puro Os objetos fora do sujeito teriam de ser

capazes de agir sobre ele isto eacute possuir causalidade sobre nosso intelecto para que

formaacutessemos representaccedilotildees deles Nesse caso poreacutem a causalidade seria atributo dos

objetos na condiccedilatildeo de coisas fora de noacutes e em si o que se oporia a todo o edifiacutecio da criacutetica

kantiana e faria as consequecircncias se voltarem contra as premissas126

O mesmo ocorre com a

categoria da existecircncia que natildeo pode ser aplicada a objetos que estejam fora do tempo No

entanto diz Schulze embora seja certo que o objeto para aleacutem das representaccedilotildees natildeo eacute uma

intuiccedilatildeo ele natildeo pode por isso ser um mero nada isto eacute ldquodeve ser algo de realiter distinto e

independente das mesmasrdquo127

o que estaacute completamente excluiacutedo do sistema kantiano Natildeo

se poder aplicar a esse algo os conceitos de causa ou de existecircncia e escreve Schulze ldquo[] se

eacute certa a deduccedilatildeo transcendental das categorias que a criacutetica da razatildeo apresentou tambeacutem eacute

errado e falso um dos princiacutepios fundamentais da mesma que todo o conhecimento comeccedila

com a acccedilatildeo de objectos objectivos sobre o nosso acircnimordquo128

Por conseguinte Kant deveria

ter demonstrado que o intelecto natildeo eacute a fonte uacutenica de todo conhecimento e explicado o

porquecirc disso

No mesmo sentido jaacute argumentado por Jacobi Schulze conclui que a

criacutetica kantiana acaba por demolir a possibilidade de todo e qualquer conhecimento

verdadeiro Sobre isso Cassirer afirma que ldquoNa trajetoacuteria dos pensamentos fundamentais

desenvolvidos na obra Aenesidemus haacute plena clareza sobre um ponto a saber o de que toda

duacutevida ilimitada toda duacutevida que recai sobre a totalidade do saber destroacutei-se a si mesma e

perde seu proacuteprio sentido e razatildeo de serrdquo129

Para que natildeo se reduza a mera aparecircncia o

conhecimento teraacute entatildeo de receber sua realidade de algo externo ao puro intelecto130

No

entanto ao se defender a incognoscibilidade da coisa em si e ao mesmo tempo a causalidade

como um princiacutepio subjetivo de conexatildeo de representaccedilotildees natildeo se poderaacute pressupor uma

125

SCHULZE op cit p 261 (grifos do autor) 126

Ibidem p 262 127

Ibidem p 263 128

Ibidem loc cit 129

CASSIRER E op cit p 79 (grifos do autor) 130

SCHULZE G E op cit p 264

- 58 -

accedilatildeo causal entre estas e algo distinto delas ldquoPoisrdquo diz Schulze ldquoo que me eacute totalmente e em

todos os seus atributos e propriedades desconhecido tambeacutem dele natildeo posso saber que

existe que se encontra realmente em uma ligaccedilatildeo comigo e que eacute capaz de efectuar ou

produzir algordquo131

Como resultado todo o conhecimento humano teraacute de ser considerado mera

aparecircncia e o idealismo radical que natildeo concede existecircncia real aos fenocircmenos natildeo estaraacute

refutado132

A contribuiccedilatildeo de Jacob S Beck a essa discussatildeo estaacute na sua

argumentaccedilatildeo tambeacutem em diaacutelogo criacutetico com Reinhold sobre o verdadeiro princiacutepio do

conhecimento Como informa Cassirer Beck considera que aquelas contradiccedilotildees e

dissonacircncias que parecem surgir no texto kantiano satildeo resultado natildeo da incompatibilidade

entre as ideias mas do modo exigido pela exposiccedilatildeo que deve ser paulatina e observar a

adaptaccedilatildeo do leitor a um ponto de vista totalmente novo133

A origem e o fundamento de todo

o conhecimento seria o ato original de representar jaacute descrito por Kant mas cujo ponto

central natildeo teria sido ainda adequadamente evidenciado134

Beck julga importante para isso

diferenciar as categorias que ele entende como representaccedilotildees originais dos simples

conceitos de objetos Ao se pensaacute-las como conceitos eacute que surgiriam o problema de saber

como a representaccedilatildeo se liga ao objeto e com isso todas as duacutevidas com relaccedilatildeo agrave coisa em

si Segundo Cassirer Beck revela de modo magistral a totalidade do sistema kantiano e

demonstra que natildeo haacute qualquer relaccedilatildeo entre a coisa em si e o objeto do conhecimento

tratando-se entatildeo de um problema vazio pois o proacuteprio nexo que aiacute se busca por assim dizer

natildeo tem nada dentro Como ele afirma

O autecircntico meacutetodo kantiano o meacutetodo transcendental natildeo consiste

simplesmente em deslocar agrave oacuterbita da consciecircncia os elementos que ateacute

agora se situavam na oacuterbita das coisas mas se apoia sobre a ideia de que a

separaccedilatildeo e a divisatildeo que serve de base a tudo isso responde a um conceito

falso e contraditoacuterio135

Sem que se perceba esse ponto fundamental da teoria kantiana diz Beck

natildeo se esclarece o modo como as categorias formam a base dos conceitos e os tornam

131

Ibidem loc cit 132

Ibidem p 265-266 133

CASSIRER op cit p 92 134

BECK J S Exerto de Erlaumluternder Auszug aus den Schriften des Herrn Professor Kant (Extracto elucidativo

dos escritos do Sr Prof Kant) Traduccedilatildeo de Ana Maria Benite In GIL Fernando (coord) Recepccedilatildeo da Criacutetica

da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant (1786-1844) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1992 p

283 135

CASSIRER op cit p 95

- 59 -

compreensiacuteveis O princiacutepio maacuteximo do conhecimento natildeo seria uma representaccedilatildeo

conceitual mas um postulado concebido como o ldquorepresentar originariamenterdquo136

Esse ato

de representar natildeo se identificaria com a representaccedilatildeo de um objeto qualquer que jaacute seria um

conceito determinado e com caracteriacutesticas essenciais Seria antes algo como uma

representaccedilatildeo original da geometria por exemplo que natildeo se ocupa da explicaccedilatildeo do espaccedilo

nem o busca em outra ciecircncia mas simplesmente o postula137

Delbos explica que Beck

concordava com a tese kantiana de afecccedilatildeo dos sentidos mas natildeo realizada por coisas em si e

sim por fenocircmenos O princiacutepio dessa afecccedilatildeo natildeo proviria de quaisquer tipos de entidades

mas do ato mesmo de representar Nas palavras de Delbos ldquo[] esse ato ligando

sinteticamente as representaccedilotildees segundo o princiacutepio de causalidade torna-as objetivas por

um tipo de reconhecimento originaacuterio e constitui assim os fenocircmenos pelos quais somos

afetadosrdquo138

O espaccedilo segundo Beck eacute ele proacuteprio a siacutentese originaacuteria do homogecircneo isto eacute

uma representaccedilatildeo primordial natildeo existente antes mas criada nesse mesmo ato que eacute mais

exatamente um intuir Para exemplificar esse ponto Beck afirma que

A representaccedilatildeo do espaccedilo eacute muito diferente deste representar original pois

ela jaacute eacute conceito Tenho um conceito de linha recta isto eacute algo de diferente

de traccedilar eu uma linha recta (sintetizar originariamente) Tenho tambeacutem o

conceito de um bi-acircngulo rectiliacuteneo embora neste caso natildeo haja

representaccedilatildeo original139

De acordo com isso a perspectiva correta a ser adotada eacute a de que o ato

de unificaccedilatildeo do muacuteltiplo na unidade da consciecircncia natildeo eacute dado por meio de um conceito A

conexatildeo do muacuteltiplo seria dada por um ato que natildeo estaria presente de antematildeo em nenhum

objeto e por meio do qual seriam formados esse mesmo objeto e o proacuteprio muacuteltiplo Entatildeo

diz Cassirer para Beck bastaria abrir os olhos do entendimento ldquoisto eacute restabelecer as

condiccedilotildees a que se ajusta a possibilidade da experiecircncia a uacutenica acerca da qual cabe emitir

juiacutezos sobre objetos para que se evaporem como vazios fantasmas de nossa proacutepria fantasia

as formas que no iniacutecio nos amedrontavamrdquo140

O esquematismo transcendental eacute outra atividade originaacuteria chamada por

Beck de reconhecimento original141

que tambeacutem natildeo conduz a um conceito de objeto mas a

outro tipo de representaccedilatildeo primordial a saber o tempo Como ele explica ldquoEacute atraveacutes desta

136

BECK op cit p 283 137

Ibidem loc cit 138

DELBOS op cit P 149 (traduccedilatildeo nossa) 139

BECK op cit p 284 140

CASSIRER op cit p 96 141

BECK op cit p 285

- 60 -

fixaccedilatildeo do tempo que eu fixo aquela siacutentese original e obtenho o conceito de uma determinada

forma []rdquo142

Natildeo se poderia falar em um muacuteltiplo dado antes da siacutentese originaacuteria e do

reconhecimento ou seja antes que o entendimento originalmente crie aquela unidade objetiva

sinteacutetica Perder essa perspectiva seria perder a clareza e cair em constantes embaraccedilos ldquopoisrdquo

diz Beck ldquofaccedila ele o que fizer nunca mais conseguiraacute achar uma conexatildeo entre a

representaccedilatildeo e o objetordquo143

Cassirer contribui para o esclarecimento desse ponto

Nesta expressatildeo de sua ideia fundamental Beck natildeo faz outra coisa que

seguir as indicaccedilotildees do proacuteprio Kant quem ao reduzir a unidade analiacutetica do

ldquoconceptus communisrdquo agrave unidade sinteacutetica da apercepccedilatildeo assinala esta

expressamente como o ldquoponto mais altordquo a que se deve referir todo o

emprego do entendimento inclusive toda a loacutegica e a filosofia

transcendental Nesta natildeo se trata de predicar ldquonotas caracteriacutesticasrdquo de uma

existecircncia dada ou de um conceito dado mas de determinar o conceito

mesmo de objeto com todas as caracteriacutesticas que lhe satildeo proacuteprias mediante

uma ldquoatribuiccedilatildeo originaacuteriardquo144

Por conseguinte o uso do entendimento eacute anterior aos conceitos isto eacute a

siacutentese da representaccedilatildeo eacute anterior agrave anaacutelise conceitual Assim pensando diz Beck ningueacutem

teraacute de se preocupar com a constituiccedilatildeo do sujeito ou do objeto pois estaraacute claro que os

conceitos ancoram-se no representar originaacuterio Em suma ele escreve ldquoUsando as palavras da

Criacutetica isso quer dizer portanto a unidade analiacutetica da consciecircncia (no conceito) pressupotildee

uma unidade original sinteacutetica (no acto originaacuterio de representar) ou tambeacutem toda anaacutelise soacute

eacute possiacutevel apoacutes uma siacutenteserdquo145

Desse modo para Beck eacute necessaacuterio que se escolha de

antematildeo se o objeto seraacute colocado no iniacutecio ou no fim da investigaccedilatildeo pois a contraposiccedilatildeo

estrutural entre essas perspectivas determinaraacute todo o restante Como explica Cassirer

O decisivo e determinante para todas as conclusotildees posteriores a que se

chegue eacute saber se a reflexatildeo filosoacutefica toma o conceito de objeto como ponto

de partida ou como meta No primeiro caso haacute para noacutes uma realidade

existente por si formada por relaccedilotildees e ordenaccedilotildees fixas tudo o que

podemos dizer acerca delas ao atribuir-lhes existecircncia no tempo e no

espaccedilo grandeza e nuacutemero substancialidade e causalidade seratildeo

simplesmente predicados dedutivos que a posteriori atribuiacutemos a essa

realidade [] Em seu sentido criacutetico natildeo cabe indagar o que o objeto

desligado de toda relaccedilatildeo com qualquer saber possiacutevel eacute em si e para si mas

apenas o que para o saber mesmo significa o postulado da validade

objetiva146

142

Ibidem loc cit 143

Ibidem p 286 144

CASSIRER op cit p 99 (grifos do autor) 145

BECK op cit p 287 146

CASSIRER op cit p 97 (grifos do autor)

- 61 -

Assim como Kant Beck considera que o entendimento eacute uma faculdade

de pensar natildeo de intuir o que significa que representa os objetos atraveacutes de conceitos Na sua

concepccedilatildeo a representaccedilatildeo conceitual de um objeto exige um ponto de referecircncia e exige

tambeacutem que ele seja subsumido em determinadas caracteriacutesticas Diferentemente na

representaccedilatildeo original o entendimento engendra a unidade objetiva sinteacutetica que deve ser

entatildeo transferida para a unidade analiacutetica de um conceito para que possa ser dada a

representaccedilatildeo de um objeto147

Interpretar o tempo o espaccedilo e a realidade das coisas como se

fossem dados antes da siacutentese originaacuteria do entendimento segundo Beck eacute falso e contraacuterio

ao que o pensamento criacutetico se propocircs Daiacute proviriam inclusive os pensamentos vagos

confusos e ininteligiacuteveis que lhe foram atribuiacutedos ldquoPoisrdquo ele escreve

se o espaccedilo for um dado antes da representaccedilatildeo original potildee-se a questatildeo de

o que ele eacute e somos portanto levados a consideraacute-lo como um absurdo

existente Igualmente nos surge a questatildeo da essecircncia das coisas (Sachheit)

se natildeo atendermos agrave representaccedilatildeo original desta categoria148

A dificuldade estaria em natildeo se poder expor a representaccedilatildeo original a

natildeo ser por meio de conceitos Por isso Beck considera necessaacuterio insistir na afirmaccedilatildeo de

que o princiacutepio supremo do entendimento eacute o postulado da representaccedilatildeo originaacuteria Com

isso natildeo surgiriam duacutevidas sobre a constituiccedilatildeo do sujeito dos objetos ou das relaccedilotildees entre

um e outros uma vez que diz ele ldquoNatildeo eacute numa articulaccedilatildeo de conceitos que aqui se pensa

mas numa composiccedilatildeo originaacuteria que previamente possibilita todos os conceitosrdquo149

Inverter

as posiccedilotildees seria confundir-se e natildeo atinar em que a filosofia criacutetica corresponde explica

Cassirer ldquo[] ao pensamento que daacute firmeza e compreensibilidade a qualquer conceito por

ele empregado ao reduzi-lo ao uso originaacuterio do entendimento []rdquo150

Dessa forma eacute

fundamental ao pensamento criacutetico a convicccedilatildeo de que a realidade natildeo pode existir sem as

relaccedilotildees dadas pela unidade sinteacutetica da consciecircncia que satildeo justamente as que criam os

nexos objetivos e necessaacuterios151

Salomon Maimon envolvendo-se tambeacutem na polecircmica caminha no

sentido de uma maior precisatildeo e de um aprofundamento acerca da perspectiva correta a ser

adotada para a compreensatildeo da filosofia kantiana A questatildeo principal a que nos remetem

suas reflexotildees liga-se ao modo como a siacutentese do muacuteltiplo poderaacute gerar a objetividade de um

147

BECK op cit p 286 148

Ibidem loc cit 149

Ibidem p 287 150

CASSIRER op cit p 99 151

Ibidem loc cit

- 62 -

ponto de vista real e natildeo apenas formalmente Segundo Cassirer esse filoacutesofo parte do

conceito de objetividade e se afasta das disputas sobre a coisa em si considerada por ele

apenas como o conceito simboacutelico de algo contraditoacuterio e irrealizaacutevel Para Maimon os

problemas surgiratildeo somente se se quiser dar um caraacuteter real e positivo agrave coisa em si

pretendendo-se fundamentar e garantir a objetividade por meio dela Nas palavras de Cassirer

ldquo[] seja esse siacutembolo o que se queira natildeo se pode duvidar de que o que eacute e significa

bdquoobjetividade‟ para o saber pode determinar-se e avaliar-se partindo do proacuteprio saberrdquo152

Maimon refletiu sobre esse ponto em sua obra Versuch uumlber die transzendentalphilosophie

de 1790 buscando uma soluccedilatildeo que harmonizasse as exigecircncias do ceticismo do dogmatismo

e do criticismo Na investigaccedilatildeo kantiana acerca da possibilidade dos juiacutezos sinteacuteticos a

priori ele vislumbra toda uma seacuterie de questotildees filosoacuteficas tradicionais embutidas no

problema mais geral de estabelecer a ligaccedilatildeo entre os planos formal e material do

conhecimento Nesse sentido afirma Paul Franks

Maimon discerniu uma uacutenica estrutura nos problemas fundamentais da

filosofia medieval da primeira filosofia moderna e da kantiana ldquoA questatildeo

quid juris [isto eacute a questatildeo sobre a legitimidade de aplicar as formas do

entendimento ao que eacute sensivelmente dado abordada na deduccedilatildeo

transcendental de Kant] eacute uma e a mesma importante questatildeo que foi tratada

por todos os filoacutesofos predecessores a saber a explicaccedilatildeo da concordacircncia

entre alma e corpo ou a explicaccedilatildeo da origem do mundo (em relaccedilatildeo agrave sua

mateacuteria) a partir de uma inteligecircnciardquo153

O objetivo e o subjetivo segundo Maimon distinguem-se como o

mutaacutevel e o imutaacutevel no conhecimento bastando entatildeo que se separem na consciecircncia os

conteuacutedos permanentes dos variaacuteveis O que permanece invariaacutevel na faculdade de conhecer

seria o objetivo e o que muda junto com ela seria o subjetivo desaparecendo entatildeo as

questotildees sobre o modo como sujeito e objeto se vinculam No dizer de Cassirer ldquoOs dois

termos natildeo podem portanto logicamente isolar-se um do outro nem caracterizar-se cada um

por si com base no que possam representar fora da capacidade de conhecer Apenas se coloca

e se pode colocar como problema bdquoreal‟ a relaccedilatildeo entre ambosrdquo154

Na medida em que o

fundamento do conhecimento eacute absolutamente incognosciacutevel diz Maimon natildeo importa se eacute

situado fora ou dentro do sujeito A justificaccedilatildeo da divisatildeo entre o que eacute objetivo e o que eacute

subjetivo tem de ser buscada portanto no proacuteprio conhecimento ldquoAssimrdquo escreve Cassirer

152

Ibidem p 108 (grifos do autor) 153

FRANKS P op cit p 105-106 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 154

CASSIRER op cit p 109 (grifos do autor)

- 63 -

encontramos por exemplo que prescindindo de todas as ideias que

possamos formar sobre a origem das percepccedilotildees dos sentidos ou da intuiccedilatildeo

do espaccedilo o momento do espacial representa o ldquoobjetivordquo com respeito agrave

qualidade sensorial das sensaccedilotildees por ser conhecido como o relativamente

estaacutevel em contraposiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees das impressotildees transmitidas pelos

sentidos155

O ponto central da discussatildeo no entender de Maimon eacute o de explicitar a

legitimidade da aplicaccedilatildeo das categorias aos objetos bem como a formulaccedilatildeo das proposiccedilotildees

a priori referidas a elas Em Versuch uumlber die transzendentalphilosophie em uma complexa

argumentaccedilatildeo repleta de conceitos matemaacuteticos esse filoacutesofo expotildee sua maneira de ver como

se daacute aquela aplicaccedilatildeo156

De fato como afirma Franks a atenccedilatildeo de Maimon agraves ciecircncias

exatas mais precisamente agrave fiacutesica matematizada eacute uma caracteriacutestica que o diferencia de

outros poacutes-kantianos157

Com efeito para Maimon a representaccedilatildeo sensiacutevel deve ser

entendida como um certo quantum de extensatildeo ou de grau de intensidade chamado por ele de

diferencial Assim por exemplo a representaccedilatildeo da cor vermelha natildeo deve ser entendida

como extensa ou como algo de natureza matemaacutetica mas como um ponto fiacutesico ou entatildeo

como o diferencial de uma extensatildeo ou de um grau finito de qualidade158

Por conseguinte os

elementos da percepccedilatildeo natildeo se distinguiriam pela grandeza mas por algo qualitativo e

determinado Cassirer explica que uma vez que o tempo e o espaccedilo satildeo apenas esquemas de

uma possiacutevel diferenccedila entre objetos esse elemento qualitativo eacute o que tornaria possiacuteveis as

distinccedilotildees no interior da extensatildeo159

De outra perspectiva segundo Maimon apenas por si

mesmas as representaccedilotildees sensiacuteveis natildeo constituem nenhuma consciecircncia que surge somente

pela atividade de pensar Para ele eacute certo que as representaccedilotildees sensiacuteveis satildeo assimiladas

passivamente mas a consciecircncia que temos delas indica uma accedilatildeo do sujeito e natildeo o saber

passivo de algo externo Entatildeo ele escreve

A palavra representaccedilatildeo (Vorstellung) usada pela primitiva consciecircncia

induz aqui em erro pois na verdade natildeo se trata de uma representaccedilatildeo isto

eacute de um mero acto de tornar presente o que natildeo eacute presente mas muito mais

de uma apresentaccedilatildeo (Darstellung) isto eacute de apresentar como existente o

que anteriormente natildeo era160

A consciecircncia de algo exigiria a accedilatildeo da imaginaccedilatildeo pela qual muacuteltiplas

155

Ibidem p 110 156

MAIMON S Excerto de Versuch uumlber die transzendentale Philosophie Traduccedilatildeo de Maria Helena

Rodrigues de Carvalho In GIL Fernando (coord) Recepccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos

sobre Kant (1786-1844) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1992 p 223 et seq 157

FRANKS P op cit p 105 158

MAIMON S op cit p 223 159

CASSIRER op cit p 125-126 160

MAIMON S op cit p 223 (grifos do autor)

- 64 -

representaccedilotildees sensiacuteveis singulares seriam reunidas e ordenadas segundo o tempo e o espaccedilo

Esse seria o modo de surgimento de uma intuiccedilatildeo empiacuterica numa espeacutecie de adiccedilatildeo contiacutenua

de diferenciais de intensidade ou de extensatildeo ateacute que se chegasse agravequele exigido pela

consciecircncia Eacute como no caso do movimento acelerado em que as velocidades somam-se

paulatinamente e determinam uma velocidade maior161

Natildeo obstante essa adiccedilatildeo natildeo

ocorreria pela comparaccedilatildeo entre as representaccedilotildees mas diz Maimon ldquo[] apenas pelas leis

gerais da natureza de Newton nomeadamente que nenhum efeito pode ser anulado por si

proacuteprio sem um efeito que lhe eacute contraacuteriordquo162

A funccedilatildeo do entendimento nesse processo eacute a

de relacionar os objetos jaacute dados na intuiccedilatildeo por meio dos seus conceitos puros Numa

palavra

A sensibilidade portanto fornece os diferenciais a uma determinada

consciecircncia a imaginaccedilatildeo extrai deles um objeto finito (determinado) da

intuiccedilatildeo o entendimento extrai da relaccedilatildeo destes diversos diferenciais que

satildeo seus objetos a relaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis resultantes163

Na concepccedilatildeo de Maimon os nuacutemenos satildeo exatamente esses

diferenciais enquanto os objetos formados a partir deles satildeo os fenocircmenos Portanto natildeo se

pode afirmar que cada objeto em si tenha um diferencial ou que se refira a um diferencial

mas somente que as relaccedilotildees entre os diversos diferenciais podem ser dadas nas intuiccedilotildees164

ldquoEsses nuacutemenosrdquo diz Maimon ldquosatildeo ideias da razatildeo que como princiacutepios servem para a

explicaccedilatildeo da gecircnese dos objetos segundo certas regras do entendimentordquo165

A diferenciaccedilatildeo

entre duas qualidades sensiacuteveis seria dada como relaccedilatildeo entre diferenciais ou ideias da razatildeo

a priori Este ponto eacute complicado e exige um esclarecimento maior Cassirer observa com

razatildeo que o conceito de diferencial de Maimon parece carregar uma imprecisatildeo sendo

entendido como algo subministrado pelos sentidos como conceitos da razatildeo ou ideias e ainda

como princiacutepios da aplicaccedilatildeo objetiva do entendimento Ele esclarece entatildeo que o conceito de

diferencial possui muacuteltiplas relaccedilotildees pois

Participa da sensaccedilatildeo somente enquanto esta em suas diferenccedilas

quantitativas e em suas gradaccedilotildees oferece agrave consciecircncia antes de tudo o

fenocircmeno da diversidade Mas ao colocar-se a partir de agora a tarefa de

compreender esse fenocircmeno ldquodadordquo manifesta-se ao mesmo tempo a

necessidade de transcender acima disso passando da intuiccedilatildeo e da percepccedilatildeo

empiacutericas a seus ldquoelementosrdquo natildeo intuiacuteveis E nesse processo ao

161

Ibidem p 224 162

Ibidem loc cit 163

Ibidem loc cit 164

Ibidem p 224 165

Ibidem loc cit

- 65 -

remontarmo-nos dos objetos empiacutericos aos princiacutepios de seu nascimento a

diversidade sensorial se converte em uma diversidade racional o

conhecimento dos fenocircmenos se converte em um conhecimento das leis

numecircnicas sobre o qual aqueles fenocircmenos descansam166

Delbos contribui tambeacutem agrave compreensatildeo desse ponto afirmando que

para explicar a presenccedila de um objeto que natildeo sabemos como se produz Maimon retoma o

conceito leibniziano de uma atividade espiritual que age anteriormente a toda consciecircncia

clara O dado puro e simples eacute a ideia de um limite de uma seacuterie dada do qual podemos nos

aproximar como de uma raiz irracional sem jamais atingi-la Assim escreve Delbos Maimon

declara que ldquodo ponto de vista da filosofia criacutetica deve-se falar da coisa em si como a aacutelgebra

fala de radic-a natildeo para determinar com ele um objeto mas para manifestar a impossibilidade de

um objeto correspondente a esse conceitordquo167

Caso um conceito puro do entendimento fosse utilizado por exemplo

para distinguir entre o vermelho e o verde a questatildeo de saber como pode um conceito puro

ser aplicado agrave sensibilidade seria mantida Um conceito puro apenas proporciona a regra e

aponta a gecircnese de um objeto sendo o pensar sua uacutenica funccedilatildeo que eacute a produccedilatildeo da unidade

na multiplicidade Nas palavras de Cassirer

O intelecto em virtude de sua funccedilatildeo caracteriacutestica e peculiar deduz as

diferenccedilas entre as coisas da diversidade dos princiacutepios de que nascem Sua

forma fundamental se situa com efeito na definiccedilatildeo geneacutetica de tal modo

que soacute pode conceber o objetivamente dado sob a forma e conforme a regra

de seu nascimento168

De acordo com isso para Maimon o entendimento natildeo pode pensar

nenhum objeto como jaacute originado mas apenas como estando em formaccedilatildeo processo que ele

denomina ldquodiscorrecircnciardquo169

O termo usado por Maimom eacute flieβend que daacute a ideia de uma

corrente um fluxo que verte num determinado sentido considerado por ele como a

caracteriacutestica da intuiccedilatildeo tanto a priori quanto a posteriori A regra do entendimento que

unifica o muacuteltiplo na intuiccedilatildeo poreacutem natildeo seria dada desse modo mas de uma uacutenica vez170

Esse eacute um ponto importante da concepccedilatildeo de Maimon que evidencia uma visatildeo profunda da

gecircnese da intuiccedilatildeo Ele diferencia a maneira como a intuiccedilatildeo eacute construiacuteda em conexatildeo com

dados externos determinados enquanto o entendimento por seu turno pensa a partir de

166

CASSIRER op cit p 129-130 (grifos do autor) 167

DELBOS op cit p 148 (traduccedilatildeo nossa) 168

CASSIRER op cit p126 169

MAIMON S op cit p 225 170

Ibidem loc cit

- 66 -

conceitos puros e indeterminados Tomando um triacircngulo como exemplo ele explica que o

entendimento pensa a regra de uma soacute vez mas essa regra envolve apenas a relaccedilatildeo geral

entre lados ficando indeterminada a grandeza de cada um deles Diferentemente a construccedilatildeo

do triacircngulo soacute poderaacute ser executada de modo determinado Como ele escreve

Temos pois aqui uma determinaccedilatildeo que natildeo estava contida na regra e que

estaacute necessariamente presa agrave intuiccedilatildeo esta pode mesmo com a manutenccedilatildeo

da mesma regra ou da mesma relaccedilatildeo ser diferente em diferentes

construccedilotildees Consequentemente este triacircngulo em vista de todas as

possiacuteveis construccedilotildees natildeo deve jamais ser pensado pelo entendimento como

jaacute formado mas em formaccedilatildeo isto eacute por discorrecircncia Em contrapartida a

faculdade da intuiccedilatildeo [que de facto eacute regular (regelmaumlβig) mas sem o

discernimento da regra (regelverstaumlndig)] natildeo pode representar regra ou

unidade alguma no muacuteltiplo mas sim o proacuteprio muacuteltiplo deve por isso

pensar os seus objetos natildeo em processo mas como jaacute surgidos171

Daiacute resulta que a intuiccedilatildeo possui uma ordenaccedilatildeo que natildeo ocorre por meio

de nenhuma regra isto eacute sua forma tem de ser pensada como jaacute terminada realizada Assim

fica claro segundo Cassirer que ldquo[] o entendimento natildeo se limita a submeter a suas regras a

priori algo dado a posteriori mas ao contraacuterio o faz nascer conforme a essas regras mesmas

o que constitui a uacutenica maneira de responder agrave questatildeo quid jurisrdquo172

De acordo com isso a sensibilidade natildeo opera qualquer tipo de ligaccedilatildeo a

qual se deve agrave imaginaccedilatildeo No entanto a ligaccedilatildeo realizada por esta se daacute em geral designando

a simultaneidade ou a sucessatildeo de objetos sem especificaacute-los A imaginaccedilatildeo diz Maimon

relaciona os objetos representando um como o antecedente e outro como o consequente no

tempo e no espaccedilo por exemplo mas natildeo determinando a cada um seu lugar especiacutefico de

antecedente ou de consequente Os conceitos puros estabeleceriam somente relaccedilotildees de

unificaccedilatildeo do muacuteltiplo mas para isso precisariam que os distintos elementos fossem

pensados simultaneamente reciprocamente ou unilateralmente173

Entatildeo segundo Maimon

quando o entendimento relaciona partes do muacuteltiplo de forma simultacircnea origina-se daiacute um

conceito pensado natildeo somente em relaccedilatildeo agrave forma mas tambeacutem agrave mateacuteria o que significa que

esta deve de algum modo determinar a simultaneidade da representaccedilatildeo Outra possibilidade

seria o surgimento de um conceito ldquo[] onde a mateacuteria e a forma satildeo da mesma espeacutecie e

consequentemente produzidos por um Actus uacutenico do entendimentordquo174

Esse seria o caso dos

conceitos de causa e efeito cuja identidade de espeacutecie determinaria que quando a primeira eacute

171

Ibidem p 226 (grifos do autor) 172

CASSIRER op cit p 128 173

MAIMON S op cit p 226 174

Ibidem p 227

- 67 -

posta o segundo necessariamente tem de secirc-lo Que uma causa tenha de ter um efeito natildeo

seria algo contido na definiccedilatildeo mas seria a proacutepria definiccedilatildeo desse conceito175

Daiacute decorre que as conexotildees de muacuteltiplos satildeo realizadas pelo

entendimento a partir de formas a priori as quais poreacutem por serem regras gerais soacute por

meio de intuiccedilotildees poderatildeo ser percebidas e adquirir seu significado Para que se possa

afirmar por exemplo que um objeto eacute causa de outro eacute exigida uma regra geral que

estabeleccedila uma dependecircncia entre dois elementos distintos isto eacute que vincule de um modo

especial os objetos de duas intuiccedilotildees No entanto a pura e simples regra natildeo informaraacute

especificamente qual eacute causa e qual eacute efeito O mesmo poderia ser dito de quaisquer

conceitos pois diz Maimon ldquo[] a sua essentia nominalis eacute determinada enquanto sua

essentia realis permanece duvidosa ateacute ter sido apresentada na intuiccedilatildeordquo176

Portanto a

realidade do conceito de causalidade eacute descoberta quando o entendimento encontra na

intuiccedilatildeo uma representaccedilatildeo que sempre traz outra consigo diferente de si A forma dos juiacutezos

hipoteacuteticos que estabelece o conceito da dependecircncia de um consequente em relaccedilatildeo a um

antecedente seria nesse caso aplicada a dois objetos quaisquer Nesse sentido escreve

Maimon

A dependecircncia pode portanto ser concebida sem referecircncia a objetos

determinados (como a forma dos juiacutezos hipoteacuteticos na loacutegica) a causa e o

efeito poreacutem natildeo podem ser concebidos sem referecircncia a objetos

determinados isto eacute a regra do entendimento dos juiacutezos hipoteacuteticos refere-se

meramente a objetos determinaacuteveis mas natildeo determinados a realidade

objetiva dos mesmos poreacutem soacute pode ser demonstrada pela aplicaccedilatildeo a

objetos determinados da intuiccedilatildeo177

Segundo Maimon eacute desse modo que a experiecircncia comprova a

possibilidade dos conceitos do entendimento e que inversamente os conceitos do

entendimento tornam a experiecircncia possiacutevel De um lado os conteuacutedos materiais das

intuiccedilotildees permitem que se note o elemento formal presente nelas isto eacute as formas da

sensibilidade e os conceitos puros que satildeo portanto inatos De outro as conceitos puros e os

juiacutezos natildeo podem ser concebidos empiricamente e isso demonstra que devem ser ligados agrave

experiecircncia para ganharem sentido178

A possibilidade das intuiccedilotildees seria como a da

construccedilatildeo de um triacircngulo isto eacute anterior agrave experiecircncia e em si Nas palavras de Maimon

175

Ibidem loc cit 176

Ibidem loc cit 177

Ibidem p 228 178

MAIMON S op cit p 230

- 68 -

Quando por exemplo se emite esse juiacutezo vermelho eacute diferente de verde

imagina-se na intuiccedilatildeo primeiro vermelho e em seguida verde depois do

que se comparam os dois e daqui resulta este juiacutezo Mas como eacute que

havemos de tornar concebiacutevel essa comparaccedilatildeo Natildeo pode ocorrer durante a

representaccedilatildeo do vermelho e a representaccedilatildeo do verde179

Por conseguinte todos os conceitos e juiacutezos seriam problemaacuteticos ateacute

que tivessem uma aplicaccedilatildeo concreta e sua possibilidade estaria nessa relaccedilatildeo com

experiecircncia Como ele explica

Uma figura (espaccedilo limitado) eacute possiacutevel em si Para compreender isto tenho

de construir uma figura particular por exemplo um ciacuterculo um triacircngulo

etc Estas figuras particulares poreacutem soacute satildeo possiacuteveis atraveacutes do conceito

geral de figura porque natildeo satildeo pensaacuteveis sem ele mas a inversa natildeo eacute

verdadeira porque uma figura [conceito] tambeacutem eacute possiacutevel sem esta

determinaccedilatildeo particular180

Eacute nesse sentido que se poderia afirmar que o entendimento produz por

meio de regras gerais os objetos que seratildeo pensados depois por um conceito Para isso

segundo Maimon satildeo necessaacuterias a intuiccedilatildeo a mateacuteria do pensamento e as formas deste que

satildeo as condiccedilotildees dos objetos181

Conforme a exegese de Cassirer na concepccedilatildeo maimoniana

se a intuiccedilatildeo se referisse diretamente a um objeto externo dado poderia ser tomada como

simples quimera poreacutem o objeto de que se trata natildeo deve ser tomado como dado mas sim

como pensado Nesse caso diz Cassirer a intuiccedilatildeo deve ser entendida ldquo[] como aquela

modificaccedilatildeo da capacidade de conhecimento que natildeo se refere a nada fora de si mesma como

seria a relaccedilatildeo da representaccedilatildeo a seu objeto mas eacute por si mesma o objeto sobre o qual

recairdquo182

A indagaccedilatildeo acerca da legitimidade da aplicaccedilatildeo dos conceitos agrave mateacuteria

intuitiva eacute respondida segundo Maimon com a consideraccedilatildeo de que os conceitos natildeo satildeo

aplicados diretamente agrave intuiccedilatildeo mas agrave forma a priori do tempo Sobre esse ponto ele afirma

que ldquo[] a eacute a e natildeo eacute b natildeo porque aquele tenha uma determinaccedilatildeo material que este natildeo

tem (porque este na medida em que eacute algo a posteriori natildeo pode ser subsumido na regra a

priori) mas porque tem uma determinaccedilatildeo formal que b natildeo temrdquo183

A determinaccedilatildeo formal

nesse caso eacute o anteceder ou suceder no tempo que eacute comum a ambos os objetos os quais

agem como o antecedente e o consequente de um juiacutezo condicional Na visatildeo de Maimon

179

Ibidem loc cit 180

Ibidem loc cit 181

Ibidem p 232 182

CASSIRER op cit 115 (grifos do autor) 183

MAIMON S op cit p 233 (grifos do autor)

- 69 -

ldquoPor este processo o entendimento tem capacidade natildeo soacute de pensar objetos em geral mas de

conhecer objetos determinadosrdquo184

Com essa argumentaccedilatildeo estaria respondida a questatildeo de saber com que

direito se aplicam os conceitos a priori aos objetos sem conceitos a priori natildeo poderiacuteamos

pensar objetos apenas intuiacute-los Do mesmo modo sem intuiccedilotildees poderiacuteamos pensar objetos

em geral mas natildeo conheceriacuteamos objetos determinados Por conseguinte sem a concorrecircncia

de ambas essas fontes nenhum objeto poderia ser de fato conhecido A faculdade de julgar

entendida como a capacidade de descobrir o geral no particular ou de subsumir o particular no

geral realizaria a mediaccedilatildeo entre intuiccedilotildees e conceitos Sem ela diz Maimon teriacuteamos as

partes integrantes de um juiacutezo ldquo[] mas natildeo teriacuteamos nenhum meio de levar isto a cabo de

uma forma justa porque os conceitos gerais ou regras a priori e os objectos particulares da

intuiccedilatildeo a posteriori satildeo absolutamente heterogecircneosrdquo185

Natildeo obstante o fundamento dessa

aplicaccedilatildeo da faculdade de julgar seria desconhecido embora a aplicaccedilatildeo mesma seja tomada

como fato da intuiccedilatildeo Poreacutem o importante natildeo seria provar e explicar essa aplicaccedilatildeo mas

compreender sua possibilidade por meio de um conhecimento a priori186

Em suma como

escreve Cassirer ldquo[] a Criacutetica da razatildeo pura entende por experiecircncia pelo conhecimento a

posteriori natildeo um conhecimento determinado pelas coisas em si mas um conhecimento natildeo

determinado pelas simples leis da capacidade de conhecerrdquo187

No fim de contas a questatildeo quid juris sobre a possibilidade de

aplicaccedilatildeo dos conceitos agrave intuiccedilatildeo seraacute sempre problemaacutetica na medida em que natildeo se pode

explicar exatamente o modo como a aplicaccedilatildeo se daacute Um conceito pode certamente ser

tornado intuitivo e ganhar um significado mas do ponto de vista contraacuterio o de explicar a

origem de um conceito de significado conhecido o problema seria insoluacutevel Nas palavras de

Maimon ldquo[] como eacute que se haacute-de conceber que o entendimento possa decidir com certeza

apodiacutectica que um conceito de relaccedilatildeo por ele proacuteprio pensado (a coexistecircncia necessaacuteria de

dois predicados) tenha de ser encontrado num dado objetordquo188

A separaccedilatildeo radical dada no

sistema kantiano entre sensibilidade e entendimento natildeo permitiria resposta agrave questatildeo pois

assim as regras do entendimento natildeo teriam como se aproximar dos objetos dados189

184

Ibidem p 233-234 (grifos do autor) 185

Ibidem p 234 186

Ibidem loc cit 187

CASSIRER op cit p 117 188

MAIMON S op cit p 237 189

Ibidem p 239

- 70 -

Portanto diz Maimon somente admitindo que entendimento e sensibilidade provenham da

mesma fonte como fazem Leibniz e Wolff pode-se resolver a questatildeo eacute preciso que espaccedilo e

tempo sejam tomados como conceitos do entendimento para que seja possiacutevel submetecirc-los agraves

regras deste uacuteltimo

16 - Desvelando o dilema e os conceitos envolvidos

No pano de fundo da discussatildeo acerca da coisa em si e da sua suposta

afecccedilatildeo sobre os sentidos subjaz uma questatildeo antiga e profunda Conhecemos o mundo e

ajuizamos sobre ele poreacutem natildeo logramos provar a verdade do nosso conhecimento isto eacute a

seguranccedila inequiacutevoca do que afirmamos com relaccedilatildeo agraves coisas A resposta a esse problema

exige que se apresente alguma forma de alicerce para o pensamento algo em que se apoie e

que o faccedila ser algo mais do que ficccedilatildeo A dificuldade nos parece estar em que a soluccedilatildeo

demanda a muacutetua adequaccedilatildeo entre duas esferas heterogecircneas a saber o mundo da

experiecircncia com seus objetos concretos determinados singulares e o mundo teoacuterico com

seus conceitos abstratos universais e suas relaccedilotildees gerais Acrescenta-se a isso que essa

heterogeneidade foi tradicionalmente pensada como enraizada na distinccedilatildeo entre corpo e

alma tomados como substacircncias separadas com implicaccedilotildees natildeo soacute teoacutericas mas tambeacutem

morais e religiosas Aleacutem disso desde Platatildeo e sua ldquosegunda navegaccedilatildeordquo consolidou-se o

distanciamento entre um mundo mais real e verdadeiro cuja caracteriacutestica fundamental estava

na sua idealidade e um mundo ilusoacuterio e falso ligado agrave concretude aos sentidos e ao

empiacuterico

Apesar de toda a distacircncia entre Platatildeo e Hume o resultado geral da

argumentaccedilatildeo deste uacuteltimo acerca da causalidade nos parece ter reforccedilado a concepccedilatildeo do

primeiro de que natildeo haacute conhecimento verdadeiro do mutaacutevel do empiacuterico Rebaixado ao

estatudo de crenccedila sem necessidade loacutegica nem garantia empiacuterica com Hume o saber

humano afastou-se mais da possibilidade de alcanccedilar uma correspondecircncia autecircntica em

- 71 -

relaccedilatildeo agraves coisas Ou na formulaccedilatildeo de Maimon tornou-se mais difiacutecil responder agrave questatildeo

ldquoquid jurisrdquo A filosofia criacutetica kantiana conseguiu pela descriccedilatildeo minuciosa do mecanismo

de produccedilatildeo do conhecimento recuperar a esperanccedila de que o intelecto pudesse encontrar

certezas por meio de investigaccedilatildeo Para noacutes o prodiacutegio da descoberta de Kant nesse ponto

foi apontar a accedilatildeo por meio da qual o intelecto fabrica o mundo por assim dizer Por um lado

esse achado solucionou o problema da ausecircncia de necessidade e de correspondecircncia do saber

em relaccedilatildeo aos objetos pois a necessidade mesma e os proacuteprios objetos descobriram sua

origem no sujeito cognoscente Natildeo se precisava mais buscar a necessidade e a

correspondecircncia alhures jaacute que se situavam no nosso intelecto do mesmo modo que os

objetos Por outro lado poreacutem a fabricaccedilatildeo intelectual do mundo trouxe outras questotildees tatildeo

difiacuteceis quanto aquela inicial

Na nossa interpretaccedilatildeo Kant e os pensadores de sua eacutepoca debruccedilaram-

se sobre a tarefa de sustentar a construccedilatildeo do mundo pelo sujeito conscientes de que sem

isso a questatildeo de Hume natildeo seria resolvida Tornou-se entatildeo imperioso demostrar claramente

o processo que tornaria vaacutelidos do ponto de vista objetivo as intuiccedilotildees e os conceitos uma

vez que sua origem seria subjetiva Kant acrescentou um terceiro termo a essa problemaacutetica

ao apontar para uma realidade por traacutes dos fenocircmenos produzidos pelo intelecto ainda que

atribuindo a ela uma posiccedilatildeo incerta no seu sistema Com isso a soluccedilatildeo daquela questatildeo

passou a ter de levar em conta novos aspectos o estatuto da experiecircncia empiacuterica entendida

agora como aparecircncia os detalhes do mecanismo de constituiccedilatildeo da realidade pelo sujeito

cognoscente o estatuto daquilo que estaacute por traacutes do fenocircmeno e a relaccedilatildeo entre ambos

A dificuldade entatildeo se aprofunda porque se eacute verdade que o sujeito

institui o mundo dos fenocircmenos natildeo pode fazecirc-lo a partir de si mesmo e o contato com algo

que garanta a realidade empiacuterica tem de ser descoberto Ao mesmo tempo poreacutem fecha-se o

acesso agraves coisas em si mesmas e o conhecimento humano fica inexpugnavelmente limitado agrave

esfera fenomecircnica Com efeito de um lado sem um fundamento para sua realidade o

conhecimento da experiecircncia seraacute fictiacutecio de pleno direito jaacute que natildeo passaraacute de produto de

um sujeito que natildeo conhece nada para aleacutem disso mesmo ou seja do fenocircmeno portanto de

uma aparecircncia De outro lado poreacutem o modo como Kant responde a Hume impede que algo

possa ser dado como subjacente aos fenocircmenos A rigor natildeo se pode nem mesmo postular a

existecircncia desse ser embora a afirmaccedilatildeo de que exista uma aparecircncia sem algo que apareccedila

seja absurda e insustentaacutevel

- 72 -

De acordo com isso ao que nos parece cada um dos filoacutesofos poacutes-

kantianos apresentados no item anterior realiza sua contribuiccedilatildeo endossando ou criticando

Kant mas de qualquer modo se enfrentando com essas dificuldades postas por sua filosofia

Jacobi evidencia que no sistema teoacuterico kantiano o exterior natildeo eacute realmente externo pois um

objeto no espaccedilo estaacute no fim de contas dentro do sujeito Sua argumentaccedilatildeo segundo

pensamos natildeo eacute tatildeo ingecircnua ou simploacuteria como pareceu a muitos pois toca em um ponto

importante que eacute o de saber como uma intuiccedilatildeo pode ser exterior sem se referir a algo em si

nem a algo fora do sujeito Eacute com razatildeo que duvida de que a mateacuteria dos fenocircmenos possa ser

criada sem que se saia da consciecircncia Eacute com razatildeo tambeacutem que questiona a ideia de uma

faculdade da sensibilidade sem a admissatildeo de impressotildees externas sobre os sentidos A uacutenica

saiacuteda coerente segundo Jacobi seria reconhecer que o sensiacutevel soacute conduz ao sensiacutevel e que a

demonstraccedilatildeo da validade objetiva do conhecimento demanda uma faculdade distinta

superior que leve ao suprassensiacutevel Sem isso tudo o que se faz eacute girar em falso sobre um

plano irreal que natildeo se refere a nada para aleacutem de si mesmo

Reinhold buscou um ponto de certeza incontestaacutevel a partir do qual a

teoria do conhecimento pudesse ser deduzida sem que fosse necessaacuterio invocar a coisa em si

Realmente eacute um ponto paciacutefico do pensamento criacutetico a concepccedilatildeo de que todo conhecimento

eacute representaccedilatildeo e esta era entatildeo um bom iniacutecio para um sistema Parece-nos que depois de

Reinhold os esforccedilos se concentraram no sentido de demonstrar que a representaccedilatildeo poderia

ser esclarecida e validada a partir de si mesma Para isso foi fundamental sua ecircnfase em que

mateacuteria e forma natildeo poderiam ser separadas na representaccedilatildeo sem extingui-la Schulze por

sua vez sublinhou que natildeo se pode admitir o surgimento do fenocircmeno por uma causalidade

da coisa em si sobre o sujeito e que isso deixa a aparecircncia sem nenhum ponto de apoio O

fundamento da experiecircncia contudo natildeo pode ser a proacutepria experiecircncia que eacute produto do

sujeito de modo que todo o sistema do conhecimento desmorona e toda representaccedilatildeo se

mostra vazia sem objetividade simples ficccedilatildeo

Com o intuito de dissolver a separaccedilatildeo entre a consciecircncia e os objetos

Beck traz agrave luz o ato originaacuterio pelo qual o fenocircmeno eacute composto pelo sujeito Sua

argumentaccedilatildeo mostra que a experiecircncia depende de uma siacutentese do muacuteltiplo anterior a toda e

qualquer anaacutelise conceitual Nessa linha de raciociacutenio evidenciando-se a falsidade da

separaccedilatildeo entre a consciecircncia e os objetos a investigaccedilatildeo da adequaccedilatildeo entre uma e outros se

torna inuacutetil isto eacute natildeo cabe a pergunta pela validade objetiva Beck entatildeo direciona os

- 73 -

holofotes para o ato originaacuterio de representar com o qual se formam todos os objetos

reforccedilando a importacircncia do tempo e do espaccedilo no processo Maimon por fim tambeacutem

evidencia o modo como a siacutentese do muacuteltiplo poderaacute gerar objetividade para assim resolver a

questatildeo ldquoquid jurisrdquo Para ele objetivo e subjetivo natildeo podem ser isolados e o problema real

acerca do conhecimento eacute o de saber qual a relaccedilatildeo que entre eles medeia O objetivo remete

agraves formas do sujeito estaacuteveis durante todo o processo de conhecer e o subjetivo remete agraves

sensaccedilotildees mutaacuteveis e inconstantes A sensibilidade natildeo fornece diretamente intuiccedilotildees ao

pensamento mas miacutenimos graus de intensidade ou de extensatildeo que se acrescentam uns aos

outros e satildeo ordenados pelo entendimento A observaccedilatildeo de Maimon sobre a distinccedilatildeo entre

Vorstellung e Darstellung eacute interessante nesse sentido pois ressalta que os objetos natildeo satildeo

apreendidos em uma representaccedilatildeo mas fornecidos em uma apresentaccedilatildeo O muacuteltiplo e o a

posteriori surgem durante o processo e a experiecircncia externa ao sujeito natildeo precisa ser

pensada como ligada agraves coisas em si podendo ser tomada como o a posteriori desprovido das

regras do conhecer Por conseguinte o conhecido imediatamente por noacutes natildeo eacute de fato um

objeto mas diferenciais de intensidade ou de extensatildeo O entendimento eacute que produz os

objetos que seratildeo pensados depois pelos conceitos enquanto a conexatildeo entre estes e a

intuiccedilatildeo natildeo se daacute diretamente mas por meio da forma a priori do tempo

Em relaccedilatildeo aos problemas envolvidos no conceito de coisa em si

Reinhold Beck e Maimon tentam eludir a necessidade de que ela esteja pressuposta como o

real por traacutes dos fenocircmenos Tanto sua causalidade sobre os sentidos quanto sua existecircncia

natildeo satildeo admitidas por eles que tratam entatildeo de relativizar sua importacircncia na filosofia criacutetica

Reinhold argumentou que partindo-se somente da representaccedilatildeo como objeto de investigaccedilatildeo

e do princiacutepio da consciecircncia como fundamento natildeo eacute preciso tomar a coisa em si em

consideraccedilatildeo Beck defedeu que a questatildeo sobre a coisa em si eacute um problema vazio pois a

relaccedilatildeo entre ela e os objetos eacute inexistente isto eacute natildeo haacute qualquer nexo a se buscar Maimon

por fim sustentou que o conceito de coisa em si eacute apenas um siacutembolo para algo que natildeo se

pode conceber o limite de uma seacuterie dada que nunca se atinge algo como uma raiz irracional

Na verdade eacute irrelevante o que esse siacutembolo possa realmente significar o que importa eacute natildeo

cracterizaacute-lo positivamente nem utilizaacute-lo como garantia da objetividade

O posicionamento de Schopenhauer sobre essas questotildees revela a marca

- 74 -

das criacuteticas que Kant recebeu de seus contemporacircneos190

Ele elimina a separaccedilatildeo entre

sujeito e objeto mostrando que satildeo polos distintos de uma mesma esfera a da representaccedilatildeo

tornando descabida a questatildeo de saber quais relaccedilotildees se estabelecem entre um e outro A

representaccedilatildeo eacute um ponto fixo um apoio que ele considera suficientemente firme para

alicerccedilar todo o seu edifiacutecio teoacuterico de certa forma ldquopara mover o mundordquo O problema da

validade objetiva eacute resolvido por Schopenhauer com a minuciosa descriccedilatildeo do modo como os

objetos satildeo criados por meio do princiacutepio de razatildeo suficiente Ele se empenha na

argumentaccedilatildeo que prova a dependecircncia da intuiccedilatildeo com relaccedilatildeo ao entendimento expondo a

radical diferenccedila entre ela e a simples sensaccedilatildeo Por conseguinte natildeo surgem do seu

pensamento uma esfera da representaccedilatildeo e outra dos objetos ambas as coisas satildeo idecircnticas

Sua demonstraccedilatildeo da aprioridade do princiacutepio de razatildeo eacute realizada com diversos exemplos e

ilustraccedilotildees que patenteiam a extrema subordinaccedilatildeo da representaccedilatildeo relativamente a ele Natildeo

resta qualquer espaccedilo para a questatildeo ldquoquid jurisrdquo

Outro ponto relevante a ser destacado eacute que a separaccedilatildeo irredutiacutevel entre

as faculdades do entendimento e da sensibilidade tornava muito difiacutecil relacionar conceitos

juiacutezos e intuiccedilotildees Schopenhauer assombrosamente reuacutene todas as questotildees que estavam em

jogo em torno de um uacutenico princiacutepio o de razatildeo suficiente por meio do qual interliga todas as

faculdades intelectuais e todos os tipos de objetos possiacuteveis Segundo pensamos isso eacute

realmente uma maravilha da criatividade e da genialidade schopenhauerianas pois o filoacutesofo

conseguiu extrair tudo a partir de um uacutenico ponto isto eacute deduzir dele tanto o mundo empiacuterico

quanto o conceitual Unificando numa mesma raiz sensibilidade entendimento e razatildeo seu

princiacutepio explica a um soacute tempo a conexatildeo entre as intuiccedilotildees e os conceitos o dado e o

pensado o universal e o particular o necessaacuterio e o contingente

Nos ldquoFragmentos para a histoacuteria da filosofiardquo dos Parerga e

Paralipomena Schopenhauer expotildee seu modo de entender a controveacutersia sobre a coisa em si

kantiana Ele afirma que a pressuposiccedilatildeo de que exista uma coisa em si sob os fenomenos eacute

correta e que apenas o modo como Kant a justificou foi ineficaz porque ela natildeo podia ser

harmonizada com os princiacutepios da sua filosofia E esse se tornou entatildeo seu ldquocalcanhar de

190

Victor Delbos observa bem que nos iniacutecios de seu filosofar Schopenhauer descarta conscientemente o

conceito de coisa em si ainda sob a influecircncia da argumentaccedilatildeo de Schulze Na primeira ediccedilatildeo de Da

quaacutedrupla raiz e nos Manuscritos Poacutestumos datados de 1812-1813 Schopenhauer aponta para a nulidade do

conceito de coisa em si e para o absurdo de se afirmar que ela cause o fenocircmeno Para noacutes isso sugere que

Schopenhauer foi modificando suas posiccedilotildees com atenccedilatildeo a esse debate Cf DELBOS op cit p 256-257

- 75 -

Aquilesrdquo cuja inconsistecircncia foi provada primeiro por Schulze depois por outros191

Para ele

no entanto eacute muito mais inaceitaacutevel a conclusatildeo da inexistecircncia da coisa em si e natildeo teria

sido exatamente esse o ponto visado pelos adversaacuterios de Kant mas somente sua exposiccedilatildeo

De certo modo diz Schopenhauer a argumentaccedilatildeo natildeo foi ad rem mas ad hominem192

Em

todo caso ele entende como realmente incorreta a utilizaccedilatildeo das leis a priori do intelecto para

derivar a existecircncia de uma coisa em si por traacutes dos fenocircmenos Essas leis natildeo podem

conduzir a nada que natildeo seja representaccedilatildeo de modo que o caminho para chegar ateacute aquela

teraacute de ser outro No entender do filoacutesofo Kant descobriu no conhecimento um conjunto de

elementos de origem subjetiva e outro de origem empiacuterica que foi considerado entatildeo como

objetivo em contraposiccedilatildeo agravequele Para ele isso foi bastante coerente porque Kant natildeo

poderia estender os elementos a priori a coisas independentes do intelecto

Conforme Schopenhauer haacute algo que permanece de fato desconhecido e

eacute precisamente a coisa em si Os elementos a posteriori satildeo inseparaacuteveis dos que satildeo a priori

e por isso diz ele ldquoKant ensina que podemos saber da existecircncia da coisa em si mas que daiacute

natildeo podemos extrair nada isto eacute apenas saber que ela eacute natildeo o que ela eacute por isso a essecircncia

da coisa em si permanece nele como uma grandeza desconhecida um Xrdquo193

As diferenccedilas

existentes entre os objetos provariam a existecircncia da coisa em si na medida em que formas a

priori satildeo as mesmas para todos eles mas eles natildeo satildeo todos idecircnticos essas diferenccedilas

segundo Schopenhauer devem-se agrave coisa em si194

O argumento poreacutem com que Kant a

introduziu eacute insustentaacutevel porque sua proacutepria filosofia natildeo permite que se passe do subjetivo

ao objetivo isto eacute do sujeito agraves coisas mesmas o que se fosse feito equivaleria a tomar a

causalidade como absoluta Schopenhauer conclui entatildeo que jamais se encontraraacute a coisa em

si seguindo-se o fio condutor da representaccedilatildeo mas apenas ele afirma ldquo[] mudando o ponto

de vista a saber ao inveacutes de partir do que representa como sempre se fez ateacute agora partir-se

do que eacute representadordquo195

Como consequecircncia na metafiacutesica schopenhaueriana a representaccedilatildeo eacute a

objetidade da coisa em si ou seja natildeo haacute nenhum elemento de mediaccedilatildeo entre ambas pois

ao fim e ao cabo satildeo um e o mesmo mundo observado de lados opostos Nesse caso nem a

191

PP I Fragmente zur Geschichte der Philosophie sect 13 p 113 Fragmentos para a histoacuteria da filosofia

Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas de Maria Luacutecia Cacciola Satildeo Paulo Iluminuras 2003 sect 13 p 79-80 192

Ibidem sect 13 p 114 ibidem sect 13 p 79 193

Ibidem sect 13 p 116 ibidem sect 13 p 81 (grifos do autor) 194

Ibidem sect 13 loc cit ibidem sect 13 loc cit 195

Ibidem sect 13 p 118 ibidem sect 13 p 83 (grifos do autor)

- 76 -

causalidade nem outro princiacutepio a priori satildeo exigidos para se conectar coisa em si e

representaccedilatildeo A coisa em si natildeo seraacute conhecida com recurso ao que estaacute fora do sujeito a um

objeto que lhe eacute inacessiacutevel mas por meio da sua proacutepria vontade individual daiacute a

elaboraccedilatildeo de uma metafiacutesica imanente Natildeo obstante a coisa em si de Schopenhauer ganha

outras determinaccedilotildees que conformam seu edifiacutecio teoacuterico de uma maneira peculiar A

Vontade eacute considerada por ele por exemplo o nuacutecleo mais real e verdadeiro do mundo em

contraposiccedilatildeo agrave representaccedilatildeo ilusoacuteria e efecircmera Na sua argumentaccedilatildeo preserva-se o caraacuteter

fenomecircnico do mundo empiacuterico e reforccedila-se a ideia de que o sensiacutevel conduz apenas ao

sensiacutevel de modo que o conhecimento que desvelaraacute a coisa em si natildeo seraacute o regido pelo

princiacutepio de razatildeo suficiente incluiacutedo aqui o do conhecer Como resultado a representaccedilatildeo eacute

mantida como aparecircncia a objetividade do conhecimento eacute garantida por um princiacutepio

intelectual e a coisa em si eacute preservada e desenvolvida

- 77 -

Capiacutetulo 2 ndash A construccedilatildeo do lado externo do mundo idealismo transcendental

21 ndash Philosophia prima

211 ndash O princiacutepio maacuteximo do conhecimento

Neste capiacutetulo detalhamos as relaccedilotildees e os conceitos apresentados no

capiacutetulo anterior no tocante agrave teoria do conhecimento de Schopenhauer Para isso utilizamos

o texto de Da quaacutedrupla raiz ediccedilatildeo de 1847 o primeiro livro de O mundo e os capiacutetulos

correspondentes de O mundoII ediccedilatildeo de 1859 Seguimos a indicaccedilatildeo dada pelo filoacutesofo no

prefaacutecio da primeira obra mencionada onde ele afirma que nesses textos juntamente com a

Criacutetica da filosofia kantiana estaacute encerrada sua teoria acerca do intelecto humano1 Quando

uacutetil pela clareza e conveniente do ponto de vista explicativo utilizamos tambeacutem outras obras

indicadas oportunamente

No prefaacutecio de Da quaacutedrupla raiz Schopenhauer afirma que sua

abordagem da problemaacutetica do conhecimento eacute nova e peculiar realizada por meio da

formulaccedilatildeo demonstraccedilatildeo e justificaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo suficiente A despeito da

maneira enfaacutetica com a qual o filoacutesofo apresenta o princiacutepio de razatildeo como a condiccedilatildeo de

possibilidade de todo e qualquer conhecimento sua concepccedilatildeo sobre este uacuteltimo eacute mais

ampla Eacute possiacutevel notar diferentes conceitos e modos de conhecer matizados tanto pelo lado

da Vontade quanto da representaccedilatildeo Da perspectiva desta uacuteltima temos quatro formas do

princiacutepio de razatildeo suficiente intuiccedilotildees puras intuiccedilotildees empiacutericas intuiccedilotildees normais

representaccedilotildees fictiacutecias e representaccedilotildees abstratas Do lado da Vontade temos ideias

1 UumlV p 9 CR p 27

- 78 -

conhecimento eacutetico conhecimento esteacutetico e nenhum princiacutepio Eacute possiacutevel ainda matizar e

classificar modos distintos de conhecer por exemplo conhecimento interno externo

imediato mediato concreto abstrato pelo princiacutepio de razatildeo e tambeacutem com exclusatildeo dele

No texto Schopenhauer and Knowledge David Hamlyn chama a atenccedilatildeo para essa

complexidade que se manifesta em duas grandes maneiras de conhecer Esse autor observa

que o conhecimento de que trata Da quaacutedrupla raiz eacute consciente e condicionado enquanto

o que entra em jogo no quarto livro de O mundo referente agrave superaccedilatildeo da Vontade eacute de um

tipo totalmente oposto ou seja inconsciente e incondicionado Na interpretaccedilatildeo dele

Alguns objetos tornam-se objetos do conhecimento apenas quando estatildeo

sujeitos a condiccedilotildees quando por exemplo e esse eacute o caso das

representaccedilotildees eles ocorrem em estruturas regulares Outros objetos podem

ser objetos do conhecimento sem a satisfaccedilatildeo de tais condiccedilotildees e no caso de

certos objetos ndash a vontade por exemplo ndash natildeo apenas pode ser assim mas

deve ser assim e esse eacute o fato que torna incondicional o conhecimento em

questatildeo2

Para Hamlyn embora natildeo deixe claro em cada um dos quatro livros de

O Mundo Schopenhauer dedica-se a um objeto distinto respectivamente agraves representaccedilotildees

comuns agrave Vontade agraves ideias e ao saber que conduz agrave negaccedilatildeo do querer3 Concepccedilatildeo

semelhante apresenta Margit Ruffing para quem o filoacutesofo lida com uma teoria do

conhecimento distinta em cada livro de sua obra capital Na interpretaccedilatildeo dessa autora a

contemplaccedilatildeo esteacutetica abordada por Schopenhauer no terceiro livro de O Mundo tem um

papel de destaque no sistema pois representa o ponto de transiccedilatildeo entre o conhecimento

imperfeito da Vontade e sua compreensatildeo completa4 Os quatro livros na interpretaccedilatildeo dela

ldquo[] tecircm como base apenas duas questotildees de conhecimento ndash a questatildeo a respeito de o que do

conhecimento da essecircncia do significado do mundo e a questatildeo a respeito do acesso ao

conhecimento essencial a respeito do como do conhecimentordquo5

Nossa anaacutelise se concentraraacute no conhecimento pelo lado da representaccedilatildeo

e por isso exporemos grande parte das ideias contidas em Da quaacutedrupla raiz que discorre

minuciosamente sobre o princiacutepio de razatildeo Todavia natildeo adotamos exatamente a ordem que

2 HAMLYN D Schopenhauer and knowledge In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 46 (traduccedilatildeo nossa) 3 Ibidem p 45

4 Esse eacute o tema da dissertaccedilatildeo da autora defendida na Johannes Gutenberg Universitaumlt ndash Mainz em 2001 Cf

RUFFING M Wille zur Erkenntnis Die Selbsterkenntnis des Willens und die Idee des Menschen in der

aumlsthetischen Theorie Arthur Schopenhauers 5 RUFFING M A relevacircncia eacutetica da contemplaccedilatildeo esteacutetica Revista etich - An international Journal for

Moral Phylosophy Florianoacutepolis v11 n2 p 263-271 julho de 2012 p 264 (grifos da autora)

- 79 -

o filoacutesofo considerou a correta do ponto de vista sistemaacutetico a saber iniciar com o princiacutepio

de razatildeo do ser em relaccedilatildeo ao tempo passar para a mesma forma do princiacutepio com relaccedilatildeo ao

espaccedilo em seguida expor a lei de causalidade posteriormente a de motivaccedilatildeo e por fim o

princiacutepio com relaccedilatildeo ao conhecimento abstrato6 Essa ordem segue do mais simples e

imediato ao mais complexo e mediato sendo realmente uma boa sequecircncia expositiva

Apenas julgamos que ficam mais claras as teses e as relaccedilotildees que pretendemos ressaltar

quando mudamos a posiccedilatildeo da lei de motivaccedilatildeo e a expomos logo apoacutes o princiacutepio de razatildeo

do ser Ou seja iniciaremos com as intuiccedilotildees puras e o princiacutepio de razatildeo do ser passando ao

sujeito da voliccedilatildeo e agrave lei de motivaccedilatildeo em seguida ao entendimento suas intuiccedilotildees empiacutericas

e a causalidade por fim aos conceitos e ao princiacutepio de razatildeo do conhecer

Embora heterodoxa essa sequecircncia expositiva ao que nos parece natildeo eacute

de todo infundada Schopenhauer se baseia na complexidade das formas do princiacutepio de

razatildeo enquanto noacutes pensamos na complexidade dos objetos Ao que nos parece assim se

torna mais claro o caraacuteter especiacutefico do sujeito do querer bem como fica realccedilada sua relaccedilatildeo

com o sentido interno e com a intuiccedilatildeo singular de um objeto uacutenico para cada indiviacuteduo

Entendemos que natildeo haacute prejuiacutezo em nos debruccedilarmos somente depois sobre as intuiccedilotildees

empiacutericas que envolvem tanto o tempo quanto o espaccedilo ao passo que o sujeito do querer eacute

intuiacutedo somente no tempo Certamente a lei de motivaccedilatildeo exige que o agente conheccedila o

mundo o que passa pela lei de causalidade mas eacute possiacutevel compreender sua estrutura e seu

objeto especiacutefico sem detalhar como se datildeo concretamente as accedilotildees

Schopenhauer declara que a descoberta e a descriccedilatildeo do princiacutepio de

razatildeo foram feitas por meio de duas leis transcendentais da razatildeo as quais servem de regra

para o meacutetodo de toda a filosofia e todo o conhecimento a saber a especificaccedilatildeo e a

homogeneidade Por meio desta uacuteltima diz ele satildeo encontradas as semelhanccedilas e

concordacircncias nos objetos que satildeo agrupados em conceitos de espeacutecies estas em gecircneros e

estes em conceitos mais amplos A primeira por sua vez diferencia os conceitos das espeacutecies

em um determinado gecircnero os indiviacuteduos dentro das espeacutecies e quaisquer conceitos em geral

Para Schopenhauer tratam-se de satildeo leis da razatildeo pura agraves quais os objetos devem

necessariamente se adequar Nas palavras dele

Kant ensina que essas duas leis transcendentais satildeo princiacutepios da razatildeo que

postulam a priori a concordacircncia das coisas consigo mesmos e Platatildeo

6 UumlV sect46 p178 CR sect46 p 214-215

- 80 -

parece tambeacutem expressaacute-lo do seu modo na medida em que diz que essas

regras agraves quais toda ciecircncia deve sua origem foram-nos jogadas da morada

dos deuses com o fogo de Prometeu7

Eacute digno de nota que Schopenhauer mencione essas duas leis da razatildeo tal

como Kant as pensou como os fundamentos de seu meacutetodo de descoberta Como

mostraremos mais agrave frente o filoacutesofo reduziu muito o acircmbito de atuaccedilatildeo da razatildeo natildeo

contemplando os princiacutepios sinteacuteticos que Kant atribui a ela No caso dessas duas leis

Schopenhauer as utiliza para encontrar o ponto de partida que seraacute depois o fundamento de

todo e qualquer conhecimento o que leva a crer que elas estatildeo em um posto mais originaacuterio e

elevado do que o do princiacutepio de razatildeo Apesar disso o filoacutesofo as refere no seu tratado como

o meacutetodo heuriacutestico com o qual se deduz o princiacutepio

De qualquer forma as leis de homogeneidade e de especificaccedilatildeo satildeo

apontadas aqui como as regras do meacutetodo filosoacutefico Dentre as duas diz Schopenhauer a de

especificaccedilatildeo eacute particularmente relevante para o estudo do princiacutepio de razatildeo enquanto o uso

isolado da de homogeneidade teria conduzido a muitos erros Isso se explicaria porque

embora tenha sido bastante investigado atraveacutes da Histoacuteria natildeo se teria ainda compreendido

as aplicaccedilotildees e significaccedilotildees distintas dele Essa consideraccedilatildeo se torna importante porque

Schopenhauer formula o princiacutepio de razatildeo como uma estrutura uacutenica que permite interligar

as diferentes faculdades do intelecto o que eacute imprescindiacutevel para uma soluccedilatildeo satisfatoacuteria aos

problemas postos pelas criacuteticas feitas a Kant De acordo com isso ele escreve ldquo[] esforccedilo-

me nesse tratado em assentar o princiacutepio de razatildeo suficiente como um juiacutezo com um

fundamento quaacutedruplo natildeo quatro diferentes fundamentos que teriam levado por azar ao

mesmo juiacutezo mas um princiacutepio quaacutedruplo que nomeio figuradamente quaacutedrupla raizrdquo8 Daiacute a

utilidade maior do princiacutepio de especificaccedilatildeo que permite discernir no tronco uacutenico suas

diferentes aplicaccedilotildees e raiacutezes Especiacuteficos tambeacutem satildeo os modos em que se apresenta a

necessidade que ele possui enquanto elemento a priori a qual diz o filoacutesofo ldquo[] natildeo eacute a

uacutenica nem a mesma em toda parte mas sim muacuteltipla como as proacuteprias fontes do princiacutepiordquo9

Schopenhauer elege a formulaccedilatildeo com que Wolff enuncia o princiacutepio

ldquoNihil est sine ratione cur potius sit quam non sitrdquo10

considerando que ela possui a

generalidade exigida para enquadrar cada uma das quatro formas Em linhas gerais o

7 UumlV sect1 p 12 CR sect1 p 30

8 UumlV sect33 p 133-134 CR sect33 p 164

9 UumlV sect3 p 13 CR sect3 p 31

10 UumlV sect5 p 15 CR sect5 p 33

- 81 -

princiacutepio determina que nada pode ser sem uma razatildeo pela qual eacute ou nas palavras do

filoacutesofo ldquoO sentido geral do princiacutepio de razatildeo resume-se a que sempre e em toda parte cada

coisa somente eacute em razatildeo de outrardquo11

Em Da quaacutedrupla raiz Schopenhauer resume os

significados e as ideias anteriores agrave sua proacutepria concepccedilatildeo do princiacutepio jaacute conhecido desde a

Antiguidade12

De maneira ampla ele teria sido notado como algo importante por diversos

filoacutesofos mas as diferenccedilas existentes entre suas formas natildeo teria sido percebida e uma

confusatildeo teria se instalado principalmente entre causa e razatildeo de conhecimento Ateacute mesmo

Aristoacuteteles teria cometido esse erro pois embora tivesse divisado diferentes princiacutepios e

distintas causas atuando no mundo concreto13

natildeo teria separado estas uacuteltimas da razatildeo de

conhecimento14

Via de regra as causas fiacutesicas eram confundidas com as razotildees loacutegicas que

sustentam raciociacutenios resultando em argumentaccedilotildees que incorriam na falaacutecia non causae ut

causa15

Segundo o filoacutesofo esse eacute o caso do argumento ontoloacutegico em que se misturam a

razatildeo de conhecimento do conceito de Deus que eacute dada pela sua definiccedilatildeo com a causa fiacutesica

de um mundo dotado de realidade No fim de contas diz ele ldquo[] esse Deus tem com o

mundo a relaccedilatildeo de um conceito com sua definiccedilatildeordquo16

Eacute curioso que Schopenhauer natildeo tenha mencionado entre as formulaccedilotildees

anteriores agrave sua a concepccedilatildeo de Christian August Crusius No sect 11 de Da quaacutedrupla raiz

ele discorre brevemente sobre o entendimento dos filoacutesofos situados entre Wolff e Kant

passando por Baumgartem Reimarus Lambert e Platner mas natildeo se reporta agravequele17

Conforme se lecirc em Cassirer a compreensatildeo de Crusius a respeito do princiacutepio de razatildeo

suficiente eacute bastante proacutexima agrave de Schopenhauer inclusive com a posiccedilatildeo privilegiada que

este confere ao conhecimento intuitivo Um primeiro ponto de contato poderia ser apontado

em que para Crusius natildeo se pode remeter todo o conhecimento a conceitos abstratos mas

escreve Cassirer ldquoEm vez de comeccedilar pelos bdquoconceitos possiacuteveis‟ para partindo deles

como faz Wolff esforccedilar-se em determinar o real por meio de determinaccedilotildees loacutegicas

11

UumlV sect52 p 187 CR sect52 p 224 (grifos do autor) 12

No capiacutetulo II de Da quaacutedrupla raiz Schopenhauer discute diversas formulaccedilotildees e teorizaccedilotildees sobre o

princiacutepio de razatildeo Aleacutem dos de Leibniz e Wolff menciona o entendimento de Platatildeo Aristoacuteteles Plutarco

estoicos escolaacutesticos Suarez Hobbes Reimarus Schulze Fries Descartes Espinosa Baumgarten Lambert

Platner Hume Kant Eberhardt Hofbauer Maass Jakob Kiesewetter Jacobi Maimon e Schelling Cf UumlV

zweites Kap sectsect6-14 p 16-38 CR cap II sectsect6-14 p 34-56 13

Cf ARISTOacuteTELES An Post II 11 94a-95a Metafiacutesica Livro I (A) 3 983b-984a An Post I 32 88a-

89a 14

UumlV sect6 p 18 CR sect6 p 36-37 15

UumlV sect6 p 19 et seq CR sect6 p 36 et seq Na falaacutecia da falsa causa atribui-se a um efeito uma causa que natildeo

lhe corresponde 16

UumlV sect8 p 28 CR sect8 p 46 17

UumlV sect11 p 33-34 CR sect11 p 51-52

- 82 -

progressivas devemos seguir o caminho inversordquo18

Uma segunda conexatildeo poderia ser

indicada na visatildeo de que o conhecimento tem de comeccedilar pelos sentidos e de que a mera

anaacutelise loacutegica de conceitos natildeo constitui verdadeiro saber19

Um terceiro e mais importante

ponto de contato entre o pensamento de Schopenhauer e de Crusius acerca do princiacutepio de

razatildeo seria o de que este uacuteltimo distingue tatildeo clara e conscientemente quanto aquele a causa

real de um acontecimento e o fundamento do conhecer Nas palavras de Cassirer ldquo[] em

Crusius surge o esquema geral que haveraacute de manter-se em peacute ateacute chegar aos tempos

modernos e que reaparece por exemplo quase inalteraacutevel na obra de Schopenhauer Da

quaacutedrupla raiz do princiacutepio de razatildeo suficienterdquo20

De qualquer modo Schopenhauer considera que uma das suas grandes

contribuiccedilotildees eacute a diferenciaccedilatildeo e descriccedilatildeo de cada uma das quatro raiacutezes do princiacutepio bem

como de seu funcionamento e aplicaccedilatildeo a objetos especiacuteficos E ele se empenha nisso seguro

de que a distinccedilatildeo e a fundamentaccedilatildeo precisas satildeo realizaccedilotildees exclusivamente suas Leibniz e

Wolff teriam sido os que mais se acercaram da concepccedilatildeo que advoga mas cada qual teria

errado de um modo O primeiro diz ele chegou a perceber a diferenccedila entre causa e

fundamento do conhecer mas sem se deter nela claramente o segundo embora tivesse

realizado o que faltou agravequele teria confundido diversas vezes as formas do princiacutepio e errado

tambeacutem em consideraacute-lo ontoloacutegico e natildeo loacutegico como ele proacuteprio defende21

Com efeito o princiacutepio se manifesta em quatro leis loacutegicas de diferentes

faculdades intelectuais e se aplica ao pensamento de todos os objetos resumindo em si o

aparato cognitivo como um todo Na medida em que eacute a condiccedilatildeo de possibilidade do

conhecimento do pensamento e da proacutepria demonstraccedilatildeo ele eacute indemonstraacutevel Como

escreve o filoacutesofo ldquoToda prova eacute exatamente a apresentaccedilatildeo de uma razatildeo para um juiacutezo

proferido o qual por isso recebe o predicado de verdadeirordquo22

A raiz do princiacutepio consiste no

seu significado geral e tudo o que podemos conhecer deve passar por ele sem o seu

intermeacutedio nada pode tornar-se objeto para noacutes23

No livro I de O mundo Schopenhauer

resume sua realizaccedilatildeo ldquoNo meu tratado sobre o princiacutepio de razatildeo mostrei minuciosamente

como cada objeto possiacutevel estaacute submetido a ele isto eacute estaacute em uma relaccedilatildeo necessaacuteria com

18

CASSIRER op cit II p 481 (grifos do autor) 19

Ibidem p 483ss 20

Ibidem p 503 21

UumlV sect9 p 31 CR sect9 p 49 22

UumlV sect14 p 38 CR sect14 p 56 (grifos do autor) 23

UumlV sect16 p 41 CR sect16 p 59

- 83 -

outros objetos de um lado como determinado de outro determinando []rdquo24

Por

conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente estaacute na base dos objetos dos conceitos dos

raciociacutenios da loacutegica da matemaacutetica das ciecircncias numa palavra do mundo e do

conhecimento do mundo Todas as faculdades cognitivas descobertas por Schopenhauer a

saber sensibilidade entendimento e razatildeo assim como quaisquer objetos possiacuteveis estatildeo

intrinsecamente ligados ao princiacutepio e satildeo remetidos pelo filoacutesofo agraves relaccedilotildees entre sujeito e

objeto ou o que eacute o mesmo entre sujeito e representaccedilatildeo Esse pensamento eacute sintetizado com

as palavras seguintes

Nossa consciecircncia cognoscente que se apresenta como sensibilidade

exterior e interior (receptividade) entendimento e razatildeo divide-se em

sujeito e objeto e fora disso nada conteacutem Ser objeto para o sujeito e ser

nossa representaccedilatildeo eacute o mesmo Todas as nossas representaccedilotildees satildeo objetos

do sujeito e todos os objetos do sujeito satildeo nossas representaccedilotildees Com

efeito todas as nossas representaccedilotildees encontram-se relacionadas entre si de

modo regular e determinaacutevel a priori quanto agrave forma pela qual nada

existente por si e independente bem como isolado e fragmentado pode

tornar-se objeto par noacutes25

Como dissemos antes o princiacutepio de razatildeo eacute indemonstraacutevel jaacute que eacute o

fundamento de toda a demonstraccedilatildeo e explicaccedilatildeo De modo semelhante o sujeito do

conhecimento natildeo pode ser ele mesmo conhecido pois diz Schopenauer ldquo[] para isso se

exigiria que o sujeito se separasse do conhecer e entatildeo conhecesse o conhecer o que eacute

impossiacutevelrdquo26

De acordo com Cacciola o filoacutesofo assimilou essa liccedilatildeo de Kant para quem o

sujeito transcendental como mera forma natildeo pode ser conhecido por si mas apenas por meio

das suas representaccedilotildees Na criacutetica dos paralogismos da razatildeo pura diz a autora ldquo[]

Schopenhauer iraacute detectar a proposta idealista kantiana ou seja a afirmaccedilatildeo impliacutecita de que

bdquonatildeo haacute objeto sem sujeito‟rdquo27

No mesmo sentido o filoacutesofo argumenta que as faculdades

cognitivas natildeo podem ser conhecidas diretamente mas apenas inferidas a partir dos tipos de

objetos aos quais se aplicam As faculdades representativas satildeo vistas por ele como os

correlatos subjetivos das classes de objetos possiacuteveis como capacidades cognitivas abstraiacutedas

dos tipos de representaccedilatildeo28

Portanto sujeito e objeto satildeo definidos reciprocamente isto eacute

24

WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I Livro I sect2 p 46 25

UumlV sect16 p 41 CR sect16 p 59 (grifos do autor) 26

UumlV sect41 p 169 CR sect41 p 203 27

CACCIOLA M L A criacutetica da Razatildeo no pensamento de Schopenhauer Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Faculdade

de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo Departamento de Filosofia Satildeo Paulo

1981 p 13 28

UumlV sect41 p 169-170 CR sect41 p 204

- 84 -

todo objeto exige um sujeito que conhece como seu correlato necessaacuterio e vice-versa29

Nas

palavras do filoacutesofo

[] com um objeto determinado de certa forma coloca-se exatamente e de

modo imediato tambeacutem o sujeito como conhecendo dessa tal forma Assim

eacute indiferente se eu digo os objetos possuem tais e tais determinaccedilotildees

particulares e proacuteprias ou que o sujeito conhece de tais e tais modos

indiferente se eu digo os objetos satildeo divididos em tais classes ou que ao

sujeito satildeo proacuteprias tais diferentes faculdades cognoscitivas30

Mais do que isso cada classe de representaccedilotildees soacute possui existecircncia para

o seu correlato subjetivo ou faculdade de conhecimento correspondente31

A muacutetua

condicionalidade existente entre sujeito e objeto fica entatildeo ressaltada jaacute que a compreensatildeo

de um exige a do outro e a formulaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo expressaraacute a estrutura e o

funcionamento das faculdades intelectuais em ligaccedilatildeo intriacutenseca com os objetos Por

conseguinte a correlaccedilatildeo que Schopenhauer estabelece entre as faculdades e as

representaccedilotildees natildeo deixa lacuna para que se questione o mecanismo de adequaccedilatildeo entre

sujeito e objeto O princiacutepio de razatildeo sozinho fornece uma fundamentaccedilatildeo para o

conhecimento do mundo fenomecircnico que natildeo demanda nada para aleacutem de si proacuteprio Esse eacute o

modo em que Schopenhauer soluciona a questatildeo quid juris isto eacute ele demonstra que o

mundo eacute mera representaccedilatildeo do sujeito natildeo existindo antes ou separado deste Essa opiniatildeo eacute

semelhante agrave de F C White para quem

Uma vez fornecido esse resumo seletivo eacute possiacutevel dizer de uma soacute vez

onde reside a importacircncia de Da quaacutedrupla raiz com respeito ao sistema de

Schopenhauer Reside na sua tentativa de estabelecer que o mundo cotidiano

eacute representacional de estabelecer que os princiacutepios de razatildeo governam

aquele mundo sem licenccedila para nenhuma inferecircncia agrave realidade para aleacutem

dele e de refutar muitas das alegaccedilotildees dos que sustentam o contraacuterio32

29

WWV I ersters Buch sect5 p 44 M I Livro I sect5 p 56 30

UumlV sect41 p 170 CR sect41 p 204 (grifos do autor) 31

WWV I ersters Buch sect4 p 41 M I Livro I sect4 p 53 32

WHITE F C The fourfold root In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 64 (traduccedilatildeo nossa)

- 85 -

212 ndash Formas da sensibilidade intuiccedilotildees puras e sujeito da voliccedilatildeo

Na medida em que eacute fundada pelo princiacutepio de razatildeo a realidade

empiacuterica se reduz a representaccedilatildeo do sujeito que a origina e a condiciona por meio das suas

formas a priori eacute assim que a realidade do mundo como representaccedilatildeo coexiste com a sua

idealidade transcendental33

A demonstraccedilatildeo de Schopenhauer acerca da idealidade

transcendental do mundo segue dois caminhos distintos O primeiro jaacute elaborado antes por

Kant se bem que de modo diferente eacute o esclarecimento da anterioridade das noccedilotildees de tempo

e espaccedilo com relaccedilatildeo agrave experiecircncia como um todo O segundo que seraacute desenvolvido no

proacuteximo item refere-se agrave edificaccedilatildeo do universo empiacuterico com base no princiacutepio de razatildeo

suficiente

Kant demonstrou a aprioridade das formas do tempo e do espaccedilo dos

pontos de vista ontoloacutegico e transcendental No primeiro caso ele argumentou que natildeo nos eacute

possiacutevel representar nada que natildeo seja espacial e temporalmente situado As representaccedilotildees

do tempo e do espaccedilo se apresentariam a noacutes como dotadas de unidade e infinitude o que

evidenciaria natildeo se tratar de conceitos empiacutericos De um lado cada uma delas seria intuiacuteda

como una e como abrangendo em si as partes menores ou seja cada intuiccedilatildeo parcial do

tempo e do espaccedilo seria remetida a uma representaccedilatildeo total anterior de que natildeo se poderia de

antematildeo ter um conhecimento Com efeito a unidade do tempo e a do espaccedilo natildeo poderiam

ser obtidas pela junccedilatildeo de todas as partes respectivas jaacute que as proacuteprias partes seriam

limitaccedilotildees daquela unidade e seriam pensaacuteveis por meio dela De outro lado as intuiccedilotildees do

tempo e do espaccedilo seriam pensadas como infinitas e no entanto nenhum conceito poderia

abrarcar uma infinidade de representaccedilotildees Do ponto de vista do exame transcendental Kant

define tempo e espaccedilo como princiacutepios dos quais derivam conhecimentos sinteacuteticos a priori

A Geometria fundada sobre o espaccedilo a priori comprovaria a existecircncia desse tipo de

conhecimento em funccedilatildeo da necessidade das suas proposiccedilotildees Para Kant a necessidade e a

33

WWV I ersters Buch sect1 p 32 M I Livro I sect1 p 44

- 86 -

universalidade indicam tratar-se de conhecimento a priori jaacute que na experiecircncia natildeo haacute nada

que apresente a mesma apodicticidade34

A argumentaccedilatildeo schopenhaueriana acerca do tempo e do espaccedilo procura

demonstrar que o conjunto da realidade empiacuterica natildeo poderia existir sem aquelas formas que

portanto satildeo anteriores e constitutivas Na obra Schopenhauer Patrick Gardiner afirma sobre

esse ponto que tempo e espaccedilo ldquoSatildeo formas da nossa bdquosensibilidade‟ o que equivale a dizer

entre outras coisas que estamos constituiacutedos de tal modo que tudo aquilo de que somos

conscientes em nossa experiecircncia sensorial deve se apresentar a noacutes em termos espaccedilo-

temporaisrdquo35

Conforme Schopenhauer o tempo eacute a forma do sentido interno constituiacuteda pela

sucessatildeo pela qual os fenocircmenos aparecem sempre de modo subsequente O espaccedilo por sua

vez eacute a forma do sentido externo que determina a representaccedilatildeo dos fenocircmenos de modo

contiacuteguo constituiacuteda pela justaposiccedilatildeo Embora de certo modo antagocircnicas ambas essas

formas satildeo exigidas para a intuiccedilatildeo do mundo pois diz o filoacutesofo ldquoAs representaccedilotildees

empiacutericas que pertencem ao complexo organizado da realidade aparecem todavia nas duas

formas ao mesmo tempo e aleacutem disso a uniatildeo estreita de ambas eacute uma condiccedilatildeo da

realidade a qual surge ateacute certo ponto como um produto desses fatoresrdquo36

Schopenhauer sustenta entatildeo que as representaccedilotildees da simultaneidade e

da mudanccedila caracteriacutesticas estruturais da realidade empiacuterica satildeo dependentes das formas do

tempo e do espaccedilo Com isso ele demonstra que sua junccedilatildeo eacute a condiccedilatildeo de possibilidade do

conjunto da experiecircncia e que portanto tempo e espaccedilo satildeo formas a priori Todas as outras

representaccedilotildees possiacuteveis estariam vinculadas agraves da simultaneidade e da mudanccedila de forma

que a argumentaccedilatildeo acerca destas se estenderia agraves restantes Com relaccedilatildeo agrave representaccedilatildeo da

simultaneidade Schopenhauer explica que embora tenha caraacuteter temporal ela exige tanto o

tempo quanto o espaccedilo pois o tempo natildeo pode garantir a existecircncia paralela de duas

representaccedilotildees jaacute que eacute mera sucessatildeo exigindo-se tambeacutem o espaccedilo para que ambas sejam

situadas lado a lado num instante dado Do modo semelhante o espaccedilo eacute justaposiccedilatildeo natildeo

permitindo apenas por si a simultaneidade entre dois estados o que se daacute pela existecircncia de

suas representaccedilotildees ao mesmo tempo37

No tocante agrave mudanccedila dos objetos tempo e espaccedilo

tambeacutem seriam requeridos conjuntamente Somente com o espaccedilo natildeo poderia haver a

34

KrV B3 ndash B6 CRP p 37-39 35

GARDINER P Schopenhauer Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1997 p 133 (traduccedilatildeo nossa) (grifos

do autor) 36

UumlV sect18 p 43 CR sect18 p 63 (grifos do autor) 37

UumlV sect18 p 42-43 CR sect18 p 62

- 87 -

sucessatildeo de estados que caracteriza a mudanccedila somente com o tempo natildeo haveria qualquer

estado a ser modificado No primeiro livro de O mundo o filoacutesofo esclarece esse ponto

afirmando que ldquoA mudanccedila isto eacute a alteraccedilatildeo introduzida pela lei causal refere-se todas as

vezes a uma parte determinada do espaccedilo e a uma parte determinada do tempo

simultaneamente e juntasrdquo38

Por sua vez as noccedilotildees de duraccedilatildeo e permanecircncia tambeacutem

imprescindiacuteveis para a constituiccedilatildeo do mundo dos fenocircmenos seriam dependentes das de

mudanccedila e simultaneidade Em funccedilatildeo disso embora sejam noccedilotildees mais ligadas ao tempo

requerem tambeacutem a contribuiccedilatildeo do espaccedilo como forma Nas palavras de Schopenhauer ldquoA

permanecircncia de um objeto soacute eacute conhecida por meio da oposiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave mudanccedila de

outro com o qual eacute simultacircneordquo39

O mesmo pode ser afirmado sobre a duraccedilatildeo que tambeacutem

se liga agrave simultaneidade Assim a sucessatildeo e a justaposiccedilatildeo seriam condiccedilotildees fundamentais

do mundo empiacuterico pelas quais tempo e espaccedilo se tornariam o tecido onde se desenham os

fenocircmenos e sem as quais natildeo se poderia falar em duraccedilatildeo mutaccedilatildeo simultaneidade ou

permanecircncia Conforme a explicaccedilatildeo de Gardiner ldquoDaiacute que seja tatildeo impossiacutevel conceber

objetos materiais que existam em um mundo puramente temporal como conceber sua

existecircncia em um mundo puramente espacial supondo que mundos de uma ou outra classe

pudessem ser imaginaacuteveisrdquo40

A intuiccedilatildeo a priori do tempo e do espaccedilo constitui os objetos especiacuteficos

aos quais o princiacutepio de razatildeo suficiente se aplica nesse caso o do ser Tais objetos satildeo

intuiccedilotildees puras que natildeo podem ser extraiacutedas da experiecircncia como por exemplo o ponto a

linha a extensatildeo e a divisibilidade infinita e que se distinguem das intuiccedilotildees empiacutericas em

funccedilatildeo da ausecircncia de mateacuteria41

A sucessatildeo e a justaposiccedilatildeo satildeo as relaccedilotildees proacuteprias e

intriacutensecas respectivamente das partes do tempo e das do espaccedilo relaccedilotildees que satildeo de

condicionamento muacutetuo Gardiner ilustra esse ponto de modo interessante

Se por exemplo perguntam-me quando ocorreu algo posso responder

relacionando temporalmente o fato com outro momento ou ocasiatildeo cuja

posiccedilatildeo na escala do tempo jaacute eacute conhecida pela pessoa com quem estou

falando de modo parecido se me perguntam onde estaacute algo posso

38

WWV I ersters Buch sect4 p 39 M I Livro I sect4 p 51 (grifos do autor) 39

UumlV sect18 p 43 CR sect18 p 62 (grifos do autor) 40

GARDINER op cit p 146 (traduccedilatildeo nossa) 41

UumlV sect35 p 157 CR sect35 p 189-190

- 88 -

responder sempre indicando suas relaccedilotildees com outros pontos ou aacutereas

espaciais42

Como formas da sensibilidade a sucessatildeo e a justaposiccedilatildeo satildeo a priori e

natildeo podem ser remetidas a nada conhecido empiricamente mas antes qualquer representaccedilatildeo

de posicionamento antecedecircncia ou progressatildeo de objetos as exige Pois afirma

Schopenhauer

[] essa intuiccedilatildeo natildeo eacute como uma representaccedilatildeo fictiacutecia tomada de

empreacutestimo da repeticcedilatildeo da experiecircncia mas sim tatildeo independente desta

que pelo contraacuterio a experiecircncia eacute que deve ser pensada como dependente

daquela enquanto as qualidades do tempo e do espaccedilo como satildeo conhecidas

a priori na intuiccedilatildeo satildeo leis para toda a experiecircncia possiacutevel a qual tem de

concordar com elas em toda parte43

O princiacutepio de razatildeo suficiente do ser (Satz vom zureichenden Grunde

des Seins) ou principium rationis sufficientis essendi eacute a lei segundo a qual se datildeo as

relaccedilotildees no tempo e no espaccedilo Segundo Gardiner essa forma do princiacutepio difere claramente

de outras pois ele explica ldquo[] a igualdade dos lados de um triacircngulo eacute a ratio essendi da

igualdade dos acircngulos embora a relaccedilatildeo entre a bdquorazatildeo‟ e a bdquoconsequecircncia‟ seja aqui

necessaacuteria natildeo eacute uma relaccedilatildeo de causal ou uma relaccedilatildeo de vinculaccedilatildeo loacutegicardquo44

No caso do

espaccedilo a posiccedilatildeo de cada objeto determina a de todos os outros em uma relaccedilatildeo reciacuteproca de

consequecircncia a razatildeo sem que esteja implicada uma ordem de precedecircncia entre ambas45

Nas

palavras de Schopenhauer ldquo[] eacute indiferente qual seraacute entendida como determinante qual

como determinada isto eacute como ratio (fundamento) e a outra como rationata (fundada)rdquo46

Em virtude disso como tambeacutem da sua infinitude a cadeia das razotildees de ser no espaccedilo eacute

infinita tanto a parte ante quanto a parte post e todas as parcelas de espaccedilos possiacuteveis satildeo

figuras contiacuteguas que se limitam mutuamente Como o filoacutesofo escreve ldquoA series rationum

essendi (seacuterie das razotildees de ser) no espaccedilo assim como a series rationum fiendi (seacuterie das

razotildees do devir) segue in infinitum (ao infinito) e natildeo somente em uma soacute como esta uacuteltima

mas em todas as direccedilotildeesrdquo47

No caso do tempo o condicionamento das suas partes se daacute do

momento anterior para o posterior e o princiacutepio de razatildeo do ser eacute bastante simples a saber

apenas a lei de sucessatildeo num soacute sentido Entatildeo diz Schopenhauer ldquoCada momento eacute

42

GARDINER op cit p 143 (traduccedilatildeo nossa) 43

WWV I ersters Buch sect3 p 35-36 M I Livro I sect3 p 47 44

GARDINER op cit p 142 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 45

UumlV sect37 p 159 CR sect37 p 191 46

UumlV sect37 p 159 CR sect37 p 191 47

UumlV sect37 p 160 CR sect37 p 192

- 89 -

determinado pelo anterior somente por meio deste pode-se chegar agravequele apenas quando

aquele foi decorreu este eacuterdquo48

Na obra Schopenhauer uma filosofia da trageacutedia Alexis Philonenko

observa bem que o tempo possui uma expressatildeo mais simples e tambeacutem mais ampla do que o

espaccedilo Nesse sentido ele afirma ldquo[] Schopenhauer faz observar que o tempo natildeo eacute

somente a dimensatildeo na qual se produz toda a intuiccedilatildeo mas tambeacutem todo pensamento

incluiacutedas as noccedilotildees abstratas Ademais eacute no tempo onde se desenvolve a vontaderdquo49

De fato

aleacutem das intuiccedilotildees puras no tempo abordadas na aritmeacutetica o sentido interno intui um objeto

totalmente distinto dos mencionados ateacute agora a saber o sujeito da voliccedilatildeo Este eacute uma classe

de representaccedilotildees para o sujeito cognoscente mas que possui a peculiaridade de ser apenas

um objeto para cada indiviacuteduo Como o filoacutesofo explica essa classe abrange ldquo[] um objeto

para cada um o objeto imediato do sentido interno o sujeito do querer o qual eacute objeto para

o sujeito cognoscente e de fato eacute dado soacute no sentido interno soacute no tempo natildeo aparece no

espaccedilo e como veremos mesmo assim com uma significativa limitaccedilatildeordquo50

Em siacutentese o

sujeito da voliccedilatildeo eacute a consciecircncia que cada sujeito tem de si mesmo como ser desejante

Como expusemos acima o sujeito cognoscente natildeo pode conhecer-se

enquanto tal pois isso implicaria separar-se de si mesmo mas na condiccedilatildeo de desejante

torna-se possiacutevel conhecer-se No capiacutetulo 4 de O mundoII acerca do conhecimento a

priori Schopenhauer esclarece que ldquoO tempo eacute desse modo a forma por meio da qual a

vontade individual que originalmente e em si mesma natildeo possui qualquer conhecimento

pode autoconhecer-serdquo51

Sem esse conhecimento interno o sujeito conheceria a si mesmo

apenas como algo externo dado pelos sentidos isto eacute como objeto espacializado Seria uma

concepccedilatildeo singulariacutessima na Histoacuteria da Filosofia na qual o sujeito que conhece e age sempre

foi identificado com algo interno na maior parte das vezes como uma alma

Eacute interessante notar que na argumentaccedilatildeo schopenhaueriana a

consciecircncia apresenta uma cisatildeo interna dividindo-se ela tambeacutem em sujeito e objeto O

objeto eacute constituiacutedo por uma classe especial de representaccedilotildees dada no tempo e regida por

sua forma particular do princiacutepio de razatildeo o sujeito eacute o mesmo que conhece todos os outros

48

UumlV sect38 p 160 CR sect38 p 193 (grifos do autor) 49

PHILONENKO A Schopenhauer una filosofia de la tragedia Barcelona Anthropos 1989 p 94 (traduccedilatildeo

nossa) 50

UumlV sect40 p 168 CR sect40 p 202 (grifos do autor) 51

WWWII Kap 4 p 49 MII cap 4 p 43

- 90 -

objetos E assim encontramos um objeto especiacutefico e individualizado por assim dizer

inserido no sentido interno isto eacute dentro da consciecircncia No caso desse objeto Schopenhauer

natildeo fala em faculdade de conhecimento somente em um correlato subjetivo que eacute a

consciecircncia de si ou sentido interno52

A vontade individual eacute uacutenica para cada indiviacuteduo mas

pode apresentar-se em muacuteltiplos graus e intensidades os quais satildeo definidos como

sentimentos dados imediatamente ao sujeito do conhecer Em virtude disso diz o filoacutesofo ldquoA

partir do conhecimento pode-se dizer que ldquoeu conheccedilordquo seja uma sentenccedila analiacutetica ao

contraacuterio ldquoeu querordquo eacute sinteacutetica e na verdade a posteriori dada pela experiecircncia aqui pela

interna (isto eacute somente no tempo)rdquo53

O conhecimento do sujeito do querer eacute entatildeo o mais imediato de todos

posto que eacute dado na consciecircncia de si e eacute o que deveraacute mediar o conhecimento de quaisquer

outros objetos A forma do princiacutepio de razatildeo que rege o sujeito do querer eacute a lei de

motivaccedilatildeo (Satz vom zureichenden Grunde des Handelns) ou principium rationis sufficientis

agendi pela qual todas as accedilotildees e decisotildees dos indiviacuteduos satildeo resultantes de motivos do

mesmo modo como todo efeito implica uma causa Essa lei eacute apresentada por Schopenhauer

como completamente paralela agrave de causalidade que investigaremos em seguida e definida

como esta uacuteltima vista por dentro54

Em linhas gerais a lei de motivaccedilatildeo determina que as

decisotildees e os atos de vontade dos indiviacuteduos sejam originados a partir de motivos de modo

interno e imediato55

Por fim eacute importante ressaltar que essa classe de objetos eacute anunciada ao

sujeito cognoscente a partir de outra instacircncia a saber da vontade individual cuja raiz eacute

metafiacutesica Trata-se portanto de um ponto onde se encontram os dois lados do mundo

52

UumlV sect42 p 171-172 CR sect42 p 206 53

UumlV sect42 p 171 CR sect42 p 205 54

UumlV sect43 p 173 CR sect43 p 208 55

UumlV sect43 p 173 CR sect43 p 208

- 91 -

213 ndash Dianoiologia

Como dissemos no item anterior a prova schopenhaueriana da idealidade

transcendental do mundo como representaccedilatildeo segue dois caminhos Por um lado sustenta a

necessidade das formas da sensibilidade para o conjunto do mundo como representaccedilatildeo por

outro explica o mecanismo de construccedilatildeo dos objetos que o compotildeem com base no princiacutepio

de razatildeo Esta uacuteltima prova eacute realizada tambeacutem de duas perspectivas a saber pelo acircngulo do

conjunto da experiecircncia e pelo dos objetos singulares No tocante ao conjunto da experiecircncia

Schopenhauer argumenta que a uniatildeo de tempo e espaccedilo eacute obra do entendimento que ao

empreendecirc-la cria a realidade empiacuterica Essa prova poderia ser confundida com a referente agrave

aprioridade do tempo e do espaccedilo que tambeacutem satildeo acionados aqui Para a distinccedilatildeo poreacutem

basta notarmos que no primeiro caso o filoacutesofo expotildee a anterioridade das formas da

sensibilidade mostrando que a sucessatildeo e a justaposiccedilatildeo satildeo fundamentais para as

representaccedilotildees de simultaneidade e mudanccedila enquanto no segundo caso a construccedilatildeo da

realidade empiacuterica eacute explicada pelo ato de junccedilatildeo daquelas formas realizado pela lei de

causalidade No primeiro caso o alvo satildeo tempo e espaccedilo enquanto formas e no segundo o

princiacutepio de razatildeo e o entendimento White tambeacutem sublinha a necessidade do entendimento

para a formaccedilatildeo da experiecircncia ao afirmar que ldquoEmbora por essas razotildees tempo e espaccedilo

sejam necessaacuterios para a existecircncia real dos objetos eles natildeo satildeo suficientes Precisam ser

unidos por um terceiro componente e eacute a faculdade do entendimento que o fornece impondo

sua uacutenica categoria ao que lhe eacute dadordquo56

O princiacutepio de razatildeo referente ao entendimento harmoniza as

caracteriacutesticas transmitidas agrave experiecircncia pelo tempo em que tudo eacute sucessivo e pelo espaccedilo

em que tudo eacute justaposto Conforme Schopenhauer as propriedades do tempo e do espaccedilo satildeo

contrapostas isto eacute o fluxo constante do primeiro se opotildee agrave permanecircncia imoacutevel do

segundo57

Com a uniatildeo de ambos o entendimento agrupa e ordena o complexo de

representaccedilotildees que entatildeo surge e que abarca todas as intuiccedilotildees empiacutericas mesmo distantes

entre si no tempo e no espaccedilo Eacute o nascimento do universo total dos fenocircmenos onde diz o

56

WHITE op cit p 67 (traduccedilatildeo nossa) 57

WWVI ersters Buch sect4 p 39 MI Livro I sect4 p 51

- 92 -

filoacutesofo ldquo[] inumeraacuteveis objetos existem simultaneamente porque nele embora o tempo

natildeo possa ser detido a substacircncia isto eacute a mateacuteria permanece e apesar da imobilidade riacutegida

do espaccedilo seus objetos mudam no qual em uma palavra nos eacute dado todo o mundo real

objetivordquo58

Portanto o princiacutepio de razatildeo agrega as intuiccedilotildees empiacutericas que constituem a

classe de objetos relacionada aos dados concretos do mundo e assim edifica a realidade como

um todo Schopenhauer afirma que os objetos dessa classe satildeo intuitivos porque natildeo satildeo

meros pensamentos satildeo completos porque englobam forma e mateacuteria e satildeo empiacutericos pois

estatildeo em relaccedilatildeo direta com as sensaccedilotildees corporais e com o conjunto total da realidade59

Como jaacute exposto o tempo eacute o sentido interno e simultaneamente a

forma do sujeito cognoscente onde as representaccedilotildees encontram-se de modo imediato dentre

elas o sujeito da voliccedilatildeo Daiacute decorre em primeiro lugar que todas as representaccedilotildees passam

por ele inclusive as empiacutericas que tambeacutem exigem o intercurso do sentido externo E em

segundo lugar que elas fluem continuamente no sujeito Nas palavras do filoacutesofo

Desse modo como o sujeito em funccedilatildeo das leis tanto do mundo interno

como do externo natildeo pode ficar parado em uma representaccedilatildeo e no

entanto no mero tempo nada eacute simultacircneo entatildeo cada representaccedilatildeo estaraacute

sempre novamente desaparecendo substituiacuteda por outra em uma ordem natildeo

determinaacutevel a priori mas sim dependente de circunstacircncias que logo seratildeo

mencionadas60

Sobre esse ponto duas consequecircncias satildeo importantes Por um lado o

sujeito cognoscente por si soacute natildeo poderia engendrar a realidade empiacuterica pois sua forma eacute a

da sucessatildeo Por outro o conhecimento das representaccedilotildees se daacute de modo imediato no sentido

interno isto eacute no tempo e no presente de modo que passado e futuro natildeo satildeo representaccedilotildees

intuitivas

De acordo com o dito haacute uma discrepacircncia entre o caraacuteter fugidio e

isolado das representaccedilotildees tomadas individualmente e o complexo total da realidade no qual

elas aparecem como partes que se combinam de um modo ateacute certo ponto duradouro

Portanto a unificaccedilatildeo de tempo e espaccedilo pelo entendimento eacute condiccedilatildeo da experiecircncia e

nessa perspectiva diz Schopenhauer o realismo natildeo se sustenta pois considera o todo

empiacuterico como real e a representaccedilotildees isoladas como elementos meramente ideais Para ele o

idealismo entendeu a questatildeo de forma diferente e melhor porque conseguiu combinar a

58

UumlV sect18 p 44 CR sect18 p 63 59

UumlV sect17 p 42 CR sect17 p 61 60

UumlV sect19 p 45 CR sect19 p 65 (grifos do autor)

- 93 -

realidade empiacuterica dos objetos do universo corpoacutereo com a idealidade deles61

Parte

fundamental desse idealismo eacute a concepccedilatildeo de que o mundo concreto eacute um fenocircmeno do

sujeito e o erro do realismo teria sido natildeo compreender o caraacuteter de representaccedilatildeo das coisas

tomadas por reais nem a relaccedilatildeo intriacutenseca entre sujeito e objeto O realismo afirma o

filoacutesofo ldquo[] desconsidera que o objeto fora de sua relaccedilatildeo com o sujeito natildeo eacute mais objeto e

que se algueacutem lhe retira dessa relaccedilatildeo ou a abstrai imediatamente toda a existecircncia objetiva

tambeacutem eacute suspensardquo62

A forma do princiacutepio de razatildeo que estabelece a dinacircmica das

representaccedilotildees no todo empiacuterico eacute o principium rationis sufficientis fiendi (Satz vom

zureichenden Grunde des Werdens) ou princiacutepio de razatildeo suficiente do devir63

Trata-se da

lei de causalidade que determina o iniacutecio e o fim de estados da mateacuteria bem como todas as

mudanccedilas ocorridas nas representaccedilotildees no decurso do tempo Nas palavras de Schopenhauer

ldquo[] quando surge um novo estado de um ou mais objetos reais deve ter havido outro

anterior ao qual ele segue regularmente isto eacute todas as vezes em que o primeiro existe Tal

sequecircncia denomina-se derivar o primeiro estado causa e o segundo efeitordquo64

De um ponto

de vista mais preciso a lei de causalidade determina as transformaccedilotildees nos corpos materiais

iniciadas em instantes dados do tempo

Para Gardiner ldquo[] Schopenhauer natildeo considerou que a conexatildeo causal

entre fenocircmenos implicasse a existecircncia de uma espeacutecie de bdquouniatildeo‟ ou bdquolaccedilo‟ quase-loacutegico

que unisse misteriosamente a causa ao efeito nisso sua posiccedilatildeo natildeo difere da de Hume e

outros que atacaram essa ideiardquo65

Por nossa parte pensamos que o viacutenculo estabelecido por

Schopenhauer entre causa e efeito eacute sim loacutegico pois se baseia na ideia de uma uniatildeo

necessaacuteria entre ambos em qualquer das duas direccedilotildees possiacuteveis isto eacute do efeito para a causa

ou da causa para o efeito Eacute certo que na visatildeo schopenhaueriana sem recurso agrave experiecircncia

natildeo se pode determinar a causa concreta que engendrou um efeito mas se pode e se deve

afirmar com certeza que o efeito teve uma causa quando natildeo se puder apontaacute-la o estado

resultante seraacute visto como milagre Com efeito para o filoacutesofo toda causa acarreta

indefectivelmente o seu efeito sem exceccedilatildeo sendo exatamente esse seu conceito de

61

UumlV sect18 p 46 CR sect18 p 66 62

UumlV sect19 p 47 CR sect19 p 66 63

UumlV sect20 p 48 CR sect20 p 68 64

UumlV sect20 loc cit CR sect20 loc cit 65

Ibidem op cit p 152 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor)

- 94 -

necessidade Aleacutem disso Schopenhauer entende o princiacutepio como composto de quatro leis

loacutegicas como jaacute mostramos anteriormente

A natureza se configura como um complexo empiacuterico em constante

mutaccedilatildeo e alteraccedilatildeo de estados em que causas e efeitos alternam-se permanentemente como

elos de uma cadeia sem iniacutecio66

Que essa cadeia seja infinita na direccedilatildeo descendente isto eacute

no sentido do futuro decorre jaacute da definiccedilatildeo de tempo como a forma da sucessatildeo que

somente pode se dar do anterior para o posterior Que ela seja tambeacutem infinita na direccedilatildeo

ascendente Schopenhauer ilustra com o exemplo do processo de aquecimento de um corpo A

adiccedilatildeo do calor ao corpo diz ele ldquo[] eacute tambeacutem dependente de uma mudanccedila anterior por

exemplo a incidecircncia de raios de sol em uma lupa esta da saiacuteda de uma nuvem da frente do

sol esta por causa do vento isso pela diferenccedila de densidade do ar esta por outras

mudanccedilas in infinitumrdquo67

Para ele o que determina a apariccedilatildeo de um estado novo o

aquecimento do corpo por exemplo natildeo eacute a condiccedilatildeo que aparece por uacuteltimo a incidecircncia de

raios de sol e sim todas as condiccedilotildees em conjunto Embora a uacuteltima possa ser a decisiva o

que determina qualquer transformaccedilatildeo eacute o quadro causal completo

Por conseguinte natildeo eacute o fato de ser imediatamente anterior no tempo o

que indica a causa de uma mudanccedila mas sim a reuniatildeo dos fatores que juntos formam as

circunstacircncias determinantes Entatildeo o filoacutesofo explica no caso mencionado do aquecimento

do corpo a ordem em que ocorreram os eventos natildeo importa isto eacute em que instantes se datildeo a

retirada da nuvem da frente do sol o direcionamento da lupa ao objeto e assim por diante Um

evento acontecer antes e o outro depois natildeo tem nenhuma influecircncia especiacutefica sobre o efeito

pois diz ele ldquo[] o estado completo eacute a causa do estado seguinte para o qual eacute

essencialmente indiferente a sequecircncia temporal em que suas determinaccedilotildees se reuniramrdquo68

Natildeo obstante o quadro causal no seu conjunto deve necessariamente ser anterior ao efeito

que origina Nas palavras do filoacutesofo ldquoQualquer mudanccedila no mundo material somente pode

surgir se outra a precedeu de modo imediato esse eacute o verdadeiro e total conteuacutedo da lei de

causalidaderdquo69

O princiacutepio de razatildeo do devir se relaciona com as mudanccedilas de estados

na mateacuteria sem no entanto poder modificaacute-la Schopenhauer enfatiza esse ponto mostrando

66

UumlV sect20 p 48 et seq CR sect20 p 68 et seq 67

UumlV sect20 48 CR sect20 68 68

UumlV sect20 p 49 CR sect20 p 70 (grifos do autor) 69

WWWII Kap 4 p 54 MII cap 4 p 48 (grifos do autor)

- 95 -

que a causalidade natildeo se refere a objetos que nesse caso causariam uns aos outros mas

somente agrave entrada e saiacuteda dos estados no tempo70

A causalidade eacute entatildeo uma lei que rege as

alteraccedilotildees nos objetos e que introduz um nexo necessaacuterio entre as causas e os efeitos nas

mudanccedilas ocorridas na mateacuteria Poreacutem como dito ela natildeo determina o surgimento dos

objetos mesmos pois isso significaria originaacute-los tambeacutem no que tecircm de material o que natildeo eacute

caso Nesse sentido diz Schopenhauer ldquo[] evencia-se que a causalidade se liga apenas a

mudanccedilas de forma da mateacuteria incriada e indestrutiacutevel enquanto um verdadeiro surgimento

um vir a existir de algo que nunca foi eacute uma impossibilidaderdquo71

Eacute interessante a exegese que

Bryan Magee em sua obra Schopenhauer elabora sobre esse ponto

Schopenhauer insiste em que a causa de um acontecimento soacute pode ser outro

acontecimento natildeo pode ser um objeto ou um estado de coisas Os objetos e

os estados de coisas entram e saem da existecircncia mediante sequecircncias de

acontecimentos relacionados causalmente e que juntos constituem a histoacuteria

em curso do mundo natural isto eacute o universo fiacutesico em sua totalidade Essa

eacute a relaccedilatildeo causal tal como se concebe na ciecircncia e na fiacutesica newtoniana72

Por conseguinte tanto quanto o efeito a causa tambeacutem surge em um

momento determinado Em virtude disso natildeo se poderia afirmar a existecircncia de uma causa

objetiva primaacuteria como seria a postulaccedilatildeo de um ente originaacuterio nem se poderia assegurar

que fosse a primeira pois ela sempre teraacute de remeter a outra causa mais elevada Desse modo

causa prima e causa sui satildeo consideradas por Schopenhauer como contradictiones in adjeto

jaacute que a lei de causalidade nunca cessa de exigir a busca das causas e diz o filoacutesofo ldquo[] uma

causa primeira eacute tatildeo impensaacutevel como o lugar onde espaccedilo acaba e o instante em que o tempo

comeccedilardquo73

De modo semelhante natildeo se poderia encontrar por meio dessa lei um primeiro

estado da mateacuteria do qual todos os outros fossem decorrentes Em primeiro lugar porque

sendo nada nada dele se derivaria em segundo porque se o estado inicial fosse a causa dos

mais distantes estes tambeacutem existiriam desde sempre e o estado atual natildeo poderia estar

avanccedilado no tempo74

De outra perspectiva supondo-se que tenha havido um primeiro estado

que se tornou causa em um dado momento isso significaria o advento de uma transformaccedilatildeo

anterior a ele que por sua vez tem de ter sido decorrente de outra mudanccedila esta de outra e

assim sucessivamente Como escreve White

70

UumlV sect20 p 50 CR sect20 p 70 71

UumlV sect20 p 51 CR sect20 p 71 72

MAGEE B Schopenhauer Madrid Catedra 1991 p 37 (traduccedilatildeo nossa) 73

UumlV sect20 p 52 CR sect20 p 73 74

UumlV sect20 p 52-53 CR sect20 loc cit

- 96 -

Deus natildeo pode ser uma causa posto que Deus natildeo eacute uma mudanccedila e soacute

mudanccedilas podem ser causas nem mudanccedilas em Deus podem ser causas

posto que natildeo haacute mudanccedilas em Deus Aleacutem disso o mundo dos objetos reais

natildeo pode ser um efeito de Deus como causa pois objetos reais satildeo

substacircncias e portanto diferentemente dos efeitos natildeo possuem iniacutecio Em

qualquer evento a proacutepria noccedilatildeo de causa incausada eacute incoerente pois toda

causa eacute uma mudanccedila e portanto ela proacutepria exige uma causa75

Consequentemente o argumento cosmoloacutegico natildeo tem sentido porque

utiliza o princiacutepio de razatildeo suficiente do devir com o propoacutesito de revogar a validade dele76

ldquoPoisrdquo o filoacutesofo explica ldquosomente se chega agrave causa prima (absolutum) ascendendo do efeito

ao seu fundamento percorrendo-se uma seacuterie de tamanho arbitraacuterio mas natildeo se pode parar

nela sem anular o princiacutepio de razatildeordquo77

Na condiccedilatildeo de forma do princiacutepio de razatildeo a lei de causalidade eacute a

priori vaacutelida para toda a experiecircncia possiacutevel A relaccedilatildeo que ela estabelece determina de

modo necessaacuterio que um dos estados eacute anterior e causa enquanto outro eacute posterior e efeito

Daiacute a denominaccedilatildeo de princiacutepio do devir porque um evento emerge a partir de outro

inclusive com a ordem determinada em que a causa vem primeiro e o efeito depois Nas

palavras de Schopenhauer ldquoPertence ao seu caraacuteter essencial aleacutem disso que a causa sempre

preceda o efeito no tempo e soacute assim se conheceraacute originalmente qual de ambos os estados

ligados pelo nexo causal seria a causa e qual o efeitordquo78

Desse modo a existecircncia de causas

reciacuteprocas seria impossiacutevel pois isso significaria uma confusatildeo entre o que eacute anterior e o que

eacute posterior ou diz o filoacutesofo ldquo[] que o efeito fosse tambeacutem a causa de sua causa e assim

que o seguinte fosse simultacircneo ao precedenterdquo79

As leis da ineacutercia e da permanecircncia da substacircncia satildeo entendidas por

Schopenhauer como corolaacuterios da de causalidade A ineacutercia determina a perpetuaccedilatildeo do

movimento ou do repouso que somente satildeo alterados se alguma causa retirar o corpo do

estado em que se encontra A mudanccedila no estado de movimento ou de repouso eacute um efeito

que exige uma causa para ocorrer A lei da permanecircncia da substacircncia por seu turno eacute

relacionada pelo filoacutesofo agrave mateacuteria que natildeo se modifica com as mudanccedilas de estado

realizadas pela causalidade a qual somente altera o repouso o movimento a forma e a

75

WHITE op cit p 69 (traduccedilatildeo nossa) 76

UumlV sect20 p 55-56 CR sect20 p 76 77

UumlV sect20 p56 CR sect20 p 76-77 78

UumlV sect20 p 57 CR sect20 p 78 79

UumlV sect20 loc cit CR sect20 loc cit

- 97 -

qualidade dos corpos80

A causalidade diz Schopenhauer ldquo[] de modo algum se refere agrave

existecircncia do portador desses estados ao qual se deu o nome de substacircncia justamente para

expressar sua isenccedilatildeo de todo nascer e perecerrdquo81

Como natildeo haacute no entendimento uma forma

pela qual pudeacutessemos pensar o surgimento e o desaparecimento da substacircncia conheceriacuteamos

a priori a lei que afirma sua permanecircncia A explicaccedilatildeo de White sobre esse ponto eacute

elucidativa

Permita-nos imaginar que eu mova um martelo e bata um prego cravando-o

num pedaccedilo de madeira O movimento do martelo uma mudanccedila relativa no

seu estado eacute a causa e o movimento do prego uma mudanccedila relativa no seu

estado eacute o efeito Nesse modelo simplificado entatildeo causa e efeito satildeo

mudanccedilas em objetos reais e Schopenhauer sustenta que isso eacute verdadeiro

para todas as causas e efeitos todas e quaisquer mudanccedilas satildeo causas e

efeitos e consequentemente os objetos reais mesmos natildeo Seu raciociacutenio

aqui eacute que os objetos reais satildeo substacircncias isto eacute eles satildeo constituiacutedos por

mateacuteria e uma vez que para ele a mateacuteria eacute eterna e inalteraacutevel as

substacircncias natildeo tecircm iniacutecio nem fim Daiacute se segue que elas natildeo satildeo

mudanccedilas portanto nem causas nem efeitos82

A funccedilatildeo do entendimento eacute portanto conhecer a causalidade e aplicaacute-la

aos estados aos quadros causais fenomecircnicos Isso significa que ela se relaciona sempre a

algo especificamente determinado ou nas palavras de Schopenhauer ldquoQue estado deve

aparecer neste tempo e neste espaccedilo eacute a determinaccedilatildeo agrave qual unicamente se estende a

legislaccedilatildeo da causalidaderdquo83

Mesmo nos sendo invisiacutevel a substacircncia estaraacute sempre

pressuposta necessariamente e essa eacute outra razatildeo pela qual se pode dizer que o conhecimento

da lei da sua permanecircncia eacute a priori e natildeo a posteriori O filoacutesofo lembra nesse sentido que

o desaparecimento de um corpo natildeo demove a convicccedilatildeo de que ele deve estar em outro lugar

porque temos a certeza caracteriacutestica de um conhecimento a priori de que nada desaparece

pura e simplesmente Um conhecimento a posteriori adquirido por induccedilatildeo natildeo eacute capaz de

promover esse tipo de assentimento que contrapotildee de modo inexoraacutevel ateacute mesmo o que eacute

visto com os proacuteprios olhos Assim ele afirma

Tambeacutem natildeo obtivemos a posteriori a convicccedilatildeo acerca da permanecircncia da

substacircncia em parte porque eacute impossiacutevel na maioria dos casos comprovaacute-

los empiricamente em parte porque todo conhecimento empiacuterico

conhecido apenas por induccedilatildeo possui certeza apenas aproximativa por

consequecircncia precaacuteria e nunca incondicional por isso a seguranccedila da

nossa convicccedilatildeo em relaccedilatildeo agravequela lei eacute de um tipo e natureza totalmente

80

WWV I ersters Buch sect4 p 40 M I Livro I sect4 p 52 81

UumlV sect20 p 58 CR sect20 p 79 (grifos do autor) 82

WHITE op cit p 68 (traduccedilatildeo nossa) 83

WWV I ersters Buch sect4 p 40 M I Livro I sect4 p 52 (grifos do autor)

- 98 -

diferentes da seguranccedila sentida na exatidatildeo de qualquer lei natural

empiricamente descoberta posto que possui uma solidez totalmente

diferente completamente inabalaacutevel e nunca oscilante84

De acordo com isso a lei da permanecircncia da substacircncia eacute transcendental

natildeo proveacutem da experiecircncia ao contraacuterio determina-a Nessa condiccedilatildeo conforma o mundo da

representaccedilatildeo que diz Schopenhauer ldquo[] fica reduzido como um todo a um mero fenocircmeno

cerebralrdquo85

O caraacuteter de necessidade eacute essencial a um conhecimento transcendental e eacute

suficiente tambeacutem para distinguir um saber empiacuterico vaacutelido em certos contextos de outro a

priori vaacutelido em qualquer contexto da experiecircncia possiacutevel Como escreve o filoacutesofo ldquoO

princiacutepio de razatildeo suficiente em todas as suas formas eacute o uacutenico princiacutepio e o uacutenico portador

de toda e qualquer necessidade Pois necessidade natildeo tem outro sentido verdadeiro e claro do

que a inevitabilidade da consequecircncia quando a razatildeo eacute postardquo86

Mesmo no caso de leis empiacutericas providas de generalidade e grau alto de

certeza natildeo se pode tomaacute-las por apodiacuteticas como satildeo as leis da causalidade da ineacutercia e da

permanecircncia da substacircncia Sempre se poderaacute supor a existecircncia ou imaginar a

experimentaccedilatildeo de situaccedilotildees novas em que elas natildeo se verifiquem o que significa que satildeo em

alguma medida dependentes de circunstacircncias que soacute surgem a posteriori Esse eacute o caso

inclusive da lei da gravitaccedilatildeo universal que diz Schopenhauer eacute meramente empiacuterica e

deixa duacutevidas entre os astrocircnomos sobre se vigeria em outros sistemas solares entre corpos

separados pelo vazio absoluto e em outras situaccedilotildees87

Conhecimentos a priori poreacutem satildeo

ancorados no princiacutepio de razatildeo e natildeo deixam margem a questotildees que soacute possam ser

resolvidas com informaccedilotildees e dados empiacutericos Entatildeo ele escreve ldquoEu defendo aleacutem disso

que o princiacutepio de razatildeo eacute a expressatildeo geral para todas essas formas conhecidas por noacutes a

priori e que tudo o que podemos conhecer somente a priori nada mais eacute do que o conteuacutedo

daquele princiacutepio e do que dele se segue []88

Aleacutem da substacircncia a causalidade tambeacutem natildeo modifica as forccedilas da

natureza que conforme Schopenhauer possibilitam que as causas acarretem os efeitos As

forccedilas da natureza possuem um estatuto diferente diz ele ldquo[] satildeo isentas de toda mudanccedila e

nesse sentido fora de todo o tempo por isso mesmo contudo existem sempre e em toda a

84

UumlV sect20 p 59 CR sect20 p 80 (grifos do autor) 85

UumlV sect20 loc cit CR sect20 p 81 86

UumlV sect49 p 181 CR sect49 p 218 (grifos do autor) 87

UumlV sect20 p 59 CR sect20 p 81 88

WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I Livro I sect2 p 46

- 99 -

parte onipresentes e inesgotaacuteveis sempre prontas a se manifestarem logo que a guia da

causalidade oferece a oportunidaderdquo89

A causa e o efeito natildeo satildeo forccedilas universais desse tipo

satildeo mutaccedilotildees particularizadas em pontos especiacuteficos do tempo e do espaccedilo As forccedilas

naturais ao contraacuterio satildeo universais e ubiacutequas Em O mundo Schopenhauer esclarece a

esse respeito que ldquoO que eacute determinado pela lei de causalidade natildeo eacute a sucessatildeo de estados no

mero tempo mas essa sucessatildeo com respeito a um espaccedilo determinado e tambeacutem natildeo a

existecircncia de mudanccedilas meramente num certo espaccedilo mas nesse espaccedilo em um tempo

determinadordquo90

Causas e efeitos satildeo entatildeo acontecimentos singulares que desencadeiam

processos de mutaccedilatildeo com base em forccedilas imutaacuteveis e gerais cuja regularidade de apariccedilatildeo

em cadeias causais evidencia tratarem-se de leis91

Por conseguinte as forccedilas naturais

originaacuterias natildeo satildeo fiacutesicas natildeo possuem explicaccedilatildeo no acircmbito fenomecircnico mas sim

metafiacutesicas e satildeo chamadas por Schopenhauer de ldquoqualitas occultardquo92

A mutaccedilatildeo que desencadearaacute o efeito pode ser de trecircs tipos a saber

causa estrita (Ursache) relacionada aos corpos inorgacircnicos estiacutemulo (Reiz) ligado agraves plantas

e motivo (Motiv) proacuteprio dos animais Schopenhauer considera que as distintas

receptividades a esses tipos de causas satildeo as reais diferenccedilas entre os seres e natildeo suas

caracteriacutesticas de ordem fiacutesica ou quiacutemica93

Sem prejuiacutezo para a forma geral da causalidade

cada tipo de causa estabelece processos diferentes de causaccedilatildeo em uma de trecircs esferas

distintas A causa estrita vige na natureza inorgacircnica e segue a terceira lei de Newton que

estabelece a igualdade de accedilatildeo e reaccedilatildeo em direccedilotildees contraacuterias Os efeitos que daiacute se

originam satildeo parte dos estudos das ciecircncias fiacutesicas e quiacutemicas O estiacutemulo vigora na natureza

orgacircnica sem conhecimento como as plantas e a parte vegetativa da vida animal objetos das

ciecircncias bioloacutegicas Por fim o motivo eacute relacionado agrave vida consciente especificamente a

animal dando origem a decisotildees e accedilotildees Schopenhauer natildeo distingue seres humanos e

animais pelo conhecimento em sentido amplo pois o entendimento eacute suficiente para o influxo

dos motivos em todos eles O entendimento ele afirma ldquo[] eacute o mesmo em todos os animais

e em todos os homens tem em toda parte a mesma forma simples conhecimento da

causalidade passagem do efeito agrave causa e da causa ao efeito e nada aleacutem dissordquo94

89

UumlV sect20 p 60 CR sect20 p 82 90

WWV I ersters Buch sect4 p 39 M I Livro I sect4 p 51 91

UumlV sect20 p 61 CR sect20 p 83 92

UumlV sect20 loc cit CR sect20 loc cit 93

UumlV sect20 p 62 CR sect20 p 84 94

WWV I ersters Buch sect6 p 53 M I Livro I sect6 p 64

- 100 -

Aleacutem de estruturar o conjunto da experiecircncia e regular as interaccedilotildees entre

os fenocircmenos a causalidade possui outra funccedilatildeo a saber a constituiccedilatildeo dos objetos

empiacutericos Como dissemos antes essa eacute a segunda parte da demonstraccedilatildeo da idealidade

transcendental do mundo como representaccedilatildeo e aqui veremos entrar a soluccedilatildeo de

Schopenhauer para a questatildeo acerca da afecccedilatildeo dos sentidos por um objeto exterior Com

efeito a intuiccedilatildeo empiacuterica eacute produzida pelo entendimento com a causalidade juntamente com

as formas da sensibilidade pura tempo e espaccedilo95

Com suas formas diz o filoacutesofo o

entendimento ldquo[] a partir de elementos simples de algumas sensaccedilotildees dos oacutergatildeos dos

sentidos cria e produz esse mundo exterior objetivo []rdquo96

Ao identificar completamente

objeto e representaccedilatildeo Schopenhauer responde agrave questatildeo acerca da objetividade do

conhecimento tornando desnecessaacuterio e incoerente a busca dos mecanismos que conectariam

a representaccedilatildeo e o objeto ao qual supostamente pudesse se referir Com isso

adicionalmente ele considera demonstrada a convivecircncia harmocircnica entre a idealidade

transcendental do mundo como representaccedilatildeo e sua realidade empiacuterica Pois de acordo com

ele assim estaacute assegurado que ldquo[] o objeto natildeo eacute em verdade coisa em si mas como

objeto empiacuterico eacute realrdquo97

A soluccedilatildeo schopenhaueriana para a questatildeo da objetividade conduz

poreacutem a uma formulaccedilatildeo insoacutelita Conforme a argumentaccedilatildeo do filoacutesofo na medida em que a

causalidade soacute atua entre objetos natildeo outorga realidade absoluta ao mundo como

representaccedilatildeo Ela natildeo conecta as coisas em si ao conhecimento mas apenas os objetos entre

eles mesmos sem poder ultrapassaacute-los O mundo da representaccedilatildeo surge entatildeo como um

objeto condicionado pela existecircncia de um sujeito e pelas suas formas que o edificaratildeo de

uma maneira determinada98

E diz Schopenhauer a garantia simultacircnea da idealidade

transcendental e da realidade empiacuterica do mundo autoriza a sustentar como verdadeiro que

ldquo[] o espaccedilo existe somente na minha cabeccedila mas empiricamente minha cabeccedila estaacute no

espaccedilordquo99

Na opiniatildeo de Alexis Philonenko essa tese obscureceu a filosofia

schopenhaueriana para sempre100

Segundo esse autor Bergson foi quem evidenciou o

absurdo do paradoxo no qual se fundem uma parte do espaccedilo e sua totalidade a cabeccedila que

estaacute no espaccedilo eacute uma parte dele e no entanto deveraacute fornecer a representaccedilatildeo total onde ela

95

UumlV sect21 p 67 CR sect21 p 89 96

UumlV sect21 loc cit CR sect21 loc cit 97

WWWII Kap 2 p 30 MII cap 2 p 23 98

WWWII Kap 2 p 30 MII cap 2 p 23 99

WWWII Kap 2 p 30 MII cap 2 p 23 100

PHILONENKO A Schopenhauer Una filosofia de la tragedia Barcelona Anthropos 1989 p 82

- 101 -

mesma se situaraacute Poreacutem escreve Philonenko ldquoSchopenhauer natildeo parece ter sido consciente

da dificuldade Da presenccedila do espaccedilo em mim de sua existecircncia (sic) chega agrave realidade

fenomenal de todos os objetosrdquo101

No segundo capiacutetulo de O mundoII que trata do conhecimento

intuitivo Schopenhauer extrai as uacuteltimas consequecircncias dessa concepccedilatildeo da idealidade do

espaccedilo Ele afirma que percebemos as coisas instantacircnea e imediatamente como estando fora

de noacutes porque natildeo distinguimos a sensaccedilatildeo dos sentidos e o objeto que o entendimento

produz com ela Nunca tomamos consciecircncia da passagem do efeito agrave causa de modo que a

sensaccedilatildeo nos parece ser a proacutepria representaccedilatildeo102

Por isso embora a sensaccedilatildeo seja interna ao

corpo e imediata intuiacutemos as coisas como estando fora de noacutes Com ainda mais razatildeo diz ele

natildeo se distinguiratildeo para noacutes tambeacutem objeto e representaccedilatildeo jaacute que satildeo exatamente o mesmo

De modo semelhante embora o espaccedilo seja interior ao sujeito intuiacutemos os objetos como

exteriores Na verdade a intuiccedilatildeo eacute que tornaria as coisas externas o ldquofora de noacutesrdquo seria uma

criaccedilatildeo do intelecto que contudo natildeo deixaria de ser empiacuterica real e objetiva O que garante

a objetividade eacute ser um produto do entendimento cuja atividade engendra as representaccedilotildees

que se identificam com os objetos Nas palavras de Schopenhauer

Isso se explica porque o fora de noacutes eacute exclusivamente uma determinaccedilatildeo

espacial e o espaccedilo eacute apenas uma forma da nossa faculdade de intuiccedilatildeo isto

eacute uma funccedilatildeo do nosso ceacuterebro entatildeo o fora de noacutes onde situamos os

objetos em funccedilatildeo da sensaccedilatildeo visual estaacute ele proacuteprio na nossa cabeccedila por

isso laacute estaacute seu completo cenaacuterio Semelhante a quando vemos no teatro

montanhas floresta e mar mas estaacute tudo dentro dele103

No tocante ao tempo a objetividade tambeacutem pode ser considerada nessa

perspectiva No quarto capiacutetulo de O MundoII sobre o conhecimento a priori

Schopenhauer argumenta que mesmo sendo subjetivo o tempo se apresenta como algo

objetivo e separado do sujeito na medida em que independentemente de qualquer vontade

flui de modo contiacutenuo e permanente104

Entatildeo diz o filoacutesofo ldquoEle existe somente na cabeccedila

dos seres que conhecem mas a uniformidade de seu fluxo e a independecircncia da vontade daacute a

ele o direito da objetividaderdquo105

101

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 102

Isso eacute verdadeiro somente no caso da visatildeo Com os outros sentidos a transiccedilatildeo do efeito agrave causa pode ser

percebida Cf WWWII Kap 2 p 35 MII cap 2 p 28 103

WWWII Kap 2 p 34 MII cap 2 p 27 (grifos do autor) 104

WWWII Kap 4 p 48 MII cap 4 p 43 105

WWWII Kap 4 p 48 MII cap 4 p 43

- 102 -

Como vimos anteriormente a aprioridade da causalidade remete agrave uniatildeo

de tempo e espaccedilo pelo entendimento bem como agrave necessidade dela e de seus corolaacuterios para

a constituiccedilatildeo do conjunto da experiecircncia Pelo acircngulo dos objetos empiacutericos singulares a

prova da aprioridade da causalidade se daacute por diversas comparaccedilotildees entre as sensaccedilotildees dos

sentidos e a intuiccedilatildeo sensiacutevel Para Schopenhauer essa eacute a demonstraccedilatildeo mais apropriada do

caraacuteter a priori da lei causal qual seja a exposiccedilatildeo da sua necessidade para a constituiccedilatildeo de

toda e qualquer intuiccedilatildeo empiacuterica106

Ele ressalta a exigecircncia de uma forma intelectual para

que a sensaccedilatildeo ganhe feiccedilotildees de objeto e assevera que sem isso haveria somente estiacutemulos

locais sobre os oacutergatildeos dos sentidos Como ele afirma ldquoMesmo nos oacutergatildeos dos sentidos mais

nobres ela natildeo eacute mais do que algo local especiacutefico encerrado em seu tipo de capacidade para

sofrer alteraccedilotildees mas em si mesma sempre um sentimento subjetivo o qual natildeo pode conter

nada objetivo nem parecido a uma intuiccedilatildeordquo107

Por conseguinte a sensaccedilatildeo eacute entendida pelo filoacutesofo como um processo

que ocorre dentro do organismo sob a pele sem apontar para nada fora dele O corpo de cada

animal eacute o ponto inicial da intuiccedilatildeo do mundo e diz Schopenhauer ldquo[] nunca se poderia

chegar a ela se algum efeito natildeo fosse conhecido imediatamente e entatildeo servisse de ponto de

partida Mas este eacute o efeito nos corpos animais Desse modo estes satildeo os objetos imediatos108

do sujeito a intuiccedilatildeo de todos os outros objetos eacute mediada por elesrdquo109

Na obra Die Lehre

von der empirischen Anschauung bei Schopenhauer110

de Johann Baptist Rieffert haacute uma

observaccedilatildeo interessante sobre esse ponto Esse autor nota que considerando somente pelo

ponto de vista do mundo como representaccedilatildeo a sensaccedilatildeo quase natildeo difere da pura e simples

consciecircncia Nas palavras dele

Se enquanto nos mantemos nos domiacutenios do mundo como representaccedilatildeo

nenhuma vez compreendemos com ele [o entendimento] sob a causa de

nossas sensaccedilotildees algo de algum modo transcendente isto eacute se nenhuma vez

aceitamos que esse algo atua por menos que seja ou como atua entatildeo a

mera sensaccedilatildeo e sua representaccedilatildeo correspondente somente se diferenciam

da consciecircncia por serem situadas espaccedilo-temporalmente e esta uacuteltima natildeo

106

WWWII Kap 4 p 51 MII cap 2 p 45 107

UumlV sect21 p 68 CR sect21 p 91 108

No paraacutegrafo sect6 de O mundo e tambeacutem no sect22 de Da quaacutedrupla raiz Schopenhauer corrige a expressatildeo

ldquoobjeto imediatordquo em relaccedilatildeo ao corpo Ele explica que na condiccedilatildeo de ponto de partida do conhecimento o

corpo natildeo eacute de fato um objeto mas eacute apenas sentido difusamente como o lugar onde se datildeo as sensaccedilotildees dos

sentidos provocadas por outros corpos O corpo somente pode ser intuiacutedo como um objeto do modo como todos

os outros satildeo isto eacute como ocupando lugar no espaccedilo o que ocorre apenas com o concurso do entendimento 109

WWV I ersters Buch sect4 p 41 M I Livro I sect4 p 53 110

ERDMANN Benno (Herausgegeber) Abhandlungen zur Philosophie und irhre Geschichte 22 Heft

RIEFFERT J B Die Lehre von der empirische Anschauung bei Schopenhauer Halle Max Niemeyer 1914

- 103 -

Fora isso elas natildeo satildeo diferentes da consciecircncia em nada e interpretar uma

como causa e a outra como efeito seria equivalente a fazer coincidir causa e

efeito111

De qualquer modo Schopenhauer afirma que a mateacuteria do corpo eacute

suscetiacutevel a influecircncias externas mas toda sensaccedilatildeo assim produzida eacute subjetiva e adentra agrave

consciecircncia somente na forma do sentido interno no tempo112

Por isso mesmo para que

possa constituir um objeto exigiraacute algo mais que se combine a ela algo que possa exteriorizar

os dados que ela fornece E esse algo eacute exatamente o entendimento que por meio da

causalidade realiza a passagem do subjetivo ao objetivo Desse modo a formaccedilatildeo da intuiccedilatildeo

empiacuterica parte de um efeito interno aos corpos animais o qual ao ser relacionado agrave sua causa

permite a produccedilatildeo da representaccedilatildeo de um objeto externo113

Schopenhauer explica esse

processo esclarecendo que o entendimento ldquo[] em funccedilatildeo de sua proacutepria forma a priori

isto eacute antes de toda a experiecircncia (que antes disso natildeo eacute possiacutevel) sintetiza a sensaccedilatildeo dada

no corpo como um efeito (uma palavra que soacute ele entende) que como tal deve ter

necessariamente uma causardquo114

A forma do sentido externo eacute parte do intelecto e eacute por meio dela que o

entendimento aponta a causa como algo que estaacute fora do corpo Desse modo escreve o

filoacutesofo ldquo[] nasce para ele o exterior do qual o espaccedilo eacute a possibilidade assim a intuiccedilatildeo

pura a priori tem de fornecer o fundamento do empiacutericordquo115

Natildeo se trata de algo discursivo

ou seja natildeo haacute recurso a conceitos mas eacute uma construccedilatildeo imediata realizada no entendimento

e que soacute tem validade para ele mesmo A experiecircncia natildeo existe antes da accedilatildeo peculiar dele

que diz Schopenhauer ldquo[] tem de criar sozinho o mundo objetivo natildeo pode poreacutem

introduzi-lo na cabeccedila jaacute pronto previamente por meio dos sentidos e das entradas de seus

oacutergatildeosrdquo116

Como resultado todos os objetos empiacutericos e toda a experiecircncia possiacutevel

satildeo produtos do entendimento e das formas do tempo do espaccedilo e da causalidade Para a

construccedilatildeo desses objetos o entendimento utiliza a forma do espaccedilo e os dados das sensaccedilotildees

de certos sentidos sobretudo da visatildeo e do tato Segundo Schopenhauer o olfato a audiccedilatildeo e o

paladar natildeo fornecem informaccedilotildees com as quais se possa circunscrever um objeto no espaccedilo

111

Ibidem p 57 (traduccedilatildeo nossa) 112

UumlV sect21 p 68-69 CR sect21 p91 113

WWV I ersters Buch sect4 p 41 M I Livro I sect4 p 53 114

UumlV sect21 p 69 CR sect21 p 92 (grifos do autor) 115

UumlV sect21 p 69 CR sect21 p92 116

UumlV sect20 p 69 CR sect20 p 93

- 104 -

e portanto natildeo possibilitam nenhuma intuiccedilatildeo objetiva O que fazem diz ele eacute anunciar a

presenccedila de um objeto que jaacute foi conhecido antes por outros meios Apenas a visatildeo e o tato

oferecem elementos para que se aponte um corpo externo como causa de um efeito sentido

remetendo a relaccedilotildees espaciais que todavia natildeo satildeo elas mesmas as proacuteprias intuiccedilotildees117

Nesse sentido o filoacutesofo exemplifica ldquo[] um cego sem matildeos nem peacutes poderia construir para

si o espaccedilo com toda a sua regularidade a priori mas do mundo objetivo teria apenas uma

representaccedilatildeo muito confusardquo118

Esse exemplo eacute interessante pois serve de sustentaccedilatildeo para

as caracteriacutesticas do espaccedilo e do modo de atuaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo do ser referente a ele

A saber uma tal pessoa poderia ter conhecimento do espaccedilo usando apenas a forma do

sentido externo sem os dados advindos da visatildeo e do tato o que evidenciaria tratar-se de uma

forma a priori com relaccedilotildees proacuteprias

A anaacutelise schopenhaueriana sobre esse ponto eacute minuciosa Ele separa

detalhadamente o que eacute do campo da sensaccedilatildeo e o que eacute do campo da intuiccedilatildeo possibilitando

ver claramente o que eacute a forma e o que eacute a mateacuteria dos objetos De modo geral o processo se

daacute como se a sensaccedilatildeo fornecesse as premissas para que o entendimento extraiacutesse as

conclusotildees119

Natildeo seguiremos em pormenor toda a explanaccedilatildeo apenas sublinharemos os

aspectos em que se pode notar o que eacute acrescentado pelo entendimento aos dados dos sentidos

e que permite a produccedilatildeo da figura dos objetos sua magnitude sua distacircncia relativa sua

posiccedilatildeo e outras caracteriacutesticas natildeo devidas agrave sensaccedilatildeo120

Na concepccedilatildeo de Schopenhauer a

sensaccedilatildeo eacute um fato imediato diz ele ldquo[] um simples datum para o entendimento que

sozinho eacute capaz de interpretaacute-lo como efeito de uma causa totalmente diferente que ele intui

como algo externo isto eacute colocado no espaccedilo forma intelectual anterior a toda a experiecircncia

preenchendo-o e ocupando-ordquo121

Ele expotildee detalhadamente e com recurso a muitos exemplos

que a intuiccedilatildeo difere de modo radical da sensaccedilatildeo e que esta por si mesma natildeo apresenta

nada semelhante a um objeto De acordo com ele a conexatildeo entre o efeito e sua causa ldquo[] eacute

o modo de conhecimento do entendimento puro sem o qual nunca se teria intuiccedilatildeo mas

apenas sobraria uma consciecircncia embaccedilada vegetal das mudanccedilas no objeto imediato

[]rdquo122

Sua demonstraccedilatildeo da aprioridade da causalidade nesse aspecto deixa patente que ela

117

UumlV sect20 p 70 et seq CR sect20 p 93 et seq 118

UumlV sect20 p 71 CR sect20 p 94 119

UumlV sect21 p 71 CR sect21 p94 120

A exposiccedilatildeo completa pode ser conferida no sect 21 de UumlV 121

WWWII Kap 4 p 51 MII cap 4 p 45 122

WWV I ersters Buch sect4 p 41-42 M I Livro I sect4 p 54 (grifos do autor)

- 105 -

eacute condiccedilatildeo da intuiccedilatildeo empiacuterica que toda experiecircncia jaacute conteacutem o seu conceito e que por

tanto ela natildeo eacute obtida empiricamente123

Por conseguinte a passagem realizada pelo entendimento da sensaccedilatildeo

subjetiva agrave sua causa exterior conforma os objetos com suas caracteriacutesticas empiacutericas e

formais124

Conforme a argumentaccedilatildeo de Schopenhauer caso fosse obra da simples sensaccedilatildeo

a intuiccedilatildeo empiacuterica seria muito distinta de tudo o que conhecemos Na medida em que em

qualquer oacutergatildeo os sentidos as sensaccedilotildees natildeo satildeo simultacircneas e sim sucessivas o objeto seria

intuiacutedo em partes desconexas e sem referecircncia a nenhum todo coeso ou entatildeo cada sensaccedilatildeo

singular seria tomada por um objeto distinto De modo semelhante duas sensaccedilotildees idecircnticas

em um dos oacutergatildeos dos sentidos por exemplo no tato levaria a confundir ou a identificar

objetos diferentes pela indistinccedilatildeo das impressotildees No sentido da visatildeo natildeo poderiacuteamos

intuir nenhuma figura distacircncia entre objetos posiccedilatildeo ou perspectiva pois a mera sensaccedilatildeo

da retina eacute como uma tela manchada de muitas cores125

Natildeo obstante nada disso acontece em

virtude do entendimento que conforma os dados dos sentidos segundo a causalidade e aponta

uma causa externa uniforme para os diferentes efeitos sentidos no corpo126

De outra perspectiva haacute intuiccedilotildees para as quais a simples sensaccedilatildeo eacute

insuficiente o que mostra por outra via a mesma dependecircncia da representaccedilatildeo empiacuterica

com relaccedilatildeo ao entendimento Por exemplo diz Schopenhauer o deslocamento de um objeto

no espaccedilo num certo tempo natildeo eacute uma representaccedilatildeo que possa ser percebida nem que surja

somente com a sensaccedilatildeo Ao contraacuterio ele escreve eacute o ldquo[] intelecto que deve trazer antes

de toda experiecircncia a intuiccedilatildeo do espaccedilo do tempo e com elas a possibilidade do

movimento []rdquo127

Aleacutem do movimento muitas representaccedilotildees que satildeo fundamentos

realidade como a causalidade a materialidade as trecircs dimensotildees do espaccedilo a accedilatildeo de um

corpo sobre outro a extensatildeo a impenetrabilidade a coesatildeo a figura a dureza a perspectiva

e o repouso nenhuma delas pode ser obtida somente pelos sentidos128

As relaccedilotildees do

espaccedilo do tempo e da causalidade portanto natildeo satildeo apreendidas do mundo exterior e natildeo

adentram o intelecto por meio dos sentidos mas satildeo anteriores e de origem interna As

intuiccedilotildees do mundo da experiecircncia resultam de um processo em que o intelecto utiliza dados

123

WWV I ersters Buch sect4 p 43 M I Livro I sect4 p 55 124

WWV I ersters Buch sect4 p 42 M I Livro I sect4 p 54 125

UumlV sect21 p 74 CR sect21 p 98 126

UumlV sect21 p 69 CR sect21 p 92 127

UumlV sect21 p 73 CR sect21 p 96 128

UumlV sect21 p 73 CR sect21 96-97

- 106 -

sensoriais a posteriori determinando-os com formas a priori e somente nesse sentido

Schopenhauer admite que se fale em intuiccedilatildeo intelectual129

Uma prova adicional dessa teoria eacute o aprendizado do modo de utilizaccedilatildeo

do entendimento por meio de exerciacutecio e experiecircncia130

Embora faccedila parte do intelecto a

priori a maneira de utilizaacute-lo no conhecimento do mundo seria aprendida com tempo e uso

Bebecircs receacutem-nascidos diz Schopenhauer vivem durante um tempo em uma espeacutecie de

torpor em que o entendimento ainda natildeo comeccedilou a exercer sua funccedilatildeo de transformar

sensaccedilotildees em objetos Em seus primeiros meses de vida eles aprenderiam continuamente com

os dados providos pelos oacutergatildeos dos sentidos experimentando-os em muitas situaccedilotildees

diferentes e assim aprenderiam a usar seu entendimento Quando isso ocorre o mundo

objetivo vai se formando paulatinamente no seu intelecto o que afirma o filoacutesofo pode ser

notado ldquo[] no aspecto inteligente que seu olhar adquire e em certa intencionalidade nos seus

movimentos principalmente quando pela primeira vez eles demonstram com um sorriso

amaacutevel que reconhecem quem cuida delesrdquo131

Tambeacutem desse ponto de vista se revela que o

entendimento estaacute ligado ao conhecimento do mundo e que as meras sensaccedilotildees que os bebecircs

jaacute possuem ao nascer natildeo satildeo suficientes para conformarem objetos reconheciacuteveis

Schopenhauer apresenta ainda algumas confirmaccedilotildees adicionais da

aprioridade da causalidade dentre elas o aspecto de necessidade e o caraacuteter apodiacutetico da

convicccedilatildeo que a acompanha A seguranccedila que ela promove eacute como dissemos de um tipo

totalmente distinto da que se obteacutem atraveacutes de conhecimentos empiacutericos ainda que bastante

seguros No dizer do filoacutesofo ldquoPodemos por exemplo pensar que a lei da gravitaccedilatildeo

universal parasse de atuar uma vez mas natildeo que isso aconteccedila sem uma causardquo132

Do exposto seguem-se as duas funccedilotildees do entendimento De um lado a

conformaccedilatildeo do conjunto da experiecircncia pela uniatildeo de tempo e espaccedilo e de outro a

constituiccedilatildeo dos objetos empiacutericos pela passagem do efeito sentido internamente agrave causa

externa Nesse ponto Gardiner apresenta uma interessante indagaccedilatildeo ldquo[] ainda se pode

perguntar como os objetos perceptuais podem ao mesmo tempo ser considerados como

produzidos por nossa mente que age de um modo especial sobre os dados da sensaccedilatildeo e

129

WWV I ersters Buch sect4 p 41 M I Livro I sect4 p 53 130

UumlV sect21 p 90 CR sect21 p 117 131

UumlV sect21 p 90-91 CR sect21 p 117 132

UumlV sect23 p 112 CR sect23 p 140 (grifos do autor)

- 107 -

como causa e origem desses dadosrdquo133

De fato a indagaccedilatildeo eacute instigante mas tambeacutem natildeo

deixa de secirc-lo a deduccedilatildeo pela qual Schopenhauer somente por meio da causalidade deriva o

mundo e o conhecimento intuitivo do mundo No seu entender essa lei eacute a uacutenica forma do

entendimento a uacutenica de fato necessaacuteria diz ele e ldquo[] de modo nenhum aquela complicada

engrenagem das doze categorias kantianas cuja nulidade eu demonstreirdquo134

Como resultado

a causalidade existe a priori como condiccedilatildeo da intuiccedilatildeo e do universo empiacuterico aplica-se

somente ao mundo sensiacutevel natildeo agrave relaccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa em si nem aos objetos

tomados em si mesmos ldquoCom issordquo diz o filoacutesofo ldquoconcluiacutemos que se encontram em noacutes

todos os elementos da intuiccedilatildeo empiacuterica que natildeo conteacutem informaccedilatildeo de nada que seja pura e

simplesmente distinto de noacutes uma coisa em sirdquo135

214 ndash Teoria da razatildeo

A razatildeo eacute definida por Schopenhauer como a faculdade das

representaccedilotildees abstratas os conceitos que satildeo derivados das intuiccedilotildees Esses dois tipos de

representaccedilatildeo segundo o filoacutesofo relacionam-se como a luz do sol agrave da lua isto eacute uma eacute

imediata e proacutepria enquanto a outra eacute refletida e relativa136

Dentre os animais somente os

seres humanos possuem a faculdade da razatildeo com seus conceitos e inclusive tecircm o ceacuterebro

mais volumoso em funccedilatildeo disso137

Essa seria a uacutenica diferenccedila entre o intelecto humano e o

do animal responsaacutevel pela grande distinccedilatildeo entre os modos de vida de uns e de outros138

Para Schopenhauer os filoacutesofos de sua eacutepoca natildeo compreenderam corretamente a natureza da

razatildeo e contra a tradiccedilatildeo filosoacutefica e a opiniatildeo comum ignoraram a diferenccedila completa que

ela promove entre vida e o intelecto de homens e animais A visatildeo de Kant teria obscurecido e

mistificado conceito de razatildeo e por sua influecircncia os poacutes-kantianos teriam ampliado e

aprofundado seus erros Nesse sentido afirma Schopenhauer

133

GARDINER op cit p 160 (traduccedilatildeo nossa) 134

UumlV sect21 p 98 CR sect21 p 124 135

UumlV sect21 p 104 CR sect21 p 130 136

WWV I ersters Buch sect8 p 70 M I Livro I sect8 p 81 137

UumlV sect26 p 121 CR sect26 p 149 138

WWV I ersters Buch sect8 p 72 M I Livro I sect8 p 83

- 108 -

Quem quiser se dar ao trabalho de percorrer todo o volume de escritos

filosoacuteficos que surgiram desde Kant perceberaacute que assim como as falhas do

priacutencipe satildeo pagas por todo o povo tambeacutem os erros dos grandes espiacuteritos

espalham sua influecircncia prejudicial em geraccedilotildees inteiras agraves vezes se

difundem por seacuteculos sim crescendo e se propagando por fim degenerando

em monstruosidades []139

O principal erro dos filoacutesofos poacutes-kantianos teria sido o de transformar a

razatildeo em uma faculdade capaz de conhecimento imediato do suprassensiacutevel ao mesmo tempo

em que sua verdadeira capacidade de abstraccedilatildeo teria sido delegada ao entendimento e a

intuiccedilatildeo sensiacutevel agrave sensibilidade No entender de Schopenhauer eles utilizaram o nome da

razatildeo para esconder ldquo[] uma faculdade totalmente falsa de conhecimentos imediatos

metafiacutesicos chamados suprassensiacuteveis denominar entendimento agrave verdadeira razatildeo

negligenciar o real entendimento que eles natildeo possuem e atribuir sua funccedilatildeo intuitiva agrave

sensibilidaderdquo140

Na concepccedilatildeo schopenhaueriana os conceitos satildeo formados pela

decomposiccedilatildeo de representaccedilotildees intuitivas cujos traccedilos caracteriacutesticos satildeo isolados de modo a

identificarem-se qualidades e relaccedilotildees abstratas natildeo referidas a nenhum objeto em particular

