karla dias de lima
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS V
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM HISTORIA
REGIONAL E LOCAL
KARLA DIAS DE LIMA
A COMUNIDADE QUILOMBOLA DO TUCUM:
LIDERANÇA FEMININA E PRÁTICAS COTIDIANAS
(TANHAÇU – BA)
SANTO ANTÔNIO DE JESUS
2015
1
KARLA DIAS DE LIMA
A COMUNIDADE QUILOMBOLA DO TUCUM:
LIDERANÇA FEMININA E PRÁTICAS COTIDIANAS
(TANHAÇU – BA)
Dissertação apresentada como requisito para a
obtenção do título de Mestre, pelo Programa de
Pós-Graduação em História Regional e Local da
Universidade do Estado da Bahia – UNEB/
Campus V, sob a orientação da Profa. Dra. Maria
das Graças Andrade Leal.
SANTO ANTÔNIO DE JESUS
2015
2
FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB
Lima, Karla dias de
A comunidade quilombola do tanhaçu: liderança feminina prática cotidianas (Tanhaçu - BA) / Karla Dias
de Lima . – Santo Antonio de Jesus, 2015.
147f.
Orientador: Profª. Drª. Maria das Graças Andrade Leal.
Dissertação (Mestrado em História Regional e Local) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento
de Ciências Humanas. Campus V. 2015.
Contém referências e anexos.
1. História. 2. Comunidade Quilombola – Tanhaçu. 3. Mulheres Negras. I. Leal, Maria das Graças Andrade.
3
Dedico este trabalho a duas mulheres grandiosas:
minha avó Maria da Silveira Dias (in memorian)
a quem “revi”, com lágrimas nos olhos, através
das palavras e dos gestos das senhoras do Tucum
e a minha mãe Aldeci Dias de Lima de quem
aprendi as lidas femininas e me reconheço para
além dos traços no espelho.
4
AGRADECIMENTOS
A vida inteira, em toda minha rebeldia, deparei-me com a imprevisibilidade do
tempo. A vontade absurda de segurar o tempo nas mãos foi desvanecendo à medida que
os anos passaram e a ideia de controle mostrou-se ainda mais distante. Desde o ingresso
no mestrado em 2013, o tempo vem me pregando peças, em horas se arrastou e pareceu
imenso e em outras correu célere a ponto de se esvair. Enfim chegou “o tempo da
travessia”, o tempo de me desprender do texto e passá-lo adiante. Durante esse percurso,
fui carinhosamente levada pelas mãos de muitos. Agradecê-los será, sem dúvida, a parte
mais suave de minha escrita.
Não poderia deixar de iniciar pelos moradores do Tucum, essas pessoas
calorosas e receptivas que me acolheram em suas casas e me cederam o seu tempo e de
suas memórias. A eles só tenho o que agradecer, em especial a Maria do Carmo e seu
esposo Lega, Carlito, Rita, Ricardo, Lindaura, D. Edelvira, D. Anízia (de saudosa
lembrança), Madalena, Eliane, Rosa, D. Euflorzina, D. Mariazinha. Que esse trabalho
consiga minimamente, trazer à luz as suas vivências tão ricas.
Dedico um agradecimento especial a minha orientadora Maria das Graças
Andrade Leal pela confiança, orientação, apoio e principalmente por acreditar e em
muitas ocasiões defender a minha pesquisa. Seus questionamentos incisivos e
pontuações no meu texto foram importantes para o aprimoramento da escrita e o meu
amadurecimento como pesquisadora.
Também trouxe acréscimos importantes ao meu texto o professor Adelmir
Fiabani, a quem já admirava mesmo antes de conhecer pessoalmente, e que mostrou-se
a pessoa mais afável e disponível com quem pude conversar sobre quilombos e
quilombolas. A ele e à professora Carmélia Miranda, agradeço por comporem a minha
banca de qualificação e trazerem importantes indicações de leitura e pontuações à minha
escrita.
Outros professores também me ajudaram neste percurso. Agradeço
calorosamente ao professor Benedito Eugênio, quem primeiro acreditou nesta pesquisa,
mesmo quando era fruto de nossas conversas na orientação da escrita para a Pós-
graduação em Educação e Diversidade Etnicorracial da UESB. À professora Edinelia
Souza pela disponibilidade, incentivo e as indicações de leituras. À Gabriela Amorim
5
que me cedeu sua sala de aula para o tirocínio na UNEB em Caetité. Foram ajudas
fundamentais para o andamento deste trabalho.
A minha turma do Mestrado, a maior que a UNEB teve até então, mas que de tão
grandiosa não posso e nem devo deixar de citar todos pelos nomes: Cristina, Gabriela
Silva, Paulo Marcos, Marcelo, Edimária, Gabriella Bonomo, Willan, Denize, Alex,
Rosimário, Indira, Joelma, Ana Paula, Letícia, Priscila, Alcides, Cleia e Adriano.
Alguns com quem estabeleci amizade e outros com quem troquei sorrisos, todos
experienciando os mesmos desafios de viajar para estudar. Também desejo agradecer
aos funcionários do Mestrado, em especial a Ane, sempre tão educada e acessível, e às
professoras Nancy e Cristina Luna que em muito contribuíram com suas aulas e
indicações de leitura.
Aos amigos que por diversas ações me ajudaram neste percurso. Dos tempos de
trabalho em Tanhaçu, devo especial gratidão a Douglas e sua mãe Benedita (Ditinha
para os íntimos), ambos me receberam em sua casa, e com Douglas fiz a minha primeira
visita ao Tucum. Deste mesmo período, devo agradecimentos saudosos a Benito Brazil,
Célio Santos, Ana Lúcia Gama e Ana Paula Maciel, companheiros de docência e
vizinhos de estadia em Tanhaçu, foram os que primeiro souberam de minhas intenções
de pesquisa e com quem conversei lautamente sobre a temática. Outras amigas me
levaram pela mão em outros tempos. Agradeço a Denise da Mata pura e simplesmente
pela amizade e apoio nessa e em “outras vidas”. A Carlânia, Lara, Aline, Milena,
Glauco, Marcos Portela, Andreia, Elaine, Kétia, Fabiana, Indiana, Marluze e Soane,
agradeço as demonstrações de amizade e companheirismo que se reverberaram em
momentos bons, cheios de trocas e afetos.
Devo agradecimentos a Robson Dantas, meu caro colega do Pré-vestibular Dom
Climério, que no fechar das cortinas me ajudou a entrar em contato com Elma, que com
muita agilidade fez os últimos ajustes no texto da dissertação. Sou muito grata por seu
cuidado e atenção. Ao amigo e filósofo Manoel Messias agradeço pelo estimulo e
atenção.
Agradeço a minha amiga Leila Prates com quem desde os tempos da graduação
divido a angústias da vida, docência, ideologias políticas, feministas e os estudos sobre
quilombos. Tem sido com ela que venho compartilhando os melhores e piores
momentos, o que só prova que amizades se consolidam com o tempo. Não poderia
especificar a natureza da minha gratidão, justo por isso: Obrigada Lê, por tudo! Estendo
6
o meu agradecimento ao seu esposo Ricardo Mussi com quem já ri muitas vezes das
agruras da pesquisa e com quem passei a dividir o objeto: agora o Tucum tem mais um
pesquisador.
Agradeço ao meu estimado amigo Emerson Tadeu, que me acompanhou na
última visita ao Tucum e me arrancou sorrisos na hora das transcrições ao ouvi-lo falar,
com sua maneira leve, das histórias de Boa Sentença e outros “causos”, coisas desse
povo apaixonado pelas letras e pelo “sertão longo que não tem portas”.
Pela compreensão das minhas ausências, tenho que agradecer aos meus pais,
Dina e Joaquim, que infelizmente tenho visto muito pouco nestes últimos dois anos. A
eles teria que agradecer por tantas e infinitas coisas que não caberiam em poucas linhas,
é bom saber que estão sempre comigo, me apoiando. Agradeço ao meu irmão, Kaio,
pelo amor e cuidado de sempre. E também às minhas irmãs Verusca, Kézia e Kátia pelo
apoio. Aos meus amores, Alana, Lissandra, Marcos e Caio agradeço pelos momentos de
leveza e a certeza dos sorrisos.
Um agradecimento inusitado faço a Pandora, “minha bolota”, pela presença
cálida e nem sempre silenciosa nas horas da escrita, por demonstrar um imenso carinho
no olhar e a compreensão, “a sua maneira”, quando tive que me ausentar em viagens
para o mestrado e a pesquisa.
7
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ADCT Atos das Disposições Constitucionais Transitórias
ASA Articulação do Semiárido Brasileiro
CNMN Conselho Nacional da Mulher Negra
CPT Comissão Pastoral da Terra
CRQs Comunidades Remanescentes de Quilombos
DNOCS Departamento Nacional de Obras Contra a Seca
EJA Educação de Jovens e Adultos
FCP Fundação Cultural Palmares
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ICMBio Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
FLONA Floresta Nacional
LEMTO Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades
MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário
MNU Movimento Negro Unificado
MOBRAL Movimento Brasileiro de Alfabetização
PPIGRE Programa de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e Etnia
SBPC Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
SEPPIR Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial
UFBA Universidade Federal da Bahia
8
LISTA DE FIGURAS
1- Quadro com a população escrava no Arraial do Brejo Grande em 1870. 31
2- Estação de trem de Tanhaçu. 36
3- Estrada que liga o município de Tanhaçu à comunidade quilombola do Tucum. 37
4- Quadro geral de comunidades remanescentes de Quilombos (CRQs). 47
5- Carlito Augusto Oliveira em sua casa em Tanhaçu. 52
6- Negra tatuada vendendo caju - Debret, 1827. 78
7- Maria do Carmo Oliveira Silva e seu esposo Olegário 93
8- Maria Rita Oliveira Silva com crianças da comunidade no barracão da Igreja
do Tucum de Cima
94
9- Maria Rosa da Silva. 95
10- Lindaura na porta de sua casa na Tapagem 96
11- Edelvira Oliveira Silva. 97
12- Dona Mariazinha. 98
13- Dona Anízia e suas filhas Madalena e Maria. 99
14- Urna funerária Indígena encontrada no Tucum em 2011. 106
15- Moradores entregando documentos para receberem casas populares. 129
16- Cisterna no quintal da casa de Maria do Carmo. 131
17- Mulher do Tucum fazendo cesta da palha do licuri. 136
18- Mulheres do Tucum no I Encontro das Comunidades Quilombolas do
Território de Identidade Sertão Produtivo.
138
19- Igreja católica dedicada a São João Batista no “Tucum de cima”. 141
20- Igreja católica dedicada a Nossa Senhora Aparecida. 142
21- Igreja católica de Nossa Senhora Aparecida após a reforma. 143
22- Os dois tipos de barro utilizados para fazer as panelas. 152
23- Forno da casa de Lindaura. 154
24- A autora com Lindaura e suas companheiras na feira de Tanhaçu. 155
9
LISTA DE MAPAS
1- Mapa da região de Caetité e Rio de Contas, com destaque para cidade
“Ituassu”.
34
2- Mapa geográfico da Chapada Diamantina. 35
3- Comunidades e territórios quilombolas auto identificados na Bahia. 45
10
RESUMO
A presente dissertação visa analisar no emaranhado tecido social da comunidade
quilombola do Tucum-Ba, onde aparecem visíveis as heranças de seu passado, os
embates e desafios da vida no meio rural e a força de mulheres que ressignificam suas
práticas cotidianas e políticas. Nesse sentido, ampliamos o olhar de forma significativa
na participação dessas mulheres no processo de reconhecimento como comunidade
quilombola e como esta atuação reverberou nas relações políticas e identitárias e que
acontecimentos favoreceram à constituição de uma liderança feminina negra no Tucum.
As concepções atuais acerca da história das mulheres e da liderança feminina nos
segmentos populares e negros colaboraram para a análise das especificidades das
relações vivenciadas pelas mulheres do Tucum. Através das fontes orais discute-se as
relações de trabalho no Tucum, entremeadas às questões de gênero, observando as
estratégias de sobrevivência, demarcação de espaços e lideranças comunitárias. As
mulheres assumem parte do sustento do lar, fabricam panelas, vassouras, esteiras e
trabalham na colheita do café. Através da memória das principais lideranças femininas,
busca-se a compreensão desses anseios e os modos de sociabilidade que se estabelecem
nas relações de trabalho da comunidade. Com este viés, pretende-se examinar as
estratégias de sobrevivência e as práticas cotidianas dessas mulheres, como uma
possibilidade de reconstruir vivências, afetividades, ancestralidades, memórias e
identidades de gênero.
Palavras-chave: Comunidade Quilombola do Tucum; Mulheres negras; Trajetórias de
vida; identidade quilombola.
11
ABSTRACT
The present dissertation aims at to analyse in the weaveeed intricacy social of the
Comuninity Quilombola of the Tucum/BA, where the inheritances of its passing appear
visible, you strike them and challenges of the life in the agricultural
way and the force of women who to change its daily practices and politics. In this
direction, we extend the look of significant form in the participation of these women in
the recognition process as community quilombola and as this performance reverberated
in the relations identificatory and politics and that events had
favoured to the constitution of a black feminine leadership in the Tucum. The current
conceptions concerning the history of the women and the feminine leadership in the
popular and black segments had cooperated for the analysis of the epecifities of the
relations lived deeply for the women of the Tucum. Through the verbal sources one
argues the relations of work in the Tucum, mingled to the sort questions,
observing the strategies of survival, community demarcations of spaces and leaderships.
The women assume part of the sustenance of the home, manufacture pans, brooms, mats
and work in the harvest of the coffe. Through the memory of the main feminine
leaderships, she searchs understanding of these yearnings and the ways of
sociability that are established in the relations of work of the community. With this
point of view, it is intended to examine the strategies of survival
and the daily practices of these women, as a possibility to reconstruct experiences,
affectivities, ancestries, memories and identities of sort.
Word-key: Quilombola community of the Tucum; Black women; Trajectories of life;
identity quilombola.
12
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................. 12
1 A COMUNIDADE QUILOMBOLA DO TUCUM: MEMÓRIA
E IDENTIDADE................................................................................
24
1.1 Memórias rebordadas: entrelaçamentos históricos e territoriais na
região do Tucum .................................................................................
25
1.2 O processo de reconhecimento quilombola no Tucum....................... 39
1.3 A formação de uma identidade quilombola no Tucum: desafios e
percepções............................................................................................
62
2 TRAJETÓRIAS FEMININAS NO TUCUM.................................. 71
2.1 Ser mulher negra e quilombola: percepções e discursos..................... 72
2.2 A liderança feminina no contexto quilombola..................................... 79
2.3 As mulheres do Tucum: gênero, corpo e oralidade............................. 84
2.4 As mulheres do Tucum em suas lidas e lutas...................................... 90
2.4.1 Mães, líderes, paneleiras e guardiãs da memória................................ 91
Líderes
Paneleiras
Guardiãs da memória
3 A LIDERANÇA FEMININA NA COMUNIDADE:
TRABALHO E COTIDIANO..........................................................
116
3.1 Os desafios para a atuação política das mulheres no Tucum............... 119
3.2 A participação feminina na Associação da Comunidade Quilombola
do Tucum.............................................................................................
126
3.3 As mulheres e a religiosidade no Tucum............................................. 139
3.4 Do barro a luta: o trabalho e o cotidiano das mulheres no Tucum......
147
CONSIDERAÇÕES FINAIS
FONTES
REFERÊNCIAS
ANEXOS
13
INTRODUÇÃO
E penso que parte de nosso desafio é o fato de que realmente
encaramos a memória não apenas como preservação da informação,
mas também como sinal de luta e como processo em andamento.
Encaramos a memória como um fato da história; memória não
apenas como um lugar onde você "recorda" a história, mas memória
"como" história. (Alessandro Portelli)1
Alessandro Portelli, na epígrafe acima, exemplificou os melhores caminhos e
reflexões necessárias para que esta pesquisa se desenvolvesse - a oralidade, que foi a
principal fonte utilizada neste estudo. Acredita o autor, ser ela a memória e o melhor
elemento da historicidade dos grupos humanos, e como ferramenta de criação de
significados, opera como um componente em que se constituem as identidades. Neste
aspecto, interessa-nos a trajetória das populações afro-brasileiras, as comunidades
remanescentes de quilombolas ou quilombos contemporâneos, como são conhecidos na
atualidade, e em especial: o Tucum.
A comunidade quilombola do Tucum encontra-se na zona rural do município de
Tanhaçu/BA, a 09 km de distância da sede e a 483 km da capital, Salvador. Localiza-se
na macrorregião Centro-Sul Baiano e na microrregião da Chapada Diamantina
Meridional.2 Em 2005, um grupo de moradoras, por iniciativa própria, começou a
pesquisar a trajetória da localidade através dos relatos dos mais idosos, na intenção de
elaborar uma “Declaração de autorreconhecimento” na qual afirmavam serem
quilombolas. Esta declaração foi enviada à Fundação Cultural Palmares (FCP) em
meados de 2006 e, em 13 de dezembro daquele mesmo ano, o Tucum foi reconhecido
como quilombola pela FCP.
Atualmente, residem no Tucum aproximadamente 300 famílias distribuídas entre
os povoados: Tucum, Tapagem, Lagoa da Pedra, Batateira e Fazenda Velha. No
povoado do Tucum está a principal concentração demográfica, e as lideranças de lá
respondem politicamente pelos outros povoados por meio de uma associação existente 1 PORTELLI, Alessandro. Memória e diálogo: desafios da história oral para a ideologia do século XXI.
In: FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.) História oral: desafios para o século XXI. / Organizado por
Marieta de Moraes Ferreira, Tania Maria Fernandes e Verena Alberti. — Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz/Casa de Oswaldo Cruz / CPDOC - Fundação Getúlio Vargas, 2000, p. 69. 2 Nas divisões dos territórios de identidade da SEPLAN, Tanhaçu também se encontra no Sertão
Produtivo que abarca 19 municípios. Conforme o site <http://www.seplan.ba.gov.br/territorios-de-
identidade/mapa> acessado no dia 17/08/2014.
14
na comunidade. A partir dos relatos de Maria do Carmo Oliveira, 66 anos3, primeira
das moradoras a ser contatada, soubemos das histórias do Tucum, que tem esse nome
devido a uma planta muito encontrada na região, também conhecida como Tucum ou
Iticum.
Os primeiros contatos com os moradores do Tucum ocorreram em 2009, em
decorrência da nossa atuação como professora de História numa escola estadual do
município de Tanhaçu. Nas visitas passamos a conhecer seus moradores, as matriarcas
como D. Anízia, D. Edelvira, D. Mariazinha e D. Euflorzina, senhoras de longa idade,
mãos calejadas e depositárias das memórias de outros tempos. Também conhecemos as
lideranças como Maria do Carmo, Carlito e Maria Rita e, também, as mulheres do barro,
Rosa e Lindaura que, com seus sorrisos cativantes, desfiaram suas experiências e
trabalhos. Outros tantos moradores foram também entrevistados, fazendo com que aos
poucos fossemos conhecendo os modos de vida da comunidade.
Por ser uma região muito pobre, as alternativas de trabalho se restringem ao
serviço nas fazendas vizinhas e, no caso das mulheres, durante muito tempo a maioria
sobreviveu da fabricação de panelas de barro. Porém, atualmente, apenas um grupo
pequeno ainda se mantem com essa atividade. Após o reconhecimento como
quilombolas, o povoado passou a ter acesso a benefícios que trouxe muitas melhoras
para a comunidade, como as casas populares e as cisternas, questões que serão
aprofundadas ao longo do terceiro capítulo.
Em 2012, a comunidade do Tucum materializou-se como objeto de pesquisa
dando base ao trabalho de conclusão de curso intitulado “A construção da identidade na
comunidade quilombola do Tucum-BA”4 escrito a partir dos relatos orais dos moradores
da comunidade, coletados entre 2009 e 2012. O interesse por dar continuidade a essa
pesquisa, ocorreu na constatação de que existiam questões que precisavam ser melhor
exploradas, precisamente relacionadas ao protagonismo feminino que observamos a
partir da atuação das mulheres no processo de reconhecimento da comunidade e nas
ações cotidianas.
As reflexões acerca da liderança feminina e das práticas cotidianas das mulheres
do Tucum estão entremeadas de percepções pessoais adquiridas no contato com as
3 Consideramos a sua idade em 2015, até o desfecho desta escrita. 4 Pesquisa para a elaboração do TCC da Especialização em Educação e Diversidade Etnicorracial da
UESB, sob a orientação do professor Dr. Benedito Gonçalves Eugênio.
15
moradoras, do anseio por compreender até onde se estendia o protagonismo feminino e
como esse se reverberava nas questões políticas, religiosas e familiares.
Neste estudo, buscou-se mostrar o emaranhado tecido social do Tucum onde
aparecem visíveis as heranças de seu passado, os embates e desafios da vida no meio
rural e a força de mulheres que ressignificam suas práticas cotidianas. Nesse sentido,
ampliamos o olhar de forma significativa na participação dessas mulheres no processo
de reconhecimento e como esta atuação se reverberou na comunidade. Também
buscamos analisar como o processo de autorreconhecimento influenciou as relações
políticas e identitárias dos moradores e que acontecimentos favoreceram à constituição
de uma liderança feminina no Tucum. Objetiva-se perceber os lugares de lideranças
feminina no Tucum e os desafios no fazer político dessas mulheres.
Para isso, compreendemos ser a História Social a corrente historiográfica que
melhor se adequa às dimensões do objeto e aos sujeitos da pesquisa. O século XX
representou uma abertura nos horizontes das pesquisas científicas, permitindo o estudo
de grupos sociais até então marginalizados, a exemplo dos camponeses, operários,
mulheres, trabalhadores urbanos, afro-descentes e indígenas. Isso possibilitou uma
consequente ampliação dos objetos, desenvolvimento de novos campos do
conhecimento e possibilidades de atuação da história. Foram esses interstícios
propiciados pelos historiadores e estudiosos da Escola dos Annales, fundada em 1929,
por Marc Bloch e Lucien Febvre, que significaram o despontar de uma nova
historiografia que se contrapunha à história positivista, buscando atender às
especificidades e a complexidade das sociedades de forma abrangente, entendendo o ser
humano em sua plenitude, como um ser subjetivo, complexo e não apenas uma
marionete dos jogos de poder.5 Apesar de, nas palavras de Hebe Castro, ser um “lugar
comum” ao se falar dos primórdios da História Social abordar os Annales:
A referência ao movimento dos Annales se faz necessária por ter-se
tornado o marco, real ou simbólico, de constituição de uma Nova
História, em oposição as abordagens ditas rankianas, predominantes
entre os historiadores profissionais até a primeira metade do século.
Ainda hoje, a expressão “história social” é frequentemente utilizada
5 Cf. NEVES, Erivaldo Fagundes. História regional e local: fragmentação e recomposição da história na
crise da modernidade. Salvador: Arcádia, 2002, p. 31.
16
como forma de demarcar o espaço desta outra postura historiográfica
frente a historiografia tradicional.6
O fazer histórico é assim confrontado à medida que novos sujeitos, relações e
espaços se configuram como objetos de interesse. A História Social abriu um leque de
possibilidade para os estudos de trajetórias, no caso específico da História das mulheres
tem-se revelado uma tarefa árdua, visto que mulheres brancas e negras eram tratadas
sempre pela ótica e discursos masculinos. Neste sentido, é possível avaliar que mesmo
em sociedades em que o poder masculino estava firmemente estabelecido, as mulheres
extrapolavam o rígido controle e eram descritas a partir de suas relações sociais e em
suas práticas cotidianas numa “história do implícito resgatada das entrelinhas dos
documentos, beirando o impossível, de uma história sem fontes”. 7 Para compreender as
trajetórias femininas, nos debruçamos sobre a historiografia acerca da mulher,
inicialmente a partir dos escritos de Michelle Perrot (1988 e 1989), precursora dos
estudos sobre a mulher, com o objetivo de refletir sobre a construção dos papéis
femininos ao longo da história.
A leitura sobre gênero, a partir das obras de Joan Scott (1990 e 1992), trouxe à
luz questões importantes sobre a invisibilização das mulheres na História. Mas foram as
obras de Maria Odila Dias (1985) e Cecília Soares (2006) que nos propiciaram novas
percepções sobre as trajetórias das mulheres negras no Brasil. A partir dessas e outras
leituras, percebemos que é por entre as fibras das cortinas, nos afazeres domésticos, no
cuidado com o marido e filhos, nas senzalas e nos enfrentamentos urbanos e rurais que,
paulatinamente, se revelam as mulheres brancas, de elite, mulheres negras, pardas e do
povo que ganham corpo a partir das nuances do cotidiano.
Por saber das dificuldades que se asseveram no estudo do cotidiano e
observando a importância da memória na construção histórica, a fonte oral foi o método
escolhido para pesquisar a comunidade do Tucum. Os conceitos de memória e oralidade
foram de grande importância para observar as relações sociais do Tucum com suas
mulheres, suas festas, sua luta pelo reconhecimento e suas tradições. Para a historiadora
Edinelia Souza, “as memórias que afloram nas narrativas orais são compreendidas aqui
6 CASTRO, Hebe. História Social. In: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (Orgs.)
Domínios da História: ensaios de teoria metodologia – Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 76. 7 DIAS, Maria Odila. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. (1ª edição de 1984). São Paulo:
Brasiliense, 1995, p.17.
17
enquanto redes que expressam vivências, ressignificam trajetórias, evidenciam histórias
anônimas, anunciam experiências compartilhadas”. 8
Sendo assim, as questões a que nos propomos com esta pesquisa figuram na
trama de discussões sobre a mulher negra, a liderança feminina, a identidade
etnicorracial e os quilombos que, devido a fatores políticos e sociais, ganharam destaque
no Brasil nos últimos 20 anos, em especial nas pesquisas de Flávio Gomes (1995),
Eurípedes Funes (2000), Eliane Cantarino O’dwyer (2002), Hebe Mattos (2005),
Adelmir Fiabani (2005 e 2008), Girolamo Treccani (2006), José Maurício Arruti (2008),
Nivaldo Dutra (2007), Carmélia Miranda (2009) entre outros autores que utilizamos
para este estudo. Essas leituras nos motivaram a levantar algumas questões: qual a
relação entre uma liderança feminina e o processo de autorreconhecimento do Tucum
como comunidade quilombola? O processo de reconhecimento influenciou, de alguma
forma, na formação de uma identidade local? Existe uma identidade quilombola
consolidada no Tucum? Qual o lugar das mulheres na comunidade? Seria a liderança
feminina uma característica de todas as mulheres quilombolas? O que teria gerado o
surgimento de uma liderança feminina no Tucum? São estas as questões que norteiam
esse estudo.
Por se tratar de uma comunidade quilombola, entendemos que o Tucum foi
influenciado direta ou indiretamente pelo processo de formação do campesinato negro
no Brasil, no período do pós-abolição em fins do século XIX. A história agrária, por sua
vez, campo recentemente desbravado pela nova historiografia, visa redimensionar as
noções do mundo rural a partir de suas dimensões conflitivas, que envolvem as lutas
pela posse da terra do Brasil colônia até a atualidade. Ao fazer referência ao acesso à
terra por parte de negros e escravos, estudos como o de Yeda Linhares9 foram
importantes para melhor dimensionar uma questão polêmica ainda submersa nas
pesquisas sobre escravidão e sobre a formação de quilombos, em particular.
Sendo a terra uma forma de manutenção do status da elite brasileira, os negros,
em sua maioria, eram impossibilitados financeiramente de possuir terras no Brasil, fato
que não impediu a posse por meio de doações de senhores e invasões, o que configurava
a ilegalidade da obtenção.
8 SOUZA, Edinelia Maria Oliveira. História oral, memórias e campesinato negro/mestiço na Bahia do
pós-abolição. História Oral, v. 16, n. 2, p. 55-71, jul./dez. 2013, p.56. 9 LINHARES, M. Y. & TEIXEIRA da SILVA, F. C. História da Agricultura. Combates &
Controvérsias. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1981.
18
Essa situação foi agravada com a Lei de Terras de 1850, uma lei disciplinar que
dificultava o acesso à terra por parte da população pobre, ao definir que só poderiam ter
direito à terra os que oficialmente a comprassem. Mesmo depois da abolição, os efeitos
da Lei de Terras de 1850 continuaram a limitar os direitos dos negros, por serem, em
sua maioria, despossuídos de riquezas pecuniárias. Como observa Adelmir Fiabani,
“Não é por nada que a Lei de terras serviu, sobretudo, para aumentar os domínios de
quem já possuía propriedades. A maioria da população rural pobre, ou seja, caboclos,
arrendatários, meeiros, etc. não conseguiu regularizar as terras que ocupavam”.10
Neste aspecto, a posse da terra ou a negação de seu acesso, funcionava como
mecanismo de exclusão social. Portanto, o campo de estudo da história agrária se
ampliou para tratar de questões como reforma agrária e a demarcação de terras
indígenas e quilombolas, discussões que trazem à luz as muitas desigualdades que
fazem parte da história do Brasil em relação ao acesso e à posse da terra. Segundo
Adelmir Fiabani “passamos a ter no Brasil, no mundo rural, comunidades negras, de
diferentes origens, lutando pelo controle da terra e pela venda de sua força de trabalho”.
11
Atualmente, o estudo das comunidades quilombolas cresceu de forma relevante.
Nestes estudos, inegáveis narrativas do tempo presente, as memórias ancestrais destes
agrupamentos dão um suporte para a análise de suas relações cotidianas. Hebe Mattos e
Ana Maria Lugão Rios ao tratarem das memórias dos descendentes de quilombolas em
sua obra Memórias do cativeiro12, observam o quão difícil é para os membros dessas
comunidades afirmarem-se como ancestrais diretos dos quilombos criados a partir das
fugas de escravos e por ancestrais de origem africana.
Carmélia Miranda13 observa que uma das dificuldades em assegurar o direito da
terra aos quilombolas, está no reconhecimento das diferenças étnicas e culturais como
um pressuposto de direito social. Dentro deste processo, a historiografia e a
antropologia contemporâneas passam a considerar os critérios de resistência cultural
10 FIABANI, Adelmir. Os novos quilombos: Luta pela terra e afirmação étnica no Brasil [1988-2008].
Tese de doutorado em História. UNISINOS, São Leopoldo, 2008, p. 56-57. 11 FIABANNI, Adelmir. O quilombo antigo e o quilombo contemporâneo: verdades e construções. In:
Anais da Associação Nacional de História – ANPUH XXIV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA
– 2007, p. 2. 12 RIOS, Ana Lugão; MATTOS, Hebe Maria. Memórias do cativeiro: família, trabalho e cidadania no
pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. 13 MIRANDA, Carmélia Aparecida Silva. Vestígios recuperados: experiências da comunidade negra
rural de Tijuaçu-BA. São Paulo: Annablume, 2009, p. 65.
19
desses grupos, e os termos quilombos modernos ou contemporâneos são os mais
utilizados para abarcar esses critérios. O Tucum se enquadra no conceito de
comunidades negras rurais que, segundo Glória Moura,
Podem-se definir quilombos contemporâneos como comunidades
negras rurais habitadas por descendentes de escravos que mantêm
laços de parentesco e vivem, em sua maioria, de culturas de
subsistência, em terra doada, comprada ou ocupada secularmente pelo
grupo. Os negros dessas comunidades valorizam as tradições culturais
dos antepassados, religiosas ou não, recriando-as no presente.
Possuem uma história comum e têm normas de pertencimento
explícitas, com consciência de sua identidade étnica. 14
As comunidades quilombolas, pela natureza de suas fontes, constituem objetos
relevantes para a História do Tempo Presente. O historiador do tempo presente tem à
sua disposição um variado leque de possibilidades para a análise e, entre essas, a
utilização dos relatos orais tem sido relevante para o estudo das memórias do “breve
século XX”, como o chamaria Eric Hobbsbawn e também do século XXI.15 O desafio
de fazer uma pesquisa no tempo presente está na proximidade com as fontes e uma
possível dubiedade em sua análise, pois as rememorações se realizam no presente e, por
isso, são influenciadas por um discurso e uma narração que se realiza e utiliza
instrumentos do período em que são coletados os relatos, como observa Beatriz Sarlo:
O presente da enunciação é o “tempo de base do discurso”, porque é
presente o tempo de se começar a narrar e esse momento fica inscrito
na narração [...] no discurso o presente teria uma hegemonia
reconhecida como inevitável e os tempos verbais do passado não
ficam livres de uma “experiência fenomenológica” do tempo presente
na enunciação.16
A história oral, uma metodologia para as pesquisas historiográficas da atualidade
é “privilégio do historiador do presente17” e há que ser pensada também na perspectiva
de seus usos políticos. O historiador do presente utiliza-se das fontes orais sabendo dos
14 MOURA, Glória. Os quilombos contemporâneos e a Educação. Revista Humanidades, Brasília:
Editora UNB, n. 47, nov. de 1999, p. 100. 15 HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos: o breve século XX. 1941-1991. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995. 16 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das
Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 49. 17FRANK, Robert. Questões para as fontes do presente. In: CHAUVEAU, Agnés. Questões para a
História do tempo presente. Bauru/SP: EDUSC, 1999, p. 107.
20
desafios que se apresentam de forma conceitual e prática na sua pesquisa. As pesquisas
que se utilizam de relatos orais cresceram significativamente a partir da década de 1980,
passando a estabelecer conexões entre as narrativas pessoais, a memória e a identidade.
Observando que é “inevitável à marca do presente no ato de narrar o passado18”,
o historiador do tempo presente defronta-se com o desafio de produzir uma narrativa
que, mesmo dentro dos princípios fundantes de sua formação, possa oferecer uma
reflexão que abarque “as modalidades e os mecanismos de incorporação social pelos
indivíduos que têm uma mesma formação ou configuração social”. 19 Não diferente das
outras modalidades, a História do tempo presente também aspira ter um caráter de
verdade que, como observa Roger Chartier, “é inerente a todo trabalho histórico”.20
Sabendo das especificidades desta pesquisa, nos utilizamos dos relatos orais dos
moradores da comunidade coletados entre os anos de 2012 e 2015. Os nomes originais
dos entrevistados foram mantidos na pesquisa, e na ocasião, os entrevistados assinaram
um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) em que permitiram o uso de
sua imagem e depoimento nesta pesquisa (Anexo 1). Foram utilizados questionários
semi-estruturados (Anexo 2) e direcionados as questões da pesquisa: identidade
quilombola, liderança feminina, cultura, trabalho, barro etc. Ao longo das entrevistas
nos permitimos levantar outras questões que por ventura surgissem a partir dos relatos.
As entrevistas constituíram um dos principais suportes desta pesquisa e,
favoreceram a análise das trajetórias individuais e coletivas dos moradores do Tucum,
nos permitindo refletir sobre a construção de uma identidade quilombola e o papel que
as mulheres tiveram neste processo. Compreendemos trajetórias como “um dos
procedimentos metodológicos que integram a História oral, e é considerado um
construto ‘científico’, podendo utilizar dados quantitativamente analisáveis que
possuam relação direta com a sequência cronológica da vida dos indivíduos”.21
Além dos relatos orais, também utilizamos fontes escritas como a “Declaração
de auto-reconhecimento”22, a segunda via da certidão de reconhecimento da
18 SARLO, 2007, p. 49. 19 CHARTIER, Roger. A visão do historiador modernista. In: FERREIRA, Marieta de Moraes;
AMADO, Janaína. Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 217. 20 Ibid., p. 217. 21 LISBOA, Teresa Kleba Lisboa. As trajetórias de vida como construtos histórico-sociais. 2006.
Disponível em: <www.cfh.ufsc.br/abho4sul/pdf/Teresa%20Kleba%20Lisboa.pdf> Acessado em:
26/07/2014. 22 A palavra “auto-reconhecimento” é aqui escrita conforme redação original do documento e todas as
vezes que o citarmos utilizaremos a grafia original entre aspas. No corpo do texto, ao falarmos do
21
comunidade, leis que tratam das divisões territoriais dos município de Tanhaçu e Ituaçu,
Ata de criação da primeira associação do Tucum, Livro de Atas de reuniões ocorridas
entre 2009 e 2014, documentos diversos referentes aos cursos dos quais a comunidade
participou, fontes virtuais e fotografias.
Por meio dos relatos orais e das fontes escritas, buscamos investigar as
memórias da comunidade para compreender o processo de sua formação até o
reconhecimento. A fotografia foi também utilizada para dar rosto às vozes dessas
mulheres tão singulares. Como artefato para o Historiador do tempo presente, o registro
fotográfico representa um texto e um discurso, nos quais os indivíduos possam se
materializar e extravasar sua própria realidade. Desvelam fragmentos de tempo e
trajetórias e se circunscrevem na história.
A fotografia evoca lembranças, emoções e muitas informações.
Constitui-se registro e memória visual que retém a imagem fugidia de
indivíduos e sociedades. Como registro visual e material a fotografia
apresenta-se como fonte e documento privilegiado para uma
aproximação entre fragmentos do tempo histórico, permitindo a
perpetuação de um momento difícil de ser resgatado com precisão,
mas o historiador deve observar que ela não é apenas um
complemento da informação oral ou escrita. Uma imagem
fotografada possui informação da realidade registrada e, igualmente,
historicidade.23
As observações acerca da memória e das narrativas da comunidade estão
entremeadas de percepções adquiridas no contato com os moradores, em especial as
mulheres. No Tucum, o processo de seu autorreconhecimento como quilombola partiu
do contato com agentes externos e com a própria construção da identidade do grupo,
que precisou ser repensada à luz das tradições que mantinham há muito tempo. Não
perdemos de vista a importância da atuação das mulheres para o desenrolar desse
processo e elas serão figuras recorrentes no transcurso do que foi escrito.
evento, optamos por usar a grafia “autorreconhecimento” como rege a nova ortografia ou mesmo
reconhecimento. 23 OLIVEIRA, Rosângela Silva. BITTENCOURT JUNIOR, Nilton Ferreira. A fotografia como fonte de
pesquisa em história da educação: usos, dimensão visual e material, níveis e técnicas de análise.
Disponível em:<http://sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/03-
%20FONTES%20E%20METODOS%20EM%20HISTORIA%20DA%20EDUCACAO/A%20FOTOG
RAFIA%20COMO%20FONTE%20DE%20PESQUISA%20EM%20HISTORIA%20DA%20EDUCAC
AO.pdf> acessado em 22/09/2014.
22
A relevância desta pesquisa dá-se por abordar questões pertinentes às relações
etnicorraciais, gênero e identidade em uma comunidade distante, rural, pouco conhecida
e merecidamente estudada, como o Tucum. A produção historiográfica sobre gênero,
mulher negra, comunidades quilombolas e as trajetórias das populações afro-brasileiras
foi importante para as reflexões teóricas e conceituais que deram suporte a esta
pesquisa. Da mesma maneira, atentamos para a invisibilidade e o silenciamento que até
pouco tempo existiam em torno dessas questões, significando um árduo caminho
trilhado para que estas produções se estabelecessem na historiografia.
Consideramos desafiantes as questões levantadas ao longo da escrita e
abraçamos este desafio de apresentar o cotidiano das mulheres do Tucum. O avanço das
pesquisas sobre a mulher negra e quilombola e a existência de cursos de pós-graduação
voltados para o estudo das populações negras são expressivos nos últimos anos. Tais
fatores, notadamente vêm reforçar a importância acadêmica desse estudo, mesmo
porque ainda são poucos os trabalhos que discutem a escravidão e as comunidades
quilombolas na região da Chapada Diamantina. As obras de Ronaldo Senna (1984),
Albertina Vasconcelos (1998), Cristina Pina (2000) e Maria de Fátima Pires (2002)
constituem um acervo importante sobre a escravidão na Chapada Diamantina e
oferecem possibilidades para se repensar as questões que ainda carecem de pesquisa.
São questões que podem nos fazer refletir sobre as lacunas que a historiografia
baiana ainda apresenta. Albertina Vasconcelos24, ao falar de sua inquietação acerca da
pouca produção historiográfica sobre a escravidão na Bahia25, ressalta que pouco ou
quase nada existia sobre a escravidão nos sertões mineradores. Em consonância com
este posicionamento, também observamos que a escravidão na Chapada Diamantina,
especificamente, na entrada sul que abrange as cidades de Tanhaçu, Ituaçu, Barra da
Estiva, Ibicoara, Mucugê e Andaraí, não por ausência de fontes, carece de mais estudos
que tratem das trajetórias de escravos e libertos entre os séculos XVIII e XIX. Esse
estudo é o primeiro a tratar da comunidade do Tucum e fazemos votos que outros
24 VASCONCELOS, Albertina de Lima. Ouro: conquistas, tensões, poder. Mineração e escravidão -
Bahia do século XVIII.1998. Dissertação (Mestrado em História Social) Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade de Campinas, Campinas, 1998, p. 15. 25 Cabe observar que a historiadora discorre sobre esta questão em 1998, contudo, até os dias atuais,
muito já se produziu sobre a escravidão na Bahia, com relevo as obras de João José Reis (1996), Walter
Fraga Filho(2006), Maria de Fátima Novaes Pires (2009) e Isnara Pereira Ivo (2012), entre outros
autores.
23
pesquisadores das áreas de História e afins sintam-se motivados a preencher as lacunas
que, com certeza, deixamos ao longo da escrita.
Ao longo do texto serão apresentadas as mulheres do Tucum e os lugares que
ocupam junto à comunidade, como Maria do Carmo Oliveira Silva e Maria Rita
Oliveira, mãe e filha, que tiveram uma atuação relevante para o reconhecimento do
Tucum como comunidade quilombola e ainda que em número reduzido, brigam pelas
benfeitorias para o grupo e se angustiam com a omissão de mulheres e homens; D.
Edelvira Oliveira Silva, D. Mariazinha Santana e D. Anízia Novais, que representam a
geração mais antiga das moradoras do Tucum, são as guardiãs da memória local, as que
viveram, viram e ouviram contar fatos remotos da localidade; e temos também as irmãs
Maria Rosa da Silva e Lindaura Rosa Oliveira que trabalham com o barro e enfrentam o
fogo, a espera para que o barro esteja no ponto e os valores baixos que recebem por seu
trabalho. Os ofícios são lugares de angústias, mas também de sorrisos e de
enfrentamentos cotidianos.
No primeiro capítulo intitulado A comunidade quilombola do Tucum:
memória e identidade, apresentamos o histórico do povoamento da região onde está
localizado o Tucum, por meio da produção historiográfica sobre a Chapada Diamantina
e seu entorno. Abordamos como se deu o processo de autorreconhecimento como
quilombolas e as mudanças estruturais sofridas pelos moradores, no tocante à identidade
e à memória local. Neste capítulo utilizamos mapas para localizar espacialmente a
região onde está localizado o Tucum e compreender a distribuição das comunidades
quilombolas na Bahia. A discussão sobre a identidade quilombola é ampliada a partir da
vasta historiografia de quilombo por meio da qual podemos pensar as relações no
Tucum.
No segundo capítulo Trajetórias femininas no Tucum, abordamos os estudos
de gênero focados na mulher negra e o protagonismo nas mulheres em comunidades
quilombolas. Por meio de fotografias e relatos orais, mostramos as mulheres do Tucum
em suas lidas e lutas. Os relatos orais deram corpo ao texto e as falas dizem de tempos
idos, anseios e lutas que continuam no dia a dia dessas mulheres. Buscamos delimitar os
papéis assumidos pelas mulheres entrevistadas, junto à comunidade do Tucum. Por ser
o trabalho um indicador das questões de gênero na comunidade, visamos discutir, a
partir das fontes orais, as relações de trabalho entremeadas às questões de gênero,
observando as estratégias de sobrevivência, demarcação de espaços e lideranças
24
comunitárias. Por meio da memória das mulheres, buscamos a compreensão dos anseios
cotidianos, as afinidades e os modos de sociabilidade que se estabelecem nas relações
entre os membros da comunidade
No terceiro e último capítulo, ao qual chamamos A liderança feminina na
comunidade do Tucum: trabalho e cotidiano nos propomos a discutir os lugares onde
a liderança feminina se realiza no Tucum. Alguns desses lugares já foram citados nos
capítulos anteriores como a Associação da Comunidade Quilombola do Tucum, a
atuação junto à Igreja Católica, a fabricação de artefatos de barro e o trabalho na
lavoura. Nele, apresentaremos as demandas políticas e sociais que envolvem a atuação
das mulheres. Ao fazer uso da história oral como método, coletamos entrevistas de
homens e mulheres da comunidade entre os anos de 2012 e 2015 que, acrescidos a
outras fontes como as atas de reunião da Associação, documentos das igrejas do Tucum
e fotografias, nos possibilitaram escrever sobre a liderança feminina no Tucum e seus
lugares de atuação. Neste sentido, buscamos trazer os anseios e as resistências
cotidianas dessas mulheres, em sua realização individual e coletiva, enfocando a
importância do trabalho para a compreensão das relações de gênero na comunidade.