A razatildeo desse modo eacute uma faculdade de abstraccedilatildeo (Abstraktionsvermoumlgen)141

Segundo a

explicaccedilatildeo de Magee ldquoA relaccedilatildeo que se daacute entre os conceitos e as experiecircncias e percepccedilotildees eacute

uma relaccedilatildeo do geral ao particular do abstrato ao concreto Toda experiecircncia ou percepccedilatildeo

real eacute imediata especiacutefica uacutenica Por isso natildeo podemos retecirc-la nem comunicaacute-lardquo142

Os

conceitos podem apenas ser pensados natildeo intuiacutedos porque natildeo possuem relaccedilatildeo direta com

os objetos e com sua intuitividade Em certo sentido eles satildeo mais elementares do que as

intuiccedilotildees pois diz Schopenhauer ldquoA constituiccedilatildeo de um conceito se daacute por meio da exclusatildeo

de muito do que eacute dado intuitivamente para que o restante possa ser pensado por si assim ele

seraacute um pensamento menor do que intuitivordquo143

Os conceitos mais abstratos e gerais seratildeo os

menos representaacuteveis empiricamente e os mais vazios aqueles cujo conteuacutedo eacute mais reduzido

como por exemplo os de ser essecircncia devir entre outros144

De acordo com isso diz o

filoacutesofo quanto mais eacute pensado sob um conceito menos eacute pensado nele145

139

WWV I ersters Buch sect8 p 75 M I Livro I sect8 p 85 140

WWWII Kap 6 p 81 MII cap 6 p 81 141

UumlV sect26 p 121 CR sect26 p 149 142

MAGEE B op cit p 48 (traduccedilatildeo nossa) 143

UumlV sect26 p 121 CR sect26 p 150 144

UumlV sect26 p 122 CR sect26 p 150 145

WWWII Kap 6 p 76 MII cap 6 p 76

- 109 -

Schopenhauer descreve os modos em que as representaccedilotildees abstratas

podem se ligar denominando-os ldquoesquematismo dos conceitosrdquo (Schematismus der

Begriffe)146

Todos os conceitos possuiriam esferas preenchidas pelos objetos aos quais se

estendem relacionadas entre si de cinco distintas maneiras segundo as interligaccedilotildees possiacuteveis

entre seus conteuacutedos As esferas conceituais se unem ou se separam de acordo com o que tecircm

ou natildeo em comum e suas interaccedilotildees podem ser expostas em circunferecircncias que se conectam

de modos especiacuteficos147

Schopenhauer entende que todas as combinaccedilotildees possiacuteveis de

conceitos podem ser reduzidas agravequeles cinco modos e que a partir deles se deduzem a teoria e

as propriedades dos juiacutezos Para ele julgar eacute precisamente reconhecer as ligaccedilotildees entre as

esferas formando-se silogismos ou cadeias mais longas de raciociacutenios A loacutegica se

identificaria com as regras de inferecircncia que orientam as combinaccedilotildees de esferas conceituais

de modo que diz o filoacutesofo ldquoEla eacute o conhecimento geral do modo de atuaccedilatildeo da razatildeo

expresso na forma de regras conhecido pela auto-observaccedilatildeo dela e pela abstraccedilatildeo de todo

conteuacutedo conhecidordquo148

Os conceitos satildeo simbolizados por palavras que os fixam e os tornam

utilizaacuteveis sem as quais eles natildeo poderiam servir agraves operaccedilotildees intelectuais a que se destinam

Os animais seriam desprovidos de fala em funccedilatildeo da ausecircncia de razatildeo pois afirma

Schopenhauer ldquo[] por natildeo possuiacuterem nenhuma abstraccedilatildeo natildeo satildeo capazes de nenhum

conceito e consequentemente natildeo possuem linguagemrdquo149

A riqueza de recursos das liacutenguas

sua enorme quantidade de vocaacutebulos com funccedilotildees e usos distintos suas regras gramaticais

formas loacutegicas conexotildees entre ideias tudo seria atribuiacutedo agrave razatildeo A linguagem seria entatildeo

o primeiro resultado da razatildeo e ao mesmo tempo seu instrumento necessaacuterio150

Com efeito a

linguagem eacute fundamental para que a razatildeo possa realizar sua funccedilatildeo proacutepria que eacute a de expor

a apreensatildeo intuitiva do mundo em conceitos tornando-se indispensaacutevel agraves grandes

realizaccedilotildees promovidas na vida humana pela abstraccedilatildeo151

Por conseguinte diz Schopenhauer

146

WWV I ersters Buch sect9 p 82 M I Livro I sect9 p 92 147

Esferas de conceitos idecircnticos satildeo representadas com um uacutenico ciacuterculo esferas de conceitos em que um

engloba o outro satildeo figuradas com um ciacuterculo menor dentro de outro maior esferas que compreendem em si

exatamente duas ou mais esferas satildeo expostas com um ciacuterculo dividido na quantidade correspondente de partes

duas esferas que possuem somente uma parte em comum satildeo representadas com dois ciacuterculos em intersecccedilatildeo

por fim uma esfera que conteacutem outras mas natildeo somente elas eacute representa com uma esfera maior englobando

outras menores com sobra de espaccedilo interno Cf WWV I ersters Buch sect9 p 80-81 M I Livro I sect9 p 90-91 148

WWV I ersters Buch sect9 p 83 M I Livro I sect9 p 93 149

UumlV sect26 p 122 CR sect26 p 149 150

WWV I ersters Buch sect8 p 73 M I Livro I sect8 p 83 151

WWV I ersters Buch sect8 p 73 M I Livro I sect8 p 83-84

- 110 -

ldquoCom o aprendizado dela torna-se consciente todo o mecanismo da razatildeo assim o essencial

da loacutegicardquo152

Os conceitos satildeo como foacutermulas ou algoritmos que contecircm as operaccedilotildees

de pensamento153

As intuiccedilotildees empiacutericas natildeo satildeo uacuteteis para esse propoacutesito porque trazem

muitas informaccedilotildees e inviabilizam a reflexatildeo sobre relaccedilotildees e caracteriacutesticas gerais dos

objetos Como o filoacutesofo explica ldquo[] se algueacutem quisesse manter cada representaccedilatildeo presente

na imaginaccedilatildeo teria de arrastar um peso desnecessaacuterio e seria assim desorientado com o uso

dos conceitos poreacutem pensam-se soacute as partes e relaccedilotildees de todas essas representaccedilotildees que

cada fim exigerdquo154

Pensar eacute portanto manejar intelectualmente os conceitos conhecer por

seu turno eacute consolidar conceitualmente o que foi conhecido de outra forma Eacute interessante

observarmos que para Schopenhauer os dois grandes tipos de objetos em que se divide o

pensamento natildeo satildeo os conceitos e as intuiccedilotildees como poderia parecer mas os conceitos e os

sentimentos Nas palavras dele ldquo[] seja o que for pertence ao conceito de sentimento em

cuja imensa esfera se abarca as coisas mais heterogecircneas as quais natildeo se compreende como

se reuacutenem enquanto natildeo se notou que concordam somente na consideraccedilatildeo negativa de natildeo

serem conceitos abstratosrdquo155

Nesse sentido as sensaccedilotildees dos sentidos e as intuiccedilotildees tanto

empiacutericas quanto puras encaixam-se no conceito de sentimento156

Schopenhauer prefere utilizar o termo ldquoreflexatildeordquo que lhe parece deixar

mais evidente o caraacuteter derivado e secundaacuterio da abstraccedilatildeo racional157

De acordo com ele

trata-se de ldquo[] uma aparecircncia repetida um conhecimento derivado do intuitivo mas com um

fundamento de outra natureza e composiccedilatildeo que natildeo conhece as formas daquele e aleacutem

disso o princiacutepio de razatildeo que rege todos os objetos possui aqui uma feiccedilatildeo totalmente

diferenterdquo158

Por meio dos conceitos pode-se tanto utilizar quanto dispensar informaccedilotildees

sobre passado e futuro prescindir da presenccedila dos objetos bem como deter-se sobre o

essencial de muacuteltiplas representaccedilotildees inclusive as ausentes159

Essas propriedades seriam a

origem da capacidade de planejar ponderar projetar o futuro com base nas memoacuterias do

passado para aleacutem das impressotildees intuitivas do momento Enfim satildeo os conceitos que

152

UumlV sect26 p 123 CR sect26 p 151 153

UumlV sect27 p 124 CR sect27 p 152-153 154

UumlV sect27 p 124 CR sect27 p 153 155

WWV I ersters Buch sect11 p 92-93 M I Livro I sect11 p 100 156

WWV I ersters Buch sect11 p 93-94 M I Livro I sect11 p 100-101 157

UumlV sect27 p 124 CR sect27 p 153 158

WWV I ersters Buch sect8 p 72 M I Livro I sect8 p 82-83 159

WWV I ersters Buch sect8 p 72-73 M I Livro I sect8 p 83

- 111 -

possibilitam todo tipo de conhecimento abstrato especialmente o das ciecircncias ao permitir o

pensamento do particular por meio do geral Isso soacute se torna possiacutevel diz o filoacutesofo ldquo[] por

meio do dictum de omni et nullo o qual por seu turno soacute eacute possiacutevel pela presenccedila dos

conceitosrdquo160

Sinteticamente nas palavras de Gardiner

Em geral Schopenhauer sustenta que a ldquorazatildeordquo eacute sempre e necessariamente

improdutiva natildeo criativa que isso seja assim para ele segue-se da

explicaccedilatildeo que deu de que os conceitos e juiacutezos ldquorefletemrdquo simplesmente ou

reproduzem aquilo de que tomamos consciecircncia por meio da percepccedilatildeo ou

experiecircncia diretas161

Ao lado dos conceitos haacute um tipo de representaccedilatildeo que Schopenhauer

denomina Phantasma e que corresponde agraves criaccedilotildees da imaginaccedilatildeo162

Ele utiliza a palavra

em latim que significa visatildeo apariccedilatildeo ou tambeacutem ideia ou noccedilatildeo fictiacutecia Trata-se de uma

representaccedilatildeo que embora intuitiva natildeo surge diretamente das sensaccedilotildees nem se liga

imediatamente agrave experiecircncia Representaccedilotildees desse tipo podem ser utilizadas pelo

pensamento no lugar dos conceitos mas se diferenciam destes porque se referem aos objetos

em particular enquanto eles satildeo sempre gerais Conforme a explicaccedilatildeo do filoacutesofo ldquo[]

quando se invoca a visatildeo imaginaacuteria de algum cachorro por exemplo como representaccedilatildeo

ele deve ser totalmente determinado isto eacute com certo tamanho forma cor e etc o conceito

poreacutem cujo representante ele eacute natildeo possui nenhuma dessas determinaccedilotildeesrdquo163

Uma

representaccedilatildeo assim como dissemos pode ser utilizada como exemplar de um conceito

poreacutem impropriamente pois este uacuteltimo natildeo pode conter determinaccedilotildees arbitrariamente

pensadas De qualquer modo para que atividade do pensamento se realize satildeo requeridas

palavras ou essas imagens pois sem nenhuma delas o pensamento natildeo teria nenhum meio

onde se desenvolver164

Schopenhauer menciona ainda outro tipo de representaccedilatildeo que ele

nomeia ldquointuiccedilotildees normaisrdquo (Normalanschauungen)165

Analisando a primeira ediccedilatildeo de Da

quaacutedrupla raiz e os escritos schopenhaerianos de juventude Yasuo Kamata informa que

essa expressatildeo foi inspirada pela Criacutetica do Juiacutezo de Kant No texto ldquoSchopenhauer e Kant

160

UumlV sect27 p 125 CR sect27 p 154 Dictum de omni e Dictum de nullo satildeo dois princiacutepios considerados

durante a Idade Meacutedia como as bases das conclusotildees dos silogismos O primeiro significa que tudo o que se

pode afirmar de modo universal sobre algo pode tambeacutem ser afirmado de modo particular O segundo que tudo

o que se nega de modo universal sobre algo pode-se tambeacutem negar de modo particular 161

Ibidem p 170 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 162

UumlV sect28 p 125 CR sect28 p 154 163

UumlV sect28 p 126 CR sect28 p 155 164

UumlV sect28 p 126 CR sect28 p 155-156 165

UumlV sect39 p 161 CR sect39 p 193

- 112 -

A recepccedilatildeo da bdquoAnaliacutetica transcendental‟ da Criacutetica da razatildeo pura na filosofia primeira de

Schopenhauerrdquo esse autor escreve que ldquoA expressatildeo bdquointuiccedilatildeo normal‟ foi inspirada

evidentemente pela bdquoideia normal esteacutetica‟ (Normalidee) na Criacutetica do juiacutezo como atesta seu

caderno de anotaccedilotildees (HNII 288)rdquo166

Para Schopenhauer tais representaccedilotildees satildeo intuitivas

isto eacute determinadas e ao mesmo tempo gerais pois satildeo formas dos fenocircmenos e se aplicam a

todos os objetos possiacuteveis Ele as define como ldquofiguras e nuacutemeros que legislam para toda a

experiecircncia e por isso unem a grande amplitude do conceito com a determinaccedilatildeo total da

representaccedilatildeo singularrdquo167

No caso do espaccedilo elas satildeo as intuiccedilotildees tiacutepicas da geometria no

caso do tempo as intuiccedilotildees normais satildeo representadas pelos nuacutemeros Em nota Schopenhauer

afirma que as ideias de Platatildeo poderiam ser entendidas como intuiccedilotildees normais pois seriam

vaacutelidas tanto para a parte formal quanto para a parte material dos objetos Seriam portanto

ldquo[] representaccedilotildees completas que como tais seriam totalmente determinadas e ao mesmo

tempo como os conceitos abarcariam muito sob si []rdquo168

Conforme Schopenhauer pensar eacute raciocinar utilizando palavras e as

intuiccedilotildees empiacutericas satildeo mais bem compreendidas quando relacionadas aos conceitos por

meio do juiacutezo Isso ocorre quando os conceitos satildeo buscados como regras que regem

representaccedilotildees sensiacuteveis dadas ou ao contraacuterio quando se buscam os dados empiacutericos nas

intuiccedilotildees para justificar um conceito Essa atividade eacute realizada pela faculdade de julgar

(Urteilskraft) cujo produto seraacute um juiacutezo reflexionante no primeiro caso ou determinante no

segundo169

Como escreve o filoacutesofo ldquoA faculdade do juiacutezo eacute assim a mediadora entre o

conhecimento intuitivo e o abstrato ou entre o entendimento e a razatildeordquo170

Embora tambeacutem

possa relacionar conceitos em um juiacutezo sua funccedilatildeo preciacutepua eacute a de subsumir a intuiccedilatildeo sob

conceitos ldquoDaiacuterdquo conclui Schopenhauer ldquoa dificuldade das ciecircncias estaacute tambeacutem nos juiacutezos

fundamentais e natildeo nas conclusotildees a partir deles Deduzir eacute faacutecil julgar difiacutecilrdquo171

Apesar de toda a importacircncia dos conceitos o conhecimento intuitivo

tem precedecircncia sobre o abstrato pois eacute o nuacutecleo ao qual este se refere e o pressuposto dele

Para Schopenhauer as concepccedilotildees e pensamentos originais assim como as grandes invenccedilotildees

166

KAMATA Y Schopenhauer e Kant A recepccedilatildeo da ldquoAnaliacutetica transcendentalrdquo da Criacutetica da razatildeo pura na

filosofia primeira de Schopenhauer Revista ethic Florianoacutepolis v 11 n 1 p 68 ndash 81 julho de 2012 p 73

(grifos do autor) 167

UumlV sect39 p 161 CR sect39 p 193-194 168

UumlV sect39 p 161 CR sect39 p 194 169

UumlV sect28 p 127 CR sect28 p 156 170

UumlV sect28 p 127 CR sect28 p 156 171

WWWII Kap 7 p 105 MII cap 7 p 106

- 113 -

que desvendam mecanismos da natureza satildeo obra do entendimento natildeo da razatildeo satildeo a

apresentaccedilatildeo correta da causa de um efeito e a compreensatildeo da forccedila natural subjacente172

Toda teoria filosofia ou ciecircncia precisa ter por base uma intuiccedilatildeo empiacuterica caso contraacuterio

careceraacute de relaccedilatildeo com o real e na verdade natildeo ensinaraacute nada sobre o mundo Nas palavras

dele ldquoSe a explicaccedilatildeo possui um tal nuacutecleo assemelha-se com uma nota bancaacuteria que tem o

equivalente em caixa qualquer outra que provenha de meras combinaccedilotildees de conceitos eacute

como uma nota bancaacuteria que deposita como garantia de novo apenas outro papelrdquo173

Em

suma um discurso feito apenas com conceitos e seus desmembramentos natildeo se refere a nada

existente concretamente pois a razatildeo pode fixar o conhecido intuitivamente ligaacute-lo mas

nunca produzi-lo174

Os conceitos sempre ficaratildeo aqueacutem das sutis distinccedilotildees das intuiccedilotildees diz

Schopenhauer aproximando-se delas como um mosaico se aproxima da imagem que

representa isto eacute com falhas e descontinuidades175

Sobre esse ponto Gardiner observa de

modo interessante que

Como ilustraccedilatildeo Schopenhauer menciona a forma em que com frequecircncia

somos conscientes da impossibilidade de verbalizar a expressatildeo do rosto de

uma pessoa ldquoo sentido dos traccedilosrdquo parece atrapalhar toda descriccedilatildeo precisa

ou adequada apesar de natildeo haver duacutevida de que bdquosentimos‟ e

compreendemos perfeitamente e podemos falar sobre ele com autecircntica

propriedade176

Por conseguinte a natureza dos conceitos eacute peculiar e essa peculiaridade

se mostra tambeacutem no tipo de conhecimento que eles fornecem Natildeo se pode conhecer de

modo evidente de sua essecircncia tampouco exigir uma comprovaccedilatildeo concreta deles pois isso

soacute poderia ser feito com algo de natureza totalmente distinta a saber com uma intuiccedilatildeo

empiacuterica177

Como explica o filoacutesofo ldquoEles se deixam somente pensar natildeo intuir e apenas os

efeitos que por meio deles os homens produzem satildeo realmente objetos de experiecircnciardquo178

Um conceito poderaacute ser fundamentado por outro ou por uma intuiccedilatildeo no entanto no fim da

cadeia de raciociacutenios deveraacute estar um conhecimento intuitivo Segundo Schopenhauer essa eacute

uma diferenccedila fundamental entre as classes abstrata e intuitiva de representaccedilotildees pois ele

afirma ldquo[] nesta o princiacutepio de razatildeo sempre exige apenas ligaccedilatildeo com outra representaccedilatildeo

da mesma classe enquanto as representaccedilotildees abstratas poreacutem ao fim exigem uma referecircncia

172

WWV I ersters Buch sect6 p 53-54 M I Livro I sect6 p 65 173

UumlV sect28 p 128 CR sect28 p 158 174

WWV I ersters Buch sect6 p 53 M I Livro I sect6 p 65 175

WWV I ersters Buch sect12 p 99 M I Livro I sect12 p 106-107 176

GARDINER op cit p 169 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 177

WWV I ersters Buch sect9 p 76 M I Livro I sect9 p 86 178

WWV I ersters Buch sect9 p 76 M I Livro I sect9 p 86

- 114 -

a uma representaccedilatildeo de outra classerdquo179

Numa palavra os conceitos englobam e refletem os

objetos do mundo empiacuterico relacionando-se entre si de acordo com as relaccedilotildees possiacuteveis

entre suas esferas Na interpretaccedilatildeo de Gardiner

Os conceitos estatildeo em realidade essencialmente adaptados a fins praacuteticos

toda filosofia que passe por alto sobre esse ponto estaraacute condenada em

algum momento a interpretar mal e a distorcer a relaccedilatildeo entre pensamento e

realidade Por isso quando trata de pensamento e linguagem assim como da

nossa consciecircncia perceptiva do mundo fenomecircnico Schopenhauer insiste

primariamente nos fatores pragmaacuteticos que segundo ele entende

determinam os traccedilos caracteriacutesticos do conhecimento comum180

O princiacutepio de razatildeo do conhecer (Satz vom zureichenden Grunde des

Erkennens) ou principium sufficientis cognoscendi estabelece uma relaccedilatildeo necessaacuteria entre

os conceitos segundo a qual todo e qualquer juiacutezo teraacute de ser justificado Se a razatildeo eacute dada o

juiacutezo pode ser tomado por verdadeiro e a verdade eacute entatildeo definida por Schopenhauer como

bdquo[] a relaccedilatildeo de um juiacutezo com algo diferente dele que seraacute chamado seu fundamento

[]rdquo181

Portanto natildeo eacute possiacutevel nenhum conhecimento que seja imediatamente verdadeiro

pois escreve o filoacutesofo ldquoToda verdade eacute uma relaccedilatildeo de um juiacutezo com algo fora dele e

verdade intriacutenseca eacute uma contradiccedilatildeordquo182

O fundamento de um juiacutezo pode ser de quatro tipos a saber loacutegico

empiacuterico transcendental e metaloacutegico cada um com uma espeacutecie de verdade correspondente

Schopenhauer define a verdade loacutegica como a fundamentaccedilatildeo de um juiacutezo em outro o que

pode ser feito de modo imediato ou mediato pela interferecircncia de um terceiro entre eles183

A

silogiacutestica seria o cacircnone da verdade loacutegica que reuniria as regras de aplicaccedilatildeo do princiacutepio

de razatildeo suficiente do conhecer entre os juiacutezos Nesse sentido diz o filoacutesofo ldquo[] a loacutegica eacute

uma simples paraacutefrase dele [do princiacutepio] na verdade apenas no caso em que o fundamento

da verdade natildeo eacute empiacuterico ou metafiacutesico mas loacutegico ou metaloacutegicordquo184

Gardiner chama a

atenccedilatildeo para esse ponto sublinhando que Schopenhauer resumia a loacutegica agrave silogiacutestica e natildeo

considerava as regras de deduccedilatildeo como criaccedilotildees dos loacutegicos Para o ele praticariacuteamos os

cacircnones de inferecircncias loacutegicas naturalmente e sem necessidade de estudo Portanto como

afirma Gardiner

179

WWV I ersters Buch sect9 p 78 M I Livro I sect9 p 88 (grifos do autor) 180

Ibidem p 176 (traduccedilatildeo nossa) 181

UumlV sect29 p 129 CR sect29 p 159 182

UumlV sect30 p 131 CR sect30 p 161 (grifos do autor) 183

UumlV sect30 p 130 CR sect30 159 184

WWV I ersters Buch sect9 p 84 M I Livro I sect9 p 94

- 115 -

Daiacute que seja enganoso falar como se pudeacutessemos aprender algo novo com as

regras fundamentais e os princiacutepios que os loacutegicos estabelecem jaacute que esses

princiacutepios jaacute subjazem implicitamente em nosso pensamento ordinaacuterio e

formas de falar tendo sido derivadas do exame deles185

Eacute interessante que Schopenhauer introduza essa forma do princiacutepio de

razatildeo entre aquelas conhecidas como as trecircs leis fundamentais do pensamento De acordo com

ele o princiacutepio de razatildeo do conhecer se soma agraves leis de identidade de contradiccedilatildeo e do

terceiro excluiacutedo na condiccedilatildeo de juiacutezo que fundamenta a verdade de outros juiacutezos186

Tais leis

seriam como premissas das quais se deduziriam outros juiacutezos sem a necessidade de que

fossem explicitamente enunciadas Na explicaccedilatildeo dele quando se afirma ldquoNingueacutem pode

tomar algo como verdadeiro sem saber o porquecircrdquo admite-se como fundamento dessa verdade

o princiacutepio de razatildeo suficiente do conhecer187

As leis fundamentais do pensamento satildeo

ademais as quatro verdades metaloacutegicas que se ancoram na estrutura do intelecto e originam

o modo de ser da razatildeo Enquanto fundadas nas condiccedilotildees do pensar natildeo se poderia

raciocinar em desacordo com elas

Aleacutem das verdades loacutegicas e metaloacutegicas um juiacutezo tambeacutem pode ser

fundamentado por uma verdade empiacuterica ou por uma verdade transcendental Verdade

empiacuterica eacute entendida por Schopenhauer como um juiacutezo cujo fundamento eacute uma intuiccedilatildeo

sensiacutevel Esse tipo de conhecimento seria obra da faculdade do juiacutezo mediadora entre o

entendimento e a razatildeo e responsaacutevel por garantir que as ligaccedilotildees entre conceitos sejam feitas

de acordo com as intuiccedilotildees188

Verdade transcendental por fim eacute aquela sustentada pelas

formas da sensibilidade pura nos juiacutezos sinteacuteticos a priori O juiacutezo nesse caso funda-se nas

condiccedilotildees da experiecircncia como no caso da proposiccedilatildeo ldquonada acontece sem causardquo fundada

lei de causalidade189

Assim como ocorre com as verdades metaloacutegicas natildeo se pode pensar

em oposiccedilatildeo agraves formas do tempo do espaccedilo e da causalidade e tentar fazecirc-lo diz o filoacutesofo

seria como ldquo[] mover nossos membros no sentido contraacuterio das suas articulaccedilotildeesrdquo190

Supor

uma mudanccedila sem causa precedente ele continua eacute algo que nem mesmo se pode pensar e

que por isso nos parece uma impossibilidade objetiva embora seja de fato subjetiva De

acordo com isso as diferenccedilas entre os conhecimentos intuitivo e racional decorrem de serem

oriundos cada um de uma faculdade tornando impossiacutevel algo como uma intuiccedilatildeo racional

185

GARDINER op cit p 172 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 186

UumlV sect30 p 130-131 CR sect30 160 187

UumlV sect30 p 130 CR sect30 p 160 188

UumlV sect31 p 131 CR sect31 p 161 189

UumlV sect32 p 132 CR sect32 p 162 190

UumlV sect33 p 133 CR sect33 p 163

- 116 -

pois afirma Schopenhauer ldquoA razatildeo pode sempre apenas saber ao entendimento sozinho e

livre de sua influecircncia resta a intuiccedilatildeordquo191

A loacutegica seria entatildeo o modus operandi da razatildeo

enquanto a razatildeo pura seria a parte meramente formal do intelecto com a qual se produzem

proposiccedilotildees de verdade transcendental e metaloacutegica192

Schopenhauer acrescenta ainda que a verdade dos raciociacutenios

assentados sobre a intuiccedilatildeo a priori do espaccedilo e do tempo isto eacute sobre proposiccedilotildees de

verdade transcendental natildeo pode ser demonstrada193

Nesse ponto eacute interessante expor a

distinccedilatildeo realizada por ele entre esse tipo de verdade e as demonstraccedilotildees No primeiro caso

trata-se de um conhecimento semelhante aos da aritmeacutetica e da geometria que somente satildeo

possiacuteveis por intuiccedilatildeo O segundo caso remete aos conhecimentos que dependem de

representaccedilotildees abstratas cuja prova eacute demonstrativa As diferenccedilas entre ambos os casos

estatildeo fundadas nas especificidades do princiacutepio de razatildeo suficiente o ser e do conhecer isto eacute

na diferenccedila entre se conhecer algo por intuiccedilatildeo pura ou por conceitos Nas demonstraccedilotildees

satildeo oferecidas as razotildees de conhecimento para as proposiccedilotildees sua verdade loacutegica enquanto

nas verdades transcendentais o que se oferece eacute uma intuiccedilatildeo em que se evidencia a razatildeo de

ser194

Em funccedilatildeo disso o tipo de assentimento que se tem em cada caso eacute tambeacutem distinto a

saber no princiacutepio do conhecer eacute a convicccedilatildeo (convictio) resultante de se saber ldquoquerdquo e no

do ser eacute a compreensatildeo (cognitio) resultado de se saber o ldquoporquecircrdquo195

Para Schopenhauer a

compreensatildeo eacute mais forte do que a convicccedilatildeo e diz ele ldquoQuando se tem esta [a razatildeo de ser]

entatildeo a seguranccedila sobre a verdade da proposiccedilatildeo se apoia somente nela de modo algum na

razatildeo de conhecimento dada por demonstraccedilatildeo []rdquo196

A demonstraccedilatildeo possui entatildeo uma importacircncia relativa no pensamento

schopenhaueriano A forma sistemaacutetica e dedutiva eacute vista pelo filoacutesofo como a caracteriacutestica

essencial do conhecimento cientiacutefico no qual por meio de interligaccedilotildees das esferas de

conceitos parte-se do geral de esferas mais amplas e conceitos superiores e atinge-se o

particular determinando-o e compreendendo-o A persuasatildeo e a firmeza que um

conhecimento cientiacutefico pode conseguir natildeo estatildeo poreacutem no grau maacuteximo de certeza que

pode ser alcanccedilada tambeacutem em conhecimentos sensiacuteveis mas numa possibilidade de

191

WWV I ersters Buch sect6 p 58 M I Livro I sect6 p 69 192

UumlV sect34 p 141-142 CR sect34 p 172-173 193

UumlV sect37 p 160 CR sect37 p 192 194

UumlV sect39 p 162-163 CR sect39 p 195 195

UumlV sect39 p 163 CR sect39 p 196 196

UumlV sect39 p 163 CR sect39 p 196

- 117 -

integralidade dada pela forma sistemaacutetica197

Nesse sentido como afirma Gardiner ldquoA ideia

de que uma explicaccedilatildeo da realidade pudesse ser intelectualmente aceitaacutevel apenas quando se

apresentasse em termos de proposiccedilotildees cujas verdades estivessem logicamente garantidas

teria lhe parecido absurdardquo198

Na visatildeo de Schopenhauer consolidou-se ao longo da Histoacuteria

a conclusatildeo falsa de que apenas o demonstrado deveria ser tomado por verdadeiro

dificultando a compreensatildeo de que toda demonstraccedilatildeo deriva no iniacutecio da cadeia

argumentativa de uma verdade indemonstraacutevel Ele sustenta ao contraacuterio que todas as

demonstraccedilotildees precisam ser remetidas a algo intuitivo e sem demonstraccedilatildeo possiacutevel pois ele

escreve ldquoNatildeo pode haver nenhuma verdade que seja necessariamente trazida agrave tona apenas

por conclusotildeesrdquo199

As intuiccedilotildees a priori do tempo e do espaccedilo por exemplo seriam as

verdades indemonstraacuteveis que fundamentam a aritmeacutetica e a geometria De modo semelhante

como formas a priori verdades transcendentais que fundamentariam conhecimentos

metafiacutesicos como o da permanecircncia da mateacuteria ainda que negativamente Por fim verdades

empiacutericas alcanccediladas por induccedilatildeo sustentariam conhecimentos empiacutericos embora a

evidecircncias delas seja apenas aproximativa200

Na opiniatildeo de Magee essa concepccedilatildeo mostra que Schopenhauer tinha

uma ideia muito clara das limitaccedilotildees da argumentaccedilatildeo loacutegica Qualquer raciociacutenio apenas

demonstra que a conclusatildeo se segue das premissas mas natildeo pode fornecer nenhuma

informaccedilatildeo nova201

Aleacutem disso esse autor enfatiza que um raciociacutenio teraacute sempre de apoiar-

se em pelo menos duas hipoacuteteses natildeo demonstradas a saber uma premissa e uma regra de

inferecircncia Portanto a exigecircncia de uma demonstraccedilatildeo para toda e qualquer ideia natildeo se

coadunaria com o que realmente acontece pois no fim de contas toda prova se fundaria em

algo natildeo demonstrado Do mesmo modo eacute preciso que se remeta o argumento a algo que natildeo

seja a proacutepria conclusatildeo isto eacute a argumentaccedilatildeo natildeo pode se reduzir somente ao ciacuterculo de

proposiccedilotildees de que eacute feita202

Nas palavras de Magee

[] se sabemos algo a respeito do mundo o sabemos natildeo porque tenha sido

demonstrado ou provado mas porque experimentamos ou percebemos

diretamente ou entatildeo porque mediante processos loacutegicos que natildeo

acrescentam nenhum conteuacutedo empiacuterico se segue do que experimentamos

197

WWV I ersters Buch sect14 p 108 M I Livro I sect14 p 115 198

GARDINER op cit p 207 (traduccedilatildeo nossa) 199

WWV I ersters Buch sect14 p 110 MI Livro I sect14 p 117 200

WWV I ersters Buch sect14 p 111-113 MI Livro I sect14 p 118-120 201

MAGEE B op cit p 45 202

Ibidem p 46

- 118 -

ou percebemos diretamente Nesse sentido fundamental todo conhecimento

precede a toda demonstraccedilatildeo203

22 ndash O conhecimento filosoacutefico

Na interpretaccedilatildeo de Magee o texto de Da quaacutedrupla raiz foi elaborado

como uma teoria da explicaccedilatildeo que seria entendida por Schopenhauer como uma

investigaccedilatildeo imprescindiacutevel para o intento de desvendar o mundo204

Cada uma das formas do

princiacutepio de razatildeo seria uma maneira de responder agrave questatildeo sobre como fundamentar

suficientemente um conhecimento No entanto conforme esse autor a razatildeo suficiente dada

por aquelas formas evidencia as relaccedilotildees necessaacuterias entre as classes de objetos possiacuteveis sem

oferecer a possibilidade de se parar em nenhum ponto alcanccedilado As explicaccedilotildees por meio do

princiacutepio seriam portanto sempre incompletas e insatisfatoacuterias Magee considera que da

perspectiva da praacutetica as explicaccedilotildees podem se deter onde seja suficiente para os respectivos

propoacutesitos sem que isso represente qualquer problema Da perspectiva da teoria contudo as

passagens em que a investigaccedilatildeo normalmente se interrompe satildeo aquelas onde estatildeo as

questotildees filosoacuteficas Nesse sentido escreve Magee ldquoUma vez que enumerou todas as formas

possiacuteveis de explicaccedilatildeo o que Schopenhauer faz no passo seguinte de sua investigaccedilatildeo eacute

determinar o ponto em que cada uma das explicaccedilotildees costumam se deter na praacutetica pontos

em que surgem importantes problemas filosoacuteficosrdquo205

Na concepccedilatildeo de Schopenhauer o conhecimento filosoacutefico eacute aquele que

vai aleacutem do cientiacutefico isto eacute que prossegue quando este tem de parar Ser cientiacutefico significa

ser sistematizado e ordenado com base no princiacutepio de razatildeo que conecta as partes de um

sistema e o torna coerente e coeso Toda ciecircncia estudaria um objeto especiacutefico tendo o

203

Ibidem p 46 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 204

Ibidem p 35 205

Ibidem p 39-40 (traduccedilatildeo nossa)

- 119 -

princiacutepio de razatildeo como seu meacutetodo de pesquisa206

Com efeito o filoacutesofo escreve ldquoO que

justamente diferencia cada ciecircncia de um simples agregado eacute que seus conhecimentos

seguem-se uns dos outros como de seus fundamentosrdquo207

Como dissemos o princiacutepio de

razatildeo exige sempre a busca pelo porquecirc de tudo e isso o torna a ldquomatildee de todas as

ciecircnciasrdquo208

Inversamente a resposta agrave pergunta pelo porquecirc soacute pode ser oferecida com uma

razatildeo suficiente numa das formas do princiacutepio

Nessa perspectiva o princiacutepio de razatildeo e a coisa em si permaneceratildeo

absolutamente inexplicaacuteveis O primeiro como jaacute dissemos eacute o que torna possiacutevel qualquer

explicaccedilatildeo de modo que explicaacute-lo a partir de outra coisa natildeo faria sentido a segunda por

sua vez porque natildeo se submete a ele Diferentemente as diversas ciecircncias tecircm de seguir o

princiacutepio de razatildeo e com isso detecircm-se no fenocircmeno e deixam sempre incompreendidos os

pontos onde resvalam na coisa em si Somente o conhecimento filosoacutefico seria capaz de

ultrapassar o princiacutepio de razatildeo e o fenocircmeno pois diz Schopenhauer ldquo[] o que as ciecircncias

pressupotildeem o que colocam como fundamento de suas explicaccedilotildees e estabelecem como

limites eacute exatamente o verdadeiro problema da filosofia que em consequecircncia comeccedila onde

essas ciecircncias paramrdquo209

Em Schopenhauer critique de Kant Philonenko observa de modo

interessante que a filosofia schopenhaueriana se situa numa certa tensatildeo entre o objetivo e o

subjetivo Nas palavras do autor

Far-se-ia melhor em sublinhar que a filosofia segundo Schopenhauer reside

numa tensatildeo reativa ao mesmo tempo subjetiva e objetiva subjetiva na

medida em que a consciecircncia se desgarra de seu lugar de nascimento e se

abre aos fenocircmenos objetiva na medida em que experimenta o real e

desposa a coisa em si210

Schopenhauer ressalta como caracteriacutesticas distintivas da filosofia em

primeiro lugar tomar tudo por incerto e problemaacutetico ateacute mesmo o princiacutepio de razatildeo Em

segundo natildeo ter demonstraccedilotildees por fundamento nem ser encontrada por deduccedilatildeo a partir de

princiacutepios supostamente firmes Sobre esse ponto no texto ldquoSobre filosofia e seu meacutetodordquo de

Parerga e Paralipomena ele afirma que ldquoO fundamento e o solo sobre os quais todos os

nossos conhecimentos e ciecircncias descansam eacute o inexplicaacutevelrdquo o qual ele acrescenta ldquo[] cai

206

WWV I ersters Buch sect7 p 62 M I Livo I sect7 p 73 207

UumlV sect4 p 14 CR sect4 p 32 208

UumlV sect4 p 15 CR sect4 p 33 209

WWV I ersters Buch sect15 p 130 MI Livro I sect15 p 136 210

PHILONENKO A Schopenhauer critique de Kant Paris Les Belles Lettres 2005 p 99 (traduccedilatildeo nossa)

(grifos do autor)

- 120 -

no campo da metafiacutesicardquo211

Em terceiro e uacuteltimo lugar eacute carateriacutestico da filosofia ser um

conhecimento universal a partir do qual natildeo se alcanccedila outros superiores Natildeo obstante diz o

filoacutesofo natildeo se deve buscar por meio dela uma causa final nem uma causa eficiente do

mundo posto que isso seria utilizar o princiacutepio de razatildeo indevidamente Nesse caso a

pergunta pelo ldquoporquecircrdquo da existecircncia do mundo deve ceder lugar agrave pergunta sobre ldquoo querdquo ele

eacute agrave qual toda pessoa estaria apta a responder212

A filosofia deve entatildeo representar em

conceitos o que eacute apreendido imediatamente como sentimento do mundo ldquoPortantordquo escreve

Schopenhauer

a filosofia seraacute uma soma de juiacutezos muito gerais cujo fundamento imediato

de conhecimento eacute o mundo mesmo em sua totalidade sem nada excluir ou

seja tudo o que se encontra na consciecircncia humana seraacute uma repeticcedilatildeo

completa algo como um espelhamento do mundo em conceitos abstratos o

que soacute eacute possiacutevel pela uniatildeo do essencialmente idecircntico em um conceito e

pela separaccedilatildeo do diferente em outro213

Tanto a ciecircncia quanto a filosofia ocupam-se da experiecircncia mas

enquanto a primeira se debruccedila sobre o que nela haacute de particular a segunda a investiga

segundo sua possibilidade essecircncia forma e mateacuteria214

Schopenhauer divide em dois ramos

os objetos de estudo da filosofia a saber em philosophia prima e metafiacutesica A investigaccedilatildeo

do intelecto com suas formas leis validade e limites eacute a philosophia prima que conta com

uma dianoiologia dedicada ao entendimento e agraves intuiccedilotildees empiacutericas e uma teoria da razatildeo

voltada aos conceitos e suas regras215

O objetivo da philosophia prima seria compreender o

meio pelo qual o empiacuterico se apresenta enquanto a metafiacutesica examinaria a experiecircncia como

uma aparecircncia que representa a coisa em si dividindo-se em metafiacutesica do belo da natureza e

dos costumes216

A investigaccedilatildeo da metafiacutesica segundo o filoacutesofo exige a uniatildeo da

experiecircncia externa com a interna e a compreensatildeo da realidade empiacuterica como um todo algo

semelhante a encontrar a coesatildeo e o sentido de um escrito redigido com caracteres

desconhecidos ldquoDesse modordquo ele escreve ldquochega-se da aparecircncia ao que ao que aparece ao

que estaacute sob ela por isso ηὰ μεηὰ ηὰ θςζισὰ (o que se segue agrave fiacutesica)rdquo217

211

PP II Kap 1 sect1 p 9 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de Miguel

Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 1 p 187 212

WWV I ersters Buch sect15 p 131 M I Livro I sect15 p 137 213

WWV I ersters Buch sect15 p 131 M I Livro I sect15 p 137-138 (grifos do autor) 214

PPII Kap 1 sect21 p 26 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de Miguel

Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 21 p 205 215

Ibidem loc cit ibidem loc cit 216

Ibidem Kap 1 sect21 p 27 ibidem sect 21 p 206 217

Ibidem loc cit ibidem loc cit (grifos do autor)

- 121 -

Para alcanccedilar seu objetivo a filosofia soacute poderaacute lidar com a consciecircncia

empiacuterica a uacutenica que nos eacute dada imediatamente e que abrange a consciecircncia de si e a dos

objetos externos Conforme Schopenhauer ao contraacuterio do que pensaram diversos filoacutesofos

ela natildeo pode ser erigida como edifiacutecio meramente abstrato jaacute que diz ele ldquoOs conceitos satildeo

certamente o material da filosofia mas apenas como o maacutermore eacute o material do escultor ela

natildeo deve proceder a partir deles somente se realizar neles isto eacute expor seus resultados com

eles mas natildeo partir deles como os seus dadosrdquo218

E o modo como ele entende que isso pode

ser conseguido eacute captando-se o geral no particular por meio da compreensatildeo das ideias

platocircnicas219

Nesse sentido ele afirma ldquo[] aquele direcionamento do espiacuterito para o geral eacute

a condiccedilatildeo indispensaacutevel para o trabalho genuiacuteno em filosofia e poesia de modo amplo para

as ciecircncias e as artesrdquo220

Por conseguinte natildeo se poderia fazer verdadeiramente filosofia

apenas combinando conceitos sendo preciso fundamentaacute-los em observaccedilotildees e experiecircncias

internas ou externas Filosofar a partir de conceitos eacute exatamente o que Schopenhauer

entende por dogmatismo Na concepccedilatildeo de Paul Guyer essa eacute uma carateriacutestica fundamental

da filosofia schopenhaueriana que ele considera por isso ser um tipo de fenomenologia221

Conforme esse autor

Como os empiristas preacute-kantianos Schopenhauer parece basear sua anaacutelise

da natureza do pensamento numa fenomenologia na qual percepccedilotildees jaacute satildeo

sempre vistas como consciecircncia de objetos e parece pensar que a categoria

da causalidade eacute a uacutenica adiccedilatildeo essencial agrave percepccedilatildeo isso porque um juiacutezo

que designa um objeto ou seu estado como causa de outro pode ser pensado

como um ato de pensamento fenomenologicamente distinguiacutevel da

percepccedilatildeo antecedente e independente do objeto mesmo222

Natildeo obstante a filosofia tampouco pode assentar-se somente na

experiecircncia exterior jaacute que nela segundo o filoacutesofo encontramos apenas cinzas223

O ponto

de partida genuiacuteno para ela estaacute na consciecircncia imediata no reconhecimento de si mesmo que

se consegue quando se ldquoolha para dentrordquo E esse ponto de partida seria a consciecircncia de si

originaacuteria existente em todo ser humano pela qual cada um se julgaria como o centro do

mundo e a fonte da realidade Em virtude disso a concepccedilatildeo schopenhaueriana de filosofia

218

WWWII Kap 7 p 98 MII cap 7 p 99 (grifos do autor) 219

No proacuteximo capiacutetulo analisaremos a concepccedilatildeo schopenhaueriana de Ideia 220

PPII Kap 1 sect2 p 10 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de Miguel

Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 1 p 188 221

GUYER P Schopenhauer Kant and the Methods of Philosophy In JANAWAY C (ed) The Cambridge

Companion to Schopenhauer Cambridge Cambridge University Press 1999 p 117 222

Ibidem p 117 (traduccedilatildeo nossa) 223

PPII Kap 1 sect20 p 24 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de Miguel

Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 20 p 204

- 122 -

natildeo pode ser vista como um procedimento meramente loacutegico ou demonstrativo Nas palavras

do filoacutesofo

Ela deve como a arte e a poesia ter sua fonte na compreensatildeo sensiacutevel do

mundo por mais que a cabeccedila fique no alto natildeo se pode persegui-la com

sangue frio de modo que ao fim natildeo reste o homem completo como

coraccedilatildeo e cabeccedila que venha a agir e pouco a pouco se comova Filosofia natildeo

eacute uma equaccedilatildeo algeacutebrica Mais razatildeo tem Vauvenarges quando diz les

grandes penseacutees viennent du coeur (Os grandes pensamentos vecircm do

coraccedilatildeo Reflexotildees e Maacuteximas Nr 127)224

Em diversas passagens de suas obras Schopenhauer relaciona a filosofia

agrave arte Poreacutem segundo pensamos ele natildeo estabelece uma relaccedilatildeo de identidade entre ambas

mas apenas uma aproximaccedilatildeo geral e difusa ainda mais se considerarmos que haacute diversos

tipos de arte com diferentes modos de expressatildeo Em ldquoSobre filosofia e seu meacutetodordquo por

exemplo ele declara que o poeta apresenta imagens da vida e das pessoas de um modo que

deixa a reflexatildeo ao leitor que a faraacute de acordo com suas possibilidades O filoacutesofo por seu

turno trataria de outra forma os mesmos objetos por meio de pensamentos abstratos Tanto a

arte como a filosofia ocupam-se do geral de espeacutecies classes e conceitos mas escreve

Schopenhauer ldquo[] o poeta se compara agravequele que exibe a flor e o filoacutesofo agravequele que

apresenta a quintessecircnciardquo225

Volker Spierling observa tambeacutem esse ponto e ressalta uma ambiguidade

no aspecto artiacutestico que Schopenhauer daacute ao conhecimento filosoacutefico Na sua obra Arthur

Schopenhauer eine Einfuumlhrung in Leben und Werk esse autor analisa os manuscritos

poacutestumos e mostra que Schopenhauer sempre associou a filosofia agrave arte226

Na transformaccedilatildeo

do conhecimento intuitivo em abstrato Spierling encontra o que chama de diferenccedila

problemaacutetica (problematische Differenz) Para ele consciente do problema mas sem discuti-

lo Schopenhauer tenta fazer o impossiacutevel conceituar o natildeo definiacutevel em conceitos e captar

abstratamente o que eacute vedado ao pensamento227

Nas palavras desse autor

Nesse ponto trata-se de chamar a atenccedilatildeo para uma diferenccedila problemaacutetica

que tambeacutem eacute pensada com a filosofia de Schopenhauer A vivacidade o

caraacuteter imediato das experiecircncias intuitivas da ldquovisatildeo artiacutestica do filosofordquo

tecircm de ser realizados antes de toda reflexatildeo conceitual e satildeo um lado

totalmente diferente de uma investigaccedilatildeo indispensaacutevel para Schopenhauer

224

Ibidem Kap 1 sect9 p 15-16 ibidem p 194 (grifos do autor) 225

Ibidem Kap 1 sect4 p 16 Ibidem sect 4 p 189 226

SPIERLING V Arthur Schopenhauer eine Einfuumlhrung in Leben und Werk Leipzig Reclam Verlag 1998

p 61 227

Ibidem p 62

- 123 -

a saber refletir essas experiecircncias no meio inadequado do conceito conforme

o princiacutepio de razatildeo como que para as transformar e prender

conceitualmente228

23 ndash Criacutetica de Schopenhauer ao idealismo de Kant

Schopenhauer afirma ter escrito a Criacutetica da filosofia kantiana para

justificar a doutrina que expocircs em O mundo naquilo que ela tem de contraacuterio ao

pensamento de Kant Informa ele que desde a escrita da Criacutetica da razatildeo pura a metafiacutesica

teve de abrir novos caminhos e o propoacutesito daquela obra eacute defender o seu229

Ele declara que

sua proacutepria filosofia decorre de uma parte da de Kant purificada poreacutem dos erros deste e

que suas discordacircncias referem-se agraves incorreccedilotildees que ele entende deverem ser expurgadas

para que a verdade da filosofia kantiana possa brilhar clara e segura230

No entender de

Schopenhauer o meacuterito de Kant natildeo eacute afetado por essas imperfeiccedilotildees porque o valor de sua

contribuiccedilatildeo agrave filosofia as supera em muito Como observa Alexis Philonenko em sua obra

Schopenhauer critique de Kant o filoacutesofo considerava que a criacutetica pertinente deveria ser

precedida pelo reconhecimento dos meacuteritos Em funccedilatildeo disso afirma esse autor ldquoA criacutetica eacute

portanto um momento fundante na filosofia de Schopenhauerrdquo231

Natildeo exporemos a criacutetica completa que Schopenhauer faz a Kant porque

ela eacute minuciosa e vai aleacutem do nosso escopo Ele analisa toda a Criacutetica da razatildeo pura aleacutem da

eacutetica kantiana mas pretendemos nos ater somente aos pontos diretamente ligados agrave nossa

investigaccedilatildeo Com efeito a distinccedilatildeo kantiana entre fenocircmeno e coisa em si tem uma

importacircncia fundamental para Schopenhauer Kant teria demonstrado que o intelecto se

interpotildee necessariamente entre as coisas e o nosso conhecimento delas e que portanto nunca

228

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 229

KkP p 555-546 CFK p 94-95 230

KkP p 533 CFK p 86 231

PHILONENKO A Schopenhauer critique de Kant Paris Les Belles Lettres 2005 p 91 (traduccedilatildeo nossa)

(grifos do autor)

- 124 -

poderemos saber o que satildeo em si mesmas232

Ao separar rigorosamente o que conhecemos a

priori do conhecido a posteriori Kant teria realizado uma revoluccedilatildeo na histoacuteria das ideias

estabelecendo uma relaccedilatildeo tripla com a filosofia anterior

[] primeiro de confirmaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo com a de Locke como acabamos

de ver segundo de correccedilatildeo e utilizaccedilatildeo com a de Hume que se encontra

claramente expressa no prefaacutecio dos ldquoProlegomenardquo (o mais belo e

compreensiacutevel de todos os principais escritos de Kant pois facilita

extraordinariamente o estudo de sua filosofia mas que eacute muito pouco lido)

terceiro de decidida polecircmica e de demoliccedilatildeo com a filosofia Leibniz-

wolffiana233

Pela posiccedilatildeo central do discernimento entre fenocircmeno em coisa em si

Schopenhauer entende que a doutrina acerca a distinccedilatildeo completa entre o real e o ideal eacute o

nuacutecleo da filosofia de Kant Nesse aspecto o pensamento kantiano aparece para ele como

continuador de uma tradiccedilatildeo filosoacutefica antiga iniciada por Platatildeo de separaccedilatildeo e

diferenciaccedilatildeo entre um mundo real e outro ideal Conforme o filoacutesofo seguindo um caminho

proacuteprio Kant descobriu a mesma verdade que Platatildeo enunciara de forma miacutetica na Alegoria

da Caverna no livro seacutetimo de A Repuacuteblica passagem que ele considera a mais importante de

a toda filosofia platocircnica234

Nesse ponto especiacutefico o pensamento de Platatildeo e de Kant teria

sido expresso tambeacutem embora de modo diferente nos ensinamentos contidos na doutrina de

Maya encontrada nos Vedas e nos Puranas Schopenhauer entende que Platatildeo Kant e a

doutrina de Maya expressam igualmente a concepccedilatildeo de que o mundo que acessamos pelo

conhecimento eacute ilusoacuterio transitoacuterio secundaacuterio e inconsistente algo como um sonho diz ele

ldquo[] um veacuteu que envolve a consciecircncia humana algo do qual eacute tatildeo verdadeiro quanto falso

afirmar que eacute assim como que natildeo eacuterdquo235

A superioridade de Kant poreacutem teria sido a de

apresentar essa verdade demonstrativa e incontestavelmente enquanto Platatildeo e o hinduiacutesmo a

teriam expressado de modo poeacutetico e miacutetico Assim a atribuiccedilatildeo de uma ldquonatureza oniacutericardquo

(traumartigen Beschaffenheit) ao mundo seria comum a todos eles e tal visatildeo teria permitido

que compreendessem a impossibilidade de se conhecer a essecircncia das coisas com base no

conhecimento do mundo supostamente real236

Schopenhauer formula uma metaacutefora interessante para designar aqueles

que partindo apenas do conhecimento empiacuterico entenderam ser possiacutevel conhecer as coisas

232

KkP p 534 CFK p 87 233

KkP p 535 CFK p 88 234

KkP p 536 CFK p 88 235

KkP p 536 CFK p 88 236

KkP p 537 CFK p 89

- 125 -

em si Eles seriam como um ldquoesquilo na rodardquo ou tambeacutem como aqueles que pensam poder

alcanccedilar o fim do mundo andando em linha reta Como se tivesse circundado o planeta diz o

filoacutesofo Kant mostrou que ldquo[] porque ele eacute redondo natildeo se pode sair por meio de

movimento horizontal mas que por um movimento perpendicular talvez natildeo seja

impossiacutevelrdquo237

Portanto o conhecimento empiacuterico nunca conduziraacute agrave soluccedilatildeo do problema

de modo que a direccedilatildeo do movimento deve ser perpendicular isto eacute ou para fora ou para

dentro do mundo

O segundo meacuterito de Kant teria sido o de abrir espaccedilo para a deduccedilatildeo da

coisa em si como Vontade ao mostrar que o sentido moral das accedilotildees humanas natildeo se remete

ao fenomecircnico Se bem que Kant natildeo a tivesse deduzido corretamente sua exposiccedilatildeo teria

apontado para a ligaccedilatildeo entre a coisa em si e a moral238

O terceiro meacuterito de Kant no

entender de Schopenhauer foi o de subverter o pensamento escolaacutestico que desde Santo

Agostinho havia submetido a filosofia agrave religiatildeo Uma atitude arriscada jaacute que Kant se

atreveu a minar crenccedilas arraigadas durante seacuteculos e defendidas com violecircncia ao demonstrar

a fragilidade e falta de sustentaccedilatildeo de dogmas tidos por incontestaacuteveis Aleacutem disso como

resultado da filosofia kantiana o realismo teria sido combatido posto que no idealismo as

leis do fenocircmeno foram tomadas como parte do sujeito e natildeo mais como verdades eternas

possibilitando que a realidade do mundo fosse percebida como aparente

Em relaccedilatildeo agraves criacuteticas de Schopenhauer a Kant consideramos que haacute

dois pontos centrais O primeiro eacute a acusaccedilatildeo de que Kant teria realizado suas investigaccedilotildees

com base em um princiacutepio arbitraacuterio e natildeo condizente com a natureza das coisas Para

Schopenhauer Kant busca e encontra em toda parte uma simetria que estaacute somente em si

mesmo distanciando-se da verdade com frequecircncia Nas suas palavras ldquo[] uma propriedade

muito individual do espiacuterito de Kant eacute um prazer singular na simetria que ama a

multiplicidade matizada para ordenaacute-la e repetir a ordenaccedilatildeo em subordinaccedilotildees e assim

continuamente exatamente como nas igrejas goacuteticasrdquo239

Longe de ser algo irrelevante esse

amor agrave simetria teria levado Kant a deduccedilotildees ilegiacutetimas ao uso de sofismas e agrave imposiccedilatildeo de

um edifiacutecio teoacuterico repleto de paralelismos correspondecircncias e equivalecircncias muitas vezes

inexistentes de fato Exemplos disso satildeo segundo Schopenhauer a deduccedilatildeo de doze

categorias em quatro tiacutetulos cada um contando trecircs delas a partir das categorias a deduccedilatildeo

237

KkP p 538 CFK p 89-90 238

KkP p 539-540 CFK p 90-91 239

KkP p 549 CFK p 97 (grifos do autor)

- 126 -

da taacutebua dos princiacutepios da ciecircncia da natureza em nuacutemero de quatro dentre os quais dois

ramificam-se em trecircs galhos cada a criaccedilatildeo de trecircs ideias pela razatildeo com fundamento nas

categorias da relaccedilatildeo na sua busca ao incondicionado a deduccedilatildeo de trecircs ideias a partir dos

silogismos resultantes da categoria da relaccedilatildeo respectivamente alma mundo e Deus por fim

a produccedilatildeo de quatro teses pela ideia de mundo com correlato simeacutetrico em quatro

antiacuteteses240

Entatildeo ele escreve Kant ldquo[] segue seu caminho perseguindo sua simetria

ordenando tudo de acordo com ela sem nunca tomar em consideraccedilatildeo os proacuteprios objetos

assim tratadosrdquo241

Essa mania de equivalecircncia teria sido o verdadeiro fio condutor da

Criacutetica da razatildeo pura Ao descobrir que tempo e espaccedilo satildeo conhecidos a priori Kant teria

ido longe demais ao rastrear tudo o que se poderia encontrar no intelecto antes de toda a

experiecircncia Assim diz Schopenhauer encontrando de iniacutecio intuiccedilotildees a priori procurou

conceitos igualmente puros como fundamento dos empiacutericos Com a taacutebua dos juiacutezos

construiu as doze categorias como fundamento da loacutegica transcendental que entrou como

correlato da esteacutetica transcendental resultando no surgimento de uma sensibilidade e de um

entendimento puros242

Em consequecircncia disso Kant teria esquecido o objeto da investigaccedilatildeo

e seguido uma miragem pois nas palavras de Schopenhauer ldquo[] depois da feliz descoberta

das duas formas da intuiccedilatildeo a priori orientando-se pela guia da analogia passou a se esforccedilar

em demonstrar para cada determinaccedilatildeo de nosso conhecimento empiacuterico um anaacutelogo a

priori []rdquo243

Na visatildeo schopehaueriana portanto os doze conceitos puros de Kant satildeo

inuacuteteis e ateacute mesmo nocivos Como observa Philonenko as categorias satildeo descartadas no seu

conjunto por Schopenhauer e embora a causalidade seja mantida natildeo possui o estatuto de

conceito puro Entatildeo escreve esse autor ldquoAiacute reside uma grande diferenccedila entre Kant e

Schopenhauer para este o princiacutepio de causalidade [] natildeo eacute de fato uma categoria

heterogecircnea agraves formas sensiacuteveis do tempo e do espaccedilo Vemos a consequecircncia a deduccedilatildeo

transcendental em sentido kantiano natildeo se impotildeerdquo244

O segundo ponto nodal da criacutetica de Schopenhauer a Kant estaacute na

confusatildeo que este teria gerado entre intuiccedilatildeo e conceito e por conseguinte entre

240

KkP p 549-550 CFK p 97-98 241

KkP p 550 CFK p 98 242

KkP p 573 CFK p 112 243

KkP p 575 CFK p 114 244

PHILONENKO A Schopenhauer Una filosofia de la tragedia Barcelona Anthropos 1989 p 88 (traduccedilatildeo

nossa) (grifos do autor)

- 127 -

entendimento e razatildeo Para Schopenhauer essa foi a verdadeira origem das contradiccedilotildees

insoluacuteveis a que filosofia kantiana chegara Na sua interpretaccedilatildeo o mundo dos sentidos eacute

remetido em conjunto a um ldquodadordquo do qual pouco se fala e o fundamento do edifiacutecio

kantiano eacute fornecido pela taacutebua loacutegica dos juiacutezos245

Sem indagar a essecircncia dos conceitos

Kant natildeo teria podido perceber a relaccedilatildeo deles com a intuiccedilatildeo nem o que cabia ao

entendimento e o que cabia agrave razatildeo no processo do conhecer Kant teria compreendido a razatildeo

de modo confuso e oferecido definiccedilotildees e explicaccedilotildees insuficientes ainda que tivesse

elaborado muitas como por exemplo ldquofaculdade dos princiacutepios a priorirdquo ldquofaculdade das

inferecircncias mediatasrdquo e ldquofaculdade de unificaccedilatildeo dos conceitos do entendimento em

ideiasrdquo246

Analogamente o entendimento tambeacutem teria sido definido de modo hesitante e

oscilante com sentidos como ldquofaculdade das regrasrdquo ldquofonte dos princiacutepiosrdquo e ldquofaculdade de

julgarrdquo247

No entender de Schopenhauer por natildeo ter investigado a natureza do

conceito Kant natildeo teria distinguido representaccedilotildees abstratas de intuitivas nem percebido que

era necessaacuterio definir rigorosamente a intuiccedilatildeo a razatildeo o entendimento o objeto o sujeito a

representaccedilatildeo a verdade dentre outros termos Uma consequecircncia importante dessa confusatildeo

teria sido o modo como Kant conceituou o objeto da experiecircncia misturando e separando

simultaneamente o conceito abstrato e a incoacutegnita a que se aplicam as categorias Assim

fazendo diz Schopenhauer ele natildeo pocircde esclarecer ldquo[] se seu bdquoobjeto da experiecircncia isto eacute

o conhecimento que se origina da aplicaccedilatildeo das categorias‟ eacute a representaccedilatildeo intuitiva no

tempo e no espaccedilo (minha primeira classe de representaccedilotildees) ou um simples conceito

abstratordquo248

Essa imprecisatildeo teria impossibilitado explicar o conteuacutedo da intuiccedilatildeo empiacuterica

que Kant teria entatildeo tomado como algo dado Daiacute poreacutem teria advindo o erro capital de

embaralhar a impressatildeo nos sentidos e a representaccedilatildeo ou seja a mera sensaccedilatildeo com o

objeto Em virtude disso diz Schopenhauer por um lado a intuiccedilatildeo kantiana natildeo se serve do

entendimento porque eacute recebida passivamente embora o objeto soacute possa ser pensado pelas

categorias Por outro o objeto do pensamento se torna algo individual natildeo universalizado

isto eacute coisas e natildeo conceitos249

Por conseguinte ele afirma

245

KkP p 551 CFK p 98 246

KkP p 552-552 CFK p 99 247

KkP p 553 CFK p 99-100 248

KkP p 558 CFK p 103 (grifos do autor) 249

KkP p 560-561 CFK p 105

- 128 -

Daiacute resulta que esse mundo intuitivo existiria para noacutes mesmo se natildeo

tiveacutessemos nenhum entendimento que ele entra na nossa cabeccedila de um

modo em tudo inexplicaacutevel modo esse que sempre denota com sua estranha

expressatildeo de que a intuiccedilatildeo seria dada sem explicar depois essa expressatildeo

indeterminada e figurada250

Outra consequecircncia daquela confusatildeo teria sido a primazia dada por Kant

aos conceitos que o teria levado ao extremo de afirmar que sem eles natildeo haveria qualquer

conhecimento Nessa perspectiva a intuiccedilatildeo se resume a mera afecccedilatildeo da sensibilidade algo

vazio ao mesmo tempo em que sem ela os conceitos ainda seriam alguma coisa251

Cacciola

esclarece sobre esse ponto que no fim de contas a noccedilatildeo kantiana de objeto em geral

remeteria agrave determinaccedilatildeo da experiecircncia como resultado dos predicados atribuiacutedos a ele pelos

conceitos puros do entendimento252

Guyer considera espantoso esse julgamento de Schopenhauer

entendendo que o filoacutesofo acabaria acusando Kant de duas posturas opostas Por um lado o

filoacutesofo afirmaria que Kant misturou intuiccedilatildeo e conceito e por outro censuraria o fato de ter

colocado os conceitos em ordem de prioridade253

Para Guyer Kant entendeu a diferenciaccedilatildeo

entre intuiccedilotildees e conceitos como uma das suas mais importantes e fundamentais descobertas

das quais teria advindo a base para sua criacutetica da filosofia anterior e para a soluccedilatildeo do

problema do conhecimento sinteacutetico a priori Aleacutem disso Kant natildeo teria deixado de sublinhar

que pensamentos sem conteuacutedo intuitivo satildeo vazios Natildeo obstante diz Guyer Schopenhauer

estaacute mais proacuteximo de Kant do que pensa e a real diferenccedila entre ambos estaria no modo como

cada um concebe a consciecircncia de um objeto Para Kant toda consciecircncia exige uma uniatildeo

sinteacutetica de intuiccedilatildeo e conceito e os papeacuteis que cada um desempenha depende de se

relacionarem nos juiacutezos com propriedades particulares ou comuns Schopenhauer poreacutem

parte do exame detalhado da consciecircncia de um objeto e do processo de conhececirc-lo e entatildeo

toma a distinccedilatildeo de Kant como se ela tivesse feita com seus proacuteprios propoacutesitos ou seja

como um tipo de distinccedilatildeo fenomenologicamente autoevidente254

No entendimento do

filoacutesofo escreve Guyer

[] Kant natildeo reconhece que o estado inicial da consciecircncia que

Schopenhauer identifica com a percepccedilatildeo jaacute eacute conhecimento de objetos

Mas distinguindo entre intuiccedilotildees e conceitos Kant claramente natildeo pretende

250

KkP p 561-562 CFK p 105 (grifos do autor) 251

KkP p 603 CFK p 132 252

CACCIOLA M L Schopenhauer e a questatildeo do dogmatismo Satildeo Paulo EDUSP 1994 p 36 253

GUYER op cit p 113-114 254

Ibidem p 115

- 129 -

estar distinguindo entre estados conscientes sequenciais ao inveacutes disso o

argumento de Kant eacute o de que nossa consciecircncia de objetos jaacute eacute um

conhecimento deles precisamente porque jaacute representa a siacutentese de intuiccedilatildeo

e conceitos ndash algo muito mais proacuteximo daquilo em que Schopenhauer

acredita Porque Schopenhauer acredita que o meacutetodo de Kant eacute

fenomenoloacutegico como o seu quando natildeo eacute ele pensa que haacute uma maior

diferenccedila entre suas visotildees do que realmente haacute255

Schopenhauer conclui que no fundo Kant considerava haver um objeto

sob a intuiccedilatildeo o qual seria mateacuteria para a aplicaccedilatildeo do entendimento um objeto no entanto

irrepresentaacutevel Pela operaccedilatildeo proacutepria do entendimento o conceito seria aplicado agrave intuiccedilatildeo e

esta se tornaria experiecircncia pela intuiccedilatildeo o objeto seria dado pelo entendimento seria

pensado Assim Kant consideraria como funccedilatildeo do entendimento pensar os objetos e natildeo

intuiacute-los e isso explicaria o motivo pelo qual ele afirmava que as coisas soacute poderiam tornar-se

reais atraveacutes do pensamento pela aplicaccedilatildeo das doze categorias256

Ficaria entatildeo manifesto

que ele distinguia a representaccedilatildeo o objeto da representaccedilatildeo e a coisa em si Nas palavras de

Schopenhauer ldquoA primeira eacute assunto da sensibilidade que ao lado da sensaccedilatildeo tambeacutem

compreende as formas puras do tempo e do espaccedilo O segundo eacute coisa do entendimento que

ele acrescenta em pensamento por meio de suas doze categorias A terceira fica aleacutem de toda

cognoscibilidaderdquo257

Na concepccedilatildeo de Schopenhauer poreacutem se o objeto natildeo for a proacutepria

representaccedilatildeo teraacute de ser a coisa em si e a introduccedilatildeo do ldquoobjeto da representaccedilatildeordquo como um

intermediaacuterio eacute uma grande fonte de erros Por conseguinte diz ele se o ldquoobjeto da

representaccedilatildeordquo eacute uma concepccedilatildeo falsa toda a doutrina das categorias tambeacutem o seraacute posto

que sua finalidade eacute justamente pensaacute-lo Tanto o primeiro quanto as segundas seriam inuacuteteis

e prejudiciais pois natildeo serviriam agrave intuiccedilatildeo nem agrave coisa em si mas apenas para transformar o

objeto da representaccedilatildeo em experiecircncia258

No fim de contas tudo isso seria inoacutecuo pois a

intuiccedilatildeo jaacute seria a proacutepria experiecircncia que precisa apenas do espaccedilo do tempo e da

causalidade para se formar

Portanto para Schopenhauer teria sido importante que se explicasse a

gecircnese da intuiccedilatildeo empiacuterica Para seguir no seu caminho simeacutetrico poreacutem Kant teria mantido

o entendimento na funccedilatildeo de pensar ligada agrave loacutegica transcendental e afastado dele a intuiccedilatildeo

Assim no entender do filoacutesofo teria restado para si mesmo a tarefa de provar a aprioridade

causalidade por meio da demonstraccedilatildeo de que ela eacute a condiccedilatildeo da realidade tanto do ponto

255

Ibidem p 116 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 256

KkP p 565 CFK p 108 257

KkP p 566 CFK p 108 258

KkP p 567 CFK p 109

- 130 -

de vista intuiccedilatildeo empiacuterica quanto do conjunto da experiecircncia259

Teria restado para ele

tambeacutem a elaboraccedilatildeo de uma resposta satisfatoacuteria ao problema da coisa em si ao qual ele

teria se dedicado em toda a sua obra260

Schopenhauer considera que as modificaccedilotildees que

Kant realiza na segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da razatildeo pura mitigaram seu idealismo no intuito

de disfarccedilar a contradiccedilatildeo subjacente agrave noccedilatildeo de coisa em si Depois de demonstrar que a

causalidade era parte a priori do intelecto e que servia apenas para o conhecimento do mundo

concreto Kant a teria utilizado para sustentar que a intuiccedilatildeo era causada por algo

absolutamente externo ao sujeito

Por todas essas razotildees a exclusatildeo da experiecircncia do domiacutenio metafiacutesico

teria sido feita de forma arbitraacuteria simplesmente pela etimologia da palavra Nesse aspecto

Kant natildeo teria deixado de seguir os filoacutesofos dogmaacuteticos anteriores na medida em que

identificou a metafiacutesica com o conhecimento a priori e natildeo admitiu a experiecircncia interna nem

a externa como fontes dela No entanto ele cometeria com isso uma peticcedilatildeo de princiacutepio

pois diz Schopenhauer ldquo[] haveria de se demonstrar antes que a mateacuteria para a soluccedilatildeo do

enigma do mundo natildeo poderia absolutamente ser encontrada nele mesmo apenas fora em

algo a que portanto somente pela guia do nosso conhecimento a priori se pudesse chegarrdquo261

Uma vez que natildeo estaria suficientemente provado que a fonte uacutenica da metafiacutesica estivesse no

conhecimento a priori natildeo se poderia descartar sem mais o conhecimento a posteriori Como

esclarece Cacciola ldquoSoacute a partir da identificaccedilatildeo entre metafiacutesica e conhecimento a priori eacute

que Kant criticando o alcance desse tipo de conhecimento chega a um resultado negativo De

acordo com Schopenhauer Kant natildeo prova que a metafiacutesica natildeo possa provir da

experiecircnciardquo262

Na verdade segundo a concepccedilatildeo schopenhaueriana a metafiacutesica natildeo tem

outra fonte com que contar para aleacutem da experiecircncia interna e externa e sua tarefa eacute interligaacute-

las corretamente para solucionar o grande problema da filosofia Natildeo se pode deslizar acima

da experiecircncia e a soluccedilatildeo do enigma deve provir do proacuteprio mundo263

259

KkP p 568 CFK p 109 260

KkP p 567 CFK p 109 261

KkP p 546 CFK p 95 262

CACCIOLA M L A criacutetica da Razatildeo no pensamento de Schopenhauer Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Faculdade

de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo Departamento de Filosofia Satildeo Paulo

1981 p 107 263

KkP p 547 CFK p 95

- 131 -

24 ndash Idealismo schopenhaueriano e fisiologia do conhecimento

Neste item tratamos da concepccedilatildeo fisioloacutegica de Schopenhauer no

tocante ao conhecimento Interessa-nos nesse ponto a influecircncia da fisiologia dos sentidos

sobre o entendimento isto eacute de que maneira eles fornecem os dados para a representaccedilatildeo Haacute

tambeacutem outra perspectiva em que Schopenhauer aborda a fisiologia a saber na deduccedilatildeo do

ceacuterebro como um oacutergatildeo material onde se situa o intelecto aspecto que seraacute abordado no

proacuteximo capiacutetulo No texto Sobre a visatildeo e as cores o filoacutesofo declara que pretende

complementar a doutrina Goethe que lhe parecer ser uma apresentaccedilatildeo embora completa e

sistemaacutetica de meros fatos acerca das cores De acordo com ele a concepccedilatildeo goethiana natildeo eacute

realmente uma teoria porque natildeo expotildee um ponto ou um princiacutepio de conexatildeo do todo que

pudesse evidenciar a relaccedilatildeo de dependecircncia entre os fenocircmenos expostos e ao mesmo

tempo esclarecer cada um em particular264

Ela funcionaria como uma espeacutecie de descriccedilatildeo

de fatos empiacutericos numa perspectiva fisioloacutegica agrave qual faltaria ainda o enquadramento em

uma perspectiva filosoacutefica Schopenhauer propotildee-se entatildeo realizar aquilo que considera

como a tarefa da filosofia isto eacute transpor em conceitos o que conhecemos concretamente

ldquoNesse sentidordquo ele escreve ldquocompletar a obra de Goethe estabelecer in abstracto aquele

princiacutepio supremo do qual tudo o que eacute dado nela depende e oferecer a teoria das cores no

sentido estrito da palavra eacute isso o que o presente tratado tentaraacute fazer []rdquo265

Conforme Schopenhauer a atividade intelectual que estaacute na base da

formaccedilatildeo das cores eacute explicada com dados fisioloacutegicos Na obra Die Lehre von der

empirischen Anschauung bei Schopenhauer mencionada anteriormente Johann Rieffert

investiga entre outras coisas as relaccedilotildees entre a teoria da intuiccedilatildeo empiacuterica de Schopenhauer

e a de Thomas Reid Rieffert informa que a concepccedilatildeo do filoacutesofo acerca da fisiologia foi

inspirada em diversos pensadores entre eles Thomas Reid Erasmus Darwin e Cabanis

Segundo o autor Schopenhauer natildeo foi influenciado exatamente pelo conteuacutedo das teorias

deles e sim pela direccedilatildeo metodoloacutegica adotada natildeo soacute por Reid mas por um grupo de

264

UumlSF p 200 VC p 23 265

UumlSF p 200 VC p 23

- 132 -

filoacutesofos ingleses e franceses a saber o espiritualismo266

De acordo com Rieffert

Schopenhauer assimilou de Reid especificamente a concepccedilatildeo de que a sensaccedilatildeo remete de

modo imediato aos objetos reais Nas palavras desse autor ldquoNatildeo a interpretaccedilatildeo causal da

sensaccedilatildeo mas seu conhecimento imediato como pertencente a coisas reais foi apontada

tambeacutem na doutrina de Thomas Reid que o proacuteprio Schopenhauer indica como influecircncia

histoacutericardquo267

A concepccedilatildeo fisioloacutegica defendida por Schopenhauer em Sobre a visatildeo e

as cores eacute uma parte da sua teoria do conhecimento mais ampla Essa concepccedilatildeo eacute

generalizada para todos os objetos e propriedades de modo que a teoria do conhecimento em

seu conjunto relaciona-se intrinsecamente com um fundamento fisioloacutegico Com efeito a

fisiologia fornece a base para a compreensatildeo dos dados fornecidos pelos sentidos e do modo

como o intelecto os utiliza para a construccedilatildeo da representaccedilatildeo Como jaacute mencionamos antes

as impressotildees sentidas pelos animais nos seus corpos satildeo o impulso de onde partem e a

mateacuteria sobre a qual se formam as intuiccedilotildees por meio da causalidade a priori Ou como

afirma Cacciola ldquoSatildeo as afecccedilotildees deste corpo que permitem a intuiccedilatildeo do mundo pelo

entendimento e portanto o conhecerrdquo268

Cada sentido tem sua especificidade percebida em um modo proacuteprio de

recepccedilatildeo aos influxos segundo a maneira em que o sistema nervoso eacute afetado pelos seus

dados269

Segundo Schopenhauer a substacircncia dos nervos eacute a mesma no corpo todo de modo

que as singularidades das diferentes sensaccedilotildees dos sentidos satildeo dadas pela receptividade

especial de cada um deles isto eacute dos olhos para a luz do som para os ouvidos e assim por

diante270

Citando Cabanis o filoacutesofo escreve

Que o nervo do labirinto e a coacuteclea nadando na aacutegua do ouvido recebam as

vibraccedilotildees do ar por meio dessa aacutegua enquanto o nervo oacutetico recebe a

influecircncia da luz por meio da refraccedilatildeo desta na umidade e no cristalino essa

eacute a causa das diferenccedilas especiacuteficas de ambas as sensaccedilotildees natildeo o nervo em

si271

266

ERDMANN Benno (Herausgegeber) Abhandlungen zur Philosophie und irhre Geschichte 42 Heft

RIEFFERT J B Die Lehre von der empirische Anschauung bei Schopenhauer Halle Max Niemeyer 1914 p

190 267

Ibidem p 191 (traduccedilatildeo nossa) 268

CACCIOLA M L Schopenhauer e a questatildeo do dogmatismo Satildeo Paulo EDUSP 1994 p 39 269

UumlSF sect1 p 205 VC sect 1 p 31 270

UumlSF sect1 p 206 VC sect1 p 31 271

UumlSF sect1 p 206 VC sect1 p 31

- 133 -

Nessa perspectiva as distintas sensaccedilotildees natildeo se formam nos oacutergatildeos

mesmos mas na conjunccedilatildeo dos nervos no ceacuterebro o que explica a simplicidade das

impressotildees272

Na interpretaccedilatildeo de Philonenko Schopenhauer considerava a vontade de um

lado como expressatildeo do espiritualismo de Kant e de outro o ceacuterebro como expressatildeo do

materialismo de Cabanis O filoacutesofo diz esse autor ldquo[] acreditava realizar uma verdadeira

siacutentese filosoacutefica e histoacuterica (entre a Alemanha e a Franccedila)rdquo273

Com base nos dados sensoacuterios o mundo da representaccedilatildeo seria edificado

pelo intelecto sem o qual as informaccedilotildees dos sentidos natildeo formariam nenhum objeto Uma

paisagem por exemplo seria conhecida apenas como uma tela manchada de muitas cores

que eacute ao que se resume a mateacuteria bruta oferecida pela sensaccedilatildeo na retina274

Segundo

Schopenhauer os sentidos ligam-se ao intelecto por meio do ceacuterebro ou melhor ldquoOs sentidos

satildeo apenas as prolongaccedilotildees do ceacuterebro pelas quais ele recebe a mateacuteria de fora (na forma da

sensaccedilatildeo) para processaacute-la em representaccedilatildeo intuitivardquo275

No fim de contas todos os sentidos

poderiam ser reduzidos agrave susceptibilidade dos corpos animais aos estiacutemulos externos como

meio de alcanccedilar dados para o entendimento Essa susceptibilidade diz o filoacutesofo dividiu-se

em cinco sentidos para que pudesse se adequar aos quatro elementos e ao que ele chama de

estado de imponderabilidade (Inponderabilitaumlt) o tato para o soacutelido (terra) o paladar para o

liacutequido (aacutegua) o olfato para o volaacutetil (gasoso) a audiccedilatildeo para o elaacutestico (ar) e a visatildeo para o

imponderaacutevel (fogo luz)276

ldquoPoisrdquo ele conclui ldquoesse mundo real e intuitivo eacute

manifestamente um fenocircmeno cerebral daiacute a admissatildeo de que ele tambeacutem devesse existir

independente de qualquer ceacuterebro eacute uma contradiccedilatildeordquo277

25 ndash Fundamentos do mundo como representaccedilatildeo

272

WWV II Kap 3 p 41-42 M II cap 3 p 34 273

PHILONENKO A Schopenhauer critique de Kant Paris Les Belles Lettres 2005 p 108 (traduccedilatildeo nossa)

(grifos do autor) 274

UumlSF sect1 p 206 VC sect1 p 32 275

WWV II Kap 3 p 38 M II cap 3 p 31 276

WWV II Kap 3 p 39 M II cap 3 p 32 277

WWV II Kap 1 p 14 M II cap 1 p 8

- 134 -

Diante dos desafios e questotildees que pretende resolver Schopenhauer

assenta o mundo como representaccedilatildeo em uma estrutura composta de dois pilares a saber o

intelecto e a fisiologia dos sentidos Haacute duas exigecircncias principais que a nosso ver sua trama

conceitual procura satisfazer simultaneamente Em primeiro lugar legitimar a posiccedilatildeo do

idealismo transcendental corrigindo ou eliminando os erros apontados na deduccedilatildeo que Kant

realizou da coisa em si sem suprimi-la Diferentemente dos outros poacutes-kantianos

Schopenhauer natildeo deseja desfazer-se dessa noccedilatildeo de modo que sua teoria do conhecimento

natildeo pode fechar as portas a ela como fez a de Kant Em segundo lugar tornou-se necessaacuterio

garantir que a realidade empiacuterica pudesse conviver pacificamente com a idealidade

transcendental do mundo evitando que o sujeito cognoscente perdesse para sempre o caminho

de acesso agraves coisas reais Daiacute a importacircncia que Schopenhauer confere agrave exposiccedilatildeo da origem

da intuiccedilatildeo empiacuterica como meio de conectar o conhecimento a algo externo ou material Eacute

preciso que o sujeito toque em algo que de alguma forma esteja fora de si e que ao mesmo

tempo natildeo seja o objeto em si Segundo pensamos a formulaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo

suficiente e a teoria da construccedilatildeo do mundo empiacuterico com recurso agrave sensaccedilatildeo satildeo as repostas

que Schopenhauer idealiza agravequelas questotildees e suas exigecircncias

Na elaboraccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo o filoacutesofo faz um inventaacuterio do

intelecto humano no qual contabiliza um princiacutepio ordenador uacutenico trecircs faculdades e quatro

classes de objetos todos intrinsecamente vinculados O princiacutepio de razatildeo eacute o modo geral da

atividade do intelecto e a busca do fundamento suficiente de uma consequecircncia dada se

encontra em cada faculdade e em seus objetos A sensibilidade lida com intuiccedilotildees puras e

dados sensoacuterios os quais enquadra no tempo e no espaccedilo e o princiacutepio de razatildeo do ser

determina em todos a sucessatildeo e a posiccedilatildeo O entendimento engendra os objetos empiacutericos e o

conjunto da experiecircncia utilizando as formas do tempo do espaccedilo e da causalidade e

tambeacutem o material fornecido pelos sentidos A causalidade faz do mundo como representaccedilatildeo

um grande emaranhado de cadeias causais sem iniacutecio ou fim as quais conformam o universo

natural como um todo Essa parte da teoria segundo pensamos foi a que exigiu maior

criatividade e inventividade porque era onde estava o desafio mais difiacutecil O mundo

engendrado pelo entendimento tinha de ter garantidas simultaneamente sua idealidade e sua

realidade sem tocar a coisa em si e sem minar a validade objetiva das representaccedilotildees isto eacute

sem que fossem construiacutedas como puras quimeras de um intelecto Por conseguinte sua

- 135 -

origem intelectual teria de ser demonstrada para que se garantisse o idealismo criacutetico e ao

mesmo tempo a conexatildeo com algo real fora do sujeito teria de ser assegurada para que se

evitasse o solipsismo e a reduccedilatildeo do mundo a nada Esse algo fora do sujeito entretanto natildeo

poderia ser a coisa em si mesma A faculdade da razatildeo por fim produz conceitos a partir de

intuiccedilotildees cujas caracteriacutesticas satildeo abstraiacutedas e fixadas em palavras As regras de inferecircncia e

as leis que a ela pertencem entre elas o princiacutepio de razatildeo satildeo o modo de operar dessa

faculdade que exige um fundamento para todo juiacutezo o qual no fim de todas as cadeias

dedutivas teraacute de ser uma intuiccedilatildeo

Natildeo obstante haacute dois casos agrave parte O primeiro deles eacute a faculdade do

juiacutezo responsaacutevel pelo pensar e pelas verdades empiacutericas Segundo Schopenhauer eacute ela que

governa os conceitos mediando entre o intuitivo e o abstrato entre o entendimento e a razatildeo

Natildeo estaacute poreacutem ligada ao princiacutepio de razatildeo suficiente natildeo lida com fundamentos e

consequecircncias mas com reflexotildees e subordinaccedilotildees de conceitos e intuiccedilotildees O segundo caso agrave

parte satildeo duas classes de objetos natildeo listadas entre as quatro principais abordadas em lugares

distintos Uma delas eacute a que o filoacutesofo chama de Phantasma que podemos entender como

representaccedilotildees produzidas pela imaginaccedilatildeo das quais se pode dizer que satildeo empiacutericas porque

satildeo determinadas e tambeacutem que natildeo satildeo empiacutericas porque natildeo se originam com sensaccedilotildees A

outra classe abrange as chamadas intuiccedilotildees normais comparadas agraves Ideias platocircnicas

definidas como representaccedilotildees tiacutepicas da matemaacutetica que satildeo ao mesmo tempo determinadas

e gerais e se aplicam a todos os objetos possiacuteveis Contudo o filoacutesofo natildeo chega a ancorar a

faculdade do juiacutezo nem as classes adicionais de objetos no princiacutepio de razatildeo de modo que

fica a duacutevida sobre como e onde se originam

Segundo pensamos no desenvolvimento de suas respostas Schopenhauer

busca um ponto firme uma primeira verdade com a qual iniciar seu sistema de modo

satisfatoacuterio Na sua concepccedilatildeo como vimos toda teoria se realiza em conceitos mas o apoio

uacuteltimo deve ser uma verdade intuitiva Nesse sentido natildeo eacute uma mera casualidade que ele

inicie sua obra fundamental com a sentenccedila ldquoO mundo eacute minha representaccedilatildeordquo Essa

proposiccedilatildeo eacute o axioma perfeito para que ele deduza seu sistema completo acerca do

conhecimento como ele mesmo afirma aliaacutes no primeiro capiacutetulo de O MundoII que trata

do ponto de vista fundamental do idealismo278

A partir dela vemos o filoacutesofo desdobrar suas

concepccedilotildees de sujeito objeto coisa em si conhecimento idealismo dentre outras O

278

WWV II Kap 1 p 11 M II cap 1 p 5

- 136 -

princiacutepio de razatildeo suficiente fornece o meacutetodo mas a representaccedilatildeo eacute a primeira verdade

autoevidente da qual ele extrai diligentemente todo o restante Para Schopenhauer esse eacute um

diferencial de seu procedimento filosoacutefico que parte da representaccedilatildeo como primeiro fato da

consciecircncia279

Essa seria tambeacutem a caracteriacutestica que distingue sua filosofia do dogmatismo

como mostra Cacciola pois ele natildeo toma como causas do mundo nem o sujeito nem o

objeto280

Schopenhauer considera a verdade daquela sentenccedila como imediata e evidente e de

modo sintomaacutetico afirma que poderia ser expressa numa foacutermula semelhante agrave de Descartes

ldquoCogito ergo estrdquo (penso logo eacutes)281

Para o filoacutesofo a divisatildeo da consciecircncia entre sujeito e objeto eacute

inexpugnaacutevel porque eacute pressuposta em qualquer pensamento ou intuiccedilatildeo possiacutevel Segue-se

do fato indubitaacutevel da representaccedilatildeo sendo ainda mais radical do que as classes de objetos e

as formas do princiacutepio de razatildeo Essa divisatildeo seria a mais geral e universal concebiacutevel diz

ele pois ldquo[] a decomposiccedilatildeo entre sujeito e objeto eacute a forma comum agravequelas classes eacute a

forma sob a qual somente eacute possiacutevel em geral e pensaacutevel qualquer tipo que seja de

representaccedilatildeo abstrata ou intuitiva pura ou empiacutericardquo282

Seria uma verdade a priori e toda e

qualquer experiecircncia possiacutevel teria de ser pensada dentro dos paracircmetros de sujeito e objeto

Natildeo obstante o sujeito do conhecimento natildeo precisa ser humano pode ser qualquer animal

existente jaacute que o mundo intuitivo natildeo exige o intercurso da razatildeo283

Desse modo a

condicionalidade entre sujeito e objeto eacute dada de um lado pela proacutepria significaccedilatildeo desses

termos que soacute fazem sentido um em relaccedilatildeo ao outro e natildeo podem ser arbitrariamente

separados De outro sujeito e objeto satildeo as duas metades de qualquer representaccedilatildeo satildeo

inseparaacuteveis e existem ou desaparecem um pelo outro e um no outro284

Portanto em relaccedilatildeo

ao sujeito cognoscente Schopenhauer afirma que ldquoo mundo que o cerca soacute existe como

representaccedilatildeo isto eacute apenas e tatildeo somente em relaccedilatildeo a outra coisa o representador que eacute ele

mesmordquo285

Desse modo natildeo teria nenhum fundamento imaginar que a supressatildeo de

uma das partes da consciecircncia cognoscente deixasse intacta a outra pois ambas se

implicariam mutuamente no fato da representaccedilatildeo Haveria uma interdependecircncia muacutetua entre

279

WWV I ersters Buch sect7 p 58 M I Livro I sect7 p 69 280

CACCIOLA M L Schopenhauer e a questatildeo do dogmatismo Satildeo Paulo EDUSP 1994 p 33 281

WWV II Kap 4 p 45 M II cap 4 p 39 282

WWV I ersters Buch sect1 p 31 M I Livro I sect1 p 43 283

WWV I ersters Buch sect1 p 31 M I Livro I sect1 p 43 284

WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I sect2 p 46 285

WWV I ersters Buch sect1 p 31 M I Livro I sect1 p 43

- 137 -

sujeito e objeto representador e representaccedilatildeo de um modo tal que a exclusatildeo do sujeito natildeo

significaria a existecircncia de uma objetividade pura mas a inexistecircncia de qualquer mundo Nas

palavras de Schopenhauer [] o todo objetivo enquanto tal eacute dependente de inumeraacuteveis

modos do sujeito cognoscente com suas formas que tem pressupostas consequentemente

desaparece totalmente se se abstrai o sujeitordquo286

Nesse sentido a fundamentaccedilatildeo do

materialismo eacute falha por considerar que o sujeito eacute determinado pela realidade concreta ou

entatildeo que a deturpa com ideias falsas Do mesmo modo supor a exclusatildeo do objeto

representado natildeo conduziria agrave subsistecircncia de um mundo mais real por si existente pois

nesse caso sobraria apenas o sujeito287

O caraacuteter transcendental de uma filosofia significa para Schopenhauer a

compreensatildeo de que haacute aspectos do conhecimento natildeo devidos agrave experiecircncia e que impotildeem

suas regras aos dados empiacutericos Nas suas palavras ldquoTranscendental eacute a filosofia que traz agrave

consciecircncia que as primeiras e essenciais leis desse mundo que se nos apresenta enraiacutezam-se

no nosso ceacuterebro e por isso satildeo conhecidas a priori Chama-se transcendental pois transpotildee

toda a fantasmagoria dada em direccedilatildeo agrave sua origemrdquo288

Por isso o mundo que assim nos eacute

apresentado natildeo pode ser tomado como absoluto somente como condicionado e dependente

do intelecto animal Em funccedilatildeo disso diz ele questotildees sobre os limites do mundo seu iniacutecio e

fim assim como os nossos satildeo transcendentes isto eacute vatildeo aleacutem de toda e qualquer

experiecircncia possiacutevel Na verdade ele escreve ldquoTodas elas repousam portanto no falso

pressuposto de que aquilo que soacute eacute forma do fenocircmeno ou seja o que eacute representaccedilatildeo

mediada pela consciecircncia cerebral animal liga-se agrave coisa em si mesma e portanto fornece a

natureza primeira e fundamental do mundordquo289

Por conseguinte no mundo como representaccedilatildeo o sujeito imprime suas

formas proacuteprias aos objetos intuiacutedos os quais entatildeo se apresentam em diversidade e

pluralidade O sujeito mesmo poreacutem natildeo participa dessas caracteriacutesticas e se configura como

um todo indiviso em cada ser existente que cria para si mesmo o mundo completo da

representaccedilatildeo290

Como Schopenhauer afirma ldquo[] um uacutenico deles com o objeto

complementa o mundo como representaccedilatildeo como os milhotildees existentes mas se aquele uacutenico

286

WWV I ersters Buch sect7 p 61-62 M I Livro I sect7 p 72 287

UumlV sect19 p 47 CR sect19 p 66 288

PP I Fragmente zur Geschichte der Philosophie sect 13 p 106 Fragmentos para a histoacuteria da filosofia

Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas de Maria Luacutecia Cacciola Satildeo Paulo Iluminuras 2003 sect 13 p 73 (grifos do

autor) 289

Ibidem sect 13 p 107 ibidem sect 13 p 73-74 (grifos do autor) 290

WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I Livro I sect2 p 46

- 138 -

desaparecesse entatildeo o mundo como representaccedilatildeo natildeo existiria maisrdquo291

De acordo com isso

tudo o que depende das formas do tempo do espaccedilo e da causalidade o mundo todo como

representaccedilatildeo possui uma existecircncia relativa existe apenas por meio de outro292

Somente

existe no entendimento pelo entendimento e para ele ldquo[] assim natildeo antes mas apenas

depois de seu empregordquo293

Essa relatividade no entanto natildeo se estabelece por uma

dependecircncia causal do objeto no tocante ao sujeito A causalidade como jaacute vimos produz o

conhecimento do mundo e as proacuteprias intuiccedilotildees empiacutericas mas sua legislaccedilatildeo eacute vaacutelida apenas

para as relaccedilotildees entre os corpos animais e os objetos que os afetam ou entre ldquoobjeto imediato

e mediatordquo294

Nenhuma relaccedilatildeo entre sujeito e objeto eacute estabelecida pelo princiacutepio de razatildeo

suficiente de modo que nem o sujeito causa o objeto nem este causa aquele Nas palavras do

filoacutesofo ldquo[] entre ambos natildeo pode haver nenhuma relaccedilatildeo de fundamento a

consequecircnciardquo295

Pode-se apenas dizer que as formas do sujeito satildeo o limite comum entre ele

e objeto como pertencendo a ambos As duas metades do mundo como representaccedilatildeo

limitam-se mutuamente e ele afirma

A comunidade desse limite mostra-se em que as formas essenciais e por

isso gerais de todos os objetos tempo espaccedilo e causalidade tambeacutem

possam ser encontradas e completamente compreendidas a partir do sujeito

sem o conhecimento do objeto isto eacute na linguagem de Kant situam-se a

priori na nossa consciecircncia296

Idealismo transcendental eacute entatildeo a concepccedilatildeo de que o sujeito do

conhecimento possui em si as condiccedilotildees de existecircncia do mundo objetivo Contudo para

Schopenhauer isso natildeo pode significar que a realidade empiacuterica seja inexistente ou

simplesmente aparecircncia Significa apenas que diz ele ldquo[] natildeo eacute incondicional posto que ela

possui como condiccedilatildeo nossa funccedilatildeo cerebral na qual se originam as formas da intuiccedilatildeo isto

eacute tempo espaccedilo e causalidade que portanto essa realidade empiacuterica eacute apenas a realidade de

um fenocircmenordquo297

A partir daiacute o filoacutesofo extrai trecircs princiacutepios que julga constituiacuterem o

espiacuterito do idealismo transcendental Em primeiro lugar que a realidade empiacuterica existe

291

WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I Livro I sect2 p 46 292

WWV I ersters Buch sect3 p 36 M I Livro I sect3 p 48-49 293

WWV I ersters Buch sect6 p 52 M I Livro I sect6 p 63 294

WWV I ersters Buch sect5 p 43 M I Livro I sect5 p 55 295

WWV I ersters Buch sect5 p 44 M I Livro I sect5 p 56 296

WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I Livro I sect2 p 46 297

Ibidem sect 13 p 107 ibidem sect 13 p 74

- 139 -

apenas no presente em segundo que o que eacute verdadeiramente real eacute independente do tempo

e em terceiro que o tempo natildeo se remete agrave coisa em si298

Natildeo obstante como dissemos a idealidade transcendental do mundo que

faz dele um fenocircmeno natildeo pode anular sua veracidade A representaccedilatildeo eacute ideal mas natildeo

pode ser por isso uma miragem ou quimera Ela tem de se apoiar em algo mas natildeo em algo

dado pronto que simplesmente entre no intelecto por algum tipo de osmose Ela natildeo deve

tambeacutem apoiar-se na coisa em si que natildeo pode ser causa de nenhuma impressatildeo nos sentidos

e agrave qual as formas da representaccedilatildeo natildeo podem acessar Torna-se necessaacuterio entatildeo

demonstrar a gecircnese da intuiccedilatildeo sensiacutevel de um modo tal que garanta sua relaccedilatildeo com o

empiacuterico sem que seja um ato de assimilaccedilatildeo pura e simples dele nem uma referecircncia direta

agrave coisa em si Schopenhauer censurou Kant por natildeo ter realizado essa investigaccedilatildeo e dedicou-

se entatildeo agrave tarefa que levou a cabo com a explicaccedilatildeo detalhada do nascimento da intuiccedilatildeo

empiacuterica e do conjunto da experiecircncia como produtos da combinaccedilatildeo entre entendimento e

sensaccedilotildees dos sentidos

A fisiologia se torna o segundo pilar do mundo como representaccedilatildeo ao

lado das formas do sujeito cognoscente pois eacute ela que fornece a origem dos dados sensoriais

como a mateacuteria com a qual o entendimento criaraacute os objetos empiacutericos Daiacute o porquecirc de

Schopenhauer considerar Kant e Cabanis como seus precursores299

De uma forma que lembra

a teoria de Maimon sobre os diferenciais Schopenhauer argumenta que as sensaccedilotildees natildeo

apresentam nenhum objeto a ser conhecido mas apenas impressotildees abafadas no corpo das

quais sem o entendimento nada se concluiria Por conseguinte tambeacutem sua representaccedilatildeo

(Vorstellung) eacute antes uma apresentaccedilatildeo (Darstellung) posto que o objeto empiacuterico natildeo existe

na simples sensaccedilatildeo Ao remeter agrave sensaccedilatildeo sentida nos corpos animais o filoacutesofo

complementa sua argumentaccedilatildeo fundamentando-se em outro conhecimento tatildeo imediato

quanto o fato da representaccedilatildeo isto eacute em um sentimento subjetivo Por isso ele ressalta

inuacutemeras vezes que as sensaccedilotildees permanecem sempre dentro do organismo sob a pele e que

diferem totalmente dos objetos intuiacutedos Numa palavra a intuiccedilatildeo eacute fabricada pelo

entendimento com os dados dos sentidos e ela eacute o proacuteprio objeto

Como resultado na medida em que eacute construiacutedo pelo sujeito

cognoscente o mundo da representaccedilatildeo natildeo possui um ser para aleacutem de ser representado

298

Ibidem sect 13 p 108 ibidem sect 13 p 74-75 299

Ibidem sect 12 p 101 ibidem sect 12 p 69

- 140 -

Como mostramos ser objeto e ser representado eacute o mesmo e isso significa que natildeo haacute um

objeto mais real como a causa da representaccedilatildeo Haacute apenas os efeitos que os corpos causam

entre si e que constituem junto com as formas e a accedilatildeo do entendimento o mundo da

experiecircncia Em funccedilatildeo disso Schopenhauer afirma que o ser dos objetos intuiacutedos eacute

exatamente essa accedilatildeo muacutetua e a produccedilatildeo de efeitos entre si a proacutepria realidade das coisas

se resume a isso300

Nesse sentido diz ele ldquo[] a exigecircncia da existecircncia do objeto fora da

representaccedilatildeo do sujeito e tambeacutem um ser das coisas reais diferente de seu produzir efeito

natildeo tem nenhum sentido e eacute uma contradiccedilatildeo []rdquo301

Portanto o objeto natildeo pode ser pensado

sem o sujeito assim como a proacutepria realidade do mundo externo natildeo pode E

consequentemente o mundo como representaccedilatildeo estaraacute sempre em uma ambiguidade surge

como objeto construiacutedo pelo sujeito com suas formas proacuteprias e com base em sensaccedilotildees

internamente sentidas mas ao mesmo tempo natildeo pode ser declarado irreal ou pura fantasia

porque o intelecto o engendra interpretando efeitos materiais no corpo que lhe corresponde

Dito de outra maneira eacute uma forma do intelecto que cria o ldquoexternordquo com o que se pode

afirmar que o ldquoexternordquo estaacute inserido no ldquointernordquo mas ela o faz com dados sensiacuteveis que

nada representam por si mesmos que natildeo satildeo propriamente objetos de modo que a

objetividade eacute criaccedilatildeo do entendimento

300

WWV I ersters Buch sect5 p 45 M I Livro I sect5 p 57 301

WWV I ersters Buch sect5 p 45 M I Livro I sect5 p 57

- 141 -

Capiacutetulo 3 ndash A constituiccedilatildeo do lado interno do mundo metafiacutesica

31 ndash A Vontade como o em si do indiviacuteduo

Como vimos no capiacutetulo anterior Schopenhauer sustenta que o mundo

como representaccedilatildeo embora ideal possui realidade empiacuterica Essa realidade poreacutem eacute

relativa e condicionada pois natildeo tem apoio em nada verdadeiramente real nada

incondicionado ou metafiacutesico Conforme Schopenhauer a relatividade e o condicionamento

do mundo como representaccedilatildeo natildeo permitem saciar o anseio de saber da filosofia que sempre

se pergunta pelos fundamentos as essecircncias as origens Para ele assim como para Jacobi um

mundo que fosse pura e simplesmente representaccedilatildeo natildeo seria mais do que uma ilusatildeo

tornando-se necessaacuterio encontrar os alicerces que o fixassem a algo verdadeiro Nas palavras

do filoacutesofo ldquoNoacutes queremos conhecer o sentido dessa representaccedilatildeo perguntamos se esse

mundo natildeo eacute nada aleacutem de representaccedilatildeo Nesse caso teria de passar diante de noacutes como um

sonho vazio ou uma formaccedilatildeo fantasmagoacuterica de ar que natildeo merece nossa atenccedilatildeo []rdquo1

Trata-se de mais um aspecto singular do pensamento de Schopenhauer para quem eacute possiacutevel

sem utilizar as leis do fenocircmeno adentrar o iacutentimo do mundo como representaccedilatildeo e conhececirc-

lo No capiacutetulo 18 de O MundoII sobre a cognoscibilidade da coisa em si ele afirma ser

esse o traccedilo mais caracteriacutestico de sua filosofia e tambeacutem o mais importante pelo qual teria

realizado aquilo que Kant entendeu ser impossiacutevel a saber a transiccedilatildeo do fenocircmeno para a

coisa em si2

Na concepccedilatildeo de Schopenhauer o exame detalhado da representaccedilatildeo

intuitiva permite ter um conhecimento de seu conteuacutedo de suas determinaccedilotildees e figuras bem

como esclarecer a significaccedilatildeo deles para que ldquonos falem diretamenterdquo3 E o que esse exame

deveraacute solucionar eacute o antigo problema da relaccedilatildeo entre o real e o ideal isto eacute apontar o

1 WWW I zweites Buch sect17 p 150 M I livro II sect17 p 155

2 WWW II Kap 18 p 221 M II cap 18 p 231

3 WWW I zweites Buch sect17 p 145 M I livro II sect17 p 151

- 142 -

fundamento da representaccedilatildeo que diz o filoacutesofo com exceccedilatildeo do ceticismo e do idealismo

foi considerado por muitas filosofias como totalmente diferente no ser e na essecircncia do

mundo real Embora se coloque entre os membros da escola idealista Schopenhauer concorda

com a distinccedilatildeo radical entre o real e o ideal que se configuraria como um verdadeiro abismo

percebido claramente apenas depois de Descartes4 Natildeo obstante diz o filoacutesofo a

experiecircncia deve ser investigada e delimitada de um modo especiacutefico diferente do cientiacutefico

para que seu nuacutecleo possa ser revelado e natildeo nos mostre apenas um conjunto de hieroacuteglifos

incompreendidos5 A ciecircncia da natureza conforme o filoacutesofo divide-se em dois grandes

ramos a saber a morfologia que descreve as formas permanentes dos objetos e a etiologia

que explica as transformaccedilotildees da mateacuteria segundo a lei de causalidade Nenhum desses ramos

no entanto seria capaz de dar a conhecer o sentido profundo do mundo como representaccedilatildeo

Tampouco a matemaacutetica o seria uma vez que lida com as representaccedilotildees do ponto de vista

das quantidades e soacute se refere a comparaccedilatildeo de grandezas sem fornecer quaisquer

informaccedilotildees sobre o conteuacutedo da intuiccedilatildeo Nesse sentido Gardiner afirma que

[] por muita informaccedilatildeo que as diversas ciecircncias nos proporcionem sobre

as relaccedilotildees que os distintos fenocircmenos da experiecircncia sensorial possuem em

entre si esses fenocircmenos nos parecem falando metaforicamente

ldquoestrangeirosrdquo natildeo se esclareceu ou captou sua autecircntica identidade e

significaccedilatildeo6

O que o estudo cientiacutefico da natureza deixa velado eacute algo que estaacute fora do

seu acircmbito de explicaccedilatildeo isto eacute a essecircncia dos fenocircmenos Segundo Schopenhauer tratam-se

das forccedilas naturais que se exteriorizam de modo regular quando as condiccedilotildees satildeo dadas Nas

palavras dele ldquoA forccedila mesma que se exterioriza a essecircncia interna dos fenocircmenos que

surgem conforme aquelas leis permanece um eterno misteacuterio para ela [a etiologia] totalmente

estranho e desconhecido tanto para os fenocircmenos mais simples quanto para os mais

complexosrdquo7 No caso da mecacircnica por exemplo os conceitos mais baacutesicos natildeo poderiam ser

demonstrados e teriam de ser pressupostos como os de mateacuteria gravidade e

impenetrabilidade Tais conceitos satildeo entatildeo remetidos agrave expressatildeo ldquoforccedilas naturaisrdquo cuja

regularidade de apariccedilatildeo eacute nomeada lei natural mas diz Schopenhauer as ciecircncias da

natureza natildeo resolvem a questatildeo de saber qual eacute essecircncia desses fenocircmenos Ele ilustra esse

aspecto com uma metaacutefora interessante afirmando que o estudo cientiacutefico da natureza se

4 WWW II Kap 18 p 222 M II cap 18 p 232

5 WWW I zweites Buch sect17 p 147 M I livro II sect17 p 153

6 GARDINER op cit p 195 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor)

7 WWW I zweites Buch sect17 p 148 M I livro II sect17 p 154

- 143 -

assemelha agrave explicaccedilatildeo dos sulcos de um corte maacutermore que o perpassam de um lado a outro

mas natildeo mostram o caminho que os levou agrave superfiacutecie8 Essa metaacutefora eacute significativa porque

ilustra bem sua concepccedilatildeo de natureza e de mundo como a exteriorizaccedilatildeo de uma essecircncia que

determina a partir de dentro tudo o que ocorre do lado de fora Sobre esse ponto Gardiner

afirma que as forccedilas naturais ldquoConstituem dito de outro modo um resiacuteduo inexpugnaacutevel em

toda a explicaccedilatildeo cientiacutefica e desse ponto de vista deve-se admitir que a ciecircncia se choca em

todas as partes com algo que eacute incapaz de compreender com seus proacuteprios termos com o

bdquometafiacutesico‟rdquo9

A investigaccedilatildeo schopenhaueriana pretende justamente mostrar aquele

percurso isto eacute o caminho que define internamente as manifestaccedilotildees externas da Vontade A

argumentaccedilatildeo que Schopenhauer formula para deduzir a Vontade como coisa em si

concentra-se no indiviacuteduo humano e em seguida eacute generalizada para todo o restante do

mundo Ele utiliza a autoconsciecircncia como ponto de partida apontando o modo duplo em que

cada um conhece a si mesmo e extraindo daiacute algumas conclusotildees Como sabemos o lado

exterior do mundo eacute objetivo e portanto somente pode ser conhecido por meio do princiacutepio

de razatildeo que eacute o princiacutepio do conhecimento dos objetos As leis do fenocircmeno natildeo podem

conduzir a nada que tenha outra natureza e isso significa que o lado interno do mundo teria

de ser inacessiacutevel conhecimento caso o sujeito se reduzisse ao conhecer Poreacutem diz o

filoacutesofo haacute uma circunstacircncia que torna a situaccedilatildeo em tudo diferente a saber a relaccedilatildeo do

sujeito do conhecer com o mundo que seu intelecto constroacutei eacute intermediada pelo seu proacuteprio

corpo Assim na medida em que o sujeito do conhecer eacute um indiviacuteduo seu corpo poderia ser

conhecido de duas formas distintas a partir de fora e a partir de dentro A partir de fora seria

conhecido como qualquer objeto ou melhor seria construiacutedo pelo sujeito do conhecer com

base nas suas formas a priori e na sensaccedilatildeo a posteriori A partir de dentro por sua vez o

corpo poderia ser conhecido como vontade individual E conforme Schopenhauer ldquoEsta e

somente esta fornece a ele a chave do seu proacuteprio fenocircmeno revela a ele o significado mostra

a ele o interior da engrenagem de seu ser de suas accedilotildees e de seus movimentosrdquo10

O sujeito do conhecimento portanto aleacutem de conhecer seu corpo como

um objeto tem a possibilidade de conhececirc-lo a partir de dentro e de modo imediato Na

verdade segundo Schopenhauer o sujeito eacute idecircntico ao corpo e cada ato de vontade eacute

8 WWW I zweites Buch sect17 p 149 M I livro II sect17 p 154-155

9 GARDINER op cit p 202 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor)

10 WWW I zweites Buch sect18 p 151 M I livro II sect18 p 156-157

- 144 -

imediata e simultaneamente um movimento do corpo11

No texto ldquoAstronomia fiacutesicardquo de

Sobre a Vontade na natureza ele afirma que sua filosofia refuta a tradiccedilatildeo antiga e difundida

de separar como diferentes o movimento por causas e o movimento por vontade12

Nas

palavras dele

O ato de vontade e a accedilatildeo do corpo natildeo satildeo dois estados diferentes

conhecidos objetivamente e ligados pelo elo da causalidade natildeo estatildeo em

relaccedilatildeo de causa e efeito mas eles satildeo um e o mesmo apenas dados de

modo em tudo diferente uma vez muito imediatamente e outra na intuiccedilatildeo

do entendimento13

Por um lado o que se entende por accedilatildeo do corpo seria o ato de vontade

visto pelo lado da intuiccedilatildeo isto eacute tornado objeto por outro o corpo como um todo seria

vontade tornada objeto Desse modo o princiacutepio do movimento seria sempre o mesmo a

vontade como condiccedilatildeo interna e a causa como condiccedilatildeo externa14

Gardiner nota sobre esse

ponto que sem a possibilidade desse conhecimento interno do corpo individual

conheceriacuteamos nossos proacuteprios movimentos apenas como os cientistas conhecem os

fenocircmenos naturais isto eacute ldquonossas accedilotildees seriam somente inteligiacuteveis por referirem-se agraves

regularidades ou leis agraves quais segundo a observaccedilatildeo nos diz conformam-se [os

movimentos]rdquo15

Desse ponto de vista conforme Schopenhauer o corpo eacute chamado

objetidade da vontade (Objektitaumlt des Willens) e as relaccedilotildees entre ele e a vontade podem ser

consideradas em dois sentidos diferentes Tanto se pode pensar a vontade do ponto de vista de

sua exteriorizaccedilatildeo em ato quanto do ponto de vista das influecircncias que ela sofre por meio da

accedilatildeo sobre o corpo No primeiro caso ela se objetiva no segundo um ato sobre o corpo tem

efeito sobre ela Uma accedilatildeo sentida no corpo que esteja de acordo com a vontade seraacute fonte de

prazer enquanto a que esteja em desacordo resultaraacute em dor No texto ldquoSchopenhauer on the

selfrdquo Guumlnter Zoumlller afirma sobre esse ponto que ldquo[] ao enfatizar a centralidade da vontade

no eu Schopenhauer revecirc radicalmente o estatuto do corpo humano substituindo a relaccedilatildeo

tradicional mente-corpo pela identidade vontade-corpordquo16

Para o filoacutesofo entatildeo conhecer o

corpo eacute conhecer a vontade embora assim ela natildeo se revele como unidade nem de modo

11

WWW I zweites Buch sect18 p 151 M I livro II sect18 p 157 12

WN p 409 VN p 135-136 13

WWW I zweites Buch sect18 p 151 M I livro II sect18 p 157 14

WN p 409 VN p 136 15

GARDINER op cit p 208 (traduccedilatildeo nossa) 16

ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 19 (traduccedilatildeo nossa)

- 145 -

perfeito jaacute que os atos do corpo se datildeo isoladamente e no tempo como quaisquer objetos

Portanto conheceriacuteamos a vontade em resoluccedilotildees e accedilotildees que se datildeo sucessivamente mas

natildeo poderiacuteamos associaacute-la a um substrato ou substacircncia permanente17

Na interpretaccedilatildeo de

Zoumlller tomada nesse sentido a vontade individual tambeacutem eacute uma condiccedilatildeo do conhecimento

Como ele explica

[] nem o sujeito do conhecimento nem o sujeito do querer satildeo dados

como tais O sujeito do conhecimento eacute o que conhece em todo o conhecido

e nunca eacute conhecido em si mesmo exceto no sentido atenuado de que os

estados do sujeito do conhecimento podem ser conhecidos por meio de

reflexatildeo Analogamente o sujeito do querer eacute aquele que sente em todo

sentimento (quer em todo desejo) mas nunca eacute sentido em si mesmo exceto

no sentido atenuado de que os estados do sujeito do querer podem ser

sentidos internamente As funccedilotildees subjetivas cognitivas e conativas

[conative] do eu tecircm o estatuto de condiccedilotildees natildeo-empiacutericas de toda a

experiecircncia tanto interna quanto externa tanto cognitiva como afetiva18

Do nosso ponto de vista a relaccedilatildeo da vontade individual com o sujeito do

conhecer natildeo eacute uniacutevoca A vontade eacute apresentada por Schopenhauer como o corpo dado no

fenocircmeno como acabamos de mostrar e simultaneamente como o objeto uacutenico da quarta

classe de representaccedilotildees Conforme o que vimos no capiacutetulo anterior o sujeito do querer eacute

intuiacutedo pelo sujeito do conhecimento como um objeto especial natildeo espacializado pois eacute dado

somente na forma do tempo Em Da quaacutedrupla raiz o filoacutesofo chamou de milagre agrave

identidade do sujeito do querer com o sujeito do conhecer que poderia ser resumida na

identidade da lei de causalidade com a de motivaccedilatildeo19

Segundo Schopenhauer todo o

segundo livro de O Mundo eacute a justificaccedilatildeo desse milagre isto eacute a explicaccedilatildeo do modo como

a vontade pode ser sujeito na medida em que eacute corpo e objeto na medida em que eacute

conhecida pelo sujeito do conhecer20

Zoumlller chama a atenccedilatildeo para a estrutura una que sustenta

essa relaccedilatildeo especiacutefica de sujeito e objeto ao afirmar que ldquoPara Schopenhauer a

correlatividade estrutural natildeo causal que haacute entre o sujeito do conhecimento e o sujeito do

querer em uacuteltima instacircncia equivale agrave identidade delesrdquo21

Em siacutentese a vontade objetivada

seria o corpo na intuiccedilatildeo e a vontade individual internamente conhecida seria o objeto interno

do sujeito do conhecer22

Nesse sentido a identidade entre sujeito e objeto eacute que garante a

17

WWW II Kap 20 p 289 M II cap 20 p 300 18

ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 24 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 19

UumlV sect 42 p 171 CR sect42 p 206 20

WWW I zweites Buch sect18 p 153 M I livro II sect18 p 159 21

ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 26 (traduccedilatildeo nossa) 22

WWW I zweites Buch sect18 p 153 M I livro II sect18 p 159

- 146 -

identidade entre as leis de motivaccedilatildeo e de causalidade Pois escreve o filoacutesofo devemos

compreender que

[] a primeira classe de representaccedilotildees encontra sua explicaccedilatildeo sua

decifraccedilatildeo somente na quarta classe laacute apresentada a qual natildeo deve mais ser

oposta ao sujeito propriamente como objeto e tambeacutem que noacutes temos de

aprender a compreender a correspondecircncia da quarta classe de

representaccedilotildees que cai no domiacutenio da lei de motivaccedilatildeo com a essecircncia

interna da lei de causalidade vaacutelida na primeira classe de representaccedilotildees e

com o que acontece conforme a ela23

Natildeo obstante Schopenhauer ressalta que a identidade da vontade com o

corpo natildeo pode ser demonstrada ou provada pois eacute algo completamente imediato e que natildeo

pode ser deduzido de nada supostamente mais imediato Aquela identidade poderia apenas ser

indicada assinalada e transposta do conhecimento imediato ao discurso conceitual sem que a

exposiccedilatildeo in abstrato pudesse ser respaldada por nenhuma das quatro formas de

fundamentaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo do conhecer isto eacute loacutegica empiacuterica metafiacutesica ou

metalogicamente Conforme o filoacutesofo a verdade a que aqui se refere eacute de um tipo totalmente

distinto a saber a do juiacutezo que afirma a relaccedilatildeo do corpo com algo que difere totalmente dele

que eacute a vontade24

Essa eacute para ele a grande descoberta a verdade filosoacutefica por excelecircncia

que pode ser expressa de vaacuterios modos

[] meu corpo e minha vontade satildeo um soacute ou o que eu chamo corpo na

representaccedilatildeo intuitiva em outro modo totalmente distinto no qual sou

consciente dele de uma maneira a nada comparaacutevel chamo de minha

vontade ou meu corpo eacute objetidade da minha vontade ou abstraindo de

que meu corpo eacute minha representaccedilatildeo ele eacute apenas minha vontade e assim

por diante25

Schopenhauer reconhece que o modo em que cada um conhece sua

proacutepria vontade eacute distinto de tudo o que ateacute agora designou por conhecimento No capiacutetulo

18 de O MundoII ele ressalta essa singularidade e declara esse conhecimento como uma

exceccedilatildeo agrave regra kantiana segundo a qual conceitos natildeo extraiacutedos de intuiccedilotildees satildeo vazios Nas

palavras dele

Eu aceito isso com relaccedilatildeo a tudo menos ao conhecimento que cada um tem

de sua proacutepria vontade ele natildeo eacute uma intuiccedilatildeo (pois toda intuiccedilatildeo eacute

23

WWW I zweites Buch sect18 p 153 M I livro II sect18 p 159 24

WWW I zweites Buch sect18 p 154 M I livro II sect18 p 160 25

WWW I zweites Buch sect18 p 154-155 M I livro II sect18 p 160 (grifos do autor)

- 147 -

espacial) nem eacute vazio antes eacute mais real do que qualquer outro Tambeacutem

natildeo eacute a priori como o meramente formal mas totalmente a posteriori []26

De certa forma o conhecimento que temos de nossa vontade individual eacute

o autoconhecimento da coisa em si isto eacute o modo pelo qual ela se torna consciente de si

mesma27

Trata-se entatildeo de um saber direto impossiacutevel de tornar-se objetivo ao qual

Schopenhauer se refere como uma ldquoapreensatildeo totalmente imediata de seus movimentos

sucessivosrdquo28

Aleacutem disso somente esse conhecimento nos seria dado desse modo e diz o

filoacutesofo ele eacute ldquo[] o uacutenico datum apto a tornar-se a chave para todo o resto ou como eu jaacute

disse a uacutenica porta estreita para a verdaderdquo29

Ao que nos parece nesse ponto surge outra questatildeo relacionada agrave

ambiguidade do conhecimento que cada um tem da proacutepria vontade Schopenhauer afirma que

se trata do melhor e mais imediato conhecimento que temos o que serve de meio para se

conhecer quaisquer outras coisas mesmo os fenocircmenos mais distantes de noacutes No entanto ele

ressalta que esse conhecimento natildeo eacute completo nem perfeito por ser mediado por um

intelecto corporificado em um ceacuterebro30

Assim ao que tudo indica natildeo se poderia dizer que

esse conhecimento fosse realmente imediato jaacute que haveria um oacutergatildeo fiacutesico como uma

espeacutecie de filtro diante da vontade individual De fato na condiccedilatildeo de representaccedilatildeo o

conhecimento que se tem dela divide-se em sujeito e objeto conhecer e querer

respectivamente Em funccedilatildeo disso conforme o filoacutesofo a vontade nunca se torna diaacutefana eacute

conhecida somente de modo ldquo[] opaco e portanto permanece um enigma para si mesmardquo31

De outro ponto de vista uma vez que a vontade individual se daacute somente na forma do tempo

sem as do espaccedilo e da causalidade Schopenhauer afirma que ldquo[] nesse conhecimento

interno a coisa em si retirou grande parte de seu veacuteu mas ainda natildeo aparece totalmente

nuardquo32

Somente por meio de atos isolados e no decurso do tempo eacute que cada um poderaacute

conhecer sua vontade individual isto eacute natildeo no seu conjunto ou em si e para si Por

conseguinte natildeo se trataria de um conhecimento perfeito mas seria o melhor de que

dispomos pois nele a coisa em si apareceria o mais proacutexima possiacutevel do sujeito cognoscente

ldquoDessa maneirardquo escreve o filoacutesofo

26

WWW II Kap 18 p 227 M II cap 18 p 236-237 (grifos do autor) 27

WWW II Kap 18 p 227 M II cap 18 p 236 28

WWW II Kap 20 p 289 M II cap 20 p 300 29

WWW II Kap 18 p 227 M II cap 18 p 237 30

WWW II Kap 18 p 228 M II cap 18 p 237 31

WWW II Kap 18 p 228 M II cap 18 p 237-238 32

WWW II Kap 18 p 228 M II cap 18 p 238

- 148 -

a doutrina de Kant acerca da incognoscibilidade da coisa em si eacute modificada

esta soacute natildeo eacute cognosciacutevel absolutamente e em seu fundamento poreacutem o seu

fenocircmeno que eacute de longe o mais imediato de todos que se diferencia de

todos os outros toto genere por essa imediaticidade representa a coisa em si

para noacutes []33

Gardiner apresenta interessantes consideraccedilotildees sobre esse ponto Para

ele o pensamento sobre o conhecimento da vontade proacutepria eacute exposto por Schopenhauer de

forma obscura e aleacutem disso conduz a um dilema34

Tomando como correta a distinccedilatildeo entre a

consciecircncia natildeo perceptual que temos de noacutes mesmos como vontade e o conhecimento que

temos das nossas proacuteprias accedilotildees duas consequecircncias se seguiriam Por um lado diz Gardiner

a afirmaccedilatildeo de uma consciecircncia direta da vontade na intuiccedilatildeo interna significaria que a coisa

em si estaacute ao alcance da nossa experiecircncia Ao mesmo tempo essa consciecircncia deveria ser

representaccedilatildeo sem condiccedilotildees de dar acesso agrave coisa em si Por outro lado se a vontade eacute

nuacutemeno natildeo haveria como assegurar que possamos ter experiecircncia dela35

Natildeo obstante de acordo com Schopenhauer embora os atos do corpo se

deem no tempo e fragmentariamente eles expressam um caraacuteter individual uno Ainda que

em atos isolados o corpo manifestaria a vontade integralmente do mesmo modo que o caraacuteter

empiacuterico dado no fenocircmeno manifestaria o caraacuteter inteligiacutevel do indiviacuteduo no seu conjunto

Para o filoacutesofo o corpo humano assim como o do animal satildeo adequados agrave vontade de cada

um isto eacute todos os seus oacutergatildeos e membros correspondem os principais desejos de suas

respectivas vontades A feiccedilatildeo as formas a conformaccedilatildeo dos membros e oacutergatildeos em suma o

corpo no todo e em cada uma de suas partes seria objetidade de uma vontade individual Nas

palavras dele

Cada forma animal eacute um anseio da Vontade de vida invocado pelas

circunstacircncias por exemplo tomada pelo desejo de viver nas aacutervores a

pendurar-se nos seus galhos a alimentar-se de suas folhas sem luta com

outros animais e sem nunca pisar no solo esse anseio apresenta-se pelo

tempo infinito na forma (Ideia platocircnica) do bicho-preguiccedila Quase natildeo

pode andar pois foi projetado apenas para escalar indefeso no chatildeo eacute aacutegil

nas aacutervores e se assemelha a um ramo coberto de musgo para que nenhum

predador o perceba36

Portanto o corpo como um todo eacute fenocircmeno da vontade tornada visiacutevel

como objeto na intuiccedilatildeo Essa tese se confirmaria de um lado porque qualquer accedilatildeo sobre o

33

WWW II Kap 18 p 229 M II cap 18 p 238 (grifos do autor) 34

GARDINER op cit p 257 et seq 35

GARDINER op cit p 258 36

WN p 357 VN p 79-80

- 149 -

corpo eacute simultaneamente accedilatildeo sobre a vontade sentida como prazer ou dor e de outro porque

todo afeto ou paixatildeo violenta abala o corpo e suas funccedilotildees vitais Zoumlller observa sobre esse

ponto que ldquobdquoVontade‟ eacute aqui usada como um termo abrangente para o lado afetivo e volicional

completo do eu juntando efetivamente o que Kant distinguiu como a faculdade do desejo e o

sentimento de prazer e desprazerrdquo37

Tanto o corpo como uma unidade quanto os processos

que levam ao seu crescimento e desenvolvimento que produzem seus movimentos e atos

isolados cada accedilatildeo e suas condiccedilotildees tudo no indiviacuteduo eacute fenocircmeno da vontade Em suma

diz o filoacutesofo ldquo[] noacutes natildeo somos apenas sujeito cognoscente mas de outro lado tambeacutem

pertencemos aos seres cognosciacuteveis somos a proacutepria coisa em si []rdquo38

32 ndash A Vontade como o em si do mundo

Conforme Schopenhauer cada indiviacuteduo conhece seu proacuteprio corpo

duplamente e natildeo apenas do modo unilateral pelo qual conhece os demais objetos Aleacutem de

ser conhecido como fenocircmeno isto eacute como um objeto entre outros o corpo individual pode

ser conhecido tambeacutem como coisa em si Para o filoacutesofo o corpo pode ser conhecido como

coisa em si porque aparece agrave consciecircncia como vontade dando a conhecer internamente seu

atuar seu movimento por motivos e o que sofre em funccedilatildeo de accedilotildees externas Em todos esses

casos ele escreve o corpo ensina ldquo[] sobre o que eacute natildeo como representaccedilatildeo mas fora disso

como em si informaccedilotildees essas que natildeo temos de modo imediato sobre o ser o atuar e o sofrer

de nenhum outro objeto realrdquo39

Essa especificidade no modo de o indiviacuteduo conhecer o corpo

proacuteprio que eacute diferente do modo como conhece todos os outros eacute um ponto muito delicado

da argumentaccedilatildeo porque aqui Schopenhauer tem de evitar um perigo que certamente estaacute agrave

espreita De fato eacute faacutecil perceber que seu trajeto o direcionaria para o egoiacutesmo teoacuterico ou no

37

ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 19 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 38

WWW II Kap 18 p 226 M II cap 18 p 236 (grifos do autor) 39

WWW I zweites Buch sect19 p 155 M I livro II sect19 p 161 (grifos do autor)

- 150 -

miacutenimo dificultaria a fundamentaccedilatildeo da existecircncia do mundo a partir de um indiviacuteduo assim

tatildeo autocentrado

Ele apresenta entatildeo uma escolha como inexpugnaacutevel o sujeito deve

proclamar sua identidade ou sua distinccedilatildeo com relaccedilatildeo aos restantes objetos do mundo No

primeiro caso o indiviacuteduo admitiria que sua representaccedilatildeo de si mesmo se diferencia de todas

as outras somente pelo modo duplo em que ele conhece seu proacuteprio corpo sendo igual a elas

em essecircncia no segundo sustentaria que seu corpo eacute distinto de todos os demais de modo

que apenas e tatildeo somente ele se constituiria como representaccedilatildeo e vontade ao mesmo tempo

No primeiro caso a diferenccedila eacute de perspectiva ou seja somente o modo pelo qual o sujeito se

conhece natildeo poderia ser estendido aos outros objetos enquanto sua essecircncia sim No

segundo afirma-se uma diferenccedila positiva e o indiviacuteduo eacute considerado distinto dos demais

objetos de um ponto de vista real e concreto Daqui poreacutem o indiviacuteduo poderia cair

facilmente para o egoiacutesmo teoacuterico isto eacute para a conclusatildeo de que somente ele proacuteprio eacute real e

todos os outros satildeo apenas representaccedilotildees ilusoacuterias Nesse sentido no capiacutetulo 18 de O

MundoII Schopenhauer escreve

Mas o objeto intuiacutedo tem de ser algo em si mesmo e natildeo apenas algo para

outro pois nesse caso seria absolutamente representaccedilatildeo e teriacuteamos um

idealismo absoluto que ao fim seria egoiacutesmo teoacuterico pelo qual toda a

realidade some e o mundo torna-se a mero fantasma subjetivo40

Eacute clara para ele a importacircncia dessa passagem de sua filosofia

relacionada com a problemaacutetica da realidade do mundo exterior No nosso entendimento a

fundamentaccedilatildeo idealista da realidade empiacuterica acabou por acentuar sua fragilidade pois a

origem subjetiva dela teve de ser desenvolvida e ressaltada Por isso o filoacutesofo teve de

atribuir a todos os outros corpos tanto o ser representaccedilatildeo quanto o ser vontade para que

pudesse garantir a realidade externa da perspectiva metafiacutesica Nas palavras dele ldquoSe os

objetos conhecidos pelo indiviacuteduo apenas como representaccedilotildees satildeo assim como seu proacuteprio

corpo fenocircmenos de uma vontade como jaacute dito no livro anterior este eacute o sentido verdadeiro

da questatildeo sobre a realidade do mundo exterior negaacute-lo eacute o sentido do egoiacutesmo teoacuterico

[]rdquo41

Daiacute a necessidade de se admitir que a diferenccedila natildeo esteja na coisa mas na nossa

relaccedilatildeo com ela42

Segundo Schopenhauer apesar de natildeo se poder demonstrar cabalmente a

falsidade do egoiacutesmo teoacuterico isso seria desnecessaacuterio pois ningueacutem teria uma convicccedilatildeo

40

WWW II Kap 18 p 224 M II cap 18 p 233 (grifos do autor) 41

WWW I zweites Buch sect19 p 156 M I livro II sect19 p 162 (grifos do autor) 42

WN p 349 VN p 70-71

- 151 -

seacuteria dele Embora seja um argumento ceacutetico recorrente sua defesa seria meramente

performaacutetica ou entatildeo fruto de loucura E assim ele daacute por encerrada a necessidade de

desdobrar a argumentaccedilatildeo descrevendo a situaccedilatildeo metaforicamente

[] noacutes que buscamos pela filosofia alargar os limites do nosso

conhecimento veremos o argumento ceacutetico do egoiacutesmo teoacuterico como uma

pequena fortaleza de fronteira que de fato eacute intransponiacutevel mas de onde suas

tropas nunca podem sair podendo-se entatildeo passar e dar as costas sem

perigordquo43

Com fundamento nessas razotildees o filoacutesofo propotildee que o duplo

conhecimento que o sujeito possui da essecircncia e da accedilatildeo do proacuteprio corpo seja estendido ao

conjunto da natureza como padratildeo para a compreensatildeo de todos os fenocircmenos Trata-se do

conhecido argumento da analogia que estabelece uma semelhanccedila necessaacuteria entre o corpo

individual e os restantes objetos Esse eacute um ponto crucial da filosofia schopenhaueriana o que

torna digno de nota o tom hipoteacutetico empregado em toda a exposiccedilatildeo O filoacutesofo defende que

o indiviacuteduo deve reconhecer como anaacutelogos a si mesmo todos os outros objetos isto eacute

reconhecer que satildeo por um lado vontade e por outro represenaccedilatildeo Natildeo haveria alternativa

possiacutevel pois natildeo conheceriacuteamos nada aleacutem de coisa em si e representaccedilatildeo de modo que se

natildeo se atribuiacutesse vontade aos objetos externos eles estariam desprovidos de realidade44

Na

interpretaccedilatildeo de Zoumlller ldquoO mundo eacute aqui entendido com o modelo do eu humano o papel do

intelecto na iluminaccedilatildeo da vontade humana eacute comparado ao papel das formas de vida

inteligentes e racionais no fornecimento do autoconhecimento agrave vontade coacutesmica que em

outra perspectiva eacute cegardquo45

Sem a adoccedilatildeo desse ponto de vista portanto o mundo objetivo como um

todo estaria reduzido a mera representaccedilatildeo isto eacute a aparecircncia sem vinculaccedilatildeo a nada mais

real No entanto ao que nos parece o argumento da analogia eacute o apelo a uma concessatildeo e natildeo

a consideraccedilatildeo de uma evidecircncia ou prova qualquer Em todo caso como afirma Janaway no

texto ldquoWill and Naturerdquo esse procedimento eacute coerente com o ponto de partida de

Schopenhauer uma vez que o filoacutesofo deliberadamente partiu da autoconsciecircncia como

aquilo que nos eacute imediatamente dado e que deve explicar tudo o que eacute mediato Um monismo

seria entatildeo o fundamento da analogia e conforme desse autor ldquoSua posiccedilatildeo moniacutestica de que

minha natureza fundamental natildeo pode ser diferente daquela do todo da realidade natildeo eacute

43

WWW I zweites Buch sect19 p 157 M I livro II sect19 p 162 44

WWW I zweites Buch sect19 p 157-158 M I livro II sect19 p 163 45

ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 19 (traduccedilatildeo nossa)

- 152 -

obviamente despreziacutevel embora possa bem parecer um pensamento extenso demais (ou vago

demais) para se manusear confortavelmenterdquo46

A despeito disso a comparaccedilatildeo que Schopenhauer realiza entre o corpo

do indiviacuteduo como representaccedilatildeo e vontade e os outros objetos intuiacutedos nos parece bem

delineada e justificada Na lei de causalidade haacute sempre trecircs termos cuja interaccedilatildeo eacute

responsaacutevel pelas cadeias causais que compotildeem o mundo empiacuterico a saber leis naturais

causa (ou estiacutemulo) e efeito Na lei de motivaccedilatildeo observamos a mesma estrutura as accedilotildees

exteriorizam-se como efeitos dados na intuiccedilatildeo surgidos a partir de motivos e de uma vontade

individual ou caraacuteter inteligiacutevel De modo semelhante Janaway explica que

Haacute trecircs tipos baacutesicos de relaccedilatildeo causal causa pura e simples estiacutemulo e

motivo Enquanto outros processos na natureza satildeo exemplos de causa e

efeito elementares ou da relaccedilatildeo de estiacutemulo e reposta o querer humano (ou

um ato de vontade) ocorre quando os movimentos do corpo satildeo causados por

motivos sendo estes os estados mentais nos quais um mundo objetivo eacute

apresentado agrave consciecircncia entre eles julgamentos conceituais que podem ter

advindo por raciociacutenio47

Por conseguinte assim como as causas e os efeitos satildeo determinados no

tempo e no espaccedilo os motivos tambeacutem determinam o que se quer num certo tempo e num

certo espaccedilo Poreacutem a vontade individual em si natildeo eacute regida pela lei de motivaccedilatildeo da mesma

forma que as forccedilas naturais permanecem fora do domiacutenio da causalidade

Com essa argumentaccedilatildeo Schopenhauer estende ao restante da natureza a

vontade que cada um conhece imediatamente em si mesmo colocando-a como fundamento

tanto o mundo orgacircnico como o inorgacircnico No caso do mundo orgacircnico como afirma

Janaway ldquoA natureza interna do ser humano eacute a inclinaccedilatildeo no sentido da manutenccedilatildeo e

propagaccedilatildeo da vida e essa mesma natureza interna eacute comum a todos os habitantes do mundo

orgacircnico Um tigre um girassol ou um organismo unicelular tecircm a mesma natureza interna ou

essecircnciardquo48

Por meio de vaacuterios exemplos Schopenhauer sustenta a desvinculaccedilatildeo da vontade

em relaccedilatildeo ao conhecimento e mostra como a conduta de diversos animais eacute guiada por

instinto e habilidade construtiva sem nenhum saber anterior Nas palavras dele ldquoNessas

accedilotildees desses animais eacute evidente como em suas restantes accedilotildees que a vontade eacute ativa mas ela

46

JANAWAY C Will and nature In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 146 (traduccedilatildeo nossa) 47

Ibidem p 143 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 48

Ibidem p 144 (traduccedilatildeo nossa)

- 153 -

estaacute aiacute em uma atividade cega acompanhada certamente de conhecimento mas natildeo guiada

por elerdquo49

Evidenciar que a vontade age sem conhecimento eacute imprescindiacutevel para

que se possa estendecirc-la ao conjunto da natureza De acordo com Schopenhauer uma casa

construiacuteda por um ser humano e a concha de um caracol por exemplo satildeo produtos da

vontade que diferem somente porque no primeiro caso ela age por meio de motivos

enquanto no segundo age cegamente por impulso Do mesmo modo diversas funccedilotildees do

corpo humano como a digestatildeo e a circulaccedilatildeo sanguiacutenea natildeo seriam dirigidas por

conhecimento algum mas por uma vontade que agiria nele cegamente50

No capiacutetulo 23 de O

MundoII Schopenhauer afirma sobre esse ponto

Que a vontade que encontramos em nosso interior natildeo seja como presumiu a

filosofia ateacute agora derivada do conhecimento ou uma mera modificaccedilatildeo

deste isto eacute algo derivado deduzido e como o proacuteprio conhecimento

dependente do ceacuterebro mas que ela seja o prius dele o nuacutecleo do nosso ser e

aquela forccedila originaacuteria que cria e manteacutem o corpo animal enquanto efetua

suas funccedilotildees inconscientes tanto quanto as conscientes esse eacute o primeiro

passo no conhecimento fundamental da minha metafiacutesica51

O mesmo poderia ser dito em relaccedilatildeo agraves plantas e aos objetos

inanimados isto eacute todos seriam expressotildees e manifestaccedilotildees da mesma coisa em si Embora

os objetos inorgacircnicos se mostrem muito diferentes de animais e plantas as leis universais e

imutaacuteveis que regem seus corpos e seus movimentos natildeo deixariam de ser constituiacutedas pela

uacutenica e mesma coisa em si No entender do filoacutesofo natildeo seria preciso muito esforccedilo para ldquo[]

reconhecer de novo mesmo a tatildeo grande distacircncia nosso proacuteprio ser aquilo mesmo que em

noacutes persegue seus objetivos com a luz do conhecimento mas que aqui nos mais fracos dos

seus fenocircmenos se esforccedila cega abafada unilateral e invariavelmente []rdquo52

Em suma a

distinccedilatildeo e a separaccedilatildeo da Vontade em relaccedilatildeo ao conhecimento satildeo entendidas por

Schopenhauer como uma grande contribuiccedilatildeo sua agrave Histoacuteria da Filosofia que sempre uniu

ambos no conceito de alma Para ele trata-se de um feito tatildeo importante como foi para a

Quiacutemica a decomposiccedilatildeo da aacutegua53

49

WWW I zweites Buch sect23 p 169 M I livro II sect23 p 174 50

WWW I zweites Buch sect23 p 169 M I livro II sect23 p 174 51

WWW II Kap 23 p 341 M II cap 23 p 353 52

WWW I zweites Buch sect23 p 173 M I livro II sect23 p 178 53

WN p 339 VN p 61

- 154 -

Embora a coisa em si mesma natildeo seja um objeto nem possa ser pensada

objetivamente seria necessaacuterio pensaacute-la de algum modo o que justificaria a busca de um

meio de aproximar-se dela Para isso Schopenhauer considera que se deve adotar o nome e o

conceito do objeto que mais evidencia sua essecircncia o qual nas palavras dele ldquo[] natildeo pode

ser outro dentre todos senatildeo o seu fenocircmeno mais perfeito isto eacute o mais claro o mais

desenvolvido iluminado pelo conhecimento imediato e esse eacute precisamente a vontade

humanardquo54

Ele utiliza calculadamente o procedimento chamado denominatio a potiori

cunhado na Idade Meacutedia pelo qual se denomina alguma coisa pela sua caracteriacutestica mais

elevada Com isso ele entende que se pode compreender a identidade existente entre a

Vontade e todas as forccedilas naturais bem como a comunidade de todos os fenocircmenos

aparentemente tatildeo heterogecircneos do mundo como representaccedilatildeo ldquoPortantordquo ele escreve ldquoEu

nomeio o gecircnero pela espeacutecie mais excelente cujo caraacuteter mais proacuteximo e imediato a noacutes

conduz ao conhecimento mediato de todas as outras coisasrdquo55

Como visto anteriormente o

que o ser humano tem de especiacutefico em relaccedilatildeo a todos os outros animais eacute a faculdade da

razatildeo que deveraacute entatildeo ser o fenocircmeno mais claro e elevado da Vontade

Schopenhauer enfatiza que a escolha do nome ldquoVontaderdquo natildeo eacute uma

denominaccedilatildeo arbitraacuteria mas sim fundamental para designar a coisa em si pois o que o termo

indica eacute o que conhecemos melhor do que qualquer outra coisa Uma vez que a conhecemos

imediata e inteiramente diz ele ldquo[] eacute o mais real dos conhecimentos reais que eacute aqui

trazido agrave linguagemrdquo56

Para ele caso a conhececircssemos por inferecircncia ou deduccedilatildeo qualquer

nome serviria pois natildeo haveria nada a que devecircssemos ligaacute-la de modo necessaacuterio No

entanto o conceito de Vontade natildeo designaria nada proveniente do fenocircmeno mas o nuacutecleo

interior a consciecircncia imediata em que cada um conheceria sua proacutepria essecircncia diretamente

Essa consciecircncia seria completamente diferente de qualquer outro conhecimento pois nela as

duas metades da representaccedilatildeo sujeito e objeto seriam coincidentes57

Schopenhauer afirma

entatildeo que o conceito de Vontade anaacutelogo ao de vontade individual deve ser alccedilado ao posto

mais elevado e subordinar o conceito de forccedila sob o qual ateacute entatildeo havia sido situado O

conceito de forccedila seria extraiacutedo da experiecircncia e denotaria o caraacuteter de causalidade da causa

com o que seria um conhecimento na verdade mediato Conforme sua explicaccedilatildeo ldquoSe ao

contraacuterio subsumimos o conceito de vontade no de forccedila como feito ateacute agora abdicamos do

54

WWW I zweites Buch sect22 p 164 M I livro II sect22 p 169 (grifos do autor) 55

WWW I zweites Buch sect22 p 164 M I livro II sect22 p 169-170 56

WWW II Kap 23 p 342 M II cap 23 p 354 57

WWW I zweites Buch sect22 p 165-166 M I livro II sect22 p 170-171

- 155 -

nosso uacutenico conhecimento imediato da essecircncia do mundo deixando-o se perder num

conceito abstraiacutedo do fenocircmeno com o qual portanto nunca podemos ir aleacutem desterdquo58

No capiacutetulo 28 de O MundoII Schopenhauer apresenta alguns aspectos

que caracterizariam a Vontade Nas palavras dele ldquoTudo urge e se impele agrave existecircncia onde

possiacutevel agrave orgacircnica isto eacute agrave vida assim ao maior crescimento possiacutevel dela na natureza

animal se torna evidente que a Vontade de vida eacute o tom fundamental de sua essecircncia sua

uacutenica caracteriacutestica imutaacutevel e incondicionadardquo59

Considerada objetivamente a Vontade

mostraria como sua uacutenica intenccedilatildeo a conservaccedilatildeo de todas as espeacutecies o que se poderia notar

segundo o filoacutesofo na prodigalidade com a qual a natureza despende e se desfaz de multidotildees

de indiviacuteduos de quaisquer delas O indiviacuteduo diz ele tem valor relativo como mero meio de

conservaccedilatildeo da espeacutecie que por seu turno eacute eterna como se a natureza se preocupasse

apenas em natildeo perder nenhuma de suas Ideias60

Haacute ainda outras caracteriacutesticas que Schopenhauer confere agrave Vontade

deduzidas da sua contraposiccedilatildeo agrave representaccedilatildeo Pela negaccedilatildeo do que o fenocircmeno eacute ele infere

os atributos da Vontade e defende uma completa incongruecircncia entre ambos Como ele

afirma ldquoO lado real tem de ser algo toto genere diferente do mundo como representaccedilatildeo

nomeadamente o que as coisas satildeo em si mesmas e essa total distinccedilatildeo entre o ideal e o real eacute

o que Kant demonstrou de modo mais fundamentalrdquo61

Nesse sentido o principal ponto de

distanciamento eacute a liberaccedilatildeo da Vontade em relaccedilatildeo agrave estrutura sujeito-objeto e

consequentemente ao princiacutepio de razatildeo62

Tempo e espaccedilo na media em que se ligam ao

princiacutepio tambeacutem natildeo lhe concernem Daiacute o filoacutesofo conclui que natildeo haacute multiplicidade na

coisa em si tampouco relaccedilotildees temporais ou espaciais isto eacute ela eacute una e alheia ao tempo e ao

espaccedilo ldquoPoisrdquo ele escreve ldquotempo e espaccedilo satildeo os uacutenicos pelos quais o que eacute um e o mesmo

segundo a essecircncia e o conceito aparece como diferente como multiplicidade simultacircnea ou

sucessiva satildeo portanto o principium individuationis []rdquo63

Ademais por estar apartada do

princiacutepio de razatildeo a Vontade seria tambeacutem absolutamente sem fundamento tendo sido por

isso considerada sempre como livre Como ele explica ldquo[] posto que a Vontade eacute conhecida

58

WWW I zweites Buch sect22 p 166 M I livro II sect22 p 171 (grifos do autor) 59

WWW II Kap 28 p 410 M II cap 28 p423 (grifos do autor) 60

WWW II Kap 28 p 412 M II cap 28 p424 61

WWW II Kap 18 p 224 M II cap 18 p 234 (grifos do autor) 62

WWW I zweites Buch sect23 p 166 M I livro II sect23 p 171 63

WWW I zweites Buch sect23 p 166-167 M I livro II sect23 p 171

- 156 -

imediatamente e em si na autoconsciecircncia entatildeo nessa consciecircncia situa-se tambeacutem a da

liberdaderdquo64

Como aludimos atraacutes a Vontade eacute o alicerce da representaccedilatildeo o ser

verdadeiramente existente que impede que esta seja mera ilusatildeo ou falsa aparecircncia A

representaccedilatildeo precisa ser expressatildeo de algo que natildeo eacute apenas condicionado e relativo a um

sujeito isto eacute tem de exprimir um ser que esteja para aleacutem de tempo espaccedilo e causalidade

que diz Schopenhauer estatildeo ldquo[] atrelados ao ser representaccedilatildeo enquanto tal natildeo agravequilo que

ser torna representaccedilatildeordquo65

Por conseguinte essas formas natildeo interfeririam nas propriedades

do que eacute representado isto eacute mostrariam apenas o ldquocomordquo natildeo o ldquoquecircrdquo do fenocircmeno sua

forma natildeo seu conteuacutedo66

De modo semelhante tudo aquilo que soacute possa existir por meio

dessas formas como a multiplicidade a mudanccedila a duraccedilatildeo e a representaccedilatildeo da mateacuteria natildeo

se vincularatildeo ao ser da Vontade Assim diz o filoacutesofo ldquo[] tudo isso em conjunto natildeo eacute

essencialmente proacuteprio agravequilo que laacute aparece agravequilo que entrou na forma da representaccedilatildeo

mas se prende unicamente a essa forma mesmardquo67

Schopenhauer aponta uma dicotomia fundamental entre o subjetivo e o

objetivo que se espelharia tambeacutem na relaccedilatildeo entre a Vontade e as formas do conhecimento

Ele considera que conhecer eacute exatamente representar e por isso nunca seraacute idecircntico ao ser em

si da coisa representada O ser em si das coisas ele afirma eacute necessariamente subjetivo mas

na representaccedilatildeo de outrem teraacute sempre de ser objetivo e essa cisatildeo jamais poderaacute ser

remediada68

ldquoPoisrdquo ele escreve

por meio disso [dessa diferenccedila] seu modo de existecircncia foi radicalmente

modificado como algo objetivo exige um sujeito estranho em cuja

representaccedilatildeo existe aleacutem disso como Kant demonstrou entra em formas

que satildeo estranhas agrave sua proacutepria essecircncia justamente porque pertencem

agravequele sujeito cujo conhecer somente elas tornam possiacutevel69

Mesmo os corpos inanimados possuiriam um ser subjetivo natildeo alcanccedilado

pela representaccedilatildeo objetiva e que seria tambeacutem a essecircncia deles Resumidamente a aparecircncia

externa formada na representaccedilatildeo eacute o lado objetivo das coisas o qual por sua vez remete a

64

WWW I zweites Buch sect23 p 167 M I livro II sect23 p 172 65

WWW I zweites Buch sect24 p 175 M I livro II sect24 p 180 (grifos do autor) 66

WWW I zweites Buch sect24 p 177-178 M I livro II sect24 p 182 67

WWW I zweites Buch sect24 p 176 M I livro II sect24 p 180 (grifos do autor) 68

WWW II Kap 18 p 224-225 M II cap 18 p 234 69

WWW II Kap 18 p 225 M II cap 18 p 234 (grifos do autor)

- 157 -

algo em si o subjetivo anunciado pelas propriedades inescrutaacuteveis que o determinam de

dentro para fora como no exemplo dos sulcos no maacutermore70

Schopenhauer considera possiacutevel observarem-se elementos fenomecircnicos

natildeo condicionados por tempo espaccedilo e causalidade e que natildeo podem ser remetidos a eles ou

explicados com base neles Esses elementos revelariam a Vontade pois indicariam a presenccedila

dela imediatamente na representaccedilatildeo71

Na concepccedilatildeo schopenhaueriana somente a

matemaacutetica e a ciecircncia pura da natureza permitem cognoscibilidade total sem que nada reste

obscuro porque lidam apenas com formas intelectuais Assim natildeo poderiam nem

necessitariam ser remetidas a outra coisa Diferentemente os conteuacutedos empiacutericos

introduziriam elementos natildeo completamente cognosciacuteveis ao acrescentarem ldquo[] algo sem

fundamento por meio do qual o conhecimento perde em evidecircncia e a completa transparecircncia

diminuirdquo72

Segundo pensamos desse ponto de vista reaparece aquela relaccedilatildeo inversa de

compreensibilidade entre a Vontade e as formas da representaccedilatildeo que mencionamos

anteriormente Para Schopenhauer quanto mais vinculado agraves formas de tempo espaccedilo e

causalidade estaacute um fenocircmeno menos conteuacutedo empiacuterico exige e mais necessaacuterio claro e

suficiente eacute o seu conhecimento Quanto mais poreacutem algo eacute apreendido empiacuterica e

objetivamente mais distante estaraacute das formas do princiacutepio de razatildeo e das suas condiccedilotildees de

fundamentaccedilatildeo tornando-se mais inexplicaacutevel e contingente73

Haacute um aspecto interessante a ser considerado nesse tocante

Schopenhauer critica severamente o materialismo e sua intenccedilatildeo de reduzir todas as forccedilas

naturais umas agraves outras e todas em conjunto agrave aritmeacutetica Se isso fosse possiacutevel ele afirma

tudo poderia ser explicado com absoluta certeza ateacute seu uacuteltimo fundamento e o conteuacutedo

fenomecircnico seria paulatinamente afastado ateacute estar ausente No entanto essa certeza e essa

necessidade seriam resultado da remissatildeo do mundo todo como representaccedilatildeo ao sujeito o

que significaria ser reduzido a mero fantasma Juntamente com o conteuacutedo empiacuterico do

mundo estariam perdidas a coisa em si bem como toda possibilidade de dar agrave representaccedilatildeo

uma existecircncia real reduzindo-se tudo a fantasias sofismas e castelos de ar74

Isso poreacutem

nunca aconteceraacute escreve o filoacutesofo porque ldquo[] sempre restaratildeo as forccedilas naturais sempre

restaraacute como resiacuteduo insoluacutevel um conteuacutedo do fenocircmeno que natildeo pode ser remetido agrave sua

70

WWW II Kap 18 p 225 M II cap 18 p 235 71

WWW I zweites Buch sect24 p 176 M I livro II sect24 p 180 72

WWW I zweites Buch sect24 p 177 M I livro II sect24 p 181 73

WWW I zweites Buch sect24 p 178 M I livro II sect24 p 182 74

WWW I zweites Buch sect24 p 180 M I livro II sect24 p 184

- 158 -

forma isto eacute que natildeo pode ser esclarecido a partir de outra coisa por meio do princiacutepio de

razatildeordquo75

O caraacuteter insondaacutevel da realidade empiacuterica seria adicionalmente uma evidecircncia a

posteriori da idealidade e mera aparecircncia desse lado do mundo76

De acordo com o dito aquilo que se manteacutem desconhecido em todos os

fenocircmenos que natildeo pode ser explicado pelas causas que desencadeiam cada modo especiacutefico

de accedilatildeo tambeacutem revelaria sua essecircncia Para Schopenhauer as causas os estiacutemulos e os

motivos podem ser descobertos os efeitos podem ateacute ser previstos mas natildeo o porquecirc de cada

modo particular de atuaccedilatildeo A mesma obscuridade e ausecircncia de fundamento existiriam tanto

no fenocircmeno mais simples quanto no mais complexo desde uma gota de aacutegua ateacute o caraacuteter

individual de um ser humano a Vontade eacute a mesma em toda parte Como vimos para que a

essecircncia escondida das coisas seja revelada o conhecimento que cada um tem da sua proacutepria

vontade individual eacute o uacutenico caminho pois eacute ele que pode conectar os dois lados do mundo o

externo e o interno a coisa em si e a representaccedilatildeo Como resultado de um lado o meacutetodo da

analogia estendeu a essecircncia Vontade ao universo da experiecircncia e de outro a relaccedilatildeo causal

foi demonstrada como o princiacutepio subjetivo de formaccedilatildeo e de coesatildeo do mundo objetivo

Com isso Schopenhauer julga ter encontrado por meio da reflexatildeo o ldquoponto certordquo em que

se unem as perspectivas interna e externa do sujeito77

Nas palavras dele

Consumando ao contraacuterio a ligaccedilatildeo acima requerida do conhecimento

externo com o interno laacute onde se tocam entatildeo compreenderemos apesar de

todas as diferenccedilas acidentais duas identidades a saber da causalidade

consigo mesma em todos os graus e a daquele x antes desconhecido (isto eacute

as forccedilas naturais e fenocircmenos vitais) com a Vontade em noacutes78

Portanto as propriedades essenciais de todos os fenocircmenos seu modo de

ser e sua proacutepria existecircncia satildeo objetidade da coisa em si sua visibilidade Isso natildeo significa

dizer que sejam efeitos da Vontade como causa pois afirma Schopenhauer ldquoCoisa nenhuma

no mundo possui uma causa absoluta e geral de sua existecircncia apenas uma causa pela qual eacute

justamente aqui e agorardquo79

Em qualquer dos trecircs tipos de causaccedilatildeo por causa estrita estiacutemulo

ou motivo a causa eacute sempre ocasional ou seja uma mudanccedila especiacutefica dada num instante do

tempo A forccedila natural por seu turno eacute aquilo que originariamente daacute agrave causa a capacidade de

75

WWW I zweites Buch sect24 p 180 M I livro II sect24 p 184 76

WWW II Kap 18 p 226 M II cap 18 p 236 77

WN p 415 VN p 143 78

WN p 416 VN p 144 79

WWW I zweites Buch sect26 p 197 M I livro II sect26 p 201

- 159 -

atuar enquanto a Vontade eacute a essecircncia em si da forccedila80

Entretanto e isso eacute importante de

nenhum modo a causa pode faltar pois eacute o que oferece a oportunidade para a manifestaccedilatildeo

das forccedilas naturais num ponto do tempo e do espaccedilo81

Daiacute resulta por um lado que as forccedilas

naturais as espeacutecies animais e o caraacuteter individual humano satildeo todos fenocircmenos imediatos da

Vontade e portanto sem fundamento assim como ela De outro que o exerciacutecio em si das

forccedilas a essecircncia interna de cada espeacutecie e de cada caraacuteter humano natildeo podem ser explicados

com base nas causas exteriores que desencadeiam sua accedilatildeo Como o filoacutesofo afirma

Mas que ele tenha este caraacuteter que ele queira em geral que entre muitos

motivos exatamente este e natildeo outro sim que algum motivo mova sua

Vontade disso natildeo se pode apontar nenhum motivo O que no homem eacute seu

caraacuteter infundado pressuposto em todo esclarecimento de suas accedilotildees por

motivos eacute exatamente a qualidade essencial de cada corpo inorgacircnico seu

modo de produzir efeito cujas exteriorizaccedilotildees satildeo provocadas por influecircncia

de fora enquanto ela ao contraacuterio natildeo eacute determinada por nada externo isto

eacute natildeo eacute explicaacutevel []82

Schopenhauer procura evitar que essa concepccedilatildeo de forccedilas naturais seja

relacionada a entidades miacutesticas ou de algum modo eteacutereas Embora essas forccedilas tenham

caraacuteter metafiacutesico natildeo devem ser remetidas agrave religiatildeo ou a entes sobrenaturais mas devem

ser investigadas empiricamente ateacute o limite pelas ciecircncias Na concepccedilatildeo do filoacutesofo as

forccedilas naturais satildeo a condiccedilatildeo que daacute sentido agrave explicaccedilatildeo por causas isto eacute estatildeo

relacionadas a eventos empiricamente cognosciacuteveis ainda que na condiccedilatildeo de qualitas oculta

O mesmo natildeo poderia ser dito no tocante agraves entidades religiosas e miacutesticas As forccedilas naturais

portanto estatildeo ligadas agrave etiologia como aquilo que estaacute pressuposto nela natildeo no sentido de

um primeiro elo da cadeia causal do mundo como representaccedilatildeo mas como aquilo sem o qual

natildeo se poderia explicar nada83

ldquoPoisrdquo escreve Schopenhauer

a fiacutesica exige causas mas a Vontade nunca eacute causa sua relaccedilatildeo com o

fenocircmeno de modo algum eacute dada pelo princiacutepio de razatildeo mas o que em si eacute

Vontade de outro lado eacute representaccedilatildeo ou seja fenocircmeno e como tal segue

as leis que constituem a forma do fenocircmeno Assim por exemplo todo

movimento embora seja sempre fenocircmeno da Vontade deve ter apesar disso

uma causa pela qual eacute explicado em relaccedilatildeo com um tempo e um espaccedilo

determinados isto eacute natildeo em geral segundo sua essecircncia interna mas como

fenocircmeno singular84

80

WWW II Kap 23 p 349 M II cap 23 p 360 81

WWW I zweites Buch sect27 p 199 M I livro II sect27 p 203 82

WWW I zweites Buch sect24 p 181 M I livro II sect24 p 185 83

WWW I zweites Buch sect26 p 200 M I livro II sect26 p 203 84

WWW I zweites Buch sect27 p 199 M I livro II sect27 p 203 (grifos do autor)

- 160 -

Do exposto resulta que natildeo se pode utilizar a etiologia para chegar a um

fundamento que ela natildeo pode encontrar e que de qualquer modo natildeo saberia reconhecer Em

funccedilatildeo disso Schopenhauer parte de um conhecimento especial do que nos eacute mais proacuteximo

de um saber imediato para desvendar o mais distante e desconhecido Ao comparar o que

ocorre em si mesmo no momento em que seu corpo age com o modo de accedilatildeo de quaisquer

corpos orgacircnicos ou inorgacircnicos o indiviacuteduo poderia compreender que seu processo de

mudanccedila eacute idecircntico ao destes uacuteltimos e que suas essecircncias tambeacutem o satildeo85

Schopenhauer

exemplifica divertidamente que uma pedra teria razatildeo se julgasse que sua trajetoacuteria no ar

causada por uma colisatildeo fosse fruto de sua vontade proacutepria ldquoO choque eacute para ela o que o

motivo eacute para mim e o que aparece nela como coesatildeo gravidade e resistecircncia no estado

advindo eacute segundo a essecircncia interna o mesmo que reconheccedilo em mim como vontade e que

se ela adquirisse conhecimento tambeacutem entenderia como Vontaderdquo86

Nesse ponto eacute interessante observar que Schopenhauer identificou nas

ciecircncias de seu tempo uma confirmaccedilatildeo de seus principais resultados metafiacutesicos Para ele

esse aspecto distingue sua filosofia de todas as outras porque natildeo deixa como estas um

abismo intransponiacutevel entre a metafisica e a experiecircncia87

De fato como afirma Gardiner

essa eacute uma posiccedilatildeo fundamental de Schopenhauer a saber que ldquo[] nenhuma explicaccedilatildeo

filosoacutefica de nossa existecircncia enquanto seres inteligentes pode ser aceita se natildeo se faz justiccedila

aos fatos evidentes de nossa situaccedilatildeo na natureza fiacutesica na condiccedilatildeo de criaturas dotadas de

certa constituiccedilatildeo e organizaccedilatildeo corporalrdquo88

A obra Sobre a Vontade na natureza se dedica

justamente a apresentar essas comprovaccedilotildees mostrando no entender do filoacutesofo que sua

metafiacutesica natildeo ldquoflutua no arrdquo como as anteriores mas estaacute ancorada no solo firme das ciecircncias

empiacutericas89

E essa comprovaccedilatildeo natildeo seria relativa a um ponto qualquer do seu pensamento

mas agravequele mais fundamental a saber o que estabelece a Vontade como o nuacutecleo metafiacutesico

de tudo Nesse caso diz Schopenhauer cientistas e filoacutesofo se encontram de modo

inesperado

Pois aqueles pesquisadores reconhecem agora que alcanccedilaram o ponto de

encontro procurado inutilmente por muito tempo entre fiacutesica e metafiacutesica

que como ceacuteu e Terra nunca quiseram se tocar reconhecem que se iniciou a

conciliaccedilatildeo entre ambas as ciecircncias e que o ponto de ligaccedilatildeo entre elas foi

85

WWW I zweites Buch sect24 p 182 M I livro II sect24 p 186 86

WWW I zweites Buch sect24 p 183 M I livro II sect24 p 187 87

WN p 320 VN p 39 88

GARDINER op cit p 224 (traduccedilatildeo nossa) 89

WN p 320-321 VN p 40

- 161 -

encontrado Mas o sistema filosoacutefico que vivencia essa vitoacuteria alcanccedila com

isso uma prova externa tatildeo forte e suficiente de sua verdade e correccedilatildeo que

nenhuma outra maior eacute possiacutevel90

Em siacutentese a accedilatildeo e o movimento do indiviacuteduo por motivos que

conhecemos em noacutes mesmos a partir de dentro explicam o modo de atuaccedilatildeo e o movimento

em toda a natureza As forccedilas naturais seriam distintas da vontade individual somente em

grau e as diferenccedilas entre os objetos naturais existiriam apenas na representaccedilatildeo todos

seriam exteriorizaccedilotildees da mesma coisa em si No entender de Schopenhauer esse eacute o uacutenico

uso da reflexatildeo que pode seguir aleacutem do fenocircmeno e alcanccedilar a Vontade em si91

Nesse

sentido ele escreve

Que aleacutem disso eacute aquela mesma Vontade que situa a gema da planta para

que folha ou flor se desenvolvam sim que a forma regular do cristal eacute

apenas o vestiacutegio restante de sua aspiraccedilatildeo momentacircnea que ela em geral

como o verdadeiro e uacutenico ἀςηόμαηον no sentido proacuteprio do termo subjaz

como fundamento de todas as forccedilas da natureza inorgacircnica joga e atua em

todos os seus variados fenocircmenos empresta forccedila a suas leis e se daacute a

conhecer na massa mais bruta como gravidade ndash essa concepccedilatildeo eacute o segundo

passo naquele conhecimento fundamental jaacute proporcionado por uma

reflexatildeo mais ampla92

33 ndash Objetivaccedilatildeo da Vontade

Schopenhauer define como objetivaccedilatildeo da Vontade sua

ldquoautoapresentaccedilatildeo no mundo real corpoacutereordquo93

De acordo com ele a coisa em si se objetiva

em uma infinidade de seres e de graus cuja essecircncia no entanto eacute a mesma pois satildeo

diferentes apenas em aparecircncia94

Haveria graus maiores e menores de manifestaccedilatildeo da

Vontade dispostos numa hierarquia a planta seria um grau maior do que a pedra o animal

90

WN p 324 VN p 43-44 91

WWW I zweites Buch sect21 p 163 M I livro II sect21 p 168 92

WWW II Kap 23 p 341-342 M II cap 23 p 353-354 93

WWW II Kap 20 p 286 M II cap 20 p 297 94

WWW I zweites Buch sect24 p 185 M I livro II sect24 p 189

- 162 -

maior do que a planta e o ser humano maior do que o animal Por conseguinte a gradaccedilatildeo dos

fenocircmenos resultantes da objetivaccedilatildeo da Vontade conduziria da mateacuteria sem vida ao ser

humano racional sem que ela deixasse de ser idecircntica em todos eles Conforme o filoacutesofo as

infinitas gradaccedilotildees satildeo como graus mais fracos ou mais fortes de uma mesma luz de modo

que a Vontade se manifesta completamente em cada um e em todos os fenocircmenos

No texto ldquoSchopenhauer et la physiologie franccedilaiserdquo Paul Janet aponta

as origens dessa concepccedilatildeo nas obras de Cabanis e de Bichat Segundo esse autor Bichat

divisou certas pequenas vontades nas atividades e funccedilotildees orgacircnicas certas hierarquias

subconscientes de ldquopequenos eurdquo (petits moi) que se encaixam infinitamente95

Generalizando

essa perspectiva Cabanis teria buscado uma causa geral dos fenocircmenos vitais que pudesse ser

atribuiacuteda a toda a natureza Conforme Janet ldquoEle suspeita que haja bdquoalguma analogia entre a

sensibilidade animal o instinto das plantas as afinidades eletivas e a simples atraccedilatildeo

gravitacional‟ e em todos esses fenocircmenos ele vecirc um fato comum bdquoa tendecircncia dos corpos

uns aos outros‟rdquo96

Essa concepccedilatildeo segundo o autor conteacutem em germe toda a filosofia de

Schopenhauer com a uacutenica diferenccedila de que Cabanis chama sensibilidade o que o filoacutesofo

chama vontade Em ambos os casos todas as forccedilas naturais do mundo orgacircnico e do

inorgacircnico poderiam ser remetidas a um mesmo princiacutepio apenas nomeado distintamente

pelo filoacutesofo e pelo fisioacutelogo97

Na filosofia schopenhaueriana os graus mais altos de objetivaccedilatildeo da

Vontade satildeo aqueles que manifestam individualidade Os seres humanos teriam chegado ao

cume dessa gradaccedilatildeo diz Schopenhauer pois somente neles a individualidade teria atingido o

ponto em que se tem personalidade e fisionomia completamente particulares Alguns animais

se aproximariam disso mas natildeo possuiriam individualizaccedilatildeo do caraacuteter e expressariam apenas

o da sua espeacutecie Para o filoacutesofo em virtude de distinccedilotildees fisioloacutegicas no desenvolvimento de

seus ceacuterebros o caraacuteter da espeacutecie determina as accedilotildees individuais deles enquanto nos seres

humanos cada caraacuteter se expressa de modo pessoal Nas palavras dele ldquoEnquanto cada

homem deve ser visto como fenocircmeno especialmente determinado e caracterizado da

Vontade ateacute mesmo de certo modo como uma Ideia proacutepria no animal esse caraacuteter individual

falta completamente e somente a espeacutecie possui significaccedilatildeo particular []rdquo98

Jaacute nas plantas

95

JANET P Schopenhauer et la physiologie franccedilaise Cabanis et Bichat Revue des deux mondes Tome 9

Paris Bureau de la Revue de deux mondes Mai-1880 p 46 96

Ibidem p 46-47 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 97

Ibidem p 46-47 98

WWW I zweites Buch sect26 p 189 M I livro II sect26 p 193-194

- 163 -

e na natureza inorgacircnica a individualidade seria completamente ausente e conforme o

filoacutesofo ldquoQuanto mais se desce mais se perde cada vestiacutegio de caraacuteter individual no caraacuteter

geral da espeacutecie restando somente a fisionomia destardquo99

Cada um dos graus de objetivaccedilatildeo da Vontade satildeo denominados Ideia por

Schopenhauer em sentido platocircnico As forccedilas naturais seriam Ideias de uma objetivaccedilatildeo de

niacutevel inferior e as leis naturais seriam o modo de relaccedilatildeo entre elas e as formas do fenocircmeno

Por obra do tempo e do espaccedilo a Ideia se multiplicaria em inumeraacuteveis seres cujo

aparecimento seria determinado pela causalidade que ademais seria a regra por meio da qual

a mateacuteria seria dividida entre as forccedilas naturais100

ldquoPortantordquo explica o filoacutesofo ldquoessa norma

se relaciona necessariamente com a identidade da mateacuteria total existente a qual eacute o substrato

comum de todos aqueles diferentes fenocircmenosrdquo101

Assim Vontade e Ideias manifestam-se de

modo idecircntico nos fenocircmenos por mais numerosos que sejam e natildeo satildeo afetadas por

quaisquer mudanccedilas oriundas de tempo espaccedilo e causalidade

Revela-se nesse ponto novamente a relaccedilatildeo entre a lei de causalidade e

a da permanecircncia da substacircncia bem como a conexatildeo de espaccedilo e tempo no tocante a ambas

Segundo Schopenhauer o tempo eacute a possibilidade de que a mesma mateacuteria possa ter

determinaccedilotildees opostas e o espaccedilo eacute a possibilidade de que a mesma mateacuteria possa

permanecer sob determinaccedilotildees opostas102

ldquoPor issordquo ele escreve ldquoesclarecemos a mateacuteria no

livro anterior como uniatildeo de tempo e espaccedilo essa uniatildeo se apresenta como mudanccedila dos

acidentes na permanecircncia da substacircncia da qual a causalidade ou o devir eacute a possibilidade

universalrdquo103

Natildeo obstante no capiacutetulo 24 de O MundoII ele afirma que essa perspectiva eacute

unilateral porque soacute examina a mateacuteria do ponto de vista de suas relaccedilotildees com as formas do

intelecto Fora dessas relaccedilotildees isto eacute do seu fazer efeito a mateacuteria seria uma abstraccedilatildeo um

pensamento pois natildeo possuiria determinaccedilatildeo alguma que pudesse ser intuiacuteda104

Por conseguinte a mateacuteria se identificaria com a causalidade e

corresponderia ao conceito de substacircncia ldquoDe acordo com issordquo Schopenhauer afirma ldquoa

essecircncia total da mateacuteria consiste em fazer efeito somente por meio deste ela preenche o

espaccedilo e permanece no tempo ela eacute completamente pura causalidade Portanto onde eacute

99

WWW I zweites Buch sect26 p 189 M I livro II sect26 p 193 100

WWW I zweites Buch sect26 p 192-193 M I livro II sect26 p 196-197 101

WWW I zweites Buch sect26 p 193 M I livro II sect26 p 197 102

WWW I zweites Buch sect26 p 193 M I livro II sect26 p 197 103

WWW I zweites Buch sect26 p 193 M I livro II sect26 p 197 104

WWW II Kap 24 p 356 M II cap 24 p 367

- 164 -

produzido efeito haacute mateacuteria e material eacute o que faz efeito em geralrdquo105

Desse ponto de vista a

mateacuteria seria a forma a priori da causalidade poreacutem objetivada isto eacute ligada ao tempo e ao

espaccedilo Natildeo consiste em objeto empiacuterico e natildeo eacute dada em experiecircncia alguma mas diz o

filoacutesofo assim como o entendimento eacute condiccedilatildeo da experiecircncia e um elemento necessaacuterio

dela Eacute entatildeo o substrato permanente de todas as exteriorizaccedilotildees das forccedilas naturais dos

seres vivos numa palavra do mundo todo como representaccedilatildeo106

Sem forma sem

qualidades sem determinaccedilotildees e inerte a mateacuteria estaria sempre pronta a assumir a aparecircncia

de quaisquer manifestaccedilotildees da Vontade natildeo podendo pode ser subtraiacuteda completamente do

mundo como representaccedilatildeo sem que ele deixasse por isso mesmo de ser o que eacute

Apesar de natildeo ser um objeto a mateacuteria conteria um elemento dado

apenas a posteriori Nas palavras de Schopenhauer ldquoEla eacute na verdade o ponto de contato do

lado empiacuterico do nosso conhecimento com o puro e aprioriacutestico portanto a pedra angular

proacutepria do mundo da experiecircnciardquo107

Nessa perspectiva a mateacuteria se configuraria como a

proacutepria Vontade na medida em que esta se manifesta na parte empiacuterica dos corpos Assim

ele explica a mateacuteria como aquilo atraveacutes do qual a coisa em si se torna visiacutevel intuiacutevel e que

constitui a ligaccedilatildeo entre o mundo como Vontade e como representaccedilatildeo Conforme o filoacutesofo

ldquoPertence a este enquanto eacute produto das funccedilotildees do intelecto agravequele na medida em que o

que se manifesta em todos os seres materiais isto eacute fenocircmenos eacute a Vontaderdquo108

Como

consequecircncia sem as formas do conhecimento a mateacuteria se revela como a coisa em si pois eacute

exatamente aquilo que se torna extenso e produz efeito ao tomar as formas do tempo espaccedilo

e causalidade Entatildeo diz Schopenhauer ldquoA mateacuteria eacute por conseguinte a proacutepria Vontade

mas natildeo em si e sim enquanto eacute intuiacuteda isto eacute enquanto adota a forma da representaccedilatildeo

objetiva assim o que objetivamente eacute mateacuteria subjetivamente eacute Vontaderdquo109

As forccedilas naturais objetivariam uma Ideia menos perfeita da Vontade um

impulso cego e sem conhecimento que se manifestaria de modo idecircntico em inumeraacuteveis

fenocircmenos Nesse niacutevel de objetivaccedilatildeo natildeo haveria caraacuteter individual em parte alguma e

cada Ideia expressaria o mesmo impulso multiplicado milhares de vezes110

Os fenocircmenos do

mundo orgacircnico por sua vez objetivariam uma Ideia mais perfeita da Vontade mas ainda de

105

WWW II Kap 24 p 357 M II cap 24 p 368 (grifos do autor) 106

WWW II Kap 24 p 357 M II cap 24 p 368 107

WWW II Kap 24 p 358 M II cap 24 p 369 108

WWW II Kap 24 p 359 M II cap 24 p 370 (grifos do autor) 109

WWW II Kap 24 p 360 M II cap 24 p 371 110

WWW I zweites Buch sect27 p 211-212 M I livro II sect27 p 214

- 165 -

modo cego Mesmo no reino vegetal onde a Vontade eacute mais clara sua objetivaccedilatildeo ainda se daacute

como o impulso cego que governa a vida das plantas e a parte vegetativa do corpo animal111

Nesse caso cada Ideia deve expressar sem nenhum sinal de individualidade espeacutecies de

plantas e estiacutemulos dos corpos orgacircnicos com vistas agrave sua geraccedilatildeo desenvolvimento e

conservaccedilatildeo

Nos graus mais aprimorados de objetivaccedilatildeo da Vontade por seu turno os

indiviacuteduos expressariam Ideias Nesse niacutevel estatildeo os animais cuja individualidade estaacute

relacionada com a necessidade de buscar o alimento que diz Schopenhauer natildeo chega

facilmente ateacute eles mas ldquo[] tem de ser procurado escolhido desde o instante em que o

animal saiu do ovo ou do ventre materno onde vegetava sem conhecimentordquo112

Os animais

precisam movimentar-se e entatildeo os motivos satildeo o meio necessaacuterio para a preservaccedilatildeo do

indiviacuteduo e com ele da espeacutecie Uma vez que o conhecimento passa a ser fundamental o

ceacuterebro surge para satisfazer essa necessidade como oacutergatildeo que expressa esse esforccedilo e cria o

mundo o como representaccedilatildeo113

Conforme o filoacutesofo ldquoO mundo mostra agora seu segundo

lado Ateacute entatildeo pura Vontade agora eacute simultaneamente representaccedilatildeo objeto do sujeito

cognoscenterdquo114

Com o surgimento do conhecimento nos universos animal e humano

poreacutem perde-se a infalibilidade com a qual a Vontade segue seus alvos no restante da

natureza Enquanto era pura e simplesmente impulso cego natildeo se via atrapalhada ou

complicada por nenhum saber mas na medida em que os motivos passaram a fazer parte das

cadeias causais trouxeram consigo o engano e a ilusatildeo Nesse sentido diz Schopenhauer o

mundo como representaccedilatildeo eacute ldquo[] de fato apenas a imagem de sua proacutepria essecircncia mas de

natureza totalmente distinta e que agora interfere na coesatildeo de seus fenocircmenosrdquo115

Motivos

falsos passam assim a poder influir sobre as vontades como se fossem os corretos podendo

levar ao erro e agrave distorccedilatildeo nas exteriorizaccedilotildees da essecircncia individual116

No caso dos seres

humanos as carecircncias e vulnerabilidades exigiram uma potecircncia mais elevada de

conhecimento que seria entatildeo a origem da superioridade do seu intelecto No entanto ao

mesmo tempo em que o instinto ficou em segundo plano a seguranccedila e o caraacuteter infaliacutevel das

111

WWW I zweites Buch sect27 p212 M I livro II sect27 p 214-215 112

WWW I zweites Buch sect27 p 212 M I livro II sect27 p 215 113

WWW I zweites Buch sect27 p 212 M I livro II sect27 p 215 114

WWW I zweites Buch sect27 p 212-0213 M I livro II sect27 p 215 (grifos do autor) 115

WWW I zweites Buch sect77 p 213 M I livro II sect27 p 216 116

WWW I zweites Buch sect27 p 214 M I livro II sect27 p 217

- 166 -

exteriorizaccedilotildees da Vontade se perderam completamente Com isso a melhor objetivaccedilatildeo seraacute

de certo modo a pior delas pois ao substituir o instinto e a regularidade das leis naturais a

reflexatildeo deu origem a erros e hesitaccedilotildees que em muitos casos prejudicam a exteriorizaccedilatildeo

adequada em accedilotildees isto eacute exatamente aquilo para o que existe

34 ndash Relaccedilotildees da Vontade com o intelecto e o ceacuterebro

No capiacutetulo 22 de O MundoII Schopenhauer aborda o intelecto do

acircngulo da objetividade isto eacute como uma representaccedilatildeo e afirma que esse ponto de vista

precisa ser harmonizado com o subjetivo117

A perspectiva subjetiva jaacute abordada por noacutes no

segundo capiacutetulo deste trabalho examina o que eacute dado na consciecircncia com o fim descrever o

mecanismo de construccedilatildeo do mundo pelo intelecto A objetiva por sua vez investiga o

intelecto do ponto de vista externo isto eacute como um objeto empiacuterico Esse modo de

consideraccedilatildeo segundo o filoacutesofo ldquoEacute portanto em primeiro lugar zooloacutegico anatocircmico e

fisioloacutegico tornando-se filosoacutefico somente pela ligaccedilatildeo com aquele primeiro ponto de vista

pelo qual se torna superiorrdquo118

Na nossa interpretaccedilatildeo a perspectiva fisioloacutegica de

consideraccedilatildeo tem tanto peso e valor no pensamento schopenhaueriano quanto a filosoacutefica

Janet observa nesse sentido que as investigaccedilotildees fisioloacutegicas tiveram uma influecircncia decisiva

sobre o filoacutesofo pois ele afirma ldquoSe o primeiro livro de sua obra vem de Kant pode-se dizer

que o segundo vem em grande parte de Cabanis e Bichatrdquo119

De fato Schopenhauer

considera que as contribuiccedilotildees desses pensadores natildeo podem ser ignoradas por filoacutesofos se

estes natildeo quiserem oferecer apenas um ponto de vista unilateral e insuficiente do intelecto

como teria sido o de Kant120

Nesse sentido ele escreve que

117

WWW II Kap 22 p 316 M II cap 22 p 329 118

WWW II Kap 22 p 317 M II cap 22 p 329 119

JANET op cit p 36 (traduccedilatildeo nossa) 120

WWW II Kap 22 p 317 M II cap 22 p 330

- 167 -

A verdadeira fisiologia no que tem de mais elevado demonstra o espiritual

do homem (o conhecimento) como produto do seu fiacutesico e isso Cabanis fez

como nenhum outro mas a verdadeira metafiacutesica nos ensina que esse fiacutesico

mesmo eacute mero produto ou antes fenocircmeno de algo espiritual (a Vontade)

sim que a proacutepria mateacuteria eacute condicionada pela representaccedilatildeo unicamente na

qual ela existe121

No entender de Schopenhauer os pontos de vista subjetivo e objetivo satildeo

contrastantes O que eacute pensamento viacutevido e consciente na primeira perspectiva na segunda

natildeo eacute mais do que funccedilatildeo fisioloacutegica do ceacuterebro semelhante a quaisquer outras funccedilotildees da

vida animal ou vegetal Em virtude disso diz o filoacutesofo ldquo[] eacute legiacutetimo afirmar-se que a

totalidade do mundo objetivo tatildeo ilimitado no espaccedilo tatildeo infinito no tempo tatildeo impenetraacutevel

na perfeiccedilatildeo eacute na verdade apenas um certo movimento ou afecccedilatildeo da massa mole dentro do

cracircniordquo122

Embora seja o fenocircmeno mais aprimorado da natureza essa mateacuteria cerebral nos

aproxima de todos os outros animais e da vida orgacircnica mais simples na medida em que toma

parte no universo de objetivaccedilotildees da Vontade Isso porque Schopenhauer escreve ldquo[]

aquela massa orgacircnica gelatinosa eacute o uacuteltimo produto da natureza que jaacute pressupotildee todos os

outrosrdquo123

Portanto como tudo o mais o intelecto eacute fenocircmeno da Vontade Do

ponto de vista fenomecircnico a pluralidade e separaccedilatildeo dos seres torna o conhecimento

necessaacuterio no mundo como representaccedilatildeo De acordo com Schopenhauer o conhecimento eacute

exigido somente quando haacute no miacutenimo dois seres distintos para que um possa conhecer o

outro Caso houvesse um uacutenico ser natildeo haveria nada cuja existecircncia pudesse ser conhecida

pois ele escreve ldquoEle mesmo jaacute seria tudo em tudo consequentemente nada restaria a

conhecer isto eacute nada estranho que pudesse ser interpretado como coisa objetordquo124

A

multiplicidade separaria os indiviacuteduos que teriam entatildeo de transpor os limites materiais dos

seus proacuteprios ceacuterebros ou melhor os intelectos precisariam romper suas fronteiras por meio

da causalidade para produzir a intuiccedilatildeo de outras coisas125

Pluralidade e conhecimento

seriam mutuamente condicionantes e diz o filoacutesofo ldquoConclui-se daiacute que para aleacutem do

fenocircmeno no ser em si de todas as coisas elas devem ser estranhas a tempo e espaccedilo

portanto tambeacutem a multiplicidade e tampouco pode existir nenhum conhecimentordquo126

121

WN p 340 VN p 61 (grifos do autor) 122

WWW II Kap 22 p 318 M II cap 22 p 330 123

WWW II Kap 22 p 318 M II cap 22 p 331 124

WWW II Kap 22 p 319 M II cap 22 p 331-332 (grifos do autor) 125

WWW II Kap 22 p 319 M II cap 22 p 332 126

WWW II Kap 22 p 320 M II cap 22 p 332

- 168 -

O intelecto surgiria entatildeo no animal como um meio de satisfazer

necessidades de sobrevivecircncia e progrediria em graus crescentes de aperfeiccediloamento O

ceacuterebro humano seria o ponto mais alto de perfeiccedilatildeo a que o conhecimento teria chegado e

sua diferenccedila especiacutefica em relaccedilatildeo ao ceacuterebro de todos os outros animais seria a capacidade

de influenciar a Vontade com motivos abstratos Segundo o filoacutesofo o mundo como

representaccedilatildeo nasce simploacuterio e humilde ldquomas ele se manifesta de modo cada vez mais

niacutetido mais amplo e profundo na medida em que na seacuterie ascendente das organizaccedilotildees

animais o ceacuterebro eacute produzido cada vez mais perfeitamenterdquo127

Nas plantas e no mundo

inorgacircnico os estiacutemulos e as causas estritas seriam anaacutelogos do conhecimento enquanto

meios pelos quais cada ser recebe as influecircncias de fora As distintas receptividades agraves causas

aos estiacutemulos e ao conhecimento teriam a mesma funccedilatildeo de satisfazer as necessidades dos

seres com vistas agrave manutenccedilatildeo da vida do indiviacuteduo e da espeacutecie128

Nesse sentido como

afirma Gardiner ldquoTodas as formas comuns de conhecimento inclusive o cientiacutefico devem

levar sobre si a marca da vontade por ser esta sua raison drsquoecirctrerdquo129

Em virtude de o ceacuterebro ser o niacutevel maacuteximo de perfeiccedilatildeo e complexidade

do organismo as afecccedilotildees dos sentidos mais nobres visatildeo e audiccedilatildeo satildeo meramente

percebidas por ele e natildeo afetam a vontade isto eacute natildeo provocam dor ou prazer130

O alto grau

de sensibilidade desse oacutergatildeo permitiria ao entendimento realizar espontaneamente sem

relaccedilatildeo com a vontade a transiccedilatildeo da impressatildeo sentida no corpo ao objeto externo ldquoAssimrdquo

escreve Schopenhauer

o ponto onde o entendimento da sensaccedilatildeo na retina que ainda eacute uma mera

afecccedilatildeo do corpo e nesse aspecto da Vontade realiza a transiccedilatildeo de cada

sensaccedilatildeo agrave causa que ele projeta com suas formas do tempo e do espaccedilo

como algo externo e diferente da proacutepria pessoa pode ser considerado como

o limite entre o mundo como Vontade e o mundo como representaccedilatildeo ou

tambeacutem como o local de nascimento deste uacuteltimo131

Por conseguinte a produccedilatildeo de conceitos e abstraccedilotildees eacute uma atividade

espontacircnea do ceacuterebro ancorada na Vontade A autoconsciecircncia tambeacutem eacute produzida nesse

oacutergatildeo nasce juntamente com ele e com o mundo como representaccedilatildeo do mesmo modo que

diz Schopenhauer ldquo[] a luz soacute se torna visiacutevel por meio dos corpos que a refletem e sem

127

WWW II Kap 22 p 324 M II cap 22 p 337 128

WN p 394 VN p 120 129

GARDINER op cit p 215 (traduccedilatildeo nossa) 130

WWW II Kap 22 p 320 M II cap 22 p 333 131

WWW II Kap 22 p 321 M II cap 22 p 333

- 169 -

eles perde-se sem efeito na escuridatildeordquo132

Por conseguinte pela necessidade de apreensatildeo do

mundo como representaccedilatildeo a Vontade produziria o ceacuterebro e dele despontaria a consciecircncia

de si Segundo o filoacutesofo ao unir as distintas atividades da sensibilidade em um ponto

preciso o ceacuterebro as fixa em uma linha do tempo e origina a forma mais essencial do

conhecimento133

Nas palavras dele

Esse foco da atividade cerebral eacute o que Kant nomeou unidade sinteacutetica da

apercepccedilatildeo apenas por meio dele a Vontade se torna consciente de si na

medida em que esse foco da atividade cerebral ou o cognoscente interpreta-

se como idecircntico agrave proacutepria base da qual derivou o desejante e assim surge o

ldquoeurdquo134

Entendido dessa maneira o sujeito cognoscente eacute meramente um estado

que conhece a vontade de modo refletido e indireto Natildeo pode ser tomado por uma substacircncia

ou alma pois natildeo eacute algo primaacuterio ou originaacuterio e sim derivado do organismo que por sua vez

deriva da Vontade Nesse ponto Schopenhauer reconhece o caraacuteter metafoacuterico de suas

afirmaccedilotildees ldquoEu admito que tudo o que foi dito aqui seja de fato apenas imagem e paraacutebola

ateacute mesmo em parte hipoacutetese estamos em um ponto em que o pensamento mal alcanccedila

menos ainda as demonstraccedilotildeesrdquo135

Apesar dessa declaraccedilatildeo no capiacutetulo 19 de O MundoII ele argumenta

sobre a primazia da Vontade na autoconsciecircncia136

Desse ponto de vista o intelecto seria um

fenocircmeno secundaacuterio um acidente do organismo animal ou melhor funccedilatildeo de um oacutergatildeo

material produzido por esse mesmo organismo Nas palavras de Schopenhauer ldquo[] a

Vontade eacute metafiacutesica o intelecto fiacutesico como seus objetos o intelecto eacute mero fenocircmeno

coisa em si eacute apenas a Vontade portanto num sentido cada vez mais figurado logo

metaforicamente a Vontade eacute a substacircncia do homem o intelecto o acidente []rdquo137

Embora em diversas circunstacircncias possa parecer que a Vontade seja comandada pelo

intelecto ao ser posta em movimento com imagens e pensamentos eacute a ela que sempre caberaacute a

decisatildeo final ldquoNa verdaderdquo ele escreve ldquoa comparaccedilatildeo mais adequada para a relaccedilatildeo entre

ambos eacute a do cego forte que carrega nos ombros o paraliacutetico que vecircrdquo138

Essa relaccedilatildeo de

subordinaccedilatildeo do intelecto agrave Vontade eacute ilustrada por Schopenhauer com diversas

132

WWW II Kap 22 p 322-323 M II cap 22 p 335 133

WWW II Kap 22 p 323 M II cap 22 p 335 134

WWW II Kap 22 p 323 M II cap 22 p 335 (grifos do autor) 135

WWW II Kap 22 p 324 M II cap 22 p 336 136

WWW II Kap 19 p 232 M II cap 19 p 243 137

WWW II Kap 19 p 233 M II cap 19 p 243-244 (grifos do autor) 138

WWW II Kap 19 p 242 M II cap 19 p 253

- 170 -

consideraccedilotildees de ordem psicoloacutegica que poreacutem natildeo detalharemos aqui139

Basta-nos ressaltar

que ele entende a Vontade como o prius e o intelecto como o posterius razatildeo pela qual

inclusive este uacuteltimo morreria com o corpo enquanto aquela natildeo140

Guumlnter Zoumlller tece interessantes consideraccedilotildees a esse respeito De acordo

com ele Schopenhauer natildeo apenas inverte as posiccedilotildees de vontade e intelecto no ldquoeurdquo mas

tambeacutem estabelece relaccedilotildees complexas e dinacircmicas entre ambos Para Zoumlller o filoacutesofo

discerne duas concepccedilotildees alternativas e complementares a saber uma em que a vontade eacute o

centro do ser humano e outra em que a individualidade eacute alcanccedilada pelo cultivo intelecto141

Na noccedilatildeo de individualidade haveria um ldquoeurdquo desenvolvido em que a centralidade do

conhecimento substituiria a da vontade e cuja autorrealizaccedilatildeo seria autonegaccedilatildeo Resultaria

entatildeo uma psicomaquia tornada ainda mais dramaacutetica na relaccedilatildeo do ldquoeurdquo com o mundo

Mais especificamente a cosmomaquia que envolve ldquoeurdquo e mundo se

converte em um duplo papel do ldquoeurdquo como inteligecircncia e como vontade

Como inteligecircncia o ldquoeurdquo eacute a inexpugnaacutevel e indispensaacutevel condiccedilatildeo formal

de objetos de todas as classes Como vontade o ldquoeurdquo eacute a manifestaccedilatildeo mais

articulada do esforccedilo cegamente dirigido que fundamenta toda a realidade142

A concepccedilatildeo schopenhaueriana acerca do intelecto tambeacutem foi inspirada

na fisiologia francesa especialmente em Bichat Com efeito Janet esclarece que Bichat

contrapocircs o que chamou de vida animal equivalente a vida intelectual agrave vida orgacircnica

comum ao vegetal e ao animal distinguindo em cada uma diversas funccedilotildees proacuteprias e

mutuamente opostas143

Assim escreve esse autor ldquoO que Bichat chamou oposiccedilatildeo da vida

animal e da vida orgacircnica diz Schopenhauer eacute o que eu chamo oposiccedilatildeo do intelecto e da

vontaderdquo144

Para Janet Bichat jaacute teria defendido a visatildeo schopenhaueriana a respeito da

separaccedilatildeo e anterioridade da Vontade em relaccedilatildeo ao intelecto isto eacute uma visatildeo fisioloacutegica da

mesma filosofia145

Com base no exposto observamos de um lado que o aperfeiccediloamento

do ceacuterebro acompanhou a escala do aprofundamento das necessidades como um meio de

conservaccedilatildeo de indiviacuteduos e espeacutecies De outro a complexidade crescente dos organismos

139

Cf WWW II Kap 19 p 232 et seq M II cap 19 p 243 et seq 140

WWW II Kap 21 p 315 M II cap 21 p 327 141

ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 19-20 142

Ibidem p 20 (traduccedilatildeo nossa) 143

JANET op cit p 50-51 144

Ibidem p 56 (traduccedilatildeo nossa) 145

Ibidem p 59

- 171 -

mais elevados aumentava e complicava as necessidades tornando mais difiacutecil sua satisfaccedilatildeo e

exigindo sentidos e inteligecircncia mais potentes146

Uma trajetoacuteria progressiva teve entatildeo de ser

percorrida e nela as faculdades cerebrais se aperfeiccediloaram e tornaram o mundo como

representaccedilatildeo cada vez mais perfeito intrincado complexo Schopenhauer resume assim essa

concepccedilatildeo

Quanto mais pois a organizaccedilatildeo se torna complicada na seacuterie ascendente

dos animais mais diversificadas se tornam tambeacutem suas necessidades bem

como mais variados e mais especificamente determinados os objetos que

servem agrave sua satisfaccedilatildeo com isso mais difiacuteceis e distantes os caminhos para

consegui-los os quais agora tecircm de ser todos conhecidos e encontrados na

mesma medida as representaccedilotildees dos animais tambeacutem tecircm de se tornar mais

multifacetadas exatas determinadas e coesas como tambeacutem sua atenccedilatildeo

tem de se tornar mais aacutevida mais detida e excitaacutevel e por consequecircncia seu

intelecto tem de ser mais desenvolvido e aperfeiccediloado147

Portanto o intelecto emerge das necessidades e exigecircncias da Vontade

com tendecircncia totalmente praacutetica para servi-la com a apreensatildeo dos motivos148

O aumento

da inteligecircncia acompanharia expressotildees cada vez mais veementes dela e a intensidade de

suas manifestaccedilotildees nas distintas espeacutecies se ligaria ao incremento fisioloacutegico da atividade do

ceacuterebro149

Em virtude disso os seres naturais seriam infinitamente diferentes nos niacuteveis de

consciecircncia mas seriam todos rigorosamente iguais no tocante agrave essecircncia Vontade E

completa Schopenhauer ldquo[] eacute o grau de consciecircncia o que determina o grau de existecircncia de

um serrdquo150

A perspectiva fisioloacutegica de investigaccedilatildeo tem assim uma importacircncia

fundamental na medida em que mostra o surgimento e aperfeiccediloamento do ceacuterebro no mundo

fenomecircnico como instrumento da Vontade Nesse sentido escreve o filoacutesofo

[] a visatildeo objetiva do intelecto aqui fornecida que conteacutem uma gecircnese

dele torna compreensiacutevel que determinado exclusivamente para objetivos

praacuteticos ele eacute mero meio dos motivos consequentemente cumpre sua

funccedilatildeo pela correta apresentaccedilatildeo destes e tambeacutem que se empreendemos

construir a coisa em si a partir do complexo e da legalidade dos fenocircmenos

que aqui se apresentam a noacutes objetivamente isso se daacute por risco e

responsabilidade proacuteprios151

Na nossa interpretaccedilatildeo as duas perspectivas de abordagem do intelecto

conduzem a duas visotildees sobre a origem o uso e a importacircncia do conhecimento De um lado

146

WWW II Kap 22 p 325 M II cap 22 p 337 147

WWW II Kap 18 p 237 M II cap 19 p 248 148

WWW II Kap 22 p 332 M II cap 22 p 344 149

WWW II Kap 22 p 326-327 M II cap 22 p 339 150

WWW II Kap 22 p 327-328 M II cap 22 p 340 151

WWW II Kap 22 p 334 M II cap 22 p 345-346 (grifos do autor)

- 172 -

enquanto condiccedilatildeo transcendental do mundo empiacuterico o intelecto produz um conhecimento

que passa ao largo do que as coisas satildeo em si mesmas tratando apenas de relaccedilotildees entre

objetos Ele natildeo adentra o interior do mundo a sua essecircncia que existe independentemente

dele mais ainda antes e depois dele152

Nessa perspectiva o conhecimento eacute anterior ao

mundo como representaccedilatildeo De outro lado o conhecimento pressupotildee a existecircncia do mundo

empiacuterico na medida em que eacute funccedilatildeo fisioloacutegica de um oacutergatildeo material que surge tardiamente

na natureza Nessa perspectiva eacute posterior e dependente de uma gradaccedilatildeo de objetivaccedilotildees que

o tornam necessaacuterio como aprimoramento dos meios de satisfaccedilatildeo da Vontade Nesse sentido

afirma Schopenhauer

[] o intelecto soacute nos eacute conhecido a partir da natureza animal portanto

como um princiacutepio completamente secundaacuterio e subordinado no mundo um

produto de origem tardia assim ele natildeo pode jamais ser ter sido a condiccedilatildeo

da existecircncia do mundo nem um mundus intellegibilis (mundo inteligiacutevel)

pode preceder um mundus sensibilis (mundo sensiacutevel) isso porque aquele

somente obteacutem sua mateacuteria deste Natildeo foi um intelecto que produziu a

natureza mas a natureza que produziu o intelecto153

35 ndash Discoacuterdia da Vontade consigo mesma e teleologia

A identidade da Vontade em tudo o que existe natildeo se traduz em

identidade das Ideias em que ela se objetiva Os graus em que os fenocircmenos se objetivam natildeo

podem ser reduzidos uns aos outros isto eacute natildeo se pode remeter umas agraves outras as forccedilas

naturais distintas entre si tampouco misturar espeacutecies anaacutelogas de animais as mais perfeitas

natildeo satildeo variedades surgidas por acaso das mais imperfeitas154

Na concepccedilatildeo de

Schopenhauer os graus mais proeminentes de objetivaccedilatildeo da Vontade satildeo Ideias superiores

surgidas como vencedoras na disputa que travam entre si por mateacuteria No reino inorgacircnico

por exemplo os niacuteveis inferiores de objetivaccedilatildeo disputariam a mateacuteria por meio da

152

WWW II Kap 22 p 334 M II cap 22 p 346 153

WN p 360 VN p 82-83 154

WWW I zweites Buch sect27 p 214-215 M I livro II sect27 p 208

- 173 -

causalidade e daiacute surgiria o fenocircmeno de uma Ideia superior que dominaria as preexistentes

Gardiner considera em relaccedilatildeo a esse ponto que haacute uma incompatibilidade entre a concepccedilatildeo

schopenhaueriana de que as Ideias ou forccedilas naturais estatildeo fora do tempo e do espaccedilo como

expusemos anteriormente e a luta entre elas aqui exposta Para esse autor

[] eacute difiacutecil natildeo considerar sua teoria das forccedilas concebidas como existentes

ldquofora do espaccedilo e do tempordquo mas ao mesmo tempo lutando competindo

em realidade entre si para encontrar expressatildeo no reino da manifestaccedilatildeo

espaccedilo-temporal como uma fantasia animista que reflete uma ideia

basicamente confusa das relaccedilotildees que existem entre as terminologias

cientiacuteficas e os esquemas conceituais por um lado e o pensamento e

linguagem cotidianos por outro []155

De qualquer modo Schopenhauer sustenta que desse embate surgem

Ideias novas e superiores agraves demais Num processo que ele denomina assimilaccedilatildeo dominante

(uumlberwaumlltigende Assimilation) a Ideia vitoriosa abrangeria em si todas as que foram

dominadas e expressaria o mesmo esforccedilo das inferiores poreacutem num grau mais vigoroso156

A ideia vencedora seria um anaacutelogo mais perfeito a objetivaccedilatildeo de uma espeacutecie nova

diferente e mais aprimorada Segundo o filoacutesofo esse processo se deu ldquo[] originalmente

por generatio aequivoca em seguida pela assimilaccedilatildeo do germe disponiacutevel seiva orgacircnica

planta animal homemrdquo157

Por se tratar da conquista de Ideias inferiores por outras

superiores os fenocircmenos do mundo orgacircnico natildeo poderatildeo simplesmente ser reduzidos aos do

mundo inorgacircnico isto eacute as forccedilas vitais agraves leis naturais universais Os seres orgacircnicos seriam

fenocircmenos de uma Ideia mais distinta e natildeo fruto de combinaccedilotildees ou interaccedilotildees fortuitas de

forccedilas quiacutemicas ou fiacutesicas Nas palavras de Schopenhauer ldquo[] pois a Vontade una que se

objetiva em todas as Ideias na medida em que se esforccedila pela mais alta objetivaccedilatildeo possiacutevel

abandona os niacuteveis inferiores do seu fenocircmeno depois de um conflito entre eles para

aparecer em um mais elevado e tanto mais poderosordquo158

Com relaccedilatildeo a esse aspecto surge uma das divergecircncias de

Schopenhauer em relaccedilatildeo a Lamarck Para o filoacutesofo ao julgar que a vida pudesse ser

explicada pelo calor e a eletricidade Lamarck estaria pressupondo que o organismo fosse

resultado de forccedilas fiacutesicas e quiacutemicas159

Se assim fosse os eventos fiacutesicos acidentais

explicariam tudo exaustivamente sem que se pudesse relacionar nada agrave essecircncia das coisas

155

GARDINER op cit p 204 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 156

WWW I zweites Buch sect27 p 216 M I livro II sect27 p 210 157

WWW I zweites Buch sect27 p 216 M I livro II sect27 p 209 158

WWW I zweites Buch sect27 p 216 M I livro II sect27 p 210 (grifos do autor) 159

WWW I zweites Buch sect27 p 211 M I livro II sect27 p 205

- 174 -

e diz Schopenhauer ldquo[] ao fim um caacutelculo solucionaria o enigma do mundordquo160

Poreacutem no

entender do filoacutesofo um processo como esse soacute poderia dar surgimento a seres sem

significaccedilatildeo aleatoriamente formados tal como as nuvens compotildeem figuras ou como se

formam as estalactites No fim das contas equivaleria a degradar a forma substantialis nome

que Aristoacuteteles teria dado a algo equivalente aos graus de objetivaccedilatildeo da Vontade em forma

accidentalis161

Segundo Schopenhauer os eventos fiacutesicos natildeo satildeo aleatoacuterios e indicam

uma ordenaccedilatildeo de procedimentos na qual as Ideias dominadas subsistem nas vencedoras em

funccedilatildeo de resistirem e lutarem por sua proacutepria exteriorizaccedilatildeo162

Como ele explica ldquo[] esse

processo soacute eacute compreensiacutevel pela identidade da Vontade que se manifesta em todas as Ideias e

pelo seu esforccedilo por uma objetivaccedilatildeo cada vez mais elevadardquo163

No caso do organismo

humano por exemplo a tendecircncia de um braccedilo levantado a baixar em funccedilatildeo da gravidade

evidenciaria a luta do fenocircmeno de uma Ideia mais elevada contra as forccedilas quiacutemicas e

fiacutesicas Essa mesma luta se poderia notar tambeacutem nos diversos pequenos incocircmodos que

sempre sente a parte vegetativa do nosso corpo e que seriam devidos agrave resistecircncia das Ideias

inferiores das leis fiacutesicas e quiacutemicas com relaccedilatildeo agrave Ideia superior do organismo164

Ao fim de

tudo poreacutem a vitoacuteria seria das forccedilas naturais universais ldquoPor issordquo escreve Schopenhauer

em geral o fardo da vida fiacutesica a necessidade do sono e por fim da morte

pela qual finalmente por circunstacircncias favoraacuteveis aquelas forccedilas naturais

subjugadas recuperam novamente a mateacuteria arrancada pelo organismo

cansado jaacute pela vitoacuteria reiterada chegando agrave apresentaccedilatildeo de sua essecircncia

sem impedimentos165

A discoacuterdia e a luta portanto satildeo onipresentes na natureza e fazem parte

da essecircncia da Vontade melhor dizendo a natureza consiste precisamente apenas nesses

conflitos166

No mundo animal a discoacuterdia eacute muito niacutetida na medida em que a sobrevivecircncia

de uns depende da supressatildeo de outros No homem por fim a rivalidade chegaria ao ponto

maacuteximo de clareza e terror ou como afirma o filoacutesofo ldquo[] a Vontade de viver se consome a

si mesma e em diferentes figuras eacute seu proacuteprio alimento ateacute chegar por fim no gecircnero

160

WWW I zweites Buch sect27 p 211 M I livro II sect27 p 205 161

WWW I zweites Buch sect27 p 212-213 M I livro II sect27 p 206 162

WWW I zweites Buch sect27 p 215 M I livro II sect27 p 208-209 163

WWW I zweites Buch sect27 p 215 M I livro II sect27 p 209 164

WWW I zweites Buch sect27 p 217 M I livro II sect27 p 210 165

WWW I zweites Buch sect27 p 217 M I livro II sect27 p 210 166

WWW I zweites Buch sect27 p 218 M I livro II sect27 p 211 O filoacutesofo apresenta bastantes e interessantes

exemplos dessa luta universal na natureza que no entanto natildeo temos espaccedilo para detalhar Cf WWW I zweites

Buch sect27 p 208-211 M I livro II sect27 p 211-214

- 175 -

humano que por dominar todos os outros vecirc a natureza como produto para seu uso []rdquo167

Na interpretaccedilatildeo de Cacciola essa divisatildeo interna da Vontade eacute responsaacutevel pelo caraacuteter de

imanecircncia dela pois representa um impulso interno aos fenocircmenos168

Segundo a autora uma

vez que a Vontade eacute una a discoacuterdia interna natildeo pode pertencer a ela enquanto coisa em si

pois isso remeteria a uma divisatildeo que natildeo poderia ser aceita Da perspectiva do fenocircmeno

poreacutem a Vontade eacute fragmentada em muacuteltiplos indiviacuteduos entre os quais os combates satildeo

constantes ldquoErdquo ela escreve

no seu caraacuteter de unicidade natildeo poderia manifestar-se diretamente em forccedilas

e indiviacuteduos que lutam Assim de uma metafiacutesica transcendente monista

passa-se para uma metafiacutesica imanente que adota o ponto de vista da

polaridade exigiacutevel para sua manifestaccedilatildeo ao niacutevel fenomecircnico169

Para Schopenhauer a unidade da Vontade natildeo eacute prejudicada por essa luta

intestina assim como natildeo o eacute em virtude da gradaccedilatildeo das Ideias ou da multidatildeo de indiviacuteduos

existentes Ele considera que a gradaccedilatildeo a multiplicidade e a luta referem-se apenas agrave

objetivaccedilatildeo que expressa mediatamente a essecircncia da Vontade na representaccedilatildeo170

Aleacutem

dessa perspectiva filoacutesofo afirma que a unidade da Vontade tambeacutem pode ser pensada por

outro acircngulo a saber pela dependecircncia que as Ideias superiores mantecircm com relaccedilatildeo agraves

inferiores Com efeito para que possam expressar a Vontade em graus elevados elas

precisam assimilar os graus mais elementares A Ideia de homem por exemplo a mais

aprimorada dentre todas natildeo seria suficiente para expressar sozinha a essecircncia da Vontade e

para que pudesse surgir teria precisado se seguir a uma sequecircncia de graus inferiores

representados por animais plantas e objetos inanimados171

Nas palavras do filoacutesofo ldquo[]

todos eles se complementam para a perfeita objetivaccedilatildeo da Vontade satildeo tatildeo pressupostos na

Ideia de homem quanto as flores das aacutervores pressupotildeem as folhas ramos tronco e raiz

formam uma piracircmide cujo aacutepice eacute o homemrdquo172

Desse modo para que a Vontade se objetive adequadamente suas

gradaccedilotildees devem apresentar um tipo de necessidade interior representada pelo uso que os

seres da natureza fazem uns dos outros em funccedilatildeo de sua preservaccedilatildeo Essa necessidade

interior se manifesta exteriormente diz Schopenhauer no fato de que

167

WWW I zweites Buch sect27 p 218 M I livro II sect27 p 211 168

CACCIOLA M L A questatildeo do finalismo na filosofia de Schopenhauer Discurso ndash Revista do

Departamento de Filosofia da USP nordm 20 1993 79-98 169

Ibidem p 82 170

WWW I zweites Buch sect28 p 215 M I livro II sect 28 p 218 171

WWW I zweites Buch sect28 p 216 M I livro II sect 28 p 218-219 172

WWW I zweites Buch sect28 p 216 M I livro II sect 28 p 219

- 176 -

[] o homem precisa dos animais para sua conservaccedilatildeo estes precisam uns

dos outros conforme seus graus em seguida tambeacutem das plantas que por sua

vez precisam do solo da aacutegua dos elementos quiacutemicos e sua mistura dos

planetas do sol da rotaccedilatildeo e da translaccedilatildeo em torno dele da inclinaccedilatildeo da

ecliacuteptica e assim por diante173

A unidade da Vontade esclareceria uma aparente teleologia da natureza

anunciada pela analogia e a semelhanccedila entre os seres do mundo orgacircnico Esclareceria

tambeacutem a harmonia e a conexatildeo entre todos os pontos e partes do mundo mesmo distantes no

tempo e no espaccedilo bem como a importacircncia da gradaccedilatildeo das objetivaccedilotildees Com efeito

segundo Schopenhauer embora a Vontade seja una os graus de objetivaccedilatildeo natildeo podem se

manifestar de um salto ou de uma soacute vez e eacute que isso explica a essecircncia e a finalidade da

natureza No entender do filoacutesofo

Isso tudo indica um princiacutepio independente da teleologia que entretanto eacute o

fundamento com o qual ela constroacutei ou o material dado previamente para

suas obras e eacute exatamente aquilo que Geoffroy de Saint-Hilaire apresentou

como ldquoelemento anatocircmicordquo Eacute a uniteacute de plan o protoacutetipo fundamental o

mundo animal mais elevado como se fosse o tom voluntariamente

escolhido com o qual aqui a natureza toca174

Tomado em si mesmo cada organismo possuiria uma finalidade interna

voltada para a conservaccedilatildeo do indiviacuteduo e sua espeacutecie expressa na coordenaccedilatildeo e accedilatildeo

integrada entre suas partes A interaccedilatildeo que se pode notar entre os reinos inorgacircnico e

orgacircnico evidenciaria tambeacutem uma finalidade nesse caso externa direcionada para a

conservaccedilatildeo da natureza orgacircnica como um todo ou da vida175

Como dissemos a aparente

teleologia da natureza eacute devida agrave unidade da Vontade que se manifesta completamente em

cada um dos seus fenocircmenos Isso significa que cada uma das Ideias eacute um ato singular

simples e distinto no qual a Vontade exprime sua essecircncia em um niacutevel maior ou menor

enquanto cada indiviacuteduo eacute um desses atos no tempo e no espaccedilo176

Assim a maior ou menor

perfeiccedilatildeo de cada Ideia determinaria o modo de sua objetivaccedilatildeo nos mais imperfeitos a Ideia

seria uma e a mesma em todos os fenocircmenos que a expressam enquanto nos mais perfeitos

seriam necessaacuterios diversos desenvolvimentos no tempo para completar a expressatildeo da sua

essecircncia

173

WWW I zweites Buch sect28 p 217 M I livro II sect 28 p 219 174

WWW II Kap 26 p 388 M II cap 26 p 399-400 (grifos do autor) 175

WWW I zweites Buch sect28 p 217 M I livro II sect28 p 220 176

WWW I zweites Buch sect28 p 218 M I livro II sect28 p 220

- 177 -

De acordo com isso uma forccedila universal da natureza se expressaria de

forma simples num ato uacutenico e idecircntico em todos os fenocircmenos Jaacute a planta natildeo manifestaria

a Ideia correspondente de uma soacute vez e de modo simples mas precisaria do desenvolvimento

sucessivo de seus oacutergatildeos no tempo Schopenhauer oferece uma imagem ilustrativa desse

processo por meio da repeticcedilatildeo que uma fibra inicial realiza de si mesma uma aacutervore se

forma como um complexo que manifesta uma Ideia una A Vontade seria verificada no todo e

em cada uma das partes como as folhas ou galhos de modo que cada um desses fenocircmenos

particulares da planta seria a exteriorizaccedilatildeo de um ldquoagregado sistemaacuteticordquo177

O animal

manifestaria sua Ideia pelo desenvolvimento da sua figura no tempo finalizando o processo

com as accedilotildees que expressariam seu caraacuteter empiacuterico o mesmo de sua espeacutecie Por fim o ser

humano objetivaria a Ideia que lhe corresponde por meio do seu caraacuteter empiacuterico

desenvolvido tambeacutem no tempo e em atos singulares ancorados no caraacuteter inteligiacutevel

ldquoAssimrdquo explica Schopenhauer ldquocomo a forma humana em geral corresponde agrave vontade

humana em geral a vontade individual modificada o caraacuteter do indiviacuteduo corresponde agrave

formaccedilatildeo corporal individual que eacute absolutamente e em todas as partes carateriacutestica e

expressivardquo178

Por conseguinte cada forccedila natural cada espeacutecie vegetal ou espeacutecie

animal expressa sua Ideia respectiva ou seja eacute fenocircmeno de um caraacuteter inteligiacutevel ou ato

indiviso da Vontade dado fora do tempo No caso da natureza inorgacircnica as exteriorizaccedilotildees

da Ideia satildeo sempre iguais e dadas de modo uacutenico e o caraacuteter empiacuterico coincide com o

inteligiacutevel Sem deixar de ser una a Ideia seria expressa no organismo por atos sucessivos

que constituiriam suas partes e o caraacuteter inteligiacutevel seria conhecido pela soma das

exteriorizaccedilotildees do caraacuteter empiacuterico Nesse caso a harmonia e encadeamento das partes do

corpo orgacircnico mostraratildeo a unidade da Ideia e ldquoPor issordquo escreve Schopenhauer

ldquoentendemos essas diferentes partes e funccedilotildees do organismo como reciprocamente meios e

fins umas das outras e o organismo como o fim de todas elasrdquo179

Natildeo obstante o filoacutesofo

ressalta que o desdobramento da Ideia em atos constitutivos do organismo assim como a

relaccedilatildeo entre as partes e funccedilotildees dele guiada pela causalidade natildeo podem ser referidos agrave

Vontade como coisa em si Esse seria apenas seu modo de manifestaccedilatildeo sua objetidade e

tanto a legalidade dos fenocircmenos inorgacircnicos quanto a finalidade dos orgacircnicos seriam

produtos do intelecto Conforme a explicaccedilatildeo de Cacciola

177

WWW I zweites Buch sect26 p 190 M I livro II sect26 p 194 178

WWW I zweites Buch sect20 p 162 M I livro II sect20 p 167 179

WWW I zweites Buch sect28 p 221 M I livro II sect 28 p 223

- 178 -

Eacute o caraacuteter inteligiacutevel como ato uacutenico e livre de manifestaccedilatildeo da Vontade

que permite compreender o acordo e a interaccedilatildeo das partes do organismo e a

harmonia da natureza Isto significa em resumo a aboliccedilatildeo da

temporalidade para que se exiba o caraacuteter aparente da regularidade e

intencionalidade do mundo dos fenocircmenos ligado a uma multiplicidade

tambeacutem aparente Excluindo-se a referecircncia ao tempo ressurgem sob a

aparecircncia a unidade o em si o caraacuteter inteligiacutevel A remissatildeo a uma

Vontade sem fim natildeo pode mesmo ser fundamento de uma finalidade em-si

das coisas do mundo mas apenas esclarece que elas parecem ser assim por

se referirem enquanto muacuteltiplas a uma unidade A teleologia natildeo passa de

uma harmonia da natureza que evoca a unidade da Vontade ou o ponto de

vista da Vontade una180

A finalidade externa isto eacute a harmonia entre os fenocircmenos da natureza

empiacuterica como um todo expressaria a unidade da Vontade do ponto de vista do conjunto do

mundo como representaccedilatildeo Nas palavras de Schopenhauer ela eacute a ldquo[] eacute objetidade da

Vontade una e indivisa a Ideia que se relaciona com todas as demais Ideias como a harmonia

com as vozes isoladas daiacute que aquela unidade da Vontade tenha de se mostrar tambeacutem na

concordacircncia de todos os fenocircmenos entre sirdquo181

Seria entatildeo uma adaptaccedilatildeo e adequaccedilatildeo

muacutetua entre todos os fenocircmenos um consensus naturae natildeo dado poreacutem de um ponto de

vista temporal uma vez que a Ideia estaacute fora do tempo182

Para compreender esse ponto

segundo o filoacutesofo o correto eacute pensar retrospectivamente observando o modo como cada

espeacutecie se adapta a condiccedilotildees preacutevias assim como essas circunstacircncias preacutevias adiantam os

seres vindouros No texto ldquoSchopenhauer lecteur de Lamarck le probleme des causes

finalesrdquo Goldschmidt afirma que a noccedilatildeo de adaptaccedilatildeo ao meio implicada no consensus

naturae aproxima o filoacutesofo das ideias de Lamarck183

Para esse autor Schopenhauer natildeo

citaria Lamarck nominalmente por discordar do modo como este explica a adaptaccedilatildeo a saber

confundindo o fenocircmeno com a coisa em si Por desconhecer a idealidade do tempo Lamarck

natildeo teria percebido que as transformaccedilotildees nas espeacutecies animais se deviam a algo que estaacute para

aleacutem de todas as relaccedilotildees temporais184

Em funccedilatildeo disso teria concebido a constituiccedilatildeo dos

corpos dos animais como algo formado pouco a pouco no decurso do tempo

Na sua argumentaccedilatildeo sobre a teleologia Schopenhauer natildeo daacute espaccedilo agrave

pressuposiccedilatildeo de que a formaccedilatildeo dos organismos seja guiada por um intelecto externo ao

mundo Como escreve Goldschmidt ldquoO finalismo segundo Schopenhauer eacute o mesmo que

180

CACCIOLA M L A questatildeo do finalismo na filosofia de Schopenhauer Discurso ndash Revista do

Departamento de Filosofia da USP nordm 20 1993 p 88 181

WWW I zweites Buch sect28 p 222 M I livro II sect 28 p 224 182

WWW I zweites Buch sect28 p 223 M I livro II sect 28 p 225 183

GOLDSCHMIDT V Eacutecrits Eacutetudes de Philosophie Moderne Tome II Paris VRIN 1984 p 215 184

Ibidem p 215-216

- 179 -

havia sido definido e aplicado por Aristoacuteteles isto eacute uma teleologia sem teologiardquo185

Cacciola explica de modo interessante como a argumentaccedilatildeo de Schopenhauer exclui a

teologia De acordo com ela a concepccedilatildeo do filoacutesofo acerca das causas finais ao contraacuterio do

que poderia parecer natildeo reforccedila a hipoacutetese de uma inteligecircncia ordenadora Na verdade a

convicccedilatildeo da inexistecircncia de qualquer finalidade intriacutenseca eacute que exigiria um desiacutegnio

exterior enquanto a admissatildeo de que cada organismo eacute sua proacutepria vontade legitimaria a

noccedilatildeo de finalidade sem se apelar para algo externo186

Na medida em que cada parte do

organismo existe para sua preservaccedilatildeo diz ela ldquoTudo nele tem de ser conforme a um fim O

que garante a autonomia do organismo em relaccedilatildeo a qualquer interferecircncia externa tanto de

um entendimento quanto de uma vontade eacute o rigoroso finalismo natildeo-antropomoacuterfico de sua

constituiccedilatildeordquo187

Dessa forma a anterioridade no tempo seria relativa aos fenocircmenos das

Ideias mas natildeo a elas mesmas Natildeo se pode dizer que haja Ideias anteriores ou posteriores

pois os fenocircmenos mais elevados (Ideias novas) adaptam-se ao seu meio (Ideias preacutevias)

tanto quanto este se adapta a eles e todos possuem entatildeo os mesmos direitos188

Para

Schopenhauer Lamarck erra ao introduzir um elemento temporal na ideia do consensus

naturae a saber a concepccedilatildeo de que os oacutergatildeos animais satildeo formados paulatinamente no

decurso do tempo Se assim fosse diz o filoacutesofo na busca de adaptaccedilatildeo entre o ambiente e

seus proacuteprios instrumentos e atributos todas as espeacutecies teriam de estar extintas189

No seu

modo de ver uma interpretaccedilatildeo correta tem de considerar que o tempo se refere apenas ao

fenocircmeno ou seja a adaptaccedilatildeo das espeacutecies tem de ser colocada na conta da objetivaccedilatildeo da

Vontade natildeo dela em si mesma Assim ao contraacuterio do que pensava Lamarck os oacutergatildeos ou

instrumentos das espeacutecies animais natildeo seriam utilizados em funccedilatildeo de sua existecircncia preacutevia

mas a vontade de viver de determinado modo eacute que levaria agrave constituiccedilatildeo de oacutergatildeos e

instrumentos especiacuteficos Conforme Goldschmindt Schopenhauer avaliou que Lamarck natildeo

teria podido supor que a vontade do animal era a coisa em si e por isso o inseriu no grupo dos

que julgavam o intelecto como precedente ldquoNesse casordquo afirma Goldschmidt

[] o entendimento precederia a vontade eacute porque teria compreendido o uso

que poderia fazer de sua organizaccedilatildeo que o animal teria escolhido usaacute-lo

185

Ibidem p 219 186

CACCIOLA M L A questatildeo do finalismo na filosofia de Schopenhauer Discurso ndash Revista do

Departamento de Filosofia da USP nordm 20 1993 p 90 187

Ibidem loc cit 188

WWW I zweites Buch sect28 p 224 M I livro II sect28 p 226 189

WN p 365 VN p 88

- 180 -

Mas de fato sabemos que a vontade eacute que eacute primeira Deve-se entatildeo

preferir o outro termo da alternativa eacute porque o animal desejaria adotar tal

modo de vida que sua organizaccedilatildeo eacute adaptada a ele []190

Portanto assim como os animais agem por instinto sem conhecimento

algum mas parecem estar seguindo um conceito tambeacutem a natureza como um todo o faz isto

eacute aparenta seguir uma finalidade que na verdade natildeo segue

Em siacutentese na concepccedilatildeo de Schopenhauer a teleologia da natureza natildeo

foi produzida por um intelecto apenas evidencia ldquo[] o fenocircmeno da unidade de uma

Vontade que concorda consigo mesmardquo191

No capiacutetulo 26 de O MundoII ele argumenta

que embora o ser humano soacute possa criar algo que possua finalidade utilizando um conceito de

fim isso natildeo autoriza a concluir que o mesmo ocorra na natureza192

Nas palavras dele ldquoEla

realiza sem ponderaccedilatildeo e sem conceito de fim o que parece tatildeo intencional e tatildeo ponderado

porque o faz sem representaccedilatildeo cuja origem eacute totalmente secundaacuteriardquo193

Sobre esse ponto

Cacciola explica que Schopenhauer assimilou a liccedilatildeo kantiana segundo a qual o intelecto soacute

consegue compreender a natureza dos processos orgacircnicos comparando-os com as produccedilotildees

humanas que levam em conta uma finalidade preacutevia O conceito de causaccedilatildeo linear e

mecacircnica eacute inuacutetil no esclarecimento da natureza orgacircnica e ela afirma ldquoEacute diante disso que a

analogia com as obras humanas torna-se eficaz para servir de fio condutor para o estudo dos

seres organizados natildeo podendo no entanto explicar objetivamente a origem e a existecircncia de

tais seres jaacute que a necessidade de compreendecirc-los eacute somente subjetivardquo194

Como resultado a ligaccedilatildeo dos seres naturais com o conceito de fim natildeo

seria procedente da proacutepria coisa e sim realizada pelo intelecto que acrescentaria os fins aos

seres orgacircnicos do mesmo modo como cria a regularidade das figuras geomeacutetricas Entatildeo diz

Schopenhauer ldquo[] em certo sentido admira-se com sua proacutepria obrardquo195

Por essas razotildees

do mesmo modo como as causas eficientes se mostram um bom fio condutor para o estudo da

natureza inorgacircnica a finalidade tambeacutem se configura um bom fio condutor para a

investigaccedilatildeo da natureza orgacircnica Natildeo obstante natildeo se pode por isso dizer que a finalidade

seja constitutiva dos seres naturais nem que explique a existecircncia deles Ela pode ser tomada

190

GOLDSCHMIDT V Eacutecrits Eacutetudes de Philosophie Moderne Tome II Paris VRIN 1984 p 217 (traduccedilatildeo

nossa) 191

WWW I zweites Buch sect28 p 226 M I livro II sect28 p 227 (grifos do autor) 192

WWW II Kap 26 p 383-384 M II cap 26 p 395-396 193

WWW II Kap 26 p 384 M II cap 26 p 396 194

CACCIOLA M L A questatildeo do finalismo na filosofia de Schopenhauer Discurso ndash Revista do

Departamento de Filosofia da USP nordm 20 1993 p 83 195

WWW II Kap 26 p 385 M II cap 26 p 396

- 181 -

apenas como regulativa pois embora os fins e as causas sejam supostos pelo intelecto como

necessaacuterios natildeo podem ser atribuiacutedos agraves coisas em si mesmas

Na interpretaccedilatildeo de Victor Goldschmidt quando a noccedilatildeo de finalidade eacute

indicada por Schopenhauer em O MundoII como fio condutor das ciecircncias do organismo

adquire com isso o estatuto de um princiacutepio constitutivo e natildeo meramente regulador196

Caso

natildeo fosse assim os fenocircmenos orgacircnicos teriam de ser reduzidos agraves leis fiacutesicas baacutesicas algo

que o filoacutesofo natildeo aprovaria Como esse autor escreve

A finalidade eacute o uacutenico conceito adequado que nos permite compreender o

mundo orgacircnico Sem ela isto eacute se se reduzisse a ciecircncia natural agrave simples

causalidade o mundo orgacircnico natildeo apenas nos permaneceria impenetraacutevel

como tambeacutem seria entregue agraves explicaccedilotildees reducionistas e reconduzido agraves

forccedilas gerais que a fiacutesica toma em consideraccedilatildeo []197

Natildeo obstante Schopenhauer argumentaria cuidadosamente acerca da

finalidade para que natildeo fosse tomada como a escolha intencional de um alvo Para

Goldschmidt o filoacutesofo retorna ao ensinamento de Aristoacuteteles que sustenta a ideia de causa

final sem remetecirc-la a uma providecircncia divina e afasta qualquer antropomorfismo da sua

noccedilatildeo de finalidade com a identificaccedilatildeo de fins e meios na atividade da natureza198

Na visatildeo de Schopenhauer os objetos da arte humana possuem realmente

uma analogia com as criaccedilotildees da natureza mas a analogia natildeo seria exata No caso da arte a

vontade para a realizaccedilatildeo da obra eacute distinta da proacutepria obra e o material e a representaccedilatildeo satildeo

requeridos anteriormente agrave existecircncia dela199

Portanto a finalidade tem de preceder agrave

produccedilatildeo e orientaacute-la Nos produtos da natureza ao contraacuterio natildeo existiria nem seria

necessaacuteria nenhuma representaccedilatildeo tampouco haveria separaccedilatildeo entre a vontade a obra e a

mateacuteria com que eacute feita Posto que o processo de criaccedilatildeo na arte difere do procedimento da

natureza natildeo pode servir para explicaacute-la ldquoPoisrdquo escreve o filoacutesofo

aqui o mestre a obra e o material satildeo um e o mesmo Por isso todo

organismo eacute uma obra-prima ostensivamente perfeita Aqui a Vontade natildeo

teve primeiro a intenccedilatildeo conheceu depois a finalidade entatildeo adaptou os

meios a ela e venceu o material mas seu querer eacute imediatamente tambeacutem a

finalidade e a consumaccedilatildeo portanto ela natildeo precisou antes de nenhum meio

estranho para dominar Aqui foram um e o mesmo o querer o fazer e o

resultar Por conseguinte o organismo se apresenta como uma maravilha e

196

GOLDSCHMIDT V Eacutecrits Eacutetudes de Philosophie Moderne Tome II Paris VRIN 1984 p 214 197

Ibidem p 214-215 (traduccedilatildeo nossa) 198

Ibidem p 216 199

WN p 378 VN p 102

- 182 -

natildeo se pode comparaacute-lo com nenhuma obra humana projetada pela lacircmpada

do conhecimento200

36 ndash Fundamentos do mundo como Vontade

Assim como a teoria do conhecimento a metafiacutesica schopenhaueriana

nasce com diversos requisitos a cumprir O filoacutesofo estava convencido de que a coisa em si

natildeo deveria ser descartada do seu sistema mas a justificaccedilatildeo da necessidade dela sua

deduccedilatildeo e sua conceituaccedilatildeo natildeo poderiam distanciaacute-lo dos fundamentos do idealismo O

principal aspecto deste uacuteltimo a ser preservado segundo pensamos eacute a interdiccedilatildeo do acesso agrave

transcendecircncia que parece ter orientado toda a estruturaccedilatildeo da metafiacutesica da Vontade O

estabelecimento de um ponto de apoio firme para os fenocircmenos era imprescindiacutevel para

Schopenhauer assim como foi para Jacobi mas teria de ser encontrado sem se recorrer a

elementos transcendentes E na nossa interpretaccedilatildeo a uacutenica maneira de satisfazer essa

exigecircncia era pelo estabelecimento de um lastro metafiacutesico imanente ao mundo como

representaccedilatildeo acessando-se a coisa em si com um movimento perpendicular para dentro

Esse movimento perpendicular por seu turno teve de ser

milimetricamente pensado porque tambeacutem teria de atender a quesitos muito exigentes Por

um lado teria de escapar ao ciacuterculo do conhecimento meramente empiacuterico caso natildeo quisesse

ser apenas o produto de mais um ldquoesquilo na rodardquo Por outro natildeo poderia apelar para

entidades espirituais miacutesticas ou de qualquer esfera separada do mundo concreto da

experiecircncia Por isso Schopenhauer tentou formular um modo especial de exame da

representaccedilatildeo que sem ir aleacutem dela permitisse interpretar a realidade conhecer diretamente

seu nuacutecleo e desvendar seus hieroacuteglifos Assim para compreender o centro das coisas aquilo

sempre que resta desconhecido pelo estudo empiacuterico do mundo ele propotildee uma investigaccedilatildeo

que parte do interior de noacutes mesmos e demostra nossa identidade com o restante do mundo

200

WN p 377 VN p 101

- 183 -

isto eacute do microcosmo com o macrocosmo O mundo como Vontade eacute entatildeo deduzido do

querer individual como de seu alicerce embora permaneccedila ambiacuteguo o conhecimento que cada

um possui dele assim como a relaccedilatildeo desse conhecimento com a representaccedilatildeo De um lado

em algumas obras schopenhauerianas o conhecimento do querer individual aparece como

obscuro em outras como o mais claro dentre todos De outro eacute difiacutecil precisar o estatuto

desse conhecimento que deve acessar a coisa em si mas natildeo pode fazecirc-lo diretamente posto

que preserva a forma a priori do tempo

A identificaccedilatildeo do corpo com a vontade individual e o argumento da

analogia satildeo os passos que Schopenhauer daacute para demonstrar a Vontade como a base de todo

o existente Segundo pensamos o conceito de objetidade foi o que permitiu que sem o

recurso agrave transcendecircncia a Vontade fosse identificada com o nuacutecleo metafisico do indiviacuteduo

Na medida em que corpo e coisa em si satildeo descritos como um e o mesmo natildeo resta espaccedilo

para causaccedilatildeo de nenhuma espeacutecie isto eacute nem para a deduccedilatildeo de uma inteligecircncia criadora

externa ao mundo nem para a busca de uma relaccedilatildeo causal entre vontade individual e corpo

individual O argumento a analogia por sua vez permitiu a ampliaccedilatildeo do escopo daquela

demonstraccedilatildeo e apontou para a identidade de todos os objetos do universo empiacuterico Entatildeo

vontade individual e corpo individual revelaram-se o mesmo e o mundo se identificou com a

Vontade que se manifesta inteira em cada representaccedilatildeo e no conjunto da experiecircncia

A unidade da Vontade e a identidade do mundo como um todo coeso

tornam necessaacuterio detalhar a origem dos infinitos indiviacuteduos e objetos No entanto o

desmembramento do qual surgem os muacuteltiplos fenocircmenos natildeo pode atingir a Vontade pois a

coisa em si natildeo participa das formas da representaccedilatildeo e permanece una e indivisa O problema

se torna entatildeo explicar o modo como o tempo pode introduzir modificaccedilotildees nas objetivaccedilotildees

sem anular unidade da coisa em si Nesse sentido as Ideias foram definidas como as formas

eternas e imutaacuteveis das coisas responsaacuteveis pela intermediaccedilatildeo entre e objetos singulares e a

Vontade una O filoacutesofo defende entatildeo que cada Ideia eacute um grau de objetivaccedilatildeo da Vontade

um ato uacutenico desta que contudo tem seu desenvolvimento no tempo Os conceitos de caraacuteter

inteligiacutevel e caraacuteter empiacuterico foram imprescindiacuteveis para vincular o tempo somente ao lado do

mundo correspondente agrave representaccedilatildeo

Por todas essas razotildees a metafiacutesica schopenhaueriana natildeo poderia se

deter num idealismo radical Segundo pensamos eacute parte fundamental dela uma relaccedilatildeo

especial com o empiacuterico uma vez que seu ente metafiacutesico proacuteprio eacute imanente ao mundo ou

- 184 -

seja natildeo eacute um espiacuterito criador apartado e transcendente nem um sujeito transcendental

absoluto que o gerasse a partir de si mesmo A metafiacutesica tambeacutem natildeo pode ser baseada em

conceitos e abstraccedilotildees cujos resultados satildeo paacutelidos reflexos de intuiccedilotildees e Schopenhauer

insiste que natildeo se deve deslizar acima da experiecircncia ou partir de teologias Para ele a

metafiacutesica deve estar estreitamente ligada ao mundo de modo que a fisiologia e o

conhecimento empiacuterico em geral tecircm de dar sustentaccedilatildeo a ela como as realidades a que no

fim das contas estaacute relacionada Sua filosofia natildeo gostaria de pairar sobre o mundo natildeo

pretende ser um devaneio criado por uma cabeccedila de anjo alada

Por conseguinte o ponto de vista objetivo de consideraccedilatildeo eacute tatildeo

importante quanto o subjetivo os hieroacuteglifos a serem decifrados natildeo satildeo outros senatildeo aqueles

que o mundo daacute a conhecer empiricamente O nascimento e desenvolvimento de plantas e

animais a atuaccedilatildeo das leis naturais as condutas humanas nos mais variados acircmbitos da vida

tudo deve ser explicado pela metafiacutesica da Vontade O lado externo desta que natildeo eacute

causado mas idecircntico ao interno eacute seu caraacuteter de objeto sua objetidade cuja compreensatildeo e

descriccedilatildeo satildeo realizadas pelas ciecircncias naturais As caracteriacutesticas fiacutesicas e quiacutemicas dos

corpos orgacircnicos dos inorgacircnicos e do mundo natural como um todo satildeo exteriorizaccedilotildees da

Vontade e conhecer o corpo eacute conhececirc-la Daiacute que para o filoacutesofo haja elementos no acircmbito

fenomecircnico que sempre resistem a qualquer explicaccedilatildeo e que por isso mesmo indicam a coisa

em si na representaccedilatildeo Essa eacute inclusive a diferenccedila entre os conhecimentos empiacutericos e os

puros os quais podem ser explicados ateacute o limite enquanto aqueles natildeo De fato conteuacutedos

ligados apenas ao princiacutepio de razatildeo estatildeo a priori no intelecto podem ser desdobrados sem

quaisquer obstaacuteculos enquanto os conteuacutedos empiacutericos a posteriori natildeo satildeo completamente

cognosciacuteveis pois remetem a algo que natildeo participa das formas da representaccedilatildeo

Ao que nos parece as questotildees relativas agrave teleologia e agrave discoacuterdia

presentes na natureza se tornam complicadas porque tecircm de levar em conta esse aspecto

empiacuterico da filosofia schopenhaueriana As funccedilotildees e a materialidade de todas as partes dos

seres orgacircnicos adaptam-se e moldam-se mutuamente assim como o universo empiacuterico

tomado em seu conjunto adapta e conforma todos os seus objetos Trata-se de algo que

nenhuma consideraccedilatildeo objetiva do mundo poderia negligenciar Finalidade interna e

finalidade externa satildeo entatildeo reconhecidas por Schopenhauer na natureza mas dificilmente

podem ser acomodadas agrave parte transcendental de sua filosofia Eacute certo que ele afirma ser o

conceito de finalidade um mero fio condutor para a investigaccedilatildeo da natureza natildeo constitutivo

- 185 -

dela Assim como a regularidade das figuras geomeacutetricas a finalidade seria uma criaccedilatildeo do

intelecto Poreacutem se eacute inequiacutevoco que as caracteriacutesticas das figuras geomeacutetricas adveacutem do

princiacutepio de razatildeo do ser caberia perguntar de onde proveacutem a noccedilatildeo de finalidade

A discoacuterdia intriacutenseca agrave natureza tambeacutem natildeo pode ser ignorada por uma

filosofia que valoriza a investigaccedilatildeo empiacuterica Os fenocircmenos se alimentam dos proacuteprios

fenocircmenos dividem os mesmos espaccedilos e os mesmos tempos e o pessimismo

schopenhaueriano enfatiza que todos os indiviacuteduos satildeo simultaneamente algozes e viacutetimas

uns dos outros No entanto como explicar o porquecirc de a Vontade lutar contra si mesma de

querendo ferozmente se afirmar mortificar-se e aniquilar-se A saiacuteda eacute entatildeo acrescentar um

predicado que a joga contra si mesma a saber a autocontradiccedilatildeo Com isso entretanto

surgem outras questotildees como a de conciliar a autocontradiccedilatildeo com a unidade da Vontade

pela qual ela estaacute inteira e indivisa em cada ser animado e cada objeto inanimado O problema

aqui eacute que na medida em que todas e cada um das coisas existentes satildeo exteriorizaccedilotildees da

Vontade uacutenica a luta entre seus fenocircmenos eacute luta dela consigo mesma

Por fim na nossa interpretaccedilatildeo a importacircncia crucial dada por

Schopenhauer ao lado empiacuterico de sua filosofia daacute origem a impasses cada vez que tem de

ser aproximado do lado metafiacutesico O ideal e o real estatildeo em oposiccedilatildeo mas devem ser

conectados no tratamento dos problemas filosoacuteficos que exigem explicaccedilatildeo tanto

transcendental quanto metafiacutesica Esse eacute o caso por exemplo da antinomia da faculdade de

conhecimento e das outras trecircs questotildees que o filoacutesofo lista O intelecto eacute tanto fiacutesico quanto

metafiacutesico e as caracteriacutesticas que tem em uma perspectiva satildeo excluiacutedas ou deslocadas na

outra Enquanto fiacutesico sua origem deve estar ligada ao princiacutepio de razatildeo suficiente e

enquanto metafiacutesico sua origem deve estar ligada agrave Vontade De um lado tem um nascimento

no tempo no outro eacute atemporal de um lado ocupa lugar no espaccedilo de outro eacute inextenso de

um lado eacute material de outro imaterial A dificuldade eacute que o intelecto eacute tudo isso

simultaneamente e faz parte de um uacutenico mundo Cada vez que se investiga qualquer questatildeo

relacionada a ele sua origem por exemplo obtecircm-se respostas incompatiacuteveis A consideraccedilatildeo

de que satildeo dois lados dois pontos de vista diferentes de observaccedilatildeo segundo pensamos natildeo

atenua a situaccedilatildeo A natildeo ser que queiramos sustentar uma espeacutecie de esquizofrenia na qual

Vontade e representaccedilatildeo sejam eternamente paralelas

A questatildeo relativa a mecanicismo e finalismo segundo pensamos revela

uma estrutura semelhante Do ponto de vista metafiacutesico natildeo podemos falar em finalidade

- 186 -

pois a Vontade natildeo possui fim algum mas da perspectiva empiacuterica eacute difiacutecil sustentar que as

causas na natureza satildeo apenas de tipo mecacircnico O problema da liberdade por sua vez coloca

em contraste a determinaccedilatildeo inflexiacutevel dos eventos empiacutericos pelo princiacutepio de razatildeo entre

eles as accedilotildees humanas e a liberdade absoluta da Vontade metafiacutesica que irrompe na vontade

individual De modo semelhante a aparecircncia de intencionalidade no destino que se nota

considerando a vida concreta de um indiviacuteduo diverge do caraacuteter natildeo racional e da ausecircncia

de objetivos que foram sustentados no lado metafiacutesico da filosofia

- 187 -

Capiacutetulo 4 ndash Interpretaccedilotildees paradigmaacuteticas e anaacutelise pessoal

41 ndash Recepccedilatildeo da filosofia schopenhaueriana

Em 1965 Arthur Huumlbscher proferiu duas palestras sobre a posiccedilatildeo de

Schopenhauer no contexto da filosofia criacutetica uma na Sociedade Real Norueguesa de

Ciecircncias e outra na Universidade de Frankfurt Em 1966 as duas palestras foram reunidas e

desenvolvidas no texto ldquoSchopenhauer in der philosophischen Kritikrdquo publicado no Jahrbuch

der Schopenhauer-Gesellschaft daquele ano1 Nesse texto Huumlbscher aborda a trajetoacuteria do

pensamento schopenhaueriano desde o iniacutecio com as avaliaccedilotildees que Da quaacutedrupla raiz

recebeu jaacute na sua primeira ediccedilatildeo Segundo o relato desse autor as ideias de Schopenhauer

quase sempre foram mal compreendidas ou mal interpretadas e muitas vezes recebidas com

desdeacutem2 Todas as obras e todos os campos da sua filosofia receberam criacuteticas e avaliaccedilotildees

nas quais o tema da contradiccedilatildeo eacute constante Huumlbscher avanccedila ateacute seus contemporacircneos

apontando tambeacutem as influecircncias que o filoacutesofo exerceu sobre grandes pensadores

posteriores

Entre os primeiros leitores de Schopenhauer estiveram Schulze Georg

Michael Klein e um escritor anocircnimo os quais pouco depois da publicaccedilatildeo de Da quaacutedrupla

raiz ainda em 1814 teriam se debruccedilado sobre a dissertaccedilatildeo de modo criacutetico3 Em 1820

Johann F Herbart teria feito o mesmo baseando-se na primeira ediccedilatildeo da obra capital do

filoacutesofo Antes de Herbart em 1819 Friedrich Ast tambeacutem teria analisado O Mundo

identificando-se como A bem como um autor anocircnimo tendo ambos concordado

parcialmente com a obra schopenhaueriana Diversos outros se somaram a esses como J G

Raumltze e Friedrich Eduard Beneke ambos em 1820 Whilhelm Traugott Krug em 1821 Carl

1 HUumlBSCHER A Schopenhauer in der philosophischen Kritik In Schopenhauer-Jahrbuch 47 1966 p 29-71

2 Ibidem p 30

3 Ibidem p 33-35

- 188 -

Fortlage em 1845 Adolph Cornill em 1856 e Friedrich Ueberweg em 18664 De acordo

com Huumlbscher houve muita incompreensatildeo sobre o significado da Vontade frequentemente

associado ao conhecimento que Schopenhauer teria adquirido do pensamento de Jakob

Boumlhme em suas leituras dos textos de Schelling Aleacutem disso um traccedilo caracteriacutestico

avaliaccedilotildees da filosofia schopenhaueriana teria sido a aceitaccedilatildeo parcial da sua esteacutetica e a

rejeiccedilatildeo da sua eacutetica como um todo5

A partir de 1830 iniciou-se um movimento de resposta agraves criacuteticas feitas a

Schopenhauer do qual participaram principalmente Frauenstaumldt Friedrich Dorguth C G

Baumlhr e Julius Bahnsen Naquele momento o tema das contradiccedilotildees era o mais importante e

conforme Huumlbscher ainda era discutido em sua proacutepria eacutepoca6 Huumlbscher descreveu trecircs das

criacuteticas mais destacadas relacionadas a contradiccedilotildees entre as quais estaacute em primeiro lugar o

tema deste trabalho que foi apontado por Adolf Cornill Rudolf Seydel Kuno Fischer

Johannes Volkelt Ernst Cassirer e outros Em segundo lugar estaria uma questatildeo intitulada

ciacuterculo do fenomenalismo apontado por Karl Ludwig Michelet Albert Thilo Eduard von

Hartmann e outros Nesse ciacuterculo o problema estaria na possibilidade de conhecimento da

Vontade na autoconsciecircncia que natildeo pode ser conciliada com a descriccedilatildeo dela como coisa em

si Para os defensores dessa posiccedilatildeo se a Vontade eacute a coisa em si natildeo pode se tornar objeto

de conhecimento e inversamente se pode ser conhecida natildeo eacute a coisa em si7 Em uacuteltimo

lugar Huumlbscher menciona o problema que considera o mais preocupante relativo agrave

autocontradiccedilatildeo da Vontade na sua negaccedilatildeo eacutetica A apariccedilatildeo da liberdade metafiacutesica da

Vontade no seu fenocircmeno que no entanto continua existindo na seacuterie temporal teria sido

apontada por Herbart e considerada insoluacutevel ateacute mesmo por seguidores de Schopenhauer

como Frauenstaumldt Becker e Adam von Doss8 Aliada a esse ponto estaria ainda a dificuldade

de justificar por que a supressatildeo de um indiviacuteduo natildeo significa a supressatildeo do mundo uma

vez que a Vontade eacute una e indivisiacutevel9

Os escritos de Frauenstaumldt permitem acompanhar mais de perto esse

contexto de avaliaccedilotildees do pensamento de Schopenhauer Ele publicou pela primeira vez as

obras completas do filoacutesofo escreveu introduccedilotildees artigos cartas e memoacuterias nos quais

4 Ibidem p 35-40

5 Ibidem p 40-41

6 Ibidem p 48

7 Ibidem p 50

8 Ibidem p 50-51

9 Ibidem p 51

- 189 -

apresenta seu entendimento da filosofia schopenhaueriana bem como responde a diversas

criacuteticas feitas a ela por contemporacircneos Abordaremos brevemente as avaliaccedilotildees discutidas

por Frauenstaumldt para situarmos as objeccedilotildees feitas especificamente agrave antinomia da faculdade

de conhecimento que seratildeo analisadas no proacuteximo item

Em 1854 Frauenstaumldt publicou suas Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche

Philosophie10

nas quais expotildee e explica os temas centrais da filosofia schopenhaueriana e

especialmente nas cartas 27 e 28 argumenta contra alguns de seus criacuteticos Na carta 27 ele

menciona um texto publicado em 1852 na Zeitschrift uumlber Philosophie und philosophische

Kritik no qual Johann E Erdmann aponta uma antiacutetese entre as filosofias de Schopenhauer e

de Herbart11

Para Frauenstaumldt essa avaliaccedilatildeo eacute errocircnea pois embora em sentidos opostos

ambos seriam kantianos e teriam em comum tambeacutem as criacuteticas a Fichte e a Schelling

Frauenstaumldt menciona ainda o posfaacutecio de Immanuel Hermann von Fichte agravequele texto no

qual este afirma que o sistema schopenhaueriano eacute fraco e vulneraacutevel um idealismo unilateral

que teria sido refutado por Herbart12

No entendimento de Frauenstaumldt a questatildeo remete ao

modo como idealismo e realismo se relacionam em Schopenhauer modo esse que deveria ser

entendido dinamicamente e natildeo como um idealismo puro e simples tampouco como um

realismo nu e cru13

A filosofia schopenhaueriana seria simultaneamente idealista e realista14

A carta 28 expotildee trecircs objeccedilotildees que foram feitas a Schopenhauer nessa

eacutepoca15

Frauenstaumldt responde ao seu interlocutor que supostamente apontou contradiccedilotildees e

afirmaccedilotildees natildeo fundamentadas na obra do filoacutesofo apoiado nas posiccedilotildees que o professor da

Universidade de Jena Carl Fortlage havia defendido na obra Genetische Geschichte der

Philosophie seit Kant16

publicada em 1852 A primeira e a segunda contradiccedilotildees

apresentadas por Frauenstaumldt podem ser remetidas ao segundo caso apontado por Huumlbscher

que indicamos acima Em primeiro lugar haveria uma contradiccedilatildeo fundamental entre a

indestrutibilidade da Vontade como coisa em si e a possibilidade de autossupressatildeo metafiacutesica

10

FRAUENSTAumlDT J Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1854 11

ERDMANN J E Schopenhauer und Herbart eine Antithese Zeitschrift fuumlr Philosophie und philosophische

Kritik Herausgegeben von Dr I H Fichte Dr Hermann Ulrici und J U Wirth Neue Folge Band 21 Halle

1852 p 209-225 12

FICHTE I H Ein Wort uumlber die Zukunft der Philosophie Als Nachschrift zum vorigen Auffaβe Zeitschrift

fuumlr Philosophie und philosophische Kritik Herausgegeben von Dr I H Fichte Dr Hermann Ulrici und J U

Wirth Neue Folge Band 21 Halle 1852 p 226-240 13

A concepccedilatildeo de Frauenstaumldt seraacute abordada no item 43 14

FRAUENSTAumlDT J Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1854 p 318-319 15

Ibidem p 332-344 16

FORTLAGE C Genetische Geschichte der Philosophie seit Kant Leipzig Brockhaus 1852

- 190 -

dela resultando no fim do mundo como um todo17

O ponto central dessa criacutetica eacute que a

negaccedilatildeo da Vontade introduziria um dilema impossiacutevel de solucionar se ela for a coisa em si

natildeo poderaacute ser negada se puder ser negada natildeo seraacute a coisa em si mas representaccedilatildeo18

Em

segundo lugar haveria uma contradiccedilatildeo na negaccedilatildeo que embora levada a cabo apenas

individualmente deveria resultar na superaccedilatildeo da Vontade metafisicamente considerada e

natildeo apenas do indiviacuteduo singular que a realiza19

Uma vez que a Vontade eacute una e indivisiacutevel

que o que se manifesta no mundo inorgacircnico eacute o mesmo que se manifesta em noacutes como coisa

em si e que a multiplicidade dos objetos se deve ao princiacutepio de individuaccedilatildeo que eacute um

componente subjetivo entatildeo a supressatildeo de uma vontade individual deveria significar a

supressatildeo do todo Assim ao citar seu interlocutor Frauenstaumldt escreve ldquoPortanto

consequentemente um homem que primeiro a realizasse teria de estar apto a reconduzir tudo

ao nadardquo20

A terceira objeccedilatildeo referida por Frauenstaumldt aborda a liberdade da

Vontade como coisa em si em sua relaccedilatildeo com a lei de motivaccedilatildeo Essa questatildeo de acordo

com o que ele afirma na carta foi antecipada e discutida pelo proacuteprio Schopenhauer21

O

nuacutecleo dessa criacutetica estaacute em que na medida em que o caraacuteter humano natildeo se diferencia das

forccedilas naturais teria de ser determinado e essencialmente imutaacutevel como elas devendo

produzir seus efeitos com necessidade O interlocutor de Frauenstaumldt argumenta que o caraacuteter

natildeo pode ser indeterminado pois assim como do nada natildeo pode surgir algo de uma coisa em

si que fosse indeterminada e vazia natildeo poderia surgir algo de determinado e definido como

satildeo as accedilotildees Inversamente seria impensaacutevel que uma liberdade da vontade pudesse modificar

ou anular um caraacuteter pois isso equivaleria a tornaacute-lo vazio e indeterminado Em suma para

que possa produzir seus efeitos o caraacuteter inteligiacutevel deve ter uma essecircncia determinada e

imutaacutevel que natildeo poderaacute ser reduzida a nada por meio da liberdade A negaccedilatildeo da liberdade

ao operari e sua concessatildeo ao esse realizaria entatildeo o estranho feito de possibilitar a escolha de

um caraacuteter de forma totalmente infundada Nesse sentido escreve Frauenstaumldt

Finalmente o senhor [o interlocutor] apresenta a alternativa ou a Vontade eacute

eternamente qualitativamente determinada natildeo podendo abandonar ou

modificar sua qualidade originaacuteria ou ela eacute originalmente indeterminada

17

FRAUENSTAumlDT J Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1854 p 333 18

Ibidem p 333 19

Ibidem p 338 20

Ibidem p 339 (traduccedilatildeo nossa) 21

Ibidem p 342

- 191 -

natildeo podendo por toda a eternidade tornar-se algo determinado pois nela

natildeo haacute fundamento para esta ou aquela determinaccedilatildeo22

Em 1869 Frauenstaumldt publicou um artigo na revista Unsere Zeit

deutsche Revue der Gegenwart intitulado ldquoArthur Schopenhauer und seine Gegnerrdquo23

no

qual discute outras contradiccedilotildees que foram apontadas no pensamento schopenhaueriano Nas

palavras dele ldquoEu li mais de uma duacutezia de escritos criacuteticos sobre Schopenhauer e em todos

encontrei acusaccedilotildees de contradiccedilotildees a ele que se orgulhava de ser o filoacutesofo mais

consequente e de ter oferecido um sistema em uma uacutenica peccedilardquo24

Entre os antagonistas

Frauenstaumldt cita Adolf Cornill que identificaria dualismo e contradiccedilotildees em diversos pontos

bem como Rudolf Seydel para quem Schopenhauer oscilaria entre uma concepccedilatildeo realista e

outra idealista acerca da objetivaccedilatildeo da Vontade e que estaria na raiz da contradiccedilatildeo mais

fundamental do sistema schopenhaueriano a antinomia da faculdade de conhecimento25

Naquele artigo Frauenstaumldt menciona a segunda ediccedilatildeo de Logische

Untersuchungen26

de 1862 na qual Friedrich A Trendelenburg teria acusado Schopenhauer

de ser meramente idealista jaacute que seu mundo fenomecircnico seria uma construccedilatildeo causal e

portanto subjetiva27

No mesmo sentido Rudolf Haym em Arthur Schopenhauer28

de 1864

teria julgado encontrar uma contradiccedilatildeo no fato de que embora situasse o princiacutepio de razatildeo

dentro dos limites da representaccedilatildeo Schopenhauer teria buscado pelo fundamento dela

Apelando inclusive para insultos agrave pessoa do filoacutesofo Haym teria criticado tambeacutem a

complementaccedilatildeo do idealismo kantiano com a fundamentaccedilatildeo fisioloacutegica da representaccedilatildeo

Para ele essa seria uma tentativa ingecircnua de conciliar dois pontos de vista excludentes e que

resultaria em diversos problemas dentre eles o nosso tema29

Para Haym aleacutem disso

Schopenhauer justifica o surgimento do conhecimento nos animais em funccedilatildeo da necessidade

gerada pela multiplicidade e separaccedilatildeo dos seres contudo essa mesma multiplicidade e

separaccedilatildeo soacute poderiam surgir com o princiacutepio de individuaccedilatildeo que exige o proacuteprio

22

Ibidem p 341 (traduccedilatildeo nossa) 23

FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 686-707 24

Ibidem p 686 (traduccedilatildeo nossa) 25

Ibidem p 694-695 26

TRENDELENBURG F A Logische Untersuchungen Zweite ergaumlnzte Auflage Leipzig Hirzel 1862 27

FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 697 28

HAYM R Arthur Schopenhauer Berlin Georg Reimer 1864 29

FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 700

- 192 -

conhecimento Daiacute teria se originado um ciacuterculo vicioso que foi apontado tambeacutem por Chr

Albert Thilo no artigo intitulado Ueber Schopenhauerrsquos ethischen Atheismus30

de 186831

Haym e Trendelenburg tiveram em comum a criacutetica relativa agrave

generalizaccedilatildeo da Vontade a toda a natureza orgacircnica e inorgacircnica Trendelenburg considerou

que teria sido necessaacuterio mostrar como o conceito de forccedila eacute derivado do de Vontade o

conceito mais geral da filosofia schopenhaueriana que poreacutem natildeo teria sido demostrado

como tal32

O argumento da analogia seria enganoso porque com ele a essecircncia da vontade

humana se perderia e no entanto conforme a conveniecircncia suas caracteriacutesticas especiacuteficas e

determinadas seriam confundidas com a da Vontade coacutesmica33

A identidade da Vontade no

mundo como um todo exigiria que ela fosse pensada em geral o que a aproximaria de um

conceito amplo de forccedila poreacutem sua ligaccedilatildeo com a vontade humana possibilitaria que

Schopenhauer estendesse as propriedades desta a tudo arbitrariamente No entender de Haym

e de Trendelenbug esse seria o ππῶηον τεῦδορ de Schopenhauer34

Esses dois pensadores

teriam visto ainda uma contradiccedilatildeo na afirmaccedilatildeo de que a Vontade eacute cega sem conhecimento

algum mas ao mesmo tempo comporta-se como algo repleto de intenccedilotildees e fins

pressupostos nos conceitos de Vontade de Vida e Vontade de conhecimento por exemplo35

Aleacutem disso na experiecircncia eacutetica e no gecircnio Haym apontou uma inversatildeo das relaccedilotildees entre

Vontade e conhecimento em que este deixa de ser subordinado e dependente superando

aquela Assim diz Haym de forccedila da natureza que a tudo constitui a Vontade passa ao nada

pelo conhecimento cada vez mais claro das Ideias O conhecimento por seu turno de

efetivador da aparecircncia empiacuterica passa agrave genialidade e agrave santidade isto eacute a um verdadeiro

conhecimento metafiacutesico36

Otto Liebmann na obra Ueber den Objectiven Anblick37

publicada em

1869 teria afirmado que Schopenhauer misturou verdades com absurdos e ideias imisciacuteveis

entre si que levariam a um ciacuterculo vicioso acerca da relaccedilatildeo entre intelecto e ceacuterebro38

Ainda

30

THILO Chr A Ueber Schopenhauerrsquos ethische Atheismus Leipzig Louis Pernitzsch 1868 31

FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 702 32

Ibidem loc cit 33

Ibidem loc cit 34

Ibidem loc cit 35

Ibidem p 704 36

Ibidem p 706 37

LIEBMANN O Ueber den Objektiven Anblick Wiesbaden Carl Schober 1869 38

FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 690-691

- 193 -

antes em 1866 na obra Ueber den individuellen Beweis fuumlr die Freiheit des Willens39

Liebmann teria criticado a concepccedilatildeo schopenhaueriana acerca da liberdade e sua localizaccedilatildeo

no esse entendendo que assim se anularia a responsabilidade40

De modo semelhante em

1869 Eduard von Hartmann teria criticado a reduccedilatildeo do intelecto ao ceacuterebro na obra

Philosophie des Unbewussten41

como uma postura fundamentalmente materialista42

Em 1873 Frauenstaumldt publicou as obras completas de Schopenhauer com

uma extensa introduccedilatildeo de sua autoria cuja maior parte eacute dedicada a refutar os antagonistas

do filoacutesofo e a mostrar o que entende ser o verdadeiro sentido de seu pensamento43

Ele

reafirma que os opositores de Schopenhauer acusaram sua filosofia de ser completamente

contraditoacuteria resultado de uma confusa mistura de elementos heterogecircneos44

Diligentemente

Frauenstaumldt descreve e discute criacuteticas a diversos aspectos do pensamento schopenhaueriano

passando por metafiacutesica teoria do conhecimento eacutetica misantropia pessimismo e a recepccedilatildeo

das obras pelo grande puacuteblico Como satildeo muitas e diferentes as objeccedilotildees apresentadas na

introduccedilatildeo natildeo passaremos por todas elas e restringiremos nossa anaacutelise apenas agravequelas

relativas agrave metafiacutesica e agrave teoria do conhecimento

Nesse texto Frauenstaumldt repete as partes relativas a Trendelenburg e a

Haym do artigo mencionado acima e afirma que diversos professores ignorando sua

resposta reincidiram nas mesmas criacuteticas deles Seria o caso do jurista e professor Heinrich

Ahrens que criticou a generalizaccedilatildeo da Vontade a todo o mundo empiacuterico bem como o que

considerou um retorno agrave indiferenccedila entre natureza e espiacuterito O mesmo se daria com Zeller

que teria indicado um falso dilema como sendo a base do argumento da analogia a saber ou

apenas noacutes seriamos Vontade ou entatildeo tudo seria Vontade45

Para Zeller poreacutem uma terceira

alternativa seria pensaacutevel que existissem simultaneamente seres volitivos e seres natildeo

volitivos determinados por forccedilas de outro tipo46

Por um lado Schopenhauer deveria ter

mostrado com que direito o mundo objetivo como um todo deveria ser subsumido na

39

LIEBMANN O Ueber den individuellen Beweis fuumlr die Freiheit des Willens Stuttgart Carl Schober 1866 40

FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 692 41

HARTMAN E Philosophie des Unbewussten Berlin Carl Duncker 1869 42

FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 692 43

Cf SCHOPENHAUER A Saumlmmtliche Werke Herausgegeben von Julius Frauenstaumldt Band 1 Leipzig

Brockhaus 1873 ldquoEinleitung des Herausgebers III Wahrer Sinn der Schopenhauer‟schen Philosophie und

Widerlegung ihrer Gegnerrdquo p XXVIII-CXXXIII 44

Ibidem p XXXIII 45

Ibidem p XLIX 46

ZELLER E Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibniz Muumlnchen Didenbourg 1875 p 709

- 194 -

Vontade por outro surgiriam duacutevidas sobre se sendo a essecircncia de tudo uma soacute natildeo

deveriacuteamos pressupor intenccedilotildees e motivaccedilotildees humanas na natureza47

Zeller teria estranhado a

mudanccedila repentina do ponto de vista do idealismo para o do realismo o que Frauenstaumldt no

entanto aponta como algo natural uma vez que Schopenhauer entendia que a representaccedilatildeo

era apenas um dos dois lados do mundo Para o ldquoapoacutestolordquo o erro de compreensatildeo desse

aspecto da filosofia schopenhaueriana seria inclusive a razatildeo de Zeller e diversos outros

opositores do filoacutesofo terem criticado a antinomia da faculdade do conhecimento48

Aleacutem

disso seriam problemaacuteticos para Zeller a autossupressatildeo da Vontade o sucesso de puacuteblico

dos uacuteltimos anos de Schopenhauer que seria devido agrave adequaccedilatildeo da linguagem ao grande

puacuteblico com objetivo adulador e o romantismo pressuposto na visatildeo schopenhaueriana do

gecircnio49

Esta uacuteltima questatildeo segundo Frauenstaumldt teria sido criticada tambeacutem por Ahrens50

Conforme a exposiccedilatildeo de Frauenstaumldt na obra Arthur Schopenhauer als

Mensch und Denker51

o professor Juumlrgen Bona Meyer buscava contradiccedilotildees em toda parte52

Frauenstaumldt menciona especialmente a contradiccedilatildeo apontada por esse autor segundo a qual

Schopenhauer de um lado demonstra a impossibilidade da liberdade da vontade e de outro

a afirma em relaccedilatildeo agrave Vontade primordial Menciona tambeacutem a concordacircncia de Meyer com

Trendelenbug no tocante agrave criacutetica deste de que o mundo schopenhaueriano se reduz a uma

aparecircncia meramente subjetiva53

Aleacutem desses pontos Frauenstaumldt refere a criacutetica de Thilo

sobre a inviabilidade de um sujeito puro do conhecimento isto eacute a impossibilidade de

esquivar-se da sujeiccedilatildeo agrave Vontade Esse ponto traria problemas tambeacutem para a concepccedilatildeo

schopenhaueriana das Ideias as quais natildeo poderiam ser conhecidas de modo nenhum jaacute que

conhecer eacute tornar-se objeto e entrar nas formas do tempo espaccedilo e causalidade

Em 1876 Frauenstaumldt publicou a segunda ediccedilatildeo de sua obra epistolar

aumentada em 18 cartas referindo uma quantidade maior de objeccedilotildees agrave filosofia

schopenhaueriana incluindo diversas de sua autoria54

Ele relata um grande nuacutemero de

opositores e de criacuteticas praticamente sobre todos os temas do pensamento de Schopenhauer

Menciona tambeacutem teorias que partindo da filosofia dele tentaram melhoraacute-la como a de

47

Ibidem p L 48

Ibidem p LXXI 49

Ibidem p LXXXV CXXIII-CXVI CXXVI-CXXVII 50

Ibidem p CXXV 51

MEYER J B Schopenhauer als Mensch und Denker Berlin Carl Habel 1872 52

Ibidem p LIII 53

Ibidem p LXVIII 54

FRAUENSTAumlDT J Neue Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1876

- 195 -

Eduard von Hartmann sobre o inconsciente bem como outras que aparentemente a

refutariam como a de Darwin55

Nessa nova ediccedilatildeo Frauenstaumldt esclarece que natildeo eacute um

defensor incondicional do seu mestre como muitos pensavam e que se desviou dele em

pontos importantes De fato em vaacuterias das novas cartas ele apresenta as proacuteprias

discordacircncias em relaccedilatildeo ao pensamento schopenhaueriano na intenccedilatildeo de mostrar sua

verdade essencial corrigi-lo e melhoraacute-lo No entender de Frauenstaumldt embora as obras do

filoacutesofo respondam agrave maioria das criacuteticas que lhes foram feitas haacute questotildees natildeo solucionadas

e ainda muitas outras objeccedilotildees possiacuteveis Natildeo passaremos por todas as criacuteticas que ele relata

nas novas cartas tampouco por todas as que ele mesmo dirige agrave filosofia schopenhaueriana

Exporemos somente suas proacuteprias objeccedilotildees pertinentes ao nosso problema uma vez que

muitas das que referimos anteriormente satildeo retomadas nas novas cartas e que aleacutem disso a

maioria delas estaacute fora do nosso escopo

Entre as principais objeccedilotildees de Frauenstaumldt haacute duas relativas ao que ele

chamou de ldquorestordquo natildeo dissolvido Em primeiro lugar permaneceria um resquiacutecio do

dualismo kantiano que se sobreporia ao monismo do pensamento uacutenico de Schopenhauer Em

segundo haveria tambeacutem um resto natildeo resolvido na contradiccedilatildeo da Vontade consigo mesma

Frauenstaumldt trata do primeiro ponto na carta 17 de suas Neue Briefe uumlber die

Schopenhauerrsquosche Philosophie criticando o que entendeu ser uma oposiccedilatildeo entre a Vontade

em si e sua objetivaccedilatildeo fundada numa visatildeo dualista56

Ele argumenta que a Vontade eacute

completamente estranha agraves formas da representaccedilatildeo nunca podendo adotaacute-las e no entanto

Schopenhauer apresenta os graus de objetivaccedilatildeo como o fenocircmeno proacuteprio dela como sua

objetidade Segundo Frauenstaumldt por um lado as formas da representaccedilatildeo natildeo poderiam

entatildeo ser estranhas agrave Vontade por outro se cada grau de objetivaccedilatildeo manifesta a Vontade

completamente natildeo haveria motivo para que ela se objetivasse em graus e indiviacuteduos

distintos Nesse sentido escreve Frauenstaumldt ldquoSe a Vontade estaacute completamente objetivada

na pedra entatildeo natildeo haacute razatildeo para a objetivaccedilatildeo nas plantas e nos animais Se aleacutem disso a

Vontade jaacute se objetiva completamente em um carvalho para que entatildeo os milhotildees de

carvalhosrdquo57

De acordo com a interpretaccedilatildeo dele assim como a humanidade natildeo

poderia se objetivar completamente em um dos seus troncos ou em um indiviacuteduo pela mesma

55

Ibidem p 2 56

Ibidem p 89 57

Ibidem p 90 (traduccedilatildeo nossa)

- 196 -

razatildeo a vontade da natureza natildeo poderia se objetivar inteiramente em uma uacutenica espeacutecie ou

indiviacuteduo58

E se esse fosse realmente o caso haveria um sem nuacutemero de objetivaccedilotildees

supeacuterfluas Para Frauenstaumldt do mesmo modo como cada membro do corpo objetiva uma

funccedilatildeo distinta da vontade corporal natildeo a vontade completa cada espeacutecie ou indiviacuteduo natildeo

objetiva a Vontade como um todo mas apenas uma funccedilatildeo especial Entatildeo ele afirma

ldquoMicrocosmo e macrocosmo se esclarecem tambeacutem aqui reciprocamenterdquo59

A unidade e a

indivisibilidade da Vontade natildeo se explicam porque ela estaacute inteira em cada objetivaccedilatildeo mas

diz ele porque ela eacute a abrangecircncia unitaacuteria do conjunto dos fenocircmenos matizados e

individualizados60

ldquoAssimrdquo ele afirma ldquoa unidade como algo que se organiza natildeo exclui a

multiplicidade mas a incluirdquo61

Portanto soacute se poderia conhecer o ser completo do fenocircmeno

por meio do todo natildeo por meras partes Uma parte somente poderia explicar o todo caso o

mundo natildeo estivesse no tempo e no espaccedilo pois entatildeo seria possiacutevel conhecer o conjunto

completo tanto por meio de muacuteltiplos indiviacuteduos quanto por um uacutenico deles

Na carta 43 Frauenstaumldt aborda a contradiccedilatildeo da Vontade consigo

mesma que ele entende ser o segundo resto natildeo resolvido na filosofia schopenhaueriana Ele

concorda que a compaixatildeo seja uma consequecircncia correta da unidade da Vontade poreacutem

nem o seu conceito nem sua necessidade no mundo estariam bem fundamentados62

Para ele

compaixatildeo pressupotildee sofrimento e este surge do conflito da Vontade consigo mesma algo

que seria injustificaacutevel Se a Vontade eacute una deveria entatildeo mostrar indivisibilidade e harmonia

em todos os seus fenocircmenos e nesse caso a compaixatildeo natildeo seria necessaacuteria Por

conseguinte ou a Vontade natildeo seria una ou o sofrimento seria um enigma por esclarecer63

Frauenstaumldt enxerga aqui o mesmo problema do teiacutesmo e do panteiacutesmo em explicar o

sofrimento e remete a Schopenhauer as objeccedilotildees que ele proacuteprio fez a ambas aquelas

perspectivas teoacutericas como o fundamento uno e essencial se desuniu em seus fenocircmenos

entrou em luta consigo mesmo gerando males conflitos e sofrimento Nas palavras dele

ldquoComo no fenocircmeno do um-todo essencial eacute possiacutevel o egoiacutesmo a fonte de todos os

malesrdquo64

58

Ibidem p 90-91 59

Ibidem p 91 (traduccedilatildeo nossa) 60

Ibidem loc cit 61

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 62

Ibidem p 266 63

Ibidem loc cit 64

Ibidem p 267 (traduccedilatildeo nossa)

- 197 -

Na concepccedilatildeo de Frauenstaumldt o egoiacutesmo insere uma oposiccedilatildeo entre o

microcosmo o macrocosmo na medida em que cada indiviacuteduo se entende como o uacutenico ser

real existente em detrimento do restante do mundo Entretanto diz ele natildeo se pode explicar

como a Vontade que existe natildeo em um indiviacuteduo mas em todos possa ter chegado em cada

um deles agrave colossal cegueira de tomar apenas a si mesmo como real e esquecer todos os

demais65

Na verdade segundo Frauenstaumldt a harmonia e a unidade da Vontade existiriam

apenas no macrocosmo na adequaccedilatildeo muacutetua de todos os fenocircmenos mas natildeo seria forte o

suficiente para suprimir a luta dos indiviacuteduos entre si Entatildeo ele escreve ldquoA unidade da

Vontade natildeo se estende ateacute o indiviacuteduo permanece conectada ao macrocosmo ela natildeo eacute

radical Mas de onde ela proveacutem Schopenhauer natildeo explicourdquo66

42 ndash Apreciaccedilotildees criacuteticas da antinomia da faculdade de conhecimento

Neste item apresentaremos algumas das apreciaccedilotildees criacuteticas que a

antinomia que a faculdade de conhecimento recebeu Nossa exposiccedilatildeo poreacutem natildeo seraacute

exaustiva do ponto de vista da quantidade dos comentaacuterios o que seria cansativo e

desnecessaacuterio mas privilegiaraacute apenas as argumentaccedilotildees que nos parecerem mais

contundentes e profiacutecuas Com efeito na obra Arthur Schopenhauer als Uebergangsformation

von einer idealistischen in eine realistische Weltanschauung Adolf Cornill aborda entre

outros assuntos tambeacutem o nosso tema de pesquisa Esse autor ressalta que Schopenhauer

interditou o acesso da razatildeo ao acircmbito do metafiacutesico tornando-se necessaacuterio outro caminho

que levasse ateacute ele Ao mesmo tempo numa tentativa de fundamentar a metafiacutesica

indutivamente teria associado a faculdade do conhecimento a algo meramente fiacutesico e

reconstruiacutedo via de acesso agrave essecircncia do mundo com base na Vontade67

Para Cornill a

filosofia schopenhaueriana se torna dualista na medida em que ao lado de um mundo

65

Ibidem p 269 66

Ibidem p 270 (traduccedilatildeo nossa) 67

CORNILL A Arthur Schopenhauer als Uebergangsformation von einer idealistischen in eine realistische

Weltanschauung Heidelberg Georg Mohr 1856 p 99-100

- 198 -

material extenso temporal e causal estabelece um mundo metafiacutesico destituiacutedo dessas

formas Esse dualismo seria o responsaacutevel por tornar o sistema uma peccedila dilacerada

internamente e repleta de contradiccedilotildees

Especificamente no caso da nossa antinomia Cornill considera que o

problema tem sua raiz na desconsideraccedilatildeo dos argumentos acerca dos paralogismos da razatildeo

pura pois contrariando o entendimento kantiano Schopenhauer teria tomado a representaccedilatildeo

do sujeito pelo seu ser em si68

Para ele o filoacutesofo se lanccedilaria de um extremo ao outro entre

materialismo e idealismo e um irremediaacutevel dualismo natildeo permitiria que se decidisse sobre

se possuiriacuteamos ou natildeo um conhecimento do ser em si da vida espiritual69

(geistigen

Lebens)70

O mesmo dualismo e a mesma oscilaccedilatildeo repercutiriam na compreensatildeo

schopenhaueriana acerca da faculdade de conhecimento levando-o agrave antinomia o

pensamento que parece ser o mais ideal em toda a natureza eacute considerado como uma funccedilatildeo

fisioloacutegica do ceacuterebro71

O mundo objetivo diz Cornill com todos os seus atributos eacute

somente um movimento da massa cerebral dentro do cracircnio mas esse mesmo ceacuterebro cuja

funccedilatildeo eacute produzir todos os fenocircmenos eacute tambeacutem apenas um fenocircmeno72

Em uacuteltima

instacircncia a concepccedilatildeo de que o ceacuterebro eacute o refinamento maacuteximo da mateacuteria seria a mesma

adotada no materialismo segundo o qual a mateacuteria eacute indestrutiacutevel eterna e permanente de

modo que no fim de contas tudo acabaria se remetendo a ela No sect 27 da sua obra Cornill

afirma que

Uma tal concepccedilatildeo natildeo satisfaz nem aos idealistas pelos quais

Schopenhauer seraacute sempre tomado como materialista nem aos materialistas

para quem ele sempre deve parecer idealista Seu sistema eacute um dualismo em

si dilacerado e esse eacute o fundamento das inumeraacuteveis contradiccedilotildees nas quais

um pensador claro um espiacuterito profundo permaneceu enredado durante sua

longa e profunda vida73

A obra de Rudolf Seydel Schopenhauers Philosophisches System foi

escrita para um concurso realizado pela Faculdade de Filosofia da Universidade de Leipzig

em 1856 no qual se solicitava que os candidatos elaborassem uma exposiccedilatildeo e criacutetica do

68

Ibidem p 101-102 69

Em uma carta endereccedilada a Frauenstaumldt datada de 31 de outubro de 1856 Schopenhauer acusa Cornill de

confundir idealismo com espiritualismo De fato pode-se perceber essa confusatildeo em toda a obra de Cornill Cf

FRAUENSTAumlDT J LINDNER Ernst O T Arthur Schopenhaper vom Ihm uumlber ihn Ein Wort der

Vertheidigung Berlin A W Hayn 1863 p 711 70

CORNILL op cit p 102 71

Ibidem p 102-103 72

Ibidem p 103 73

Ibidem p 125 (traduccedilatildeo nossa)

- 199 -

pensamento de Schopenhauer Estudante de filosofia na eacutepoca Seydel venceu o concurso do

qual participou tambeacutem Carl Georg Baumlhr entatildeo estudante de direito74

No entender de Seydel

a metafiacutesica e a teoria do conhecimento schopenhauerianas seriam incompatiacuteveis entre si

gerando uma oscilaccedilatildeo entre ambas em funccedilatildeo da qual se formariam um hiato dentro do

sistema como um todo e diversas pequenas contradiccedilotildees75

Ele compara os resultados da

metafiacutesica e da teoria do conhecimento de Schopenhauer chegando ao que julgou ser uma

dupla identidade entre sujeito e objeto De um lado esses dois polos formariam a

representaccedilatildeo isto eacute o objeto e na medida em que a representaccedilatildeo eacute a objetidade da

Vontade o objeto se identificaria com o sujeito De outro a representaccedilatildeo representa a

Vontade e nada mais ldquoPortantordquo ele explica ldquotemos dois sujeitos que satildeo reciprocamente

seus objetos o sujeito do querer e o sujeito da representaccedilatildeo ou dois objetos que satildeo

reciprocamente seus sujeitos o desejado (a representaccedilatildeo) e o representado (a Vontade)rdquo76

Seydel considera que embora Schopenhauer natildeo reconheccedila sua

concordacircncia em diversos pontos com Fichte Schelling e Hegel teria absorvido as duas

formas da filosofia da identidade a saber o ldquoideal-realismordquo do primeiro bem como o ldquoreal-

idealismordquo do segundo e do terceiro77

A junccedilatildeo do princiacutepio especulativo do idealismo com

uma concepccedilatildeo realista teria resultado na visatildeo da objetivaccedilatildeo da Vontade como um processo

gradual no qual toda a riqueza da natureza empiacuterica se apresentaria Assim diz Seydel a

objetivaccedilatildeo se daacute no entendimento e para ele ao mesmo tempo em que o intelecto soacute pode se

realizar por meio do decurso de uma cadeia de objetivaccedilotildees anteriores ao conhecimento De

acordo com ele formam-se um hiato e uma discordacircncia interna na metafiacutesica de

Schopenhauer que separam sua concepccedilatildeo de uma identidade subjetiva e sua filosofia da

natureza78

Schopenhauer teria extraiacutedo de Schelling e Hegel a objetivaccedilatildeo da Vontade por

uma operaccedilatildeo baseada na natureza empiacuterica e de Fichte teria extraiacutedo a concepccedilatildeo da

identidade da Vontade e da representaccedilatildeo Em funccedilatildeo disso afirma Seydel

[] a objetivaccedilatildeo natildeo eacute explicada como atividade real da Vontade mas

como objetivaccedilatildeo apenas no entendimento e para ele enquanto a realizaccedilatildeo

74

SPIERLING Volker Materialien zu Schopenhauers ldquoDie Welt als Wille und Vorstellungrdquo Herausgegeber

kommentiert und eingeleitet von Volker Spierling Frankfurt am Main Suhrkamp 1984 p 129 75

SEYDEL R Schopenhauers Philosophisches System Leipzig Breitkopf amp Haumlrtel 1857 p 7 76

Ibidem p 58 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 77

Ibidem p 69 78

Ibidem p 70

- 200 -

filosoacutefico-natural do intelecto entra expressamente apenas depois do decurso

de uma cadeia de objetivaccedilotildees carente de conhecimento79

Em Gesammelte philosophische Abhandlungen zur Philosophie des

Unbewussten80

publicada em 1872 Eduard von Hartmann aborda criticamente o pensamento

de Schopenhauer No terceiro item dessa obra intitulado ldquoUeber die nothwendige Umbildung

der Schopenhauerschen Philosophie aus ihre Gundprincip herausrdquo ele apresenta uma

avaliaccedilatildeo da filosofia schopenhaueriana na qual relaciona a antinomia da faculdade de

conhecimento a uma mistura de elementos de realismo espiritualismo idealismo e

materialismo O realismo e o espiritualismo estariam do lado da Vontade enquanto o

idealismo subjetivo e o materialismo estariam do lado do fenocircmeno Para Hartmann o

princiacutepio fundamental da filosofia schopenhaueriana eacute o que ele chama de pantelismo

identificado com a fantaacutestica descoberta de que a Vontade eacute una e age sem conhecimento em

toda a natureza81

Nas palavras dele ldquoEsse eacute o nuacutecleo mais interno e irrefutaacutevel da filosofia

schopenhaueriana o foco para o qual todos os seus raios convergem e eacute a concepccedilatildeo que o

ser das coisas oferece quando se abstrai de seu fenocircmenordquo82

Embora haja contradiccedilotildees no

sistema schopenhaueriano voltadas contra esse princiacutepio o que se deveria corrigir satildeo

somente as afirmaccedilotildees que conduzem a elas natildeo o princiacutepio mesmo

A antinomia da faculdade de conhecimento conforme Hartmann estaacute

inserida na problemaacutetica do materialismo Na interpretaccedilatildeo dele a Vontade eacute um princiacutepio

imaterial conhecido por noacutes como o momento mais essencial do espiacuterito pelo que deveria ser

tomada por um princiacutepio espiritual83

No entanto ao associar o intelecto a um produto

material e tentar associar espiritualismo e materialismo Schopenhauer acabaria reforccedilando

este uacuteltimo Para Hartmann o materialismo estaacute correto quando afirma que a integridade das

funccedilotildees cerebrais relaciona-se de modo necessaacuterio com a consciecircncia e que seu mau

funcionamento acarreta problemas nos desiacutegnios sentimentos e representaccedilotildees do indiviacuteduo

Poreacutem o materialismo natildeo permitiria explicar o processo de formaccedilatildeo do mundo que ficaria

reduzido a um jogo cego de efeitos sem sentido dificultando a compreensatildeo da origem dos

organismos e seus significados84

O idealismo teria substituiacutedo o processo objetivo do

materialismo pelo processo interno e subjetivo da representaccedilatildeo mas teria mantido no

79

Ibidem p 69 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 80

HARTMANN E v Gesammelte philosophische Abhandlungen zur Philosophie des Unbewussten Berlin

Carl Duncker 1872 81

Ibidem p 57 82

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 83

Ibidem p 59 84

Ibidem p 60

- 201 -

tocante a esta uacuteltima o mesmo problema daquele assim como o mundo cheio de sentido se

originaria de algo sem sentido a representaccedilatildeo plena de significados nasceria tambeacutem de algo

sem significado85

Conforme Hartmann Schopenhauer cometeu os erros tanto do

materialismo quanto do idealismo subjetivo e sua tentativa de uni-los foi a responsaacutevel pela

antinomia da faculdade de conhecimento Como ele explica ldquo[] um ser independente do

tempo bem pode iniciar a partir de si uma cadeia de desenvolvimentos mas nunca pode

determinar por si o ponto no tempo numa cadeia temporal jaacute iniciada no qual se deve

encontrar a nova consciecircncia que emergerdquo86

Aleacutem disso de nada teria adiantado

Schopenhauer ter retirado a Vontade do domiacutenio do materialismo pois ela seria um princiacutepio

irracional e cego do mesmo modo que a mateacuteria e as forccedilas materiais satildeo concebidas nele Na

concepccedilatildeo de Hartmann somente pela diferenciaccedilatildeo entre consciente e inconsciente eacute que a

verdade fisioloacutegica do materialismo poderia ser reconhecida e mantida Com efeito diz ele as

relaccedilotildees entre a materialidade cerebral e o funcionamento das suas funccedilotildees de pensar sentir e

desejar valem apenas para a consciecircncia Nessa perspectiva de um lado a atividade

inconsciente do espiacuterito permaneceria como uma funccedilatildeo puramente imaterial inserida naquela

mateacuteria e de outro as atividades conscientes seriam produzidas pelo inconsciente e pelo

ceacuterebro87

Em sua obra Schopenhauers Leben Werke und Lehre88

Kuno Fischer

associa a antinomia da faculdade de conhecimento agrave diferenciaccedilatildeo entre ideal e real que ele

entende ser o verdadeiro problema filosoacutefico da sua eacutepoca Na interpretaccedilatildeo de Fischer a

explicaccedilatildeo do mundo concreto como sendo um fenocircmeno cerebral entraria em conflito com a

afirmaccedilatildeo de que seria manifestaccedilatildeo da coisa em si Haveria na verdade dois sentidos

diferentes para o conceito de fenocircmeno no primeiro caso seria inteiramente ideal um

fenocircmeno do ceacuterebro enquanto no segundo ao contraacuterio seria o mais real a objetidade da

Vontade89

Para Fischer essa ambiguidade se deveu ao desvirtuamento da doutrina kantiana

sobre tempo e espaccedilo e agrave influecircncia do sensualismo francecircs que teriam levado Schopenhauer

85

Ibidem loc cit 86

HARTMANN E v Geschichte der Methaphysik Zweiter Teil seit Kant Ausgewaumlhlte Werke Band XII

Leipzig Hermann Haacke 1900 p 188 (traduccedilatildeo nossa) 87

HARTMANN E v Gesammelte philosophische Abhandlungen zur Philosophie des Unbewussten Berlin

Carl Duncker 1872 p 60 88

FISCHER K Schopenhauers Leben Werke und Lehre Heidelberg Carl Winter‟s Universitaumltsbuchhandlung

1908 89

Ibidem p 508

- 202 -

a identificar o ceacuterebro e o intelecto como um oacutergatildeo e sua funccedilatildeo Como esse autor escreve

ldquoPois bem ele quis unir em seu sistema as duas doutrinas incompatiacuteveis daiacute adveio a

antinomia que se enredou naquela explicaccedilatildeo circular defeituosardquo90

Fischer argumenta que para que o ceacuterebro fosse representado como um

oacutergatildeo sua funccedilatildeo representativa teria de se separar de si mesmo Uma vez que isso eacute

impossiacutevel tempo e espaccedilo teriam de se situar no ceacuterebro o qual por sua vez teria de estar

situado no tempo e no espaccedilo Fischer entende ser esse o ponto mais obscuro da filosofia

schopenhaueriana pois a objetivaccedilatildeo graduada da Vontade natildeo poderia ser pensada sem a

multiplicidade e a variedade da natureza isto eacute sem que tempo e espaccedilo estivessem

pressupostos91

Por conseguinte diz ele ldquoUma coisa eacute ser organicamente dependente outra

diferente eacute ser organicamente produzido Kant admitiu o primeiro com relaccedilatildeo ao

conhecimento mas o segundo natildeordquo92

Essas seriam as bases a partir das quais teriam

emergido diversos problemas entre os quais o nosso objeto que ele expotildee em tese e antiacutetese

A tese afirma nosso conhecimento eacute um produto orgacircnico e como tal tem

como suas condiccedilotildees a escala completa da organizaccedilatildeo animal-humana o

mundo das plantas a histoacuteria do desenvolvimento do universo e da Terra A

antiacutetese afirma o universo inteiro em sua multiplicidade variedade e

regularidade tem o sujeito do conhecimento (o intelecto) como seu

pressuposto e portador93

Na obra Arthur Schopenhauer seine Persoumlnlichkeit seine Lehre sein

Glaube Johannes Volkelt aborda a antinomia da faculdade de conhecimento pelo acircngulo do

que chamou de ldquocorrelativismordquo entre sujeito e objeto que se apresentaria tambeacutem entre

intelecto e mateacuteria94

Na medida em que se limitam mutuamente haveria uma correlatividade

estrita entre sujeito e objeto que Schopenhauer explicaria com o conceito de fronteira

(Grenze) De acordo com Volkelt a mesma correlatividade se estende ao intelecto e agrave mateacuteria

jaacute que o filoacutesofo entende esta uacuteltima como sendo o objeto destituiacutedo de forma e qualidade

isto eacute como um conceito95

Em princiacutepio o correlativismo seria correto e baseado no fato

inquestionaacutevel de que o objeto soacute pode ser dado em uma consciecircncia e inversamente a

consciecircncia soacute pode ser consciecircncia de um objeto Poreacutem na interpretaccedilatildeo de Volkelt em

90

Ibidem p 510 (traduccedilatildeo nossa) 91

Ibidem p 509 92

Ibidem p 510 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 93

Ibidem p 508-509 (traduccedilatildeo nossa) 94

VOLKELT Johannes Arthur Schopenhauer seine Persoumlnlichkeit seine Lehre sein Glaube Stuttgart Fr

Frommanns 1900 p 82 et seq 95

Ibidem p 83

- 203 -

certos momentos Schopenhauer imprime uma mudanccedila nesse correlativismo tornando

ambiacuteguo o conceito de sujeito e entrando em contradiccedilatildeo com a teoria do mundo enquanto

representaccedilatildeo96

De iniacutecio a correlatividade entre sujeito e objeto teria sido pensada pelo

filoacutesofo da perspectiva das duas metades indissociaacuteveis que compotildeem consciecircncia do mundo

como representaccedilatildeo Tomada nesse sentido diz Volkelt a correlatividade evidenciaria uma

caracteriacutestica essencial do sujeito que eacute sua relaccedilatildeo com a existecircncia do mundo como

representaccedilatildeo de modo que sua posiccedilatildeo natildeo poderia ser comparada com qualquer outra A

partir daiacute contudo surgiriam dois conceitos de sujeito De um lado na medida em que a

consciecircncia conteacutem em si o sujeito e o objeto o que representa e eacute representado ela seria o

ponto de partida e o campo inicial da filosofia de outro o sujeito seria tambeacutem um dos dois

lados incluiacutedos na consciecircncia97

Para Volkelt parece que em alguns momentos

Schopenhauer natildeo podia dispor do solo ideal-subjetivo do sujeito ldquoCom outras palavrasrdquo ele

esclarece

fala como se o sujeito possuiacutesse o correlato que tem no mundo

independentemente da representaccedilatildeo como se esse mundo independente da

consciecircncia defrontasse igualitariamente a consciecircncia O segundo sentido

da palavra ldquosujeitordquo isto eacute o sentido que ele soacute pode possuir no interior do

correlativismo imperceptivelmente adentrou aquele primeiro sentido e

nessa junccedilatildeo transformou o sentido proibido Assim agora ficam frente a

frente o mundo subjetivo e o transobjetivo98

Uma correlaccedilatildeo semelhante entre intelecto e mateacuteria eacute o que daria origem

agraves duas sentenccedilas conflitantes da antinomia faculdade de conhecimento De um lado estaria a

mateacuteria como simples representaccedilatildeo de um sujeito e de outro o sujeito como produto da

mateacuteria uma modificaccedilatildeo desta99

Nesse ponto o aspecto idealista se perderia e o

pensamento schopenhaueriano passaria a apresentar dois pontos de partida com iguais

direitos No entanto para Volkelt a afirmaccedilatildeo da correlatividade entre intelecto e mateacuteria eacute

falsa Dizer que a mateacuteria eacute mera representaccedilatildeo do sujeito seria uma expressatildeo do idealismo

mas natildeo seria compatiacutevel com a correlatividade entre sujeito e objeto Correlativismo

implicaria proporcionalidade no peso dos polos opostos que nesse caso natildeo se apresenta

Aleacutem disso a afirmaccedilatildeo de que a representaccedilatildeo eacute um produto da mateacuteria tambeacutem natildeo se

96

Ibidem op cit 97

Ibidem p 83-84 98

Ibidem p 84 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 99

Ibidem p 85

- 204 -

adaptaria agravequele correlativismo mas seria apenas um modo de pensar que ignora o idealismo

e daacute mais razatildeo ao materialismo100

No texto Schopenhauer et Fichte101

Martial Gueroult apresenta uma

visatildeo criacutetica da filosofia schopenhaueriana em que aborda entre outros o nosso problema Na

interpretaccedilatildeo de Gueroult a caracteriacutestica proacutepria do pensamento de Schopenhauer eacute a

mistura de posiccedilotildees e teorias diferentes e inconciliaacuteveis102

O coraccedilatildeo da doutrina do filoacutesofo

seria a justaposiccedilatildeo de idealismo e realismo em funccedilatildeo da qual um mundo de representaccedilatildeo

se desdobraria como coacutepia de outro real o da Vontade103

A partir daiacute segundo esse autor

surgiriam graves dificuldades porque o idealismo estancaria diante da representaccedilatildeo tomada

como um fato tornando-se necessaacuteria a formulaccedilatildeo de um acesso de tipo diferente agrave coisa em

si Nas palavras de Gueroult

Ora essa justaposiccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel nesse caso senatildeo em virtude da

limitaccedilatildeo do idealismo ao fato da representaccedilatildeo Por essa estagnaccedilatildeo diante

do fato eacute efetivada uma soluccedilatildeo de continuidade absoluta entre a esfera da

representaccedilatildeo e o que estaacute aleacutem dela Graccedilas a esse corte eacute compreensiacutevel

uma experiecircncia de ordem totalmente diferente do conhecimento fenomenal

(representaccedilatildeo) em suma uma experiecircncia de alcance metafiacutesico por meio

da qual o mundo da representaccedilatildeo pode ser verdadeiramente

transcendente104

Essa separaccedilatildeo estrita entre a Vontade e o conhecimento bem como a

restriccedilatildeo do idealismo ao interior da representaccedilatildeo teriam obrigado Schopenhauer a reduzir a

consciecircncia ao intelecto e este agrave representaccedilatildeo Uma das questotildees que essa perspectiva

origina segundo Gueroult eacute referente agrave passagem do ideal ao real isto eacute da representaccedilatildeo agrave

Vontade Para ele Schopenhauer descobriu o ceacuterebro como uma via simples e ineacutedita de

passagem do ideal ao real apta a atuar tambeacutem no sentido inverso no qual aquele oacutergatildeo

aparece como a encarnaccedilatildeo suprema da Vontade e conteacutem em si as formas do

conhecimento105

O mundo da representaccedilatildeo daiacute advindo expotildee a Vontade ou melhor eacute

precisamente a Vontade tornada visiacutevel pelas formas de conhecimento do ceacuterebro tempo

espaccedilo e causalidade Poreacutem diz Gueroult essa teoria exigiria uma concepccedilatildeo de ceacuterebro

100

Ibidem p 86 101

GUEROULT M Etudes de Philosophie allemande HildesheimNew York Georg Olms 1977 p 202-261 102

Ibidem p 221 103

Ibidem p 226 104

Ibidem p 226-227 (traduccedilatildeo nossa) 105

Ibidem p 240

- 205 -

como instrumento e de representaccedilatildeo como motor ideal e sensoacuterio as quais natildeo teriam sido

desenvolvidas por Schopenhauer106

Na concepccedilatildeo schopenhaueriana o ceacuterebro uniria uma esfera do real tal

como pensada pelo senso comum e outra do ideal como formulada pelo idealismo

transcendental Para Gueroult trata-se de um escacircndalo filosoacutefico pois esse oacutergatildeo pertenceraacute

inteiramente tanto ao mundo real como ao ideal onde eacute apenas uma representaccedilatildeo entre

outras No entanto como parte de qualquer dos lados natildeo poderia ser concebido como

produzindo o outro Na medida em que em qualquer dos mundos seraacute apenas uma parte

iacutenfima natildeo poderia produzir o outro em sua totalidade107

Gueroult observa que

Schopenhauer substituiu a palavra e a noccedilatildeo de ceacuterebro pela de faculdade de conhecimento

como se natildeo houvesse aiacute nenhum problema dando poreacutem um salto mais perigoso e arriscado

do que todos os de Jacobi Mas entatildeo o ceacuterebro seria apresentado como o criador das

representaccedilotildees colocando-as no tempo e no espaccedilo e ao mesmo tempo seria condicionado

pelas formas que o constituem ele as produziria e seria produzido por elas Nesse sentido

escreve Gueroult

Aqui como laacute Schopenhauer se contentou em justapor teorias heterogecircneas

o idealismo transcendental de Kant e o materialismo dos franceses de

Cabanis de Bichat etc segundo o qual o pensamento eacute uma secreccedilatildeo do

ceacuterebro ldquoO organismo eacute objetivaccedilatildeo da vontade o ceacuterebro eacute a

eflorescecircncia do organismordquo (Welt Ergaumlnzungen ch xxii R II p 321)108

Na obra Aporie und Subjekt Martim Booms se dedica especificamente ao

estudo das dificuldades do pensamento schopenhaueriano Segundo ele haacute uma estrutura

aporeacutetica que se expressa no conteuacutedo e no meacutetodo de Schopenhauer bem como uma relaccedilatildeo

de tensatildeo de sua filosofia consigo mesma109

A aporia se encontraria jaacute nas bases do sistema

no dualismo que apresenta o mundo como estritamente representaccedilatildeo objeto de

conhecimento em uma consciecircncia e ao mesmo tempo como Vontade em si objeto de uma

visatildeo essencialmente metafiacutesica estendida agrave eacutetica e agrave esteacutetica Nesse dualismo de um lado o

mundo deve ser entendido como fenocircmeno como deficitaacuterio e secundaacuterio em relaccedilatildeo agrave

Vontade sem poder livrar-se da submissatildeo a ela De outro esse fenocircmeno deve superar a

coisa em si natildeo apenas do ponto de vista teoacuterico mas tambeacutem existencial e ontologicamente

106

Ibidem p 241 107

Ibidem loc cit 108

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 109

BOOMS M Aporie und Subjekt Die erkenntnistheoretische Entfaltungslogik der Philosophie

Schopenhauers Beitraumlge zur Philosophie Schopenhauers herausgegeben von Dieter Birnbacher und Heinz Gerd

Ingekamp Band 6 Wurzburg Koumlnigshausen amp Neuman 2003 p 17

- 206 -

diz Booms ldquo[] num tipo de rebeliatildeo do secundaacuterio contra o primaacuterio do criado contra seu

senhorrdquo110

Essa seria a aporia fundamental que colocaria o conhecimento e a Vontade em

uma paradoxal aniquilaccedilatildeo muacutetua intitulada por Schopenhauer ldquocontradiccedilatildeo do fenocircmeno

consigo mesmordquo (Widerspruch der Erscheinung mit sich selbst)

No entender de Booms o conceito de sujeito eacute construiacutedo por

Schopenhauer com base tanto nesse dualismo como no realismo promovendo a expulsatildeo da

coisa em si da teoria do conhecimento de um modo radical Em virtude dessa concepccedilatildeo

surge uma primeira inconsistecircncia uma aporia na qual se coloca o domiacutenio do externo no

proacuteprio sujeito e que rebatendo na teoria do conhecimento emaranha-a em um ciacuterculo

manifesto111

Nas palavras desse autor a antinomia da teoria do conhecimento ldquo[] resulta

dos pontos de vista circulares e entrelaccedilados de uma explicaccedilatildeo natural-materialista de um

lado assim como de uma deduccedilatildeo ideal-filosoacutefica a partir da consciecircncia do sujeito que

conhece e constroacutei o mundo de outrordquo112

De acordo com isso aquele problema natildeo seria um

produto secundaacuterio da teoria da representaccedilatildeo schopenhaueriana mas ldquo[] o centro e a

estrutura fundamental do bdquopensamento uacutenico‟ como um todordquo113

E assim como um genoacutetipo

se expressa em fenoacutetipos diferenciados mas uniformes tambeacutem a antinomia seria refletida em

diferentes dimensotildees114

43 ndash Soluccedilotildees apologeacuteticas agrave antinomia da faculdade de conhecimento

Na introduccedilatildeo que escreve agrave sua ediccedilatildeo das obras completas de

Schopenhauer Frauenstaumldt apresenta seu posicionamento quanto agraves criacuteticas que o filoacutesofo

110

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 111

Ibidem p 230 112

Ibidem p 18 (traduccedilatildeo nossa) 113

Ibidem p 157 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 114

Ibidem p 230

- 207 -

recebeu115

Para ele as falhas encontradas natildeo se deviam agrave proacutepria filosofia

schopenhaueriana mas a uma interpretaccedilatildeo feita a partir do exterior do sistema e de sentenccedilas

avulsas com as quais se julgavam o todo A partir de frases soltas diz ele pode-se fazer o

que se quiser de modo que a justiccedila para com um autor exige que se siga no sentido contraacuterio

isto eacute que as sentenccedilas avulsas sejam interpretadas a partir do conjunto teoacuterico completo116

Para Frauenstaumldt Schopenhauer teria indicado o modo correto de ler suas obras justamente

no intuito de evitar ser julgado dessa forma

Como se pressentisse que isso aconteceria com ele como de fato aconteceu

de abordarem seu sistema a partir de fora planejando extrair sentenccedilas do

contexto para entatildeo bradar sobre contradiccedilotildees absurdos inconsequecircncias e

assim por diante ele jaacute esclareceu na introduccedilatildeo da primeira ediccedilatildeo de ldquoO

mundo como vontade e representaccedilatildeordquo como ele deve ser lido para que seja

compreendido117

Esse seria o motivo pelo qual Schopenhauer teria exigido que sua obra

fosse lida duas vezes na primeira com paciecircncia para que na segunda tudo pudesse ser visto

sob nova luz Por isso tambeacutem a recomendaccedilatildeo de que nunca se perdesse de vista a conexatildeo

necessaacuteria entre as sentenccedilas separadas e o pensamento principal nem a progressatildeo da

exposiccedilatildeo A divisatildeo do pensamento uacutenico em livros distintos e em diferentes pontos de vista

seria algo inevitaacutevel pois natildeo haveria como remeter todas as ramificaccedilotildees do pensamento a

um uacutenico ponto e adicionalmente expor clara e minuciosamente meditaccedilotildees e provas que

ocuparam muitos anos

Aleacutem disso o entendimento da filosofia schopenhaueriana tambeacutem teria

sido dificultado pelas discrepacircncias de linguagem e de expressatildeo da primeira ediccedilatildeo de O

Mundo em relaccedilatildeo agrave segunda e ao O MundoII Contudo afirma Frauenstaumldt tendo-se em

mente o fato de que aquelas ediccedilotildees foram escritas uma na juventude e outra na maturidade

seria possiacutevel superar os obstaacuteculos por meio da elaboraccedilatildeo completa e posterior118

Trata-se

de uma limitaccedilatildeo inexpugnaacutevel mas ele escreve

Schopenhauer de fato admitiu que haja uma diferenccedila na elaboraccedilatildeo e na

fundamentaccedilatildeo entre a primeira exposiccedilatildeo de seu sistema e a que apareceu

25 anos depois como haacute entre a juventude e a velhice mas que ambas se

115

SCHOPENHAUER A Saumlmmtliche Werke Herausgegeben von Julius Frauenstaumldt Band 1 Leipzig

Brockhaus 1873 p XXVIII et seq 116

Ibidem p XXVIII 117

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 118

Ibidem p XXIX-XXX

- 208 -

contradigam ele admitiu tatildeo pouco como que a natureza se contradiga ao dar

caracteriacutesticas diferentes para o jovem e o velho119

Frauenstaumldt argumenta ainda que a consistecircncia no sistema

schopenhaueriano natildeo se apresenta da mesma forma que nas obras dos outros filoacutesofos Os

outros sistemas diz ele constroem sua coerecircncia por meio de deduccedilotildees de sentenccedilas entre si

desenvolvendo e repetindo o que jaacute estaacute contido nas proposiccedilotildees fundamentais

Diferentemente o sistema de Schopenhauer natildeo se fundamenta em cadeias de raciociacutenios

mas imediatamente no mundo intuitivo de modo que sua coerecircncia natildeo se apoia em meras

regras loacutegicas mas na concordacircncia natural das sentenccedilas com o mundo real dado na

consciecircncia120

Por isso de acordo com ele Schopenhauer natildeo precisou se preocupar com a

harmonia entre todas as suas sentenccedilas nem quando vez por outra proposiccedilotildees avulsas

pareciam ser incompatiacuteveis entre si Nas palavras dele ldquo[] a concordacircncia surgiu depois por

si mesma na medida em que as sentenccedilas se reuniram completamente porque ela natildeo eacute outra

coisa senatildeo a concordacircncia da realidade consigo mesma que nunca pode falharrdquo121

Na segunda carta das suas Neue Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche

Philosophie Frauenstaumldt tece consideraccedilotildees gerais sobre a presenccedila de inconsequecircncias e

contradiccedilotildees em grandes pensadores Para ele esses problemas natildeo diminuiriam o valor do

pensamento e uma vez que filoacutesofo algum jamais esteve totalmente livre deles seria

necessaacuterio entatildeo declarar todos os sistemas como invaacutelidos122

Incoerecircncias e contradiccedilotildees

natildeo significariam ausecircncia de verdades as quais nada teriam a ver com consequecircncia loacutegica

Assim diz Frauenstaumldt a harmonia formal pode comparecer inclusive em sistemas

dogmaacuteticos mas eacute a relaccedilatildeo com a experiecircncia que decide sobre a verdade deles Uma

filosofia livre de contradiccedilotildees que esteja fundamentada em conceitos e princiacutepios abstratos

sem correspondecircncia com a realidade seria menos vantajosa do que um sistema contraditoacuterio

ele explica ldquoPois de duas afirmaccedilotildees contraditoacuterias entre si pelo menos uma pode ser uma

verdadeira enquanto de duas natildeo contraditoacuterias entre si ambas podem ser falsasrdquo123

A

verdadeira contradiccedilatildeo se daria com relaccedilatildeo agrave experiecircncia aos fatos os uacutenicos que poderiam

servir de medida para se julgar se uma filosofia possui ou natildeo relevacircncia se deve ou natildeo ser

abandonada Na concepccedilatildeo de Frauenstaumldt embora possa ser repleto de contradiccedilotildees o

119

Ibidem p XXXI (traduccedilatildeo nossa) 120

Ibidem p XXXII-XXXIII 121

Ibidem p XXXIII (traduccedilatildeo nossa) 122

FRAUENSTAumlDT J Neue Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1876 p 4 123

Ibidem p 5 (traduccedilatildeo nossa)

- 209 -

pensamento schopenhaueriano natildeo carece de valor e na verdade o possui em maior grau do

que um sistema racional construiacutedo a priori124

Especificamente sobre o problema a que nos dedicamos Frauenstaumldt

defende Schopenhauer contra Zeller Na carta 27 ele afirma haver muita confusatildeo sobre a

relaccedilatildeo de Schopenhauer com o materialismo o que levaria os diversos comentadores a

sustentar diferentes posiccedilotildees Enquanto alguns entenderiam o filoacutesofo como materialista pela

sua concepccedilatildeo do intelecto como funccedilatildeo do ceacuterebro outros o acusariam de esvaziar a mateacuteria

em uma concepccedilatildeo idealista ao apresentaacute-la como representaccedilatildeo Outros ainda veriam um

ciacuterculo no fato de que o espiacuterito eacute derivado por Schopenhauer a partir da mateacuteria e ao mesmo

tempo a mateacuteria eacute esclarecida como representaccedilatildeo do espiacuterito125

No seu entendimento poreacutem a filosofia schopenhaueriana se diferencia

essencialmente do materialismo embora tambeacutem admita a mateacuteria como uma substacircncia

eterna e incriada que permanece sob todas as mudanccedilas perceptiacuteveis no mundo fenomecircnico e

agrave qual nenhuma substacircncia espiritual pode ser equiparada A mateacuteria no sentido

schopenhaueriano natildeo se relacionaria agrave intuiccedilatildeo apenas ao pensamento na medida em que

seria meramente um fazer feito isto eacute pura abstraccedilatildeo Ela natildeo seria um objeto da experiecircncia

mas como fundamento desta pertenceria agraves condiccedilotildees formais e a priori do conhecimento126

As determinaccedilotildees e os elementos que soacute se encontram a posteriori ao contraacuterio fariam parte

do lado empiacuterico do mundo e anunciariam a coisa em si Portanto diz Frauenstaumldt

Schopenhauer eacute materialista no sentido do antiespiritualismo mas eacute antimaterialista na

medida em que natildeo toma a mateacuteria como a coisa em si127

Na carta 28 Frauenstaumldt afirma que Schopenhauer diluiu a mateacuteria em

Vontade e em representaccedilatildeo tornando falsa tanto a afirmaccedilatildeo de que ele a dissolveu em uma

concepccedilatildeo idealista de fenocircmeno quanto a de que ele eacute um materialista puro e simples128

De

um lado contra a reduccedilatildeo da mateacuteria a representaccedilatildeo Schopenhauer teria apontado a Vontade

como o nuacutecleo dela De outro contra visatildeo de uma independecircncia realista da mateacuteria teria

argumentado que ela natildeo eacute a coisa em si que natildeo eacute independente de um sujeito cognoscente

De acordo com isso Frauenstaumldt entende que tambeacutem eacute falsa a acusaccedilatildeo de haver um ciacuterculo

124

Ibidem p 5 125

Ibidem p 138 126

Ibidem p 142 127

Ibidem p 145 128

Ibidem p 161

- 210 -

no qual a mateacuteria deriva da representaccedilatildeo e inversamente a representaccedilatildeo deriva da mateacuteria

pois os termos seriam usados em sentidos diferentes em ambas as sentenccedilas Nas palavras

dele ldquoO lado da mateacuteria que aparece que eacute condicionado a priori ele deduz da

representaccedilatildeo a representaccedilatildeo ao contraacuterio ele deduz do lado real da mateacuteria da Vontade

nos graus da vida animal Onde estaacute aqui o ciacuterculordquo129

Assim como a mateacuteria o ceacuterebro

tambeacutem possuiria um lado concernente agrave representaccedilatildeo e outro concernente agrave Vontade Do

ponto de vista ideal aquele oacutergatildeo eacute produto da representaccedilatildeo mas do ponto de vista real

enquanto coisa em si eacute o produtor da representaccedilatildeo Entatildeo diz Frauenstaumldt ldquoSegundo

Schopenhauer o ceacuterebro natildeo eacute produto da representaccedilatildeo no mesmo sentido em que eacute produtor

dela eacute produto da representaccedilatildeo enquanto objeto da intuiccedilatildeo externa e ao contraacuterio eacute

produtor da representaccedilatildeo segundo seu ser interno isto eacute como Vontade de conhecerrdquo130

Na interpretaccedilatildeo de Paul Deussen Schopenhauer foi o uacutenico poacutes-

kantiano que conseguiu desenvolver a filosofia de Kant a contento Na obra Allgemeine

Geschichte der Philosophie131

ele escreve que Kant realizou a separaccedilatildeo precisa entre os

elementos a priori e a posteriori da consciecircncia bem como demonstrou a necessidade de

ambos para a constituiccedilatildeo da experiecircncia Com isso contribuiu para a tarefa de toda a

filosofia que afirma Deussen sempre foi e sempre seraacute tornar compreensiacuteveis o objetivo e

subjetivo que formam a unidade do mundo132

Para ele Fichte Schelling Hegel e Herbart

passaram por cima da argumentaccedilatildeo kantiana e tentaram deduzir o mundo como um todo

partindo apenas de um daqueles dois elementos acreditando que assim poderiam eliminar as

supostas contradiccedilotildees entre eles Nas palavras de Deussen

Schopenhauer tomou um caminho totalmente diferente de todos os

pensadores mencionados posto que ele e somente ele entre todos os ilustres

sucessores de Kant apropriou-se perfeita e completamente dos resultados da

investigaccedilatildeo kantiana ndash reconhecidos por ele como irrefutaacuteveis e apenas

purgados de falsos abusos ndash trabalhou sobre eles e por assim dizer

atualizando no mesmo estilo Kant desenvolveu as consequecircncias das

doutrinas em todas as regiotildees da filosofia deste assim com todo direito

considera somente sua filosofia como desdobramento ateacute o fim da filosofia

kantiana133

129

Ibidem p 161 (traduccedilatildeo nossa) 130

Ibidem p 162 (traduccedilatildeo nossa) 131

DEUSSEN P Allgemeine Geschichte der Philosophie 2 Band 3 Abteilung 2 Auflage (Neuere

Philosophie von Descartes bis Schopenhauer) Leipzig Brockhaus 1920 132

Ibidem p 377 133

Ibidem p 378 (traduccedilatildeo nossa)

- 211 -

A respeito do problema que nos ocupa Deussen considera tratar-se de

uma questatildeo inevitaacutevel apontada natildeo somente no pensamento de Schopenhauer mas tambeacutem

no kantiano O ciacuterculo no qual a mateacuteria e a consciecircncia exigem-se mutuamente como

condiccedilatildeo uma da outra seria inexpugnaacutevel134

De um lado uma vez que o tempo o espaccedilo e a

causalidade satildeo formas da consciecircncia sem as quais a mateacuteria natildeo existe o mundo material

como um todo natildeo existiria sem a consciecircncia Em segundo natildeo se poderia negar que

conhecemos a consciecircncia unicamente como funccedilatildeo de um oacutergatildeo material o ceacuterebro o qual

diz Deussen ldquo[] para surgir teve como condiccedilatildeo um longo desenvolvimento da mateacuteria no

tempo e no espaccedilordquo135

Para ele as ciecircncias da natureza demonstram que o ciacuterculo eacute

irremediaacutevel pois apoacutes todas as pesquisas e descobertas o pesquisador retornaraacute ao ponto de

iniacutecio isto eacute agrave sua consciecircncia como condiccedilatildeo para os inumeraacuteveis desenvolvimentos da

mateacuteria descobertos O investigador perceberaacute entatildeo que partindo-se do inorgacircnico chega-se

por aperfeiccediloamentos contiacutenuos da mateacuteria ateacute o ceacuterebro humano isto eacute ateacute a consciecircncia

que poreacutem jaacute estava pressuposta desde o iniacutecio como condiccedilatildeo Portanto perceberaacute que tudo

aquilo natildeo passa de uma cadeia de representaccedilotildees na sua proacutepria consciecircncia136