25
1- A COMUNIDADE QUILOMBOLA DO TUCUM: MEMÓRIA E
IDENTIDADE
Considero que a atividade historiadora tem maior proximidade com a
paciente e meticulosa atividade manual exercida por tecelões,
bordadeiras, rendeiras, tricoteiras, chuliadeiras. Atividades que têm
maior proximidade com o universo definido como feminino do que
com as atividades fabris identificadas como pertencentes ao universo
masculino. (Durval Muniz Albuquerque) 26
Ao longo do século XX, as reflexões sobre o ofício do historiador, seguiram o
curso das mudanças nas concepções historiográficas e geraram transformações na forma
de se conceber a história, seus objetos e metodologias. A análise histórica abriu espaço
às trajetórias e práticas cotidianas dos grupos humanos, com atenção ao estudo das
classes sociais, grupos étnicos, organizações políticas, comunidades tradicionais e
personagens excluídos da narrativa histórica, a exemplo das mulheres. Nesta nova
conjuntura, o historiador seria o “tecelão dos tempos”, aquele que articularia as
temporalidades, os acontecimentos e as narrativas, onde “o prosear, o contar, o narrar é
a arte que permite a tecelagem do passado”. 27
Debruçar-se sobre o tecido social e as memórias da comunidade quilombola do
Tucum, se assemelha a uma atividade manual como dito por Durval Muniz
Alburquerque na epigrafe inicial. Rebordar, verbo intransitivo, que segundo o
Dicionário Houaiss significa bordar demoradamente, é a tarefa a que nos propomos
neste primeiro capítulo ao tratar das memórias “rebordadas” de homens e mulheres do
Tucum.
Assim, numa tentativa de contornar as limitações da narrativa tradicional e
abarcar os diferentes pontos de vista, experiências e peculiaridades dos grupos sociais é
que o estudo das trajetórias do Tucum nos permitirá pensar a história em seu caráter
polifônico28, onde as muitas vozes possam deslizar pelo texto e nos apresentar o liame
da realidade social desta comunidade. Com esta intenção vamos refletir sobre o
povoamento da região onde se localiza o Tucum, as mudanças estruturais sofridas pela
26 ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. O Tecelão dos Tempos: o historiador como artesão das
temporalidades. Boletim tempo presente (UFRJ), v. 19, p. 01, 2009, p. 2. 27 ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009, p. 3. 28 BARROS, José D’Assunção. A expansão da história. Petrópolis/RJ: Vozes, 2013, p. 23.
26
comunidade no processo de seu reconhecimento como quilombola e o papel assumido
pelas mulheres a partir deste evento.
1.1 Memórias rebordadas: entrelaçamentos históricos e territoriais na região do
Tucum
O sertão está em toda a parte.
(Guimarães Rosa) 29
A comunidade quilombola do Tucum, por sua localização, tem sua trajetória
diretamente relacionada às entradas e trânsitos culturais pelos sertões nos séculos XVII
e XVIII. Neste período, as terras baianas estavam distribuídas em grandes morgados
pertencentes à Casa da Ponte, compostas pelos herdeiros dos sertanistas Guedes de
Brito e da Casa da Torre dos Gárcia D’ Ávila. Estas duas casas dividiam toda a extensão
do território baiano. 30 Neste período, a Bahia era povoada por um numeroso plantel de
escravos que transitavam entre as muitas ocupações, desde o trabalho nas minas,
lavouras e casas senhoriais, o que é visto na documentação da época e nas pesquisas
historiográficas sobre o período. 31
O município de Ituaçu, localizado a 25 km de Tanhaçu, entre os séculos XVIII e
XX era a sede do território do atual município de Tanhaçu. Até meados do século XX,
Tanhaçu era distrito de Ituaçu e sua emancipação política ocorreu em 22 de setembro de
1961. Assim, essa reflexão se dará a partir das fontes que tratam do Arraial do Brejo
Grande (atual Ituaçu), para que possamos compreender as dinâmicas de povoamento da
região. Os municípios de Tanhaçu e Ituaçu, considerando seus entrelaçamentos
territoriais, estiveram no curso dos trânsitos culturais e expedições exploratórias dos
sertões entre os séculos XVII e XVIII.
Interessa-nos saber que tais trânsitos favoreceram o povoamento da região onde
está localizado o Tucum. As entradas pelo sertão nas regiões que se estendiam do rio
São Francisco até a Chapada Diamantina, assim como as relações econômicas e a
escravidão, são lautamente discutidas pela historiografia baiana nas obras de Isnara
29 ROSA, João Guimarães. Grande sertão veredas. São Paulo: Editora Nova Aguilar, 1994, p. 4. 30 PIRES, Maria de Fátima Novaes. Fios da Vida: tráfico internacional e alforrias nos sertoins de Sima –
BA (1860-1920). São Paulo: Annablume, 2009. p. 15. 31 Discussão encontrada nas obras de Kátia Matosso, Bahia: a cidade de Salvador e seu mercado no
século XIX (1978), O crime na cor de Maria de Fátima Novaes Pires (2003) e Ouro. Conquistas,
tensões, poder - Mineração e escravidão - Bahia do século XVIII de Albertina Vasconcelos (1998).
27
Pereira Ivo, Mª de Fátima Novais Pires, Erivaldo Fagundes Neves, Cristina Dantas Pina
e Albertina Vasconcelos. 32 Tais obras reúnem os fios que ligam as questões econômicas
e sociais da capitania baiana entre os séculos XVIII e XIX, ainda que não tratem
especificamente da região na qual temos interesse. Aos poucos, em suas narrativas
históricas vão revelando os caminhos e as nuances do passado escravo da Chapada
Diamantina, região da qual fala Albertina Vasconcelos:
A região da atual da Chapada Diamantina já era conhecida e
percorrida desde meados do século XVII, com um processo inicial de
ocupação, através da doação de sesmarias e o concurso das investidas
bandeirantes. Via de regra paulistas, as bandeiras atenderam aos
pedidos de socorro de autoridades para exterminar mocambos de
escravos fugidos, submeter índios e rasgar definitivamente o sertão,
abrir caminhos em busca de ouro.33
Naquela ocasião, o sertão das lavras diamantinas era um atrativo não só por suas
riquezas minerais, mas também pelas possibilidades de criar gado e estabelecer
fazendas. Quando a categoria “sertão” surge no século XVIII, buscava-se distinguir das
regiões litorâneas, os lugares distantes e concebidos como incivilizados, pobres e
incultos.34 Cristina Pina observa que, a forma genérica como o sertão era pensado pelos
estudiosos do IHGB em meados do século XIX, influía na concepção de sociedade e no
determinismo que a paisagem geográfica assumia sobre os que ali moravam. A autora
ressalta que “quando se fala em sertanejos é preciso pensar no plural: o sertanejo da
Chapada era muito diferente dos sertanejos do restante da província”.35
Da mesma maneira eram também plurais os caminhos desse ‘sertão longo que
não tem portas’, tanto que em princípios do século XVIII, as viagens de exploração e
32 Respectivamente: IVO, Isnara Pereira. Homens de caminho: trânsitos, comércio e cores nos sertões da
América portuguesa - século XVIII. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2012. PIRES, Maria de Fátima
Novaes. O crime na cor: escravos e forros no Alto Sertão da Bahia (1830-1888). São Paulo:
Annablume/FAPESP, 2003. PIRES, Maria de Fátima Novaes. Fios da Vida: tráfico internacional e
alforrias nos sertoins de Sima – BA (1860-1920). São Paulo: Annablume, 2009. NEVES, Erivaldo
Fagundes. Posseiros, rendeiros e proprietários: estrutura fundiária e dinâmica agro-mercantil no Alto
Sertão da Bahia (1750-1850). 2003. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2003. PINA, Maria Cristina Dantas. Santa Isabel do Paraguassu: cidade,
garimpo e escravidão nas Lavras Diamantinas, século XIX. 2000. Dissertação (Mestrado em História) –
Universidade Estadual de Feira de Santana, 2000. VASCONCELOS, Albertina de Lima. Ouro:
conquistas, tensões, poder. Mineração e escravidão - Bahia do século XVIII.1998. Dissertação
(Mestrado em História Social) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Campinas,
Campinas, 1998. 33 VASCONCELOS, 1998, p. 16. 34 IVO, 2012, p. 32. 35 PINA, 2000, p.21.
28
reconhecimento dos sertões eram incentivadas pelas forças administrativas regionais: as
de reconhecimento tinham por finalidade localizar as rotas e picadas utilizadas para o
contrabando de ouro, assim como as condições de viagem e o trajeto; já as viagens de
exploração utilizavam-se de roteiros e mapas, sendo as favoritas de exploradores
oficiais e aventureiros. Isnara Pereira Ivo36 ao tratar dos “homens de caminho”, Pedro
Leolino Mariz, João Gonçalves da Costa e João da Silva Guimarães, constata que estes
foram os grandes desbravadores e financiadores nestas expedições exploratórias.
Pedro Leolino Mariz foi um notável sertanista da Bahia e Superintendente das
Minas Novas do Fanado do Araçuaí. Desbravador dos sertões, aos quais chamava de
“Babilônia confusa” devido às imprecisões de suas fronteiras, foi também foreiro dos
Guedes de Brito, pertencente a sua rede clientelar que se estendia do norte de Minas ao
Piauí, como descrito por István Jancsó.37 Foi sob a recomendação de Pedro Leolino
Mariz que, em fins de 1725, o coronel André da Rocha Pinto, a mando do Vice-rei
chefiou uma expedição de “entrada por todo sertão de Rio de Contas contra o gentio
Tupinambá”. 38 Nos relatos da trajetória da região consta que, em meados de 1720,
André da Rocha Pinto chegava ao território do atual município de Tanhaçu. Naquele
período essas bandeiras tinham um papel militar, exploratório e objetivos bem
definidos:
Pedro Leolino Mariz, Superintendente das Minas, formou uma
bandeira, entregando a direção a André da Rocha Pinto, em 25 de
junho de 1727, ao qual conferiu um ‘Regimento’ de caráter
extremamente militar. O objetivo da bandeira era explícito naquele
regimento: conquistar o sertão entre os rios de Contas, Pardo e São
Mateus, encontrar metais preciosos, estabelecer fazendas de gado,
matar índios que se opusessem à conquista, estabelecer aldeias e
destruir quilombos que fossem encontrados. 39
Seu feito é descrito por João da Silva Campos com
‘lances invulgares de audácia e culminou numa grande vitória; pois a
essa Bandeira deveu o Brasil a descoberta de minas impor’ tantas que
custaram a tão 'Ousado sertanista provas heroicas de lutador.’
36 IVO. 2012. 37 JANCSÓ, István. Brasil: formação do estado e da nação. São Paulo: Editora Hucitec, 2003, p. 331. 38 CAMPOS, João Silva. Crônica da capitania de São Jorge dos Ilhéus. Rio de Janeiro: Conselho
Federal de Cultura do Ministério da Cultura, 1981, p. 135. 39 MEDEIROS, R. H. de A. Notas críticas a obras de Tranquilino Torres. In: TORRES, Tranquilino. O
Município da Vitória. Vitória da Conquista: Museu Regional de Vitória da Conquista/UESB, 1996, p.
5.
29
Consegue ele, depois de uma marcha dificultosa pelas matas onde o
gentio selvagem mantinha domínio, descobria as minas do Rio Pardo,
em seguida ‘prossegue em direção ao Rio das Contas onde novos
tesouros auríferos’ lhe sorriem á audácia".40
O coronel André da Rocha Pinto nos interessa por seu papel nas entradas do
sertão e sua importância para o surgimento do Arraial do Brejo Grande, atual Ituaçu.
Fontes apontam que ele foi capitão-mor da Vila do Rio de Contas, sertanista de
destaque nas conquistas do sertão da Bahia e também um grande sesmeiro.41 Para a
conquista efetiva das terras, ocorreram conflitos e desacordos, especialmente com
Antônio Guedes de Brito, mestre de campo e grande latifundiário que, no final do
século XVII, possuía terras que se estendiam da Chapada Diamantina à Serra Geral da
Bahia, seguindo o curso da margem direita do Rio São Francisco. Antônio Guedes de
Brito registrou um protesto contra o coronel André da Rocha Pinto e seus pares
Marcelino Coelho Bittencourt (capitão-mor) e o coronel Damaso Coelho de Pina,
conforme descrito por Capistrano de Abreu42,
Em 1690, transposto enfim o alto Paraguaçu, estavam em guerra com
os índios do alto rio das Contas o capitão-mor Marcelino Coelho
Bittencourt, seu filho coronel Dâmaso Coelho e André da Rocha
Pinto, seu genro. Saiu-lhes com protestos o mestre de campo Antônio
Guedes de Brito. 43
Capistrano de Abreu relata que foi realizado um acerto em agosto de 1684
quando o mestre de campo “abriu mão de metade das terras entre os rios Paraguaçu, São
Francisco, das Velhas, Doce, Pardo e de Contas”.44 No entanto, Erivaldo Fagundes
Neves observa que, ainda que este acerto tenha ocorrido, “o mestre de campo readquiriu
essas terras porque permaneceram em seu domínio e se transferiram hereditariamente
com seus bens”.45
Erivaldo Fagundes Neves, em sua tese de doutorado Posseiros, rendeiros e
proprietários: estrutura fundiária e dinâmica agro-mercantil no Alto Sertão da Bahia
(1750-1850), realiza um extenso trabalho de pesquisa no qual mapeia, por meio de
40 CAMPOS, 1981, p. 135-136. 41 Assim descrito em IVO, Isnara Pereira. 2012, p. 47. 42 A 1ª edição de “Caminhos antigos e povoamento do Brasil” foi originalmente publicada em 1899. 43 ABREU, J. Capistrano. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: Editora da USP, 1988, p. 62. 44 Ibid., p. 62. 45 NEVES, 2003, p. 148.
30
fontes documentais dos séculos XVII ao XIX, as terras de Antônio Guedes de Brito que,
mais tarde, seriam legadas por herança ao 6º Conde da Ponte, João Saldanha Mello
Torres Guedes de Brito. É uma das pesquisas mais completas até então realizada sobre
as terras dos Guedes de Brito.
Ao analisar os inventários das terras dos Guedes de Brito, constatamos que o
Arraial de Brejo Grande não fazia parte das terras invadidas pelo Coronel André da
Rocha Pinto e seus pares ou então as mesmas deveriam constar no inventário de
Antônio Guedes de Brito, o que não ocorre. Nele não há registro sobre as terras das
fazendas do Arraial de Brejo Grande e sim, uma única referência sobre a Fazenda
Baraúnas, no distrito de Suçuarana que hoje compõe o município de Tanhaçu:
Baraúnas – Fazenda no atual distrito de Suçuarana, em Tanhaçu, com
meia légua de comprimento e duas léguas de largura, na beira de rio,
declarada no registro de terras da freguesia de Santo Antônio da Barra,
em 1858, por: Antônio Freire da Fonseca (em comum, compras de
Manoel Teodoro), Benedito Bonifácio da Silva (compra de José
Joaquim dos Santos Mendes), Faustino da Rocha (compra de José
Mendes), Joaquim Manoel (em comum, compra de Manoel do
Bomfim), José Pires de Oliveira (em comum, compra de Francisco
José Rodrigues), José Vicente dos Santos, (em comum, compra de
José Joaquim dos Santos Mendes), Manoel Teodoro da Silva (em
comum, compra de Antônio José Teixeira), Maria Bernardina da
Rocha (em comum, herança do pai Antônio da Rocha Pinto).46
A freguesia de Santo Antônio da Barra, hoje Condeúba, emancipou-se da Caetité
em 1860.47 A documentação analisada por Erivaldo Fagundes Neves trata
especificamente das terras da Fazenda Baraúnas (atual Suçuarana). As terras da Fazenda
Baraúnas passam a compor o distrito de Suçuarana, que no século XX figura como
pertencente ao município de Tanhaçu, do qual dista 9 Km. Outro ponto a ser observado
nesta documentação é a assinatura dos compradores Faustino da Rocha e Maria
Bernardina da Rocha, no qual podemos cogitar um possível parentesco com o coronel
André da Rocha Pinto. São questões que carecem de aprofundamento.
Ao mapear a produção historiográfica sobre o período, que compreende o final
do século XVII e início do XVIII, podemos averiguar que ao coronel André da Rocha
Pinto foi conferida primazia da penetração inicial na região dos rios de Contas e Pardo,
onde hoje existem numerosos municípios entre as regiões Sudoeste e a Serra Geral da
46 NEVES, 2003, p. 282. 47 Ibid., p. 21.
31
Bahia. Consta que o coronel André da Rocha Pinto contribuiu para o contrabando e
escoamento do ouro baiano, o que, segundo Isnara Pereira Ivo48, eram as práticas dele e
de outros coronéis e sertanistas do período. Em contrapartida, é inegável que André da
Rocha Pinto teve um papel importante na abertura de caminhos para o sertão, na
expulsão de indígenas e no estabelecimento de fazendas e da pecuária às margens dos
rios de Contas e Paraguaçu. Após a sua morte em 1732 num ataque de Botocudos na
Serra dos Aimorés49, nas narrativas sobre a trajetória da região, constam que seu filho
Sebastião da Rocha Pinto erigiu as primeiras casas que originaram o Arraial de Brejo
Grande (atual Ituaçu)50, mas nada se encontra escrito sobre este período nos arquivos
das cidades de Rio de Contas e Salvador. Não podemos perder de vista que, ao falarmos
da trajetória do Arraial de Brejo Grande (Ituaçu), abarcamos a história do território onde
se localiza a comunidade quilombola do Tucum.
Uma questão é suscitada a partir das leituras e fontes: mesmo sendo recorrente
entre os autores51 que tratam do período referir-se à dizimação de quilombos, não são
encontradas fontes escritas que atestem a presença desses ou outros ajuntamentos de
negros na região do Arraial do Brejo Grande, questão que é de suma importância para
esta pesquisa. Existiram, efetivamente, quilombos ou mocambos na região? De onde
vieram os escravos que fundaram a comunidade do Tucum? São reflexões necessárias
para a compreensão das trajetórias do Tucum.
Whashington Nascimento,52 ao falar das disputas de terra em Ituaçu em finais do
século XIX, observa que fazendas com os nomes “Mocambo” e “Quilombo” são
encontradas nos registros de terras da região. Neste período, o número de escravos na
região era significativo, o que se pode perceber com base na documentação de um censo
solicitado pelas autoridades imperiais em 1870 e utilizado por Kátia Mattoso em Bahia:
a cidade de Salvador e seu mercado no século XIX. 53 Nele vê-se que o Arraial do Brejo
48 IVO, 2012, p. 48-49. 49 Localizada no município de Mucuri, na Bahia, há 785 km de Salvador. 50 Informações retiradas do site da Prefeitura de Tanhaçu e um texto com o mesmo teor encontra-se na
Biblioteca Municipal de Tanhaçu, para a consulta. <http://tanhacu.ba.gov.br/historia.html> acessado em
07 agos.2014. 51 Já citados anteriormente: IVO, Isnara Pereira. Homens de caminho: trânsitos, comércio e cores nos
sertões da América portuguesa - século XVIII; MEDEIROS, R. H. de A. Notas críticas a obras de
Tranquilino Torres. In: TORRES, Tranquilino. O Município da Vitória. 1996, p. 63-163. 52 NASCIMENTO, Washington Santos. Terra, poder e fé: A sacralização dos conflitos agrários em torno
da Gruta da Mangabeira – Ituaçu/BA (1880-1910). In: IV Encontro Estadual de História – ANPUH-
BA – Vitória da Conquista – BA, 2008. 53 MATTOSO, Kátia. Bahia: a cidade do Salvador e seu mercado no século XIX. São Paulo, Editora
Hucitec, 1978, p. 124-125.
32
Grande possuía 1638 escravos que representavam 20% da população, superando outras
regiões como Lençóis e Caetité.54 O Quadro a seguir foi sistematizado por Washington
Nascimento a partir dos dados de Kátia Mattoso:
Figura 1 – Quadro com a população escrava no Arraial do Brejo Grande em 1870
Fonte: NASCIMENTO, Washington Santos. Famílias escravas, libertos e a dinâmica da
escravidão no sertão Baiano (1876-1888). Afro-Ásia, 35 (2007), p. 146.
Sobre a população escrava no sertão, Erivaldo Fagundes Neves55 observa que
ainda que os planteis não fossem grandes, a presença escrava era considerável. No
sertão, a atividade agrícola e a mineração requeriam a força do trabalho escravo e estes
não se concentravam em um único lugar, mas estavam distribuídos por muitas fazendas.
Ronaldo Senna divide a Chapada Diamantina em duas zonas: a agrícola e a das lavras.
Para o autor, isso “diferia das regiões que a cercavam por uma determinada
exclusividade: a cultura das pedras preciosas, basicamente o diamante”.56 A dinâmica
econômica da Chapada Diamantina deu margem à ‘criação de uma permeabilidade de
54 Não pode ser desconsiderado o fato de que neste período muitos escravos foram vendidos para as
plantações de café no oeste paulista, o que talvez explique este esvaziamento nas outras cidades. 55 NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja, da sesmaria ao minifúndio: um estudo de
História regional e local, Salvador, Edufba, 1998. 56 SENNA, Ronaldo & AGUIAR, Itamar. Jarê: instalação africana na Chapada Diamantina. Afro-Ásia.
(13):75-85, Salvador, 1980, p. 75.
33
afluências sociais e influências culturais’ que faz com que esta região tenha
peculiaridades que as distinguem das demais nas esferas econômicas, sociais e
cotidianas. Fátima Pires, em sua obra O crime na cor, nota a partir da leitura de relatos
de viajantes e memorialistas que, no século XVIII, a Chapada Diamantina passava por
um intenso crescimento demográfico em virtude da mineração, um ponto reiterado pela
autora com base numa citação de Paulo Azevedo:
A mineração de ouro na Chapada Diamantina serviu para desenvolver
outras regiões limítrofes como o Vale do São Francisco e a Serra
Geral que com seus criatórios de gado e lavouras de subsistência
abasteciam os centros mineiros. A Serra Geral já estava ocupada,
desde meados do século XVII, pelos currais do Antônio Guedes de
Brito, fundador da Casa da Ponte, mas a criação extensiva de gado não
propiciou o aparecimento de aglomerados urbanos importantes. Este
fato só se concretizou com o fluxo e refluxo de garimpeiros que se
iniciou no século XVIII, entre a Chapada Diamantina e as lavras de
Minas Gerais, em decorrência da descoberta do ouro baiano.57
Havia localidades da Chapada Diamantina que se encontravam num entorno
favorável à agricultura e à mineração, como é o caso do Arraial do Brejo Grande. Por
ocasião de seu povoamento no século XVIII, a região do Arraial do Brejo Grande
possuía muitas fazendas de criação de gado, sendo elas: Ribeirão, Riachão, Palmeiras,
Angico, Bicudo e Laços. As fazendas eram também produtoras de gêneros agrícolas
para o abastecimento regional, que cresceu a partir de 1780 por conta da mineração nas
cidades de Rio de Contas, Jacobina e Lençóis.58 O cronista Durval Vieira de Aguiar, em
sua passagem por Brejo Grande em 1888, descreve a vila do Brejo Grande nos seguintes
termos:
Reina em toda parte a maior fertilidade para toda a espécie de lavoura
limitada presentemente aos cereais, algum café, algodão, cana, fumo e
muito arroz com que abastece os termos vizinhos; sendo de esperar
pela bondade do terreno, que essa lavoura rapidamente prospere,
especialmente a do algodão. 59
57 AZEVEDO, Paulo O. D. (Coord) Monumentos e sítios da Serra Geral e Chapada Diamantina.
Inventário de proteção do acervo cultural. Salvador-BA: Ipac, Secretaria da indústria e comércio, 1980,
p.16 apud PIRES. 2003, p. 37-38. 58 IBGE. Em: http://biblioteca.ibge.gov.br/d_detalhes.php?id=31326 acessada em 11/08/2014. 59 AGUIAR, Durval Vieira de. Província da Bahia. 2. Ed. (1. Ed. 1888). Rio de Janeiro: Cátedra;
Brasília: INL,1979, p. 159.
34
Durval Vieira de Aguiar60 também observou que a região tinha sua economia
voltada para a produção de gado e possuía muitas fazendas destinadas a este fim, o que
demandava um contingente de escravos para o trabalho. O crescimento econômico da
Chapada Diamantina estava relacionado à mineração e à pecuária, requerendo um
grande número de escravos para atender a esta demanda, distribuídos entre as
propriedades de pequeno e médio porte encontradas no sertão. Nesse período existiam
três rotas de comércio do sertão baiano que eram de suma importância para o
abastecimento da região: a rota do Litoral, a da Chapada Diamantina e do Vale do São
Francisco. Com base na escrita de Fátima Pires, deduzimos que o Arraial do Brejo
Grande provavelmente era atendido e fornecia produtos pela segunda via, movimentada
pela “exploração de diamantes na Chapada, nas primeiras décadas do século XIX,
especialmente em Lençóis, gerou necessidade de abastecimento dessa região, fazendo
crescer a produção policultora do alto sertão”. 61
De acordo com Durval Vieira de Aguiar, o Arraial do Brejo Grande ou Vila
Agrícola de Nossa Senhora do Alívio do Brejo Grande, foi criado por Decreto
Provincial nº 882 em 10 de abril de 1862, em terrenos desmembrados da antiga
freguesia do Sincorá (atual município de Contendas do Sincorá).62 As terras daquele
entorno pertenciam ao município de Santa Isabel do Paraguassu (atual Mucugê), ao qual
a Vila Agrícola de Nossa Senhora do Alívio do Brejo Grande (como passou a ser
chamada) pertenceu até 1867, quando se emancipou.
Em 26 de agosto de 1897, pela Lei Estadual nº 216, o nome de Vila Agrícola de
Nossa Senhora do Alívio do Brejo Grande é alterado, e passa a se chamar Ituassu. Até
1944 manteve-se a grafia de Ituassu, quando então pelo Decreto-lei Estadual nº 141, de
31/12/1943, retificado pelo Decreto Estadual nº 12.978 de 01/06/1944 o município
assumiu a denominação de Ituaçu. Ainda com o nome de Ituassu, o município pode ser
visto no Mapa 1, datado de 1916, que mostra as cidades de Caetité, Rio de Contas e seu
entorno.
60 AGUIAR, 1979, p. 161. 61 PIRES, 2003, p. 39-40. 62 AGUIAR, Op. Cit., p. 159.
35
Mapa 1- Mapa da região de Caetité e Rio de Contas, com destaque para cidade “Ituassu”.
Fonte: PIRES. 2009, p. 110. Esboços de Mapas do Sertão de “Caitité”, do Padre Luiz Gonzaga
Dialler, 1916.
Pelos decretos e leis estaduais e municipais, é possível notar o momento em que
os territórios da cidade de Tanhaçu aparecem na história do município de Ituaçu.
Inicialmente, em divisões territoriais datadas de 31 de julho de 1936, figura o distrito de
São Sebastião, que por Decreto Estadual nº 11.089, de 30 de novembro de 1935, altera
o nome do distrito para Laços, sobre esse distrito a história local diz que: “Em 1935 pela
Lei Estadual nº 9.321, o povoado de Laços torna-se distrito do Município de Ituaçu e lá
aconteciam feiras, missas, etc”.63 Neste mesmo ano o povoado de Arraial dos porcos
também passa a ser distrito de Laços, e tem seu nome modificado para Tanhaçu, nome
de genealogia tupi-guarani que significa ‘porco grande’. Posteriormente, devido ao seu
63 Informações retiradas do site da Prefeitura de Tanhaçu, para a consulta.
<http://tanhacu.ba.gov.br/historia.html> acessado em 07/08/2014.
36
desenvolvimento econômico, a Lei Estadual nº 628, de 30 de dezembro de 1953
transfere a sede distrital de Laços para Tanhaçu. Pela Lei Estadual nº 1.493, Tanhaçu foi
emancipado em 22 de setembro de 1961. Com a emancipação, o município manteve a
sede (Tanhaçu) e os distritos de Suçuarana e Laços, território que mantém até os dias
atuais. Atualmente o município está localizado na microrregião da Chapada Diamantina.
64 Os municípios de Ituaçu e Tanhaçu constam no Mapa 2, onde indicamos o
comunidade quilombola do Tucum.
Mapa 2: Mapa geográfico da Chapada Diamantina.
Fonte: PINA, Zenilda. Encontro com a Villa Bella das Palmeiras. Salvador: Secretária de
Cultura e Turismo, 2005, p. 33.
Na década de 1940, com a chegada da linha férrea a Tanhaçu, o distrito ganhou
relativa importância e registrou um crescimento populacional e econômico, passando a
ser um entreposto de pessoas e mercadorias para a cidade de Ituaçu, da qual ainda era
distrito. A chegada da linha férrea a Ituaçu já era um projeto desde o final do século
XIX, como descrito por Durval Vieira de Aguiar, “logo que a Estrada de Ferro Central,
64 Segundo informações retiradas de: BAHIA. Centro de Planejamento da Bahia. Informações básicas dos
municípios baianos: por microrregiões homogêneas. v. 2. Salvador: SEPLANTEC/CEPLAB, 1978.
TUCUM
37
segundo se projeta, chegue até a vila, em cujas imediações existem também algumas
engenhocas de açúcar, raspadura e aguardente”.65 Por questões de localização
geográfica a ferrovia não passava por Ituaçu. A Linha Sul da Ferrovia Leste Brasileiro
foi inaugurada em 1942 e ligava as cidades de Cachoeira e São Félix ao povoado de
Ourives (entre Tanhaçu e Brumado). Na rota de movimentos e conexões de pessoas, o
distrito de Tanhaçu desenvolveu-se e em 1945 pode realizar sua primeira feira, o que
favoreceu ainda mais a movimentação econômica da região e a sua posterior
emancipação. A figura 2 mostra uma foto da época com a estação de trem de Tanhaçu,
que existe nesta configuração arquitetônica até os dias atuais.
Figura 2 – Estação de Trem de Tanhaçu.
Foto de autoria desconhecida. (s.d) Fonte: Site da Prefeitura de Tanhaçu.66
A partir das fontes, relatos e produções historiográficas sobre a Chapada
Diamantina, foi possível perceber o processo de povoamento da região de Brejo Grande
(atual Ituaçu) e seu entorno, onde hoje está o município de Tanhaçu. A partir de então,
podemos refletir sobre a trajetória da comunidade quilombola do Tucum.
Na “Declaração de Auto-reconhecimento”, datada de 09 de junho de 2006
consta que “a comunidade foi fundada em 24 de junho de 1800 por Cândido Pinto,
Rafael Lino da Silva e Alexandre Novais, que vieram se refugiar na localidade devido o
65 AGUIAR, 1979, p. 159, grifos do autor. 66 Foto retirada do site da Prefeitura de Tanhaçu e encontra-se na Biblioteca Municipal de Tanhaçu, para a
consulta. <http://tanhacu.ba.gov.br/historia.html> acessado em 07/08/2014.
38
seu difícil acesso”.67 A utilização do termo ‘refúgio’ dá margem a se pensar que eram
escravos fugidos, possivelmente do distrito de Brejo Grande ou das cidades
circunvizinhas. A que senhores pertenciam, não se pode saber pois não foram
encontradas as fontes, ou mesmo devido a possibilidade de terem mudado os seus
nomes, algo muito comum neste período. Seus descendentes herdaram suas assinaturas
que se repetem entre os quilombolas do Tucum, muitos aparentados entre si. A figura 3
mostra a entrada do Tucum, com um acesso relativamente fácil nos dias atuais.
Figura 3 – Estrada que liga o município de Tanhaçu à comunidade quilombola do Tucum.
Fonte: Foto de Karla Dias de Lima. 04/08/2012.
Não podemos perder de vista que a “Declaração de Auto-reconhecimento” se
trata de um documento oficial redigido para a Fundação Cultural Palmares (FCP), logo,
as questões políticas emergem do texto, assim como as possíveis intencionalidades ao
redigi-lo. A declaração foi elaborada com base em relatos orais dos dez moradores mais
velhos da comunidade, os nomes foram listados seguidos das idades que possuíam em 67 Informações retiradas da ‘Declaração de Auto-reconhecimento - Comunidade remanescente de
quilombo ‘do Tucum, datada de 09/06/2006.
39
2006, ano em que foi escrita a declaração: Maria Francisca de Oliveira Silva, 82 anos,
Isabel Rosa de Jesus, 86 anos, Benedito da Silva Neto, 76 anos, Diunilia Virgilina de
Jesus Silva, 72 anos, Maria Jesus Santos, 98 anos, Jácio Francisco dos Santos, 66 anos,
Diomário Francisco de Oliveira, 79 anos, Maria Vitalina de Jesus, 88 anos, Edelvira
Oliveira Silva, 76 anos e Maria Anízia Novais, 86 anos. Muitos desses já vieram a
falecer sem que fosse possível entrevistá-los.
Na declaração, as tradições culturais da comunidade são apresentadas de forma a
reforçar a ideia de uma herança ancestral africana: “Atualmente, alguns moradores
conservam as tradições da cultura africana como: alimentação típica, culto aos deuses
africanos, danças típicas, candomblé, como forma de preservar a herança cultural de
seus antepassados”.68 Esses valores, conforme Hebe Matos, “são os aspectos simbólicos
da memória familiar da escravidão que mais se destacam nas narrativas, elaboradas e
reelaboradas em função de relações tecidas no tempo presente, como em todo trabalho
de produção de memória coletiva”.69
Outro traço da cultura ancestral do Tucum que é reforçado na memória coletiva
dos habitantes locais é a produção de artefatos de barro: “Tem como principal produção
artesanal o fabrico de utensílios de barro (panelas, potes, moringas, caqueiros, entre
outros)”.70 A fabricação do barro é uma das tradições mais antigas da comunidade, por
meio da qual algumas famílias garantiam o seu sustento. Esses traços da cultura local
também contribuíram “como ferramenta de luta para a titulação de suas terras”.71
O reconhecimento das comunidades quilombolas na atualidade gerou entraves
conceituais que nortearam e ainda inflamam os debates entre historiadores e
antropólogos em torno desses grupos, mesmo porque “a identificação coletiva é sempre
um processo em construção e só pode ser entendida levando em conta contextos
históricos e políticos.”72 Ao considerar o viés histórico e político da trajetória do Tucum,
à frente discutiremos sobre o processo de reconhecimento, ressaltando a importância da
68 Informações retiradas da ‘Declaração de Auto-reconhecimento - Comunidade remanescente de
quilombo ‘do Tucum, datada de 09/06/2006. 69 MATTOS, Hebe. “Remanescentes das Comunidades dos Quilombos”: memória do cativeiro e políticas
de reparação no Brasil. Revista USP, n. 68. dez. jan. fev. 2005 e 2006, p. 104-111. 70 ‘Declaração de Auto-reconhecimento - Comunidade remanescente de quilombo’ do Tucum, datada de
09/06/2006. 71 SANTOS, Daniely Monteiro. “Mas é preciso ter força, é preciso ter raça”: História e memória de
Maria Rosalina no movimento quilombola do Piauí [1985-2013]. Dissertação (Mestrado em História do
Brasil). UFPI, Teresina, 2013, p. 64. 72 MATTOS, Hebe. Op. Cit. p. 111.
40
presença feminina neste processo e as questões identitárias que emergiram após o
reconhecimento.
1.2 O processo de reconhecimento quilombola no Tucum
Não é possível falar deles sem adjetivá-los. Seja por meio da
fórmula legal que lança mão de “remanescentes”, ou das
tentativas de ajuste desta, por meio de “contemporâneos”. (José
Maurício Arruti)73
Nos últimos anos, desde o seu reconhecimento como comunidade quilombola,
os moradores do Tucum vivenciaram mudanças estruturais na sua forma de ver o
mundo e a localidade onde moram. Conceitos, como os de quilombo e quilombola ainda
são parcialmente desconhecidos para maioria dos moradores e, mesmo com o seu
reconhecimento, ainda se mostra como uma questão complexa e de difícil compreensão.
Os estranhamentos a essas mudanças podem ser explicados em razão de tais processos
emergirem dos movimentos sociais para depois serem incorporados no interior das
comunidades. O alcance destas políticas representou uma ressemantização do conceito
de quilombo, que em sua polissemia pode abarcar múltiplas experiências rurais e
urbanas. A auto identificação do negro é ainda um desafio como observa Hebe Mattos
Como no século XIX, dizer-se negro ainda é basicamente assumir a
memória da escravização inscrita na pele de milhões de brasileiros.
Esta é a base que empresta consistência histórica à discussão sobre
políticas de ação afirmativa no Brasil com base na auto-identificação
como negro.74
A Constituição Federal de 1988 deu destaque às comunidades negras rurais que
durante décadas estiveram invisíveis, ao trazê-las à cena política com o Art. 68 do
ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias): “Aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Na ocasião,
figuras da política nacional em prol da população negra, como a deputada Benedita da
73 ARRUTI, José Maurício. Quilombos. In: Raça: Perspectivas Antropológicas. [org. Osmundo Pinho].
ABA / Ed. Unicamp / EDUFBA, 2008, p. 1. 74 MATTOS, 2005 e 2006, p. 111.
41
Silva e o deputado Carlos Alberto Caó, se articulavam para a regularização das terras
quilombolas e discutiam a proposta de lei enviada para a constituinte. Adelmir Fiabani
atenta que não há registro de emenda popular referente à questão das terras quilombolas
e nas audiências e na Subcomissão do negro o tema não foi abordado, nem mesmo pelos
Deputados Benedita da Silva e Carlos Alberto.75 Naquele contexto, havia um ensejo em
mostrar a situação do negro no Brasil e a necessidade de medidas compensatórias. A
implementação do artigo teve um caráter improvisado que, como registrado por José
Maurício Arruti:
Depois de ter sido aprovado sem maiores discussões como uma das
disposições constitucionais transitórias, não tanto pelo seu valor
intrínseco, mas como mais um item no pacote das festividades pelo
centenário da abolição da escravatura, o “Artigo 68” ficou sem
qualquer proposta de regulamentação até 1995, quando (então
associado às festividades pela memória de Zumbi de Palmares) ganha
importância e passa a ser alvo de debates e reflexões em âmbito
nacional.76
O ADCT trouxe à cena a luta política e reivindicações da população negra rural
e, a partir de seu texto, surgiram muitos adjetivos para abarcar estes grupos: quilombos
contemporâneos, terras de pretos e comunidades rurais negras. A variedade de
nomenclaturas advém das muitas interpretações do ADCT e podem ser encontradas nos
documentos oficiais que tratam dos territórios quilombolas da atualidade, além da forma
de incorporação dos termos por parte dos agentes que convivem com essas realidades e
a apropriação e construção de uma identidade que é exógena a estes grupos. Como
observa Salete da Dalt77, as dificuldades em conceder os direitos aos remanescentes se
acentuavam devido a heterogeneidade desses grupos e principalmente por não existirem
nestas comunidades registros e fosseis antropológicos que comprovassem sua
descendência. Mesmo porque, como aponta Eliane Cantarino O’Dwyer:
O termo quilombo não se refere a resíduos ou resquícios
arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica.
Também não se trata de grupos isolados ou de uma população
75 FIABANI, 2008, p. 134-136. 76 ARRUTI, José Maurício. A emergência dos “remanescentes”: notas para o diálogo entre indígenas e
quilombolas. MANA 3(2):7-38, 1997, p. 7. 77 DALT, Salete da. BRANDÃO, André Augusto. Comunidades quilombolas e processos de formação de
identidades no Brasil contemporâneo. Revista Univap, São José dos Campos-SP, v. 17, n. 29, ago.2011.
p. 41-61.
42
estritamente homogênea. Da mesma forma nem sempre foram
constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados mas,
sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas
cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos
de vida característicos e na consolidação de um território próprio.78
Os grupos envolvidos na luta pela implementação do Art. 68, a exemplo do
Movimento Negro Unificado (MNU), consideraram o termo “remanescente” pejorativo,
por desmerecer o processo histórico que marcou essas comunidades. Maristela Andrade
acredita que a noção de quilombo envolve um “aparato simbólico” das relações raciais
no Brasil, no entanto, “fala-se em negro e não em preto. Fala-se em comunidade, que é
também o conceito utilizado pelos legisladores no Artigo 68. Sem esquecer que os
legisladores falam em remanescentes das comunidades e não em comunidades de
remanescentes”.79 A apropriação e ressignificação do texto constitucional, por parte dos
órgãos governamentais, aproximam-se do que Pierre Bordieu80 poderia classificar como
estratégia de condescendência em que o dominador se apropria da linguagem do
dominado. Não perdemos de vista que, quer seja por seu caráter polissêmico ou pelas
questões políticas e normativas que os norteiam, os quilombos são uma categoria em
disputa, por reconhecer
(...) que, entre a enorme variedade de formações sociais coletivas
contemporâneas, que derivaram direta ou indiretamente das
contradições internas ou mesmo da dissolução da ordem escravista e o
termo “quilombo” há uma construção conceitual: o “significado
contemporâneo de Quilombo”. O que está em disputa, portanto, não é
a existência destas formações sociais, nem mesmo das suas justas
demandas, mas a maior ou menor largueza pela qual o conceito as
abarcará, ou excluirá completamente. Está em jogo o quanto de
realidade social o conceito será capaz de fazer reconhecer. 81
Além disso, a própria compreensão do conceito de quilombo aplicado a estes
grupos étnicos é potencialmente problemática, e isso é notório nas falas dos agentes
externos e dos moradores das comunidades, por não existir uma noção de quilombo que
abarque todas as realidades. Nesse entrave conceitual e nas dificuldades de diálogo
78 O´DWYER, Elaine Cantarino. Terras de Quilombo. Rio de Janeiro: Associação Brasileira de
Antropologia, 1995, p.1. 79 ANDRADE, Maristela de Paula. De pretos, negros, quilombos e quilombolas – Notas sobre a ação
oficial junto a grupos classificados como remanescentes de quilombos. Boletim Rede Amazônia. Ano
2. nº 1, 2003, p. 41. 80 BORDIEU apud ANDRADE, 2003, p. 41. 81 ARRUTI, 2008, p. 1-2.
43
entre historiadores, antropólogos e outros sujeitos que estudam estes grupos, emerge a
necessidade de ressemantizar o quilombo e esse processo não é um processo recente. Ao
longo do século XX, o conceito de quilombo sofreu modificações conceituais operadas
tanto no campo acadêmico quanto no campo do movimento social.82
Essas ressemantizações ganharam força dentro do movimento negro nas décadas
de 1970 e 1980 e abrangeram organismos políticos e religiosos, a exemplo da Igreja
Católica, que passaram a repensar suas posturas, ‘até então refratárias para com as
questões raciais’. Neste mesmo período, despontavam os primeiros estudos
antropológicos das comunidades quilombolas e a categoria “quilombo” começava a ser
associada aos agrupamentos negros rurais, ainda que de forma polêmica, pois estes
estudos buscavam uma ligação com os quilombos históricos e reforçavam a percepção
de que os valores africanos é que alicerçavam estes ajuntamentos.83
Na contramão dos estudos antropológicos da década de 1980, os pesquisadores
de quilombos da década de 1990 procuravam um novo significado para o quilombo
histórico que abarcasse as muitas experiências que não fosse apenas a de escravo
fugido, de fato muito restritiva. Entre as muitas ressignificações propostas por
historiadores e antropólogos, buscava-se considerar a resistência cultural do quilombo,
especialmente a vinculação com um passado ancestral por meio da oralidade,
considerando comunidades sob este viés, “em 1994, a Fundação Cultural Palmares
promoveu o seminário “Conceito de quilombo” e, a partir do evento, a entidade passou
a utilizar a palavra “quilombos contemporâneos” para referir-se às comunidades negras
não originadas de escravos fugidos”. 84 Como aponta Salete da Dalt independentemente
da forma como foi construída a comunidade, “(...) o importante era a existência de uma
continuada reprodução material e cultural. É nessa direção, portanto, que a legislação
passa a ressemantizar o termo “remanescentes das comunidades dos quilombos”.85 Os
termos quilombos modernos ou contemporâneos passam a ser os mais utilizados para
abarcar esses grupos.
O conceito contemporâneo de quilombo efetivamente deu tradução
legal a uma demanda coletiva pela pluralização dos direitos,
sustentado na observação da diversidade histórica, étnica e cultural da
82 ARRUTI, 2008, p. 4. 83 Ibid., p. 7. 84 FIABANI, 2008, p. 40. 85 DALT, 2011, p. 43.
44
população compreendida pelos limites territoriais do Estado
brasileiro.[...]uma definição descritiva, de caráter normativo,
composta por itens como: ruralidade, forma camponesa, terra de uso
comum, apossamento secular, adequação a critérios ecológicos de
preservação dos recursos, presença de conflitos e antagonismos
vividos pelo grupo e, finalmente, mas não exclusivamente, uma
mobilização política definida em termos de autoafirmação quilombola. 86
O decreto 4.887/0387 abriu possibilidades para se pensar os quilombos
contemporâneos a partir de critérios de auto definição identitária. O Art. 3º do decreto
4.887/03 diz que “a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos
será atestada mediante auto definição da própria comunidade”. A auto afirmação passou
a ter grande importância na identificação destas comunidades e “é nesse ponto que a
reconsideração da experiência dos atores sociais adquire toda sua significação”88,
cabendo aos moradores dessas localidades, a partir de agenciamentos simbólicos de
diversas naturezas, se auto definirem como remanescentes de quilombolas. Perceber os
interesses políticos e sociais envolvidos nessas definições é salutar para a escolha das
categorias de entendimento a serem utilizadas ao pesquisá-las.
A necessidade de organismos políticos que gerissem os processos de
reconhecimento das comunidades quilombolas cresceu quando se constatou quão
abrangentes eram estes grupos. Então, em 22 de agosto de 1988, foi criada a Fundação
Cultural Palmares (FCP). Como órgão que atualmente regula o reconhecimento das
comunidades quilombolas, a FCP é considerada a primeira entidade pública direcionada
“à promoção e preservação da arte e cultura afro-brasileira”.89 Segundo José Arruti, no
ano de 2000, durante o Governo de Fernando Henrique Cardoso, foi emitida uma
Medida Provisória que colocava a FCP como principal executora dos processos de
reconhecimento e titulação dos territórios quilombolas. Essa medida não solucionava
duas questões importantes: “(...) a inexistência de qualquer mecanismo de indenização
das propriedades particulares incidentes nos territórios demarcados como quilombolas e
a falta de previsão do registro cartorial do título emitido, o que o tornava um diploma
86 FIABANI, 2008, p. 26-27. 87 BRASIL. DECRETO Nº 4.887, DE 20 DE NOVEMBRO DE 2003. 88 REVEL, Jacques. (Org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro, FGV, 1998,
p. 12. 89 Retirado do site da Fundação Cultural Palmares. <http://www.palmares.gov.br/?page_id=95> acessado
em 18/08/2014.