Assim como Frauensaumldt Deussen tambeacutem considera que natildeo haacute de fato

um problema loacutegico na antinomia da faculdade do conhecimento pois a consciecircncia estaria

sendo tomada em sentidos diferentes aquela que origina o mundo seria distinta da que eacute

originada por este No primeiro caso seria a consciecircncia transcendental da qual surgem

tempo espaccedilo e mateacuteria no segundo seria a consciecircncia empiacuterica que somente pode surgir a

partir do tempo do espaccedilo e da mateacuteria137

Conforme Deussen o mundo eacute ao mesmo tempo

eterno e dependente das formas do intelecto de modo que a consciecircncia transcendental seria

tatildeo eterna ou alheia ao tempo quanto o proacuteprio mundo O ser das formas intelectuais estaria

entatildeo garantido e neles surgiriam todos os fenocircmenos incluindo as funccedilotildees cerebrais da

consciecircncia empiacuterica humana Esta uacuteltima surgiria no fenocircmeno a partir da transcendental de

modo que ambas teriam de ser distinguidas embora natildeo diferenciadas138

134

Ibidem p 456 135

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 136

Ibidem p 457 137

Ibidem loc cit 138

Ibidem p 458-459

- 212 -

Na obra Denker gegen den Strom139

Arthur Huumlbscher avalia que todos os

opositores de Schopenhauer agem de modo semelhante a saber valendo-se de objeccedilotildees e

argumentos chegam em um problema formal Para Huumlbscher eacute preciso lembrar que o

filoacutesofo realiza a passagem do primeiro para o segundo livro de O Mundo de modo

imediato e que a mudanccedila de pontos de vista natildeo eacute realizada por um tipo de inspiraccedilatildeo uacutenica

ou excepcional Na verdade diz ele a mudanccedila de pontos de vista faz parte do meacutetodo de

Schopenhauer que sempre obteacutem seus resultados pela alternacircncia de consideraccedilotildees e pela

surpreendente junccedilatildeo de observaccedilotildees opostas140

Como ele escreve ldquoHaacute transiccedilotildees de anaacutelise

epistemoloacutegica para a fisioloacutegica de loacutegica para psicoloacutegica Haacute um opor e unir de fatos da

experiecircncia com fatos para aleacutem da experiecircnciardquo141

Uma mesma linguagem tem de dar conta

de avanccedilos e retornos entre dois os reinos distintos o da representaccedilatildeo e o da coisa em si o

que no entanto exigiria o uso de dois oacutergatildeos diferentes Natildeo possuiacutemos um oacutergatildeo de

conhecimento que nos leve aleacutem da experiecircncia diz Huumlbscher ldquo[] nenhuma palavra ou

conceito que livre de qualquer ligaccedilatildeo com a intuiccedilatildeo possa ser expressatildeo imediata da visatildeo

metafiacutesicardquo142

Eacute aiacute entatildeo que deveraacute entrar a metaacutefora e a interpretaccedilatildeo para que se possa

expressar um sentido verdadeiro para se registrar e iluminar o desconhecido e intangiacutevel por

meio do conhecido e tangiacutevel

Huumlbscher considera que as objeccedilotildees ao pensamento de Schopenhauer

podem ser todas remetidas agravequelas mudanccedilas de pontos de vista e que a antinomia da teoria

do conhecimento eacute o exemplo mais conhecido entre as criacuteticas No fim de contas a questatildeo

giraria em torno do confronto irreconciliaacutevel entre o modo de consideraccedilatildeo realista e o

idealista no qual ambos os lados teriam razatildeo Portanto como ressaltado pelo proacuteprio

Schopenhauer seria tatildeo verdadeiro que a mateacuteria seja uma mera representaccedilatildeo do sujeito

cognoscente quanto que o sujeito cognoscente seja um produto da mateacuteria143

O mundo seria

entatildeo real do ponto de vista empiacuterico e ideal do ponto de vista transcendental sem que para

isso se exigisse um sujeito supraempiacuterico ou uma consciecircncia transcendente Colocado de

forma metafoacuterica ldquoEacute como se daacute no caso de duas afirmaccedilotildees contrapostas sobre uma esfera

139

HUumlBSCHER A Denker gegen den Strom Schopenhauer Gestern ndash Heute ndash Morgen 4 Durchgesehene

Auflage Bonn Bouvier 1988 140

Ibidem p 254 141

Ibidem p 255 (traduccedilatildeo nossa) 142

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 143

Ibidem p 256

- 213 -

oca ndash que seja cocircncava e que seja convexa ndash agraves quais se chega por meio da unificaccedilatildeo da visatildeo

que se tem no ponto de vista do observador ndash dentro ou fora da bolardquo144

Conforme Rudolf Malter a objetivaccedilatildeo da Vontade parece colocar o

transcendentalismo e a metafiacutesica de Schopenhauer em conflito Na obra Arthur

Schopenhauer Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens145

ele afirma que do

ponto de vista transcendental a representaccedilatildeo tem de ser tomada como dada enquanto do

ponto de vista da metafiacutesica ela somente pode existir por meio de um processo em que a

Vontade se objetiva a si mesma146

De fato diz Malter da perspectiva metafiacutesica a Vontade

se manifesta por meio da mateacuteria que eacute sua visibilidade e uma representaccedilatildeo imaterial eacute

impossiacutevel Como ele explica ldquoA presenccedila material da Vontade na objetivaccedilatildeo graduada da

bdquorepresentaccedilatildeo‟ eacute o organismo animal no qual por sua vez existe o proacuteprio representar

(consciecircncia) objetivamente no ceacuterebrordquo147

No entanto para Malter natildeo se poderia daiacute concluir que devesse haver

um ponto de vista objetivo a ser adotado antes mesmo que o mundo entrasse no horizonte da

representaccedilatildeo pois isso equivaleria a um salto da metafiacutesica da Vontade por sobre o

idealismo Quando Schopenhauer fala da representaccedilatildeo como uma objetivaccedilatildeo da Vontade

natildeo estaria afirmando que o entendimento ou a razatildeo alcanccedilariam o autoconhecimento mas

simplesmente que nas palavras desse autor ldquo[] o intelecto (que abrange entendimento e

razatildeo) enquanto intelecto eacute fenocircmeno e nesse sentido existe (natildeo como sujeito

transcendental) como mateacuteria enquanto eacute objetivaccedilatildeo da Vontaderdquo148

O ponto de vista do

idealismo natildeo seria aniquilado nem limitado por essa visatildeo objetiva do intelecto pois mesmo

quando o ser deste se torna visiacutevel pela sua realizaccedilatildeo material no ceacuterebro isso natildeo

significaria que este fosse condiccedilatildeo da representaccedilatildeo do ponto de vista transcendental do

mesmo modo que o idealismo eacute condiccedilatildeo da consideraccedilatildeo metafiacutesica No entender de Malter

Schopenhauer estava convicto de que o ponto de vista objetivo do intelecto soacute eacute possiacutevel

quando o ponto de vista subjetivo estaacute pressuposto149

Por conseguinte ele escreve

O ensinamento sobre a ldquovisatildeo objetiva do intelectordquo deve ser lido

metafisicamente mas a metafiacutesica da Vontade eacute concebida

144

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 145

MALTER R Arthur Schopenhauer Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens Sttutgart-Bad

Cannstatt FrommannHolzboog 1991 146

Ibidem p 268 147

Ibidem p 269 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 148

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 149

Ibidem p 270

- 214 -

transcendentalmente em muacuteltiplas camadas ndash e isso significa na concepccedilatildeo

transcendental da filosofia schopenhaueriana como um todo a ldquovisatildeo

objetiva do intelectordquo natildeo muda nada Ela apenas liberta a interpretaccedilatildeo

metafiacutesica da natureza adquirida no horizonte transcendental para a

consideraccedilatildeo empiacuterica posterior em especial nas ciecircncias anatocircmico-

fisioloacutegicas150

Volker Spierling expotildee seu entendimento sobre nosso tema na sua

introduccedilatildeo a Materialien zu Schopenhauers ldquoDie Welt als Wille und Vorstellungrdquo Para ele eacute

preciso considerar que Schopenhauer natildeo fundamenta sua filosofia no realismo nem no

idealismo mas sim na experiecircncia O filoacutesofo natildeo apoiaria seu pensamento em um objeto

independente de qualquer sujeito nem em um sujeito independente de qualquer objeto mas

na experiecircncia que implica ambos e os tem igualmente como condiccedilotildees151

Conforme

Spierling essa unidade natildeo pode ser rompida tomando-se qualquer um dois lados como

absoluto nem se pode deduzir a outra metade da experiecircncia a partir de apenas um deles Nas

suas palavras ldquoDesse modo eacute quebrada a unidade sujeito-objeto que Schopennhauer levou

para dentro da consciecircncia (como tambeacutem o princiacutepio de razatildeo suficiente) e por uma

problemaacutetica abstraccedilatildeo ou o subjetivo ou o objetivo eacute suposto original e filosoficamente

como o primeiro absolutordquo152

O cerne do idealismo schopenhaueriano seria a anaacutelise do surgimento da

realidade objetiva por meio da exposiccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo das classes de objetos e das

faculdades intelectuais Nessa anaacutelise embora a experiecircncia seja um produto subjetivo a

aparecircncia surgiria como algo real factual porque o trabalho do entendimento natildeo pode ser

sentido ou percebido pelo sujeito cognoscente153

No entendimento de Spierling daiacute resultaraacute

uma visatildeo transcendente do aspecto fisioloacutegico ou nas palavras dele ldquoAqui fica evidente que

Schopenhauer ao lado de determinaccedilotildees transcendental-imanentes utiliza tambeacutem

determinaccedilotildees fisioloacutegicas em sentido transcendenterdquo154

Poreacutem Schopenhauer teria boas

razotildees para conectar o intelecto ao ceacuterebro isto eacute natildeo seria uma associaccedilatildeo gratuita ou

arbitraacuteria Com efeito diz Spierling a operaccedilatildeo proacutepria do entendimento natildeo passa por

conceitos nem se relaciona com o pensamento racional mas eacute descrita pelo filoacutesofo como

uma funccedilatildeo fisioloacutegica do ceacuterebro presente em todos os animais e meramente subjetiva Da

subjetividade da accedilatildeo do entendimento bem como da sensaccedilatildeo dos sentidos resultaria o

150

Ibidem p 270-271 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 151

SPIERLING Volker Materialien zu Schopenhauers ldquoDie Welt als Wille und Vorstellungrdquo Herausgegeber

kommentiert und eingeleitet von Volker Spierling Frankfurt am Main Suhrkamp 1984 p 41 152

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 153

Ibidem p 45 154

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa)

- 215 -

verdadeiro idealismo transcendental e a natureza ilusoacuteria do mundo bem como o aparente

antimaterialismo radical de Schopenhauer155

A partir daiacute surge segundo Spierling um inevitaacutevel dilema As ciecircncias

devem necessariamente ultrapassar o idealismo transcendental pois suas conclusotildees mostram

que no decurso do tempo haacute um aperfeiccediloamento no sentido dos seres do mais simples aos

mais complexos contrariando a dependecircncia subjetiva de todos os objetos empiacutericos O

mesmo entendimento que criaria o mundo com sua causalidade a priori teria de ser

compreendido por sua vez como uma criaccedilatildeo causal156

Entatildeo escreve Spierling

ldquoSchopenhauer se enreda com isso em um ciacuterculo que consiste em que as condiccedilotildees

transcendental-idealistas do mundo teratildeo de ser pensadas simultaneamente como seus

resultados materialistasrdquo157

Natildeo obstante para esse autor a dependecircncia extrema e unilateral do

objeto em relaccedilatildeo ao sujeito tem necessariamente de ser completada com a investigaccedilatildeo das

suas condiccedilotildees objetivas e reais A proacutepria investigaccedilatildeo filosoacutefico-transcendental eacute que teria

conduzido Schopenhauer agraves duas posiccedilotildees divergentes de modo que o filoacutesofo teria sido

obrigado a seguir os dois caminhos opostos e admitir ambos com os mesmos direitos como

complementos muacutetuos Parar no idealismo transcendental teria sido o mesmo que tomar as

condiccedilotildees subjetivas do pensamento por conhecimento do objeto158

O correto na

interpretaccedilatildeo de Spierling eacute entender a questatildeo no sentido da metaacutefora que Schopenhauer

apresenta no sect 391 de ldquoMetaacuteforas paraacutebolas e faacutebulasrdquo de Parerga e Paralipomena Nesse

texto o filoacutesofo afirma que se trata de misteacuterio a razatildeo pela qual uma pessoa que se eleva

dentro de um balatildeo natildeo enxerga a si mesma subindo mas sim a Terra descendo159

Nesse

sentido escreve Spierling

Mas Schopenhauer quer ambos ele se eleva por assim dizer dentro do

balatildeo e reflete as proacuteprias condiccedilotildees subjetivas que decisivamente estatildeo laacute

para isso e tambeacutem o modo como ele deixa o mundo abaixo de si []

simultaneamente ele permanece abaixo no chatildeo portanto fora do balatildeo de

onde ele procura verificar as condiccedilotildees objetivo-realistas de sua elevaccedilatildeo

portanto tambeacutem de sua proacutepria reflexatildeo Ambos os tipos de condiccedilotildees

155

Ibidem p 47 156

Ibidem p 48 157

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 158

Ibidem p 49 159

PP II Gleichnisse Parabeln und Fabeln sect 391 p 763

- 216 -

valem para ele aqui de modo fundamentalmente equivalente isto eacute nenhuma

pode ser subsumida na outra160

Por fim no texto ldquoSchopenhauers subjektive und objektive

Betrachtungsweise des Intellektsrdquo161

Alfred Schmidt se dedica agrave antinomia da teoria do

conhecimento considerando que a questatildeo precisa ser conectada agrave visatildeo schopenhaueriana

acerca da eacutetica Sem tentar encontrar uma soluccedilatildeo para a questatildeo ele ressalta que o filoacutesofo

separa radicalmente o acircmbito do fiacutesico e o do moral na medida em que afasta a liberdade e a

responsabilidade do domiacutenio da natureza A natureza se conecta agrave representaccedilatildeo e com isso agrave

consciecircncia e agrave subjetividade na medida em que diz Schmidt todos os seres intuitivos

existem por meio das formas da representaccedilatildeo Natildeo obstante em razatildeo de sua dependecircncia

relativamente ao ceacuterebro o mundo intuitivo possuiria aleacutem das condiccedilotildees subjetivas tambeacutem

pressupostos objetivos e a questatildeo seria novamente a relaccedilatildeo entre real e ideal162

Assim

afirma Schmidt ldquoEle [Schopenhauer] indaga a bdquorelaccedilatildeo do ideal com o real‟ equiparando este

com a Vontade aquele com o mundo como fenocircmeno cerebral Este uacuteltimo eacute o bdquomundo na

cabeccedila‟ aquele o bdquomundo fora da cabeccedila‟rdquo163

Em vista disso o conhecimento mais puro e

mais perfeito seria o que se liberta da Vontade e entra no campo da eacutetica

Schmidt enfatiza que para Schopenhauer a perspectiva subjetiva dos

objetos eacute unilateral e relativa tendo necessariamente de ser completada pelo ponto de vista

objetivo que por seu turno exige a consideraccedilatildeo fisioloacutegica do intelecto Nas palavras dele

ldquoSeu ponto de vista empiacuterico pressupotildee a bdquodependecircncia universal e completa da consciecircncia

cognoscente em relaccedilatildeo ao ceacuterebro‟rdquo164

Daiacute decorreriam as afirmaccedilotildees simultacircneas de que a

cadeia hieraacuterquica e graduada dos seres naturais tem de ser pensada como fora do tempo e

tambeacutem de que o intelecto associado ao ceacuterebro eacute um produto tardio que exige uma histoacuteria

natural a qual por sua vez exige a correlaccedilatildeo entre sujeito e objeto dada no proacuteprio

intelecto165

Entatildeo escreve Schmidt ldquoA dificuldade de Schopenhauer se baseia em que ele

acredita poder incorporar verdades elementares do materialismo sem diminuiccedilatildeo da sua

bdquoconcepccedilatildeo idealista fundamental‟rdquo166

A representaccedilatildeo seria vista como o lado externo do

160

SPIERLING Volker Materialien zu Schopenhauers ldquoDie Welt als Wille und Vorstellungrdquo Herausgegeber

kommentiert und eingeleitet von Volker Spierling Frankfurt am Main Suhrkamp 1984 p 49-50 (traduccedilatildeo

nossa) (grifos do autor) 161

SCHMIDT A Schopenhauer subjektive und objektive Betrachtungsweise des Intellekts Schopenhauer-

Jahrbuch 86 2005 p 105-132 162

Ibidem p 107 163

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 164

Ibidem p 110-111 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 165

Ibidem p 112 166

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor)

- 217 -

mundo cujo centro eacute a Vontade entendida poreacutem como transcendente em relaccedilatildeo aos

elementos subjetivos do conhecimento O filoacutesofo misturaria o dualismo kantiano com o

monismo de Espinosa e diz Schmidt sua

Metafiacutesica a posteriori ultrapassa a natureza dada no cotidiano e na ciecircncia

na medida em que a interpreta e expotildee Ao decifrar o ldquoconjunto a

experiecircnciardquo alcanccedilam-se visotildees ldquoque natildeo vecircm agrave consciecircnciardquo O que se

oculta ldquodentro ou atraacutesrdquo da natureza eacute sempre apenas o que ldquoaparece nelardquo167

Natildeo obstante Schopenhauer admitiria o naturalismo na concepccedilatildeo

fisioloacutegica do ceacuterebro somente ateacute o ponto em que o idealismo se impusesse e promovesse a

exclusatildeo daquele Isso ocorreria por meio da perspectiva eacutetica na medida em que a teoria do

conhecimento teria evidenciado o caraacuteter secundaacuterio e ilusoacuterio do mundo fenomecircnico

segundo uma tendecircncia moral fundamental Nas palavras de Schmidt

Quanto agrave convicccedilatildeo de Schopenhauer de uma ordem do mundo uma

segunda moral ela seraacute possibilitada pela sua concepccedilatildeo filosoacutefico-

transcendental que relativiza a realidade objetiva do mundo entatildeo fica

evidente que este por sua vez eacute relativo agrave dependecircncia natural do intelecto

que Schopenhauer continuamente sublinha Como o proacuteprio intelecto eacute uma

parte da natureza natildeo pode contrapor-se a ela ndash que reduz suas pretensotildees

transcendentais ndash ldquocomo algo totalmente estranhordquo168

44 ndash Anaacutelise pessoal

Como a exposiccedilatildeo anterior deixou claro a filosofia de Schopenhauer tem

sido avaliada das mais diversas maneiras ao longo da Histoacuteria Com exceccedilatildeo das

apresentaccedilotildees de cunho geral cada inteacuterprete de sua obra procura um fio condutor que possa

guiar a compreensatildeo das vaacuterias facetas que ela apresenta e em funccedilatildeo disso podemos

encontrar interpretaccedilotildees que situam o ponto central do sistema no materialismo no idealismo

no pessimismo na esteacutetica na moral no consolo na trageacutedia na salvaccedilatildeo entre outros

167

Ibidem p 113 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 168

Ibidem p 125 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor)

- 218 -

Proporemos aqui uma leitura alternativa cuja motivaccedilatildeo estaacute nas tensotildees e dificuldades que o

pensamento schopenhaueriano revela aos seus leitores Ao que nos parece essas tensotildees e

dificuldades satildeo constitutivas essenciais isto eacute fazem parte da sua estrutura e natildeo podem ser

eliminadas Sintomaticamente o problema das contradiccedilotildees e dos conflitos entre teses opostas

tem permanecido no decurso do tempo e as tentativas de resoluccedilatildeo natildeo tiveram resultado

definitivo Para noacutes isso significa que a questatildeo eacute mais complexa do que se tem pensado e

exige uma mudanccedila de perspectiva e de abordagem

Partindo dessa convicccedilatildeo pensamos que eacute possiacutevel esclarecer a estrutura

da filosofia schopenhaueriana e as decisotildees teoacutericas tomadas pelo filoacutesofo com base na

concepccedilatildeo das chamadas loacutegicas paraconsistentes Nossa intenccedilatildeo natildeo eacute eliminar ou resolver

os problemas mas apontar uma perspectiva em que eles natildeo sejam estagnadores isto eacute natildeo

interrompam a investigaccedilatildeo como obstaacuteculos intransponiacuteveis Nesse sentido lembramos a

concepccedilatildeo de Schopenhauer sobre deduccedilotildees demonstraccedilotildees verdades e certezas Como

vimos para ele nem tudo pode ser demonstrado de modo exaustivo e isso natildeo significa

prejuiacutezo algum para a verdade ou a certeza acerca das afirmaccedilotildees Haacute diversos conhecimentos

indemonstraacuteveis e simultaneamente verdadeiros e certos como as intuiccedilotildees a priori do

tempo e do espaccedilo o uacuteltimo elo das cadeias de raciociacutenios e o proacuteprio princiacutepio de razatildeo De

fato Schopenhauer considera que as verdades trazidas agrave tona por demonstraccedilatildeo satildeo as

abstratas conhecidas somente por conceitos e que sua persuasatildeo natildeo eacute tatildeo forte como as

ligadas a intuiccedilotildees ou a conhecimentos a priori Eacute a diferenccedila entre convictio e cognitio que

faz a uacuteltima preferiacutevel agrave primeira Em vista disso julgamos que a loacutegica natildeo pode ser tratada

como um entrave agrave compreensatildeo e avaliaccedilatildeo do pensamento schopenhaueriano

principalmente na atualidade em que os pressupostos claacutessicos tecircm sido relativizados e que

diferentes tipos de loacutegica tecircm servido a distintos objetos de estudo

A perspectiva segundo a qual consideramos possiacutevel compreender a

filosofia de Schopenhauer com todas as suas tensotildees eacute a da loacutegica paraclaacutessica novo ramo

das loacutegicas paraconsistentes desenvolvido pelo loacutegico brasileiro Newton da Costa Dentro do

abrangente campo das loacutegicas natildeo claacutessicas as loacutegicas paraconsistentes voltam-se para o

princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo que estaacute na base de todas as questotildees que discutimos neste

trabalho com resultados uacuteteis para noacutes Sem duacutevida o surgimento e o desenvolvimento

dessas loacutegicas satildeo fenocircmenos recentes localizados no seacuteculo XX o que significa que natildeo

havia nada semelhante nos tempos em que Schopenhauer vivia e pensava Dessa perspectiva

- 219 -

a anaacutelise que pretendemos poderia parecer inusitada e fora de propoacutesito ainda mais se

considerarmos que o proacuteprio Schopenhauer remeteu todas as contradiccedilotildees que detectou agrave

oposiccedilatildeo dos pontos de vista da Vontade e da reprentaccedilatildeo Estariacuteamos nesse caso utilizando

ideias posteriores como recurso para avaliaccedilatildeo de pensamentos aos quais historicamente elas

natildeo se aplicariam Contudo natildeo empregaremos as criacuteticas contemporacircneas ao princiacutepio de

natildeo contradiccedilatildeo para afirmar que a filosofia schopenhaueriana estaria isenta de observaacute-lo Ao

contraacuterio tomamos suas dificuldades como fatos que todavia podem ser mais bem

compreendidos se adotarmos um ponto de partida diferente E no nosso entendimento ao se

investigar e tentar compreender qualquer questatildeo relacionada ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo

nos seus significados loacutegico ou filosoacutefico natildeo se pode prescindir das contribuiccedilotildees teoacutericas

mais recentes

Desse modo analisaremos a estrutura do mundo projetado pela filosofia

schopenhaueriana com base na conceituaccedilatildeo e discussatildeo da loacutegica paraclaacutessica O objeto da

anaacutelise aqui natildeo eacute exatamente o discurso de Schopenhauer ou o possiacutevel desrespeito ao

princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo nas suas obras mas os eixos do mundo delineado por ele que

nos parecem formar uma composiccedilatildeo paraclaacutessica Assim eacute agrave concepccedilatildeo schopenhaueriana

de mundo apoiada firmemente na intuiccedilatildeo empiacuterica que queremos aplicar as ideias acerca da

paraconsistecircncia Como dissemos anteriormente natildeo queremos formalizar a filosofia de

Schopenhauer natildeo pretendemos calcular seus teoremas ou conclusotildees para provar se eacute ou natildeo

inconsistente Ademais nossa pesquisa mostrou que nada disso eacute necessaacuterio pois a

inconsistecircncia eacute uma de suas caracteriacutesticas mais fundamentais

Newton da Costa eacute reconhecido como fundador das loacutegicas

paraconsistentes e como um dos mais importantes loacutegicos da atualidade pelo

desenvolvimento dos caacutelculos Cn Nesses caacutelculos a violaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo

natildeo representa obstaacuteculo agraves deduccedilotildees de forma que natildeo eacute necessaacuterio eliminarem-se as

inconsistecircncias A atenccedilatildeo se volta para a supressatildeo da trivialidade que representa o

verdadeiro problema da contradiccedilatildeo e uma consequecircncia das teorias inconsistentes nas quais

se podem deduzir quaisquer proposiccedilotildees mesmo as contraditoacuterias entre si Com efeito em

funccedilatildeo da trivialidade em uma mesma teoria eacute possiacutevel deduzir uma proposiccedilatildeo sua

contraditoacuteria e na verdade quaisquer proposiccedilotildees Daiacute resulta que uma teoria contraditoacuteria

natildeo ofereceria condiccedilotildees para que se pudesse estabelecer e demonstrar a diferenccedila entre o

verdadeiro e o falso dentro de seus proacuteprios pressupostos O desenvolvimento das loacutegicas

- 220 -

paraconsistentes poreacutem abriu a possibilidade de que as inconsistecircncias sejam admitidas

pressupondo que existem diversas situaccedilotildees em que elas natildeo conduzem necessariamente agrave

trivialidade E o meio de fazecirc-lo eacute desenvolvendo o caacutelculo de um modo tal que duas

premissas contraditoacuterias possam ser verdadeiras mas que sua conjunccedilatildeo natildeo possa ser

deduzida

Conforme Da Costa entre os objetivos das loacutegicas paraconsistentes estaacute

o de contribuir para o entendimento das leis claacutessicas do conceito de negaccedilatildeo e de

contradiccedilatildeo bem como de sistemas inconsistentes169

Natildeo abordaremos as teacutecnicas de caacutelculo

que fogem ao nosso escopo mas as consideraccedilotildees sobre o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo e

sobre o fundamento da loacutegica paraclaacutessica satildeo interessantes para noacutes170

No acircmbito da loacutegica

claacutessica o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute visto como necessariamente verdadeiro evidente

por si mesmo indemonstraacutevel e universal valendo para todo objeto e todo raciociacutenio Sobre

esse ponto Da Costa argumenta que a loacutegica contemporacircnea relativizou o conceito de

demonstraccedilatildeo e que jaacute natildeo se aceita a existecircncia de princiacutepios loacutegicos uacuteltimos Conforme a

posiccedilatildeo recente cada princiacutepio deve ser demonstrado a partir de outros que jaacute o foram de

modo que mesmo sendo utilizada em mecanismos dedutivos a lei de natildeo contradiccedilatildeo natildeo

poderia ser tomada como indemonstraacutevel171

De acordo com isso as leis empregadas devem ser justificadas

pragmaticamente dentro de um conjunto concatenado de postulados A justificaccedilatildeo de

quaisquer princiacutepios teria de ser feita tomando os sistemas loacutegicos como um conjunto e natildeo

princiacutepio por princiacutepio separadamente A negaccedilatildeo a conjunccedilatildeo a disjunccedilatildeo e quaisquer

conceitos podem ter significados distintos em diferentes sistemas de forma que natildeo se

poderia aplicar uma noccedilatildeo uacutenica a quaisquer objetos de estudo possiacuteveis Como escreve Da

Costa ldquo[] como defender a lei da contradiccedilatildeo isoladamente sem se levar em conta os

demais postulados que definem os conceitos basilares envolvidos no seu enunciadordquo172

A

justificaccedilatildeo adequada entatildeo eacute aquela que leva em conta um uso localizado do princiacutepio natildeo

universalizado dentro de um sistema loacutegico determinado e com um fim especiacutefico A

extrapolaccedilatildeo dele para todos os objetos e relaccedilotildees seria algo arbitraacuterio e injustificado pois sua

169

DA COSTA Newton Carneiro Affonso Ensaio sobre os fundamentos da loacutegica 3ordf ed Satildeo Paulo Hucitec

2008 p 172 170

Para um detalhamento maior dos caacutelculos paraconsistentes cf DA COSTA Newton Carneiro Affonso

Sistemas formais inconsistentes Curitiba UFPR 1993 171

DA COSTA op cit p 122 172

Ibidem p 126

- 221 -

supressatildeo natildeo significaria necessariamente a inviabilizaccedilatildeo pensamento do discurso ou da

comunicaccedilatildeo de ideias

Aleacutem disso embora jamais tenham sido observadas contradiccedilotildees reais e

concretas em objetos empiacutericos natildeo estaria provado que elas natildeo existam no mundo Na

verdade conforme Da Costa elas poderiam ser constatadas apenas mediatamente por meio

de inferecircncias na medida em que diz dele ldquonatildeo haacute contradiccedilotildees diretamente perceptiacuteveis

pois as negaccedilotildees correlacionadas a juiacutezos de percepccedilatildeo natildeo satildeo elas mesmas perceptiacuteveis

(pelo menos em nossa experiecircncia cotidiana)rdquo173

Nesse sentido o princiacutepio de natildeo

contradiccedilatildeo natildeo estaria demonstrado tampouco a impossibilidade de haver contradiccedilotildees reais

Sua validade seria a de um postulado em um sistema loacutegico especiacutefico que teria de ser

escolhido conforme o campo particular no qual seria aplicado Um princiacutepio como esse seria

como uma hipoacutetese acerca do funcionamento da realidade e deveria ser aceito na medida em

que se liga ou natildeo a ela Como afirma Da Costa

Positivamente sem se recorrer agrave especulaccedilatildeo soacute se pode sustentar que as

normas loacutegicas regem certas categorias que empregamos como andaimes

para nos assenhorearmos de nosso contorno no tocante ao seu significado

empiacuterico ndash encaradas como parte da ciecircncia satildeo a posteriori e entre

limites pragmaacuteticas regras para jogar174

A escolha de um sistema loacutegico portanto deve ser pautada pela

compatibilidade com o objeto ao qual se aplicaraacute e pela maior clareza e significaccedilatildeo que

imprime agraves teses e conceitos Por conseguinte a inconsistecircncia de uma teoria natildeo pode ser

tomada como implicando necessariamente sua inadequaccedilatildeo ao mundo empiacuterico nem a

invalidade da sua cadeia argumentativa como um todo Com recurso apenas agrave loacutegica diz Da

Costa natildeo se pode garantir que natildeo existam contradiccedilotildees reais e concretas no mundo as quais

poderatildeo estar escondidas ou ser imperceptiacuteveis Caso existam elas seratildeo concluiacutedas

inferidas posto que as negaccedilotildees de juiacutezos de percepccedilatildeo natildeo podem elas mesmas ser intuiacutedas

Sobre esse ponto lembramos que Schopenhauer tambeacutem considerou a contradiccedilatildeo como uma

impossibilidade loacutegica e natildeo de ordem fiacutesica ou matemaacutetica175

A loacutegica paraclaacutessica eacute um ramo bastante novo das loacutegicas

paraconsistentes pensado por Da Costa com relaccedilatildeo a uma das interpretaccedilotildees possiacuteveis do

173

Ibidem p 130 174

Ibidem p 134-135 175

WWWII Kap 4 p 46 MII cap 4 p 40-41

- 222 -

chamado Princiacutepio da Complementaridade de Niels Bohr176

No texto Complementarity and

paraconsistency177

escrito por ele em conjunto com Deacutecio Krause os autores ressaltam que

natildeo haacute consenso entre os estudiosos sobre o sentido exato que Bohr teria atribuiacutedo ao

princiacutepio e que natildeo pretendem realizar uma exegese das ideias do fiacutesico A intenccedilatildeo eacute

evidenciar a estrutura loacutegica de uma teoria que fosse elaborada com base nele entendido

numa perspectiva especiacutefica facultada por excertos de Bohr178

ldquoAssimrdquo escrevem os autores

ldquosugerimos que sob uma interpretaccedilatildeo possiacutevel do que deve ser entendido por

complementaridade a loacutegica subjacente a uma tal teoria eacute a loacutegica paraclaacutessica (proposta

primeiro por Da Costa e Vernengo 1999)rdquo179

O sentido que Da Costa e Krause referem ao conceito de

complementaridade eacute especialmente relevante para noacutes qual seja o de incompatibilidade

entre teses Como eles explicam ldquoEm outras palavras parece perfeitamente razoaacutevel

considerar aspectos complementares como incompatiacuteveis no sentido de que sua combinaccedilatildeo

numa descriccedilatildeo uacutenica pode levar a dificuldadesrdquo180

O conceito de complementaridade desse

modo relaciona-se a teses ou proposiccedilotildees que natildeo podem ser combinadas porque se excluem

reciprocamente Sobre esse ponto no artigo The logic of complementarity eles esclarecem

Deve ser enfatizado que nosso modo de caracterizar a complementaridade

natildeo significa que proposiccedilotildees complementares satildeo sempre contraditoacuterias

para α e β acima uma natildeo eacute necessariamente a negaccedilatildeo da outra No entanto

como proposiccedilotildees complementares podemos derivar delas (na loacutegica

claacutessica) uma contradiccedilatildeo para exemplificar observamos que bdquox eacute uma

partiacutecula‟ natildeo eacute a negaccedilatildeo direta de bdquox eacute uma onda‟ mas bdquox eacute uma partiacutecula‟

implica que x natildeo eacute uma onda Essa leitura da complementaridade como natildeo

indicando contradiccedilatildeo estrita como jaacute deixamos claro estaacute de acordo com o

proacuteprio Bohr []181

Apesar dessa muacutetua exclusatildeo ambos os aspectos complementares satildeo

176

Cf DA COSTA N VERNENGO R J Sobre algunas loacutegicas paraclaacutesicas y el anaacutelisis del razonamiento

juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho Universidad de Alicante Centro de Estudios

Constitucionales 19 1996 p 183-200 DA COSTA N KRAUSE D Complementary and paraconsistency In

RAHMAN Shahid et al (eds) Logic Epistemology and the Unity of Science (Book 1) Dordrecht Kluwer

Ademic Publishers 2004 DA COSTA N KRAUSE D The logic of complementarity Departamento de

Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina 2003 DA COSTA N KRAUSE D Remarks on the

applications of paraconsistency Grupo de pesquisa em Loacutegica e fundamentos da ciecircncia Departamento de

Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina 2003 177

DA COSTA N KRAUSE D Complementary and paraconsistency In RAHMAN Shahid et al (eds)

Logic Epistemology and the Unity of Science (Book 1) Dordrecht Kluwer Ademic Publishers 2004 178

Ibidem p 1-2 179

Ibidem p 2 (traduccedilatildeo nossa) (grifos dos autores) 180

Ibidem p 5 (traduccedilatildeo nossa) (grifos dos autores) 181

DA COSTA N KRAUSE D The logic of complementrity Departamento de Filosofia Universidade

Federal de Santa Catarina 2003 p 12 (traduccedilatildeo nossa) (grifos dos autores)

- 223 -

considerados imprescindiacuteveis para uma compreensatildeo completa e adequada do objeto Daiacute a

necessidade de se pensar numa forma de mantecirc-los sem que a teoria como um todo venha a

ser inviabilizada Do ponto de vista claacutessico a existecircncia de duas teses verdadeiras permite

deduzir a conjunccedilatildeo delas e isso eacute o que torna complicado manterem-se enunciados

mutuamente excludentes num mesmo sistema Em vista disso a proposta da loacutegica

paraclaacutessica eacute a de impedir que a conjunccedilatildeo de aspectos complementares possa ser deduzida

sem que a teoria tenha de abrir matildeo de algum deles Assim numa teoria cuja loacutegica de base eacute

a paraclaacutessica a existecircncia de proposiccedilotildees incompatiacuteveis natildeo eacute impugnada somente a

conjunccedilatildeo delas o seraacute ldquoEm outras palavrasrdquo explicam Da Costa e Krause ldquoas teorias que

caracterizaremos abaixo satildeo tais que de γ e not γ natildeo podemos deduzir γ ˄not γ isto eacute uma

contradiccedilatildeordquo182

Eacute importante observarmos que embora tenha sido pensado no contexto

da fiacutesica quacircntica nada impede que o Princiacutepio da Complementaridade seja tomado em

sentido mais amplo Da Costa e Krause argumentam que Bohr o considerou como parte de

uma atitude epistemoloacutegica geral capaz de evitar dificuldades tambeacutem em outros campos da

ciecircncia Para eles o Princiacutepio da Complementaridade natildeo se configura apenas como um

preceito especiacutefico de uma ciecircncia em particular a fiacutesica mas aleacutem disso como um princiacutepio

metodoloacutegico regulativo183

Em suma nas palavras dos autores ldquoDe qualquer modo nossa

definiccedilatildeo eacute muito geral e eacute claro natildeo eacute restrita agrave fiacutesica sendo uacutetil tambeacutem em outras

situaccedilotildeesrdquo184

Segundo pensamos essa concepccedilatildeo da loacutegica paraclaacutessica contribui para

uma compreensatildeo mais completa do pensamento schopenhaueriano e com isso tambeacutem da

antinomia com a qual nos ocupamos Como vimos Schopenhauer vincula sua filosofia agrave

discussatildeo histoacuterica sobre a relaccedilatildeo entre o ideal e o real Para ele Platatildeo Kant e os Vedas

ensinaram a total diferenccedila entre os dois domiacutenios e abriram caminho para sua proacutepria

interpretaccedilatildeo do mundo como representaccedilatildeo e Vontade O ideal e o real satildeo como dois lados

de uma mesma esfera um externo e o outro interno um ilusoacuterio e o outro genuiacuteno um

182

DA COSTA N KRAUSE D Complementary and paraconsistency In RAHMAN Shahid et al (eds)

Logic Epistemology and the Unity of Science (Book 1) Dordrecht Kluwer Ademic Publishers 2004 p 2

(traduccedilatildeo nossa) 183

DA COSTA N KRAUSE D The logic of complementrity Departamento de Filosofia Universidade

Federal de Santa Catarina 2003 p 2 184

DA COSTA N KRAUSE D Remarks on the applications of paraconsistency Grupo de pesquisa em

Loacutegica e fundamentos da ciecircncia Departamento de Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina 2003 p

16 (traduccedilatildeo nossa)

- 224 -

efecircmero e o outro perene Na condiccedilatildeo de representaccedilatildeo o lado externo do mundo eacute criaccedilatildeo

de um intelecto sendo por isso mesmo fenomecircnico mutaacutevel e pereciacutevel Na condiccedilatildeo de

coisa em si por sua vez a Vontade natildeo pode ser investida nas formas do conhecimento o que

a torna alheia ao tempo ao espaccedilo e agrave causalidade e a configura como o mais real o imutaacutevel

e o impereciacutevel Em que pese serem descritos por Schopenhauer como opostos ambos os

lados satildeo igualmente necessaacuterios para uma explicaccedilatildeo correta e completa do mundo Na nossa

interpretaccedilatildeo o real e o ideal satildeo apresentados em condicionamento muacutetuo pelo filoacutesofo na

medida em que ele enfatiza em diversos momentos que a representaccedilatildeo soacute o eacute com relaccedilatildeo agrave

Vontade e tambeacutem que o que conhecemos como a coisa em si soacute o eacute em relaccedilatildeo ao

fenocircmeno Natildeo faria sentido portanto imaginar o mundo sem uma das suas partes

constituintes fosse a coisa em si fosse o fenocircmeno do mesmo modo que natildeo faz sentido

separar sujeito e objeto Por conseguinte a filosofia schopenhaueriana parte de uma

convicccedilatildeo que envolve tanto exclusatildeo quanto exigecircncia muacutetua entre os acircmbitos do real e do

ideal sendo totalmente compatiacutevel com a concepccedilatildeo acerca do Princiacutepio de

Complementaridade tal como exposto por Da Costa e Krause no tocante agrave loacutegica

paraclaacutessica

No nosso entendimento eacute necessaacuterio realizarmos aqui uma

desambiguaccedilatildeo Schopenhauer tambeacutem associa o real e o ideal como complementares em

sentidos diferentes quais sejam o de ideal como o transcendental e o de real como o

empiacuterico Nesse caso como no anterior cada aspecto eacute exigido e excluiacutedo simultaneamente

em relaccedilatildeo ao outro e sua complementaridade transparece em certos pontos da investigaccedilatildeo

nos quais os fundamentos de ambos se cruzam Esses satildeo os momentos em que Schopenhauer

chega aos limites extremos do idealismo e onde seu discurso se torna obscuro e equiacutevoco

Com efeito o idealismo chega ao seu limite no ponto em que precisa assegurar a realidade

empiacuterica de um mundo que eacute criado por um intelecto Ou seja o idealismo tem de ser

radicalmente afirmado mas natildeo a ponto de se tornar absoluto e eliminar qualquer referecircncia agrave

experiecircncia Entatildeo a parte ideal do mundo deve ser completada com elementos reais nesse

caso os dados sensoriais advindos dos sentidos que garantiratildeo que o objeto seja

condicionado pelo sujeito sem deixar de ser empiricamente real No entanto a demonstraccedilatildeo

da idealidade se faz excluindo os conteuacutedos empiacutericos ou minimizando sua relevacircncia no

processo do conhecer para que se mantenha seu caraacuteter de criaccedilatildeo intelectual Daiacute deriva a

necessidade de se admitir que o espaccedilo esteja na cabeccedila e que esta ao mesmo tempo esteja

no espaccedilo natildeo se pode abrir matildeo do idealismo (que o espaccedilo seja uma forma a priori do

- 225 -

intelecto) nem do realismo (que a cabeccedila tenha existecircncia real no mundo dos objetos) Daiacute

tambeacutem a estranheza que sentimos ao observar o mesmo objeto nas duas perspectivas

mutuamente excludentes porque natildeo podemos abandonar nenhuma delas

Para considerarmos a complementaridade pelo prisma do realismo

precisamos atentar para os dois sentidos de real expostos acima Em primeira instacircncia o real

eacute o aspecto fiacutesico do mundo a sensaccedilatildeo as intuiccedilotildees o conjunto da experiecircncia numa

palavra eacute o fundamento objetivo que o idealismo natildeo deve anular Em segunda instacircncia o

real eacute o metafiacutesico o que estaacute aleacutem do conhecimento empiacuterico numa palavra a Vontade que

o idealismo natildeo permite acessar Tomado no primeiro sentido a argumentaccedilatildeo acerca do real

precisa garantir que elementos empiacutericos possam dar sustentaccedilatildeo ao idealismo sem que sejam

concebidos como em si isto eacute devem ancorar o lado ideal mas sem anular o aspecto de

relatividade do mundo como representaccedilatildeo Nesse caso poreacutem ideal e real distinguem-se

como o formado e o informe o regrado e o aleatoacuterio o subjetivo e o objetivo Tomado no

segundo sentido por sua vez o real eacute exatamente aquilo que ultrapassa a representaccedilatildeo que a

sustenta remediando sua relatividade e inconstacircncia e o que garante que o mundo natildeo seja

pura e simplesmente aparecircncia sem nada que apareccedila Nesse sentido contudo ideal e real se

excluem como o fenocircmeno e a coisa em si o externo e o interno o temporal e o atemporal o

extenso e o inextenso Daiacute deriva a necessidade de se admitir que o primeiro animal

cognoscente engendre o mundo da representaccedilatildeo e que o mundo da representaccedilatildeo engendre o

mesmo animal aqui tambeacutem natildeo se pode abrir matildeo do idealismo (que a representaccedilatildeo seja

produto do intelecto animal) nem do realismo (que a Vontade seja a essecircncia do mundo e

produza o intelecto animal para seus fins) A complementaridade das perspectivas nesse caso

situa o primeiro animal em dois pontos diferentes do tempo sem que possamos retiraacute-lo de

nenhum deles

Por conseguinte nos dois sentidos mencionados o lado real do mundo eacute

exigido e afastado simultaneamente em relaccedilatildeo ao lado ideal no primeiro sentido o real eacute a

necessaacuteria referecircncia agrave fisiologia ao corpo agrave comprovaccedilatildeo das ciecircncias empiacutericas ao mesmo

tempo em que deve ser controlado para natildeo inviabilizar o idealismo No segundo sentido o

real eacute o metafiacutesico o sustentaacuteculo necessaacuterio da representaccedilatildeo mas que natildeo pode tomar as

formas do intelecto isto eacute natildeo pode ser conhecido nem alcanccedilado No nosso modo de ver

todos esses aspectos se condensam na concepccedilatildeo de que os conteuacutedos empiacutericos introduzem

no pensamento elementos que natildeo podem ser completamente conhecidos por natildeo serem

- 226 -

condicionados pelas formas do sujeito Quanto menos elementos empiacutericos contiver mais um

objeto pode ser conhecido quanto mais conteuacutedos empiacutericos exibir menos poderaacute ser

compreendido Como resultado a Vontade se anuncia e se revela nos elementos sensiacuteveis do

mundo como representaccedilatildeo que satildeo conhecidos somente a posteriori tornando-se entatildeo

necessaacuterio aceitar como verdadeiro que ela se exibe na experiecircncia tanto quanto que a

ultrapassa

Com base nessa perspectiva esclarece-se por que Schopenhauer reafirma

e ressalta a unilateralidade do idealismo e do realismo para a compreensatildeo do mundo como

representaccedilatildeo185

Ambos contecircm fundamentos verdadeiros que natildeo podem ser excluiacutedos de

uma explicaccedilatildeo completa das coisas isto eacute precisam ser combinados para que um compense

as insuficiecircncias do outro A uniatildeo dos pontos de vista objetivo e subjetivo eacute entatildeo

imprescindiacutevel apesar de todos os conflitos e oposiccedilotildees que possam surgir a partir dela De

modo semelhante somente com o idealismo ou com o realismo dificilmente se esgotaraacute a

compreensatildeo da relaccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa em si Nesse uacuteltimo caso embora sejam

radicalmente contrapostas a exigecircncia muacutetua entre Vontade e representaccedilatildeo eacute ainda mais

necessaacuteria na medida em que no fim de contas constituem o mesmo ente De acordo com

isso a uniatildeo dos pontos de vista demonstraraacute que todas as coisas satildeo idecircnticas e que assim

como noacutes tudo eacute Vontade A complementaridade entre idealismo e realismo nesse aspecto

remete novamente agrave imagem circular formada pela antinomia da teoria do conhecimento

Com efeito do mesmo modo como a chuva que se forma pela evaporaccedilatildeo e a aacutegua que molha

a terra satildeo uma e a mesma coisa apenas cristalizada momentaneamente em pontos diferentes

na consideraccedilatildeo do processo tambeacutem o animal e o mundo satildeo um e o mesmo apenas

considerados imperfeitamente em pontos distintos de uma linha do tempo De fato tanto o

animal quanto o mundo satildeo representaccedilotildees e somente nesse sentido pode-se afirmar que haja

multiplicidade e que um engendre o outro No fundamento de tudo poreacutem a Vontade

permanece una e incoacutelume Sobre esse ponto em uma nota do texto ldquoPensamentos sobre o

intelecto em geral e no tocante a cada relaccedilatildeordquo de Parerga e Paralipomena Schopenhauer

escreve de modo interessante

Se olho algum objeto talvez uma paisagem e imagino que nesse momento

me cortassem a cabeccedila ndash sei que o objeto permaneceria estaacutetico e inabalaacutevel

185

Cf PP II Kap 1 sect13 p 20 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de

Miguel Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 13 p 198-199

- 227 -

mas isso implica nos seus fundamentos mais uacuteltimos que eu tambeacutem

existiria Isso seraacute claro para poucos mas para estes foi dito186

Por fim conforme exposto ao longo deste trabalho a filosofia

schopenhaueriana sustenta a identidade de todas as coisas a unidade da Vontade e a ilusatildeo da

multiplicidade Sustenta tambeacutem que a Vontade eacute idecircntica ao corpo e que este eacute

imprescindiacutevel para a construccedilatildeo do mundo como representaccedilatildeo Portanto segundo

pensamos a dimensatildeo corporal do mundo reuacutene todas as peccedilas que fazem dele um conjunto

inconsistente em que o interno e o externo o real e o ilusoacuterio o fenocircmeno e a coisa em si se

unem ao mesmo tempo em que se repelem mutuamente Essa inconsistecircncia como dissemos

pode ser mais bem compreendida se associarmos o mundo schopenhaueriano agrave loacutegica

paraclaacutessica na qual teses incompatiacuteveis natildeo resultam em problemas se natildeo conduzem agrave

trivialidade E esse nos parece ser exatamente o caso pois A rarr M e M rarr A podem ser

tomadas como proposiccedilotildees complementares sem que por isso levem a uma contradiccedilatildeo e por

conseguinte a filosofia schopenhaueriana natildeo pode ser classificada como trivial

186

Ibidem Kap 3 sect28 p 48 ibidem sect 28 p 232

- 228 -

Referecircncias

Obras de Schopenhauer consultadas

SCHOPENHAUER A Saumlmmtliche Werke 6 Baumlnde Leipzig Brockhaus 1873

Herausgegeben von Julius Frauenstaumldt

_____ Saumlmtliche Werke 16 Baumlnde Muumlnchen Piper 1911-1942 Herausgegeben von Paul

Deussen

_____ Zuumlrcher Ausgabe 10 Baumlnden Zuumlrich Diogenes Verlag 2007 Der Text folgt der

historisch-kritischen Ausgabe von Arthur Huumlbscher

_____ Die Welt als Wille und Vorstellung I und II Gesamtausgabe Muumlnchen Deutschen

Taschenbuch 2011 Nach den Ausgaben letzter Hand herausgegeben von Ludger Luumltkehaus

_____ Kritik der kantischen Philosophie In Die Welt als Wille und Vorstellung I und II

Gesamtausgabe Muumlnchen Deutschen Taschenbuch 2011 Nach den Ausgaben letzter Hand

herausgegeben von Ludger Luumltkehaus

_____ Saumlmtliche Werke 5 Baumlnde StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 2012 Textkritisch

bearbeitet und herausgegeben von Wolfgang Frhr von Loumlhneysen

_____ De la cuaacutedruple raiacutez del principio del razoacuten suficiente Traduccioacuten y proacutelogo de

Leopoldo-Eulogio Palacios Madrid Gredos 1981

_____ De la volonteacute dans la nature Traduction avec introduction et notes par Eacutedouard Sans

Paris Quadrige PUF 1986

_____ Sobre la voluntad en la naturaleza 1ordf ed 3ordf reimpr Traduccioacuten de Miguel de

Unamuno Proacutelogo y notas de Santiago Gonzaacutelez Noriega Madrid Alianza 1987

_____ Criacutetica da filosofia kantiana Traduccedilatildeo de Wolfgang Leo Maar e Maria Luacutecia Mello e

Oliveira Cacciola Satildeo Paulo Nova Cultural 1988 (Coleccedilatildeo Os pensadores)

_____ Los designios del destino Estudio preliminar traduccioacuten y notas de Roberto

Rodriacutegues Aramayo Madrid Tecnos 1994

- 229 -

_____ Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de Miguel

Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996

_____ Sobre a visatildeo e as cores um tratado Traduccedilatildeo de Erlon Joseacute Paschoal Nova

Alexandria Satildeo Paulo 2003

_____ Fragmentos para a histoacuteria da filosofia Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas de Maria

Luacutecia Cacciola Satildeo Paulo Iluminuras 2003

_____ El Mundo como Voluntad y Representacioacuten Traduccioacuten de Rafael-Joseacute Diacuteaz

Fernaacutendez y Mordf Montserrat Armas Concepcioacuten Revisioacuten de Joaquiacuten Chamorro Mielke

Madrid Akal Editores 2005

_____ O mundo como vontade e representaccedilatildeo 1ordf tomo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo notas e

iacutendices de Jair Barboza Satildeo Paulo UNESP 2005

_____ O mundo como vontade e representaccedilatildeo 2ordf tomo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo notas e

iacutendices de Jair Barboza Satildeo Paulo UNESP 2015

Obras gerais consultadas

AMERIKS Karl (ed) The Cambridge Companion to German Idealism Cambridge

Cambridge University Press 2006

ARISTOacuteTELES Organon 5 vol Traduccedilatildeo de Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees 1986

_____ Metafiacutesica Traduccioacuten de Valentiacuten Garciacutea Yebra 2ordf ed Triliacutengue 1ordf reimpr Madrid

Gredos 1987

ASHER David Das Endergebniss der Schopenhauerrsquoschen Philosophie in seiner

Uebereinstimmung mit eine der aumlltesten Religionen dargestellt Leipzig Arnoldische

Buchhandlung 1885

BACON F The New organon New York Cambridge University Press 2000

- 230 -

BAumlHR C G Die schopenhauerrsquosche Philosophie in ihren Grundzuumlgen dargestellt und

kritisch beleuchtet Dresden Rudolf Kuntze 1857

BECKENKAMP J Entre Kant e Hegel Porto Alegre EDIPUCRS 2004

BERG Jan Robert Idealismus und Voluntarismus in der Metaphysik Schellings und

Schopenhauers Wuumlrzburg Koumlnigshauser amp Neumann 2003

BIRNBACHER Dieter (Hrsg) Schopenhauer in der Philosophie der Gegenwart Wuumlrzburg

Koumlnigshausen amp Neumann 1996

BONACCINI Juan Adolfo Kant e o problema da coisa em si no Idealismo Alematildeo sua

atualidade e relevacircncia para compreensatildeo do problema da Filosofia Rio de Janeiro Relume

Dumaraacute Natal UFRN 2003

BOOMS Martin Aporie und Subjekt Die Erkenntnistheoretischen Entfaltungslogik der

Philosophie Schopenhauers Beitraumlge zur Philosophie Schopenhauers herausgegeben von

Dieter Birnbacher und Heinz Gerd Ingekamp Band 6 Wurzburg Koumlnigshausen amp Neuman

2003

BRANDAtildeO E A concepccedilatildeo de mateacuteria na obra de Schopenhauer Satildeo Paulo Humanitas

2008

CACCIOLA M L A criacutetica da Razatildeo no pensamento de Schopenhauer Dissertaccedilatildeo

(Mestrado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo

Paulo Departamento de Filosofia Satildeo Paulo 1981

_____ A questatildeo do finalismo na filosofia de Schopenhauer Discurso ndash Revista do

Departamento de Filosofia da USP nordm 20 1993 p 79-98

_____ Schopenhauer e a questatildeo do dogmatismo Satildeo Paulo EDUSP 1994

CALDWELL W Schopenhauerrsquos system in its philosophical significance New York

Charles Scribner‟s sons 1986

CARTWRIGHT David E Schopenhauer a biography Cambridge University Press 2010

- 231 -

CASSIRER E El problema del conocimiento 4 vol 1ordf ed 4ordf reimpr Traduccioacuten de

Wenceslao Roces Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1993

_____ Kant vida y doctrina 1ordf ed 6ordf reimpr Traduccioacuten de Wenceslao Roces Meacutexico

Fondo de Cultura Econoacutemica 2003

CORNILL A Arthur Schopenhauer als Uebergangsformation von einer idealistischen in

eine realistische Weltanschauung Heidelberg Mohr 1856 Disponiacutevel em

lthttpreaderdigitale-sammlungendedefs1objectdisplaybsb10045480_00007htmlgt

Acesso em 8 mai 2015

DA COSTA Newton Carneiro Affonso da Sistemas formais inconsistentes Curitiba UFPR

1993

_____ Ensaio sobre os fundamentos da loacutegica 3ordf ed Satildeo Paulo Hucitec 2008

_____ VERNENGO R J Sobre algunas loacutegicas paraclaacutesicas y el anaacutelisis del razonamiento

juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho Universidad de Alicante Centro de

Estudios Constitucionales 19 1996 p 183-200 Disponiacutevel em

lthttpwwwcervantesvirtualcomdescargaPdfsobre-algunas-lficas-paraclsicas-y-el-anlisis-

del-razonamiento-jurdico-0gt Acesso em 10 jan 2017

_____ KRAUSE D Complementary and paraconsistency In RAHMAN Shahid et al

(eds) Logic Epistemology and the Unity of Science (Book 1) Dordrecht Kluwer Ademic

Publishers 2004

_____ The logic of complementarity Departamento de Filosofia Universidade Federal de

Santa Catarina 2003 Disponivel em lthttpphilsci-archivepittedu15591CosKraPLpdfgt

Acesso em 10 jan 2017

_____ Remarks on the applications of paraconsistency Grupo de pesquisa em Loacutegica e

fundamentos da ciecircncia Departamento de Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina

2003 Disponiacutevel em lthttpphilsci-archivepittedu15661CosKraPATTYpdfgt Acesso

em 10 jan 2017

DELBOS V De kant aux postkantiens Introduction par Alexis Philonenko Preface de

Maurice Blondel Paris Aubier 1992

- 232 -

DEUSSEN P Allgemeine Geschichte der Philosophie 2 Auflage 2 Band 3 Abteilung

(Neuere Philosophie von Descartes bis Schopenhauer) Leipzig Brockhaus 1920 Disponiacutevel

em lthttpsarchiveorgdetailsallgemeinegeschi23deusuoftgt Acesso em 11 out 2015

_____ Die Elemente der Metaphysik Dritte durch eine Vorbetrachtung uumlber das Wesen des

Idealismus vermehrte Auflage Leipzig Brockhaus 1902 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsdieelementederm00deusgooggt Acesso em 3 jan 2012

DUCROS L Schopenhauer les origines de sa meacutetaphysique ou les transformations de la

chose en soi de Kant a Schopenhauer Paris Germer Bailliegravere 1883 Disponiacuteel em

lthttpsarchiveorgdetailsscopenhauerleso00ducrgooggt Acesso em 11 fev 2010

ERDMANN J E Schopenhauer und Herbart eine Antithese In Zeitschrift fuumlr Philosophie

und philosophische Kritik Herausgegeben von Dr I H Fichte Dr Hermann Ulrici und I U

Wirth Neue Folge Band 21 Halle 1852 p 209-225 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgstreamzeitschriftfrph19kritgoogpagen15mode2upgt Acesso em 5

jun 2013

FICHTE I H Ein Wort uumlber die Zukunft der Philosophie Als Nachschrift zum vorigen

Auffaβe In Zeitschrift fuumlr Philosophie und philosophische Kritik Herausgegeben von Dr I

H Fichte Dr Hermann Ulrici und J U Wirth Neue Folge Band 21 Halle 1852 p 226-240

Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgstreamzeitschriftfrph19kritgoogpagen15mode2upgt

Acesso em 5 jun 2013

FISCHER Ernst Von G E Schulze zu A Schopenhauer ein Beitrag zur Geschichte der

Kantischen Erkenntnistheorie Dissertation zur Erwerbung der Doktorwuumlrde der ersten

Sektion der hohen philosophischen Fakultaumlt der Universitaumlt Zuumlrich Aarau H R Sauerlaumlnder

1901

FISCHER Kuno Schopenhauers Leben Werke und Lehre Heidelberg Carl Winter‟s

Universitaumltsbuchhandlung 1908 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsschopenhauersle00fiscgooggt Acesso em 02 out 2014

FORTLAGE C Genetische Geschichte der Philosophie seit Kant Leipzig Brockhaus 1852

Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgstreamgenetischegeschi00forpagen5mode2upgt

Acesso em 15 abr 2015

FOX Michael (Ed) Schopenhauers philosophical achievement Sussex Harvester Press

1980

- 233 -

FRAUENSTAumlDT J Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus

1854 Disponiacutevel em lthttpreaderdigitale-

sammlungendedefs1objectdisplaybsb10045792_00005htmlgt Acesso em 18 fev 2013

_____ Arthur Schopenhauer und seine Gegner In Unsere Zeit deutsche Revue der

Gegenwart Monatsschrift zum Conversationslexikon Band 52 Leipzig 1869 p 686-707

Disponiacutevel em lthttpreaderdigitale-

sammlungendedefs1objectdisplaybsb10401694_00696htmlgt Acesso em 29 mar 2014

_____ Schopenhauer-Lexicon ein Philosophisches Woumlrterbuch Erster Band Leipzig

Brockhaus 1871 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgstreambub_gb_qQHnumNIwMsCpagen5mode2upgt Acesso em 25

jan 2012

_____ Schopenhauer-Lexicon ein Philosophisches Woumlrterbuch Zweiter Band Leipzig

Brockhaus 1871 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgstreambub_gb_mhF6YpMYGcoCpagen5mode2upgt Acesso em 25

jan 2012

_____ Neue Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1876

Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgstreamneuebriefeberdi00fraugoogpagen7mode2upgt

Acesso em 20 set 2013

_____ LINDNER E O Arthur Schopenhauer Von Ihm uumlber ihn Berlin Hayn 1863

GARDINER P Schopenhauer Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1997 p 133

GIL Fernando (coord) Recepccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant

(1786-1844) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1992

GOLDSCHMIDT Victor A religiatildeo de Platatildeo Satildeo Paulo Difusatildeo Europeia do Livro 1963

_____ Eacutecrits Eacutetudes de Philosophie Moderne Tome II Paris VRIN 1984

GRISEBACH E Schopenhauerrsquos Gespraumlche und Selbstgespraumlche Nach der Handschrift εἰρ

ἑαςηον Berlin Ernst Hofmann 1898

GRUBER Robert (Hrsg) Der Briefwechsel zwischen Arthur Schopenhauer und Otto

Lindner Wien Leipzig A Hartleben‟s 1913

- 234 -

GUEROULT M Etudes de Philosophie Allemande HildesheimNew York Georg Olms

1977

GWINNER W Arthur Schopenhauer aus persoumlnlichen Umgange dargestellt Zweite

umgearbeitete und vielfach vermehrte Auflage Leipzig Brockhaus 1878

HARTMAN E v Philosophie des Unbewussten Berlin Carl Duncker 1869 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsphilosophiedesun00hartgt Acesso em 16 set 2015

_____ Gesammelte philosophische Abhandlungen zur Philosophie des Unbewussten Berlin

Carl Duncker 1872 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsgesammeltephilo00hartgooggt Acesso em 7 jan 2016

_____ L‟eacutecole de Schopenhauer Revue philosophique de la France et de lrsquoeacutetranger Dirigeacutee

par Th Ribot XVI jul-deacutec 1883 pp 121-134 Disponiacutevel em

httpgallicabnffrark12148bpt6k17155drk=429184 Acesso em 15 dez 2016

_____ Gesammelte Studien und Aufsaumltze 3 auflage Leipzig Wilhelm Friedrich 1888

Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgdetailsgesammeltestudi01hartgooggt Acesso em 5 jan

2016

_____ Geschichte der Methaphysik Zweiter Teil seit Kant Ausgewaumlhlte Werke Band XII

Leipzig Hermann Haacke 1900

HASSE H Schopenhauers Erkenntnislehre als System einer Gemeinschaft des Rationalen

und Irrationalen Leipzig Felix Meiner 1913

HAYM R Arthur Schopenhauer Berlin Georg Reimer 1864 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsarthurschopenha00haymgooggt Acesso em 20 jan 2015

HUumlBSCHER A Schopenhauer in der philosophischen Kritik In Schopenhauer-Jahrbuch

Frankfuhrt Waldemar Kramer 47 1966 p 29-71 Disponiacutevel em

lthttpwwwschopenhauerphilosophieuni-

mainzdeAufsaetze_Jahrbuch47_1966Huebscher20-

20Schopenhauer20in20der20phil20Kritikpdf gt Acesso em 15 ago 2013

_____ Denker gegen den Strom Schopenhauer Gestern ndash Heute ndash Morgen 4

Durchgesehene Auflage Bonn Bouvier 1988

- 235 -

JACOBI F H David Hume et la croyance ideacutealisme et reacutealisme Dialogue Introduit traduit

et annoteacute par Louis Guillermit Paris Vrin 2000

JANAWAY C (ed) The Cambridge Companion to Schopenhauer Cambridge Cambridge

Universty Press 1999

JANET P Schopenhauer et la physiologie franccedilaise Cabanis et Bichat Revue des deux

mondes Tome 39 Paris Bureau de la Revue de deux mondes Mai-1880 p 36 Disponiacutevel

em lthttprddmrevuedesdeuxmondesfrarchivearticlephpcode=59892gt Acesso em 08

ago 2011

KAMATA Y Schopenhauer e Kant A recepccedilatildeo da ldquoAnaliacutetica transcendentalrdquo da Criacutetica da

razatildeo pura na filosofia primeira de Schopenhauer Revista etich - An international Journal

for Moral Phylosophy Florianoacutepolis v 11 n 1 p 68 ndash 81 julho de 2012

KANT I Kantrsquos Gesammelte Schriften Herausgegeben von der Koumlniglich Preuβischen

Akademie der Wissenschaften 29 Baumlnde Berlim Georg Reimer Gruyter 1902-

_____ Criacutetica da razatildeo pura 5ordf ed Traduccedilatildeo de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre

Fradique Morujatildeo Introduccedilatildeo e notas de Alexandre Fradique Morujatildeo Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001

KORFMACHER W Ideen und Ideenerkenntnis in der aumlsthetischen Theorie Arthur

Schopenhauers Pfaffenweiler Centaurus-Verlagsgesellschaft 1992

KOWALEWSKI A Arthur Schopenhauer und seine Weltanschauung Halle a S Carl

Marhold 1908

KUHN T A tensatildeo essencial Traduccedilatildeo de Rui Pacheco e revisatildeo de Artur Mouratildeo Lisboa

Ediccedilotildees 70 1989

LIEBMANN O Ueber den individuellen Beweis fuumlr die Freiheit des Willens Stuttgart Carl

Schober 1866 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgstreambub_gb_vNhAAAAAYAAJpagen3mode2upgt Acesso em 15

jun 2013

_____ Ueber den Objektiven Anblick Wiesbaden Carl Schober 1869 Disponiacutevel em

lthttpreaderdigitale-sammlungendedefs1objectdisplaybsb11017975_00005htmlgt

Acesso 15 jun 2013

- 236 -

LUKASIEWICZ Jan Sobre o princiacutepio de contradiccedilatildeo em Aristoacuteteles In Rue Descartes

Collegravege international de philosopie Paris Albin Michel avril 1991 1-2 p 10-32 traduzido

para o francecircs por Michel Narcy e Barbara Cassin do original alematildeo Publicado

originalmente em Bulletin Internacional de lrsquoAcadeacutemie de Sciences de Cracovie classe

drsquohistoire et de philosophie 1910 p 15-38

_____ Sobre a lei da contradiccedilatildeo em Aristoacuteteles In ZINGANO Marco (org) Sobre a

Metafiacutesica de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Odysseus 2005

MAGEE B Schopenhauer Traduccioacuten de Amaia Baacutercena Madrid Catedra 1991

MALTER Rudolf Der eine Gedanke Hinfuumlhrung zur Philosophie Arthur Schopenhaeurs

Darmstadt Wissenschaftliche Buchgesellschaft 1988

_____ Arthur Schopenhauer Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens

Sttutgart-Bad Cannstatt FrommannHolzboog 1991

MARCIN Raymond B In search of Schopenhauerrsquos cat Arthur Schopenhauer‟s quantum-

mystical theory of justice Washington DC Catholic University of America 2006

MARTIN G Kant ontologia y epistemologia Traducioacuten de Luis Felipe Carrer y Andreacutes R

Raggio Buenos Aires Faculdade de Filosofia y Humanidades da Universidade Nacional de

Coacuterdoba 1971

MENDELSON Elliott Introduction to mathematical logic 4th ed London Chapman amp

Hall 1997

METHLING Alexander Das Realitaumltsproblem im Denken Schopenhauers Eine

Untersuchung zur Struktur seines Systems Aachen Shaker 1993

MEYER J B Schopenhauer als Mensch und Denker Berlin Carl Habel 1872 Disponiacutevel

em

lthttpsia600300usarchiveorg20itemsarthurschopenhau00meyearthurschopenhau00mey

epdfgt Acesso em 30 mai 2014

NOIREacute Ludwig Der monistische Gedanke Eine Concordanz der Philosophie

Schopenhauer‟s Darwin‟s R Mayer‟s und L Geiger‟s Leipzig Beit amp Comp 1875

- 237 -

OTCZIPKA Hugo Kritische Bemerkungen zur Weltanschauung Schopenhauers Der Hohen

philosophischen Fakultaumlt der Universitaumlt Leipzig als Inaugural-Dissertation zur Erlangung der

Doktorwuumlrde Leipzig-Reudnitz Oswald Schmidt 1892 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgstreamkritischebemerku00otczpagen3mode2upgt Acesso em 5 jul

2012

PERNIN Marie-Joseacute La philosophie de Schopenhauer Au coeur de l‟existence la

souffrance Paris Bordas 2003

PHILONENKO A Schopenhauer Una filosofiacutea de la tragedia Barcelona Anthropos 1989

_____ Schopenhauer critique de Kant Paris Les Belles Lettres 2005

RENOUVIER C Histoire et solution des problegravemes meacutetaphysiques Paris Feacutelix Aucan

1901

RIBOT Th La philosophie de Schopenhauer Paris Feacutelix Alcan 1925

RIEFFERT J B Die Lehre von der empirische Anschauung bei Schopenhauer Halle Max

Niemeyer 1914 In Abhandlungen zur Philosophie und irhre Geschichte 22 Heft

Herausgegeben von Benno Erdmann

ROGLER E Das Gehirnparadox ndash ein Problem nicht nur bei Schopenhauer Schopenhauer-

Jahrbuch 88 2007 p 71-88 Disponiacutevel em httpwwwschopenhauerphilosophieuni-

mainzdeAufsaetze_Jahrbuch88_20072007_Roglerpdf Acesso em 20 jan 2017

ROSSET C Escritos sobre Schopenhauer Versioacuten castellana de Rafael del Hierro Oliva

Valencia Pre-textos 2005

_____ Schopenhauer philosophe de lrsquoabsurde Paris QuadrigePUF 2015

RUFFING M Wille zur Erkenntnis Die Selbsterkenntnis des Willens und die Idee des

Menschen in der aumlsthetischen Theorie Arthur Schopenhauers Tese (Doutorado) Johannes

Gutenberg Universitaumlt Mainz 2001 Disponiacutevel em lthttpspublicationsubuni-

mainzdethesesvolltexte2002297pdf297pdfgt Acesso em 3 mai 2012

_____ A relevacircncia eacutetica da contemplaccedilatildeo esteacutetica Revista etich - An international Journal

for Moral Phylosophy Florianoacutepolis v11 n2 p 263-271 julho de 2012

- 238 -

RUYSSEN T Schopenhauer Paris Feacutelix Alcan 1911

SALLES JC (Org) Schopenhauer e o Idealismo Alematildeo Salvador Quarteto 2004

SANTOS K C S O problema da liberdade na filosofia de Arthur Schopenhauer

Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade

de Satildeo Paulo Departamento de Filosofia Orientador Prof Dr Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo

2010 Disponiacutevel em lthttpwwwtesesuspbrtesesdisponiveis88133tde-23082010-

175510pt-brphpgt

SCHEMANN Ludwig (Hrsg) Schopenhauer-Briefe Sammlung meist ungedruckter oder

schwer zugaumlnglicher Briefe von an und uumlber Schopenhauer Leipzig Brockhaus 1893

SCHIRMACHER Wolfgang (Ed) Zeit der Ernte Festschrift fuumlr Arthur Huumlbscher zum 85

Geburtstag StuttgartBad Cannstatt FrommannHolzboog 1982

SCHMIDT A Schopenhauer und der Materialismus Schopenhauer-Jahrbuch 58 1977 p

IX-XLVIII Disponiacutevel em lthttpwwwschopenhauerphilosophieuni-

mainzdeAufsaetze_Jahrbuch58_1977Alfred20Schmidt20-

20Schopenhauer20und20der20Materialismuspdfgt Acesso em 30 mai 2016

_____ Physiologie und Transzendentalphilosophie bei Schopenhauer Schopenhauer-

Jahrbuch 70 1989 p 43-53 Disponiacutevel em lthttpwwwschopenhauerphilosophieuni-

mainzdeAufsaetze_Jahrbuch70_1989Physiologie20und20Transzendentalphilosophiep

dfgt Acesso em 30 mai 2016

_____ Schopenhauer subjektive und objektive Betrachtungsweise des Intellekts

Schopenhauer-Jahrbuch 86 2005 p 105-132 Disponiacutevel em

lthttpwwwschopenhauerphilosophieuni-

mainzdeAufsaetze_Jahrbuch86_20052005_Schmidtpdfgt Acesso em 30 mai 2016

SCHUBBE D Philosophie des Zwischen Hermeneutik und Aporetik bei Schopenhauer

Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann 2010

SEYDEL R Schopenhauers Philosophisches System Leipzig Breitkopf amp Haumlrtel 1857

Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgdetailsschopenhauersph00seydgooggt Acesso em 14

out 2013

SPIERLING V Arthur Schopenhauer eine Einfuumlhrung in Leben und Werk Leipzig Reclam

Verlag 1998

- 239 -

_____ Materialen zu Schopenhauers ldquoDie Welt als Wille und Vorstellungrdquo Herausgegeben

kommentiert und eingeleitet von Volker Spierling Frankfurt am Main Suhrkamp 1984

STROHM Harald Die Aporien in Schopenhauers Erkenntnistheorie Inaugural-Dissertation

zur Erlangung des Grades eines Doktors der Philosophie der Philosophischen Fakultaumlt der

Eberhard-Karls-Universitaumlt Tuumlbingen LindauB 1984

SUCKAU Otto Schopenhauers falsche Auslegung der Kantischen Erkenntnistheorie Ihre

Erklaumlrung und Ihre Folgen Dissertation zur Erlangung der Doktorwuumlrde bei der

philosophischen Fakultaumlt der Groszligherzoglich Hessischen Ludwigs-Universitaumlt zu Gieszligen

Weimar R Wagner Sohn 1912 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsschopenhauersfal00suckuoftgt Acesso em 15 jun 2012

THILO Chr A Ueber Schopenhauerrsquos ethische Atheismus Leipzig Louis Pernitzsch 1868

TRENDELENBURG A Logische Untersuchungen Erster Band Zweite ergaumlnzte Auflage

Leipzig Hirzel 1862 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailslogischeuntersu07trengooggt Acesso em 22 jul 2014

TZERTELEFF Dmitry Schopenhauerrsquos Erkenntniss-Theorie eine kritische Darstellung

Inaugural-Dissertation zur Erlangung der philosophischen Doktorwuumlrde der Phiosophischen

Fakultaumlt der Universitaumlt Leipzig Leipzig G Reusche 1879 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsschopenhauerserk00tzergt Acesso em 30 jan 2013

VENETIANER M Schopenhauer als Scholastiker Eine Kritik der Schopenhauer‟schen

Philosophie mit Ruumlcksicht auf die gesammte Kantische Neoscholastik Berlin Carl

Duncker‟s 1873

VOLKELT Johannes Arthur Schopenhauer seine Persoumlnlichkeit seine Lehre sein Glaube

Stuttgart Fr Frommanns 1900 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsarthurschopenha01volkgooggt Acesso em 22 nov 2010

WELSEN P Schopenhauers Theorie des Subjekts Ihre transzendentalphilosophischen

anthropologischen und naturmetaphysischen Grundlagen Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp

Neumann 1995

ZELLER E Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibniz Muumlnchen Didenbourg

1875 Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgdetailsgeschichtederdeu00zelluoftgt Acesso em

10 set 2013

- 240 -

ZINGANO M Notas sobre o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo em Aristoacuteteles In Cadernos de

Histoacuteria e Filosofia da Ciecircncia Campinas Seacuterie 3 v 13 n 1 p 7-32 jan-jun 2003

  • A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer
  • Agradecimentos
  • RESUMO
  • ABSTRACT
  • Lista de abreviaturas
  • SUMAacuteRIO
  • Introduccedilatildeo
  • Capiacutetulo 1 ndash Introduccedilatildeo agrave antinomia da faculdade de conhecimento
    • 11 ndash Apresentaccedilatildeo teoacuterica e histoacuterica da antinomia da faculdade de conhecimento
    • 12 ndash Outras questotildees presentes na filosofia schopenhaueriana
    • 13 ndash Investigaccedilatildeo acerca do conceito da antinomia da faculdade de conhecimento
    • 14 ndash Investigaccedilatildeo acerca dos conceitos das outras questotildees presentes na filosofia de Schopenhauer
    • 15 ndash Estrutura histoacuterica da metafiacutesica de Schopenhauer o debate sobre a coisa em si
    • 16 - Desvelando o dilema e os conceitos envolvidos
      • Capiacutetulo 2 ndash A construccedilatildeo do lado externo do mundo idealismo transcendental
        • 21 ndash Philosophia prima
          • 211 ndash O princiacutepio maacuteximo do conhecimento
          • 212 ndash Formas da sensibilidade intuiccedilotildees puras e sujeito da voliccedilatildeo
          • 213 ndash Dianoiologia
          • 214 ndash Teoria da razatildeo
            • 22 ndash O conhecimento filosoacutefico
            • 23 ndash Criacutetica de Schopenhauer ao idealismo de Kant
            • 24 ndash Idealismo schopenhaueriano e fisiologia do conhecimento
            • 25 ndash Fundamentos do mundo como representaccedilatildeo
              • Capiacutetulo 3 ndash A constituiccedilatildeo do lado interno do mundo metafiacutesica
                • 31 ndash A Vontade como o em si do indiviacuteduo
                • 32 ndash A Vontade como o em si do mundo
                • 33 ndash Objetivaccedilatildeo da Vontade
                • 34 ndash Relaccedilotildees da Vontade com o intelecto e o ceacuterebro
                • 35 ndash Discoacuterdia da Vontade consigo mesma e teleologia
                • 36 ndash Fundamentos do mundo como Vontade
                  • Capiacutetulo 4 ndash Interpretaccedilotildees paradigmaacuteticas e anaacutelise pessoal
                    • 41 ndash Recepccedilatildeo da filosofia schopenhaueriana
                    • 42 ndash Apreciaccedilotildees criacuteticas da antinomia da faculdade de conhecimento
                    • 43 ndash Soluccedilotildees apologeacuteticas agrave antinomia da faculdade de conhecimento
                    • 44 ndash Anaacutelise pessoal
                      • Referecircncias
Page 3: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos

Autorizo a reproduccedilatildeo e divulgaccedilatildeo total ou parcial deste trabalho por qualquer meio

convencional ou eletrocircnico para fins de estudo e pesquisa desde que citada a fonte

Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo

Serviccedilo de Biblioteca e Documentaccedilatildeo

Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo

Santos Katia Cilene da Silva

S237a A antinomia da teoria do conhecimento de

Schopenhauer Katia Cilene da Silva Santos

orientador Eduardo Brandatildeo - Satildeo Paulo 2017

240 f

Tese (Doutorado)-Faculdade de Filosofia Letras

e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo

Departamento de Filosofia Aacuterea de concentraccedilatildeo

Filosofia

1 Schopenhauer 2 Antinomia da faculdade de

conhecimento 3 Metafiacutesica 4 Teoria do

conhecimento 5 Idealismo I Brandatildeo Eduardo

orient II Tiacutetulo

Folha de Avaliaccedilatildeo

SANTOS Katia Cilene da Silva A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer 2017 Tese (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e

Ciecircncias Humanas Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2017

Aprovado em

Banca Examinadora

Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________

Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________

Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________

Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________

Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________

Prof Dr ____________________________Instituiccedilatildeo ____________________ Julgamento_________________________ Assinatura ___________________

Dedico este trabalho agrave minha famiacutelia Luzia Artur Toni Jane Adriano Fernando Nadja Daniel

Luiz Fernando Arthur e Alessandro

Agradecimentos

Agradeccedilo ao meu orientador professor Dr Eduardo Brandatildeo por me

acompanhar desde o mestrado com sua forma especial de orientar Foi muito importante na minha trajetoacuteria ateacute aqui sua liberdade de pensamento e sua

abertura a diferentes horizontes e alternativas As anaacutelises sem preconceitos as correccedilotildees fundamentais as sugestotildees pertinentes e as indicaccedilotildees agudas e certeiras resultaram todas as vezes em um pensamento mais claro e um texto

melhor Agradeccedilo muito especialmente ao professor Dr Newton da Costa pela

generosidade com que me ajudou em vaacuterios momentos da minha pesquisa Sou grata pelas diversas duacutevidas que me sanou pelas indicaccedilotildees bibliograacuteficas e pelas orientaccedilotildees em questotildees de loacutegica Mas sou grata sobretudo por me

receber com hospitalidade pelos conselhos que me ensinaram sabedoria e pela solicitude com que sempre me atendeu

Agradeccedilo tambeacutem agrave professora Dra Macia Luacutecia Cacciola pela leitura criacutetica do texto da minha prova de qualificaccedilatildeo As correccedilotildees e os pontos falhos que me apresentou foram importantes para que eu repensasse os rumos do meu

trabalho e reavaliasse meus caminhos Agradeccedilo ainda ao professor Dr Joseacute Eduardo Baioni pelas relevantes

indicaccedilotildees bibliograacuteficas Por fim agradeccedilo ao CNPq pelo subsiacutedio financeiro de 2015 ateacute o teacutermino

da pesquisa

Nosso ponto de vista objetivo eacute realista e

portanto condicionado na medida em que tomando os seres naturais como dados daiacute

abstrai que a existecircncia objetiva deles pressupotildee um intelecto no qual se encontrem primeiro

como representaccedilatildeo mas o ponto de vista subjetivo e idealista de Kant tambeacutem eacute condicionado na medida em que emerge da

inteligecircncia a qual ela mesma tem a natureza como pressuposto e somente pode surgir como

resultado do desenvolvimento desta ateacute o seres animais

Schopenhauer

RESUMO

SANTOS Katia Cilene da Silva A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer 2017 240 p Tese (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e

Ciecircncias Humanas Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2017

Resumo Este trabalho versa sobre a antinomia da faculdade de conhecimento tambeacutem conhecida como paradoxo de Zeller que Schopenhauer refere no primeiro livro de O mundo como Vontade e representaccedilatildeo Essa questatildeo tem sido bastante discutida na histoacuteria do pensamento schopenhaueriano e

permanece ainda hoje como um problema em aberto Desde os primeiros leitores de Schopenhauer a antinomia da faculdade de conhecimento foi apontada como

um problema de soluccedilatildeo difiacutecil quando natildeo impossiacutevel e explicada de maneiras diversas Algumas vezes apontou-se a heterogeneidade das teorias sobre as

quais o pensamento schopenhaueriano se ergue em outras a antinomia foi atribuiacuteda a erros de interpretaccedilatildeo da filosofia kantiana por vezes remeteram-na a um dualismo em que se chocam materialismo e idealismo ou realismo e

idealismo e haacute ainda outras visotildees Nesta tese propomos uma interpretaccedilatildeo alternativa que toma as dificuldades da filosofia schopenhaueriana como

constitutivas e sem pretender justificaacute-la nem impugnaacute-la busca sua compreensatildeo a partir das questotildees teoacutericas com as quais o filoacutesofo se defrontou Como resultado encontramos que Schopenhauer evidencia a insuficiecircncia tanto

do idealismo quanto do realismo para a explicaccedilatildeo completa e correta do mundo bem como a muacutetua exigecircncia entre ambos A complementaridade entre os

pontos de vista opostos do idealismo e do realismo impotildee que sejam articulados embora sua combinaccedilatildeo origine os diversos problemas presentes na obra schopenhaueriana entre os quais estaacute a antinomia da faculdade de

conhecimento Adicionalmente analisamos outras questotildees e dificuldades que surgiram no pensamento de Schopenhauer algumas mencionadas pelo filoacutesofo

outras natildeo

Palavras-chave Schopenhauer Antinomia da faculdade de conhecimento Metafiacutesica Teoria do conhecimento Idealismo

ABSTRACT

SANTOS Katia Cilene da Silva The antinomy of Schopenhauers theory of knowledge 2017 240 p Tese (Doutorado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e

Ciecircncias Humanas Departamento de Filosofia Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2017

Abstract This work deals with the antinomy of the faculty of knowledge also known as Zellers paradox to which Schopenhauer refers in the first book of The

world as Will and representation This question has been much discussed in the history of Schopenhauers thought and still remains today as an unsolved

problem Since the early readers of Schopenhauer the antinomy of the faculty of knowledge was pointed out as a problem of difficult solution if not impossible and explained in different ways At times the heterogeneity of the theories on

which Schopenhauers thought stands has been pointed out other times the antinomy was attributed to errors in the interpretation of Kantian philosophy for

many times referred to a dualism in which collide materialism and idealism or realism and idealism and there are still other viewpoints In this thesis we propose an alternative interpretation which takes the difficulties of

Schopenhauers philosophy as constitutive and not pretending to justify or contest it we search for an understanding from the theoretical questions with

which the philosopher faced As a result we find that Schopenhauer evidences the inadequacy of both idealism and realism for the complete and correct explanation of the world as well as the mutual demand between them The

complementarity between the opposing viewpoints of idealism and realism demands they to be articulated although their combination gives rise to the

various problems present in Schopenhauers work among which is the antinomy of the faculty of knowledge In addition we analyzed other issues and difficulties that arose in Schopenhauers thought some mentioned by the philosopher

Keywords Schopenhauer Antinomy of the faculty of knowledge Metaphysics

Theory of knowledge Idealism

Lista de abreviaturas

Traduzimos do alematildeo as citaccedilotildees das obras de Schopenhauer Indicamos em notas de rodapeacute

as localizaccedilotildees dos fragmentos transcritos nas ediccedilotildees originais utilizadas e tambeacutem em

traduccedilotildees referenciadas em portuguecircs ou espanhol Traduzimos as citaccedilotildees da obra de Ernst

Cassirer da ediccedilatildeo em espanhol da Fondo de Cultura Econoacutemica Retiramos as citaccedilotildees de

Criacutetica da Razatildeo Pura da ediccedilatildeo portuguesa da Calouste Gulbenkian e indicamos a

paginaccedilatildeo original da Koumlniglich Preuβischen Akademie der Wissenschaften Outros casos

seratildeo informados em notas de rodapeacute

WWV I = Die Welt als Wille und Vorstellung erster Band [Ediccedilatildeo alematilde Die Welt als Wille

und Vorstellung I und II Gesamtausgabe Muumlnchen Deutschen Taschenbuch 2011 (Nach

den Ausgaben letzter Hand herausgegeben von Ludger Luumltkehaus) ediccedilatildeo brasileira O

mundo como vontade e representaccedilatildeo 1ordm tomo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo notas e iacutendices de

Jair Barboza Satildeo Paulo UNESP 2005 (essa ediccedilatildeo seraacute referida como MI)]

KkP = Kritik der kantischen Philosophie [Ediccedilatildeo alematilde Die Welt als Wille und Vorstellung I

und II Gesamtausgabe Muumlnchen Deutschen Taschenbuch 2011 (Nach den Ausgaben letzter

Hand herausgegeben von Ludger Luumltkehaus) ediccedilatildeo brasileira Criacutetica da filosofia kantiana

Traduccedilatildeo de Wolfgang Leo Maar e Maria Luacutecia Mello e Oliveira Cacciola Satildeo Paulo Nova

Cultural 1988 (essa ediccedilatildeo seraacute referida como CFK)]

WWV II = Die Welt als Wille und Vorstellung zweiter Band [Ediccedilatildeo alematilde Die Welt als

Wille und Vorstellung I und II Gesamtausgabe Muumlnchen Deutschen Taschenbuch 2011

(Nach den Ausgaben letzter Hand herausgegeben von Ludger Luumltkehaus) ediccedilatildeo brasileira

O mundo como vontade e representaccedilatildeo 2ordf tomo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo notas e iacutendices de

Jair Barboza Satildeo Paulo UNESP 2015 (essa ediccedilatildeo seraacute referida como MII)]

UumlSF = Uumlber das Sehn und die Farben [Ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke Band III Kleinere

Schriften StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 2012 (Textkritisch bearbeitet und

herausgegeben von Wolfgang Frhr von Loumlhneysen) ediccedilatildeo brasileira Sobre a visatildeo e as

cores um tratado Traduccedilatildeo de Erlon Joseacute Paschoal Nova Alexandria Satildeo Paulo 2003 (essa

ediccedilatildeo seraacute referida como VC)]

UumlV = Uumlber die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde [Ediccedilatildeo alematilde

Saumlmtliche Werke Band III Kleinere Schriften StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 2012

(Textkritisch bearbeitet und herausgegeben von Wolfgang Frhr von Loumlhneysen) ediccedilatildeo

espanhola De la cuaacutedruple raiacutez del principio de razoacuten suficiente Traduccioacuten y proacutelogo de

Leopoldo-Eulogio Palacios Madrid Gredos 1981 (essa ediccedilatildeo seraacute referida como CR)]

WN = Uumlber den Willen in der Natur [Ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke Band III Kleinere

Schriften StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 2012 (Textkritisch bearbeitet und

herausgegeben von Wolfgang Frhr von Loumlhneysen) ediccedilatildeo espanhola Sobre la voluntad en

la naturaleza 1ordf ed 3ordf reimpr Traduccioacuten de Miguel de Unamuno Proacutelogo y notas de

Santiago Gonzaacutelez Noriega Madrid Alianza 1987 (essa ediccedilatildeo seraacute referida como VN)]

PP I = Parerga und paralipomena I [Ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke Band IV

StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 1986 (Textkritisch bearbeitet und herausgegeben von

Wolfgang Frhr von Loumlhneysen) As traduccedilotildees dos textos utilizados seratildeo indicadas em notas

de rodapeacute]

PP II = Parerga und paralipomena II [Ediccedilatildeo alematilde Saumlmtliche Werke Baumlnde V1 V2

StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 1986 (Textkritisch bearbeitet und herausgegeben von

Wolfgang Frhr von Loumlhneysen) As traduccedilotildees dos textos utilizados seratildeo indicadas em notas

de rodapeacute]

KrV= Kritik der reinen Vernunft [Ediccedilatildeo alematilde Kantrsquos Gesammelte Schriften

Herausgegeben von der Koumlniglich Preuβischen Akademie der Wissenschaften 2 Auflage

Band III Berlin Georg Reimer 1904 ediccedilatildeo portuguesa Criacutetica da razatildeo pura 5ordf ed

Traduccedilatildeo de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujatildeo Introduccedilatildeo e notas de

Alexandre Fradique Morujatildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2001 (essa ediccedilatildeo seraacute

referida como CRP)]

SUMAacuteRIO

Introduccedilatildeo13

Capiacutetulo 1 ndash Introduccedilatildeo agrave antinomia da faculdade de conhecimento

11 ndash Apresentaccedilatildeo teoacuterica e histoacuterica da antinomia da faculdade de conhecimento17

12 ndash Outras questotildees presentes na filosofia schopenhaueriana23

13 ndash Investigaccedilatildeo acerca do conceito da antinomia da faculdade de conhecimento30

14 ndash Investigaccedilatildeo acerca dos conceitos das outras questotildees presentes na filosofia de

Schopenhauer41

15 ndash Estrutura histoacuterica da metafiacutesica de Schopenhauer o debate sobre a coisa em si44

16 ndash Desvelando o dilema e os conceitos envolvidos70

Capiacutetulo 2 ndash A construccedilatildeo do lado externo do mundo idealismo transcendental

21 ndash Philosophia prima

211 ndash O princiacutepio maacuteximo do conhecimento77

212 ndash Formas da sensibilidade intuiccedilotildees puras e sujeito da voliccedilatildeo85

213 ndash Dianoiologia91

214 ndash Teoria da razatildeo107

22 ndash O conhecimento filosoacutefico118

23 ndash Criacutetica de Schopenhauer ao idealismo de Kant123

24 ndash Idealismo schopenhaueriano e fisiologia do conhecimento131

25ndash Fundamentos do mundo como representaccedilatildeo134

Capiacutetulo 3 ndash A constituiccedilatildeo do lado interno do mundo metafiacutesica

31 ndash A Vontade como o em si do indiviacuteduo141

32 ndash A Vontade como o em si do mundo149

33 ndash Objetivaccedilatildeo da Vontade161

34 ndash Relaccedilotildees da Vontade com o intelecto e o ceacuterebro166

35 ndash Discoacuterdia da Vontade consigo mesma e teleologia172

36 ndash Fundamentos do mundo como Vontade182

Capiacutetulo 4 ndash Interpretaccedilotildees paradigmaacuteticas e anaacutelise pessoal

41 ndash Recepccedilatildeo da filosofia schopenhaueriana187

42 - Apreciaccedilotildees criacuteticas da antinomia da faculdade de conhecimento197

43 ndash Soluccedilotildees apologeacuteticas da antinomia da faculdade de conhecimento206

44 ndash Anaacutelise pessoal217

Referecircncias228

- 13 -

Introduccedilatildeo

Querer resolver todos os problemas e

responder a todas as interrogaccedilotildees seria

atrevida filaacuteucia e presunccedilatildeo tatildeo

extravagante que isso bastaria para se tornar

imediatamente indigno de toda a confianccedila

Kant

O tema de que se ocupa esta tese eacute uma questatildeo muito interessante Um

pensador de espiacuterito tatildeo vivo e de ideias tatildeo importantes na tradiccedilatildeo filosoacutefica como Arthur

Schopenhauer foi levado a reconhecer e a relatar no seu sistema o que entendeu ser uma

antinomia da faculdade de conhecimento Ao fazecirc-lo poreacutem ele indicou que sua filosofia

infringira o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo que estaacute na base do conceito de antinomia Embora

ele tenha justificado o problema pela bifurcaccedilatildeo dos pontos de vista do fenocircmeno e da coisa

em si a soluccedilatildeo natildeo foi convincente e as discussotildees iniciadas com seus contemporacircneos

ainda hoje subsistem Em 1869 seu amigo e disciacutepulo Julius Frauenstaumldt publicou um artigo

intitulado ldquoArthur Schopenhauer und seine Gegnerrdquo na revista Unsere Zeit deutsche Revue

der Gegenwart1 no qual informa sobre diversas criacuteticas de que a filosofia schopenhaueriana

foi alvo Frauenstaumldt menciona muitos opositores e muitas objeccedilotildees ao pensamento de

Schopenhauer entre as quais estaacute a antinomia da faculdade de conhecimento Menciona

tambeacutem a reaccedilatildeo do filoacutesofo a vaacuterias acusaccedilotildees de contradiccedilatildeo em cartas nas quais manifesta

revolta em ser chamado de contraditoacuterio

O espanto que as contradiccedilotildees provocam se deve a que desde a defesa

feita por Aristoacuteteles do princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo no livro Γ da Metafiacutesica a presenccedila de

antinomias aporias ou paradoxos em qualquer teoria equivale a uma condenaccedilatildeo O princiacutepio

de natildeo contradiccedilatildeo eacute uma das principais leis da loacutegica claacutessica entendidas como necessaacuterias e

suficientes para o pensamento correto e sua violaccedilatildeo tem sido vista como um erro capaz de

impugnar todo um sistema teoacuterico Apesar disso a presenccedila de contradiccedilotildees eacute muito comum

na Histoacuteria da Filosofia Diversos autores tiveram em algum momento uma contradiccedilatildeo ou

1 FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 686-707

- 14 -

outro problema loacutegico apontado no desenvolvimento de suas ideias A lista de exemplos seria

extensa mas basta lembrarmos o conhecido debate sobre a concepccedilatildeo kantiana de coisa em si

no qual diversos pensadores refletiram sobre a contradiccedilatildeo que significava sustentar a

existecircncia de um objeto irrepresentaacutevel na base de todas as representaccedilotildees Um filoacutesofo da

magnitude de Kant numa das questotildees mais importantes de toda a tradiccedilatildeo filosoacutefica

precisou lidar com uma dificuldade ligada ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo O caso de

Schopenhauer talvez seja uacutenico na Histoacuteria da Filosofia porque seus opositores acusaram a

presenccedila de contradiccedilotildees paradoxos e antinomias em todas as frentes de seu pensamento O

proacuteprio filoacutesofo mencionou aleacutem da antinomia da faculdade de conhecimento outras trecircs

oposiccedilotildees decorrentes de suas ideias a saber entre a necessidade que rege a conduta humana

e a liberdade na negaccedilatildeo da Vontade entre mecanicismo e finalismo na natureza e entre a

contingecircncia no decorrer da vida do indiviacuteduo e a necessidade moral que intimamente a

determina

Nesta pesquisa natildeo buscamos redimir a filosofia schopenhaueriana

tampouco condenaacute-la Natildeo temos a pretensatildeo desmedida de destrinchar todas as questotildees que

ela suscita para entatildeo atribuir-lhe este ou aquele selo A perspectiva que adotamos eacute a de que

as dificuldades decorrentes do princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo podem indicar a necessidade de

uma abordagem diferente na qual natildeo se procure eliminaacute-las a qualquer custo ou invalidar a

teoria em que ocorrem Caso a violaccedilatildeo do princiacutepio seja inevitaacutevel os problemas talvez natildeo

sejam de ordem discursiva ou loacutegica mas tenham raiacutezes em profundas questotildees filosoacuteficas

Atualmente pensadores das loacutegicas paraconsistentes entre eles o professor Newton da Costa

tecircm evidenciado que as contradiccedilotildees natildeo satildeo aberraccedilotildees e que existem domiacutenios do discurso

onde elas satildeo inexpugnaacuteveis como a Medicina e o Direito Nessas loacutegicas mostrou-se

possiacutevel manter sistemas contraditoacuterios sem se incorrer em trivialidade isto eacute sem que se

deduzam quaisquer foacutermulas ou teoremas em uma teoria contraditoacuteria dada Com os

princiacutepios norteadores de um novo ramo dentro das loacutegicas paraconsistentes a loacutegica

paraclaacutessica argumentamos nesta tese que a filosofia schopenhaueriana embora

inconsistente natildeo eacute trivial

Com esse objetivo no primeiro capiacutetulo deste trabalho apresentamos a

antinomia da faculdade de conhecimento e investigamos sua natureza e o mesmo fazemos

com relaccedilatildeo a outras questotildees semelhantes Com base no discernimento de alguns conceitos

loacutegicos deliberamos sobre qual deles descreveraacute melhor cada um dos problemas de que

- 15 -

tratamos Expomos a trama conceitual do debate poacutes-kantiano sobre a coisa em si para

ressaltar as questotildees agraves quais Schopenhauer precisava responder bem como para iluminar as

suas opotildees teoacutericas Ao final do capiacutetulo trazemos agrave tona o dilema que estaacute na base da

metafiacutesica e da teoria do conhecimento schopenhauerianas bem como os conceitos nele

envolvidos

No segundo capiacutetulo examinamos a teoria da representaccedilatildeo e

explicitamos o mecanismo de produccedilatildeo desse lado do mundo pelo sujeito do conhecer

Detalhamos o modo como Schopenhauer encaixa as peccedilas do quebra-cabeccedila que se tornou o

problema do conhecimento apoacutes as discussotildees sobre a coisa em si Mostramos que o ponto

central da soluccedilatildeo que ele elabora eacute o princiacutepio de razatildeo suficiente por meio do qual responde

a todas as questotildees que se encontravam abertas naquele debate Ressaltamos essas relaccedilotildees e

indicamos como elas manifestam seu posicionamento especiacutefico frente ao idealismo

transcendental Expomos a concepccedilatildeo de Schopenhauer acerca do conhecimento filosoacutefico

algumas das criacuteticas que ele faz ao idealismo kantiano e a relaccedilatildeo que ele estabelece entre o

seu proacuteprio idealismo e a fisiologia com o objetivo de clarificar os caminhos que seu

pensamento vai urdindo Ao final destacamos os contornos do mundo como representaccedilatildeo

tal como concebido pelo filoacutesofo e trazemos agrave luz os seus fundamentos

O terceiro capiacutetulo trata da metafiacutesica schopenhaueriana na qual a coisa

em si eacute deduzida como o lado interno do mundo Apresentamos a argumentaccedilatildeo acerca da

Vontade como essecircncia do indiviacuteduo humano bem como sua extensatildeo posterior ao mundo

como um todo animado e inanimado Retratamos a objetivaccedilatildeo da Vontade sublinhando o

processo de refinamento das suas manifestaccedilotildees no decurso tempo e apontamos suas relaccedilotildees

com o intelecto e o ceacuterebro Discutimos as concepccedilotildees de autodiscoacuterdia e de teleologia e

finalizamos com uma reflexatildeo sobre os fundamentos do mundo como Vontade O quarto e

uacuteltimo capiacutetulo abrange algumas das mais relevantes apreciaccedilotildees histoacutericas da antinomia da

faculdade do conhecimento e da filosofia schopenhaueriana como um todo Delineamos a

recepccedilatildeo das obras de Schopenhauer por seus contemporacircneos destacamos algumas das

avaliaccedilotildees criacuteticas da antinomia da faculdade de conhecimento bem como outras

apologeacuteticas e apresentamos nossas conclusotildees Neste uacuteltimo item refletimos sobre a

complementaridade dos pontos de vista do idealismo e do realismo e concluiacutemos pela

necessidade de manter ambas as perspectivas A explicaccedilatildeo do mundo com base somente em

uma delas eacute vista como insuficiente por Schopenhauer e ainda que decirc origem a

- 16 -

inconsistecircncias sua junccedilatildeo natildeo torna seu pensamento trivial

Por fim queremos esclarecer que o tiacutetulo desta tese natildeo se refere apenas

agrave antinomia da faculdade de conhecimento mas agrave teoria do conhecimento de um modo mais

amplo porque a questatildeo envolve diferentes aspectos da filosofia de Schopenhauer De fato a

antinomia se relaciona com o intelecto mas tambeacutem com a Vontade e com a filosofia da

natureza schopenhaueriana O nuacutecleo estaacute na origem do conhecimento suas condiccedilotildees de

possibilidade e seu mecanismo interno de funcionamento que satildeo questotildees ligadas agrave

faculdade de conhecer no entanto a antinomia tambeacutem se refere ao surgimento do suporte

material do intelecto ligado agrave Vontade e ao desenvolvimento e aperfeiccediloamento fenomecircnicos

dela

- 17 -

Capiacutetulo 1 ndash Introduccedilatildeo agrave antinomia da faculdade de conhecimento

11 ndash Apresentaccedilatildeo teoacuterica e histoacuterica da antinomia da faculdade de conhecimento

No sect 7 do primeiro livro de O mundo como Vontade e representaccedilatildeo

(doravante O Mundo) Schopenhauer identifica um problema na sua filosofia ao qual ele

denomina antinomia da faculdade de conhecimento (Antinomie in unsern

Erkenntniβvermoumlgen)2 Esse problema desponta nos desdobramentos de duas teses

fundamentais de seu pensamento a saber a concepccedilatildeo de que todo o mundo conhecido se

reduz a representaccedilatildeo do sujeito e a de que as objetivaccedilotildees da Vontade base metafiacutesica de

tudo o que existe apresentam um progresso no tempo Essas teses fazem parte dos alicerces

da filosofia schopenhaueriana e sua confrontaccedilatildeo foi interpretada como levando a uma

contradiccedilatildeo tanto pelo filoacutesofo quanto por diversos comentadores de sua obra

De acordo com Schopenhauer o universo empiacuterico consiste em

representaccedilatildeo de um sujeito cognoscente de modo que todos os seres animados bem como

toda a natureza inanimada dependem de um intelecto e somente podem existir por meio dele

Nas palavras do filoacutesofo o mundo eacute ldquo[] simplesmente representaccedilatildeo e como tal exige o

sujeito cognoscente como portador de sua existecircncia []rdquo3 Essa relaccedilatildeo de implicaccedilatildeo entre o

sujeito e o mundo como representaccedilatildeo eacute radicalizada pela conexatildeo intriacutenseca entre a

faculdade cognoscitiva e o corpo material que lhe daacute suporte pois o ceacuterebro eacute apontado por

Schopenhauer como o oacutergatildeo no qual se situa o conhecimento Para ele o espaccedilo como

condiccedilatildeo da extensatildeo dos corpos o tempo como forma da sucessatildeo dos eventos e a lei de

causalidade como reguladora das transformaccedilotildees na natureza satildeo as bases da constituiccedilatildeo do

sujeito congnoscente e possuem uma origem cerebral Ernst Cassirer sublinha esse aspecto

2 WWV I ersters buch sect7 p 65 M I Livro I sect7 p 76

3 WWV I ersters buch sect7 p 64 M I Livro I sect7 p 75

- 18 -

ressaltando que Schopenhauer formula sua teoria do conhecimento sobre uma concepccedilatildeo que

eacute ao mesmo tempo metafiacutesica e fisioloacutegica

O ldquomundordquo que assim nasce existe somente na representaccedilatildeo e para a

representaccedilatildeo eacute pura e exclusivamente um produto do ceacuterebro Nunca se

poderaacute afirmar com a energia necessaacuteria sublinhar-se com forccedila o bastante

essa condicionalidade fisioloacutegica Sem o olho natildeo existiria jamais o mundo

das cores sem o ceacuterebro jamais existiria o mundo dos corpos no espaccedilo o

mundo das mudanccedilas e das dependecircncias causais no tempo O intelecto que

possui como seu patrimocircnio aprioriacutestico e original todas essas relaccedilotildees e

formas encontra-se absolutamente condicionado por fatores fiacutesicos eacute a

funccedilatildeo de um oacutergatildeo material subordinado portanto a este e sem o qual

seria tatildeo impossiacutevel como o ato de segurar sem a matildeo4

Da perspectiva de sua metafiacutesica contudo Schopenhauer sustenta a

existecircncia de uma gradaccedilatildeo nas objetivaccedilotildees da Vontade ancorada na complexidade e no

aperfeiccediloamento crescentes dos seres da natureza que culmina no animal cognoscente A

investigaccedilatildeo da natureza baseada na lei de causalidade diz o filoacutesofo leva necessariamente agrave

concepccedilatildeo de que ldquo[] no tempo cada estado da mateacuteria superiormente organizado sucedeu a

um mais rudimentar isto eacute que animais surgiram antes dos homens peixes antes dos animais

terrestres plantas antes destes o inorgacircnico antes de todo orgacircnico []rdquo5 Todos esses seres

seriam orientados por um princiacutepio de afirmaccedilatildeo em virtude do qual sua existecircncia teria

como uacutenico objetivo garantir agrave Vontade sua proacutepria objetivaccedilatildeo Em funccedilatildeo disso o

aprimoramento no decurso do tempo se daria no sentido de afirmarem a Vontade de modo

cada vez mais eficaz o que teria sido alcanccedilado com o ser humano Com efeito a razatildeo e o

conhecimento abstrato presentes apenas na humanidade seriam os instrumentos mais

eficientes para a satisfaccedilatildeo do querer individual Natildeo obstante a possibilidade de uma tal

gradaccedilatildeo exige que se admita a existecircncia de um processo temporal no qual uma longa cadeia

de causas e efeitos tenha transformado a natureza e sofisticado o mundo desde o inorgacircnico

ateacute o ceacuterebro dotado de razatildeo

A questatildeo que surge ao se confrontarem os dois aspectos expostos eacute

notada e descrita por Schopenhauer

Assim de um lado vemos necessariamente a existecircncia do mundo inteiro

dependente do primeiro ser cognoscente por mais imperfeito que possa ser

de outro lado tambeacutem necessariamente esse primeiro animal cognoscente eacute

completamente dependente de uma longa cadeia anterior de causas e efeitos

4 CASSIRER E El problema del conocimiento III 1ordf ed 4ordf reimpr Traduccioacuten de Wenceslao Roces Meacutexico

Fondo de Cultura Econoacutemica 1993 p 497 (grifos do autor) 5 WWV I ersters buch sect7 p 64 M I Livro I sect7 p 75

- 19 -

na qual ele entra como um pequeno elo Esses dois pontos de vista

contraditoacuterios aos quais na verdade fomos conduzidos com a mesma

necessidade podem de fato nomear-se novamente antinomia da nossa

faculdade de conhecimento e situar-se como contrapartida daquela

encontrada no primeiro extremo da ciecircncia da natureza []6

Para o filoacutesofo a questatildeo eacute dissolvida considerando-se que o espaccedilo o

tempo e a causalidade referem-se unicamente agrave representaccedilatildeo e natildeo ao nuacutecleo do mundo agrave

coisa em si A chave para essa soluccedilatildeo seria a compreensatildeo de que o tempo estaacute associado ao

conhecimento ou seja se eacute certo que natildeo havia conhecimento antes do intelecto natildeo haveria

tambeacutem tempo algum Ao surgir como atributo do primeiro ser cognoscente somente entatildeo eacute

que o tempo traria as noccedilotildees de passado e futuro infinitos bem como a representaccedilatildeo de uma

cadeia causal anterior Como ele explica

[] assim como o primeiro presente tambeacutem o passado de onde ele proveacutem

depende do primeiro sujeito cognoscente e sem ele nada eacute embora a

necessidade conduza a que esse primeiro presente natildeo se apresente como o

primeiro isto eacute como natildeo tendo nenhum passado como matildee e como o iniacutecio

do tempo mas sim como consequecircncia do passado conforme o princiacutepio

do ser no tempo da mesma forma que o fenocircmeno que preenche o passado

se apresenta como efeito de estados preacutevios que o preencheram segundo a

lei de causalidade7

Essa resposta elaborada por Schopenhauer no entanto natildeo remediou os

problemas aiacute encontrados pelos historiadores e filoacutesofos posteriores e a questatildeo passou agrave

Histoacuteria da Filosofia como uma falha um paradoxo descoberto por Eduard Zeller 8

Em 1875

na obra Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibniz Zeller expocircs a formulaccedilatildeo da

antinomia que tem sido a mais citada No seu livro ele afirma que quando confrontamos as

partes do sistema schopenhaueriano somos conduzidos agrave conclusatildeo de que o mundo resulta

da representaccedilatildeo a qual por sua vez resulta de um oacutergatildeo material que pressupotildee o mesmo

mundo Nas palavras dele

Encontramo-nos portanto no ciacuterculo evidente de que a representaccedilatildeo deve

ser um produto do ceacuterebro e o ceacuterebro um produto da representaccedilatildeo e que

este uacuteltimo natildeo seja o limite extremo da sua concepccedilatildeo mas apenas

enquanto ele eacute representado eacute um subterfuacutegio vazio pois somente enquanto

6 WWV I ersters buch sect7 p 65 M I Livro I sect7 p 76 Schopenhauer se refere nessa passagem ao que ele

chama de antinomia quiacutemica que natildeo discutiremos neste trabalho De acordo com o filoacutesofo a ciecircncia quiacutemica

tem como objeto o primeiro estado da mateacuteria que tenta encontrar pelo meacutetodo da causalidade Poreacutem estaria

condenada ao fracasso pois mesmo que um tal primeiro estado fosse encontrado ficaria inexplicado o modo

como teria podido sofrer alguma mudanccedila na ausecircncia de um outro estado diferente dele que pudesse dar

origem agrave primeira mutaccedilatildeo Cf WWV I ersters buch sect7 p 63-64 M I Livro I sect7 p 74-75 7 WWV I ersters buch sect7 p 66 M I Livro I sect7 p 77

8 Em verdade natildeo se pode falar em descoberta uma vez que o proacuteprio Schopenhauer menciona essa dificuldade

como de resto algumas outras que discutiremos adiante

- 20 -

mateacuteria somente ldquoenquanto se torna representadordquo eacute que pode existir

corporalmente o oacutergatildeo que gera as representaccedilotildees Aqui se situa uma

contradiccedilatildeo para cuja soluccedilatildeo o filoacutesofo nem minimamente contribuiu9

Como afirma Maria Luacutecia Cacciola em Schopenhauer e a questatildeo do

dogmatismo trata-se de uma criacutetica claacutessica agrave teoria da representaccedilatildeo schopenhaueriana que

foi por isso qualificada como contraditoacuteria10

De fato tanto antes quanto depois de Eduard

Zeller diversos comentadores apresentaram e discutiram essa dificuldade entre eles Kuno

Fischer Johannes Volkelt e Ernst Cassirer Jaacute em 1871 Julius Frauenstaumldt disciacutepulo e amigo

do filoacutesofo publicou seu Schopenhauer-Lexicon no qual haacute um verbete sobre a antinomia da

faculdade de conhecimento sob o nome de ldquoantinomia fisioloacutegicardquo (die physiologische

Antinomie)11

Ainda antes dele Adolf Cornill e Rudolf Seydel tocam no problema em 1856 e

1857 respectivamente O primeiro em sua obra Arthur Schopenhauer als

Uebergangsformation von einer idealistischen in eine realistische Weltanschauung12

atribui-

o a um dualismo que dilaceraria o sistema O segundo o remete a um hiato entre a teoria do

conhecimento schopenhaueriana e sua metafiacutesica na obra Schopenhauers Philosophisches

System13

Existem ainda muitas outras obras dedicadas a Schopenhauer que aludem

agrave antinomia natildeo necessariamente de modo criacutetico tanto escritas no passado como no

presente Dentre elas estatildeo diversas teses de doutorado alematildes datadas do final do seacuteculo

XIX ao iniacutecio do XX como por exemplo a de Dmitry Tzerteleff Schopenhauerrsquos

Erkenntniss-Theorie eine kritische Darstellung14

defendida na Universidade de Leipzig em

1879 Aleacutem dessa haacute a de Hugo Otczipka Kritische Bemerkungen zur Weltanschauung

Schopenhauers15

tambeacutem defendida na Universidade de Leipzig em 1892 e a de Otto

9 ZELLER E Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibniz Muumlnchen Didenbourg 1875 p 713

(traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 10

CACCIOLA M L Schopenhauer e a questatildeo do dogmatismo Satildeo Paulo EDUSP 1994 p 77 11

Cf FRAUENSTAumlDT J Schopenhauer-Lexicon ein Philosophisches Woumlrterbuch Erster Band Leipzig

Brockhaus 1871 p 37 et seq 12

CORNILL A Arthur Schopenhauer als Uebergangsformation von einer idealistischen in eine realistische

Weltanschauung Heidelberg Georg Mohr 1856 13

SEYDEL R Schopenhauers Philosophisches System Leipzig Breitkop und Haumlrtel 1857 14

TZERTELEFF Dmitry Schopenhauerrsquos Erkenntniss-Theorie eine kritische Darstellung Inaugural-

Dissertation zur Erlangung der philosophischen Doktorwuumlrde der Phiosophischen Fakultaumlt der Universitaumlt

Leipzig Leipzig G Reusche 1879 p 35 et seq 15

OTCZIPKA Hugo Kritische Bemerkungen zur Weltanschauung Schopenhauers Der Hohen philosophischen

Fakultaumlt der Universitaumlt Leipzig als Inaugural-Dissertation zur Erlangung der Doktorwuumlrde Leipzig-Reudnitz

Oswald Schmidt 1892 p 150 et seq

- 21 -

Suckau intitulada Schopenhauers falsche Auslegung der Kantischen Erkenntnistheorie Ihre

Erklaumlrung und Ihre Folgen16

defendida em Weimar em 191217

Uma das mais interessantes e profiacutecuas anaacutelises da teoria do

conhecimento schopenhaueriana eacute a realizada por Ernst Cassirer De acordo com esse

pensador Schopenhauer tenta realizar a intermediaccedilatildeo entre dois mundos a saber o da

metafiacutesica do ponto de vista do idealismo alematildeo e o das ciecircncias naturais apoiado

especialmente na psicologia francesa e na teoria fisioloacutegica das cores de Goethe Esse seria

um caraacuteter sui generis do pensamento de Schopenhauer que o teria levado agrave bifurcaccedilatildeo de

dois caminhos e de duas metas completamente diferentes em funccedilatildeo dos quais haveria

surgido uma antinomia jaacute na proacutepria formulaccedilatildeo do problema do conhecimento18

Cassirer considera que o fato de Schopenhauer apoiar sua teoria da

representaccedilatildeo sobre as ciecircncias naturais e natildeo sobre a loacutegica e a matemaacutetica assegura-lhe um

lugar especial entre os poacutes-kantianos mas em contrapartida envolve sua filosofia num

problema insoluacutevel Diferentemente dos outros disciacutepulos de Kant em Schopenhauer a

investigaccedilatildeo natildeo expotildee apenas a trajetoacuteria do conhecimento no sentido que vai do intelecto ao

objeto mas tambeacutem no inverso do mundo conhecido ao intelecto Schopenhauer portanto

teria decidido fundamentar sua visatildeo acerca da formaccedilatildeo do conhecimento natildeo somente em

uma operaccedilatildeo intelectual transcendental como os outros idealistas alematildees mas sustentando-

se tambeacutem no fisioloacutegico Sua intenccedilatildeo ao fazer isso teria sido a de rechaccedilar a construccedilatildeo

teoacuterica de tipo panteiacutesta em que um ser absoluto e originaacuterio engendra o mundo ao mesmo

tempo em que revela a si proacuteprio No entanto na concepccedilatildeo de Cassirer aiacute estaria o erro

fundamental de Schopenhauer pois o processo natildeo poderia ser entendido como a

manifestaccedilatildeo de uma entidade no tempo mas somente no sentido de uma emanaccedilatildeo loacutegica A

dificuldade de harmonizar o meacutetodo transcendental de Kant que se ocupa das verdades e da

validade ideal dos juiacutezos com as questotildees proacuteprias do lado empiacuterico da teoria fisioloacutegica seria

responsaacutevel por grande parte dos problemas da filosofia schopenhaueriana A partir daiacute um

ciacuterculo vicioso resultaria da derivaccedilatildeo dos juiacutezos com base nas coisas e escreve Cassirer

16

SUCKAU Otto Schopenhauers falsche Auslegung der Kantischen Erkenntnistheorie Ihre Erklaumlrung und Ihre

Folgen Dissertation zur Erlangung der Doktorwuumlrde bei der philosophischen Fakultaumlt der Groszligherzoglich

Hessischen Ludwigs-Universitaumlt zu Gieszligen Weimar R Wagner Sohn 1912 p 39 et seq 17

No quarto capiacutetulo deste trabalho delineamos a recepccedilatildeo da filosofia de Schopenhauer e algumas das

apreciaccedilotildees tanto criacuteticas quanto apologeacuteticas que a antinomia da faculdade do conhecimento recebeu 18

CASSIRER E op cit p 493

- 22 -

[] esse ciacuterculo vicioso tem necessariamente de produzir-se tatildeo logo o

problema da filosofia criacutetica saia de seu campo proacuteprio e verdadeiro isto eacute

tatildeo logo perguntemos natildeo por uma dependecircncia ideal com respeito a

verdades mas por uma dependecircncia real do sujeito com respeito ao objeto e

vice-versa19

No fundo do sistema schopenhaueriano haveria um ciacuterculo do anterior e

do posterior no tempo que estaria na base da teoria do conhecimento do filoacutesofo e seria

tambeacutem a origem da antinomia O proacuteprio Schopenhauer teria admitido aiacute uma circularidade

vendo-se obrigado a conceber o intelecto tanto como prius quanto como posterius20

Com

base nisso seriacuteamos forccedilados a concluir que o espaccedilo estaacute na cabeccedila e simultaneamente a

cabeccedila estaacute nele assim como que o tempo estaacute em noacutes e que tambeacutem estamos nele Do

mesmo modo a proacutepria derivaccedilatildeo do mundo como representaccedilatildeo no espaccedilo e no tempo

exigiria a existecircncia anterior de certos dados primaacuterios que na realidade jaacute seriam obra do

intelecto como no caso da intuiccedilatildeo dos objetos realizada pela retina

O ciacuterculo vicioso surgiria igualmente quando se analisa a exposiccedilatildeo

schopenhaueriana do ponto de vista metafiacutesico O intelecto juntamente com o ceacuterebro seria

um produto tardio da Vontade sua uacuteltima e superior objetivaccedilatildeo Nessa perspectiva o tempo

o espaccedilo e a causalidade que satildeo as condiccedilotildees do devir teriam de surgir posteriormente como

atributos do sujeito Entatildeo diz Cassirer

[] deveria estar claro segundo a proacutepria metafiacutesica de Schopenhauer que

natildeo pode haver nenhuma classe de objetivaccedilotildees da vontade anteriores ao

intelecto mas somente para este Soacute para o sujeito cognoscente e sua forma

de reflexatildeo se fragmenta o em si simplesmente unitaacuterio da vontade em uma

pluralidade de graus de objetivaccedilatildeo e na seacuterie ascendente do devir21

Em resumo natildeo se poderia apontar nenhuma origem material do

intelecto nenhuma demonstraccedilatildeo que apresentasse a derivaccedilatildeo dele a partir de outro ser ou

essecircncia Somente seria possiacutevel realizar algo desse tipo recorrendo-se a uma

autodeterminaccedilatildeo ou automovimento de um ser absoluto O proacuteprio Schopenhauer como

mostra Cassirer apontou o problema das metafiacutesicas geneacuteticas evidenciando que o princiacutepio

de razatildeo natildeo tem validade fora da experiecircncia e que portanto natildeo se pode supor nenhuma

causalidade entre a coisa em si e o fenocircmeno No entanto o filoacutesofo teria cometido o mesmo

erro no tocante agrave relaccedilatildeo entre Vontade e conhecimento na medida em que o princiacutepio de

razatildeo eacute utilizado para mostrar a origem uacuteltima do intelecto A filosofia schopenhaueriana

19

Ibidem p 510 (grifos do autor) 20

Ibidem p 512 21

Ibidem p 517 (grifos do autor)

- 23 -

como um todo resultaria entatildeo numa metafiacutesica geneacutetica de fundamento bioloacutegico22

12 ndash Outras questotildees presentes na filosofia schopenhaueriana

Aleacutem do nosso objeto de pesquisa podem-se mencionar ainda outras

questotildees entre elas trecircs contradiccedilotildees que foram expressamente referidas por Schopenhauer e

que adiante discutiremos Algumas das dificuldades que notamos nos parecem ser superficiais

ou aparentes enquanto outras talvez tenham raiacutezes mais profundas Em contextos superficiais

encontram-se embaraccedilos que natildeo comprometem a integridade do conjunto e podem ser

conciliados com suas premissas baacutesicas Em niacuteveis mais internos haacute aqueles que poderatildeo

estar radicados nas fundaccedilotildees do sistema Segundo pensamos no decurso da formulaccedilatildeo da

sua filosofia Schopenhauer acaba se deparando com diversos problemas que precisa resolver

tomando por base seu pensamento uacutenico Essa tarefa no entanto natildeo eacute nada faacutecil pois as

soluccedilotildees precisam ser harmonizadas com um mundo que possui dois lados mutuamente

excludentes Enquanto representaccedilatildeo o mundo se caracteriza pela necessidade em virtude de

ser construiacutedo pelo princiacutepio de razatildeo suficiente mas ao mesmo tempo tem sua essecircncia em

algo totalmente oposto uma Vontade imanente absolutamente livre cega e sem objetivo Em

funccedilatildeo disso constantemente surgem contrastes conflitos e oposiccedilotildees insuspeitadas que nem

sempre podem ser levadas a bom termo

Essa visatildeo natildeo eacute nova na histoacuteria da recepccedilatildeo da filosofia de

Schopenhauer e natildeo nos parece estar ultrapassada A tiacutetulo de exemplo mencionamos uma

obra do seacuteculo XIX e outra do XXI ambas com concepccedilotildees similares A primeira delas eacute a de

Louis Ducros intitulada Schopenhauer les origines de sa meacutetaphysique de 1883 que analisa

o pensamento schopenhaueriano na perspectiva da Vontade23

Esse autor delineia a trajetoacuteria

de construccedilatildeo da metafiacutesica do filoacutesofo que admite a presenccedila da coisa em si e a define como

22

Ibidem p 520 23

DUCROS L Schopenhauer les origines de sa meacutetaphysique ou les transformations de la chose en soi de

Kant a Schopenhauer Paris Germer Bailliegravere amp Co 1883

- 24 -

Vontade comparando-a com as de Kant Fichte e Schelling Nas filosofias destes uacuteltimos

conforme Ducros a vontade tomada como coisa em si tambeacutem ocupa um papel fundamental

tanto quanto na de Schopenhauer Sua conclusatildeo poreacutem eacute de que o pensamento deste uacuteltimo

eacute repleto de contradiccedilotildees devidas agrave combinaccedilatildeo de duas linhas teoacutericas antagocircnicas a saber

um idealismo criacutetico e um realismo dogmaacutetico24

Entatildeo ele escreve

Leiam o primeiro livro de O Mundo como representaccedilatildeo e vontade em

nome dos princiacutepios do criticismo Schopenhauer demonstra que o mundo

natildeo eacute senatildeo uma representaccedilatildeo menos que isso uma ilusatildeo do espiacuterito natildeo

se poderia ser mais idealista Abram o segundo livro e perceberatildeo uma

linguagem totalmente diferente os princiacutepios criacuteticos satildeo abandonados

ressuscitam-se as realidades elevam-nas ao posto de substacircncias de coisas

em si em uma palavra apresenta-se tanto dogmaacutetico e afirmativo no seu

realismo que se criticou quanto negativo no seu idealismo25

A segunda obra Aporie und Subjekt die erkenntnistheoretischen

Entfaltungslogik der Philosophie Schopenhauers26

foi publicada por Martim Booms em 2003

e analisa a teoria do conhecimento de Schopenhauer com base no conceito de sujeito Para

Booms a filosofia schopenhaueriana eacute repleta de aporias e de contradiccedilotildees que a seu ver

natildeo satildeo devidas agrave irracionalidade da Vontade mas ao subsolo loacutegico da sua concepccedilatildeo de

sujeito Com essa perspectiva ele argumenta que a filosofia schopenhaueriana se rebela

contra seus proacuteprios fundamentos Nas palavras dele

Um trabalho filosoacutefico que se ocupa da filosofia de Schopenhauer se vecirc em

face de enormes problemas de orientaccedilatildeo logo que algo atinge a

determinaccedilatildeo de um possiacutevel princiacutepio ou entatildeo um ponto de acesso um

dos mais notaacuteveis de todos os planos (ndash considerando o niacutevel de conteuacutedo

(11) o plano teoacuterico formal e o argumentativo (12) assim como a

correspondente delimitaccedilatildeo histoacuterico-filosoacutefica complementar (13) e a

histoacuteria da recepccedilatildeo (14) ndash responsaacutevel pela caracteriacutestica do pensamento de

Schopenhauer) consiste em sua anunciada heterogeneidade em uma

divergecircncia e polaridade entre pontos de vista e abordagem metoacutedica

distintos os quais por meio da permanente produccedilatildeo de mediaccedilotildees mantecircm

sua filosofia em um permanente estado de tensatildeo e com isso conduzem a

inegaacuteveis aporias ciacuterculos viciosos mudanccedilas de perspectiva e demoliccedilatildeo de

argumentaccedilotildees[]27

Do nosso ponto de vista haacute certos problemas que se situam na superfiacutecie

do edifiacutecio teoacuterico schopenhaueriano e que podem ser descritos de modo geral como

conclusotildees que o sistema natildeo permitiria logicamente extrair embora o filoacutesofo o faccedila Um

24

Ibidem p 150 25

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 26

BOOMS Martin Aporie und Subjekt die Erkenntnistheoretischen Entfaltungslogik der Philosophie

Schopenhauers Wurzburg Koumlnigshausen amp Neuman 2003 27

Ibidem p 16 (traduccedilatildeo nossa)

- 25 -

exemplo de tais dificuldades eacute a suposiccedilatildeo de poder expressar o enigma do mundo por meio

do conhecimento abstrato A formulaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo suficiente28

como forma uacutenica

do conhecimento29

cujas raiacutezes em uacuteltima instacircncia possibilitam apenas perguntar pelas

razotildees e responder ao ldquoporquecircrdquo das coisas30

contrasta com a pretensatildeo da filosofia

schopenhaueriana que embora seja fruto de uma das figuras dele do principium rationis

sufficientis cognoscendi pretende demonstrar o ldquoquecircrdquo do mundo seu mais iacutentimo interior Ou

seja se o princiacutepio de razatildeo somente pode expressar a necessidade de um fundamento para

tudo o que existe o enigma do mundo jamais poderia ser desvelado por meio dele nem

poderia ser traduzido em conceitos Em suma a essecircncia do mundo natildeo poderaacute ser encontrada

seguindo-se as relaccedilotildees causais que constituem a representaccedilatildeo tampouco se forem

oferecidas as razotildees de conhecimento dos juiacutezos verdadeiros Eacute necessaacuterio um conhecimento

de tipo diferente pode alcanccedilaacute-la a saber o esteacutetico ou o eacutetico mas nunca o racional De fato

afirma Schopenhauer ldquo[] a essecircncia iacutentima do mundo a coisa em si nunca pode ser

encontrada pelo seu meacutetodo [do princiacutepio de razatildeo] poreacutem tudo o que com ele se pode

alcanccedilar eacute sempre dependente e relativo apenas fenocircmeno natildeo a coisa em si[]rdquo31

Uma segunda dificuldade pode ser apontada no tocante ao conhecimento

do sujeito acerca de seu proacuteprio interior Conforme Schopenhauer nossa vontade individual

nos daacute a conhecer de modo imediato o processo interno da causalidade pois a lei de

motivaccedilatildeo eacute ela mesma vista por dentro32

Em Da quaacutedrupla raiz do princiacutepio de razatildeo

suficiente (doravante Da quaacutedrupla raiz) Schopenhauer afirma sobre esse ponto que ldquoA

atuaccedilatildeo do motivo natildeo eacute conhecida por noacutes apenas como satildeo todas as outras causas de fora e

de modo indireto mas ao mesmo tempo de dentro de modo totalmente imediato e portanto

em sua completa forma de accedilatildeordquo33

Em contraste com isso poreacutem no item intitulado

ldquoAstronomia Fiacutesicardquo de Sobre a Vontade na Natureza o filoacutesofo discorre sobre as diferenccedilas

que se notam entre causas e efeitos conforme se ascende na escala progressiva dos seres e

28 No segundo capiacutetulo abordaremos o princiacutepio de razatildeo suficiente de modo detido 29

Existe tambeacutem o modo de conhecimento esteacutetico no qual se abandona o fio condutor do princiacutepio de razatildeo e

alcanccedilam-se as Ideias entendidas como graus de objetivaccedilatildeo da Vontade e formas eternas das coisas Para

Schopenhauer elas satildeo refletidas pela obra de arte cuja contemplaccedilatildeo leva agrave intuiccedilatildeo imediata da vida e da

natureza por um indiviacuteduo transformado em puro sujeito do conhecer Haacute tambeacutem o conhecimento obtido pela

conversatildeo eacutetica que descortina a essecircncia da Vontade e leva a negaacute-la Natildeo obstante o conhecimento filosoacutefico

natildeo eacute do mesmo tipo do esteacutetico ou do eacutetico mas tem de seguir o princiacutepio de razatildeo suficiente do conhecer Eacute

segundo Schopenhauer a apresentaccedilatildeo in abstracto do que foi conhecido in concreto 30

UumlV sect4 p 15 CR sect4 p 33 31

WWV I ersters buch sect7 p 67 M I Livro I sect7 p 78 32

UumlV sect43 p 173 CR sect43 p 208 33

UumlV sect43 p 173 CR sect43 p 208

- 26 -

que determinam uma perda progressiva da compreensibilidade do processo de causaccedilatildeo34

A

maior inteligibilidade possiacutevel da causalidade estaacute nos processos mecacircnicos em que causas e

efeitos satildeo qualitativamente homogecircneos Quando a causa eacute de uma natureza e o efeito de

outra a conexatildeo causal vai deixando progressivamente de ser evidente Como ele explica

Aquela relaccedilatildeo inversa em que se esclarecem a causalidade e a Vontade

aquele modo alternante de avanccedilar e recuar de ambas deriva de que quanto

mais uma coisa nos eacute dada como simples fenocircmeno isto eacute como

representaccedilatildeo mais clara se mostra a forma a priori da representaccedilatildeo isto eacute

a causalidade assim eacute na natureza inanimada mas inversamente quanto

mais imediatamente a Vontade nos eacute consciente mais retrocede a forma da

representaccedilatildeo a causalidade como eacute conosco mesmos Assim quanto mais

um lado do mundo se aproxima mais perdemos o outro de vista35

Por conseguinte quanto mais a Vontade se manifesta nos fenocircmenos

mais incompreensiacuteveis eles satildeo porque se afastam da causalidade O princiacutepio de razatildeo

suficiente do devir estaria assim em uma relaccedilatildeo inversa de compreensibilidade com a

Vontade o que entra em conflito com o caraacuteter mais conhecido atribuiacutedo agrave vontade

individual em funccedilatildeo da lei de motivaccedilatildeo A questatildeo que se abre entatildeo eacute a de saber como

podemos conhecer melhor e mais profundamente algo sem o intermeacutedio da forma intelectual

responsaacutevel pelo conhecimento Mais que isso como a lei de motivaccedilatildeo pode ser a

causalidade vista por dentro se elas deveratildeo se excluir mutuamente

Apesar de serem complicadores da filosofia de Schopenhauer esses

impasses natildeo adentram profundamente no seu pensamento e talvez possam ser dissolvidos

com algum esforccedilo e boa vontade intelectual Haacute alguns outros no entanto cuja resoluccedilatildeo natildeo

eacute tatildeo simples e que o proacuteprio filoacutesofo admitiu terem sido resolvidos apenas imperfeitamente

Com efeito Schopenhauer assinala o que entende serem trecircs oposiccedilotildees (Gegensaumltze)36

imputadas por ele agrave distinccedilatildeo entre representaccedilatildeo e Vontade A primeira estudada por noacutes em

dissertaccedilatildeo de mestrado ocorre entre a afirmaccedilatildeo da existecircncia de uma accedilatildeo livre no mundo

fenomecircnico no momento de negaccedilatildeo da Vontade e a necessidade que rege todas as accedilotildees

humanas No fim de contas considerando-se o conjunto das colocaccedilotildees do filoacutesofo sobre essa

questatildeo sua filosofia refletiria um fato presente no proacuteprio mundo e na Vontade mesma

definida como autoconflitante e autodestrutiva Embora possa ser explicada a contradiccedilatildeo

34

WN p 411 ss VN p 138 ss 35

WN p 418 VN p 146 36 A exposiccedilatildeo desses problemas pode ser conferida em PP I Transzendente Spekulation uumlber die anscheinende

absichtlichkeit im Schicksale des Einzelnen p 271 Especulacioacuten transcendente sobre los visios de

intencionalidade en el destino del individuo In Los designios del destino Estudio preliminar traduccioacuten y notas

de Roberto Rodriacutegues Aramayo Madrid Tecnos 1994 p 44

- 27 -

acaba natildeo sendo dissolvida e permanece tanto no mundo quanto no discurso

A segunda oposiccedilatildeo estabelece simultaneamente o nexus effetivus e o

nexus finalis na natureza ou seja o mecanicismo e o finalismo que ocorrem ao mesmo tempo

nos fenocircmenos naturais37

Schopenhauer sustenta que entre objetos naturais distantes no

espaccedilo e heterogecircneos entre si haacute uma espeacutecie de compatibilidade que parece ser orientada

por algum tipo de finalidade Tal finalidade poreacutem natildeo pode ser explicada por processos

mecacircnicos e lineares que satildeo o escopo do princiacutepio de razatildeo nem pelo conceito de causa que

ele estabelece pois este natildeo se coaduna com a admissatildeo de um ser que se origine ou se

organize a si mesmo Dessa concepccedilatildeo da causalidade inclusive decorrem todas as diversas

criacuteticas que Schopenhauer tece ao conceito de causa sui Aleacutem disso por ser cega e sem

objetivo final a Vontade natildeo permitiria a afirmaccedilatildeo de uma teleologia na natureza Natildeo

obstante essa teleologia eacute afirmada como existente pelo filoacutesofo e explicada metaforicamente

A terceira oposiccedilatildeo mencionada por Schopenhauer concerne ao contraste

entre a contingecircncia dos acontecimentos da vida individual e a necessidade moral que a

determina38

De acordo com ele embora embotada e sem finalidade a Vontade originaria um

todo coerente e ordenado na vida humana No iacutentimo das pessoas e sem o seu conhecimento

ela dirigiria todas as accedilotildees em funccedilatildeo de seus proacuteprios fins de maneira que os eventos

isolados e aparentemente desconexos das trajetoacuterias de vida individuais concorreriam para

uma manifestaccedilatildeo uniforme do ser como um todo Por conseguinte haveria uma contradiccedilatildeo

entre a vida do indiviacuteduo constituiacuteda por uma seacuterie de acontecimentos fortuitos e os fins

morais da Vontade que ele perseguiria independentemente de seu proacuteprio consentimento No

fim de contas sem que soubesse o ser humano estaria sendo conduzido pela Vontade agrave meta

final de negaccedilatildeo de si mesma39

Poreacutem como eacute evidente tais ideias satildeo completamente

opostas agrave de uma Vontade obtusa sem fim e sem alvo um dos pilares da filosofia

schopenhaueriana

Outra dificuldade de consequecircncias significativas foi apontada por

Eduardo Brandatildeo em sua tese de doutorado intitulada A concepccedilatildeo de Mateacuteria na obra de

Schopenhauer40

Brandatildeo evidencia o modo como o filoacutesofo incorreu em contradiccedilotildees e

incoerecircncias de importantes desdobramentos na formulaccedilatildeo da sua visatildeo a respeito da

37

Ibidem loc cit ibidem loc cit 38

Ibidem loc cit ibidem loc cit 39

Ibidem p 272 ibidem p 44-45 40

BRANDAtildeO E A concepccedilatildeo de mateacuteria na obra de Schopenhauer Satildeo Paulo Humanitas 2008

- 28 -

mateacuteria Segundo esse autor o iniacutecio do processo se deu com as mudanccedilas realizadas por

Schopenhauer em sua teoria da representaccedilatildeo pelas quais a noccedilatildeo de mateacuteria passou a ter dois

sentidos O primeiro sentido consiste na definiccedilatildeo de mateacuteria como Stoff enquanto

determinada no tempo e no espaccedilo e identificada com os estados perceptiacuteveis da causalidade

O segundo sentido eacute o da mateacuteria enquanto Materie indeterminada fora do tempo e do

espaccedilo que passa a constituir a substacircncia que estaacute na base dos acidentes representados pela

mateacuteria como Stoff41

Essa reformulaccedilatildeo diz Brandatildeo acabou por obscurecer as relaccedilotildees entre

Vontade e mateacuteria bem como a ligaccedilatildeo desta uacuteltima com o sujeito cognoscente De um lado

a mateacuteria passaria a se confundir com o absoluto medida em que em diversas passagens

Schopenhauer afirma ser absolutum aquilo que nunca surge nem perece aquilo cujo quantum

nunca se altera que satildeo tambeacutem caracteriacutesticas da mateacuteria como Materie Nessa perspectiva

o filoacutesofo teria chegado ao mesmo resultado dos poacutes-kantianos que ele criticava assim como

agrave substacircncia tal como pensada por Espinosa42

De outro lado no tocante agraves relaccedilotildees entre

mateacuteria e sujeito cognoscente a reformulaccedilatildeo da teoria da representaccedilatildeo por Schopenhauer

teria levado a uma mudanccedila na noccedilatildeo de objeto Segundo Brandatildeo o mundo como

representaccedilatildeo deixa de ser entendido a partir da correlaccedilatildeo entre sujeito e objeto e passa a ter

dois polos distintos a saber sujeito e mateacuteria como Stoff Isso no entanto desloca a noccedilatildeo de

objeto que passa entatildeo a ser superposta agrave de mateacuteria Na opiniatildeo de Brandatildeo o

estabelecimento dos dois sentidos para o conceito de mateacuteria em O mundo como vontade e

representaccedilatildeo tomo II complementos (doravante O MundoII) foi importante para que a

noccedilatildeo de mundo mantivesse um traccedilo idealista Sem isso a filosofia de Schopenhauer recairia

em um materialismo jaacute que a uacutenica mateacuteria admitida seria a posteriori ou seja Stoff com

riscos agrave atribuiccedilatildeo de um sentido moral ao mundo No entanto o conceito de mateacuteria tambeacutem

teria sido pensado por Schopenhauer contra os idealistas do seu tempo daiacute a importacircncia de

colocaacute-la como visibilidade da Vontade Assim conclui Brandatildeo

Seguindo a liccedilatildeo de Lebrun talvez fosse entatildeo mais correto enxergar na

noccedilatildeo de Materie de Schopenhauer uma estrutura aporeacutetica em que cada

lado eacute realccedilado conforme o inimigo a ser combatido se o materialismo a

mateacuteria eacute abstraccedilatildeo ens rationis fenocircmeno se o idealismo absoluto ―

Berkeley incluso ― o fenocircmeno a mateacuteria o objeto precisa ser algo em si

41

BRANDAtildeO E ldquoA concepccedilatildeo de mateacuteria em Schopenhauer e o absolutordquo In SALLES JC (Org)

Schopenhauer e o Idealismo Alematildeo Salvador Quarteto 2004 p 52 42

Ibidem p 50

- 29 -

como ocorre nos Complementos de O Mundo43

Essa duplicidade de perspectiva bem como as transformaccedilotildees e

deslocamentos conceituais realizados por Schopenhauer na teoria da representaccedilatildeo teriam

repercutido na sua filosofia como um todo com efeitos profundos

Esta estrutura aporeacutetica tem suas caracteriacutesticas proacuteprias a Materie eacute

causalidade abstrata atividade abstrata mas tambeacutem inerte imoacutevel eacute dada a

priori mas soacute surge como abstraccedilatildeo No limite eacute preciso natildeo perder de vista

que se a lectio purissima sobre a mateacuteria ensina a imaterialidade da mateacuteria

que ela eacute um substrato loacutegico meramente acrescentado pelo pensamento

como o permanente dos fenocircmenos haacute em contrapartida passagens em que

ela parece de fato concreta44

Outra consequecircncia que segundo pensamos poderia ser daiacute extraiacuteda eacute a

de que no fim de contas a filosofia de Schopenhauer apresenta-se como um dualismo e natildeo

como um monismo Com efeito monista eacute aquela filosofia na qual haacute apenas um ser uma

substacircncia uma uacutenica essecircncia agrave qual tudo se refere seja no mundo animado seja no

inanimado A princiacutepio a Vontade seria essa substacircncia uacutenica pois eacute descrita como ldquotudo no

todordquo o α e o υ de toda a existecircncia e do proacuteprio mundo Poreacutem como entender o monismo

schopenhaueriano frente agraves caracteriacutesticas atribuiacutedas agrave mateacuteria como Materie conforme a

exposiccedilatildeo da obra de Eduardo Brandatildeo Schopenhauer declara sua filosofia como a exposiccedilatildeo

de um pensamento uacutenico no qual aparece a Vontade como a verdadeira substacircncia

subjacente ao mundo como um todo Quaisquer objetos existentes animados ou inanimados

satildeo vistos por essa filosofia como manifestaccedilatildeo desse ente uacutenico razatildeo pela qual teriacuteamos de

afirmar que se trata de um pensamento monista Todavia eacute possiacutevel perceber traccedilos de

dualismo no pensamento de Schopenhauer quando a mateacuteria eacute tratada como o absoluto ou

mesmo quando o intelecto se alccedila ao posto de superioridade que eacute necessaacuterio para negar a

Vontade a substacircncia primordial Agrave primeira vista esses poderiam parecer problemas

marginais que apenas realccedilariam o peso da mateacuteria ou do conhecimento no universo

conceitual schopenhaueriano como um todo No entanto eacute bastante embaraccediloso que mateacuteria e

conhecimento se coloquem mesmo que em circunstacircncias especiacuteficas em situaccedilatildeo de

igualdade com a Vontade

43

BRANDAtildeO E A concepccedilatildeo de mateacuteria na obra de Schopenhauer Satildeo Paulo Humanitas 2008 p 329-330

(grifos do autor) 44

Ibidem loc cit (grifos do autor)

- 30 -

13 ndash Investigaccedilatildeo acerca do conceito da antinomia da faculdade de conhecimento

Para uma boa compreensatildeo das questotildees mencionadas que satildeo de

naturezas distintas apresentaremos nossas opccedilotildees conceituais acerca de cada um delas De

fato verificamos frequentes divergecircncias nesse tocante tanto nas obras de Schopenhauer

quanto de seus comentadores o que prejudica o entendimento do nosso tema A questatildeo que

nos ocupa por exemplo eacute vista por Schopenhauer indistintamente como contradiccedilatildeo e como

antinomia45

Portanto eacute necessaacuterio explicitar com clareza onde estatildeo problemas para entatildeo

direcionarmos a atenccedilatildeo aos pontos exatos De nossa parte concordamos com Bacon quando

afirma que a verdade emerge mais rapidamente do erro do que da confusatildeo46

Os conceitos de contradiccedilatildeo paradoxo e antinomia satildeo definidos com

caracteriacutesticas especiacuteficas embora correlacionadas De um modo geral eacute possiacutevel definir a

contradiccedilatildeo como a atribuiccedilatildeo a um sujeito ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto de

qualidades ou relaccedilotildees mutuamente excludentes Todas as formas em que ela pode se

manifestar satildeo apoiadas no princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo pressuposto tambeacutem nas definiccedilotildees

de paradoxo e de antinomia O princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute entendido na loacutegica claacutessica

como uma das leis maacuteximas do pensamento ao lado dos de identidade e do terceiro excluiacutedo

os quais em conjunto satildeo considerados as condiccedilotildees necessaacuterias e suficientes para o

pensamento correto Embora natildeo tenham sido aceitos sem criacuteticas jaacute que em diversos

momentos ao longo da Histoacuteria questionou-se se teriam o estatuto de leis e se deveriam

mesmo ter primazia na loacutegica os trecircs princiacutepios foram admitidos em geral como

fundamentais

De uma perspectiva informal antinomia e paradoxo satildeo noccedilotildees anaacutelogas

e podem ser definidos como argumentos aparentemente corretos cujas premissas satildeo

aceitaacuteveis mas natildeo a conclusatildeo Em conformidade com essa posiccedilatildeo a maioria dos manuais e

dicionaacuterios de Loacutegica apresentam paradoxo e antinomia como sinocircnimos Natildeo obstante de

45

Schopenhauer escreve ldquoDiese zwei widersprechenden Ansichten auf jede von welchen wir in der That mit

gleicher Notwendigkeit gefuumlhrt werde koumlnnte man allerdings wieder eine Antinomie in unserm

Erkenntniᵦvermoumlgen nennen [hellip]rdquo Cf WWV I ersters buch sect7 p 65 M I Livro I sect7 p 76 46

BACON F The New organon New York Cambridge University Press 2000 Book II Aphorism XX p 130

- 31 -

um ponto de vista formal e mais rigoroso natildeo se pode entendecirc-los como conceitos idecircnticos

Eacute o que afirma o loacutegico Newton da Costa ao definir uma antinomia formal como sendo

aquela evidenciada em uma teoria formalizada que se mostre trivial metateoacuterica ou

epistemologicamente Paradoxo formal por seu turno eacute a derivaccedilatildeo de dois teoremas

contraditoacuterios em uma teoria formalizada Como explica Da Costa pela definiccedilatildeo usual da

loacutegica claacutessica ldquo[uma teoria] T eacute antinocircmica se e somente se nela se puder derivar um

paradoxordquo47

Embora natildeo tencionemos formalizar a filosofia Schopenhauer optamos

por natildeo considerar antinomia e paradoxo como sinocircnimos Natildeo obstante natildeo nos ateremos

estritamente agraves noccedilotildees formais de paradoxo e antinomia expostas por Da Costa se bem que os

conceitos que manteremos se aproximam claramente dos que ele propotildee Segundo pensamos

nosso propoacutesito nesta tese exige que preservemos no conceito de antinomia a marca das

discussotildees realizadas por Kant na Criacutetica da razatildeo pura por ser esse o entendimento que

Schopenhauer explicitamente adota Kant chama de antinomias os resultados teoacutericos do

conflito das leis da razatildeo surgidos no uso empiacuterico dessa faculdade48

Para ele na condiccedilatildeo

maacuteximas para a orientaccedilatildeo do entendimento acerca da totalidade do conhecimento do mundo

as ideias da razatildeo satildeo regulativas mas natildeo possuem validade empiacuterica As antinomias

consistem na contraposiccedilatildeo de teses e antiacuteteses que supostamente afirmariam verdades

empiacutericas relacionadas agrave totalidade incondicionada do mundo Por serem derivadas da

proacutepria razatildeo seriam naturais e inevitaacuteveis Nas palavras de Kant as antinomias originam-se

[] quando se aplica a razatildeo agrave siacutentese objetiva dos fenocircmenos aiacute pretende eacute

certo e com muita aparecircncia fazer valer o seu princiacutepio da unidade

incondicionada mas em breve se enreda em tais contradiccedilotildees que se vecirc

forccedilada a desistir da sua pretensatildeo em mateacuteria cosmoloacutegica49

Natildeo nos interessa discutir todas as implicaccedilotildees da teorizaccedilatildeo kantiana

sobre esse ponto mas apenas ressaltar sua conceituaccedilatildeo e mostrar o modo como teses e

antiacuteteses se contrapotildeem Para isso ressaltamos uma caracteriacutestica fundamental das antinomias

entendidas desse modo a saber embora sejam mutuamente excludentes tanto as teses quanto

as antiacuteteses satildeo legiacutetimas e demonstraacuteveis logicamente Nesse sentido Kant afirma que

Quando natildeo nos limitamos a aplicar a nossa razatildeo no uso dos princiacutepios do

entendimento aos objetos da experiecircncia mas ousamos alargar esses

47

DA COSTA N Ensaio sobre os fundamentos da loacutegica 3ordf ed Satildeo Paulo Hucitec 2008 p 221 48

KvR A406B433 ndash A408B435 CRP p 379-380 49

KvR A407B433 CRP p 379 (grifos do autor)

- 32 -

princiacutepios para aleacutem dos limites desta experiecircncia surgem teses sofisticas

que da experiecircncia natildeo tecircm a esperar confirmaccedilatildeo nem refutaccedilatildeo a temer e

cada uma delas natildeo somente natildeo encerra contradiccedilatildeo consigo proacutepria mas

encontra mesmo na natureza da razatildeo condiccedilotildees da sua necessidade a

proposiccedilatildeo contraacuteria poreacutem infelizmente tem por seu lado fundamentos de

afirmaccedilatildeo igualmente vaacutelidos e necessaacuterios50

Exporemos somente a primeira antinomia a tiacutetulo de exemplo pois o

procedimento kantiano em relaccedilatildeo agraves outras eacute o mesmo A primeira antinomia da razatildeo tem

como tese a proposiccedilatildeo ldquoO mundo tem um comeccedilo no tempo e eacute tambeacutem limitado no espaccedilordquo

e como antiacutetese ldquoO mundo natildeo tem comeccedilo nem limites no espaccedilo eacute infinito tanto no tempo

como no espaccedilordquo51

Cada uma delas eacute provada indiretamente pela refutaccedilatildeo da sua contraacuteria

Assim Kant busca a prova da tese por meio das consequecircncias que se podem extrair da

admissatildeo da antiacutetese segundo a qual o mundo natildeo eacute limitado no tempo nem no espaccedilo Por

um lado no caso de natildeo ser limitado no tempo um instante determinado exigiria um decurso

infinito de tempo e de estados sucessivos dos objetos antes que pudesse ser dado No entanto

diz Kant a infinitude dessa seacuterie anterior seraacute pensada como nunca concluiacuteda o que tornaria

impossiacutevel a proacutepria existecircncia do mundo Com isso um iniacutecio em um ponto do tempo torna-

se condiccedilatildeo necessaacuteria para a existecircncia do mundo52

Por outro lado se for admitida a

infinitude no espaccedilo o mundo teraacute de ser pensado como um todo infinito de objetos

simultacircneos Esse todo poreacutem soacute pode ser pensado por noacutes como siacutentese sucessiva das

partes e natildeo poderiacuteamos englobaacute-lo em uma intuiccedilatildeo com limites determinados A siacutentese

sucessiva das partes de um mundo infinito no espaccedilo precisaria ser completada e isso por sua

vez exigiria um tempo infinito para a enumeraccedilatildeo de todas as coisas que se justapotildeem Daiacute

conclui o filoacutesofo ldquo[] um agregado infinito de coisas reais natildeo pode considerar-se um todo

dado nem portanto dado ao mesmo tempo O mundo natildeo eacute pois infinito quanto agrave extensatildeo

no espaccedilo antes encerrado em limites []rdquo53

De modo semelhante a antiacutetese eacute provada pela refutaccedilatildeo da tese

Supondo-se que o mundo possui um iniacutecio eacute preciso admitir que houve um tempo vazio em

que natildeo existia Entretanto nada poderia surgir em um tempo vazio na medida em que natildeo se

poderia distinguir uma parte sua de outra tampouco a existecircncia de algo da natildeo existecircncia No

tocante ao espaccedilo admitindo-se que o mundo tem limites teraacute de ser suposto um vazio

ilimitado onde ele entatildeo se encontraraacute situado Nesse caso poreacutem o mundo estaria em

50

KvR A421B449 CRP p 389 (grifos do autor) 51

KvR A426B454 ndash A427B455 CRP p 392-393 52

KvR A426B454 CRP p 392 53

KvR A428B446 CRP p 394 (grifos do autor)

- 33 -

relaccedilatildeo com algo que natildeo eacute propriamente um objeto jaacute que fora dele mesmo natildeo haacute nenhum

E diz Kant ldquo[] semelhante relaccedilatildeo natildeo eacute nada e consequentemente tambeacutem eacute nada a

limitaccedilatildeo do mundo pelo espaccedilo vazio portanto o mundo natildeo eacute limitado quanto ao espaccedilo

quer dizer eacute infinito em extensatildeordquo54

Kant conclui acerca das quatro antinomias que nas duas primeiras as

contradiccedilotildees surgem porque o espaccedilo o tempo e a simplicidade satildeo pensados como coisas em

si quando satildeo na verdade conceitos com idealidade transcendental Em virtude disso o

mundo em si acabaria sendo convertido em objeto de conhecimento o que eacute impossiacutevel e

assim tanto as teses quanto as antiacuteteses seriam falsas Nas duas uacuteltimas antinomias por seu

turno as teses e as antiacuteteses seriam verdadeiras mas referentes a realidades distintas a saber

as teses aos nuacutemenos e as antiacuteteses aos fenocircmenos Como resultado Kant encontra que o

conflito de leis da razatildeo pura produz as antinomias as quais se configuram como a

formulaccedilatildeo de duas vias teoacutericas distintas que apresentam o mundo com caracteriacutesticas

excludentes mas que possui cada uma as suas justificaccedilotildees Enquanto derivadas da proacutepria

constituiccedilatildeo da razatildeo satildeo resultados naturais e natildeo podem ser extintas ou completamente

dissolvidas

O conceito de paradoxo possui uma raiz antiga (παπάδοξα) como

opiniatildeo que contraria os conhecimentos comumente aceitos como verdadeiros Do ponto de

vista informal trata-se de um argumento de vaacutelido mas cuja conclusatildeo natildeo pode ser aceita

porque implica um problema loacutegico ou de natureza empiacuterica Nas histoacuterias da loacutegica e da

filosofia verificaram-se e discutiram-se diversos tipos de paradoxos e a tiacutetulo de uma

organizaccedilatildeo miacutenima lanccedilaremos matildeo da classificaccedilatildeo feita por Da Costa55

Este teoacuterico

destaca em primeiro lugar os paradoxos loacutegico-matemaacuteticos que se relacionam com as

noccedilotildees formais da loacutegica e da matemaacutetica Um dos exemplos mais conhecidos desse tipo eacute o

ldquoparadoxo das classesrdquo apontado por Russell na loacutegica de Frege Nesse paradoxo surge um

problema com a classe de todas as classes que natildeo satildeo membros de si mesmas quando se

indaga se ela eacute ou natildeo membro de si mesma Caso a resposta seja afirmativa a classe de todas

as classes que natildeo satildeo membros de si mesmas teraacute um membro que eacute membro de si mesmo

Se a resposta for negativa a classe de todas as classes que natildeo satildeo membros de si mesmas natildeo

conteraacute a si mesma embora devesse conter pois seria uma classe que natildeo conteacutem a si mesma

Por conseguinte qualquer opccedilatildeo que se faccedila resultaraacute paradoxal

54

KvR A429B457 CRP p 395 55

DA COSTA N op cit p 225

- 34 -

O segundo tipo de paradoxos eacute o semacircntico derivado do uso da

linguagem cujo exemplo mais tiacutepico eacute o chamado ldquoparadoxo do mentirosordquo Nesse caso o

paradoxo surge da anaacutelise da proposiccedilatildeo ldquoEsta sentenccedila eacute falsardquo Por um lado se a

considerarmos verdadeira o que ela afirma eacute verdade e ela seraacute simultaneamente falsa pois

eacute isso que assevera Por outro lado se a considerarmos falsa aquilo que ela afirma natildeo eacute

verdadeiro e portanto a sentenccedila estaraacute negando sua falsidade e afirmando sua verdade Em

ambos os casos a verdade da proposiccedilatildeo ldquoEsta sentenccedila eacute falsardquo implica a proacutepria falsidade e

vice-versa O uacuteltimo grupo de paradoxos envolve conceitos e conhecimentos empiacutericos como

o conhecido ldquoparadoxo de Aquiles e a tartarugardquo formulado Zenatildeo de Eleia para negar a

realidade do movimento Nesse paradoxo estaacute envolvida a ideia de divisibilidade infinita do

espaccedilo um conceito apreensiacutevel apenas pela razatildeo sem correspondecircncia intuitiva Segundo a

formulaccedilatildeo claacutessica Aquiles e uma tartaruga apostam corrida e partem simultaneamente mas

com um metro de vantagem dado ao animal Embora Aquiles seja muito mais veloz quando

avanccedila o metro dado agrave tartaruga esta avanccedila dez centiacutemetros quando o heroacutei percorre esses

dez centiacutemetros a tartaruga corre um centiacutemetro e assim sucessivamente Por conseguinte

mesmo avanccedilando infinitamente a distacircncia entre ambos nunca seraacute igual a zero e Aquiles

jamais alcanccedilaraacute a tartaruga

De acordo com Da Costa pode-se solucionar um paradoxo de dois

modos diferentes Um deles eacute o negativo em que se prova que sua conclusatildeo eacute na verdade

uma falaacutecia formal ou material Caso se trate de uma falaacutecia formal deve-se demonstrar que o

argumento possui uma forma loacutegica invaacutelida caso se trate de uma falaacutecia material deve-se

provar que uma das premissas eacute factualmente falsa A segunda maneira positiva de se

solucionar um paradoxo eacute mostrando que sua conclusatildeo eacute realmente verdadeira Em suma

para resolver um paradoxo seria necessaacuterio reduzi-lo a falaacutecia ou justificar sua conclusatildeo

O conceito de aporia estaacute relacionado aos anteriores e se define por ser

uma dificuldade teoacuterica cuja soluccedilatildeo eacute muito trabalhosa ou impossiacutevel A forma em que

aparece pode ser a de uma antinomia ou de um paradoxo e o que a distingue eacute a exigecircncia de

grandes esforccedilos para seu desenlace ou a inexistecircncia de qualquer saiacuteda Os modos pelos

quais uma aporia poderia ser resolvida satildeo os mesmos que resolveriam um paradoxo isto eacute

sua reduccedilatildeo a falaacutecia ou a justificaccedilatildeo da sua conclusatildeo No entanto no caso especiacutefico das

aporias a resoluccedilatildeo demandaria esforccedilos teoacutericos excessivos e a revisatildeo dos princiacutepios

baacutesicos das teorias Normalmente segundo Da Costa as aporias satildeo solucionadas pela via

- 35 -

negativa mostrando-se que se tratam de falaacutecias ou que possuem uma premissa falsa para

que assim se evite uma revisatildeo completa dos fundamentos da teoria em questatildeo56

Portanto a

soluccedilatildeo positiva delas natildeo eacute tarefa faacutecil pois requer grandes mudanccedilas como a transformaccedilatildeo

completa do sistema formal em que se apoia ou a reestruturaccedilatildeo de teorias

Com base no exposto acima julgamos que a antinomia da faculdade de

conhecimento natildeo se revela uma contradiccedilatildeo um paradoxo e nem mesmo uma antinomia No

nosso entender como mostraremos a seguir trata-se mais propriamente de um tipo especial

de circulus in probando que envolve a possibilidade do conhecimento e sua relaccedilatildeo com o

tempo Na verdade a questatildeo natildeo eacute simples de ser decidida pois em termos latos o problema

poderia ser enquadrado em qualquer das noccedilotildees apresentadas mesmo com as diferenccedilas que

apontamos Todavia uma escolha deve forccedilosamente ser feita se quisermos compreender a

fundo e precisamente o problema com o qual nos ocupamos Para isso utilizaremos a

exposiccedilatildeo e a argumentaccedilatildeo anteriores como os apoios de que necessitamos para tornar nossas

opccedilotildees menos arbitraacuterias

Em primeiro lugar parece-nos que o problema da teoria do conhecimento

de Schopenhauer natildeo pode ser entendido como contradiccedilatildeo De fato o filoacutesofo escreve que ldquoa

existecircncia do mundo inteiro depende do primeiro ser cognoscenterdquo e tambeacutem que ldquoo primeiro

animal cognoscente depende de uma longa cadeia precedente de causas e efeitosrdquo57

isto eacute

subordina-se agrave existecircncia do mundo como representaccedilatildeo Quando analisamos esse problema

do ponto de vista do desrespeito agrave norma loacutegica baacutesica de que a conclusatildeo deve ser

consequecircncia das premissas isto eacute se as premissas forem verdadeiras que a conclusatildeo

tambeacutem o seja notamos que natildeo se aplica a esse caso O que temos aqui satildeo duas conclusotildees

provindas de dois lados distintos do pensamento schopenhaueriano tomado como um todo

Cada uma das conclusotildees tem suas ilaccedilotildees proacuteprias que satildeo suficientes para justificaacute-lo de

modo que natildeo se observam premissas verdadeiras levando a uma conclusatildeo falsa De modo

semelhante natildeo haacute a atribuiccedilatildeo simultacircnea ao primeiro ser cognoscente de qualidades ou

relaccedilotildees mutuamente excludentes Natildeo se afirma por exemplo que o mundo da representaccedilatildeo

depende e natildeo depende dele simultaneamente O mesmo se pode afirmar em relaccedilatildeo ao

desrespeito ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo segundo o qual um enunciado natildeo pode ser

tomado como verdadeiro e como falso a um soacute tempo e sob aspectos idecircnticos De fato

ambas as proposiccedilotildees da antinomia natildeo estatildeo em uma oposiccedilatildeo direta ou seja natildeo se pode

56

DA COSTA N op cit p 226 57

WWV I ersters buch sect7 p 65 M I Livro I sect7 p 75

- 36 -

dizer que uma eacute a negaccedilatildeo exata da outra

Uma possibilidade diferente seria a anaacutelise de cada sentenccedila da

antinomia como uma proposiccedilatildeo condicional Na primeira a existecircncia do animal

cognoscente (A) seria o antecedente do qual decorreria o consequente a existecircncia do mundo

como representaccedilatildeo (M) A rarr M Na segunda os termos estariam trocados e o mundo como

representaccedilatildeo seria o antecedente enquanto o primeiro animal seria o consequente M rarr A

Natildeo obstante a contradiccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo condicional resulta do rompimento da relaccedilatildeo

de implicaccedilatildeo entre o antecedente e o consequente isto eacute caso aconteccedila de o antecedente ser

verdadeiro e o consequente ser falso Portanto soacute poderiacuteamos falar em contradiccedilatildeo caso no

discurso schopenhaueriano estivesse afirmado ao lado das duas proposiccedilotildees da antinomia

que o animal cognoscente em algum momento existiu mas natildeo mundo como representaccedilatildeo

A ˄ notM ou inversamente que o mundo da representaccedilatildeo existe mas natildeo o animal

ognosente M ˄ notA A rigor A rarr M e M rarr A natildeo se contradizem

No nosso entender a antinomia da faculdade de conhecimento natildeo deve

tambeacutem ser enquadrada entre os paradoxos em sentido rigoroso Como jaacute expusemos

paradoxo formal eacute a derivaccedilatildeo de dois teoremas contraditoacuterios em uma teoria formalizada

mas nossa anaacutelise anterior demonstrou que os dois enunciados da antinomia natildeo estatildeo em

uma relaccedilatildeo de contraditoriedade Tomando em consideraccedilatildeo o conceito mais geral de

paradoxo talvez se pudesse afirmar que as duas conclusotildees paralelas satildeo paradoxais na

medida em que o argumento de cada uma possui premissas verdadeiras mas conclusotildees

inaceitaacuteveis quando comparadas entre si Poreacutem como estamos buscando uma precisatildeo

crescente do nosso objeto de estudo cremos que esse conceito de paradoxo eacute muito amplo a

ponto de abranger distintas classes de problemas o que natildeo nos auxilia

Aleacutem disso segundo pensamos nenhum dos tipos de paradoxos que

examinamos possui a forma da antinomia da faculdade de conhecimento Os paradoxos

loacutegicos-matemaacuteticos envolvem autocontradiccedilatildeo trazendo como consequecircncia que a atribuiccedilatildeo

de qualquer dos valores de verdade V ou F agraves proposiccedilotildees envolvidas resultaraacute sempre em

uma proposiccedilatildeo falsa Por exemplo no caso do paradoxo das classes de Russel se

respondermos afirmativamente agrave questatildeo de saber se a classe de todas as classes que satildeo natildeo

membros de si mesmas pertence a si mesma teremos uma proposiccedilatildeo falsa pois a classe de

todas classes que natildeo satildeo membros de si mesmas teraacute um membro que natildeo pertence a ela isto

eacute uma classe que eacute membro de si mesma Se respondermos negativamente a classe de todas

- 37 -

as classes que natildeo satildeo membros de si mesmas natildeo conteraacute a si mesma mas entatildeo seu caraacuteter

universal seraacute posto em xeque pois haveraacute um membro que deveria estar dentro dela e

todavia estaacute fora Nesse exemplo a resposta agrave pergunta sobre a classe de todas as classes natildeo

admite resposta verdadeira e eacute essa outra forma de conceituar a contradiccedilatildeo a saber se o

valor de verdade resultante de uma foacutermula eacute sempre falso No entanto o problema da

antinomia da faculdade de conhecer natildeo se assemelha a esse caso Se tomarmos como

verdadeira cada conclusatildeo em separado veremos que ldquoa existecircncia do mundo inteiro depende

necessariamente do primeiro ser cognoscenterdquo eacute uma proposiccedilatildeo perfeitamente consistente

consigo mesma natildeo levando a valores de verdade falsos nem implicando verdade e falsidade

simultacircneas O mesmo se pode dizer de ldquoo primeiro ser cognoscente depende de uma longa

cadeia de causas e efeitos que o precederdquo Na verdade os problemas surgem quando se

colocam ambas as sentenccedilas lado a lado

Considerando os paradoxos semacircnticos a relaccedilatildeo loacutegica estabelecida

entre as proposiccedilotildees envolvidas eacute ligeiramente diferente embora tambeacutem vejamos um tipo de

autocontradiccedilatildeo envolvida Tomando o exemplo do paradoxo do mentiroso observamos que a

verdade da proposiccedilatildeo ldquoEsta sentenccedila eacute falsardquo (S) acarreta sua proacutepria falsidade enquanto sua

falsidade acarreta a proacutepria verdade Com efeito se a proposiccedilatildeo eacute verdadeira o que ela

afirma deve ser falso e o resultado pode ser expresso assim (S)Vrarr(S)F Do mesmo modo

se o que a proposiccedilatildeo afirma eacute falso ela deve ser verdadeira (S)Frarr(S)V Mais uma vez natildeo

eacute esse o tipo de oposiccedilatildeo que se percebe na antinomia da teoria do conhecimento de

Schopenhauer Cada parte dela natildeo implica a proacutepria verdade e falsidade simultaneamente

nem mesmo a junccedilatildeo de ambas implica

No tocante aos paradoxos empiacutericos a semelhanccedila com o nosso objeto

de estudo parece ser maior pois a dificuldade loacutegica surge pela impossibilidade de se pensar

claramente a questatildeo como numa espeacutecie de interrupccedilatildeo do pensamento frente a um impasse

que envolve tambeacutem conhecimentos empiacutericos O exemplo do paradoxo de Aquiles e a

tartaruga evidencia uma necessidade decorrente do proacuteprio intelecto de continuar realizando

a divisatildeo da extensatildeo ao infinito embora a velocidade de Aquiles imponha ao pensamento a

ideia de que ele deve se sobrepor agrave divisibilidade contiacutenua do espaccedilo e ultrapassar a tartaruga

Contudo no nosso entendimento natildeo eacute exatamente isso o que comparece no nosso objeto de

estudo Realmente pensar que o mundo eacute dependente do primeiro ser cognoscente e que ao

mesmo tempo o primeiro ser cognoscente depende da existecircncia do mundo natildeo leva a um

- 38 -

impasse desse tipo eacute algo que se pode pensar ainda que somente tomando cada proposiccedilatildeo de

modo separado Os problemas surgem quando as pensamos juntas mas a possibilidade que

existe aqui de se considerar cada porccedilatildeo do problema estaacute excluiacuteda no caso dos paradoxos

empiacutericos pois eles se configuram como um todo indivisiacutevel

Sob a perspectiva do conflito de leis que eacute o conceito que adotamos para

antinomia tambeacutem natildeo se verifica algo semelhante no nosso objeto As antinomias no

sentido kantiano satildeo teses e antiacuteteses contraditoacuterias ou contraacuterias que surgem do conflito da

razatildeo pura consigo mesma Aparentemente esse seria o caso pois assim como as antinomias

kantianas as duas proposiccedilotildees conflitantes da teoria do conhecimento de Schopenhauer tecircm

cada uma sua justificaccedilatildeo loacutegica Por um lado das teses acerca do mundo tomado como

representaccedilatildeo decorre necessariamente que ele soacute pode existir com apoio no sujeito por

outro das teses que sustentam a Vontade como o em si do mundo decorre tambeacutem

necessariamente que ela se objetiva numa trajetoacuteria de refinamento ateacute chegar ao ceacuterebro

humano No entanto ambas as proposiccedilotildees natildeo estatildeo entre si na mesma relaccedilatildeo em que estatildeo

as teses e antiacuteteses das antinomias formuladas por Kant nas quais uma eacute sempre a negaccedilatildeo

expliacutecita da outra Aleacutem disso natildeo se observa um conflito propriamente entre leis da razatildeo ou

de outra coisa mas sim uma discrepacircncia entre duas formas de descrever e explicar o mundo

isto eacute entre dois discursos distintos um pelo lado da representaccedilatildeo e outro pelo lado da

Vontade As antinomias kantianas derivam da constituiccedilatildeo da razatildeo pura satildeo como ilusotildees

naturais e inevitaacuteveis A de Schopenhauer por seu turno eacute o resultado de um modo duplo de

compreender o mundo

Eacute importante ainda analisarmos a antinomia do ponto de vista do que se

entende por peticcedilatildeo de princiacutepio ou ciacuterculo vicioso pois eacute assim que ela foi entendida em

grande parte das vezes No sect 92 de Manual dos cursos de loacutegica geral Kant afirma que se

comete peticcedilatildeo de princiacutepio quando se toma por imediatamente certa uma proposiccedilatildeo que na

verdade precisa ser provada O ciacuterculo vicioso eacute ligeiramente distinto pois nele a proposiccedilatildeo

que deve ser provada eacute colocada como seu proacuteprio fundamento58

No Oacuterganon de Aristoacuteteles

encontramos uma discussatildeo mais detalhada desses conceitos Nos Analiacuteticos Anteriores esse

filoacutesofo distingue dois tipos de provas a saber as que se datildeo pela proacutepria natureza do objeto e

as que exigem o recurso a outros fatores Exemplo das primeiras satildeo os princiacutepios e das

segundas tudo o que eacute subordinado a eles Conforme Aristoacuteteles entatildeo comete-se uma

58

KANT I Manual dos cursos de loacutegica geral 2ordf ed Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e guia de leitura de Fausto

Castilho Campinas UNICAMP Uberlacircndia UFU 2003 p 269

- 39 -

peticcedilatildeo de princiacutepio quando se tenta provar por si mesma uma verdade que precisa apoiar-se

em outros dados59

Nos Toacutepicos ele resume as cinco formas em que se pode incorrer em

peticcedilatildeo de princiacutepio postulando-se aquilo mesmo que se quer demonstrar postulando-se

universalmente o que se quer provar em um caso particular postulando-se em casos

particulares o que se quer provar em geral postulando-se a conclusatildeo por partes e

postulando-se afirmaccedilotildees que se implicam mutuamente60

Em siacutentese diz Aristoacuteteles na

peticcedilatildeo de princiacutepio o que se faz eacute limitar-se a afirmar que algo eacute se eacute61

Segundo nos parece

natildeo podemos enquadrar nosso objeto de estudo em peticcedilatildeo de princiacutepio ou em ciacuterculo vicioso

pois como jaacute dissemos ele surge como consequecircncia de proposiccedilotildees situadas em partes

distintas da filosofia schopenhaueriana Por conseguinte nenhuma eacute posta como fundamento

de si mesma nem eacute provada com recurso apenas a si mesma mas cada uma delas eacute resultante

de sua argumentaccedilatildeo correspondente

Nos Analiacuteticos Posteriores Aristoacuteteles menciona um tipo de

argumentaccedilatildeo circular em que as premissas natildeo satildeo anteriores e mais conhecidas do que a

conclusatildeo como seria de se esperar62

Na sua explicaccedilatildeo o argumento eacute circular porque

Eacute impossiacutevel que as mesmas coisas sejam relativamente agraves mesmas coisas

anteriores e posteriores ao mesmo tempo a menos que estes termos se

concebam de outro modo e que digamos que uns satildeo anteriores e mais

claros para noacutes e os outros anteriores e mais claros em absoluto sendo

justamente deste modo que a induccedilatildeo gera o conhecimento63

O argumento circular natildeo eacute necessariamente vicioso Se premissas e

conclusotildees forem reciacuteprocas diz Aristoacuteteles poderatildeo ser convertidas entre si e entatildeo a

demonstraccedilatildeo seraacute possiacutevel Conforme o filoacutesofo um processo semelhante a uma geraccedilatildeo

circular pode servir para exemplificar e ilustrar esse tipo de demonstraccedilatildeo

[] quando a terra for molhada eleva-se necessariamente um vapor uma

vez produzido este vapor forma-se uma nuvem formada a nuvem produz-

se a chuva e uma vez ter chovido a terra fica necessariamente molhada Era

precisamente este o nosso ponto de partida de modo que fechamos o ciacuterculo

pois dado qualquer um destes termos outro se segue e deste um outro e

59

ARISTOacuteTELES Organon III Analiacuteticos Anteriores Traduccedilatildeo de Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees

1986 Livro II 16 64b p 214-215 60

ARISTOacuteTELES Organon V Toacutepicos Traduccedilatildeo de Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees 1987 Livro VIII

13 163a p 314-315 61

ARISTOacuteTELES Organon III Analiacuteticos Anteriores Traduccedilatildeo de Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees

1987 Livro II 16 65a p 215 62

ARISTOacuteTELES Organon IV Analiacuteticos Posteriores Traduccedilatildeo de Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees

1987 Livro I 3 72b-73a p 17 et seq 63

Ibidem Livro I 3 72b p 18-19

- 40 -

deste outro o primeiro64

Segundo pensamos a antinomia da faculdade de conhecimento65

causa

admiraccedilatildeo porque o animal cognoscente aparece em dois pontos distintos da mesma seacuterie

temporal No primeiro ele eacute o iniacutecio do mundo aquele que traz consigo pela primeira vez as

formas necessaacuterias para a construccedilatildeo de toda e qualquer representaccedilatildeo a saber o tempo o

espaccedilo e a lei de causalidade No segundo no mesmo mundo da representaccedilatildeo ele ocupa um

ponto avanccedilado em um processo temporal que vai no sentido do aperfeiccediloamento das

objetivaccedilotildees da Vontade no qual o mais complexo e perfeito eacute posterior ao mais simples e

rudimentar Por conseguinte de um lado esse animal cognoscente deve ser anterior agraves

plantas aos peixes e aos animais inferiores jaacute que seu intelecto eacute condiccedilatildeo da existecircncia

deles De outro ele eacute posterior agraves mesmas plantas peixes e animais inferiores jaacute que eacute um

animal mais perfeito e portanto ulterior no tempo

De acordo com o exposto entendemos que a antinomia da faculdade de

conhecimento forma uma imagem semelhante agravequela exposta por Aristoacuteteles na sua

exposiccedilatildeo do argumento circular A imagem construiacuteda pela antinomia como um todo eacute a de

um ciacuterculo formado pelo princiacutepio de razatildeo suficiente que tem origem no intelecto do animal

cognoscente mas que deveraacute originaacute-lo por sua vez na gradaccedilatildeo progressiva dos seres

naturais Cada proposiccedilatildeo em separado situa esse animal em um ponto distinto da mesma

linha temporal de um lado no iniacutecio do tempo que coincide com o iniacutecio do mundo como

representaccedilatildeo de outro num posto avanccedilado do desenvolvimento gradativo dos seres da

natureza o qual exige por seu turno que o tempo jaacute tenha iniciado e transcorrido ateacute ali

Portanto no exato momento em que abriu os olhos o primeiro animal cognoscente iniciou

uma sucessatildeo temporal para o futuro infinitamente Para abrir os olhos contudo precisou de

uma cadeia causal anterior que somente poderia surgir com o transcurso do tempo atributo

de seu proacuteprio intelecto Simplificadamente poderiacuteamos dizer que nesse ciacuterculo o animal

engendra o mundo e o mundo engendra o animal assim como a aacutegua da terra gera a chuva e

esta molha a terra no argumento de Aristoacuteteles Em verdade de acordo com a filosofia

schopenhaueriana a ideia de que o mundo como representaccedilatildeo tem iniacutecio com o animal

cognoscente eacute algo baacutesico um ponto paciacutefico A dificuldade maior eacute a segunda proposiccedilatildeo

porque ela perturba indiretamente a construccedilatildeo teoacuterica da Vontade e introduz nela um

64

Ibidem Livro II 96a p 142 65

Embora estejamos argumentando que o problema natildeo tem a forma de uma antinomia preservaremos esse

nome para designaacute-la pois assim foi que Schopenhauer a nomeou

- 41 -

processo temporal Quando o filoacutesofo escreve que a objetivaccedilatildeo mais simples precede a mais

complexa estaacute afirmando que a Vontade depende de alguma forma do tempo e que admite

um processo que postula a existecircncia dele antes mesmo de existir aquilo que eacute sua condiccedilatildeo

de possibilidade

14 ndash Investigaccedilatildeo acerca dos conceitos das outras questotildees presentes na filosofia de

Schopenhauer

Aleacutem da antinomia da faculdade de conhecer Schopenhauer aponta

tambeacutem as trecircs contradiccedilotildees que jaacute mencionamos acima Natildeo discutiremos a primeira sobre a

liberdade uma vez que jaacute nos dedicamos a ela em dissertaccedilatildeo de mestrado66

A segunda eacute a

existecircncia simultacircnea de mecanicismo e finalismo questatildeo cujo cerne natildeo estaacute propriamente

na possibilidade de que os fenocircmenos naturais sejam regidos ao mesmo tempo por causas

finais e causas eficientes Na verdade um primeiro problema se encontra na dificuldade de se

explicar o funcionamento dos corpos orgacircnicos por meio do princiacutepio de razatildeo suficiente que

soacute prevecirc causaccedilotildees mecacircnicas e lineares mas natildeo as finais Uma causalidade final exige a

pressuposiccedilatildeo de um conceito regulador uma ideia uma organizaccedilatildeo do corpo de si para si

algo que a lei de causalidade que implica somente accedilatildeo e reaccedilatildeo natildeo admite Um segundo

problema estaacute em que a Vontade sendo definida como um impulso cego e sem objetivo final

natildeo poderia apresentar uma finalidade nas suas objetivaccedilotildees No nosso entendimento o

embaraccedilo que daiacute se origina natildeo possui um caraacuteter loacutegico mas transparece na dificuldade de

se aplicar essas concepccedilotildees de Vontade e de causalidade agrave diversidade do mundo empiacuterico

Ao que nos parece a afirmaccedilatildeo simultacircnea de mecanicismo e finalismo natildeo resulta em

qualquer inconveniente e ambos poderiam ser inferidos do funcionamento dos mesmos seres

orgacircnicos O fato eacute que essa realidade custosamente encontraria explicaccedilatildeo na filosofia

schopenhaueriana

66

Cf SANTOS K C S O problema da liberdade na filosofia de Arthur Schopenhauer Dissertaccedilatildeo

(Mestrado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo Departamento

de Filosofia Orientador Prof Dr Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo 2010

- 42 -

A terceira contradiccedilatildeo indicada por Schopenhauer eacute a que ocorre entre a

contingecircncia aparente dos eventos que ocorrem na trajetoacuteria de vida dos indiviacuteduos e o teacutelos

que parece guiaacute-la Nesse caso a finalidade afirmada como subjacente agrave vida humana eacute ainda

mais discutiacutevel em funccedilatildeo de seu aspecto moral O que aqui se assevera eacute que o indiviacuteduo

estaria independente de seu proacuteprio conhecimento buscando os fins morais da Vontade

identificados com a negaccedilatildeo de si mesma Pareceria entatildeo que estamos realmente diante de

uma contradiccedilatildeo em sentido estrito porque a Vontade eacute apresentada simultaneamente como

sendo moral e natildeo moral Apesar disso acreditamos que essa contradiccedilatildeo eacute inofensiva em

relaccedilatildeo ao pensamento schopenhaueriano como um todo e embora o filoacutesofo discorra sobre a

moralidade do destino individual em todo um ensaio dos Parerga e paralipomena67

ele o faz

advertindo expressamente que satildeo meras especulaccedilotildees sem qualquer fundamento filosoacutefico

Em relaccedilatildeo aos paradoxos que apresentamos no item 12 pensamos que

satildeo tambeacutem objeccedilotildees de menores consequecircncias O primeiro deles atine ao que eacute ou natildeo

possiacutevel dentro dos pressupostos schopenhauerianos realizar-se mediante o discurso

filosoacutefico Com efeito Schopenhauer se propotildee descobrir o segredo mais iacutentimo do mundo

desvendar seu enigma o que soacute poderia ser feito a rigor com recurso a um conhecimento de

tipo esteacutetico ou eacutetico que natildeo seguem o princiacutepio de razatildeo suficiente O proacuteprio filoacutesofo

afirma curiosamente que ldquo[] a simples razatildeo de conhecimento permanece na superfiacutecie e

somente pode dar o conhecimento de o que algo eacute mas natildeo por que eacuterdquo68

No entanto sua

filosofia enquanto expressatildeo in abstrato do que ocorre in concreto soacute pode ser estruturada

por meio do principium sufficientis cognoscendi com o qual apenas se poderia expor

abstratamente o mundo como representaccedilatildeo mas nunca desvendar o iacutentimo da Vontade

Segundo pensamos trata-se de uma conclusatildeo assombrosa eacute verdade mas natildeo deixa de ser

meritoacuteria a tentativa de dizer o maacuteximo que se possa saber e afirmar acerca da essecircncia das

coisas Ao que nos parece natildeo se trata de uma contradiccedilatildeo nem de uma antinomia mas de

um paradoxo no sentido informal que apresentamos as premissas dos sistema satildeo aceitaacuteveis

mas natildeo essa conclusatildeo

O uacuteltimo paradoxo que discutiremos diz respeito ao conhecimento

67

Cf PP I Transzendente Spekulation uumlber die anscheinende absichtlichkeit im Schicksale des Einzelnen

Especulacioacuten transcendente sobre los visios de intencionalidade en el destino del individuo In Los designios

del destino Estudio preliminar traduccioacuten y notas de Roberto Rodriacutegues Aramayo Madrid Tecnos 1994 68

WWV I ersters buch p sect 15 115 M I Livro I sect 15 p 122 (grifos do autor)

- 43 -

possiacutevel ao sujeito a partir do seu proacuteprio interior do seu proacuteprio querer69

Como dissemos

para Schopenhauer a vontade individual daacute acesso imediato ao interior do funcionamento da

lei de causalidade possibilitando um conhecimento mais profundo dos fenocircmenos por meio

da relaccedilatildeo imediata com a Vontade Ao lado disso o filoacutesofo sustenta que os fenocircmenos que

mais manifestam esta uacuteltima satildeo os mais incompreensiacuteveis em funccedilatildeo da heterogeneidade

completa entre as causas e os efeitos que aiacute se apresenta Ao que nos parece esses fenocircmenos

em que a Vontade eacute mais evidente deveriam tambeacutem ser os mais conhecidos para noacutes posto

que nesse caso poderiacuteamos enxergar ldquoatraacutes dos bastidoresrdquo70

O que notamos nesse caso eacute a

tentativa de unir os dois modos diferentes de conhecimento pela vontade e pelo princiacutepio de

razatildeo os quais poreacutem estatildeo em descompasso Em algumas passagens Schopenhauer afirma

que mesmo sendo mais profundo o conhecimento da vontade individual eacute obscuro Poreacutem

continua a indagaccedilatildeo sobre como um conhecimento ldquopor dentrordquo da causalidade pode ser ao

mesmo tempo obscuro e o melhor Trata-se tambeacutem de um paradoxo no sentido geral que

apontamos na medida em que temos uma conclusatildeo inaceitaacutevel partindo de premissas

coerentes do sistema

Para finalizar a discussatildeo sobre este uacuteltimo ponto observaremos somente

que no texto ldquoPensamentos acerca do intelecto em geral e em todas as suas relaccedilotildeesrdquo de

Parerga e Paralipomena Schopenhauer afirma que o intelecto eacute formado originalmente para

voltar-se para fora Quando dirige a atenccedilatildeo ao seu interior para conhecer-se a si mesmo cai

em uma total obscuridade um vazio total71

Na condiccedilatildeo de sujeito do conhecimento natildeo

pode voltar-se a si mesmo e conhecer-se e ainda que pudesse natildeo encontraria nada jaacute que

esse sujeito natildeo eacute nada em si mesmo mas somente uma aparecircncia cuja forma eacute o tempo

Certamente o sujeito cognoscente pode conhecer-se como vontade poreacutem Schopenhauer

esclarece que esse conhecimento natildeo se refere a si mesmo mas a outra coisa diferente dele

que no entanto situa-se dentro A vontade por seu turno natildeo eacute capaz de autoconhecimento

pois como ele escreve no texto mencionado acima ldquo[] em si e por si eacute algo que apenas

quer e natildeo algo que conhece como tal ela natildeo conhece nada portanto tambeacutem natildeo a si

69

Natildeo nos debruccedilaremos sobre as questotildees envolvidas no conceito de mateacuteria O leitor interessado pode

conferir BRANDAtildeO E A concepccedilatildeo de mateacuteria na obra de Schopenhauer Satildeo Paulo Humanitas 2008 70

UumlV sect 43 p 173 CR sect 43 p 208 71

PPII Kap 3 sect32 p 57-58 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de

Miguel Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 32 p 240

- 44 -

mesma O conhecimento eacute uma funccedilatildeo secundaacuteria e intermediaacuteria que natildeo corresponde

imediatamente a ela o primaacuterio na sua essecircnciardquo72

15 ndash Estrutura histoacuterica da metafiacutesica de Schopenhauer o debate sobre a coisa em si

Uma das possibilidades de se abordar o pensamento schopenhaueriano

com de resto de qualquer filoacutesofo eacute analisando suas origens histoacutericas Como afirma Victor

Goldschmidt em A religiatildeo de Platatildeo haacute basicamente dois modos de se interpretar um

pensamento filosoacutefico a saber investigando seu tempo loacutegico ou seu tempo histoacuterico73

No

primeiro caso ele explica o objeto de estudo eacute sua verdade e pede-se ao filoacutesofo que ofereccedila

razotildees no segundo investigam-se suas origens e interrogam-se suas causas74

Nossa

investigaccedilatildeo seraacute feita na perspectiva do tempo loacutegico do pensamento schopenhaueriano

meacutetodo que esse autor chama de dogmaacutetico e cujo objetivo eacute compreender uma filosofia

tendo em conta a intenccedilatildeo do pensador Apesar disso natildeo seraacute inuacutetil lanccedilar um olhar sobre os

iniacutecios do filosofar de Schopenhauer considerando-se que ao buscar as motivaccedilotildees que lhe

deram origem poderemos compreender melhor a estrutura em que foi erigido isto eacute seu

tempo loacutegico Combinando ambas as perspectivas a dogmaacutetica e a geneacutetica podemos

adquirir uma visatildeo coerente do conjunto tentando colher na medida do possiacutevel os

benefiacutecios dos dois meacutetodos como expostos por Goldschmidt

Enfim o meacutetodo dogmaacutetico examinando um sistema sobre sua verdade

subtrai-o ao tempo as contradiccedilotildees que eacute levado a constatar no interior de

um sistema ou na anarquia dos sistemas sucessivos provecircm precisamente

de que todas as teses de uma doutrina e de todas as doutrinas pretendem ser

conjuntamente verdadeiras ldquoao mesmo tempordquo O meacutetodo geneacutetico pelo

contraacuterio potildee com a causalidade o tempo aleacutem disso o recurso ao tempo e

72

PPII Kap 3 sect32 p 58-59 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de

Miguel Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 32 p 241 (grifos do autor) 73

GOLDSCHMIDT Victor Tempo histoacuterico e tempo loacutegico na interpretaccedilatildeo dos sistemas filosoacuteficos In A

religiatildeo de Platatildeo Traduccedilatildeo de Ieda e Oswaldo Porchat Pereira Prefaacutecio introdutoacuterio de Oswaldo Porchat

Pereira Satildeo Paulo Difusatildeo Europeia do Livro 1963 p 139 et seq 74

Ibidem p 139

- 45 -

a uma ldquoevoluccedilatildeordquo permite-lhe precisamente explicar e dissolver essas

contradiccedilotildees75

Natildeo pretendemos poreacutem realizar uma investigaccedilatildeo exaustiva da gecircnese

do pensamento de Schopenhauer mas apenas ressaltar certos aspectos que poderatildeo ser

instrutivos para a compreensatildeo da nossa questatildeo Ensaiaremos uma investigaccedilatildeo semelhante

de certo modo ao que Thomas Kuhn descreve no texto intitulado ldquoEstrutura histoacuterica da

descoberta cientiacuteficardquo da obra A tensatildeo essencial76

Nesse texto Kuhn argumenta que toda

descoberta cientiacutefica possui uma estrutura histoacuterica que a torna possiacutevel evidenciando um

processo longo e que envolve diversas pessoas De acordo com ele se natildeo se compreende

essa estrutura interna passa-se por cima dos desenvolvimentos teacutecnicos dos conceitos e teses

implicados no advento da descoberta adquirindo-se uma visatildeo simplista da Histoacuteria Eacute

bastante interessante o fato de que Schopenhauer tambeacutem manifeste absoluta clareza sobre a

complexidade histoacuterica dos desenvolvimentos teoacutericos como se pode ler no capiacutetulo 4 de O

MundoII sobre o conhecimento a priori77

Naturalmente natildeo estamos lidando com

nenhuma descoberta cientiacutefica Mas segundo pensamos a filosofia schopenhaueriana pode

ser encarada como um sistema de pensamento cujas conexotildees sistemaacuteticas e conceituais

assim como as das descobertas cientiacuteficas dialogam com aspectos teacutecnicos da discussatildeo

filosoacutefica do seu momento histoacuterico

No caso especiacutefico do problema ao qual nos dedicamos haacute uma parte da

histoacuteria do Idealismo Alematildeo de importantes consequecircncias em relaccedilatildeo agrave escolha da

abordagem e do meacutetodo por Schopenhauer Trata-se da discussatildeo a respeito do lugar da coisa

em si na filosofia criacutetica de que participaram diversos pensadores contemporacircneos de Kant

dentre os quais F Heinrich Jacobi Karl L Reinhold Gottlob Ernst Schulze Sigismund J

Beck e Salomon Maimon Schopenhauer natildeo esteve alheio a esse debate como atestam as

menccedilotildees a esses filoacutesofos que podem ser encontradas em suas obras bem como a discussatildeo

75

Ibidem p 139-140 (grifos do autor) 76

KUHN T A tensatildeo essencial Traduccedilatildeo de Rui Pacheco e revisatildeo de Artur Mouratildeo Lisboa Ediccedilotildees 70 1989

p 209-222 77

Na observaccedilatildeo a respeito do 4ordm predicado da mateacuteria (sobre a essecircncia dela) Schopenhauer menciona a

interaccedilatildeo histoacuterica intrincada que se observa entre teorias e pensadores Aponta predecessores de algumas das

mais importantes contribuiccedilotildees de Kant agrave filosofia por exemplo Priestley teria adiantado a parte referente agrave

Dinacircmica dos Princiacutepios metafiacutesicos da ciecircncia da natureza Kaspar F Wolff teria antecipado a diferenciaccedilatildeo

entre liacutequidos e soacutelidos da mesma obra de Kant e tambeacutem as ideias de Goethe sobre a metamorfose das plantas

Maupertius teria antecedido Kant na idealidade do espaccedilo e na existecircncia meramente fenomecircnica de tudo o que

conhecemos Do mesmo modo a teoria sobre a origem do sistema planetaacuterio de Laplace teria sido antecipada em

cinquenta anos por Kant e a gravitaccedilatildeo universal tida como descobrimento de Newton teria sido exposta por

Robert Hooke agrave Sociedade Real inglesa em 1666 Schopenhauer conclui sua exposiccedilatildeo com a seguinte frase ldquoA

histoacuteria da queda de uma maccedilatilde eacute tatildeo sem fundamento quanto um conto de fadas popular e sem nenhuma

autoridaderdquo Cf WWV II Kap IV p 65-66 MII cap IV p 60-63

- 46 -

que realiza sobre a questatildeo em Fragmentos para a Histoacuteria da Filosofia78

A maneira especial

em que edifica sua metafiacutesica e sua teoria do conhecimento evidencia as marcas dessa

polecircmica tornando interessante a reconstituiccedilatildeo da trama teoacuterica em que diversos conceitos

foram sendo lapidados e que na nossa interpretaccedilatildeo contribuiu para que seu sistema fosse

edificado como foi Embora possa ser duvidoso que o filoacutesofo a tenha compreendido tal como

exporemos aqui esperamos que nossos resultados a torne ao menos plausiacutevel79

A caracterizaccedilatildeo da metafiacutesica imanente de Schopenhauer em que a

coisa em si eacute apresentada como um lado do mundo que eacute um e o mesmo mundo da

representaccedilatildeo assim como a construccedilatildeo da experiecircncia pelo princiacutepio de razatildeo suficiente satildeo

maneiras de o filoacutesofo se posicionar no debate sobre a causaccedilatildeo do fenocircmeno pelo nuacutemeno e

sobre o lugar destinado a este uacuteltimo na filosofia Como veremos Schopenhauer procura

evitar os erros que Kant teria cometido sem prescindir do conceito de coisa em si

negligenciado pelos poacutes-kantianos Como afirma Alexis Philonenko em Schopenhauer

critique de Kant a separaccedilatildeo entre coisa em si e fenocircmeno eacute vista por Schopenhauer ao

mesmo tempo como o maior meacuterito de kantiano e como uma oportunidade de fechar a porta

violentamente aos poacutes-kantianos Antes de Schopenhauer a coisa em si havia sido ignorada

e escreve Philonenko ldquoSem tecirc-los lido [os textos Kant] atentamente nesse ponto a canalha

filosoacutefica havia descartado os textos e sonhado um kantismo sem coisa em si Ele mirava

entatildeo Reinhold S Maimon enquanto escutava Bardili Schulze Kiesewetterrdquo80

Natildeo

obstante como dissemos natildeo nos debruccedilaremos extensamente sobre essa histoacuteria que na

verdade jaacute foi bastante investigada e que de qualquer modo natildeo nos caberia expor de modo

minucioso81

O contexto do debate remete a 1785 quando Friedrich Heinrich Jacobi

78

Cf PP I Fragmente zur Geschichte der Philosophie sect 13 Fragmentos para a histoacuteria da filosofia Traduccedilatildeo

apresentaccedilatildeo e notas de Maria Luacutecia Cacciola Satildeo Paulo Iluminuras 2003 sect 13 79

Em geral comentadores que buscam as origens do pensamento de Schopenhauer procuram semelhanccedilas e

derivaccedilotildees de suas teses e conceitos a partir de pensadores contemporacircneos dele como Fichte e Schelling Nosso

propoacutesito eacute totalmente diferente mas o leitor interessado poderaacute encontrar uma interessante visatildeo alternativa agrave

nossa em ZOumlLLER Guumlnter German realism the self-limitation of idealist thinking in Fichte Schelling and

Schopenhauer In AMERIKS Karl (ed) The Cambridge Companion to German Idealism Cambridge

Cambridge University Press 2006 p 200-218 Nesse texto Zoumlller apresenta a proximidade entre as filosofias de

Fichte Schelling e Schopenhauer comparando-as no tocante agraves concepccedilotildees de real e ideal racional e irracional

conhecimento e voliccedilatildeo Explora aleacutem disso o que entende serem elementos de realismo em cada um deles

mostrando o que pode ser pensado como uma genealogia do pensamento de Schopenhauer 80

PHILONENKO A Schopenhauer critique de Kant Paris Les Belles Lettres 2005 p 250 (traduccedilatildeo nossa) 81

Uma histoacuteria pormenorizada pode ser encontrada em BONACCINI Juan Adolfo Kant e o problema da coisa

em si no Idealismo Alematildeo sua atualidade e relevacircncia para compreensatildeo do problema da Filosofia Rio de

Janeiro Relume Dumaraacute Natal UFRN Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia 2003

- 47 -

iniciou uma polecircmica que ficou conhecida como a ldquoquerela do panteiacutesmordquo

(Pantheismusstreit) e com ela um movimento que daria origem ao Idealismo Alematildeo o

chamado Spinoza-Renaissance A obra Sobre a doutrina de Espinosa em cartas o senhor

Moses Mendelssohn provocou uma disputa sobre Lessing morto em 1781 a quem Jacobi

acusou de espinozista o que significava entatildeo ser panteiacutesta e ateu Mendelssohn e outros

defendendo Lessing e o Iluminismo que ele representava fizeram frente a Jacobi e pediram a

intervenccedilatildeo de Kant Poreacutem ao entrar no debate depois de muita insistecircncia Kant posicionou-

se tanto contra Mendelssohn que lhe parecia um racionalista acriacutetico quanto contra Jacobi

cujas ideias lhe pareciam apenas fantasias82

Como se sabe a resposta kantiana se deu com o

texto O que quer dizer orientar-se no pensamento publicado na Berlinische Monatsschrift

em 1786 Para Jacobi no entanto a defesa que Kant elaborou significou o lanccedilamento de uma

nova questatildeo83

Em ldquoSobre o idealismo transcendentalrdquo escrito como apecircndice da obra

David Hume e a crenccedila idealismo e realismo Jacobi apresenta a emblemaacutetica aporia da coisa

em si notada por ele no sistema kantiano a qual orientou toda a discussatildeo Conforme Ernst

Cassirer Jacobi ldquo[] propotildee com brilhante sagacidade novos problemas e capta dificuldades

destinadas a determinar por muito tempo a forma da filosofia []rdquo84

No apecircndice

mencionado Jacobi expotildee o problema que nota na argumentaccedilatildeo kantiana citando lado a

lado passagens da esteacutetica transcendental e da criacutetica ao quarto paralogismo da razatildeo pura

sobre a idealidade Um esclarecimento adicional nesse ponto eacute interessante De acordo com

Paul Franks Jacobi lecirc a filosofia kantiana com uma motivaccedilatildeo e uma perspectiva particulares

a saber um fasciacutenio pela consideraccedilatildeo de seacuteries de condiccedilotildees infinitas85

Tanto a ideia de que

uma seacuterie pudesse ser infinita quanto a de que pudesse ser suprimida eram para ele fonte de

uma perplexidade que pode explicar muito de sua argumentaccedilatildeo Como escreve Franks

Jacobi procurava um ponto de vista estaacutevel como se sua proacutepria vida

dependesse disso Por isso a paacutegina do tiacutetulo de seu livro sobre Espinoza

trazia o lema ldquoδορ microοι πος ζηοrdquo (ldquoDecirc-me um ponto de apoiordquo) Eu suspeito

que ele tenha sido fortemente atraiacutedo pela ideia racionalista de

inteligibilidade infinita de uma serie finita que termina na causa sui Mas

ele comeccedilou a acreditar que essa ideia natildeo valia nada Desde que natildeo pocircde

viver com nenhuma das outras opccedilotildees sua soluccedilatildeo radical foi abandonar a

proacutepria ideia de razatildeo como condiccedilotildees explicativas e de razatildeo humana como

82

BECKENCAMP J Entre Kant e Hegel Porto Alegre EDUPUCRS 2004 p 13 83

Ibidem p 19 84

CASSIRER E op cit p 32 85

FRANKS P All or nothing systematicity and nihilism in Jacobi Reinhold and Maimon In AMERIKS Karl

(ed) The Cambridge Companion to German Idealism Cambridge Cambridge University Press 2006 p 97

- 48 -

a capacidade de compreender por que as coisas existem e satildeo como satildeo86

As passagens que Jacobi seleciona da criacutetica ao quarto paralogismo

expotildeem o pensamento de Kant acerca da possibilidade de harmonizaccedilatildeo numa perspectiva

dualista do idealismo transcendental com o realismo empiacuterico87

Nos fragmentos citados por

Jacobi Kant escreve que sem ir aleacutem da consciecircncia de si mesmo o idealismo transcendental

permite a admissatildeo da existecircncia da mateacuteria pois sendo esta uma representaccedilatildeo exterior

trata-se de mero fenocircmeno Jacobi ressalta o trecho em que Kant afirma ser a mateacuteria uma

intuiccedilatildeo chamada exterior apenas porque se refere ao espaccedilo que eacute a forma da sensibilidade

externa e natildeo porque os objetos mesmos sejam exteriores uma vez que o proacuteprio espaccedilo eacute

interno ao sujeito Na sequecircncia dos textos citados por Jacobi Kant argumenta acerca da

impossibilidade de se conhecer o objeto transcendental referente aos fenocircmenos O uacutenico que

se poderia fazer diz Kant nessas passagens seria admitir que a causa dos fenocircmenos estivesse

fora do sujeito o que natildeo permitiria poreacutem afirmar que essa exterioridade remetesse a um

objeto do tipo dos fiacutesicos pois a realidade destes se funda na consciecircncia imediata ou seja

natildeo eacute transcendente88

Kant reconhece a ambiguidade em se falar de algo ldquofora de noacutesrdquo jaacute que a

expressatildeo serve para designar tanto uma coisa em si como um fenocircmeno exterior preferindo

entatildeo para indicar este uacuteltimo denominaacute-lo ldquocoisa no espaccedilordquo89

Assim ficaria mais claro que

o acircmbito que estaacute sendo referido eacute o da representaccedilatildeo e que a possibilidade de se ter

consciecircncia imediata dos objetos representados se refere a objetos no espaccedilo que satildeo eles

proacuteprios somente representaccedilotildees e contecircm apenas o que neles eacute representado Determinaccedilotildees

semelhantes poreacutem natildeo poderiam ser feitas em relaccedilatildeo ao objeto transcendental nem ao

sujeito cognoscente uma vez que ambos remeteriam a um fundamento desconhecido natildeo

podendo ser chamados portanto nem de mateacuteria nem de ser pensante

No tocante agrave esteacutetica transcendental Jacobi cita passagens em que Kant

se refere agrave idealidade transcendental do tempo A argumentaccedilatildeo kantiana sobre esse ponto

mostra que a realidade do tempo natildeo deriva das alteraccedilotildees que percebemos nos objetos

empiacutericos o que faria parecer que de algum modo ela adveacutem de fora Na verdade essa

86

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 87

JACOBI F H Excertos de Uumlber den transzendentalen Idealismus Traduccedilatildeo de Leopoldina Almeida In GIL

Fernando (coord) Recepccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant (1786-1844) Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1992 p 102-103 88

Ibidem p 102 89

Ibidem p 103

- 49 -

realidade proveacutem de o tempo ser a forma real da intuiccedilatildeo interna tendo portanto uma

realidade subjetiva90

A representaccedilatildeo do tempo entatildeo deve ser tomada como modo de se

representar o sujeito enquanto objeto e essa eacute sua realidade A visatildeo habitual a respeito do

tempo toma as alteraccedilotildees dos objetos empiacutericos como manifestaccedilotildees da realidade dele mas

diz Kant sem a sucessatildeo que ele significa as proacuteprias alteraccedilotildees desapareceriam Os objetos

tomados por reais desse modo seriam determinaccedilotildees internas ao sujeito e natildeo possuiriam de

fato existecircncia em si seriam como um jogo de representaccedilotildees91

Da mesma maneira as leis

a ordem e a regularidade percebidas nos fenocircmenos da natureza seriam determinaccedilotildees

advindas do sujeito a priori natildeo sendo entatildeo reais no sentido comum A proacutepria experiecircncia

seria forjada desse modo e o entendimento seria a faculdade agrave qual cabe a legislaccedilatildeo da

natureza

A partir dos fragmentos que cita Jacobi conclui haver uma

incompatibilidade entre as afirmaccedilotildees de que os objetos causam impressotildees nos sentidos

provocando sensaccedilotildees e originando as representaccedilotildees e de que do objeto transcendental nada

se sabe Para ele os objetos que causam as impressotildees natildeo podem ser os empiacutericos que natildeo

se estendem aleacutem da representaccedilatildeo e ao mesmo tempo do objeto transcendental nada se

pode a rigor dizer O fenocircmeno escreve Jacobi ldquo[] natildeo pode estabelecer relaccedilatildeo alguma

entre essas tais representaccedilotildees e qualquer objetordquo92

No entanto ele continua mesmo sendo

estranho afirmar no acircmbito da filosofia kantiana que os objetos transcendentais

impressionam os sentidos e provocam representaccedilotildees essa pressuposiccedilatildeo eacute fundamental para

a doutrina Pois ele afirma

[] a palavra sensibilidade fica privada de todo e qualquer significado se natildeo

se entender por ela um meio distinto e real entre o real e o real um meio

efectivo de alguma coisa para alguma coisa e se no seu conceito natildeo

estiverem contidos os conceitos de estar separado e estar conectado de ser

ativo e ser passivo de causalidade e dependecircncia como determinaccedilotildees reais

e objectivas []93

Por conseguinte a admissatildeo de um objeto que natildeo seja meramente

fenocircmeno a agir sobre os sentidos eacute absolutamente necessaacuteria para que as representaccedilotildees e os

conceitos tenham validade objetiva isto eacute para que natildeo sejam pura e simplesmente jogo de

representaccedilotildees No entanto como o acesso agrave coisa em si eacute fechado pelo pensamento kantiano

90

Ibidem p 104 91

Ibidem p 105 92

Ibidem p 106 93

Ibidem p 106 (grifos do autor)

- 50 -

dela natildeo se poderia dizer nem mesmo que estaacute pressuposta Daiacute a ceacutelebre sentenccedila de Jacobi

ldquo[] eu ficava continuamente perplexo porque natildeo podia penetrar no sistema sem aquele

pressuposto e com ele natildeo podia aiacute permanecerrdquo94

Na formulaccedilatildeo de Cassirer

Ao longo de toda a Criacutetica da razatildeo pura percebe-se esse dualismo entre

pressupostos realistas e idealistas entre suas premissas objetivo-metafiacutesicas

e metodoloacutegico-conceituais Natildeo se pode prescindir de nenhuma delas na

construccedilatildeo do mundo especulativo kantiano embora cada uma delas se

encontre diretamente em oposiccedilatildeo agrave outra95

Mesmo se admitirmos uma causa transcendental dos fenocircmenos diz

Jacobi natildeo haveraacute como saber onde ela se situa nem sua relaccedilatildeo com o efeito Aleacutem disso ele

prossegue aquilo que daacute a forma agrave representaccedilatildeo que daacute a ela feiccedilatildeo de objeto estaacute fundado

em uma espontaneidade que ao fim eacute ancorada em uma faculdade desconhecida a saber

uma ldquo[] faculdade cega de estabelecer conexotildees progressivas e regressivas a que chamamos

imaginaccedilatildeordquo96

No fim de contas todo e qualquer conhecimento seria reduzido agrave consciecircncia

das representaccedilotildees das ligaccedilotildees de conceitos e de princiacutepios gerais que constituem o proacuteprio

sujeito A validade dessas determinaccedilotildees eacute entatildeo meramente relativa dada apenas pela sua

conexatildeo em uma consciecircncia transcendental No entanto Jacobi pergunta ldquo[] como eacute

possiacutevel combinar o pressuposto de objetos que causam impressotildees nos nossos sentidos

suscitando desse modo representaccedilotildees com uma doutrina que pretende anular todas as bases

em que se apoia este pressupostordquo97

No segundo prefaacutecio ao seu diaacutelogo David Hume e a crenccedila idealismo e

realismo escrito trinta anos depois da primeira ediccedilatildeo de 1797 Jacobi apresenta o problema

em outra perspectiva bastante interessante Nesse texto ele discorre a respeito da distinccedilatildeo

entre razatildeo e entendimento que teria sido feita de modo errocircneo e ambiacuteguo inclusive por ele

mesmo98

Jacobi argumenta que uma distinccedilatildeo rigorosa entre entendimento e razatildeo estaacute

pressuposta na separaccedilatildeo radical entre ser humano e animal a qual natildeo seria uma diferenccedila

meramente de graus mas de natureza O animal mesmo o mais inteligente possuiria somente

entendimento e natildeo perceberia nada aleacutem do sensiacutevel enquanto o ser humano em funccedilatildeo da

94

Ibidem p 107 (grifos do autor) 95

CASSIRER E op cit p44-45 96

JACOBI F H Excertos de Uumlber den transzendentalen Idealismus Traduccedilatildeo de Leopoldina Almeida In GIL

Fernando (coord) Recepccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant (1786-1844) Lisboa

Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1992 p 108 97

Ibidem loc cit 98

JACOBI F H David Hume et la croyance ideacutealisme et reacutealisme Dialogue Introduit traduit et annoteacute par

Louis Guillermit Paris Librarie Philosophique J Vrin 2000 p 127

- 51 -

razatildeo teria a possibilidade de conhecer o suprassensiacutevel O ponto central da visatildeo de Jacobi e

ao mesmo tempo o nuacutecleo de sua criacutetica agrave filosofia kantiana eacute que se a razatildeo apoiar-se

somente no sensiacutevel como sua pedra de toque acabaraacute por se tornar uma faculdade que

produz meras ficccedilotildees Para ele Kant apenas deu continuidade agrave tradiccedilatildeo de Aristoacuteteles cuja

influecircncia determinou que a razatildeo fosse entendida como uma faculdade de geraccedilatildeo de

conceitos e abstraccedilatildeo e nessa condiccedilatildeo fosse subordinada ao entendimento Entatildeo o

conhecimento imediato teria sido submetido ao mediato a percepccedilatildeo agrave reflexatildeo na verdade

ldquoo modelo agrave coacutepia o ser agrave palavrardquo99

Kant diz Jacobi inverteu as posiccedilotildees de razatildeo e

entendimento e permitiu a conclusatildeo de que passando por entre a sensibilidade e elevando-se

acima dela nunca se poderia alcanccedilar o suprassensiacutevel com a razatildeo ou com outra faculdade

qualquer

Natildeo obstante o caminho para se alcanccedilar o suprassensiacutevel existiria e

seria completamente diferente Como afirma Victor Delbos em De Kant aux postkantiens

ldquoJacobi sustenta que noacutes podemos atingir a realidade do mundo exterior como a dos objetos

suprassensiacuteveis mas pelo sentimento a intuiccedilatildeo ou a feacute de qualquer modo por uma

faculdade que natildeo se reporte ao entendimento loacutegicordquo100

No mesmo sentido Cassirer escreve

que ldquoA explicaccedilatildeo soacute eacute para ele um meio um caminho ateacute uma meta o fim proacuteximo mas

nunca o fim uacuteltimo Seu fim uacuteltimo eacute o que natildeo se pode explicar o indissoluacutevel o imediato o

simplesrdquo101

Jacobi admite que esse fim uacuteltimo possa ser alcanccedilado nas accedilotildees tal como

fundamentado na Criacutetica da Razatildeo Praacutetica isto eacute que somente no acircmbito praacutetico eacute que a

razatildeo poderia ultrapassar o entendimento e alcanccedilar o suprassensiacutevel Do ponto de vista da

razatildeo teoacuterica poreacutem Kant estabeleceu que o suprassensiacutevel natildeo pode ser alcanccedilado a partir

do sensiacutevel ao qual unicamente o intelecto se dirige

Todavia no entender de Jacobi com o mesmo procedimento que se

garantia isso eliminava-se a possibilidade de todo e qualquer conhecimento A depuraccedilatildeo

extrema da sensibilidade teria levado a uma dissoluccedilatildeo completa de toda possibilidade de

conhecer na medida em que ela deixava de ser faculdade de uma verdadeira percepccedilatildeo Com

isso o que os sentidos apresentam deixa de ser visto como verdadeiro e ateacute mesmo a mateacuteria

torna-se simples representaccedilatildeo e fenocircmeno Portanto escreve Jacobi ldquo[] o idealismo

99

Ibidem p 128 (traduccedilatildeo nossa) 100

DELBOS V De kant aux postkantiens Introduction par Alexis Philonenko Preface de Maurice Blondel

Paris Aubier 1992 p 141 (traduccedilatildeo nossa) 101

CASSIRER E op cit p 33

- 52 -

transcendental ou criticismo kantiano que devia comeccedilar tornando possiacutevel a verdadeira

ciecircncia deixa ao contraacuterio a ciecircncia se perder na ciecircncia o entendimento no entendimento

todo conhecimento sem exceccedilatildeo num abismo universal[]rdquo102

Partindo do sensiacutevel e sem

deixar espaccedilo a uma faculdade superior a essa esfera o que se consegue eacute apenas girar em

falso sobre o que pode ser objeto de intuiccedilatildeo sem nunca escapar ao ciacuterculo fechado da

experiecircncia Mais do que isso ao fim e ao cabo mesmo a ciecircncia empiacuterica se perderia jaacute que

o objeto conhecido natildeo poderia ser atrelado a nada que natildeo fosse o proacuteprio sujeito Em

resumo na exposiccedilatildeo de Cassirer

ldquoDeduzimosrdquo conclusotildees de suas premissas passamos de um elo a outro na

cadeia das deduccedilotildees para a frente e para traacutes avanccedilando ou retrocedendo ao

infinito sem que toda essa cadeia nos subtraia do vazio sobre o qual se

prende Por esse caminho das deduccedilotildees e conclusotildees natildeo chegaremos

jamais a um ponto originaacuterio sobre o qual possamos afirmar solidamente a

raiz de nosso conhecimento Assim pois ou nos vemos obrigados a negar

totalmente o postulado dessa proveniecircncia ou temos de buscar outro

caminho para dar-lhe realizaccedilatildeo descobrindo outro oacutergatildeo espiritual por meio

do qual possamos verdadeiramente alcanccedilar este objetivo103

O amigo e disciacutepulo de Kant Karl L Reinhold influenciou esse debate

embora de modo indireto Julgando estar oferecendo contribuiccedilotildees agrave filosofia criacutetica acabou

por evidenciar uma lacuna dela ao procurar uma saiacuteda para a ausecircncia de uma fundaccedilatildeo

soacutelida na teoria do conhecimento kantiana Cassirer informa a esse respeito que dentre os

primeiros partidaacuterios de Kant Reinhold figurava como o melhor inteacuterprete de suas ideias e

como aquele que havia oferecido autecircntica soluccedilatildeo aos problemas postos pela Criacutetica da

Razatildeo Pura104

Natildeo obstante ele forneceu ainda mais razotildees para que fossem apontadas as

falhas e o dualismo da filosofia kantiana Nesse sentido afirma Paul Franks

Reinhold tornou-se kantiano para responder agrave necessidade levantada por

Jacobi de um uacutenico ponto de vista estaacutevel que conectasse adequadamente

razatildeo e feacute Mas ele tambeacutem foi convencido por Jacobi de que tal ponto de

vista deveria ter o monismo sistemaacutetico do espinozismo E isso levou

Reinhold involuntariamente a minar o dualismo kantiano por meio do

proacuteprio procedimento que desenvolveu para defendecirc-lo105

Reinhold encontra na noccedilatildeo de representaccedilatildeo o fundamento que busca e

no tocante agrave coisa em si entende que embora tenha de estar pressuposta eacute desnecessaacuterio

102

JACOBI F H David Hume et la croyance ideacutealisme et reacutealisme Dialogue Introduit traduit et annoteacute par

Louis Guillermit Paris Librarie Philosophique J Vrin 2000 p 131 (traduccedilatildeo nossa) 103

CASSIRER E op cit p 33 (grifos do autor) 104

Ibidem p 50-51 105

FRANKS P op cit p 102 (traduccedilatildeo nossa)

- 53 -

discorrer sobre ela para embasar uma teoria da faculdade representativa Como explica

Delbos ldquoSem duacutevida ele evita dizer que as coisas em si nos afetam que elas fornecem a

mateacuteria de nossas sensaccedilotildees contudo da natureza da representaccedilatildeo ele tenta deduzir tanto a

impossibilidade de que as coisas em si sejam representadas quanto a necessidade de sua

existecircnciardquo106

A representaccedilatildeo diz Reinhold eacute distinta tanto do sujeito representante quanto

do objeto representado e eacute somente a ela que a teoria deve se ater ou nas palavras de

Cassirer ldquoO que se trata de indagar natildeo satildeo os fundamentos fiacutesicos ou metafiacutesicos dos

conteuacutedos aniacutemicos mas o que sejam esses conteuacutedos e as ordenaccedilotildees constantes em que se

enquadremrdquo107

Na concepccedilatildeo de Reinhold haacute uma diferenccedila inexpugnaacutevel entre o objeto

da representaccedilatildeo e a pura e simples representaccedilatildeo108

No seu entender esse era um ponto

paciacutefico da discussatildeo pois tanto os idealistas quanto os ceacuteticos estariam de acordo no tocante

agrave distinccedilatildeo entre a mera representaccedilatildeo o ser representante e o objeto representado Para ele

esse poderia ser o ponto inicial da investigaccedilatildeo com o que se tornaria inoacutecuo entrar no debate

acerca do que satildeo e de como existem os objetos fora do sujeito Entatildeo ele afirma ldquo[] como

eu quero simplesmente conhecer a diferenccedila que se admitiu acontecer na proacutepria consciecircncia

sem me meter com o seu fundamento situado fora da consciecircncia natildeo entro em conflito com

nenhum partido acerca do nome que a cada um lhe apetecer dar-lherdquo109

Do mesmo modo a

investigaccedilatildeo que busca encontrar a natureza e a estrutura da consciecircncia natildeo precisaria passar

pela alma mas somente pelas condiccedilotildees internas de possibilidade da representaccedilatildeo Como

escreve Cassirer ldquo[] Reinhold distingue agora a determinaccedilatildeo da funccedilatildeo do conhecimento

enquanto tal do problema da substacircncia a que esta funccedilatildeo pode ser inerente e dos objetos

externos que devem se acrescentar a ela para pocirc-la em atividaderdquo110

Seguindo essa linha de raciociacutenio Reinhold argumenta que a coisa em si

eacute absolutamente irrepresentaacutevel Mais que isso seria contraditoacuterio representaacute-la pois

equivaleria agrave representaccedilatildeo de um objeto sem as uacutenicas formas em que isso poderia se dar

Para ele a mateacuteria da representaccedilatildeo e sua forma jamais podem apresentar-se agrave consciecircncia

106

DELBOS V op cit p 144 (traduccedilatildeo nossa) 107

CASSIRER E op cit p 51 (grifos do autor) 108

REINHOLD K L Excertos de Briefe uumlber die kantische Philosophie e de Versuch einer neuen Theorie des

menschlichen Vorstellungsvermoumlgen Traduccedilatildeo de Irene Borges Duarte In GIL Fernando (coord) Recepccedilatildeo

da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant (1786-1844) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 1992 sect VII p 180 109

Ibidem loc cit (grifos do autor) 110

CASSIRER op cit p 55

- 54 -

isoladamente pois a separaccedilatildeo de mateacuteria e forma aniquilaria a proacutepria representaccedilatildeo111

O

objeto tomado como distinto da representaccedilatildeo somente pode surgir nesta como algo

representado isto eacute na forma dada por ela Portanto ele natildeo poderia aparecer-nos como coisa

em si isto eacute ldquo[] sob a forma que lhe correspondesse independentemente de toda a

representaccedilatildeo que seria indicada pela mera mateacuteria da representaccedilatildeo e que seria

necessariamente diferente da forma da representaccedilatildeordquo112

A mateacuteria da representaccedilatildeo seria

distinta tanto da proacutepria representaccedilatildeo quanto do objeto resumindo-se agraves modificaccedilotildees da

faculdade representativa as quais seriam determinadas de algum modo pelo objeto sem no

entanto confundirem-se com ele113

Na explicaccedilatildeo de Cassirer

O ser dado da mateacuteria natildeo significa senatildeo uma coisa a saber que sua

natureza especiacutefica natildeo pode se derivar das puras leis formais do

conhecimento o modo como se daacute isto eacute o processo mediante o qual o

dado se cria traz consigo pelo contraacuterio a ideia de uma causa transcendente

que eacute a que ldquodaacuterdquo algo ideia que necessariamente se deve descartar desde

logo laacute onde se trata simplesmente de definir as condiccedilotildees ldquointerioresrdquo da

representaccedilatildeo114

Por conseguinte a coisa em si soacute seria representaacutevel com a exclusatildeo da

forma da representaccedilatildeo o que eacute inconcebiacutevel Apesar disso para Reinhold o conceito

intelectual de coisa em si natildeo pode ser simplesmente eliminado mas tem de permanecer como

conceito de um objeto em geral um ente loacutegico ainda que natildeo dotado de realidade115

De

acordo com isso natildeo se poderaacute pensaacute-la como algo individualizado e realmente existente

pois desse modo seraacute transformada em representaccedilatildeo No entanto diz Reinhold a coisa em si

tambeacutem natildeo pode ser negada sendo ela o proacuteprio objeto naquilo que natildeo pode ser

representado o fundamento exterior da mateacuteria da representaccedilatildeo Da coisa em si pode-se

dizer que natildeo eacute representaacutevel natildeo adicionando a ela nenhum predicado positivo mas tambeacutem

que eacute indispensaacutevel agrave representaccedilatildeo jaacute que sem ela natildeo haveria a mateacuteria tatildeo necessaacuteria

quanto a forma Assim a coisa em si natildeo seria um ente real mas o conceito mais abstrato de

algo que natildeo pode ser representado um sujeito sem predicados Reinhold entatildeo extrai o

seguinte axioma ldquoAquilo que natildeo possa ser representado sob a forma da representaccedilatildeo eacute

111

REINHOLD op cit sect XVII p 191 112

Ibidem p 192 113

Reinhold ilustra este ponto do seguinte modo ldquoQuem quiser ter uma imagem intuitiva da diferenccedila entre

mateacuteria e objeto de uma representaccedilatildeo pense numa aacutervore a uma distacircncia que torne impossiacutevel divisar qual a

sua espeacutecie forma e tamanho assim como as suas qualidades mais proacuteximas Aproxime-se entatildeo pouco a

pouco da aacutervore nessa mesma proporccedilatildeo a sua representaccedilatildeo iraacute adquirindo mais e mais mateacuteria A mateacuteria da

sua representaccedilatildeo ir-se-aacute modificando aumentando enquanto que o objeto em si permaneceraacute sempre o mesmordquo

Ibidem sect VX p 183 (grifos do autor) 114

CASSIRER op cit p 68 (grifos do autor) 115

REINHOLD op cit sect XVII p 193

- 55 -

absolutamente irrepresentaacutevelrdquo116

O princiacutepio da consciecircncia definido como a conexatildeo de

elementos distintos na unidade de um intelecto seraacute o alicerce uacuteltimo da filosofia elementar

de Reinhold que natildeo poderia ser suprido por nenhuma coisa em si Por meio desse princiacutepio

a representaccedilatildeo eacute deduzida da consciecircncia que eacute diz Cassirer ldquo[] o fundamento da filosofia

elementar fundamento que natildeo pode sem incorrer em um ciacuterculo vicioso apoiar-se por sua

vez em nenhum outro princiacutepio filosoficamente demonstraacutevelrdquo117

Gottlob E Schulze tambeacutem acrescentou ideias importantes ao debate Em

seu texto Aenesidemus oder uumlber die Fundamente der von dem Hrn Prof Reinhold in Jena

gelieferten Elementar-philosophie publicado em 1792 ele critica a obra de Reinhold em uma

perspectiva ceacutetica visando atingir a filosofia de Kant No fim de contas como mostra

Cassirer o ceticismo de Schulze e o pensamento de Reinhold movem-se no mesmo terreno a

saber o de encontrar o primeiro princiacutepio evidente da filosofia e que com base nos seus

proacuteprios fundamentos a criacutetica kantiana deveria fornecer118

Schulze insiste no erro que

significa pressupor a coisa em si como fundamento dos fenocircmenos o que implicaria utilizar a

causalidade para aleacutem da experiecircncia isto eacute indevidamente Com Schulze o impasse jaacute

apontado por Jacobi fica ainda mais claro e evidente a coisa em si teria necessariamente de

estar pressuposta mas ao mesmo tempo natildeo se poderia afirmar absolutamente nada sobre

ela como por exemplo que existisse que causasse os fenocircmenos e nem mesmo isto a saber

que estivesse realmente pressuposta Permanece entatildeo de fundo e difusamente a questatildeo de

saber em que se apoiaraacute a aparecircncia fenomecircnica sem algo que seja de algum modo sua

fundaccedilatildeo Nesse sentido Schulze escreve em sua obra Kritik der theoretischen Philosophie

Se por conseguinte o que a criacutetica da razatildeo alega saber acerca dos

fundamentos da experiecircncia eacute um conhecimento real teraacute de reputar como

absolutamente falsa sua afirmaccedilatildeo de que toda visatildeo verdadeira de nosso

espiacuterito se circunscreve simplesmente aos objetos da experiecircncia Ao

contraacuterio se essa afirmaccedilatildeo fosse exata toda visatildeo das fontes da experiecircncia

como um todo teria de ser considerada como uma vazia aparecircncia119

No Aenesidemus Schulze descreve de modo claro e expliacutecito o embaraccedilo

que surge na filosofia criacutetica em funccedilatildeo da afirmaccedilatildeo de que a coisa em si tem de estar

necessariamente pressuposta na base de todo fenocircmeno e simultaneamente que os

conhecimentos possiacuteveis agrave sensibilidade ao entendimento e agrave razatildeo referem-se somente agrave

116

Ibidem p 195 (grifos do autor) 117

CASSIRER op cit p 61(grifos do autor) 118

CASSIRER op cit p 81 119

Apud CASSIRER op cit p 89

- 56 -

experiecircncia Para ele se for realmente assim deve-se concluir que todo conhecimento eacute

apenas aparecircncia para aleacutem da qual absolutamente nada se pode afirmar120

Nesse caso

resume Cassirer ldquoO resultado da Criacutetica da razatildeo pura consiste em que soacute podemos chegar a

um conhecimento seguro e necessaacuterio dos objetos da experiecircncia e que bdquotodo conhecimento

das coisas baseado no simples e puro entendimento ou na razatildeo pura eacute mera aparecircncia‟rdquo121

No entanto conforme Schulze a conclusatildeo de Kant eacute contraacuteria a isso pois este natildeo admite

que as representaccedilotildees sejam vazias e as apresenta como a uniatildeo da mateacuteria que seria externa

com a forma interna ao sujeito Assim as intuiccedilotildees natildeo seriam vistas como mera aparecircncia

por Kant e a existecircncia de objetos externos que afetam os sentidos seria aquilo que garantiria

o realismo empiacuterico ao lado do idealismo transcendental Nas palavras de Schulze

Embora pois a criacutetica da razatildeo afirme que todas as propriedades que

constituem a intuiccedilatildeo de um corpo apenas pertencem ao seu fenocircmeno natildeo

pretende com isso ter transformado o conhecimento sensorial em pura

aparecircncia ou ter anulado em absoluto o conhecimento da realidade

objectiva de certos objetos exteriores a noacutes antes deriva o que haacute de

acidental e mutaacutevel no nosso conhecimento da influecircncia destes objetos

sobre a alma humana122

A investigaccedilatildeo transcendental teria entatildeo de encontrar um fundamento

para a experiecircncia que natildeo fosse ele mesmo objeto de experiecircncia123

Embora Kant inicie a

Criacutetica da razatildeo pura afirmando que todo conhecimento comeccedila com objetos que afetam os

sentidos no desenvolvimento do seu pensamento ele tornaria essa afecccedilatildeo impossiacutevel Na

interpretaccedilatildeo de Delbos isso para Schulze significa que ldquoEm consequecircncia a proposiccedilatildeo

inicial da Criacutetica resulta desmentida pela Criacutetica mesmardquo124

Segundo Schulze Kant parte no

entanto da certeza da existecircncia de coisas em si que afetam os sentidos fundamentando com

ela os limites da faculdade de conhecer Soacute assim eacute que teria podido explicar e tornar

compreensiacutevel a origem dos objetos da experiecircncia e ao mesmo tempo demonstrar a

necessidade de uma fonte interna das representaccedilotildees distinta daquela fonte externa Na

concepccedilatildeo de Schulze resultam daiacute uma peticcedilatildeo de princiacutepio e uma anulaccedilatildeo de resultados

A proacutepria criacutetica da razatildeo avanccedila a proposiccedilatildeo todo o conhecimento

humano comeccedila com a influecircncia de objectos objectivamente existentes

sobre os nossos sentidos e estes objectos proporcionam o primeiro ensejo

120

SCHULZE G E Excerto de Aenesidemus Traduccedilatildeo de Sara Seruya In GIL Fernando (coord) Recepccedilatildeo

da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant (1786-1844) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste

Gulbenkian 1992 p 259-260 121

CASSIRER E op cit p 88 (grifos do autor) 122

SCHULZE GE p 261 (grifos do autor) 123

CASSIRER E op cit p 88 124

DELBOS op cit p 147 (traduccedilatildeo nossa)

- 57 -

para que nosso acircnimo se manifeste natildeo soacute sem qualquer prova e como

proposiccedilatildeo em si totalmente assente e incontestavelmente certa e refutando

portanto os fantasmas do cepticismo e do idealismo atraveacutes de uma

proposiccedilatildeo aceite a modo de peticcedilatildeo cuja verdade ambos negavam mas

tambeacutem os seus proacuteprios resultados anulam completamente a verdade dessa

proposiccedilatildeo admitia a modo de peticcedilatildeo125

Schulze critica ainda a aplicaccedilatildeo do conceito de causalidade agraves coisas em

si como um uso indevido de um conceito puro Os objetos fora do sujeito teriam de ser

capazes de agir sobre ele isto eacute possuir causalidade sobre nosso intelecto para que

formaacutessemos representaccedilotildees deles Nesse caso poreacutem a causalidade seria atributo dos

objetos na condiccedilatildeo de coisas fora de noacutes e em si o que se oporia a todo o edifiacutecio da criacutetica

kantiana e faria as consequecircncias se voltarem contra as premissas126

O mesmo ocorre com a

categoria da existecircncia que natildeo pode ser aplicada a objetos que estejam fora do tempo No

entanto diz Schulze embora seja certo que o objeto para aleacutem das representaccedilotildees natildeo eacute uma

intuiccedilatildeo ele natildeo pode por isso ser um mero nada isto eacute ldquodeve ser algo de realiter distinto e

independente das mesmasrdquo127

o que estaacute completamente excluiacutedo do sistema kantiano Natildeo

se poder aplicar a esse algo os conceitos de causa ou de existecircncia e escreve Schulze ldquo[] se

eacute certa a deduccedilatildeo transcendental das categorias que a criacutetica da razatildeo apresentou tambeacutem eacute

errado e falso um dos princiacutepios fundamentais da mesma que todo o conhecimento comeccedila

com a acccedilatildeo de objectos objectivos sobre o nosso acircnimordquo128

Por conseguinte Kant deveria

ter demonstrado que o intelecto natildeo eacute a fonte uacutenica de todo conhecimento e explicado o

porquecirc disso

No mesmo sentido jaacute argumentado por Jacobi Schulze conclui que a

criacutetica kantiana acaba por demolir a possibilidade de todo e qualquer conhecimento

verdadeiro Sobre isso Cassirer afirma que ldquoNa trajetoacuteria dos pensamentos fundamentais

desenvolvidos na obra Aenesidemus haacute plena clareza sobre um ponto a saber o de que toda

duacutevida ilimitada toda duacutevida que recai sobre a totalidade do saber destroacutei-se a si mesma e

perde seu proacuteprio sentido e razatildeo de serrdquo129

Para que natildeo se reduza a mera aparecircncia o

conhecimento teraacute entatildeo de receber sua realidade de algo externo ao puro intelecto130

No

entanto ao se defender a incognoscibilidade da coisa em si e ao mesmo tempo a causalidade

como um princiacutepio subjetivo de conexatildeo de representaccedilotildees natildeo se poderaacute pressupor uma

125

SCHULZE op cit p 261 (grifos do autor) 126

Ibidem p 262 127

Ibidem p 263 128

Ibidem loc cit 129

CASSIRER E op cit p 79 (grifos do autor) 130

SCHULZE G E op cit p 264

- 58 -

accedilatildeo causal entre estas e algo distinto delas ldquoPoisrdquo diz Schulze ldquoo que me eacute totalmente e em

todos os seus atributos e propriedades desconhecido tambeacutem dele natildeo posso saber que

existe que se encontra realmente em uma ligaccedilatildeo comigo e que eacute capaz de efectuar ou

produzir algordquo131

Como resultado todo o conhecimento humano teraacute de ser considerado mera

aparecircncia e o idealismo radical que natildeo concede existecircncia real aos fenocircmenos natildeo estaraacute

refutado132

A contribuiccedilatildeo de Jacob S Beck a essa discussatildeo estaacute na sua

argumentaccedilatildeo tambeacutem em diaacutelogo criacutetico com Reinhold sobre o verdadeiro princiacutepio do

conhecimento Como informa Cassirer Beck considera que aquelas contradiccedilotildees e

dissonacircncias que parecem surgir no texto kantiano satildeo resultado natildeo da incompatibilidade

entre as ideias mas do modo exigido pela exposiccedilatildeo que deve ser paulatina e observar a

adaptaccedilatildeo do leitor a um ponto de vista totalmente novo133

A origem e o fundamento de todo

o conhecimento seria o ato original de representar jaacute descrito por Kant mas cujo ponto

central natildeo teria sido ainda adequadamente evidenciado134

Beck julga importante para isso

diferenciar as categorias que ele entende como representaccedilotildees originais dos simples

conceitos de objetos Ao se pensaacute-las como conceitos eacute que surgiriam o problema de saber

como a representaccedilatildeo se liga ao objeto e com isso todas as duacutevidas com relaccedilatildeo agrave coisa em

si Segundo Cassirer Beck revela de modo magistral a totalidade do sistema kantiano e

demonstra que natildeo haacute qualquer relaccedilatildeo entre a coisa em si e o objeto do conhecimento

tratando-se entatildeo de um problema vazio pois o proacuteprio nexo que aiacute se busca por assim dizer

natildeo tem nada dentro Como ele afirma

O autecircntico meacutetodo kantiano o meacutetodo transcendental natildeo consiste

simplesmente em deslocar agrave oacuterbita da consciecircncia os elementos que ateacute

agora se situavam na oacuterbita das coisas mas se apoia sobre a ideia de que a

separaccedilatildeo e a divisatildeo que serve de base a tudo isso responde a um conceito

falso e contraditoacuterio135

Sem que se perceba esse ponto fundamental da teoria kantiana diz Beck

natildeo se esclarece o modo como as categorias formam a base dos conceitos e os tornam

131

Ibidem loc cit 132

Ibidem p 265-266 133

CASSIRER op cit p 92 134

BECK J S Exerto de Erlaumluternder Auszug aus den Schriften des Herrn Professor Kant (Extracto elucidativo

dos escritos do Sr Prof Kant) Traduccedilatildeo de Ana Maria Benite In GIL Fernando (coord) Recepccedilatildeo da Criacutetica

da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant (1786-1844) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1992 p

283 135

CASSIRER op cit p 95

- 59 -

compreensiacuteveis O princiacutepio maacuteximo do conhecimento natildeo seria uma representaccedilatildeo

conceitual mas um postulado concebido como o ldquorepresentar originariamenterdquo136

Esse ato

de representar natildeo se identificaria com a representaccedilatildeo de um objeto qualquer que jaacute seria um

conceito determinado e com caracteriacutesticas essenciais Seria antes algo como uma

representaccedilatildeo original da geometria por exemplo que natildeo se ocupa da explicaccedilatildeo do espaccedilo

nem o busca em outra ciecircncia mas simplesmente o postula137

Delbos explica que Beck

concordava com a tese kantiana de afecccedilatildeo dos sentidos mas natildeo realizada por coisas em si e

sim por fenocircmenos O princiacutepio dessa afecccedilatildeo natildeo proviria de quaisquer tipos de entidades

mas do ato mesmo de representar Nas palavras de Delbos ldquo[] esse ato ligando

sinteticamente as representaccedilotildees segundo o princiacutepio de causalidade torna-as objetivas por

um tipo de reconhecimento originaacuterio e constitui assim os fenocircmenos pelos quais somos

afetadosrdquo138

O espaccedilo segundo Beck eacute ele proacuteprio a siacutentese originaacuteria do homogecircneo isto eacute

uma representaccedilatildeo primordial natildeo existente antes mas criada nesse mesmo ato que eacute mais

exatamente um intuir Para exemplificar esse ponto Beck afirma que

A representaccedilatildeo do espaccedilo eacute muito diferente deste representar original pois

ela jaacute eacute conceito Tenho um conceito de linha recta isto eacute algo de diferente

de traccedilar eu uma linha recta (sintetizar originariamente) Tenho tambeacutem o

conceito de um bi-acircngulo rectiliacuteneo embora neste caso natildeo haja

representaccedilatildeo original139

De acordo com isso a perspectiva correta a ser adotada eacute a de que o ato

de unificaccedilatildeo do muacuteltiplo na unidade da consciecircncia natildeo eacute dado por meio de um conceito A

conexatildeo do muacuteltiplo seria dada por um ato que natildeo estaria presente de antematildeo em nenhum

objeto e por meio do qual seriam formados esse mesmo objeto e o proacuteprio muacuteltiplo Entatildeo

diz Cassirer para Beck bastaria abrir os olhos do entendimento ldquoisto eacute restabelecer as

condiccedilotildees a que se ajusta a possibilidade da experiecircncia a uacutenica acerca da qual cabe emitir

juiacutezos sobre objetos para que se evaporem como vazios fantasmas de nossa proacutepria fantasia

as formas que no iniacutecio nos amedrontavamrdquo140

O esquematismo transcendental eacute outra atividade originaacuteria chamada por

Beck de reconhecimento original141

que tambeacutem natildeo conduz a um conceito de objeto mas a

outro tipo de representaccedilatildeo primordial a saber o tempo Como ele explica ldquoEacute atraveacutes desta

136

BECK op cit p 283 137

Ibidem loc cit 138

DELBOS op cit P 149 (traduccedilatildeo nossa) 139

BECK op cit p 284 140

CASSIRER op cit p 96 141

BECK op cit p 285

- 60 -

fixaccedilatildeo do tempo que eu fixo aquela siacutentese original e obtenho o conceito de uma determinada

forma []rdquo142

Natildeo se poderia falar em um muacuteltiplo dado antes da siacutentese originaacuteria e do

reconhecimento ou seja antes que o entendimento originalmente crie aquela unidade objetiva

sinteacutetica Perder essa perspectiva seria perder a clareza e cair em constantes embaraccedilos ldquopoisrdquo

diz Beck ldquofaccedila ele o que fizer nunca mais conseguiraacute achar uma conexatildeo entre a

representaccedilatildeo e o objetordquo143

Cassirer contribui para o esclarecimento desse ponto

Nesta expressatildeo de sua ideia fundamental Beck natildeo faz outra coisa que

seguir as indicaccedilotildees do proacuteprio Kant quem ao reduzir a unidade analiacutetica do

ldquoconceptus communisrdquo agrave unidade sinteacutetica da apercepccedilatildeo assinala esta

expressamente como o ldquoponto mais altordquo a que se deve referir todo o

emprego do entendimento inclusive toda a loacutegica e a filosofia

transcendental Nesta natildeo se trata de predicar ldquonotas caracteriacutesticasrdquo de uma

existecircncia dada ou de um conceito dado mas de determinar o conceito

mesmo de objeto com todas as caracteriacutesticas que lhe satildeo proacuteprias mediante

uma ldquoatribuiccedilatildeo originaacuteriardquo144

Por conseguinte o uso do entendimento eacute anterior aos conceitos isto eacute a

siacutentese da representaccedilatildeo eacute anterior agrave anaacutelise conceitual Assim pensando diz Beck ningueacutem

teraacute de se preocupar com a constituiccedilatildeo do sujeito ou do objeto pois estaraacute claro que os

conceitos ancoram-se no representar originaacuterio Em suma ele escreve ldquoUsando as palavras da

Criacutetica isso quer dizer portanto a unidade analiacutetica da consciecircncia (no conceito) pressupotildee

uma unidade original sinteacutetica (no acto originaacuterio de representar) ou tambeacutem toda anaacutelise soacute

eacute possiacutevel apoacutes uma siacutenteserdquo145

Desse modo para Beck eacute necessaacuterio que se escolha de

antematildeo se o objeto seraacute colocado no iniacutecio ou no fim da investigaccedilatildeo pois a contraposiccedilatildeo

estrutural entre essas perspectivas determinaraacute todo o restante Como explica Cassirer

O decisivo e determinante para todas as conclusotildees posteriores a que se

chegue eacute saber se a reflexatildeo filosoacutefica toma o conceito de objeto como ponto

de partida ou como meta No primeiro caso haacute para noacutes uma realidade

existente por si formada por relaccedilotildees e ordenaccedilotildees fixas tudo o que

podemos dizer acerca delas ao atribuir-lhes existecircncia no tempo e no

espaccedilo grandeza e nuacutemero substancialidade e causalidade seratildeo

simplesmente predicados dedutivos que a posteriori atribuiacutemos a essa

realidade [] Em seu sentido criacutetico natildeo cabe indagar o que o objeto

desligado de toda relaccedilatildeo com qualquer saber possiacutevel eacute em si e para si mas

apenas o que para o saber mesmo significa o postulado da validade

objetiva146

142

Ibidem loc cit 143

Ibidem p 286 144

CASSIRER op cit p 99 (grifos do autor) 145

BECK op cit p 287 146

CASSIRER op cit p 97 (grifos do autor)

- 61 -

Assim como Kant Beck considera que o entendimento eacute uma faculdade

de pensar natildeo de intuir o que significa que representa os objetos atraveacutes de conceitos Na sua

concepccedilatildeo a representaccedilatildeo conceitual de um objeto exige um ponto de referecircncia e exige

tambeacutem que ele seja subsumido em determinadas caracteriacutesticas Diferentemente na

representaccedilatildeo original o entendimento engendra a unidade objetiva sinteacutetica que deve ser

entatildeo transferida para a unidade analiacutetica de um conceito para que possa ser dada a

representaccedilatildeo de um objeto147

Interpretar o tempo o espaccedilo e a realidade das coisas como se

fossem dados antes da siacutentese originaacuteria do entendimento segundo Beck eacute falso e contraacuterio

ao que o pensamento criacutetico se propocircs Daiacute proviriam inclusive os pensamentos vagos

confusos e ininteligiacuteveis que lhe foram atribuiacutedos ldquoPoisrdquo ele escreve

se o espaccedilo for um dado antes da representaccedilatildeo original potildee-se a questatildeo de

o que ele eacute e somos portanto levados a consideraacute-lo como um absurdo

existente Igualmente nos surge a questatildeo da essecircncia das coisas (Sachheit)

se natildeo atendermos agrave representaccedilatildeo original desta categoria148

A dificuldade estaria em natildeo se poder expor a representaccedilatildeo original a

natildeo ser por meio de conceitos Por isso Beck considera necessaacuterio insistir na afirmaccedilatildeo de

que o princiacutepio supremo do entendimento eacute o postulado da representaccedilatildeo originaacuteria Com

isso natildeo surgiriam duacutevidas sobre a constituiccedilatildeo do sujeito dos objetos ou das relaccedilotildees entre

um e outros uma vez que diz ele ldquoNatildeo eacute numa articulaccedilatildeo de conceitos que aqui se pensa

mas numa composiccedilatildeo originaacuteria que previamente possibilita todos os conceitosrdquo149

Inverter

as posiccedilotildees seria confundir-se e natildeo atinar em que a filosofia criacutetica corresponde explica

Cassirer ldquo[] ao pensamento que daacute firmeza e compreensibilidade a qualquer conceito por

ele empregado ao reduzi-lo ao uso originaacuterio do entendimento []rdquo150

Dessa forma eacute

fundamental ao pensamento criacutetico a convicccedilatildeo de que a realidade natildeo pode existir sem as

relaccedilotildees dadas pela unidade sinteacutetica da consciecircncia que satildeo justamente as que criam os

nexos objetivos e necessaacuterios151

Salomon Maimon envolvendo-se tambeacutem na polecircmica caminha no

sentido de uma maior precisatildeo e de um aprofundamento acerca da perspectiva correta a ser

adotada para a compreensatildeo da filosofia kantiana A questatildeo principal a que nos remetem

suas reflexotildees liga-se ao modo como a siacutentese do muacuteltiplo poderaacute gerar a objetividade de um

147

BECK op cit p 286 148

Ibidem loc cit 149

Ibidem p 287 150

CASSIRER op cit p 99 151

Ibidem loc cit

- 62 -

ponto de vista real e natildeo apenas formalmente Segundo Cassirer esse filoacutesofo parte do

conceito de objetividade e se afasta das disputas sobre a coisa em si considerada por ele

apenas como o conceito simboacutelico de algo contraditoacuterio e irrealizaacutevel Para Maimon os

problemas surgiratildeo somente se se quiser dar um caraacuteter real e positivo agrave coisa em si

pretendendo-se fundamentar e garantir a objetividade por meio dela Nas palavras de Cassirer

ldquo[] seja esse siacutembolo o que se queira natildeo se pode duvidar de que o que eacute e significa

bdquoobjetividade‟ para o saber pode determinar-se e avaliar-se partindo do proacuteprio saberrdquo152

Maimon refletiu sobre esse ponto em sua obra Versuch uumlber die transzendentalphilosophie

de 1790 buscando uma soluccedilatildeo que harmonizasse as exigecircncias do ceticismo do dogmatismo

e do criticismo Na investigaccedilatildeo kantiana acerca da possibilidade dos juiacutezos sinteacuteticos a

priori ele vislumbra toda uma seacuterie de questotildees filosoacuteficas tradicionais embutidas no

problema mais geral de estabelecer a ligaccedilatildeo entre os planos formal e material do

conhecimento Nesse sentido afirma Paul Franks

Maimon discerniu uma uacutenica estrutura nos problemas fundamentais da

filosofia medieval da primeira filosofia moderna e da kantiana ldquoA questatildeo

quid juris [isto eacute a questatildeo sobre a legitimidade de aplicar as formas do

entendimento ao que eacute sensivelmente dado abordada na deduccedilatildeo

transcendental de Kant] eacute uma e a mesma importante questatildeo que foi tratada

por todos os filoacutesofos predecessores a saber a explicaccedilatildeo da concordacircncia

entre alma e corpo ou a explicaccedilatildeo da origem do mundo (em relaccedilatildeo agrave sua

mateacuteria) a partir de uma inteligecircnciardquo153

O objetivo e o subjetivo segundo Maimon distinguem-se como o

mutaacutevel e o imutaacutevel no conhecimento bastando entatildeo que se separem na consciecircncia os

conteuacutedos permanentes dos variaacuteveis O que permanece invariaacutevel na faculdade de conhecer

seria o objetivo e o que muda junto com ela seria o subjetivo desaparecendo entatildeo as

questotildees sobre o modo como sujeito e objeto se vinculam No dizer de Cassirer ldquoOs dois

termos natildeo podem portanto logicamente isolar-se um do outro nem caracterizar-se cada um

por si com base no que possam representar fora da capacidade de conhecer Apenas se coloca

e se pode colocar como problema bdquoreal‟ a relaccedilatildeo entre ambosrdquo154

Na medida em que o

fundamento do conhecimento eacute absolutamente incognosciacutevel diz Maimon natildeo importa se eacute

situado fora ou dentro do sujeito A justificaccedilatildeo da divisatildeo entre o que eacute objetivo e o que eacute

subjetivo tem de ser buscada portanto no proacuteprio conhecimento ldquoAssimrdquo escreve Cassirer

152

Ibidem p 108 (grifos do autor) 153

FRANKS P op cit p 105-106 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 154

CASSIRER op cit p 109 (grifos do autor)

- 63 -

encontramos por exemplo que prescindindo de todas as ideias que

possamos formar sobre a origem das percepccedilotildees dos sentidos ou da intuiccedilatildeo

do espaccedilo o momento do espacial representa o ldquoobjetivordquo com respeito agrave

qualidade sensorial das sensaccedilotildees por ser conhecido como o relativamente

estaacutevel em contraposiccedilatildeo agraves modificaccedilotildees das impressotildees transmitidas pelos

sentidos155

O ponto central da discussatildeo no entender de Maimon eacute o de explicitar a

legitimidade da aplicaccedilatildeo das categorias aos objetos bem como a formulaccedilatildeo das proposiccedilotildees

a priori referidas a elas Em Versuch uumlber die transzendentalphilosophie em uma complexa

argumentaccedilatildeo repleta de conceitos matemaacuteticos esse filoacutesofo expotildee sua maneira de ver como

se daacute aquela aplicaccedilatildeo156

De fato como afirma Franks a atenccedilatildeo de Maimon agraves ciecircncias

exatas mais precisamente agrave fiacutesica matematizada eacute uma caracteriacutestica que o diferencia de

outros poacutes-kantianos157

Com efeito para Maimon a representaccedilatildeo sensiacutevel deve ser

entendida como um certo quantum de extensatildeo ou de grau de intensidade chamado por ele de

diferencial Assim por exemplo a representaccedilatildeo da cor vermelha natildeo deve ser entendida

como extensa ou como algo de natureza matemaacutetica mas como um ponto fiacutesico ou entatildeo

como o diferencial de uma extensatildeo ou de um grau finito de qualidade158

Por conseguinte os

elementos da percepccedilatildeo natildeo se distinguiriam pela grandeza mas por algo qualitativo e

determinado Cassirer explica que uma vez que o tempo e o espaccedilo satildeo apenas esquemas de

uma possiacutevel diferenccedila entre objetos esse elemento qualitativo eacute o que tornaria possiacuteveis as

distinccedilotildees no interior da extensatildeo159

De outra perspectiva segundo Maimon apenas por si

mesmas as representaccedilotildees sensiacuteveis natildeo constituem nenhuma consciecircncia que surge somente

pela atividade de pensar Para ele eacute certo que as representaccedilotildees sensiacuteveis satildeo assimiladas

passivamente mas a consciecircncia que temos delas indica uma accedilatildeo do sujeito e natildeo o saber

passivo de algo externo Entatildeo ele escreve

A palavra representaccedilatildeo (Vorstellung) usada pela primitiva consciecircncia

induz aqui em erro pois na verdade natildeo se trata de uma representaccedilatildeo isto

eacute de um mero acto de tornar presente o que natildeo eacute presente mas muito mais

de uma apresentaccedilatildeo (Darstellung) isto eacute de apresentar como existente o

que anteriormente natildeo era160

A consciecircncia de algo exigiria a accedilatildeo da imaginaccedilatildeo pela qual muacuteltiplas

155

Ibidem p 110 156

MAIMON S Excerto de Versuch uumlber die transzendentale Philosophie Traduccedilatildeo de Maria Helena

Rodrigues de Carvalho In GIL Fernando (coord) Recepccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos

sobre Kant (1786-1844) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1992 p 223 et seq 157

FRANKS P op cit p 105 158

MAIMON S op cit p 223 159

CASSIRER op cit p 125-126 160

MAIMON S op cit p 223 (grifos do autor)

- 64 -

representaccedilotildees sensiacuteveis singulares seriam reunidas e ordenadas segundo o tempo e o espaccedilo

Esse seria o modo de surgimento de uma intuiccedilatildeo empiacuterica numa espeacutecie de adiccedilatildeo contiacutenua

de diferenciais de intensidade ou de extensatildeo ateacute que se chegasse agravequele exigido pela

consciecircncia Eacute como no caso do movimento acelerado em que as velocidades somam-se

paulatinamente e determinam uma velocidade maior161

Natildeo obstante essa adiccedilatildeo natildeo

ocorreria pela comparaccedilatildeo entre as representaccedilotildees mas diz Maimon ldquo[] apenas pelas leis

gerais da natureza de Newton nomeadamente que nenhum efeito pode ser anulado por si

proacuteprio sem um efeito que lhe eacute contraacuteriordquo162

A funccedilatildeo do entendimento nesse processo eacute a

de relacionar os objetos jaacute dados na intuiccedilatildeo por meio dos seus conceitos puros Numa

palavra

A sensibilidade portanto fornece os diferenciais a uma determinada

consciecircncia a imaginaccedilatildeo extrai deles um objeto finito (determinado) da

intuiccedilatildeo o entendimento extrai da relaccedilatildeo destes diversos diferenciais que

satildeo seus objetos a relaccedilatildeo dos objetos sensiacuteveis resultantes163

Na concepccedilatildeo de Maimon os nuacutemenos satildeo exatamente esses

diferenciais enquanto os objetos formados a partir deles satildeo os fenocircmenos Portanto natildeo se

pode afirmar que cada objeto em si tenha um diferencial ou que se refira a um diferencial

mas somente que as relaccedilotildees entre os diversos diferenciais podem ser dadas nas intuiccedilotildees164

ldquoEsses nuacutemenosrdquo diz Maimon ldquosatildeo ideias da razatildeo que como princiacutepios servem para a

explicaccedilatildeo da gecircnese dos objetos segundo certas regras do entendimentordquo165

A diferenciaccedilatildeo

entre duas qualidades sensiacuteveis seria dada como relaccedilatildeo entre diferenciais ou ideias da razatildeo

a priori Este ponto eacute complicado e exige um esclarecimento maior Cassirer observa com

razatildeo que o conceito de diferencial de Maimon parece carregar uma imprecisatildeo sendo

entendido como algo subministrado pelos sentidos como conceitos da razatildeo ou ideias e ainda

como princiacutepios da aplicaccedilatildeo objetiva do entendimento Ele esclarece entatildeo que o conceito de

diferencial possui muacuteltiplas relaccedilotildees pois

Participa da sensaccedilatildeo somente enquanto esta em suas diferenccedilas

quantitativas e em suas gradaccedilotildees oferece agrave consciecircncia antes de tudo o

fenocircmeno da diversidade Mas ao colocar-se a partir de agora a tarefa de

compreender esse fenocircmeno ldquodadordquo manifesta-se ao mesmo tempo a

necessidade de transcender acima disso passando da intuiccedilatildeo e da percepccedilatildeo

empiacutericas a seus ldquoelementosrdquo natildeo intuiacuteveis E nesse processo ao

161

Ibidem p 224 162

Ibidem loc cit 163

Ibidem loc cit 164

Ibidem p 224 165

Ibidem loc cit

- 65 -

remontarmo-nos dos objetos empiacutericos aos princiacutepios de seu nascimento a

diversidade sensorial se converte em uma diversidade racional o

conhecimento dos fenocircmenos se converte em um conhecimento das leis

numecircnicas sobre o qual aqueles fenocircmenos descansam166

Delbos contribui tambeacutem agrave compreensatildeo desse ponto afirmando que

para explicar a presenccedila de um objeto que natildeo sabemos como se produz Maimon retoma o

conceito leibniziano de uma atividade espiritual que age anteriormente a toda consciecircncia

clara O dado puro e simples eacute a ideia de um limite de uma seacuterie dada do qual podemos nos

aproximar como de uma raiz irracional sem jamais atingi-la Assim escreve Delbos Maimon

declara que ldquodo ponto de vista da filosofia criacutetica deve-se falar da coisa em si como a aacutelgebra

fala de radic-a natildeo para determinar com ele um objeto mas para manifestar a impossibilidade de

um objeto correspondente a esse conceitordquo167

Caso um conceito puro do entendimento fosse utilizado por exemplo

para distinguir entre o vermelho e o verde a questatildeo de saber como pode um conceito puro

ser aplicado agrave sensibilidade seria mantida Um conceito puro apenas proporciona a regra e

aponta a gecircnese de um objeto sendo o pensar sua uacutenica funccedilatildeo que eacute a produccedilatildeo da unidade

na multiplicidade Nas palavras de Cassirer

O intelecto em virtude de sua funccedilatildeo caracteriacutestica e peculiar deduz as

diferenccedilas entre as coisas da diversidade dos princiacutepios de que nascem Sua

forma fundamental se situa com efeito na definiccedilatildeo geneacutetica de tal modo

que soacute pode conceber o objetivamente dado sob a forma e conforme a regra

de seu nascimento168

De acordo com isso para Maimon o entendimento natildeo pode pensar

nenhum objeto como jaacute originado mas apenas como estando em formaccedilatildeo processo que ele

denomina ldquodiscorrecircnciardquo169

O termo usado por Maimom eacute flieβend que daacute a ideia de uma

corrente um fluxo que verte num determinado sentido considerado por ele como a

caracteriacutestica da intuiccedilatildeo tanto a priori quanto a posteriori A regra do entendimento que

unifica o muacuteltiplo na intuiccedilatildeo poreacutem natildeo seria dada desse modo mas de uma uacutenica vez170

Esse eacute um ponto importante da concepccedilatildeo de Maimon que evidencia uma visatildeo profunda da

gecircnese da intuiccedilatildeo Ele diferencia a maneira como a intuiccedilatildeo eacute construiacuteda em conexatildeo com

dados externos determinados enquanto o entendimento por seu turno pensa a partir de

166

CASSIRER op cit p 129-130 (grifos do autor) 167

DELBOS op cit p 148 (traduccedilatildeo nossa) 168

CASSIRER op cit p126 169

MAIMON S op cit p 225 170

Ibidem loc cit

- 66 -

conceitos puros e indeterminados Tomando um triacircngulo como exemplo ele explica que o

entendimento pensa a regra de uma soacute vez mas essa regra envolve apenas a relaccedilatildeo geral

entre lados ficando indeterminada a grandeza de cada um deles Diferentemente a construccedilatildeo

do triacircngulo soacute poderaacute ser executada de modo determinado Como ele escreve

Temos pois aqui uma determinaccedilatildeo que natildeo estava contida na regra e que

estaacute necessariamente presa agrave intuiccedilatildeo esta pode mesmo com a manutenccedilatildeo

da mesma regra ou da mesma relaccedilatildeo ser diferente em diferentes

construccedilotildees Consequentemente este triacircngulo em vista de todas as

possiacuteveis construccedilotildees natildeo deve jamais ser pensado pelo entendimento como

jaacute formado mas em formaccedilatildeo isto eacute por discorrecircncia Em contrapartida a

faculdade da intuiccedilatildeo [que de facto eacute regular (regelmaumlβig) mas sem o

discernimento da regra (regelverstaumlndig)] natildeo pode representar regra ou

unidade alguma no muacuteltiplo mas sim o proacuteprio muacuteltiplo deve por isso

pensar os seus objetos natildeo em processo mas como jaacute surgidos171

Daiacute resulta que a intuiccedilatildeo possui uma ordenaccedilatildeo que natildeo ocorre por meio

de nenhuma regra isto eacute sua forma tem de ser pensada como jaacute terminada realizada Assim

fica claro segundo Cassirer que ldquo[] o entendimento natildeo se limita a submeter a suas regras a

priori algo dado a posteriori mas ao contraacuterio o faz nascer conforme a essas regras mesmas

o que constitui a uacutenica maneira de responder agrave questatildeo quid jurisrdquo172

De acordo com isso a sensibilidade natildeo opera qualquer tipo de ligaccedilatildeo a

qual se deve agrave imaginaccedilatildeo No entanto a ligaccedilatildeo realizada por esta se daacute em geral designando

a simultaneidade ou a sucessatildeo de objetos sem especificaacute-los A imaginaccedilatildeo diz Maimon

relaciona os objetos representando um como o antecedente e outro como o consequente no

tempo e no espaccedilo por exemplo mas natildeo determinando a cada um seu lugar especiacutefico de

antecedente ou de consequente Os conceitos puros estabeleceriam somente relaccedilotildees de

unificaccedilatildeo do muacuteltiplo mas para isso precisariam que os distintos elementos fossem

pensados simultaneamente reciprocamente ou unilateralmente173

Entatildeo segundo Maimon

quando o entendimento relaciona partes do muacuteltiplo de forma simultacircnea origina-se daiacute um

conceito pensado natildeo somente em relaccedilatildeo agrave forma mas tambeacutem agrave mateacuteria o que significa que

esta deve de algum modo determinar a simultaneidade da representaccedilatildeo Outra possibilidade

seria o surgimento de um conceito ldquo[] onde a mateacuteria e a forma satildeo da mesma espeacutecie e

consequentemente produzidos por um Actus uacutenico do entendimentordquo174

Esse seria o caso dos

conceitos de causa e efeito cuja identidade de espeacutecie determinaria que quando a primeira eacute

171

Ibidem p 226 (grifos do autor) 172

CASSIRER op cit p 128 173

MAIMON S op cit p 226 174

Ibidem p 227

- 67 -

posta o segundo necessariamente tem de secirc-lo Que uma causa tenha de ter um efeito natildeo

seria algo contido na definiccedilatildeo mas seria a proacutepria definiccedilatildeo desse conceito175

Daiacute decorre que as conexotildees de muacuteltiplos satildeo realizadas pelo

entendimento a partir de formas a priori as quais poreacutem por serem regras gerais soacute por

meio de intuiccedilotildees poderatildeo ser percebidas e adquirir seu significado Para que se possa

afirmar por exemplo que um objeto eacute causa de outro eacute exigida uma regra geral que

estabeleccedila uma dependecircncia entre dois elementos distintos isto eacute que vincule de um modo

especial os objetos de duas intuiccedilotildees No entanto a pura e simples regra natildeo informaraacute

especificamente qual eacute causa e qual eacute efeito O mesmo poderia ser dito de quaisquer

conceitos pois diz Maimon ldquo[] a sua essentia nominalis eacute determinada enquanto sua

essentia realis permanece duvidosa ateacute ter sido apresentada na intuiccedilatildeordquo176

Portanto a

realidade do conceito de causalidade eacute descoberta quando o entendimento encontra na

intuiccedilatildeo uma representaccedilatildeo que sempre traz outra consigo diferente de si A forma dos juiacutezos

hipoteacuteticos que estabelece o conceito da dependecircncia de um consequente em relaccedilatildeo a um

antecedente seria nesse caso aplicada a dois objetos quaisquer Nesse sentido escreve

Maimon

A dependecircncia pode portanto ser concebida sem referecircncia a objetos

determinados (como a forma dos juiacutezos hipoteacuteticos na loacutegica) a causa e o

efeito poreacutem natildeo podem ser concebidos sem referecircncia a objetos

determinados isto eacute a regra do entendimento dos juiacutezos hipoteacuteticos refere-se

meramente a objetos determinaacuteveis mas natildeo determinados a realidade

objetiva dos mesmos poreacutem soacute pode ser demonstrada pela aplicaccedilatildeo a

objetos determinados da intuiccedilatildeo177

Segundo Maimon eacute desse modo que a experiecircncia comprova a

possibilidade dos conceitos do entendimento e que inversamente os conceitos do

entendimento tornam a experiecircncia possiacutevel De um lado os conteuacutedos materiais das

intuiccedilotildees permitem que se note o elemento formal presente nelas isto eacute as formas da

sensibilidade e os conceitos puros que satildeo portanto inatos De outro as conceitos puros e os

juiacutezos natildeo podem ser concebidos empiricamente e isso demonstra que devem ser ligados agrave

experiecircncia para ganharem sentido178

A possibilidade das intuiccedilotildees seria como a da

construccedilatildeo de um triacircngulo isto eacute anterior agrave experiecircncia e em si Nas palavras de Maimon

175

Ibidem loc cit 176

Ibidem loc cit 177

Ibidem p 228 178

MAIMON S op cit p 230

- 68 -

Quando por exemplo se emite esse juiacutezo vermelho eacute diferente de verde

imagina-se na intuiccedilatildeo primeiro vermelho e em seguida verde depois do

que se comparam os dois e daqui resulta este juiacutezo Mas como eacute que

havemos de tornar concebiacutevel essa comparaccedilatildeo Natildeo pode ocorrer durante a

representaccedilatildeo do vermelho e a representaccedilatildeo do verde179

Por conseguinte todos os conceitos e juiacutezos seriam problemaacuteticos ateacute

que tivessem uma aplicaccedilatildeo concreta e sua possibilidade estaria nessa relaccedilatildeo com

experiecircncia Como ele explica

Uma figura (espaccedilo limitado) eacute possiacutevel em si Para compreender isto tenho

de construir uma figura particular por exemplo um ciacuterculo um triacircngulo

etc Estas figuras particulares poreacutem soacute satildeo possiacuteveis atraveacutes do conceito

geral de figura porque natildeo satildeo pensaacuteveis sem ele mas a inversa natildeo eacute

verdadeira porque uma figura [conceito] tambeacutem eacute possiacutevel sem esta

determinaccedilatildeo particular180

Eacute nesse sentido que se poderia afirmar que o entendimento produz por

meio de regras gerais os objetos que seratildeo pensados depois por um conceito Para isso

segundo Maimon satildeo necessaacuterias a intuiccedilatildeo a mateacuteria do pensamento e as formas deste que

satildeo as condiccedilotildees dos objetos181

Conforme a exegese de Cassirer na concepccedilatildeo maimoniana

se a intuiccedilatildeo se referisse diretamente a um objeto externo dado poderia ser tomada como

simples quimera poreacutem o objeto de que se trata natildeo deve ser tomado como dado mas sim

como pensado Nesse caso diz Cassirer a intuiccedilatildeo deve ser entendida ldquo[] como aquela

modificaccedilatildeo da capacidade de conhecimento que natildeo se refere a nada fora de si mesma como

seria a relaccedilatildeo da representaccedilatildeo a seu objeto mas eacute por si mesma o objeto sobre o qual

recairdquo182

A indagaccedilatildeo acerca da legitimidade da aplicaccedilatildeo dos conceitos agrave mateacuteria

intuitiva eacute respondida segundo Maimon com a consideraccedilatildeo de que os conceitos natildeo satildeo

aplicados diretamente agrave intuiccedilatildeo mas agrave forma a priori do tempo Sobre esse ponto ele afirma

que ldquo[] a eacute a e natildeo eacute b natildeo porque aquele tenha uma determinaccedilatildeo material que este natildeo

tem (porque este na medida em que eacute algo a posteriori natildeo pode ser subsumido na regra a

priori) mas porque tem uma determinaccedilatildeo formal que b natildeo temrdquo183

A determinaccedilatildeo formal

nesse caso eacute o anteceder ou suceder no tempo que eacute comum a ambos os objetos os quais

agem como o antecedente e o consequente de um juiacutezo condicional Na visatildeo de Maimon

179

Ibidem loc cit 180

Ibidem loc cit 181

Ibidem p 232 182

CASSIRER op cit 115 (grifos do autor) 183

MAIMON S op cit p 233 (grifos do autor)

- 69 -

ldquoPor este processo o entendimento tem capacidade natildeo soacute de pensar objetos em geral mas de

conhecer objetos determinadosrdquo184

Com essa argumentaccedilatildeo estaria respondida a questatildeo de saber com que

direito se aplicam os conceitos a priori aos objetos sem conceitos a priori natildeo poderiacuteamos

pensar objetos apenas intuiacute-los Do mesmo modo sem intuiccedilotildees poderiacuteamos pensar objetos

em geral mas natildeo conheceriacuteamos objetos determinados Por conseguinte sem a concorrecircncia

de ambas essas fontes nenhum objeto poderia ser de fato conhecido A faculdade de julgar

entendida como a capacidade de descobrir o geral no particular ou de subsumir o particular no

geral realizaria a mediaccedilatildeo entre intuiccedilotildees e conceitos Sem ela diz Maimon teriacuteamos as

partes integrantes de um juiacutezo ldquo[] mas natildeo teriacuteamos nenhum meio de levar isto a cabo de

uma forma justa porque os conceitos gerais ou regras a priori e os objectos particulares da

intuiccedilatildeo a posteriori satildeo absolutamente heterogecircneosrdquo185

Natildeo obstante o fundamento dessa

aplicaccedilatildeo da faculdade de julgar seria desconhecido embora a aplicaccedilatildeo mesma seja tomada

como fato da intuiccedilatildeo Poreacutem o importante natildeo seria provar e explicar essa aplicaccedilatildeo mas

compreender sua possibilidade por meio de um conhecimento a priori186

Em suma como

escreve Cassirer ldquo[] a Criacutetica da razatildeo pura entende por experiecircncia pelo conhecimento a

posteriori natildeo um conhecimento determinado pelas coisas em si mas um conhecimento natildeo

determinado pelas simples leis da capacidade de conhecerrdquo187

No fim de contas a questatildeo quid juris sobre a possibilidade de

aplicaccedilatildeo dos conceitos agrave intuiccedilatildeo seraacute sempre problemaacutetica na medida em que natildeo se pode

explicar exatamente o modo como a aplicaccedilatildeo se daacute Um conceito pode certamente ser

tornado intuitivo e ganhar um significado mas do ponto de vista contraacuterio o de explicar a

origem de um conceito de significado conhecido o problema seria insoluacutevel Nas palavras de

Maimon ldquo[] como eacute que se haacute-de conceber que o entendimento possa decidir com certeza

apodiacutectica que um conceito de relaccedilatildeo por ele proacuteprio pensado (a coexistecircncia necessaacuteria de

dois predicados) tenha de ser encontrado num dado objetordquo188

A separaccedilatildeo radical dada no

sistema kantiano entre sensibilidade e entendimento natildeo permitiria resposta agrave questatildeo pois

assim as regras do entendimento natildeo teriam como se aproximar dos objetos dados189

184

Ibidem p 233-234 (grifos do autor) 185

Ibidem p 234 186

Ibidem loc cit 187

CASSIRER op cit p 117 188

MAIMON S op cit p 237 189

Ibidem p 239

- 70 -

Portanto diz Maimon somente admitindo que entendimento e sensibilidade provenham da

mesma fonte como fazem Leibniz e Wolff pode-se resolver a questatildeo eacute preciso que espaccedilo e

tempo sejam tomados como conceitos do entendimento para que seja possiacutevel submetecirc-los agraves

regras deste uacuteltimo

16 - Desvelando o dilema e os conceitos envolvidos

No pano de fundo da discussatildeo acerca da coisa em si e da sua suposta

afecccedilatildeo sobre os sentidos subjaz uma questatildeo antiga e profunda Conhecemos o mundo e

ajuizamos sobre ele poreacutem natildeo logramos provar a verdade do nosso conhecimento isto eacute a

seguranccedila inequiacutevoca do que afirmamos com relaccedilatildeo agraves coisas A resposta a esse problema

exige que se apresente alguma forma de alicerce para o pensamento algo em que se apoie e

que o faccedila ser algo mais do que ficccedilatildeo A dificuldade nos parece estar em que a soluccedilatildeo

demanda a muacutetua adequaccedilatildeo entre duas esferas heterogecircneas a saber o mundo da

experiecircncia com seus objetos concretos determinados singulares e o mundo teoacuterico com

seus conceitos abstratos universais e suas relaccedilotildees gerais Acrescenta-se a isso que essa

heterogeneidade foi tradicionalmente pensada como enraizada na distinccedilatildeo entre corpo e

alma tomados como substacircncias separadas com implicaccedilotildees natildeo soacute teoacutericas mas tambeacutem

morais e religiosas Aleacutem disso desde Platatildeo e sua ldquosegunda navegaccedilatildeordquo consolidou-se o

distanciamento entre um mundo mais real e verdadeiro cuja caracteriacutestica fundamental estava

na sua idealidade e um mundo ilusoacuterio e falso ligado agrave concretude aos sentidos e ao

empiacuterico

Apesar de toda a distacircncia entre Platatildeo e Hume o resultado geral da

argumentaccedilatildeo deste uacuteltimo acerca da causalidade nos parece ter reforccedilado a concepccedilatildeo do

primeiro de que natildeo haacute conhecimento verdadeiro do mutaacutevel do empiacuterico Rebaixado ao

estatudo de crenccedila sem necessidade loacutegica nem garantia empiacuterica com Hume o saber

humano afastou-se mais da possibilidade de alcanccedilar uma correspondecircncia autecircntica em

- 71 -

relaccedilatildeo agraves coisas Ou na formulaccedilatildeo de Maimon tornou-se mais difiacutecil responder agrave questatildeo

ldquoquid jurisrdquo A filosofia criacutetica kantiana conseguiu pela descriccedilatildeo minuciosa do mecanismo

de produccedilatildeo do conhecimento recuperar a esperanccedila de que o intelecto pudesse encontrar

certezas por meio de investigaccedilatildeo Para noacutes o prodiacutegio da descoberta de Kant nesse ponto

foi apontar a accedilatildeo por meio da qual o intelecto fabrica o mundo por assim dizer Por um lado

esse achado solucionou o problema da ausecircncia de necessidade e de correspondecircncia do saber

em relaccedilatildeo aos objetos pois a necessidade mesma e os proacuteprios objetos descobriram sua

origem no sujeito cognoscente Natildeo se precisava mais buscar a necessidade e a

correspondecircncia alhures jaacute que se situavam no nosso intelecto do mesmo modo que os

objetos Por outro lado poreacutem a fabricaccedilatildeo intelectual do mundo trouxe outras questotildees tatildeo

difiacuteceis quanto aquela inicial

Na nossa interpretaccedilatildeo Kant e os pensadores de sua eacutepoca debruccedilaram-

se sobre a tarefa de sustentar a construccedilatildeo do mundo pelo sujeito conscientes de que sem

isso a questatildeo de Hume natildeo seria resolvida Tornou-se entatildeo imperioso demostrar claramente

o processo que tornaria vaacutelidos do ponto de vista objetivo as intuiccedilotildees e os conceitos uma

vez que sua origem seria subjetiva Kant acrescentou um terceiro termo a essa problemaacutetica

ao apontar para uma realidade por traacutes dos fenocircmenos produzidos pelo intelecto ainda que

atribuindo a ela uma posiccedilatildeo incerta no seu sistema Com isso a soluccedilatildeo daquela questatildeo

passou a ter de levar em conta novos aspectos o estatuto da experiecircncia empiacuterica entendida

agora como aparecircncia os detalhes do mecanismo de constituiccedilatildeo da realidade pelo sujeito

cognoscente o estatuto daquilo que estaacute por traacutes do fenocircmeno e a relaccedilatildeo entre ambos

A dificuldade entatildeo se aprofunda porque se eacute verdade que o sujeito

institui o mundo dos fenocircmenos natildeo pode fazecirc-lo a partir de si mesmo e o contato com algo

que garanta a realidade empiacuterica tem de ser descoberto Ao mesmo tempo poreacutem fecha-se o

acesso agraves coisas em si mesmas e o conhecimento humano fica inexpugnavelmente limitado agrave

esfera fenomecircnica Com efeito de um lado sem um fundamento para sua realidade o

conhecimento da experiecircncia seraacute fictiacutecio de pleno direito jaacute que natildeo passaraacute de produto de

um sujeito que natildeo conhece nada para aleacutem disso mesmo ou seja do fenocircmeno portanto de

uma aparecircncia De outro lado poreacutem o modo como Kant responde a Hume impede que algo

possa ser dado como subjacente aos fenocircmenos A rigor natildeo se pode nem mesmo postular a

existecircncia desse ser embora a afirmaccedilatildeo de que exista uma aparecircncia sem algo que apareccedila

seja absurda e insustentaacutevel

- 72 -

De acordo com isso ao que nos parece cada um dos filoacutesofos poacutes-

kantianos apresentados no item anterior realiza sua contribuiccedilatildeo endossando ou criticando

Kant mas de qualquer modo se enfrentando com essas dificuldades postas por sua filosofia

Jacobi evidencia que no sistema teoacuterico kantiano o exterior natildeo eacute realmente externo pois um

objeto no espaccedilo estaacute no fim de contas dentro do sujeito Sua argumentaccedilatildeo segundo

pensamos natildeo eacute tatildeo ingecircnua ou simploacuteria como pareceu a muitos pois toca em um ponto

importante que eacute o de saber como uma intuiccedilatildeo pode ser exterior sem se referir a algo em si

nem a algo fora do sujeito Eacute com razatildeo que duvida de que a mateacuteria dos fenocircmenos possa ser

criada sem que se saia da consciecircncia Eacute com razatildeo tambeacutem que questiona a ideia de uma

faculdade da sensibilidade sem a admissatildeo de impressotildees externas sobre os sentidos A uacutenica

saiacuteda coerente segundo Jacobi seria reconhecer que o sensiacutevel soacute conduz ao sensiacutevel e que a

demonstraccedilatildeo da validade objetiva do conhecimento demanda uma faculdade distinta

superior que leve ao suprassensiacutevel Sem isso tudo o que se faz eacute girar em falso sobre um

plano irreal que natildeo se refere a nada para aleacutem de si mesmo

Reinhold buscou um ponto de certeza incontestaacutevel a partir do qual a

teoria do conhecimento pudesse ser deduzida sem que fosse necessaacuterio invocar a coisa em si

Realmente eacute um ponto paciacutefico do pensamento criacutetico a concepccedilatildeo de que todo conhecimento

eacute representaccedilatildeo e esta era entatildeo um bom iniacutecio para um sistema Parece-nos que depois de

Reinhold os esforccedilos se concentraram no sentido de demonstrar que a representaccedilatildeo poderia

ser esclarecida e validada a partir de si mesma Para isso foi fundamental sua ecircnfase em que

mateacuteria e forma natildeo poderiam ser separadas na representaccedilatildeo sem extingui-la Schulze por

sua vez sublinhou que natildeo se pode admitir o surgimento do fenocircmeno por uma causalidade

da coisa em si sobre o sujeito e que isso deixa a aparecircncia sem nenhum ponto de apoio O

fundamento da experiecircncia contudo natildeo pode ser a proacutepria experiecircncia que eacute produto do

sujeito de modo que todo o sistema do conhecimento desmorona e toda representaccedilatildeo se

mostra vazia sem objetividade simples ficccedilatildeo

Com o intuito de dissolver a separaccedilatildeo entre a consciecircncia e os objetos

Beck traz agrave luz o ato originaacuterio pelo qual o fenocircmeno eacute composto pelo sujeito Sua

argumentaccedilatildeo mostra que a experiecircncia depende de uma siacutentese do muacuteltiplo anterior a toda e

qualquer anaacutelise conceitual Nessa linha de raciociacutenio evidenciando-se a falsidade da

separaccedilatildeo entre a consciecircncia e os objetos a investigaccedilatildeo da adequaccedilatildeo entre uma e outros se

torna inuacutetil isto eacute natildeo cabe a pergunta pela validade objetiva Beck entatildeo direciona os

- 73 -

holofotes para o ato originaacuterio de representar com o qual se formam todos os objetos

reforccedilando a importacircncia do tempo e do espaccedilo no processo Maimon por fim tambeacutem

evidencia o modo como a siacutentese do muacuteltiplo poderaacute gerar objetividade para assim resolver a

questatildeo ldquoquid jurisrdquo Para ele objetivo e subjetivo natildeo podem ser isolados e o problema real

acerca do conhecimento eacute o de saber qual a relaccedilatildeo que entre eles medeia O objetivo remete

agraves formas do sujeito estaacuteveis durante todo o processo de conhecer e o subjetivo remete agraves

sensaccedilotildees mutaacuteveis e inconstantes A sensibilidade natildeo fornece diretamente intuiccedilotildees ao

pensamento mas miacutenimos graus de intensidade ou de extensatildeo que se acrescentam uns aos

outros e satildeo ordenados pelo entendimento A observaccedilatildeo de Maimon sobre a distinccedilatildeo entre

Vorstellung e Darstellung eacute interessante nesse sentido pois ressalta que os objetos natildeo satildeo

apreendidos em uma representaccedilatildeo mas fornecidos em uma apresentaccedilatildeo O muacuteltiplo e o a

posteriori surgem durante o processo e a experiecircncia externa ao sujeito natildeo precisa ser

pensada como ligada agraves coisas em si podendo ser tomada como o a posteriori desprovido das

regras do conhecer Por conseguinte o conhecido imediatamente por noacutes natildeo eacute de fato um

objeto mas diferenciais de intensidade ou de extensatildeo O entendimento eacute que produz os

objetos que seratildeo pensados depois pelos conceitos enquanto a conexatildeo entre estes e a

intuiccedilatildeo natildeo se daacute diretamente mas por meio da forma a priori do tempo

Em relaccedilatildeo aos problemas envolvidos no conceito de coisa em si

Reinhold Beck e Maimon tentam eludir a necessidade de que ela esteja pressuposta como o

real por traacutes dos fenocircmenos Tanto sua causalidade sobre os sentidos quanto sua existecircncia

natildeo satildeo admitidas por eles que tratam entatildeo de relativizar sua importacircncia na filosofia criacutetica

Reinhold argumentou que partindo-se somente da representaccedilatildeo como objeto de investigaccedilatildeo

e do princiacutepio da consciecircncia como fundamento natildeo eacute preciso tomar a coisa em si em

consideraccedilatildeo Beck defedeu que a questatildeo sobre a coisa em si eacute um problema vazio pois a

relaccedilatildeo entre ela e os objetos eacute inexistente isto eacute natildeo haacute qualquer nexo a se buscar Maimon

por fim sustentou que o conceito de coisa em si eacute apenas um siacutembolo para algo que natildeo se

pode conceber o limite de uma seacuterie dada que nunca se atinge algo como uma raiz irracional

Na verdade eacute irrelevante o que esse siacutembolo possa realmente significar o que importa eacute natildeo

cracterizaacute-lo positivamente nem utilizaacute-lo como garantia da objetividade

O posicionamento de Schopenhauer sobre essas questotildees revela a marca

- 74 -

das criacuteticas que Kant recebeu de seus contemporacircneos190

Ele elimina a separaccedilatildeo entre

sujeito e objeto mostrando que satildeo polos distintos de uma mesma esfera a da representaccedilatildeo

tornando descabida a questatildeo de saber quais relaccedilotildees se estabelecem entre um e outro A

representaccedilatildeo eacute um ponto fixo um apoio que ele considera suficientemente firme para

alicerccedilar todo o seu edifiacutecio teoacuterico de certa forma ldquopara mover o mundordquo O problema da

validade objetiva eacute resolvido por Schopenhauer com a minuciosa descriccedilatildeo do modo como os

objetos satildeo criados por meio do princiacutepio de razatildeo suficiente Ele se empenha na

argumentaccedilatildeo que prova a dependecircncia da intuiccedilatildeo com relaccedilatildeo ao entendimento expondo a

radical diferenccedila entre ela e a simples sensaccedilatildeo Por conseguinte natildeo surgem do seu

pensamento uma esfera da representaccedilatildeo e outra dos objetos ambas as coisas satildeo idecircnticas

Sua demonstraccedilatildeo da aprioridade do princiacutepio de razatildeo eacute realizada com diversos exemplos e

ilustraccedilotildees que patenteiam a extrema subordinaccedilatildeo da representaccedilatildeo relativamente a ele Natildeo

resta qualquer espaccedilo para a questatildeo ldquoquid jurisrdquo

Outro ponto relevante a ser destacado eacute que a separaccedilatildeo irredutiacutevel entre

as faculdades do entendimento e da sensibilidade tornava muito difiacutecil relacionar conceitos

juiacutezos e intuiccedilotildees Schopenhauer assombrosamente reuacutene todas as questotildees que estavam em

jogo em torno de um uacutenico princiacutepio o de razatildeo suficiente por meio do qual interliga todas as

faculdades intelectuais e todos os tipos de objetos possiacuteveis Segundo pensamos isso eacute

realmente uma maravilha da criatividade e da genialidade schopenhauerianas pois o filoacutesofo

conseguiu extrair tudo a partir de um uacutenico ponto isto eacute deduzir dele tanto o mundo empiacuterico

quanto o conceitual Unificando numa mesma raiz sensibilidade entendimento e razatildeo seu

princiacutepio explica a um soacute tempo a conexatildeo entre as intuiccedilotildees e os conceitos o dado e o

pensado o universal e o particular o necessaacuterio e o contingente

Nos ldquoFragmentos para a histoacuteria da filosofiardquo dos Parerga e

Paralipomena Schopenhauer expotildee seu modo de entender a controveacutersia sobre a coisa em si

kantiana Ele afirma que a pressuposiccedilatildeo de que exista uma coisa em si sob os fenomenos eacute

correta e que apenas o modo como Kant a justificou foi ineficaz porque ela natildeo podia ser

harmonizada com os princiacutepios da sua filosofia E esse se tornou entatildeo seu ldquocalcanhar de

190

Victor Delbos observa bem que nos iniacutecios de seu filosofar Schopenhauer descarta conscientemente o

conceito de coisa em si ainda sob a influecircncia da argumentaccedilatildeo de Schulze Na primeira ediccedilatildeo de Da

quaacutedrupla raiz e nos Manuscritos Poacutestumos datados de 1812-1813 Schopenhauer aponta para a nulidade do

conceito de coisa em si e para o absurdo de se afirmar que ela cause o fenocircmeno Para noacutes isso sugere que

Schopenhauer foi modificando suas posiccedilotildees com atenccedilatildeo a esse debate Cf DELBOS op cit p 256-257

- 75 -

Aquilesrdquo cuja inconsistecircncia foi provada primeiro por Schulze depois por outros191

Para ele

no entanto eacute muito mais inaceitaacutevel a conclusatildeo da inexistecircncia da coisa em si e natildeo teria

sido exatamente esse o ponto visado pelos adversaacuterios de Kant mas somente sua exposiccedilatildeo

De certo modo diz Schopenhauer a argumentaccedilatildeo natildeo foi ad rem mas ad hominem192

Em

todo caso ele entende como realmente incorreta a utilizaccedilatildeo das leis a priori do intelecto para

derivar a existecircncia de uma coisa em si por traacutes dos fenocircmenos Essas leis natildeo podem

conduzir a nada que natildeo seja representaccedilatildeo de modo que o caminho para chegar ateacute aquela

teraacute de ser outro No entender do filoacutesofo Kant descobriu no conhecimento um conjunto de

elementos de origem subjetiva e outro de origem empiacuterica que foi considerado entatildeo como

objetivo em contraposiccedilatildeo agravequele Para ele isso foi bastante coerente porque Kant natildeo

poderia estender os elementos a priori a coisas independentes do intelecto

Conforme Schopenhauer haacute algo que permanece de fato desconhecido e

eacute precisamente a coisa em si Os elementos a posteriori satildeo inseparaacuteveis dos que satildeo a priori

e por isso diz ele ldquoKant ensina que podemos saber da existecircncia da coisa em si mas que daiacute

natildeo podemos extrair nada isto eacute apenas saber que ela eacute natildeo o que ela eacute por isso a essecircncia

da coisa em si permanece nele como uma grandeza desconhecida um Xrdquo193

As diferenccedilas

existentes entre os objetos provariam a existecircncia da coisa em si na medida em que formas a

priori satildeo as mesmas para todos eles mas eles natildeo satildeo todos idecircnticos essas diferenccedilas

segundo Schopenhauer devem-se agrave coisa em si194

O argumento poreacutem com que Kant a

introduziu eacute insustentaacutevel porque sua proacutepria filosofia natildeo permite que se passe do subjetivo

ao objetivo isto eacute do sujeito agraves coisas mesmas o que se fosse feito equivaleria a tomar a

causalidade como absoluta Schopenhauer conclui entatildeo que jamais se encontraraacute a coisa em

si seguindo-se o fio condutor da representaccedilatildeo mas apenas ele afirma ldquo[] mudando o ponto

de vista a saber ao inveacutes de partir do que representa como sempre se fez ateacute agora partir-se

do que eacute representadordquo195

Como consequecircncia na metafiacutesica schopenhaueriana a representaccedilatildeo eacute a

objetidade da coisa em si ou seja natildeo haacute nenhum elemento de mediaccedilatildeo entre ambas pois

ao fim e ao cabo satildeo um e o mesmo mundo observado de lados opostos Nesse caso nem a

191

PP I Fragmente zur Geschichte der Philosophie sect 13 p 113 Fragmentos para a histoacuteria da filosofia

Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas de Maria Luacutecia Cacciola Satildeo Paulo Iluminuras 2003 sect 13 p 79-80 192

Ibidem sect 13 p 114 ibidem sect 13 p 79 193

Ibidem sect 13 p 116 ibidem sect 13 p 81 (grifos do autor) 194

Ibidem sect 13 loc cit ibidem sect 13 loc cit 195

Ibidem sect 13 p 118 ibidem sect 13 p 83 (grifos do autor)

- 76 -

causalidade nem outro princiacutepio a priori satildeo exigidos para se conectar coisa em si e

representaccedilatildeo A coisa em si natildeo seraacute conhecida com recurso ao que estaacute fora do sujeito a um

objeto que lhe eacute inacessiacutevel mas por meio da sua proacutepria vontade individual daiacute a

elaboraccedilatildeo de uma metafiacutesica imanente Natildeo obstante a coisa em si de Schopenhauer ganha

outras determinaccedilotildees que conformam seu edifiacutecio teoacuterico de uma maneira peculiar A

Vontade eacute considerada por ele por exemplo o nuacutecleo mais real e verdadeiro do mundo em

contraposiccedilatildeo agrave representaccedilatildeo ilusoacuteria e efecircmera Na sua argumentaccedilatildeo preserva-se o caraacuteter

fenomecircnico do mundo empiacuterico e reforccedila-se a ideia de que o sensiacutevel conduz apenas ao

sensiacutevel de modo que o conhecimento que desvelaraacute a coisa em si natildeo seraacute o regido pelo

princiacutepio de razatildeo suficiente incluiacutedo aqui o do conhecer Como resultado a representaccedilatildeo eacute

mantida como aparecircncia a objetividade do conhecimento eacute garantida por um princiacutepio

intelectual e a coisa em si eacute preservada e desenvolvida

- 77 -

Capiacutetulo 2 ndash A construccedilatildeo do lado externo do mundo idealismo transcendental

21 ndash Philosophia prima

211 ndash O princiacutepio maacuteximo do conhecimento

Neste capiacutetulo detalhamos as relaccedilotildees e os conceitos apresentados no

capiacutetulo anterior no tocante agrave teoria do conhecimento de Schopenhauer Para isso utilizamos

o texto de Da quaacutedrupla raiz ediccedilatildeo de 1847 o primeiro livro de O mundo e os capiacutetulos

correspondentes de O mundoII ediccedilatildeo de 1859 Seguimos a indicaccedilatildeo dada pelo filoacutesofo no

prefaacutecio da primeira obra mencionada onde ele afirma que nesses textos juntamente com a

Criacutetica da filosofia kantiana estaacute encerrada sua teoria acerca do intelecto humano1 Quando

uacutetil pela clareza e conveniente do ponto de vista explicativo utilizamos tambeacutem outras obras

indicadas oportunamente

No prefaacutecio de Da quaacutedrupla raiz Schopenhauer afirma que sua

abordagem da problemaacutetica do conhecimento eacute nova e peculiar realizada por meio da

formulaccedilatildeo demonstraccedilatildeo e justificaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo suficiente A despeito da

maneira enfaacutetica com a qual o filoacutesofo apresenta o princiacutepio de razatildeo como a condiccedilatildeo de

possibilidade de todo e qualquer conhecimento sua concepccedilatildeo sobre este uacuteltimo eacute mais

ampla Eacute possiacutevel notar diferentes conceitos e modos de conhecer matizados tanto pelo lado

da Vontade quanto da representaccedilatildeo Da perspectiva desta uacuteltima temos quatro formas do

princiacutepio de razatildeo suficiente intuiccedilotildees puras intuiccedilotildees empiacutericas intuiccedilotildees normais

representaccedilotildees fictiacutecias e representaccedilotildees abstratas Do lado da Vontade temos ideias

1 UumlV p 9 CR p 27

- 78 -

conhecimento eacutetico conhecimento esteacutetico e nenhum princiacutepio Eacute possiacutevel ainda matizar e

classificar modos distintos de conhecer por exemplo conhecimento interno externo

imediato mediato concreto abstrato pelo princiacutepio de razatildeo e tambeacutem com exclusatildeo dele

No texto Schopenhauer and Knowledge David Hamlyn chama a atenccedilatildeo para essa

complexidade que se manifesta em duas grandes maneiras de conhecer Esse autor observa

que o conhecimento de que trata Da quaacutedrupla raiz eacute consciente e condicionado enquanto

o que entra em jogo no quarto livro de O mundo referente agrave superaccedilatildeo da Vontade eacute de um

tipo totalmente oposto ou seja inconsciente e incondicionado Na interpretaccedilatildeo dele

Alguns objetos tornam-se objetos do conhecimento apenas quando estatildeo

sujeitos a condiccedilotildees quando por exemplo e esse eacute o caso das

representaccedilotildees eles ocorrem em estruturas regulares Outros objetos podem

ser objetos do conhecimento sem a satisfaccedilatildeo de tais condiccedilotildees e no caso de

certos objetos ndash a vontade por exemplo ndash natildeo apenas pode ser assim mas

deve ser assim e esse eacute o fato que torna incondicional o conhecimento em

questatildeo2

Para Hamlyn embora natildeo deixe claro em cada um dos quatro livros de

O Mundo Schopenhauer dedica-se a um objeto distinto respectivamente agraves representaccedilotildees

comuns agrave Vontade agraves ideias e ao saber que conduz agrave negaccedilatildeo do querer3 Concepccedilatildeo

semelhante apresenta Margit Ruffing para quem o filoacutesofo lida com uma teoria do

conhecimento distinta em cada livro de sua obra capital Na interpretaccedilatildeo dessa autora a

contemplaccedilatildeo esteacutetica abordada por Schopenhauer no terceiro livro de O Mundo tem um

papel de destaque no sistema pois representa o ponto de transiccedilatildeo entre o conhecimento

imperfeito da Vontade e sua compreensatildeo completa4 Os quatro livros na interpretaccedilatildeo dela

ldquo[] tecircm como base apenas duas questotildees de conhecimento ndash a questatildeo a respeito de o que do

conhecimento da essecircncia do significado do mundo e a questatildeo a respeito do acesso ao

conhecimento essencial a respeito do como do conhecimentordquo5

Nossa anaacutelise se concentraraacute no conhecimento pelo lado da representaccedilatildeo

e por isso exporemos grande parte das ideias contidas em Da quaacutedrupla raiz que discorre

minuciosamente sobre o princiacutepio de razatildeo Todavia natildeo adotamos exatamente a ordem que

2 HAMLYN D Schopenhauer and knowledge In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 46 (traduccedilatildeo nossa) 3 Ibidem p 45

4 Esse eacute o tema da dissertaccedilatildeo da autora defendida na Johannes Gutenberg Universitaumlt ndash Mainz em 2001 Cf

RUFFING M Wille zur Erkenntnis Die Selbsterkenntnis des Willens und die Idee des Menschen in der

aumlsthetischen Theorie Arthur Schopenhauers 5 RUFFING M A relevacircncia eacutetica da contemplaccedilatildeo esteacutetica Revista etich - An international Journal for

Moral Phylosophy Florianoacutepolis v11 n2 p 263-271 julho de 2012 p 264 (grifos da autora)

- 79 -

o filoacutesofo considerou a correta do ponto de vista sistemaacutetico a saber iniciar com o princiacutepio

de razatildeo do ser em relaccedilatildeo ao tempo passar para a mesma forma do princiacutepio com relaccedilatildeo ao

espaccedilo em seguida expor a lei de causalidade posteriormente a de motivaccedilatildeo e por fim o

princiacutepio com relaccedilatildeo ao conhecimento abstrato6 Essa ordem segue do mais simples e

imediato ao mais complexo e mediato sendo realmente uma boa sequecircncia expositiva

Apenas julgamos que ficam mais claras as teses e as relaccedilotildees que pretendemos ressaltar

quando mudamos a posiccedilatildeo da lei de motivaccedilatildeo e a expomos logo apoacutes o princiacutepio de razatildeo

do ser Ou seja iniciaremos com as intuiccedilotildees puras e o princiacutepio de razatildeo do ser passando ao

sujeito da voliccedilatildeo e agrave lei de motivaccedilatildeo em seguida ao entendimento suas intuiccedilotildees empiacutericas

e a causalidade por fim aos conceitos e ao princiacutepio de razatildeo do conhecer

Embora heterodoxa essa sequecircncia expositiva ao que nos parece natildeo eacute

de todo infundada Schopenhauer se baseia na complexidade das formas do princiacutepio de

razatildeo enquanto noacutes pensamos na complexidade dos objetos Ao que nos parece assim se

torna mais claro o caraacuteter especiacutefico do sujeito do querer bem como fica realccedilada sua relaccedilatildeo

com o sentido interno e com a intuiccedilatildeo singular de um objeto uacutenico para cada indiviacuteduo

Entendemos que natildeo haacute prejuiacutezo em nos debruccedilarmos somente depois sobre as intuiccedilotildees

empiacutericas que envolvem tanto o tempo quanto o espaccedilo ao passo que o sujeito do querer eacute

intuiacutedo somente no tempo Certamente a lei de motivaccedilatildeo exige que o agente conheccedila o

mundo o que passa pela lei de causalidade mas eacute possiacutevel compreender sua estrutura e seu

objeto especiacutefico sem detalhar como se datildeo concretamente as accedilotildees

Schopenhauer declara que a descoberta e a descriccedilatildeo do princiacutepio de

razatildeo foram feitas por meio de duas leis transcendentais da razatildeo as quais servem de regra

para o meacutetodo de toda a filosofia e todo o conhecimento a saber a especificaccedilatildeo e a

homogeneidade Por meio desta uacuteltima diz ele satildeo encontradas as semelhanccedilas e

concordacircncias nos objetos que satildeo agrupados em conceitos de espeacutecies estas em gecircneros e

estes em conceitos mais amplos A primeira por sua vez diferencia os conceitos das espeacutecies

em um determinado gecircnero os indiviacuteduos dentro das espeacutecies e quaisquer conceitos em geral

Para Schopenhauer tratam-se de satildeo leis da razatildeo pura agraves quais os objetos devem

necessariamente se adequar Nas palavras dele

Kant ensina que essas duas leis transcendentais satildeo princiacutepios da razatildeo que

postulam a priori a concordacircncia das coisas consigo mesmos e Platatildeo

6 UumlV sect46 p178 CR sect46 p 214-215

- 80 -

parece tambeacutem expressaacute-lo do seu modo na medida em que diz que essas

regras agraves quais toda ciecircncia deve sua origem foram-nos jogadas da morada

dos deuses com o fogo de Prometeu7

Eacute digno de nota que Schopenhauer mencione essas duas leis da razatildeo tal

como Kant as pensou como os fundamentos de seu meacutetodo de descoberta Como

mostraremos mais agrave frente o filoacutesofo reduziu muito o acircmbito de atuaccedilatildeo da razatildeo natildeo

contemplando os princiacutepios sinteacuteticos que Kant atribui a ela No caso dessas duas leis

Schopenhauer as utiliza para encontrar o ponto de partida que seraacute depois o fundamento de

todo e qualquer conhecimento o que leva a crer que elas estatildeo em um posto mais originaacuterio e

elevado do que o do princiacutepio de razatildeo Apesar disso o filoacutesofo as refere no seu tratado como

o meacutetodo heuriacutestico com o qual se deduz o princiacutepio

De qualquer forma as leis de homogeneidade e de especificaccedilatildeo satildeo

apontadas aqui como as regras do meacutetodo filosoacutefico Dentre as duas diz Schopenhauer a de

especificaccedilatildeo eacute particularmente relevante para o estudo do princiacutepio de razatildeo enquanto o uso

isolado da de homogeneidade teria conduzido a muitos erros Isso se explicaria porque

embora tenha sido bastante investigado atraveacutes da Histoacuteria natildeo se teria ainda compreendido

as aplicaccedilotildees e significaccedilotildees distintas dele Essa consideraccedilatildeo se torna importante porque

Schopenhauer formula o princiacutepio de razatildeo como uma estrutura uacutenica que permite interligar

as diferentes faculdades do intelecto o que eacute imprescindiacutevel para uma soluccedilatildeo satisfatoacuteria aos

problemas postos pelas criacuteticas feitas a Kant De acordo com isso ele escreve ldquo[] esforccedilo-

me nesse tratado em assentar o princiacutepio de razatildeo suficiente como um juiacutezo com um

fundamento quaacutedruplo natildeo quatro diferentes fundamentos que teriam levado por azar ao

mesmo juiacutezo mas um princiacutepio quaacutedruplo que nomeio figuradamente quaacutedrupla raizrdquo8 Daiacute a

utilidade maior do princiacutepio de especificaccedilatildeo que permite discernir no tronco uacutenico suas

diferentes aplicaccedilotildees e raiacutezes Especiacuteficos tambeacutem satildeo os modos em que se apresenta a

necessidade que ele possui enquanto elemento a priori a qual diz o filoacutesofo ldquo[] natildeo eacute a

uacutenica nem a mesma em toda parte mas sim muacuteltipla como as proacuteprias fontes do princiacutepiordquo9

Schopenhauer elege a formulaccedilatildeo com que Wolff enuncia o princiacutepio

ldquoNihil est sine ratione cur potius sit quam non sitrdquo10

considerando que ela possui a

generalidade exigida para enquadrar cada uma das quatro formas Em linhas gerais o

7 UumlV sect1 p 12 CR sect1 p 30

8 UumlV sect33 p 133-134 CR sect33 p 164

9 UumlV sect3 p 13 CR sect3 p 31

10 UumlV sect5 p 15 CR sect5 p 33

- 81 -

princiacutepio determina que nada pode ser sem uma razatildeo pela qual eacute ou nas palavras do

filoacutesofo ldquoO sentido geral do princiacutepio de razatildeo resume-se a que sempre e em toda parte cada

coisa somente eacute em razatildeo de outrardquo11

Em Da quaacutedrupla raiz Schopenhauer resume os

significados e as ideias anteriores agrave sua proacutepria concepccedilatildeo do princiacutepio jaacute conhecido desde a

Antiguidade12

De maneira ampla ele teria sido notado como algo importante por diversos

filoacutesofos mas as diferenccedilas existentes entre suas formas natildeo teria sido percebida e uma

confusatildeo teria se instalado principalmente entre causa e razatildeo de conhecimento Ateacute mesmo

Aristoacuteteles teria cometido esse erro pois embora tivesse divisado diferentes princiacutepios e

distintas causas atuando no mundo concreto13

natildeo teria separado estas uacuteltimas da razatildeo de

conhecimento14

Via de regra as causas fiacutesicas eram confundidas com as razotildees loacutegicas que

sustentam raciociacutenios resultando em argumentaccedilotildees que incorriam na falaacutecia non causae ut

causa15

Segundo o filoacutesofo esse eacute o caso do argumento ontoloacutegico em que se misturam a

razatildeo de conhecimento do conceito de Deus que eacute dada pela sua definiccedilatildeo com a causa fiacutesica

de um mundo dotado de realidade No fim de contas diz ele ldquo[] esse Deus tem com o

mundo a relaccedilatildeo de um conceito com sua definiccedilatildeordquo16

Eacute curioso que Schopenhauer natildeo tenha mencionado entre as formulaccedilotildees

anteriores agrave sua a concepccedilatildeo de Christian August Crusius No sect 11 de Da quaacutedrupla raiz

ele discorre brevemente sobre o entendimento dos filoacutesofos situados entre Wolff e Kant

passando por Baumgartem Reimarus Lambert e Platner mas natildeo se reporta agravequele17

Conforme se lecirc em Cassirer a compreensatildeo de Crusius a respeito do princiacutepio de razatildeo

suficiente eacute bastante proacutexima agrave de Schopenhauer inclusive com a posiccedilatildeo privilegiada que

este confere ao conhecimento intuitivo Um primeiro ponto de contato poderia ser apontado

em que para Crusius natildeo se pode remeter todo o conhecimento a conceitos abstratos mas

escreve Cassirer ldquoEm vez de comeccedilar pelos bdquoconceitos possiacuteveis‟ para partindo deles

como faz Wolff esforccedilar-se em determinar o real por meio de determinaccedilotildees loacutegicas

11

UumlV sect52 p 187 CR sect52 p 224 (grifos do autor) 12

No capiacutetulo II de Da quaacutedrupla raiz Schopenhauer discute diversas formulaccedilotildees e teorizaccedilotildees sobre o

princiacutepio de razatildeo Aleacutem dos de Leibniz e Wolff menciona o entendimento de Platatildeo Aristoacuteteles Plutarco

estoicos escolaacutesticos Suarez Hobbes Reimarus Schulze Fries Descartes Espinosa Baumgarten Lambert

Platner Hume Kant Eberhardt Hofbauer Maass Jakob Kiesewetter Jacobi Maimon e Schelling Cf UumlV

zweites Kap sectsect6-14 p 16-38 CR cap II sectsect6-14 p 34-56 13

Cf ARISTOacuteTELES An Post II 11 94a-95a Metafiacutesica Livro I (A) 3 983b-984a An Post I 32 88a-

89a 14

UumlV sect6 p 18 CR sect6 p 36-37 15

UumlV sect6 p 19 et seq CR sect6 p 36 et seq Na falaacutecia da falsa causa atribui-se a um efeito uma causa que natildeo

lhe corresponde 16

UumlV sect8 p 28 CR sect8 p 46 17

UumlV sect11 p 33-34 CR sect11 p 51-52

- 82 -

progressivas devemos seguir o caminho inversordquo18

Uma segunda conexatildeo poderia ser

indicada na visatildeo de que o conhecimento tem de comeccedilar pelos sentidos e de que a mera

anaacutelise loacutegica de conceitos natildeo constitui verdadeiro saber19

Um terceiro e mais importante

ponto de contato entre o pensamento de Schopenhauer e de Crusius acerca do princiacutepio de

razatildeo seria o de que este uacuteltimo distingue tatildeo clara e conscientemente quanto aquele a causa

real de um acontecimento e o fundamento do conhecer Nas palavras de Cassirer ldquo[] em

Crusius surge o esquema geral que haveraacute de manter-se em peacute ateacute chegar aos tempos

modernos e que reaparece por exemplo quase inalteraacutevel na obra de Schopenhauer Da

quaacutedrupla raiz do princiacutepio de razatildeo suficienterdquo20

De qualquer modo Schopenhauer considera que uma das suas grandes

contribuiccedilotildees eacute a diferenciaccedilatildeo e descriccedilatildeo de cada uma das quatro raiacutezes do princiacutepio bem

como de seu funcionamento e aplicaccedilatildeo a objetos especiacuteficos E ele se empenha nisso seguro

de que a distinccedilatildeo e a fundamentaccedilatildeo precisas satildeo realizaccedilotildees exclusivamente suas Leibniz e

Wolff teriam sido os que mais se acercaram da concepccedilatildeo que advoga mas cada qual teria

errado de um modo O primeiro diz ele chegou a perceber a diferenccedila entre causa e

fundamento do conhecer mas sem se deter nela claramente o segundo embora tivesse

realizado o que faltou agravequele teria confundido diversas vezes as formas do princiacutepio e errado

tambeacutem em consideraacute-lo ontoloacutegico e natildeo loacutegico como ele proacuteprio defende21

Com efeito o princiacutepio se manifesta em quatro leis loacutegicas de diferentes

faculdades intelectuais e se aplica ao pensamento de todos os objetos resumindo em si o

aparato cognitivo como um todo Na medida em que eacute a condiccedilatildeo de possibilidade do

conhecimento do pensamento e da proacutepria demonstraccedilatildeo ele eacute indemonstraacutevel Como

escreve o filoacutesofo ldquoToda prova eacute exatamente a apresentaccedilatildeo de uma razatildeo para um juiacutezo

proferido o qual por isso recebe o predicado de verdadeirordquo22

A raiz do princiacutepio consiste no

seu significado geral e tudo o que podemos conhecer deve passar por ele sem o seu

intermeacutedio nada pode tornar-se objeto para noacutes23

No livro I de O mundo Schopenhauer

resume sua realizaccedilatildeo ldquoNo meu tratado sobre o princiacutepio de razatildeo mostrei minuciosamente

como cada objeto possiacutevel estaacute submetido a ele isto eacute estaacute em uma relaccedilatildeo necessaacuteria com

18

CASSIRER op cit II p 481 (grifos do autor) 19

Ibidem p 483ss 20

Ibidem p 503 21

UumlV sect9 p 31 CR sect9 p 49 22

UumlV sect14 p 38 CR sect14 p 56 (grifos do autor) 23

UumlV sect16 p 41 CR sect16 p 59

- 83 -

outros objetos de um lado como determinado de outro determinando []rdquo24

Por

conseguinte o princiacutepio de razatildeo suficiente estaacute na base dos objetos dos conceitos dos

raciociacutenios da loacutegica da matemaacutetica das ciecircncias numa palavra do mundo e do

conhecimento do mundo Todas as faculdades cognitivas descobertas por Schopenhauer a

saber sensibilidade entendimento e razatildeo assim como quaisquer objetos possiacuteveis estatildeo

intrinsecamente ligados ao princiacutepio e satildeo remetidos pelo filoacutesofo agraves relaccedilotildees entre sujeito e

objeto ou o que eacute o mesmo entre sujeito e representaccedilatildeo Esse pensamento eacute sintetizado com

as palavras seguintes

Nossa consciecircncia cognoscente que se apresenta como sensibilidade

exterior e interior (receptividade) entendimento e razatildeo divide-se em

sujeito e objeto e fora disso nada conteacutem Ser objeto para o sujeito e ser

nossa representaccedilatildeo eacute o mesmo Todas as nossas representaccedilotildees satildeo objetos

do sujeito e todos os objetos do sujeito satildeo nossas representaccedilotildees Com

efeito todas as nossas representaccedilotildees encontram-se relacionadas entre si de

modo regular e determinaacutevel a priori quanto agrave forma pela qual nada

existente por si e independente bem como isolado e fragmentado pode

tornar-se objeto par noacutes25

Como dissemos antes o princiacutepio de razatildeo eacute indemonstraacutevel jaacute que eacute o

fundamento de toda a demonstraccedilatildeo e explicaccedilatildeo De modo semelhante o sujeito do

conhecimento natildeo pode ser ele mesmo conhecido pois diz Schopenauer ldquo[] para isso se

exigiria que o sujeito se separasse do conhecer e entatildeo conhecesse o conhecer o que eacute

impossiacutevelrdquo26

De acordo com Cacciola o filoacutesofo assimilou essa liccedilatildeo de Kant para quem o

sujeito transcendental como mera forma natildeo pode ser conhecido por si mas apenas por meio

das suas representaccedilotildees Na criacutetica dos paralogismos da razatildeo pura diz a autora ldquo[]

Schopenhauer iraacute detectar a proposta idealista kantiana ou seja a afirmaccedilatildeo impliacutecita de que

bdquonatildeo haacute objeto sem sujeito‟rdquo27

No mesmo sentido o filoacutesofo argumenta que as faculdades

cognitivas natildeo podem ser conhecidas diretamente mas apenas inferidas a partir dos tipos de

objetos aos quais se aplicam As faculdades representativas satildeo vistas por ele como os

correlatos subjetivos das classes de objetos possiacuteveis como capacidades cognitivas abstraiacutedas

dos tipos de representaccedilatildeo28

Portanto sujeito e objeto satildeo definidos reciprocamente isto eacute

24

WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I Livro I sect2 p 46 25

UumlV sect16 p 41 CR sect16 p 59 (grifos do autor) 26

UumlV sect41 p 169 CR sect41 p 203 27

CACCIOLA M L A criacutetica da Razatildeo no pensamento de Schopenhauer Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Faculdade

de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo Departamento de Filosofia Satildeo Paulo

1981 p 13 28

UumlV sect41 p 169-170 CR sect41 p 204

- 84 -

todo objeto exige um sujeito que conhece como seu correlato necessaacuterio e vice-versa29