45
sem qualquer eficácia”.90 A regularização destas questões só se daria com a entrada do
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), em 2005.
Sobre as atuações da FCP e do INCRA no processo de titulação das terras,
Girolamo Treccani observa que “no começo houve um período de muita confusão e
discordância sobre qual desses dois órgãos deveria cuidar do assunto. Na prática, os
dois conduziram processos de titulação, cada um de um jeito diferente”.91 O autor
sinaliza que, apesar da Fundação Cultural Palmares ter criado o primeiro instrumento
normativo (Portaria n° 25 da FCP em 15 de agosto de 1995) que estabeleceu as normas
de identificação, foi o INCRA que efetivamente começou o processo de titulação de
terras92. Posteriormente, a criação do Programa Brasil Quilombola, que deu suporte
financeiro para a manutenção destas comunidades, assim como outras entidades
direcionadas a atender estas demandas, a exemplo da Secretaria Especial de Promoção
da Igualdade Racial (SEPPIR), do Programa de Promoção da Igualdade de Gênero,
Raça e Etnia (PPIGRE) e do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).93
A FCP já emitiu quase três mil certificações para comunidades quilombolas em
todo o Brasil. Segundo dados de junho de 2015 encontrados no site da FCP, a Bahia
lidera o ranking nacional com 638 comunidades quilombolas certificadas entre os anos
de 2004 e 2015. Esse volume de comunidades ocorre possivelmente devido a
concentração da população negra na região, em especial no período da escravidão e pós-
abolição. Um fator que colabora para essa reflexão são os números de escravos
traficados para o Brasil e para Bahia entre os séculos XVI e XIX. Segundo Luiz Viana
Filho94 vieram para a Bahia mais de um milhão de almas que contabilizam quase 25%
do tráfico nacional, a verdade é não existe consenso entre os pesquisadores, visto que
não existem dados fechados que atestem esses números. No entanto, a numerosa
população escrava nos parece ser uma possível justificativa para a Bahia ter tantas
comunidades quilombolas na atualidade. Abaixo o mapa 3 mostra os territórios
quilombolas da Bahia.
90 ARRUTI, 2008, p. 21. 91 TRECCANI, Girolamo D. Terras de Quilombo: caminhos e entraves do processo de titulação. Belém:
Programa Raízes, 2006, p. 125. 92 Ibid., p. 126. 93 ARRUTI, Op. Cit., p.23. 94 VIANA FILHO, Luís. O negro na Bahia. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. [1.ed. 1946].
46
Mapa 3- Comunidades e territórios quilombolas auto identificados na Bahia.
Fonte: Coletivo LEMTO/UFF (Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e
Territorialidades).95
No mapa 3 podemos observar que o Centro-sul, a mesorregião96 da Bahia onde
se encontra o Tucum, possui mais de 169 comunidades quilombolas, sendo que existem
municípios que possuem de 17 a 29 comunidades quilombolas em seu território.
Conforme já explanado no primeiro item deste capítulo, esta região compreende a
Chapada Diamantina e o Alto Sertão Baiano, regiões de intenso fluxo de escravos entre
os séculos XVIII e XIX devido à agricultura, pecuária e a mineração em Rio de Contas
e Lençóis. Também estão destacadas neste perímetro as cidades de Caetité e Vitória da
95Mapa encontrado na página do Facebook
<https://www.facebook.com/photo.php?fbid=387842191272877&set=a.387841287939634.87136.1000
01412995895&type=3&theater> acessado no dia 15/02/ 2014. 96 Sobre a definição de mesorregião, o IBGE diz: “A Divisão Regional do Brasil em mesorregiões,
partindo de determinações mais amplas a nível conjuntural, buscou identificar áreas individualizadas em
cada uma das Unidades Federadas, tomadas como universo de análise e definiu as mesorregiões com
base nas seguintes dimensões: o processo social como determinante, o quadro natural como
condicionante e a rede de comunicação e de lugares como elemento da articulação espacial.” Disponível
em: <http://www.ibge.gov.br/home/geociencias/geografia/default_div_int.shtm?c=1> acessado em
20/10/2014.
47
Conquista que no século XIX eram centros de distribuição de gêneros alimentícios e por
onde transitavam muitos viajantes. Nestas duas cidades, pode-se observar na atualidade
que a população negra é expressiva97, ainda que esteja escondida nos bairros
periféricos98 e há, em ambas as cidades, um número considerável de comunidades
quilombolas tituladas, reconhecidas e identificadas. Situada neste trecho, o Tucum foi a
primeira comunidade quilombola a ser reconhecida no município de Tanhaçu,
recentemente em 2013 a comunidade de Pastinho, distante do Tucum 18 Km, também
foi reconhecida, e no município de Barra da Estiva, a 50 Km do Tucum, existem outras
duas comunidades quilombolas: Camulengo e Moitinha. A figura 4 apresenta um quadro
elaborado pela Fundação Palmares que colabora para a compreensão dos dados
observados no mapa 3.
97 De acordo com dados do IBGE, referentes ao ano de 2012, Vitória da Conquista possui 315.884
habitantes, dos quais 31.082 é negra e 174.436 se declaram como pardos. Em Caetité, os dados do censo
de 2010 registraram o número de 47.515 habitantes (não foram encontrados os registros de negros e
pardos). 98 Sobre a invisibilidade da presença negra na cidade da Vitória da Conquista, o pesquisador Alberto Silva
observa: “Embora 205.518 habitantes tenham se declarado de cor preta ou parda, ou seja, enquadrando-
se no critério do IBGE para identificar a população “negra”, representando (65,06%) do total, as
representações simbólicas que poderiam evidenciar esta população parecem esconder-se. Por diversos
padrões como os itinerários do transporte coletivo que convergem das periferias para o centro,
oferecendo poucas ligações entre si, de modo que o morador de uma dada periferia possa ter mais
contato com regiões centrais da cidade como av. Lauro de Freitas, Régis Pacheco, Av. Siqueira campos,
Av. Brumado, etc. do que com as inúmeras outras periferias onde, até 2010, a concentração de negros e
mestiços foi maior.” SILVA, 2015, p. 123-124.
48
Figura 4 – Quadro geral de comunidades remanescentes de Quilombos
(CRQs).
Fonte: Site da Fundação Palmares. 25/10/2013. (Com uma marcação nossa para o ano
de 2006).
Observando a figura 4, percebemos que em 2006, ano em que o Tucum foi
reconhecido, registrou-se o maior número de certificações para comunidades
quilombolas em todo Brasil, totalizando 404. Somente na Bahia foram 113
certificações. O que determinou o aumento no número das certificações neste ano? A
partir de 2004, as comunidades puderam emitir uma declaração de ser remanescente de
quilombo, sem necessitar de laudo antropológico. Para Girolamo Treccani “o incessante
crescimento desse número se deve também à postura surpreendentemente ativa dessas
comunidades negras rurais, que se descobrem carregadas de uma força nova na luta pela
reconquista ou manutenção de territórios de uso tradicional”.99
Entendemos que por sua trajetória, suas relações sociais, culturais e de trabalho,
o Tucum possui características das comunidades negras rurais encontradas em todo
99 TRECCANI, 2006, p. 157.
49
Brasil, muitas já reconhecidas ou identificadas como quilombos contemporâneos. O
processo de reconhecimento do Tucum foi iniciado no ano de 2005, quando uma das
líderes locais, Maria do Carmo Oliveira Silva, em um encontro na Diocese do município
de Livramento de Nossa Senhora, entrou em contato com as comunidades quilombolas
de Rio de Contas e foi estimulada a coletar as histórias que há muito circulavam no
Tucum.
Olha, um determinado tempo a gente, eu comecei a participar de
outros grupos, por sinal lá em Livramento de Nossa Senhora, aí a
gente começamos a conversar sobre comunidades quilombolas e aqui
a gente também sentiu o desejo de criar essa comunidade. Por que?
Porque os primeiros moradores que a gente já sabia que tinha passado
por aqui eles vieram de origem africana e por sinal um foi o meu
bisavô. [...] eu chamei os meninos lá de Rio de Contas e eles vieram
pra comunidade fizeram uma reunião.100
Na ocasião, atuaram como articuladores um senhor chamado Carmo de Oliveira
Silva, presidente da Associação da comunidade quilombola de Barra no município de
Rio de Contas101, e agentes da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Carmo, representando
as comunidades de Rio de Contas e o padre da Diocese de Livramento, representando a
CPT, estiveram no Tucum entre os anos de 2005 e 2007 e falaram da importância do
reconhecimento e da luta pelos direitos dos quilombolas. Sobre estes contatos Carmo
diz o seguinte:
Os primeiros contatos foi na Diocese (de Livramento de Nossa
Senhora), nos encontros diocesanos, na Assembleia Diocesana e aí
depois como o trabalho que a gente começou a fazer da CPT, aí
chegou um padre novo aí, recém formado, ordenado, aí ele era daqui
da região, e aí eu comecei, nós começamos a fazer um trabalho nas
comunidades de quilombo que era Tucum e Ginetes em Barra da
Estiva e Camulengo e Moitinha era as três que a gente fazia.102
A CPT, entidade ligada à Igreja Católica, surgiu no contexto posterior ao
Concílio Vaticano II na década de 1970. Na Bahia, desde o seu surgimento estiveram
em contato direto com comunidades camponesas que enfrentavam inumeráveis desafios
100 Entrevista realizada pela autora com Maria do Carmo Oliveira Silva no dia 04/08/12, no Tucum. 101 O município fica localizado na Chapada Diamantina, há 565 Km de Salvador, as comunidade de Barra
fica há 16 Km da sede do município. 102 Entrevista realizada pela autora com Carmo Oliveira Silva, presidente da Associação da Comunidade
Quilombola de Barra, na comunidade de Barra em Rio de Contas/BA, no dia 02/04/2015.
50
para manter a posse da terra. De acordo com o site da entidade, a CPT “presta um
serviço educativo e transformador junto aos povos da terra e das águas, para estimular e
reforçar seu protagonismo. A CPT reafirma seu caráter pastoral e retoma, com novo
vigor, o trabalho de base junto aos povos da terra e das águas”.103 Entre os objetivos da
CPT estão: “o acompanhamento de processos coletivos, de conquista dos direitos e da
terra”, a formação integral e permanente, o combate às injustiças e a luta pela terra. “A
CPT Bahia, através de estudo da realidade, encontros e avaliações, está fazendo o
possível para ser uma resposta adequada e eficaz aos novos desafios. Entre eles
destacamos o protagonismo das comunidades tradicionais (Indígenas, Quilombolas,
Fundo de pasto, etc.).”104
E foi a partir desta entidade e de Carmo, liderança quilombola de Barra, que o
estímulo a pensar sua ancestralidade chegou aos moradores do Tucum. Carmo conta que
a partir dos encontros da Diocese, eles visitaram todas as comunidades quilombolas
reconhecidas na Chapada Diamantina. Era uma ação conjunta que, segundo Carmo,
“enquanto eu falava de quilombo, ele falava do trabalho da CPT”.105 As comunidades
de Barra e Bananal enfrentaram e ainda enfrentam muitos desafios para a manutenção
das terras onde moram, cuja disputa principal existe desde a década de 1980, quando o
Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS) iniciou a construção da
barragem de Rio de Contas e alagou terras pertencentes aos quilombolas da região. O
viés de embate político é notório na postura e nas falas de Carmo e, em seus contatos
com outras comunidades quilombolas ele buscava passar suas experiências de luta:
O que eu fazia era assim, eles eram meio inexperiente e eu passava a
experiência que a gente tinha aqui, como foi a nossa luta, que a gente
não tinha noção de comunidade quilombola né? Depois de 88 é que a
coisa, porque quilombo no Brasil nasceu a partir de 88. O primeiro
quilombo foi Palmares, mas ficou só em Palmares e Zumbi morreu, no
mais se falava em comunidade negra ou gueto de negro, aqui era
conhecido como comunidade de preto ou gueto de negro, aqui era
conhecido assim.106
103 CPT – BAHIA. Missão CPT. (S.d) Disponível em: http://cptba.org.br/cptba_v2/a-cpt-bahia/missao-
cpt/ acessado no dia 23/04/2015. 104 CPT Bahia. Disponível em: http://cptba.org.br/cptba_v2/a-cpt-bahia/ acessado no dia 23/04/2015. 105 Entrevista com Carmo Oliveira Silva, na comunidade de Barra em Rio de Contas/BA, no dia
02/04/2015. 106 Entrevista com Carmo Oliveira Silva, na comunidade de Barra em Rio de Contas/BA, no dia
02/04/2015.
51
Estimulada pelos contatos da Diocese de Livramento e da CPT, Maria do
Carmo, junto com sua filha Rita e outra moradora chamada Eliane Santana, começam a
coletar os relatos dos moradores mais velhos. A presença feminina neste momento foi
fundamental, mas a iniciativa teve o apoio do prefeito de Tanhaçu da época, Eduardo
Silva Santana, e de uma assistente social do município, que os moradores identificam
como Janicleia.107 Maria do Carmo e suas companheiras conversaram com os senhores
e senhoras de mais idade e anotavam as principais lembranças da comunidade, a
assistente social também enviou questionários através dos quais fizeram um
mapeamento do histórico e do povoamento da região:
Eu chamei Lic (Eliane) e Rita e nós, eles iam falando e nós anotava.
Andava, a gente pesquisava, depois veio essa moça de nome Janicleia
que era uma assistente social, ela ofereceu pra nos ajudar, e aí ela até
mandou uns questionários para gente responder. A gente respondia a
quantidade de mulheres, de crianças, na faixa etária de tal idade,
inclusive a gente mandava para ela e ela devolvia também alguma
coisa pra gente. 108
Os relatos eram manuscritos e falavam de um tempo que “ouviram dizer” por
parte de seus avós e bisavós, que contavam sobre os primeiros moradores daquela
região. A assistente social Janicleia organizou os relatos, entrevistou os senhores e com
base nos manuscritos, entrevistas e questionários, foi redigida a Declaração de
autorreconhecimento, que quando foi enviada a FCP estava datada de 09/06/2006. “Ela
veio até aqui, na casa dos idosos com ela e lá os que sabiam escrever bem, o que não
souberam. É que ela entrevistou também os idosos. E aquele pessoal que não sabia
assinar botaram o dedo (digital).” 109 Só três assinaram, seis colocaram a digital e no
local da assinatura de Maria de Jesus Santos (avó materna de Maria do Carmo) consta
que “não foi possível assinar”, devido a sua avançada idade, na época tinha 98 anos,
preferiram não coletar a digital.
Após a redação e a coleta de assinaturas, a Declaração foi enviada à Fundação
Cultural Palmares em junho de 2006 e neste mesmo ano, em 13 de dezembro, o Tucum
foi reconhecido como quilombola. Na ocasião, a notícia foi comemorada na cidade de
Tanhaçu com fogos de artifício e foi colocada uma nota curta no site da prefeitura
107 Os moradores desconhecem a sua assinatura e não foi possível encontrá-la nos documentos em
Tanhaçu, onde não mais trabalha. 108 Entrevista com Maria do Carmo Oliveira Silva, no Tucum, em 24/08/2014. 109 Entrevista com Maria do Carmo Oliveira Silva, no Tucum, em 24/08/2014.
52
noticiando o reconhecimento: “Foi publicado no Diário Oficial do dia 13 de dezembro
de 2006, a certidão de registro de reconhecimento da comunidade Quilombola do
Tucum, que foi cedida pela Fundação Cultural Palmares, através da Secretaria de Ação
Social do Município de Tanhaçu”.110 Mais à frente as relações entre a Prefeitura e a
comunidade se tornaram conflituosas.
Sobre essas relações conflituosas nos falou o ex-presidente da Associação das
Comunidades Quilombolas do Tucum, Carlito Augusto Oliveira. Carlito saiu do Tucum
com 18 anos para morar em São Paulo e retornou em 2006, no ano do reconhecimento.
Devido a isso, Carlito não participou do processo de reconhecimento da comunidade e
pouco sabe das histórias do lugar, apesar de sua família ser parente dos fundadores.
Sobre a trajetória de sua família conta: “Minha família é do Tucum, minha avó era
cabocla, meu avô, marido dela era português, o pai do meu pai é descendente de
africano. Então eu sou africano, português e indígena”.111 As heranças indígenas são
recorrentes nas falas dos moradores, e o Tucum apesar de ser uma comunidade de
maioria negra, tem um percentual de pessoas brancas não nascidas na região e traços de
mestiçagem indígenas e africanos notórios nas fisionomias dos moradores. Abaixo
Carlito aparece na figura 5.
110 PORTAL DA PREFEITURA MUNICIPAL DE TANHAÇU. Comunidade quilombola do Tucum
recebe certidão. 08/02/2008. Fonte: ASCOM. Disponível em: http://www.tanhacu.ba.io.org.br/galeria/66899/Comunidade-Quilombola-do-Tucum-recebe Acessado em
20/08/2014. 111 Entrevista realizada pela autora com Carlito Augusto Oliveira, ex-presidente da Associação da
Comunidade do Tucum, em Tanhaçu no dia 30/05/2015.
.
53
Figura 5 – Carlito Augusto Oliveira em sua casa em Tanhaçu.
Foto de Karla Dias de Lima – 30/05/2015.
Desde o seu retorno, Carlito se envolveu na política local e passou a sofrer
perseguições, em especial porque na época a prefeitura retinha a documentação da
Associação do Tucum. Pessoas que têm visão além dos moradores da comunidade,
assustam os mandatários do poder. Os embates entre a prefeitura e a associação
começaram imediatamente após o reconhecimento da comunidade.
Tenho problema porque as documentação antigamente elas era dentro
da prefeitura, como eu consegui tirar todos os documentos, que
inclusive o certificado é segunda via, porque a primeira via sumiu lá
prefeitura, o livro de ata sumiu pra lá, então por causa disso aí eu tive
muito problema com eles. Só que eu não me arrependo não porque eu
tô fazendo uma coisa que é certa cê entendeu? Tô fazendo uma coisa
que é certa. Mas antigamente as documentação da comunidade, quem
resolvia as coisas era a prefeitura.112
As lideranças afirmam que as primeiras atas e a certidão de reconhecimento
foram perdidas pelos agentes da prefeitura que as detinham. Muitas tensões vieram a
112 Entrevista com Carlito Augusto Oliveira, Tanhaçu, 30/05/2015.
54
ocorrer em decorrência disso. Um desses episódios ocorreu na 1ª Convenção
Quilombola da Chapada Diamantina em Rio de Contas entre os dias 27 e 30 de
setembro de 2007. Nesse evento, organizado pela CPT e a Diocese de Livramento de
Nossa Senhora, estavam presentes comunidades quilombolas de 31 municípios da
Chapada Diamantina. Segundo os relatos das lideranças do Tucum, a esposa do então
prefeito de Tanhaçu Eduardo Santana, esteve presente no evento na intenção de
representar o Tucum e se indispôs com a organização do evento que questionava o fato
da prefeitura reter a certidão de reconhecimento da comunidade do Tucum. Carmo, da
comunidade de Barra em Rio Contas, estava na organização do evento e relata o
ocorrido:
Aí nós fizemos encontro e todos vieram, aí nós discutiu essa questão
do documento que tem que ficar com as comunidade, até que a
primeira-dama Tanhaçu veio e até discutiu com o padre, que é esse
padre que eu tô falando, perguntou quem era o padre que tava dando
opinião, achando que porque é do poder público que pode mandar nos
quilombos, nos quilombos ninguém manda. O poder público é pra
apoiar, apoiar e ser amigo e fazer o que deve ser feito, repassar o que é
do quilombo, que pra isso eles recebe um apoio pra aplicar nos
quilombos. 113
Maria do Carmo havia comparecido no evento como representante do Tucum e
criou-se uma situação tensa entre os organizadores do evento por conta da presença das
representações políticas de Tanhaçu. Carlito, que também estava presente, relata que:
o prefeito nessa época era Eduardo Santana, que inclusive ele teve até
em Rio de Contas, porque eu tive participando de uma reunião lá de
três dias encontro, e a primeira-dama foi, falou umas coisa lá que não
era verdade, ela dizendo que era representante né? Que a representante
era Maria do Carmo.114
Com o agravamento desses embates políticos, o diálogo entre prefeitura e
associação diminuiu muito durante o ano de 2008, o que trouxe algumas dificuldades
para a comunidade nas demandas que dependiam do poder público, em especial na
saúde e educação. Os conflitos entre grupos políticos locais e os quilombos não são
incomuns e a violência é maior quando há interesse nas terras dos quilombos. Em 2009,
113 Entrevista com Carmo Oliveira, Comunidade Quilombola de Barra, 02/04/2015. 114 Entrevista com Carlito Augusto Oliveira, em Tanhaçu, 30/05/2015.
55
com a entrada de um novo prefeito, as lideranças do Tucum voltaram a dialogar com a
prefeitura. Foi solicitada nova via da certidão a Fundação Cultural Palmares, esta é
datada de 21 de outubro de 2010.
O processo de autorreconhecimento da comunidade do Tucum iniciou-se dos
contatos com agentes externos e na atuação das lideranças locais. Dessa maneira, a
iniciativa da líder comunitária Maria do Carmo em conjunto com outros grupos como a
CPT e a Prefeitura Municipal de Tanhaçu foi importante para o processo de
reconhecimento do Tucum. É interessante que pensemos nas motivações que levaram
Maria do Carmo a este lugar, já que os moradores do Tucum, na ocasião, não sofriam
com conflitos pela terra e assim se mantém até a atualidade. Quais foram os
motivadores para a busca do reconhecimento? É notório que as demandas que levaram
ao reconhecimento no Tucum não são semelhantes às das comunidades do médio São
Francisco, que sofrem pressões de fazendeiros e lutam constantemente por manter seus
territórios No Tucum, o convencimento dos moradores da fundou-se na valorização das
práticas locais que já se mantinham no grupo há muito tempo, fazendo com que muitas
dessas memórias se ressinificassem e passassem a ser pensadas pelos moradores a partir
de uma vinculação com um passado escravo. Ainda assim, essa percepção não foi
apreendida por todos os moradores, mesmo após anos de reconhecimento.
Eric Hobsbawn observa que muitos grupos e instituições precisaram inventar
tradições que legitimassem o seu passado histórico, “tornaram necessária a invenção de
uma continuidade histórica, por exemplo, através da criação de um passado antigo que
extrapole a continuidade histórica real seja pela lenda ou pela invenção”.115 Assim,
novos símbolos são criados e se integram às velhas tradições como se fossem tão
antigos quanto. O estudo das tradições inventadas, de um modo amplo, relaciona-se ao
estudo da sociedade como um todo e dela não pode ser desvinculado. “O estudo destas
tradições esclarece bastante as relações humanas com o passado e, por conseguinte o
próprio assunto e oficio do historiador. Isso porque toda tradição inventada, na medida
do possível, utiliza a história como legitimadora das ações e como cimento da coesão
grupal.”116 Estas tradições inventadas, muitas vezes tornam-se o próprio símbolo do
conflito, o que talvez se aplique às comunidades remanescentes de quilombos, se
115 HOBSBAWM, Eric. RANGER, Terence (Orgs.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1984, p. 15. 116 HOBSBAWM. 1984, p. 21.
56
pensarmos nas demandas atuais que representam e o passado histórico que utilizam para
se legitimar.
Nas entrevistas com os moradores do Tucum, o estranhamento acerca do “ser
quilombola” é notório. Em especial, quando se fala de uma ‘criação’ da comunidade
quilombola, notadamente podemos entender que a noção de quilombo é externalizada
possivelmente a partir de uma tradição inventada. São tradições que fazem parte da
existência do grupo e legitimam a sua atual condição. No entanto, se respaldam na
memória coletiva, no cotidiano e nas práticas que possuíam mesmo antes do processo
de reconhecimento para dar suporte à construção de uma identidade quilombola. Sobre
essa identidade, Daniele Moreno diz:
(...) na perspectiva de mudança social, ou seja, uma comunidade
camponesa, através de suas práticas sociais, assume uma identidade
quilombola e a partir disso mobiliza-se na busca de garantir seu
território, nessa assunção de identidade vários imaginários são
ativados, tanto para explicar suas origens como para legitimar o
discurso quilombola. Nesta perspectiva o mito e a memória coletiva
são centrais para se perceber a importância e o lugar dos imaginários
numa comunidade quilombola.117
Nesse sentido, a identidade quilombola consolida-se através da relação entre o
imaginário e a cultura, “dos mitos, crenças, símbolos, modos de viver de uma
coletividade”118, sem que esse imaginário represente uma inverdade e sim um
pensamento mítico por meio do qual os símbolos, a realidade e a racionalidade se
realizam. Torna-se também um lugar de lutas e enfrentamentos quando um grupo
precisa legitimar seu lugar dentro da sociedade, como é o caso das comunidades
quilombolas.
Michael Pollak119 identifica três elementos essenciais para a construção da
identidade: o físico, o coletivo e a coerência. Neste processo, o indivíduo percebe-se e
tem o sentimento de possuir fronteiras físicas, a exemplo do próprio corpo; sente-se
pertencente a determinado grupo e, por fim, unifica esses diferentes elementos. O autor
117 MORENO, Daniele Cristine Gadelha. A identidade da comunidade quilombola Sítio Veiga no
contexto pós-colonial. Disponível em:
http://actacientifica.servicioit.cl/biblioteca/gt/GT6/GT6_GadelhaMoreno.pdf acessado em 20/03/2015,
p. 2. 118 Ibid., p. 3. 119 POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos históricos, nº 10, Teoria e História. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas 1992, p. 205.
57
afirma que “a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade”.120
Essa construção de uma memória identitária é muito forte entre as lideranças do Tucum
e pode ser apreendida nas falas de Maria Rita Oliveira Silva, de 38 anos121, atual
presidente da Associação da Comunidade quilombola do Tucum, com gestão iniciada
em janeiro de 2014. Ao falar do período em que buscaram as histórias dos mais velhos,
Rita acrescenta informações importantes que nos permitem desvelar as memórias
coletivas que afloraram neste processo.
Aí tem um senhor que chama Zé Pinto, ele é daqui da comunidade né?
Só que a família dele veio da Europa, só que eles vieram e são tudo de
família de branco mesmo, brancos de olhos azuis mesmo entendeu?
(...) Aí a gente perguntou, mãe fez entrevista com ele e ele disse assim
que o meu bisavô122 daqui por parte da minha mãe ele chamava
Cândido, mas Cândido e tinha só o Cândido, aí quando foi morar com
eles lá, cuidar das lavouras, saiu da escravidão, mas continuou
trabalhando ali, eles botou ele dentro de casa como se fosse um filho,
aí colocou ficou o sobrenome Cândido Oliveira Pinto, aí o Pinto é o
sobrenome deles. 123
A autorização para utilização do sobrenome do senhor era prática comum no
século XIX entre senhores e ex-escravos. Conforme nota Stuart Schwartz124, alguns
senhores chegavam mesmo a incentivar que seus ex-escravos adotassem seus
sobrenomes, como uma forma de manutenção de poder. A explicação de Rita para a
procedência do sobrenome de Cândido Pinto evoca a esse tempo em que os escravos
assumiam o sobrenome de seus senhores e protetores. Sobre essas relações e práticas,
Cacilda Machado assevera que:
Ainda que tal prática possa ser interpretada como signo de submissão
e dependência (e talvez ela fosse assim entendida apenas pela classe
senhorial), para aqueles forros e livres de cor, um sobrenome
senhorial, ou a ligação com um “homem bom” poderia, talvez,
funcionar como signo de consideração social.125
120 POLLAK, 1992, p. 205. 121 Em 2014, por ocasião da entrevista. 122 A afirmação parte da oralidade, não encontrando comprovações em fontes documentais. 123 Entrevista realizada pela autora com Maria Rita Oliveira Silva, Presidente da Associação da
Comunidade Quilombola do Tucum, no Tucum, em 24/08/2014. 124 SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial. São Paulo, Cia
das Letras, 1988, p. 327. 125 MACHADO, Cacilda. Casamento & Compadrio: Estudo sobre relações sociais entre livres, libertos e
escravos na passagem do século XVIII para o XIX (São José dos Pinhais - PR). In: Anais do XIV
58
A narrativa de Rita deixa antever que a família Pinto, que teria ascendência
europeia, tem prestígio na cidade de Tanhaçu até os dias atuais, o que poderia motivar
Cândido Pinto a adotar seu sobrenome. Mas, a que famílias pertenceram os escravos
Cândido Pinto, Rafael Lino da Silva e Alexandre Novais? Seria a assinatura Pinto
originária dos descendentes de André da Rocha Pinto, desbravador da região? São
questões sem resposta nas memórias dos moradores do Tucum e que, por requererem
um aprofundamento nas fontes, constituem um objeto interessante para a continuidade
nas pesquisas da trajetória desta comunidade. A família do senhor Zé Pinto reside em
Tanhaçu, mas morou no Tucum durante alguns anos e esse senhor pode se familiarizar
com os relatos dos moradores antigos. O Tucum, apesar de possuir pessoas em sua
maioria negras, tem também moradores de cor branca que lá residem há um tempo
considerável. Os negros são em grande parte parentes e as assinaturas dos primeiros
fundadores: Silva, Pinto e Novais se repetem ao longo das gerações. Sobre esses laços
geracionais Maria do Carmo diz o seguinte: [...] “Essa terra, elas foram mesmo de
moradores que foram passando de pais para filho. Tem algumas terra que os moradores
já foram escravos e as outras a gente não passou a sabe”.126 D. Anízia, uma das
matriarcas locais, já falecida, retoma o mito fundador da comunidade: [..] “As primeira
pessoa? Que nem o finado Cândido Pinto, ele num era índio, num era Carminha? Ele
era escravo. O finado Rafael também era como ele”.127 Essa senhora nos deu uma pista
do falecimento de Cândido Pinto, que pelo seu relato foi morto pela Coluna Prestes, a
quem a maioria dos moradores se refere como “A revolta” ou “revoltosos”:
Um tio nosso morreu no Boquerão, que é o Boquerão falado da
revorta que matou, eles já tinha medo do finado, que os povo tinha
medo de uns a outro num é? Eles foi, e foi esconder lá com medo da
revorta, chegou lá ele pediu para mostrar uns cavalo, daí ele ficou com
cisma, que lá os povo tinha medo de outro né? Só não falaram do
finado Cândido, do finado Cândido eles tinha medo, escondeu lá e
num quis falar com a revorta, eles fala, fala, fala e aí foi eles matô o
finado Cândido Pinto, o finado Candim, ele chamava Candim, matou
porque num falô dos cavalo que tinha.128
Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambú-MG – Brasil, de
24/09/2004, p.15. 126 Entrevista com Maria do Carmo Oliveira, entrevistada pela autora, no Tucum, no dia 04/08/2012. 127 Entrevista realizada pela autora com Maria Anízia Novais, no Tucum, no dia 04/08/2012. 128 Entrevista com Anízia Novais, no Tucum, no dia 04/08/2012.
59
As falas sobre “a revolta” são recorrentes entre os mais idosos, inclusive
servindo de marco para saberem quando aconteceu algo ou nasceu alguém, se antes ou
depois da passagem dos “revoltosos”. A partir dessas e outras falas, percebemos as
memórias que perduram e os laços que ligam os moradores do Tucum àquele território.
No entanto, até o nosso último contato com a comunidade, em maio de 2015, as
terras ainda não tinham sido tituladas. Como alguns proprietários já possuem o registro
e a escritura de suas terras e os moradores não sofrem pressões e lutas para mantê-las, o
maior desafio da comunidade na atualidade é a aceitação de uma titulação coletiva do
território do Tucum. Em novembro de 2012, representantes do INCRA estiveram em
Tanhaçu e não houve consenso entre os moradores consultados sobre a titulação da
comunidade. Maria do Carmo acredita que faltou compreensão por parte dos moradores:
Assim, porque o pessoal da comunidade não entenderam que as terras
tinha que ser pra o bem comum de todos sabe? Que as terra é assim,
cada um deles consegue seus pedaço de terra e aí eles não entenderam,
eles ficaram de voltar. (...) O Incra conversou bastante, prometeu de
voltar uma outra vez, mas teve gente que já tinha feito antes, muito
antes a declaração das terras, tem uns que já receberam até a
escritura.129
Neste aspecto, o Tucum se diferencia da maioria das comunidades quilombolas
que lutam contra o processo lento e burocrático de titulação de suas terras junto ao
INCRA. Como eles já possuem escritura e não sofrem pressões de fazendeiros e
grileiros, não há uma urgência por parte dos moradores em titulá-las. A questão se
adensa porque alguns não entendem e nem desejam uma posse coletiva. Carlito Augusto
Oliveira era então presidente da Associação no período que os representantes do
INCRA vieram à comunidade e fala dos desafios
Pesquisadora- Desde o processo de reconhecimento de 2005 para cá,
vocês têm sofrido alguma dificuldade com relação a titulação da terra?
Carlito - Eu inclusive trouxe até o INCRA de Salvador aí pra eles
passar a titulação, fizemos uma reunião com o pessoal lá, mas o
pessoal não aceitaram muito né? Aí eles mandaram que eles pensasse,
pra eles poder voltar.
Pesquisadora- Mas por que eles não aceitaram?
Carlito - É porque alguns tem assim um hectare de terra, dois hectare,
tem o INCRA e eles acha que aquilo aí é o documento, então eles acha
129 Entrevista com Maria do Carmo Oliveira, no Tucum, no dia 04/08/2012.
60
que aquela terra ali, que nem o rapaz do INCRA já explicou pra eles:
“Olha vocês tão saindo bem porque a ferrovia não passou aqui dentro,
se passasse aqui vcs perdia tudo, vocês não tinha direito a nada. Então
era bom que vocês fizesse o reconhecimento”. Mas teve...uns quer e
outros não aceitaram não. Então eles mandaram que pensasse para
eles pudê voltar aí. Mas eu cheguei trazer eles aí.130
Em 2011, um polo de obras da Ferrovia Oeste-Leste foi montado no município
de Tanhaçu. Como a ferrovia não se aproxima das terras do Tucum, não representa uma
ameaça de desapropriação para os seus moradores. Essa reunião aconteceu em 2012 e
até o nosso último contato com a comunidade em 2015 o INCRA não havia retornado
ao Tucum e os moradores continuavam resistentes à titulação coletiva. A atual
presidente da Associação, Maria Rita Oliveira, acredita que será necessária uma nova
reunião e um processo mais lento de conscientização, para que eles possam entender o
que representa a titulação, ‘que é a luta das comunidades quilombolas’. Girolamo
Treccani, chama atenção para as dificuldades que os grupos quilombolas sofrem para
conseguir a titulação:
A demora nos trabalhos de identificação e demais procedimentos
técnicos a serem utilizados, a excessiva burocratização destes
procedimentos, mostra que ainda falta um plano governamental de
ação com objetivos claros, que permitam traçar metas de médio e
longo prazos, um plano que detenha recursos orçamentários definidos,
permitindo-se prever o raiar do dia, no qual o Art. 68 do ADCT
deixará de ter vigência por ter cumprido com o que o mesmo
preconiza: o reconhecimento de domínio de todos os territórios
quilombolas.131
No que diz respeito aos conflitos pela posse da terra no Brasil, ao longo da
história, a resistência de um grupo foi essencial para a manutenção do território. Essa
resistência é redimensionada na atualidade a partir de uma territorialização étnica, um
modo de convivência entre as comunidades tradicionais e a sociedade. As tradições e as
memórias coletivas são elementos que compõem o território e ao mesmo tempo o
ressignificam a partir das percepções territoriais construídas pelos próprios moradores
das comunidades quilombolas. A forma como se relacionam com a terra está para além
de questões materiais, mas atua massivamente no campo simbólico e das questões de
afirmação e inclusão num espaço que lhe foi negado.
130 Entrevista com Carlito Augusto Oliveira, em Tanhaçu, no dia 30/05/2015. 131 TRECCANI, 2006, p. 22.
61
O processo de territorialização pressupõe a tensão nas relações
estabelecidas, pois se um grupo se organiza em prol de territorializar-
se ele está negando o lugar que lhe havia sido destinado, numa dada
circunstância espaço-temporal, por outros grupos sociais melhor
situados no espaço social pelos capitais de que já dispõem. Ou seja,
quando uma comunidade quilombola se organiza e reivindica seus
direitos sobre um território ancestral, quando ela luta para se
territorializar, ela está negando o lugar marginal que lhe havia sido
designado pela sociedade abrangente, seja por grandes empresas
privadas que plantam eucalipto ou cana em seus territórios, seja pelo
próprio poder público que lhes impõe unidades de conservação
ambientais estabelecendo uma nova territorialidade, esta de cima para
baixo.132
Nesta pesquisa, o território é visto como um espaço físico e simbólico onde as
negociações e resistências se mantêm. A emergência de debates sobre os direitos de
posse de comunidades quilombolas não é somente pela necessidade de demarcarem um
território, e sim de afirmarem um modo de vida, suas memórias e tradições ancestrais. É
a memória coletiva e geracional que norteia a construção das relações identitárias
constituídas com o território, e é neste processo de reinvenção do cotidiano que se
alicerça a identidade quilombola.
Os acontecimentos que foram narrados para a construção da história fundante do
Tucum são, de acordo com a definição de Michael Pollak, “vividos por tabela”.
Remontam a tempos que boa parte dos moradores não viveram diretamente, mas
ouviram contar. A grande maioria dos senhores e senhoras entrevistados por Maria do
Carmo em 2006 já vieram a falecer, inclusive sua avó Maria Jesus Santos, nascida em
1908 e falecida em 2008, com a idade de 100 anos, e Dona Anízia, falecida em 2013
com 93 anos. Para Maria do Carmo, a memória dos mais velhos foi importante para a
reconstrução da história da localidade, e ela sente por tantos já terem morrido sem que
esta memória estivesse consolidada no grupo. Como José Arrutti chama atenção, é
comum que esses grupos criem um mito fundador que possa afirmar o seu direito à
terra.
As formas nativas de denominação das terras de uso comum passam,
então, a serem vistas como derivações de mitos de origem, que
encobrem formas de apossamento e de organização proibidas pela
132 SILVA, Simone Rezende. Quilombos no Brasil: a memória como forma de reinvenção da identidade e
territorialidade negra. Anais do XII Colóquio Internacional de Geocrítica, maio de 2012. p. 8-9.
62
ordem escravocrata. Assim, a categoria contemporânea de quilombos
passa a estar associada à redução sociológica das denominações locais
sob a categoria analítica de “terras de uso comum.133
Os mitos fundadores são apropriados pela memória coletiva, e desvendá-los é
tarefa árdua, como apontado por Javier Alejandro Lifschitz: “Ficções e "verdades"
pretensamente irrefutáveis confundem-se ao ponto de diluir qualquer expectativa de
desvendar um mito de origem coletivo”.134 No Tucum, o mito fundante converge para a
iniciativa de três homens. As memórias em torno da fundação da comunidade
constituem um importante pano de fundo para a construção da identidade no Tucum.
Após as coletas dos depoimentos e o envio da declaração à Fundação Cultural Palmares,
o Tucum se assentava num nova realidade que aos poucos foi apreendida:
A gente mandou, passou por Janicleia que era assistente social na
prefeitura, aí ela pegou na época de Eduardo e gostou do propósito e
mandou pra Brasília, lá pra Salvador, pra Brasília, aí veio, demorou
acho que um ano e pouco, através desses questionários que a gente fez
manuscrito ela conseguiu criar a história e mandou. Aí veio o nosso
autorreconhecimento, só que a gente não foi pegar, no tempo que veio
a gente não tava em condição de ir em Brasília buscar, aí depois de
Brasília veio para Salvador.135
Após o reconhecimento da comunidade, uma parte dos moradores passaram a
associar elementos culturais, que fazem parte da essência do grupo, a um passado
escravo antes ignorado, assim, uma nova identidade começou a ser construída no
Tucum. Não se pode esperar uma fixidez neste processo, visto que o processo
identitário é ainda complexo, em especial para os mais velhos que não compreendem o
que é ser quilombola. Cabe pensar as reflexões que se processam dentro desse grupo,
sejam entre os mais velhos ou no meio das lideranças como Maria do Carmo:
Ser quilombola é uma comunidade que tinha e ainda tem o maior
número de pessoas que são negras e que elas tão buscando, resgatando
os direitos devidos que não tiveram e também as histórias, não só
buscar projetos, mas também tem as tradições que foram acabando,
acabando e a gente quer trazer de volta.136
133 ARRUTI, 2008, p. 16. 134 LIFSCHITZ, Javier Alejandro. Neocomunidades: reconstruções de territórios e saberes. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, n. 38, julho-dezembro de 2006, p. 76. 135 Entrevista com Maria Rita Oliveira Silva, no Tucum, 24/08/2014. 136 Entrevista com Maria do Carmo Oliveira Silva, no Tucum, 04/08/2012.
63
Na fala de Maria do Carmo vê-se que o discurso identitário já está em processo
de ressemantização, ela estabelece relações com a negritude e as políticas de reparação.
No geral, a associação entre as comunidades atuais e o passado escravo é um “senso
comum nacional”. Salete da Dalt em sua pesquisa que abrangeu 65 comunidades
quilombolas de cinco estados brasileiros, num total de 2058 famílias, ressalta que parte
significativa das lideranças e dos moradores em geral “ainda não haviam
ressemantizado o conceito de quilombola e referiam sua existência, como comunidade
quilombola, a uma derivação direta ou mesmo a uma descendência de escravos”.137
Pensar esses grupos como algo análogo aos quilombos históricos e presas a um único
modo de agrupamento faz com que se desconsidere que as identidades são construídas
em “contextos de mestiçagens”.
Como já foi possível antever, a construção de uma identidade quilombola no
Tucum ainda está se processando. Seguiremos com a discussão sobre identidade, com
especial atenção à formação de uma identidade quilombola nas comunidades
remanescentes, e nos propomos a refletir, a partir dos relatos orais, como está sendo
operado o processo de construção de uma identidade quilombola no Tucum.
1.3 A formação de uma identidade quilombola no Tucum: desafios e percepções
O campesinato é uma forma de vida, uma identidade que se confunde
com a terra. (Adelmir Fiabani) 138
As comunidades quilombolas da atualidade são marcadas por um processo de
reconstrução identitária em virtude de suas demandas políticas e sociais. Essa
reconstrução se enquadra ao que Stuart Hall139 chama de nova diáspora, em que os
grupos aprendem a viver entre duas identidades e duas percepções de mundo, e ao
conceito de identidade étnica de Frederick Barth140, por esta ser formulada na fronteira
entre “dois mundos”. De acordo com Stuart Hall, não existe uma “identidade fixa,
137 DALT, 2001, p. 48. 138 FIABANI, 2008, p. 19. 139 HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e mediações Culturais. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2003, p.
31. 140 BARTH, Fredrik. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART,
Jocelyne. Teorias da etnicidade. São Paulo: UNESP, 1997, p. 188.
64
essencial ou permanente”.141 Nesta nova conjuntura, a identidade étnica seria uma
identidade situacional e os grupos étnicos “categorias de atribuição” construídas pelos
próprios membros do grupo a partir de elementos relevantes para aquela coletividade.
As identidades parecem invocar uma origem que reside em um
passado histórico com o qual elas continuam a manter certa
correspondência. Elas têm a ver, entretanto, com a questão da
utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para a
produção não daquilo que somos, mas daquilo do qual nos tornamos.
Tem haver não tanto com as questões ‘quem nós somos’ e ‘de onde
viemos’, mas muito mais com as questões ‘quem nós podemos nos
tornar’, ’como nós temos sido representados’. 142
Os recursos de reflexão sobre ‘quem nós podemos nos tornar’ e ‘como nós
temos sido representados’ são importantes para a construção de uma nova identidade. A
palavra quilombo e o ser quilombola ainda é um conceito novo a ser apreendido pelos
moradores de Tucum e cada um vai construindo suas definições a partir de suas
vivências. Existem os que não compreendam o significado político dos quilombos
contemporâneos e alguns que se recusam a serem quilombolas por acreditarem ser algo
nocivo. São questões complexas que perpassam as subjetividades e a construção da
identidade do grupo. A formação de uma identidade quilombola pressupõe uma auto
identificação étnica que passa pelo reconhecimento de suas tradições, e busca respeito e
cidadania. Sendo assim,
a identidade quilombola associada à auto-identificação étnica e racial
de negro é utilizada como uma afirmação positiva no reconhecimento
de si mesmo como ser social. Assim, além do reconhecimento jurídico
há o reconhecimento como “ente moral” e, neste caso, (...) a
manifestação mais geral desse reconhecimento seria expresso como
respeito. Neste sentido, trata-se de uma luta dessas populações não
apenas por ganhos materiais, mas também pela cidadania, traduzida
como busca de respeitabilidade a si mesmos, de seus valores e formas
de ver o mundo.143
Para Carlito Augusto Oliveira, o caminho trilhado até chegarem às condições
atuais foi difícil: “As coisas passam também por questões políticas né, a pessoa da
141 HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1997, p.
10. 142 Ibid., p. 108-109. 143 O’DWYER, Eliane Cantarino. Terras de quilombo: identidade étnica e os caminhos do
reconhecimento. Tomo. São Cristovão/SE. Nº 11. Jul./Dez. 2007, p. 59.
65
comunidade sempre soube de seu passado negro, mas o ser quilombola é novo né? E
antigo de certa maneira”.144 Em suas falas, Carlito denota perceber as implicações
políticas de ser quilombola e busca reafirmar as heranças ancestrais da comunidade que
legitimam as mudanças na atualidade. Ele percebe que ser quilombola implica uma luta
por direitos, porém afirma que fazer com que os moradores viessem a entender esses
conceito foi um desafio:
É no começo, eles não aceitavam muito não cê entendeu? Porque diz
eles que ia voltar o tempo da escravidão, então eles pensava desse
jeito né? Que ia voltar o tempo da escravidão de novo. Mas agora não,
agora tá normal, todo mundo tá aceitando bem, eles foram começando
a entender, foi começando vim os benefício, então aí agora eles tão
aceitando bem.145
A partir de construções identitárias ainda recentes é que os moradores falam
sobre ser quilombola. No geral nota-se certo estranhamento, mas as percepções são
positivas, como se pode observar nas falas de Madalena Oliveira Novais: “A calombola
(quilombola)? Eu achei bom né? Pelo menos o lugar tem um registro agora, nunca tinha
um nome né? E agora tá bom, porque tem a Calombola (quilombola) a gente sabe que
tem esse nome no lugar né?”146 Sua mãe Anízia Novais tem uma noção de aceitação: “A
calombola (quilombola)? Já que tá fazendo né? Tudo que fais tem que a gente gostar, ou
queira ou não queira tem que aceitar né?”147 Sobre ser quilombola, a paneleira Rosa,
responde em voz baixa e com alguma timidez: “Eu acho bom né? É bom que fica
reconhecido né? A gente até evolui né?”148
Os relatos demonstram o quão estranha é ainda a identidade quilombola para
essas mulheres. O ser quilombola engloba um conjunto de valores, tradições e crenças
individuais e coletivas, que perpassam desde a vivência em grupo ao contato com
agentes externos. Sobre estas tradições cabe pensar, como o fez o Eric Hobsbawm ao
tratar das ‘tradições inventadas’:
O termo “tradição inventada” é utilizado num sentido amplo, mas
nunca indefinido. Inclui tanto as “tradições” realmente inventadas,
construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram
144 Entrevista com Carlito Silva, em Tanhaçu, no dia 19/10/2009. 145 Entrevista com Carlito Augusto Oliveira, em Tanhaçu, 30/05/2015. 146 Entrevistada pela autora com Madalena Oliveira Novais, no Tucum, em 04/08/2012. 147 Entrevista com Anízia Novais, no Tucum, em 04/08/2012. 148 Entrevista realizada pela autora com Maria Rosa Silva, no Tucum, em 04/08/2012.
66
de maneira mais difícil de localizar num período limitado e
determinado de tempo - às vezes coisa de poucos anos apenas - e se
estabeleceram com enorme rapidez.149
Eric Hobsbawm150 compreende, dentro desta invenção das tradições, o conjunto
de práticas, crenças e valores, que regulados por regras de natureza ritual ou simbólica,
estabelecem uma continuidade em relação a um evento do passado. Essa continuidade
dá-se a partir do presente, pois, ao trabalhar com a memória de pessoas vivas, não há
uma desvinculação entre estas e seus relatos, estando ambos (as pessoas e a
rememoração) situados no presente. A memória, na condição de presença e evocação do
passado, por sua vez, é marcada de forma indelével pelos eventos que habitam as
lembranças de uma sociedade em seus planos individuais e coletivos. Como “elemento
essencial da identidade”, a memória influi nas percepções da coletividade e nas muitas
representações do passado que se imbricam. Os moradores dos quilombos
contemporâneos também constroem e reelaboram suas tradições, vivências e lugares da
memória.
Desde o reconhecimento da comunidade quilombola do Tucum que os seus
moradores foram confrontados com uma nova realidade: são agora quilombolas.
Contudo, para a maioria das famílias, ainda não existe uma compreensão do que isso
significa. A partir do momento em que o autorreconhecimento como quilombolas torna-
se o critério de definição, podemos pensar o quão truncados podem ser estes processos,
que muitas vezes não representam as percepções da totalidade do grupo. Qual a
trajetória das inúmeras localidades que hoje se autodenominam quilombolas? Seriam
muitas as respostas, dada a heterogeneidade desses grupos, mas estas fazem parte de
uma reflexão necessária sobre as políticas de reconhecimento das comunidades
quilombolas na atualidade, mesmo porque junto com os direitos pautados nas políticas
de reparação histórica aparecem ganhos visíveis para este grupos, ganhos econômicos e
políticos, em sua maioria. No entanto, essa reflexão não pode ser distanciada da
resistência dos negros durante a escravidão e no pós-abolição, e da luta pela reparação
histórica dos descendentes desses grupos empreendida pelo movimento negro durante
todo o século XX.
149 HOBSBAWM, 1984, p. 9. 150 Ibid., p. 10.
67
Historicamente, os quilombos eram vistos como uma sublevação negra contra a
ordem vigente, não por menos, observadores, cronistas e autores do período colonial, a
exemplo de Rocha Pita151, os caracterizavam como sendo um grupo de ladrões e
assassinos, o que contribuiu para aterrorizar a sociedade de então e reforçar as ideias
equivocadas sobre esses agrupamentos. De acordo com Adelmir Fiabani, uma das
primeiras definições de quilombo utilizadas foi o Regimento dos Capitães do Mato,
datado de 1722, que descrevia quilombo como todo o agrupamento acima de quatro
negros fugidos, morando em ranchos e pilões, que se fixassem em uma região isolada,
sobrevivendo à margem da dinâmica escravagista. A definição mais citada pela
historiografia é a do rei de Portugal, Dom João V, em resposta à consulta do Conselho
Ultramarino datada de 2 de dezembro de 1740, que em alguns pontos se diferem da
primeira “[...]toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte
despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados, nem se achem pilões neles”.152
Sobre a última definição dada, Alfredo Wagner de Almeida observa alguns
aspectos que a tornam restrita: o primeiro é a vinculação com a fuga, por ser o quilombo
composto apenas de escravos fugidos; um segundo aspecto é a quantidade mínima de
fugidos; o terceiro ponto é o isolamento geográfico por tratarem “os quilombos fora do
mundo da produção e do trabalho, fora do mercado”; o quarto ponto seria o rancho
como moradia habitual e, por fim, a existência do pilão denotaria a possibilidade de se
sustentarem e terem mínima autonomia naquele contexto, pois “representa o símbolo do
autoconsumo e da capacidade de reprodução”.153 Essas primeiras definições, associadas
à experiência palmarina, influenciaram em muito na definição de quilombo durante todo
o período colonial e imperial. João José Reis observa que esse processo não era
estanque pois, mesmo nas senzalas, os africanos reinventaram seus costumes,
misturaram crenças e valores africanos aos dos indígenas e brancos com quem
passavam a conviver. “Mesmo entre os palmarinos parece ter sido assim”.154
A ideia de um “quilombo isolado”, fundamentado na experiência palmarina, foi
revista na atualidade à luz das múltiplas experiências quilombolas encontradas nos
151 PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa. Belo Horizonte: Itatiaia. São Paulo:
EDUSP, 1996. 152 FIABANI, Adelmir. Mato, palhoça e pilão: o quilombo, da escravidão as comunidades
remanescentes [1532-2004]. São Paulo: Expressão popular, 2005, p. 269. 153 ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Os quilombos e as novas etnias. In: O’DWYER, Eliane
Cantarino. Quilombos: Identidade étnica e territorialidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p. 49. 154 REIS, João José. Ameaça negra! Quilombolas assombravam o dia a dia de senhores e funcionários da
colônia. In: FIGUEIREDO, Luciano (Org.) A era da escravidão. Rio de Janeiro: Sabin, 2009, p. 25.
68
documentos históricos e que tratam de variados modos de sobrevivência dos negros. A
obra Liberdade por um fio, organizada por João José Reis e Flávio Gomes,155 apresenta
uma série de experiências quilombolas em todo o Brasil, com peculiaridades e
distinções, desde o isolamento de Palmares aos quilombos urbanos nas imediações das
cidades. No pós-abolição, ainda que as condições de vida continuassem similares à do
período da escravidão, o trabalhador era agora livre e poderia dispor de sua força de
trabalho.
Cem anos após a abolição da escravidão, a Constituição Federal de 1988 trouxe
à discussão o conceito de quilombo. Ainda que ao falar de “remanescente das
comunidades de quilombos” o texto do ADCT tivesse dado margem a muitas
interpretações, sobre as quais já discutimos, nos interessa o alcance posterior desta ação,
o momento em que comunidades negras em todo o Brasil passavam a afirmar suas
tradições culturais e religiosas como parte de uma identidade coletiva ou mesmo uma
identidade quilombola.
A constituição de uma identidade quilombola pode ser pensada a partir das ações
afirmativas e das políticas de reparação que representam a luta de diversos grupos do
movimento negro no Brasil para que estas comunidades negras acessassem o seu direito
à justiça social, afirmação identitária própria, direito à terra, aos recursos materiais e à
representação política. A ligação com o território é parte da construção da identidade
desses grupos, mas não é sua finalidade única. A identidade quilombola se constitui a
partir da memória coletiva, saberes ancestrais, práticas cotidianas, manifestações
culturais e religiosas. Como observa Gildásio dos Santos,
por todo o Brasil, a identidade quilombola tem sido construída, de
forma ampla, enquanto instrumento de sustentação do direito à terra,
ao território. Todavia, o processo de reconhecimento das identidades
quilombolas no contexto atual vai além de tal vinculação, abarcam
ainda certos traços culturais quem em um e outro momento são mais
acentuados e perceptíveis. Faz-se necessário entender não apenas os
significados culturais existentes, e que permanecem com o passar do
tempo, mas, também, identificar quais são os mecanismos que
proporcionam a permanência e a sobrevivência dos indivíduos em
suas comunidades.156
155 REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos (Orgs.). Liberdade por um Fio. São Paulo: Cia das
Letras, 1996. 156 SANTOS, Gildásio Alves dos. Memória, identidade e linguagem: a comunidade quilombola do
Quenta Sol (Tremedal- BA). Dissertação (Mestrado em Letras). PPG Cultura, Educação e Linguagens
UESB, Vitória da Conquista, 2013, p. 33.
69
No Tucum, os moradores expressam percepções diversas sobre o ser quilombola
e sua relação com o território e a sociedade. A princípio, eles a percebiam como uma
questão política e externa que não lhes dizia respeito, principalmente os homens,
segundo relatos das lideranças. Com o passar do tempo e a chegada de benefícios, os
moradores começaram a perceber como algo positivo, ainda que estranho: as mulheres
do Tucum, além da ativa participação no processo de reconhecimento da comunidade,
passaram a assumir lugares de liderança comunitária, seja na igreja, no trabalho com o
barro ou nas reuniões da associação. Pensamos no papel que estas mulheres tiveram na
construção da identidade local.
Como ressaltou Serge Gruzisnky, as identidades não são estanques, mas
construídas a partir das trocas e mesclas culturais dos grupos humanos, sendo a
mestiçagem a principal síntese destas relações. Atentos para as construções históricas
que envolvem as categorias de brancos e negros, compreendemos ser a mestiçagem o
conceito que melhor define os negros e suas trajetórias na diáspora e no Brasil, tendo as
mulheres um importante papel neste processo. Sobre as dinâmicas de mestiçagem,
Serge Gruzinsky, ao tratar do processo de colonização das Américas, observa que
as relações entre vencedores e vencidos também assumiram a forma
de mestiçagens, alterando os limites que as novas autoridades
procuravam manter entre as duas populações. Desde os primeiros
tempos, a mestiçagem biológica, isto é, a mistura de corpos – quase
sempre acompanhada pela mestiçagem de práticas e crenças –,
introduziu um novo elemento perturbador. 157
A mestiçagem biológica é uma categoria de análise para observarmos as
mulheres escravas e suas relações. As primeiras abordagens sobre a mulher negra no
Brasil podem ser vistas nas obras de Gilberto Freyre.158 Em Casa grande & senzala, o
autor descreve a mulher escrava ou liberta como sensual e provocadora, uma verdadeira
síntese da brasilidade. É a partir da crioula e da mulata e suas relações afetivas que
Gilberto Freyre pensa a mestiçagem no Brasil. A mestiçagem biológica, abordada por
Serge Gruzinsky, resume basicamente o que o escritor pensava do erotismo das negras e
157 GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo: Cia das letras, 2001, p. 78. 158 FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime de
economia rural. Rio de Janeiro: Jorge Olympio, 1950.
70
de serem elas as disseminadoras da cultura brasileira. Podemos inferir que as relações
entre as mulheres negras e seus senhores davam-se através de sutis negociações no seio
da sociedade escravista, podemos pensar que nas relações familiares e nas relações entre
os senhores e suas escravas, havia permanências culturais, redes de solidariedade e
especificamente as negociações, que abriam um leque de possibilidades para as relações
afetivas ou por conveniência.
Cecília Soares,159 ao falar dos estudos do negro na Bahia, classifica-os em três
fases que podem ser observadas a partir das obras de Nina Rodrigues,160 Manuel
Querino161 e Luiz Viana Filho162. A princípio, Nina Rodrigues,163 em Os africanos no
Brasil, descreve as práticas religiosas afro-brasileiras, em que as mulheres
predominavam, fala do cotidiano dessas mulheres e de suas estratégias de
sobrevivência. Manuel Querino,164 em Costumes africanos no Brasil, trata do
quotidiano dos negros na Bahia e fala das mulheres de diversas etnias africanas e suas
habilidades para as ocupações domésticas. Já Luiz Viana Filho,165 em O negro na
Bahia, utiliza-se de vasta documentação dos arquivos nacionais e estrangeiros para
descrever o negro na Bahia, suas origens e aptidões.
Assim a mulher negra foi descrita a partir de suas características favoráveis à
escravidão e ao trabalho doméstico. Essas obras, que tratam da escravidão e do pós-
abolição, deixam antever as pequenas continuidades, principalmente, a dos preconceitos
contra a mulher de cor e trabalhadora, ao mesmo tempo em que transparecem os lugares
onde as mulheres poderiam exercer os seus poderes, “apesar da dominação masculina, a
atuação feminina não deixa de se fazer sentir, através de complexos contrapoderes:
poder maternal, poder social, poder sobre outras mulheres e “compensações” no jogo da
sedução e do reinado feminino”.166 Os lugares de poder, ou mesmo esses
‘contrapoderes’ tratados por Rachel Soihet, dão continuidade às negociações. Nas
comunidades quilombolas, a extensão desses poderes também se manifesta, como
observa Jurema Werneck:
159 SOARES, Cecília Moreira. Mulher negra na Bahia no século XIX. Salvador: EDUNEB, 2006, p. 19. 160 RODRIGUES, Raimundo Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Ed.Nacional, 1932. 161 QUERINO, Manoel. Costumes africanos no Brasil. 1. Ed. 1938. Recife: Fundação Joaquim Nabuco
– Editora Massangana, 1988. 162 VIANA FILHO, 1988. 163 RODRIGUES, 1932. p. 118-119. 164 QUERINO. Op. Cit., p. 98-101. 165 VIANA FILHO, Op. Cit., p. 185-186. 166 SOIHET, Rachel. História das mulheres e história de gênero: um depoimento. In: Cadernos Pagu,
Campinas, nº 11, 1998, p. 81.
71
É possível encontrar em diferentes relatos sobre os quilombos no
Brasil, ainda que de forma indireta, pistas da participação e lideranças
femininas em diferentes posições de comando (...) Nos dias atuais, há
relatos da existência de mais de quatro mil comunidades quilombolas
em território nacional brasileiro, a que o Estado resiste em reconhecer
e prover os direitos básicos de cidadania. Nestas comunidades, a
liderança feminina não é incomum, a despeito do grau de penetração
da cultura cristã em seu ambiente. 167
A configuração histórica das comunidades quilombolas favorece a reflexão
sobre as identidades que se entrelaçam. No caso das moradoras do Tucum, são mulheres
e negras, suas identidades são construídas na experiência vivida, nas políticas do
feminino e no diálogo corporal que se inscreve nas relações de trabalho comunitário. A
luta pela sobrevivência não se dá apenas na busca de ganhos econômicos, mas na
manutenção das tradições, nas esperanças para a nova geração e nas relações familiares.
As reflexões acerca do uso das questões de gênero na análise histórica fazem
com que se contraponham novos posicionamentos a velhas questões, dando visibilidade
às pesquisas sobre mulheres e gerando uma reavaliação dos paradigmas, principalmente
os de ordem histórica, linguística e cultural que estabeleceram por gerações uma
distância analítica e uma violência simbólica contra as mulheres. Ciente dessas
questões, no capítulo que se segue apresentaremos as trajetórias femininas do Tucum,
pensadas a partir das questões de gênero e identidade étnica que envolvem o ser mulher
negra e quilombola.
2- TRAJETÓRIAS FEMININAS NO TUCUM
As mulheres negras baianas incorporam grande parte desse poder
informal, construindo poderosas redes de sociabilidade.
Marginalizadas da sociedade global, destituídas de cidadania e de
identidade, elas criam novos canais de comunicação sócio-política.
Esse tipo de sociabilidade, baseado em papéis improvisados, tem sido
praticamente ignorado pela nossa historiografia. (Mônica Pimenta
Velloso)168
167 WERNECK, Jurema Nossos passos veem de longe! Movimentos de Mulheres Negras e Estratégias
Políticas contra o sexismo e o racismo. In: WERNECK, Jurema (Org.) Mulheres negras: um olhar
sobre as lutas sociais e políticas públicas no Brasil. São Paulo: Crioula, 2005, p. 81. 168 VELLOSO, Mônica Pimenta. As tias baianas tomam conta do pedaço: espaço e identidade cultural no
Rio de janeiro. In: SÜSSEKIND, F., DIAS, T. e AZEVEDO, C. (Org.) Vozes femininas – gênero,
mediações e práticas de escrita. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003, p. 96-97.
72
Mônica Pimenta Velloso denuncia o silêncio da historiografia acerca dos papéis
sociais femininos e suas redes de sociabilidade e improvisação. Nesse sentido, Cecília
Soares constata que a mulher negra era duplamente excluída, primeiramente por sua
condição feminina e especialmente quando estava na condição de escrava, pois “embora
muito numerosos, os documentos onde existe referência a negra são produtos da
mentalidade de homens numa sociedade patriarcal e escravista”.169 Historicizar esta
questão requer um olhar atento do historiador para as entrelinhas dos documentos e aos
papéis assumidos pelas mulheres em suas relações, como apontado por Maria Odila
Silva Dias:
Os papéis propriamente históricos das mulheres podem ser captados
nas tensões, mediações, nas relações propriamente sociais que
integram mulheres, história, processo social, e podem ser resgatados
nas entrelinhas das fissuras e do implícito nos documentos escritos. 170
Perceber os embates e construções no processo de ser mulher negra e
quilombola é essencial para que compreendamos as dinâmicas das relações de gênero na
comunidade quilombola do Tucum. Uma articulação possível para isso é entender que
as relações humanas são lugares privilegiados para as mediações de poder, que se
consolidam através do discurso. Numa perspectiva foucaltiana, o discurso não apenas
traduziria as lutas e as dominações, mas seria essencialmente aquilo pelo que se luta “o
poder que queremos nos apoderar”.171 É necessário historicizar as relações de gênero
para que possamos indicar o lugar em que pensamos estas relações e,
consequentemente, os lugares de poder na comunidade do Tucum.
2.1 Ser mulher negra e quilombola: percepções e discursos
Ficaram ignoradas, à margem das obras de historiadores, mesmo do
quotidiano, que mal deram por sua existência. (Maria Odila da Silva
Dias) 172
169 SOARES, 2006, p. 17. 170 DIAS, 1995, p. 50. 171 FOUCAULT, Michel. A ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996. p. 10. 172 DIAS, 1995, p. 29.
73
O conceito de gênero emerge nos Estados Unidos na década de 1970, numa
tentativa de negar o determinismo biológico e afirmar uma categoria fundamentalmente
social. Sob a influência da “segunda onda” do feminismo, o gênero foi apropriado pela
academia para compreender as diferenças no interior dos diferentes e nas relações entre
sexos. Joan Scott discute sobre a problemática do termo “mulheres” que dificilmente era
utilizado sem modificações “mulheres de cor, mulheres judias, mulheres lésbicas,
mulheres trabalhadoras pobres, mães solteiras”.173 A emergência desses
questionamentos desvelava as muitas ‘diferenças dentro da diferença’ e a
impossibilidade de uma única identidade que constituísse todas as mulheres,
Assim, de uma postura inicial em que se acreditava na possível
identidade única entre as mulheres, passou-se a outra, em que se
firmou a certeza na existência de múltiplas identidades. Mulheres
negras, índias, mestiças, pobres, trabalhadoras, muitas delas
feministas, reivindicaram uma ‘diferença’ – dentro da diferença. Ou
seja, a categoria ‘mulher’, que constituía uma identidade diferenciada
da de ‘homem’, não era suficiente para explicá-las.174
Esta reivindicação pela diferença encontrou lugar nos estudos de gênero. Por ser
um conceito polissêmico, suas possibilidades não eram estanques, cabendo utilizá-lo
tanto em construções teóricas, como nas descrições das relações entre os sexos,
entendendo que sexo e gênero atuam em conjunto à medida que são indissociáveis. O
gênero possibilitaria pensar as diferenças e suas inter-relações com as categorias de
raça, etnia ou classe, visto que “usada primeiro para analisar as diferenças entre os
sexos, foi estendida à questão das diferenças dentro da diferença”.175
A articulação do conceito à categoria de raça/etnia só ampliou o debate sobre as
diferenças e deu visibilidade a grupos distintos de mulheres. Cabia pensá-lo não só
como categoria de distinção entre os sexos, mas também como um lugar onde se
realizavam dominações e relações de poder. Pensar o gênero como categoria de análise
é também aceitar o desafio teórico que “exige a análise não só da relação entre
173 SCOTT. Joan. História das Mulheres in: BURKE, Peter (Org.) A escrita da História: Novas
Perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. 174 SOIHET, Rachel. PEDRO, Joana Maria. A emergência da pesquisa da história das mulheres e das
relações de gênero. Rev. Bras. Hist.[online]. 2007, p. 287. 175 SCOTT, 1992, p. 87.
74
experiências masculinas e femininas no passado, mas também a ligação entre a história
do passado e as práticas históricas atuais”.176
Pode-se, a partir da análise destas questões, refletir sobre a emergência dos
estudos da mulher negra nos Estados Unidos. Em fins dos anos 1970, intelectuais negras
americanas, a exemplo de Glória T. Hull, Barbara Smith e Toni Cade Bambara, esta
última com sua obra pioneira The Black Woman (A mulher Negra), reivindicavam o
campo de estudo sobre a mulher negra, suas experiências e trajetórias no âmbito
acadêmico, como um campo de estudo carregado de significados políticos. Esta
reivindicação esbarra na mesma contradição que a História das mulheres enfrentou para
ter legitimidade. No entanto, se pensado a luz das relações de gênero podemos admitir
os estudos da mulher negra como um lugar para refletir sobre as diferenças e as relações
de poder.
Naquela ocasião, os enfretamentos davam-se dentro do movimento feminista e
na academia caracterizada por ser ‘masculina e branca’ e contra a qual as mulheres
negras desejavam lutar. Os estudos da mulher negra na época só encontravam espaço
nas disciplinas de história e literatura. Outro entrave centrava-se nas percepções de
gênero veiculadas pela academia que primavam pela naturalização das diferenciações
biológicas que inferiorizavam a mulher.
Nos estudos da mulher negra, as pesquisadoras se propunham a refletir sobre as
condições de vida, usos e costumes das mulheres negras no pós-abolição, na intenção de
melhorar as suas condições da atualidade e denunciar os abusos que o racismo e o
sexismo impunham naquele período. Mesmo que vinculadas à História da mulher e ao
feminismo, seu objetivo central era evidenciar as múltiplas experiências de mulheres
negras em muitos espaços, em especial na academia. Com esta afirmação queriam dar
visibilidade a um campo que a história do negro e da mulher, genericamente, não
contemplavam. Por fim, conseguem espaço para seus questionamentos com o
crescimento de publicações de mulheres negras, pesquisas na área e a consolidação de
um feminismo negro, enfim “as contribuições das intelectuais negras, dentro e fora da
academia norte-americana, durante os anos 1980 e 1990, contribuíram para o
fortalecimento de estudos sobre as mulheres negras durante o período”.177
176 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. (Trad. Christine Rufino Dabat e Maria
Betânia Ávila). Educação e realidade. Porto Alegre, v. 16, n.2, jul./dez. 1990, p. 5. 177 CALDWELL, Kia Lily. A institucionalização de estudos sobre a mulher negra: Perspectivas dos
Estados Unidos e do Brasil. Revista da ABPN, v.1, n. 1- mar-jun, 2010, p. 23.
75
Kia Lily Caldwell, em seu artigo Fronteiras da diferença, denuncia a
invisibilidade das mulheres negras nos estudos sobre a mulher no Brasil. A autora
observa a ausência dos critérios de raça e gênero nos relatos sobre as experiências
femininas brasileiras.178 Acreditamos que esse silenciamento envolve questões
complexas que giram em torno das escritas sobre os negros e suas trajetórias. Na
concorrência de uma história branca e masculina, a mulher negra se desvanece nas
malhas do cotidiano. Antes só figuravam nas narrativas da história brasileira, em
especial no século XIX, a partir de suas relações com o cotidiano e trabalho. Durante o
período da escravidão, sendo escrava ou mestiça, aparecem nos relatos sobre o dia a dia
das casas senhoriais e nas ruas. Cecília Soares argumenta que as fontes que tratam
dessas personagens são esparsas, exigindo uma pesquisa minuciosa com o rastreio de
documentos, alforrias, processos que possam tirá-las do anonimato, visto que “muitos
dos arranjos de vida e estratégias de inserção social foram habilmente desenvolvidas
num espaço de adversidade, onde ser negra, mulher, pobre, escrava ou liberta definia a
modalidade das relações de convivência e sociabilidade”.179
No Brasil, a história das mulheres emergiu seguindo o curso das mudanças
internacionais, especificamente a partir dos últimos anos da década de 1970 ao notar-se
que um número considerável de pesquisas sobre mulheres que despontava nos
congressos nacionais, a exemplo da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC).180 Em sua obra seminal, Quotidiano e poder, Maria Odila Silva Dias fala sobre
as mulheres negras e trabalhadoras em São Paulo no século XIX, trazendo em cena a
dupla diferença de ser mulher e negra e ressaltando ser este o lugar apropriado para se
pensar as omissões, os mitos e os estereótipos na história.181 A partir desta obra
pioneira, o campo de estudo das mulheres e das relações de gênero ganhou amplitude e
outras autoras, a exemplo de Rachel Soihet, Martha de Abreu Esteves, Eni de Mesquita
Samara, Leila Algranti, Mary Del Priore, Margareth Rago, Joana Maria Pedro e Maria
Izilda Santos de Matos passaram a discutir as questões de gênero e consolidaram a
178 CALDWELL, Kia Lilly. Fronteiras da diferença: raça e a mulher no Brasil. Revista de Estudos
Feministas, v. 8, n. 2, 2000, p. 91. 179 SOARES, 2006, p. 17. 180 “Em julho de 1975, o jornal alternativo Opinião noticiava o elevado número de pesquisas sobre as
mulheres brasileiras apresentadas na XXVII Reunião da SBPC, realizada em Belo Horizonte. O mesmo
jornal informa a apresentação de dez comunicações de pesquisa, dois simpósios, uma conferência e duas
reuniões extras, surgidas da necessidade de se discutir mais o assunto.” SOIHET, 2007, p. 286. 181 1ª edição de 1984.
76
discussão no país. 182 Sobre os estudos de gênero, Marina Maluf, em sua obra Ruídos da
memória, observa que,
a reconstrução histórica das relações de gênero recupera a importância
dos papéis femininos como novos e diferenciados objetos de
conhecimento que necessariamente interferem na construção de um
saber histórico. O confronto entre a história das mulheres e a história
dominante, entre temporalidades, conteúdos e sujeitos diferenciados,
apresenta uma privilegiada oportunidade para o historiador repensar
os parâmetros que informam a interpretação histórica. 183
Para pensar o lugar da mulher negra na historiografia, duas vias de reflexão
sobre as trajetórias femininas podem ser estabelecidas na História da mulher: numa
primeira, a mulher, na categoria genérica branca, é vista como sujeito histórico pela via
da família e da natalidade e, numa segunda está à mulher operária, do povo, branca ou
negra que ganhava visibilidade pela luta por espaço e afirmação. Notadamente as
mulheres do povo só constavam nos discursos masculinos por ocasião de uma
insurreição contra a ordem, os preços e determinações políticas e sociais, como é
reiterado por Michelle Perrot: “Quanto as mulheres do povo, só se fala delas quando
seus murmúrios inquietam no caso do pão caro, quando provocam algazarras contra os
comerciantes ou contra os proprietários, quando ameaçam subverter com a sua violência
um cortejo de grevistas”. 184
No Brasil, quando se observa os relatos e narrativas de viajantes, especialmente
no século XIX, vê-se que as mulheres do povo eram em sua maioria negras e mestiças.
As negras exerciam variadas ocupações, vendiam seus serviços ou eram alugadas por
seus senhores para as funções de cozinhar, cuidar da casa, costurar, cuidar de crianças e
182 As obras são respectivamente: SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres
pobres e ordem urbana, 1890-1920. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989; ESTEVES, Martha de
Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1989; SAMARA, Eni de Mesquita. As mulheres, o poder e a família: São Paulo
século XIX. São Paulo: Marco Zero; Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, 1989; ALGRANTI,
Leila Mezan. Honradas e devotas: mulheres da colônia, condição feminina nos conventos e
recolhimentos do sudeste do Brasil, 1750-1822. Rio de Janeiro: J. Olympio; Brasília: Ed. UnB,
1993;DEL PRIORE, Mary. História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto; Unesp, 1997; RAGO,
Margareth. Descobrindo historicamente o gênero. Cadernos Pagu,v.11, p.89-98, 1998; PEDRO, Joana
Maria. Mulheres honestas e mulheres faladas: uma questão de classe. Florianópolis: Ed. UFSC, 1998;
MATOS, Maria Izilda Santos de. Meu lar é o botequim: alcoolismo e masculinidade. São Paulo: Cia.
Ed. Nacional, 2001. 183 MALUF, Marina. Ruídos da memória. São Paulo: Siciliano 1995, p. 19. 184 PERROT Michelle. Práticas da memória feminina. Revista Brasileira de História. São Paulo: v. 9,
n.18 p.9-18, 1989, p. 10.
77
outras ocupações do lar. Já as escravas de ganho ocupavam o espaço das ruas como
vendedoras, ganhadeiras, engomadeiras, lavandeiras e outros trabalhos desta natureza.
Naquele contexto, as redes de solidariedade eram essenciais para mediar os conflitos e
negociações que aí se realizavam, não só na luta por espaço, mas também nas mais
pueris relações do cotidiano.
A análise da escravidão e das “dinâmicas de mestiçagem” permitem que se
observe as permanências, os movimentos, os laços de solidariedade e as imbricações
que advêm do processo de miscigenação ocorrido ao longo da História do Brasil e que
influíram no processo de construção da identidade, em especial dos grupos étnicos e
suas mesclas culturais. A identidade ― assim pensada numa mesma perspectiva que
Serge Gruzinsky185 - é múltipla e fluída, onde cada indivíduo é dotado de muitas
identidades que se realizam no interior e na interlocução de um grupo com o externo,
em processos de mestiçagem, cujas interlocuções pressupõem negociações que se dão
tanto no plano étnico, como no de gênero.
Cecília Soares, em seu trabalho Mulher negra na Bahia do século XIX, perfaz
os caminhos dessas trabalhadoras urbanas a partir de fontes que tratam da cidade de
Salvador e apresenta dados sobre as ocupações executados por escravas e libertas. A
narrativa deixa transparecer as negociações necessárias para que as negras transitassem
pelos lugares e os preconceitos e posturas da sociedade do período, na qual as mulheres
negras iam “desenvolvendo estratégias de sobrevivência e resistência à opressão”. Nas
ruas, o conflito era constante:
As atividades realizadas pelas ganhadeiras, apesar de importante para
a distribuição de bens essenciais à vida urbana, preocupava as
autoridades. Elas faziam seu trabalho de maneira itinerante ou
fixavam-se em pontos estratégicos da cidade, servindo de elementos
de integração entre uma população considerada perigosa pelas elites.
Este fator político, somado aos esforços do Estado para organizar e
controlar a vida urbana no século XIX, levaria a muitos embates entre
ganhadeiras e autoridades policiais. 186
Em Quotidiano e poder, Maria Odila da Silva Dias também relata as vicissitudes
do cotidiano das mulheres negras em São Paulo, numa narrativa que desvela as
experiências cumulativas de improviso, aculturação e resistência à dominação. O
185 GRUZINSKI, 2001, p. 52. 186 SOARES, 2006, p. 74.
78
cotidiano é definido como um campo marcado pela dualidade de definições e conceitos
que permeiam as relações sociais, as questões biológicas e psicológicas, a cultura, os
sujeitos e os conceitos a que se contrapõem. Nesse ínterim, as relações de gênero são
determinadas e sofrem transformações e ressignificações, frutos dessa dualidade que
marca as relações cotidianas. Nos embates em São Paulo, as negras vendeiras sofriam
preconceitos e exclusões que dificultam o seu rastreio nas fontes. Cabe ressaltar que era
um duplo preconceito de cor e de gênero que fazia com que a cidade apresentasse uma
numerosa mão de obra feminina subutilizada pelos comerciantes, pelas manufaturas e
fábricas e mesmo para o trabalho escravo, ao constatar-se ser “o preço de escravas
mulheres (…) sempre menor que o dos homens, mais numerosos e com demanda
maior”.187
Esse cotidiano é também relatado por observadores estrangeiros que estiveram
no Brasil durante o século XIX, sendo um deles o pintor Jean Batiste Debret, que
chegou ao Brasil junto com a Missão Artística Francesa e permaneceu por 15 anos,
entre 1816 e 1831. Em sua Viagem pitoresca ao Brasil188 o pintor retratou os usos e
costumes do Brasil e a forte presença escrava nos meios urbanos. A reprodução de uma
dessas pinturas pode ser observada na figura 6, que mostra uma vendedora de caju em
sua lida.
Figura 6 - Negra tatuada vendendo caju - Debret, 1827.
187 DIAS, 1995, p. 122. 188 “Obra de Debret foi publicada em três volumes e ele somente a finalizou quando retornou à França.
No primeiro volume da obra, de 1834 estão representados os índios, aspectos da mata brasileira e da
vegetação nativa em geral. O segundo volume, de 1835, concentra-se na representação dos escravos
negros, no pequeno trabalho urbano, nos trabalhadores e nas práticas agrícolas da época. Já o terceiro
volume, de 1839, trata de cenas do cotidiano, das manifestações culturais, como as festas e as tradições
populares.” CRUZ, 2006, p. 2.
79
Imagem encontrada no site Obvius.189
Observando a figura 6, podemos inferir ser a representação de uma mulher
africana, devido a sua tatuagem facial, possivelmente da etnia Mina ou Monjolo nas
quais era comum encontrar negros tatuados. Ao fundo, com o cesto sobre a cabeça,
outra negra apregoa seus produtos. Em outras obras do mesmo pintor, o dia a dia das
escravas domésticas é retratado, constituindo uma visão importante para a percepção da
sociedade brasileira no período e tornando-se fontes iconográficas relevantes para a
historiografia nacional.
A história da mulher e a história das mulheres negras no Brasil nos fazem pensar
sobre os aspectos essenciais das relações de gênero aliados às questões raciais.
Mulheres negras, vivendo relações marcadas pelo controle e exclusão social,
reelaboravam suas experiências a partir de constantes negociações. A compreensão dos
papéis assumidos por essas mulheres do período colonial, até as comunidades
remanescentes da atualidade, possibilita a coexistência de diferentes modelos de
relações sociais, culminando em processos e diálogos interculturais.
As questões sobre a mulher negra190 e quilombola crescem e nos trazem
inquietações como essas: que fatores determinam o protagonismo das mulheres negras?
Podemos afirmar que existe uma liderança feminina em comunidades quilombolas?
189 Obvius. <http://lounge.obviousmag.org/cafe_amargo/2013/05/debret-e-a-negacao-do-neoclassicismo-
brasileiro.html> acessado em 14/08/2014. 190 Usamos a categoria de mulher negra entendendo-as em suas especificidades e confrontos. Não
pretende-se com isso legar às mesmas uma identidade única.
80
Existindo esta liderança, como se dariam as negociações e consentimentos? Não
afirmamos ser a liderança feminina no Tucum uma exclusividade, ao contrário, nosso
objetivo é perceber, através de outras pesquisas, a liderança de mulheres negras e
quilombolas em outras comunidades.
2.2 A liderança feminina no contexto quilombola
São mulheres que trabalham e muito, em sua maioria não são
formalmente casadas, brigam, pronunciam palavrões, fugindo, em
grande escala aos estereótipos que lhe são atribuídos. (Rachel Soihet) 191
As relações de gênero são um construto social e se realizam dentro das
mediações de poder. Gênero e poder são aqui entendidos como conceitos correlatos, na
medida em que pensamos que estas relações são permeadas por complexos arranjos e
negociações. Numa comunidade, as trocas dão-se no cotidiano, numa experiência que
requer competências e estratégias de convivência para que os objetivos comuns sejam
alcançados. A existência de uma liderança comunitária direciona esses anseios e
sustenta os processos de mudança. Ao tratar desses aspectos na comunidade quilombola
de Curiaú/Amapá192, Marcos Távora Mendonça acredita que:
Para o efetivo exercício da liderança comunitária são necessárias as
seguintes características: a articulação dos problemas comunitários; a
expressão da ideia da possibilidade de uma comunidade melhor; a
defesa construtiva e adequada de pontos de vista; o ouvir ativamente
os outros, incluindo os oponentes; a identificação e mobilização de
recursos humanos e comunitários; a construção de relações
colaborativas e o encorajamento do trabalho em grupo; a gestão,
mediação e resolução de conflitos; o planejamento de estratégias para
a mudança comunitária; o englobar das ações aprendida a partir da
experiência; a busca de formas e fontes de suporte social; o dosear dos
esforços para evitar o desgaste relacional e, também o envolvimento
de outros no processo de participação comunitária. 193
191 SOIHET, Rachel. Condição feminina e formas de violência: mulheres pobres e ordem urbana, 1890-
1920. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989, p. 11. 192 Localiza-se no extremo norte do Brasil, no estado do Amapá, fazendo parte da região amazônica. 193 MENDONÇA, Marcos Távora. A mulher na comunidade quilombola de Curiaú no Amapá:
participação, empowerment e liderança.2008. Dissertação (Mestrado de Psicologia comunitária). ISPA
(Instituto Superior de Psicologia Aplicada). 2008, p. 18.
81
Nos propomos a refletir sobre essa liderança feminina a partir de quatro
pesquisas realizadas em comunidades quilombolas da Bahia. Uma das pesquisas que
demonstram ser a liderança feminina não incomum, está na obra Vestígios recuperados
de Carmélia Miranda, que trata das vivências cotidianas dos moradores de Tijuaçu,
comunidade localizada em Senhor do Bonfim, no norte da Bahia.194 Por meio dos
relatos orais, que são a principais fontes utilizadas, foi possível constatar uma trajetória
feminina, sendo Mariinha Rodrigues, uma negra fugida, a fundadora da comunidade. É
peculiar ser uma mulher a fundadora, algo que talvez se reverbere no cotidiano da
localidade, onde as mulheres alçaram lugares de liderança.
Em Tijuaçu, os caminhos trilhados por mulheres que viveram e outras
que vivem no referido território tem marcado a história, a memória, a
identidade e o cotidiano dessa comunidade negra rural. As
experiências vivenciadas e a luta que estas têm travado pela sua
sobrevivência e a dos seus familiares mostram a força e a coragem
para enfrentar as dificuldades cotidianas. O papel desempenhado pelas
mulheres da comunidade negra rural é visível em todos os setores. A
figura feminina sempre se fez presente desde os primeiros momentos
do território, quando Mariinha Rodrigues desbravou as matas de
Tijuaçu, criando perspectivas de sobrevivência, fazendo desse espaço
a sua paragem e criando laços familiares e de solidariedade. 195
Guardiãs de uma memória geracional, as mulheres de Tijuaçu alcançaram o
respeito e os lugares de liderança dentro da comunidade. Carmélia Miranda identifica os
lugares ocupados pelas mulheres de Tijuaçu, como pela fundadora Mariinha, que
passaram “da cozinha à rua; da roça à igreja; de mãe a provedora do lar.” 196 Quem são
essas mulheres? O texto as desvela com toda a clareza:
(...) outras moradoras vão nas atividades religiosas, inclusive
assumindo papéis de liderança a exemplo de Detinha, que organiza as
atividades da igreja católica, principalmente nos preparativos da festa
de São Benedito; Ilca dos Santos, líder da comunidade, atualmente
vice-presidente da Associação dos Quilombolas e adjacências de
Tijuaçu; Dalva, líder da comunidade da Fazenda Alto; Anísia, exímia
contadora de histórias, que relatou com perspicácia a trajetória da
comunidade; Marinalva Santos da Silva (mas conhecida como Dinha),
percussionista do samba de lata; Genoveva, a iniciadora, já falecida e
Joana, sua filha, sambista que encanta a todos com seus passos leves e
194 Pertencente ao município de Senhor do Bonfim, ao Norte da Bahia e a região econômica do Piemonte
da Diamantina, sendo a 28ª região administrativa. 195 MIRANDA, 2009, p. 82. 196 Ibid., p. 83.
82
graciosos. Esses papéis trazem no seu bojo resquícios da cultura
africana, onde, na ordem familiar matrilinear, embora matizada
conforme a região, entregava-se a casa da família ao controle total da
mulher, o que viria explicar a predominância dessas mulheres em
Tijuaçu. 197
Carmélia Miranda apresenta as trajetórias femininas de mulheres que lutam pela
sobrevivência e por seus direitos. Privadas de um saber letrado, utilizam estratégias de
improvisação, as quais podemos também pensar nas negociações que marcam as
dinâmicas de mestiçagem. A espontaneidade com que narram as suas experiências é
evidente no texto, assim como a visibilidade política, social e econômica alcançada, que
é parte da arte da sobrevivência dessas figuras femininas que atuam em muitos âmbitos.
As histórias de Tijuaçu são escritas no feminino e a comunidade seria o pano de fundo
dessas relações suaves e complexas.
Em outra perspectiva, Nivaldo Dutra198 vai narrando as vivências de homens e
mulheres ao tratar das trajetórias de lutas, permanências e resistências encontradas por
negros remanescentes de quilombos na conquista de seus territórios nas comunidades de
Rio das Rãs e da Brasileira199. Aos poucos vão se descortinando os enfrentamentos, o
cotidiano, as redes de solidariedade entre os moradores das comunidades e outros
grupos com os quais se relacionam. As mulheres de Rio das Rãs e da Brasileira vão
aparecendo e ganhando corpo no texto, na medida em que assumem um papel de relevo
nos conflitos de terra da região. A princípio, os relatos orais as descrevem como figuras
tímidas nos espaços políticos.
Observamos que, na maioria das vezes, a participação feminina se dá
de uma forma mais tímida. Porém, na medida em que tomam
consciência da importância de sua participação, as mulheres começam
a se envolver nas discussões e passam a construir seus espaços dentro
das organizações que são criadas, como é o caso da Cooperativa
Agropastoril do Quilombo Rio das Rãs, onde essas mulheres se fazem
presentes, participando da direção ou até mesmo organizando-se em
grupos específicos de mulheres para desenvolverem projetos
comunitários, como horta, trabalhos artesanais, corte e costura, que as
ajudam a colaborar com o orçamento familiar. Passaram também a
participar, em maior número, das reuniões e encontros promovidos
197 MIRANDA, 2009, p. 83-84. 198 DUTRA, Nivaldo Osvaldo. Liberdade é reconhecer que estamos no que é nosso: comunidades
negras do Rio das Rãs e da Brasileira-BA (1982-2004). Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo PUC, São Paulo. 2007. 199 Localizadas na região fisiológica do Médio São Francisco, município de Bom Jesus da Lapa – Bahia.