Nas

palavras do filoacutesofo

[] com um objeto determinado de certa forma coloca-se exatamente e de

modo imediato tambeacutem o sujeito como conhecendo dessa tal forma Assim

eacute indiferente se eu digo os objetos possuem tais e tais determinaccedilotildees

particulares e proacuteprias ou que o sujeito conhece de tais e tais modos

indiferente se eu digo os objetos satildeo divididos em tais classes ou que ao

sujeito satildeo proacuteprias tais diferentes faculdades cognoscitivas30

Mais do que isso cada classe de representaccedilotildees soacute possui existecircncia para

o seu correlato subjetivo ou faculdade de conhecimento correspondente31

A muacutetua

condicionalidade existente entre sujeito e objeto fica entatildeo ressaltada jaacute que a compreensatildeo

de um exige a do outro e a formulaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo expressaraacute a estrutura e o

funcionamento das faculdades intelectuais em ligaccedilatildeo intriacutenseca com os objetos Por

conseguinte a correlaccedilatildeo que Schopenhauer estabelece entre as faculdades e as

representaccedilotildees natildeo deixa lacuna para que se questione o mecanismo de adequaccedilatildeo entre

sujeito e objeto O princiacutepio de razatildeo sozinho fornece uma fundamentaccedilatildeo para o

conhecimento do mundo fenomecircnico que natildeo demanda nada para aleacutem de si proacuteprio Esse eacute o

modo em que Schopenhauer soluciona a questatildeo quid juris isto eacute ele demonstra que o

mundo eacute mera representaccedilatildeo do sujeito natildeo existindo antes ou separado deste Essa opiniatildeo eacute

semelhante agrave de F C White para quem

Uma vez fornecido esse resumo seletivo eacute possiacutevel dizer de uma soacute vez

onde reside a importacircncia de Da quaacutedrupla raiz com respeito ao sistema de

Schopenhauer Reside na sua tentativa de estabelecer que o mundo cotidiano

eacute representacional de estabelecer que os princiacutepios de razatildeo governam

aquele mundo sem licenccedila para nenhuma inferecircncia agrave realidade para aleacutem

dele e de refutar muitas das alegaccedilotildees dos que sustentam o contraacuterio32

29

WWV I ersters Buch sect5 p 44 M I Livro I sect5 p 56 30

UumlV sect41 p 170 CR sect41 p 204 (grifos do autor) 31

WWV I ersters Buch sect4 p 41 M I Livro I sect4 p 53 32

WHITE F C The fourfold root In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 64 (traduccedilatildeo nossa)

- 85 -

212 ndash Formas da sensibilidade intuiccedilotildees puras e sujeito da voliccedilatildeo

Na medida em que eacute fundada pelo princiacutepio de razatildeo a realidade

empiacuterica se reduz a representaccedilatildeo do sujeito que a origina e a condiciona por meio das suas

formas a priori eacute assim que a realidade do mundo como representaccedilatildeo coexiste com a sua

idealidade transcendental33

A demonstraccedilatildeo de Schopenhauer acerca da idealidade

transcendental do mundo segue dois caminhos distintos O primeiro jaacute elaborado antes por

Kant se bem que de modo diferente eacute o esclarecimento da anterioridade das noccedilotildees de tempo

e espaccedilo com relaccedilatildeo agrave experiecircncia como um todo O segundo que seraacute desenvolvido no

proacuteximo item refere-se agrave edificaccedilatildeo do universo empiacuterico com base no princiacutepio de razatildeo

suficiente

Kant demonstrou a aprioridade das formas do tempo e do espaccedilo dos

pontos de vista ontoloacutegico e transcendental No primeiro caso ele argumentou que natildeo nos eacute

possiacutevel representar nada que natildeo seja espacial e temporalmente situado As representaccedilotildees

do tempo e do espaccedilo se apresentariam a noacutes como dotadas de unidade e infinitude o que

evidenciaria natildeo se tratar de conceitos empiacutericos De um lado cada uma delas seria intuiacuteda

como una e como abrangendo em si as partes menores ou seja cada intuiccedilatildeo parcial do

tempo e do espaccedilo seria remetida a uma representaccedilatildeo total anterior de que natildeo se poderia de

antematildeo ter um conhecimento Com efeito a unidade do tempo e a do espaccedilo natildeo poderiam

ser obtidas pela junccedilatildeo de todas as partes respectivas jaacute que as proacuteprias partes seriam

limitaccedilotildees daquela unidade e seriam pensaacuteveis por meio dela De outro lado as intuiccedilotildees do

tempo e do espaccedilo seriam pensadas como infinitas e no entanto nenhum conceito poderia

abrarcar uma infinidade de representaccedilotildees Do ponto de vista do exame transcendental Kant

define tempo e espaccedilo como princiacutepios dos quais derivam conhecimentos sinteacuteticos a priori

A Geometria fundada sobre o espaccedilo a priori comprovaria a existecircncia desse tipo de

conhecimento em funccedilatildeo da necessidade das suas proposiccedilotildees Para Kant a necessidade e a

33

WWV I ersters Buch sect1 p 32 M I Livro I sect1 p 44

- 86 -

universalidade indicam tratar-se de conhecimento a priori jaacute que na experiecircncia natildeo haacute nada

que apresente a mesma apodicticidade34

A argumentaccedilatildeo schopenhaueriana acerca do tempo e do espaccedilo procura

demonstrar que o conjunto da realidade empiacuterica natildeo poderia existir sem aquelas formas que

portanto satildeo anteriores e constitutivas Na obra Schopenhauer Patrick Gardiner afirma sobre

esse ponto que tempo e espaccedilo ldquoSatildeo formas da nossa bdquosensibilidade‟ o que equivale a dizer

entre outras coisas que estamos constituiacutedos de tal modo que tudo aquilo de que somos

conscientes em nossa experiecircncia sensorial deve se apresentar a noacutes em termos espaccedilo-

temporaisrdquo35

Conforme Schopenhauer o tempo eacute a forma do sentido interno constituiacuteda pela

sucessatildeo pela qual os fenocircmenos aparecem sempre de modo subsequente O espaccedilo por sua

vez eacute a forma do sentido externo que determina a representaccedilatildeo dos fenocircmenos de modo

contiacuteguo constituiacuteda pela justaposiccedilatildeo Embora de certo modo antagocircnicas ambas essas

formas satildeo exigidas para a intuiccedilatildeo do mundo pois diz o filoacutesofo ldquoAs representaccedilotildees

empiacutericas que pertencem ao complexo organizado da realidade aparecem todavia nas duas

formas ao mesmo tempo e aleacutem disso a uniatildeo estreita de ambas eacute uma condiccedilatildeo da

realidade a qual surge ateacute certo ponto como um produto desses fatoresrdquo36

Schopenhauer sustenta entatildeo que as representaccedilotildees da simultaneidade e

da mudanccedila caracteriacutesticas estruturais da realidade empiacuterica satildeo dependentes das formas do

tempo e do espaccedilo Com isso ele demonstra que sua junccedilatildeo eacute a condiccedilatildeo de possibilidade do

conjunto da experiecircncia e que portanto tempo e espaccedilo satildeo formas a priori Todas as outras

representaccedilotildees possiacuteveis estariam vinculadas agraves da simultaneidade e da mudanccedila de forma

que a argumentaccedilatildeo acerca destas se estenderia agraves restantes Com relaccedilatildeo agrave representaccedilatildeo da

simultaneidade Schopenhauer explica que embora tenha caraacuteter temporal ela exige tanto o

tempo quanto o espaccedilo pois o tempo natildeo pode garantir a existecircncia paralela de duas

representaccedilotildees jaacute que eacute mera sucessatildeo exigindo-se tambeacutem o espaccedilo para que ambas sejam

situadas lado a lado num instante dado Do modo semelhante o espaccedilo eacute justaposiccedilatildeo natildeo

permitindo apenas por si a simultaneidade entre dois estados o que se daacute pela existecircncia de

suas representaccedilotildees ao mesmo tempo37

No tocante agrave mudanccedila dos objetos tempo e espaccedilo

tambeacutem seriam requeridos conjuntamente Somente com o espaccedilo natildeo poderia haver a

34

KrV B3 ndash B6 CRP p 37-39 35

GARDINER P Schopenhauer Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1997 p 133 (traduccedilatildeo nossa) (grifos

do autor) 36

UumlV sect18 p 43 CR sect18 p 63 (grifos do autor) 37

UumlV sect18 p 42-43 CR sect18 p 62

- 87 -

sucessatildeo de estados que caracteriza a mudanccedila somente com o tempo natildeo haveria qualquer

estado a ser modificado No primeiro livro de O mundo o filoacutesofo esclarece esse ponto

afirmando que ldquoA mudanccedila isto eacute a alteraccedilatildeo introduzida pela lei causal refere-se todas as

vezes a uma parte determinada do espaccedilo e a uma parte determinada do tempo

simultaneamente e juntasrdquo38

Por sua vez as noccedilotildees de duraccedilatildeo e permanecircncia tambeacutem

imprescindiacuteveis para a constituiccedilatildeo do mundo dos fenocircmenos seriam dependentes das de

mudanccedila e simultaneidade Em funccedilatildeo disso embora sejam noccedilotildees mais ligadas ao tempo

requerem tambeacutem a contribuiccedilatildeo do espaccedilo como forma Nas palavras de Schopenhauer ldquoA

permanecircncia de um objeto soacute eacute conhecida por meio da oposiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave mudanccedila de

outro com o qual eacute simultacircneordquo39

O mesmo pode ser afirmado sobre a duraccedilatildeo que tambeacutem

se liga agrave simultaneidade Assim a sucessatildeo e a justaposiccedilatildeo seriam condiccedilotildees fundamentais

do mundo empiacuterico pelas quais tempo e espaccedilo se tornariam o tecido onde se desenham os

fenocircmenos e sem as quais natildeo se poderia falar em duraccedilatildeo mutaccedilatildeo simultaneidade ou

permanecircncia Conforme a explicaccedilatildeo de Gardiner ldquoDaiacute que seja tatildeo impossiacutevel conceber

objetos materiais que existam em um mundo puramente temporal como conceber sua

existecircncia em um mundo puramente espacial supondo que mundos de uma ou outra classe

pudessem ser imaginaacuteveisrdquo40

A intuiccedilatildeo a priori do tempo e do espaccedilo constitui os objetos especiacuteficos

aos quais o princiacutepio de razatildeo suficiente se aplica nesse caso o do ser Tais objetos satildeo

intuiccedilotildees puras que natildeo podem ser extraiacutedas da experiecircncia como por exemplo o ponto a

linha a extensatildeo e a divisibilidade infinita e que se distinguem das intuiccedilotildees empiacutericas em

funccedilatildeo da ausecircncia de mateacuteria41

A sucessatildeo e a justaposiccedilatildeo satildeo as relaccedilotildees proacuteprias e

intriacutensecas respectivamente das partes do tempo e das do espaccedilo relaccedilotildees que satildeo de

condicionamento muacutetuo Gardiner ilustra esse ponto de modo interessante

Se por exemplo perguntam-me quando ocorreu algo posso responder

relacionando temporalmente o fato com outro momento ou ocasiatildeo cuja

posiccedilatildeo na escala do tempo jaacute eacute conhecida pela pessoa com quem estou

falando de modo parecido se me perguntam onde estaacute algo posso

38

WWV I ersters Buch sect4 p 39 M I Livro I sect4 p 51 (grifos do autor) 39

UumlV sect18 p 43 CR sect18 p 62 (grifos do autor) 40

GARDINER op cit p 146 (traduccedilatildeo nossa) 41

UumlV sect35 p 157 CR sect35 p 189-190

- 88 -

responder sempre indicando suas relaccedilotildees com outros pontos ou aacutereas

espaciais42

Como formas da sensibilidade a sucessatildeo e a justaposiccedilatildeo satildeo a priori e

natildeo podem ser remetidas a nada conhecido empiricamente mas antes qualquer representaccedilatildeo

de posicionamento antecedecircncia ou progressatildeo de objetos as exige Pois afirma

Schopenhauer

[] essa intuiccedilatildeo natildeo eacute como uma representaccedilatildeo fictiacutecia tomada de

empreacutestimo da repeticcedilatildeo da experiecircncia mas sim tatildeo independente desta

que pelo contraacuterio a experiecircncia eacute que deve ser pensada como dependente

daquela enquanto as qualidades do tempo e do espaccedilo como satildeo conhecidas

a priori na intuiccedilatildeo satildeo leis para toda a experiecircncia possiacutevel a qual tem de

concordar com elas em toda parte43

O princiacutepio de razatildeo suficiente do ser (Satz vom zureichenden Grunde

des Seins) ou principium rationis sufficientis essendi eacute a lei segundo a qual se datildeo as

relaccedilotildees no tempo e no espaccedilo Segundo Gardiner essa forma do princiacutepio difere claramente

de outras pois ele explica ldquo[] a igualdade dos lados de um triacircngulo eacute a ratio essendi da

igualdade dos acircngulos embora a relaccedilatildeo entre a bdquorazatildeo‟ e a bdquoconsequecircncia‟ seja aqui

necessaacuteria natildeo eacute uma relaccedilatildeo de causal ou uma relaccedilatildeo de vinculaccedilatildeo loacutegicardquo44

No caso do

espaccedilo a posiccedilatildeo de cada objeto determina a de todos os outros em uma relaccedilatildeo reciacuteproca de

consequecircncia a razatildeo sem que esteja implicada uma ordem de precedecircncia entre ambas45

Nas

palavras de Schopenhauer ldquo[] eacute indiferente qual seraacute entendida como determinante qual

como determinada isto eacute como ratio (fundamento) e a outra como rationata (fundada)rdquo46

Em virtude disso como tambeacutem da sua infinitude a cadeia das razotildees de ser no espaccedilo eacute

infinita tanto a parte ante quanto a parte post e todas as parcelas de espaccedilos possiacuteveis satildeo

figuras contiacuteguas que se limitam mutuamente Como o filoacutesofo escreve ldquoA series rationum

essendi (seacuterie das razotildees de ser) no espaccedilo assim como a series rationum fiendi (seacuterie das

razotildees do devir) segue in infinitum (ao infinito) e natildeo somente em uma soacute como esta uacuteltima

mas em todas as direccedilotildeesrdquo47

No caso do tempo o condicionamento das suas partes se daacute do

momento anterior para o posterior e o princiacutepio de razatildeo do ser eacute bastante simples a saber

apenas a lei de sucessatildeo num soacute sentido Entatildeo diz Schopenhauer ldquoCada momento eacute

42

GARDINER op cit p 143 (traduccedilatildeo nossa) 43

WWV I ersters Buch sect3 p 35-36 M I Livro I sect3 p 47 44

GARDINER op cit p 142 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 45

UumlV sect37 p 159 CR sect37 p 191 46

UumlV sect37 p 159 CR sect37 p 191 47

UumlV sect37 p 160 CR sect37 p 192

- 89 -

determinado pelo anterior somente por meio deste pode-se chegar agravequele apenas quando

aquele foi decorreu este eacuterdquo48

Na obra Schopenhauer uma filosofia da trageacutedia Alexis Philonenko

observa bem que o tempo possui uma expressatildeo mais simples e tambeacutem mais ampla do que o

espaccedilo Nesse sentido ele afirma ldquo[] Schopenhauer faz observar que o tempo natildeo eacute

somente a dimensatildeo na qual se produz toda a intuiccedilatildeo mas tambeacutem todo pensamento

incluiacutedas as noccedilotildees abstratas Ademais eacute no tempo onde se desenvolve a vontaderdquo49

De fato

aleacutem das intuiccedilotildees puras no tempo abordadas na aritmeacutetica o sentido interno intui um objeto

totalmente distinto dos mencionados ateacute agora a saber o sujeito da voliccedilatildeo Este eacute uma classe

de representaccedilotildees para o sujeito cognoscente mas que possui a peculiaridade de ser apenas

um objeto para cada indiviacuteduo Como o filoacutesofo explica essa classe abrange ldquo[] um objeto

para cada um o objeto imediato do sentido interno o sujeito do querer o qual eacute objeto para

o sujeito cognoscente e de fato eacute dado soacute no sentido interno soacute no tempo natildeo aparece no

espaccedilo e como veremos mesmo assim com uma significativa limitaccedilatildeordquo50

Em siacutentese o

sujeito da voliccedilatildeo eacute a consciecircncia que cada sujeito tem de si mesmo como ser desejante

Como expusemos acima o sujeito cognoscente natildeo pode conhecer-se

enquanto tal pois isso implicaria separar-se de si mesmo mas na condiccedilatildeo de desejante

torna-se possiacutevel conhecer-se No capiacutetulo 4 de O mundoII acerca do conhecimento a

priori Schopenhauer esclarece que ldquoO tempo eacute desse modo a forma por meio da qual a

vontade individual que originalmente e em si mesma natildeo possui qualquer conhecimento

pode autoconhecer-serdquo51

Sem esse conhecimento interno o sujeito conheceria a si mesmo

apenas como algo externo dado pelos sentidos isto eacute como objeto espacializado Seria uma

concepccedilatildeo singulariacutessima na Histoacuteria da Filosofia na qual o sujeito que conhece e age sempre

foi identificado com algo interno na maior parte das vezes como uma alma

Eacute interessante notar que na argumentaccedilatildeo schopenhaueriana a

consciecircncia apresenta uma cisatildeo interna dividindo-se ela tambeacutem em sujeito e objeto O

objeto eacute constituiacutedo por uma classe especial de representaccedilotildees dada no tempo e regida por

sua forma particular do princiacutepio de razatildeo o sujeito eacute o mesmo que conhece todos os outros

48

UumlV sect38 p 160 CR sect38 p 193 (grifos do autor) 49

PHILONENKO A Schopenhauer una filosofia de la tragedia Barcelona Anthropos 1989 p 94 (traduccedilatildeo

nossa) 50

UumlV sect40 p 168 CR sect40 p 202 (grifos do autor) 51

WWWII Kap 4 p 49 MII cap 4 p 43

- 90 -

objetos E assim encontramos um objeto especiacutefico e individualizado por assim dizer

inserido no sentido interno isto eacute dentro da consciecircncia No caso desse objeto Schopenhauer

natildeo fala em faculdade de conhecimento somente em um correlato subjetivo que eacute a

consciecircncia de si ou sentido interno52

A vontade individual eacute uacutenica para cada indiviacuteduo mas

pode apresentar-se em muacuteltiplos graus e intensidades os quais satildeo definidos como

sentimentos dados imediatamente ao sujeito do conhecer Em virtude disso diz o filoacutesofo ldquoA

partir do conhecimento pode-se dizer que ldquoeu conheccedilordquo seja uma sentenccedila analiacutetica ao

contraacuterio ldquoeu querordquo eacute sinteacutetica e na verdade a posteriori dada pela experiecircncia aqui pela

interna (isto eacute somente no tempo)rdquo53

O conhecimento do sujeito do querer eacute entatildeo o mais imediato de todos

posto que eacute dado na consciecircncia de si e eacute o que deveraacute mediar o conhecimento de quaisquer

outros objetos A forma do princiacutepio de razatildeo que rege o sujeito do querer eacute a lei de

motivaccedilatildeo (Satz vom zureichenden Grunde des Handelns) ou principium rationis sufficientis

agendi pela qual todas as accedilotildees e decisotildees dos indiviacuteduos satildeo resultantes de motivos do

mesmo modo como todo efeito implica uma causa Essa lei eacute apresentada por Schopenhauer

como completamente paralela agrave de causalidade que investigaremos em seguida e definida

como esta uacuteltima vista por dentro54

Em linhas gerais a lei de motivaccedilatildeo determina que as

decisotildees e os atos de vontade dos indiviacuteduos sejam originados a partir de motivos de modo

interno e imediato55

Por fim eacute importante ressaltar que essa classe de objetos eacute anunciada ao

sujeito cognoscente a partir de outra instacircncia a saber da vontade individual cuja raiz eacute

metafiacutesica Trata-se portanto de um ponto onde se encontram os dois lados do mundo

52

UumlV sect42 p 171-172 CR sect42 p 206 53

UumlV sect42 p 171 CR sect42 p 205 54

UumlV sect43 p 173 CR sect43 p 208 55

UumlV sect43 p 173 CR sect43 p 208

- 91 -

213 ndash Dianoiologia

Como dissemos no item anterior a prova schopenhaueriana da idealidade

transcendental do mundo como representaccedilatildeo segue dois caminhos Por um lado sustenta a

necessidade das formas da sensibilidade para o conjunto do mundo como representaccedilatildeo por

outro explica o mecanismo de construccedilatildeo dos objetos que o compotildeem com base no princiacutepio

de razatildeo Esta uacuteltima prova eacute realizada tambeacutem de duas perspectivas a saber pelo acircngulo do

conjunto da experiecircncia e pelo dos objetos singulares No tocante ao conjunto da experiecircncia

Schopenhauer argumenta que a uniatildeo de tempo e espaccedilo eacute obra do entendimento que ao

empreendecirc-la cria a realidade empiacuterica Essa prova poderia ser confundida com a referente agrave

aprioridade do tempo e do espaccedilo que tambeacutem satildeo acionados aqui Para a distinccedilatildeo poreacutem

basta notarmos que no primeiro caso o filoacutesofo expotildee a anterioridade das formas da

sensibilidade mostrando que a sucessatildeo e a justaposiccedilatildeo satildeo fundamentais para as

representaccedilotildees de simultaneidade e mudanccedila enquanto no segundo caso a construccedilatildeo da

realidade empiacuterica eacute explicada pelo ato de junccedilatildeo daquelas formas realizado pela lei de

causalidade No primeiro caso o alvo satildeo tempo e espaccedilo enquanto formas e no segundo o

princiacutepio de razatildeo e o entendimento White tambeacutem sublinha a necessidade do entendimento

para a formaccedilatildeo da experiecircncia ao afirmar que ldquoEmbora por essas razotildees tempo e espaccedilo

sejam necessaacuterios para a existecircncia real dos objetos eles natildeo satildeo suficientes Precisam ser

unidos por um terceiro componente e eacute a faculdade do entendimento que o fornece impondo

sua uacutenica categoria ao que lhe eacute dadordquo56

O princiacutepio de razatildeo referente ao entendimento harmoniza as

caracteriacutesticas transmitidas agrave experiecircncia pelo tempo em que tudo eacute sucessivo e pelo espaccedilo

em que tudo eacute justaposto Conforme Schopenhauer as propriedades do tempo e do espaccedilo satildeo

contrapostas isto eacute o fluxo constante do primeiro se opotildee agrave permanecircncia imoacutevel do

segundo57

Com a uniatildeo de ambos o entendimento agrupa e ordena o complexo de

representaccedilotildees que entatildeo surge e que abarca todas as intuiccedilotildees empiacutericas mesmo distantes

entre si no tempo e no espaccedilo Eacute o nascimento do universo total dos fenocircmenos onde diz o

56

WHITE op cit p 67 (traduccedilatildeo nossa) 57

WWVI ersters Buch sect4 p 39 MI Livro I sect4 p 51

- 92 -

filoacutesofo ldquo[] inumeraacuteveis objetos existem simultaneamente porque nele embora o tempo

natildeo possa ser detido a substacircncia isto eacute a mateacuteria permanece e apesar da imobilidade riacutegida

do espaccedilo seus objetos mudam no qual em uma palavra nos eacute dado todo o mundo real

objetivordquo58

Portanto o princiacutepio de razatildeo agrega as intuiccedilotildees empiacutericas que constituem a

classe de objetos relacionada aos dados concretos do mundo e assim edifica a realidade como

um todo Schopenhauer afirma que os objetos dessa classe satildeo intuitivos porque natildeo satildeo

meros pensamentos satildeo completos porque englobam forma e mateacuteria e satildeo empiacutericos pois

estatildeo em relaccedilatildeo direta com as sensaccedilotildees corporais e com o conjunto total da realidade59

Como jaacute exposto o tempo eacute o sentido interno e simultaneamente a

forma do sujeito cognoscente onde as representaccedilotildees encontram-se de modo imediato dentre

elas o sujeito da voliccedilatildeo Daiacute decorre em primeiro lugar que todas as representaccedilotildees passam

por ele inclusive as empiacutericas que tambeacutem exigem o intercurso do sentido externo E em

segundo lugar que elas fluem continuamente no sujeito Nas palavras do filoacutesofo

Desse modo como o sujeito em funccedilatildeo das leis tanto do mundo interno

como do externo natildeo pode ficar parado em uma representaccedilatildeo e no

entanto no mero tempo nada eacute simultacircneo entatildeo cada representaccedilatildeo estaraacute

sempre novamente desaparecendo substituiacuteda por outra em uma ordem natildeo

determinaacutevel a priori mas sim dependente de circunstacircncias que logo seratildeo

mencionadas60

Sobre esse ponto duas consequecircncias satildeo importantes Por um lado o

sujeito cognoscente por si soacute natildeo poderia engendrar a realidade empiacuterica pois sua forma eacute a

da sucessatildeo Por outro o conhecimento das representaccedilotildees se daacute de modo imediato no sentido

interno isto eacute no tempo e no presente de modo que passado e futuro natildeo satildeo representaccedilotildees

intuitivas

De acordo com o dito haacute uma discrepacircncia entre o caraacuteter fugidio e

isolado das representaccedilotildees tomadas individualmente e o complexo total da realidade no qual

elas aparecem como partes que se combinam de um modo ateacute certo ponto duradouro

Portanto a unificaccedilatildeo de tempo e espaccedilo pelo entendimento eacute condiccedilatildeo da experiecircncia e

nessa perspectiva diz Schopenhauer o realismo natildeo se sustenta pois considera o todo

empiacuterico como real e a representaccedilotildees isoladas como elementos meramente ideais Para ele o

idealismo entendeu a questatildeo de forma diferente e melhor porque conseguiu combinar a

58

UumlV sect18 p 44 CR sect18 p 63 59

UumlV sect17 p 42 CR sect17 p 61 60

UumlV sect19 p 45 CR sect19 p 65 (grifos do autor)

- 93 -

realidade empiacuterica dos objetos do universo corpoacutereo com a idealidade deles61

Parte

fundamental desse idealismo eacute a concepccedilatildeo de que o mundo concreto eacute um fenocircmeno do

sujeito e o erro do realismo teria sido natildeo compreender o caraacuteter de representaccedilatildeo das coisas

tomadas por reais nem a relaccedilatildeo intriacutenseca entre sujeito e objeto O realismo afirma o

filoacutesofo ldquo[] desconsidera que o objeto fora de sua relaccedilatildeo com o sujeito natildeo eacute mais objeto e

que se algueacutem lhe retira dessa relaccedilatildeo ou a abstrai imediatamente toda a existecircncia objetiva

tambeacutem eacute suspensardquo62

A forma do princiacutepio de razatildeo que estabelece a dinacircmica das

representaccedilotildees no todo empiacuterico eacute o principium rationis sufficientis fiendi (Satz vom

zureichenden Grunde des Werdens) ou princiacutepio de razatildeo suficiente do devir63

Trata-se da

lei de causalidade que determina o iniacutecio e o fim de estados da mateacuteria bem como todas as

mudanccedilas ocorridas nas representaccedilotildees no decurso do tempo Nas palavras de Schopenhauer

ldquo[] quando surge um novo estado de um ou mais objetos reais deve ter havido outro

anterior ao qual ele segue regularmente isto eacute todas as vezes em que o primeiro existe Tal

sequecircncia denomina-se derivar o primeiro estado causa e o segundo efeitordquo64

De um ponto

de vista mais preciso a lei de causalidade determina as transformaccedilotildees nos corpos materiais

iniciadas em instantes dados do tempo

Para Gardiner ldquo[] Schopenhauer natildeo considerou que a conexatildeo causal

entre fenocircmenos implicasse a existecircncia de uma espeacutecie de bdquouniatildeo‟ ou bdquolaccedilo‟ quase-loacutegico

que unisse misteriosamente a causa ao efeito nisso sua posiccedilatildeo natildeo difere da de Hume e

outros que atacaram essa ideiardquo65

Por nossa parte pensamos que o viacutenculo estabelecido por

Schopenhauer entre causa e efeito eacute sim loacutegico pois se baseia na ideia de uma uniatildeo

necessaacuteria entre ambos em qualquer das duas direccedilotildees possiacuteveis isto eacute do efeito para a causa

ou da causa para o efeito Eacute certo que na visatildeo schopenhaueriana sem recurso agrave experiecircncia

natildeo se pode determinar a causa concreta que engendrou um efeito mas se pode e se deve

afirmar com certeza que o efeito teve uma causa quando natildeo se puder apontaacute-la o estado

resultante seraacute visto como milagre Com efeito para o filoacutesofo toda causa acarreta

indefectivelmente o seu efeito sem exceccedilatildeo sendo exatamente esse seu conceito de

61

UumlV sect18 p 46 CR sect18 p 66 62

UumlV sect19 p 47 CR sect19 p 66 63

UumlV sect20 p 48 CR sect20 p 68 64

UumlV sect20 loc cit CR sect20 loc cit 65

Ibidem op cit p 152 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor)

- 94 -

necessidade Aleacutem disso Schopenhauer entende o princiacutepio como composto de quatro leis

loacutegicas como jaacute mostramos anteriormente

A natureza se configura como um complexo empiacuterico em constante

mutaccedilatildeo e alteraccedilatildeo de estados em que causas e efeitos alternam-se permanentemente como

elos de uma cadeia sem iniacutecio66

Que essa cadeia seja infinita na direccedilatildeo descendente isto eacute

no sentido do futuro decorre jaacute da definiccedilatildeo de tempo como a forma da sucessatildeo que

somente pode se dar do anterior para o posterior Que ela seja tambeacutem infinita na direccedilatildeo

ascendente Schopenhauer ilustra com o exemplo do processo de aquecimento de um corpo A

adiccedilatildeo do calor ao corpo diz ele ldquo[] eacute tambeacutem dependente de uma mudanccedila anterior por

exemplo a incidecircncia de raios de sol em uma lupa esta da saiacuteda de uma nuvem da frente do

sol esta por causa do vento isso pela diferenccedila de densidade do ar esta por outras

mudanccedilas in infinitumrdquo67

Para ele o que determina a apariccedilatildeo de um estado novo o

aquecimento do corpo por exemplo natildeo eacute a condiccedilatildeo que aparece por uacuteltimo a incidecircncia de

raios de sol e sim todas as condiccedilotildees em conjunto Embora a uacuteltima possa ser a decisiva o

que determina qualquer transformaccedilatildeo eacute o quadro causal completo

Por conseguinte natildeo eacute o fato de ser imediatamente anterior no tempo o

que indica a causa de uma mudanccedila mas sim a reuniatildeo dos fatores que juntos formam as

circunstacircncias determinantes Entatildeo o filoacutesofo explica no caso mencionado do aquecimento

do corpo a ordem em que ocorreram os eventos natildeo importa isto eacute em que instantes se datildeo a

retirada da nuvem da frente do sol o direcionamento da lupa ao objeto e assim por diante Um

evento acontecer antes e o outro depois natildeo tem nenhuma influecircncia especiacutefica sobre o efeito

pois diz ele ldquo[] o estado completo eacute a causa do estado seguinte para o qual eacute

essencialmente indiferente a sequecircncia temporal em que suas determinaccedilotildees se reuniramrdquo68

Natildeo obstante o quadro causal no seu conjunto deve necessariamente ser anterior ao efeito

que origina Nas palavras do filoacutesofo ldquoQualquer mudanccedila no mundo material somente pode

surgir se outra a precedeu de modo imediato esse eacute o verdadeiro e total conteuacutedo da lei de

causalidaderdquo69

O princiacutepio de razatildeo do devir se relaciona com as mudanccedilas de estados

na mateacuteria sem no entanto poder modificaacute-la Schopenhauer enfatiza esse ponto mostrando

66

UumlV sect20 p 48 et seq CR sect20 p 68 et seq 67

UumlV sect20 48 CR sect20 68 68

UumlV sect20 p 49 CR sect20 p 70 (grifos do autor) 69

WWWII Kap 4 p 54 MII cap 4 p 48 (grifos do autor)

- 95 -

que a causalidade natildeo se refere a objetos que nesse caso causariam uns aos outros mas

somente agrave entrada e saiacuteda dos estados no tempo70

A causalidade eacute entatildeo uma lei que rege as

alteraccedilotildees nos objetos e que introduz um nexo necessaacuterio entre as causas e os efeitos nas

mudanccedilas ocorridas na mateacuteria Poreacutem como dito ela natildeo determina o surgimento dos

objetos mesmos pois isso significaria originaacute-los tambeacutem no que tecircm de material o que natildeo eacute

caso Nesse sentido diz Schopenhauer ldquo[] evencia-se que a causalidade se liga apenas a

mudanccedilas de forma da mateacuteria incriada e indestrutiacutevel enquanto um verdadeiro surgimento

um vir a existir de algo que nunca foi eacute uma impossibilidaderdquo71

Eacute interessante a exegese que

Bryan Magee em sua obra Schopenhauer elabora sobre esse ponto

Schopenhauer insiste em que a causa de um acontecimento soacute pode ser outro

acontecimento natildeo pode ser um objeto ou um estado de coisas Os objetos e

os estados de coisas entram e saem da existecircncia mediante sequecircncias de

acontecimentos relacionados causalmente e que juntos constituem a histoacuteria

em curso do mundo natural isto eacute o universo fiacutesico em sua totalidade Essa

eacute a relaccedilatildeo causal tal como se concebe na ciecircncia e na fiacutesica newtoniana72

Por conseguinte tanto quanto o efeito a causa tambeacutem surge em um

momento determinado Em virtude disso natildeo se poderia afirmar a existecircncia de uma causa

objetiva primaacuteria como seria a postulaccedilatildeo de um ente originaacuterio nem se poderia assegurar

que fosse a primeira pois ela sempre teraacute de remeter a outra causa mais elevada Desse modo

causa prima e causa sui satildeo consideradas por Schopenhauer como contradictiones in adjeto

jaacute que a lei de causalidade nunca cessa de exigir a busca das causas e diz o filoacutesofo ldquo[] uma

causa primeira eacute tatildeo impensaacutevel como o lugar onde espaccedilo acaba e o instante em que o tempo

comeccedilardquo73

De modo semelhante natildeo se poderia encontrar por meio dessa lei um primeiro

estado da mateacuteria do qual todos os outros fossem decorrentes Em primeiro lugar porque

sendo nada nada dele se derivaria em segundo porque se o estado inicial fosse a causa dos

mais distantes estes tambeacutem existiriam desde sempre e o estado atual natildeo poderia estar

avanccedilado no tempo74

De outra perspectiva supondo-se que tenha havido um primeiro estado

que se tornou causa em um dado momento isso significaria o advento de uma transformaccedilatildeo

anterior a ele que por sua vez tem de ter sido decorrente de outra mudanccedila esta de outra e

assim sucessivamente Como escreve White

70

UumlV sect20 p 50 CR sect20 p 70 71

UumlV sect20 p 51 CR sect20 p 71 72

MAGEE B Schopenhauer Madrid Catedra 1991 p 37 (traduccedilatildeo nossa) 73

UumlV sect20 p 52 CR sect20 p 73 74

UumlV sect20 p 52-53 CR sect20 loc cit

- 96 -

Deus natildeo pode ser uma causa posto que Deus natildeo eacute uma mudanccedila e soacute

mudanccedilas podem ser causas nem mudanccedilas em Deus podem ser causas

posto que natildeo haacute mudanccedilas em Deus Aleacutem disso o mundo dos objetos reais

natildeo pode ser um efeito de Deus como causa pois objetos reais satildeo

substacircncias e portanto diferentemente dos efeitos natildeo possuem iniacutecio Em

qualquer evento a proacutepria noccedilatildeo de causa incausada eacute incoerente pois toda

causa eacute uma mudanccedila e portanto ela proacutepria exige uma causa75

Consequentemente o argumento cosmoloacutegico natildeo tem sentido porque

utiliza o princiacutepio de razatildeo suficiente do devir com o propoacutesito de revogar a validade dele76

ldquoPoisrdquo o filoacutesofo explica ldquosomente se chega agrave causa prima (absolutum) ascendendo do efeito

ao seu fundamento percorrendo-se uma seacuterie de tamanho arbitraacuterio mas natildeo se pode parar

nela sem anular o princiacutepio de razatildeordquo77

Na condiccedilatildeo de forma do princiacutepio de razatildeo a lei de causalidade eacute a

priori vaacutelida para toda a experiecircncia possiacutevel A relaccedilatildeo que ela estabelece determina de

modo necessaacuterio que um dos estados eacute anterior e causa enquanto outro eacute posterior e efeito

Daiacute a denominaccedilatildeo de princiacutepio do devir porque um evento emerge a partir de outro

inclusive com a ordem determinada em que a causa vem primeiro e o efeito depois Nas

palavras de Schopenhauer ldquoPertence ao seu caraacuteter essencial aleacutem disso que a causa sempre

preceda o efeito no tempo e soacute assim se conheceraacute originalmente qual de ambos os estados

ligados pelo nexo causal seria a causa e qual o efeitordquo78

Desse modo a existecircncia de causas

reciacuteprocas seria impossiacutevel pois isso significaria uma confusatildeo entre o que eacute anterior e o que

eacute posterior ou diz o filoacutesofo ldquo[] que o efeito fosse tambeacutem a causa de sua causa e assim

que o seguinte fosse simultacircneo ao precedenterdquo79

As leis da ineacutercia e da permanecircncia da substacircncia satildeo entendidas por

Schopenhauer como corolaacuterios da de causalidade A ineacutercia determina a perpetuaccedilatildeo do

movimento ou do repouso que somente satildeo alterados se alguma causa retirar o corpo do

estado em que se encontra A mudanccedila no estado de movimento ou de repouso eacute um efeito

que exige uma causa para ocorrer A lei da permanecircncia da substacircncia por seu turno eacute

relacionada pelo filoacutesofo agrave mateacuteria que natildeo se modifica com as mudanccedilas de estado

realizadas pela causalidade a qual somente altera o repouso o movimento a forma e a

75

WHITE op cit p 69 (traduccedilatildeo nossa) 76

UumlV sect20 p 55-56 CR sect20 p 76 77

UumlV sect20 p56 CR sect20 p 76-77 78

UumlV sect20 p 57 CR sect20 p 78 79

UumlV sect20 loc cit CR sect20 loc cit

- 97 -

qualidade dos corpos80

A causalidade diz Schopenhauer ldquo[] de modo algum se refere agrave

existecircncia do portador desses estados ao qual se deu o nome de substacircncia justamente para

expressar sua isenccedilatildeo de todo nascer e perecerrdquo81

Como natildeo haacute no entendimento uma forma

pela qual pudeacutessemos pensar o surgimento e o desaparecimento da substacircncia conheceriacuteamos

a priori a lei que afirma sua permanecircncia A explicaccedilatildeo de White sobre esse ponto eacute

elucidativa

Permita-nos imaginar que eu mova um martelo e bata um prego cravando-o

num pedaccedilo de madeira O movimento do martelo uma mudanccedila relativa no

seu estado eacute a causa e o movimento do prego uma mudanccedila relativa no seu

estado eacute o efeito Nesse modelo simplificado entatildeo causa e efeito satildeo

mudanccedilas em objetos reais e Schopenhauer sustenta que isso eacute verdadeiro

para todas as causas e efeitos todas e quaisquer mudanccedilas satildeo causas e

efeitos e consequentemente os objetos reais mesmos natildeo Seu raciociacutenio

aqui eacute que os objetos reais satildeo substacircncias isto eacute eles satildeo constituiacutedos por

mateacuteria e uma vez que para ele a mateacuteria eacute eterna e inalteraacutevel as

substacircncias natildeo tecircm iniacutecio nem fim Daiacute se segue que elas natildeo satildeo

mudanccedilas portanto nem causas nem efeitos82

A funccedilatildeo do entendimento eacute portanto conhecer a causalidade e aplicaacute-la

aos estados aos quadros causais fenomecircnicos Isso significa que ela se relaciona sempre a

algo especificamente determinado ou nas palavras de Schopenhauer ldquoQue estado deve

aparecer neste tempo e neste espaccedilo eacute a determinaccedilatildeo agrave qual unicamente se estende a

legislaccedilatildeo da causalidaderdquo83

Mesmo nos sendo invisiacutevel a substacircncia estaraacute sempre

pressuposta necessariamente e essa eacute outra razatildeo pela qual se pode dizer que o conhecimento

da lei da sua permanecircncia eacute a priori e natildeo a posteriori O filoacutesofo lembra nesse sentido que

o desaparecimento de um corpo natildeo demove a convicccedilatildeo de que ele deve estar em outro lugar

porque temos a certeza caracteriacutestica de um conhecimento a priori de que nada desaparece

pura e simplesmente Um conhecimento a posteriori adquirido por induccedilatildeo natildeo eacute capaz de

promover esse tipo de assentimento que contrapotildee de modo inexoraacutevel ateacute mesmo o que eacute

visto com os proacuteprios olhos Assim ele afirma

Tambeacutem natildeo obtivemos a posteriori a convicccedilatildeo acerca da permanecircncia da

substacircncia em parte porque eacute impossiacutevel na maioria dos casos comprovaacute-

los empiricamente em parte porque todo conhecimento empiacuterico

conhecido apenas por induccedilatildeo possui certeza apenas aproximativa por

consequecircncia precaacuteria e nunca incondicional por isso a seguranccedila da

nossa convicccedilatildeo em relaccedilatildeo agravequela lei eacute de um tipo e natureza totalmente

80

WWV I ersters Buch sect4 p 40 M I Livro I sect4 p 52 81

UumlV sect20 p 58 CR sect20 p 79 (grifos do autor) 82

WHITE op cit p 68 (traduccedilatildeo nossa) 83

WWV I ersters Buch sect4 p 40 M I Livro I sect4 p 52 (grifos do autor)

- 98 -

diferentes da seguranccedila sentida na exatidatildeo de qualquer lei natural

empiricamente descoberta posto que possui uma solidez totalmente

diferente completamente inabalaacutevel e nunca oscilante84

De acordo com isso a lei da permanecircncia da substacircncia eacute transcendental

natildeo proveacutem da experiecircncia ao contraacuterio determina-a Nessa condiccedilatildeo conforma o mundo da

representaccedilatildeo que diz Schopenhauer ldquo[] fica reduzido como um todo a um mero fenocircmeno

cerebralrdquo85

O caraacuteter de necessidade eacute essencial a um conhecimento transcendental e eacute

suficiente tambeacutem para distinguir um saber empiacuterico vaacutelido em certos contextos de outro a

priori vaacutelido em qualquer contexto da experiecircncia possiacutevel Como escreve o filoacutesofo ldquoO

princiacutepio de razatildeo suficiente em todas as suas formas eacute o uacutenico princiacutepio e o uacutenico portador

de toda e qualquer necessidade Pois necessidade natildeo tem outro sentido verdadeiro e claro do

que a inevitabilidade da consequecircncia quando a razatildeo eacute postardquo86

Mesmo no caso de leis empiacutericas providas de generalidade e grau alto de

certeza natildeo se pode tomaacute-las por apodiacuteticas como satildeo as leis da causalidade da ineacutercia e da

permanecircncia da substacircncia Sempre se poderaacute supor a existecircncia ou imaginar a

experimentaccedilatildeo de situaccedilotildees novas em que elas natildeo se verifiquem o que significa que satildeo em

alguma medida dependentes de circunstacircncias que soacute surgem a posteriori Esse eacute o caso

inclusive da lei da gravitaccedilatildeo universal que diz Schopenhauer eacute meramente empiacuterica e

deixa duacutevidas entre os astrocircnomos sobre se vigeria em outros sistemas solares entre corpos

separados pelo vazio absoluto e em outras situaccedilotildees87

Conhecimentos a priori poreacutem satildeo

ancorados no princiacutepio de razatildeo e natildeo deixam margem a questotildees que soacute possam ser

resolvidas com informaccedilotildees e dados empiacutericos Entatildeo ele escreve ldquoEu defendo aleacutem disso

que o princiacutepio de razatildeo eacute a expressatildeo geral para todas essas formas conhecidas por noacutes a

priori e que tudo o que podemos conhecer somente a priori nada mais eacute do que o conteuacutedo

daquele princiacutepio e do que dele se segue []88

Aleacutem da substacircncia a causalidade tambeacutem natildeo modifica as forccedilas da

natureza que conforme Schopenhauer possibilitam que as causas acarretem os efeitos As

forccedilas da natureza possuem um estatuto diferente diz ele ldquo[] satildeo isentas de toda mudanccedila e

nesse sentido fora de todo o tempo por isso mesmo contudo existem sempre e em toda a

84

UumlV sect20 p 59 CR sect20 p 80 (grifos do autor) 85

UumlV sect20 loc cit CR sect20 p 81 86

UumlV sect49 p 181 CR sect49 p 218 (grifos do autor) 87

UumlV sect20 p 59 CR sect20 p 81 88

WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I Livro I sect2 p 46

- 99 -

parte onipresentes e inesgotaacuteveis sempre prontas a se manifestarem logo que a guia da

causalidade oferece a oportunidaderdquo89

A causa e o efeito natildeo satildeo forccedilas universais desse tipo

satildeo mutaccedilotildees particularizadas em pontos especiacuteficos do tempo e do espaccedilo As forccedilas

naturais ao contraacuterio satildeo universais e ubiacutequas Em O mundo Schopenhauer esclarece a

esse respeito que ldquoO que eacute determinado pela lei de causalidade natildeo eacute a sucessatildeo de estados no

mero tempo mas essa sucessatildeo com respeito a um espaccedilo determinado e tambeacutem natildeo a

existecircncia de mudanccedilas meramente num certo espaccedilo mas nesse espaccedilo em um tempo

determinadordquo90

Causas e efeitos satildeo entatildeo acontecimentos singulares que desencadeiam

processos de mutaccedilatildeo com base em forccedilas imutaacuteveis e gerais cuja regularidade de apariccedilatildeo

em cadeias causais evidencia tratarem-se de leis91

Por conseguinte as forccedilas naturais

originaacuterias natildeo satildeo fiacutesicas natildeo possuem explicaccedilatildeo no acircmbito fenomecircnico mas sim

metafiacutesicas e satildeo chamadas por Schopenhauer de ldquoqualitas occultardquo92

A mutaccedilatildeo que desencadearaacute o efeito pode ser de trecircs tipos a saber

causa estrita (Ursache) relacionada aos corpos inorgacircnicos estiacutemulo (Reiz) ligado agraves plantas

e motivo (Motiv) proacuteprio dos animais Schopenhauer considera que as distintas

receptividades a esses tipos de causas satildeo as reais diferenccedilas entre os seres e natildeo suas

caracteriacutesticas de ordem fiacutesica ou quiacutemica93

Sem prejuiacutezo para a forma geral da causalidade

cada tipo de causa estabelece processos diferentes de causaccedilatildeo em uma de trecircs esferas

distintas A causa estrita vige na natureza inorgacircnica e segue a terceira lei de Newton que

estabelece a igualdade de accedilatildeo e reaccedilatildeo em direccedilotildees contraacuterias Os efeitos que daiacute se

originam satildeo parte dos estudos das ciecircncias fiacutesicas e quiacutemicas O estiacutemulo vigora na natureza

orgacircnica sem conhecimento como as plantas e a parte vegetativa da vida animal objetos das

ciecircncias bioloacutegicas Por fim o motivo eacute relacionado agrave vida consciente especificamente a

animal dando origem a decisotildees e accedilotildees Schopenhauer natildeo distingue seres humanos e

animais pelo conhecimento em sentido amplo pois o entendimento eacute suficiente para o influxo

dos motivos em todos eles O entendimento ele afirma ldquo[] eacute o mesmo em todos os animais

e em todos os homens tem em toda parte a mesma forma simples conhecimento da

causalidade passagem do efeito agrave causa e da causa ao efeito e nada aleacutem dissordquo94

89

UumlV sect20 p 60 CR sect20 p 82 90

WWV I ersters Buch sect4 p 39 M I Livro I sect4 p 51 91

UumlV sect20 p 61 CR sect20 p 83 92

UumlV sect20 loc cit CR sect20 loc cit 93

UumlV sect20 p 62 CR sect20 p 84 94

WWV I ersters Buch sect6 p 53 M I Livro I sect6 p 64

- 100 -

Aleacutem de estruturar o conjunto da experiecircncia e regular as interaccedilotildees entre

os fenocircmenos a causalidade possui outra funccedilatildeo a saber a constituiccedilatildeo dos objetos

empiacutericos Como dissemos antes essa eacute a segunda parte da demonstraccedilatildeo da idealidade

transcendental do mundo como representaccedilatildeo e aqui veremos entrar a soluccedilatildeo de

Schopenhauer para a questatildeo acerca da afecccedilatildeo dos sentidos por um objeto exterior Com

efeito a intuiccedilatildeo empiacuterica eacute produzida pelo entendimento com a causalidade juntamente com

as formas da sensibilidade pura tempo e espaccedilo95

Com suas formas diz o filoacutesofo o

entendimento ldquo[] a partir de elementos simples de algumas sensaccedilotildees dos oacutergatildeos dos

sentidos cria e produz esse mundo exterior objetivo []rdquo96

Ao identificar completamente

objeto e representaccedilatildeo Schopenhauer responde agrave questatildeo acerca da objetividade do

conhecimento tornando desnecessaacuterio e incoerente a busca dos mecanismos que conectariam

a representaccedilatildeo e o objeto ao qual supostamente pudesse se referir Com isso

adicionalmente ele considera demonstrada a convivecircncia harmocircnica entre a idealidade

transcendental do mundo como representaccedilatildeo e sua realidade empiacuterica Pois de acordo com

ele assim estaacute assegurado que ldquo[] o objeto natildeo eacute em verdade coisa em si mas como

objeto empiacuterico eacute realrdquo97

A soluccedilatildeo schopenhaueriana para a questatildeo da objetividade conduz

poreacutem a uma formulaccedilatildeo insoacutelita Conforme a argumentaccedilatildeo do filoacutesofo na medida em que a

causalidade soacute atua entre objetos natildeo outorga realidade absoluta ao mundo como

representaccedilatildeo Ela natildeo conecta as coisas em si ao conhecimento mas apenas os objetos entre

eles mesmos sem poder ultrapassaacute-los O mundo da representaccedilatildeo surge entatildeo como um

objeto condicionado pela existecircncia de um sujeito e pelas suas formas que o edificaratildeo de

uma maneira determinada98

E diz Schopenhauer a garantia simultacircnea da idealidade

transcendental e da realidade empiacuterica do mundo autoriza a sustentar como verdadeiro que

ldquo[] o espaccedilo existe somente na minha cabeccedila mas empiricamente minha cabeccedila estaacute no

espaccedilordquo99

Na opiniatildeo de Alexis Philonenko essa tese obscureceu a filosofia

schopenhaueriana para sempre100

Segundo esse autor Bergson foi quem evidenciou o

absurdo do paradoxo no qual se fundem uma parte do espaccedilo e sua totalidade a cabeccedila que

estaacute no espaccedilo eacute uma parte dele e no entanto deveraacute fornecer a representaccedilatildeo total onde ela

95

UumlV sect21 p 67 CR sect21 p 89 96

UumlV sect21 loc cit CR sect21 loc cit 97

WWWII Kap 2 p 30 MII cap 2 p 23 98

WWWII Kap 2 p 30 MII cap 2 p 23 99

WWWII Kap 2 p 30 MII cap 2 p 23 100

PHILONENKO A Schopenhauer Una filosofia de la tragedia Barcelona Anthropos 1989 p 82

- 101 -

mesma se situaraacute Poreacutem escreve Philonenko ldquoSchopenhauer natildeo parece ter sido consciente

da dificuldade Da presenccedila do espaccedilo em mim de sua existecircncia (sic) chega agrave realidade

fenomenal de todos os objetosrdquo101

No segundo capiacutetulo de O mundoII que trata do conhecimento

intuitivo Schopenhauer extrai as uacuteltimas consequecircncias dessa concepccedilatildeo da idealidade do

espaccedilo Ele afirma que percebemos as coisas instantacircnea e imediatamente como estando fora

de noacutes porque natildeo distinguimos a sensaccedilatildeo dos sentidos e o objeto que o entendimento

produz com ela Nunca tomamos consciecircncia da passagem do efeito agrave causa de modo que a

sensaccedilatildeo nos parece ser a proacutepria representaccedilatildeo102

Por isso embora a sensaccedilatildeo seja interna ao

corpo e imediata intuiacutemos as coisas como estando fora de noacutes Com ainda mais razatildeo diz ele

natildeo se distinguiratildeo para noacutes tambeacutem objeto e representaccedilatildeo jaacute que satildeo exatamente o mesmo

De modo semelhante embora o espaccedilo seja interior ao sujeito intuiacutemos os objetos como

exteriores Na verdade a intuiccedilatildeo eacute que tornaria as coisas externas o ldquofora de noacutesrdquo seria uma

criaccedilatildeo do intelecto que contudo natildeo deixaria de ser empiacuterica real e objetiva O que garante

a objetividade eacute ser um produto do entendimento cuja atividade engendra as representaccedilotildees

que se identificam com os objetos Nas palavras de Schopenhauer

Isso se explica porque o fora de noacutes eacute exclusivamente uma determinaccedilatildeo

espacial e o espaccedilo eacute apenas uma forma da nossa faculdade de intuiccedilatildeo isto

eacute uma funccedilatildeo do nosso ceacuterebro entatildeo o fora de noacutes onde situamos os

objetos em funccedilatildeo da sensaccedilatildeo visual estaacute ele proacuteprio na nossa cabeccedila por

isso laacute estaacute seu completo cenaacuterio Semelhante a quando vemos no teatro

montanhas floresta e mar mas estaacute tudo dentro dele103

No tocante ao tempo a objetividade tambeacutem pode ser considerada nessa

perspectiva No quarto capiacutetulo de O MundoII sobre o conhecimento a priori

Schopenhauer argumenta que mesmo sendo subjetivo o tempo se apresenta como algo

objetivo e separado do sujeito na medida em que independentemente de qualquer vontade

flui de modo contiacutenuo e permanente104

Entatildeo diz o filoacutesofo ldquoEle existe somente na cabeccedila

dos seres que conhecem mas a uniformidade de seu fluxo e a independecircncia da vontade daacute a

ele o direito da objetividaderdquo105

101

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 102

Isso eacute verdadeiro somente no caso da visatildeo Com os outros sentidos a transiccedilatildeo do efeito agrave causa pode ser

percebida Cf WWWII Kap 2 p 35 MII cap 2 p 28 103

WWWII Kap 2 p 34 MII cap 2 p 27 (grifos do autor) 104

WWWII Kap 4 p 48 MII cap 4 p 43 105

WWWII Kap 4 p 48 MII cap 4 p 43

- 102 -

Como vimos anteriormente a aprioridade da causalidade remete agrave uniatildeo

de tempo e espaccedilo pelo entendimento bem como agrave necessidade dela e de seus corolaacuterios para

a constituiccedilatildeo do conjunto da experiecircncia Pelo acircngulo dos objetos empiacutericos singulares a

prova da aprioridade da causalidade se daacute por diversas comparaccedilotildees entre as sensaccedilotildees dos

sentidos e a intuiccedilatildeo sensiacutevel Para Schopenhauer essa eacute a demonstraccedilatildeo mais apropriada do

caraacuteter a priori da lei causal qual seja a exposiccedilatildeo da sua necessidade para a constituiccedilatildeo de

toda e qualquer intuiccedilatildeo empiacuterica106

Ele ressalta a exigecircncia de uma forma intelectual para

que a sensaccedilatildeo ganhe feiccedilotildees de objeto e assevera que sem isso haveria somente estiacutemulos

locais sobre os oacutergatildeos dos sentidos Como ele afirma ldquoMesmo nos oacutergatildeos dos sentidos mais

nobres ela natildeo eacute mais do que algo local especiacutefico encerrado em seu tipo de capacidade para

sofrer alteraccedilotildees mas em si mesma sempre um sentimento subjetivo o qual natildeo pode conter

nada objetivo nem parecido a uma intuiccedilatildeordquo107

Por conseguinte a sensaccedilatildeo eacute entendida pelo filoacutesofo como um processo

que ocorre dentro do organismo sob a pele sem apontar para nada fora dele O corpo de cada

animal eacute o ponto inicial da intuiccedilatildeo do mundo e diz Schopenhauer ldquo[] nunca se poderia

chegar a ela se algum efeito natildeo fosse conhecido imediatamente e entatildeo servisse de ponto de

partida Mas este eacute o efeito nos corpos animais Desse modo estes satildeo os objetos imediatos108

do sujeito a intuiccedilatildeo de todos os outros objetos eacute mediada por elesrdquo109

Na obra Die Lehre

von der empirischen Anschauung bei Schopenhauer110

de Johann Baptist Rieffert haacute uma

observaccedilatildeo interessante sobre esse ponto Esse autor nota que considerando somente pelo

ponto de vista do mundo como representaccedilatildeo a sensaccedilatildeo quase natildeo difere da pura e simples

consciecircncia Nas palavras dele

Se enquanto nos mantemos nos domiacutenios do mundo como representaccedilatildeo

nenhuma vez compreendemos com ele [o entendimento] sob a causa de

nossas sensaccedilotildees algo de algum modo transcendente isto eacute se nenhuma vez

aceitamos que esse algo atua por menos que seja ou como atua entatildeo a

mera sensaccedilatildeo e sua representaccedilatildeo correspondente somente se diferenciam

da consciecircncia por serem situadas espaccedilo-temporalmente e esta uacuteltima natildeo

106

WWWII Kap 4 p 51 MII cap 2 p 45 107

UumlV sect21 p 68 CR sect21 p 91 108

No paraacutegrafo sect6 de O mundo e tambeacutem no sect22 de Da quaacutedrupla raiz Schopenhauer corrige a expressatildeo

ldquoobjeto imediatordquo em relaccedilatildeo ao corpo Ele explica que na condiccedilatildeo de ponto de partida do conhecimento o

corpo natildeo eacute de fato um objeto mas eacute apenas sentido difusamente como o lugar onde se datildeo as sensaccedilotildees dos

sentidos provocadas por outros corpos O corpo somente pode ser intuiacutedo como um objeto do modo como todos

os outros satildeo isto eacute como ocupando lugar no espaccedilo o que ocorre apenas com o concurso do entendimento 109

WWV I ersters Buch sect4 p 41 M I Livro I sect4 p 53 110

ERDMANN Benno (Herausgegeber) Abhandlungen zur Philosophie und irhre Geschichte 22 Heft

RIEFFERT J B Die Lehre von der empirische Anschauung bei Schopenhauer Halle Max Niemeyer 1914

- 103 -

Fora isso elas natildeo satildeo diferentes da consciecircncia em nada e interpretar uma

como causa e a outra como efeito seria equivalente a fazer coincidir causa e

efeito111

De qualquer modo Schopenhauer afirma que a mateacuteria do corpo eacute

suscetiacutevel a influecircncias externas mas toda sensaccedilatildeo assim produzida eacute subjetiva e adentra agrave

consciecircncia somente na forma do sentido interno no tempo112

Por isso mesmo para que

possa constituir um objeto exigiraacute algo mais que se combine a ela algo que possa exteriorizar

os dados que ela fornece E esse algo eacute exatamente o entendimento que por meio da

causalidade realiza a passagem do subjetivo ao objetivo Desse modo a formaccedilatildeo da intuiccedilatildeo

empiacuterica parte de um efeito interno aos corpos animais o qual ao ser relacionado agrave sua causa

permite a produccedilatildeo da representaccedilatildeo de um objeto externo113

Schopenhauer explica esse

processo esclarecendo que o entendimento ldquo[] em funccedilatildeo de sua proacutepria forma a priori

isto eacute antes de toda a experiecircncia (que antes disso natildeo eacute possiacutevel) sintetiza a sensaccedilatildeo dada

no corpo como um efeito (uma palavra que soacute ele entende) que como tal deve ter

necessariamente uma causardquo114

A forma do sentido externo eacute parte do intelecto e eacute por meio dela que o

entendimento aponta a causa como algo que estaacute fora do corpo Desse modo escreve o

filoacutesofo ldquo[] nasce para ele o exterior do qual o espaccedilo eacute a possibilidade assim a intuiccedilatildeo

pura a priori tem de fornecer o fundamento do empiacutericordquo115

Natildeo se trata de algo discursivo

ou seja natildeo haacute recurso a conceitos mas eacute uma construccedilatildeo imediata realizada no entendimento

e que soacute tem validade para ele mesmo A experiecircncia natildeo existe antes da accedilatildeo peculiar dele

que diz Schopenhauer ldquo[] tem de criar sozinho o mundo objetivo natildeo pode poreacutem

introduzi-lo na cabeccedila jaacute pronto previamente por meio dos sentidos e das entradas de seus

oacutergatildeosrdquo116

Como resultado todos os objetos empiacutericos e toda a experiecircncia possiacutevel

satildeo produtos do entendimento e das formas do tempo do espaccedilo e da causalidade Para a

construccedilatildeo desses objetos o entendimento utiliza a forma do espaccedilo e os dados das sensaccedilotildees

de certos sentidos sobretudo da visatildeo e do tato Segundo Schopenhauer o olfato a audiccedilatildeo e o

paladar natildeo fornecem informaccedilotildees com as quais se possa circunscrever um objeto no espaccedilo

111

Ibidem p 57 (traduccedilatildeo nossa) 112

UumlV sect21 p 68-69 CR sect21 p91 113

WWV I ersters Buch sect4 p 41 M I Livro I sect4 p 53 114

UumlV sect21 p 69 CR sect21 p 92 (grifos do autor) 115

UumlV sect21 p 69 CR sect21 p92 116

UumlV sect20 p 69 CR sect20 p 93

- 104 -

e portanto natildeo possibilitam nenhuma intuiccedilatildeo objetiva O que fazem diz ele eacute anunciar a

presenccedila de um objeto que jaacute foi conhecido antes por outros meios Apenas a visatildeo e o tato

oferecem elementos para que se aponte um corpo externo como causa de um efeito sentido

remetendo a relaccedilotildees espaciais que todavia natildeo satildeo elas mesmas as proacuteprias intuiccedilotildees117

Nesse sentido o filoacutesofo exemplifica ldquo[] um cego sem matildeos nem peacutes poderia construir para

si o espaccedilo com toda a sua regularidade a priori mas do mundo objetivo teria apenas uma

representaccedilatildeo muito confusardquo118

Esse exemplo eacute interessante pois serve de sustentaccedilatildeo para

as caracteriacutesticas do espaccedilo e do modo de atuaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo do ser referente a ele

A saber uma tal pessoa poderia ter conhecimento do espaccedilo usando apenas a forma do

sentido externo sem os dados advindos da visatildeo e do tato o que evidenciaria tratar-se de uma

forma a priori com relaccedilotildees proacuteprias

A anaacutelise schopenhaueriana sobre esse ponto eacute minuciosa Ele separa

detalhadamente o que eacute do campo da sensaccedilatildeo e o que eacute do campo da intuiccedilatildeo possibilitando

ver claramente o que eacute a forma e o que eacute a mateacuteria dos objetos De modo geral o processo se

daacute como se a sensaccedilatildeo fornecesse as premissas para que o entendimento extraiacutesse as

conclusotildees119

Natildeo seguiremos em pormenor toda a explanaccedilatildeo apenas sublinharemos os

aspectos em que se pode notar o que eacute acrescentado pelo entendimento aos dados dos sentidos

e que permite a produccedilatildeo da figura dos objetos sua magnitude sua distacircncia relativa sua

posiccedilatildeo e outras caracteriacutesticas natildeo devidas agrave sensaccedilatildeo120

Na concepccedilatildeo de Schopenhauer a

sensaccedilatildeo eacute um fato imediato diz ele ldquo[] um simples datum para o entendimento que

sozinho eacute capaz de interpretaacute-lo como efeito de uma causa totalmente diferente que ele intui

como algo externo isto eacute colocado no espaccedilo forma intelectual anterior a toda a experiecircncia

preenchendo-o e ocupando-ordquo121

Ele expotildee detalhadamente e com recurso a muitos exemplos

que a intuiccedilatildeo difere de modo radical da sensaccedilatildeo e que esta por si mesma natildeo apresenta

nada semelhante a um objeto De acordo com ele a conexatildeo entre o efeito e sua causa ldquo[] eacute

o modo de conhecimento do entendimento puro sem o qual nunca se teria intuiccedilatildeo mas

apenas sobraria uma consciecircncia embaccedilada vegetal das mudanccedilas no objeto imediato

[]rdquo122

Sua demonstraccedilatildeo da aprioridade da causalidade nesse aspecto deixa patente que ela

117

UumlV sect20 p 70 et seq CR sect20 p 93 et seq 118

UumlV sect20 p 71 CR sect20 p 94 119

UumlV sect21 p 71 CR sect21 p94 120

A exposiccedilatildeo completa pode ser conferida no sect 21 de UumlV 121

WWWII Kap 4 p 51 MII cap 4 p 45 122

WWV I ersters Buch sect4 p 41-42 M I Livro I sect4 p 54 (grifos do autor)

- 105 -

eacute condiccedilatildeo da intuiccedilatildeo empiacuterica que toda experiecircncia jaacute conteacutem o seu conceito e que por

tanto ela natildeo eacute obtida empiricamente123

Por conseguinte a passagem realizada pelo entendimento da sensaccedilatildeo

subjetiva agrave sua causa exterior conforma os objetos com suas caracteriacutesticas empiacutericas e

formais124

Conforme a argumentaccedilatildeo de Schopenhauer caso fosse obra da simples sensaccedilatildeo

a intuiccedilatildeo empiacuterica seria muito distinta de tudo o que conhecemos Na medida em que em

qualquer oacutergatildeo os sentidos as sensaccedilotildees natildeo satildeo simultacircneas e sim sucessivas o objeto seria

intuiacutedo em partes desconexas e sem referecircncia a nenhum todo coeso ou entatildeo cada sensaccedilatildeo

singular seria tomada por um objeto distinto De modo semelhante duas sensaccedilotildees idecircnticas

em um dos oacutergatildeos dos sentidos por exemplo no tato levaria a confundir ou a identificar

objetos diferentes pela indistinccedilatildeo das impressotildees No sentido da visatildeo natildeo poderiacuteamos

intuir nenhuma figura distacircncia entre objetos posiccedilatildeo ou perspectiva pois a mera sensaccedilatildeo

da retina eacute como uma tela manchada de muitas cores125

Natildeo obstante nada disso acontece em

virtude do entendimento que conforma os dados dos sentidos segundo a causalidade e aponta

uma causa externa uniforme para os diferentes efeitos sentidos no corpo126

De outra perspectiva haacute intuiccedilotildees para as quais a simples sensaccedilatildeo eacute

insuficiente o que mostra por outra via a mesma dependecircncia da representaccedilatildeo empiacuterica

com relaccedilatildeo ao entendimento Por exemplo diz Schopenhauer o deslocamento de um objeto

no espaccedilo num certo tempo natildeo eacute uma representaccedilatildeo que possa ser percebida nem que surja

somente com a sensaccedilatildeo Ao contraacuterio ele escreve eacute o ldquo[] intelecto que deve trazer antes

de toda experiecircncia a intuiccedilatildeo do espaccedilo do tempo e com elas a possibilidade do

movimento []rdquo127

Aleacutem do movimento muitas representaccedilotildees que satildeo fundamentos

realidade como a causalidade a materialidade as trecircs dimensotildees do espaccedilo a accedilatildeo de um

corpo sobre outro a extensatildeo a impenetrabilidade a coesatildeo a figura a dureza a perspectiva

e o repouso nenhuma delas pode ser obtida somente pelos sentidos128

As relaccedilotildees do

espaccedilo do tempo e da causalidade portanto natildeo satildeo apreendidas do mundo exterior e natildeo

adentram o intelecto por meio dos sentidos mas satildeo anteriores e de origem interna As

intuiccedilotildees do mundo da experiecircncia resultam de um processo em que o intelecto utiliza dados

123

WWV I ersters Buch sect4 p 43 M I Livro I sect4 p 55 124

WWV I ersters Buch sect4 p 42 M I Livro I sect4 p 54 125

UumlV sect21 p 74 CR sect21 p 98 126

UumlV sect21 p 69 CR sect21 p 92 127

UumlV sect21 p 73 CR sect21 p 96 128

UumlV sect21 p 73 CR sect21 96-97

- 106 -

sensoriais a posteriori determinando-os com formas a priori e somente nesse sentido

Schopenhauer admite que se fale em intuiccedilatildeo intelectual129

Uma prova adicional dessa teoria eacute o aprendizado do modo de utilizaccedilatildeo

do entendimento por meio de exerciacutecio e experiecircncia130

Embora faccedila parte do intelecto a

priori a maneira de utilizaacute-lo no conhecimento do mundo seria aprendida com tempo e uso

Bebecircs receacutem-nascidos diz Schopenhauer vivem durante um tempo em uma espeacutecie de

torpor em que o entendimento ainda natildeo comeccedilou a exercer sua funccedilatildeo de transformar

sensaccedilotildees em objetos Em seus primeiros meses de vida eles aprenderiam continuamente com

os dados providos pelos oacutergatildeos dos sentidos experimentando-os em muitas situaccedilotildees

diferentes e assim aprenderiam a usar seu entendimento Quando isso ocorre o mundo

objetivo vai se formando paulatinamente no seu intelecto o que afirma o filoacutesofo pode ser

notado ldquo[] no aspecto inteligente que seu olhar adquire e em certa intencionalidade nos seus

movimentos principalmente quando pela primeira vez eles demonstram com um sorriso

amaacutevel que reconhecem quem cuida delesrdquo131

Tambeacutem desse ponto de vista se revela que o

entendimento estaacute ligado ao conhecimento do mundo e que as meras sensaccedilotildees que os bebecircs

jaacute possuem ao nascer natildeo satildeo suficientes para conformarem objetos reconheciacuteveis

Schopenhauer apresenta ainda algumas confirmaccedilotildees adicionais da

aprioridade da causalidade dentre elas o aspecto de necessidade e o caraacuteter apodiacutetico da

convicccedilatildeo que a acompanha A seguranccedila que ela promove eacute como dissemos de um tipo

totalmente distinto da que se obteacutem atraveacutes de conhecimentos empiacutericos ainda que bastante

seguros No dizer do filoacutesofo ldquoPodemos por exemplo pensar que a lei da gravitaccedilatildeo

universal parasse de atuar uma vez mas natildeo que isso aconteccedila sem uma causardquo132

Do exposto seguem-se as duas funccedilotildees do entendimento De um lado a

conformaccedilatildeo do conjunto da experiecircncia pela uniatildeo de tempo e espaccedilo e de outro a

constituiccedilatildeo dos objetos empiacutericos pela passagem do efeito sentido internamente agrave causa

externa Nesse ponto Gardiner apresenta uma interessante indagaccedilatildeo ldquo[] ainda se pode

perguntar como os objetos perceptuais podem ao mesmo tempo ser considerados como

produzidos por nossa mente que age de um modo especial sobre os dados da sensaccedilatildeo e

129

WWV I ersters Buch sect4 p 41 M I Livro I sect4 p 53 130

UumlV sect21 p 90 CR sect21 p 117 131

UumlV sect21 p 90-91 CR sect21 p 117 132

UumlV sect23 p 112 CR sect23 p 140 (grifos do autor)

- 107 -

como causa e origem desses dadosrdquo133

De fato a indagaccedilatildeo eacute instigante mas tambeacutem natildeo

deixa de secirc-lo a deduccedilatildeo pela qual Schopenhauer somente por meio da causalidade deriva o

mundo e o conhecimento intuitivo do mundo No seu entender essa lei eacute a uacutenica forma do

entendimento a uacutenica de fato necessaacuteria diz ele e ldquo[] de modo nenhum aquela complicada

engrenagem das doze categorias kantianas cuja nulidade eu demonstreirdquo134

Como resultado

a causalidade existe a priori como condiccedilatildeo da intuiccedilatildeo e do universo empiacuterico aplica-se

somente ao mundo sensiacutevel natildeo agrave relaccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa em si nem aos objetos

tomados em si mesmos ldquoCom issordquo diz o filoacutesofo ldquoconcluiacutemos que se encontram em noacutes

todos os elementos da intuiccedilatildeo empiacuterica que natildeo conteacutem informaccedilatildeo de nada que seja pura e

simplesmente distinto de noacutes uma coisa em sirdquo135

214 ndash Teoria da razatildeo

A razatildeo eacute definida por Schopenhauer como a faculdade das

representaccedilotildees abstratas os conceitos que satildeo derivados das intuiccedilotildees Esses dois tipos de

representaccedilatildeo segundo o filoacutesofo relacionam-se como a luz do sol agrave da lua isto eacute uma eacute

imediata e proacutepria enquanto a outra eacute refletida e relativa136

Dentre os animais somente os

seres humanos possuem a faculdade da razatildeo com seus conceitos e inclusive tecircm o ceacuterebro

mais volumoso em funccedilatildeo disso137

Essa seria a uacutenica diferenccedila entre o intelecto humano e o

do animal responsaacutevel pela grande distinccedilatildeo entre os modos de vida de uns e de outros138

Para Schopenhauer os filoacutesofos de sua eacutepoca natildeo compreenderam corretamente a natureza da

razatildeo e contra a tradiccedilatildeo filosoacutefica e a opiniatildeo comum ignoraram a diferenccedila completa que

ela promove entre vida e o intelecto de homens e animais A visatildeo de Kant teria obscurecido e

mistificado conceito de razatildeo e por sua influecircncia os poacutes-kantianos teriam ampliado e

aprofundado seus erros Nesse sentido afirma Schopenhauer

133

GARDINER op cit p 160 (traduccedilatildeo nossa) 134

UumlV sect21 p 98 CR sect21 p 124 135

UumlV sect21 p 104 CR sect21 p 130 136

WWV I ersters Buch sect8 p 70 M I Livro I sect8 p 81 137

UumlV sect26 p 121 CR sect26 p 149 138

WWV I ersters Buch sect8 p 72 M I Livro I sect8 p 83

- 108 -

Quem quiser se dar ao trabalho de percorrer todo o volume de escritos

filosoacuteficos que surgiram desde Kant perceberaacute que assim como as falhas do

priacutencipe satildeo pagas por todo o povo tambeacutem os erros dos grandes espiacuteritos

espalham sua influecircncia prejudicial em geraccedilotildees inteiras agraves vezes se

difundem por seacuteculos sim crescendo e se propagando por fim degenerando

em monstruosidades []139

O principal erro dos filoacutesofos poacutes-kantianos teria sido o de transformar a

razatildeo em uma faculdade capaz de conhecimento imediato do suprassensiacutevel ao mesmo tempo

em que sua verdadeira capacidade de abstraccedilatildeo teria sido delegada ao entendimento e a

intuiccedilatildeo sensiacutevel agrave sensibilidade No entender de Schopenhauer eles utilizaram o nome da

razatildeo para esconder ldquo[] uma faculdade totalmente falsa de conhecimentos imediatos

metafiacutesicos chamados suprassensiacuteveis denominar entendimento agrave verdadeira razatildeo

negligenciar o real entendimento que eles natildeo possuem e atribuir sua funccedilatildeo intuitiva agrave

sensibilidaderdquo140

Na concepccedilatildeo schopenhaueriana os conceitos satildeo formados pela

decomposiccedilatildeo de representaccedilotildees intuitivas cujos traccedilos caracteriacutesticos satildeo isolados de modo a

identificarem-se qualidades e relaccedilotildees abstratas natildeo referidas a nenhum objeto em particular

A razatildeo desse modo eacute uma faculdade de abstraccedilatildeo (Abstraktionsvermoumlgen)141

Segundo a

explicaccedilatildeo de Magee ldquoA relaccedilatildeo que se daacute entre os conceitos e as experiecircncias e percepccedilotildees eacute

uma relaccedilatildeo do geral ao particular do abstrato ao concreto Toda experiecircncia ou percepccedilatildeo

real eacute imediata especiacutefica uacutenica Por isso natildeo podemos retecirc-la nem comunicaacute-lardquo142

Os

conceitos podem apenas ser pensados natildeo intuiacutedos porque natildeo possuem relaccedilatildeo direta com

os objetos e com sua intuitividade Em certo sentido eles satildeo mais elementares do que as

intuiccedilotildees pois diz Schopenhauer ldquoA constituiccedilatildeo de um conceito se daacute por meio da exclusatildeo

de muito do que eacute dado intuitivamente para que o restante possa ser pensado por si assim ele

seraacute um pensamento menor do que intuitivordquo143

Os conceitos mais abstratos e gerais seratildeo os

menos representaacuteveis empiricamente e os mais vazios aqueles cujo conteuacutedo eacute mais reduzido

como por exemplo os de ser essecircncia devir entre outros144

De acordo com isso diz o

filoacutesofo quanto mais eacute pensado sob um conceito menos eacute pensado nele145

139

WWV I ersters Buch sect8 p 75 M I Livro I sect8 p 85 140

WWWII Kap 6 p 81 MII cap 6 p 81 141

UumlV sect26 p 121 CR sect26 p 149 142

MAGEE B op cit p 48 (traduccedilatildeo nossa) 143

UumlV sect26 p 121 CR sect26 p 150 144

UumlV sect26 p 122 CR sect26 p 150 145

WWWII Kap 6 p 76 MII cap 6 p 76

- 109 -

Schopenhauer descreve os modos em que as representaccedilotildees abstratas

podem se ligar denominando-os ldquoesquematismo dos conceitosrdquo (Schematismus der

Begriffe)146

Todos os conceitos possuiriam esferas preenchidas pelos objetos aos quais se

estendem relacionadas entre si de cinco distintas maneiras segundo as interligaccedilotildees possiacuteveis

entre seus conteuacutedos As esferas conceituais se unem ou se separam de acordo com o que tecircm

ou natildeo em comum e suas interaccedilotildees podem ser expostas em circunferecircncias que se conectam

de modos especiacuteficos147

Schopenhauer entende que todas as combinaccedilotildees possiacuteveis de

conceitos podem ser reduzidas agravequeles cinco modos e que a partir deles se deduzem a teoria e

as propriedades dos juiacutezos Para ele julgar eacute precisamente reconhecer as ligaccedilotildees entre as

esferas formando-se silogismos ou cadeias mais longas de raciociacutenios A loacutegica se

identificaria com as regras de inferecircncia que orientam as combinaccedilotildees de esferas conceituais

de modo que diz o filoacutesofo ldquoEla eacute o conhecimento geral do modo de atuaccedilatildeo da razatildeo

expresso na forma de regras conhecido pela auto-observaccedilatildeo dela e pela abstraccedilatildeo de todo

conteuacutedo conhecidordquo148

Os conceitos satildeo simbolizados por palavras que os fixam e os tornam

utilizaacuteveis sem as quais eles natildeo poderiam servir agraves operaccedilotildees intelectuais a que se destinam

Os animais seriam desprovidos de fala em funccedilatildeo da ausecircncia de razatildeo pois afirma

Schopenhauer ldquo[] por natildeo possuiacuterem nenhuma abstraccedilatildeo natildeo satildeo capazes de nenhum

conceito e consequentemente natildeo possuem linguagemrdquo149

A riqueza de recursos das liacutenguas

sua enorme quantidade de vocaacutebulos com funccedilotildees e usos distintos suas regras gramaticais

formas loacutegicas conexotildees entre ideias tudo seria atribuiacutedo agrave razatildeo A linguagem seria entatildeo

o primeiro resultado da razatildeo e ao mesmo tempo seu instrumento necessaacuterio150

Com efeito a

linguagem eacute fundamental para que a razatildeo possa realizar sua funccedilatildeo proacutepria que eacute a de expor

a apreensatildeo intuitiva do mundo em conceitos tornando-se indispensaacutevel agraves grandes

realizaccedilotildees promovidas na vida humana pela abstraccedilatildeo151

Por conseguinte diz Schopenhauer

146

WWV I ersters Buch sect9 p 82 M I Livro I sect9 p 92 147

Esferas de conceitos idecircnticos satildeo representadas com um uacutenico ciacuterculo esferas de conceitos em que um

engloba o outro satildeo figuradas com um ciacuterculo menor dentro de outro maior esferas que compreendem em si

exatamente duas ou mais esferas satildeo expostas com um ciacuterculo dividido na quantidade correspondente de partes

duas esferas que possuem somente uma parte em comum satildeo representadas com dois ciacuterculos em intersecccedilatildeo

por fim uma esfera que conteacutem outras mas natildeo somente elas eacute representa com uma esfera maior englobando

outras menores com sobra de espaccedilo interno Cf WWV I ersters Buch sect9 p 80-81 M I Livro I sect9 p 90-91 148

WWV I ersters Buch sect9 p 83 M I Livro I sect9 p 93 149

UumlV sect26 p 122 CR sect26 p 149 150

WWV I ersters Buch sect8 p 73 M I Livro I sect8 p 83 151

WWV I ersters Buch sect8 p 73 M I Livro I sect8 p 83-84

- 110 -

ldquoCom o aprendizado dela torna-se consciente todo o mecanismo da razatildeo assim o essencial

da loacutegicardquo152

Os conceitos satildeo como foacutermulas ou algoritmos que contecircm as operaccedilotildees

de pensamento153

As intuiccedilotildees empiacutericas natildeo satildeo uacuteteis para esse propoacutesito porque trazem

muitas informaccedilotildees e inviabilizam a reflexatildeo sobre relaccedilotildees e caracteriacutesticas gerais dos

objetos Como o filoacutesofo explica ldquo[] se algueacutem quisesse manter cada representaccedilatildeo presente

na imaginaccedilatildeo teria de arrastar um peso desnecessaacuterio e seria assim desorientado com o uso

dos conceitos poreacutem pensam-se soacute as partes e relaccedilotildees de todas essas representaccedilotildees que

cada fim exigerdquo154

Pensar eacute portanto manejar intelectualmente os conceitos conhecer por

seu turno eacute consolidar conceitualmente o que foi conhecido de outra forma Eacute interessante

observarmos que para Schopenhauer os dois grandes tipos de objetos em que se divide o

pensamento natildeo satildeo os conceitos e as intuiccedilotildees como poderia parecer mas os conceitos e os

sentimentos Nas palavras dele ldquo[] seja o que for pertence ao conceito de sentimento em

cuja imensa esfera se abarca as coisas mais heterogecircneas as quais natildeo se compreende como

se reuacutenem enquanto natildeo se notou que concordam somente na consideraccedilatildeo negativa de natildeo

serem conceitos abstratosrdquo155

Nesse sentido as sensaccedilotildees dos sentidos e as intuiccedilotildees tanto

empiacutericas quanto puras encaixam-se no conceito de sentimento156

Schopenhauer prefere utilizar o termo ldquoreflexatildeordquo que lhe parece deixar

mais evidente o caraacuteter derivado e secundaacuterio da abstraccedilatildeo racional157

De acordo com ele

trata-se de ldquo[] uma aparecircncia repetida um conhecimento derivado do intuitivo mas com um

fundamento de outra natureza e composiccedilatildeo que natildeo conhece as formas daquele e aleacutem

disso o princiacutepio de razatildeo que rege todos os objetos possui aqui uma feiccedilatildeo totalmente

diferenterdquo158

Por meio dos conceitos pode-se tanto utilizar quanto dispensar informaccedilotildees

sobre passado e futuro prescindir da presenccedila dos objetos bem como deter-se sobre o

essencial de muacuteltiplas representaccedilotildees inclusive as ausentes159

Essas propriedades seriam a

origem da capacidade de planejar ponderar projetar o futuro com base nas memoacuterias do

passado para aleacutem das impressotildees intuitivas do momento Enfim satildeo os conceitos que

152

UumlV sect26 p 123 CR sect26 p 151 153

UumlV sect27 p 124 CR sect27 p 152-153 154

UumlV sect27 p 124 CR sect27 p 153 155

WWV I ersters Buch sect11 p 92-93 M I Livro I sect11 p 100 156

WWV I ersters Buch sect11 p 93-94 M I Livro I sect11 p 100-101 157

UumlV sect27 p 124 CR sect27 p 153 158

WWV I ersters Buch sect8 p 72 M I Livro I sect8 p 82-83 159

WWV I ersters Buch sect8 p 72-73 M I Livro I sect8 p 83

- 111 -

possibilitam todo tipo de conhecimento abstrato especialmente o das ciecircncias ao permitir o

pensamento do particular por meio do geral Isso soacute se torna possiacutevel diz o filoacutesofo ldquo[] por

meio do dictum de omni et nullo o qual por seu turno soacute eacute possiacutevel pela presenccedila dos

conceitosrdquo160

Sinteticamente nas palavras de Gardiner

Em geral Schopenhauer sustenta que a ldquorazatildeordquo eacute sempre e necessariamente

improdutiva natildeo criativa que isso seja assim para ele segue-se da

explicaccedilatildeo que deu de que os conceitos e juiacutezos ldquorefletemrdquo simplesmente ou

reproduzem aquilo de que tomamos consciecircncia por meio da percepccedilatildeo ou

experiecircncia diretas161

Ao lado dos conceitos haacute um tipo de representaccedilatildeo que Schopenhauer

denomina Phantasma e que corresponde agraves criaccedilotildees da imaginaccedilatildeo162

Ele utiliza a palavra

em latim que significa visatildeo apariccedilatildeo ou tambeacutem ideia ou noccedilatildeo fictiacutecia Trata-se de uma

representaccedilatildeo que embora intuitiva natildeo surge diretamente das sensaccedilotildees nem se liga

imediatamente agrave experiecircncia Representaccedilotildees desse tipo podem ser utilizadas pelo

pensamento no lugar dos conceitos mas se diferenciam destes porque se referem aos objetos

em particular enquanto eles satildeo sempre gerais Conforme a explicaccedilatildeo do filoacutesofo ldquo[]

quando se invoca a visatildeo imaginaacuteria de algum cachorro por exemplo como representaccedilatildeo

ele deve ser totalmente determinado isto eacute com certo tamanho forma cor e etc o conceito

poreacutem cujo representante ele eacute natildeo possui nenhuma dessas determinaccedilotildeesrdquo163

Uma

representaccedilatildeo assim como dissemos pode ser utilizada como exemplar de um conceito

poreacutem impropriamente pois este uacuteltimo natildeo pode conter determinaccedilotildees arbitrariamente

pensadas De qualquer modo para que atividade do pensamento se realize satildeo requeridas

palavras ou essas imagens pois sem nenhuma delas o pensamento natildeo teria nenhum meio

onde se desenvolver164

Schopenhauer menciona ainda outro tipo de representaccedilatildeo que ele

nomeia ldquointuiccedilotildees normaisrdquo (Normalanschauungen)165

Analisando a primeira ediccedilatildeo de Da

quaacutedrupla raiz e os escritos schopenhaerianos de juventude Yasuo Kamata informa que

essa expressatildeo foi inspirada pela Criacutetica do Juiacutezo de Kant No texto ldquoSchopenhauer e Kant

160

UumlV sect27 p 125 CR sect27 p 154 Dictum de omni e Dictum de nullo satildeo dois princiacutepios considerados

durante a Idade Meacutedia como as bases das conclusotildees dos silogismos O primeiro significa que tudo o que se

pode afirmar de modo universal sobre algo pode tambeacutem ser afirmado de modo particular O segundo que tudo

o que se nega de modo universal sobre algo pode-se tambeacutem negar de modo particular 161

Ibidem p 170 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 162

UumlV sect28 p 125 CR sect28 p 154 163

UumlV sect28 p 126 CR sect28 p 155 164

UumlV sect28 p 126 CR sect28 p 155-156 165

UumlV sect39 p 161 CR sect39 p 193

- 112 -

A recepccedilatildeo da bdquoAnaliacutetica transcendental‟ da Criacutetica da razatildeo pura na filosofia primeira de

Schopenhauerrdquo esse autor escreve que ldquoA expressatildeo bdquointuiccedilatildeo normal‟ foi inspirada

evidentemente pela bdquoideia normal esteacutetica‟ (Normalidee) na Criacutetica do juiacutezo como atesta seu

caderno de anotaccedilotildees (HNII 288)rdquo166

Para Schopenhauer tais representaccedilotildees satildeo intuitivas

isto eacute determinadas e ao mesmo tempo gerais pois satildeo formas dos fenocircmenos e se aplicam a

todos os objetos possiacuteveis Ele as define como ldquofiguras e nuacutemeros que legislam para toda a

experiecircncia e por isso unem a grande amplitude do conceito com a determinaccedilatildeo total da

representaccedilatildeo singularrdquo167

No caso do espaccedilo elas satildeo as intuiccedilotildees tiacutepicas da geometria no

caso do tempo as intuiccedilotildees normais satildeo representadas pelos nuacutemeros Em nota Schopenhauer

afirma que as ideias de Platatildeo poderiam ser entendidas como intuiccedilotildees normais pois seriam

vaacutelidas tanto para a parte formal quanto para a parte material dos objetos Seriam portanto

ldquo[] representaccedilotildees completas que como tais seriam totalmente determinadas e ao mesmo

tempo como os conceitos abarcariam muito sob si []rdquo168

Conforme Schopenhauer pensar eacute raciocinar utilizando palavras e as

intuiccedilotildees empiacutericas satildeo mais bem compreendidas quando relacionadas aos conceitos por

meio do juiacutezo Isso ocorre quando os conceitos satildeo buscados como regras que regem

representaccedilotildees sensiacuteveis dadas ou ao contraacuterio quando se buscam os dados empiacutericos nas

intuiccedilotildees para justificar um conceito Essa atividade eacute realizada pela faculdade de julgar

(Urteilskraft) cujo produto seraacute um juiacutezo reflexionante no primeiro caso ou determinante no

segundo169

Como escreve o filoacutesofo ldquoA faculdade do juiacutezo eacute assim a mediadora entre o

conhecimento intuitivo e o abstrato ou entre o entendimento e a razatildeordquo170

Embora tambeacutem

possa relacionar conceitos em um juiacutezo sua funccedilatildeo preciacutepua eacute a de subsumir a intuiccedilatildeo sob

conceitos ldquoDaiacuterdquo conclui Schopenhauer ldquoa dificuldade das ciecircncias estaacute tambeacutem nos juiacutezos

fundamentais e natildeo nas conclusotildees a partir deles Deduzir eacute faacutecil julgar difiacutecilrdquo171

Apesar de toda a importacircncia dos conceitos o conhecimento intuitivo

tem precedecircncia sobre o abstrato pois eacute o nuacutecleo ao qual este se refere e o pressuposto dele

Para Schopenhauer as concepccedilotildees e pensamentos originais assim como as grandes invenccedilotildees

166

KAMATA Y Schopenhauer e Kant A recepccedilatildeo da ldquoAnaliacutetica transcendentalrdquo da Criacutetica da razatildeo pura na

filosofia primeira de Schopenhauer Revista ethic Florianoacutepolis v 11 n 1 p 68 ndash 81 julho de 2012 p 73

(grifos do autor) 167

UumlV sect39 p 161 CR sect39 p 193-194 168

UumlV sect39 p 161 CR sect39 p 194 169

UumlV sect28 p 127 CR sect28 p 156 170

UumlV sect28 p 127 CR sect28 p 156 171

WWWII Kap 7 p 105 MII cap 7 p 106

- 113 -

que desvendam mecanismos da natureza satildeo obra do entendimento natildeo da razatildeo satildeo a

apresentaccedilatildeo correta da causa de um efeito e a compreensatildeo da forccedila natural subjacente172

Toda teoria filosofia ou ciecircncia precisa ter por base uma intuiccedilatildeo empiacuterica caso contraacuterio

careceraacute de relaccedilatildeo com o real e na verdade natildeo ensinaraacute nada sobre o mundo Nas palavras

dele ldquoSe a explicaccedilatildeo possui um tal nuacutecleo assemelha-se com uma nota bancaacuteria que tem o

equivalente em caixa qualquer outra que provenha de meras combinaccedilotildees de conceitos eacute

como uma nota bancaacuteria que deposita como garantia de novo apenas outro papelrdquo173

Em

suma um discurso feito apenas com conceitos e seus desmembramentos natildeo se refere a nada

existente concretamente pois a razatildeo pode fixar o conhecido intuitivamente ligaacute-lo mas

nunca produzi-lo174

Os conceitos sempre ficaratildeo aqueacutem das sutis distinccedilotildees das intuiccedilotildees diz

Schopenhauer aproximando-se delas como um mosaico se aproxima da imagem que

representa isto eacute com falhas e descontinuidades175

Sobre esse ponto Gardiner observa de

modo interessante que

Como ilustraccedilatildeo Schopenhauer menciona a forma em que com frequecircncia

somos conscientes da impossibilidade de verbalizar a expressatildeo do rosto de

uma pessoa ldquoo sentido dos traccedilosrdquo parece atrapalhar toda descriccedilatildeo precisa

ou adequada apesar de natildeo haver duacutevida de que bdquosentimos‟ e

compreendemos perfeitamente e podemos falar sobre ele com autecircntica

propriedade176

Por conseguinte a natureza dos conceitos eacute peculiar e essa peculiaridade

se mostra tambeacutem no tipo de conhecimento que eles fornecem Natildeo se pode conhecer de

modo evidente de sua essecircncia tampouco exigir uma comprovaccedilatildeo concreta deles pois isso

soacute poderia ser feito com algo de natureza totalmente distinta a saber com uma intuiccedilatildeo

empiacuterica177

Como explica o filoacutesofo ldquoEles se deixam somente pensar natildeo intuir e apenas os

efeitos que por meio deles os homens produzem satildeo realmente objetos de experiecircnciardquo178

Um conceito poderaacute ser fundamentado por outro ou por uma intuiccedilatildeo no entanto no fim da

cadeia de raciociacutenios deveraacute estar um conhecimento intuitivo Segundo Schopenhauer essa eacute

uma diferenccedila fundamental entre as classes abstrata e intuitiva de representaccedilotildees pois ele

afirma ldquo[] nesta o princiacutepio de razatildeo sempre exige apenas ligaccedilatildeo com outra representaccedilatildeo

da mesma classe enquanto as representaccedilotildees abstratas poreacutem ao fim exigem uma referecircncia

172

WWV I ersters Buch sect6 p 53-54 M I Livro I sect6 p 65 173

UumlV sect28 p 128 CR sect28 p 158 174

WWV I ersters Buch sect6 p 53 M I Livro I sect6 p 65 175

WWV I ersters Buch sect12 p 99 M I Livro I sect12 p 106-107 176

GARDINER op cit p 169 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 177

WWV I ersters Buch sect9 p 76 M I Livro I sect9 p 86 178

WWV I ersters Buch sect9 p 76 M I Livro I sect9 p 86

- 114 -

a uma representaccedilatildeo de outra classerdquo179

Numa palavra os conceitos englobam e refletem os

objetos do mundo empiacuterico relacionando-se entre si de acordo com as relaccedilotildees possiacuteveis

entre suas esferas Na interpretaccedilatildeo de Gardiner

Os conceitos estatildeo em realidade essencialmente adaptados a fins praacuteticos

toda filosofia que passe por alto sobre esse ponto estaraacute condenada em

algum momento a interpretar mal e a distorcer a relaccedilatildeo entre pensamento e

realidade Por isso quando trata de pensamento e linguagem assim como da

nossa consciecircncia perceptiva do mundo fenomecircnico Schopenhauer insiste

primariamente nos fatores pragmaacuteticos que segundo ele entende

determinam os traccedilos caracteriacutesticos do conhecimento comum180

O princiacutepio de razatildeo do conhecer (Satz vom zureichenden Grunde des

Erkennens) ou principium sufficientis cognoscendi estabelece uma relaccedilatildeo necessaacuteria entre

os conceitos segundo a qual todo e qualquer juiacutezo teraacute de ser justificado Se a razatildeo eacute dada o

juiacutezo pode ser tomado por verdadeiro e a verdade eacute entatildeo definida por Schopenhauer como

bdquo[] a relaccedilatildeo de um juiacutezo com algo diferente dele que seraacute chamado seu fundamento

[]rdquo181

Portanto natildeo eacute possiacutevel nenhum conhecimento que seja imediatamente verdadeiro

pois escreve o filoacutesofo ldquoToda verdade eacute uma relaccedilatildeo de um juiacutezo com algo fora dele e

verdade intriacutenseca eacute uma contradiccedilatildeordquo182

O fundamento de um juiacutezo pode ser de quatro tipos a saber loacutegico

empiacuterico transcendental e metaloacutegico cada um com uma espeacutecie de verdade correspondente

Schopenhauer define a verdade loacutegica como a fundamentaccedilatildeo de um juiacutezo em outro o que

pode ser feito de modo imediato ou mediato pela interferecircncia de um terceiro entre eles183

A

silogiacutestica seria o cacircnone da verdade loacutegica que reuniria as regras de aplicaccedilatildeo do princiacutepio

de razatildeo suficiente do conhecer entre os juiacutezos Nesse sentido diz o filoacutesofo ldquo[] a loacutegica eacute

uma simples paraacutefrase dele [do princiacutepio] na verdade apenas no caso em que o fundamento

da verdade natildeo eacute empiacuterico ou metafiacutesico mas loacutegico ou metaloacutegicordquo184

Gardiner chama a

atenccedilatildeo para esse ponto sublinhando que Schopenhauer resumia a loacutegica agrave silogiacutestica e natildeo

considerava as regras de deduccedilatildeo como criaccedilotildees dos loacutegicos Para o ele praticariacuteamos os

cacircnones de inferecircncias loacutegicas naturalmente e sem necessidade de estudo Portanto como

afirma Gardiner

179

WWV I ersters Buch sect9 p 78 M I Livro I sect9 p 88 (grifos do autor) 180

Ibidem p 176 (traduccedilatildeo nossa) 181

UumlV sect29 p 129 CR sect29 p 159 182

UumlV sect30 p 131 CR sect30 p 161 (grifos do autor) 183

UumlV sect30 p 130 CR sect30 159 184

WWV I ersters Buch sect9 p 84 M I Livro I sect9 p 94

- 115 -

Daiacute que seja enganoso falar como se pudeacutessemos aprender algo novo com as

regras fundamentais e os princiacutepios que os loacutegicos estabelecem jaacute que esses

princiacutepios jaacute subjazem implicitamente em nosso pensamento ordinaacuterio e

formas de falar tendo sido derivadas do exame deles185

Eacute interessante que Schopenhauer introduza essa forma do princiacutepio de

razatildeo entre aquelas conhecidas como as trecircs leis fundamentais do pensamento De acordo com

ele o princiacutepio de razatildeo do conhecer se soma agraves leis de identidade de contradiccedilatildeo e do

terceiro excluiacutedo na condiccedilatildeo de juiacutezo que fundamenta a verdade de outros juiacutezos186

Tais leis

seriam como premissas das quais se deduziriam outros juiacutezos sem a necessidade de que

fossem explicitamente enunciadas Na explicaccedilatildeo dele quando se afirma ldquoNingueacutem pode

tomar algo como verdadeiro sem saber o porquecircrdquo admite-se como fundamento dessa verdade

o princiacutepio de razatildeo suficiente do conhecer187

As leis fundamentais do pensamento satildeo

ademais as quatro verdades metaloacutegicas que se ancoram na estrutura do intelecto e originam

o modo de ser da razatildeo Enquanto fundadas nas condiccedilotildees do pensar natildeo se poderia

raciocinar em desacordo com elas

Aleacutem das verdades loacutegicas e metaloacutegicas um juiacutezo tambeacutem pode ser

fundamentado por uma verdade empiacuterica ou por uma verdade transcendental Verdade

empiacuterica eacute entendida por Schopenhauer como um juiacutezo cujo fundamento eacute uma intuiccedilatildeo

sensiacutevel Esse tipo de conhecimento seria obra da faculdade do juiacutezo mediadora entre o

entendimento e a razatildeo e responsaacutevel por garantir que as ligaccedilotildees entre conceitos sejam feitas

de acordo com as intuiccedilotildees188

Verdade transcendental por fim eacute aquela sustentada pelas

formas da sensibilidade pura nos juiacutezos sinteacuteticos a priori O juiacutezo nesse caso funda-se nas

condiccedilotildees da experiecircncia como no caso da proposiccedilatildeo ldquonada acontece sem causardquo fundada

lei de causalidade189

Assim como ocorre com as verdades metaloacutegicas natildeo se pode pensar

em oposiccedilatildeo agraves formas do tempo do espaccedilo e da causalidade e tentar fazecirc-lo diz o filoacutesofo

seria como ldquo[] mover nossos membros no sentido contraacuterio das suas articulaccedilotildeesrdquo190

Supor

uma mudanccedila sem causa precedente ele continua eacute algo que nem mesmo se pode pensar e

que por isso nos parece uma impossibilidade objetiva embora seja de fato subjetiva De

acordo com isso as diferenccedilas entre os conhecimentos intuitivo e racional decorrem de serem

oriundos cada um de uma faculdade tornando impossiacutevel algo como uma intuiccedilatildeo racional

185

GARDINER op cit p 172 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 186

UumlV sect30 p 130-131 CR sect30 160 187

UumlV sect30 p 130 CR sect30 p 160 188

UumlV sect31 p 131 CR sect31 p 161 189

UumlV sect32 p 132 CR sect32 p 162 190

UumlV sect33 p 133 CR sect33 p 163

- 116 -

pois afirma Schopenhauer ldquoA razatildeo pode sempre apenas saber ao entendimento sozinho e

livre de sua influecircncia resta a intuiccedilatildeordquo191

A loacutegica seria entatildeo o modus operandi da razatildeo

enquanto a razatildeo pura seria a parte meramente formal do intelecto com a qual se produzem

proposiccedilotildees de verdade transcendental e metaloacutegica192

Schopenhauer acrescenta ainda que a verdade dos raciociacutenios

assentados sobre a intuiccedilatildeo a priori do espaccedilo e do tempo isto eacute sobre proposiccedilotildees de

verdade transcendental natildeo pode ser demonstrada193

Nesse ponto eacute interessante expor a

distinccedilatildeo realizada por ele entre esse tipo de verdade e as demonstraccedilotildees No primeiro caso

trata-se de um conhecimento semelhante aos da aritmeacutetica e da geometria que somente satildeo

possiacuteveis por intuiccedilatildeo O segundo caso remete aos conhecimentos que dependem de

representaccedilotildees abstratas cuja prova eacute demonstrativa As diferenccedilas entre ambos os casos

estatildeo fundadas nas especificidades do princiacutepio de razatildeo suficiente o ser e do conhecer isto eacute

na diferenccedila entre se conhecer algo por intuiccedilatildeo pura ou por conceitos Nas demonstraccedilotildees

satildeo oferecidas as razotildees de conhecimento para as proposiccedilotildees sua verdade loacutegica enquanto

nas verdades transcendentais o que se oferece eacute uma intuiccedilatildeo em que se evidencia a razatildeo de

ser194

Em funccedilatildeo disso o tipo de assentimento que se tem em cada caso eacute tambeacutem distinto a

saber no princiacutepio do conhecer eacute a convicccedilatildeo (convictio) resultante de se saber ldquoquerdquo e no

do ser eacute a compreensatildeo (cognitio) resultado de se saber o ldquoporquecircrdquo195

Para Schopenhauer a

compreensatildeo eacute mais forte do que a convicccedilatildeo e diz ele ldquoQuando se tem esta [a razatildeo de ser]

entatildeo a seguranccedila sobre a verdade da proposiccedilatildeo se apoia somente nela de modo algum na

razatildeo de conhecimento dada por demonstraccedilatildeo []rdquo196

A demonstraccedilatildeo possui entatildeo uma importacircncia relativa no pensamento

schopenhaueriano A forma sistemaacutetica e dedutiva eacute vista pelo filoacutesofo como a caracteriacutestica

essencial do conhecimento cientiacutefico no qual por meio de interligaccedilotildees das esferas de

conceitos parte-se do geral de esferas mais amplas e conceitos superiores e atinge-se o

particular determinando-o e compreendendo-o A persuasatildeo e a firmeza que um

conhecimento cientiacutefico pode conseguir natildeo estatildeo poreacutem no grau maacuteximo de certeza que

pode ser alcanccedilada tambeacutem em conhecimentos sensiacuteveis mas numa possibilidade de

191

WWV I ersters Buch sect6 p 58 M I Livro I sect6 p 69 192

UumlV sect34 p 141-142 CR sect34 p 172-173 193

UumlV sect37 p 160 CR sect37 p 192 194

UumlV sect39 p 162-163 CR sect39 p 195 195

UumlV sect39 p 163 CR sect39 p 196 196

UumlV sect39 p 163 CR sect39 p 196

- 117 -

integralidade dada pela forma sistemaacutetica197

Nesse sentido como afirma Gardiner ldquoA ideia

de que uma explicaccedilatildeo da realidade pudesse ser intelectualmente aceitaacutevel apenas quando se

apresentasse em termos de proposiccedilotildees cujas verdades estivessem logicamente garantidas

teria lhe parecido absurdardquo198

Na visatildeo de Schopenhauer consolidou-se ao longo da Histoacuteria

a conclusatildeo falsa de que apenas o demonstrado deveria ser tomado por verdadeiro

dificultando a compreensatildeo de que toda demonstraccedilatildeo deriva no iniacutecio da cadeia

argumentativa de uma verdade indemonstraacutevel Ele sustenta ao contraacuterio que todas as

demonstraccedilotildees precisam ser remetidas a algo intuitivo e sem demonstraccedilatildeo possiacutevel pois ele

escreve ldquoNatildeo pode haver nenhuma verdade que seja necessariamente trazida agrave tona apenas

por conclusotildeesrdquo199

As intuiccedilotildees a priori do tempo e do espaccedilo por exemplo seriam as

verdades indemonstraacuteveis que fundamentam a aritmeacutetica e a geometria De modo semelhante

como formas a priori verdades transcendentais que fundamentariam conhecimentos

metafiacutesicos como o da permanecircncia da mateacuteria ainda que negativamente Por fim verdades

empiacutericas alcanccediladas por induccedilatildeo sustentariam conhecimentos empiacutericos embora a

evidecircncias delas seja apenas aproximativa200

Na opiniatildeo de Magee essa concepccedilatildeo mostra que Schopenhauer tinha

uma ideia muito clara das limitaccedilotildees da argumentaccedilatildeo loacutegica Qualquer raciociacutenio apenas

demonstra que a conclusatildeo se segue das premissas mas natildeo pode fornecer nenhuma

informaccedilatildeo nova201

Aleacutem disso esse autor enfatiza que um raciociacutenio teraacute sempre de apoiar-

se em pelo menos duas hipoacuteteses natildeo demonstradas a saber uma premissa e uma regra de

inferecircncia Portanto a exigecircncia de uma demonstraccedilatildeo para toda e qualquer ideia natildeo se

coadunaria com o que realmente acontece pois no fim de contas toda prova se fundaria em

algo natildeo demonstrado Do mesmo modo eacute preciso que se remeta o argumento a algo que natildeo

seja a proacutepria conclusatildeo isto eacute a argumentaccedilatildeo natildeo pode se reduzir somente ao ciacuterculo de

proposiccedilotildees de que eacute feita202

Nas palavras de Magee

[] se sabemos algo a respeito do mundo o sabemos natildeo porque tenha sido

demonstrado ou provado mas porque experimentamos ou percebemos

diretamente ou entatildeo porque mediante processos loacutegicos que natildeo

acrescentam nenhum conteuacutedo empiacuterico se segue do que experimentamos

197

WWV I ersters Buch sect14 p 108 M I Livro I sect14 p 115 198

GARDINER op cit p 207 (traduccedilatildeo nossa) 199

WWV I ersters Buch sect14 p 110 MI Livro I sect14 p 117 200

WWV I ersters Buch sect14 p 111-113 MI Livro I sect14 p 118-120 201

MAGEE B op cit p 45 202

Ibidem p 46

- 118 -

ou percebemos diretamente Nesse sentido fundamental todo conhecimento

precede a toda demonstraccedilatildeo203

22 ndash O conhecimento filosoacutefico

Na interpretaccedilatildeo de Magee o texto de Da quaacutedrupla raiz foi elaborado

como uma teoria da explicaccedilatildeo que seria entendida por Schopenhauer como uma

investigaccedilatildeo imprescindiacutevel para o intento de desvendar o mundo204

Cada uma das formas do

princiacutepio de razatildeo seria uma maneira de responder agrave questatildeo sobre como fundamentar

suficientemente um conhecimento No entanto conforme esse autor a razatildeo suficiente dada

por aquelas formas evidencia as relaccedilotildees necessaacuterias entre as classes de objetos possiacuteveis sem

oferecer a possibilidade de se parar em nenhum ponto alcanccedilado As explicaccedilotildees por meio do

princiacutepio seriam portanto sempre incompletas e insatisfatoacuterias Magee considera que da

perspectiva da praacutetica as explicaccedilotildees podem se deter onde seja suficiente para os respectivos

propoacutesitos sem que isso represente qualquer problema Da perspectiva da teoria contudo as

passagens em que a investigaccedilatildeo normalmente se interrompe satildeo aquelas onde estatildeo as

questotildees filosoacuteficas Nesse sentido escreve Magee ldquoUma vez que enumerou todas as formas

possiacuteveis de explicaccedilatildeo o que Schopenhauer faz no passo seguinte de sua investigaccedilatildeo eacute

determinar o ponto em que cada uma das explicaccedilotildees costumam se deter na praacutetica pontos

em que surgem importantes problemas filosoacuteficosrdquo205

Na concepccedilatildeo de Schopenhauer o conhecimento filosoacutefico eacute aquele que

vai aleacutem do cientiacutefico isto eacute que prossegue quando este tem de parar Ser cientiacutefico significa

ser sistematizado e ordenado com base no princiacutepio de razatildeo que conecta as partes de um

sistema e o torna coerente e coeso Toda ciecircncia estudaria um objeto especiacutefico tendo o

203

Ibidem p 46 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 204

Ibidem p 35 205

Ibidem p 39-40 (traduccedilatildeo nossa)

- 119 -

princiacutepio de razatildeo como seu meacutetodo de pesquisa206

Com efeito o filoacutesofo escreve ldquoO que

justamente diferencia cada ciecircncia de um simples agregado eacute que seus conhecimentos

seguem-se uns dos outros como de seus fundamentosrdquo207

Como dissemos o princiacutepio de

razatildeo exige sempre a busca pelo porquecirc de tudo e isso o torna a ldquomatildee de todas as

ciecircnciasrdquo208

Inversamente a resposta agrave pergunta pelo porquecirc soacute pode ser oferecida com uma

razatildeo suficiente numa das formas do princiacutepio

Nessa perspectiva o princiacutepio de razatildeo e a coisa em si permaneceratildeo

absolutamente inexplicaacuteveis O primeiro como jaacute dissemos eacute o que torna possiacutevel qualquer

explicaccedilatildeo de modo que explicaacute-lo a partir de outra coisa natildeo faria sentido a segunda por

sua vez porque natildeo se submete a ele Diferentemente as diversas ciecircncias tecircm de seguir o

princiacutepio de razatildeo e com isso detecircm-se no fenocircmeno e deixam sempre incompreendidos os

pontos onde resvalam na coisa em si Somente o conhecimento filosoacutefico seria capaz de

ultrapassar o princiacutepio de razatildeo e o fenocircmeno pois diz Schopenhauer ldquo[] o que as ciecircncias

pressupotildeem o que colocam como fundamento de suas explicaccedilotildees e estabelecem como

limites eacute exatamente o verdadeiro problema da filosofia que em consequecircncia comeccedila onde

essas ciecircncias paramrdquo209

Em Schopenhauer critique de Kant Philonenko observa de modo

interessante que a filosofia schopenhaueriana se situa numa certa tensatildeo entre o objetivo e o

subjetivo Nas palavras do autor

Far-se-ia melhor em sublinhar que a filosofia segundo Schopenhauer reside

numa tensatildeo reativa ao mesmo tempo subjetiva e objetiva subjetiva na

medida em que a consciecircncia se desgarra de seu lugar de nascimento e se

abre aos fenocircmenos objetiva na medida em que experimenta o real e

desposa a coisa em si210

Schopenhauer ressalta como caracteriacutesticas distintivas da filosofia em

primeiro lugar tomar tudo por incerto e problemaacutetico ateacute mesmo o princiacutepio de razatildeo Em

segundo natildeo ter demonstraccedilotildees por fundamento nem ser encontrada por deduccedilatildeo a partir de

princiacutepios supostamente firmes Sobre esse ponto no texto ldquoSobre filosofia e seu meacutetodordquo de

Parerga e Paralipomena ele afirma que ldquoO fundamento e o solo sobre os quais todos os

nossos conhecimentos e ciecircncias descansam eacute o inexplicaacutevelrdquo o qual ele acrescenta ldquo[] cai

206

WWV I ersters Buch sect7 p 62 M I Livo I sect7 p 73 207

UumlV sect4 p 14 CR sect4 p 32 208

UumlV sect4 p 15 CR sect4 p 33 209

WWV I ersters Buch sect15 p 130 MI Livro I sect15 p 136 210

PHILONENKO A Schopenhauer critique de Kant Paris Les Belles Lettres 2005 p 99 (traduccedilatildeo nossa)

(grifos do autor)

- 120 -

no campo da metafiacutesicardquo211

Em terceiro e uacuteltimo lugar eacute carateriacutestico da filosofia ser um

conhecimento universal a partir do qual natildeo se alcanccedila outros superiores Natildeo obstante diz o

filoacutesofo natildeo se deve buscar por meio dela uma causa final nem uma causa eficiente do

mundo posto que isso seria utilizar o princiacutepio de razatildeo indevidamente Nesse caso a

pergunta pelo ldquoporquecircrdquo da existecircncia do mundo deve ceder lugar agrave pergunta sobre ldquoo querdquo ele

eacute agrave qual toda pessoa estaria apta a responder212

A filosofia deve entatildeo representar em

conceitos o que eacute apreendido imediatamente como sentimento do mundo ldquoPortantordquo escreve

Schopenhauer

a filosofia seraacute uma soma de juiacutezos muito gerais cujo fundamento imediato

de conhecimento eacute o mundo mesmo em sua totalidade sem nada excluir ou

seja tudo o que se encontra na consciecircncia humana seraacute uma repeticcedilatildeo

completa algo como um espelhamento do mundo em conceitos abstratos o

que soacute eacute possiacutevel pela uniatildeo do essencialmente idecircntico em um conceito e

pela separaccedilatildeo do diferente em outro213

Tanto a ciecircncia quanto a filosofia ocupam-se da experiecircncia mas

enquanto a primeira se debruccedila sobre o que nela haacute de particular a segunda a investiga

segundo sua possibilidade essecircncia forma e mateacuteria214

Schopenhauer divide em dois ramos

os objetos de estudo da filosofia a saber em philosophia prima e metafiacutesica A investigaccedilatildeo

do intelecto com suas formas leis validade e limites eacute a philosophia prima que conta com

uma dianoiologia dedicada ao entendimento e agraves intuiccedilotildees empiacutericas e uma teoria da razatildeo

voltada aos conceitos e suas regras215

O objetivo da philosophia prima seria compreender o

meio pelo qual o empiacuterico se apresenta enquanto a metafiacutesica examinaria a experiecircncia como

uma aparecircncia que representa a coisa em si dividindo-se em metafiacutesica do belo da natureza e

dos costumes216

A investigaccedilatildeo da metafiacutesica segundo o filoacutesofo exige a uniatildeo da

experiecircncia externa com a interna e a compreensatildeo da realidade empiacuterica como um todo algo

semelhante a encontrar a coesatildeo e o sentido de um escrito redigido com caracteres

desconhecidos ldquoDesse modordquo ele escreve ldquochega-se da aparecircncia ao que ao que aparece ao

que estaacute sob ela por isso ηὰ μεηὰ ηὰ θςζισὰ (o que se segue agrave fiacutesica)rdquo217

211

PP II Kap 1 sect1 p 9 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de Miguel

Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 1 p 187 212

WWV I ersters Buch sect15 p 131 M I Livro I sect15 p 137 213

WWV I ersters Buch sect15 p 131 M I Livro I sect15 p 137-138 (grifos do autor) 214

PPII Kap 1 sect21 p 26 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de Miguel

Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 21 p 205 215

Ibidem loc cit ibidem loc cit 216

Ibidem Kap 1 sect21 p 27 ibidem sect 21 p 206 217

Ibidem loc cit ibidem loc cit (grifos do autor)

- 121 -

Para alcanccedilar seu objetivo a filosofia soacute poderaacute lidar com a consciecircncia

empiacuterica a uacutenica que nos eacute dada imediatamente e que abrange a consciecircncia de si e a dos

objetos externos Conforme Schopenhauer ao contraacuterio do que pensaram diversos filoacutesofos

ela natildeo pode ser erigida como edifiacutecio meramente abstrato jaacute que diz ele ldquoOs conceitos satildeo

certamente o material da filosofia mas apenas como o maacutermore eacute o material do escultor ela

natildeo deve proceder a partir deles somente se realizar neles isto eacute expor seus resultados com

eles mas natildeo partir deles como os seus dadosrdquo218

E o modo como ele entende que isso pode

ser conseguido eacute captando-se o geral no particular por meio da compreensatildeo das ideias

platocircnicas219

Nesse sentido ele afirma ldquo[] aquele direcionamento do espiacuterito para o geral eacute

a condiccedilatildeo indispensaacutevel para o trabalho genuiacuteno em filosofia e poesia de modo amplo para

as ciecircncias e as artesrdquo220

Por conseguinte natildeo se poderia fazer verdadeiramente filosofia

apenas combinando conceitos sendo preciso fundamentaacute-los em observaccedilotildees e experiecircncias

internas ou externas Filosofar a partir de conceitos eacute exatamente o que Schopenhauer

entende por dogmatismo Na concepccedilatildeo de Paul Guyer essa eacute uma carateriacutestica fundamental

da filosofia schopenhaueriana que ele considera por isso ser um tipo de fenomenologia221

Conforme esse autor

Como os empiristas preacute-kantianos Schopenhauer parece basear sua anaacutelise

da natureza do pensamento numa fenomenologia na qual percepccedilotildees jaacute satildeo

sempre vistas como consciecircncia de objetos e parece pensar que a categoria

da causalidade eacute a uacutenica adiccedilatildeo essencial agrave percepccedilatildeo isso porque um juiacutezo

que designa um objeto ou seu estado como causa de outro pode ser pensado

como um ato de pensamento fenomenologicamente distinguiacutevel da

percepccedilatildeo antecedente e independente do objeto mesmo222

Natildeo obstante a filosofia tampouco pode assentar-se somente na

experiecircncia exterior jaacute que nela segundo o filoacutesofo encontramos apenas cinzas223

O ponto

de partida genuiacuteno para ela estaacute na consciecircncia imediata no reconhecimento de si mesmo que

se consegue quando se ldquoolha para dentrordquo E esse ponto de partida seria a consciecircncia de si

originaacuteria existente em todo ser humano pela qual cada um se julgaria como o centro do

mundo e a fonte da realidade Em virtude disso a concepccedilatildeo schopenhaueriana de filosofia

218

WWWII Kap 7 p 98 MII cap 7 p 99 (grifos do autor) 219

No proacuteximo capiacutetulo analisaremos a concepccedilatildeo schopenhaueriana de Ideia 220

PPII Kap 1 sect2 p 10 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de Miguel

Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 1 p 188 221

GUYER P Schopenhauer Kant and the Methods of Philosophy In JANAWAY C (ed) The Cambridge

Companion to Schopenhauer Cambridge Cambridge University Press 1999 p 117 222

Ibidem p 117 (traduccedilatildeo nossa) 223

PPII Kap 1 sect20 p 24 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de Miguel

Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 20 p 204

- 122 -

natildeo pode ser vista como um procedimento meramente loacutegico ou demonstrativo Nas palavras

do filoacutesofo

Ela deve como a arte e a poesia ter sua fonte na compreensatildeo sensiacutevel do

mundo por mais que a cabeccedila fique no alto natildeo se pode persegui-la com

sangue frio de modo que ao fim natildeo reste o homem completo como

coraccedilatildeo e cabeccedila que venha a agir e pouco a pouco se comova Filosofia natildeo

eacute uma equaccedilatildeo algeacutebrica Mais razatildeo tem Vauvenarges quando diz les

grandes penseacutees viennent du coeur (Os grandes pensamentos vecircm do

coraccedilatildeo Reflexotildees e Maacuteximas Nr 127)224

Em diversas passagens de suas obras Schopenhauer relaciona a filosofia

agrave arte Poreacutem segundo pensamos ele natildeo estabelece uma relaccedilatildeo de identidade entre ambas

mas apenas uma aproximaccedilatildeo geral e difusa ainda mais se considerarmos que haacute diversos

tipos de arte com diferentes modos de expressatildeo Em ldquoSobre filosofia e seu meacutetodordquo por

exemplo ele declara que o poeta apresenta imagens da vida e das pessoas de um modo que

deixa a reflexatildeo ao leitor que a faraacute de acordo com suas possibilidades O filoacutesofo por seu

turno trataria de outra forma os mesmos objetos por meio de pensamentos abstratos Tanto a

arte como a filosofia ocupam-se do geral de espeacutecies classes e conceitos mas escreve

Schopenhauer ldquo[] o poeta se compara agravequele que exibe a flor e o filoacutesofo agravequele que

apresenta a quintessecircnciardquo225

Volker Spierling observa tambeacutem esse ponto e ressalta uma ambiguidade

no aspecto artiacutestico que Schopenhauer daacute ao conhecimento filosoacutefico Na sua obra Arthur

Schopenhauer eine Einfuumlhrung in Leben und Werk esse autor analisa os manuscritos

poacutestumos e mostra que Schopenhauer sempre associou a filosofia agrave arte226

Na transformaccedilatildeo

do conhecimento intuitivo em abstrato Spierling encontra o que chama de diferenccedila

problemaacutetica (problematische Differenz) Para ele consciente do problema mas sem discuti-

lo Schopenhauer tenta fazer o impossiacutevel conceituar o natildeo definiacutevel em conceitos e captar

abstratamente o que eacute vedado ao pensamento227

Nas palavras desse autor

Nesse ponto trata-se de chamar a atenccedilatildeo para uma diferenccedila problemaacutetica

que tambeacutem eacute pensada com a filosofia de Schopenhauer A vivacidade o

caraacuteter imediato das experiecircncias intuitivas da ldquovisatildeo artiacutestica do filosofordquo

tecircm de ser realizados antes de toda reflexatildeo conceitual e satildeo um lado

totalmente diferente de uma investigaccedilatildeo indispensaacutevel para Schopenhauer

224

Ibidem Kap 1 sect9 p 15-16 ibidem p 194 (grifos do autor) 225

Ibidem Kap 1 sect4 p 16 Ibidem sect 4 p 189 226

SPIERLING V Arthur Schopenhauer eine Einfuumlhrung in Leben und Werk Leipzig Reclam Verlag 1998

p 61 227

Ibidem p 62

- 123 -

a saber refletir essas experiecircncias no meio inadequado do conceito conforme

o princiacutepio de razatildeo como que para as transformar e prender

conceitualmente228

23 ndash Criacutetica de Schopenhauer ao idealismo de Kant

Schopenhauer afirma ter escrito a Criacutetica da filosofia kantiana para

justificar a doutrina que expocircs em O mundo naquilo que ela tem de contraacuterio ao

pensamento de Kant Informa ele que desde a escrita da Criacutetica da razatildeo pura a metafiacutesica

teve de abrir novos caminhos e o propoacutesito daquela obra eacute defender o seu229

Ele declara que

sua proacutepria filosofia decorre de uma parte da de Kant purificada poreacutem dos erros deste e

que suas discordacircncias referem-se agraves incorreccedilotildees que ele entende deverem ser expurgadas

para que a verdade da filosofia kantiana possa brilhar clara e segura230

No entender de

Schopenhauer o meacuterito de Kant natildeo eacute afetado por essas imperfeiccedilotildees porque o valor de sua

contribuiccedilatildeo agrave filosofia as supera em muito Como observa Alexis Philonenko em sua obra

Schopenhauer critique de Kant o filoacutesofo considerava que a criacutetica pertinente deveria ser

precedida pelo reconhecimento dos meacuteritos Em funccedilatildeo disso afirma esse autor ldquoA criacutetica eacute

portanto um momento fundante na filosofia de Schopenhauerrdquo231

Natildeo exporemos a criacutetica completa que Schopenhauer faz a Kant porque

ela eacute minuciosa e vai aleacutem do nosso escopo Ele analisa toda a Criacutetica da razatildeo pura aleacutem da

eacutetica kantiana mas pretendemos nos ater somente aos pontos diretamente ligados agrave nossa

investigaccedilatildeo Com efeito a distinccedilatildeo kantiana entre fenocircmeno e coisa em si tem uma

importacircncia fundamental para Schopenhauer Kant teria demonstrado que o intelecto se

interpotildee necessariamente entre as coisas e o nosso conhecimento delas e que portanto nunca

228

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 229

KkP p 555-546 CFK p 94-95 230

KkP p 533 CFK p 86 231

PHILONENKO A Schopenhauer critique de Kant Paris Les Belles Lettres 2005 p 91 (traduccedilatildeo nossa)

(grifos do autor)

- 124 -

poderemos saber o que satildeo em si mesmas232

Ao separar rigorosamente o que conhecemos a

priori do conhecido a posteriori Kant teria realizado uma revoluccedilatildeo na histoacuteria das ideias

estabelecendo uma relaccedilatildeo tripla com a filosofia anterior

[] primeiro de confirmaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo com a de Locke como acabamos

de ver segundo de correccedilatildeo e utilizaccedilatildeo com a de Hume que se encontra

claramente expressa no prefaacutecio dos ldquoProlegomenardquo (o mais belo e

compreensiacutevel de todos os principais escritos de Kant pois facilita

extraordinariamente o estudo de sua filosofia mas que eacute muito pouco lido)

terceiro de decidida polecircmica e de demoliccedilatildeo com a filosofia Leibniz-

wolffiana233

Pela posiccedilatildeo central do discernimento entre fenocircmeno em coisa em si

Schopenhauer entende que a doutrina acerca a distinccedilatildeo completa entre o real e o ideal eacute o

nuacutecleo da filosofia de Kant Nesse aspecto o pensamento kantiano aparece para ele como

continuador de uma tradiccedilatildeo filosoacutefica antiga iniciada por Platatildeo de separaccedilatildeo e

diferenciaccedilatildeo entre um mundo real e outro ideal Conforme o filoacutesofo seguindo um caminho

proacuteprio Kant descobriu a mesma verdade que Platatildeo enunciara de forma miacutetica na Alegoria

da Caverna no livro seacutetimo de A Repuacuteblica passagem que ele considera a mais importante de

a toda filosofia platocircnica234

Nesse ponto especiacutefico o pensamento de Platatildeo e de Kant teria

sido expresso tambeacutem embora de modo diferente nos ensinamentos contidos na doutrina de

Maya encontrada nos Vedas e nos Puranas Schopenhauer entende que Platatildeo Kant e a

doutrina de Maya expressam igualmente a concepccedilatildeo de que o mundo que acessamos pelo

conhecimento eacute ilusoacuterio transitoacuterio secundaacuterio e inconsistente algo como um sonho diz ele

ldquo[] um veacuteu que envolve a consciecircncia humana algo do qual eacute tatildeo verdadeiro quanto falso

afirmar que eacute assim como que natildeo eacuterdquo235

A superioridade de Kant poreacutem teria sido a de

apresentar essa verdade demonstrativa e incontestavelmente enquanto Platatildeo e o hinduiacutesmo a

teriam expressado de modo poeacutetico e miacutetico Assim a atribuiccedilatildeo de uma ldquonatureza oniacutericardquo

(traumartigen Beschaffenheit) ao mundo seria comum a todos eles e tal visatildeo teria permitido

que compreendessem a impossibilidade de se conhecer a essecircncia das coisas com base no

conhecimento do mundo supostamente real236

Schopenhauer formula uma metaacutefora interessante para designar aqueles

que partindo apenas do conhecimento empiacuterico entenderam ser possiacutevel conhecer as coisas

232

KkP p 534 CFK p 87 233

KkP p 535 CFK p 88 234

KkP p 536 CFK p 88 235

KkP p 536 CFK p 88 236

KkP p 537 CFK p 89

- 125 -

em si Eles seriam como um ldquoesquilo na rodardquo ou tambeacutem como aqueles que pensam poder

alcanccedilar o fim do mundo andando em linha reta Como se tivesse circundado o planeta diz o

filoacutesofo Kant mostrou que ldquo[] porque ele eacute redondo natildeo se pode sair por meio de

movimento horizontal mas que por um movimento perpendicular talvez natildeo seja

impossiacutevelrdquo237

Portanto o conhecimento empiacuterico nunca conduziraacute agrave soluccedilatildeo do problema

de modo que a direccedilatildeo do movimento deve ser perpendicular isto eacute ou para fora ou para

dentro do mundo

O segundo meacuterito de Kant teria sido o de abrir espaccedilo para a deduccedilatildeo da

coisa em si como Vontade ao mostrar que o sentido moral das accedilotildees humanas natildeo se remete

ao fenomecircnico Se bem que Kant natildeo a tivesse deduzido corretamente sua exposiccedilatildeo teria

apontado para a ligaccedilatildeo entre a coisa em si e a moral238

O terceiro meacuterito de Kant no

entender de Schopenhauer foi o de subverter o pensamento escolaacutestico que desde Santo

Agostinho havia submetido a filosofia agrave religiatildeo Uma atitude arriscada jaacute que Kant se

atreveu a minar crenccedilas arraigadas durante seacuteculos e defendidas com violecircncia ao demonstrar

a fragilidade e falta de sustentaccedilatildeo de dogmas tidos por incontestaacuteveis Aleacutem disso como

resultado da filosofia kantiana o realismo teria sido combatido posto que no idealismo as

leis do fenocircmeno foram tomadas como parte do sujeito e natildeo mais como verdades eternas

possibilitando que a realidade do mundo fosse percebida como aparente

Em relaccedilatildeo agraves criacuteticas de Schopenhauer a Kant consideramos que haacute

dois pontos centrais O primeiro eacute a acusaccedilatildeo de que Kant teria realizado suas investigaccedilotildees

com base em um princiacutepio arbitraacuterio e natildeo condizente com a natureza das coisas Para

Schopenhauer Kant busca e encontra em toda parte uma simetria que estaacute somente em si

mesmo distanciando-se da verdade com frequecircncia Nas suas palavras ldquo[] uma propriedade

muito individual do espiacuterito de Kant eacute um prazer singular na simetria que ama a

multiplicidade matizada para ordenaacute-la e repetir a ordenaccedilatildeo em subordinaccedilotildees e assim

continuamente exatamente como nas igrejas goacuteticasrdquo239

Longe de ser algo irrelevante esse

amor agrave simetria teria levado Kant a deduccedilotildees ilegiacutetimas ao uso de sofismas e agrave imposiccedilatildeo de

um edifiacutecio teoacuterico repleto de paralelismos correspondecircncias e equivalecircncias muitas vezes

inexistentes de fato Exemplos disso satildeo segundo Schopenhauer a deduccedilatildeo de doze

categorias em quatro tiacutetulos cada um contando trecircs delas a partir das categorias a deduccedilatildeo

237

KkP p 538 CFK p 89-90 238

KkP p 539-540 CFK p 90-91 239

KkP p 549 CFK p 97 (grifos do autor)

- 126 -

da taacutebua dos princiacutepios da ciecircncia da natureza em nuacutemero de quatro dentre os quais dois

ramificam-se em trecircs galhos cada a criaccedilatildeo de trecircs ideias pela razatildeo com fundamento nas

categorias da relaccedilatildeo na sua busca ao incondicionado a deduccedilatildeo de trecircs ideias a partir dos

silogismos resultantes da categoria da relaccedilatildeo respectivamente alma mundo e Deus por fim

a produccedilatildeo de quatro teses pela ideia de mundo com correlato simeacutetrico em quatro

antiacuteteses240

Entatildeo ele escreve Kant ldquo[] segue seu caminho perseguindo sua simetria

ordenando tudo de acordo com ela sem nunca tomar em consideraccedilatildeo os proacuteprios objetos

assim tratadosrdquo241

Essa mania de equivalecircncia teria sido o verdadeiro fio condutor da

Criacutetica da razatildeo pura Ao descobrir que tempo e espaccedilo satildeo conhecidos a priori Kant teria

ido longe demais ao rastrear tudo o que se poderia encontrar no intelecto antes de toda a

experiecircncia Assim diz Schopenhauer encontrando de iniacutecio intuiccedilotildees a priori procurou

conceitos igualmente puros como fundamento dos empiacutericos Com a taacutebua dos juiacutezos

construiu as doze categorias como fundamento da loacutegica transcendental que entrou como

correlato da esteacutetica transcendental resultando no surgimento de uma sensibilidade e de um

entendimento puros242

Em consequecircncia disso Kant teria esquecido o objeto da investigaccedilatildeo

e seguido uma miragem pois nas palavras de Schopenhauer ldquo[] depois da feliz descoberta

das duas formas da intuiccedilatildeo a priori orientando-se pela guia da analogia passou a se esforccedilar

em demonstrar para cada determinaccedilatildeo de nosso conhecimento empiacuterico um anaacutelogo a

priori []rdquo243

Na visatildeo schopehaueriana portanto os doze conceitos puros de Kant satildeo

inuacuteteis e ateacute mesmo nocivos Como observa Philonenko as categorias satildeo descartadas no seu

conjunto por Schopenhauer e embora a causalidade seja mantida natildeo possui o estatuto de

conceito puro Entatildeo escreve esse autor ldquoAiacute reside uma grande diferenccedila entre Kant e

Schopenhauer para este o princiacutepio de causalidade [] natildeo eacute de fato uma categoria

heterogecircnea agraves formas sensiacuteveis do tempo e do espaccedilo Vemos a consequecircncia a deduccedilatildeo

transcendental em sentido kantiano natildeo se impotildeerdquo244

O segundo ponto nodal da criacutetica de Schopenhauer a Kant estaacute na

confusatildeo que este teria gerado entre intuiccedilatildeo e conceito e por conseguinte entre

240

KkP p 549-550 CFK p 97-98 241

KkP p 550 CFK p 98 242

KkP p 573 CFK p 112 243

KkP p 575 CFK p 114 244

PHILONENKO A Schopenhauer Una filosofia de la tragedia Barcelona Anthropos 1989 p 88 (traduccedilatildeo

nossa) (grifos do autor)

- 127 -

entendimento e razatildeo Para Schopenhauer essa foi a verdadeira origem das contradiccedilotildees

insoluacuteveis a que filosofia kantiana chegara Na sua interpretaccedilatildeo o mundo dos sentidos eacute

remetido em conjunto a um ldquodadordquo do qual pouco se fala e o fundamento do edifiacutecio

kantiano eacute fornecido pela taacutebua loacutegica dos juiacutezos245

Sem indagar a essecircncia dos conceitos

Kant natildeo teria podido perceber a relaccedilatildeo deles com a intuiccedilatildeo nem o que cabia ao

entendimento e o que cabia agrave razatildeo no processo do conhecer Kant teria compreendido a razatildeo

de modo confuso e oferecido definiccedilotildees e explicaccedilotildees insuficientes ainda que tivesse

elaborado muitas como por exemplo ldquofaculdade dos princiacutepios a priorirdquo ldquofaculdade das

inferecircncias mediatasrdquo e ldquofaculdade de unificaccedilatildeo dos conceitos do entendimento em

ideiasrdquo246

Analogamente o entendimento tambeacutem teria sido definido de modo hesitante e

oscilante com sentidos como ldquofaculdade das regrasrdquo ldquofonte dos princiacutepiosrdquo e ldquofaculdade de

julgarrdquo247

No entender de Schopenhauer por natildeo ter investigado a natureza do

conceito Kant natildeo teria distinguido representaccedilotildees abstratas de intuitivas nem percebido que

era necessaacuterio definir rigorosamente a intuiccedilatildeo a razatildeo o entendimento o objeto o sujeito a

representaccedilatildeo a verdade dentre outros termos Uma consequecircncia importante dessa confusatildeo

teria sido o modo como Kant conceituou o objeto da experiecircncia misturando e separando

simultaneamente o conceito abstrato e a incoacutegnita a que se aplicam as categorias Assim

fazendo diz Schopenhauer ele natildeo pocircde esclarecer ldquo[] se seu bdquoobjeto da experiecircncia isto eacute

o conhecimento que se origina da aplicaccedilatildeo das categorias‟ eacute a representaccedilatildeo intuitiva no

tempo e no espaccedilo (minha primeira classe de representaccedilotildees) ou um simples conceito

abstratordquo248

Essa imprecisatildeo teria impossibilitado explicar o conteuacutedo da intuiccedilatildeo empiacuterica

que Kant teria entatildeo tomado como algo dado Daiacute poreacutem teria advindo o erro capital de

embaralhar a impressatildeo nos sentidos e a representaccedilatildeo ou seja a mera sensaccedilatildeo com o

objeto Em virtude disso diz Schopenhauer por um lado a intuiccedilatildeo kantiana natildeo se serve do

entendimento porque eacute recebida passivamente embora o objeto soacute possa ser pensado pelas

categorias Por outro o objeto do pensamento se torna algo individual natildeo universalizado

isto eacute coisas e natildeo conceitos249

Por conseguinte ele afirma

245

KkP p 551 CFK p 98 246

KkP p 552-552 CFK p 99 247

KkP p 553 CFK p 99-100 248

KkP p 558 CFK p 103 (grifos do autor) 249

KkP p 560-561 CFK p 105

- 128 -

Daiacute resulta que esse mundo intuitivo existiria para noacutes mesmo se natildeo

tiveacutessemos nenhum entendimento que ele entra na nossa cabeccedila de um

modo em tudo inexplicaacutevel modo esse que sempre denota com sua estranha

expressatildeo de que a intuiccedilatildeo seria dada sem explicar depois essa expressatildeo

indeterminada e figurada250

Outra consequecircncia daquela confusatildeo teria sido a primazia dada por Kant

aos conceitos que o teria levado ao extremo de afirmar que sem eles natildeo haveria qualquer

conhecimento Nessa perspectiva a intuiccedilatildeo se resume a mera afecccedilatildeo da sensibilidade algo

vazio ao mesmo tempo em que sem ela os conceitos ainda seriam alguma coisa251

Cacciola

esclarece sobre esse ponto que no fim de contas a noccedilatildeo kantiana de objeto em geral

remeteria agrave determinaccedilatildeo da experiecircncia como resultado dos predicados atribuiacutedos a ele pelos

conceitos puros do entendimento252

Guyer considera espantoso esse julgamento de Schopenhauer

entendendo que o filoacutesofo acabaria acusando Kant de duas posturas opostas Por um lado o

filoacutesofo afirmaria que Kant misturou intuiccedilatildeo e conceito e por outro censuraria o fato de ter

colocado os conceitos em ordem de prioridade253

Para Guyer Kant entendeu a diferenciaccedilatildeo

entre intuiccedilotildees e conceitos como uma das suas mais importantes e fundamentais descobertas

das quais teria advindo a base para sua criacutetica da filosofia anterior e para a soluccedilatildeo do

problema do conhecimento sinteacutetico a priori Aleacutem disso Kant natildeo teria deixado de sublinhar

que pensamentos sem conteuacutedo intuitivo satildeo vazios Natildeo obstante diz Guyer Schopenhauer

estaacute mais proacuteximo de Kant do que pensa e a real diferenccedila entre ambos estaria no modo como

cada um concebe a consciecircncia de um objeto Para Kant toda consciecircncia exige uma uniatildeo

sinteacutetica de intuiccedilatildeo e conceito e os papeacuteis que cada um desempenha depende de se

relacionarem nos juiacutezos com propriedades particulares ou comuns Schopenhauer poreacutem

parte do exame detalhado da consciecircncia de um objeto e do processo de conhececirc-lo e entatildeo

toma a distinccedilatildeo de Kant como se ela tivesse feita com seus proacuteprios propoacutesitos ou seja

como um tipo de distinccedilatildeo fenomenologicamente autoevidente254

No entendimento do

filoacutesofo escreve Guyer

[] Kant natildeo reconhece que o estado inicial da consciecircncia que

Schopenhauer identifica com a percepccedilatildeo jaacute eacute conhecimento de objetos

Mas distinguindo entre intuiccedilotildees e conceitos Kant claramente natildeo pretende

250

KkP p 561-562 CFK p 105 (grifos do autor) 251

KkP p 603 CFK p 132 252

CACCIOLA M L Schopenhauer e a questatildeo do dogmatismo Satildeo Paulo EDUSP 1994 p 36 253

GUYER op cit p 113-114 254

Ibidem p 115

- 129 -

estar distinguindo entre estados conscientes sequenciais ao inveacutes disso o

argumento de Kant eacute o de que nossa consciecircncia de objetos jaacute eacute um

conhecimento deles precisamente porque jaacute representa a siacutentese de intuiccedilatildeo

e conceitos ndash algo muito mais proacuteximo daquilo em que Schopenhauer

acredita Porque Schopenhauer acredita que o meacutetodo de Kant eacute

fenomenoloacutegico como o seu quando natildeo eacute ele pensa que haacute uma maior

diferenccedila entre suas visotildees do que realmente haacute255

Schopenhauer conclui que no fundo Kant considerava haver um objeto

sob a intuiccedilatildeo o qual seria mateacuteria para a aplicaccedilatildeo do entendimento um objeto no entanto

irrepresentaacutevel Pela operaccedilatildeo proacutepria do entendimento o conceito seria aplicado agrave intuiccedilatildeo e

esta se tornaria experiecircncia pela intuiccedilatildeo o objeto seria dado pelo entendimento seria

pensado Assim Kant consideraria como funccedilatildeo do entendimento pensar os objetos e natildeo

intuiacute-los e isso explicaria o motivo pelo qual ele afirmava que as coisas soacute poderiam tornar-se

reais atraveacutes do pensamento pela aplicaccedilatildeo das doze categorias256

Ficaria entatildeo manifesto

que ele distinguia a representaccedilatildeo o objeto da representaccedilatildeo e a coisa em si Nas palavras de

Schopenhauer ldquoA primeira eacute assunto da sensibilidade que ao lado da sensaccedilatildeo tambeacutem

compreende as formas puras do tempo e do espaccedilo O segundo eacute coisa do entendimento que

ele acrescenta em pensamento por meio de suas doze categorias A terceira fica aleacutem de toda

cognoscibilidaderdquo257

Na concepccedilatildeo de Schopenhauer poreacutem se o objeto natildeo for a proacutepria

representaccedilatildeo teraacute de ser a coisa em si e a introduccedilatildeo do ldquoobjeto da representaccedilatildeordquo como um

intermediaacuterio eacute uma grande fonte de erros Por conseguinte diz ele se o ldquoobjeto da

representaccedilatildeordquo eacute uma concepccedilatildeo falsa toda a doutrina das categorias tambeacutem o seraacute posto

que sua finalidade eacute justamente pensaacute-lo Tanto o primeiro quanto as segundas seriam inuacuteteis

e prejudiciais pois natildeo serviriam agrave intuiccedilatildeo nem agrave coisa em si mas apenas para transformar o

objeto da representaccedilatildeo em experiecircncia258

No fim de contas tudo isso seria inoacutecuo pois a

intuiccedilatildeo jaacute seria a proacutepria experiecircncia que precisa apenas do espaccedilo do tempo e da

causalidade para se formar

Portanto para Schopenhauer teria sido importante que se explicasse a

gecircnese da intuiccedilatildeo empiacuterica Para seguir no seu caminho simeacutetrico poreacutem Kant teria mantido

o entendimento na funccedilatildeo de pensar ligada agrave loacutegica transcendental e afastado dele a intuiccedilatildeo

Assim no entender do filoacutesofo teria restado para si mesmo a tarefa de provar a aprioridade

causalidade por meio da demonstraccedilatildeo de que ela eacute a condiccedilatildeo da realidade tanto do ponto

255

Ibidem p 116 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 256

KkP p 565 CFK p 108 257

KkP p 566 CFK p 108 258

KkP p 567 CFK p 109

- 130 -

de vista intuiccedilatildeo empiacuterica quanto do conjunto da experiecircncia259

Teria restado para ele

tambeacutem a elaboraccedilatildeo de uma resposta satisfatoacuteria ao problema da coisa em si ao qual ele

teria se dedicado em toda a sua obra260

Schopenhauer considera que as modificaccedilotildees que

Kant realiza na segunda ediccedilatildeo da Criacutetica da razatildeo pura mitigaram seu idealismo no intuito

de disfarccedilar a contradiccedilatildeo subjacente agrave noccedilatildeo de coisa em si Depois de demonstrar que a

causalidade era parte a priori do intelecto e que servia apenas para o conhecimento do mundo

concreto Kant a teria utilizado para sustentar que a intuiccedilatildeo era causada por algo

absolutamente externo ao sujeito

Por todas essas razotildees a exclusatildeo da experiecircncia do domiacutenio metafiacutesico

teria sido feita de forma arbitraacuteria simplesmente pela etimologia da palavra Nesse aspecto

Kant natildeo teria deixado de seguir os filoacutesofos dogmaacuteticos anteriores na medida em que

identificou a metafiacutesica com o conhecimento a priori e natildeo admitiu a experiecircncia interna nem

a externa como fontes dela No entanto ele cometeria com isso uma peticcedilatildeo de princiacutepio

pois diz Schopenhauer ldquo[] haveria de se demonstrar antes que a mateacuteria para a soluccedilatildeo do

enigma do mundo natildeo poderia absolutamente ser encontrada nele mesmo apenas fora em

algo a que portanto somente pela guia do nosso conhecimento a priori se pudesse chegarrdquo261

Uma vez que natildeo estaria suficientemente provado que a fonte uacutenica da metafiacutesica estivesse no

conhecimento a priori natildeo se poderia descartar sem mais o conhecimento a posteriori Como

esclarece Cacciola ldquoSoacute a partir da identificaccedilatildeo entre metafiacutesica e conhecimento a priori eacute

que Kant criticando o alcance desse tipo de conhecimento chega a um resultado negativo De

acordo com Schopenhauer Kant natildeo prova que a metafiacutesica natildeo possa provir da

experiecircnciardquo262

Na verdade segundo a concepccedilatildeo schopenhaueriana a metafiacutesica natildeo tem

outra fonte com que contar para aleacutem da experiecircncia interna e externa e sua tarefa eacute interligaacute-

las corretamente para solucionar o grande problema da filosofia Natildeo se pode deslizar acima

da experiecircncia e a soluccedilatildeo do enigma deve provir do proacuteprio mundo263

259

KkP p 568 CFK p 109 260

KkP p 567 CFK p 109 261

KkP p 546 CFK p 95 262

CACCIOLA M L A criacutetica da Razatildeo no pensamento de Schopenhauer Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Faculdade

de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo Departamento de Filosofia Satildeo Paulo

1981 p 107 263

KkP p 547 CFK p 95

- 131 -

24 ndash Idealismo schopenhaueriano e fisiologia do conhecimento

Neste item tratamos da concepccedilatildeo fisioloacutegica de Schopenhauer no

tocante ao conhecimento Interessa-nos nesse ponto a influecircncia da fisiologia dos sentidos

sobre o entendimento isto eacute de que maneira eles fornecem os dados para a representaccedilatildeo Haacute

tambeacutem outra perspectiva em que Schopenhauer aborda a fisiologia a saber na deduccedilatildeo do

ceacuterebro como um oacutergatildeo material onde se situa o intelecto aspecto que seraacute abordado no

proacuteximo capiacutetulo No texto Sobre a visatildeo e as cores o filoacutesofo declara que pretende

complementar a doutrina Goethe que lhe parecer ser uma apresentaccedilatildeo embora completa e

sistemaacutetica de meros fatos acerca das cores De acordo com ele a concepccedilatildeo goethiana natildeo eacute

realmente uma teoria porque natildeo expotildee um ponto ou um princiacutepio de conexatildeo do todo que

pudesse evidenciar a relaccedilatildeo de dependecircncia entre os fenocircmenos expostos e ao mesmo

tempo esclarecer cada um em particular264

Ela funcionaria como uma espeacutecie de descriccedilatildeo

de fatos empiacutericos numa perspectiva fisioloacutegica agrave qual faltaria ainda o enquadramento em

uma perspectiva filosoacutefica Schopenhauer propotildee-se entatildeo realizar aquilo que considera

como a tarefa da filosofia isto eacute transpor em conceitos o que conhecemos concretamente

ldquoNesse sentidordquo ele escreve ldquocompletar a obra de Goethe estabelecer in abstracto aquele

princiacutepio supremo do qual tudo o que eacute dado nela depende e oferecer a teoria das cores no

sentido estrito da palavra eacute isso o que o presente tratado tentaraacute fazer []rdquo265

Conforme Schopenhauer a atividade intelectual que estaacute na base da

formaccedilatildeo das cores eacute explicada com dados fisioloacutegicos Na obra Die Lehre von der

empirischen Anschauung bei Schopenhauer mencionada anteriormente Johann Rieffert

investiga entre outras coisas as relaccedilotildees entre a teoria da intuiccedilatildeo empiacuterica de Schopenhauer

e a de Thomas Reid Rieffert informa que a concepccedilatildeo do filoacutesofo acerca da fisiologia foi

inspirada em diversos pensadores entre eles Thomas Reid Erasmus Darwin e Cabanis

Segundo o autor Schopenhauer natildeo foi influenciado exatamente pelo conteuacutedo das teorias

deles e sim pela direccedilatildeo metodoloacutegica adotada natildeo soacute por Reid mas por um grupo de

264

UumlSF p 200 VC p 23 265

UumlSF p 200 VC p 23

- 132 -

filoacutesofos ingleses e franceses a saber o espiritualismo266

De acordo com Rieffert

Schopenhauer assimilou de Reid especificamente a concepccedilatildeo de que a sensaccedilatildeo remete de

modo imediato aos objetos reais Nas palavras desse autor ldquoNatildeo a interpretaccedilatildeo causal da

sensaccedilatildeo mas seu conhecimento imediato como pertencente a coisas reais foi apontada

tambeacutem na doutrina de Thomas Reid que o proacuteprio Schopenhauer indica como influecircncia

histoacutericardquo267

A concepccedilatildeo fisioloacutegica defendida por Schopenhauer em Sobre a visatildeo e

as cores eacute uma parte da sua teoria do conhecimento mais ampla Essa concepccedilatildeo eacute

generalizada para todos os objetos e propriedades de modo que a teoria do conhecimento em

seu conjunto relaciona-se intrinsecamente com um fundamento fisioloacutegico Com efeito a

fisiologia fornece a base para a compreensatildeo dos dados fornecidos pelos sentidos e do modo

como o intelecto os utiliza para a construccedilatildeo da representaccedilatildeo Como jaacute mencionamos antes

as impressotildees sentidas pelos animais nos seus corpos satildeo o impulso de onde partem e a

mateacuteria sobre a qual se formam as intuiccedilotildees por meio da causalidade a priori Ou como

afirma Cacciola ldquoSatildeo as afecccedilotildees deste corpo que permitem a intuiccedilatildeo do mundo pelo

entendimento e portanto o conhecerrdquo268

Cada sentido tem sua especificidade percebida em um modo proacuteprio de

recepccedilatildeo aos influxos segundo a maneira em que o sistema nervoso eacute afetado pelos seus

dados269

Segundo Schopenhauer a substacircncia dos nervos eacute a mesma no corpo todo de modo

que as singularidades das diferentes sensaccedilotildees dos sentidos satildeo dadas pela receptividade

especial de cada um deles isto eacute dos olhos para a luz do som para os ouvidos e assim por

diante270

Citando Cabanis o filoacutesofo escreve

Que o nervo do labirinto e a coacuteclea nadando na aacutegua do ouvido recebam as

vibraccedilotildees do ar por meio dessa aacutegua enquanto o nervo oacutetico recebe a

influecircncia da luz por meio da refraccedilatildeo desta na umidade e no cristalino essa

eacute a causa das diferenccedilas especiacuteficas de ambas as sensaccedilotildees natildeo o nervo em

si271

266

ERDMANN Benno (Herausgegeber) Abhandlungen zur Philosophie und irhre Geschichte 42 Heft

RIEFFERT J B Die Lehre von der empirische Anschauung bei Schopenhauer Halle Max Niemeyer 1914 p

190 267

Ibidem p 191 (traduccedilatildeo nossa) 268

CACCIOLA M L Schopenhauer e a questatildeo do dogmatismo Satildeo Paulo EDUSP 1994 p 39 269

UumlSF sect1 p 205 VC sect 1 p 31 270

UumlSF sect1 p 206 VC sect1 p 31 271

UumlSF sect1 p 206 VC sect1 p 31

- 133 -

Nessa perspectiva as distintas sensaccedilotildees natildeo se formam nos oacutergatildeos

mesmos mas na conjunccedilatildeo dos nervos no ceacuterebro o que explica a simplicidade das

impressotildees272

Na interpretaccedilatildeo de Philonenko Schopenhauer considerava a vontade de um

lado como expressatildeo do espiritualismo de Kant e de outro o ceacuterebro como expressatildeo do

materialismo de Cabanis O filoacutesofo diz esse autor ldquo[] acreditava realizar uma verdadeira

siacutentese filosoacutefica e histoacuterica (entre a Alemanha e a Franccedila)rdquo273

Com base nos dados sensoacuterios o mundo da representaccedilatildeo seria edificado

pelo intelecto sem o qual as informaccedilotildees dos sentidos natildeo formariam nenhum objeto Uma

paisagem por exemplo seria conhecida apenas como uma tela manchada de muitas cores

que eacute ao que se resume a mateacuteria bruta oferecida pela sensaccedilatildeo na retina274

Segundo

Schopenhauer os sentidos ligam-se ao intelecto por meio do ceacuterebro ou melhor ldquoOs sentidos

satildeo apenas as prolongaccedilotildees do ceacuterebro pelas quais ele recebe a mateacuteria de fora (na forma da

sensaccedilatildeo) para processaacute-la em representaccedilatildeo intuitivardquo275

No fim de contas todos os sentidos

poderiam ser reduzidos agrave susceptibilidade dos corpos animais aos estiacutemulos externos como

meio de alcanccedilar dados para o entendimento Essa susceptibilidade diz o filoacutesofo dividiu-se

em cinco sentidos para que pudesse se adequar aos quatro elementos e ao que ele chama de

estado de imponderabilidade (Inponderabilitaumlt) o tato para o soacutelido (terra) o paladar para o

liacutequido (aacutegua) o olfato para o volaacutetil (gasoso) a audiccedilatildeo para o elaacutestico (ar) e a visatildeo para o

imponderaacutevel (fogo luz)276

ldquoPoisrdquo ele conclui ldquoesse mundo real e intuitivo eacute

manifestamente um fenocircmeno cerebral daiacute a admissatildeo de que ele tambeacutem devesse existir

independente de qualquer ceacuterebro eacute uma contradiccedilatildeordquo277

25 ndash Fundamentos do mundo como representaccedilatildeo

272

WWV II Kap 3 p 41-42 M II cap 3 p 34 273

PHILONENKO A Schopenhauer critique de Kant Paris Les Belles Lettres 2005 p 108 (traduccedilatildeo nossa)

(grifos do autor) 274

UumlSF sect1 p 206 VC sect1 p 32 275

WWV II Kap 3 p 38 M II cap 3 p 31 276

WWV II Kap 3 p 39 M II cap 3 p 32 277

WWV II Kap 1 p 14 M II cap 1 p 8

- 134 -

Diante dos desafios e questotildees que pretende resolver Schopenhauer

assenta o mundo como representaccedilatildeo em uma estrutura composta de dois pilares a saber o

intelecto e a fisiologia dos sentidos Haacute duas exigecircncias principais que a nosso ver sua trama

conceitual procura satisfazer simultaneamente Em primeiro lugar legitimar a posiccedilatildeo do

idealismo transcendental corrigindo ou eliminando os erros apontados na deduccedilatildeo que Kant

realizou da coisa em si sem suprimi-la Diferentemente dos outros poacutes-kantianos

Schopenhauer natildeo deseja desfazer-se dessa noccedilatildeo de modo que sua teoria do conhecimento

natildeo pode fechar as portas a ela como fez a de Kant Em segundo lugar tornou-se necessaacuterio

garantir que a realidade empiacuterica pudesse conviver pacificamente com a idealidade

transcendental do mundo evitando que o sujeito cognoscente perdesse para sempre o caminho

de acesso agraves coisas reais Daiacute a importacircncia que Schopenhauer confere agrave exposiccedilatildeo da origem

da intuiccedilatildeo empiacuterica como meio de conectar o conhecimento a algo externo ou material Eacute

preciso que o sujeito toque em algo que de alguma forma esteja fora de si e que ao mesmo

tempo natildeo seja o objeto em si Segundo pensamos a formulaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo

suficiente e a teoria da construccedilatildeo do mundo empiacuterico com recurso agrave sensaccedilatildeo satildeo as repostas

que Schopenhauer idealiza agravequelas questotildees e suas exigecircncias

Na elaboraccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo o filoacutesofo faz um inventaacuterio do

intelecto humano no qual contabiliza um princiacutepio ordenador uacutenico trecircs faculdades e quatro

classes de objetos todos intrinsecamente vinculados O princiacutepio de razatildeo eacute o modo geral da

atividade do intelecto e a busca do fundamento suficiente de uma consequecircncia dada se

encontra em cada faculdade e em seus objetos A sensibilidade lida com intuiccedilotildees puras e

dados sensoacuterios os quais enquadra no tempo e no espaccedilo e o princiacutepio de razatildeo do ser

determina em todos a sucessatildeo e a posiccedilatildeo O entendimento engendra os objetos empiacutericos e o

conjunto da experiecircncia utilizando as formas do tempo do espaccedilo e da causalidade e

tambeacutem o material fornecido pelos sentidos A causalidade faz do mundo como representaccedilatildeo

um grande emaranhado de cadeias causais sem iniacutecio ou fim as quais conformam o universo

natural como um todo Essa parte da teoria segundo pensamos foi a que exigiu maior

criatividade e inventividade porque era onde estava o desafio mais difiacutecil O mundo

engendrado pelo entendimento tinha de ter garantidas simultaneamente sua idealidade e sua

realidade sem tocar a coisa em si e sem minar a validade objetiva das representaccedilotildees isto eacute

sem que fossem construiacutedas como puras quimeras de um intelecto Por conseguinte sua