83
pela comunidade ou por entidades que colaboram com a resolução
dessa problemática. 200
Analisamos que essa ‘timidez’ em participar mais ativamente das reuniões da
associação comunitária devia-se à complexidade das questões de gênero, que perpassam
essas relações. “As comunidades rurais, na sua maioria, se caracterizam,
predominantemente, pelo exercício do poder masculino, isso não é diferente nas áreas
consideradas quilombolas.” 201 Entendemos, e mais uma vez reforçamos, que estas
relações também envolvem sutis negociações. Em Rio das Rãs e na Brasileira a situação
se modifica a partir da conscientização das mulheres, que nos momentos dos conflitos
de terra passam a colaborar com as questões comunitárias e ganham importância dentro
do grupo. Foram determinantes numa ocasião em que os homens estavam proibidos por
fazendeiros de retirar produtos de uma determinada região:
Elas foram se envolvendo, participando das discussões, colaborando
com a resistência. Exemplo disso foi à participação delas à frente da
coleta da produção na área do lameiro, no período em que os homens
estavam proibidos pelo fazendeiro de retirar da área os produtos.202
Os obstáculos à participação feminina são vencidos à medida que as
necessidades de sobrevivência e luta cotidiana se tornam prementes e, aos poucos elas
transpõem barreiras sociais e inscrevem o seu protagonismo na história das lutas
comunitárias. Os lugares onde exercem esta liderança na comunidade são variados,
desde os organismos políticos da localidade, na educação dos filhos, no cuidado com a
horta, a pastoral da criança e os cursos de corte e costura. O certo é que vão tomando o
seu lugar no grupo e dando peso às decisões coletivas. “Destaque especial pode ser dado
à participação das mulheres, principalmente nos momentos mais críticos, quando o
conflito estava em andamento e se fazia necessária à participação de todos.” 203
A comunidade de Rio das Rãs é vista por outro viés na pesquisa de Rosângela
Miranda, em que narra as experiências femininas das mulheres negras da região. As
mulheres figuram em toda narrativa de Rosângela Miranda, desde os conflitos de terra,
suas práticas cotidianas e a manutenção das tradições culturais da comunidade que têm
200 DUTRA, 2007, p. 71. 201 Ibid., p. 70. 202 DUTRA, Op. Cit., p. 71. 203 Ibid., p. 75.
84
grande influência na construção identitária da localidade. “Por meio da memória, as
mulheres tornaram-se testemunhas oculares dos assuntos da comunidade e da luta pela
sobrevivência.” 204 As experiências históricas dessas mulheres são elaboradas a partir de
suas vozes, os enfrentamentos, as negociações e os lugares de poder que são assumidos.
(...) as mulheres do Rio das Rãs dinamizam na lida diária, pois seu
cotidiano, é marcado por tensões e contradições. Nessa perspectiva
estabelecem vínculos entre as experiências cotidianas e a expressão do
corpo, demonstrando muita garra e luta. Suas narrativas exercitam
lembranças de suas origens, das suas vivências e estimulam a
fortalecer os liames do grupo. É por meio dessas narrativas que
compreendemos os fios das suas histórias, sua organização de luta e
de continuidade por novas vivências ligadas aos aspectos culturais, ao
trabalho e aos projetos vindouros. 205
Rosângela Miranda traz o escopo das relações cotidianas do Rio das Rãs num
contexto em que as mulheres tiveram relevância para a construção da identidade local.
Reinventaram as suas práticas diante dos desafios que a luta pela terra ofereceu e são
elas, em sua maioria, que hoje contam as agruras dos conflitos com os fazendeiros e o
processo de reconhecimento como quilombolas. O cotidiano se desvela com destaque
ao tempo de conflitos pela terra, as histórias de vida e as manifestações culturais.
Dessas manifestações culturais, tão encontradas nas comunidades quilombolas, a
religiosidade foi um dos suportes para a construção da identidade na comunidade
quilombola de Tomé Nunes,206 pesquisada por Leila Teixeira. As mulheres de Tomé
Nunes foram as grandes responsáveis pela manutenção das práticas culturais que já
possuíam desde os tempos que antecedem o reconhecimento da comunidade.
Inicialmente, tinham vergonha das rezas feitas na casa de oração, também chamado de
terreiro: “O Terreiro só deixou de ser perseguido quando a CPT organizou um encontro
com o professor Nivaldo Dutra, da UNEB/Caetité, que proferiu palestra sobre os negros
de África, suas tradições e a escravidão brasileira”.207 Após isso, uma maior
conscientização dos valores ancestrais afro-brasileiros foi iniciada na localidade.
204 MIRANDA, Rosângela Figueiredo. Experiências das mulheres negras do Rio das Rãs: resistência,
cotidiano e cultura – Bom Jesus da Lapa– BA. (1970-2009). 2011. Dissertação (Mestrado em História).
UNEB, Campus V, Santo Antônio de Jesus, 2011, p. 53. 205 Ibid., p. 25. 206 Localizada à margem do Rio São Francisco no município de Malhada/BA. 207 TEIXEIRA, Leila Maria Prates. Comunidade de Tomé Nunes: Memória e construção identitária no
Alto Sertão Baiano. 2010. Dissertação (Mestrado em História). UNEB, Campus V, Santo Antônio de
Jesus 2010, p. 55.
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Práticas religiosas que serviram como vínculos importantes para “a melhoria da
autoestima dos moradores locais e imprescindíveis para assegurar-lhes a posse da
terra”.208
Outros tantos exemplos de liderança feminina se apresentariam se fossemos
mapear as pesquisas sobre comunidades quilombolas na Bahia e em todo o Brasil. As
questões tratadas nestas pesquisas figuram na trama de discussões sobre a mulher negra,
a liderança feminina, a identidade etnicorracial e os quilombos. São temas que devido a
fatores políticos e sociais ganharam destaque no Brasil nos últimos 20 anos. O ativismo
das mulheres do Tucum coaduna com a de muitas mulheres negras, militantes ou não,
que resistem a calar-se frente à oposição branca, machista e elitista. Em sua pesquisa
sobre mulheres negras e militantes, Michele Lopes Silva constata que as mulheres são a
maioria nos movimentos negros e feministas, no entanto, dificilmente tem suas
especificidades atendidas pelos movimentos que frequentam.
Podemos dizer, então, que as mulheres negras podem ser consideradas
mulheres em Movimentos e que estão em constante movimento. A
esse processo dinâmico vivido pelas mulheres nessas organizações
sociais denominamos demarcação da diferença entre os diferentes.209
São histórias femininas inscritas no labor diário e que ganham corpo nas
entrelinhas das relações do grupo. E será por essas entrelinhas, silêncios e declarações
que se realizam nas relações cotidianas, que iremos agora enveredar pelo universo das
mulheres do Tucum. Interessa-nos aprofundar nos modos de vida, nas redes de
solidariedade, nos desafios vários que a vida no campo oferece.
2.3 As mulheres do Tucum: gênero, corpo e oralidade
Estas mulheres onde o diabólico e o divino se alternam, que oscilam
entre o além e o aquém do humano são, entretanto, um objeto
colocado no espaço do qual se distingue o olhar. (Michel de Certeau) 210
208 TEIXEIRA, 2010, p. 58. 209 SILVA, Michele Lopes da. Mulheres Negras em movimento(s): Trajetórias de vida, atuação política
e construção de novas pedagogias em Belo Horizonte – MG. Dissertação de Mestrado em Educação.
UFMG, 2007, p. 18. 210 CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p. 232.
86
No contato com a comunidade quilombola do Tucum nos deparamos com
mulheres de diferentes gerações e experiências de vida: senhoras com a pele marcada
pelo tempo, olhos vívidos e sagazes; mulheres de meia idade que trazem o mundo nos
olhos e o trabalho nas mãos firmes e calejadas; jovens, herdeiras da força das mais
velhas: fortes, vivazes e atuantes. Algumas são mães, filhas e avós de uma mesma
família e na genealogia das famílias da região vão se delineando as estratégias
femininas, os modos de vida e as reminiscências do lugar. Esta distinção no olhar da
qual fala Michel de Certeau, aplica-se a essa mulher que “torna-se chefe de família e
rompe com os preceitos sociais, não obstante o ideário tradicional feminino e as
dificuldades socioeconômicas encontradas, dando origem a uma nova prática social e a
uma nova condição feminina”. 211
Maria Odila da Silva Dias alerta que “o descortinar as estruturas do quotidiano
ao nível de organização domiciliar, familiar e das parentelas e vizinhanças constitui
terreno difícil”. 212 No entanto, ao longo do século XX, a luta das mulheres negras ganha
visibilidade, especialmente por meio de sua organização, como é o caso da Associação
de Trabalhadoras Domésticas criada em São Paulo na década de 1930. Cabe lembrar,
conforme Adeildo Silva e Edjan dos Santos analisaram, que “a centralidade do trabalho
doméstico aparece tendo em vista o fato de ser a principal atividade exercida
majoritariamente por mulheres negras”. 213 A criação do Conselho Nacional da Mulher
Negra (CNMN), em 1950, é outro fato que traz visibilidade às mesmas, acrescida aos
elementos da cultura de massa que fazem parte do cotidiano, como “a música popular
brasileira, as escolas de samba, o esporte entre outras frentes, são importantes para o
protagonismo dessas mulheres”.214 Dessa maneira, as mulheres negras foram
desenvolvendo e consolidando estratégias de sobrevivência e protagonismo em diversos
âmbitos.
Considerando tais dinâmicas presentes na historicidade das mulheres negras no
Brasil, as mulheres quilombolas do Tucum também se incluem nos diversos lugares
sociais, políticos e culturais que vêm ocupando, a exemplo do papel de relevo nas
211 LIMA, Elane Andrade Correia. A nova condição feminina: as mulheres do seringal. In: CLOUX,
Raphael Fontes (Org.) Resistências e contestações: movimentos sociais, política e ideologia. Salvador:
Kawo-Kabiyesile, 2013, p. 226. 212 DIAS, 1995, p. 17. 213 SILVA, Adeildo Vila Nova. SANTOS, Edjan Alves dos. Mulheres negras: histórias de resistência, de
coragem, de superação e sua difícil trajetória de vida na sociedade brasileira. Santos: Governo do Estado
de São Paulo, 2010, p. 63. 214 Ibid., p. 63.
87
decisões da comunidade, perceptível desde os primeiros contatos em 2009. O direito à
fala configura-se num lugar de poder por meio do qual podem agir, assumir posturas e
ressignificar relações. Através de uma linguagem própria, constituem suas narrativas e
acolhem o desafio de enfrentar os obstáculos de sua condição de subalternidade. Elas
têm voz ativa em muitas situações e são “guerreiras” nos âmbitos em que precisam
atuar. E assim são descritas por Maria do Carmo:
Elas são muito batalhadoras, elas são mulheres que se tivessem
mesmo assim, um trabalho, um desenvolvimento no trabalho, elas não
teriam dificuldade para sobreviver sabe? Porque são mulheres que vão
mesmo a luta, buscam o barro para fazer a panela, outras tiram a palha
para fazer a vassoura, outras vão pro café, mesmo num, não olham a
distância, mas elas vão em busca da luta, do trabalho do dia a dia. São
guerreiras mesmo. 215
A vida das trabalhadoras rurais216 na comunidade quilombola do Tucum é
permeada pelo enfretamento de desafios de diversas ordens, desde as relações mais
comezinhas ao sustento e manutenção do lar. Aos poucos suas falas vão revelando os
pequenos anseios e frustrações do cotidiano. Através das histórias que continuam a
vivenciar no curso do tempo, puderam constituir uma linguagem própria e que se
corporifica em gestos e signos, a qual pode ser expressada pela oralidade, principal
meio de manutenção e manifestação de suas memórias, tradições e crenças, conforme
Edinelia Souza observa que
Esse tipo de linguagem, articulando oralidades com gestos e signos do
corpo, marca a presença viva dos sujeitos num espaço reconstruído
pela memória, dando concretude às vivências que imortalizaram o
tempo, tornando possível um diálogo entre experiências passadas e
atitudes presentes. 217
215 Entrevista com Maria do Carmo Oliveira Silva, no Tucum, em 04/08/2012. 216 O trabalho agrícola aqui pensado “designa acima de tudo as técnicas, o trabalho agrícola
recompensado pelas colheitas e os agricultores com suas maneiras próprias de viver, o que a distingue
da vida urbana e industrial”. LINHARES, Maria Yeda. História agrária. In: CARDOSO, Ciro Flamarion
e VAINFAS, Ronaldo (Orgs.) Domínios da História: ensaios de teoria metodologia – Rio de Janeiro:
Campus, 1997, p. 246. 217 SOUZA, Edinelia Maria Oliveira. Memorias e tradições: Viveres de trabalhadores rurais do
município de Dom Macedo Costa – Bahia (1930 – 1960). Dissertação de Mestrado PUC/SP. 1999, p.
38.
88
A linguagem é um território no qual as relações de poder se materializam. O
direito à fala, ao argumento, à expressão, constituem conquistas políticas. Antônio
Torres Montenegro observa que a fala é um instrumento importante para as populações
marginalizadas, pois é a partir dela e para além de um reducionismo linguístico que, nas
experiências cotidianas desses grupos, conceitos e discursos são recriados e se
redimensionam no campo das relações sociais. 218 A passagem do tempo não tem o
poder de alterar o que passou, no entanto, à medida que os acontecimentos são narrados
e apropriados por uma coletividade, são modificadas as suas percepções e
representações, que se reconfiguram no seio do grupo.
Numa estrita relação entre o corpo e a memória, a fala se realiza em conjunto
com a corporalidade. Ambas são indissociáveis no processo de relembrar o passado a
partir de uma perspectiva do presente. A oralidade aflora, por vezes, aliada às noções do
corpo, 219 às vivências, ao sentimento de pertença, às afirmações identitárias que juntas
se amalgamam num discurso e numa prática que ressignificam os modos de vida.
As palavras dão existência e significado ao corpo como lugar da
experiência vivida; a memória denuncia a condição de subalternidade
evidenciada nas desordens do corpo, que indefinem os sujeitos,
tornando-os meio homens, meio animais, o que assinala para os fortes
vínculos de sua cultura com a natureza, assim como para a violência
física e moral mantida nas relações de poder que traduzem seu viver. 220
O corpo desvela as experiências, mas também as alteridades, as dominações e as
violências simbólicas ou não que se corporificam nas relações entre os sujeitos. Dessa
maneira, pode-se pensar que a noção de corpo funciona como mecanismo de
autoafirmação que se materializa na linguagem. Esta autoafirmação dá-se numa
tentativa de legitimar tradições, crenças e pertença a um grupo; oralidade e o corpo se
complementam em elucidar às experiências individuais e coletivas.
Como apontado por Roger Chartier, “um objeto maior da história das mulheres é
então o estudo dos discursos e das práticas, manifestos em registros múltiplos, que
218 MONTENEGRO, Antônio Torres. História oral, memória e cultura popular revisitada. São Paulo:
Contexto, 2007, p. 39. 219 Sobre a história do corpo Roy Porter observa que: “Devemos enxergar o corpo como ele tem sido
vivenciado e expresso no interior de sistemas culturais particulares, tanto privados quanto públicos, por
eles mesmos alterados através dos tempos.” PORTER, Roy. História do Corpo. In: Peter Burke (Org.).
A Escrita da História. São Paulo, Ed. UNESP, 1992, p. 295. 220 SOUZA, 1999, p. 6.
89
garantem (ou devem garantir) que as mulheres consintam nas representações
dominantes da diferença entre os sexos”.221 Esse consentimento não significou
submissão visto que
Nem todas as fissuras que corroem as formas de dominação masculina
tomam a forma de dilacerações espetaculares, nem se exprimem
sempre pela irrupção singular de um discurso de recusa ou de rejeição.
Elas nascem com frequência no interior do próprio consentimento,
quando a incorporação da linguagem da dominação se encontra
reempregada para marcar uma resistência. 222
Pensar a relação entre gênero e corpo, em especial nas representações do corpo
feminino, é necessário para que se desnaturalize percepções sexistas. 223 O domínio e a
desvalorização do corpo feminino se configuram em formas de controle social, que
crescem se levados em consideração os critérios de raça e classe social. A mulher negra,
escrava, liberta ou mulata figurou nos relatos de visitantes, nativos e cientistas da época
numa representação da sensualidade e erotismo: “Religiosidade pagã, violência,
brutalidade, lubricidade, lascívia, promiscuidade, corpos de mulheres vertendo “a grossa
luxúria negra”, provocando a libertinagem de homens desta raça (negra), “gorilas
assanhados”. 224 Essas descrições vinham carregadas de preconceitos que
estigmatizavam a mulher negra, o que maximizava o controle social sobre seus corpos e
estilos de vida.
Neste sentido, cabe pensar os lugares de subversão das mulheres negras. Suas
experiências e trajetórias apontam que muito provavelmente eram em suas relações de
trabalho que os lugares de consentimento e deslocamento na linguagem de dominação
se realizavam. A produção historiográfica baiana mostra que a mulher escrava transitou
por muitos ofícios desde as casas senhoriais, lavouras, trabalhos artesanais e o
comércio. Ainda que a divisão dos papéis e funções ocorresse por distinções de gênero,
221 CHARTIER, Roger. Diferenças entre os sexos e dominação simbólica. In: Cadernos Pagu. Campinas,
n.4, 1995, p. 40. 222 CHARTIER, 1995, p. 42. 223 Sobre as representações do corpo feminino, ver: JAGGAR, Alison M. ; BORDO,Susan R. [editoras].
Género, corpo, conhecimento /, tradução de Brítta Lemos de Freitas. - Rio de Janeiro: Record: Rosa dos
Tempos, 1997; Martha de Abreu Esteves. Meninas perdidas. Os populares e o cotidiano do amor no Rio
de Janeiro da “Belle Époque”. São Paulo, Ed. Paz e Terra, 1988; Rachel Soihet. A sensualidade em
festa: algumas representações do corpo feminino nas festas populares no Rio de Janeiro – séculos XIX e
XX. Diálogos Latinoamericanos, CLAS – Centro de Estudios Latinoamericanos. Universidade de
Aarhus – Dinamarca, 2/2000, p. 92-114. 224 SOIHET, 2000, p. 101.
90
não era incomum encontrarem-se mulheres chefes de família. A reflexão sobre o gênero
e as questões etnicorraciais tornam-se premissa relevante para o deslocamento das
generalizações feministas e das discussões raciais.
As percepções de corpo e memória se agregam às reminiscências de um grupo,
enquanto essas vivências, apropriadas pelo indivíduo, dão-se na corporeidade e no
sentido de existir.225 Edinelia Souza alerta sobre esse processo, tendo em vista não ser
estanque e ocorrer na mesma proporção em que as tradições de um grupo estão sendo
dissolvidas pelos imbrincamentos e trânsitos culturais. 226 As alteridades daí decorrentes
só atestam que as identidades estão em constante construção.
A complexidade das relações sociais em comunidades quilombolas tem
propiciado a construção de identidades marcadas pela diversidade, na qual a pertença ao
território e às subjetividades dos sujeitos operam na direção de novas identidades. As
mulheres negras rurais são diretamente influenciadas por este processo, quando, dentro
das associações, ajudam na consolidação de um projeto político para a comunidade,
resultando por transformar a sua própria identidade. Oriundas de um processo de
múltiplas exclusões, as identidades dessas mulheres são fortemente influenciadas pela
paisagem e modo de vida rural, onde se realizam as suas noções de corpo e
pertencimento ao grupo. Conforme Elisabeth Cruz, o corpo dessas mulheres, ao
denunciar as alteridades, não reflete somente a sua origem campesina, mas as
“condições de trabalho, precárias e mais duras do que na cidade, realizado sob o sol
quente, que queima a pele e transforma a imagem da mulher rural”. 227
Em seu fazer social, as mulheres negras e rurais constroem narrativas que
reconduzem suas práticas, ficando enunciadas nas trajetórias da comunidade, em suas
conquistas e lutas. A tenacidade da mulher negra rural é perceptível entre as mulheres
no Tucum, pois, através de suas lembranças de tempos que só ouviram contar,
continuam a atuar no reforço identitário, que remodela suas posturas, visões de mundo e
da comunidade. As posturas e a proatividade dessas mulheres reconfiguraram sua
condição feminina, na renovação das atitudes e papéis que assumem junto ao grupo. A
fala e a corporalidade se revelam no processo de socialização de suas lembranças, onde
225 MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994. 226 SOUZA, 1999, p. 40. 227 CRUZ, Elizabeth Ferreira da. Ação política, transformação social e reconstrução de identidades -
Um olhar a partir do feminismo para a militância das mulheres rurais nos movimentos sociais. 2008.
Dissertação (Mestrado em Sociologia). Fortaleza, Universidade Federal do Ceará – UFC, 2008, p. 141.
91
a possibilidade de reviver e discorrer sobre elas torna-se um elemento de sua
historicidade, de saber de onde vieram e quais as suas origens, como nos revela Rita:
Faço parte da comunidade, sou quilombola, agora sou a presidente da
associação. A gente tinha uma curiosidade como nossa família, nossos
bisavôs vieram né? Refugiado né? Da África, vieram pra esse local
aqui, nem sobrenome eles não tinha, só tinha o nome, mas não tinha
sobrenome. Aí é tanto da parte do meu pai, como da parte de minha
mãe, aí a gente teve a curiosidade de criar a história, aí minha mãe
como ela já estava mais engajada no outro tema e tava na curiosidade.
Mas como é que a gente chegou aqui? Como que veio esse
sobrenome? De onde veio? Aí a gente foi pesquisando através dos
mais idosos, os idosos falavam uma coisa pra gente e aí a gente ia
escrevendo os questionários, escrevendo nos cadernos e deixando.228
No estudo das trajetórias femininas do Tucum, busca-se colocar em evidência as
articulações sociais e o engajamento dessas mulheres nos seus hábitos e relações. A
partir das reflexões sobre gênero, corpo e oralidade, apresentaremos neste capítulo o
cotidiano das mulheres negras e quilombolas do Tucum em sua condição social e
cultural. Neste ínterim, algumas questões se fazem necessárias para prosseguir nesta
reflexão: Quais representações motivaram a construção das identidades femininas no
Tucum? Que acontecimentos e situações determinaram que algumas mulheres
assumissem o papel de liderança na comunidade? Ao longo do texto estas questões
serão destrinchadas através dos relatos orais.
2.4 As mulheres do Tucum em suas lidas e lutas
Tua matéria é o tempo, o incessante
Tempo. Tu és todo solitário instante.
(Jorge Luís Borges) 229
A singularidade das experiências do feminino faz com que o próprio saber
histórico seja contraposto, visto que “não se trata, pois, de incluir a experiência feminina
em experiência histórica já elaborada”.230 Inscritas no tempo, ‘o incessante tempo’
228 Entrevista com Maria Rita Oliveira Silva, no Tucum, em 24/08/2014. 229 BORGES, Jorge Luís. A divina comédia. In: BORGES, Jorge Luís. Obras completas. São Paulo:
Globo, 2000, p. 353. 230 MALUF, 1995, p. 20.
92
descrito por Jorge Luís Borges, as mulheres se constituem em um objeto desafiador. O
desafio de trazer à luz o quotidiano feminino está para além de uma oposição entre
sexos e, sim em reconstituir relações de gênero, o que envolve tensões e mediações de
poder.
Na atualidade, a mulher negra luta por seu espaço no mundo do trabalho,
associações, faculdades e nas múltiplas relações sociais, onde em diversos âmbitos
busca romper com as nominações racistas e sexistas. Podemos agora pensar sobre as
significações em ser mulher negra e quilombola, visto que, diferente da mulher negra e
urbana, as primeiras são diretamente influenciadas pela conjuntura das relações no meio
agrário, a divisão do trabalho entre os gêneros, as lutas e negociações pela terra e a
liderança. Rosângela Miranda, ao falar da experiência das mulheres quilombolas de Rio
das Rãs, diz que:
Em se tratando de sertão, tradicionalmente a vida das mulheres era
dividida entre a casa e a roça, levando-as à condição de sujeitos
invisíveis, sem o reconhecimento social. (...) A mulher se fazia
presente na luta pela terra, nos afazeres domésticos e nos trabalhos dos
roçados. Enquanto os homens estavam negociando a posse da terra,
eram elas que limpavam as terras, plantavam e ainda preparavam os
alimentos 231
Estas também são as experiências das mulheres do Tucum. Em suas narrativas,
contudo, pudemos constatar que, em suas itinerâncias, elas foram driblando limitações e
assumindo posturas e lugares de liderança. Quem são elas? Como vivem e se
relacionam? Quais são estes lugares de liderança? Estes questionamentos serão, agora,
respondidos.
2.4.1 Mães, líderes, paneleiras e guardiãs da memória
As mulheres do Tucum, algumas de que já falamos e outras que aparecerão
agora, serão aqui apresentadas com os seus nomes e assinaturas verdadeiros. As
entrevistas foram realizadas entre os anos de 2012 e 2015 e, ao utilizá-las, tentaremos
manter o máximo de fidelidade à forma falada. 232 Quem são essas mulheres, como
231 MIRANDA, 2011, p. 55. 232 As primeiras entrevistas foram realizadas em 2009, mas como o foco da pesquisa modificou-se ao
longo do tempo não achamos pertinente utilizá-las.
93
vivem e que anseios e esperanças marcam suas trajetórias, são questões sobre as quais
vamos nos debruçar a partir de agora.
A primeira delas, já apareceu de forma recorrente no texto: Maria do Carmo
Oliveira Silva de 66 anos, 233 apelidada de Carminha ou Carmem, nasceu no Tucum e
foi a primeira das oito filhas de Edelvira Silva Oliveira e Celso José da Silva. Recebeu o
seu nome em homenagem a sua avó paterna, por parte de quem seria bisneta de Cândido
Pinto, um dos fundadores do Tucum. Casada, mãe de cinco filhos e também avó, agrega
funções em casa, na igreja e na Associação, mesmo por isso é uma das principais
lideranças da comunidade.
Carmem é uma mulher que enfrenta os desafios impostos por sua condição
feminina na luta por seu espaço. Nascida num período em que o acesso à escola era
dificultado, Carmem não se desestimulou, e aos 59 anos concluiu o Ensino Médio. 234
Atualmente cursa o quarto ano da Escola de Teologia para leigos da Diocese de
Livramento de Nossa Senhora, que diz estar fazendo para poder ajudar seus
companheiros de alguma maneira e por se sentir instigada a estudar a temática. Carmem
está sempre envolvida nas ações que possam melhorar a vida na comunidade, desde a
luta por seu reconhecimento como quilombola, a vinda de cursos e palestras que possam
conscientizar os moradores dos seus direitos, os mutirões onde ela e outras mulheres
cozinham, limpam a igreja e promovem eventos na comunidade.
Hospitaleira, a casa amarela onde mora no alto de uma ladeira, está sempre
aberta a receber os agentes externos que visitam a região. Em sua casa foram realizadas
as três entrevistas aqui utilizadas, duas realizadas no mês de agosto em 2012 e 2014, e a
última realizada no mês de maio de 2015. Abaixo na figura 7, ela aparece acompanhada
de seu esposo Olegário Oliveira, em uma foto feita nos fundos de sua casa no Tucum.
233 As idades de todas as mulheres listadas a partir deste momento tem por referência o ano de 2015. 234 Em 2008 na cidade de Brumado/BA.
94
Figura 7 – Maria do Carmo Oliveira Silva e seu esposo Olegário.
Autor: Karla Dias. 04/08/2012.
A genealogia da família de Carmem é composta por mulheres que dominaram os
espaços e alcançaram o respeito dos demais, um exemplo está em sua filha Maria Rita,
atual presidente da Associação, cargo já ocupado por Maria do Carmo em outras
épocas. Maria Rita Oliveira Silva, de 39 anos, herdou de sua mãe e da avó não apenas
os traços fortes, mas a firmeza na fala e a coragem para liderar, apontar os problemas da
comunidade e buscar melhorias que abranjam a todos. As entrevistas com Rita
ocorreram em agosto de 2014 e maio de 2015.
Maria Rita não é só mais uma entre as muitas “Marias” da família de Carmem, é
uma herdeira da coragem das ancestrais diretas. Pertencente à terceira geração da
família de D. Edelvira, Rita deu um curso diferente à sua vida ao escolher, não
permanecer em um casamento por convenção e a ter menos filhos. Casou-se muito nova
e há oito anos separou-se do marido. Desta relação, Rita teve uma filha, Celi, hoje com
15 anos. Em sua fala, Rita deixa antever que, diferente das outras gerações de sua
família, sua coragem se realiza na força para enfrentar as mudanças e nos desafios de
criar sua filha sem um companheiro em uma comunidade patriarcal. Na figura 8, Rita
aparece ao lado de algumas meninas do Tucum.
95
Figura 8 – Maria Rita Oliveira Silva com crianças da comunidade no barracão da Igreja
do Tucum de Cima.
Autor: Karla Dias. 23/08/2014.
Trabalho constante é também o estilo de vida de Maria Rosa da Silva, paneleira
de 47 anos. Rosa nasceu na Tapagem, povoado próximo ao Tucum, e aprendeu a fazer
panelas com as mulheres de sua família. 235 Atualmente, mora próximo ao núcleo
principal do Tucum com marido e filhos. Como o Tucum não oferece muitas
possibilidades de trabalho, anualmente Rosa sai para a colheita de café, que a ocupa por
cerca de três meses e lhe ajuda financeiramente a complementar a renda das panelas. O
trabalho com o barro é uma das tradições mais antigas do Tucum e já representou a
principal forma de sustento das famílias da região. Hoje, poucas mulheres se dedicam a
este trabalho, sendo Rosa e sua irmã Lindaura, as principais paneleiras da região. A
figura 9 abaixo foi feita na casa de Rosa no Tucum, onde a entrevistamos em agosto de
2012.
235 O Tucum é composto pelas localidades de Tapagem, Lagoa da Pedra, Batateira e Fazenda Velha. A
Tapagem fica a pouco mais que 2 Km do núcleo principal de casas do Tucum. Faz parte do “Tucum de
Cima”, como é chamado por lá.
96
Figura 9 – Maria Rosa da Silva.
Autor: Karla Dias. 04/08/2012.
Lindaura Silva, irmã de Rosa, tem 55 anos, já foi casada e desse relacionamento
teve nove filhos, mas um faleceu ainda criança. Há dez anos se divorciou por não
aguentar o alcoolismo do cônjuge. Ao falar sobre o assunto, afirma sorridente que hoje
está muito melhor e que já conseguiu outro companheiro, pois viver sozinha é coisa
muito ruim. A figura 10 abaixo mostra o nosso último encontro em que ela nos recebeu
com as roupas sujas de barro e nos levou para o fundo de sua casa para conversarmos
enquanto modelava as peças de barro.
97
Figura 10- Lindaura sorridente na porta de sua casa na Tapagem.
Autor: Karla Dias. 30/05/2015.
Sempre sorrindo, Lindaura diz que trabalha com o barro “desde que se entende
por gente”. Com esse trabalho criou seus filhos, que vivem próximos a ela no povoado
da Tapagem. É famosa no Tucum e na cidade de Tanhaçu pelos seus artefatos de barro
de rara beleza, é tão hábil no trato com o barro, que Rosa ao se referir a ela diz que “ela
sim, é uma profissional do barro”. Consideramos que a postura e firmeza de Rosa e
Lindaura também se configuram numa liderança local. Ao manter a tradição da
fabricação das panelas, ambas estão confrontando suas realidades em prol de seus
objetivos. Como diz Rosa : “[...] a origem nossa vem do barro”. 236 E desse trabalho
alimentaram os seus filhos durante muitos anos, do barro aos enfrentamentos cotidianos
pela sobrevivência.
Paneleira em outros tempos, Edelvira Oliveira Silva de 81 anos, está entre as
guardiãs da memória local. É uma senhora negra, forte, que traz no rosto as marcas do
tempo e da vida árdua de trabalhadora rural. Mãe de Maria do Carmo, Edelvira figura
entre as mulheres mais velhas que foram entrevistadas para a elaboração da “Declaração
236 Entrevista com Maria Rosa Silva, no Tucum, em 04/08/2012.
98
de auto-reconhecimento” da comunidade. Nascida no Tucum, filha de Manoel Jacinto
Silva e Mariana Rosa Silva, casou-se com Celso José da Silva com quem teve nove
filhos. Com a firmeza e espontaneidade vai rememorando outros tempos, as dores, os
ausentes e as mudanças que o curso da vida legou aos seus. Matriarca de uma grande
família, D. Edelvira se lembra de tempos de grande agrura quando moravam em casas
de palha e tinham dificuldades para sobreviver por conta da pobreza da região. Apesar
disso, fala das chuvas que favoreciam as plantações e das coisas que abriu mão na
urgência por sobreviver. D. Edelvira aparece abaixo na figura 11.
Figura 11 – Edelvira Oliveira Silva
Autor: Karla Dias. 23/08/2014.
Outra das guardiãs da memória local, Maria Santana ou Dona Mariazinha como
gosta de ser chamada, nos conta que aos 16 anos e meio de idade veio de um lugar
chamado Paraíso237 para se casar no Tucum, aproximadamente no início da década de
1940. Viveu uma infância difícil por conta do falecimento precoce do seu pai, evento do
qual diz se lembrar com nitidez. Sua mãe ficou com seis filhos para criar; ela, sendo
237 Zona rural de Tanhaçu, no sentido de Contendas do Sincorá/BA.
99
uma das mais velhas, passou a ajudar neste mister até sair de casa para se casar. Seu
esposo era mais velho que ela dezoito anos, deste casamento foram gerados oito filhos,
dos quais estão vivos sete.
Com 88 anos na ocasião da entrevista, há quase dez vive acamada por conta de
uma queda que a privou de andar. Mesmo na cama continua a fazer bordados e a
lembrar-se dos tempos antigos em que o Tucum era menos povoado. Muito lúcida,
gosta de conversar ainda que sua audição esteja um pouco comprometida. Na figura 12,
ela aparece no quarto onde nos recebeu.
Figura 12 – Dona Mariazinha.
Autor: Karla Dias. 24/08/2014.
Em 2012, ano em que entrevistamos Dona Anízia, ela era então uma das mais
antigas moradoras do Tucum. Em agosto de 2013, ela veio a falecer com 93 anos. D.
Anízia, que também foi entrevistada para a confecção da “Declaração de auto-
reconhecimento” da comunidade, nasceu na região da Tapagem, filha de Lau Tertuliano
Silva e Maria Elvira, por parte de pai seria sobrinha de Cândido Pinto, um dos
100
fundadores da comunidade. Mudou-se para o “Tucum de Cima” por ocasião de seu
casamento no final da década de 1930.
Mãe de 10 filhos, dos quais sete ainda estão vivos, duas estavam com ela; por
ocasião da entrevista, suas filhas Madalena e Maria. A elas passou tudo que sabia de sua
vivência - trabalhar na roça e fazer panelas de barro - e as criou colhendo algodão e
fazendo farinha para vender na feira de Tanhaçu. Ofício que aprendeu com sua mãe, que
era ‘panelêra pra viver’ e repassou para suas filhas: “Botei tudo pra aprender. Só Maria
que deu prosseguimento, mas eu ensinei as duas. Foi tudo que eu que ensinei elas, a
gente tinha isso e de vivê da roça mermo”. 238 Na figura 13 Dona Anízia aparece ao
centro, com suas filhas Madalena à esquerda e Maria à direita.
Figura 13 – Dona Anízia e suas filhas Madalena e Maria.
Autor: Karla Dias. 04/08/2012.
A geração das mulheres mais velhas do Tucum é composta por senhoras fortes e
lúcidas, como D. Mariazinha, D. Edelvira e D. Anízia. Observamos que todas são mães
e articulam outros papéis. Observamos em quais se articulam melhor e dividimos em
blocos as mulheres que ocupam os papéis de líderes, paneleiras e guardiãs da memória.
238 Entrevista com Maria Anízia Novais, no Tucum, em 04/08/2012.
101
O cotidiano dessas mulheres será desvelado a partir dos lugares que assumem junto à
comunidade.
Líderes
Maria do Carmo possui um perfil de liderança e proatividade nas questões
políticas do Tucum e, junto com ela está sua filha Rita. Ambas podem ser consideradas
as principais lideranças locais, fato reconhecido por outros membros da comunidade ao
falarem das relações com o grupo. Como na fala de Eliane Silva, moradora do Tucum:
Assim, é uma pessoa que é mais, que toma mais decisões aqui é
Carminha né? Por que é Carminha, Rita, é porque se tem alguma coisa
sempre tem alguma coisa que tem por exemplo que marcar reunião,
sempre é elas entendeu? E assim, se tem alguma coisa, elas são as
duas líder né, da comunidade. Que sempre as coisas são mais passadas
por elas, se vem um projeto é elas, uma reunião é com Carminha, que
comunica pra todo mundo que tem uma reunião de tal coisa assim,
assim. E eu acho que elas são duas líder na comunidade. 239
Em 2009, ano do início dessa pesquisa, Maria do Carmo Oliveira Silva era
então a principal articuladora política da comunidade. Nossos contatos se deram antes
disso, entre 2007 e 2008 em sala de aula, quando a mesma era aluna da Educação de
jovens e adultos (EJA) numa escola em Brumado. 240 Em seu percurso de vida e
trabalho, ganhou o respeito e a admiração dos moradores do Tucum que a ela recorrem
para tratar de suas questões e para ajudar na luta por algum direito. Os moradores do
Tucum são rápidos em dizer: “Mas quem sabe melhor sobre isso é Carminha”, deixando
em evidência ser ela quem tem um envolvimento direto com as questões locais. Seu
percurso nos lugares de liderança deu-se antes do reconhecimento da comunidade como
quilombola, quando foi presidente da Associação dos trabalhadores rurais do Tucum e
Capim-Áçu, 241 também, junto à igreja participava de muitos eventos em outros
municípios. Foi justamente em um desses eventos que entrou em contato com grupos
quilombolas da Chapada Diamantina:
239 Entrevista realizada pela autora com Eliane Silva Santana, no Tucum, em 24/08/2014. 240 Esses contatos se estenderam a cidade de Tanhaçu/BA, onde a autora lecionou na rede estadual entre
os anos de 2007 e 2009. 241 A Associação dos trabalhadores rurais do Tucum e Capim-Áçu passou a se chamar Associação das
Comunidade Quilombolas do Tucum no ano de 2010. Falaremos melhor sobre estas questões no último
capítulo.
102
Então, no início é como eu te falei, foi que eu andava muito lá em
Livramento de Nossa Senhora e lá eu encontrei com as pessoas que
são quilombolas e eles falou da gente conversava muito sobre a
importância da gente lutar, buscar algo pelos nosso direito né? Em
busca de algum projeto, alguma coisa. Aí a gente, aí eu vim e
conversei com o pessoal e nós fizemos, eu comecei fazer as pesquisas
com as pessoas mais idosas e eu pude fazer aquilo que eles passaram
pra mim.242
O processo de autorreconhecimento da comunidade do Tucum (do qual já
falamos no primeiro capítulo) partiu da mobilização de Maria do Carmo, com a ajuda de
sua filha Maria Rita e Eliane Silva Santana, moradora do Tucum. A fala de Maria do
Carmo retrata dois momentos, o primeiro no qual entrou em contato com os
quilombolas de Barra em Rio de Contas e o segundo dá-se na auto identificação da
comunidade do Tucum como quilombola, o que a levou a pesquisar os relatos dos
antigos moradores e organizar a “Declaração de Auto-reconhecimento”.
Muito ligada aos relatos e à memória do grupo, Carmem acredita que o processo
de rememoração foi importante para o fortalecimento do sentimento de pertença dos
moradores da comunidade. Lastima a morte de Dona Anízia e de outras senhoras, como
sua tia Vitalina “que era uma verdadeira escola”, pois guardavam as memórias de outros
tempos e atuavam como guardiãs das tradições antigas.
Carmem também participou ativamente da política local, em 2004 se candidatou
a vereadora em Tanhaçu, uma escolha que se mostrou um desafio e também uma
frustração em sua trajetória de liderança. Para ela foi uma grande surpresa não receber o
apoio do grupo num momento em que acreditava estar lutando pelos interesses de todos
e ver que votaram em um vereador de fora da comunidade. O fato dos outros acharem
“que política só é coisa de homem” a decepcionou profundamente por desejar a
melhoria do povoado do Tucum em sua proposta política. Foi quando ela sentiu na pele
o preconceito por sua condição de mulher negra, como deixa antever em sua fala
Ô até eu ainda até sentia assim na pele que assim até mesmo por parte
de homens, que poderia ter coisa que eles acham que só mesmo
homem né? Muitas coisas, aqui no caso mesmo eu entrei na política
em 2004 pra ser vereadora e eu sentia que até as própria minhas
colegas elas torciam mais pelos vereadores homens, aí eu senti na pele
242 Entrevista com Maria do Carmo Oliveira Silva, no Tucum, no dia 24/08/14.
103
e deu pra mim ter um exemplo, que parece que discrimina mais a
mulher, eles acham que a política só é coisa de homens!! 243
Para Carmem, a possibilidade de uma vitória só se realizaria com o apoio da
comunidade, visto que os moradores eram os principais interessados. Essa falta de
respaldo político revela questões históricas e culturais sobre o estilo de campanha
política nas cidades pequenas, onde o patriarcalismo e os grupos fechados mandam nos
rumos das urnas. 244
Pra mim mesmo na política eu achei aquilo uma frustração né? Por ter
aquela vontade de pudê fazer algo pela comunidade e a gente não ver
assim um apoio. Isso aí pra mim foi uma coisa que me deixou muito
surpresa, a convivência que eu tinha com elas né? Eu achava que elas
tinham assim o grau de compreensão, mas não, elas votaram no
vereador que não era da comunidade. Apesar de que não foi só eu,
mas todas as minhas colegas em Tanhaçu que vai fazer, nunca
ganharam por que quem tem maioria aqui é o homens. 245
Uma de suas queixas está na da falta de apoio das outras mulheres em relação ao
trabalho e à luta cotidiana. E diz que, apesar de comparecerem quando convocadas, a
grande maioria das mulheres não quer assumir responsabilidades, pelo que se angustia:
“Muitas vezes é difícil né? Uma pessoa só pra fazer uma coisa e às vezes tem que fazer
sozinho, tinha que ter o grupo de pessoas responsáveis por aquilo e elas aqui muitas
vezes elas não querem ter o compromisso, essa é a maior dificuldade”.246 Em
contrapartida, sente em casa o apoio do seu marido, com quem divide as demandas e
recebe apoio para suas ações:
Meu esposo...assim, eu as vezes eu faço as coisas mas eu levo prum
lado bem tranquilo, sabe? Eu não considero assim que eu tomo a
frente de tudo não. Ai a maioria das vezes eu chamo ele e a gente
divide assim os trabalho sabe? Ah isso aí ele entende. As vezes ele me
243 Entrevista com Maria do Carmo Oliveira Silva, no Tucum, no dia 24/08/14. 244 Sobre as questões que dificultam o acesso das mulheres aos cargos políticos estão: “Os fatores que
dificultam o acesso das mulheres em tal Poder, no Brasil, envolvem questões históricas e culturais, falta
de espaço na militância partidária, a resistente dominação masculina, o descaso dos candidatos à eleição
referente à mulher candidata, o poder financeiro na eleição versus a renda feminina e a estrutura
institucional patriarcal.” In: BRITO, Maria Inês do Rosário; OLIVEIRA; Jaqueline José Silva; SOUZA,
Roseane Cavalcante de. Fatores que dificultam o acesso das mulheres ao Poder Legislativo no Brasil.
Refacer - Revista Eletrônica da Faculdade de Ceres. V. 1, N. 1 (2012) p. 1-2. 245 Entrevista com Maria do Carmo Oliveira Silva, no Tucum, no dia 24/08/14. 246 Entrevista com Maria do Carmo Oliveira Silva, no Tucum, no dia 24/08/14.
104
dá até força, a hora que eu tô arrumando pra ir pra alguma viagem ou
alguma coisa ele ajuda muito, ele fala: “Tu tá atrasada’ e levanta cedo
e “Tu não disse que ia pra tal lugar assim, assim?” E é assim que ele
me dá muita força.247
Essa liderança comunitária é também dividida com Rita, sua filha. Como uma
mulher jovem e quilombola, Rita enfrenta os desafios estruturais da vida em
comunidade e os paradoxos que esses estabelecem com os seus anseios de mulher
independente, visto que “o modo como a sociedade representa o ser jovem, mulher e
negra tem raízes nas diferenças biológicas e nos significados sociais dessas diferenças
constituídas como expressão das relações hierárquicas de gênero, raça e geração”. 248 Na
formação da sociedade brasileira estas diferenças hierárquicas faziam com que a mulher
negra fosse subalternizada num processo de exclusão, silenciamento e controle social,
que a atingia em todos os âmbitos. A mulher negra, durante a escravidão era rebaixada,
na sociedade livre, impedida de emergir como figura política.
Com estes entraves históricos, naturalmente que o processo de aprofundamento
em seu fazer político e social não ocorre de forma simples e as mulheres quilombolas
precisam disputar espaços de poder. No Tucum, ainda que exista um núcleo de
liderança feminina, os pontos de vista masculinos ainda são muito fortes, requerendo
delas um constante jogo de cintura para driblar os obstáculos. Em 2013, Rita enfrentou
inúmeros desafios para chegar à presidência da Associação após uma candidatura
concorrida com Carlito Augusto Oliveira, uma das lideranças locais. A eleição foi
disputada, como ela descreve:
Veio gente de fora votar, veio muita gente e o povo da comunidade
revoltou e virou aquela polêmica, só que aí quando eu entrei eu fiquei
sozinha, não tive outra pessoa, eu sozinha eu ganhei com 50 e uns
51% dos votos, porque não tinham ninguém, mesmo assim se tivesse
foi muito bem votado, tive 11 votos brancos, 11 nulos e 2 brancos. 249
Como uma das principais articuladoras pelo reconhecimento da comunidade,
Rita agregou conhecimentos dos anos em que trabalhou junto à mãe e nos eventos
247 Entrevista com Maria do Carmo Oliveira Silva, no Tucum, no dia 30/05/14. 248 BASTOS, Priscila Cunha. Jovem mulher negra quilombola: identidades e Trajetórias. Fazendo
Gênero 9. Diásporas, Diversidades, Deslocamentos. 23 a 26 de agosto de 2010, p. 42. 249 Entrevista com Maria Rita Oliveira Silva, no Tucum, em 24/08/2014.
105
externos que frequentou, todos só acrescentam pontos em sua trajetória política e social.