- 135 -

origem intelectual teria de ser demonstrada para que se garantisse o idealismo criacutetico e ao

mesmo tempo a conexatildeo com algo real fora do sujeito teria de ser assegurada para que se

evitasse o solipsismo e a reduccedilatildeo do mundo a nada Esse algo fora do sujeito entretanto natildeo

poderia ser a coisa em si mesma A faculdade da razatildeo por fim produz conceitos a partir de

intuiccedilotildees cujas caracteriacutesticas satildeo abstraiacutedas e fixadas em palavras As regras de inferecircncia e

as leis que a ela pertencem entre elas o princiacutepio de razatildeo satildeo o modo de operar dessa

faculdade que exige um fundamento para todo juiacutezo o qual no fim de todas as cadeias

dedutivas teraacute de ser uma intuiccedilatildeo

Natildeo obstante haacute dois casos agrave parte O primeiro deles eacute a faculdade do

juiacutezo responsaacutevel pelo pensar e pelas verdades empiacutericas Segundo Schopenhauer eacute ela que

governa os conceitos mediando entre o intuitivo e o abstrato entre o entendimento e a razatildeo

Natildeo estaacute poreacutem ligada ao princiacutepio de razatildeo suficiente natildeo lida com fundamentos e

consequecircncias mas com reflexotildees e subordinaccedilotildees de conceitos e intuiccedilotildees O segundo caso agrave

parte satildeo duas classes de objetos natildeo listadas entre as quatro principais abordadas em lugares

distintos Uma delas eacute a que o filoacutesofo chama de Phantasma que podemos entender como

representaccedilotildees produzidas pela imaginaccedilatildeo das quais se pode dizer que satildeo empiacutericas porque

satildeo determinadas e tambeacutem que natildeo satildeo empiacutericas porque natildeo se originam com sensaccedilotildees A

outra classe abrange as chamadas intuiccedilotildees normais comparadas agraves Ideias platocircnicas

definidas como representaccedilotildees tiacutepicas da matemaacutetica que satildeo ao mesmo tempo determinadas

e gerais e se aplicam a todos os objetos possiacuteveis Contudo o filoacutesofo natildeo chega a ancorar a

faculdade do juiacutezo nem as classes adicionais de objetos no princiacutepio de razatildeo de modo que

fica a duacutevida sobre como e onde se originam

Segundo pensamos no desenvolvimento de suas respostas Schopenhauer

busca um ponto firme uma primeira verdade com a qual iniciar seu sistema de modo

satisfatoacuterio Na sua concepccedilatildeo como vimos toda teoria se realiza em conceitos mas o apoio

uacuteltimo deve ser uma verdade intuitiva Nesse sentido natildeo eacute uma mera casualidade que ele

inicie sua obra fundamental com a sentenccedila ldquoO mundo eacute minha representaccedilatildeordquo Essa

proposiccedilatildeo eacute o axioma perfeito para que ele deduza seu sistema completo acerca do

conhecimento como ele mesmo afirma aliaacutes no primeiro capiacutetulo de O MundoII que trata

do ponto de vista fundamental do idealismo278

A partir dela vemos o filoacutesofo desdobrar suas

concepccedilotildees de sujeito objeto coisa em si conhecimento idealismo dentre outras O

278

WWV II Kap 1 p 11 M II cap 1 p 5

- 136 -

princiacutepio de razatildeo suficiente fornece o meacutetodo mas a representaccedilatildeo eacute a primeira verdade

autoevidente da qual ele extrai diligentemente todo o restante Para Schopenhauer esse eacute um

diferencial de seu procedimento filosoacutefico que parte da representaccedilatildeo como primeiro fato da

consciecircncia279

Essa seria tambeacutem a caracteriacutestica que distingue sua filosofia do dogmatismo

como mostra Cacciola pois ele natildeo toma como causas do mundo nem o sujeito nem o

objeto280

Schopenhauer considera a verdade daquela sentenccedila como imediata e evidente e de

modo sintomaacutetico afirma que poderia ser expressa numa foacutermula semelhante agrave de Descartes

ldquoCogito ergo estrdquo (penso logo eacutes)281

Para o filoacutesofo a divisatildeo da consciecircncia entre sujeito e objeto eacute

inexpugnaacutevel porque eacute pressuposta em qualquer pensamento ou intuiccedilatildeo possiacutevel Segue-se

do fato indubitaacutevel da representaccedilatildeo sendo ainda mais radical do que as classes de objetos e

as formas do princiacutepio de razatildeo Essa divisatildeo seria a mais geral e universal concebiacutevel diz

ele pois ldquo[] a decomposiccedilatildeo entre sujeito e objeto eacute a forma comum agravequelas classes eacute a

forma sob a qual somente eacute possiacutevel em geral e pensaacutevel qualquer tipo que seja de

representaccedilatildeo abstrata ou intuitiva pura ou empiacutericardquo282

Seria uma verdade a priori e toda e

qualquer experiecircncia possiacutevel teria de ser pensada dentro dos paracircmetros de sujeito e objeto

Natildeo obstante o sujeito do conhecimento natildeo precisa ser humano pode ser qualquer animal

existente jaacute que o mundo intuitivo natildeo exige o intercurso da razatildeo283

Desse modo a

condicionalidade entre sujeito e objeto eacute dada de um lado pela proacutepria significaccedilatildeo desses

termos que soacute fazem sentido um em relaccedilatildeo ao outro e natildeo podem ser arbitrariamente

separados De outro sujeito e objeto satildeo as duas metades de qualquer representaccedilatildeo satildeo

inseparaacuteveis e existem ou desaparecem um pelo outro e um no outro284

Portanto em relaccedilatildeo

ao sujeito cognoscente Schopenhauer afirma que ldquoo mundo que o cerca soacute existe como

representaccedilatildeo isto eacute apenas e tatildeo somente em relaccedilatildeo a outra coisa o representador que eacute ele

mesmordquo285

Desse modo natildeo teria nenhum fundamento imaginar que a supressatildeo de

uma das partes da consciecircncia cognoscente deixasse intacta a outra pois ambas se

implicariam mutuamente no fato da representaccedilatildeo Haveria uma interdependecircncia muacutetua entre

279

WWV I ersters Buch sect7 p 58 M I Livro I sect7 p 69 280

CACCIOLA M L Schopenhauer e a questatildeo do dogmatismo Satildeo Paulo EDUSP 1994 p 33 281

WWV II Kap 4 p 45 M II cap 4 p 39 282

WWV I ersters Buch sect1 p 31 M I Livro I sect1 p 43 283

WWV I ersters Buch sect1 p 31 M I Livro I sect1 p 43 284

WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I sect2 p 46 285

WWV I ersters Buch sect1 p 31 M I Livro I sect1 p 43

- 137 -

sujeito e objeto representador e representaccedilatildeo de um modo tal que a exclusatildeo do sujeito natildeo

significaria a existecircncia de uma objetividade pura mas a inexistecircncia de qualquer mundo Nas

palavras de Schopenhauer [] o todo objetivo enquanto tal eacute dependente de inumeraacuteveis

modos do sujeito cognoscente com suas formas que tem pressupostas consequentemente

desaparece totalmente se se abstrai o sujeitordquo286

Nesse sentido a fundamentaccedilatildeo do

materialismo eacute falha por considerar que o sujeito eacute determinado pela realidade concreta ou

entatildeo que a deturpa com ideias falsas Do mesmo modo supor a exclusatildeo do objeto

representado natildeo conduziria agrave subsistecircncia de um mundo mais real por si existente pois

nesse caso sobraria apenas o sujeito287

O caraacuteter transcendental de uma filosofia significa para Schopenhauer a

compreensatildeo de que haacute aspectos do conhecimento natildeo devidos agrave experiecircncia e que impotildeem

suas regras aos dados empiacutericos Nas suas palavras ldquoTranscendental eacute a filosofia que traz agrave

consciecircncia que as primeiras e essenciais leis desse mundo que se nos apresenta enraiacutezam-se

no nosso ceacuterebro e por isso satildeo conhecidas a priori Chama-se transcendental pois transpotildee

toda a fantasmagoria dada em direccedilatildeo agrave sua origemrdquo288

Por isso o mundo que assim nos eacute

apresentado natildeo pode ser tomado como absoluto somente como condicionado e dependente

do intelecto animal Em funccedilatildeo disso diz ele questotildees sobre os limites do mundo seu iniacutecio e

fim assim como os nossos satildeo transcendentes isto eacute vatildeo aleacutem de toda e qualquer

experiecircncia possiacutevel Na verdade ele escreve ldquoTodas elas repousam portanto no falso

pressuposto de que aquilo que soacute eacute forma do fenocircmeno ou seja o que eacute representaccedilatildeo

mediada pela consciecircncia cerebral animal liga-se agrave coisa em si mesma e portanto fornece a

natureza primeira e fundamental do mundordquo289

Por conseguinte no mundo como representaccedilatildeo o sujeito imprime suas

formas proacuteprias aos objetos intuiacutedos os quais entatildeo se apresentam em diversidade e

pluralidade O sujeito mesmo poreacutem natildeo participa dessas caracteriacutesticas e se configura como

um todo indiviso em cada ser existente que cria para si mesmo o mundo completo da

representaccedilatildeo290

Como Schopenhauer afirma ldquo[] um uacutenico deles com o objeto

complementa o mundo como representaccedilatildeo como os milhotildees existentes mas se aquele uacutenico

286

WWV I ersters Buch sect7 p 61-62 M I Livro I sect7 p 72 287

UumlV sect19 p 47 CR sect19 p 66 288

PP I Fragmente zur Geschichte der Philosophie sect 13 p 106 Fragmentos para a histoacuteria da filosofia

Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas de Maria Luacutecia Cacciola Satildeo Paulo Iluminuras 2003 sect 13 p 73 (grifos do

autor) 289

Ibidem sect 13 p 107 ibidem sect 13 p 73-74 (grifos do autor) 290

WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I Livro I sect2 p 46

- 138 -

desaparecesse entatildeo o mundo como representaccedilatildeo natildeo existiria maisrdquo291

De acordo com isso

tudo o que depende das formas do tempo do espaccedilo e da causalidade o mundo todo como

representaccedilatildeo possui uma existecircncia relativa existe apenas por meio de outro292

Somente

existe no entendimento pelo entendimento e para ele ldquo[] assim natildeo antes mas apenas

depois de seu empregordquo293

Essa relatividade no entanto natildeo se estabelece por uma

dependecircncia causal do objeto no tocante ao sujeito A causalidade como jaacute vimos produz o

conhecimento do mundo e as proacuteprias intuiccedilotildees empiacutericas mas sua legislaccedilatildeo eacute vaacutelida apenas

para as relaccedilotildees entre os corpos animais e os objetos que os afetam ou entre ldquoobjeto imediato

e mediatordquo294

Nenhuma relaccedilatildeo entre sujeito e objeto eacute estabelecida pelo princiacutepio de razatildeo

suficiente de modo que nem o sujeito causa o objeto nem este causa aquele Nas palavras do

filoacutesofo ldquo[] entre ambos natildeo pode haver nenhuma relaccedilatildeo de fundamento a

consequecircnciardquo295

Pode-se apenas dizer que as formas do sujeito satildeo o limite comum entre ele

e objeto como pertencendo a ambos As duas metades do mundo como representaccedilatildeo

limitam-se mutuamente e ele afirma

A comunidade desse limite mostra-se em que as formas essenciais e por

isso gerais de todos os objetos tempo espaccedilo e causalidade tambeacutem

possam ser encontradas e completamente compreendidas a partir do sujeito

sem o conhecimento do objeto isto eacute na linguagem de Kant situam-se a

priori na nossa consciecircncia296

Idealismo transcendental eacute entatildeo a concepccedilatildeo de que o sujeito do

conhecimento possui em si as condiccedilotildees de existecircncia do mundo objetivo Contudo para

Schopenhauer isso natildeo pode significar que a realidade empiacuterica seja inexistente ou

simplesmente aparecircncia Significa apenas que diz ele ldquo[] natildeo eacute incondicional posto que ela

possui como condiccedilatildeo nossa funccedilatildeo cerebral na qual se originam as formas da intuiccedilatildeo isto

eacute tempo espaccedilo e causalidade que portanto essa realidade empiacuterica eacute apenas a realidade de

um fenocircmenordquo297

A partir daiacute o filoacutesofo extrai trecircs princiacutepios que julga constituiacuterem o

espiacuterito do idealismo transcendental Em primeiro lugar que a realidade empiacuterica existe

291

WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I Livro I sect2 p 46 292

WWV I ersters Buch sect3 p 36 M I Livro I sect3 p 48-49 293

WWV I ersters Buch sect6 p 52 M I Livro I sect6 p 63 294

WWV I ersters Buch sect5 p 43 M I Livro I sect5 p 55 295

WWV I ersters Buch sect5 p 44 M I Livro I sect5 p 56 296

WWV I ersters Buch sect2 p 34 M I Livro I sect2 p 46 297

Ibidem sect 13 p 107 ibidem sect 13 p 74

- 139 -

apenas no presente em segundo que o que eacute verdadeiramente real eacute independente do tempo

e em terceiro que o tempo natildeo se remete agrave coisa em si298

Natildeo obstante como dissemos a idealidade transcendental do mundo que

faz dele um fenocircmeno natildeo pode anular sua veracidade A representaccedilatildeo eacute ideal mas natildeo

pode ser por isso uma miragem ou quimera Ela tem de se apoiar em algo mas natildeo em algo

dado pronto que simplesmente entre no intelecto por algum tipo de osmose Ela natildeo deve

tambeacutem apoiar-se na coisa em si que natildeo pode ser causa de nenhuma impressatildeo nos sentidos

e agrave qual as formas da representaccedilatildeo natildeo podem acessar Torna-se necessaacuterio entatildeo

demonstrar a gecircnese da intuiccedilatildeo sensiacutevel de um modo tal que garanta sua relaccedilatildeo com o

empiacuterico sem que seja um ato de assimilaccedilatildeo pura e simples dele nem uma referecircncia direta

agrave coisa em si Schopenhauer censurou Kant por natildeo ter realizado essa investigaccedilatildeo e dedicou-

se entatildeo agrave tarefa que levou a cabo com a explicaccedilatildeo detalhada do nascimento da intuiccedilatildeo

empiacuterica e do conjunto da experiecircncia como produtos da combinaccedilatildeo entre entendimento e

sensaccedilotildees dos sentidos

A fisiologia se torna o segundo pilar do mundo como representaccedilatildeo ao

lado das formas do sujeito cognoscente pois eacute ela que fornece a origem dos dados sensoriais

como a mateacuteria com a qual o entendimento criaraacute os objetos empiacutericos Daiacute o porquecirc de

Schopenhauer considerar Kant e Cabanis como seus precursores299

De uma forma que lembra

a teoria de Maimon sobre os diferenciais Schopenhauer argumenta que as sensaccedilotildees natildeo

apresentam nenhum objeto a ser conhecido mas apenas impressotildees abafadas no corpo das

quais sem o entendimento nada se concluiria Por conseguinte tambeacutem sua representaccedilatildeo

(Vorstellung) eacute antes uma apresentaccedilatildeo (Darstellung) posto que o objeto empiacuterico natildeo existe

na simples sensaccedilatildeo Ao remeter agrave sensaccedilatildeo sentida nos corpos animais o filoacutesofo

complementa sua argumentaccedilatildeo fundamentando-se em outro conhecimento tatildeo imediato

quanto o fato da representaccedilatildeo isto eacute em um sentimento subjetivo Por isso ele ressalta

inuacutemeras vezes que as sensaccedilotildees permanecem sempre dentro do organismo sob a pele e que

diferem totalmente dos objetos intuiacutedos Numa palavra a intuiccedilatildeo eacute fabricada pelo

entendimento com os dados dos sentidos e ela eacute o proacuteprio objeto

Como resultado na medida em que eacute construiacutedo pelo sujeito

cognoscente o mundo da representaccedilatildeo natildeo possui um ser para aleacutem de ser representado

298

Ibidem sect 13 p 108 ibidem sect 13 p 74-75 299

Ibidem sect 12 p 101 ibidem sect 12 p 69

- 140 -

Como mostramos ser objeto e ser representado eacute o mesmo e isso significa que natildeo haacute um

objeto mais real como a causa da representaccedilatildeo Haacute apenas os efeitos que os corpos causam

entre si e que constituem junto com as formas e a accedilatildeo do entendimento o mundo da

experiecircncia Em funccedilatildeo disso Schopenhauer afirma que o ser dos objetos intuiacutedos eacute

exatamente essa accedilatildeo muacutetua e a produccedilatildeo de efeitos entre si a proacutepria realidade das coisas

se resume a isso300

Nesse sentido diz ele ldquo[] a exigecircncia da existecircncia do objeto fora da

representaccedilatildeo do sujeito e tambeacutem um ser das coisas reais diferente de seu produzir efeito

natildeo tem nenhum sentido e eacute uma contradiccedilatildeo []rdquo301

Portanto o objeto natildeo pode ser pensado

sem o sujeito assim como a proacutepria realidade do mundo externo natildeo pode E

consequentemente o mundo como representaccedilatildeo estaraacute sempre em uma ambiguidade surge

como objeto construiacutedo pelo sujeito com suas formas proacuteprias e com base em sensaccedilotildees

internamente sentidas mas ao mesmo tempo natildeo pode ser declarado irreal ou pura fantasia

porque o intelecto o engendra interpretando efeitos materiais no corpo que lhe corresponde

Dito de outra maneira eacute uma forma do intelecto que cria o ldquoexternordquo com o que se pode

afirmar que o ldquoexternordquo estaacute inserido no ldquointernordquo mas ela o faz com dados sensiacuteveis que

nada representam por si mesmos que natildeo satildeo propriamente objetos de modo que a

objetividade eacute criaccedilatildeo do entendimento

300

WWV I ersters Buch sect5 p 45 M I Livro I sect5 p 57 301

WWV I ersters Buch sect5 p 45 M I Livro I sect5 p 57

- 141 -

Capiacutetulo 3 ndash A constituiccedilatildeo do lado interno do mundo metafiacutesica

31 ndash A Vontade como o em si do indiviacuteduo

Como vimos no capiacutetulo anterior Schopenhauer sustenta que o mundo

como representaccedilatildeo embora ideal possui realidade empiacuterica Essa realidade poreacutem eacute

relativa e condicionada pois natildeo tem apoio em nada verdadeiramente real nada

incondicionado ou metafiacutesico Conforme Schopenhauer a relatividade e o condicionamento

do mundo como representaccedilatildeo natildeo permitem saciar o anseio de saber da filosofia que sempre

se pergunta pelos fundamentos as essecircncias as origens Para ele assim como para Jacobi um

mundo que fosse pura e simplesmente representaccedilatildeo natildeo seria mais do que uma ilusatildeo

tornando-se necessaacuterio encontrar os alicerces que o fixassem a algo verdadeiro Nas palavras

do filoacutesofo ldquoNoacutes queremos conhecer o sentido dessa representaccedilatildeo perguntamos se esse

mundo natildeo eacute nada aleacutem de representaccedilatildeo Nesse caso teria de passar diante de noacutes como um

sonho vazio ou uma formaccedilatildeo fantasmagoacuterica de ar que natildeo merece nossa atenccedilatildeo []rdquo1

Trata-se de mais um aspecto singular do pensamento de Schopenhauer para quem eacute possiacutevel

sem utilizar as leis do fenocircmeno adentrar o iacutentimo do mundo como representaccedilatildeo e conhececirc-

lo No capiacutetulo 18 de O MundoII sobre a cognoscibilidade da coisa em si ele afirma ser

esse o traccedilo mais caracteriacutestico de sua filosofia e tambeacutem o mais importante pelo qual teria

realizado aquilo que Kant entendeu ser impossiacutevel a saber a transiccedilatildeo do fenocircmeno para a

coisa em si2

Na concepccedilatildeo de Schopenhauer o exame detalhado da representaccedilatildeo

intuitiva permite ter um conhecimento de seu conteuacutedo de suas determinaccedilotildees e figuras bem

como esclarecer a significaccedilatildeo deles para que ldquonos falem diretamenterdquo3 E o que esse exame

deveraacute solucionar eacute o antigo problema da relaccedilatildeo entre o real e o ideal isto eacute apontar o

1 WWW I zweites Buch sect17 p 150 M I livro II sect17 p 155

2 WWW II Kap 18 p 221 M II cap 18 p 231

3 WWW I zweites Buch sect17 p 145 M I livro II sect17 p 151

- 142 -

fundamento da representaccedilatildeo que diz o filoacutesofo com exceccedilatildeo do ceticismo e do idealismo

foi considerado por muitas filosofias como totalmente diferente no ser e na essecircncia do

mundo real Embora se coloque entre os membros da escola idealista Schopenhauer concorda

com a distinccedilatildeo radical entre o real e o ideal que se configuraria como um verdadeiro abismo

percebido claramente apenas depois de Descartes4 Natildeo obstante diz o filoacutesofo a

experiecircncia deve ser investigada e delimitada de um modo especiacutefico diferente do cientiacutefico

para que seu nuacutecleo possa ser revelado e natildeo nos mostre apenas um conjunto de hieroacuteglifos

incompreendidos5 A ciecircncia da natureza conforme o filoacutesofo divide-se em dois grandes

ramos a saber a morfologia que descreve as formas permanentes dos objetos e a etiologia

que explica as transformaccedilotildees da mateacuteria segundo a lei de causalidade Nenhum desses ramos

no entanto seria capaz de dar a conhecer o sentido profundo do mundo como representaccedilatildeo

Tampouco a matemaacutetica o seria uma vez que lida com as representaccedilotildees do ponto de vista

das quantidades e soacute se refere a comparaccedilatildeo de grandezas sem fornecer quaisquer

informaccedilotildees sobre o conteuacutedo da intuiccedilatildeo Nesse sentido Gardiner afirma que

[] por muita informaccedilatildeo que as diversas ciecircncias nos proporcionem sobre

as relaccedilotildees que os distintos fenocircmenos da experiecircncia sensorial possuem em

entre si esses fenocircmenos nos parecem falando metaforicamente

ldquoestrangeirosrdquo natildeo se esclareceu ou captou sua autecircntica identidade e

significaccedilatildeo6

O que o estudo cientiacutefico da natureza deixa velado eacute algo que estaacute fora do

seu acircmbito de explicaccedilatildeo isto eacute a essecircncia dos fenocircmenos Segundo Schopenhauer tratam-se

das forccedilas naturais que se exteriorizam de modo regular quando as condiccedilotildees satildeo dadas Nas

palavras dele ldquoA forccedila mesma que se exterioriza a essecircncia interna dos fenocircmenos que

surgem conforme aquelas leis permanece um eterno misteacuterio para ela [a etiologia] totalmente

estranho e desconhecido tanto para os fenocircmenos mais simples quanto para os mais

complexosrdquo7 No caso da mecacircnica por exemplo os conceitos mais baacutesicos natildeo poderiam ser

demonstrados e teriam de ser pressupostos como os de mateacuteria gravidade e

impenetrabilidade Tais conceitos satildeo entatildeo remetidos agrave expressatildeo ldquoforccedilas naturaisrdquo cuja

regularidade de apariccedilatildeo eacute nomeada lei natural mas diz Schopenhauer as ciecircncias da

natureza natildeo resolvem a questatildeo de saber qual eacute essecircncia desses fenocircmenos Ele ilustra esse

aspecto com uma metaacutefora interessante afirmando que o estudo cientiacutefico da natureza se

4 WWW II Kap 18 p 222 M II cap 18 p 232

5 WWW I zweites Buch sect17 p 147 M I livro II sect17 p 153

6 GARDINER op cit p 195 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor)

7 WWW I zweites Buch sect17 p 148 M I livro II sect17 p 154

- 143 -

assemelha agrave explicaccedilatildeo dos sulcos de um corte maacutermore que o perpassam de um lado a outro

mas natildeo mostram o caminho que os levou agrave superfiacutecie8 Essa metaacutefora eacute significativa porque

ilustra bem sua concepccedilatildeo de natureza e de mundo como a exteriorizaccedilatildeo de uma essecircncia que

determina a partir de dentro tudo o que ocorre do lado de fora Sobre esse ponto Gardiner

afirma que as forccedilas naturais ldquoConstituem dito de outro modo um resiacuteduo inexpugnaacutevel em

toda a explicaccedilatildeo cientiacutefica e desse ponto de vista deve-se admitir que a ciecircncia se choca em

todas as partes com algo que eacute incapaz de compreender com seus proacuteprios termos com o

bdquometafiacutesico‟rdquo9

A investigaccedilatildeo schopenhaueriana pretende justamente mostrar aquele

percurso isto eacute o caminho que define internamente as manifestaccedilotildees externas da Vontade A

argumentaccedilatildeo que Schopenhauer formula para deduzir a Vontade como coisa em si

concentra-se no indiviacuteduo humano e em seguida eacute generalizada para todo o restante do

mundo Ele utiliza a autoconsciecircncia como ponto de partida apontando o modo duplo em que

cada um conhece a si mesmo e extraindo daiacute algumas conclusotildees Como sabemos o lado

exterior do mundo eacute objetivo e portanto somente pode ser conhecido por meio do princiacutepio

de razatildeo que eacute o princiacutepio do conhecimento dos objetos As leis do fenocircmeno natildeo podem

conduzir a nada que tenha outra natureza e isso significa que o lado interno do mundo teria

de ser inacessiacutevel conhecimento caso o sujeito se reduzisse ao conhecer Poreacutem diz o

filoacutesofo haacute uma circunstacircncia que torna a situaccedilatildeo em tudo diferente a saber a relaccedilatildeo do

sujeito do conhecer com o mundo que seu intelecto constroacutei eacute intermediada pelo seu proacuteprio

corpo Assim na medida em que o sujeito do conhecer eacute um indiviacuteduo seu corpo poderia ser

conhecido de duas formas distintas a partir de fora e a partir de dentro A partir de fora seria

conhecido como qualquer objeto ou melhor seria construiacutedo pelo sujeito do conhecer com

base nas suas formas a priori e na sensaccedilatildeo a posteriori A partir de dentro por sua vez o

corpo poderia ser conhecido como vontade individual E conforme Schopenhauer ldquoEsta e

somente esta fornece a ele a chave do seu proacuteprio fenocircmeno revela a ele o significado mostra

a ele o interior da engrenagem de seu ser de suas accedilotildees e de seus movimentosrdquo10

O sujeito do conhecimento portanto aleacutem de conhecer seu corpo como

um objeto tem a possibilidade de conhececirc-lo a partir de dentro e de modo imediato Na

verdade segundo Schopenhauer o sujeito eacute idecircntico ao corpo e cada ato de vontade eacute

8 WWW I zweites Buch sect17 p 149 M I livro II sect17 p 154-155

9 GARDINER op cit p 202 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor)

10 WWW I zweites Buch sect18 p 151 M I livro II sect18 p 156-157

- 144 -

imediata e simultaneamente um movimento do corpo11

No texto ldquoAstronomia fiacutesicardquo de

Sobre a Vontade na natureza ele afirma que sua filosofia refuta a tradiccedilatildeo antiga e difundida

de separar como diferentes o movimento por causas e o movimento por vontade12

Nas

palavras dele

O ato de vontade e a accedilatildeo do corpo natildeo satildeo dois estados diferentes

conhecidos objetivamente e ligados pelo elo da causalidade natildeo estatildeo em

relaccedilatildeo de causa e efeito mas eles satildeo um e o mesmo apenas dados de

modo em tudo diferente uma vez muito imediatamente e outra na intuiccedilatildeo

do entendimento13

Por um lado o que se entende por accedilatildeo do corpo seria o ato de vontade

visto pelo lado da intuiccedilatildeo isto eacute tornado objeto por outro o corpo como um todo seria

vontade tornada objeto Desse modo o princiacutepio do movimento seria sempre o mesmo a

vontade como condiccedilatildeo interna e a causa como condiccedilatildeo externa14

Gardiner nota sobre esse

ponto que sem a possibilidade desse conhecimento interno do corpo individual

conheceriacuteamos nossos proacuteprios movimentos apenas como os cientistas conhecem os

fenocircmenos naturais isto eacute ldquonossas accedilotildees seriam somente inteligiacuteveis por referirem-se agraves

regularidades ou leis agraves quais segundo a observaccedilatildeo nos diz conformam-se [os

movimentos]rdquo15

Desse ponto de vista conforme Schopenhauer o corpo eacute chamado

objetidade da vontade (Objektitaumlt des Willens) e as relaccedilotildees entre ele e a vontade podem ser

consideradas em dois sentidos diferentes Tanto se pode pensar a vontade do ponto de vista de

sua exteriorizaccedilatildeo em ato quanto do ponto de vista das influecircncias que ela sofre por meio da

accedilatildeo sobre o corpo No primeiro caso ela se objetiva no segundo um ato sobre o corpo tem

efeito sobre ela Uma accedilatildeo sentida no corpo que esteja de acordo com a vontade seraacute fonte de

prazer enquanto a que esteja em desacordo resultaraacute em dor No texto ldquoSchopenhauer on the

selfrdquo Guumlnter Zoumlller afirma sobre esse ponto que ldquo[] ao enfatizar a centralidade da vontade

no eu Schopenhauer revecirc radicalmente o estatuto do corpo humano substituindo a relaccedilatildeo

tradicional mente-corpo pela identidade vontade-corpordquo16

Para o filoacutesofo entatildeo conhecer o

corpo eacute conhecer a vontade embora assim ela natildeo se revele como unidade nem de modo

11

WWW I zweites Buch sect18 p 151 M I livro II sect18 p 157 12

WN p 409 VN p 135-136 13

WWW I zweites Buch sect18 p 151 M I livro II sect18 p 157 14

WN p 409 VN p 136 15

GARDINER op cit p 208 (traduccedilatildeo nossa) 16

ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 19 (traduccedilatildeo nossa)

- 145 -

perfeito jaacute que os atos do corpo se datildeo isoladamente e no tempo como quaisquer objetos

Portanto conheceriacuteamos a vontade em resoluccedilotildees e accedilotildees que se datildeo sucessivamente mas

natildeo poderiacuteamos associaacute-la a um substrato ou substacircncia permanente17

Na interpretaccedilatildeo de

Zoumlller tomada nesse sentido a vontade individual tambeacutem eacute uma condiccedilatildeo do conhecimento

Como ele explica

[] nem o sujeito do conhecimento nem o sujeito do querer satildeo dados

como tais O sujeito do conhecimento eacute o que conhece em todo o conhecido

e nunca eacute conhecido em si mesmo exceto no sentido atenuado de que os

estados do sujeito do conhecimento podem ser conhecidos por meio de

reflexatildeo Analogamente o sujeito do querer eacute aquele que sente em todo

sentimento (quer em todo desejo) mas nunca eacute sentido em si mesmo exceto

no sentido atenuado de que os estados do sujeito do querer podem ser

sentidos internamente As funccedilotildees subjetivas cognitivas e conativas

[conative] do eu tecircm o estatuto de condiccedilotildees natildeo-empiacutericas de toda a

experiecircncia tanto interna quanto externa tanto cognitiva como afetiva18

Do nosso ponto de vista a relaccedilatildeo da vontade individual com o sujeito do

conhecer natildeo eacute uniacutevoca A vontade eacute apresentada por Schopenhauer como o corpo dado no

fenocircmeno como acabamos de mostrar e simultaneamente como o objeto uacutenico da quarta

classe de representaccedilotildees Conforme o que vimos no capiacutetulo anterior o sujeito do querer eacute

intuiacutedo pelo sujeito do conhecimento como um objeto especial natildeo espacializado pois eacute dado

somente na forma do tempo Em Da quaacutedrupla raiz o filoacutesofo chamou de milagre agrave

identidade do sujeito do querer com o sujeito do conhecer que poderia ser resumida na

identidade da lei de causalidade com a de motivaccedilatildeo19

Segundo Schopenhauer todo o

segundo livro de O Mundo eacute a justificaccedilatildeo desse milagre isto eacute a explicaccedilatildeo do modo como

a vontade pode ser sujeito na medida em que eacute corpo e objeto na medida em que eacute

conhecida pelo sujeito do conhecer20

Zoumlller chama a atenccedilatildeo para a estrutura una que sustenta

essa relaccedilatildeo especiacutefica de sujeito e objeto ao afirmar que ldquoPara Schopenhauer a

correlatividade estrutural natildeo causal que haacute entre o sujeito do conhecimento e o sujeito do

querer em uacuteltima instacircncia equivale agrave identidade delesrdquo21

Em siacutentese a vontade objetivada

seria o corpo na intuiccedilatildeo e a vontade individual internamente conhecida seria o objeto interno

do sujeito do conhecer22

Nesse sentido a identidade entre sujeito e objeto eacute que garante a

17

WWW II Kap 20 p 289 M II cap 20 p 300 18

ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 24 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 19

UumlV sect 42 p 171 CR sect42 p 206 20

WWW I zweites Buch sect18 p 153 M I livro II sect18 p 159 21

ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 26 (traduccedilatildeo nossa) 22

WWW I zweites Buch sect18 p 153 M I livro II sect18 p 159

- 146 -

identidade entre as leis de motivaccedilatildeo e de causalidade Pois escreve o filoacutesofo devemos

compreender que

[] a primeira classe de representaccedilotildees encontra sua explicaccedilatildeo sua

decifraccedilatildeo somente na quarta classe laacute apresentada a qual natildeo deve mais ser

oposta ao sujeito propriamente como objeto e tambeacutem que noacutes temos de

aprender a compreender a correspondecircncia da quarta classe de

representaccedilotildees que cai no domiacutenio da lei de motivaccedilatildeo com a essecircncia

interna da lei de causalidade vaacutelida na primeira classe de representaccedilotildees e

com o que acontece conforme a ela23

Natildeo obstante Schopenhauer ressalta que a identidade da vontade com o

corpo natildeo pode ser demonstrada ou provada pois eacute algo completamente imediato e que natildeo

pode ser deduzido de nada supostamente mais imediato Aquela identidade poderia apenas ser

indicada assinalada e transposta do conhecimento imediato ao discurso conceitual sem que a

exposiccedilatildeo in abstrato pudesse ser respaldada por nenhuma das quatro formas de

fundamentaccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo do conhecer isto eacute loacutegica empiacuterica metafiacutesica ou

metalogicamente Conforme o filoacutesofo a verdade a que aqui se refere eacute de um tipo totalmente

distinto a saber a do juiacutezo que afirma a relaccedilatildeo do corpo com algo que difere totalmente dele

que eacute a vontade24

Essa eacute para ele a grande descoberta a verdade filosoacutefica por excelecircncia

que pode ser expressa de vaacuterios modos

[] meu corpo e minha vontade satildeo um soacute ou o que eu chamo corpo na

representaccedilatildeo intuitiva em outro modo totalmente distinto no qual sou

consciente dele de uma maneira a nada comparaacutevel chamo de minha

vontade ou meu corpo eacute objetidade da minha vontade ou abstraindo de

que meu corpo eacute minha representaccedilatildeo ele eacute apenas minha vontade e assim

por diante25

Schopenhauer reconhece que o modo em que cada um conhece sua

proacutepria vontade eacute distinto de tudo o que ateacute agora designou por conhecimento No capiacutetulo

18 de O MundoII ele ressalta essa singularidade e declara esse conhecimento como uma

exceccedilatildeo agrave regra kantiana segundo a qual conceitos natildeo extraiacutedos de intuiccedilotildees satildeo vazios Nas

palavras dele

Eu aceito isso com relaccedilatildeo a tudo menos ao conhecimento que cada um tem

de sua proacutepria vontade ele natildeo eacute uma intuiccedilatildeo (pois toda intuiccedilatildeo eacute

23

WWW I zweites Buch sect18 p 153 M I livro II sect18 p 159 24

WWW I zweites Buch sect18 p 154 M I livro II sect18 p 160 25

WWW I zweites Buch sect18 p 154-155 M I livro II sect18 p 160 (grifos do autor)

- 147 -

espacial) nem eacute vazio antes eacute mais real do que qualquer outro Tambeacutem

natildeo eacute a priori como o meramente formal mas totalmente a posteriori []26

De certa forma o conhecimento que temos de nossa vontade individual eacute

o autoconhecimento da coisa em si isto eacute o modo pelo qual ela se torna consciente de si

mesma27

Trata-se entatildeo de um saber direto impossiacutevel de tornar-se objetivo ao qual

Schopenhauer se refere como uma ldquoapreensatildeo totalmente imediata de seus movimentos

sucessivosrdquo28

Aleacutem disso somente esse conhecimento nos seria dado desse modo e diz o

filoacutesofo ele eacute ldquo[] o uacutenico datum apto a tornar-se a chave para todo o resto ou como eu jaacute

disse a uacutenica porta estreita para a verdaderdquo29

Ao que nos parece nesse ponto surge outra questatildeo relacionada agrave

ambiguidade do conhecimento que cada um tem da proacutepria vontade Schopenhauer afirma que

se trata do melhor e mais imediato conhecimento que temos o que serve de meio para se

conhecer quaisquer outras coisas mesmo os fenocircmenos mais distantes de noacutes No entanto ele

ressalta que esse conhecimento natildeo eacute completo nem perfeito por ser mediado por um

intelecto corporificado em um ceacuterebro30

Assim ao que tudo indica natildeo se poderia dizer que

esse conhecimento fosse realmente imediato jaacute que haveria um oacutergatildeo fiacutesico como uma

espeacutecie de filtro diante da vontade individual De fato na condiccedilatildeo de representaccedilatildeo o

conhecimento que se tem dela divide-se em sujeito e objeto conhecer e querer

respectivamente Em funccedilatildeo disso conforme o filoacutesofo a vontade nunca se torna diaacutefana eacute

conhecida somente de modo ldquo[] opaco e portanto permanece um enigma para si mesmardquo31

De outro ponto de vista uma vez que a vontade individual se daacute somente na forma do tempo

sem as do espaccedilo e da causalidade Schopenhauer afirma que ldquo[] nesse conhecimento

interno a coisa em si retirou grande parte de seu veacuteu mas ainda natildeo aparece totalmente

nuardquo32

Somente por meio de atos isolados e no decurso do tempo eacute que cada um poderaacute

conhecer sua vontade individual isto eacute natildeo no seu conjunto ou em si e para si Por

conseguinte natildeo se trataria de um conhecimento perfeito mas seria o melhor de que

dispomos pois nele a coisa em si apareceria o mais proacutexima possiacutevel do sujeito cognoscente

ldquoDessa maneirardquo escreve o filoacutesofo

26

WWW II Kap 18 p 227 M II cap 18 p 236-237 (grifos do autor) 27

WWW II Kap 18 p 227 M II cap 18 p 236 28

WWW II Kap 20 p 289 M II cap 20 p 300 29

WWW II Kap 18 p 227 M II cap 18 p 237 30

WWW II Kap 18 p 228 M II cap 18 p 237 31

WWW II Kap 18 p 228 M II cap 18 p 237-238 32

WWW II Kap 18 p 228 M II cap 18 p 238

- 148 -

a doutrina de Kant acerca da incognoscibilidade da coisa em si eacute modificada

esta soacute natildeo eacute cognosciacutevel absolutamente e em seu fundamento poreacutem o seu

fenocircmeno que eacute de longe o mais imediato de todos que se diferencia de

todos os outros toto genere por essa imediaticidade representa a coisa em si

para noacutes []33

Gardiner apresenta interessantes consideraccedilotildees sobre esse ponto Para

ele o pensamento sobre o conhecimento da vontade proacutepria eacute exposto por Schopenhauer de

forma obscura e aleacutem disso conduz a um dilema34

Tomando como correta a distinccedilatildeo entre a

consciecircncia natildeo perceptual que temos de noacutes mesmos como vontade e o conhecimento que

temos das nossas proacuteprias accedilotildees duas consequecircncias se seguiriam Por um lado diz Gardiner

a afirmaccedilatildeo de uma consciecircncia direta da vontade na intuiccedilatildeo interna significaria que a coisa

em si estaacute ao alcance da nossa experiecircncia Ao mesmo tempo essa consciecircncia deveria ser

representaccedilatildeo sem condiccedilotildees de dar acesso agrave coisa em si Por outro lado se a vontade eacute

nuacutemeno natildeo haveria como assegurar que possamos ter experiecircncia dela35

Natildeo obstante de acordo com Schopenhauer embora os atos do corpo se

deem no tempo e fragmentariamente eles expressam um caraacuteter individual uno Ainda que

em atos isolados o corpo manifestaria a vontade integralmente do mesmo modo que o caraacuteter

empiacuterico dado no fenocircmeno manifestaria o caraacuteter inteligiacutevel do indiviacuteduo no seu conjunto

Para o filoacutesofo o corpo humano assim como o do animal satildeo adequados agrave vontade de cada

um isto eacute todos os seus oacutergatildeos e membros correspondem os principais desejos de suas

respectivas vontades A feiccedilatildeo as formas a conformaccedilatildeo dos membros e oacutergatildeos em suma o

corpo no todo e em cada uma de suas partes seria objetidade de uma vontade individual Nas

palavras dele

Cada forma animal eacute um anseio da Vontade de vida invocado pelas

circunstacircncias por exemplo tomada pelo desejo de viver nas aacutervores a

pendurar-se nos seus galhos a alimentar-se de suas folhas sem luta com

outros animais e sem nunca pisar no solo esse anseio apresenta-se pelo

tempo infinito na forma (Ideia platocircnica) do bicho-preguiccedila Quase natildeo

pode andar pois foi projetado apenas para escalar indefeso no chatildeo eacute aacutegil

nas aacutervores e se assemelha a um ramo coberto de musgo para que nenhum

predador o perceba36

Portanto o corpo como um todo eacute fenocircmeno da vontade tornada visiacutevel

como objeto na intuiccedilatildeo Essa tese se confirmaria de um lado porque qualquer accedilatildeo sobre o

33

WWW II Kap 18 p 229 M II cap 18 p 238 (grifos do autor) 34

GARDINER op cit p 257 et seq 35

GARDINER op cit p 258 36

WN p 357 VN p 79-80

- 149 -

corpo eacute simultaneamente accedilatildeo sobre a vontade sentida como prazer ou dor e de outro porque

todo afeto ou paixatildeo violenta abala o corpo e suas funccedilotildees vitais Zoumlller observa sobre esse

ponto que ldquobdquoVontade‟ eacute aqui usada como um termo abrangente para o lado afetivo e volicional

completo do eu juntando efetivamente o que Kant distinguiu como a faculdade do desejo e o

sentimento de prazer e desprazerrdquo37

Tanto o corpo como uma unidade quanto os processos

que levam ao seu crescimento e desenvolvimento que produzem seus movimentos e atos

isolados cada accedilatildeo e suas condiccedilotildees tudo no indiviacuteduo eacute fenocircmeno da vontade Em suma

diz o filoacutesofo ldquo[] noacutes natildeo somos apenas sujeito cognoscente mas de outro lado tambeacutem

pertencemos aos seres cognosciacuteveis somos a proacutepria coisa em si []rdquo38

32 ndash A Vontade como o em si do mundo

Conforme Schopenhauer cada indiviacuteduo conhece seu proacuteprio corpo

duplamente e natildeo apenas do modo unilateral pelo qual conhece os demais objetos Aleacutem de

ser conhecido como fenocircmeno isto eacute como um objeto entre outros o corpo individual pode

ser conhecido tambeacutem como coisa em si Para o filoacutesofo o corpo pode ser conhecido como

coisa em si porque aparece agrave consciecircncia como vontade dando a conhecer internamente seu

atuar seu movimento por motivos e o que sofre em funccedilatildeo de accedilotildees externas Em todos esses

casos ele escreve o corpo ensina ldquo[] sobre o que eacute natildeo como representaccedilatildeo mas fora disso

como em si informaccedilotildees essas que natildeo temos de modo imediato sobre o ser o atuar e o sofrer

de nenhum outro objeto realrdquo39

Essa especificidade no modo de o indiviacuteduo conhecer o corpo

proacuteprio que eacute diferente do modo como conhece todos os outros eacute um ponto muito delicado

da argumentaccedilatildeo porque aqui Schopenhauer tem de evitar um perigo que certamente estaacute agrave

espreita De fato eacute faacutecil perceber que seu trajeto o direcionaria para o egoiacutesmo teoacuterico ou no

37

ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 19 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 38

WWW II Kap 18 p 226 M II cap 18 p 236 (grifos do autor) 39

WWW I zweites Buch sect19 p 155 M I livro II sect19 p 161 (grifos do autor)

- 150 -

miacutenimo dificultaria a fundamentaccedilatildeo da existecircncia do mundo a partir de um indiviacuteduo assim

tatildeo autocentrado

Ele apresenta entatildeo uma escolha como inexpugnaacutevel o sujeito deve

proclamar sua identidade ou sua distinccedilatildeo com relaccedilatildeo aos restantes objetos do mundo No

primeiro caso o indiviacuteduo admitiria que sua representaccedilatildeo de si mesmo se diferencia de todas

as outras somente pelo modo duplo em que ele conhece seu proacuteprio corpo sendo igual a elas

em essecircncia no segundo sustentaria que seu corpo eacute distinto de todos os demais de modo

que apenas e tatildeo somente ele se constituiria como representaccedilatildeo e vontade ao mesmo tempo

No primeiro caso a diferenccedila eacute de perspectiva ou seja somente o modo pelo qual o sujeito se

conhece natildeo poderia ser estendido aos outros objetos enquanto sua essecircncia sim No

segundo afirma-se uma diferenccedila positiva e o indiviacuteduo eacute considerado distinto dos demais

objetos de um ponto de vista real e concreto Daqui poreacutem o indiviacuteduo poderia cair

facilmente para o egoiacutesmo teoacuterico isto eacute para a conclusatildeo de que somente ele proacuteprio eacute real e

todos os outros satildeo apenas representaccedilotildees ilusoacuterias Nesse sentido no capiacutetulo 18 de O

MundoII Schopenhauer escreve

Mas o objeto intuiacutedo tem de ser algo em si mesmo e natildeo apenas algo para

outro pois nesse caso seria absolutamente representaccedilatildeo e teriacuteamos um

idealismo absoluto que ao fim seria egoiacutesmo teoacuterico pelo qual toda a

realidade some e o mundo torna-se a mero fantasma subjetivo40

Eacute clara para ele a importacircncia dessa passagem de sua filosofia

relacionada com a problemaacutetica da realidade do mundo exterior No nosso entendimento a

fundamentaccedilatildeo idealista da realidade empiacuterica acabou por acentuar sua fragilidade pois a

origem subjetiva dela teve de ser desenvolvida e ressaltada Por isso o filoacutesofo teve de

atribuir a todos os outros corpos tanto o ser representaccedilatildeo quanto o ser vontade para que

pudesse garantir a realidade externa da perspectiva metafiacutesica Nas palavras dele ldquoSe os

objetos conhecidos pelo indiviacuteduo apenas como representaccedilotildees satildeo assim como seu proacuteprio

corpo fenocircmenos de uma vontade como jaacute dito no livro anterior este eacute o sentido verdadeiro

da questatildeo sobre a realidade do mundo exterior negaacute-lo eacute o sentido do egoiacutesmo teoacuterico

[]rdquo41

Daiacute a necessidade de se admitir que a diferenccedila natildeo esteja na coisa mas na nossa

relaccedilatildeo com ela42

Segundo Schopenhauer apesar de natildeo se poder demonstrar cabalmente a

falsidade do egoiacutesmo teoacuterico isso seria desnecessaacuterio pois ningueacutem teria uma convicccedilatildeo

40

WWW II Kap 18 p 224 M II cap 18 p 233 (grifos do autor) 41

WWW I zweites Buch sect19 p 156 M I livro II sect19 p 162 (grifos do autor) 42

WN p 349 VN p 70-71

- 151 -

seacuteria dele Embora seja um argumento ceacutetico recorrente sua defesa seria meramente

performaacutetica ou entatildeo fruto de loucura E assim ele daacute por encerrada a necessidade de

desdobrar a argumentaccedilatildeo descrevendo a situaccedilatildeo metaforicamente

[] noacutes que buscamos pela filosofia alargar os limites do nosso

conhecimento veremos o argumento ceacutetico do egoiacutesmo teoacuterico como uma

pequena fortaleza de fronteira que de fato eacute intransponiacutevel mas de onde suas

tropas nunca podem sair podendo-se entatildeo passar e dar as costas sem

perigordquo43

Com fundamento nessas razotildees o filoacutesofo propotildee que o duplo

conhecimento que o sujeito possui da essecircncia e da accedilatildeo do proacuteprio corpo seja estendido ao

conjunto da natureza como padratildeo para a compreensatildeo de todos os fenocircmenos Trata-se do

conhecido argumento da analogia que estabelece uma semelhanccedila necessaacuteria entre o corpo

individual e os restantes objetos Esse eacute um ponto crucial da filosofia schopenhaueriana o que

torna digno de nota o tom hipoteacutetico empregado em toda a exposiccedilatildeo O filoacutesofo defende que

o indiviacuteduo deve reconhecer como anaacutelogos a si mesmo todos os outros objetos isto eacute

reconhecer que satildeo por um lado vontade e por outro represenaccedilatildeo Natildeo haveria alternativa

possiacutevel pois natildeo conheceriacuteamos nada aleacutem de coisa em si e representaccedilatildeo de modo que se

natildeo se atribuiacutesse vontade aos objetos externos eles estariam desprovidos de realidade44

Na

interpretaccedilatildeo de Zoumlller ldquoO mundo eacute aqui entendido com o modelo do eu humano o papel do

intelecto na iluminaccedilatildeo da vontade humana eacute comparado ao papel das formas de vida

inteligentes e racionais no fornecimento do autoconhecimento agrave vontade coacutesmica que em

outra perspectiva eacute cegardquo45

Sem a adoccedilatildeo desse ponto de vista portanto o mundo objetivo como um

todo estaria reduzido a mera representaccedilatildeo isto eacute a aparecircncia sem vinculaccedilatildeo a nada mais

real No entanto ao que nos parece o argumento da analogia eacute o apelo a uma concessatildeo e natildeo

a consideraccedilatildeo de uma evidecircncia ou prova qualquer Em todo caso como afirma Janaway no

texto ldquoWill and Naturerdquo esse procedimento eacute coerente com o ponto de partida de

Schopenhauer uma vez que o filoacutesofo deliberadamente partiu da autoconsciecircncia como

aquilo que nos eacute imediatamente dado e que deve explicar tudo o que eacute mediato Um monismo

seria entatildeo o fundamento da analogia e conforme desse autor ldquoSua posiccedilatildeo moniacutestica de que

minha natureza fundamental natildeo pode ser diferente daquela do todo da realidade natildeo eacute

43

WWW I zweites Buch sect19 p 157 M I livro II sect19 p 162 44

WWW I zweites Buch sect19 p 157-158 M I livro II sect19 p 163 45

ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 19 (traduccedilatildeo nossa)

- 152 -

obviamente despreziacutevel embora possa bem parecer um pensamento extenso demais (ou vago

demais) para se manusear confortavelmenterdquo46

A despeito disso a comparaccedilatildeo que Schopenhauer realiza entre o corpo

do indiviacuteduo como representaccedilatildeo e vontade e os outros objetos intuiacutedos nos parece bem

delineada e justificada Na lei de causalidade haacute sempre trecircs termos cuja interaccedilatildeo eacute

responsaacutevel pelas cadeias causais que compotildeem o mundo empiacuterico a saber leis naturais

causa (ou estiacutemulo) e efeito Na lei de motivaccedilatildeo observamos a mesma estrutura as accedilotildees

exteriorizam-se como efeitos dados na intuiccedilatildeo surgidos a partir de motivos e de uma vontade

individual ou caraacuteter inteligiacutevel De modo semelhante Janaway explica que

Haacute trecircs tipos baacutesicos de relaccedilatildeo causal causa pura e simples estiacutemulo e

motivo Enquanto outros processos na natureza satildeo exemplos de causa e

efeito elementares ou da relaccedilatildeo de estiacutemulo e reposta o querer humano (ou

um ato de vontade) ocorre quando os movimentos do corpo satildeo causados por

motivos sendo estes os estados mentais nos quais um mundo objetivo eacute

apresentado agrave consciecircncia entre eles julgamentos conceituais que podem ter

advindo por raciociacutenio47

Por conseguinte assim como as causas e os efeitos satildeo determinados no

tempo e no espaccedilo os motivos tambeacutem determinam o que se quer num certo tempo e num

certo espaccedilo Poreacutem a vontade individual em si natildeo eacute regida pela lei de motivaccedilatildeo da mesma

forma que as forccedilas naturais permanecem fora do domiacutenio da causalidade

Com essa argumentaccedilatildeo Schopenhauer estende ao restante da natureza a

vontade que cada um conhece imediatamente em si mesmo colocando-a como fundamento

tanto o mundo orgacircnico como o inorgacircnico No caso do mundo orgacircnico como afirma

Janaway ldquoA natureza interna do ser humano eacute a inclinaccedilatildeo no sentido da manutenccedilatildeo e

propagaccedilatildeo da vida e essa mesma natureza interna eacute comum a todos os habitantes do mundo

orgacircnico Um tigre um girassol ou um organismo unicelular tecircm a mesma natureza interna ou

essecircnciardquo48

Por meio de vaacuterios exemplos Schopenhauer sustenta a desvinculaccedilatildeo da vontade

em relaccedilatildeo ao conhecimento e mostra como a conduta de diversos animais eacute guiada por

instinto e habilidade construtiva sem nenhum saber anterior Nas palavras dele ldquoNessas

accedilotildees desses animais eacute evidente como em suas restantes accedilotildees que a vontade eacute ativa mas ela

46

JANAWAY C Will and nature In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 146 (traduccedilatildeo nossa) 47

Ibidem p 143 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 48

Ibidem p 144 (traduccedilatildeo nossa)

- 153 -

estaacute aiacute em uma atividade cega acompanhada certamente de conhecimento mas natildeo guiada

por elerdquo49

Evidenciar que a vontade age sem conhecimento eacute imprescindiacutevel para

que se possa estendecirc-la ao conjunto da natureza De acordo com Schopenhauer uma casa

construiacuteda por um ser humano e a concha de um caracol por exemplo satildeo produtos da

vontade que diferem somente porque no primeiro caso ela age por meio de motivos

enquanto no segundo age cegamente por impulso Do mesmo modo diversas funccedilotildees do

corpo humano como a digestatildeo e a circulaccedilatildeo sanguiacutenea natildeo seriam dirigidas por

conhecimento algum mas por uma vontade que agiria nele cegamente50

No capiacutetulo 23 de O

MundoII Schopenhauer afirma sobre esse ponto

Que a vontade que encontramos em nosso interior natildeo seja como presumiu a

filosofia ateacute agora derivada do conhecimento ou uma mera modificaccedilatildeo

deste isto eacute algo derivado deduzido e como o proacuteprio conhecimento

dependente do ceacuterebro mas que ela seja o prius dele o nuacutecleo do nosso ser e

aquela forccedila originaacuteria que cria e manteacutem o corpo animal enquanto efetua

suas funccedilotildees inconscientes tanto quanto as conscientes esse eacute o primeiro

passo no conhecimento fundamental da minha metafiacutesica51

O mesmo poderia ser dito em relaccedilatildeo agraves plantas e aos objetos

inanimados isto eacute todos seriam expressotildees e manifestaccedilotildees da mesma coisa em si Embora

os objetos inorgacircnicos se mostrem muito diferentes de animais e plantas as leis universais e

imutaacuteveis que regem seus corpos e seus movimentos natildeo deixariam de ser constituiacutedas pela

uacutenica e mesma coisa em si No entender do filoacutesofo natildeo seria preciso muito esforccedilo para ldquo[]

reconhecer de novo mesmo a tatildeo grande distacircncia nosso proacuteprio ser aquilo mesmo que em

noacutes persegue seus objetivos com a luz do conhecimento mas que aqui nos mais fracos dos

seus fenocircmenos se esforccedila cega abafada unilateral e invariavelmente []rdquo52

Em suma a

distinccedilatildeo e a separaccedilatildeo da Vontade em relaccedilatildeo ao conhecimento satildeo entendidas por

Schopenhauer como uma grande contribuiccedilatildeo sua agrave Histoacuteria da Filosofia que sempre uniu

ambos no conceito de alma Para ele trata-se de um feito tatildeo importante como foi para a

Quiacutemica a decomposiccedilatildeo da aacutegua53

49

WWW I zweites Buch sect23 p 169 M I livro II sect23 p 174 50

WWW I zweites Buch sect23 p 169 M I livro II sect23 p 174 51

WWW II Kap 23 p 341 M II cap 23 p 353 52

WWW I zweites Buch sect23 p 173 M I livro II sect23 p 178 53

WN p 339 VN p 61

- 154 -

Embora a coisa em si mesma natildeo seja um objeto nem possa ser pensada

objetivamente seria necessaacuterio pensaacute-la de algum modo o que justificaria a busca de um

meio de aproximar-se dela Para isso Schopenhauer considera que se deve adotar o nome e o

conceito do objeto que mais evidencia sua essecircncia o qual nas palavras dele ldquo[] natildeo pode

ser outro dentre todos senatildeo o seu fenocircmeno mais perfeito isto eacute o mais claro o mais

desenvolvido iluminado pelo conhecimento imediato e esse eacute precisamente a vontade

humanardquo54

Ele utiliza calculadamente o procedimento chamado denominatio a potiori

cunhado na Idade Meacutedia pelo qual se denomina alguma coisa pela sua caracteriacutestica mais

elevada Com isso ele entende que se pode compreender a identidade existente entre a

Vontade e todas as forccedilas naturais bem como a comunidade de todos os fenocircmenos

aparentemente tatildeo heterogecircneos do mundo como representaccedilatildeo ldquoPortantordquo ele escreve ldquoEu

nomeio o gecircnero pela espeacutecie mais excelente cujo caraacuteter mais proacuteximo e imediato a noacutes

conduz ao conhecimento mediato de todas as outras coisasrdquo55

Como visto anteriormente o

que o ser humano tem de especiacutefico em relaccedilatildeo a todos os outros animais eacute a faculdade da

razatildeo que deveraacute entatildeo ser o fenocircmeno mais claro e elevado da Vontade

Schopenhauer enfatiza que a escolha do nome ldquoVontaderdquo natildeo eacute uma

denominaccedilatildeo arbitraacuteria mas sim fundamental para designar a coisa em si pois o que o termo

indica eacute o que conhecemos melhor do que qualquer outra coisa Uma vez que a conhecemos

imediata e inteiramente diz ele ldquo[] eacute o mais real dos conhecimentos reais que eacute aqui

trazido agrave linguagemrdquo56

Para ele caso a conhececircssemos por inferecircncia ou deduccedilatildeo qualquer

nome serviria pois natildeo haveria nada a que devecircssemos ligaacute-la de modo necessaacuterio No

entanto o conceito de Vontade natildeo designaria nada proveniente do fenocircmeno mas o nuacutecleo

interior a consciecircncia imediata em que cada um conheceria sua proacutepria essecircncia diretamente

Essa consciecircncia seria completamente diferente de qualquer outro conhecimento pois nela as

duas metades da representaccedilatildeo sujeito e objeto seriam coincidentes57

Schopenhauer afirma

entatildeo que o conceito de Vontade anaacutelogo ao de vontade individual deve ser alccedilado ao posto

mais elevado e subordinar o conceito de forccedila sob o qual ateacute entatildeo havia sido situado O

conceito de forccedila seria extraiacutedo da experiecircncia e denotaria o caraacuteter de causalidade da causa

com o que seria um conhecimento na verdade mediato Conforme sua explicaccedilatildeo ldquoSe ao

contraacuterio subsumimos o conceito de vontade no de forccedila como feito ateacute agora abdicamos do

54

WWW I zweites Buch sect22 p 164 M I livro II sect22 p 169 (grifos do autor) 55

WWW I zweites Buch sect22 p 164 M I livro II sect22 p 169-170 56

WWW II Kap 23 p 342 M II cap 23 p 354 57

WWW I zweites Buch sect22 p 165-166 M I livro II sect22 p 170-171

- 155 -

nosso uacutenico conhecimento imediato da essecircncia do mundo deixando-o se perder num

conceito abstraiacutedo do fenocircmeno com o qual portanto nunca podemos ir aleacutem desterdquo58

No capiacutetulo 28 de O MundoII Schopenhauer apresenta alguns aspectos

que caracterizariam a Vontade Nas palavras dele ldquoTudo urge e se impele agrave existecircncia onde

possiacutevel agrave orgacircnica isto eacute agrave vida assim ao maior crescimento possiacutevel dela na natureza

animal se torna evidente que a Vontade de vida eacute o tom fundamental de sua essecircncia sua

uacutenica caracteriacutestica imutaacutevel e incondicionadardquo59

Considerada objetivamente a Vontade

mostraria como sua uacutenica intenccedilatildeo a conservaccedilatildeo de todas as espeacutecies o que se poderia notar

segundo o filoacutesofo na prodigalidade com a qual a natureza despende e se desfaz de multidotildees

de indiviacuteduos de quaisquer delas O indiviacuteduo diz ele tem valor relativo como mero meio de

conservaccedilatildeo da espeacutecie que por seu turno eacute eterna como se a natureza se preocupasse

apenas em natildeo perder nenhuma de suas Ideias60

Haacute ainda outras caracteriacutesticas que Schopenhauer confere agrave Vontade

deduzidas da sua contraposiccedilatildeo agrave representaccedilatildeo Pela negaccedilatildeo do que o fenocircmeno eacute ele infere

os atributos da Vontade e defende uma completa incongruecircncia entre ambos Como ele

afirma ldquoO lado real tem de ser algo toto genere diferente do mundo como representaccedilatildeo

nomeadamente o que as coisas satildeo em si mesmas e essa total distinccedilatildeo entre o ideal e o real eacute

o que Kant demonstrou de modo mais fundamentalrdquo61

Nesse sentido o principal ponto de

distanciamento eacute a liberaccedilatildeo da Vontade em relaccedilatildeo agrave estrutura sujeito-objeto e

consequentemente ao princiacutepio de razatildeo62

Tempo e espaccedilo na media em que se ligam ao

princiacutepio tambeacutem natildeo lhe concernem Daiacute o filoacutesofo conclui que natildeo haacute multiplicidade na

coisa em si tampouco relaccedilotildees temporais ou espaciais isto eacute ela eacute una e alheia ao tempo e ao

espaccedilo ldquoPoisrdquo ele escreve ldquotempo e espaccedilo satildeo os uacutenicos pelos quais o que eacute um e o mesmo

segundo a essecircncia e o conceito aparece como diferente como multiplicidade simultacircnea ou

sucessiva satildeo portanto o principium individuationis []rdquo63

Ademais por estar apartada do

princiacutepio de razatildeo a Vontade seria tambeacutem absolutamente sem fundamento tendo sido por

isso considerada sempre como livre Como ele explica ldquo[] posto que a Vontade eacute conhecida

58

WWW I zweites Buch sect22 p 166 M I livro II sect22 p 171 (grifos do autor) 59

WWW II Kap 28 p 410 M II cap 28 p423 (grifos do autor) 60

WWW II Kap 28 p 412 M II cap 28 p424 61

WWW II Kap 18 p 224 M II cap 18 p 234 (grifos do autor) 62

WWW I zweites Buch sect23 p 166 M I livro II sect23 p 171 63

WWW I zweites Buch sect23 p 166-167 M I livro II sect23 p 171

- 156 -

imediatamente e em si na autoconsciecircncia entatildeo nessa consciecircncia situa-se tambeacutem a da

liberdaderdquo64

Como aludimos atraacutes a Vontade eacute o alicerce da representaccedilatildeo o ser

verdadeiramente existente que impede que esta seja mera ilusatildeo ou falsa aparecircncia A

representaccedilatildeo precisa ser expressatildeo de algo que natildeo eacute apenas condicionado e relativo a um

sujeito isto eacute tem de exprimir um ser que esteja para aleacutem de tempo espaccedilo e causalidade

que diz Schopenhauer estatildeo ldquo[] atrelados ao ser representaccedilatildeo enquanto tal natildeo agravequilo que

ser torna representaccedilatildeordquo65

Por conseguinte essas formas natildeo interfeririam nas propriedades

do que eacute representado isto eacute mostrariam apenas o ldquocomordquo natildeo o ldquoquecircrdquo do fenocircmeno sua

forma natildeo seu conteuacutedo66

De modo semelhante tudo aquilo que soacute possa existir por meio

dessas formas como a multiplicidade a mudanccedila a duraccedilatildeo e a representaccedilatildeo da mateacuteria natildeo

se vincularatildeo ao ser da Vontade Assim diz o filoacutesofo ldquo[] tudo isso em conjunto natildeo eacute

essencialmente proacuteprio agravequilo que laacute aparece agravequilo que entrou na forma da representaccedilatildeo

mas se prende unicamente a essa forma mesmardquo67

Schopenhauer aponta uma dicotomia fundamental entre o subjetivo e o

objetivo que se espelharia tambeacutem na relaccedilatildeo entre a Vontade e as formas do conhecimento

Ele considera que conhecer eacute exatamente representar e por isso nunca seraacute idecircntico ao ser em

si da coisa representada O ser em si das coisas ele afirma eacute necessariamente subjetivo mas

na representaccedilatildeo de outrem teraacute sempre de ser objetivo e essa cisatildeo jamais poderaacute ser

remediada68

ldquoPoisrdquo ele escreve

por meio disso [dessa diferenccedila] seu modo de existecircncia foi radicalmente

modificado como algo objetivo exige um sujeito estranho em cuja

representaccedilatildeo existe aleacutem disso como Kant demonstrou entra em formas

que satildeo estranhas agrave sua proacutepria essecircncia justamente porque pertencem

agravequele sujeito cujo conhecer somente elas tornam possiacutevel69

Mesmo os corpos inanimados possuiriam um ser subjetivo natildeo alcanccedilado

pela representaccedilatildeo objetiva e que seria tambeacutem a essecircncia deles Resumidamente a aparecircncia

externa formada na representaccedilatildeo eacute o lado objetivo das coisas o qual por sua vez remete a

64

WWW I zweites Buch sect23 p 167 M I livro II sect23 p 172 65

WWW I zweites Buch sect24 p 175 M I livro II sect24 p 180 (grifos do autor) 66

WWW I zweites Buch sect24 p 177-178 M I livro II sect24 p 182 67

WWW I zweites Buch sect24 p 176 M I livro II sect24 p 180 (grifos do autor) 68

WWW II Kap 18 p 224-225 M II cap 18 p 234 69

WWW II Kap 18 p 225 M II cap 18 p 234 (grifos do autor)

- 157 -

algo em si o subjetivo anunciado pelas propriedades inescrutaacuteveis que o determinam de

dentro para fora como no exemplo dos sulcos no maacutermore70

Schopenhauer considera possiacutevel observarem-se elementos fenomecircnicos

natildeo condicionados por tempo espaccedilo e causalidade e que natildeo podem ser remetidos a eles ou

explicados com base neles Esses elementos revelariam a Vontade pois indicariam a presenccedila

dela imediatamente na representaccedilatildeo71

Na concepccedilatildeo schopenhaueriana somente a

matemaacutetica e a ciecircncia pura da natureza permitem cognoscibilidade total sem que nada reste

obscuro porque lidam apenas com formas intelectuais Assim natildeo poderiam nem

necessitariam ser remetidas a outra coisa Diferentemente os conteuacutedos empiacutericos

introduziriam elementos natildeo completamente cognosciacuteveis ao acrescentarem ldquo[] algo sem

fundamento por meio do qual o conhecimento perde em evidecircncia e a completa transparecircncia

diminuirdquo72

Segundo pensamos desse ponto de vista reaparece aquela relaccedilatildeo inversa de

compreensibilidade entre a Vontade e as formas da representaccedilatildeo que mencionamos

anteriormente Para Schopenhauer quanto mais vinculado agraves formas de tempo espaccedilo e

causalidade estaacute um fenocircmeno menos conteuacutedo empiacuterico exige e mais necessaacuterio claro e

suficiente eacute o seu conhecimento Quanto mais poreacutem algo eacute apreendido empiacuterica e

objetivamente mais distante estaraacute das formas do princiacutepio de razatildeo e das suas condiccedilotildees de

fundamentaccedilatildeo tornando-se mais inexplicaacutevel e contingente73

Haacute um aspecto interessante a ser considerado nesse tocante

Schopenhauer critica severamente o materialismo e sua intenccedilatildeo de reduzir todas as forccedilas

naturais umas agraves outras e todas em conjunto agrave aritmeacutetica Se isso fosse possiacutevel ele afirma

tudo poderia ser explicado com absoluta certeza ateacute seu uacuteltimo fundamento e o conteuacutedo

fenomecircnico seria paulatinamente afastado ateacute estar ausente No entanto essa certeza e essa

necessidade seriam resultado da remissatildeo do mundo todo como representaccedilatildeo ao sujeito o

que significaria ser reduzido a mero fantasma Juntamente com o conteuacutedo empiacuterico do

mundo estariam perdidas a coisa em si bem como toda possibilidade de dar agrave representaccedilatildeo

uma existecircncia real reduzindo-se tudo a fantasias sofismas e castelos de ar74

Isso poreacutem

nunca aconteceraacute escreve o filoacutesofo porque ldquo[] sempre restaratildeo as forccedilas naturais sempre

restaraacute como resiacuteduo insoluacutevel um conteuacutedo do fenocircmeno que natildeo pode ser remetido agrave sua

70

WWW II Kap 18 p 225 M II cap 18 p 235 71

WWW I zweites Buch sect24 p 176 M I livro II sect24 p 180 72

WWW I zweites Buch sect24 p 177 M I livro II sect24 p 181 73

WWW I zweites Buch sect24 p 178 M I livro II sect24 p 182 74

WWW I zweites Buch sect24 p 180 M I livro II sect24 p 184

- 158 -

forma isto eacute que natildeo pode ser esclarecido a partir de outra coisa por meio do princiacutepio de

razatildeordquo75

O caraacuteter insondaacutevel da realidade empiacuterica seria adicionalmente uma evidecircncia a

posteriori da idealidade e mera aparecircncia desse lado do mundo76

De acordo com o dito aquilo que se manteacutem desconhecido em todos os

fenocircmenos que natildeo pode ser explicado pelas causas que desencadeiam cada modo especiacutefico

de accedilatildeo tambeacutem revelaria sua essecircncia Para Schopenhauer as causas os estiacutemulos e os

motivos podem ser descobertos os efeitos podem ateacute ser previstos mas natildeo o porquecirc de cada

modo particular de atuaccedilatildeo A mesma obscuridade e ausecircncia de fundamento existiriam tanto

no fenocircmeno mais simples quanto no mais complexo desde uma gota de aacutegua ateacute o caraacuteter

individual de um ser humano a Vontade eacute a mesma em toda parte Como vimos para que a

essecircncia escondida das coisas seja revelada o conhecimento que cada um tem da sua proacutepria

vontade individual eacute o uacutenico caminho pois eacute ele que pode conectar os dois lados do mundo o

externo e o interno a coisa em si e a representaccedilatildeo Como resultado de um lado o meacutetodo da

analogia estendeu a essecircncia Vontade ao universo da experiecircncia e de outro a relaccedilatildeo causal

foi demonstrada como o princiacutepio subjetivo de formaccedilatildeo e de coesatildeo do mundo objetivo

Com isso Schopenhauer julga ter encontrado por meio da reflexatildeo o ldquoponto certordquo em que

se unem as perspectivas interna e externa do sujeito77

Nas palavras dele

Consumando ao contraacuterio a ligaccedilatildeo acima requerida do conhecimento

externo com o interno laacute onde se tocam entatildeo compreenderemos apesar de

todas as diferenccedilas acidentais duas identidades a saber da causalidade

consigo mesma em todos os graus e a daquele x antes desconhecido (isto eacute

as forccedilas naturais e fenocircmenos vitais) com a Vontade em noacutes78

Portanto as propriedades essenciais de todos os fenocircmenos seu modo de

ser e sua proacutepria existecircncia satildeo objetidade da coisa em si sua visibilidade Isso natildeo significa

dizer que sejam efeitos da Vontade como causa pois afirma Schopenhauer ldquoCoisa nenhuma

no mundo possui uma causa absoluta e geral de sua existecircncia apenas uma causa pela qual eacute

justamente aqui e agorardquo79

Em qualquer dos trecircs tipos de causaccedilatildeo por causa estrita estiacutemulo

ou motivo a causa eacute sempre ocasional ou seja uma mudanccedila especiacutefica dada num instante do

tempo A forccedila natural por seu turno eacute aquilo que originariamente daacute agrave causa a capacidade de

75

WWW I zweites Buch sect24 p 180 M I livro II sect24 p 184 76

WWW II Kap 18 p 226 M II cap 18 p 236 77

WN p 415 VN p 143 78

WN p 416 VN p 144 79

WWW I zweites Buch sect26 p 197 M I livro II sect26 p 201

- 159 -

atuar enquanto a Vontade eacute a essecircncia em si da forccedila80

Entretanto e isso eacute importante de

nenhum modo a causa pode faltar pois eacute o que oferece a oportunidade para a manifestaccedilatildeo

das forccedilas naturais num ponto do tempo e do espaccedilo81

Daiacute resulta por um lado que as forccedilas

naturais as espeacutecies animais e o caraacuteter individual humano satildeo todos fenocircmenos imediatos da

Vontade e portanto sem fundamento assim como ela De outro que o exerciacutecio em si das

forccedilas a essecircncia interna de cada espeacutecie e de cada caraacuteter humano natildeo podem ser explicados

com base nas causas exteriores que desencadeiam sua accedilatildeo Como o filoacutesofo afirma

Mas que ele tenha este caraacuteter que ele queira em geral que entre muitos

motivos exatamente este e natildeo outro sim que algum motivo mova sua

Vontade disso natildeo se pode apontar nenhum motivo O que no homem eacute seu

caraacuteter infundado pressuposto em todo esclarecimento de suas accedilotildees por

motivos eacute exatamente a qualidade essencial de cada corpo inorgacircnico seu

modo de produzir efeito cujas exteriorizaccedilotildees satildeo provocadas por influecircncia

de fora enquanto ela ao contraacuterio natildeo eacute determinada por nada externo isto

eacute natildeo eacute explicaacutevel []82

Schopenhauer procura evitar que essa concepccedilatildeo de forccedilas naturais seja

relacionada a entidades miacutesticas ou de algum modo eteacutereas Embora essas forccedilas tenham

caraacuteter metafiacutesico natildeo devem ser remetidas agrave religiatildeo ou a entes sobrenaturais mas devem

ser investigadas empiricamente ateacute o limite pelas ciecircncias Na concepccedilatildeo do filoacutesofo as

forccedilas naturais satildeo a condiccedilatildeo que daacute sentido agrave explicaccedilatildeo por causas isto eacute estatildeo

relacionadas a eventos empiricamente cognosciacuteveis ainda que na condiccedilatildeo de qualitas oculta

O mesmo natildeo poderia ser dito no tocante agraves entidades religiosas e miacutesticas As forccedilas naturais

portanto estatildeo ligadas agrave etiologia como aquilo que estaacute pressuposto nela natildeo no sentido de

um primeiro elo da cadeia causal do mundo como representaccedilatildeo mas como aquilo sem o qual

natildeo se poderia explicar nada83

ldquoPoisrdquo escreve Schopenhauer

a fiacutesica exige causas mas a Vontade nunca eacute causa sua relaccedilatildeo com o

fenocircmeno de modo algum eacute dada pelo princiacutepio de razatildeo mas o que em si eacute

Vontade de outro lado eacute representaccedilatildeo ou seja fenocircmeno e como tal segue

as leis que constituem a forma do fenocircmeno Assim por exemplo todo

movimento embora seja sempre fenocircmeno da Vontade deve ter apesar disso

uma causa pela qual eacute explicado em relaccedilatildeo com um tempo e um espaccedilo

determinados isto eacute natildeo em geral segundo sua essecircncia interna mas como

fenocircmeno singular84

80

WWW II Kap 23 p 349 M II cap 23 p 360 81

WWW I zweites Buch sect27 p 199 M I livro II sect27 p 203 82

WWW I zweites Buch sect24 p 181 M I livro II sect24 p 185 83

WWW I zweites Buch sect26 p 200 M I livro II sect26 p 203 84

WWW I zweites Buch sect27 p 199 M I livro II sect27 p 203 (grifos do autor)

- 160 -

Do exposto resulta que natildeo se pode utilizar a etiologia para chegar a um

fundamento que ela natildeo pode encontrar e que de qualquer modo natildeo saberia reconhecer Em

funccedilatildeo disso Schopenhauer parte de um conhecimento especial do que nos eacute mais proacuteximo

de um saber imediato para desvendar o mais distante e desconhecido Ao comparar o que

ocorre em si mesmo no momento em que seu corpo age com o modo de accedilatildeo de quaisquer

corpos orgacircnicos ou inorgacircnicos o indiviacuteduo poderia compreender que seu processo de

mudanccedila eacute idecircntico ao destes uacuteltimos e que suas essecircncias tambeacutem o satildeo85

Schopenhauer

exemplifica divertidamente que uma pedra teria razatildeo se julgasse que sua trajetoacuteria no ar

causada por uma colisatildeo fosse fruto de sua vontade proacutepria ldquoO choque eacute para ela o que o

motivo eacute para mim e o que aparece nela como coesatildeo gravidade e resistecircncia no estado

advindo eacute segundo a essecircncia interna o mesmo que reconheccedilo em mim como vontade e que

se ela adquirisse conhecimento tambeacutem entenderia como Vontaderdquo86

Nesse ponto eacute interessante observar que Schopenhauer identificou nas

ciecircncias de seu tempo uma confirmaccedilatildeo de seus principais resultados metafiacutesicos Para ele

esse aspecto distingue sua filosofia de todas as outras porque natildeo deixa como estas um

abismo intransponiacutevel entre a metafisica e a experiecircncia87

De fato como afirma Gardiner

essa eacute uma posiccedilatildeo fundamental de Schopenhauer a saber que ldquo[] nenhuma explicaccedilatildeo

filosoacutefica de nossa existecircncia enquanto seres inteligentes pode ser aceita se natildeo se faz justiccedila

aos fatos evidentes de nossa situaccedilatildeo na natureza fiacutesica na condiccedilatildeo de criaturas dotadas de

certa constituiccedilatildeo e organizaccedilatildeo corporalrdquo88

A obra Sobre a Vontade na natureza se dedica

justamente a apresentar essas comprovaccedilotildees mostrando no entender do filoacutesofo que sua

metafiacutesica natildeo ldquoflutua no arrdquo como as anteriores mas estaacute ancorada no solo firme das ciecircncias

empiacutericas89

E essa comprovaccedilatildeo natildeo seria relativa a um ponto qualquer do seu pensamento

mas agravequele mais fundamental a saber o que estabelece a Vontade como o nuacutecleo metafiacutesico

de tudo Nesse caso diz Schopenhauer cientistas e filoacutesofo se encontram de modo

inesperado

Pois aqueles pesquisadores reconhecem agora que alcanccedilaram o ponto de

encontro procurado inutilmente por muito tempo entre fiacutesica e metafiacutesica

que como ceacuteu e Terra nunca quiseram se tocar reconhecem que se iniciou a

conciliaccedilatildeo entre ambas as ciecircncias e que o ponto de ligaccedilatildeo entre elas foi

85

WWW I zweites Buch sect24 p 182 M I livro II sect24 p 186 86

WWW I zweites Buch sect24 p 183 M I livro II sect24 p 187 87

WN p 320 VN p 39 88

GARDINER op cit p 224 (traduccedilatildeo nossa) 89

WN p 320-321 VN p 40

- 161 -

encontrado Mas o sistema filosoacutefico que vivencia essa vitoacuteria alcanccedila com

isso uma prova externa tatildeo forte e suficiente de sua verdade e correccedilatildeo que

nenhuma outra maior eacute possiacutevel90

Em siacutentese a accedilatildeo e o movimento do indiviacuteduo por motivos que

conhecemos em noacutes mesmos a partir de dentro explicam o modo de atuaccedilatildeo e o movimento

em toda a natureza As forccedilas naturais seriam distintas da vontade individual somente em

grau e as diferenccedilas entre os objetos naturais existiriam apenas na representaccedilatildeo todos

seriam exteriorizaccedilotildees da mesma coisa em si No entender de Schopenhauer esse eacute o uacutenico

uso da reflexatildeo que pode seguir aleacutem do fenocircmeno e alcanccedilar a Vontade em si91

Nesse

sentido ele escreve

Que aleacutem disso eacute aquela mesma Vontade que situa a gema da planta para

que folha ou flor se desenvolvam sim que a forma regular do cristal eacute

apenas o vestiacutegio restante de sua aspiraccedilatildeo momentacircnea que ela em geral

como o verdadeiro e uacutenico ἀςηόμαηον no sentido proacuteprio do termo subjaz

como fundamento de todas as forccedilas da natureza inorgacircnica joga e atua em

todos os seus variados fenocircmenos empresta forccedila a suas leis e se daacute a

conhecer na massa mais bruta como gravidade ndash essa concepccedilatildeo eacute o segundo

passo naquele conhecimento fundamental jaacute proporcionado por uma

reflexatildeo mais ampla92

33 ndash Objetivaccedilatildeo da Vontade

Schopenhauer define como objetivaccedilatildeo da Vontade sua

ldquoautoapresentaccedilatildeo no mundo real corpoacutereordquo93

De acordo com ele a coisa em si se objetiva

em uma infinidade de seres e de graus cuja essecircncia no entanto eacute a mesma pois satildeo

diferentes apenas em aparecircncia94

Haveria graus maiores e menores de manifestaccedilatildeo da

Vontade dispostos numa hierarquia a planta seria um grau maior do que a pedra o animal

90

WN p 324 VN p 43-44 91

WWW I zweites Buch sect21 p 163 M I livro II sect21 p 168 92

WWW II Kap 23 p 341-342 M II cap 23 p 353-354 93

WWW II Kap 20 p 286 M II cap 20 p 297 94

WWW I zweites Buch sect24 p 185 M I livro II sect24 p 189

- 162 -

maior do que a planta e o ser humano maior do que o animal Por conseguinte a gradaccedilatildeo dos

fenocircmenos resultantes da objetivaccedilatildeo da Vontade conduziria da mateacuteria sem vida ao ser

humano racional sem que ela deixasse de ser idecircntica em todos eles Conforme o filoacutesofo as

infinitas gradaccedilotildees satildeo como graus mais fracos ou mais fortes de uma mesma luz de modo

que a Vontade se manifesta completamente em cada um e em todos os fenocircmenos

No texto ldquoSchopenhauer et la physiologie franccedilaiserdquo Paul Janet aponta

as origens dessa concepccedilatildeo nas obras de Cabanis e de Bichat Segundo esse autor Bichat

divisou certas pequenas vontades nas atividades e funccedilotildees orgacircnicas certas hierarquias

subconscientes de ldquopequenos eurdquo (petits moi) que se encaixam infinitamente95

Generalizando

essa perspectiva Cabanis teria buscado uma causa geral dos fenocircmenos vitais que pudesse ser

atribuiacuteda a toda a natureza Conforme Janet ldquoEle suspeita que haja bdquoalguma analogia entre a

sensibilidade animal o instinto das plantas as afinidades eletivas e a simples atraccedilatildeo

gravitacional‟ e em todos esses fenocircmenos ele vecirc um fato comum bdquoa tendecircncia dos corpos

uns aos outros‟rdquo96

Essa concepccedilatildeo segundo o autor conteacutem em germe toda a filosofia de

Schopenhauer com a uacutenica diferenccedila de que Cabanis chama sensibilidade o que o filoacutesofo

chama vontade Em ambos os casos todas as forccedilas naturais do mundo orgacircnico e do

inorgacircnico poderiam ser remetidas a um mesmo princiacutepio apenas nomeado distintamente

pelo filoacutesofo e pelo fisioacutelogo97

Na filosofia schopenhaueriana os graus mais altos de objetivaccedilatildeo da

Vontade satildeo aqueles que manifestam individualidade Os seres humanos teriam chegado ao

cume dessa gradaccedilatildeo diz Schopenhauer pois somente neles a individualidade teria atingido o

ponto em que se tem personalidade e fisionomia completamente particulares Alguns animais

se aproximariam disso mas natildeo possuiriam individualizaccedilatildeo do caraacuteter e expressariam apenas

o da sua espeacutecie Para o filoacutesofo em virtude de distinccedilotildees fisioloacutegicas no desenvolvimento de

seus ceacuterebros o caraacuteter da espeacutecie determina as accedilotildees individuais deles enquanto nos seres

humanos cada caraacuteter se expressa de modo pessoal Nas palavras dele ldquoEnquanto cada

homem deve ser visto como fenocircmeno especialmente determinado e caracterizado da

Vontade ateacute mesmo de certo modo como uma Ideia proacutepria no animal esse caraacuteter individual

falta completamente e somente a espeacutecie possui significaccedilatildeo particular []rdquo98

Jaacute nas plantas

95

JANET P Schopenhauer et la physiologie franccedilaise Cabanis et Bichat Revue des deux mondes Tome 9

Paris Bureau de la Revue de deux mondes Mai-1880 p 46 96

Ibidem p 46-47 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 97

Ibidem p 46-47 98

WWW I zweites Buch sect26 p 189 M I livro II sect26 p 193-194

- 163 -

e na natureza inorgacircnica a individualidade seria completamente ausente e conforme o

filoacutesofo ldquoQuanto mais se desce mais se perde cada vestiacutegio de caraacuteter individual no caraacuteter

geral da espeacutecie restando somente a fisionomia destardquo99

Cada um dos graus de objetivaccedilatildeo da Vontade satildeo denominados Ideia por

Schopenhauer em sentido platocircnico As forccedilas naturais seriam Ideias de uma objetivaccedilatildeo de

niacutevel inferior e as leis naturais seriam o modo de relaccedilatildeo entre elas e as formas do fenocircmeno

Por obra do tempo e do espaccedilo a Ideia se multiplicaria em inumeraacuteveis seres cujo

aparecimento seria determinado pela causalidade que ademais seria a regra por meio da qual

a mateacuteria seria dividida entre as forccedilas naturais100

ldquoPortantordquo explica o filoacutesofo ldquoessa norma

se relaciona necessariamente com a identidade da mateacuteria total existente a qual eacute o substrato

comum de todos aqueles diferentes fenocircmenosrdquo101

Assim Vontade e Ideias manifestam-se de

modo idecircntico nos fenocircmenos por mais numerosos que sejam e natildeo satildeo afetadas por

quaisquer mudanccedilas oriundas de tempo espaccedilo e causalidade

Revela-se nesse ponto novamente a relaccedilatildeo entre a lei de causalidade e

a da permanecircncia da substacircncia bem como a conexatildeo de espaccedilo e tempo no tocante a ambas

Segundo Schopenhauer o tempo eacute a possibilidade de que a mesma mateacuteria possa ter

determinaccedilotildees opostas e o espaccedilo eacute a possibilidade de que a mesma mateacuteria possa

permanecer sob determinaccedilotildees opostas102

ldquoPor issordquo ele escreve ldquoesclarecemos a mateacuteria no

livro anterior como uniatildeo de tempo e espaccedilo essa uniatildeo se apresenta como mudanccedila dos

acidentes na permanecircncia da substacircncia da qual a causalidade ou o devir eacute a possibilidade

universalrdquo103

Natildeo obstante no capiacutetulo 24 de O MundoII ele afirma que essa perspectiva eacute

unilateral porque soacute examina a mateacuteria do ponto de vista de suas relaccedilotildees com as formas do

intelecto Fora dessas relaccedilotildees isto eacute do seu fazer efeito a mateacuteria seria uma abstraccedilatildeo um

pensamento pois natildeo possuiria determinaccedilatildeo alguma que pudesse ser intuiacuteda104

Por conseguinte a mateacuteria se identificaria com a causalidade e

corresponderia ao conceito de substacircncia ldquoDe acordo com issordquo Schopenhauer afirma ldquoa

essecircncia total da mateacuteria consiste em fazer efeito somente por meio deste ela preenche o

espaccedilo e permanece no tempo ela eacute completamente pura causalidade Portanto onde eacute

99

WWW I zweites Buch sect26 p 189 M I livro II sect26 p 193 100

WWW I zweites Buch sect26 p 192-193 M I livro II sect26 p 196-197 101

WWW I zweites Buch sect26 p 193 M I livro II sect26 p 197 102

WWW I zweites Buch sect26 p 193 M I livro II sect26 p 197 103

WWW I zweites Buch sect26 p 193 M I livro II sect26 p 197 104

WWW II Kap 24 p 356 M II cap 24 p 367

- 164 -

produzido efeito haacute mateacuteria e material eacute o que faz efeito em geralrdquo105

Desse ponto de vista a

mateacuteria seria a forma a priori da causalidade poreacutem objetivada isto eacute ligada ao tempo e ao

espaccedilo Natildeo consiste em objeto empiacuterico e natildeo eacute dada em experiecircncia alguma mas diz o

filoacutesofo assim como o entendimento eacute condiccedilatildeo da experiecircncia e um elemento necessaacuterio

dela Eacute entatildeo o substrato permanente de todas as exteriorizaccedilotildees das forccedilas naturais dos

seres vivos numa palavra do mundo todo como representaccedilatildeo106

Sem forma sem

qualidades sem determinaccedilotildees e inerte a mateacuteria estaria sempre pronta a assumir a aparecircncia

de quaisquer manifestaccedilotildees da Vontade natildeo podendo pode ser subtraiacuteda completamente do

mundo como representaccedilatildeo sem que ele deixasse por isso mesmo de ser o que eacute

Apesar de natildeo ser um objeto a mateacuteria conteria um elemento dado

apenas a posteriori Nas palavras de Schopenhauer ldquoEla eacute na verdade o ponto de contato do

lado empiacuterico do nosso conhecimento com o puro e aprioriacutestico portanto a pedra angular

proacutepria do mundo da experiecircnciardquo107

Nessa perspectiva a mateacuteria se configuraria como a

proacutepria Vontade na medida em que esta se manifesta na parte empiacuterica dos corpos Assim

ele explica a mateacuteria como aquilo atraveacutes do qual a coisa em si se torna visiacutevel intuiacutevel e que

constitui a ligaccedilatildeo entre o mundo como Vontade e como representaccedilatildeo Conforme o filoacutesofo

ldquoPertence a este enquanto eacute produto das funccedilotildees do intelecto agravequele na medida em que o

que se manifesta em todos os seres materiais isto eacute fenocircmenos eacute a Vontaderdquo108

Como

consequecircncia sem as formas do conhecimento a mateacuteria se revela como a coisa em si pois eacute

exatamente aquilo que se torna extenso e produz efeito ao tomar as formas do tempo espaccedilo

e causalidade Entatildeo diz Schopenhauer ldquoA mateacuteria eacute por conseguinte a proacutepria Vontade

mas natildeo em si e sim enquanto eacute intuiacuteda isto eacute enquanto adota a forma da representaccedilatildeo

objetiva assim o que objetivamente eacute mateacuteria subjetivamente eacute Vontaderdquo109

As forccedilas naturais objetivariam uma Ideia menos perfeita da Vontade um

impulso cego e sem conhecimento que se manifestaria de modo idecircntico em inumeraacuteveis

fenocircmenos Nesse niacutevel de objetivaccedilatildeo natildeo haveria caraacuteter individual em parte alguma e

cada Ideia expressaria o mesmo impulso multiplicado milhares de vezes110

Os fenocircmenos do

mundo orgacircnico por sua vez objetivariam uma Ideia mais perfeita da Vontade mas ainda de

105

WWW II Kap 24 p 357 M II cap 24 p 368 (grifos do autor) 106

WWW II Kap 24 p 357 M II cap 24 p 368 107

WWW II Kap 24 p 358 M II cap 24 p 369 108

WWW II Kap 24 p 359 M II cap 24 p 370 (grifos do autor) 109

WWW II Kap 24 p 360 M II cap 24 p 371 110

WWW I zweites Buch sect27 p 211-212 M I livro II sect27 p 214

- 165 -

modo cego Mesmo no reino vegetal onde a Vontade eacute mais clara sua objetivaccedilatildeo ainda se daacute

como o impulso cego que governa a vida das plantas e a parte vegetativa do corpo animal111

Nesse caso cada Ideia deve expressar sem nenhum sinal de individualidade espeacutecies de

plantas e estiacutemulos dos corpos orgacircnicos com vistas agrave sua geraccedilatildeo desenvolvimento e

conservaccedilatildeo

Nos graus mais aprimorados de objetivaccedilatildeo da Vontade por seu turno os

indiviacuteduos expressariam Ideias Nesse niacutevel estatildeo os animais cuja individualidade estaacute

relacionada com a necessidade de buscar o alimento que diz Schopenhauer natildeo chega

facilmente ateacute eles mas ldquo[] tem de ser procurado escolhido desde o instante em que o

animal saiu do ovo ou do ventre materno onde vegetava sem conhecimentordquo112

Os animais

precisam movimentar-se e entatildeo os motivos satildeo o meio necessaacuterio para a preservaccedilatildeo do

indiviacuteduo e com ele da espeacutecie Uma vez que o conhecimento passa a ser fundamental o

ceacuterebro surge para satisfazer essa necessidade como oacutergatildeo que expressa esse esforccedilo e cria o

mundo o como representaccedilatildeo113

Conforme o filoacutesofo ldquoO mundo mostra agora seu segundo

lado Ateacute entatildeo pura Vontade agora eacute simultaneamente representaccedilatildeo objeto do sujeito

cognoscenterdquo114

Com o surgimento do conhecimento nos universos animal e humano

poreacutem perde-se a infalibilidade com a qual a Vontade segue seus alvos no restante da

natureza Enquanto era pura e simplesmente impulso cego natildeo se via atrapalhada ou

complicada por nenhum saber mas na medida em que os motivos passaram a fazer parte das

cadeias causais trouxeram consigo o engano e a ilusatildeo Nesse sentido diz Schopenhauer o

mundo como representaccedilatildeo eacute ldquo[] de fato apenas a imagem de sua proacutepria essecircncia mas de

natureza totalmente distinta e que agora interfere na coesatildeo de seus fenocircmenosrdquo115

Motivos

falsos passam assim a poder influir sobre as vontades como se fossem os corretos podendo

levar ao erro e agrave distorccedilatildeo nas exteriorizaccedilotildees da essecircncia individual116

No caso dos seres

humanos as carecircncias e vulnerabilidades exigiram uma potecircncia mais elevada de

conhecimento que seria entatildeo a origem da superioridade do seu intelecto No entanto ao

mesmo tempo em que o instinto ficou em segundo plano a seguranccedila e o caraacuteter infaliacutevel das

111

WWW I zweites Buch sect27 p212 M I livro II sect27 p 214-215 112

WWW I zweites Buch sect27 p 212 M I livro II sect27 p 215 113

WWW I zweites Buch sect27 p 212 M I livro II sect27 p 215 114

WWW I zweites Buch sect27 p 212-0213 M I livro II sect27 p 215 (grifos do autor) 115

WWW I zweites Buch sect77 p 213 M I livro II sect27 p 216 116

WWW I zweites Buch sect27 p 214 M I livro II sect27 p 217

- 166 -

exteriorizaccedilotildees da Vontade se perderam completamente Com isso a melhor objetivaccedilatildeo seraacute

de certo modo a pior delas pois ao substituir o instinto e a regularidade das leis naturais a

reflexatildeo deu origem a erros e hesitaccedilotildees que em muitos casos prejudicam a exteriorizaccedilatildeo

adequada em accedilotildees isto eacute exatamente aquilo para o que existe

34 ndash Relaccedilotildees da Vontade com o intelecto e o ceacuterebro

No capiacutetulo 22 de O MundoII Schopenhauer aborda o intelecto do

acircngulo da objetividade isto eacute como uma representaccedilatildeo e afirma que esse ponto de vista

precisa ser harmonizado com o subjetivo117

A perspectiva subjetiva jaacute abordada por noacutes no

segundo capiacutetulo deste trabalho examina o que eacute dado na consciecircncia com o fim descrever o

mecanismo de construccedilatildeo do mundo pelo intelecto A objetiva por sua vez investiga o

intelecto do ponto de vista externo isto eacute como um objeto empiacuterico Esse modo de

consideraccedilatildeo segundo o filoacutesofo ldquoEacute portanto em primeiro lugar zooloacutegico anatocircmico e

fisioloacutegico tornando-se filosoacutefico somente pela ligaccedilatildeo com aquele primeiro ponto de vista

pelo qual se torna superiorrdquo118

Na nossa interpretaccedilatildeo a perspectiva fisioloacutegica de

consideraccedilatildeo tem tanto peso e valor no pensamento schopenhaueriano quanto a filosoacutefica

Janet observa nesse sentido que as investigaccedilotildees fisioloacutegicas tiveram uma influecircncia decisiva

sobre o filoacutesofo pois ele afirma ldquoSe o primeiro livro de sua obra vem de Kant pode-se dizer

que o segundo vem em grande parte de Cabanis e Bichatrdquo119

De fato Schopenhauer

considera que as contribuiccedilotildees desses pensadores natildeo podem ser ignoradas por filoacutesofos se

estes natildeo quiserem oferecer apenas um ponto de vista unilateral e insuficiente do intelecto

como teria sido o de Kant120

Nesse sentido ele escreve que

117

WWW II Kap 22 p 316 M II cap 22 p 329 118

WWW II Kap 22 p 317 M II cap 22 p 329 119

JANET op cit p 36 (traduccedilatildeo nossa) 120

WWW II Kap 22 p 317 M II cap 22 p 330

- 167 -

A verdadeira fisiologia no que tem de mais elevado demonstra o espiritual

do homem (o conhecimento) como produto do seu fiacutesico e isso Cabanis fez

como nenhum outro mas a verdadeira metafiacutesica nos ensina que esse fiacutesico

mesmo eacute mero produto ou antes fenocircmeno de algo espiritual (a Vontade)

sim que a proacutepria mateacuteria eacute condicionada pela representaccedilatildeo unicamente na

qual ela existe121

No entender de Schopenhauer os pontos de vista subjetivo e objetivo satildeo

contrastantes O que eacute pensamento viacutevido e consciente na primeira perspectiva na segunda

natildeo eacute mais do que funccedilatildeo fisioloacutegica do ceacuterebro semelhante a quaisquer outras funccedilotildees da

vida animal ou vegetal Em virtude disso diz o filoacutesofo ldquo[] eacute legiacutetimo afirmar-se que a

totalidade do mundo objetivo tatildeo ilimitado no espaccedilo tatildeo infinito no tempo tatildeo impenetraacutevel

na perfeiccedilatildeo eacute na verdade apenas um certo movimento ou afecccedilatildeo da massa mole dentro do

cracircniordquo122

Embora seja o fenocircmeno mais aprimorado da natureza essa mateacuteria cerebral nos

aproxima de todos os outros animais e da vida orgacircnica mais simples na medida em que toma

parte no universo de objetivaccedilotildees da Vontade Isso porque Schopenhauer escreve ldquo[]

aquela massa orgacircnica gelatinosa eacute o uacuteltimo produto da natureza que jaacute pressupotildee todos os

outrosrdquo123

Portanto como tudo o mais o intelecto eacute fenocircmeno da Vontade Do

ponto de vista fenomecircnico a pluralidade e separaccedilatildeo dos seres torna o conhecimento

necessaacuterio no mundo como representaccedilatildeo De acordo com Schopenhauer o conhecimento eacute

exigido somente quando haacute no miacutenimo dois seres distintos para que um possa conhecer o

outro Caso houvesse um uacutenico ser natildeo haveria nada cuja existecircncia pudesse ser conhecida

pois ele escreve ldquoEle mesmo jaacute seria tudo em tudo consequentemente nada restaria a

conhecer isto eacute nada estranho que pudesse ser interpretado como coisa objetordquo124

A

multiplicidade separaria os indiviacuteduos que teriam entatildeo de transpor os limites materiais dos

seus proacuteprios ceacuterebros ou melhor os intelectos precisariam romper suas fronteiras por meio

da causalidade para produzir a intuiccedilatildeo de outras coisas125

Pluralidade e conhecimento

seriam mutuamente condicionantes e diz o filoacutesofo ldquoConclui-se daiacute que para aleacutem do

fenocircmeno no ser em si de todas as coisas elas devem ser estranhas a tempo e espaccedilo

portanto tambeacutem a multiplicidade e tampouco pode existir nenhum conhecimentordquo126

121

WN p 340 VN p 61 (grifos do autor) 122

WWW II Kap 22 p 318 M II cap 22 p 330 123

WWW II Kap 22 p 318 M II cap 22 p 331 124

WWW II Kap 22 p 319 M II cap 22 p 331-332 (grifos do autor) 125

WWW II Kap 22 p 319 M II cap 22 p 332 126

WWW II Kap 22 p 320 M II cap 22 p 332

- 168 -

O intelecto surgiria entatildeo no animal como um meio de satisfazer

necessidades de sobrevivecircncia e progrediria em graus crescentes de aperfeiccediloamento O

ceacuterebro humano seria o ponto mais alto de perfeiccedilatildeo a que o conhecimento teria chegado e

sua diferenccedila especiacutefica em relaccedilatildeo ao ceacuterebro de todos os outros animais seria a capacidade

de influenciar a Vontade com motivos abstratos Segundo o filoacutesofo o mundo como

representaccedilatildeo nasce simploacuterio e humilde ldquomas ele se manifesta de modo cada vez mais

niacutetido mais amplo e profundo na medida em que na seacuterie ascendente das organizaccedilotildees

animais o ceacuterebro eacute produzido cada vez mais perfeitamenterdquo127

Nas plantas e no mundo

inorgacircnico os estiacutemulos e as causas estritas seriam anaacutelogos do conhecimento enquanto

meios pelos quais cada ser recebe as influecircncias de fora As distintas receptividades agraves causas

aos estiacutemulos e ao conhecimento teriam a mesma funccedilatildeo de satisfazer as necessidades dos

seres com vistas agrave manutenccedilatildeo da vida do indiviacuteduo e da espeacutecie128

Nesse sentido como

afirma Gardiner ldquoTodas as formas comuns de conhecimento inclusive o cientiacutefico devem

levar sobre si a marca da vontade por ser esta sua raison drsquoecirctrerdquo129

Em virtude de o ceacuterebro ser o niacutevel maacuteximo de perfeiccedilatildeo e complexidade

do organismo as afecccedilotildees dos sentidos mais nobres visatildeo e audiccedilatildeo satildeo meramente

percebidas por ele e natildeo afetam a vontade isto eacute natildeo provocam dor ou prazer130

O alto grau

de sensibilidade desse oacutergatildeo permitiria ao entendimento realizar espontaneamente sem

relaccedilatildeo com a vontade a transiccedilatildeo da impressatildeo sentida no corpo ao objeto externo ldquoAssimrdquo

escreve Schopenhauer

o ponto onde o entendimento da sensaccedilatildeo na retina que ainda eacute uma mera

afecccedilatildeo do corpo e nesse aspecto da Vontade realiza a transiccedilatildeo de cada

sensaccedilatildeo agrave causa que ele projeta com suas formas do tempo e do espaccedilo

como algo externo e diferente da proacutepria pessoa pode ser considerado como

o limite entre o mundo como Vontade e o mundo como representaccedilatildeo ou

tambeacutem como o local de nascimento deste uacuteltimo131

Por conseguinte a produccedilatildeo de conceitos e abstraccedilotildees eacute uma atividade

espontacircnea do ceacuterebro ancorada na Vontade A autoconsciecircncia tambeacutem eacute produzida nesse

oacutergatildeo nasce juntamente com ele e com o mundo como representaccedilatildeo do mesmo modo que

diz Schopenhauer ldquo[] a luz soacute se torna visiacutevel por meio dos corpos que a refletem e sem

127

WWW II Kap 22 p 324 M II cap 22 p 337 128

WN p 394 VN p 120 129

GARDINER op cit p 215 (traduccedilatildeo nossa) 130

WWW II Kap 22 p 320 M II cap 22 p 333 131

WWW II Kap 22 p 321 M II cap 22 p 333

- 169 -

eles perde-se sem efeito na escuridatildeordquo132

Por conseguinte pela necessidade de apreensatildeo do

mundo como representaccedilatildeo a Vontade produziria o ceacuterebro e dele despontaria a consciecircncia

de si Segundo o filoacutesofo ao unir as distintas atividades da sensibilidade em um ponto

preciso o ceacuterebro as fixa em uma linha do tempo e origina a forma mais essencial do

conhecimento133

Nas palavras dele

Esse foco da atividade cerebral eacute o que Kant nomeou unidade sinteacutetica da

apercepccedilatildeo apenas por meio dele a Vontade se torna consciente de si na

medida em que esse foco da atividade cerebral ou o cognoscente interpreta-

se como idecircntico agrave proacutepria base da qual derivou o desejante e assim surge o

ldquoeurdquo134

Entendido dessa maneira o sujeito cognoscente eacute meramente um estado

que conhece a vontade de modo refletido e indireto Natildeo pode ser tomado por uma substacircncia

ou alma pois natildeo eacute algo primaacuterio ou originaacuterio e sim derivado do organismo que por sua vez

deriva da Vontade Nesse ponto Schopenhauer reconhece o caraacuteter metafoacuterico de suas

afirmaccedilotildees ldquoEu admito que tudo o que foi dito aqui seja de fato apenas imagem e paraacutebola

ateacute mesmo em parte hipoacutetese estamos em um ponto em que o pensamento mal alcanccedila

menos ainda as demonstraccedilotildeesrdquo135

Apesar dessa declaraccedilatildeo no capiacutetulo 19 de O MundoII ele argumenta

sobre a primazia da Vontade na autoconsciecircncia136

Desse ponto de vista o intelecto seria um

fenocircmeno secundaacuterio um acidente do organismo animal ou melhor funccedilatildeo de um oacutergatildeo

material produzido por esse mesmo organismo Nas palavras de Schopenhauer ldquo[] a

Vontade eacute metafiacutesica o intelecto fiacutesico como seus objetos o intelecto eacute mero fenocircmeno

coisa em si eacute apenas a Vontade portanto num sentido cada vez mais figurado logo

metaforicamente a Vontade eacute a substacircncia do homem o intelecto o acidente []rdquo137

Embora em diversas circunstacircncias possa parecer que a Vontade seja comandada pelo

intelecto ao ser posta em movimento com imagens e pensamentos eacute a ela que sempre caberaacute a

decisatildeo final ldquoNa verdaderdquo ele escreve ldquoa comparaccedilatildeo mais adequada para a relaccedilatildeo entre

ambos eacute a do cego forte que carrega nos ombros o paraliacutetico que vecircrdquo138

Essa relaccedilatildeo de

subordinaccedilatildeo do intelecto agrave Vontade eacute ilustrada por Schopenhauer com diversas

132

WWW II Kap 22 p 322-323 M II cap 22 p 335 133

WWW II Kap 22 p 323 M II cap 22 p 335 134

WWW II Kap 22 p 323 M II cap 22 p 335 (grifos do autor) 135

WWW II Kap 22 p 324 M II cap 22 p 336 136

WWW II Kap 19 p 232 M II cap 19 p 243 137

WWW II Kap 19 p 233 M II cap 19 p 243-244 (grifos do autor) 138

WWW II Kap 19 p 242 M II cap 19 p 253

- 170 -

consideraccedilotildees de ordem psicoloacutegica que poreacutem natildeo detalharemos aqui139

Basta-nos ressaltar

que ele entende a Vontade como o prius e o intelecto como o posterius razatildeo pela qual

inclusive este uacuteltimo morreria com o corpo enquanto aquela natildeo140

Guumlnter Zoumlller tece interessantes consideraccedilotildees a esse respeito De acordo

com ele Schopenhauer natildeo apenas inverte as posiccedilotildees de vontade e intelecto no ldquoeurdquo mas

tambeacutem estabelece relaccedilotildees complexas e dinacircmicas entre ambos Para Zoumlller o filoacutesofo

discerne duas concepccedilotildees alternativas e complementares a saber uma em que a vontade eacute o

centro do ser humano e outra em que a individualidade eacute alcanccedilada pelo cultivo intelecto141

Na noccedilatildeo de individualidade haveria um ldquoeurdquo desenvolvido em que a centralidade do

conhecimento substituiria a da vontade e cuja autorrealizaccedilatildeo seria autonegaccedilatildeo Resultaria

entatildeo uma psicomaquia tornada ainda mais dramaacutetica na relaccedilatildeo do ldquoeurdquo com o mundo

Mais especificamente a cosmomaquia que envolve ldquoeurdquo e mundo se

converte em um duplo papel do ldquoeurdquo como inteligecircncia e como vontade

Como inteligecircncia o ldquoeurdquo eacute a inexpugnaacutevel e indispensaacutevel condiccedilatildeo formal

de objetos de todas as classes Como vontade o ldquoeurdquo eacute a manifestaccedilatildeo mais

articulada do esforccedilo cegamente dirigido que fundamenta toda a realidade142

A concepccedilatildeo schopenhaueriana acerca do intelecto tambeacutem foi inspirada

na fisiologia francesa especialmente em Bichat Com efeito Janet esclarece que Bichat

contrapocircs o que chamou de vida animal equivalente a vida intelectual agrave vida orgacircnica

comum ao vegetal e ao animal distinguindo em cada uma diversas funccedilotildees proacuteprias e

mutuamente opostas143

Assim escreve esse autor ldquoO que Bichat chamou oposiccedilatildeo da vida

animal e da vida orgacircnica diz Schopenhauer eacute o que eu chamo oposiccedilatildeo do intelecto e da

vontaderdquo144

Para Janet Bichat jaacute teria defendido a visatildeo schopenhaueriana a respeito da

separaccedilatildeo e anterioridade da Vontade em relaccedilatildeo ao intelecto isto eacute uma visatildeo fisioloacutegica da

mesma filosofia145

Com base no exposto observamos de um lado que o aperfeiccediloamento

do ceacuterebro acompanhou a escala do aprofundamento das necessidades como um meio de

conservaccedilatildeo de indiviacuteduos e espeacutecies De outro a complexidade crescente dos organismos

139

Cf WWW II Kap 19 p 232 et seq M II cap 19 p 243 et seq 140

WWW II Kap 21 p 315 M II cap 21 p 327 141

ZOumlLLER G Schopenhauer on the self In JANAWAY C The Cambridge Companion to Schopenhauer

Cambridge Cambridge Universty Press 2006 p 19-20 142

Ibidem p 20 (traduccedilatildeo nossa) 143

JANET op cit p 50-51 144

Ibidem p 56 (traduccedilatildeo nossa) 145

Ibidem p 59

- 171 -

mais elevados aumentava e complicava as necessidades tornando mais difiacutecil sua satisfaccedilatildeo e

exigindo sentidos e inteligecircncia mais potentes146

Uma trajetoacuteria progressiva teve entatildeo de ser

percorrida e nela as faculdades cerebrais se aperfeiccediloaram e tornaram o mundo como

representaccedilatildeo cada vez mais perfeito intrincado complexo Schopenhauer resume assim essa

concepccedilatildeo

Quanto mais pois a organizaccedilatildeo se torna complicada na seacuterie ascendente

dos animais mais diversificadas se tornam tambeacutem suas necessidades bem

como mais variados e mais especificamente determinados os objetos que

servem agrave sua satisfaccedilatildeo com isso mais difiacuteceis e distantes os caminhos para

consegui-los os quais agora tecircm de ser todos conhecidos e encontrados na

mesma medida as representaccedilotildees dos animais tambeacutem tecircm de se tornar mais

multifacetadas exatas determinadas e coesas como tambeacutem sua atenccedilatildeo

tem de se tornar mais aacutevida mais detida e excitaacutevel e por consequecircncia seu

intelecto tem de ser mais desenvolvido e aperfeiccediloado147

Portanto o intelecto emerge das necessidades e exigecircncias da Vontade

com tendecircncia totalmente praacutetica para servi-la com a apreensatildeo dos motivos148

O aumento

da inteligecircncia acompanharia expressotildees cada vez mais veementes dela e a intensidade de

suas manifestaccedilotildees nas distintas espeacutecies se ligaria ao incremento fisioloacutegico da atividade do

ceacuterebro149

Em virtude disso os seres naturais seriam infinitamente diferentes nos niacuteveis de

consciecircncia mas seriam todos rigorosamente iguais no tocante agrave essecircncia Vontade E

completa Schopenhauer ldquo[] eacute o grau de consciecircncia o que determina o grau de existecircncia de

um serrdquo150

A perspectiva fisioloacutegica de investigaccedilatildeo tem assim uma importacircncia

fundamental na medida em que mostra o surgimento e aperfeiccediloamento do ceacuterebro no mundo

fenomecircnico como instrumento da Vontade Nesse sentido escreve o filoacutesofo

[] a visatildeo objetiva do intelecto aqui fornecida que conteacutem uma gecircnese

dele torna compreensiacutevel que determinado exclusivamente para objetivos

praacuteticos ele eacute mero meio dos motivos consequentemente cumpre sua

funccedilatildeo pela correta apresentaccedilatildeo destes e tambeacutem que se empreendemos

construir a coisa em si a partir do complexo e da legalidade dos fenocircmenos

que aqui se apresentam a noacutes objetivamente isso se daacute por risco e

responsabilidade proacuteprios151

Na nossa interpretaccedilatildeo as duas perspectivas de abordagem do intelecto

conduzem a duas visotildees sobre a origem o uso e a importacircncia do conhecimento De um lado

146

WWW II Kap 22 p 325 M II cap 22 p 337 147

WWW II Kap 18 p 237 M II cap 19 p 248 148

WWW II Kap 22 p 332 M II cap 22 p 344 149

WWW II Kap 22 p 326-327 M II cap 22 p 339 150

WWW II Kap 22 p 327-328 M II cap 22 p 340 151

WWW II Kap 22 p 334 M II cap 22 p 345-346 (grifos do autor)

- 172 -

enquanto condiccedilatildeo transcendental do mundo empiacuterico o intelecto produz um conhecimento

que passa ao largo do que as coisas satildeo em si mesmas tratando apenas de relaccedilotildees entre

objetos Ele natildeo adentra o interior do mundo a sua essecircncia que existe independentemente

dele mais ainda antes e depois dele152

Nessa perspectiva o conhecimento eacute anterior ao

mundo como representaccedilatildeo De outro lado o conhecimento pressupotildee a existecircncia do mundo

empiacuterico na medida em que eacute funccedilatildeo fisioloacutegica de um oacutergatildeo material que surge tardiamente

na natureza Nessa perspectiva eacute posterior e dependente de uma gradaccedilatildeo de objetivaccedilotildees que

o tornam necessaacuterio como aprimoramento dos meios de satisfaccedilatildeo da Vontade Nesse sentido

afirma Schopenhauer

[] o intelecto soacute nos eacute conhecido a partir da natureza animal portanto

como um princiacutepio completamente secundaacuterio e subordinado no mundo um

produto de origem tardia assim ele natildeo pode jamais ser ter sido a condiccedilatildeo

da existecircncia do mundo nem um mundus intellegibilis (mundo inteligiacutevel)

pode preceder um mundus sensibilis (mundo sensiacutevel) isso porque aquele

somente obteacutem sua mateacuteria deste Natildeo foi um intelecto que produziu a

natureza mas a natureza que produziu o intelecto153

35 ndash Discoacuterdia da Vontade consigo mesma e teleologia

A identidade da Vontade em tudo o que existe natildeo se traduz em

identidade das Ideias em que ela se objetiva Os graus em que os fenocircmenos se objetivam natildeo

podem ser reduzidos uns aos outros isto eacute natildeo se pode remeter umas agraves outras as forccedilas

naturais distintas entre si tampouco misturar espeacutecies anaacutelogas de animais as mais perfeitas

natildeo satildeo variedades surgidas por acaso das mais imperfeitas154

Na concepccedilatildeo de

Schopenhauer os graus mais proeminentes de objetivaccedilatildeo da Vontade satildeo Ideias superiores

surgidas como vencedoras na disputa que travam entre si por mateacuteria No reino inorgacircnico

por exemplo os niacuteveis inferiores de objetivaccedilatildeo disputariam a mateacuteria por meio da

152

WWW II Kap 22 p 334 M II cap 22 p 346 153

WN p 360 VN p 82-83 154

WWW I zweites Buch sect27 p 214-215 M I livro II sect27 p 208

- 173 -

causalidade e daiacute surgiria o fenocircmeno de uma Ideia superior que dominaria as preexistentes

Gardiner considera em relaccedilatildeo a esse ponto que haacute uma incompatibilidade entre a concepccedilatildeo

schopenhaueriana de que as Ideias ou forccedilas naturais estatildeo fora do tempo e do espaccedilo como

expusemos anteriormente e a luta entre elas aqui exposta Para esse autor

[] eacute difiacutecil natildeo considerar sua teoria das forccedilas concebidas como existentes

ldquofora do espaccedilo e do tempordquo mas ao mesmo tempo lutando competindo

em realidade entre si para encontrar expressatildeo no reino da manifestaccedilatildeo

espaccedilo-temporal como uma fantasia animista que reflete uma ideia

basicamente confusa das relaccedilotildees que existem entre as terminologias

cientiacuteficas e os esquemas conceituais por um lado e o pensamento e

linguagem cotidianos por outro []155

De qualquer modo Schopenhauer sustenta que desse embate surgem

Ideias novas e superiores agraves demais Num processo que ele denomina assimilaccedilatildeo dominante

(uumlberwaumlltigende Assimilation) a Ideia vitoriosa abrangeria em si todas as que foram

dominadas e expressaria o mesmo esforccedilo das inferiores poreacutem num grau mais vigoroso156

A ideia vencedora seria um anaacutelogo mais perfeito a objetivaccedilatildeo de uma espeacutecie nova

diferente e mais aprimorada Segundo o filoacutesofo esse processo se deu ldquo[] originalmente

por generatio aequivoca em seguida pela assimilaccedilatildeo do germe disponiacutevel seiva orgacircnica

planta animal homemrdquo157

Por se tratar da conquista de Ideias inferiores por outras

superiores os fenocircmenos do mundo orgacircnico natildeo poderatildeo simplesmente ser reduzidos aos do

mundo inorgacircnico isto eacute as forccedilas vitais agraves leis naturais universais Os seres orgacircnicos seriam

fenocircmenos de uma Ideia mais distinta e natildeo fruto de combinaccedilotildees ou interaccedilotildees fortuitas de

forccedilas quiacutemicas ou fiacutesicas Nas palavras de Schopenhauer ldquo[] pois a Vontade una que se

objetiva em todas as Ideias na medida em que se esforccedila pela mais alta objetivaccedilatildeo possiacutevel

abandona os niacuteveis inferiores do seu fenocircmeno depois de um conflito entre eles para

aparecer em um mais elevado e tanto mais poderosordquo158

Com relaccedilatildeo a esse aspecto surge uma das divergecircncias de

Schopenhauer em relaccedilatildeo a Lamarck Para o filoacutesofo ao julgar que a vida pudesse ser

explicada pelo calor e a eletricidade Lamarck estaria pressupondo que o organismo fosse

resultado de forccedilas fiacutesicas e quiacutemicas159

Se assim fosse os eventos fiacutesicos acidentais

explicariam tudo exaustivamente sem que se pudesse relacionar nada agrave essecircncia das coisas

155

GARDINER op cit p 204 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 156

WWW I zweites Buch sect27 p 216 M I livro II sect27 p 210 157

WWW I zweites Buch sect27 p 216 M I livro II sect27 p 209 158

WWW I zweites Buch sect27 p 216 M I livro II sect27 p 210 (grifos do autor) 159

WWW I zweites Buch sect27 p 211 M I livro II sect27 p 205

- 174 -

e diz Schopenhauer ldquo[] ao fim um caacutelculo solucionaria o enigma do mundordquo160

Poreacutem no

entender do filoacutesofo um processo como esse soacute poderia dar surgimento a seres sem

significaccedilatildeo aleatoriamente formados tal como as nuvens compotildeem figuras ou como se

formam as estalactites No fim das contas equivaleria a degradar a forma substantialis nome

que Aristoacuteteles teria dado a algo equivalente aos graus de objetivaccedilatildeo da Vontade em forma

accidentalis161

Segundo Schopenhauer os eventos fiacutesicos natildeo satildeo aleatoacuterios e indicam

uma ordenaccedilatildeo de procedimentos na qual as Ideias dominadas subsistem nas vencedoras em

funccedilatildeo de resistirem e lutarem por sua proacutepria exteriorizaccedilatildeo162

Como ele explica ldquo[] esse

processo soacute eacute compreensiacutevel pela identidade da Vontade que se manifesta em todas as Ideias e

pelo seu esforccedilo por uma objetivaccedilatildeo cada vez mais elevadardquo163

No caso do organismo

humano por exemplo a tendecircncia de um braccedilo levantado a baixar em funccedilatildeo da gravidade

evidenciaria a luta do fenocircmeno de uma Ideia mais elevada contra as forccedilas quiacutemicas e

fiacutesicas Essa mesma luta se poderia notar tambeacutem nos diversos pequenos incocircmodos que

sempre sente a parte vegetativa do nosso corpo e que seriam devidos agrave resistecircncia das Ideias

inferiores das leis fiacutesicas e quiacutemicas com relaccedilatildeo agrave Ideia superior do organismo164

Ao fim de

tudo poreacutem a vitoacuteria seria das forccedilas naturais universais ldquoPor issordquo escreve Schopenhauer

em geral o fardo da vida fiacutesica a necessidade do sono e por fim da morte

pela qual finalmente por circunstacircncias favoraacuteveis aquelas forccedilas naturais

subjugadas recuperam novamente a mateacuteria arrancada pelo organismo

cansado jaacute pela vitoacuteria reiterada chegando agrave apresentaccedilatildeo de sua essecircncia

sem impedimentos165

A discoacuterdia e a luta portanto satildeo onipresentes na natureza e fazem parte

da essecircncia da Vontade melhor dizendo a natureza consiste precisamente apenas nesses

conflitos166

No mundo animal a discoacuterdia eacute muito niacutetida na medida em que a sobrevivecircncia

de uns depende da supressatildeo de outros No homem por fim a rivalidade chegaria ao ponto

maacuteximo de clareza e terror ou como afirma o filoacutesofo ldquo[] a Vontade de viver se consome a

si mesma e em diferentes figuras eacute seu proacuteprio alimento ateacute chegar por fim no gecircnero

160

WWW I zweites Buch sect27 p 211 M I livro II sect27 p 205 161

WWW I zweites Buch sect27 p 212-213 M I livro II sect27 p 206 162

WWW I zweites Buch sect27 p 215 M I livro II sect27 p 208-209 163

WWW I zweites Buch sect27 p 215 M I livro II sect27 p 209 164

WWW I zweites Buch sect27 p 217 M I livro II sect27 p 210 165

WWW I zweites Buch sect27 p 217 M I livro II sect27 p 210 166

WWW I zweites Buch sect27 p 218 M I livro II sect27 p 211 O filoacutesofo apresenta bastantes e interessantes

exemplos dessa luta universal na natureza que no entanto natildeo temos espaccedilo para detalhar Cf WWW I zweites

Buch sect27 p 208-211 M I livro II sect27 p 211-214

- 175 -

humano que por dominar todos os outros vecirc a natureza como produto para seu uso []rdquo167

Na interpretaccedilatildeo de Cacciola essa divisatildeo interna da Vontade eacute responsaacutevel pelo caraacuteter de

imanecircncia dela pois representa um impulso interno aos fenocircmenos168

Segundo a autora uma

vez que a Vontade eacute una a discoacuterdia interna natildeo pode pertencer a ela enquanto coisa em si

pois isso remeteria a uma divisatildeo que natildeo poderia ser aceita Da perspectiva do fenocircmeno

poreacutem a Vontade eacute fragmentada em muacuteltiplos indiviacuteduos entre os quais os combates satildeo

constantes ldquoErdquo ela escreve

no seu caraacuteter de unicidade natildeo poderia manifestar-se diretamente em forccedilas

e indiviacuteduos que lutam Assim de uma metafiacutesica transcendente monista

passa-se para uma metafiacutesica imanente que adota o ponto de vista da

polaridade exigiacutevel para sua manifestaccedilatildeo ao niacutevel fenomecircnico169

Para Schopenhauer a unidade da Vontade natildeo eacute prejudicada por essa luta

intestina assim como natildeo o eacute em virtude da gradaccedilatildeo das Ideias ou da multidatildeo de indiviacuteduos

existentes Ele considera que a gradaccedilatildeo a multiplicidade e a luta referem-se apenas agrave

objetivaccedilatildeo que expressa mediatamente a essecircncia da Vontade na representaccedilatildeo170

Aleacutem

dessa perspectiva filoacutesofo afirma que a unidade da Vontade tambeacutem pode ser pensada por

outro acircngulo a saber pela dependecircncia que as Ideias superiores mantecircm com relaccedilatildeo agraves

inferiores Com efeito para que possam expressar a Vontade em graus elevados elas

precisam assimilar os graus mais elementares A Ideia de homem por exemplo a mais

aprimorada dentre todas natildeo seria suficiente para expressar sozinha a essecircncia da Vontade e

para que pudesse surgir teria precisado se seguir a uma sequecircncia de graus inferiores

representados por animais plantas e objetos inanimados171

Nas palavras do filoacutesofo ldquo[]

todos eles se complementam para a perfeita objetivaccedilatildeo da Vontade satildeo tatildeo pressupostos na

Ideia de homem quanto as flores das aacutervores pressupotildeem as folhas ramos tronco e raiz

formam uma piracircmide cujo aacutepice eacute o homemrdquo172

Desse modo para que a Vontade se objetive adequadamente suas

gradaccedilotildees devem apresentar um tipo de necessidade interior representada pelo uso que os

seres da natureza fazem uns dos outros em funccedilatildeo de sua preservaccedilatildeo Essa necessidade

interior se manifesta exteriormente diz Schopenhauer no fato de que

167

WWW I zweites Buch sect27 p 218 M I livro II sect27 p 211 168

CACCIOLA M L A questatildeo do finalismo na filosofia de Schopenhauer Discurso ndash Revista do

Departamento de Filosofia da USP nordm 20 1993 79-98 169

Ibidem p 82 170

WWW I zweites Buch sect28 p 215 M I livro II sect 28 p 218 171

WWW I zweites Buch sect28 p 216 M I livro II sect 28 p 218-219 172

WWW I zweites Buch sect28 p 216 M I livro II sect 28 p 219

- 176 -

[] o homem precisa dos animais para sua conservaccedilatildeo estes precisam uns

dos outros conforme seus graus em seguida tambeacutem das plantas que por sua

vez precisam do solo da aacutegua dos elementos quiacutemicos e sua mistura dos

planetas do sol da rotaccedilatildeo e da translaccedilatildeo em torno dele da inclinaccedilatildeo da

ecliacuteptica e assim por diante173

A unidade da Vontade esclareceria uma aparente teleologia da natureza

anunciada pela analogia e a semelhanccedila entre os seres do mundo orgacircnico Esclareceria

tambeacutem a harmonia e a conexatildeo entre todos os pontos e partes do mundo mesmo distantes no

tempo e no espaccedilo bem como a importacircncia da gradaccedilatildeo das objetivaccedilotildees Com efeito

segundo Schopenhauer embora a Vontade seja una os graus de objetivaccedilatildeo natildeo podem se

manifestar de um salto ou de uma soacute vez e eacute que isso explica a essecircncia e a finalidade da

natureza No entender do filoacutesofo

Isso tudo indica um princiacutepio independente da teleologia que entretanto eacute o

fundamento com o qual ela constroacutei ou o material dado previamente para

suas obras e eacute exatamente aquilo que Geoffroy de Saint-Hilaire apresentou

como ldquoelemento anatocircmicordquo Eacute a uniteacute de plan o protoacutetipo fundamental o

mundo animal mais elevado como se fosse o tom voluntariamente

escolhido com o qual aqui a natureza toca174

Tomado em si mesmo cada organismo possuiria uma finalidade interna

voltada para a conservaccedilatildeo do indiviacuteduo e sua espeacutecie expressa na coordenaccedilatildeo e accedilatildeo

integrada entre suas partes A interaccedilatildeo que se pode notar entre os reinos inorgacircnico e

orgacircnico evidenciaria tambeacutem uma finalidade nesse caso externa direcionada para a

conservaccedilatildeo da natureza orgacircnica como um todo ou da vida175

Como dissemos a aparente

teleologia da natureza eacute devida agrave unidade da Vontade que se manifesta completamente em

cada um dos seus fenocircmenos Isso significa que cada uma das Ideias eacute um ato singular

simples e distinto no qual a Vontade exprime sua essecircncia em um niacutevel maior ou menor

enquanto cada indiviacuteduo eacute um desses atos no tempo e no espaccedilo176

Assim a maior ou menor

perfeiccedilatildeo de cada Ideia determinaria o modo de sua objetivaccedilatildeo nos mais imperfeitos a Ideia

seria uma e a mesma em todos os fenocircmenos que a expressam enquanto nos mais perfeitos

seriam necessaacuterios diversos desenvolvimentos no tempo para completar a expressatildeo da sua

essecircncia

173

WWW I zweites Buch sect28 p 217 M I livro II sect 28 p 219 174

WWW II Kap 26 p 388 M II cap 26 p 399-400 (grifos do autor) 175

WWW I zweites Buch sect28 p 217 M I livro II sect28 p 220 176

WWW I zweites Buch sect28 p 218 M I livro II sect28 p 220

- 177 -

De acordo com isso uma forccedila universal da natureza se expressaria de

forma simples num ato uacutenico e idecircntico em todos os fenocircmenos Jaacute a planta natildeo manifestaria

a Ideia correspondente de uma soacute vez e de modo simples mas precisaria do desenvolvimento

sucessivo de seus oacutergatildeos no tempo Schopenhauer oferece uma imagem ilustrativa desse

processo por meio da repeticcedilatildeo que uma fibra inicial realiza de si mesma uma aacutervore se

forma como um complexo que manifesta uma Ideia una A Vontade seria verificada no todo e

em cada uma das partes como as folhas ou galhos de modo que cada um desses fenocircmenos

particulares da planta seria a exteriorizaccedilatildeo de um ldquoagregado sistemaacuteticordquo177

O animal

manifestaria sua Ideia pelo desenvolvimento da sua figura no tempo finalizando o processo

com as accedilotildees que expressariam seu caraacuteter empiacuterico o mesmo de sua espeacutecie Por fim o ser

humano objetivaria a Ideia que lhe corresponde por meio do seu caraacuteter empiacuterico

desenvolvido tambeacutem no tempo e em atos singulares ancorados no caraacuteter inteligiacutevel

ldquoAssimrdquo explica Schopenhauer ldquocomo a forma humana em geral corresponde agrave vontade

humana em geral a vontade individual modificada o caraacuteter do indiviacuteduo corresponde agrave

formaccedilatildeo corporal individual que eacute absolutamente e em todas as partes carateriacutestica e

expressivardquo178

Por conseguinte cada forccedila natural cada espeacutecie vegetal ou espeacutecie

animal expressa sua Ideia respectiva ou seja eacute fenocircmeno de um caraacuteter inteligiacutevel ou ato

indiviso da Vontade dado fora do tempo No caso da natureza inorgacircnica as exteriorizaccedilotildees

da Ideia satildeo sempre iguais e dadas de modo uacutenico e o caraacuteter empiacuterico coincide com o

inteligiacutevel Sem deixar de ser una a Ideia seria expressa no organismo por atos sucessivos

que constituiriam suas partes e o caraacuteter inteligiacutevel seria conhecido pela soma das

exteriorizaccedilotildees do caraacuteter empiacuterico Nesse caso a harmonia e encadeamento das partes do

corpo orgacircnico mostraratildeo a unidade da Ideia e ldquoPor issordquo escreve Schopenhauer

ldquoentendemos essas diferentes partes e funccedilotildees do organismo como reciprocamente meios e

fins umas das outras e o organismo como o fim de todas elasrdquo179

Natildeo obstante o filoacutesofo

ressalta que o desdobramento da Ideia em atos constitutivos do organismo assim como a

relaccedilatildeo entre as partes e funccedilotildees dele guiada pela causalidade natildeo podem ser referidos agrave

Vontade como coisa em si Esse seria apenas seu modo de manifestaccedilatildeo sua objetidade e

tanto a legalidade dos fenocircmenos inorgacircnicos quanto a finalidade dos orgacircnicos seriam

produtos do intelecto Conforme a explicaccedilatildeo de Cacciola

177

WWW I zweites Buch sect26 p 190 M I livro II sect26 p 194 178

WWW I zweites Buch sect20 p 162 M I livro II sect20 p 167 179

WWW I zweites Buch sect28 p 221 M I livro II sect 28 p 223

- 178 -

Eacute o caraacuteter inteligiacutevel como ato uacutenico e livre de manifestaccedilatildeo da Vontade

que permite compreender o acordo e a interaccedilatildeo das partes do organismo e a

harmonia da natureza Isto significa em resumo a aboliccedilatildeo da

temporalidade para que se exiba o caraacuteter aparente da regularidade e

intencionalidade do mundo dos fenocircmenos ligado a uma multiplicidade

tambeacutem aparente Excluindo-se a referecircncia ao tempo ressurgem sob a

aparecircncia a unidade o em si o caraacuteter inteligiacutevel A remissatildeo a uma

Vontade sem fim natildeo pode mesmo ser fundamento de uma finalidade em-si

das coisas do mundo mas apenas esclarece que elas parecem ser assim por

se referirem enquanto muacuteltiplas a uma unidade A teleologia natildeo passa de

uma harmonia da natureza que evoca a unidade da Vontade ou o ponto de

vista da Vontade una180

A finalidade externa isto eacute a harmonia entre os fenocircmenos da natureza

empiacuterica como um todo expressaria a unidade da Vontade do ponto de vista do conjunto do

mundo como representaccedilatildeo Nas palavras de Schopenhauer ela eacute a ldquo[] eacute objetidade da

Vontade una e indivisa a Ideia que se relaciona com todas as demais Ideias como a harmonia

com as vozes isoladas daiacute que aquela unidade da Vontade tenha de se mostrar tambeacutem na

concordacircncia de todos os fenocircmenos entre sirdquo181

Seria entatildeo uma adaptaccedilatildeo e adequaccedilatildeo

muacutetua entre todos os fenocircmenos um consensus naturae natildeo dado poreacutem de um ponto de

vista temporal uma vez que a Ideia estaacute fora do tempo182

Para compreender esse ponto

segundo o filoacutesofo o correto eacute pensar retrospectivamente observando o modo como cada

espeacutecie se adapta a condiccedilotildees preacutevias assim como essas circunstacircncias preacutevias adiantam os

seres vindouros No texto ldquoSchopenhauer lecteur de Lamarck le probleme des causes

finalesrdquo Goldschmidt afirma que a noccedilatildeo de adaptaccedilatildeo ao meio implicada no consensus

naturae aproxima o filoacutesofo das ideias de Lamarck183

Para esse autor Schopenhauer natildeo

citaria Lamarck nominalmente por discordar do modo como este explica a adaptaccedilatildeo a saber

confundindo o fenocircmeno com a coisa em si Por desconhecer a idealidade do tempo Lamarck

natildeo teria percebido que as transformaccedilotildees nas espeacutecies animais se deviam a algo que estaacute para

aleacutem de todas as relaccedilotildees temporais184

Em funccedilatildeo disso teria concebido a constituiccedilatildeo dos

corpos dos animais como algo formado pouco a pouco no decurso do tempo

Na sua argumentaccedilatildeo sobre a teleologia Schopenhauer natildeo daacute espaccedilo agrave

pressuposiccedilatildeo de que a formaccedilatildeo dos organismos seja guiada por um intelecto externo ao

mundo Como escreve Goldschmidt ldquoO finalismo segundo Schopenhauer eacute o mesmo que

180

CACCIOLA M L A questatildeo do finalismo na filosofia de Schopenhauer Discurso ndash Revista do

Departamento de Filosofia da USP nordm 20 1993 p 88 181

WWW I zweites Buch sect28 p 222 M I livro II sect 28 p 224 182

WWW I zweites Buch sect28 p 223 M I livro II sect 28 p 225 183

GOLDSCHMIDT V Eacutecrits Eacutetudes de Philosophie Moderne Tome II Paris VRIN 1984 p 215 184

Ibidem p 215-216

- 179 -

havia sido definido e aplicado por Aristoacuteteles isto eacute uma teleologia sem teologiardquo185

Cacciola explica de modo interessante como a argumentaccedilatildeo de Schopenhauer exclui a

teologia De acordo com ela a concepccedilatildeo do filoacutesofo acerca das causas finais ao contraacuterio do

que poderia parecer natildeo reforccedila a hipoacutetese de uma inteligecircncia ordenadora Na verdade a

convicccedilatildeo da inexistecircncia de qualquer finalidade intriacutenseca eacute que exigiria um desiacutegnio

exterior enquanto a admissatildeo de que cada organismo eacute sua proacutepria vontade legitimaria a

noccedilatildeo de finalidade sem se apelar para algo externo186

Na medida em que cada parte do

organismo existe para sua preservaccedilatildeo diz ela ldquoTudo nele tem de ser conforme a um fim O

que garante a autonomia do organismo em relaccedilatildeo a qualquer interferecircncia externa tanto de

um entendimento quanto de uma vontade eacute o rigoroso finalismo natildeo-antropomoacuterfico de sua

constituiccedilatildeordquo187

Dessa forma a anterioridade no tempo seria relativa aos fenocircmenos das

Ideias mas natildeo a elas mesmas Natildeo se pode dizer que haja Ideias anteriores ou posteriores

pois os fenocircmenos mais elevados (Ideias novas) adaptam-se ao seu meio (Ideias preacutevias)

tanto quanto este se adapta a eles e todos possuem entatildeo os mesmos direitos188

Para

Schopenhauer Lamarck erra ao introduzir um elemento temporal na ideia do consensus

naturae a saber a concepccedilatildeo de que os oacutergatildeos animais satildeo formados paulatinamente no

decurso do tempo Se assim fosse diz o filoacutesofo na busca de adaptaccedilatildeo entre o ambiente e

seus proacuteprios instrumentos e atributos todas as espeacutecies teriam de estar extintas189

No seu

modo de ver uma interpretaccedilatildeo correta tem de considerar que o tempo se refere apenas ao

fenocircmeno ou seja a adaptaccedilatildeo das espeacutecies tem de ser colocada na conta da objetivaccedilatildeo da

Vontade natildeo dela em si mesma Assim ao contraacuterio do que pensava Lamarck os oacutergatildeos ou

instrumentos das espeacutecies animais natildeo seriam utilizados em funccedilatildeo de sua existecircncia preacutevia

mas a vontade de viver de determinado modo eacute que levaria agrave constituiccedilatildeo de oacutergatildeos e

instrumentos especiacuteficos Conforme Goldschmindt Schopenhauer avaliou que Lamarck natildeo

teria podido supor que a vontade do animal era a coisa em si e por isso o inseriu no grupo dos

que julgavam o intelecto como precedente ldquoNesse casordquo afirma Goldschmidt

[] o entendimento precederia a vontade eacute porque teria compreendido o uso

que poderia fazer de sua organizaccedilatildeo que o animal teria escolhido usaacute-lo

185

Ibidem p 219 186

CACCIOLA M L A questatildeo do finalismo na filosofia de Schopenhauer Discurso ndash Revista do

Departamento de Filosofia da USP nordm 20 1993 p 90 187

Ibidem loc cit 188

WWW I zweites Buch sect28 p 224 M I livro II sect28 p 226 189

WN p 365 VN p 88

- 180 -

Mas de fato sabemos que a vontade eacute que eacute primeira Deve-se entatildeo

preferir o outro termo da alternativa eacute porque o animal desejaria adotar tal

modo de vida que sua organizaccedilatildeo eacute adaptada a ele []190

Portanto assim como os animais agem por instinto sem conhecimento

algum mas parecem estar seguindo um conceito tambeacutem a natureza como um todo o faz isto

eacute aparenta seguir uma finalidade que na verdade natildeo segue

Em siacutentese na concepccedilatildeo de Schopenhauer a teleologia da natureza natildeo

foi produzida por um intelecto apenas evidencia ldquo[] o fenocircmeno da unidade de uma

Vontade que concorda consigo mesmardquo191

No capiacutetulo 26 de O MundoII ele argumenta

que embora o ser humano soacute possa criar algo que possua finalidade utilizando um conceito de

fim isso natildeo autoriza a concluir que o mesmo ocorra na natureza192

Nas palavras dele ldquoEla

realiza sem ponderaccedilatildeo e sem conceito de fim o que parece tatildeo intencional e tatildeo ponderado

porque o faz sem representaccedilatildeo cuja origem eacute totalmente secundaacuteriardquo193

Sobre esse ponto

Cacciola explica que Schopenhauer assimilou a liccedilatildeo kantiana segundo a qual o intelecto soacute

consegue compreender a natureza dos processos orgacircnicos comparando-os com as produccedilotildees

humanas que levam em conta uma finalidade preacutevia O conceito de causaccedilatildeo linear e

mecacircnica eacute inuacutetil no esclarecimento da natureza orgacircnica e ela afirma ldquoEacute diante disso que a

analogia com as obras humanas torna-se eficaz para servir de fio condutor para o estudo dos

seres organizados natildeo podendo no entanto explicar objetivamente a origem e a existecircncia de

tais seres jaacute que a necessidade de compreendecirc-los eacute somente subjetivardquo194

Como resultado a ligaccedilatildeo dos seres naturais com o conceito de fim natildeo

seria procedente da proacutepria coisa e sim realizada pelo intelecto que acrescentaria os fins aos

seres orgacircnicos do mesmo modo como cria a regularidade das figuras geomeacutetricas Entatildeo diz

Schopenhauer ldquo[] em certo sentido admira-se com sua proacutepria obrardquo195

Por essas razotildees

do mesmo modo como as causas eficientes se mostram um bom fio condutor para o estudo da

natureza inorgacircnica a finalidade tambeacutem se configura um bom fio condutor para a

investigaccedilatildeo da natureza orgacircnica Natildeo obstante natildeo se pode por isso dizer que a finalidade

seja constitutiva dos seres naturais nem que explique a existecircncia deles Ela pode ser tomada

190

GOLDSCHMIDT V Eacutecrits Eacutetudes de Philosophie Moderne Tome II Paris VRIN 1984 p 217 (traduccedilatildeo

nossa) 191

WWW I zweites Buch sect28 p 226 M I livro II sect28 p 227 (grifos do autor) 192

WWW II Kap 26 p 383-384 M II cap 26 p 395-396 193

WWW II Kap 26 p 384 M II cap 26 p 396 194

CACCIOLA M L A questatildeo do finalismo na filosofia de Schopenhauer Discurso ndash Revista do

Departamento de Filosofia da USP nordm 20 1993 p 83 195

WWW II Kap 26 p 385 M II cap 26 p 396

- 181 -

apenas como regulativa pois embora os fins e as causas sejam supostos pelo intelecto como

necessaacuterios natildeo podem ser atribuiacutedos agraves coisas em si mesmas

Na interpretaccedilatildeo de Victor Goldschmidt quando a noccedilatildeo de finalidade eacute

indicada por Schopenhauer em O MundoII como fio condutor das ciecircncias do organismo

adquire com isso o estatuto de um princiacutepio constitutivo e natildeo meramente regulador196

Caso

natildeo fosse assim os fenocircmenos orgacircnicos teriam de ser reduzidos agraves leis fiacutesicas baacutesicas algo

que o filoacutesofo natildeo aprovaria Como esse autor escreve

A finalidade eacute o uacutenico conceito adequado que nos permite compreender o

mundo orgacircnico Sem ela isto eacute se se reduzisse a ciecircncia natural agrave simples

causalidade o mundo orgacircnico natildeo apenas nos permaneceria impenetraacutevel

como tambeacutem seria entregue agraves explicaccedilotildees reducionistas e reconduzido agraves

forccedilas gerais que a fiacutesica toma em consideraccedilatildeo []197

Natildeo obstante Schopenhauer argumentaria cuidadosamente acerca da

finalidade para que natildeo fosse tomada como a escolha intencional de um alvo Para

Goldschmidt o filoacutesofo retorna ao ensinamento de Aristoacuteteles que sustenta a ideia de causa

final sem remetecirc-la a uma providecircncia divina e afasta qualquer antropomorfismo da sua

noccedilatildeo de finalidade com a identificaccedilatildeo de fins e meios na atividade da natureza198

Na visatildeo de Schopenhauer os objetos da arte humana possuem realmente

uma analogia com as criaccedilotildees da natureza mas a analogia natildeo seria exata No caso da arte a

vontade para a realizaccedilatildeo da obra eacute distinta da proacutepria obra e o material e a representaccedilatildeo satildeo

requeridos anteriormente agrave existecircncia dela199

Portanto a finalidade tem de preceder agrave

produccedilatildeo e orientaacute-la Nos produtos da natureza ao contraacuterio natildeo existiria nem seria

necessaacuteria nenhuma representaccedilatildeo tampouco haveria separaccedilatildeo entre a vontade a obra e a

mateacuteria com que eacute feita Posto que o processo de criaccedilatildeo na arte difere do procedimento da

natureza natildeo pode servir para explicaacute-la ldquoPoisrdquo escreve o filoacutesofo

aqui o mestre a obra e o material satildeo um e o mesmo Por isso todo

organismo eacute uma obra-prima ostensivamente perfeita Aqui a Vontade natildeo

teve primeiro a intenccedilatildeo conheceu depois a finalidade entatildeo adaptou os

meios a ela e venceu o material mas seu querer eacute imediatamente tambeacutem a

finalidade e a consumaccedilatildeo portanto ela natildeo precisou antes de nenhum meio

estranho para dominar Aqui foram um e o mesmo o querer o fazer e o

resultar Por conseguinte o organismo se apresenta como uma maravilha e

196

GOLDSCHMIDT V Eacutecrits Eacutetudes de Philosophie Moderne Tome II Paris VRIN 1984 p 214 197

Ibidem p 214-215 (traduccedilatildeo nossa) 198

Ibidem p 216 199

WN p 378 VN p 102

- 182 -

natildeo se pode comparaacute-lo com nenhuma obra humana projetada pela lacircmpada

do conhecimento200

36 ndash Fundamentos do mundo como Vontade

Assim como a teoria do conhecimento a metafiacutesica schopenhaueriana

nasce com diversos requisitos a cumprir O filoacutesofo estava convencido de que a coisa em si

natildeo deveria ser descartada do seu sistema mas a justificaccedilatildeo da necessidade dela sua

deduccedilatildeo e sua conceituaccedilatildeo natildeo poderiam distanciaacute-lo dos fundamentos do idealismo O

principal aspecto deste uacuteltimo a ser preservado segundo pensamos eacute a interdiccedilatildeo do acesso agrave

transcendecircncia que parece ter orientado toda a estruturaccedilatildeo da metafiacutesica da Vontade O

estabelecimento de um ponto de apoio firme para os fenocircmenos era imprescindiacutevel para

Schopenhauer assim como foi para Jacobi mas teria de ser encontrado sem se recorrer a

elementos transcendentes E na nossa interpretaccedilatildeo a uacutenica maneira de satisfazer essa

exigecircncia era pelo estabelecimento de um lastro metafiacutesico imanente ao mundo como

representaccedilatildeo acessando-se a coisa em si com um movimento perpendicular para dentro

Esse movimento perpendicular por seu turno teve de ser

milimetricamente pensado porque tambeacutem teria de atender a quesitos muito exigentes Por

um lado teria de escapar ao ciacuterculo do conhecimento meramente empiacuterico caso natildeo quisesse

ser apenas o produto de mais um ldquoesquilo na rodardquo Por outro natildeo poderia apelar para

entidades espirituais miacutesticas ou de qualquer esfera separada do mundo concreto da

experiecircncia Por isso Schopenhauer tentou formular um modo especial de exame da

representaccedilatildeo que sem ir aleacutem dela permitisse interpretar a realidade conhecer diretamente

seu nuacutecleo e desvendar seus hieroacuteglifos Assim para compreender o centro das coisas aquilo

sempre que resta desconhecido pelo estudo empiacuterico do mundo ele propotildee uma investigaccedilatildeo

que parte do interior de noacutes mesmos e demostra nossa identidade com o restante do mundo

200

WN p 377 VN p 101

- 183 -

isto eacute do microcosmo com o macrocosmo O mundo como Vontade eacute entatildeo deduzido do

querer individual como de seu alicerce embora permaneccedila ambiacuteguo o conhecimento que cada

um possui dele assim como a relaccedilatildeo desse conhecimento com a representaccedilatildeo De um lado

em algumas obras schopenhauerianas o conhecimento do querer individual aparece como

obscuro em outras como o mais claro dentre todos De outro eacute difiacutecil precisar o estatuto

desse conhecimento que deve acessar a coisa em si mas natildeo pode fazecirc-lo diretamente posto

que preserva a forma a priori do tempo

A identificaccedilatildeo do corpo com a vontade individual e o argumento da

analogia satildeo os passos que Schopenhauer daacute para demonstrar a Vontade como a base de todo

o existente Segundo pensamos o conceito de objetidade foi o que permitiu que sem o

recurso agrave transcendecircncia a Vontade fosse identificada com o nuacutecleo metafisico do indiviacuteduo

Na medida em que corpo e coisa em si satildeo descritos como um e o mesmo natildeo resta espaccedilo

para causaccedilatildeo de nenhuma espeacutecie isto eacute nem para a deduccedilatildeo de uma inteligecircncia criadora

externa ao mundo nem para a busca de uma relaccedilatildeo causal entre vontade individual e corpo

individual O argumento a analogia por sua vez permitiu a ampliaccedilatildeo do escopo daquela

demonstraccedilatildeo e apontou para a identidade de todos os objetos do universo empiacuterico Entatildeo

vontade individual e corpo individual revelaram-se o mesmo e o mundo se identificou com a

Vontade que se manifesta inteira em cada representaccedilatildeo e no conjunto da experiecircncia

A unidade da Vontade e a identidade do mundo como um todo coeso

tornam necessaacuterio detalhar a origem dos infinitos indiviacuteduos e objetos No entanto o

desmembramento do qual surgem os muacuteltiplos fenocircmenos natildeo pode atingir a Vontade pois a

coisa em si natildeo participa das formas da representaccedilatildeo e permanece una e indivisa O problema

se torna entatildeo explicar o modo como o tempo pode introduzir modificaccedilotildees nas objetivaccedilotildees

sem anular unidade da coisa em si Nesse sentido as Ideias foram definidas como as formas

eternas e imutaacuteveis das coisas responsaacuteveis pela intermediaccedilatildeo entre e objetos singulares e a

Vontade una O filoacutesofo defende entatildeo que cada Ideia eacute um grau de objetivaccedilatildeo da Vontade

um ato uacutenico desta que contudo tem seu desenvolvimento no tempo Os conceitos de caraacuteter

inteligiacutevel e caraacuteter empiacuterico foram imprescindiacuteveis para vincular o tempo somente ao lado do

mundo correspondente agrave representaccedilatildeo

Por todas essas razotildees a metafiacutesica schopenhaueriana natildeo poderia se

deter num idealismo radical Segundo pensamos eacute parte fundamental dela uma relaccedilatildeo

especial com o empiacuterico uma vez que seu ente metafiacutesico proacuteprio eacute imanente ao mundo ou

- 184 -

seja natildeo eacute um espiacuterito criador apartado e transcendente nem um sujeito transcendental

absoluto que o gerasse a partir de si mesmo A metafiacutesica tambeacutem natildeo pode ser baseada em

conceitos e abstraccedilotildees cujos resultados satildeo paacutelidos reflexos de intuiccedilotildees e Schopenhauer

insiste que natildeo se deve deslizar acima da experiecircncia ou partir de teologias Para ele a

metafiacutesica deve estar estreitamente ligada ao mundo de modo que a fisiologia e o

conhecimento empiacuterico em geral tecircm de dar sustentaccedilatildeo a ela como as realidades a que no

fim das contas estaacute relacionada Sua filosofia natildeo gostaria de pairar sobre o mundo natildeo

pretende ser um devaneio criado por uma cabeccedila de anjo alada

Por conseguinte o ponto de vista objetivo de consideraccedilatildeo eacute tatildeo

importante quanto o subjetivo os hieroacuteglifos a serem decifrados natildeo satildeo outros senatildeo aqueles

que o mundo daacute a conhecer empiricamente O nascimento e desenvolvimento de plantas e

animais a atuaccedilatildeo das leis naturais as condutas humanas nos mais variados acircmbitos da vida

tudo deve ser explicado pela metafiacutesica da Vontade O lado externo desta que natildeo eacute

causado mas idecircntico ao interno eacute seu caraacuteter de objeto sua objetidade cuja compreensatildeo e

descriccedilatildeo satildeo realizadas pelas ciecircncias naturais As caracteriacutesticas fiacutesicas e quiacutemicas dos

corpos orgacircnicos dos inorgacircnicos e do mundo natural como um todo satildeo exteriorizaccedilotildees da

Vontade e conhecer o corpo eacute conhececirc-la Daiacute que para o filoacutesofo haja elementos no acircmbito

fenomecircnico que sempre resistem a qualquer explicaccedilatildeo e que por isso mesmo indicam a coisa

em si na representaccedilatildeo Essa eacute inclusive a diferenccedila entre os conhecimentos empiacutericos e os

puros os quais podem ser explicados ateacute o limite enquanto aqueles natildeo De fato conteuacutedos

ligados apenas ao princiacutepio de razatildeo estatildeo a priori no intelecto podem ser desdobrados sem

quaisquer obstaacuteculos enquanto os conteuacutedos empiacutericos a posteriori natildeo satildeo completamente

cognosciacuteveis pois remetem a algo que natildeo participa das formas da representaccedilatildeo

Ao que nos parece as questotildees relativas agrave teleologia e agrave discoacuterdia

presentes na natureza se tornam complicadas porque tecircm de levar em conta esse aspecto

empiacuterico da filosofia schopenhaueriana As funccedilotildees e a materialidade de todas as partes dos

seres orgacircnicos adaptam-se e moldam-se mutuamente assim como o universo empiacuterico

tomado em seu conjunto adapta e conforma todos os seus objetos Trata-se de algo que

nenhuma consideraccedilatildeo objetiva do mundo poderia negligenciar Finalidade interna e

finalidade externa satildeo entatildeo reconhecidas por Schopenhauer na natureza mas dificilmente

podem ser acomodadas agrave parte transcendental de sua filosofia Eacute certo que ele afirma ser o

conceito de finalidade um mero fio condutor para a investigaccedilatildeo da natureza natildeo constitutivo

- 185 -

dela Assim como a regularidade das figuras geomeacutetricas a finalidade seria uma criaccedilatildeo do

intelecto Poreacutem se eacute inequiacutevoco que as caracteriacutesticas das figuras geomeacutetricas adveacutem do

princiacutepio de razatildeo do ser caberia perguntar de onde proveacutem a noccedilatildeo de finalidade

A discoacuterdia intriacutenseca agrave natureza tambeacutem natildeo pode ser ignorada por uma

filosofia que valoriza a investigaccedilatildeo empiacuterica Os fenocircmenos se alimentam dos proacuteprios

fenocircmenos dividem os mesmos espaccedilos e os mesmos tempos e o pessimismo

schopenhaueriano enfatiza que todos os indiviacuteduos satildeo simultaneamente algozes e viacutetimas

uns dos outros No entanto como explicar o porquecirc de a Vontade lutar contra si mesma de

querendo ferozmente se afirmar mortificar-se e aniquilar-se A saiacuteda eacute entatildeo acrescentar um

predicado que a joga contra si mesma a saber a autocontradiccedilatildeo Com isso entretanto

surgem outras questotildees como a de conciliar a autocontradiccedilatildeo com a unidade da Vontade

pela qual ela estaacute inteira e indivisa em cada ser animado e cada objeto inanimado O problema

aqui eacute que na medida em que todas e cada um das coisas existentes satildeo exteriorizaccedilotildees da

Vontade uacutenica a luta entre seus fenocircmenos eacute luta dela consigo mesma