Não bastasse trabalhar na associação e participar da liturgia na Igreja, ela ainda tem um
bar, com a renda do qual se sustenta. E observa que mesmo sendo “dona de bar”
ninguém nunca lhe faltou com o respeito. Essa postura proativa é analisada por
Petronilha Beatriz Silva como parte da combatividade que as mulheres negras assumem,
sejam militantes ou não:
A autoimagem positiva está representada pelas afirmativas de que ser
mulher negra implica "gostar da sua figura", "acreditar em si própria";
"não se sentir inferior, apesar das pressões"; "não abaixar a cabeça,
empinar o nariz, gostem ou não gostem"; "dizer o que pensa";
"assumir posições mesmo que pareça desaforada".250
Nos relatos e lembranças de Rita estão amalgamadas as suas vivências,
mescladas às narrativas de outros tempos de sua avó e de sua mãe. Essas memórias são
importantes para que entenda sua ascendência e possa lutar por seus direitos. Podemos
ver que a trajetória de Rita é marcada por sua atuação política que se corporifica na sua
fala, postura e firmeza. Em Rita se reúnem os traços físicos e a coragem de sua mãe e a
avó, sua postura decidida reflete o perfil da nova geração de mulheres do Tucum.
Maria do Carmo e Rita, por caminhos diversos e a aceitação das demandas da
locais tornaram-se lideranças femininas no Tucum. Essas duas mulheres circulam nos
lugares de poder da comunidade que, apesar de sua origem patriarcal, vê surgir uma
nova configuração de poder com o feminino. Cabe pensar até que ponto essa liderança
se apoia no mito fundador, visto que a família de Carmem afirma serem descendentes
de Cândido Pinto, nome que é sempre lembrado pelos mais velhos e que se amalgama
às famílias que hoje moram no Tucum. Avaliamos que a importância dessas mulheres
nos espaços que atuam lhes garante certo prestígio.
Paneleiras
Rosa é de uma família de paneleiras que mantém a tradição do fabrico do barro
por anos. “Aprendêmo mesmo assim ó, da mãe de meu pai, que era índia cabocla, aí ela
250 SILVA, Petronilha Gonçalves e. "Chegou a hora de darmos a luz a nós mesmas" - Situando-nos
enquanto mulheres e negras. Cad. CEDES, Jul 1998, vol.19, no.45, p. 8.
106
já tinha o dom e foi passano (passando), passano, passano e parou agora.”251 O passado
da comunidade se revela nessa reminiscência, abrindo a possibilidade de existência de
uma influência indígena nas tradições locais. Nos documentos referentes aos séculos
iniciais da colonização do Brasil, via-se que era muito comum apressamento de índias
nos sertões, com as quais os portugueses se uniam maritalmente. 252 Algumas etnias
indígenas tinham também por tradição a fabricação de artefatos de cerâmica, e um ponto
peculiar acrescido a isso é o fato de uma urna funerária indígena ter sido descoberta no
Tucum em 2011. Na ocasião, a equipe de arqueologia da UFBA (Universidade Federal
da Bahia) chefiada pelo Arqueólogo e Profº da UFBA Carlos Etchevarne, estiveram no
Tucum entre os meses de janeiro e fevereiro de 2012 e descrevem o achado:
O Sítio Tucum, como assim foi nomeado, é um grande sítio
arqueológico relacionado a um grupo indígena pré-colonial,
vínculado convencionalmente a uma macro-unidade cultural,
denominada Tradição Tupi. Os recipientes encontrados no local
possuem características deste grupo. O “pote” como ficou conhecido
em toda a região de Tanhaçu é um recipiente cerâmico, uma Urna
Funerária, com paredes e bordas grossas, parte externa muito
decorada, com desenhos cheios de detalhes, linhas bem finas pretas,
que se destacam no fundo branco e duas linhas grossas vermelhas.
Dentro da Urna Funerária, havia um recipiente cerâmico quase inteiro
- um assador, com decoração de fundo branco, linhas geométricas em
preto e uma linha vermelha bem grossa próxima a borda. Além destes,
foram encontrados outros fragmentos de matérias cerâmicos com as
mesmas características e também com decoração plástica. Durante as
prospecções foram encontrados no entorno da área muitos fragmentos
de material cerâmico. Foram feitas mais de vinte sondagens, mas
nenhuma outra urna foi localizada. (Grifos nossos)253
A descoberta da urna funerária ou mesmo o “pote” como chamam os moradores
é um ponto que suscita muitas questões ainda sem resposta sobre a trajetória da
comunidade, embora nos deixe mais propensos a conjecturar sobre a mestiçagem afro-
indígena já apontada no relato de Rosa e um traço muito comum daquela região. A
figura 14 mostra a urna funerária.
251 Entrevista com Maria Rosa Silva, no Tucum, em 04/08/2012. 252 Ver: Carta do Ir. Pero Correia ao P. Simão Rodrigues, Lisboa (S. Vicente, 10/03/1553), in: LEITE,
Serafim. Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil. Coimbra, Tipografia da Atlântida, Comissão do IV
Centenário da Cidade de São Paulo (v. I), 1954, p. 438. 253 ARQUEOLOGIA E IMAGEM. Escavações do Sítio Tucum, Comunidade Quilombola de Tucum
(Tanhaçu-Ba). 09/02/2012. Disponível em:
http://arqueologiaeimagem.blogspot.com.br/2012/02/escavacoes-do-sitio-tucum-comunidade.html
acessado em 07/08/2014.
107
Figura 14 - Urna funerária Indígena encontrada no Tucum em 2011.
Autor: Greciane Neres. Fevereiro de 2012.
A confecção de panelas é um ofício tão antigo, que muitas nem sabem
determinar quando começou a ser feito por suas famílias e quem as ensinou. Há alguns
anos quase todas as mulheres confeccionavam panelas para o seu sustento, atualmente
Rosa e sua irmã Lindaura são das poucas que ainda continuam com o ofício. Nas
entrevistas, algumas mulheres dizem que se desestimularam por conta do baixo valor
recebido pelas panelas e abandonaram o trabalho. A grande maioria delas são donas de
casa, trabalhando na colheita de café em alguns períodos do ano e se sustentando de
aposentadorias, pensões e do Bolsa Família.
As questões de gênero são marcantes, visto que o fabrico é uma tradição
geracional passada de mãe para a filha e exclusivamente realizada por mulheres. É um
conhecimento ancestral, um trabalho feminino por remeter às obrigações domésticas e a
lida com utensílios de casa. No trabalho com o barro se tornam independentes e donas
108
de sua vida. Sobre a produção de cerâmica, Jucélia Bispo dos Santos, ao falar da
comunidade quilombola de Olaria254 faz a seguinte observação:
Poucas mencionam que aprenderam a arte com alguém de fora da
família. Constam-se, desse exemplo, mulheres que aprenderam a
modelar o barro com a sogra. Dessa forma, o aprendizado volta-se
para as noras, já que os homens não fazem cerâmica. Esse
conhecimento vem da herança genealógica e do convívio com a
parentela. Nesse processo de demarcação da técnica de modelar o
barro, também se processa a demarcação do território da resistência
cultural. A produção de cerâmica é desenvolvida entre famílias que
possuem a prática de tornear o barro e fazer objetos que são vendidos
na feira livre local. 255
Algumas semelhanças podem ser encontradas entre a produção de cerâmica na
comunidade de Olaria e no Tucum. A produção de cerâmica dá à comunidade de Olaria
um perfil de originalidade que, segundo a autora, é um modo de resistência cultural dos
moradores, visto que só eles fabricam objetos de barro na região de Irará. Mesmo a
agricultura sendo um dos aportes econômicos, os moradores não têm terras para plantar,
o que torna a produção de cerâmica uma atividade lucrativa, ainda que não sejam lucros
vultosos. No Tucum, o trabalho com o barro já foi um dos principais aportes
econômicos em épocas difíceis para a maioria das famílias entrevistadas, hoje o Bolsa
Família e o trabalho sazonal na lavoura de café tem sido a base do sustento das famílias
da região.
Como na comunidade de Olaria, as paneleiras do Tucum também “têm um
domínio empírico e teórico de fabricação de objetos de barro”. 256 Rosa fala sobre as
técnicas de fabricação de panelas e as peculiaridades do processo como a necessidade
de um barro específico e o tempo que deve permanecer no fogo. É um trabalho artesanal
e familiar sem grandes elaborações ou planejamento comercial. Mas Rosa não se
desestimula, apesar dos valores baixos recebidos pelas panelas, aprecia o seu trabalho e
diz ter esperança de que ela e Lindaura possam ser as “empresárias do barro”: “É um
trabalho assim, que não é bem reconhecido, pelo trabalho que tem, era pra ter mais
valor, não tem aquele valor que devia ter né? Mais um dia a gente chega lá né? Mais é
254 Localizada no município de Irará/BA. 255 SANTOS, Jucélia Bispo dos. Relações de Gênero e Produção de Cerâmica na Comunidade
Quilombola da Olaria, em Irará-Bahia. Revista Latino-americana de Geografia e Gênero, Ponta
Grossa, v.1, n., p. 134-147, jan. / jul. 2010, p. 137. 256 Ibid., p. 137.
109
muito bom, é limpo, é um serviço lindo”. 257 Outra opção para se manter é a colheita de
café, que mobiliza homens e mulheres de toda comunidade:
Agora mermo é assim, eu paro de fazer panela e vô pra colheita de
café. Já tá até terminando, por essas duas semanas termina a colheita
de café, aí eu já começo nas panelinha de novo. Trabalho aqui é muito
difícil, não tem né Carmem? Depois da seca que deu aí, não deu mais
nada essas coisas. Agora o café eu panho, todo ano eu panho aqui em
cima em Zé258. Aí quando termina eu volto pra minha panela. 259
Em suas falas, Rosa diz ter certeza que o seu trabalho é um dom de Deus, que
veio espontaneamente, sem precisar de muitos ensinamentos. Apesar de ter tido acesso
aos estudos e a aprender a ler e escrever, Rosa tem sua vida marcada pelo trabalho e o
cuidado com a casa. Sente que as tradições estão se perdendo e não acredita que o
fabrico de barro vá passar às novas gerações, visto que suas filhas e sobrinhas não têm
interesse no trabalho.
Lindaura mora no povoado da Tapagem que fica a cerca de 12 Km de Tanhaçu.
É na feira da cidade que ocorre na segunda-feira que elas vendem as suas panelas.
Lindaura se interessou em passar o ofício do barro para as suas descendentes diretas,
mas uma de suas filhas mora em Franca/SP e não aprendeu a fazer panelas, e a outra
filha, que mora próximo a ela, a ajuda, mas queixa-se: “essa juventude não quer mais
nada mais não”. Seu filho mais velho Luciano e sua esposa Eva também participam da
vendagem das panelas. Na última vez que estivemos na Tapagem, ela nos mostrou uma
peça pequena muito bem modelada feita por sua neta Bruna: “Aqui é minha netinha
hoje sentou ó, e eu disse é mesmo vá aprendendo que vovó tá quais parando pra
entregar logo pra ela.” Diz estar se cansando, pois seu pulso constantemente inflama e
tem épocas em que não consegue fazer panelas. Apesar disso não pensa em parar, o que
a estimula é a apreciação dos clientes, como Rosa, ela também acredita que o trabalho
com o barro é um dom e uma arte.
Tinha uma netinha minha que ela foi fazendo ia muito bem, mas
depois deixou de mão, não quer fazer mais. Encontrei uma mulher na
feira e ela me pediu que não deixasse isso aqui acabá não, que é raro
257 Entrevista com Maria Rosa Silva, no Tucum, em 04/08/2012. 258 Em uma localidade conhecida como “Verdes”, na divisa dos municípios de Tanhaçu e Ituaçu. 259 Entrevista com Maria Rosa Silva, no Tucum, em 04/08/2012.
110
hoje em dia esse tipo de coisa assim né? Panela de barro. Não dá
muito dinheiro não, mas a gente vai passando o tempo quando não
tem outro serviço.260
No quintal da casa onde vive desde que se separou do marido, ficam o forno
onde queima as panelas e os dois tipos de barro necessários para que as panelas fiquem
firmes, “um é claro, outro é escuro, e um não faz sem o outro”. Lindaura e Rosa são
mulheres que transitam entre os muitos papéis de dona de casa, paneleira e trabalhadora
rural. O trabalho com o barro vai se amalgamando aos laços familiares, sociais e
identitários, pois tem clara relação com a construção identitária e as redes de
solidariedade entre as pessoas da comunidade. No terceiro capítulo nos dedicaremos a
falar de forma mais abrangente do trabalho com o barro.
Guardiãs da memória
Edelvira Oliveira Silva lembra-se dos tempos em que foi paneleira e conta que
com o trabalho do barro ajudava no sustento da casa e passou os ensinamentos para suas
filhas, “não tem uma que não sabe fazê”. Mas há muito tempo deixou de fazer panelas,
embora ainda mantenha sua lida com a plantação anual, mesmo que pequena. A casa
onde viveu com seu marido até a morte do mesmo, encontra-se em ruínas e ao lado, há
pouco mais de dois anos, foi construída uma nova casa onde D. Edelvira mora hoje com
alguns de seus netos. Seu relato desvela os modos de vida na comunidade e sua vivência
pessoal:
Eu mudei, vim pra aqui, casei com esse homem que eu lhe falei que é
irmão de Miriana, minha casinha velha tá aí, que eu mudei pra aqui,
mas ela tá aí do lado. Nós morava numa casinha de palha, né bem?
Porque usava, cê lembra? Cê num lembra não, mas usava. Mas depois
do primeiro menino meu que nasceu foi nesta casa aqui, tinha Maria
do Carmo, Mariana, Zilza e Maria Helena, depois pareceu José Carlos,
um menino meu, que só tive um filho homem. Eu tive oito mulher e
um homem, e ele já nasceu aí, meu filho homem. 261
260 Entrevista realizada pela autora com Lindaura da Silva, na Tapagem, no dia 30/05/2015. 261 Entrevista realizada pela autora com Edelvira Oliveira Silva, no Tucum, em 23/08/2014.
111
As lembranças de D. Edelvira se misturam às memórias coletivas do lugar, de
tempos em que ainda não era nascida ou era muito criança para se lembrar, como por
exemplo, a ocasião em que a Coluna Prestes passou pela região, fato que ela conta com
riqueza de detalhes. 262 Nascida em 1930, ela não viveu esse acontecimento, ocorrido
quatro anos antes, mas o incorporou à sua narrativa e apropriou-se dessas
rememorações. As narrativas de D. Edelvira possibilitam “viajar através da viagem
narrada”, 263 suas lembranças agregam muitos tempos e são por isso tão significativas.
Suas rememorações mesclam fatos coletivos e individuais, acontecimentos que,
ainda que tenham sido vivenciados pelo grupo, impactaram, particularmente, a sua
subjetividade. Como atenta Eclea Bosi, 264 isso é muito comum quando se perde alguém
importante, e a perda de seu esposo Celso marcou profundamente D. Edelvira. Ela se
lembra que foi no ano 1982 que ele veio a falecer por conta de uma complicação
alimentar, quando tinha então 66 anos. Outra grande perda em sua vida foi a da sua
filha, Mariana, que faleceu em um acidente em São Paulo com a idade de 25 anos. Na
sala de sua casa nos mostra a foto de Mariana e lamenta o seu falecimento precoce.
Aqui eu tenho duas fotos que uma eu mandei fazer e fizeram colorida
demais, minha fia não era branca né? Aí eu mandei fazer outro. E aí
eu guardo de referência é esse aqui, é a cara dela, é mesmo que cê tá
vendo ela, a companheira de Maria do Carmo, que é Carminha né?
Porque a primeira de tudo foi Carminha, que chama Maria do Carmo,
eu botei o nome dela, porque a mãe do meu marido chama Maria do
Carmo, entendeu bem? Aí eu botei o nome de Carminha. E Mariana
era o nome de minha mãe. 265
As dificuldades financeiras faziam com que não se poupassem braços para o
trabalho na lavoura. Sua vida foi marcada pelo trabalho desde muito nova, por conta
262 Sobre este evento, Gisele Viana Carvalho diz o seguinte: “A Coluna Prestes entrou na Bahia em
fevereiro de 1926, com cerca de 1.200 homens, e viveu aí um dos piores momentos da sua marcha pelo
Brasil. Na Bahia, a Coluna enfrentou hostilidades e perseguições, além de doenças e combates.” In:
CARVALHO, Gisele Viana. A passagem da Coluna Prestes pela Bahia e a construção da categoria
revoltoso: “a entrada dos revoltosos em território baiano”. Anais do X Encontro Regional de História
– ANPUH-RJ. História e Biografias - Universidade do Estado do Rio de Janeiro – 2002, p. 1. 263 DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História oral: memória, tempo, identidades. 2 ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2010, p. 43. 264 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Cia das Letras, 1994, p. 60. 265 Entrevista com Edelvira Oliveira Silva, no Tucum, em 23/08/2014.
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disso não pôde estudar, mas se orgulha em dizer que não legou as filhas e netas o
mesmo destino:
Eu trabalhava na roça, eu não pude nem aprendê a leitura, porque era
uma vida assim meio financeira (dificuldades financeiras), botava na
escola tinha que arrebanhar para lutar pelo pão de cada dia. Que agora
não, agora tá o céu né bem? Todo mundo tem seu dinheiro. Eu fui na
escola só para riscar meu nome né? Mas as meninas tudo aprenderam,
pouco, com Deus, mas tudo sabe ler, e tá as mesmas minhas netinhas
no mesmo caminho. 266
O acesso saúde era dificultoso e lembra-se dos que padeceram de males muitos
simples por falta de atendimento médico e remédios. E apesar de tudo isso alega ter uma
ótima saúde: “nunca fui no médico pra parir meus filho”. D. Edelvira considera que
apesar de nos dias atuais o acesso à saúde e educação terem melhorado, as dificuldades
mudaram e a família se espalhou. Nos últimos anos, a escassez de chuva vem
castigando a região e muitos jovens estão indo embora em busca de melhores condições
de vida. Se as coisas fossem melhores, confessa mostrando as mãos e rogando a Deus:
“Até hoje eu ainda tenho coragem de trabalhar na roça, você credita? Quando eu ver a
terra molhada, que vem o tempo das água eu tenho uma capoeirinha aqui atrás, seu eu
não plantar uma coisinha eu não tô feliz. Com Deus e Nossa Senhora que eu planto”. 267
Segundo ela a vida antes de serem quilombolas seguia rotineiramente, com
pequenas mudanças no espaço e no estilo de vida dos moradores. Quando o narrador
imprime sentido aos semióforos de outros tempos, suas lembranças estão
comprometidas com o presente, pois é a partir do presente que elas são produzidas. Nas
narrativas de D. Edelvira, o presente é reconstruído a partir das mudanças pelas quais
passou o grupo e que desencadearam um processo de reconstrução identitária que é
coletivo. Mas, é também individual, de forma que “a memória, como substrato da
identidade refere-se aos comportamentos e às mentalidades coletivas, na medida em que
o relembrar individual encontra-se relacionado à inserção histórica de cada indivíduo”.
268
266 Entrevista com Edelvira Oliveira Silva, no Tucum, em 23/08/2014. 267 Entrevista com Edelvira Oliveira Silva, no Tucum, em 23/08/2014. 268 NEVES, Margarida de Souza. História e memória: os jogos da memória. In: MATTOS, Ilmar Rohloff
(Org.). Ler e escrever para contar – documentação, historiografia e formação do historiador. Rio de
Janeiro: Access, 1998, p. 152.
113
Nas comunidades negras rurais sempre se encontram senhoras e senhores que
atuam como memorialistas. Como atenta Antônio Torres Montenegro, essa
representação de que os mais velhos são bons narradores nem sempre se realiza, para
que isso ocorra é necessária a junção de fatores descritivos e imaginários que os habilita
a serem bons narradores. 269 Sobre o ato de rememorar, Antônio Torres Montenegro
pondera que este processo de mediação com o passado é constantemente influenciado
pela vivência do sujeito e passa por mudanças. 270 Utilizar a História oral como fonte
requer que se assumam os riscos e as posturas necessárias na coleta das entrevistas,
observando que as narrativas se dão no presente, onde todas as pessoas entrevistadas
representam um “amálgama” de histórias relevantes em potencial. Sobre essa relação
entre memória e história oral, Alessandro Portelli diz:
A essencialidade do indivíduo é salientada pelo fato de a História Oral
dizer respeito às versões do passado, ou seja, a memória. Ainda que
seja sempre moldada de diversas formas pelo meio social, em última
análise, o ato e a arte de lembrar jamais deixam de ser profundamente
pessoais. (...) se considerarmos a memória um processo, e não um
depósito de dados poderemos constatar que, à semelhança da
linguagem, a memória é social, tornando-se concreta apenas quando
mentalizada ou verbalizada pelas pessoas. 271
Para Jacques Le Goff, a memória tem realmente essa função social pautada em
um “comportamento narrativo” em que os fatos vividos ou as informações sobre eles
repassadas por pessoas são apropriados por estas, mesmo que não tenham vivenciado o
acontecimento. 272 Os relatos sobre o Tucum foram agregados às memórias de D.
Mariazinha que, apesar de não ter nascido no Tucum, foi uma das expectadoras das
mudanças na comunidade. D. Mariazinha, é uma senhora de família branca que chegou
ao Tucum para experienciar a vida adulta e, apesar da tenra idade, logo se tornou dona
de casa e mãe. As histórias da comunidade chegaram a ela por meio da família de seu
marido e ao mesmo tempo em que conta de forma detalhada fatos cotidianos, ao final
diz que não os viu ou viveu, mas que ouviu contar. Neste processo se apropriou da
269 MONTENEGRO, 2007, p. 152. 270 Ibid., p. 150. 271 PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre ética e história
oral. Ética e História Oral. Projeto História no. 15, Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados
em História e do Departamento de História- PUC/SP. São Paulo: Educ, abril de 1997, p. 16, grifos
nossos. 272 LE GOFF. História e Memória. 7 ed. São Paulo: Unicamp, 2003, p. 424.
114
memória coletiva de seus novos familiares. Essa memória “tende a representar a
realidade não tanto como um tabuleiro em que todos os quadrados são iguais, mas como
um mosaico ou colcha de retalhos, em que os pedaços são diferentes, porém formam um
todo depois de reunidos”.273
No processo de tecer essa “colcha de retalhos”, D. Mariazinha diz que os tempos
eram difíceis, as dificuldades financeiras eram muitas e a falta de acesso aos serviços
básicos de saúde e educação agravavam as condições de vida. Nascida em um meio
muito pobre, sua vida melhorou depois do casamento e gaba-se de nunca ter precisado
de hospital para dar à luz e que só muito tardiamente foi a um médico. Em um relato
muito próximo ao de D. Edelvira, fala de tempos em que a assistência médica era
precária e que só muito tardiamente foi a um médico:
E de primêro minha fia não era bom como hoje não. Cê sabia disso?
Não tinha posentadoria pra ninguém, não tinha Bolsa escola, não tinha
Bolsa Família, não vinha nada de longe pra ninguém comer (...) num
tinha dotôr, se a pessoa adoecesse, escapava se Deus quisesse porque
por dotôr morria, e morreu foi muita gente a mingua. Quando eu fiz o
primêro exame eu tinha 49 ano, premêro exame que eu fiz na vida. 274
Devido a sua limitação no andar, D. Mariazinha passa os dias no quarto, mas
aprecia receber pessoas para conversar. Os familiares dizem que ela sente real prazer em
falar de sua vida e dos tempos antigos do Tucum. Suas lembranças são mescladas a
lembranças de outros e muitas de suas memórias se suportam nas de seu falecido
esposo, sogra e outros parentes nascidos no Tucum. Descreve uma paisagem diferente
da atual, com as casas de palha já descritas por D. Edelvira.
Só tinha a casa do finado Luca que morava ali, entre a casa de cumade
Virginia e de seu Dió, a casinha dele era de paia (palha), de primêro
tinha muita casa de paia, casa ruim, alguma casa que era boa. Podia
contar as casa que tinha, podia contar! Aqui pra baixo ôi só virô casa e
lá pra riba diz que tem muito, casa que eu não conheço, depois que eu
quebrei a perna eu não andei mais. 275
Há alguns anos, D. Mariazinha caiu na cozinha da casa onde morava e quebrou a
bacia, na ocasião foi auxiliada por netos e por Rita, filha de Do Carmo, que a levou nos
273 PORTELLI, 1997, p. 16. 274 Entrevista realizada pela autora com Dona Mariazinha, no Tucum, em 24/08/2014. 275 Entrevista com Dona Mariazinha, no Tucum, em 24/08/2014.
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braços até o quarto. Foi atendida por médicos em Tanhaçu, mas devido à idade e por
não ter feito sessões de fisioterapia, ela parou de andar. Orgulha-se em dizer que antes
do acidente conseguia dar conta de tudo e que não precisava de ninguém pra cuidar
dela. Como as outras mulheres do Tucum, a vida de Dona Mariazinha foi marcada por
intenso trabalho na roça, trabalhou por muitos anos e sente saudade da lida com a terra e
em casa se entretinha em fiar na roda e no fuso, prática que aprendeu com sua sogra.
Eu tô acabada véa assim, porque eu tenho idade pra ser véa, eu tô
acabada assim porque eu tô na cama, mas eu quando eu tava andano
inda lavava uma corda de roupa como daqui lá, inda varria o terrêro,
ainda fazia onze hora e meu almoço tava pronto pros dois neto mais
vei que estudava em Tanhaçu, eu dava conta de minha coisa tudo. 276
Ainda assim ela afirma: “Eu sou muito boa vivedêra minha fia”, referindo-se a
sua força mesmo na situação em que está. Sua memória aguçada é um estimulo para que
venham visitá-la, em especial pessoas de fora da comunidade que querem saber as
histórias antigas. Ela aprecia estas visitas e diz sentir falta de pessoas para conversar.
Como observa Ecléa Bosi os velhos se ocupam conscientemente de seu passado, o que
dá substância à sua vida. 277 Assim também D. Mariazinha dá conta de seu passado, de
outras paisagens e ares e de uma vida marcada pelo trabalho e o contato com os seus.
Uma das depositárias da memória local, D. Anízia, de saudosa lembrança, a
princípio, por timidez, disse não saber mais as histórias: “Nossa, acabô tudo, num sei
nem contá mais história. Porque mudô o tempo todo, as história de atrás ninguém quer
mais ver, quer sabê dagora da frente né?”.278 Aos poucos ela foi falando sobre suas
práticas e vivências e descreveu a localidade de maneira parecida com os relatos de D.
Edelvira e de D. Mariazinha: “É num tinha muita casa aqui mermo, era tudo contada,
agora que apareceu um monte de casa né, mas era aquelas casinha de paia (palha) né,
feita de enchumento (enchimento), era assim que era aqui”. 279 Os mais velhos da
comunidade são frequentes em falar de suas lembranças sobre a passagem da Coluna
Prestes pela região, na época D. Anízia era criança:
276 Entrevista com Dona Mariazinha, no Tucum, em 24/08/2014. 277 BOSI, 1994, p. 60. 278 Entrevista com Maria Anízia Novais, no Tucum, no dia 04/08/2012. 279 Entrevista com Maria Anízia Novais, no Tucum, no dia 04/08/2012.
116
Na revorta, tipo na revorta nois era pequenininho, a gente escondia
tudo mode, com medo que eles vinha com muita coisa, agora o povo
escondia tudo no mato, agora eu só carregava uma estirinha pro mode
que eu era pequena para carregar outras coisas num sabe? Saia com a
esteira pelo mato, nem fogo no mato num pudia acender pro mode que
se acendesse a revorta vinha e prendia todo mundo, Esse povo tinha
nome num sabe? Era home de nome, e a revorta vinha procurando
esse homem, porque ele era home de nome e de palavra isso é coisa
num é? Tinha de tudo, era para fugir a gente trocava os cavalo,
deixava os cansado e pegava os da manga que tava forte.280
Sua vida foi marcada pelo trabalho na roça e na confecção de panelas de barro,
vassouras e esteiras. Não teve acesso ao estudo, e só aos 65 anos aprendeu a escrever
seu nome quando estudou brevemente no Mobral. 281 No geral ela descreve que: “a vida
era só trabalhá, só trabalhá.”
Na minha época, para viver fazia tudo que todo mundo que dava. De
premero tinha agricultura, o trabalho era aqui em riba, no trabalho de
plantar o feijão, era na enxada para criar meus fi, era mandioca,
algodão. Até esses tempo quando eu ainda aguentava eu ia limpar ali,
panhá algodão, era só nisso a vida. Aqui era roça mermo, era tratar
mandioca, fazê farinha, vendê na feira. 282
Quando se aposentou, D. Anízia afastou-se dos trabalhos com a roça e as
panelas. Até sua morte D. Anízia ainda gostava de contar os “causo” que ouviu contar e
lamentava-se que os mais jovens já não se interessassem por ouvir. “Os jovens de hoje
num tá nem aí, num quer nem saber do mais de idade num é Carminha? Nem ouve o
que a gente fala, eles quer fazer pelas cabeça deles. Só querem o que eles acham que é
bom para eles e pronto.” 283
Sobre as memórias de velho, Ecléa Bossi observa que “ao lembrar do passado
ele não está descansando, por um instante das lidas cotidianas, não está se entregando
furtivamente às delícias do sonho: ele está se ocupando conscientemente e atentamente
do próprio passado, da substância mesma da sua vida”. 284 Assim viveu D. Anízia, com
280 Entrevista com Maria Anízia Novais, no Tucum, no dia 04/08/2012. 281 O Movimento Brasileiro de Alfabetização - o MOBRAL foi criado pela Lei número 5.379, de 15 de
dezembro de 1967, propondo a alfabetização funcional de jovens e adultos, visando "conduzir a pessoa
humana (sic) a adquirir técnicas de leitura, escrita e cálculo como meio de integrá-la a sua comunidade,
permitindo melhores condições de vida" Fonte: <http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/heb10a.htm>
acessado em 17/10/2014. 282 Entrevista com Maria Anízia Novais, no Tucum, no dia 04/08/2012. 283 Entrevista com Maria Anízia Novais, no Tucum, no dia 04/08/2012. 284 BOSI, 1994, p. 60.
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as fortes marcas do tempo em seu rosto, as mãos ásperas do trabalho e o olhar situado
ao meio, entre o presente e o passado.
Neste capítulo intencionamos apresentar as mulheres do Tucum e suas práticas
cotidianas. Por meio de seus relatos orais, pudemos perceber os variados papéis que elas
assumem na comunidade e como estes se configuram em locais de liderança. Sobre
estes locais de liderança e trabalho falaremos no capítulo que se segue.
3- LIDERANÇA FEMININA NA COMUNIDADE DO TUCUM:
TRABALHO E COTIDIANO
As ações de posicionamento cultural desenvolvidas pelas mulheres
negras tiveram e têm como base a atualização seletiva de elementos
da tradição afro-brasileira e de diferentes modelos que conferiam à
mulher negra o poder de liderança e de agenciamentos. Se
utilizarmos a ialodê como chave de leitura, verificaremos a
capacidade de agenciamento embutida nas formas com que diferentes
mulheres negras disputaram e disputam participação em diferentes
momentos das lutas políticas. (Jurema Werneck)285
O poder feminino preconizado pelas mulheres negras em comunidades
quilombolas tem muitos vieses que tentaremos abordar ao longo deste capítulo. Jurema
Werneck, na epígrafe, chama a atenção para a figura da ialodê, “um título designativo
da liderança feminina que, segundo registros historiográficos precários, existiu nas
cidades yorubás pré-coloniais”. 286 Não era incomum encontrar nas sociedades africanas
tribos de mulheres e lugares em que os homens dividiam o poder com as elas. Neste
caso, a ialodê seria uma líder local que representaria as mulheres e falaria pelo coletivo.
Ruth Landes em seu livro A cidade das mulheres analisa o alcance que a escravidão
teve para as mulheres negras:
Como personalidade feminina continua enraizada nas necessidades
primárias da família e dos filhos, é provável que se fira ou se exponha
menos que a do homem com a destruição da ordem social; ao passo
que a destruição social desenraiza violentamente a personalidade
masculina dos empreendimentos prestigiosos e intrincados, ainda que
285 WERNECK, 2005, p. 83. 286 Ibid., p. 83.
118
sociologicamente secundários, do governo, da propriedade e da
guerra.287
Pode-se pensar no alcance desse poder para as mulheres negras e quilombolas na
Diáspora, onde lideranças como Aqualtune do quilombo de Palmares e Mariana
Crioula, rainha do quilombo no Vale da Paraíba,288 são exemplos de mulheres, entre
outras tantas, que alçaram lugares de destaque nas lutas por direitos nos quilombos
históricos. Conhecer esses exemplos nos permite “recolocar o lugar das mulheres negras
e o impacto de sua atuação para a constituição da diáspora negra”. 289
Durante a escravidão, o papel assumido pelas mulheres quilombolas era de
extrema importância para a sobrevivência dos grupos a que pertenciam, seja nos
quilombos históricos ou nas casas grandes e senzalas. A mulher escrava ao fugir
pensava em questões práticas, como a alimentação. Dessa maneira, os domínios
femininos transpunham-se para ações práticas que atingiam a coletividade. Eurípedes
Funes fala das estratégias de sobrevivência dos mocambeiros da Amazônia e chama
atenção, através de um relato oral de um remanescente quilombola chamado Donga,
para uma prática comum das escravas ao fugir:
Aquelas caboclas, mulatas grande quando tavam iniciando pra fugi,
iam na roça tiravam a semente de maniva, tabaco, semente de tudo
quanto é planta, melancia, maxixe e iam meteno na volta do cabelo
[...] chegavam lá iam plantá, que quando os outros chegavam, já
tinham pra sustento.290
Este é um exemplo de atuação da mulher escrava que desempenhava muitas
funções, ao atender as necessidades cotidianas de alimentação, o cuidado com os
doentes, as funções de parteiras e rezadeiras e a assunção de uma liderança política e
religiosa. Benedita Celeste de Moraes Pinto descreve as mulheres do antigo quilombo
de Paxibal na Amazônia como ágeis na caça e na pesca. Nos relatos que perduram na
região fala-se que eram tenazes e fortes e que também executavam papéis e demandas
287 LANDES, Ruth. A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2002 [1947 – 1ª. ed. norte
americana].p. 349. 288 LOPES, Fernanda; WERNECK, Jurema. Mulheres Negras. Um olhar sobreas lutas sociais e as
políticas públicas no Brasil. In: WERNECK, Jurema (Org.) Mulheres negras: um olhar sobre as lutas
sociais e políticas públicas no Brasil. São Paulo: Crioula, 2005. 289 LANDES, Op. Cit., p. 83. 290 FUNES, Eurípedes. “‘Nasci nas matas, nunca tive senhor’. História e memória dos mocambos do
Baixo Amazonas”. In: REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos (Org.). Liberdade por um Fio.
São Paulo: Cia das Letras, 1996, p. 481-482.
119
masculinas. “A mulher se fazia presente na extração do vegetal, na caça, na pesca, na
preparação do roçado e nas feituras da roça de mandioca.” 291 Eram improvisadoras nos
arranjos para a sobrevivência, seja na alimentação e na fabricação de utensílios e
“machos no trabalho” na roça e na comunidade. Nestes relatos, as mulheres negras
aparecem como ativas nos lugares de resistência à escravidão ou na luta por
reconhecimento que as comunidades quilombolas empreendem na atualidade.
As mulheres escravas possuíam variadas formas de resistência, que Benedita
Celeste aponta como principais: o enfrentamento, os embates e a rebeldia. Ainda assim,
“seria possível afirmar que estava na manutenção da família uma das faces essenciais do
poder da mulher escrava”. 292 E foi por esta via, como aponta Ana Maria Almeida, que a
mulher escrava entrou para o campo de estudos das Ciências Sociais:
A mulher escrava somente ocupou um espaço específico a partir dos
trabalhos sobre família escrava. Estes trabalhos ressaltaram a
estabilidade familiar dentro das senzalas como conquista, em parte,
das mulheres, já que os senhores não estimularam, nem mesmo
facilitaram a constituição de famílias escravas que, segundo eles,
dificultavam a venda das “peças”293
Nas comunidades quilombolas da atualidade é possível observar que os lugares
de resistência e poder das mulheres negras se maximizaram. Além de serem ainda mães
e donas de casa, também agregam funções no trabalho do campo, atividades religiosas,
artesanais e também assumem funções políticas junto às associações e demais grupos
com os quais as comunidades se relacionam.
As mulheres negras, como sujeitos identitários e políticos, são
resultado de uma articulação de heterogeneidades, resultante de
demandas históricas, políticas, culturais, de enfrentamento das
condições adversas estabelecidas pela dominação ocidental
eurocêntrica ao longo dos séculos e escravidão, expropriação colonial
e da modernidade racializada e racista em que vivemos.294
Seja nas lidas domésticas, no trabalho no campo, na participação nas associações
comunitárias e nos ritos religiosos católicos ou afro-brasileiros, a liderança feminina 291 PINTO. Benedita Celeste de Moraes. Nas veredas da sobrevivência: memória, gênero e símbolos de
poder feminino em povoados da Amazônia. Belém: Paka-Tatu, 2004, p. 76. 292 Ibid., p. 19. 293 ALMEIDA, Ana Maria Leal. Da Casa e da Roça: a Mulher Escrava em Vassouras no Século XIX. –
Vassouras: USS, 2001, p. 8. 294 WERNECK, 2005, p. 76.
120
realiza-se de forma consentida e negociada. É consentida na medida em que existem
lugares em que essa liderança ocorre de maneira fluida, a exemplo da igreja, grupos
religiosos diversos, fazeres domésticos e culturais; e negociada nos lugares em que as
mulheres disputam o poder, como nas associações comunitárias e na política local. Já
apontamos ao longo do segundo capítulo os lugares onde as mulheres exercem a
liderança na comunidade do Tucum. A partir de agora abordaremos esses lugares por
onde as mulheres transitam e enfrentam variados desafios para se manterem.
3.1 Os desafios para a atuação política das mulheres no Tucum
Eu fêmea-matriz
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo do mundo.
(Conceição Evaristo) 295
As mulheres das comunidades quilombolas são perpassadas por um processo de
reconfiguração identitária. Em suas atitudes são a “força-motriz”, como no poema de
Conceição Evaristo, ao romperem com a invisibilidade e assumirem um papel relevante
nas decisões locais. Nos lugares onde os conflitos agrários são uma constante, elas têm
coragem de enfrentar os mandatários e fazendeiros, como ocorreu com as mulheres em
Rio das Rãs, já citadas no segundo capítulo. 296 Ao falar da liderança feminina nas
comunidades negras do Tocantins297, Adelmir Fiabani atenta para alguns fatores que
foram determinantes para o protagonismo feminino:
Historicamente, as mulheres das comunidades negras arcaram
sozinhas com as atividades de criação, educação e sustento dos filhos.
Não raro, viram o círculo familiar sendo ampliado pelos netos,
sobrinhos e órfãos. Ocorre que em muitas comunidades o elemento
masculino necessita sair temporariamente da comunidade para
trabalhar. Dessa forma, as mulheres-mães construíram relações de
respeito e devoção para além da família biológica. Elas também
295 EVARISTO, Conceição. Eu-mulher. Cadernos negros - Os melhores poemas, de FNAC Minc.
06/06/2013. <http://www.passeiweb.com/estudos/livros/cadernos_negros_os_melhores_poemas>
Acessado em 17/10/2014. 296 Ver as dissertações de: DUTRA, 2007 e MIRANDA, 2011. 297 Que o autor identifica como sendo: Barra da Aroeira, Malhadinha, Morro São João, Mata Grande e
Taquari.
121
exercem papéis importantes na organização religiosa da comunidade.
Auxiliam os padres e pastores e ministram aulas de catequese.
Atualmente, participam de organizações (clube de mães, sindicatos,
associação de mulheres, grupo de jovens) e realizam intercâmbio com
outras entidades. São relevantes as funções de “benzedeira”,
“rezadeira”, mãe de santo, conselheira, que as mulheres mais velhas
exercem nas comunidades. Em ambiente desprovido de assistência
médica, psicológica e, muitas vezes, sem escola, os trabalhos destas
“conselheiras” são imprescindíveis. 298
Vemos que não são incomuns as mulheres quilombolas se desdobrarem em
muitos papéis, das lidas domésticas aos lugares da política, religião e das tradições
locais. O perfil das mulheres quilombolas é alterado na esteira das demandas políticas
das comunidades onde vivem. É o momento de perceberem “que a liderança é algo
carismático e não nasce da noite para o dia. É um processo de construção contínua, que
exige determinação, trabalho e convicção de ser portadora de direitos iguais a todos os
gêneros”.299
As mulheres do Tucum desempenham múltiplos papéis, sabem articular
estratégia de sobrevivência na luta cotidiana como mães, esposas, trabalhadoras e
líderes. Não se pode perder de vista que a comunidade é composta de homens e
mulheres, e as questões de gênero pensadas até aqui se formulam no corpo dessas
relações, nos lugares de silenciamento, dominação, negociação e consentimento, sem os
quais não haveria as mediações de poder. Dentro deste trâmite circulam muitas
identidades, visto que são mulheres, negras, trabalhadoras rurais e quilombolas.
Entendemos a liderança comunitária como uma articulação de interesses que se
coadunam em favor do grupo. Geralmente, essa liderança ocorre de forma restrita,
mesmo que o grupo se mobilize em prol da coletividade, determinados personagens
estão mais envolvidos que a maioria na busca de melhoramento na tomada de decisões.
No Tucum, esse papel de liderança se reflete no cotidiano de algumas mulheres, em sua
participação nas decisões da comunidade desde a Associação das Comunidades
Quilombolas de Tanhaçu, a igreja, na manutenção das tradições locais e no trabalho
com o barro, feito, exclusivamente, por elas, por meio do qual sustentam suas famílias.
Nossa reflexão sobre a liderança feminina no Tucum dá-se a partir da observação dos
298 FIABANI, Adelmir. Mulheres quilombolas: presença, liderança e participação. Disponível em:
<http://www6.ufrgs.br/sncp/bkp/resumos/2010/for_gen/2010_for_gen_005.pdf.> Acessado em
20/09/2014. 2010, 2010, p. 2. 299 Ibid., p. 2.
122
lugares ocupados pelas mulheres dentro da comunidade e nos cursos ministrados por
associações e instituições estaduais, a exemplo do Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Instituto Mauá300 e os articuladores da
Floresta Nacional Contendas do Sincorá (FLONA). Sobre a participação política
feminina, Marcos Távora Mendonça percebe que:
As mulheres, em diferentes lugares e espaços sociais,
independentemente de crença religiosa e cor de pele, estão a mostrar
um importante papel de liderança, principalmente em ações
relacionadas a cidadania e a qualidade de vida. Isso porque questões
como falta de água e /ou energia, saneamento básico, educação e
saúde deficitárias (...) fazem parte de uma problemática ligada as
necessidade básicas das mulheres. Observa-se normalmente que a
primeira voz que se levanta é da mulher, pois são elas que estão mais
ligadas a manutenção e a qualidade de vida. 301
Entre as mulheres, alcançar um lugar de liderança comunitária representa uma
superação dos entraves que as limitações de gênero impõem cotidianamente, visto que
“na divisão tradicional do trabalho, em sociedades camponesas, o domínio doméstico é
tido como o espaço da mulher”.302 Lucineide Figueiredo ao falar das lutas das
quebradeiras de coco de Babaçu no Maranhão/MA, observou que o trabalho doméstico
era ao mesmo tempo uma opressão e um desafio para essas mulheres e significava um
espaço pelo qual e contra o qual lutavam. Esse papel de mulher, mãe, esposa e dona de
casa se mantêm e se reconfigura a partir dos conflitos pelas terras dos babaçuais. Nesse
interim, “as mulheres assumem uma função importante, ao ficarem com seus filhos
crianças e os familiares mais velhos, no povoado, nas suas casas, resistindo para que
não se caracterizasse a expulsão das famílias ou o domínio dos invasores”. 303 Com o
avanço dos conflitos e a necessidade de novas frentes, a quebradeira de coco de babaçu
“alçou uma posição antes desconhecida do grupo, passando a ocupar lugar de destaque
nas mobilizações internas e na representação política externa ao grupo – passou a
300 O Instituto de Artesanato Visconde de Mauá foi criado há 76 anos para articular ações voltadas para o
artesanato na Bahia. Em janeiro de 2015, ele foi extinto Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte
(Setre-BA). 301 MENDONÇA, 2008, p. 20. 302 FIGUEIREDO, Lucineide Dias. Empates nos babaçuais: do espaço doméstico ao espaço público
lutas de quebradeiras de coco babaçu no Maranhão. In: Prêmio Margarida Alves: II Coletânea sobre
estudos rurais / 120 Ellen F. Woortmann, Adriana L Lopes, Andréa Britto, Caroline Molina (org.) –
Brasília: MDA, 2007, p. 61. 303 Ibid., p. 68.