Por fim na nossa interpretaccedilatildeo a importacircncia crucial dada por

Schopenhauer ao lado empiacuterico de sua filosofia daacute origem a impasses cada vez que tem de

ser aproximado do lado metafiacutesico O ideal e o real estatildeo em oposiccedilatildeo mas devem ser

conectados no tratamento dos problemas filosoacuteficos que exigem explicaccedilatildeo tanto

transcendental quanto metafiacutesica Esse eacute o caso por exemplo da antinomia da faculdade de

conhecimento e das outras trecircs questotildees que o filoacutesofo lista O intelecto eacute tanto fiacutesico quanto

metafiacutesico e as caracteriacutesticas que tem em uma perspectiva satildeo excluiacutedas ou deslocadas na

outra Enquanto fiacutesico sua origem deve estar ligada ao princiacutepio de razatildeo suficiente e

enquanto metafiacutesico sua origem deve estar ligada agrave Vontade De um lado tem um nascimento

no tempo no outro eacute atemporal de um lado ocupa lugar no espaccedilo de outro eacute inextenso de

um lado eacute material de outro imaterial A dificuldade eacute que o intelecto eacute tudo isso

simultaneamente e faz parte de um uacutenico mundo Cada vez que se investiga qualquer questatildeo

relacionada a ele sua origem por exemplo obtecircm-se respostas incompatiacuteveis A consideraccedilatildeo

de que satildeo dois lados dois pontos de vista diferentes de observaccedilatildeo segundo pensamos natildeo

atenua a situaccedilatildeo A natildeo ser que queiramos sustentar uma espeacutecie de esquizofrenia na qual

Vontade e representaccedilatildeo sejam eternamente paralelas

A questatildeo relativa a mecanicismo e finalismo segundo pensamos revela

uma estrutura semelhante Do ponto de vista metafiacutesico natildeo podemos falar em finalidade

- 186 -

pois a Vontade natildeo possui fim algum mas da perspectiva empiacuterica eacute difiacutecil sustentar que as

causas na natureza satildeo apenas de tipo mecacircnico O problema da liberdade por sua vez coloca

em contraste a determinaccedilatildeo inflexiacutevel dos eventos empiacutericos pelo princiacutepio de razatildeo entre

eles as accedilotildees humanas e a liberdade absoluta da Vontade metafiacutesica que irrompe na vontade

individual De modo semelhante a aparecircncia de intencionalidade no destino que se nota

considerando a vida concreta de um indiviacuteduo diverge do caraacuteter natildeo racional e da ausecircncia

de objetivos que foram sustentados no lado metafiacutesico da filosofia

- 187 -

Capiacutetulo 4 ndash Interpretaccedilotildees paradigmaacuteticas e anaacutelise pessoal

41 ndash Recepccedilatildeo da filosofia schopenhaueriana

Em 1965 Arthur Huumlbscher proferiu duas palestras sobre a posiccedilatildeo de

Schopenhauer no contexto da filosofia criacutetica uma na Sociedade Real Norueguesa de

Ciecircncias e outra na Universidade de Frankfurt Em 1966 as duas palestras foram reunidas e

desenvolvidas no texto ldquoSchopenhauer in der philosophischen Kritikrdquo publicado no Jahrbuch

der Schopenhauer-Gesellschaft daquele ano1 Nesse texto Huumlbscher aborda a trajetoacuteria do

pensamento schopenhaueriano desde o iniacutecio com as avaliaccedilotildees que Da quaacutedrupla raiz

recebeu jaacute na sua primeira ediccedilatildeo Segundo o relato desse autor as ideias de Schopenhauer

quase sempre foram mal compreendidas ou mal interpretadas e muitas vezes recebidas com

desdeacutem2 Todas as obras e todos os campos da sua filosofia receberam criacuteticas e avaliaccedilotildees

nas quais o tema da contradiccedilatildeo eacute constante Huumlbscher avanccedila ateacute seus contemporacircneos

apontando tambeacutem as influecircncias que o filoacutesofo exerceu sobre grandes pensadores

posteriores

Entre os primeiros leitores de Schopenhauer estiveram Schulze Georg

Michael Klein e um escritor anocircnimo os quais pouco depois da publicaccedilatildeo de Da quaacutedrupla

raiz ainda em 1814 teriam se debruccedilado sobre a dissertaccedilatildeo de modo criacutetico3 Em 1820

Johann F Herbart teria feito o mesmo baseando-se na primeira ediccedilatildeo da obra capital do

filoacutesofo Antes de Herbart em 1819 Friedrich Ast tambeacutem teria analisado O Mundo

identificando-se como A bem como um autor anocircnimo tendo ambos concordado

parcialmente com a obra schopenhaueriana Diversos outros se somaram a esses como J G

Raumltze e Friedrich Eduard Beneke ambos em 1820 Whilhelm Traugott Krug em 1821 Carl

1 HUumlBSCHER A Schopenhauer in der philosophischen Kritik In Schopenhauer-Jahrbuch 47 1966 p 29-71

2 Ibidem p 30

3 Ibidem p 33-35

- 188 -

Fortlage em 1845 Adolph Cornill em 1856 e Friedrich Ueberweg em 18664 De acordo

com Huumlbscher houve muita incompreensatildeo sobre o significado da Vontade frequentemente

associado ao conhecimento que Schopenhauer teria adquirido do pensamento de Jakob

Boumlhme em suas leituras dos textos de Schelling Aleacutem disso um traccedilo caracteriacutestico

avaliaccedilotildees da filosofia schopenhaueriana teria sido a aceitaccedilatildeo parcial da sua esteacutetica e a

rejeiccedilatildeo da sua eacutetica como um todo5

A partir de 1830 iniciou-se um movimento de resposta agraves criacuteticas feitas a

Schopenhauer do qual participaram principalmente Frauenstaumldt Friedrich Dorguth C G

Baumlhr e Julius Bahnsen Naquele momento o tema das contradiccedilotildees era o mais importante e

conforme Huumlbscher ainda era discutido em sua proacutepria eacutepoca6 Huumlbscher descreveu trecircs das

criacuteticas mais destacadas relacionadas a contradiccedilotildees entre as quais estaacute em primeiro lugar o

tema deste trabalho que foi apontado por Adolf Cornill Rudolf Seydel Kuno Fischer

Johannes Volkelt Ernst Cassirer e outros Em segundo lugar estaria uma questatildeo intitulada

ciacuterculo do fenomenalismo apontado por Karl Ludwig Michelet Albert Thilo Eduard von

Hartmann e outros Nesse ciacuterculo o problema estaria na possibilidade de conhecimento da

Vontade na autoconsciecircncia que natildeo pode ser conciliada com a descriccedilatildeo dela como coisa em

si Para os defensores dessa posiccedilatildeo se a Vontade eacute a coisa em si natildeo pode se tornar objeto

de conhecimento e inversamente se pode ser conhecida natildeo eacute a coisa em si7 Em uacuteltimo

lugar Huumlbscher menciona o problema que considera o mais preocupante relativo agrave

autocontradiccedilatildeo da Vontade na sua negaccedilatildeo eacutetica A apariccedilatildeo da liberdade metafiacutesica da

Vontade no seu fenocircmeno que no entanto continua existindo na seacuterie temporal teria sido

apontada por Herbart e considerada insoluacutevel ateacute mesmo por seguidores de Schopenhauer

como Frauenstaumldt Becker e Adam von Doss8 Aliada a esse ponto estaria ainda a dificuldade

de justificar por que a supressatildeo de um indiviacuteduo natildeo significa a supressatildeo do mundo uma

vez que a Vontade eacute una e indivisiacutevel9

Os escritos de Frauenstaumldt permitem acompanhar mais de perto esse

contexto de avaliaccedilotildees do pensamento de Schopenhauer Ele publicou pela primeira vez as

obras completas do filoacutesofo escreveu introduccedilotildees artigos cartas e memoacuterias nos quais

4 Ibidem p 35-40

5 Ibidem p 40-41

6 Ibidem p 48

7 Ibidem p 50

8 Ibidem p 50-51

9 Ibidem p 51

- 189 -

apresenta seu entendimento da filosofia schopenhaueriana bem como responde a diversas

criacuteticas feitas a ela por contemporacircneos Abordaremos brevemente as avaliaccedilotildees discutidas

por Frauenstaumldt para situarmos as objeccedilotildees feitas especificamente agrave antinomia da faculdade

de conhecimento que seratildeo analisadas no proacuteximo item

Em 1854 Frauenstaumldt publicou suas Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche

Philosophie10

nas quais expotildee e explica os temas centrais da filosofia schopenhaueriana e

especialmente nas cartas 27 e 28 argumenta contra alguns de seus criacuteticos Na carta 27 ele

menciona um texto publicado em 1852 na Zeitschrift uumlber Philosophie und philosophische

Kritik no qual Johann E Erdmann aponta uma antiacutetese entre as filosofias de Schopenhauer e

de Herbart11

Para Frauenstaumldt essa avaliaccedilatildeo eacute errocircnea pois embora em sentidos opostos

ambos seriam kantianos e teriam em comum tambeacutem as criacuteticas a Fichte e a Schelling

Frauenstaumldt menciona ainda o posfaacutecio de Immanuel Hermann von Fichte agravequele texto no

qual este afirma que o sistema schopenhaueriano eacute fraco e vulneraacutevel um idealismo unilateral

que teria sido refutado por Herbart12

No entendimento de Frauenstaumldt a questatildeo remete ao

modo como idealismo e realismo se relacionam em Schopenhauer modo esse que deveria ser

entendido dinamicamente e natildeo como um idealismo puro e simples tampouco como um

realismo nu e cru13

A filosofia schopenhaueriana seria simultaneamente idealista e realista14

A carta 28 expotildee trecircs objeccedilotildees que foram feitas a Schopenhauer nessa

eacutepoca15

Frauenstaumldt responde ao seu interlocutor que supostamente apontou contradiccedilotildees e

afirmaccedilotildees natildeo fundamentadas na obra do filoacutesofo apoiado nas posiccedilotildees que o professor da

Universidade de Jena Carl Fortlage havia defendido na obra Genetische Geschichte der

Philosophie seit Kant16

publicada em 1852 A primeira e a segunda contradiccedilotildees

apresentadas por Frauenstaumldt podem ser remetidas ao segundo caso apontado por Huumlbscher

que indicamos acima Em primeiro lugar haveria uma contradiccedilatildeo fundamental entre a

indestrutibilidade da Vontade como coisa em si e a possibilidade de autossupressatildeo metafiacutesica

10

FRAUENSTAumlDT J Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1854 11

ERDMANN J E Schopenhauer und Herbart eine Antithese Zeitschrift fuumlr Philosophie und philosophische

Kritik Herausgegeben von Dr I H Fichte Dr Hermann Ulrici und J U Wirth Neue Folge Band 21 Halle

1852 p 209-225 12

FICHTE I H Ein Wort uumlber die Zukunft der Philosophie Als Nachschrift zum vorigen Auffaβe Zeitschrift

fuumlr Philosophie und philosophische Kritik Herausgegeben von Dr I H Fichte Dr Hermann Ulrici und J U

Wirth Neue Folge Band 21 Halle 1852 p 226-240 13

A concepccedilatildeo de Frauenstaumldt seraacute abordada no item 43 14

FRAUENSTAumlDT J Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1854 p 318-319 15

Ibidem p 332-344 16

FORTLAGE C Genetische Geschichte der Philosophie seit Kant Leipzig Brockhaus 1852

- 190 -

dela resultando no fim do mundo como um todo17

O ponto central dessa criacutetica eacute que a

negaccedilatildeo da Vontade introduziria um dilema impossiacutevel de solucionar se ela for a coisa em si

natildeo poderaacute ser negada se puder ser negada natildeo seraacute a coisa em si mas representaccedilatildeo18

Em

segundo lugar haveria uma contradiccedilatildeo na negaccedilatildeo que embora levada a cabo apenas

individualmente deveria resultar na superaccedilatildeo da Vontade metafisicamente considerada e

natildeo apenas do indiviacuteduo singular que a realiza19

Uma vez que a Vontade eacute una e indivisiacutevel

que o que se manifesta no mundo inorgacircnico eacute o mesmo que se manifesta em noacutes como coisa

em si e que a multiplicidade dos objetos se deve ao princiacutepio de individuaccedilatildeo que eacute um

componente subjetivo entatildeo a supressatildeo de uma vontade individual deveria significar a

supressatildeo do todo Assim ao citar seu interlocutor Frauenstaumldt escreve ldquoPortanto

consequentemente um homem que primeiro a realizasse teria de estar apto a reconduzir tudo

ao nadardquo20

A terceira objeccedilatildeo referida por Frauenstaumldt aborda a liberdade da

Vontade como coisa em si em sua relaccedilatildeo com a lei de motivaccedilatildeo Essa questatildeo de acordo

com o que ele afirma na carta foi antecipada e discutida pelo proacuteprio Schopenhauer21

O

nuacutecleo dessa criacutetica estaacute em que na medida em que o caraacuteter humano natildeo se diferencia das

forccedilas naturais teria de ser determinado e essencialmente imutaacutevel como elas devendo

produzir seus efeitos com necessidade O interlocutor de Frauenstaumldt argumenta que o caraacuteter

natildeo pode ser indeterminado pois assim como do nada natildeo pode surgir algo de uma coisa em

si que fosse indeterminada e vazia natildeo poderia surgir algo de determinado e definido como

satildeo as accedilotildees Inversamente seria impensaacutevel que uma liberdade da vontade pudesse modificar

ou anular um caraacuteter pois isso equivaleria a tornaacute-lo vazio e indeterminado Em suma para

que possa produzir seus efeitos o caraacuteter inteligiacutevel deve ter uma essecircncia determinada e

imutaacutevel que natildeo poderaacute ser reduzida a nada por meio da liberdade A negaccedilatildeo da liberdade

ao operari e sua concessatildeo ao esse realizaria entatildeo o estranho feito de possibilitar a escolha de

um caraacuteter de forma totalmente infundada Nesse sentido escreve Frauenstaumldt

Finalmente o senhor [o interlocutor] apresenta a alternativa ou a Vontade eacute

eternamente qualitativamente determinada natildeo podendo abandonar ou

modificar sua qualidade originaacuteria ou ela eacute originalmente indeterminada

17

FRAUENSTAumlDT J Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1854 p 333 18

Ibidem p 333 19

Ibidem p 338 20

Ibidem p 339 (traduccedilatildeo nossa) 21

Ibidem p 342

- 191 -

natildeo podendo por toda a eternidade tornar-se algo determinado pois nela

natildeo haacute fundamento para esta ou aquela determinaccedilatildeo22

Em 1869 Frauenstaumldt publicou um artigo na revista Unsere Zeit

deutsche Revue der Gegenwart intitulado ldquoArthur Schopenhauer und seine Gegnerrdquo23

no

qual discute outras contradiccedilotildees que foram apontadas no pensamento schopenhaueriano Nas

palavras dele ldquoEu li mais de uma duacutezia de escritos criacuteticos sobre Schopenhauer e em todos

encontrei acusaccedilotildees de contradiccedilotildees a ele que se orgulhava de ser o filoacutesofo mais

consequente e de ter oferecido um sistema em uma uacutenica peccedilardquo24

Entre os antagonistas

Frauenstaumldt cita Adolf Cornill que identificaria dualismo e contradiccedilotildees em diversos pontos

bem como Rudolf Seydel para quem Schopenhauer oscilaria entre uma concepccedilatildeo realista e

outra idealista acerca da objetivaccedilatildeo da Vontade e que estaria na raiz da contradiccedilatildeo mais

fundamental do sistema schopenhaueriano a antinomia da faculdade de conhecimento25

Naquele artigo Frauenstaumldt menciona a segunda ediccedilatildeo de Logische

Untersuchungen26

de 1862 na qual Friedrich A Trendelenburg teria acusado Schopenhauer

de ser meramente idealista jaacute que seu mundo fenomecircnico seria uma construccedilatildeo causal e

portanto subjetiva27

No mesmo sentido Rudolf Haym em Arthur Schopenhauer28

de 1864

teria julgado encontrar uma contradiccedilatildeo no fato de que embora situasse o princiacutepio de razatildeo

dentro dos limites da representaccedilatildeo Schopenhauer teria buscado pelo fundamento dela

Apelando inclusive para insultos agrave pessoa do filoacutesofo Haym teria criticado tambeacutem a

complementaccedilatildeo do idealismo kantiano com a fundamentaccedilatildeo fisioloacutegica da representaccedilatildeo

Para ele essa seria uma tentativa ingecircnua de conciliar dois pontos de vista excludentes e que

resultaria em diversos problemas dentre eles o nosso tema29

Para Haym aleacutem disso

Schopenhauer justifica o surgimento do conhecimento nos animais em funccedilatildeo da necessidade

gerada pela multiplicidade e separaccedilatildeo dos seres contudo essa mesma multiplicidade e

separaccedilatildeo soacute poderiam surgir com o princiacutepio de individuaccedilatildeo que exige o proacuteprio

22

Ibidem p 341 (traduccedilatildeo nossa) 23

FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 686-707 24

Ibidem p 686 (traduccedilatildeo nossa) 25

Ibidem p 694-695 26

TRENDELENBURG F A Logische Untersuchungen Zweite ergaumlnzte Auflage Leipzig Hirzel 1862 27

FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 697 28

HAYM R Arthur Schopenhauer Berlin Georg Reimer 1864 29

FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 700

- 192 -

conhecimento Daiacute teria se originado um ciacuterculo vicioso que foi apontado tambeacutem por Chr

Albert Thilo no artigo intitulado Ueber Schopenhauerrsquos ethischen Atheismus30

de 186831

Haym e Trendelenburg tiveram em comum a criacutetica relativa agrave

generalizaccedilatildeo da Vontade a toda a natureza orgacircnica e inorgacircnica Trendelenburg considerou

que teria sido necessaacuterio mostrar como o conceito de forccedila eacute derivado do de Vontade o

conceito mais geral da filosofia schopenhaueriana que poreacutem natildeo teria sido demostrado

como tal32

O argumento da analogia seria enganoso porque com ele a essecircncia da vontade

humana se perderia e no entanto conforme a conveniecircncia suas caracteriacutesticas especiacuteficas e

determinadas seriam confundidas com a da Vontade coacutesmica33

A identidade da Vontade no

mundo como um todo exigiria que ela fosse pensada em geral o que a aproximaria de um

conceito amplo de forccedila poreacutem sua ligaccedilatildeo com a vontade humana possibilitaria que

Schopenhauer estendesse as propriedades desta a tudo arbitrariamente No entender de Haym

e de Trendelenbug esse seria o ππῶηον τεῦδορ de Schopenhauer34

Esses dois pensadores

teriam visto ainda uma contradiccedilatildeo na afirmaccedilatildeo de que a Vontade eacute cega sem conhecimento

algum mas ao mesmo tempo comporta-se como algo repleto de intenccedilotildees e fins

pressupostos nos conceitos de Vontade de Vida e Vontade de conhecimento por exemplo35

Aleacutem disso na experiecircncia eacutetica e no gecircnio Haym apontou uma inversatildeo das relaccedilotildees entre

Vontade e conhecimento em que este deixa de ser subordinado e dependente superando

aquela Assim diz Haym de forccedila da natureza que a tudo constitui a Vontade passa ao nada

pelo conhecimento cada vez mais claro das Ideias O conhecimento por seu turno de

efetivador da aparecircncia empiacuterica passa agrave genialidade e agrave santidade isto eacute a um verdadeiro

conhecimento metafiacutesico36

Otto Liebmann na obra Ueber den Objectiven Anblick37

publicada em

1869 teria afirmado que Schopenhauer misturou verdades com absurdos e ideias imisciacuteveis

entre si que levariam a um ciacuterculo vicioso acerca da relaccedilatildeo entre intelecto e ceacuterebro38

Ainda

30

THILO Chr A Ueber Schopenhauerrsquos ethische Atheismus Leipzig Louis Pernitzsch 1868 31

FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 702 32

Ibidem loc cit 33

Ibidem loc cit 34

Ibidem loc cit 35

Ibidem p 704 36

Ibidem p 706 37

LIEBMANN O Ueber den Objektiven Anblick Wiesbaden Carl Schober 1869 38

FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 690-691

- 193 -

antes em 1866 na obra Ueber den individuellen Beweis fuumlr die Freiheit des Willens39

Liebmann teria criticado a concepccedilatildeo schopenhaueriana acerca da liberdade e sua localizaccedilatildeo

no esse entendendo que assim se anularia a responsabilidade40

De modo semelhante em

1869 Eduard von Hartmann teria criticado a reduccedilatildeo do intelecto ao ceacuterebro na obra

Philosophie des Unbewussten41

como uma postura fundamentalmente materialista42

Em 1873 Frauenstaumldt publicou as obras completas de Schopenhauer com

uma extensa introduccedilatildeo de sua autoria cuja maior parte eacute dedicada a refutar os antagonistas

do filoacutesofo e a mostrar o que entende ser o verdadeiro sentido de seu pensamento43

Ele

reafirma que os opositores de Schopenhauer acusaram sua filosofia de ser completamente

contraditoacuteria resultado de uma confusa mistura de elementos heterogecircneos44

Diligentemente

Frauenstaumldt descreve e discute criacuteticas a diversos aspectos do pensamento schopenhaueriano

passando por metafiacutesica teoria do conhecimento eacutetica misantropia pessimismo e a recepccedilatildeo

das obras pelo grande puacuteblico Como satildeo muitas e diferentes as objeccedilotildees apresentadas na

introduccedilatildeo natildeo passaremos por todas elas e restringiremos nossa anaacutelise apenas agravequelas

relativas agrave metafiacutesica e agrave teoria do conhecimento

Nesse texto Frauenstaumldt repete as partes relativas a Trendelenburg e a

Haym do artigo mencionado acima e afirma que diversos professores ignorando sua

resposta reincidiram nas mesmas criacuteticas deles Seria o caso do jurista e professor Heinrich

Ahrens que criticou a generalizaccedilatildeo da Vontade a todo o mundo empiacuterico bem como o que

considerou um retorno agrave indiferenccedila entre natureza e espiacuterito O mesmo se daria com Zeller

que teria indicado um falso dilema como sendo a base do argumento da analogia a saber ou

apenas noacutes seriamos Vontade ou entatildeo tudo seria Vontade45

Para Zeller poreacutem uma terceira

alternativa seria pensaacutevel que existissem simultaneamente seres volitivos e seres natildeo

volitivos determinados por forccedilas de outro tipo46

Por um lado Schopenhauer deveria ter

mostrado com que direito o mundo objetivo como um todo deveria ser subsumido na

39

LIEBMANN O Ueber den individuellen Beweis fuumlr die Freiheit des Willens Stuttgart Carl Schober 1866 40

FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 692 41

HARTMAN E Philosophie des Unbewussten Berlin Carl Duncker 1869 42

FRAUENSTAumlDT J Arthur Schopenhauer und seine Gegner Unsere Zeit deutsche Revue der Gegenwart

Monatsschrift zum Conversationslexikon Bd 5 2 Leipzig 1869 p 692 43

Cf SCHOPENHAUER A Saumlmmtliche Werke Herausgegeben von Julius Frauenstaumldt Band 1 Leipzig

Brockhaus 1873 ldquoEinleitung des Herausgebers III Wahrer Sinn der Schopenhauer‟schen Philosophie und

Widerlegung ihrer Gegnerrdquo p XXVIII-CXXXIII 44

Ibidem p XXXIII 45

Ibidem p XLIX 46

ZELLER E Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibniz Muumlnchen Didenbourg 1875 p 709

- 194 -

Vontade por outro surgiriam duacutevidas sobre se sendo a essecircncia de tudo uma soacute natildeo

deveriacuteamos pressupor intenccedilotildees e motivaccedilotildees humanas na natureza47

Zeller teria estranhado a

mudanccedila repentina do ponto de vista do idealismo para o do realismo o que Frauenstaumldt no

entanto aponta como algo natural uma vez que Schopenhauer entendia que a representaccedilatildeo

era apenas um dos dois lados do mundo Para o ldquoapoacutestolordquo o erro de compreensatildeo desse

aspecto da filosofia schopenhaueriana seria inclusive a razatildeo de Zeller e diversos outros

opositores do filoacutesofo terem criticado a antinomia da faculdade do conhecimento48

Aleacutem

disso seriam problemaacuteticos para Zeller a autossupressatildeo da Vontade o sucesso de puacuteblico

dos uacuteltimos anos de Schopenhauer que seria devido agrave adequaccedilatildeo da linguagem ao grande

puacuteblico com objetivo adulador e o romantismo pressuposto na visatildeo schopenhaueriana do

gecircnio49

Esta uacuteltima questatildeo segundo Frauenstaumldt teria sido criticada tambeacutem por Ahrens50

Conforme a exposiccedilatildeo de Frauenstaumldt na obra Arthur Schopenhauer als

Mensch und Denker51

o professor Juumlrgen Bona Meyer buscava contradiccedilotildees em toda parte52

Frauenstaumldt menciona especialmente a contradiccedilatildeo apontada por esse autor segundo a qual

Schopenhauer de um lado demonstra a impossibilidade da liberdade da vontade e de outro

a afirma em relaccedilatildeo agrave Vontade primordial Menciona tambeacutem a concordacircncia de Meyer com

Trendelenbug no tocante agrave criacutetica deste de que o mundo schopenhaueriano se reduz a uma

aparecircncia meramente subjetiva53

Aleacutem desses pontos Frauenstaumldt refere a criacutetica de Thilo

sobre a inviabilidade de um sujeito puro do conhecimento isto eacute a impossibilidade de

esquivar-se da sujeiccedilatildeo agrave Vontade Esse ponto traria problemas tambeacutem para a concepccedilatildeo

schopenhaueriana das Ideias as quais natildeo poderiam ser conhecidas de modo nenhum jaacute que

conhecer eacute tornar-se objeto e entrar nas formas do tempo espaccedilo e causalidade

Em 1876 Frauenstaumldt publicou a segunda ediccedilatildeo de sua obra epistolar

aumentada em 18 cartas referindo uma quantidade maior de objeccedilotildees agrave filosofia

schopenhaueriana incluindo diversas de sua autoria54

Ele relata um grande nuacutemero de

opositores e de criacuteticas praticamente sobre todos os temas do pensamento de Schopenhauer

Menciona tambeacutem teorias que partindo da filosofia dele tentaram melhoraacute-la como a de

47

Ibidem p L 48

Ibidem p LXXI 49

Ibidem p LXXXV CXXIII-CXVI CXXVI-CXXVII 50

Ibidem p CXXV 51

MEYER J B Schopenhauer als Mensch und Denker Berlin Carl Habel 1872 52

Ibidem p LIII 53

Ibidem p LXVIII 54

FRAUENSTAumlDT J Neue Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1876

- 195 -

Eduard von Hartmann sobre o inconsciente bem como outras que aparentemente a

refutariam como a de Darwin55

Nessa nova ediccedilatildeo Frauenstaumldt esclarece que natildeo eacute um

defensor incondicional do seu mestre como muitos pensavam e que se desviou dele em

pontos importantes De fato em vaacuterias das novas cartas ele apresenta as proacuteprias

discordacircncias em relaccedilatildeo ao pensamento schopenhaueriano na intenccedilatildeo de mostrar sua

verdade essencial corrigi-lo e melhoraacute-lo No entender de Frauenstaumldt embora as obras do

filoacutesofo respondam agrave maioria das criacuteticas que lhes foram feitas haacute questotildees natildeo solucionadas

e ainda muitas outras objeccedilotildees possiacuteveis Natildeo passaremos por todas as criacuteticas que ele relata

nas novas cartas tampouco por todas as que ele mesmo dirige agrave filosofia schopenhaueriana

Exporemos somente suas proacuteprias objeccedilotildees pertinentes ao nosso problema uma vez que

muitas das que referimos anteriormente satildeo retomadas nas novas cartas e que aleacutem disso a

maioria delas estaacute fora do nosso escopo

Entre as principais objeccedilotildees de Frauenstaumldt haacute duas relativas ao que ele

chamou de ldquorestordquo natildeo dissolvido Em primeiro lugar permaneceria um resquiacutecio do

dualismo kantiano que se sobreporia ao monismo do pensamento uacutenico de Schopenhauer Em

segundo haveria tambeacutem um resto natildeo resolvido na contradiccedilatildeo da Vontade consigo mesma

Frauenstaumldt trata do primeiro ponto na carta 17 de suas Neue Briefe uumlber die

Schopenhauerrsquosche Philosophie criticando o que entendeu ser uma oposiccedilatildeo entre a Vontade

em si e sua objetivaccedilatildeo fundada numa visatildeo dualista56

Ele argumenta que a Vontade eacute

completamente estranha agraves formas da representaccedilatildeo nunca podendo adotaacute-las e no entanto

Schopenhauer apresenta os graus de objetivaccedilatildeo como o fenocircmeno proacuteprio dela como sua

objetidade Segundo Frauenstaumldt por um lado as formas da representaccedilatildeo natildeo poderiam

entatildeo ser estranhas agrave Vontade por outro se cada grau de objetivaccedilatildeo manifesta a Vontade

completamente natildeo haveria motivo para que ela se objetivasse em graus e indiviacuteduos

distintos Nesse sentido escreve Frauenstaumldt ldquoSe a Vontade estaacute completamente objetivada

na pedra entatildeo natildeo haacute razatildeo para a objetivaccedilatildeo nas plantas e nos animais Se aleacutem disso a

Vontade jaacute se objetiva completamente em um carvalho para que entatildeo os milhotildees de

carvalhosrdquo57

De acordo com a interpretaccedilatildeo dele assim como a humanidade natildeo

poderia se objetivar completamente em um dos seus troncos ou em um indiviacuteduo pela mesma

55

Ibidem p 2 56

Ibidem p 89 57

Ibidem p 90 (traduccedilatildeo nossa)

- 196 -

razatildeo a vontade da natureza natildeo poderia se objetivar inteiramente em uma uacutenica espeacutecie ou

indiviacuteduo58

E se esse fosse realmente o caso haveria um sem nuacutemero de objetivaccedilotildees

supeacuterfluas Para Frauenstaumldt do mesmo modo como cada membro do corpo objetiva uma

funccedilatildeo distinta da vontade corporal natildeo a vontade completa cada espeacutecie ou indiviacuteduo natildeo

objetiva a Vontade como um todo mas apenas uma funccedilatildeo especial Entatildeo ele afirma

ldquoMicrocosmo e macrocosmo se esclarecem tambeacutem aqui reciprocamenterdquo59

A unidade e a

indivisibilidade da Vontade natildeo se explicam porque ela estaacute inteira em cada objetivaccedilatildeo mas

diz ele porque ela eacute a abrangecircncia unitaacuteria do conjunto dos fenocircmenos matizados e

individualizados60

ldquoAssimrdquo ele afirma ldquoa unidade como algo que se organiza natildeo exclui a

multiplicidade mas a incluirdquo61

Portanto soacute se poderia conhecer o ser completo do fenocircmeno

por meio do todo natildeo por meras partes Uma parte somente poderia explicar o todo caso o

mundo natildeo estivesse no tempo e no espaccedilo pois entatildeo seria possiacutevel conhecer o conjunto

completo tanto por meio de muacuteltiplos indiviacuteduos quanto por um uacutenico deles

Na carta 43 Frauenstaumldt aborda a contradiccedilatildeo da Vontade consigo

mesma que ele entende ser o segundo resto natildeo resolvido na filosofia schopenhaueriana Ele

concorda que a compaixatildeo seja uma consequecircncia correta da unidade da Vontade poreacutem

nem o seu conceito nem sua necessidade no mundo estariam bem fundamentados62

Para ele

compaixatildeo pressupotildee sofrimento e este surge do conflito da Vontade consigo mesma algo

que seria injustificaacutevel Se a Vontade eacute una deveria entatildeo mostrar indivisibilidade e harmonia

em todos os seus fenocircmenos e nesse caso a compaixatildeo natildeo seria necessaacuteria Por

conseguinte ou a Vontade natildeo seria una ou o sofrimento seria um enigma por esclarecer63

Frauenstaumldt enxerga aqui o mesmo problema do teiacutesmo e do panteiacutesmo em explicar o

sofrimento e remete a Schopenhauer as objeccedilotildees que ele proacuteprio fez a ambas aquelas

perspectivas teoacutericas como o fundamento uno e essencial se desuniu em seus fenocircmenos

entrou em luta consigo mesmo gerando males conflitos e sofrimento Nas palavras dele

ldquoComo no fenocircmeno do um-todo essencial eacute possiacutevel o egoiacutesmo a fonte de todos os

malesrdquo64

58

Ibidem p 90-91 59

Ibidem p 91 (traduccedilatildeo nossa) 60

Ibidem loc cit 61

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 62

Ibidem p 266 63

Ibidem loc cit 64

Ibidem p 267 (traduccedilatildeo nossa)

- 197 -

Na concepccedilatildeo de Frauenstaumldt o egoiacutesmo insere uma oposiccedilatildeo entre o

microcosmo o macrocosmo na medida em que cada indiviacuteduo se entende como o uacutenico ser

real existente em detrimento do restante do mundo Entretanto diz ele natildeo se pode explicar

como a Vontade que existe natildeo em um indiviacuteduo mas em todos possa ter chegado em cada

um deles agrave colossal cegueira de tomar apenas a si mesmo como real e esquecer todos os

demais65

Na verdade segundo Frauenstaumldt a harmonia e a unidade da Vontade existiriam

apenas no macrocosmo na adequaccedilatildeo muacutetua de todos os fenocircmenos mas natildeo seria forte o

suficiente para suprimir a luta dos indiviacuteduos entre si Entatildeo ele escreve ldquoA unidade da

Vontade natildeo se estende ateacute o indiviacuteduo permanece conectada ao macrocosmo ela natildeo eacute

radical Mas de onde ela proveacutem Schopenhauer natildeo explicourdquo66

42 ndash Apreciaccedilotildees criacuteticas da antinomia da faculdade de conhecimento

Neste item apresentaremos algumas das apreciaccedilotildees criacuteticas que a

antinomia que a faculdade de conhecimento recebeu Nossa exposiccedilatildeo poreacutem natildeo seraacute

exaustiva do ponto de vista da quantidade dos comentaacuterios o que seria cansativo e

desnecessaacuterio mas privilegiaraacute apenas as argumentaccedilotildees que nos parecerem mais

contundentes e profiacutecuas Com efeito na obra Arthur Schopenhauer als Uebergangsformation

von einer idealistischen in eine realistische Weltanschauung Adolf Cornill aborda entre

outros assuntos tambeacutem o nosso tema de pesquisa Esse autor ressalta que Schopenhauer

interditou o acesso da razatildeo ao acircmbito do metafiacutesico tornando-se necessaacuterio outro caminho

que levasse ateacute ele Ao mesmo tempo numa tentativa de fundamentar a metafiacutesica

indutivamente teria associado a faculdade do conhecimento a algo meramente fiacutesico e

reconstruiacutedo via de acesso agrave essecircncia do mundo com base na Vontade67

Para Cornill a

filosofia schopenhaueriana se torna dualista na medida em que ao lado de um mundo

65

Ibidem p 269 66

Ibidem p 270 (traduccedilatildeo nossa) 67

CORNILL A Arthur Schopenhauer als Uebergangsformation von einer idealistischen in eine realistische

Weltanschauung Heidelberg Georg Mohr 1856 p 99-100

- 198 -

material extenso temporal e causal estabelece um mundo metafiacutesico destituiacutedo dessas

formas Esse dualismo seria o responsaacutevel por tornar o sistema uma peccedila dilacerada

internamente e repleta de contradiccedilotildees

Especificamente no caso da nossa antinomia Cornill considera que o

problema tem sua raiz na desconsideraccedilatildeo dos argumentos acerca dos paralogismos da razatildeo

pura pois contrariando o entendimento kantiano Schopenhauer teria tomado a representaccedilatildeo

do sujeito pelo seu ser em si68

Para ele o filoacutesofo se lanccedilaria de um extremo ao outro entre

materialismo e idealismo e um irremediaacutevel dualismo natildeo permitiria que se decidisse sobre

se possuiriacuteamos ou natildeo um conhecimento do ser em si da vida espiritual69

(geistigen

Lebens)70

O mesmo dualismo e a mesma oscilaccedilatildeo repercutiriam na compreensatildeo

schopenhaueriana acerca da faculdade de conhecimento levando-o agrave antinomia o

pensamento que parece ser o mais ideal em toda a natureza eacute considerado como uma funccedilatildeo

fisioloacutegica do ceacuterebro71

O mundo objetivo diz Cornill com todos os seus atributos eacute

somente um movimento da massa cerebral dentro do cracircnio mas esse mesmo ceacuterebro cuja

funccedilatildeo eacute produzir todos os fenocircmenos eacute tambeacutem apenas um fenocircmeno72

Em uacuteltima

instacircncia a concepccedilatildeo de que o ceacuterebro eacute o refinamento maacuteximo da mateacuteria seria a mesma

adotada no materialismo segundo o qual a mateacuteria eacute indestrutiacutevel eterna e permanente de

modo que no fim de contas tudo acabaria se remetendo a ela No sect 27 da sua obra Cornill

afirma que

Uma tal concepccedilatildeo natildeo satisfaz nem aos idealistas pelos quais

Schopenhauer seraacute sempre tomado como materialista nem aos materialistas

para quem ele sempre deve parecer idealista Seu sistema eacute um dualismo em

si dilacerado e esse eacute o fundamento das inumeraacuteveis contradiccedilotildees nas quais

um pensador claro um espiacuterito profundo permaneceu enredado durante sua

longa e profunda vida73

A obra de Rudolf Seydel Schopenhauers Philosophisches System foi

escrita para um concurso realizado pela Faculdade de Filosofia da Universidade de Leipzig

em 1856 no qual se solicitava que os candidatos elaborassem uma exposiccedilatildeo e criacutetica do

68

Ibidem p 101-102 69

Em uma carta endereccedilada a Frauenstaumldt datada de 31 de outubro de 1856 Schopenhauer acusa Cornill de

confundir idealismo com espiritualismo De fato pode-se perceber essa confusatildeo em toda a obra de Cornill Cf

FRAUENSTAumlDT J LINDNER Ernst O T Arthur Schopenhaper vom Ihm uumlber ihn Ein Wort der

Vertheidigung Berlin A W Hayn 1863 p 711 70

CORNILL op cit p 102 71

Ibidem p 102-103 72

Ibidem p 103 73

Ibidem p 125 (traduccedilatildeo nossa)

- 199 -

pensamento de Schopenhauer Estudante de filosofia na eacutepoca Seydel venceu o concurso do

qual participou tambeacutem Carl Georg Baumlhr entatildeo estudante de direito74

No entender de Seydel

a metafiacutesica e a teoria do conhecimento schopenhauerianas seriam incompatiacuteveis entre si

gerando uma oscilaccedilatildeo entre ambas em funccedilatildeo da qual se formariam um hiato dentro do

sistema como um todo e diversas pequenas contradiccedilotildees75

Ele compara os resultados da

metafiacutesica e da teoria do conhecimento de Schopenhauer chegando ao que julgou ser uma

dupla identidade entre sujeito e objeto De um lado esses dois polos formariam a

representaccedilatildeo isto eacute o objeto e na medida em que a representaccedilatildeo eacute a objetidade da

Vontade o objeto se identificaria com o sujeito De outro a representaccedilatildeo representa a

Vontade e nada mais ldquoPortantordquo ele explica ldquotemos dois sujeitos que satildeo reciprocamente

seus objetos o sujeito do querer e o sujeito da representaccedilatildeo ou dois objetos que satildeo

reciprocamente seus sujeitos o desejado (a representaccedilatildeo) e o representado (a Vontade)rdquo76

Seydel considera que embora Schopenhauer natildeo reconheccedila sua

concordacircncia em diversos pontos com Fichte Schelling e Hegel teria absorvido as duas

formas da filosofia da identidade a saber o ldquoideal-realismordquo do primeiro bem como o ldquoreal-

idealismordquo do segundo e do terceiro77

A junccedilatildeo do princiacutepio especulativo do idealismo com

uma concepccedilatildeo realista teria resultado na visatildeo da objetivaccedilatildeo da Vontade como um processo

gradual no qual toda a riqueza da natureza empiacuterica se apresentaria Assim diz Seydel a

objetivaccedilatildeo se daacute no entendimento e para ele ao mesmo tempo em que o intelecto soacute pode se

realizar por meio do decurso de uma cadeia de objetivaccedilotildees anteriores ao conhecimento De

acordo com ele formam-se um hiato e uma discordacircncia interna na metafiacutesica de

Schopenhauer que separam sua concepccedilatildeo de uma identidade subjetiva e sua filosofia da

natureza78

Schopenhauer teria extraiacutedo de Schelling e Hegel a objetivaccedilatildeo da Vontade por

uma operaccedilatildeo baseada na natureza empiacuterica e de Fichte teria extraiacutedo a concepccedilatildeo da

identidade da Vontade e da representaccedilatildeo Em funccedilatildeo disso afirma Seydel

[] a objetivaccedilatildeo natildeo eacute explicada como atividade real da Vontade mas

como objetivaccedilatildeo apenas no entendimento e para ele enquanto a realizaccedilatildeo

74

SPIERLING Volker Materialien zu Schopenhauers ldquoDie Welt als Wille und Vorstellungrdquo Herausgegeber

kommentiert und eingeleitet von Volker Spierling Frankfurt am Main Suhrkamp 1984 p 129 75

SEYDEL R Schopenhauers Philosophisches System Leipzig Breitkopf amp Haumlrtel 1857 p 7 76

Ibidem p 58 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 77

Ibidem p 69 78

Ibidem p 70

- 200 -

filosoacutefico-natural do intelecto entra expressamente apenas depois do decurso

de uma cadeia de objetivaccedilotildees carente de conhecimento79

Em Gesammelte philosophische Abhandlungen zur Philosophie des

Unbewussten80

publicada em 1872 Eduard von Hartmann aborda criticamente o pensamento

de Schopenhauer No terceiro item dessa obra intitulado ldquoUeber die nothwendige Umbildung

der Schopenhauerschen Philosophie aus ihre Gundprincip herausrdquo ele apresenta uma

avaliaccedilatildeo da filosofia schopenhaueriana na qual relaciona a antinomia da faculdade de

conhecimento a uma mistura de elementos de realismo espiritualismo idealismo e

materialismo O realismo e o espiritualismo estariam do lado da Vontade enquanto o

idealismo subjetivo e o materialismo estariam do lado do fenocircmeno Para Hartmann o

princiacutepio fundamental da filosofia schopenhaueriana eacute o que ele chama de pantelismo

identificado com a fantaacutestica descoberta de que a Vontade eacute una e age sem conhecimento em

toda a natureza81

Nas palavras dele ldquoEsse eacute o nuacutecleo mais interno e irrefutaacutevel da filosofia

schopenhaueriana o foco para o qual todos os seus raios convergem e eacute a concepccedilatildeo que o

ser das coisas oferece quando se abstrai de seu fenocircmenordquo82

Embora haja contradiccedilotildees no

sistema schopenhaueriano voltadas contra esse princiacutepio o que se deveria corrigir satildeo

somente as afirmaccedilotildees que conduzem a elas natildeo o princiacutepio mesmo

A antinomia da faculdade de conhecimento conforme Hartmann estaacute

inserida na problemaacutetica do materialismo Na interpretaccedilatildeo dele a Vontade eacute um princiacutepio

imaterial conhecido por noacutes como o momento mais essencial do espiacuterito pelo que deveria ser

tomada por um princiacutepio espiritual83

No entanto ao associar o intelecto a um produto

material e tentar associar espiritualismo e materialismo Schopenhauer acabaria reforccedilando

este uacuteltimo Para Hartmann o materialismo estaacute correto quando afirma que a integridade das

funccedilotildees cerebrais relaciona-se de modo necessaacuterio com a consciecircncia e que seu mau

funcionamento acarreta problemas nos desiacutegnios sentimentos e representaccedilotildees do indiviacuteduo

Poreacutem o materialismo natildeo permitiria explicar o processo de formaccedilatildeo do mundo que ficaria

reduzido a um jogo cego de efeitos sem sentido dificultando a compreensatildeo da origem dos

organismos e seus significados84

O idealismo teria substituiacutedo o processo objetivo do

materialismo pelo processo interno e subjetivo da representaccedilatildeo mas teria mantido no

79

Ibidem p 69 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 80

HARTMANN E v Gesammelte philosophische Abhandlungen zur Philosophie des Unbewussten Berlin

Carl Duncker 1872 81

Ibidem p 57 82

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 83

Ibidem p 59 84

Ibidem p 60

- 201 -

tocante a esta uacuteltima o mesmo problema daquele assim como o mundo cheio de sentido se

originaria de algo sem sentido a representaccedilatildeo plena de significados nasceria tambeacutem de algo

sem significado85

Conforme Hartmann Schopenhauer cometeu os erros tanto do

materialismo quanto do idealismo subjetivo e sua tentativa de uni-los foi a responsaacutevel pela

antinomia da faculdade de conhecimento Como ele explica ldquo[] um ser independente do

tempo bem pode iniciar a partir de si uma cadeia de desenvolvimentos mas nunca pode

determinar por si o ponto no tempo numa cadeia temporal jaacute iniciada no qual se deve

encontrar a nova consciecircncia que emergerdquo86

Aleacutem disso de nada teria adiantado

Schopenhauer ter retirado a Vontade do domiacutenio do materialismo pois ela seria um princiacutepio

irracional e cego do mesmo modo que a mateacuteria e as forccedilas materiais satildeo concebidas nele Na

concepccedilatildeo de Hartmann somente pela diferenciaccedilatildeo entre consciente e inconsciente eacute que a

verdade fisioloacutegica do materialismo poderia ser reconhecida e mantida Com efeito diz ele as

relaccedilotildees entre a materialidade cerebral e o funcionamento das suas funccedilotildees de pensar sentir e

desejar valem apenas para a consciecircncia Nessa perspectiva de um lado a atividade

inconsciente do espiacuterito permaneceria como uma funccedilatildeo puramente imaterial inserida naquela

mateacuteria e de outro as atividades conscientes seriam produzidas pelo inconsciente e pelo

ceacuterebro87

Em sua obra Schopenhauers Leben Werke und Lehre88

Kuno Fischer

associa a antinomia da faculdade de conhecimento agrave diferenciaccedilatildeo entre ideal e real que ele

entende ser o verdadeiro problema filosoacutefico da sua eacutepoca Na interpretaccedilatildeo de Fischer a

explicaccedilatildeo do mundo concreto como sendo um fenocircmeno cerebral entraria em conflito com a

afirmaccedilatildeo de que seria manifestaccedilatildeo da coisa em si Haveria na verdade dois sentidos

diferentes para o conceito de fenocircmeno no primeiro caso seria inteiramente ideal um

fenocircmeno do ceacuterebro enquanto no segundo ao contraacuterio seria o mais real a objetidade da

Vontade89

Para Fischer essa ambiguidade se deveu ao desvirtuamento da doutrina kantiana

sobre tempo e espaccedilo e agrave influecircncia do sensualismo francecircs que teriam levado Schopenhauer

85

Ibidem loc cit 86

HARTMANN E v Geschichte der Methaphysik Zweiter Teil seit Kant Ausgewaumlhlte Werke Band XII

Leipzig Hermann Haacke 1900 p 188 (traduccedilatildeo nossa) 87

HARTMANN E v Gesammelte philosophische Abhandlungen zur Philosophie des Unbewussten Berlin

Carl Duncker 1872 p 60 88

FISCHER K Schopenhauers Leben Werke und Lehre Heidelberg Carl Winter‟s Universitaumltsbuchhandlung

1908 89

Ibidem p 508

- 202 -

a identificar o ceacuterebro e o intelecto como um oacutergatildeo e sua funccedilatildeo Como esse autor escreve

ldquoPois bem ele quis unir em seu sistema as duas doutrinas incompatiacuteveis daiacute adveio a

antinomia que se enredou naquela explicaccedilatildeo circular defeituosardquo90

Fischer argumenta que para que o ceacuterebro fosse representado como um

oacutergatildeo sua funccedilatildeo representativa teria de se separar de si mesmo Uma vez que isso eacute

impossiacutevel tempo e espaccedilo teriam de se situar no ceacuterebro o qual por sua vez teria de estar

situado no tempo e no espaccedilo Fischer entende ser esse o ponto mais obscuro da filosofia

schopenhaueriana pois a objetivaccedilatildeo graduada da Vontade natildeo poderia ser pensada sem a

multiplicidade e a variedade da natureza isto eacute sem que tempo e espaccedilo estivessem

pressupostos91

Por conseguinte diz ele ldquoUma coisa eacute ser organicamente dependente outra

diferente eacute ser organicamente produzido Kant admitiu o primeiro com relaccedilatildeo ao

conhecimento mas o segundo natildeordquo92

Essas seriam as bases a partir das quais teriam

emergido diversos problemas entre os quais o nosso objeto que ele expotildee em tese e antiacutetese

A tese afirma nosso conhecimento eacute um produto orgacircnico e como tal tem

como suas condiccedilotildees a escala completa da organizaccedilatildeo animal-humana o

mundo das plantas a histoacuteria do desenvolvimento do universo e da Terra A

antiacutetese afirma o universo inteiro em sua multiplicidade variedade e

regularidade tem o sujeito do conhecimento (o intelecto) como seu

pressuposto e portador93

Na obra Arthur Schopenhauer seine Persoumlnlichkeit seine Lehre sein

Glaube Johannes Volkelt aborda a antinomia da faculdade de conhecimento pelo acircngulo do

que chamou de ldquocorrelativismordquo entre sujeito e objeto que se apresentaria tambeacutem entre

intelecto e mateacuteria94

Na medida em que se limitam mutuamente haveria uma correlatividade

estrita entre sujeito e objeto que Schopenhauer explicaria com o conceito de fronteira

(Grenze) De acordo com Volkelt a mesma correlatividade se estende ao intelecto e agrave mateacuteria

jaacute que o filoacutesofo entende esta uacuteltima como sendo o objeto destituiacutedo de forma e qualidade

isto eacute como um conceito95

Em princiacutepio o correlativismo seria correto e baseado no fato

inquestionaacutevel de que o objeto soacute pode ser dado em uma consciecircncia e inversamente a

consciecircncia soacute pode ser consciecircncia de um objeto Poreacutem na interpretaccedilatildeo de Volkelt em

90

Ibidem p 510 (traduccedilatildeo nossa) 91

Ibidem p 509 92

Ibidem p 510 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 93

Ibidem p 508-509 (traduccedilatildeo nossa) 94

VOLKELT Johannes Arthur Schopenhauer seine Persoumlnlichkeit seine Lehre sein Glaube Stuttgart Fr

Frommanns 1900 p 82 et seq 95

Ibidem p 83

- 203 -

certos momentos Schopenhauer imprime uma mudanccedila nesse correlativismo tornando

ambiacuteguo o conceito de sujeito e entrando em contradiccedilatildeo com a teoria do mundo enquanto

representaccedilatildeo96

De iniacutecio a correlatividade entre sujeito e objeto teria sido pensada pelo

filoacutesofo da perspectiva das duas metades indissociaacuteveis que compotildeem consciecircncia do mundo

como representaccedilatildeo Tomada nesse sentido diz Volkelt a correlatividade evidenciaria uma

caracteriacutestica essencial do sujeito que eacute sua relaccedilatildeo com a existecircncia do mundo como

representaccedilatildeo de modo que sua posiccedilatildeo natildeo poderia ser comparada com qualquer outra A

partir daiacute contudo surgiriam dois conceitos de sujeito De um lado na medida em que a

consciecircncia conteacutem em si o sujeito e o objeto o que representa e eacute representado ela seria o

ponto de partida e o campo inicial da filosofia de outro o sujeito seria tambeacutem um dos dois

lados incluiacutedos na consciecircncia97

Para Volkelt parece que em alguns momentos

Schopenhauer natildeo podia dispor do solo ideal-subjetivo do sujeito ldquoCom outras palavrasrdquo ele

esclarece

fala como se o sujeito possuiacutesse o correlato que tem no mundo

independentemente da representaccedilatildeo como se esse mundo independente da

consciecircncia defrontasse igualitariamente a consciecircncia O segundo sentido

da palavra ldquosujeitordquo isto eacute o sentido que ele soacute pode possuir no interior do

correlativismo imperceptivelmente adentrou aquele primeiro sentido e

nessa junccedilatildeo transformou o sentido proibido Assim agora ficam frente a

frente o mundo subjetivo e o transobjetivo98

Uma correlaccedilatildeo semelhante entre intelecto e mateacuteria eacute o que daria origem

agraves duas sentenccedilas conflitantes da antinomia faculdade de conhecimento De um lado estaria a

mateacuteria como simples representaccedilatildeo de um sujeito e de outro o sujeito como produto da

mateacuteria uma modificaccedilatildeo desta99

Nesse ponto o aspecto idealista se perderia e o

pensamento schopenhaueriano passaria a apresentar dois pontos de partida com iguais

direitos No entanto para Volkelt a afirmaccedilatildeo da correlatividade entre intelecto e mateacuteria eacute

falsa Dizer que a mateacuteria eacute mera representaccedilatildeo do sujeito seria uma expressatildeo do idealismo

mas natildeo seria compatiacutevel com a correlatividade entre sujeito e objeto Correlativismo

implicaria proporcionalidade no peso dos polos opostos que nesse caso natildeo se apresenta

Aleacutem disso a afirmaccedilatildeo de que a representaccedilatildeo eacute um produto da mateacuteria tambeacutem natildeo se

96

Ibidem op cit 97

Ibidem p 83-84 98

Ibidem p 84 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 99

Ibidem p 85

- 204 -

adaptaria agravequele correlativismo mas seria apenas um modo de pensar que ignora o idealismo

e daacute mais razatildeo ao materialismo100

No texto Schopenhauer et Fichte101

Martial Gueroult apresenta uma

visatildeo criacutetica da filosofia schopenhaueriana em que aborda entre outros o nosso problema Na

interpretaccedilatildeo de Gueroult a caracteriacutestica proacutepria do pensamento de Schopenhauer eacute a

mistura de posiccedilotildees e teorias diferentes e inconciliaacuteveis102

O coraccedilatildeo da doutrina do filoacutesofo

seria a justaposiccedilatildeo de idealismo e realismo em funccedilatildeo da qual um mundo de representaccedilatildeo

se desdobraria como coacutepia de outro real o da Vontade103

A partir daiacute segundo esse autor

surgiriam graves dificuldades porque o idealismo estancaria diante da representaccedilatildeo tomada

como um fato tornando-se necessaacuteria a formulaccedilatildeo de um acesso de tipo diferente agrave coisa em

si Nas palavras de Gueroult

Ora essa justaposiccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel nesse caso senatildeo em virtude da

limitaccedilatildeo do idealismo ao fato da representaccedilatildeo Por essa estagnaccedilatildeo diante

do fato eacute efetivada uma soluccedilatildeo de continuidade absoluta entre a esfera da

representaccedilatildeo e o que estaacute aleacutem dela Graccedilas a esse corte eacute compreensiacutevel

uma experiecircncia de ordem totalmente diferente do conhecimento fenomenal

(representaccedilatildeo) em suma uma experiecircncia de alcance metafiacutesico por meio

da qual o mundo da representaccedilatildeo pode ser verdadeiramente

transcendente104

Essa separaccedilatildeo estrita entre a Vontade e o conhecimento bem como a

restriccedilatildeo do idealismo ao interior da representaccedilatildeo teriam obrigado Schopenhauer a reduzir a

consciecircncia ao intelecto e este agrave representaccedilatildeo Uma das questotildees que essa perspectiva

origina segundo Gueroult eacute referente agrave passagem do ideal ao real isto eacute da representaccedilatildeo agrave

Vontade Para ele Schopenhauer descobriu o ceacuterebro como uma via simples e ineacutedita de

passagem do ideal ao real apta a atuar tambeacutem no sentido inverso no qual aquele oacutergatildeo

aparece como a encarnaccedilatildeo suprema da Vontade e conteacutem em si as formas do

conhecimento105

O mundo da representaccedilatildeo daiacute advindo expotildee a Vontade ou melhor eacute

precisamente a Vontade tornada visiacutevel pelas formas de conhecimento do ceacuterebro tempo

espaccedilo e causalidade Poreacutem diz Gueroult essa teoria exigiria uma concepccedilatildeo de ceacuterebro

100

Ibidem p 86 101

GUEROULT M Etudes de Philosophie allemande HildesheimNew York Georg Olms 1977 p 202-261 102

Ibidem p 221 103

Ibidem p 226 104

Ibidem p 226-227 (traduccedilatildeo nossa) 105

Ibidem p 240

- 205 -

como instrumento e de representaccedilatildeo como motor ideal e sensoacuterio as quais natildeo teriam sido

desenvolvidas por Schopenhauer106

Na concepccedilatildeo schopenhaueriana o ceacuterebro uniria uma esfera do real tal

como pensada pelo senso comum e outra do ideal como formulada pelo idealismo

transcendental Para Gueroult trata-se de um escacircndalo filosoacutefico pois esse oacutergatildeo pertenceraacute

inteiramente tanto ao mundo real como ao ideal onde eacute apenas uma representaccedilatildeo entre

outras No entanto como parte de qualquer dos lados natildeo poderia ser concebido como

produzindo o outro Na medida em que em qualquer dos mundos seraacute apenas uma parte

iacutenfima natildeo poderia produzir o outro em sua totalidade107

Gueroult observa que

Schopenhauer substituiu a palavra e a noccedilatildeo de ceacuterebro pela de faculdade de conhecimento

como se natildeo houvesse aiacute nenhum problema dando poreacutem um salto mais perigoso e arriscado

do que todos os de Jacobi Mas entatildeo o ceacuterebro seria apresentado como o criador das

representaccedilotildees colocando-as no tempo e no espaccedilo e ao mesmo tempo seria condicionado

pelas formas que o constituem ele as produziria e seria produzido por elas Nesse sentido

escreve Gueroult

Aqui como laacute Schopenhauer se contentou em justapor teorias heterogecircneas

o idealismo transcendental de Kant e o materialismo dos franceses de

Cabanis de Bichat etc segundo o qual o pensamento eacute uma secreccedilatildeo do

ceacuterebro ldquoO organismo eacute objetivaccedilatildeo da vontade o ceacuterebro eacute a

eflorescecircncia do organismordquo (Welt Ergaumlnzungen ch xxii R II p 321)108

Na obra Aporie und Subjekt Martim Booms se dedica especificamente ao

estudo das dificuldades do pensamento schopenhaueriano Segundo ele haacute uma estrutura

aporeacutetica que se expressa no conteuacutedo e no meacutetodo de Schopenhauer bem como uma relaccedilatildeo

de tensatildeo de sua filosofia consigo mesma109

A aporia se encontraria jaacute nas bases do sistema

no dualismo que apresenta o mundo como estritamente representaccedilatildeo objeto de

conhecimento em uma consciecircncia e ao mesmo tempo como Vontade em si objeto de uma

visatildeo essencialmente metafiacutesica estendida agrave eacutetica e agrave esteacutetica Nesse dualismo de um lado o

mundo deve ser entendido como fenocircmeno como deficitaacuterio e secundaacuterio em relaccedilatildeo agrave

Vontade sem poder livrar-se da submissatildeo a ela De outro esse fenocircmeno deve superar a

coisa em si natildeo apenas do ponto de vista teoacuterico mas tambeacutem existencial e ontologicamente

106

Ibidem p 241 107

Ibidem loc cit 108

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 109

BOOMS M Aporie und Subjekt Die erkenntnistheoretische Entfaltungslogik der Philosophie

Schopenhauers Beitraumlge zur Philosophie Schopenhauers herausgegeben von Dieter Birnbacher und Heinz Gerd

Ingekamp Band 6 Wurzburg Koumlnigshausen amp Neuman 2003 p 17

- 206 -

diz Booms ldquo[] num tipo de rebeliatildeo do secundaacuterio contra o primaacuterio do criado contra seu

senhorrdquo110

Essa seria a aporia fundamental que colocaria o conhecimento e a Vontade em

uma paradoxal aniquilaccedilatildeo muacutetua intitulada por Schopenhauer ldquocontradiccedilatildeo do fenocircmeno

consigo mesmordquo (Widerspruch der Erscheinung mit sich selbst)

No entender de Booms o conceito de sujeito eacute construiacutedo por

Schopenhauer com base tanto nesse dualismo como no realismo promovendo a expulsatildeo da

coisa em si da teoria do conhecimento de um modo radical Em virtude dessa concepccedilatildeo

surge uma primeira inconsistecircncia uma aporia na qual se coloca o domiacutenio do externo no

proacuteprio sujeito e que rebatendo na teoria do conhecimento emaranha-a em um ciacuterculo

manifesto111

Nas palavras desse autor a antinomia da teoria do conhecimento ldquo[] resulta

dos pontos de vista circulares e entrelaccedilados de uma explicaccedilatildeo natural-materialista de um

lado assim como de uma deduccedilatildeo ideal-filosoacutefica a partir da consciecircncia do sujeito que

conhece e constroacutei o mundo de outrordquo112

De acordo com isso aquele problema natildeo seria um

produto secundaacuterio da teoria da representaccedilatildeo schopenhaueriana mas ldquo[] o centro e a

estrutura fundamental do bdquopensamento uacutenico‟ como um todordquo113

E assim como um genoacutetipo

se expressa em fenoacutetipos diferenciados mas uniformes tambeacutem a antinomia seria refletida em

diferentes dimensotildees114

43 ndash Soluccedilotildees apologeacuteticas agrave antinomia da faculdade de conhecimento

Na introduccedilatildeo que escreve agrave sua ediccedilatildeo das obras completas de

Schopenhauer Frauenstaumldt apresenta seu posicionamento quanto agraves criacuteticas que o filoacutesofo

110

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 111

Ibidem p 230 112

Ibidem p 18 (traduccedilatildeo nossa) 113

Ibidem p 157 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 114

Ibidem p 230

- 207 -

recebeu115

Para ele as falhas encontradas natildeo se deviam agrave proacutepria filosofia

schopenhaueriana mas a uma interpretaccedilatildeo feita a partir do exterior do sistema e de sentenccedilas

avulsas com as quais se julgavam o todo A partir de frases soltas diz ele pode-se fazer o

que se quiser de modo que a justiccedila para com um autor exige que se siga no sentido contraacuterio

isto eacute que as sentenccedilas avulsas sejam interpretadas a partir do conjunto teoacuterico completo116

Para Frauenstaumldt Schopenhauer teria indicado o modo correto de ler suas obras justamente

no intuito de evitar ser julgado dessa forma

Como se pressentisse que isso aconteceria com ele como de fato aconteceu

de abordarem seu sistema a partir de fora planejando extrair sentenccedilas do

contexto para entatildeo bradar sobre contradiccedilotildees absurdos inconsequecircncias e

assim por diante ele jaacute esclareceu na introduccedilatildeo da primeira ediccedilatildeo de ldquoO

mundo como vontade e representaccedilatildeordquo como ele deve ser lido para que seja

compreendido117

Esse seria o motivo pelo qual Schopenhauer teria exigido que sua obra

fosse lida duas vezes na primeira com paciecircncia para que na segunda tudo pudesse ser visto

sob nova luz Por isso tambeacutem a recomendaccedilatildeo de que nunca se perdesse de vista a conexatildeo

necessaacuteria entre as sentenccedilas separadas e o pensamento principal nem a progressatildeo da

exposiccedilatildeo A divisatildeo do pensamento uacutenico em livros distintos e em diferentes pontos de vista

seria algo inevitaacutevel pois natildeo haveria como remeter todas as ramificaccedilotildees do pensamento a

um uacutenico ponto e adicionalmente expor clara e minuciosamente meditaccedilotildees e provas que

ocuparam muitos anos

Aleacutem disso o entendimento da filosofia schopenhaueriana tambeacutem teria

sido dificultado pelas discrepacircncias de linguagem e de expressatildeo da primeira ediccedilatildeo de O

Mundo em relaccedilatildeo agrave segunda e ao O MundoII Contudo afirma Frauenstaumldt tendo-se em

mente o fato de que aquelas ediccedilotildees foram escritas uma na juventude e outra na maturidade

seria possiacutevel superar os obstaacuteculos por meio da elaboraccedilatildeo completa e posterior118

Trata-se

de uma limitaccedilatildeo inexpugnaacutevel mas ele escreve

Schopenhauer de fato admitiu que haja uma diferenccedila na elaboraccedilatildeo e na

fundamentaccedilatildeo entre a primeira exposiccedilatildeo de seu sistema e a que apareceu

25 anos depois como haacute entre a juventude e a velhice mas que ambas se

115

SCHOPENHAUER A Saumlmmtliche Werke Herausgegeben von Julius Frauenstaumldt Band 1 Leipzig

Brockhaus 1873 p XXVIII et seq 116

Ibidem p XXVIII 117

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 118

Ibidem p XXIX-XXX

- 208 -

contradigam ele admitiu tatildeo pouco como que a natureza se contradiga ao dar

caracteriacutesticas diferentes para o jovem e o velho119

Frauenstaumldt argumenta ainda que a consistecircncia no sistema

schopenhaueriano natildeo se apresenta da mesma forma que nas obras dos outros filoacutesofos Os

outros sistemas diz ele constroem sua coerecircncia por meio de deduccedilotildees de sentenccedilas entre si

desenvolvendo e repetindo o que jaacute estaacute contido nas proposiccedilotildees fundamentais

Diferentemente o sistema de Schopenhauer natildeo se fundamenta em cadeias de raciociacutenios

mas imediatamente no mundo intuitivo de modo que sua coerecircncia natildeo se apoia em meras

regras loacutegicas mas na concordacircncia natural das sentenccedilas com o mundo real dado na

consciecircncia120

Por isso de acordo com ele Schopenhauer natildeo precisou se preocupar com a

harmonia entre todas as suas sentenccedilas nem quando vez por outra proposiccedilotildees avulsas

pareciam ser incompatiacuteveis entre si Nas palavras dele ldquo[] a concordacircncia surgiu depois por

si mesma na medida em que as sentenccedilas se reuniram completamente porque ela natildeo eacute outra

coisa senatildeo a concordacircncia da realidade consigo mesma que nunca pode falharrdquo121

Na segunda carta das suas Neue Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche

Philosophie Frauenstaumldt tece consideraccedilotildees gerais sobre a presenccedila de inconsequecircncias e

contradiccedilotildees em grandes pensadores Para ele esses problemas natildeo diminuiriam o valor do

pensamento e uma vez que filoacutesofo algum jamais esteve totalmente livre deles seria

necessaacuterio entatildeo declarar todos os sistemas como invaacutelidos122

Incoerecircncias e contradiccedilotildees

natildeo significariam ausecircncia de verdades as quais nada teriam a ver com consequecircncia loacutegica

Assim diz Frauenstaumldt a harmonia formal pode comparecer inclusive em sistemas

dogmaacuteticos mas eacute a relaccedilatildeo com a experiecircncia que decide sobre a verdade deles Uma

filosofia livre de contradiccedilotildees que esteja fundamentada em conceitos e princiacutepios abstratos

sem correspondecircncia com a realidade seria menos vantajosa do que um sistema contraditoacuterio

ele explica ldquoPois de duas afirmaccedilotildees contraditoacuterias entre si pelo menos uma pode ser uma

verdadeira enquanto de duas natildeo contraditoacuterias entre si ambas podem ser falsasrdquo123

A

verdadeira contradiccedilatildeo se daria com relaccedilatildeo agrave experiecircncia aos fatos os uacutenicos que poderiam

servir de medida para se julgar se uma filosofia possui ou natildeo relevacircncia se deve ou natildeo ser

abandonada Na concepccedilatildeo de Frauenstaumldt embora possa ser repleto de contradiccedilotildees o

119

Ibidem p XXXI (traduccedilatildeo nossa) 120

Ibidem p XXXII-XXXIII 121

Ibidem p XXXIII (traduccedilatildeo nossa) 122

FRAUENSTAumlDT J Neue Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1876 p 4 123

Ibidem p 5 (traduccedilatildeo nossa)

- 209 -

pensamento schopenhaueriano natildeo carece de valor e na verdade o possui em maior grau do

que um sistema racional construiacutedo a priori124

Especificamente sobre o problema a que nos dedicamos Frauenstaumldt

defende Schopenhauer contra Zeller Na carta 27 ele afirma haver muita confusatildeo sobre a

relaccedilatildeo de Schopenhauer com o materialismo o que levaria os diversos comentadores a

sustentar diferentes posiccedilotildees Enquanto alguns entenderiam o filoacutesofo como materialista pela

sua concepccedilatildeo do intelecto como funccedilatildeo do ceacuterebro outros o acusariam de esvaziar a mateacuteria

em uma concepccedilatildeo idealista ao apresentaacute-la como representaccedilatildeo Outros ainda veriam um

ciacuterculo no fato de que o espiacuterito eacute derivado por Schopenhauer a partir da mateacuteria e ao mesmo

tempo a mateacuteria eacute esclarecida como representaccedilatildeo do espiacuterito125

No seu entendimento poreacutem a filosofia schopenhaueriana se diferencia

essencialmente do materialismo embora tambeacutem admita a mateacuteria como uma substacircncia

eterna e incriada que permanece sob todas as mudanccedilas perceptiacuteveis no mundo fenomecircnico e

agrave qual nenhuma substacircncia espiritual pode ser equiparada A mateacuteria no sentido

schopenhaueriano natildeo se relacionaria agrave intuiccedilatildeo apenas ao pensamento na medida em que

seria meramente um fazer feito isto eacute pura abstraccedilatildeo Ela natildeo seria um objeto da experiecircncia

mas como fundamento desta pertenceria agraves condiccedilotildees formais e a priori do conhecimento126

As determinaccedilotildees e os elementos que soacute se encontram a posteriori ao contraacuterio fariam parte

do lado empiacuterico do mundo e anunciariam a coisa em si Portanto diz Frauenstaumldt

Schopenhauer eacute materialista no sentido do antiespiritualismo mas eacute antimaterialista na

medida em que natildeo toma a mateacuteria como a coisa em si127

Na carta 28 Frauenstaumldt afirma que Schopenhauer diluiu a mateacuteria em

Vontade e em representaccedilatildeo tornando falsa tanto a afirmaccedilatildeo de que ele a dissolveu em uma

concepccedilatildeo idealista de fenocircmeno quanto a de que ele eacute um materialista puro e simples128

De

um lado contra a reduccedilatildeo da mateacuteria a representaccedilatildeo Schopenhauer teria apontado a Vontade

como o nuacutecleo dela De outro contra visatildeo de uma independecircncia realista da mateacuteria teria

argumentado que ela natildeo eacute a coisa em si que natildeo eacute independente de um sujeito cognoscente

De acordo com isso Frauenstaumldt entende que tambeacutem eacute falsa a acusaccedilatildeo de haver um ciacuterculo

124

Ibidem p 5 125

Ibidem p 138 126

Ibidem p 142 127

Ibidem p 145 128

Ibidem p 161

- 210 -

no qual a mateacuteria deriva da representaccedilatildeo e inversamente a representaccedilatildeo deriva da mateacuteria

pois os termos seriam usados em sentidos diferentes em ambas as sentenccedilas Nas palavras

dele ldquoO lado da mateacuteria que aparece que eacute condicionado a priori ele deduz da

representaccedilatildeo a representaccedilatildeo ao contraacuterio ele deduz do lado real da mateacuteria da Vontade

nos graus da vida animal Onde estaacute aqui o ciacuterculordquo129

Assim como a mateacuteria o ceacuterebro

tambeacutem possuiria um lado concernente agrave representaccedilatildeo e outro concernente agrave Vontade Do

ponto de vista ideal aquele oacutergatildeo eacute produto da representaccedilatildeo mas do ponto de vista real

enquanto coisa em si eacute o produtor da representaccedilatildeo Entatildeo diz Frauenstaumldt ldquoSegundo

Schopenhauer o ceacuterebro natildeo eacute produto da representaccedilatildeo no mesmo sentido em que eacute produtor

dela eacute produto da representaccedilatildeo enquanto objeto da intuiccedilatildeo externa e ao contraacuterio eacute

produtor da representaccedilatildeo segundo seu ser interno isto eacute como Vontade de conhecerrdquo130

Na interpretaccedilatildeo de Paul Deussen Schopenhauer foi o uacutenico poacutes-

kantiano que conseguiu desenvolver a filosofia de Kant a contento Na obra Allgemeine

Geschichte der Philosophie131

ele escreve que Kant realizou a separaccedilatildeo precisa entre os

elementos a priori e a posteriori da consciecircncia bem como demonstrou a necessidade de

ambos para a constituiccedilatildeo da experiecircncia Com isso contribuiu para a tarefa de toda a

filosofia que afirma Deussen sempre foi e sempre seraacute tornar compreensiacuteveis o objetivo e

subjetivo que formam a unidade do mundo132

Para ele Fichte Schelling Hegel e Herbart

passaram por cima da argumentaccedilatildeo kantiana e tentaram deduzir o mundo como um todo

partindo apenas de um daqueles dois elementos acreditando que assim poderiam eliminar as

supostas contradiccedilotildees entre eles Nas palavras de Deussen

Schopenhauer tomou um caminho totalmente diferente de todos os

pensadores mencionados posto que ele e somente ele entre todos os ilustres

sucessores de Kant apropriou-se perfeita e completamente dos resultados da

investigaccedilatildeo kantiana ndash reconhecidos por ele como irrefutaacuteveis e apenas

purgados de falsos abusos ndash trabalhou sobre eles e por assim dizer

atualizando no mesmo estilo Kant desenvolveu as consequecircncias das

doutrinas em todas as regiotildees da filosofia deste assim com todo direito

considera somente sua filosofia como desdobramento ateacute o fim da filosofia

kantiana133

129

Ibidem p 161 (traduccedilatildeo nossa) 130

Ibidem p 162 (traduccedilatildeo nossa) 131

DEUSSEN P Allgemeine Geschichte der Philosophie 2 Band 3 Abteilung 2 Auflage (Neuere

Philosophie von Descartes bis Schopenhauer) Leipzig Brockhaus 1920 132

Ibidem p 377 133

Ibidem p 378 (traduccedilatildeo nossa)

- 211 -

A respeito do problema que nos ocupa Deussen considera tratar-se de

uma questatildeo inevitaacutevel apontada natildeo somente no pensamento de Schopenhauer mas tambeacutem

no kantiano O ciacuterculo no qual a mateacuteria e a consciecircncia exigem-se mutuamente como

condiccedilatildeo uma da outra seria inexpugnaacutevel134

De um lado uma vez que o tempo o espaccedilo e a

causalidade satildeo formas da consciecircncia sem as quais a mateacuteria natildeo existe o mundo material

como um todo natildeo existiria sem a consciecircncia Em segundo natildeo se poderia negar que

conhecemos a consciecircncia unicamente como funccedilatildeo de um oacutergatildeo material o ceacuterebro o qual

diz Deussen ldquo[] para surgir teve como condiccedilatildeo um longo desenvolvimento da mateacuteria no

tempo e no espaccedilordquo135

Para ele as ciecircncias da natureza demonstram que o ciacuterculo eacute

irremediaacutevel pois apoacutes todas as pesquisas e descobertas o pesquisador retornaraacute ao ponto de

iniacutecio isto eacute agrave sua consciecircncia como condiccedilatildeo para os inumeraacuteveis desenvolvimentos da

mateacuteria descobertos O investigador perceberaacute entatildeo que partindo-se do inorgacircnico chega-se

por aperfeiccediloamentos contiacutenuos da mateacuteria ateacute o ceacuterebro humano isto eacute ateacute a consciecircncia

que poreacutem jaacute estava pressuposta desde o iniacutecio como condiccedilatildeo Portanto perceberaacute que tudo

aquilo natildeo passa de uma cadeia de representaccedilotildees na sua proacutepria consciecircncia136

Assim como Frauensaumldt Deussen tambeacutem considera que natildeo haacute de fato

um problema loacutegico na antinomia da faculdade do conhecimento pois a consciecircncia estaria

sendo tomada em sentidos diferentes aquela que origina o mundo seria distinta da que eacute

originada por este No primeiro caso seria a consciecircncia transcendental da qual surgem

tempo espaccedilo e mateacuteria no segundo seria a consciecircncia empiacuterica que somente pode surgir a

partir do tempo do espaccedilo e da mateacuteria137

Conforme Deussen o mundo eacute ao mesmo tempo

eterno e dependente das formas do intelecto de modo que a consciecircncia transcendental seria

tatildeo eterna ou alheia ao tempo quanto o proacuteprio mundo O ser das formas intelectuais estaria

entatildeo garantido e neles surgiriam todos os fenocircmenos incluindo as funccedilotildees cerebrais da

consciecircncia empiacuterica humana Esta uacuteltima surgiria no fenocircmeno a partir da transcendental de

modo que ambas teriam de ser distinguidas embora natildeo diferenciadas138

134

Ibidem p 456 135

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 136

Ibidem p 457 137

Ibidem loc cit 138

Ibidem p 458-459

- 212 -

Na obra Denker gegen den Strom139

Arthur Huumlbscher avalia que todos os

opositores de Schopenhauer agem de modo semelhante a saber valendo-se de objeccedilotildees e

argumentos chegam em um problema formal Para Huumlbscher eacute preciso lembrar que o

filoacutesofo realiza a passagem do primeiro para o segundo livro de O Mundo de modo

imediato e que a mudanccedila de pontos de vista natildeo eacute realizada por um tipo de inspiraccedilatildeo uacutenica

ou excepcional Na verdade diz ele a mudanccedila de pontos de vista faz parte do meacutetodo de

Schopenhauer que sempre obteacutem seus resultados pela alternacircncia de consideraccedilotildees e pela

surpreendente junccedilatildeo de observaccedilotildees opostas140

Como ele escreve ldquoHaacute transiccedilotildees de anaacutelise

epistemoloacutegica para a fisioloacutegica de loacutegica para psicoloacutegica Haacute um opor e unir de fatos da

experiecircncia com fatos para aleacutem da experiecircnciardquo141

Uma mesma linguagem tem de dar conta

de avanccedilos e retornos entre dois os reinos distintos o da representaccedilatildeo e o da coisa em si o

que no entanto exigiria o uso de dois oacutergatildeos diferentes Natildeo possuiacutemos um oacutergatildeo de

conhecimento que nos leve aleacutem da experiecircncia diz Huumlbscher ldquo[] nenhuma palavra ou

conceito que livre de qualquer ligaccedilatildeo com a intuiccedilatildeo possa ser expressatildeo imediata da visatildeo

metafiacutesicardquo142

Eacute aiacute entatildeo que deveraacute entrar a metaacutefora e a interpretaccedilatildeo para que se possa

expressar um sentido verdadeiro para se registrar e iluminar o desconhecido e intangiacutevel por

meio do conhecido e tangiacutevel

Huumlbscher considera que as objeccedilotildees ao pensamento de Schopenhauer

podem ser todas remetidas agravequelas mudanccedilas de pontos de vista e que a antinomia da teoria

do conhecimento eacute o exemplo mais conhecido entre as criacuteticas No fim de contas a questatildeo

giraria em torno do confronto irreconciliaacutevel entre o modo de consideraccedilatildeo realista e o

idealista no qual ambos os lados teriam razatildeo Portanto como ressaltado pelo proacuteprio

Schopenhauer seria tatildeo verdadeiro que a mateacuteria seja uma mera representaccedilatildeo do sujeito

cognoscente quanto que o sujeito cognoscente seja um produto da mateacuteria143

O mundo seria

entatildeo real do ponto de vista empiacuterico e ideal do ponto de vista transcendental sem que para

isso se exigisse um sujeito supraempiacuterico ou uma consciecircncia transcendente Colocado de

forma metafoacuterica ldquoEacute como se daacute no caso de duas afirmaccedilotildees contrapostas sobre uma esfera

139

HUumlBSCHER A Denker gegen den Strom Schopenhauer Gestern ndash Heute ndash Morgen 4 Durchgesehene

Auflage Bonn Bouvier 1988 140

Ibidem p 254 141

Ibidem p 255 (traduccedilatildeo nossa) 142

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 143

Ibidem p 256

- 213 -

oca ndash que seja cocircncava e que seja convexa ndash agraves quais se chega por meio da unificaccedilatildeo da visatildeo

que se tem no ponto de vista do observador ndash dentro ou fora da bolardquo144

Conforme Rudolf Malter a objetivaccedilatildeo da Vontade parece colocar o

transcendentalismo e a metafiacutesica de Schopenhauer em conflito Na obra Arthur

Schopenhauer Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens145

ele afirma que do

ponto de vista transcendental a representaccedilatildeo tem de ser tomada como dada enquanto do

ponto de vista da metafiacutesica ela somente pode existir por meio de um processo em que a

Vontade se objetiva a si mesma146

De fato diz Malter da perspectiva metafiacutesica a Vontade

se manifesta por meio da mateacuteria que eacute sua visibilidade e uma representaccedilatildeo imaterial eacute

impossiacutevel Como ele explica ldquoA presenccedila material da Vontade na objetivaccedilatildeo graduada da

bdquorepresentaccedilatildeo‟ eacute o organismo animal no qual por sua vez existe o proacuteprio representar

(consciecircncia) objetivamente no ceacuterebrordquo147

No entanto para Malter natildeo se poderia daiacute concluir que devesse haver

um ponto de vista objetivo a ser adotado antes mesmo que o mundo entrasse no horizonte da

representaccedilatildeo pois isso equivaleria a um salto da metafiacutesica da Vontade por sobre o

idealismo Quando Schopenhauer fala da representaccedilatildeo como uma objetivaccedilatildeo da Vontade

natildeo estaria afirmando que o entendimento ou a razatildeo alcanccedilariam o autoconhecimento mas

simplesmente que nas palavras desse autor ldquo[] o intelecto (que abrange entendimento e

razatildeo) enquanto intelecto eacute fenocircmeno e nesse sentido existe (natildeo como sujeito

transcendental) como mateacuteria enquanto eacute objetivaccedilatildeo da Vontaderdquo148

O ponto de vista do

idealismo natildeo seria aniquilado nem limitado por essa visatildeo objetiva do intelecto pois mesmo

quando o ser deste se torna visiacutevel pela sua realizaccedilatildeo material no ceacuterebro isso natildeo

significaria que este fosse condiccedilatildeo da representaccedilatildeo do ponto de vista transcendental do

mesmo modo que o idealismo eacute condiccedilatildeo da consideraccedilatildeo metafiacutesica No entender de Malter

Schopenhauer estava convicto de que o ponto de vista objetivo do intelecto soacute eacute possiacutevel

quando o ponto de vista subjetivo estaacute pressuposto149

Por conseguinte ele escreve

O ensinamento sobre a ldquovisatildeo objetiva do intelectordquo deve ser lido

metafisicamente mas a metafiacutesica da Vontade eacute concebida

144

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) 145

MALTER R Arthur Schopenhauer Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens Sttutgart-Bad

Cannstatt FrommannHolzboog 1991 146

Ibidem p 268 147

Ibidem p 269 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 148

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 149

Ibidem p 270

- 214 -

transcendentalmente em muacuteltiplas camadas ndash e isso significa na concepccedilatildeo

transcendental da filosofia schopenhaueriana como um todo a ldquovisatildeo

objetiva do intelectordquo natildeo muda nada Ela apenas liberta a interpretaccedilatildeo

metafiacutesica da natureza adquirida no horizonte transcendental para a

consideraccedilatildeo empiacuterica posterior em especial nas ciecircncias anatocircmico-

fisioloacutegicas150

Volker Spierling expotildee seu entendimento sobre nosso tema na sua

introduccedilatildeo a Materialien zu Schopenhauers ldquoDie Welt als Wille und Vorstellungrdquo Para ele eacute

preciso considerar que Schopenhauer natildeo fundamenta sua filosofia no realismo nem no

idealismo mas sim na experiecircncia O filoacutesofo natildeo apoiaria seu pensamento em um objeto

independente de qualquer sujeito nem em um sujeito independente de qualquer objeto mas

na experiecircncia que implica ambos e os tem igualmente como condiccedilotildees151

Conforme

Spierling essa unidade natildeo pode ser rompida tomando-se qualquer um dois lados como

absoluto nem se pode deduzir a outra metade da experiecircncia a partir de apenas um deles Nas

suas palavras ldquoDesse modo eacute quebrada a unidade sujeito-objeto que Schopennhauer levou

para dentro da consciecircncia (como tambeacutem o princiacutepio de razatildeo suficiente) e por uma

problemaacutetica abstraccedilatildeo ou o subjetivo ou o objetivo eacute suposto original e filosoficamente

como o primeiro absolutordquo152

O cerne do idealismo schopenhaueriano seria a anaacutelise do surgimento da

realidade objetiva por meio da exposiccedilatildeo do princiacutepio de razatildeo das classes de objetos e das

faculdades intelectuais Nessa anaacutelise embora a experiecircncia seja um produto subjetivo a

aparecircncia surgiria como algo real factual porque o trabalho do entendimento natildeo pode ser

sentido ou percebido pelo sujeito cognoscente153

No entendimento de Spierling daiacute resultaraacute

uma visatildeo transcendente do aspecto fisioloacutegico ou nas palavras dele ldquoAqui fica evidente que

Schopenhauer ao lado de determinaccedilotildees transcendental-imanentes utiliza tambeacutem

determinaccedilotildees fisioloacutegicas em sentido transcendenterdquo154

Poreacutem Schopenhauer teria boas

razotildees para conectar o intelecto ao ceacuterebro isto eacute natildeo seria uma associaccedilatildeo gratuita ou

arbitraacuteria Com efeito diz Spierling a operaccedilatildeo proacutepria do entendimento natildeo passa por

conceitos nem se relaciona com o pensamento racional mas eacute descrita pelo filoacutesofo como

uma funccedilatildeo fisioloacutegica do ceacuterebro presente em todos os animais e meramente subjetiva Da

subjetividade da accedilatildeo do entendimento bem como da sensaccedilatildeo dos sentidos resultaria o

150

Ibidem p 270-271 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 151

SPIERLING Volker Materialien zu Schopenhauers ldquoDie Welt als Wille und Vorstellungrdquo Herausgegeber

kommentiert und eingeleitet von Volker Spierling Frankfurt am Main Suhrkamp 1984 p 41 152

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 153

Ibidem p 45 154

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa)

- 215 -

verdadeiro idealismo transcendental e a natureza ilusoacuteria do mundo bem como o aparente

antimaterialismo radical de Schopenhauer155

A partir daiacute surge segundo Spierling um inevitaacutevel dilema As ciecircncias

devem necessariamente ultrapassar o idealismo transcendental pois suas conclusotildees mostram

que no decurso do tempo haacute um aperfeiccediloamento no sentido dos seres do mais simples aos

mais complexos contrariando a dependecircncia subjetiva de todos os objetos empiacutericos O

mesmo entendimento que criaria o mundo com sua causalidade a priori teria de ser

compreendido por sua vez como uma criaccedilatildeo causal156

Entatildeo escreve Spierling

ldquoSchopenhauer se enreda com isso em um ciacuterculo que consiste em que as condiccedilotildees

transcendental-idealistas do mundo teratildeo de ser pensadas simultaneamente como seus

resultados materialistasrdquo157

Natildeo obstante para esse autor a dependecircncia extrema e unilateral do

objeto em relaccedilatildeo ao sujeito tem necessariamente de ser completada com a investigaccedilatildeo das

suas condiccedilotildees objetivas e reais A proacutepria investigaccedilatildeo filosoacutefico-transcendental eacute que teria

conduzido Schopenhauer agraves duas posiccedilotildees divergentes de modo que o filoacutesofo teria sido

obrigado a seguir os dois caminhos opostos e admitir ambos com os mesmos direitos como

complementos muacutetuos Parar no idealismo transcendental teria sido o mesmo que tomar as

condiccedilotildees subjetivas do pensamento por conhecimento do objeto158

O correto na

interpretaccedilatildeo de Spierling eacute entender a questatildeo no sentido da metaacutefora que Schopenhauer

apresenta no sect 391 de ldquoMetaacuteforas paraacutebolas e faacutebulasrdquo de Parerga e Paralipomena Nesse

texto o filoacutesofo afirma que se trata de misteacuterio a razatildeo pela qual uma pessoa que se eleva

dentro de um balatildeo natildeo enxerga a si mesma subindo mas sim a Terra descendo159

Nesse

sentido escreve Spierling

Mas Schopenhauer quer ambos ele se eleva por assim dizer dentro do

balatildeo e reflete as proacuteprias condiccedilotildees subjetivas que decisivamente estatildeo laacute

para isso e tambeacutem o modo como ele deixa o mundo abaixo de si []

simultaneamente ele permanece abaixo no chatildeo portanto fora do balatildeo de

onde ele procura verificar as condiccedilotildees objetivo-realistas de sua elevaccedilatildeo

portanto tambeacutem de sua proacutepria reflexatildeo Ambos os tipos de condiccedilotildees

155

Ibidem p 47 156

Ibidem p 48 157

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 158

Ibidem p 49 159

PP II Gleichnisse Parabeln und Fabeln sect 391 p 763

- 216 -

valem para ele aqui de modo fundamentalmente equivalente isto eacute nenhuma

pode ser subsumida na outra160

Por fim no texto ldquoSchopenhauers subjektive und objektive

Betrachtungsweise des Intellektsrdquo161

Alfred Schmidt se dedica agrave antinomia da teoria do

conhecimento considerando que a questatildeo precisa ser conectada agrave visatildeo schopenhaueriana

acerca da eacutetica Sem tentar encontrar uma soluccedilatildeo para a questatildeo ele ressalta que o filoacutesofo

separa radicalmente o acircmbito do fiacutesico e o do moral na medida em que afasta a liberdade e a

responsabilidade do domiacutenio da natureza A natureza se conecta agrave representaccedilatildeo e com isso agrave

consciecircncia e agrave subjetividade na medida em que diz Schmidt todos os seres intuitivos

existem por meio das formas da representaccedilatildeo Natildeo obstante em razatildeo de sua dependecircncia

relativamente ao ceacuterebro o mundo intuitivo possuiria aleacutem das condiccedilotildees subjetivas tambeacutem

pressupostos objetivos e a questatildeo seria novamente a relaccedilatildeo entre real e ideal162

Assim

afirma Schmidt ldquoEle [Schopenhauer] indaga a bdquorelaccedilatildeo do ideal com o real‟ equiparando este

com a Vontade aquele com o mundo como fenocircmeno cerebral Este uacuteltimo eacute o bdquomundo na

cabeccedila‟ aquele o bdquomundo fora da cabeccedila‟rdquo163

Em vista disso o conhecimento mais puro e

mais perfeito seria o que se liberta da Vontade e entra no campo da eacutetica

Schmidt enfatiza que para Schopenhauer a perspectiva subjetiva dos

objetos eacute unilateral e relativa tendo necessariamente de ser completada pelo ponto de vista

objetivo que por seu turno exige a consideraccedilatildeo fisioloacutegica do intelecto Nas palavras dele

ldquoSeu ponto de vista empiacuterico pressupotildee a bdquodependecircncia universal e completa da consciecircncia

cognoscente em relaccedilatildeo ao ceacuterebro‟rdquo164

Daiacute decorreriam as afirmaccedilotildees simultacircneas de que a

cadeia hieraacuterquica e graduada dos seres naturais tem de ser pensada como fora do tempo e

tambeacutem de que o intelecto associado ao ceacuterebro eacute um produto tardio que exige uma histoacuteria

natural a qual por sua vez exige a correlaccedilatildeo entre sujeito e objeto dada no proacuteprio

intelecto165

Entatildeo escreve Schmidt ldquoA dificuldade de Schopenhauer se baseia em que ele

acredita poder incorporar verdades elementares do materialismo sem diminuiccedilatildeo da sua

bdquoconcepccedilatildeo idealista fundamental‟rdquo166

A representaccedilatildeo seria vista como o lado externo do

160

SPIERLING Volker Materialien zu Schopenhauers ldquoDie Welt als Wille und Vorstellungrdquo Herausgegeber

kommentiert und eingeleitet von Volker Spierling Frankfurt am Main Suhrkamp 1984 p 49-50 (traduccedilatildeo

nossa) (grifos do autor) 161

SCHMIDT A Schopenhauer subjektive und objektive Betrachtungsweise des Intellekts Schopenhauer-

Jahrbuch 86 2005 p 105-132 162

Ibidem p 107 163

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 164

Ibidem p 110-111 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 165

Ibidem p 112 166

Ibidem loc cit (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor)

- 217 -

mundo cujo centro eacute a Vontade entendida poreacutem como transcendente em relaccedilatildeo aos

elementos subjetivos do conhecimento O filoacutesofo misturaria o dualismo kantiano com o

monismo de Espinosa e diz Schmidt sua

Metafiacutesica a posteriori ultrapassa a natureza dada no cotidiano e na ciecircncia

na medida em que a interpreta e expotildee Ao decifrar o ldquoconjunto a

experiecircnciardquo alcanccedilam-se visotildees ldquoque natildeo vecircm agrave consciecircnciardquo O que se

oculta ldquodentro ou atraacutesrdquo da natureza eacute sempre apenas o que ldquoaparece nelardquo167

Natildeo obstante Schopenhauer admitiria o naturalismo na concepccedilatildeo

fisioloacutegica do ceacuterebro somente ateacute o ponto em que o idealismo se impusesse e promovesse a

exclusatildeo daquele Isso ocorreria por meio da perspectiva eacutetica na medida em que a teoria do

conhecimento teria evidenciado o caraacuteter secundaacuterio e ilusoacuterio do mundo fenomecircnico

segundo uma tendecircncia moral fundamental Nas palavras de Schmidt

Quanto agrave convicccedilatildeo de Schopenhauer de uma ordem do mundo uma

segunda moral ela seraacute possibilitada pela sua concepccedilatildeo filosoacutefico-

transcendental que relativiza a realidade objetiva do mundo entatildeo fica

evidente que este por sua vez eacute relativo agrave dependecircncia natural do intelecto

que Schopenhauer continuamente sublinha Como o proacuteprio intelecto eacute uma

parte da natureza natildeo pode contrapor-se a ela ndash que reduz suas pretensotildees

transcendentais ndash ldquocomo algo totalmente estranhordquo168

44 ndash Anaacutelise pessoal

Como a exposiccedilatildeo anterior deixou claro a filosofia de Schopenhauer tem

sido avaliada das mais diversas maneiras ao longo da Histoacuteria Com exceccedilatildeo das

apresentaccedilotildees de cunho geral cada inteacuterprete de sua obra procura um fio condutor que possa

guiar a compreensatildeo das vaacuterias facetas que ela apresenta e em funccedilatildeo disso podemos

encontrar interpretaccedilotildees que situam o ponto central do sistema no materialismo no idealismo

no pessimismo na esteacutetica na moral no consolo na trageacutedia na salvaccedilatildeo entre outros

167

Ibidem p 113 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor) 168

Ibidem p 125 (traduccedilatildeo nossa) (grifos do autor)

- 218 -

Proporemos aqui uma leitura alternativa cuja motivaccedilatildeo estaacute nas tensotildees e dificuldades que o

pensamento schopenhaueriano revela aos seus leitores Ao que nos parece essas tensotildees e

dificuldades satildeo constitutivas essenciais isto eacute fazem parte da sua estrutura e natildeo podem ser

eliminadas Sintomaticamente o problema das contradiccedilotildees e dos conflitos entre teses opostas

tem permanecido no decurso do tempo e as tentativas de resoluccedilatildeo natildeo tiveram resultado

definitivo Para noacutes isso significa que a questatildeo eacute mais complexa do que se tem pensado e

exige uma mudanccedila de perspectiva e de abordagem

Partindo dessa convicccedilatildeo pensamos que eacute possiacutevel esclarecer a estrutura

da filosofia schopenhaueriana e as decisotildees teoacutericas tomadas pelo filoacutesofo com base na

concepccedilatildeo das chamadas loacutegicas paraconsistentes Nossa intenccedilatildeo natildeo eacute eliminar ou resolver

os problemas mas apontar uma perspectiva em que eles natildeo sejam estagnadores isto eacute natildeo

interrompam a investigaccedilatildeo como obstaacuteculos intransponiacuteveis Nesse sentido lembramos a

concepccedilatildeo de Schopenhauer sobre deduccedilotildees demonstraccedilotildees verdades e certezas Como

vimos para ele nem tudo pode ser demonstrado de modo exaustivo e isso natildeo significa

prejuiacutezo algum para a verdade ou a certeza acerca das afirmaccedilotildees Haacute diversos conhecimentos

indemonstraacuteveis e simultaneamente verdadeiros e certos como as intuiccedilotildees a priori do

tempo e do espaccedilo o uacuteltimo elo das cadeias de raciociacutenios e o proacuteprio princiacutepio de razatildeo De

fato Schopenhauer considera que as verdades trazidas agrave tona por demonstraccedilatildeo satildeo as

abstratas conhecidas somente por conceitos e que sua persuasatildeo natildeo eacute tatildeo forte como as

ligadas a intuiccedilotildees ou a conhecimentos a priori Eacute a diferenccedila entre convictio e cognitio que

faz a uacuteltima preferiacutevel agrave primeira Em vista disso julgamos que a loacutegica natildeo pode ser tratada

como um entrave agrave compreensatildeo e avaliaccedilatildeo do pensamento schopenhaueriano

principalmente na atualidade em que os pressupostos claacutessicos tecircm sido relativizados e que

diferentes tipos de loacutegica tecircm servido a distintos objetos de estudo

A perspectiva segundo a qual consideramos possiacutevel compreender a

filosofia de Schopenhauer com todas as suas tensotildees eacute a da loacutegica paraclaacutessica novo ramo

das loacutegicas paraconsistentes desenvolvido pelo loacutegico brasileiro Newton da Costa Dentro do

abrangente campo das loacutegicas natildeo claacutessicas as loacutegicas paraconsistentes voltam-se para o

princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo que estaacute na base de todas as questotildees que discutimos neste

trabalho com resultados uacuteteis para noacutes Sem duacutevida o surgimento e o desenvolvimento

dessas loacutegicas satildeo fenocircmenos recentes localizados no seacuteculo XX o que significa que natildeo

havia nada semelhante nos tempos em que Schopenhauer vivia e pensava Dessa perspectiva

- 219 -

a anaacutelise que pretendemos poderia parecer inusitada e fora de propoacutesito ainda mais se

considerarmos que o proacuteprio Schopenhauer remeteu todas as contradiccedilotildees que detectou agrave

oposiccedilatildeo dos pontos de vista da Vontade e da reprentaccedilatildeo Estariacuteamos nesse caso utilizando

ideias posteriores como recurso para avaliaccedilatildeo de pensamentos aos quais historicamente elas

natildeo se aplicariam Contudo natildeo empregaremos as criacuteticas contemporacircneas ao princiacutepio de

natildeo contradiccedilatildeo para afirmar que a filosofia schopenhaueriana estaria isenta de observaacute-lo Ao

contraacuterio tomamos suas dificuldades como fatos que todavia podem ser mais bem

compreendidos se adotarmos um ponto de partida diferente E no nosso entendimento ao se

investigar e tentar compreender qualquer questatildeo relacionada ao princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo

nos seus significados loacutegico ou filosoacutefico natildeo se pode prescindir das contribuiccedilotildees teoacutericas

mais recentes

Desse modo analisaremos a estrutura do mundo projetado pela filosofia

schopenhaueriana com base na conceituaccedilatildeo e discussatildeo da loacutegica paraclaacutessica O objeto da

anaacutelise aqui natildeo eacute exatamente o discurso de Schopenhauer ou o possiacutevel desrespeito ao

princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo nas suas obras mas os eixos do mundo delineado por ele que

nos parecem formar uma composiccedilatildeo paraclaacutessica Assim eacute agrave concepccedilatildeo schopenhaueriana

de mundo apoiada firmemente na intuiccedilatildeo empiacuterica que queremos aplicar as ideias acerca da

paraconsistecircncia Como dissemos anteriormente natildeo queremos formalizar a filosofia de

Schopenhauer natildeo pretendemos calcular seus teoremas ou conclusotildees para provar se eacute ou natildeo

inconsistente Ademais nossa pesquisa mostrou que nada disso eacute necessaacuterio pois a

inconsistecircncia eacute uma de suas caracteriacutesticas mais fundamentais

Newton da Costa eacute reconhecido como fundador das loacutegicas

paraconsistentes e como um dos mais importantes loacutegicos da atualidade pelo

desenvolvimento dos caacutelculos Cn Nesses caacutelculos a violaccedilatildeo do princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo

natildeo representa obstaacuteculo agraves deduccedilotildees de forma que natildeo eacute necessaacuterio eliminarem-se as

inconsistecircncias A atenccedilatildeo se volta para a supressatildeo da trivialidade que representa o

verdadeiro problema da contradiccedilatildeo e uma consequecircncia das teorias inconsistentes nas quais

se podem deduzir quaisquer proposiccedilotildees mesmo as contraditoacuterias entre si Com efeito em

funccedilatildeo da trivialidade em uma mesma teoria eacute possiacutevel deduzir uma proposiccedilatildeo sua

contraditoacuteria e na verdade quaisquer proposiccedilotildees Daiacute resulta que uma teoria contraditoacuteria

natildeo ofereceria condiccedilotildees para que se pudesse estabelecer e demonstrar a diferenccedila entre o

verdadeiro e o falso dentro de seus proacuteprios pressupostos O desenvolvimento das loacutegicas

- 220 -

paraconsistentes poreacutem abriu a possibilidade de que as inconsistecircncias sejam admitidas

pressupondo que existem diversas situaccedilotildees em que elas natildeo conduzem necessariamente agrave

trivialidade E o meio de fazecirc-lo eacute desenvolvendo o caacutelculo de um modo tal que duas

premissas contraditoacuterias possam ser verdadeiras mas que sua conjunccedilatildeo natildeo possa ser

deduzida

Conforme Da Costa entre os objetivos das loacutegicas paraconsistentes estaacute

o de contribuir para o entendimento das leis claacutessicas do conceito de negaccedilatildeo e de

contradiccedilatildeo bem como de sistemas inconsistentes169

Natildeo abordaremos as teacutecnicas de caacutelculo

que fogem ao nosso escopo mas as consideraccedilotildees sobre o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo e

sobre o fundamento da loacutegica paraclaacutessica satildeo interessantes para noacutes170

No acircmbito da loacutegica

claacutessica o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo eacute visto como necessariamente verdadeiro evidente

por si mesmo indemonstraacutevel e universal valendo para todo objeto e todo raciociacutenio Sobre

esse ponto Da Costa argumenta que a loacutegica contemporacircnea relativizou o conceito de

demonstraccedilatildeo e que jaacute natildeo se aceita a existecircncia de princiacutepios loacutegicos uacuteltimos Conforme a

posiccedilatildeo recente cada princiacutepio deve ser demonstrado a partir de outros que jaacute o foram de

modo que mesmo sendo utilizada em mecanismos dedutivos a lei de natildeo contradiccedilatildeo natildeo

poderia ser tomada como indemonstraacutevel171

De acordo com isso as leis empregadas devem ser justificadas

pragmaticamente dentro de um conjunto concatenado de postulados A justificaccedilatildeo de

quaisquer princiacutepios teria de ser feita tomando os sistemas loacutegicos como um conjunto e natildeo

princiacutepio por princiacutepio separadamente A negaccedilatildeo a conjunccedilatildeo a disjunccedilatildeo e quaisquer

conceitos podem ter significados distintos em diferentes sistemas de forma que natildeo se

poderia aplicar uma noccedilatildeo uacutenica a quaisquer objetos de estudo possiacuteveis Como escreve Da

Costa ldquo[] como defender a lei da contradiccedilatildeo isoladamente sem se levar em conta os

demais postulados que definem os conceitos basilares envolvidos no seu enunciadordquo172

A

justificaccedilatildeo adequada entatildeo eacute aquela que leva em conta um uso localizado do princiacutepio natildeo

universalizado dentro de um sistema loacutegico determinado e com um fim especiacutefico A

extrapolaccedilatildeo dele para todos os objetos e relaccedilotildees seria algo arbitraacuterio e injustificado pois sua

169

DA COSTA Newton Carneiro Affonso Ensaio sobre os fundamentos da loacutegica 3ordf ed Satildeo Paulo Hucitec

2008 p 172 170

Para um detalhamento maior dos caacutelculos paraconsistentes cf DA COSTA Newton Carneiro Affonso

Sistemas formais inconsistentes Curitiba UFPR 1993 171

DA COSTA op cit p 122 172

Ibidem p 126

- 221 -

supressatildeo natildeo significaria necessariamente a inviabilizaccedilatildeo pensamento do discurso ou da

comunicaccedilatildeo de ideias

Aleacutem disso embora jamais tenham sido observadas contradiccedilotildees reais e

concretas em objetos empiacutericos natildeo estaria provado que elas natildeo existam no mundo Na

verdade conforme Da Costa elas poderiam ser constatadas apenas mediatamente por meio

de inferecircncias na medida em que diz dele ldquonatildeo haacute contradiccedilotildees diretamente perceptiacuteveis

pois as negaccedilotildees correlacionadas a juiacutezos de percepccedilatildeo natildeo satildeo elas mesmas perceptiacuteveis

(pelo menos em nossa experiecircncia cotidiana)rdquo173

Nesse sentido o princiacutepio de natildeo

contradiccedilatildeo natildeo estaria demonstrado tampouco a impossibilidade de haver contradiccedilotildees reais

Sua validade seria a de um postulado em um sistema loacutegico especiacutefico que teria de ser

escolhido conforme o campo particular no qual seria aplicado Um princiacutepio como esse seria

como uma hipoacutetese acerca do funcionamento da realidade e deveria ser aceito na medida em

que se liga ou natildeo a ela Como afirma Da Costa

Positivamente sem se recorrer agrave especulaccedilatildeo soacute se pode sustentar que as

normas loacutegicas regem certas categorias que empregamos como andaimes

para nos assenhorearmos de nosso contorno no tocante ao seu significado

empiacuterico ndash encaradas como parte da ciecircncia satildeo a posteriori e entre

limites pragmaacuteticas regras para jogar174

A escolha de um sistema loacutegico portanto deve ser pautada pela

compatibilidade com o objeto ao qual se aplicaraacute e pela maior clareza e significaccedilatildeo que

imprime agraves teses e conceitos Por conseguinte a inconsistecircncia de uma teoria natildeo pode ser

tomada como implicando necessariamente sua inadequaccedilatildeo ao mundo empiacuterico nem a

invalidade da sua cadeia argumentativa como um todo Com recurso apenas agrave loacutegica diz Da

Costa natildeo se pode garantir que natildeo existam contradiccedilotildees reais e concretas no mundo as quais

poderatildeo estar escondidas ou ser imperceptiacuteveis Caso existam elas seratildeo concluiacutedas

inferidas posto que as negaccedilotildees de juiacutezos de percepccedilatildeo natildeo podem elas mesmas ser intuiacutedas

Sobre esse ponto lembramos que Schopenhauer tambeacutem considerou a contradiccedilatildeo como uma

impossibilidade loacutegica e natildeo de ordem fiacutesica ou matemaacutetica175

A loacutegica paraclaacutessica eacute um ramo bastante novo das loacutegicas

paraconsistentes pensado por Da Costa com relaccedilatildeo a uma das interpretaccedilotildees possiacuteveis do

173

Ibidem p 130 174

Ibidem p 134-135 175

WWWII Kap 4 p 46 MII cap 4 p 40-41

- 222 -

chamado Princiacutepio da Complementaridade de Niels Bohr176

No texto Complementarity and

paraconsistency177

escrito por ele em conjunto com Deacutecio Krause os autores ressaltam que

natildeo haacute consenso entre os estudiosos sobre o sentido exato que Bohr teria atribuiacutedo ao

princiacutepio e que natildeo pretendem realizar uma exegese das ideias do fiacutesico A intenccedilatildeo eacute

evidenciar a estrutura loacutegica de uma teoria que fosse elaborada com base nele entendido

numa perspectiva especiacutefica facultada por excertos de Bohr178

ldquoAssimrdquo escrevem os autores

ldquosugerimos que sob uma interpretaccedilatildeo possiacutevel do que deve ser entendido por

complementaridade a loacutegica subjacente a uma tal teoria eacute a loacutegica paraclaacutessica (proposta

primeiro por Da Costa e Vernengo 1999)rdquo179

O sentido que Da Costa e Krause referem ao conceito de

complementaridade eacute especialmente relevante para noacutes qual seja o de incompatibilidade

entre teses Como eles explicam ldquoEm outras palavras parece perfeitamente razoaacutevel

considerar aspectos complementares como incompatiacuteveis no sentido de que sua combinaccedilatildeo

numa descriccedilatildeo uacutenica pode levar a dificuldadesrdquo180

O conceito de complementaridade desse

modo relaciona-se a teses ou proposiccedilotildees que natildeo podem ser combinadas porque se excluem

reciprocamente Sobre esse ponto no artigo The logic of complementarity eles esclarecem

Deve ser enfatizado que nosso modo de caracterizar a complementaridade

natildeo significa que proposiccedilotildees complementares satildeo sempre contraditoacuterias

para α e β acima uma natildeo eacute necessariamente a negaccedilatildeo da outra No entanto

como proposiccedilotildees complementares podemos derivar delas (na loacutegica

claacutessica) uma contradiccedilatildeo para exemplificar observamos que bdquox eacute uma

partiacutecula‟ natildeo eacute a negaccedilatildeo direta de bdquox eacute uma onda‟ mas bdquox eacute uma partiacutecula‟

implica que x natildeo eacute uma onda Essa leitura da complementaridade como natildeo

indicando contradiccedilatildeo estrita como jaacute deixamos claro estaacute de acordo com o

proacuteprio Bohr []181

Apesar dessa muacutetua exclusatildeo ambos os aspectos complementares satildeo

176

Cf DA COSTA N VERNENGO R J Sobre algunas loacutegicas paraclaacutesicas y el anaacutelisis del razonamiento

juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho Universidad de Alicante Centro de Estudios

Constitucionales 19 1996 p 183-200 DA COSTA N KRAUSE D Complementary and paraconsistency In

RAHMAN Shahid et al (eds) Logic Epistemology and the Unity of Science (Book 1) Dordrecht Kluwer

Ademic Publishers 2004 DA COSTA N KRAUSE D The logic of complementarity Departamento de

Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina 2003 DA COSTA N KRAUSE D Remarks on the

applications of paraconsistency Grupo de pesquisa em Loacutegica e fundamentos da ciecircncia Departamento de

Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina 2003 177

DA COSTA N KRAUSE D Complementary and paraconsistency In RAHMAN Shahid et al (eds)

Logic Epistemology and the Unity of Science (Book 1) Dordrecht Kluwer Ademic Publishers 2004 178

Ibidem p 1-2 179

Ibidem p 2 (traduccedilatildeo nossa) (grifos dos autores) 180

Ibidem p 5 (traduccedilatildeo nossa) (grifos dos autores) 181

DA COSTA N KRAUSE D The logic of complementrity Departamento de Filosofia Universidade

Federal de Santa Catarina 2003 p 12 (traduccedilatildeo nossa) (grifos dos autores)

- 223 -

considerados imprescindiacuteveis para uma compreensatildeo completa e adequada do objeto Daiacute a

necessidade de se pensar numa forma de mantecirc-los sem que a teoria como um todo venha a

ser inviabilizada Do ponto de vista claacutessico a existecircncia de duas teses verdadeiras permite

deduzir a conjunccedilatildeo delas e isso eacute o que torna complicado manterem-se enunciados

mutuamente excludentes num mesmo sistema Em vista disso a proposta da loacutegica

paraclaacutessica eacute a de impedir que a conjunccedilatildeo de aspectos complementares possa ser deduzida

sem que a teoria tenha de abrir matildeo de algum deles Assim numa teoria cuja loacutegica de base eacute

a paraclaacutessica a existecircncia de proposiccedilotildees incompatiacuteveis natildeo eacute impugnada somente a

conjunccedilatildeo delas o seraacute ldquoEm outras palavrasrdquo explicam Da Costa e Krause ldquoas teorias que

caracterizaremos abaixo satildeo tais que de γ e not γ natildeo podemos deduzir γ ˄not γ isto eacute uma

contradiccedilatildeordquo182

Eacute importante observarmos que embora tenha sido pensado no contexto

da fiacutesica quacircntica nada impede que o Princiacutepio da Complementaridade seja tomado em

sentido mais amplo Da Costa e Krause argumentam que Bohr o considerou como parte de

uma atitude epistemoloacutegica geral capaz de evitar dificuldades tambeacutem em outros campos da

ciecircncia Para eles o Princiacutepio da Complementaridade natildeo se configura apenas como um

preceito especiacutefico de uma ciecircncia em particular a fiacutesica mas aleacutem disso como um princiacutepio

metodoloacutegico regulativo183

Em suma nas palavras dos autores ldquoDe qualquer modo nossa

definiccedilatildeo eacute muito geral e eacute claro natildeo eacute restrita agrave fiacutesica sendo uacutetil tambeacutem em outras

situaccedilotildeesrdquo184

Segundo pensamos essa concepccedilatildeo da loacutegica paraclaacutessica contribui para

uma compreensatildeo mais completa do pensamento schopenhaueriano e com isso tambeacutem da

antinomia com a qual nos ocupamos Como vimos Schopenhauer vincula sua filosofia agrave

discussatildeo histoacuterica sobre a relaccedilatildeo entre o ideal e o real Para ele Platatildeo Kant e os Vedas

ensinaram a total diferenccedila entre os dois domiacutenios e abriram caminho para sua proacutepria

interpretaccedilatildeo do mundo como representaccedilatildeo e Vontade O ideal e o real satildeo como dois lados

de uma mesma esfera um externo e o outro interno um ilusoacuterio e o outro genuiacuteno um

182

DA COSTA N KRAUSE D Complementary and paraconsistency In RAHMAN Shahid et al (eds)

Logic Epistemology and the Unity of Science (Book 1) Dordrecht Kluwer Ademic Publishers 2004 p 2

(traduccedilatildeo nossa) 183

DA COSTA N KRAUSE D The logic of complementrity Departamento de Filosofia Universidade

Federal de Santa Catarina 2003 p 2 184

DA COSTA N KRAUSE D Remarks on the applications of paraconsistency Grupo de pesquisa em

Loacutegica e fundamentos da ciecircncia Departamento de Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina 2003 p

16 (traduccedilatildeo nossa)

- 224 -

efecircmero e o outro perene Na condiccedilatildeo de representaccedilatildeo o lado externo do mundo eacute criaccedilatildeo

de um intelecto sendo por isso mesmo fenomecircnico mutaacutevel e pereciacutevel Na condiccedilatildeo de

coisa em si por sua vez a Vontade natildeo pode ser investida nas formas do conhecimento o que

a torna alheia ao tempo ao espaccedilo e agrave causalidade e a configura como o mais real o imutaacutevel

e o impereciacutevel Em que pese serem descritos por Schopenhauer como opostos ambos os

lados satildeo igualmente necessaacuterios para uma explicaccedilatildeo correta e completa do mundo Na nossa

interpretaccedilatildeo o real e o ideal satildeo apresentados em condicionamento muacutetuo pelo filoacutesofo na

medida em que ele enfatiza em diversos momentos que a representaccedilatildeo soacute o eacute com relaccedilatildeo agrave

Vontade e tambeacutem que o que conhecemos como a coisa em si soacute o eacute em relaccedilatildeo ao

fenocircmeno Natildeo faria sentido portanto imaginar o mundo sem uma das suas partes

constituintes fosse a coisa em si fosse o fenocircmeno do mesmo modo que natildeo faz sentido

separar sujeito e objeto Por conseguinte a filosofia schopenhaueriana parte de uma

convicccedilatildeo que envolve tanto exclusatildeo quanto exigecircncia muacutetua entre os acircmbitos do real e do

ideal sendo totalmente compatiacutevel com a concepccedilatildeo acerca do Princiacutepio de

Complementaridade tal como exposto por Da Costa e Krause no tocante agrave loacutegica

paraclaacutessica

No nosso entendimento eacute necessaacuterio realizarmos aqui uma

desambiguaccedilatildeo Schopenhauer tambeacutem associa o real e o ideal como complementares em

sentidos diferentes quais sejam o de ideal como o transcendental e o de real como o

empiacuterico Nesse caso como no anterior cada aspecto eacute exigido e excluiacutedo simultaneamente

em relaccedilatildeo ao outro e sua complementaridade transparece em certos pontos da investigaccedilatildeo

nos quais os fundamentos de ambos se cruzam Esses satildeo os momentos em que Schopenhauer

chega aos limites extremos do idealismo e onde seu discurso se torna obscuro e equiacutevoco

Com efeito o idealismo chega ao seu limite no ponto em que precisa assegurar a realidade

empiacuterica de um mundo que eacute criado por um intelecto Ou seja o idealismo tem de ser

radicalmente afirmado mas natildeo a ponto de se tornar absoluto e eliminar qualquer referecircncia agrave

experiecircncia Entatildeo a parte ideal do mundo deve ser completada com elementos reais nesse

caso os dados sensoriais advindos dos sentidos que garantiratildeo que o objeto seja

condicionado pelo sujeito sem deixar de ser empiricamente real No entanto a demonstraccedilatildeo

da idealidade se faz excluindo os conteuacutedos empiacutericos ou minimizando sua relevacircncia no

processo do conhecer para que se mantenha seu caraacuteter de criaccedilatildeo intelectual Daiacute deriva a

necessidade de se admitir que o espaccedilo esteja na cabeccedila e que esta ao mesmo tempo esteja

no espaccedilo natildeo se pode abrir matildeo do idealismo (que o espaccedilo seja uma forma a priori do

- 225 -

intelecto) nem do realismo (que a cabeccedila tenha existecircncia real no mundo dos objetos) Daiacute

tambeacutem a estranheza que sentimos ao observar o mesmo objeto nas duas perspectivas

mutuamente excludentes porque natildeo podemos abandonar nenhuma delas

Para considerarmos a complementaridade pelo prisma do realismo

precisamos atentar para os dois sentidos de real expostos acima Em primeira instacircncia o real

eacute o aspecto fiacutesico do mundo a sensaccedilatildeo as intuiccedilotildees o conjunto da experiecircncia numa

palavra eacute o fundamento objetivo que o idealismo natildeo deve anular Em segunda instacircncia o

real eacute o metafiacutesico o que estaacute aleacutem do conhecimento empiacuterico numa palavra a Vontade que

o idealismo natildeo permite acessar Tomado no primeiro sentido a argumentaccedilatildeo acerca do real

precisa garantir que elementos empiacutericos possam dar sustentaccedilatildeo ao idealismo sem que sejam

concebidos como em si isto eacute devem ancorar o lado ideal mas sem anular o aspecto de

relatividade do mundo como representaccedilatildeo Nesse caso poreacutem ideal e real distinguem-se

como o formado e o informe o regrado e o aleatoacuterio o subjetivo e o objetivo Tomado no

segundo sentido por sua vez o real eacute exatamente aquilo que ultrapassa a representaccedilatildeo que a

sustenta remediando sua relatividade e inconstacircncia e o que garante que o mundo natildeo seja

pura e simplesmente aparecircncia sem nada que apareccedila Nesse sentido contudo ideal e real se

excluem como o fenocircmeno e a coisa em si o externo e o interno o temporal e o atemporal o

extenso e o inextenso Daiacute deriva a necessidade de se admitir que o primeiro animal

cognoscente engendre o mundo da representaccedilatildeo e que o mundo da representaccedilatildeo engendre o

mesmo animal aqui tambeacutem natildeo se pode abrir matildeo do idealismo (que a representaccedilatildeo seja

produto do intelecto animal) nem do realismo (que a Vontade seja a essecircncia do mundo e

produza o intelecto animal para seus fins) A complementaridade das perspectivas nesse caso

situa o primeiro animal em dois pontos diferentes do tempo sem que possamos retiraacute-lo de

nenhum deles

Por conseguinte nos dois sentidos mencionados o lado real do mundo eacute

exigido e afastado simultaneamente em relaccedilatildeo ao lado ideal no primeiro sentido o real eacute a

necessaacuteria referecircncia agrave fisiologia ao corpo agrave comprovaccedilatildeo das ciecircncias empiacutericas ao mesmo

tempo em que deve ser controlado para natildeo inviabilizar o idealismo No segundo sentido o

real eacute o metafiacutesico o sustentaacuteculo necessaacuterio da representaccedilatildeo mas que natildeo pode tomar as

formas do intelecto isto eacute natildeo pode ser conhecido nem alcanccedilado No nosso modo de ver

todos esses aspectos se condensam na concepccedilatildeo de que os conteuacutedos empiacutericos introduzem

no pensamento elementos que natildeo podem ser completamente conhecidos por natildeo serem

- 226 -

condicionados pelas formas do sujeito Quanto menos elementos empiacutericos contiver mais um

objeto pode ser conhecido quanto mais conteuacutedos empiacutericos exibir menos poderaacute ser

compreendido Como resultado a Vontade se anuncia e se revela nos elementos sensiacuteveis do

mundo como representaccedilatildeo que satildeo conhecidos somente a posteriori tornando-se entatildeo

necessaacuterio aceitar como verdadeiro que ela se exibe na experiecircncia tanto quanto que a

ultrapassa

Com base nessa perspectiva esclarece-se por que Schopenhauer reafirma

e ressalta a unilateralidade do idealismo e do realismo para a compreensatildeo do mundo como

representaccedilatildeo185

Ambos contecircm fundamentos verdadeiros que natildeo podem ser excluiacutedos de

uma explicaccedilatildeo completa das coisas isto eacute precisam ser combinados para que um compense

as insuficiecircncias do outro A uniatildeo dos pontos de vista objetivo e subjetivo eacute entatildeo

imprescindiacutevel apesar de todos os conflitos e oposiccedilotildees que possam surgir a partir dela De

modo semelhante somente com o idealismo ou com o realismo dificilmente se esgotaraacute a

compreensatildeo da relaccedilatildeo entre fenocircmeno e coisa em si Nesse uacuteltimo caso embora sejam

radicalmente contrapostas a exigecircncia muacutetua entre Vontade e representaccedilatildeo eacute ainda mais

necessaacuteria na medida em que no fim de contas constituem o mesmo ente De acordo com

isso a uniatildeo dos pontos de vista demonstraraacute que todas as coisas satildeo idecircnticas e que assim

como noacutes tudo eacute Vontade A complementaridade entre idealismo e realismo nesse aspecto

remete novamente agrave imagem circular formada pela antinomia da teoria do conhecimento

Com efeito do mesmo modo como a chuva que se forma pela evaporaccedilatildeo e a aacutegua que molha

a terra satildeo uma e a mesma coisa apenas cristalizada momentaneamente em pontos diferentes

na consideraccedilatildeo do processo tambeacutem o animal e o mundo satildeo um e o mesmo apenas

considerados imperfeitamente em pontos distintos de uma linha do tempo De fato tanto o

animal quanto o mundo satildeo representaccedilotildees e somente nesse sentido pode-se afirmar que haja

multiplicidade e que um engendre o outro No fundamento de tudo poreacutem a Vontade

permanece una e incoacutelume Sobre esse ponto em uma nota do texto ldquoPensamentos sobre o

intelecto em geral e no tocante a cada relaccedilatildeordquo de Parerga e Paralipomena Schopenhauer

escreve de modo interessante

Se olho algum objeto talvez uma paisagem e imagino que nesse momento

me cortassem a cabeccedila ndash sei que o objeto permaneceria estaacutetico e inabalaacutevel

185

Cf PP II Kap 1 sect13 p 20 Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de

Miguel Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996 sect 13 p 198-199

- 227 -

mas isso implica nos seus fundamentos mais uacuteltimos que eu tambeacutem

existiria Isso seraacute claro para poucos mas para estes foi dito186

Por fim conforme exposto ao longo deste trabalho a filosofia

schopenhaueriana sustenta a identidade de todas as coisas a unidade da Vontade e a ilusatildeo da

multiplicidade Sustenta tambeacutem que a Vontade eacute idecircntica ao corpo e que este eacute

imprescindiacutevel para a construccedilatildeo do mundo como representaccedilatildeo Portanto segundo

pensamos a dimensatildeo corporal do mundo reuacutene todas as peccedilas que fazem dele um conjunto

inconsistente em que o interno e o externo o real e o ilusoacuterio o fenocircmeno e a coisa em si se

unem ao mesmo tempo em que se repelem mutuamente Essa inconsistecircncia como dissemos

pode ser mais bem compreendida se associarmos o mundo schopenhaueriano agrave loacutegica

paraclaacutessica na qual teses incompatiacuteveis natildeo resultam em problemas se natildeo conduzem agrave

trivialidade E esse nos parece ser exatamente o caso pois A rarr M e M rarr A podem ser

tomadas como proposiccedilotildees complementares sem que por isso levem a uma contradiccedilatildeo e por

conseguinte a filosofia schopenhaueriana natildeo pode ser classificada como trivial

186

Ibidem Kap 3 sect28 p 48 ibidem sect 28 p 232

- 228 -

Referecircncias

Obras de Schopenhauer consultadas

SCHOPENHAUER A Saumlmmtliche Werke 6 Baumlnde Leipzig Brockhaus 1873

Herausgegeben von Julius Frauenstaumldt

_____ Saumlmtliche Werke 16 Baumlnde Muumlnchen Piper 1911-1942 Herausgegeben von Paul

Deussen

_____ Zuumlrcher Ausgabe 10 Baumlnden Zuumlrich Diogenes Verlag 2007 Der Text folgt der

historisch-kritischen Ausgabe von Arthur Huumlbscher

_____ Die Welt als Wille und Vorstellung I und II Gesamtausgabe Muumlnchen Deutschen

Taschenbuch 2011 Nach den Ausgaben letzter Hand herausgegeben von Ludger Luumltkehaus

_____ Kritik der kantischen Philosophie In Die Welt als Wille und Vorstellung I und II

Gesamtausgabe Muumlnchen Deutschen Taschenbuch 2011 Nach den Ausgaben letzter Hand

herausgegeben von Ludger Luumltkehaus

_____ Saumlmtliche Werke 5 Baumlnde StutgartFrankfurt am Main Suhrkamp 2012 Textkritisch

bearbeitet und herausgegeben von Wolfgang Frhr von Loumlhneysen

_____ De la cuaacutedruple raiacutez del principio del razoacuten suficiente Traduccioacuten y proacutelogo de

Leopoldo-Eulogio Palacios Madrid Gredos 1981

_____ De la volonteacute dans la nature Traduction avec introduction et notes par Eacutedouard Sans

Paris Quadrige PUF 1986

_____ Sobre la voluntad en la naturaleza 1ordf ed 3ordf reimpr Traduccioacuten de Miguel de

Unamuno Proacutelogo y notas de Santiago Gonzaacutelez Noriega Madrid Alianza 1987

_____ Criacutetica da filosofia kantiana Traduccedilatildeo de Wolfgang Leo Maar e Maria Luacutecia Mello e

Oliveira Cacciola Satildeo Paulo Nova Cultural 1988 (Coleccedilatildeo Os pensadores)

_____ Los designios del destino Estudio preliminar traduccioacuten y notas de Roberto

Rodriacutegues Aramayo Madrid Tecnos 1994

- 229 -

_____ Respuestas filosoacuteficas a la eacutetica a la ciecircncia y a la religioacuten Traduccioacuten de Miguel

Urquiola Proacutelogo de Agustiacuten Izquierdo Madrid EDAF 1996

_____ Sobre a visatildeo e as cores um tratado Traduccedilatildeo de Erlon Joseacute Paschoal Nova

Alexandria Satildeo Paulo 2003

_____ Fragmentos para a histoacuteria da filosofia Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo e notas de Maria

Luacutecia Cacciola Satildeo Paulo Iluminuras 2003

_____ El Mundo como Voluntad y Representacioacuten Traduccioacuten de Rafael-Joseacute Diacuteaz

Fernaacutendez y Mordf Montserrat Armas Concepcioacuten Revisioacuten de Joaquiacuten Chamorro Mielke

Madrid Akal Editores 2005

_____ O mundo como vontade e representaccedilatildeo 1ordf tomo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo notas e

iacutendices de Jair Barboza Satildeo Paulo UNESP 2005

_____ O mundo como vontade e representaccedilatildeo 2ordf tomo Traduccedilatildeo apresentaccedilatildeo notas e

iacutendices de Jair Barboza Satildeo Paulo UNESP 2015

Obras gerais consultadas

AMERIKS Karl (ed) The Cambridge Companion to German Idealism Cambridge

Cambridge University Press 2006

ARISTOacuteTELES Organon 5 vol Traduccedilatildeo de Pinharanda Gomes Lisboa Guimaratildees 1986

_____ Metafiacutesica Traduccioacuten de Valentiacuten Garciacutea Yebra 2ordf ed Triliacutengue 1ordf reimpr Madrid

Gredos 1987

ASHER David Das Endergebniss der Schopenhauerrsquoschen Philosophie in seiner

Uebereinstimmung mit eine der aumlltesten Religionen dargestellt Leipzig Arnoldische

Buchhandlung 1885

BACON F The New organon New York Cambridge University Press 2000

- 230 -

BAumlHR C G Die schopenhauerrsquosche Philosophie in ihren Grundzuumlgen dargestellt und

kritisch beleuchtet Dresden Rudolf Kuntze 1857

BECKENKAMP J Entre Kant e Hegel Porto Alegre EDIPUCRS 2004

BERG Jan Robert Idealismus und Voluntarismus in der Metaphysik Schellings und

Schopenhauers Wuumlrzburg Koumlnigshauser amp Neumann 2003

BIRNBACHER Dieter (Hrsg) Schopenhauer in der Philosophie der Gegenwart Wuumlrzburg

Koumlnigshausen amp Neumann 1996

BONACCINI Juan Adolfo Kant e o problema da coisa em si no Idealismo Alematildeo sua

atualidade e relevacircncia para compreensatildeo do problema da Filosofia Rio de Janeiro Relume

Dumaraacute Natal UFRN 2003

BOOMS Martin Aporie und Subjekt Die Erkenntnistheoretischen Entfaltungslogik der

Philosophie Schopenhauers Beitraumlge zur Philosophie Schopenhauers herausgegeben von

Dieter Birnbacher und Heinz Gerd Ingekamp Band 6 Wurzburg Koumlnigshausen amp Neuman

2003

BRANDAtildeO E A concepccedilatildeo de mateacuteria na obra de Schopenhauer Satildeo Paulo Humanitas

2008

CACCIOLA M L A criacutetica da Razatildeo no pensamento de Schopenhauer Dissertaccedilatildeo

(Mestrado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo

Paulo Departamento de Filosofia Satildeo Paulo 1981

_____ A questatildeo do finalismo na filosofia de Schopenhauer Discurso ndash Revista do

Departamento de Filosofia da USP nordm 20 1993 p 79-98

_____ Schopenhauer e a questatildeo do dogmatismo Satildeo Paulo EDUSP 1994

CALDWELL W Schopenhauerrsquos system in its philosophical significance New York

Charles Scribner‟s sons 1986

CARTWRIGHT David E Schopenhauer a biography Cambridge University Press 2010

- 231 -

CASSIRER E El problema del conocimiento 4 vol 1ordf ed 4ordf reimpr Traduccioacuten de

Wenceslao Roces Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1993

_____ Kant vida y doctrina 1ordf ed 6ordf reimpr Traduccioacuten de Wenceslao Roces Meacutexico

Fondo de Cultura Econoacutemica 2003

CORNILL A Arthur Schopenhauer als Uebergangsformation von einer idealistischen in

eine realistische Weltanschauung Heidelberg Mohr 1856 Disponiacutevel em

lthttpreaderdigitale-sammlungendedefs1objectdisplaybsb10045480_00007htmlgt

Acesso em 8 mai 2015

DA COSTA Newton Carneiro Affonso da Sistemas formais inconsistentes Curitiba UFPR

1993

_____ Ensaio sobre os fundamentos da loacutegica 3ordf ed Satildeo Paulo Hucitec 2008

_____ VERNENGO R J Sobre algunas loacutegicas paraclaacutesicas y el anaacutelisis del razonamiento

juriacutedico Doxa Cuadernos de Filosofiacutea del Derecho Universidad de Alicante Centro de

Estudios Constitucionales 19 1996 p 183-200 Disponiacutevel em

lthttpwwwcervantesvirtualcomdescargaPdfsobre-algunas-lficas-paraclsicas-y-el-anlisis-

del-razonamiento-jurdico-0gt Acesso em 10 jan 2017

_____ KRAUSE D Complementary and paraconsistency In RAHMAN Shahid et al

(eds) Logic Epistemology and the Unity of Science (Book 1) Dordrecht Kluwer Ademic

Publishers 2004

_____ The logic of complementarity Departamento de Filosofia Universidade Federal de

Santa Catarina 2003 Disponivel em lthttpphilsci-archivepittedu15591CosKraPLpdfgt

Acesso em 10 jan 2017

_____ Remarks on the applications of paraconsistency Grupo de pesquisa em Loacutegica e

fundamentos da ciecircncia Departamento de Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina

2003 Disponiacutevel em lthttpphilsci-archivepittedu15661CosKraPATTYpdfgt Acesso

em 10 jan 2017

DELBOS V De kant aux postkantiens Introduction par Alexis Philonenko Preface de

Maurice Blondel Paris Aubier 1992

- 232 -

DEUSSEN P Allgemeine Geschichte der Philosophie 2 Auflage 2 Band 3 Abteilung

(Neuere Philosophie von Descartes bis Schopenhauer) Leipzig Brockhaus 1920 Disponiacutevel

em lthttpsarchiveorgdetailsallgemeinegeschi23deusuoftgt Acesso em 11 out 2015

_____ Die Elemente der Metaphysik Dritte durch eine Vorbetrachtung uumlber das Wesen des

Idealismus vermehrte Auflage Leipzig Brockhaus 1902 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsdieelementederm00deusgooggt Acesso em 3 jan 2012

DUCROS L Schopenhauer les origines de sa meacutetaphysique ou les transformations de la

chose en soi de Kant a Schopenhauer Paris Germer Bailliegravere 1883 Disponiacuteel em

lthttpsarchiveorgdetailsscopenhauerleso00ducrgooggt Acesso em 11 fev 2010

ERDMANN J E Schopenhauer und Herbart eine Antithese In Zeitschrift fuumlr Philosophie

und philosophische Kritik Herausgegeben von Dr I H Fichte Dr Hermann Ulrici und I U

Wirth Neue Folge Band 21 Halle 1852 p 209-225 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgstreamzeitschriftfrph19kritgoogpagen15mode2upgt Acesso em 5

jun 2013

FICHTE I H Ein Wort uumlber die Zukunft der Philosophie Als Nachschrift zum vorigen

Auffaβe In Zeitschrift fuumlr Philosophie und philosophische Kritik Herausgegeben von Dr I

H Fichte Dr Hermann Ulrici und J U Wirth Neue Folge Band 21 Halle 1852 p 226-240

Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgstreamzeitschriftfrph19kritgoogpagen15mode2upgt

Acesso em 5 jun 2013

FISCHER Ernst Von G E Schulze zu A Schopenhauer ein Beitrag zur Geschichte der

Kantischen Erkenntnistheorie Dissertation zur Erwerbung der Doktorwuumlrde der ersten

Sektion der hohen philosophischen Fakultaumlt der Universitaumlt Zuumlrich Aarau H R Sauerlaumlnder

1901

FISCHER Kuno Schopenhauers Leben Werke und Lehre Heidelberg Carl Winter‟s

Universitaumltsbuchhandlung 1908 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsschopenhauersle00fiscgooggt Acesso em 02 out 2014

FORTLAGE C Genetische Geschichte der Philosophie seit Kant Leipzig Brockhaus 1852

Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgstreamgenetischegeschi00forpagen5mode2upgt

Acesso em 15 abr 2015

FOX Michael (Ed) Schopenhauers philosophical achievement Sussex Harvester Press

1980

- 233 -

FRAUENSTAumlDT J Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus

1854 Disponiacutevel em lthttpreaderdigitale-

sammlungendedefs1objectdisplaybsb10045792_00005htmlgt Acesso em 18 fev 2013

_____ Arthur Schopenhauer und seine Gegner In Unsere Zeit deutsche Revue der

Gegenwart Monatsschrift zum Conversationslexikon Band 52 Leipzig 1869 p 686-707

Disponiacutevel em lthttpreaderdigitale-

sammlungendedefs1objectdisplaybsb10401694_00696htmlgt Acesso em 29 mar 2014

_____ Schopenhauer-Lexicon ein Philosophisches Woumlrterbuch Erster Band Leipzig

Brockhaus 1871 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgstreambub_gb_qQHnumNIwMsCpagen5mode2upgt Acesso em 25

jan 2012

_____ Schopenhauer-Lexicon ein Philosophisches Woumlrterbuch Zweiter Band Leipzig

Brockhaus 1871 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgstreambub_gb_mhF6YpMYGcoCpagen5mode2upgt Acesso em 25

jan 2012

_____ Neue Briefe uumlber die Schopenhauerrsquosche Philosophie Leipzig Brockhaus 1876

Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgstreamneuebriefeberdi00fraugoogpagen7mode2upgt

Acesso em 20 set 2013

_____ LINDNER E O Arthur Schopenhauer Von Ihm uumlber ihn Berlin Hayn 1863

GARDINER P Schopenhauer Meacutexico Fondo de Cultura Econoacutemica 1997 p 133

GIL Fernando (coord) Recepccedilatildeo da Criacutetica da Razatildeo Pura antologia de escritos sobre Kant

(1786-1844) Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1992

GOLDSCHMIDT Victor A religiatildeo de Platatildeo Satildeo Paulo Difusatildeo Europeia do Livro 1963

_____ Eacutecrits Eacutetudes de Philosophie Moderne Tome II Paris VRIN 1984

GRISEBACH E Schopenhauerrsquos Gespraumlche und Selbstgespraumlche Nach der Handschrift εἰρ

ἑαςηον Berlin Ernst Hofmann 1898

GRUBER Robert (Hrsg) Der Briefwechsel zwischen Arthur Schopenhauer und Otto

Lindner Wien Leipzig A Hartleben‟s 1913

- 234 -

GUEROULT M Etudes de Philosophie Allemande HildesheimNew York Georg Olms

1977

GWINNER W Arthur Schopenhauer aus persoumlnlichen Umgange dargestellt Zweite

umgearbeitete und vielfach vermehrte Auflage Leipzig Brockhaus 1878

HARTMAN E v Philosophie des Unbewussten Berlin Carl Duncker 1869 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsphilosophiedesun00hartgt Acesso em 16 set 2015

_____ Gesammelte philosophische Abhandlungen zur Philosophie des Unbewussten Berlin

Carl Duncker 1872 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsgesammeltephilo00hartgooggt Acesso em 7 jan 2016

_____ L‟eacutecole de Schopenhauer Revue philosophique de la France et de lrsquoeacutetranger Dirigeacutee

par Th Ribot XVI jul-deacutec 1883 pp 121-134 Disponiacutevel em

httpgallicabnffrark12148bpt6k17155drk=429184 Acesso em 15 dez 2016

_____ Gesammelte Studien und Aufsaumltze 3 auflage Leipzig Wilhelm Friedrich 1888

Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgdetailsgesammeltestudi01hartgooggt Acesso em 5 jan

2016

_____ Geschichte der Methaphysik Zweiter Teil seit Kant Ausgewaumlhlte Werke Band XII

Leipzig Hermann Haacke 1900

HASSE H Schopenhauers Erkenntnislehre als System einer Gemeinschaft des Rationalen

und Irrationalen Leipzig Felix Meiner 1913

HAYM R Arthur Schopenhauer Berlin Georg Reimer 1864 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsarthurschopenha00haymgooggt Acesso em 20 jan 2015

HUumlBSCHER A Schopenhauer in der philosophischen Kritik In Schopenhauer-Jahrbuch

Frankfuhrt Waldemar Kramer 47 1966 p 29-71 Disponiacutevel em

lthttpwwwschopenhauerphilosophieuni-

mainzdeAufsaetze_Jahrbuch47_1966Huebscher20-

20Schopenhauer20in20der20phil20Kritikpdf gt Acesso em 15 ago 2013

_____ Denker gegen den Strom Schopenhauer Gestern ndash Heute ndash Morgen 4

Durchgesehene Auflage Bonn Bouvier 1988

- 235 -

JACOBI F H David Hume et la croyance ideacutealisme et reacutealisme Dialogue Introduit traduit

et annoteacute par Louis Guillermit Paris Vrin 2000

JANAWAY C (ed) The Cambridge Companion to Schopenhauer Cambridge Cambridge

Universty Press 1999

JANET P Schopenhauer et la physiologie franccedilaise Cabanis et Bichat Revue des deux

mondes Tome 39 Paris Bureau de la Revue de deux mondes Mai-1880 p 36 Disponiacutevel

em lthttprddmrevuedesdeuxmondesfrarchivearticlephpcode=59892gt Acesso em 08

ago 2011

KAMATA Y Schopenhauer e Kant A recepccedilatildeo da ldquoAnaliacutetica transcendentalrdquo da Criacutetica da

razatildeo pura na filosofia primeira de Schopenhauer Revista etich - An international Journal

for Moral Phylosophy Florianoacutepolis v 11 n 1 p 68 ndash 81 julho de 2012

KANT I Kantrsquos Gesammelte Schriften Herausgegeben von der Koumlniglich Preuβischen

Akademie der Wissenschaften 29 Baumlnde Berlim Georg Reimer Gruyter 1902-

_____ Criacutetica da razatildeo pura 5ordf ed Traduccedilatildeo de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre

Fradique Morujatildeo Introduccedilatildeo e notas de Alexandre Fradique Morujatildeo Lisboa Fundaccedilatildeo

Calouste Gulbenkian 2001

KORFMACHER W Ideen und Ideenerkenntnis in der aumlsthetischen Theorie Arthur

Schopenhauers Pfaffenweiler Centaurus-Verlagsgesellschaft 1992

KOWALEWSKI A Arthur Schopenhauer und seine Weltanschauung Halle a S Carl

Marhold 1908

KUHN T A tensatildeo essencial Traduccedilatildeo de Rui Pacheco e revisatildeo de Artur Mouratildeo Lisboa

Ediccedilotildees 70 1989

LIEBMANN O Ueber den individuellen Beweis fuumlr die Freiheit des Willens Stuttgart Carl

Schober 1866 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgstreambub_gb_vNhAAAAAYAAJpagen3mode2upgt Acesso em 15

jun 2013

_____ Ueber den Objektiven Anblick Wiesbaden Carl Schober 1869 Disponiacutevel em

lthttpreaderdigitale-sammlungendedefs1objectdisplaybsb11017975_00005htmlgt

Acesso 15 jun 2013

- 236 -

LUKASIEWICZ Jan Sobre o princiacutepio de contradiccedilatildeo em Aristoacuteteles In Rue Descartes

Collegravege international de philosopie Paris Albin Michel avril 1991 1-2 p 10-32 traduzido

para o francecircs por Michel Narcy e Barbara Cassin do original alematildeo Publicado

originalmente em Bulletin Internacional de lrsquoAcadeacutemie de Sciences de Cracovie classe

drsquohistoire et de philosophie 1910 p 15-38

_____ Sobre a lei da contradiccedilatildeo em Aristoacuteteles In ZINGANO Marco (org) Sobre a

Metafiacutesica de Aristoacuteteles textos selecionados Satildeo Paulo Odysseus 2005

MAGEE B Schopenhauer Traduccioacuten de Amaia Baacutercena Madrid Catedra 1991

MALTER Rudolf Der eine Gedanke Hinfuumlhrung zur Philosophie Arthur Schopenhaeurs

Darmstadt Wissenschaftliche Buchgesellschaft 1988

_____ Arthur Schopenhauer Transzendentalphilosophie und Metaphysik des Willens

Sttutgart-Bad Cannstatt FrommannHolzboog 1991

MARCIN Raymond B In search of Schopenhauerrsquos cat Arthur Schopenhauer‟s quantum-

mystical theory of justice Washington DC Catholic University of America 2006

MARTIN G Kant ontologia y epistemologia Traducioacuten de Luis Felipe Carrer y Andreacutes R

Raggio Buenos Aires Faculdade de Filosofia y Humanidades da Universidade Nacional de

Coacuterdoba 1971

MENDELSON Elliott Introduction to mathematical logic 4th ed London Chapman amp

Hall 1997

METHLING Alexander Das Realitaumltsproblem im Denken Schopenhauers Eine

Untersuchung zur Struktur seines Systems Aachen Shaker 1993

MEYER J B Schopenhauer als Mensch und Denker Berlin Carl Habel 1872 Disponiacutevel

em

lthttpsia600300usarchiveorg20itemsarthurschopenhau00meyearthurschopenhau00mey

epdfgt Acesso em 30 mai 2014

NOIREacute Ludwig Der monistische Gedanke Eine Concordanz der Philosophie

Schopenhauer‟s Darwin‟s R Mayer‟s und L Geiger‟s Leipzig Beit amp Comp 1875

- 237 -

OTCZIPKA Hugo Kritische Bemerkungen zur Weltanschauung Schopenhauers Der Hohen

philosophischen Fakultaumlt der Universitaumlt Leipzig als Inaugural-Dissertation zur Erlangung der

Doktorwuumlrde Leipzig-Reudnitz Oswald Schmidt 1892 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgstreamkritischebemerku00otczpagen3mode2upgt Acesso em 5 jul

2012

PERNIN Marie-Joseacute La philosophie de Schopenhauer Au coeur de l‟existence la

souffrance Paris Bordas 2003

PHILONENKO A Schopenhauer Una filosofiacutea de la tragedia Barcelona Anthropos 1989

_____ Schopenhauer critique de Kant Paris Les Belles Lettres 2005

RENOUVIER C Histoire et solution des problegravemes meacutetaphysiques Paris Feacutelix Aucan

1901

RIBOT Th La philosophie de Schopenhauer Paris Feacutelix Alcan 1925

RIEFFERT J B Die Lehre von der empirische Anschauung bei Schopenhauer Halle Max

Niemeyer 1914 In Abhandlungen zur Philosophie und irhre Geschichte 22 Heft

Herausgegeben von Benno Erdmann

ROGLER E Das Gehirnparadox ndash ein Problem nicht nur bei Schopenhauer Schopenhauer-

Jahrbuch 88 2007 p 71-88 Disponiacutevel em httpwwwschopenhauerphilosophieuni-

mainzdeAufsaetze_Jahrbuch88_20072007_Roglerpdf Acesso em 20 jan 2017

ROSSET C Escritos sobre Schopenhauer Versioacuten castellana de Rafael del Hierro Oliva

Valencia Pre-textos 2005

_____ Schopenhauer philosophe de lrsquoabsurde Paris QuadrigePUF 2015

RUFFING M Wille zur Erkenntnis Die Selbsterkenntnis des Willens und die Idee des

Menschen in der aumlsthetischen Theorie Arthur Schopenhauers Tese (Doutorado) Johannes

Gutenberg Universitaumlt Mainz 2001 Disponiacutevel em lthttpspublicationsubuni-

mainzdethesesvolltexte2002297pdf297pdfgt Acesso em 3 mai 2012

_____ A relevacircncia eacutetica da contemplaccedilatildeo esteacutetica Revista etich - An international Journal

for Moral Phylosophy Florianoacutepolis v11 n2 p 263-271 julho de 2012

- 238 -

RUYSSEN T Schopenhauer Paris Feacutelix Alcan 1911

SALLES JC (Org) Schopenhauer e o Idealismo Alematildeo Salvador Quarteto 2004

SANTOS K C S O problema da liberdade na filosofia de Arthur Schopenhauer

Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade

de Satildeo Paulo Departamento de Filosofia Orientador Prof Dr Eduardo Brandatildeo Satildeo Paulo

2010 Disponiacutevel em lthttpwwwtesesuspbrtesesdisponiveis88133tde-23082010-

175510pt-brphpgt

SCHEMANN Ludwig (Hrsg) Schopenhauer-Briefe Sammlung meist ungedruckter oder

schwer zugaumlnglicher Briefe von an und uumlber Schopenhauer Leipzig Brockhaus 1893

SCHIRMACHER Wolfgang (Ed) Zeit der Ernte Festschrift fuumlr Arthur Huumlbscher zum 85

Geburtstag StuttgartBad Cannstatt FrommannHolzboog 1982

SCHMIDT A Schopenhauer und der Materialismus Schopenhauer-Jahrbuch 58 1977 p

IX-XLVIII Disponiacutevel em lthttpwwwschopenhauerphilosophieuni-

mainzdeAufsaetze_Jahrbuch58_1977Alfred20Schmidt20-

20Schopenhauer20und20der20Materialismuspdfgt Acesso em 30 mai 2016

_____ Physiologie und Transzendentalphilosophie bei Schopenhauer Schopenhauer-

Jahrbuch 70 1989 p 43-53 Disponiacutevel em lthttpwwwschopenhauerphilosophieuni-

mainzdeAufsaetze_Jahrbuch70_1989Physiologie20und20Transzendentalphilosophiep

dfgt Acesso em 30 mai 2016

_____ Schopenhauer subjektive und objektive Betrachtungsweise des Intellekts

Schopenhauer-Jahrbuch 86 2005 p 105-132 Disponiacutevel em

lthttpwwwschopenhauerphilosophieuni-

mainzdeAufsaetze_Jahrbuch86_20052005_Schmidtpdfgt Acesso em 30 mai 2016

SCHUBBE D Philosophie des Zwischen Hermeneutik und Aporetik bei Schopenhauer

Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp Neumann 2010

SEYDEL R Schopenhauers Philosophisches System Leipzig Breitkopf amp Haumlrtel 1857

Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgdetailsschopenhauersph00seydgooggt Acesso em 14

out 2013

SPIERLING V Arthur Schopenhauer eine Einfuumlhrung in Leben und Werk Leipzig Reclam

Verlag 1998

- 239 -

_____ Materialen zu Schopenhauers ldquoDie Welt als Wille und Vorstellungrdquo Herausgegeben

kommentiert und eingeleitet von Volker Spierling Frankfurt am Main Suhrkamp 1984

STROHM Harald Die Aporien in Schopenhauers Erkenntnistheorie Inaugural-Dissertation

zur Erlangung des Grades eines Doktors der Philosophie der Philosophischen Fakultaumlt der

Eberhard-Karls-Universitaumlt Tuumlbingen LindauB 1984

SUCKAU Otto Schopenhauers falsche Auslegung der Kantischen Erkenntnistheorie Ihre

Erklaumlrung und Ihre Folgen Dissertation zur Erlangung der Doktorwuumlrde bei der

philosophischen Fakultaumlt der Groszligherzoglich Hessischen Ludwigs-Universitaumlt zu Gieszligen

Weimar R Wagner Sohn 1912 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsschopenhauersfal00suckuoftgt Acesso em 15 jun 2012

THILO Chr A Ueber Schopenhauerrsquos ethische Atheismus Leipzig Louis Pernitzsch 1868

TRENDELENBURG A Logische Untersuchungen Erster Band Zweite ergaumlnzte Auflage

Leipzig Hirzel 1862 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailslogischeuntersu07trengooggt Acesso em 22 jul 2014

TZERTELEFF Dmitry Schopenhauerrsquos Erkenntniss-Theorie eine kritische Darstellung

Inaugural-Dissertation zur Erlangung der philosophischen Doktorwuumlrde der Phiosophischen

Fakultaumlt der Universitaumlt Leipzig Leipzig G Reusche 1879 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsschopenhauerserk00tzergt Acesso em 30 jan 2013

VENETIANER M Schopenhauer als Scholastiker Eine Kritik der Schopenhauer‟schen

Philosophie mit Ruumlcksicht auf die gesammte Kantische Neoscholastik Berlin Carl

Duncker‟s 1873

VOLKELT Johannes Arthur Schopenhauer seine Persoumlnlichkeit seine Lehre sein Glaube

Stuttgart Fr Frommanns 1900 Disponiacutevel em

lthttpsarchiveorgdetailsarthurschopenha01volkgooggt Acesso em 22 nov 2010

WELSEN P Schopenhauers Theorie des Subjekts Ihre transzendentalphilosophischen

anthropologischen und naturmetaphysischen Grundlagen Wuumlrzburg Koumlnigshausen amp

Neumann 1995

ZELLER E Geschichte der deutschen Philosophie seit Leibniz Muumlnchen Didenbourg

1875 Disponiacutevel em lthttpsarchiveorgdetailsgeschichtederdeu00zelluoftgt Acesso em

10 set 2013

- 240 -

ZINGANO M Notas sobre o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo em Aristoacuteteles In Cadernos de

Histoacuteria e Filosofia da Ciecircncia Campinas Seacuterie 3 v 13 n 1 p 7-32 jan-jun 2003

  • A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer
  • Agradecimentos
  • RESUMO
  • ABSTRACT
  • Lista de abreviaturas
  • SUMAacuteRIO
  • Introduccedilatildeo
  • Capiacutetulo 1 ndash Introduccedilatildeo agrave antinomia da faculdade de conhecimento
    • 11 ndash Apresentaccedilatildeo teoacuterica e histoacuterica da antinomia da faculdade de conhecimento
    • 12 ndash Outras questotildees presentes na filosofia schopenhaueriana
    • 13 ndash Investigaccedilatildeo acerca do conceito da antinomia da faculdade de conhecimento
    • 14 ndash Investigaccedilatildeo acerca dos conceitos das outras questotildees presentes na filosofia de Schopenhauer
    • 15 ndash Estrutura histoacuterica da metafiacutesica de Schopenhauer o debate sobre a coisa em si
    • 16 - Desvelando o dilema e os conceitos envolvidos
      • Capiacutetulo 2 ndash A construccedilatildeo do lado externo do mundo idealismo transcendental
        • 21 ndash Philosophia prima
          • 211 ndash O princiacutepio maacuteximo do conhecimento
          • 212 ndash Formas da sensibilidade intuiccedilotildees puras e sujeito da voliccedilatildeo
          • 213 ndash Dianoiologia
          • 214 ndash Teoria da razatildeo
            • 22 ndash O conhecimento filosoacutefico
            • 23 ndash Criacutetica de Schopenhauer ao idealismo de Kant
            • 24 ndash Idealismo schopenhaueriano e fisiologia do conhecimento
            • 25 ndash Fundamentos do mundo como representaccedilatildeo
              • Capiacutetulo 3 ndash A constituiccedilatildeo do lado interno do mundo metafiacutesica
                • 31 ndash A Vontade como o em si do indiviacuteduo
                • 32 ndash A Vontade como o em si do mundo
                • 33 ndash Objetivaccedilatildeo da Vontade
                • 34 ndash Relaccedilotildees da Vontade com o intelecto e o ceacuterebro
                • 35 ndash Discoacuterdia da Vontade consigo mesma e teleologia
                • 36 ndash Fundamentos do mundo como Vontade
                  • Capiacutetulo 4 ndash Interpretaccedilotildees paradigmaacuteticas e anaacutelise pessoal
                    • 41 ndash Recepccedilatildeo da filosofia schopenhaueriana
                    • 42 ndash Apreciaccedilotildees criacuteticas da antinomia da faculdade de conhecimento
                    • 43 ndash Soluccedilotildees apologeacuteticas agrave antinomia da faculdade de conhecimento
                    • 44 ndash Anaacutelise pessoal
                      • Referecircncias
Page 4: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 5: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 6: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 7: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 8: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 9: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 10: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 11: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 12: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 13: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 14: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 15: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 16: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 17: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 18: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 19: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 20: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 21: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 22: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 23: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 24: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 25: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 26: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 27: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 28: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 29: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 30: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 31: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 32: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 33: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 34: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 35: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 36: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 37: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 38: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 39: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 40: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 41: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 42: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 43: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 44: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 45: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 46: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 47: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 48: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 49: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 50: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 51: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 52: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 53: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 54: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 55: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 56: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 57: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 58: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 59: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 60: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 61: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 62: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 63: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 64: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 65: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 66: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 67: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 68: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 69: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 70: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 71: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 72: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 73: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 74: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 75: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 76: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 77: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 78: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 79: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 80: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 81: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 82: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 83: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 84: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 85: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 86: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 87: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 88: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 89: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 90: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 91: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 92: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 93: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 94: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 95: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 96: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 97: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 98: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 99: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 100: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 101: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 102: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 103: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 104: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 105: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 106: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 107: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 108: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 109: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 110: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 111: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 112: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 113: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 114: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 115: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 116: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 117: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 118: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 119: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 120: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 121: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 122: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 123: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 124: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 125: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 126: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 127: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 128: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 129: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 130: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 131: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 132: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 133: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 134: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 135: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 136: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 137: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 138: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 139: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 140: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 141: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 142: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 143: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 144: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 145: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 146: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 147: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 148: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 149: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 150: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 151: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 152: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 153: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 154: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 155: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 156: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 157: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 158: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 159: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 160: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 161: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 162: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 163: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 164: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 165: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 166: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 167: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 168: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 169: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 170: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 171: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 172: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 173: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 174: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 175: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 176: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 177: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 178: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 179: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 180: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 181: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 182: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 183: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 184: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 185: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 186: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 187: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 188: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 189: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 190: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 191: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 192: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 193: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 194: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 195: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 196: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 197: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 198: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 199: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 200: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 201: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 202: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 203: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 204: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 205: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 206: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 207: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 208: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 209: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 210: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 211: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 212: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 213: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 214: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 215: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 216: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 217: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 218: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 219: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 220: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 221: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 222: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 223: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 224: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 225: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 226: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 227: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 228: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 229: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 230: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 231: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 232: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 233: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 234: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 235: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 236: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 237: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 238: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 239: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 240: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos
Page 241: Katia Cilene da Silva Santos A antinomia da teoria do ......A antinomia da teoria do conhecimento de Schopenhauer (Versão corrigida) São Paulo 2017. Katia Cilene da Silva Santos