123
assumir uma centralidade antes não observada na economia do grupo”. 304 A atividade
extrativista ganhou relevo e as mulheres passaram a assumir a liderança e atuação
política nos contatos externos dessas comunidades:
A necessidade de tantas viagens para eventos de representação,
mobilizações, presença em reuniões, encontros e várias outras
atividades externas ao dia-a-dia da família e da comunidade
ocasionam uma reviravolta na vida de diversas mulheres,
principalmente daquelas que assumem função de representação ou de
liderança. Às vezes ameaçadas de morte por inimigos políticos, outras
criticadas por pessoas dos próprios povoados onde residem, por vezes
mal compreendidas pelos maridos, elas têm que lutar pela sua
liberdade como mulher, indivíduo que exige respeito aos seus ideais,
bem como buscam o fortalecimento das lutas coletivas e muitas vezes,
em função dessas lutas elas são reconhecidas e valorizadas por
membros familiares e por um movimento mais amplo que luta por
cidadania para mulheres e homens.305
Mesmo nestes lugares de liderança, os outros espaços que são de domínio
feminino prevalecem exigindo dessas mulheres determinação para manter sua posição
na política local ao mesmo tempo em que cuidam da casa e da família. Sobre esta
questão Lucineide Figueiredo observa que, apesar dos avanços na participação das
mulheres:
Ainda é muito complexo administrar tantas obrigações que elas
assumem na estrutura familiar para que possam obter a livre decisão
de dedicar ou não, tempo para outras ações, fora a família. E mesmo
considerando a compreensão conquistada com os filhos e maridos,
ainda assim as tarefas domésticas são entraves para que aconteça a
participação de um maior número de mulheres e uma maior inserção
nos espaços públicos que lhes exigem uma rotina de viagens e tempo
fora do espaço familiar.306
Esses desafios são presentes na vida de todas as mulheres nas muitas frentes em
que precisam atuar, e representam as limitações impostas ao gênero feminino e se
mantêm de forma sub-reptícia nos grupos diversos. Observamos nos contatos com a
comunidade quilombola do Tucum que a liderança feminina não é uma postura comum
a todas as mulheres da localidade. A isso atribuímos o fato de que numa comunidade
rural com fortes laços patriarcais, ainda imperam as posições de submissão e
304 FIGUEIREDO, 2007, p. 73. 305 Ibid., p. 74. 306, Ibid., p. 75.
124
dependência entre os pares de diferentes sexos. Na contramão desses entraves,
buscamos identificar quais mulheres exercem papéis de liderança no Tucum e o que em
suas trajetórias determinou que adotassem esta postura. Interessa-nos perceber quais
tensões determinaram essas diferenças, como apontado por Mary Del Priore:
O que importa é desvendar as tensões, contradições e negociações que
se estabeleceram, em diferentes épocas, entre elas e seu tempo; entre
elas e a sociedade na qual estavam inseridas. Trata-se de desvendar
hoje as complexas relações entre a mulher, a sociedade e o fato,
mostrando como o ser social que ela é articula-se com o fato social
que ela mesma fabrica e do qual é parte integrante. 307
Essas articulações entre a mulher (ser social) e a realidade em que vive (fato
social) geram as mediações de poder, dominação e negociação, que são percebidas em
suas relações mais habituais, em que assumem posicionamentos diferentes dos
esperados. Observando a ata de reunião da Associação das Comunidades quilombolas
de Tanhaçu, entre os anos de 2009 e 2014, observamos a participação de poucos
moradores. Porém as mulheres são presenças marcantes nas reuniões e que sempre se
articulam nas falas, nas reivindicações e solicitações que possam beneficiar a todos. A
participação marcante feminina pode ser justificada pelo fato de estarem diretamente
envolvidas com as necessidades da família, sabem das aflições como a falta de água,
escola e saúde para os filhos e o direito à terra onde possam plantar.
Ainda assim, a maior parte delas não se envolve com as questões comunitárias,
esse desinteresse figura nos relatos de Maria do Carmo e outras lideranças. Destes
relatos emergem duas possibilidades para se definir a forma de atuação das mulheres no
Tucum e como isso configura suas posturas e visões de mundo. Primeiramente há as
que ocupam exclusivamente o lugar de mulheres e mães, donas do lar e cuidadoras da
família e, num segundo plano, há as que mesmo tendo todas as responsabilidades do lar,
são politicamente articuladas. Em qualquer desses lugares elas convivem com os
anseios cotidianos ligados à família e à luta pela sobrevivência, sendo que esses
objetivos se misturam à medida que melhorar as condições de vida da comunidade é
também uma melhoria para os seus familiares. Esse perfil da mulher quilombola que
transita entre o campo e a casa é descrito por Benedita Celeste Pinto:
307 DEL PRIORE, Mary. Histórias do cotidiano. São Paulo: Contexto; Unesp, 2001. p. 46.
125
Mulheres sofridas, calejadas, envelhecidas pela dureza da vida e
ressecadas pelo sol escaldante do dia-a-dia, cortam com machado,
encoivaram, plantam, capinam e colhem. A elas estão designadas as
tarefas ditas mais “leves” dos trabalhos da roça. Mas a elas também
cabe o ato de gerar, parir, cuidar e alimentar os filhos. Atividades que
se acumulam ultrapassando as barreiras da noção de “leves”,
ganhando uma densa complexidade, mas possível para essas mulheres,
que na labuta do cotidiano, na luta pela sobrevivência tornam-se
fortes, independentes e detentoras de poderes.308
A família patriarcal deixou marcas significativas no modo de vida das mulheres,
principalmente, nas que vivem em regiões destituídas de recursos. Rita observa que a
dominação masculina é provavelmente um dos principais entraves para a atuação
feminina: “tem uma mulher ali nesse curso da palha mesmo as meninas vinha, tinha
mulher que vinha até escondida pra o marido não saber, pra não tá brigando quando
chegasse em casa. Tem muitos ainda que ainda tem preconceito”. 309 É provável que
essa postura masculina esteja em franco processo de mudança, por uma série de fatores,
as mulheres das novas gerações aparentam não se sentir mais obrigadas a manter
relações por convenção, isso é possível de constatar a partir do número de mulheres
jovens que se separaram de seus companheiros na comunidade. Mas a principal
mudança está na ampliação da autonomia em virtude do acesso a programas sociais,
como o Bolsa Família. Para a antropóloga Walquíria Domingues Leão Rêgo essas
políticas públicas são importantes, porque
Normativamente se deve insistir na necessidade de que o desenho de
políticas públicas de cidadania leve em conta a ambivalência
constitutiva das diversas coletividades presentes na sociedade. E que
seja muito mais exigente neste aspecto em casos como das mulheres
pobres brasileiras. Isto se, realmente, se quiser fazer das políticas de
cidadania um passo importante da luta pela emancipação humana de
homens e mulheres. 310
A insegurança de ordem financeira atingem muitas mulheres, e em especial as mulheres
negras, já existem estudos na área das Ciências Sociais e Antropologia que tentam compreender
o impacto do Bolsa Família na vida de mulheres negras rurais. Ainda que não exista um
308 PINTO, Benedita Celeste de Moraes. Mulheres Negras Rurais: Resistência e Luta por Sobrevivência
na Região do Tocantins (PA). In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São
Paulo, julho 2011, p. 1. 309 Entrevista com Maria Rita Oliveira Silva, no Tucum, em 24/08/2014. 310 RÊGO, Walquiria Domingues Leão. Política de cidadania no governo Lula. Ações de transferência
estatal de renda: o caso do Programa Bolsa Família. Temas y debates. Revista Universitária de
Ciências Sociales. n. 20 , 2010, p. 150.
126
consenso entre os estudiosos dessas comunidades acerca do alcance desses programas,
algumas mudanças nas posturas femininas já podem ser observadas, como é o caso do
Tucum:
Agora tem muitas mulheres que tão independente porque com esse
Bolsa família aí, elas vão lá em Tanhaçu, pega o dinheiro delas,
porque antes você tinha que comprovar renda, pegava ali aqueles 102
(reais), quem tinha muito recebia mais que duzentos e pouco e tinha
que comprovar aquela renda, tinha que no mercado comprar ali, pra
comprovar o que você gastou. Hoje não, o governo não pede mais
comprovação de renda, pode comprar um esmalte, um batom, um
creme de cabelo, que antes precisava esperar pelo marido, o
absorvente e tudo mais tá entendendo? Hoje as mulheres, elas vão lá
pega o dinheiro delas e fazem o que elas querem. 311
A vinda de programas sociais como o Bolsa Família para as comunidades
quilombolas, apesar de seus inúmeros entraves, tem funcionado como uma
possibilidade de autonomia para família camponesa e uma forma de combate à pobreza.
Devido as suas especificidades, em comunidades quilombolas e indígenas a forma como
o programa funciona adequa-se às necessidade locais, como observou Sarah Mailleux
Sant’Ana
Em princípio, o titular do cartão continua sendo a mulher, mas o
responsável legal pode ser determinado de acordo com a lógica da
organização familiar de cada comunidade. Entre os quilombolas e
indígenas que não têm escolas ou unidades de saúde, porém, a falta
dessas estruturas e o consequente não cumprimento das
condicionalidades não implica a privação dos benefícios. 312
Maria do Carmo acredita que o Bolsa Família serviu de suporte para que as
mulheres do Tucum ajudassem suas famílias: “É a fonte de renda de muitos. Em ela
comprar alguma coisa pros filhos delas e elas sabem resolver melhor alguma coisa e
poder comprar alguma coisa pra ela também”.313 A autonomia das mulheres em decidir
sobre as questões financeiras talvez se desdobre em mais mudanças. O acesso a objetos
que signifiquem um aporte para a vaidade feminina pode também se reverberar na
forma como elas visualizam as relações.
311 Entrevista com Maria Rita Oliveira Silva, no Tucum, em 24/08/2014. 312 SANT’ANA, Sarah Mailleux. A perspectiva brasileira sobre a pobreza: um estudo de caso do
Programa Bolsa Família. Revista do Serviço Público Brasília 58 (1): 05-35 Jan/Mar 2007, p. 19. 313 Entrevista com Maria do Carmo Oliveira, no Tucum, 30/05/2015.
127
3.2 A participação feminina na Associação da Comunidade Quilombola do Tucum
Portanto, quer como grupos de mobilizações de causas femininas,
quer como participação feminina em diferentes mobilizações, as
mulheres têm constituído a maioria das ações coletivas públicas.
(Maria Gohn) 314
As associações de moradores das comunidades quilombolas são os espaços
privilegiados para que estes debatam e reivindiquem seus direitos. Lugar de exercício
político das lideranças, as associações comunitárias também são um palco para o
protagonismo feminino. Como bem atenta Maria Gohn, as mulheres são a maioria em
diferentes frentes, “é no âmbito da luta pela sobrevivência que se evaporam a
“fragilidade” e a “dependência”.315 Nas associações quilombolas as mulheres podem
agir politicamente assumindo cargos e reivindicando melhorias para a comunidade, pois
são lugares que representam uma importante experiência coletiva para a legitimação dos
territórios quilombolas:
Dentre as estratégias que têm fortalecido os territórios quilombolas, a
experiência desencadeada com a articulação comunitária dos grupos,
através da constituição de associações comunitárias, soma pontos
positivos na emergência quilombola. A organização comunitária,
através destas formas associativas, permite que as comunidades
possam encorpar suas vozes, atuando de maneira coletiva e estreitando
os laços solidários que compõem suas territorialidades. A constituição
jurídica das associações permitiu às comunidades avançarem
juridicamente na direção da conformação dos seus pleitos, pois uma
das alternativas jurídicas que possibilitam a titulação das terras
quilombolas está vinculada a constituição de grupos com natureza
associativa.316
A criação de uma associação é um dos primeiros passos para que estas
comunidades possam entrar no caminho do reconhecimento. Nos quase dez anos desde
o reconhecimento do Tucum, a Associação já passou por mudanças significativas, na
ocasião do reconhecimento, a comunidade já possuía uma Associação, que foi mantido
314 GOHN, M. da G. Mulheres – atrizes dos movimentos sociais: relações político-culturais e debate
teórico no processo democrático. Revista Política & Sociedade, n. 11, São Paulo, 2007, p. 51. 315 SANTOS, 2013, p. 87. 316 SILVA, Paulo Sérgio da. Quilombos do Sul do Brasil: movimento social emergente na sociedade
Contemporânea. Revista Identidade! São Leopoldo, RS, v. 15, n. 1, jan.-jun. 2010, p. 57.
128
o seu registro e alterado o nome. Atualmente a comunidade é representada pela
Associação das Comunidades Quilombolas de Tanhaçu, última nomenclatura assumida
em 08 de abril de 2010. 317 A associação atual mantém o mesmo registro da primeira
associação fundada em 26 de abril de 1996, com o nome de Associação dos Produtores
Rurais do Tucum e Campim-Açu, que possuía então uma área de abrangência territorial
maior que a da associação atual.318
Na “Ata da Assembleia Geral de Constituição da Associação dos Produtores
Rurais do Tucum e Campim-Açu” é relatada a primeira reunião ocorrida no dia 26 de
abril de 1996, às dezoito horas e trinta minutos na Escola Municipal do Tucum. Neste
dia foram definidos os objetivos da associação, entre eles “o fortalecimento da
organização econômica, social e política das mencionadas comunidades, assim como
garantir os direitos sociais mínimos dos cidadãos junto aos poderes públicos”.319 O
Estatuto Social320 foi apresentado e estabelecida a hierarquia de liderança na
comunidade através da Assembleia Geral, a Diretoria Executiva e o Conselho Fiscal
com mandatos bienais e não remunerados. A Diretoria Executiva foi composta pelos
seguintes membros: Edmilson Santana Freire, presidente, Antônio Vital da Silva,
secretário e Carlos Souza Pires, tesoureiro. E o Conselho Fiscal composto por Edivaldo
Costa Gondim, Maria do Carmo Oliveira Silva e Alcides Francisco Ribeiro. Na ocasião,
estavam presentes na reunião 46 pessoas das quais 21 eram mulheres. É necessário que
se chame atenção para o fato de Maria do Carmo foi a única mulher a fazer parte da
administração da Associação no momento de sua criação.
As lideranças femininas acabam por se reunir nos lugares onde é necessário
dedicação e trabalho, é peculiar perceber que o trabalho “é um grande indicador das
relações de gênero no quilombo.”321 Considerada a principal liderança do Tucum,
Carmem diz não ter medo do trabalho: já fabricou e vendeu panelas de barro,
alfabetizou crianças, foi agente de saúde até sua aposentadoria e neste percurso
candidatou-se a vereadora. Seu perfil espontâneo de liderança é constantemente
317 Segundo Registro nº 303, fls. 026 do livro A-2 de registro civil de pessoas jurídicas que mudou o
nome da Associação dos Produtores Rurais do Tucum e Campim-Açu para Associação das
Comunidades Quilombolas de Tanhaçu. 318 O livro de ata foi perdido nos trâmites políticos da associação com a prefeitura. Tivemos acesso apenas
a uma xérox dessa ata inicial cedida pelo ex-presidente da Associação Carlito Augusto Oliveira. 319 Retirado do texto da primeira ata de reunião da Associação dos trabalhadores rurais do Tucum e
Capim-Açu. 320 Também não tivemos acesso a este estatuto que se encontra perdido junto com as primeiras atas. 321 BASTOS, 2010, p. 4.
129
acionado nas falas dos membros da comunidade, como é o caso de Carlito Augusto
Oliveira: “A maior liderança do Tucum chama Maria do Carmo. Em qualquer lugar que
eu vou o nome dela eu nunca deixo de falar né? E ela faz parte da igreja e todo lugar
que ela vai ela procura trazer coisa pra comunidade”.322 Aparentemente as mulheres não
têm problema em conviver no espaço político com os homens. Os homens têm mais
dificuldade em aceitar outros concorrentes em seu espaço.
Entre os anos de 2000 e 2004, Maria do Carmo foi presidente da Associação dos
Produtores Rurais do Tucum e Campim-Açu e vice-presidente na gestão de Carlito,
entre 2009 e 2013, quando a comunidade já estava reconhecida como quilombo. Nos
quatro anos em que foi presidente, Carmem relata que as dificuldades eram inúmeras,
visto que a comunidade era muito pobre, a associação tinha poucos membros e seu
trabalho era árduo já que não tinha transporte para se locomover entre os povoados:
Tinha dificuldade de participar das reuniões, eu ia participar das
reuniões muitas vezes em Tanhaçu e ia a pé (andando). Tinha feito
algumas aguadas até mesmo daquele projeto de ir por etapa, que eram
300 horas de trator não foi feita aguada aqui no Tucum porque a gente
tinha uma água encanada que na época caia até bem pra gente e foi
feita em Esperança e em Capim-Açu. Porque a comunidade aqui era
uma associação conjunta; Tucum e Capim-Açu. Ai eu ia visitar esses
trabalhos, tudo a pé, mas eu já era agente de saúde e já aproveitava
junto e fazia todas as visitas. Era difícil, era muito difícil também o
povo entender, participar, muita gente não queria contribuir. Os
maiores desafios foram esses.323
Desde então, o ritmo de vida mudou significativamente no Tucum. Após o
reconhecimento, a principal mudança apontada pelos moradores e lideranças foi a
chegada de alguns benefícios como casas populares, cestas básicas e cisternas que
vieram a facilitar a vida de muitos. Neste interim, o número de associados duplicou e
atualmente a Associação conta com 170 associados. A atual presidente da associação é
herdeira da postura proativa da mãe, Maria Rita enfrenta novos desafios para levar a
frente à sua gestão.
Fui muito bem votada, agora eu tô fazendo o que eu posso na
comunidade que eu falei com o povo, eu posso não trazer projetos
grandes pra comunidade, mas o que eu quero é isso reunir todo
primeiro sábado do mês, já tá em ata, no fórum e tudo, tem a reunião
322 Entrevista com Carlito Augusto Oliveira, em Tanhaçu, no dia 30/05/2015. 323 Entrevista com Maria do Carmo Oliveira, no Tucum, no dia 30/05/2015.
130
dos associados, muita gente tá contribuindo direitinho, eu já exclui
aqueles sócios que tem 2 anos, 3 anos que não tá participando, já tá
fazendo a exclusão, porque a gente fala assim, porque quando vem um
projeto primeiro você tem que correr atrás dos que estão aptos, aí tem
gente que tá, já tem em caixa um pouquinho de dinheiro, que a gente
tá querendo fazer as coisas, fazer a sede agora né?324
Em seus anseios por fazer uma boa gestão, Rita quer deixar sua marca na
Associação, se possível com uma sede própria onde o conselho possa se reunir
mensalmente e armazenar os documentos da comunidade. A figura 15 mostra um
encontro dos moradores para entrega de documentos nos fundos da Igreja São João
Batista. Na ocasião, a comunidade esperava receber 50 casas populares da Caixa
Econômica Federal.
Figura 15- Moradores entregando documentos para receberem casas populares.
Foto de Karla Dias de Lima – 30/05/2015.
Como a associação não possuía uma sede até a data do encerramento desta
pesquisa, as reuniões aconteciam nas igrejas de São João Batista ou Nossa Senhora
Aparecida. Durante a gestão de Carlito Oliveira as reuniões ocorreram mensalmente
entre 28 de novembro de 2009 e 04 de dezembro de 2010, após essa data passaram a
ocorrer a cada dois meses. A última ata de sua gestão é datada de 21 de setembro de
2011, por motivos que desconhecemos os anos de 2012 e 2013 não foram registrados
324 Entrevista com Maria Rita Oliveira, no Tucum, em 24/08/2014.
131
em ata. A mesma ata volta a ser utilizada em 18 de fevereiro de 2014 já na gestão de
Maria Rita Oliveira, desde então as reuniões passaram a ocorrer mensalmente. Na
ocasião da entrevista, em agosto de 2014, a comunidade tinha sido beneficiada com 92
cisternas, para ela o fato de serem quilombolas foi determinante.
Reconhecer que nós somos uma comunidade quilombola, que as
coisas vem através disso, porque essas 92 cisterna que saiu não era pra
vim pra aqui não, era pra ser dividido pra quatro comunidades, mas
como a gente tem o nosso reconhecimento tem a comunidade
quilombola. Cê sabe que o governo corre demais atrás dessas coisa, aí
mandou pra cá pra nossa comunidade, a gente foi beneficiado com 92
cisternas. 325
Essas cisternas fazem parte de um projeto da Articulação Semiárido Brasileiro
(ASA): “Esse programa abriga tecnologias sociais populares de captação e
armazenamento de água para consumo humano e para a produção de alimentos. Além
disso, fortalece outras iniciativas de convivência com o Semiárido”. 326 O programa é
direcionado às famílias com baixa renda e com residência permanente numa zona rural
que não tenha acesso ao sistema público de abastecimento de água. A água da
comunidade do povoado do Tucum vem de uma nascente há mais ou menos 8 Km e não
é tratada. De acordo com um relato retirado da ata da associação numa reunião em 16 de
julho de 2010:
Com o desmatamento da beira da nascente, a água está cada vez mais
escassa, principalmente quando chega o período da seca. A água é
canalizada, onde cada morador tem direito a um dia de água. Algumas
casas tem dificuldades e outras tem facilidade pra cair água. O
Ministério da Saúde fornece hipoclorito para as pessoas usarem no
tratamento da água. Na época da seca, geralmente todo ano tem, é
uma grande dificuldade, principalmente pra dar água as criações. Os
moradores vão pegar água de jegue, galvista, carro de boi, e muitas
das vezes voltam com as suas vasilhas vazia. Os carro pipa, fornecido
pelo exército, abastece um pouco, mais a demanda na região é grande
e não tem condições suficientes para beneficiar a população. O que
falta muitas vezes é reservatórios de água apropriado para o
armazenamento da água. Mas depois da construção das cisternas do
projeto ASA irá solucionar e suprir a necessidade, e o anseio do povo
que sempre lamenta um grande problema: a falta da água. 327
325 Entrevista com Maria Rita Oliveira Silva, no Tucum, em 24/08/2014. 326 ASA BRASIL. Quem somos. (S.d) Disponível online em:
http://www.asabrasil.org.br/Portal/Informacoes.asp?COD_MENU=97. Acessado em 21/09/2014. 327 Retirado da ata da associação do Tucum referente a uma reunião com a irmã Cícera em 16/07/2010.
132
A falta de água é um grande problema para a comunidade, e durante muitos
anos, em especial nos períodos de seca, quando era necessária a ajuda externa. Nas
entrevistas com as moradoras mais antigas como Dona Anízia, D. Edelvira e D.
Mariazinha são recorrentes as falas sobre as dificuldades passadas em épocas anteriores.
D. Edelvira conta que há tempos atrás tinham água em abundância de um riacho que
secou. Quando a entrevistamos em agosto de 2014, ela nos levou ao quintal de sua casa
para mostrar sua cisterna, pra ela essa foi uma das maiores benfeitorias oferecidas à
comunidade e que significou uma melhoria na vida de todos: “Melhorô, que agora
mesmo fez essas cisternas que nós num tinha pra colocar água da chuva e sendo
quilombola nós tudo é atendido. Cisternas pra aparar agua pra nós beber. Num melhorô?
Melhorô muito fia”. 328 A figura 16 mostra a cisterna da casa de Maria do Carmo, uma
das muitas que vieram para beneficiar o Tucum.
Figura 16 - Cisterna no quintal da casa de Maria do Carmo.
Foto de Karla Dias de Lima – 24/08/ 2014.
A fala de D. Edelvira nos faz refletir que apesar de não compreenderem
plenamente o alcance político de ser quilombola, os moradores do Tucum
resignificaram o conceito, associando-o aos benefícios que a comunidade passou a
receber após o seu reconhecimento. Como atenta Salete da Dalt: “Esse tipo de vínculo
328 Entrevista com Edelvira Oliveira Silva, no Tucum, em 23/08/2014.
133
foi estabelecido por muitas lideranças e por alguns poucos membros das comunidades
não vinculados com a liderança, em vários estados brasileiros”. 329 Nesta perspectiva,
ser quilombola passa a ser um “tipo de política de proteção social” que mesmo sendo
externa as suas vivências é entendida como uma política de reparação e para a grande
maioria ser associado funciona como uma espécie de senha de acesso aos benefícios. No
entanto, Rita queixa-se da pouca participação dos moradores nas atividades coletivas da
Associação:
Não é uma comunidade assim que você se reúne, se precisar todo
mundo tá ali em prol da mesma coisa pra correr atrás, o povo daqui só
vai mesmo pra benefício, pra si próprio. Agora quando é uma coisa
assim pra comunidade o povo não se reúne muito não, mas tem
alguns, sempre tem, mas tem, as reunião mesmo da comunidade
agora, eu tenho 170 associados, praticamente, se tiver o que? Se tiver
25 a 30 que tão indo, frequentando, que tão indo nas reuniões, mas
quando fala assim, por exemplo, se eu chegar hoje na cabana e disser
assim; gente tá vindo uns benefício pra comunidade, coisa grande que
vai beneficiar todo mundo, tá saindo aí 50 casa populares que tem né?
Aí todo mundo vem, todo mundo quer, todo mundo corre, aí é um
bafafá, tudo mais, mas quando fala: vamos nos reunir aqui gente?
Como agora que tá precisando pra construir essas cisternas; Vamo
reunir, a gente tem muito pedreiro na comunidade, vamos hoje eu vou
fazer, hoje você dar uma força, amanhã outro dar. Sai tudo fora.330
A queixa da não participação vem acompanhada de uma sinalização do interesse
dos moradores nos benefícios e não nas questões do cotidiano. A ausência nas reuniões
e, na fala de Maria do Carmo: “A falta de união do povo daqui”, continua sendo um
obstáculo. Mas a percepção de que os benefícios são importantes para a comunidade
também é repetida nas falas das lideranças. Essas políticas públicas são essenciais para
o combate à pobreza nestas localidades, que como aponta Daniely Santos
As comunidades negras ainda carecem de muitos serviços básicos.
Nos últimos anos, o Governo Federal investiu nas comunidades com
obras de infraestrutura como habitação, saneamento, comunicação,
eletrificação e melhoria das estradas. Também viabilizou acesso à
água, ampliação do Programa Bolsa Família, a construção de casas,
escolas, distribuiu sementes, facilitou a comercialização dos produtos
produzidos nas comunidades e outros.331
329 DALT, 2011, p. 50. 330 Entrevista com Maria Rita Oliveira, no Tucum em 24/08/2015. 331 SANTOS, 2013, p. 66.
134
De fato, o acesso a estas políticas públicas mudou a rotina do Tucum, em
especial nos lares em que as mulheres são chefes de família. Em geral, devido à vida
árdua de mulheres negras e trabalhadoras rurais, nas comunidades quilombolas as
mulheres são politicamente ativas. Ainda que em número reduzido, as vozes das
lideranças femininas são prementes no Tucum: se posicionam contra a omissão dos
homens, pela demarcação da terra, sobre as dificuldades de emprego e renda para a
família e, principalmente, nos desafios que enfrentam para afirmarem-se como mulheres
negras e atuantes. Maria Gohn atenta para uma reconfiguração dos movimentos sociais
em que
categorias sociais que estiveram até agora em situação de exclusão
socioeconômica e inferioridade na escala de prestígio social, como
tem sido historicamente a categoria “mulher”, têm formado
movimentos sociais para libertarem-se. Essas categorias sociais são
parte das tensões no mundo ocidental mas também são fontes de
dinamismo, além de serem, como no caso das mulheres, as “atrizes
principais” de um novo e possível modo de recomposição do
mundo.332
As mulheres são também as “atrizes principais” nas reuniões da Associação. Nas
atas, os nomes de Maria do Carmo, Maria Rita, Rosilda Novais, Euzimar Santana,
Izabel Solenidade aparecem constantemente entre as assinaturas dos presentes e
algumas dessas mulheres faziam e fazem parte da diretoria da associação. O anterior
presidente da Associação Carlito Augusto Oliveira e o secretário Ricardo Oliveira
Santana são frequentes. Exceto eles, percebemos, nas atas das reuniões, que geralmente
comparecem um ou dois homens para um público de oito mulheres, que são as mesmas
que estão sempre presentes. Na fala de Rita, “as mulheres são que participam mais da
comunidade e até na associação são mais as mulheres”. 333 E Carlito Oliveira também
confirma esta observação:
Pesquisadora- E quando tinha reunião da associação a comunidade
participava?
Carlito- Participava, no começo eles participava, depois eles se afasta
um pouco, cê entendeu? Mas participa sim, ainda principal quando
tem assim...quando vem algum benefício que fala, ai todo mundo
participa da reunião.
332 GOHN, 2007, p. 45. 333 Entrevista com Maria Rita Oliveira, no Tucum em 24/08/2015.
135
Pesquisadora - E quem participava mais? Homens ou mulheres?
Carlito - Mais as mulheres. Os homens também vai, mas é mais as
mulheres.
Pesquisadora - Por que você acha que as mulheres participavam mais?
Carlito- Eu credito que é porque as mulher é quem fica mais na
comunidade né? Os homens costuma sair pra fora ou tá trabalhando,
ou tá cansado na hora da reunião e num ir. Então por isso que sempre
quem participa mais é as mulheres.334
Como liderança comunitária, Rita orgulha-se de ser quilombola, mas se angustia
com as contradições que perpassam as relações com os moradores, pois “tem gente que
é e não quer ser, mas aqui na nossa comunidade ainda falta muitos pra ser uma
comunidade quilombola”. Também se queixa de que a maioria das mulheres é omissa
em participar das reuniões, nas ações e dar continuidade aos projetos em que
participam.
Eu creio que essa tradição aí das mulheres do barro, de explorar mais
as tradições...porque eu acredito que a gente já explicou, explicou,
explicou tem que trazer mais pessoas engajadas nesse projeto que
possa passar mais conhecimento para que as pessoas entendam mais
né? E o exemplo que a gente tem aqui mesmo é a exploração do barro,
se você for lá em Lindaura, tem a palha do licuri que as meninas, veio
umas moças aqui de uma cidadezinha que eu não lembro o local, que
explorou fez essas palhas, fez tanto trabalho bonito e parou por aí,
acabou, não é que acabou porque o povo, as meninas que aprenderam
a fazer elas são assim elas só passam se tiver as pessoas vinda de fora,
se sentar na comunidade e falar assim: gente vamo passar pra aqui isso
que aprendeu? Elas não tem essa vontade de passar, só quando as
pessoas vem de fora. 335
Essa preocupação com a falta de politização das outras mulheres é uma
constante nas falas de Rita, pois ela conta com o apoio destas para levar a frente alguns
projetos na comunidade e diz se sentir desestimulada. Eliane Santana também
compartilha a angústia das companheiras com relação aos assuntos da comunidade,
percebe a necessidade de união entre os moradores e que a falta desta acaba por
acarretar uma concentração de tarefas nas mãos de um grupo reduzido. “Não tem união,
é que nem a gente, hoje em dia a gente tem a associação, se a gente tem algum problema
na comunidade ou alguma pessoa doente, aí o quê que é todo mundo se unir né? Tem
muitos associados entendeu? Todo mundo se unir.” 336 Outra queixa é que os homens
334 Entrevista com Carlito Augusto Oliveira, em Tanhaçu, no dia 30/05/2015. 335 Entrevista com Maria Rita Oliveira Silva, no Tucum, em 24/08/2014. 336 Entrevista com Eliane Silva Santana, no Tucum em 24/08/2014.
136
também não desejam participar e discutir as questões locais na Associação. Como é
perceptível na fala de Carmem:
Ainda existe assim alguma coisa com relação aos homens, por que
muitos homens eles não gostam de participar sabe? Até mesmo das
comunidades quilombolas, até mesmo das reuniões das associações cê
ver que tem mais mulheres do que homens. Os homens ainda tem
aquela maneira de, eles ainda são mais resistentes, uns ainda vão mais
não aceitam ficar, muitos deles ficam pelo lado de fora até mesmo
criticando, tá entendendo? Os homens não participam. 337
Essa omissão por parte dos homens faz com que as mulheres sejam a maioria
nas reuniões locais e externas que a comunidade participa. No contato com os
moradores do sexo masculino, percebemos que alguns ainda não entendem e não
aceitam serem quilombolas, já que relacionam essa condição com a escravidão e veem
como algo negativo. Maria do Carmo juntamente com Rita, buscam fazer um debate
sobre as origens do Tucum de forma a sensibilizar os moradores. Outro problema
apontado na gestão de Carlito eram os atrasos ou mesmo o não pagamento da
contribuição sindical, que na época era de R$1,00 para cerca de 90 associados. Desde
2014 que a contribuição sindical está fixada em R$3,00. Esse dinheiro era utilizado para
as viagens do presidente, pagamentos e outras demandas da Associação, e muitas vezes
não era o suficiente, como aponta Carlito Oliveira:
A dificuldade era pra poder viajar porque não tinha renda né? Então
quando tinha que ir pra Salvador não tinha dinheiro pra ir, tinha uma
pessoa com o nome de Marindo que levava né? Me dava passagem pra
voltar, então tinha muita dificuldade para participar, agora já tá melhor
não é? Porque o pessoal também já tá contribuindo direito entendeu?
Mas antes tinha muita dificuldade, que nem muitas vezes eu saí daqui
de Tanhaçu pra ir no Tucum a pé, que é de nove a treze quilômetros.
A pé ir e voltar, e reunião no Pastinho também eu já cheguei a descer
na Itaguarana há noite pra ir participar de reunião lá a pé. Porque não
tinha transporte, nem tinha dinheiro pra pagar um carro pra ir, e eu
tinha compromisso, eu nunca deixei de participar.338
A vinda de cursos e agentes de instituições como a FLONA de Contendas do
Sincorá e a ICMbio trouxe à comunidade a possibilidade de pensar em novas fontes de
renda. Entre 2011 e 2012, dois cursos vieram direcionados às mulheres: o da confecção
337 Entrevista com Maria do Carmo, no Tucum, no dia 04/08/2012. 338 Entrevista com Carlito Augusto Oliveira, em Tanhaçu, no dia 30/05/2015.
137
de artefatos diversos com a palha de licuri e o segundo curso ensinava a fazer doces e
compotas de frutas locais. A figura 17 mostra uma mulher do Tucum confeccionando
uma cesta de palha de licuri e foi registrada numa visita dos estudantes do Colégio
Estadual Antônio Carlos Magalhães a comunidade do Tucum.
Figura 17 – Mulher do Tucum fazendo cesta da palha do licuri.
Foto de Luciana Carvalho – S.d.339
Os cursos tinham por objetivo oferecer opções de autonomia financeira para
essas mulheres sem que abandonassem as práticas tradicionais e as matérias primas da
comunidade. Nas conversas das mulheres que participaram do curso, o contato com as
agentes externas e a sociabilidade foram pontos positivos desses encontros. Na fala de
Rita: “Elas se sentem valorizadas né?”,340 mas observa que a maior dificuldade é dar
continuidade a essas ações, principalmente por conta das dificuldades financeiras das
moradoras. A palha de licuri existe em grande quantidade na região, mas elas não têm
um espaço para trabalhar. Apesar de algumas terem continuado a fazer os objetos em
suas casas, não há uma comercialização. A organização do curso dos doces se
339 GEOGRAFIA E DIVERSIDADE. Colégio ACM. (S.d) Disponível online em
http://lucianageografia.blogspot.com.br/p/colegio-acm.html acessado em 04/03/2015. 340 Entrevista com Maria Rita Oliveira, no Tucum, no dia 24/08/2014.
138
comprometeu a fornecer um maquinário para a comunidade, assim como certificado
para as participantes, mas até a finalização dessa pesquisa isso não havia ocorrido.
Falta muitas coisas ainda, principalmente para as mulheres, mais
cursos, mais capacitações para que elas aprendam mais e também
assim uma fonte de renda pra que elas possam fazer os trabalho delas
e ser remunerada com uma quantia, que não seja muito, mas que ajude
a elas mais, porque há mais uma falta de incentivo. Porque se a gente
senta: vamos fazer a cestinha hoje? A gente senta na cabana e tira uns
três dias pra fazer, faz aquelas coisinha tão bonitinha, mas ai era bom
que quando elas terminasse já tivesse ali um lugar para elas vender e
mostrar o produto delas né? Pra criar mais estímulo pra elas.341
A visita de agentes externos funciona como um desses estímulos citados por
Rita. Quando iniciamos os contatos com as moradoras em 2009, pouco ou quase nada se
encontrava sobre a comunidade na internet. Desde então, os contatos com outras
comunidades, cursos e ações sociais cresceram significativamente, e após a descoberta
da urna funerária indígena nas terras do Tucum em 2011, o povoado ganhou
notoriedade, inclusive dentro da própria cidade de Tanhaçu e desde então passaram a
receber visitas de grupos diversos.
Nos dias 02 e 03 de dezembro de 2011, o Tucum sediou o I Encontro das
Comunidades Quilombolas do Território de Identidade Sertão Produtivo, organizado
pela FLONA de Contendas do Sincorá. O objetivo do encontro foi a sensibilização e o
fortalecimento da autonomia das comunidades do Sertão produtivo. Nessa ocasião as
mulheres puderam expor e vender seus trabalhos da palha do licuri e do barro. A figura
18 mostra o stand das mulheres do Tucum durante o encontro que foi sediado na própria
comunidade, Maria do Carmo é a quarta figura da direita pra esquerda, Rita e Lindaura
também aparecem na foto.
341 Entrevista com Maria Rita Oliveira, no Tucum, no dia 24/08/2014.
139
Figura 18- Mulheres do Tucum no I Encontro das Comunidades Quilombolas do
Território de Identidade Sertão Produtivo.
Foto de autoria desconhecida.342
Foi a partir das palestras e discussões ocorridas no I Encontro das Comunidades
Quilombolas do Território de Identidade Sertão Produtivo que a Associação começou a
comemorar o “Dia da Consciência Negra” no dia 20 de novembro. O primeiro ano em
que essa comemoração ocorreu foi em 2012. Nesse dia aconteceram palestras, oficinas e
mostra de artesanato. A comemoração dessa data é muito importante para o
fortalecimento da autoestima e da identidade quilombola dos moradores.
Apesar dos avanços que a comunidade teve em relação ao acesso a benefícios, a
gestão atual ainda tem demandas inúmeras e dificultosas, a questão da não titulação da
terra e a falta de participação dos moradores figuram entres estas. Os relatos das
mulheres do Tucum demonstram que mesmo em suas ações cotidianas, no trato com a
casa e a família, a busca por melhorias é uma constante. Ainda que nem todas se
envolvam diretamente nas questões da associação, trabalham cotidianamente para
manter as suas famílias e enfrentam os obstáculos de sua condição feminina, com
firmeza de mulher que lida com a terra e conhece os ritmos da natureza.
342 Disponível online em http://www.icmbio.gov.br/portal/comunicacao/noticias/20-geral/2442-flona-
contendas-do-sincora-coordena-encontro-das-comunidades-quilombolas.html . Acessado em
15/10/2012.
140
3.3 As mulheres e a religiosidade no Tucum
A religiosidade ainda hoje é muito forte entre as comunidades negras,
sendo o catolicismo, pelo menos aparentemente, a única religião
permitida e praticada. Aparentemente, porque as benzeduras, a
prática de curandeirismo, o xamanismo, a punçanga (feitiço), a
encomendação leiga das almas também fazem parte de um universo
cultural caracterizado pelo sincretismo religioso, marca forte de
identidade dessas comunidades, assim como dos mocambeiros.
(Eurípedes Funes)343
A existência correlata de práticas religiosas católicas e afro-indígenas em
comunidades negras rurais é notória, como foi sinalizado por Eurípedes Funes. Da
interação entre os africanos escravizados com os brancos e indígenas surgiram
construções sociais e culturais bem diversas. Após serem retirados dos seus lugares e
forçados a renovarem trajetórias no além-mar, os africanos reconstruíram suas
identidades em diversos aspectos desde as relações de trabalho até as práticas religiosas.
E foi assim que manifestações religiosas como a congada e o candomblé se tornaram
elementos centrais de uma cultura e identidade afro-brasileira.
O tema da dominação não pode deixar de estar presente quando
falamos de sociedades afrodescendentes nas Américas, e certamente
as atitudes dos representantes da sociedade senhorial, entre eles os
agentes da Igreja, tiveram um papel fundamental nos processos de
constituição de novas identidades e novas formas culturais a partir da
diáspora africana.344
A questão religiosa teve importância para o fortalecimento da identidade
quilombola no Tucum e, ainda que a comunidade se situe numa região demarcadamente
católica, lá também se encontram as manifestações de religiosidade popular e as
religiões de matriz africana. São as mulheres do Tucum que organizam as principais
manifestações culturais e religiosas como os festejos de São João Batista, considerado o
Padroeiro da Comunidade e a festa em louvor a Nossa Senhora Aparecida. O papel
assumido pelas mulheres nos grupos religiosos revela uma força política que ultrapassa
o campo do espiritual:
343 FUNES, 1996, p. 476. 344 MELLO E SOUZA, Marina de. Catolicismo negro no Brasil: santos e minkisi, uma reflexão sobre
miscigenação cultural. Afro-Ásia, núm. 28, 2002, p. 125-146.
141
Ainda no âmbito das articulações políticas em torno do sagrado e do
encontro entre matrizes culturais e religiosas ocidentais e africanas,
foram criadas Irmandades femininas negras. Estas eram associações
religiosas abrigadas no interior dos rituais cristãos, especialmente na
religião católica hegemônica no período escravocrata. E tiveram
grande importância no estabelecimento de condições materiais de
subsistência para as mulheres de diferentes etnias africanas e para as
afro-brasileiras. Bem como propiciaram as articulações necessárias
para o confronto ao regime da época, inclusive para as ações e
estratégias políticas de massa, como as revoltas urbanas. Algumas
destas são atuantes até hoje, como a Irmandade da Boa Morte, no
interior da Bahia. Vinculada à igreja católica, ela reúne mulheres
negras idosas da mais alta hierarquia das religiões afro-brasileiras,
especialmente do Candomblé. Seus rituais públicos explicitam as
articulações entre religiões e matrizes culturais, ainda que seus
mistérios sejam profundamente afro-brasileiros. 345
Jurema Werneck fala da influência das mulheres nas irmandades negras e suas
articulações de alcance político. Ruth Landes também aponta para “as articulações entre
religiões e matrizes culturais” ao falar das mães de santo da cidade de Salvador em
meados do século XX, identificando o poder que desenvolveram em suas casas, por ter
sido “nas regiões latino-americanas que as mulheres negras encontraram maior
reconhecimento do seu próprio povo e dos senhores”. 346 Essa conjuntura favoreceu o
surgimento de um catolicismo negro que, mesclado a outros matizes culturais, “se
completam como partes integrantes de um mesmo sistema religioso”. 347 Falaremos
especialmente das práticas católicas no Tucum e da liderança de Maria do Carmo neste
espaço.
No Tucum encontramos duas igrejas católicas, uma igreja evangélica da
Assembleia de Deus e cinco casas de umbanda. A maior parte da comunidade afirma ser
católica e há estranhamentos quanto às religiões de matriz africana, como é visível na
fala de Maria do Carmo: “É só a católica e os evangélico, porque o pessoal que faz os
carurus e essas coisas, eles se consideram também católico”. 348 As duas igrejas
católicas existentes na comunidade são dedicadas a dois santos: a do “Tucum de cima”
345 WERNECK, 2005, p. 79. 346 LANDES, 2002, p. 351. 347 O’DWYER, Eliane Cantarino. Os quilombos e as fronteiras da Antropologia. Antropolítica (UFF). V.
19, p. 91-111, 2005, p. 104. 348 Entrevista com Maria do Carmo, no Tucum em 30/05/2015.
142
349 é dedicada a São João Batista e da do “Tucum de baixo” à Nossa Senhora Aparecida.
A figura 19 mostra a Igreja Católica de São João Batista no “Tucum de cima”.
Figura 19 – Igreja católica dedicada a São João Batista no “Tucum de cima”.
Foto: Greciane Neres. Fevereiro de 2012.
Ambas as igrejas foram construídas no ano de 1985. A primeira a ser construída
foi a de Nossa Senhora Aparecida, localizada no “Tucum de baixo”. Para conseguir
recursos para a obra foram feitos leilões e solicitada ajuda do prefeito da época, e num
mutirão, os próprios moradores a construíram. No mesmo período, os moradores do
Tucum de cima decidiram-se por construir outra igreja que foi dedicada a São João
Batista. Sobre esse processo nos conta Maria do Carmo:
Primeiro eles começaram a fazer uma reunião lá e fizeram a igreja, pra
fazer a igreja de Nossa Senhora Aparecida, o pessoal, a maioria
acharam por melhor fazer uma igreja só de São João porque ficava
dividido, aí Lagoa da Pedra, Tapagem ficaria numa só. Ai o pessoal
não decidiram a não aceitaram, nós já tinha feito a ideia, aí fizeram a
igreja de Nossa Senhora Aparecida e ao mesmo tempo aí o pessoal
todo que queria a igreja lá de cima fizeram a Igreja de São João. Só
349 A região é comumente dividida entre “Tucum de baixo” e “Tucum de cima”, assim chamadas pelos
moradores para entenderem a localidade a que se referem, já que a entrada da comunidade é numa
baixada e vai se estendendo até o Pé do Morro como explica Maria do Carmo: “Assim é que quando
vem de lá que saí da Batateira, as primeiras casas, geralmente se fala assim Tucum, aqui já é Tucum,
mas fica lá em baixo, por isso Tucum de Baixo. Mas é um só, é por causa que lá já é afastado. Até lá na
serra tem moradores.”
143
que não teve separação assim, de não ir lá não, todo mundo vai lá.
Teve só o mal entendido de fazer as duas igrejas sabe?350
Os moradores da Tapagem e da Lagoa da Pedra frequentam a Igreja de São João
Batista por conta da proximidade de suas casas. As missas ocorrem uma vez ao mês e o
padre as intercala entre as duas igrejas. A existência de duas igrejas tão próximas é uma
peculiaridade do Tucum que, segundo Carlito, “é a única comunidade que tem duas
igrejas 800 metro uma da outra. Nem aqui ne Tanhaçu não tem né?” A figura 20 mostra
a Igreja de Nossa Senhora Aparecida com duas portas azuis numa foto veiculada no site
da Prefeitura de Tanhaçu, quando a comunidade foi reconhecida em 2006.
Figura 20 – Igreja católica dedicada a Nossa Senhora Aparecida.
Foto de autoria desconhecida. (s.d)351
Antes da construção das Igrejas os moradores se reuniam nas casas, desde aquela
ocasião em que Maria do Carmo e as outras mulheres se articulavam para organizar os
encontros religiosos. De acordo com Carlito, “Maria do Carmo é a liderança no Tucum
em toda parte, toda parte, tanto faz, é igreja católica, assembleia, ela é uma líder do
Tucum” 352 Atualmente, desde que deixou a vice-presidência da Associação, do Carmo
tem se dedicado às questões espirituais. Ela assume os cuidados e responsabilidades na
Igreja de São João Batista e Euzimar Santana na Igreja de Nossa Senhora Aparecida. A
350 Entrevista com Maria do Carmo, Tucum, 30/05/2015.
351 Foto retirada do site da Prefeitura de Tanhaçu para a consulta. <http://tanhacu.ba.gov.br/historia.html>
acessado em 07/08/2014. 352 Entrevista com Carlito Augusto Oliveira, Tanhaçu, 30/05/2015.
144
figura 21 mostra a Igreja com uma única porta marrom, fruto de uma reforma feita entre
os anos de 2009 e 2010.
Figura 21 – Igreja católica dedicada a Nossa Senhora Aparecida após a reforma.
Foto de Karla Dias de Lima – 30/05/2015.
Um grupo de mulheres da comunidade organiza a catequese, a limpeza das
Igrejas e o culto comunitário com a celebração da palavra que ocorre aos sábados,
quando não tem missa. Segundo Maria do Carmo, “tem um grupo que ajuda, as
meninas, tem Sula, tem Rita, tem Idália, tem Mara, tem a menina que mora lá perto, que
quando uma sai a outra toma conta”. 353 Com elas divide as leituras dos Salmos, as
preces, os cânticos da liturgia e se reúnem para decidirem as questões principais. Nesses
encontros sempre se reversam para levar o chá. Rita diz que as mesmas mulheres que
participam da associação fazem parte das ações da igreja:
Na Igreja que é a minha mãe que é a líder da comunidade, é a da
Igreja, ela é ministra da eucaristia, a gente reúne igreja e associação,
quer dizer os membros são poucos, pra tomar as decisões são poucos,
são o quê? Acho que 8 pessoas, a gente se reúne é as mesmas que faz
parte da pastoral, que faz parte dos cânticos da liturgia, da igreja. São:
eu, minha mãe, que é Isabel Solenidade que é menina que é a
tesoureira, tem a secretaria aqui em cima que é Rosilda Novais que é a
neta de Tia Anízia aquela lá, tem Ricardo Santana, tem, quê mais?
Acho que uns oitos a nove, umas dez pessoas se reúne pra tomar as
decisões né? Quando tem as decisões da igreja, mãe reúne na igreja
353 Entrevista com Maria do Carmo Oliveira, Tucum, 30/05/2015.
145
chama as pessoas lá, e quando a gente toma as decisões a gente reúne
com todo mundo, as pessoas da comunidade e pede. 354
Nas questões da Igreja, as mesmas queixas de repetem: a falta de união das
mulheres e pouca participação dos homens. Sobre essa questão Maria do Carmo diz
que:
Eles vão mas eles não ficam a frente e ai que a gente gostaria que
eles também fizessem a frente, mas eles não fazem. Eu não sei
porque. Hoje mesmo eu estava convidando eles para participarem
das novenas e eles falando ‘ahhh a gente pode até vim’. Mas assim
mesmo eles ficam lá fora sentados conversando.355
Em paralelo com as relações de gênero no Tucum, percebemos que a
religiosidade é um ponto importante no cotidiano dessas mulheres. Sendo um
mecanismo de poder, o discurso religioso também é influenciado por outros discursos, a
partir dos quais compartilha e contrapõe ideias, bem como forma a sua esfera de
influências. A religiosidade no Tucum é também um território de afirmação e liderança
feminina, pois a presença feminina é forte no âmbito religioso, superando muitas vezes
o número de homens. Ruth Landes chama atenção para esse lugar que também é de
liderança feminina:
Por toda parte onde o negro vive no Novo Mundo, as mulheres ainda
lavram a terra e controlam os mercados e nas cidades trabalham como
domésticas. São levadas a sério como chefes e adeptas da religião, por
vezes subordinadas aos homens, por vezes no mesmo pé de igualdade,
por vezes acima deles, como em certos pontos da Jamaica e do
Brasil.356
Considerada uma das matriarcas da comunidade, Dona Anízia teve grande
influência na religiosidade local e até pouco antes de seu falecimento ela realizava a
Novena de São Roque no dia 16 de agosto, uma tradição passada de mãe para filha, e
que desde seu falecimento não mais ocorreu. Sua filha Madalena conta como era: “Eu
lembro que tinha a reza de São Roque e terminava a reza a gente ia brincar de roda, era
cantiga de roda, até hoje ela reza, dia 16 de agosto, tem muito tempo que ela faz, desde
ela nova. Ela era pequenininha, ela era moça ela rezava”. 357 Muito religiosa, D. Anízia
sabia as rezas de memória e falou sobre a religiosidade do Tucum: “Aqui é só católico,
354 Entrevista com Maria Rita Oliveira, Tucum, 24/08/2014. 355 Entrevista com Maria do Carmo Oliveira, Tucum, 30/05/2015. 356 LANDES, 2002, p. 349. 357 Entrevista com Madalena Novais, no Tucum, no dia 04/08/2012.
146
é mesmo na reza, (...) cântico, tinha hora que era aqueles cantim, agora igreja toda missa
que tinha a gente ia, reis, Bom Jesus”. 358 E relembra as pessoas que também faziam
orações e festas no Tucum:
As veis tinha um casamento, as veis tinha uma reza, num tinha
muintcha coisa não. Da finada minha mãe mermo tem, a finada Rosa,
e mãe de Loisa tumbém. Elas tudo faziam as oração. Para São João,
para São Pedro, São Roque. Fazia vadiação era só nos dia, dia de São
João, de São Pedro, que festejava São Pedro, ia na casa de uns outro,
era essa brincadeira assim, num era essas dança que tinha. Mas aí foi
indo acabano né? 359
Por ocasião da entrevista em 2012, Dona Anízia rezou a ladainha em latim,
conhecida como Kyrie Eleison, que ela ensinou para suas filhas e sobrinhas. 360 Maria
do Carmo conta que mesmo sem saber ler e escrever as mais velhas aprenderam a rezar
em latim: “E hoje a nossa reza hoje ainda é em latim, as pessoas mais de idade já veio
rezar aqui na casa dela já, no dia 16 e ela quer a ladainha em latim, a ladainha em latim
a gente aprendeu com a mãe dela e com minha tia”. 361 Sobre esse repasse de saberes
tradicionais típico das mulheres quilombolas, Daniely Santos observa que
As mulheres quilombolas são detentoras dos saberes tradicionais, das
rezas, medicina natural, comidas típicas, bem como foram e são
importantes na organização social da comunidade, e o importante, são
as mulheres dos quilombos as responsáveis de passar para as gerações
os saberes tradicionais. Assim, as mulheres quilombolas adotam as
mais variadas táticas de resistência dos saberes tradicionais, com o
intuito de não perder a herança sociocultural dos seus antepassados.362
Outra prática religiosa de caráter popular encontrada no Tucum são as rezas para
a cura. É uma prática quase que, exclusivamente, feminina, muito utilizada nas
comunidades rurais por todo os Brasil. As rezadeiras têm uma função curativa e
ritualística no imaginário desses grupos. Ronaldo Senna as descreve
358 Entrevista com Maria Anízia Novais, no Tucum, no dia 04/08/2012. 359 Entrevista com Maria Anízia Novais, no Tucum, no dia 04/08/2012. 360 “A expressão grega "Kyrie Eleison" é uma das mais antigas da liturgia cristã, usada tanto no Oriente,
quanto no Ocidente. Neste último, mesmo quando a língua litúrgica oficial passou a ser o Latim e não o
grego, manteve-se a expressão Kyrie eleison como no original. Este termo é muito rico em significado.
Em português ele é traduzido por "Senhor, tende piedade de nós". Porém, a melhor tradução seria
simplesmente: "Senhor, Piedade".” Fonte: <http://cantaraliturgia.blogspot.com.br/2009/07/kyrie-
eleison-ato-penitencial.html> Acessado em 20/10/ 2014. 361 Entrevista com Maria do Carmo Oliveira, no Tucum, 04/08/2012. 362 SANTOS, 2013, p. 61.
147
Esta categoria, cristalizada sempre em pessoas do sexo feminino, não
exerce uma função rústica ou rústico-mágica, mas puramente mágica.
(...)a "rezadeira" cura apenas indisposições - "mal olhados", "
espinhela caída". . . -, assim como, exerce o papel de reordenação de
projetos vitais que se encontram confusos ou Çugidios, como por
exemplo, "abrir caminho", "tira teima", amor perfeito", "desencosto",
"segura marido", etc .363
Segundo Maria do Carmo existem duas rezadeiras na comunidade: “Agora, pra
benzer mesmo só tem duas que ainda benze criança, fala que é mau-olhado sabe? Mas
elas benze assim, como é que eu posso dizer, elas não querem muito falar que elas
benze não, elas ficam meio particular”.364 Uma das rezadeiras é Madalena filha de D.
Anízia, tanto ela como a outra rezadeira, Maria Adélia, sentem vergonha em falar sobre
suas práticas. Esse temor em falar das rezas também é exposto por Leila Teixeira em
sua pesquisa na comunidade de Tomé Nunes. Nesta localidade algumas manifestações
religiosas, como as práticas de candomblé e umbanda, assim como as rezas e
benzeduras só vieram a público após o reconhecimento e a chegada de agentes externos.
Com a ajuda de entidades como a CPT, os membros da comunidade foram entendendo
que estas práticas eram parte da cultura e tradição local e que não deveriam se
envergonhar de praticá-las.
É percebido hoje na comunidade uma fala mais aberta em relação às
manifestações de matriz africana. Comenta-se que os próprios
moradores reconhecem o trabalho da CPT como importante para a
modificação de uma postura mais reservada e mesmo acanhada
(envergonhada) quanto algumas das tradições religiosas da
comunidade, a exemplo do Terreiro. 365
O Tucum, por diversos motivos, talvez se beneficie de uma discussão dessa
natureza. A pertença ao grupo e ao território onde vivem é importante para a
delimitação de uma identidade coletiva e as práticas religiosas constituem parte
importante desse território material e simbólico. Observando a comunidade do Tucum
nos últimos três anos, vimos que a religiosidade católica assume uma centralidade junto
a maior parte das famílias, as imagens de santos e crucifixos são comuns nas moradias
desses. Neste âmbito, o papel das mulheres e das lideranças é salutar para o reforço da
363 SENNA & AGUIAR, 1980, p. 83. 364 Entrevista com Maria do Carmo, no Tucum, 30/05/2015. 365 TEIXEIRA, 2010, p. 54.
148
autoestima dos moradores, para que talvez, um dia, se aproximem das questões e
práticas da Umbanda, e as rezas não sejam mais um objeto de temor e vergonha.
3.4 Do barro à luta: o trabalho e o cotidiano das mulheres do Tucum
No Brasil, durante o século XIX, as mulheres negras escravas, livres ou libertas
tinham lugares demarcados para sua convivência e o trabalho. Cecília Soares pontua
que as escravas da casa eram as preferidas para os trabalhos domésticos, em virtude de
sua proximidade com os senhores que lhes tinham confiança; já os trabalhos de ganho,
feitos na rua, eram exercidos por africanas e negras livres e libertas. A rua era
considerada o lugar da imoralidade e dos vícios que os senhores não desejavam trazer
para suas casas. Para as mulheres negras, a rua apresentava a oportunidade de se
socializarem e se libertarem das rotinas rígidas das casas senhoriais, e era também lugar
de embates e conflitos:
Nas fontes, com efeito, eram comuns as brigas entre as negras. Ali era
também lugar de conflito entre essas mulheres e a polícia, que agia
com violência nessas horas, segundo Vilhena (1969), escrevendo no
final do século XVIII, nestes locais as negras faziam desordens com
outros negros, disputando água, quebrando vasilhas, agredindo-se
mutuamente, defendendo seus pertences. 366
Atualmente as mulheres negras rurais convivem com estruturas que legitimam as
desigualdades raciais e de gênero, e as invisibilizam nas lidas domésticas e agrárias. São
influenciadas pelas múltiplas identidades que afloram no seu entorno de mulher rural e
quilombola e sofrem preconceitos variados para se afirmarem como trabalhadoras
rurais. 367 A inserção das mulheres no meio político é um caminho tortuoso, mais
coerente com o curso das lutas das trabalhadoras rurais da década de 1980 até a
atualidade. Sobre esta inserção, Celecina Sales diz que “ao ingressar em movimentos, as
mulheres rurais criam possibilidades de se afirmarem como portadoras de um saber-
poder no campo da política, que lhes proporcione também repensar seu cotidiano”.368 A
formação política dessas mulheres dá-se a partir das malhas do cotidiano, das
366 SOARES, 2006, p. 55. 367 SALES, Celecina de Maria Veras. Mulheres rurais: tecendo novas relações e reconhecendo direitos.
Estudos Feministas, Florianópolis, 15(2): 240, maio-agosto/2007. 368 Ibid., p. 438.
149
necessidades de sobrevivência coletiva e individual, nas competências adquiridas para
se fazer ouvir e serem respeitadas em uma comunidade. Para Pierre Bordieu, essas
competências são adquiridas cotidianamente nas articulações da linguagem e mediação
política que favoreçam que o discurso construído seja aceito em determinada situação.
369 São competências que se configuram em um poder periférico e se estendem a uma
rede de mecanismos que atinge a todos dentro de um grupo. De acordo com Michel
Foucault, o poder, em sua esfera macro ou micro, é exercido nas práticas cotidianas. 370
Para se compreender sobre as dinâmicas de poder e gênero das mulheres negras
e quilombolas, são necessárias diferentes categorias de análise que permitam perceber
as especificidades destas relações e as negociações nelas envolvidas. Numa comunidade
quilombola, os lugares de poder são negociados e consentidos, e são neles que a mulher
quilombola assume a sua força e a liderança comunitária. Seus saberes e fazeres se
articulam nas práticas e enfrentamentos que são necessários para que se mantenham nos
espaços que conquistaram. Benedita Celeste Pinto, ao falar das mulheres quilombolas
da Amazônia, observa a importância que tiveram nas lutas cotidianas das comunidades:
Neste processo de resistência, a mulher desempenhava um papel de
vital importância. Podia ajudar tanto na produção econômica como
"administrar" em termos logísticos, materiais e culturais os próprios
quilombos. Pois, estes eram ao mesmo tempo comunidades
camponesas e unidades militares. Na manutenção material, no
abastecimento de provisões, na confecção de roupas, de utensílios, no
mundo espiritual e no mundo do trabalho, de forma geral, as mulheres
foram muito importantes nas comunidades de quilombolas. 371
O cotidiano das mulheres do Tucum é marcado por muito trabalho. As lidas
domésticas, os trabalhos da associação, o trabalho no campo e a fabricação do barro são
algumas das esferas de atuação das mulheres da comunidade de quem já falamos no
segundo capítulo: as líderes, paneleiras e guardiãs da memória. E num povoado rural
com poucas opções de trabalho e renda, como é o caso do Tucum, ocorre dos homens
terem que sair para vender seu trabalho nas fazendas próximas e as mulheres, quando
não os acompanham, buscam alternativas de trabalho dentro da comunidade. Mesmo
369 BOURDIEU, Pierre. Sociologia. São Paulo: Ática, 1983, p. 158. 370 FOUCAULT, Michel. A microfísica do poder. Org. e trad. Roberto Machado. 15. ed. Rio de Janeiro:
Graal, 2000. 371 PINTO, 2004, p. 20.
150
quando não há atritos nessas relações, muitas vezes o trabalho feminino é inviabilizado
por uma série de fatores apontados por André Brandão:
Os espaços sociais, produtivos e de poder (familiar e comunitário) que
homens e mulheres tendem a ocupar em dada comunidade, bem como
os efeitos que geraria o empoderamento de um ou de outro através do
acesso a renda, são questões importantes de gênero (...) a
comprovação do trabalho rural feito pelas mulheres é dificultado por
conta de elementos culturais que se inscrevem na ordem da dominação
masculina e que resultam na transformação simbólica de um árduo
trabalho em uma mera “ajuda”. Tratase de valores culturais
institucionalizados que se expandem até os elementos legislativos e a
própria forma de operação dos órgãos estatais. Tais valores
consolidam uma situação (inclusive estatística) de invisibilização do
trabalho feminino. 372
Desta invisibilização afloram as percepções de gênero e dos lugares que devem
ser ocupados pelas mulheres rurais dentro dessas comunidades. Como já observado em
outros momentos, as comunidades quilombolas possuem peculiaridades, em especial na
sua relação com o território e nas possibilidades de trabalho e renda. A falta de opções
de trabalho leva muitos quilombolas a trabalharem nas lavouras alheias como
assalariados. Neste lugar, o trabalho feminino é visto de muitas maneiras: “como
“serviço leve” que gera uma situação de remuneração absoluta menor quando
comparada à diária paga pelos fazendeiros a serviços pelos homens”.373 Como aponta
André Brandão, há uma tênue linha entre o trabalho considerado “produtivo” e o
“reprodutivo”:
O gênero estabelece uma distinção e diferenciação entre o chamado
trabalho “produtivo” remunerado e o chamado trabalho “reprodutivo”
e doméstico não-remunerado. Este último, é o espaço culturalmente
associado a mulher, enquanto o primeiro é associado aos homens.374
Devido à escassez de água, o Tucum não oferece possibilidades de plantio ao
longo do ano, pois, geralmente, as famílias plantam entre novembro e dezembro, no
período de intensas chuvas. D. Edelvira nos contou que a vida na comunidade nos
tempos de sua juventude era árdua e o trabalho na roça era o destino de todos, homens,
372 BRANDÃO, André A. Pereira . JORGE, Amanda Lacerda. Androcentrismo Institucional e acesso a
aposentadoria Rural entre mulheres quilombolas da comunidade de Agreste-MG. Revista Artemis,
Edição V. 13; Jan-Jun; 2012, p. 163. 373 BRANDÃO, 2012, p. 165. 374 Ibid., p. 163.
151
mulheres e crianças. Era um tempo em que as chuvas eram abundantes e as famílias
podiam fazer suas “rocinhas” e plantar feijão para vender e se alimentar. “As coisas
perdia nas plantação, dava feijão, dava mandioca, mamona, milho, era uma fartura”.375
Já casada, fazia potes de barro e esteiras para vender na feira de Tanhaçu e ensinou o
trabalho para suas filhas. Abandonou o ofício por conta de sua idade, mas diz não ter
medo de trabalhar. Sua filha Carmem cresceu nesse ritmo de trabalho na lavoura e no
fabrico das panelas de barro:
Trabalhei na lavoura, depois quando eu, mocinha já comecei fazendo
barro, por muito tempo até depois de casada, até depois de meus filhos
já todos grandinhos. Eu ia pra Ituaçu a pé, a cidade de Ituaçu e
Ourives eu ia a pé vender panela, na feira de Ituaçu no sábado e
ourives domingo. Depois do barro eu fiquei de 89 a 95 alfabetizava
criança, depois eu fui agente de saúde.376
O seu esposo e filhos anualmente iam para a colheita de café nas fazendas
próximas nos municípios de Ituaçu e Barra da Estiva, trabalho que ocupa os moradores
da comunidade entre os meses de abril e agosto. Nestas ocasiões, como uma parte de
seus filhos ainda eram pequenos, Maria do Carmo ficava em casa para cuidar deles.
Segundo os relatos das moradoras, na década de 1980, período de grande dificuldade
financeira, a maioria das mulheres da comunidade fazia panelas de barro e as vendia nas
feiras dos municípios circunvizinhos. D. Anízia nos contou que graças a este trabalho
sustentava seus filhos:
Panela de barro? Ô meu pai do céu! Era das panela que nois vivia,
andava em Contenda, nos Laço, Brejo, Ituaçu in antis se chamava
Brejo sabe? Era cadas pote, eu ainda tenho um pote que eu fiz quando
Dolores casou num foi? Foi Maria que casou, faz tantos ano. Eu fazia
esteira, vassoura, foi para tantos ano. Quem me ensinou foi a finada
minha mãe, porque ela era peneleira para viver, já veio para gente
num é? Desde de trais num é? Ia vindo as crianças tinha que fazer
isso, panela, fazer renda, era assim que a gente vivia. Agora nós num
tá fazendo mais não. Agora os dedos num dá para fazê mais nada. Mas
tem o povo da Tapage e Rosa ali mermo né? Que faiz. Aquela
Lindaura faiz, Ester lá em cima. 377
375 Entrevista com Edelvira Oliveira Silva, no Tucum, em 23/08/2014. 376 Entrevista com Maria do Carmo Oliveira, no Tucum, 30/05/2015. 377 Entrevista com Anizia Novais, no Tucum, 04/08/2012.
152
Entre as senhoras mais velhas que entrevistamos, com exceção de D. Mariazinha
que não foi nascida na comunidade, todas já fizeram panelas, ofício ensinado pelas
mães e avós. D. Euflorzina Rosa de Jesus, de 89 anos, nos conta em sua simplicidade:
“Já fiz, muito tortinha mais eu fiz. Foi com quê cabei de ajuda meu velho a se mantê os
filho, que minha mãe teve oito filho e eu Deus me deu onze”.378 D. Euflorzina lembra
que colocava as panelas num balaio em cima da cabeça e ia para a feira vender com a
ajuda do seu marido. Esse ofício passou para suas filhas Rosa e Lindaura, atualmente as
duas mais importantes paneleiras da região.
Nascida no povoado da Tapagem, Lindaura revela que “nunca ganhou um real”
que não tivesse sido do seu trabalho de fabricação de panelas e ainda brincou: “O dia
que eu fui aposentá mesmo, lá no INSS me perguntou se eu já trabalhei de carteira
assinada, falei: Não, eu conheço carteira que eu vejo nas mão dos outros que é azul, mas
minha mesmo nunca tive não”.379 Começou a “mexer com o barro” aos nove anos de
idade ensinada por sua avó paterna Otília, que, como diz Rosa, “era índia cabocla pêga
no mato.” Na ocasião da entrevista em 2015, Lindaura tinha 65 anos e continuava a
trabalhar de segunda a sexta e às vezes aos sábados quando não conseguia terminar
todas as peças. Enquanto a entrevistávamos, ela dava acabamento nas peças de barro e
falava sobre sua rotina: nos dias em que trabalha com o barro acorda às 4:30 da manhã e
começa a trabalhar às seis, só parando no final da tarde. Perguntamos se ela gostava do
trabalho, ao que ela respondeu:
Gosto minha fia, gosto, amo, adoro. Se eu levantar de manhã eu não
sei fazer quais nada que eu já acostumei, dá de manhã eu já levanto
quatro e meia, faço café, arrumo a cozinha e falo logo: hoje é dia de
trabalhar, já tá quais na hora de trabaiar. Aí eu sentando aqui ó,
levanto meio dia pra almoçar, paro quatro hora da tarde, fazer uma
caminhadinha pra relaxar mais os nervo. Aqui eu amo de coração.380
O trabalho começa com a seleção dos materiais, sendo dois tipos de barro: um é
comprado numa olaria no Tucum e o outro retirado do quintal de sua casa: “Um sem o
outro não funciona não, é igualmente nós. Ai você pisa ele, cê cessa, aí cê bota o outro
de molho pra cê misturar, pra cê dar o ponto até chegar aqui pra gente fazê.” Seu filho
378 Entrevista realizada pela autora com Euflorzina Rosa de Jesus, na Tapagem, 30/05/2015. 379 Entrevista com Lindaura Rosa, na Tapagem, 30/05/2015. 380 Entrevista com Lindaura Rosa, na Tapagem, 30/05/2015.
153
mais velho Luciano a ajuda buscando o barro no Tucum e cavando o que vai ser usado
no quintal. Em agosto de 2014 ele nos levou ao quintal de sua mãe para nos mostrar o
processo. Na figura 22 está apresentado por ele os dois tipos de barro: o vermelho que é
comprado no Tucum, e é cessado para retirar as partes grossas, enquanto o torrão sólido
e acinzentado é retirado do quintal e colocado de molho para ficar no ponto de misturar.
Figura 22 - Os dois tipos de barro utilizados para fazer as panelas.
Autor: Karla Dias. 23/08/2014.
Após selecionados os materiais, é necessário trabalhá-los para que deem liga e
assim dar forma às panelas:
Você pega os dois barros e mistura, demora um hora, uma e pouco.
Porque primeiro bate o barro, cessa, até o que ficou de molho
amolecer, tem que colocar água em um e o outro seco é que dá a liga e
você pode enrolar. Vai amassando na tauba mesmo, vai batendo até
ficar no ponto que você pode levantar ele e ir dando forma a panela. O
mais fino eu compro no Tucum ele não precisa amolecer, o que tem
que amolecer é o daqui da Tapage.381
Esse trabalho é feito entre segunda e terça feira. No restante da semana, com o
barro já preparado, ela se ocupa em dar forma a jarros grandes, panelas, xícaras,
381 Entrevista com Lindaura, Tapagem, 30/05/2015.
154
cuscuzeiros, pratos, moringas etc. Perguntada sobre a média de quantas peças ela
produzia, respondeu: “Dependendo da pequena eu posso fazê até vinte, mais pequena,
agora grande assim eu faço cinco que nem ontem como era aquelas peça grande aí eu só
pude fazer cinco, que acabô os braço da gente, agora pequenininha assim eu faço até
vinte ou quinze”.382 Para modelar as peças ela utiliza alguns elementos naturais e
improvisados. O primeiro deles é um “sabugo”, uma espiga de milho sem os caroços
que é passada por fora da peça enquanto ela é modelada; por dentro ela utiliza a
“coiteba”, que é na realidade um pedaço de borracha de sandália bem gasto que serve
para alisar o interior da peça; para cortar as peças, ela utiliza uma faca feita de madeira,
já que as de metal não funcionam para esta finalidade e, por fim, com um pano ela vai
limpando as arestas até que a peça esteja toda modelada. O trabalho de modelagem é
feito com as mãos e a peça fica apoiada numa tábua para fazer a base. Após a peça ficar
pronta é posta para secar, para depois ser queimada.
Aos sábados as panelas são queimadas. Este processo de queima demora o dia
inteiro: “Ali agora só de tarde pra queimá, demora um dia né? Que às vezes eu arrumo
sete hora e aí vai queimar seis, seis e meia da noite. Que não pode botá fogo de uma vez
que vira cem, estoura tudo”.383 O trabalho com o barro é uma prática artesanal que
requer das mulheres um saber empírico sobre os tempos necessários para que as peças
saiam em perfeito estado. O forno deve ser preparado com bastante lenha, pois as peças
são colocadas em um vão cheio de areia e cobertas com pedaços de cerâmicas, enquanto
na parte de baixo o fogo é ateado e realimentado ao longo do dia. A figura 23 mostra o
forno da casa de Lindaura. No sábado de agosto de 2014 ela não estava “queimando
panelas” por que esperava pela neta recém-nascida.
382Entrevista com Lindaura, Tapagem, 30/05/2015. 383 Entrevista com Lindaura, Tapagem, 30/05/2015.
155
Figura 23 – Forno da casa de Lindaura.
Foto da autora. 23/08/2014.
A feira é outro lugar que requer competências e artimanhas para atrair clientes e
conseguir realizar vendas. Lindaura produz semanalmente o suficiente para vender na
feira e mantém um estoque de peças numa loja em Tanhaçu. Os valores cobrados por
peça podem ser considerados pequenos, variam de R$15,00 por um pote grande a
R$2,50 numa xícara. Sobre o valor recebido, Lindaura nos diz: “Antigamente era mais
pouco, e o mais pouco fazia mais fartura do que o de hoje, que hoje dinheiro virou
um...não tem quantidade que dá né?”.384 Na feira de Tanhaçu a cerâmica do Tucum é
conhecida, elas ocupam uma rua lateral do mercado onde expõem as suas peças no
chão. Lindaura é a única paneleira da Tapagem e Rosa, Ester e Sidineia, que aparecem
na figura 26 abaixo, são as outras mulheres que também fazem panelas de barro na
comunidade, com as quais só tivemos contato em 2009 quando foi feita essa foto. No
384 Entrevista com Lindaura Rosa, Tapagem, 30/05/2015.
156
lado esquerdo da figura 24 podem ser vistos o filho de Lindaura, Luciano e sua esposa
Eva, ambos vendem vassouras e esteiras feitas de palha de licuri.
Figura 24- A autora (ao centro de blusa roxa) com Lindaura (a esquerda de bermuda e
blusa rosa) e suas companheiras na feira de Tanhaçu.
Autor: Célio Santos. Outubro de 2009.
A memória está presente nas falas, nas lutas, tradições e crenças das mulheres do
Tucum. Do contato com elas ficou a marca indelével de seu protagonismo. Algumas,
juntamente com Maria do Carmo, seguem em frente e assumem a liderança, estudam e
vão à luta por seus interesses; outras, como Rosa e Lindaura, fazem do “barro sua luta”,
pois é neste barro que se fortalecem as mulheres do Tucum na preservação de sua
identidade.
157
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após viajar alguns quilômetros e entrar na cidade de Tanhaçu, o interessado em
conhecer a comunidade do Tucum deve seguir em direção à saída da cidade no sentido
de Ituaçu, e passado o fórum, à direita encontrará uma rua de terra que prenuncia o
caminho para uma zona rural. Essa rua, não por coincidência, chama-se Tucum é o
início do caminho que leva à comunidade, distante da sede 9 km. Por esse caminho de
terra vermelha, durante anos a fio, homens e mulheres andaram a pé fazendo o trajeto
entre a cidade e o campo, o que também fiz de carro ou moto durante a pesquisa e
pretendo fazê-lo a pé, quando for entregar aos moradores o texto final, por desejar
experimentar e sentir o trajeto até o Tucum. Só aqui me permiti falar na primeira
pessoa, para dar pessoalidade e tentar amarrar as fortes impressões que o Tucum me
deixou.
Ao iniciar a escrita, há exatamente um ano, muitas questões da pesquisa ainda
não estavam fechadas ou mesmo percebidas plenamente do ponto de vista teórico.
Pesquisar o Tucum, através dos relatos orais de seus moradores, revelou-se um trabalho
que exigiu delicadeza, principalmente por desvelar vivências e desafios de mulheres
endurecidas pelo trabalho constante, porém dadas a laivos de humor e ternura, a ponto
de me emocionar ao ouvir os seus relatos. Será um feito se essa escrita conseguir, de
fato, dar corpo a essas mulheres, visto que elas são muito mais do que as estruturas
pífias que a linguagem pode relevar ao tentar descrevê-las.
A história oral é uma ferramenta importante para recuperar as diversas trajetórias
de grupos que, ao longo do século XX, lutaram por igualdade social e por direito às
identidades e tradições coletivas. A finalidade das fontes orais para os estudos do tempo
presente é ampla, possibilitando fazer ressoar vozes de grupos que foram excluídos da
história. De fato, a oralidade foi a principal fonte para essa pesquisa, aliada aos
documentos da associação, leis, certidão de reconhecimento e site consultados, a partir
dos quais foi elaborado esse relato sobre o Tucum.
Ao entrevistar as moradoras do Tucum me deparei com os lugares da memória
geracional, tão comum em comunidades quilombolas. As histórias contadas ao longo do
tempo, de mãe para filha, ainda persistem na localidade. As fontes orais apontam que a
comunidade do Tucum surgiu a partir da chegada de três fundadores: Cândido Pinto,
Rafael Lino da Silva e Alexandre Novais. Aventamos a possibilidade de acessar
158
inventários e descobrir se foram escravos e a quem pertenciam, possivelmente tendo
adotado os nomes de seus senhores. Não encontramos documentação sobre eles nos
fóruns de Tanhaçu e Ituaçu e esse ponto constitui uma questão que continuará aberta a
futuras pesquisas.
Outra questão importante que se revelou ao longo da escrita foi em torno das
dificuldades que os moradores do Tucum ainda sentem para se identificarem como
quilombolas. Passados nove anos desde o reconhecimento, a construção de uma
identidade quilombola ainda está em processo no Tucum. Compreendo que no
imaginário dos moradores, quilombo está associado à escravidão, e alguns não querem
retomar esta questão. Creio que a consolidação de uma identidade quilombola no
Tucum ocorrerá quando os moradores perceberem uma “coerência” entre o individual e
o coletivo, como apontado por Leila Teixeira:
É possível afirmar que a cultura, as formas de vida, os costumes,
transmitidos com o passar do tempo destas comunidades têm sido
importante para a formação da identidade. É preciso atentar-se para
que a ação do tempo não destrua traços originais que asseguram a
identidade de um grupo. Sobretudo se essa “memória identitária” é
condição de sobrevivência de uma comunidade.385
As mulheres do Tucum constituem a parte suave desta escrita, foram elas as
responsáveis pelo reforço da “memória identitária”, determinante para o processo de
autorreconhecimento. As reflexões sobre as questões de gênero foram importantes e, em
especial, por também refletirmos sob um viés etnicorracial: ser mulher negra e
quilombola. As relações de gênero no Tucum foram pensadas a partir dos lugares de
emponderamento e submissão, a partir dos quais se pode entender o protagonismo de
algumas mulheres. Ao iniciar a pesquisa pensava que a liderança feminina fosse um
processo amplo dentro da comunidade, e de fato ainda acredito que as mulheres
quilombolas são emponderadas em muitos aspectos, talvez provavelmente devido aos
obstáculos que sua condição lhes impõe. No entanto, ao longo dos contatos com as
moradoras e nas entrevistas, constatei ser uma liderança feminina restrita e de certa
maneira concentrada na figura de Maria do Carmo Oliveira Silva. Por conta dos
desafios que surgiram em sua trajetória, essa mulher negra, de real tenacidade, foi
tomando para si a função de buscar melhorias para a comunidade e, sem dúvida, foi a
385 TEIXEIRA, 2010, p. 49, grifos nossos.
159
principal articuladora para que o reconhecimento do Tucum. No nosso último encontro,
ela sempre preocupada com todos, falou-me da angústia que ainda sentia:
Ahh eu gostaria que tivesse assim, um meio de acolher esses jovens,
que eles estudam e no final eles ficam assim, uns ficam parados,
outros vão pra outras cidades até mesmo tem enfrentado as cidades
grandes. Eu gostaria que tivesse um meio de um serviço, uma
atividade que pudesse envolver os jovens, para que eles não ficassem
tão assim vagos né? Ou muitos deles que vão para grandes cidades,
chegando lá muitos voltam de novo, assim pra casa, não faz quase
nada assim.386
Esse anseio para que a juventude possa trabalhar e se envolver com a
comunidade é recorrente no discurso das mulheres do Tucum. Em minhas visitas, elas
me recebiam em suas casas, ofereciam comida, me levaram ao quintal e conversávamos
enquanto trabalhavam. No segundo encontro com Lindaura em 2014, ela descreveu em
minúcias como realiza seu trabalho e disse que “até queimaria umas panelas para
demonstrar”, mas a ocasião não favorecia já que sua neta recém-nascida estava
chegando de Vitória da Conquista. Encontramos-nos novamente em maio de 2015 e
dessa vez quem não pode me receber foi Rosa, sua irmã, que também estava envolvida
com uma neta recém-nascida. Ambas sorriram e disseram que chego sempre em tempos
bons, afirmo que eram realmente tempos bons para todos.
Compreendo que esses “tempos bons” vieram como consequência da
visibilidade que a comunidade do Tucum ganhou após o seu reconhecimento.
Visibilidade ampliada com o acesso a políticas de reparação histórica e após ter-se
encontrado o famoso “pote” nas terras de comunidade. Após esses eventos, e passados
nove anos de seu reconhecimento, a população do Tucum vê-se motivada por uma
“atenção política” que lhes garantiu conquistas cidadãs com o fortalecimento de ações
que abrangeram políticas públicas que garantiram a essas comunidades negras rurais um
reforço na autoestima e uma marca na historiografia nacional, nas histórias do tempo
presente.
Ao longo da escrita levantei muitos questionamentos acerca do processo de
reconhecimento do Tucum e sobre o papel das mulheres na comunidade. Alguns
respondi ao longo da escrita e outras tantas questões não se esgotaram neste texto.
Talvez seja nesse momento que o ofício de historiadora se mostre com certa leveza,
386 Entrevista com Maria do Carmo Oliveira Silva, no Tucum, 30/05/2015.
160
pois, falar das mulheres do Tucum, foi também falar de todas as mulheres e de mim
mesma. Este desfecho não significa que a pesquisa foi concluída. Ela continua e haverá
sempre novos olhares que poderão ser direcionados a questões sobre as quais não
comentei. Ao abrir este espaço de “escuta” das vozes das mulheres do Tucum, propus
pensar sobre a ação feminina nesta comunidade, como o reconhecimento quilombola
ressoou no seu cotidiano, e ao mesmo tempo proporcionar aprendizados e reflexões
sobre os seus modos de vida, desafios e esperanças. Aqui encerro com a expectativa de
que essa pesquisa seja somada a outras tantas que vêm dando visibilidade às populações
negras!
161
FONTES
ORAIS:
Relação dos entrevistados:
JESUS, Euflorzina Rosa de. Euflorzina Rosa de Jesus. Entrevistada pela autora na
Tapage no dia 30/05/2015.
NOVAIS, Maria Anízia. Maria Anízia Novais. Entrevistada pela autora no Tucum no
dia 04/08/2012.
NOVAIS, Madalena Oliveira. Madalena Oliveira Novais. Entrevistada pela autora no
Tucum no dia 04/08/2012.
OLIVEIRA, Carlito Augusto. Carlito Augusto Oliveira. Entrevistado pela autora em
Tanhaçu nos dias 19/10/2009 e 30 /05/2015.
OLIVEIRA, Lindaura Rosa de. Lindaura Rosa de Oliveira. Entrevistada pela autora
na Tapage nos dias 23/08/2014 e 30/05/2015.
SILVA, Eliane Santana. Eliane Santana Silva. Entrevistada pela autora no Tucum no
dia 24/08/2014.
SANTANA, Maria. Maria Santana. Entrevistada pela autora no Tucum no dia
24/08/2014.
SILVA, Carmo de Oliveira. Carmo de Oliveira Silva. Entrevistado pela autora em Rio
de Contas no dia 02/04/2015.
SILVA, Edelvira Oliveira. Edelvira Oliveira Silva. Entrevistada pela autora no Tucum
no dia 23/08/2014.
SILVA, Maria do Carmo Oliveira. Maria do Carmo Oliveira Silva. Entrevistada pela
autora no Tucum nos dias 04/08/2012, 24/08/2014 e 30/05/2015.
SILVA, Maria Rita Oliveira. Maria Rita Oliveira Silva. Entrevistada pela autora no
Tucum no dia 24/08/2014 e 30/05/2015.
SILVA, Rosa. Rosa Silva. Entrevistada pela autora no Tucum no dia 04/08/2012.
ICONOGRÁFICAS:
Fotografia da Igreja de Nossa Senhora Aparecida (autoria desconhecida).
Fotografia da Igreja de São João Batista (autoria desconhecida).
Fotografia do I Encontro das Comunidades Quilombolas do Território de Identidade
Sertão Produtivo (autoria desconhecida).
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176
ANEXOS
Anexo 1:
Termo de autorização do uso de imagem e depoimento
177
TERMO DE AUTORIZAÇÃO DE USO DE IMAGEM E DEPOIMENTOS
Eu_________________________________,CPF____________, RG________________, depois
de conhecer e entender os objetivos, procedimentos metodológicos, riscos e benefícios da
pesquisa, bem como de estar ciente da necessidade do uso de minha imagem e depoimento,
especificados no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), AUTORIZO, através
do presente termo, a pesquisadora Karla Dias de Lima do projeto de pesquisa intitulado “ A
comunidade quilombola de Tucum-Ba: lideranças feminina e práticas cotidianas”a realizar
as fotos que se façam necessárias e/ou a colher meu depoimento sem quaisquer ônus financeiros
a nenhuma das partes.
Ao mesmo tempo, libero a utilização destas fotos e/ou depoimentos para fins científicos e de
estudos (livros, artigos, slides e transparências), em favor da pesquisadora, acima especificada.
Tanhaçu/BA, __ de ______ de ______
Anexo 2:
Questionários
178
SOBRE A COMUNIDADE
1- Quantas pessoas integram essa comunidade?
2- Como membro de uma comunidade quilombola descendente de escravos negros,
como vocês tem encarado as questões raciais? O preconceito, seja pela condição
se ser negro, seja pela condição de ser remanescente de quilombo, ainda é algo
presente na vida de vocês?
3- Como vocês se relacionam com a terra? É um tipo de posse coletiva? Como se dá
a divisão da produção?
4- É possível precisar desde quando a sua comunidade passou a produzir nessas
terras?
5- E quanto às famílias? Como se organizam na comunidade? Todos vivem aqui?
6- Quem é maioria? Homens ou mulheres?
7- A que você atribui essa considerável diferença entre o número de homens e de
mulheres na sua comunidade?
8- Hoje, quais são as principais dificuldades encontradas pelas comunidades?
9- Existe algum tipo de liderança dentro da sua comunidade? Alguém que represente
o interesse da comunidade nos órgãos públicos? Se existe, quem são essas
pessoas?
10- Como essas lideranças são escolhidas?
11- Existe algum tipo de associação ou entidade que represente os interesses das
comunidades remanescentes de quilombos nessa região? Se existe, qual é o nome
da entidade e há quanto tempo foi formada? 12- Qual era o nome da associação antes? Quando foi fundada?
13- Existem atas?
14- Hoje, quais são os principais interesses e projetos dessa entidade? Quais os
principais desafios para a associação se manter?
SOBRE O RECONHECIMENTO
1- Pra você o que é ser quilombola?
2- O que achou do reconhecimento da comunidade?
3- O que sabe sobre a fundação dessa região?
4- Quais os povoados do Tucum?
5- O Tucum já foi conhecido por outro nome?
6- Quanto ao processo de reconhecimento das terras, as comunidades têm
encontrado alguma dificuldade, seja de ordem política, seja burocrática? Que
dificuldades são essas?
7- Gostaria de saber se o termo “quilombola” sempre esteve presente no
seio das comunidades ou é algo recente? Se recente, a partir de quando
o termo “quilombola” passou a ser utilizado pelas comunidades?
8- O que as líderes eram antes?
CULTURA
1- Quais as tradições culturais de vocês?
2- Vocês têm conseguido mantê-la? Tem sido possível passar essa cultura para os mais
jovens?
179
3- Como as tradições dos antepassados são passadas para os mais jovens?
4- Que tipo de manifestação cultural tem em sua comunidade?
5- Qual é a festa mais comemorada na comunidade?
MULHERES
1- A assistência técnica para desenvolver atividade agrícola na comunidade tem sido
disponibilizada para as mulheres da comunidade?
( ) sim ( ) não
Cite dificuldade para obter alcançar esta assistência.
2- Qual a visão de futuro para as mulheres desta comunidade?
3- Qual a participação das mulheres nas decisões dessa comunidade?
1- Você trabalha?
4-Quais espaços estas mulheres têm participado? Pode citar mais de um:
( ) igreja ( ) barro ( ) mulheres ( ) Associação ( ) conselho ( ) Outros:___________
5- Alguma mulher dessa comunidade já se candidatou a alguma algum cargo público?
( ) sim ( ) não
Se sim qual?
6- Quais foram as dificuldades enfrentadas para se candidatar?
SOBRE A ECONOMIA DA REGIÃO
1- Qual a base da economia local?
2- Há produção agrícola? O que é cultivado?
3- Quem vai para colheita?
4- Há mutirão para a colheita?
5- Há criação de animais? Quais são?
6- Atividades econômicas exercidas pelas mulheres na comunidade
( ) Agricultura ( ) comércio ( ) produção artesanato ( ) doméstica ( ) serviço público ( )
professora
Citar outras:
_______________________________________________________________
7- Existe alguma dificuldade para a mulher quilombola de conciliar o trabalho em casa
com o trabalho externo? Qual dificuldade?
8- Quais os benefícios governamentais têm atingido a mulher na comunidade?
Os recursos financeiros de créditos para atividades agrícolas do governo têm atingido
a mulher nesta comunidade? Cite dificuldade para obter estes recursos.
RELIGIÃO
1- Religião predominante na comunidade?
2- Porque Nossa senhora Aparecida e porque São João?
180
3- Há quantos anos as igrejas existem?
4- Quem escolheu?
5- De que ano são as igrejas da comunidade?
6- Tem pároco na comunidade?
7- Como são organizadas as missas?
8- Fora a religião católica que outras religiões existem na comunidade?
9- Se existir terreiro como é visto?
10- Quem frequenta?
11- Há rezadeiras na comunidade?
BARRO
1- Desde quando você trabalha com o barro? Quem lhe ensinou?
2- Há quanto tempo essa prática existe na comunidade?
3- Quem são as mulheres que a praticam atualmente?
4- Como é o processo de fabricação? Descreva todos os passos.
5- Que materiais são usados?
6- De onde vem esse barro?
7- Onde as panelas são queimadas?
8- Após a queima é feito mais algum procedimento?
9- Quantas panelas são produzidas por semana?
10- Quais os tipos de panela feitas?
11- Quanto tempo se gasta produzindo panelas?
12- Algum membro da família ajuda no processo?
13- Quantas panelas são vendidas na feira?
14- É possível se sustentar da venda de produtos de barro?
15- Há quanto tempo as panelas são vendidas na feira?