kant e ari éti

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Luana Goulart de Castro Alves Questões éticas em Aristóteles e Kant moralidade, dever e felicidade Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Filosofia da PUC-Rio como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Filosofia. Orientador: Prof. Edgard José Jorge Filho Rio de Janeiro Março de 2015

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Luana Goulart de Castro Alves Questes ticas em Aristteles e Kant moralidade, dever e felicidade Dissertao de Mestrado DissertaoapresentadaaoProgramadePs-GraduaoemFilosofiadaPUC-Riocomorequisito parcialparaaobtenodograudeMestreem Filosofia. Orientador: Prof. Edgard Jos Jorge Filho Rio de Janeiro Maro de 2015 PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA Luana Goulart de Castro Alves Questes ticas em Aristteles e Kant moralidade, dever e felicidade Dissertaoapresentadacomorequisitoparcial para a obteno do grau de Mestre pelo Programa dePs-GraduaoemFilosofiadaPUC-Rio. AprovadapelaComissoExaminadoraabaixo assinada: Prof. Edgard Jos Jorge Filho Orientador Departamento de Filosofia da PUC-Rio Profa. Izabela Aquino Bocayuva Departamento de Filosofia da UERJ Prof. Danilo Marcondes de Souza Filho Departamento de Filosofia da PUC-Rio Prof. Edgard de Brito Lyra Netto Departamento de Filosofia da PUC-Rio Profa. Denise Berruezo Portinari Coordenadora Setorial do Centro de TeologiaE Cincias Humanas PUC-Rio

Rio de Janeiro, 17 de Maro de 2015. PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA Ficha Catalogrfica CDD: 100 Alves, Luana Goulart de Castro QuestesticasemAristteleseKant:moralidade, deverefelicidade/LuanaGoulartdeCastroAlves; orientador: Edgar Jos Jorge Filho. 2015. 106 f. ; 30 cm Dissertao (Mestrado)Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro, Departamento de Filosofia, 2015. Inclui bibliografia

1.FilosofiaTeses.2.Moralidade.3.tica.4. Felicidade.I.Filho,EdgardJosJorge.II.Pontifcia UniversidadeCatlicadoRiodeJaneiro.Departamentode Filosofia. III. Ttulo. Todos os direitos reservados. proibida a reproduo total ou parcial do trabalho sem autorizao da universidade, do autor e do orientador. Luana Goulart de Castro Alves Bacharel em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiroem2012.Obtevelicenciaturaplenapelamesma instituio em 2013. Desenvolveu pesquisas no Departamento de Filosofia da UERJ atravs de seu programa institucional de bolsas de iniciao cientfica (PIBIC), financiada pelo CNPq. Tem experincia na rea de Filosofia, com nfase em tica e Filosofia Moral. CDD: 100 PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CAAgradecimentos Agradeo ao CNPq pelo fomento financeiro a meus estudos durante o mestrado. Agradeo ao professor Edgar Jos Jorge Filho por sua orientao sempre generosa e atenciosa. AgradeotambmaosprofessoresDaniloMarcondesdeSouzaFilho,Izabela AquinoBocayuvaeEdgarddeBritoLyraNetto,porteremaceitadocompora bancaexaminadoradestadissertaoeporteremcontribudocomsuascrticas, observaes e sugestes. AgradeoaoProfessorLuizBernardoLeiteArajopelaorientaoeaulas excelentes e instigadoras durante toda a minha formao e todos os professores da UniversidadeEstadualdoRiode Janeiroqueauxiliaramdediversasformaspara que eu pudesse ter a formao filosfica mais completa e profunda possvel. Agradeoaosmeuspaiseirmospelosconselhos,presenaepacincia,semos quais eu jamais teria sido capaz de levar esses estudos a cabo. Agradeodetodocoraoaomeumarido,TiagoRezendedeCastroAlvesque estevesemprepresentecomomeuco-orientadorinformalequecomsua pacincia, carinho e empenho infinitos e incessantes esteve presente durante todos osprincipaismomentosdesdeaminhaformaoateucompletaraminha dissertao: obrigada por tudo. PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CAResumo Alves, Luana Goulart de Castro; Filho, Edgard Jos Jorge. Questes ticas emAristteleseKant:moralidade,deverefelicidade.RiodeJaneiro, 2015.106p.DissertaodeMestradoDepartamentodeFilosofia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Estadissertaopodeserdescritacomoumestudocomparativosobrea ticadeAristteleseafilosofiamoraldeKant,cujoobjetivoprincipalindicar umarelevantecompatibilidadeentreasvisesdessesfilsofossobrearelao entreasnoesdefelicidadeeaomoral/virtuosa.Essatarefacumpridaem quatro estgios, a cada um dos quais corresponde um dos captulos do trabalho. O primeirolidacomainterpretaodopapeldafelicidadeedaaovirtuosana ticaaNicmaco.OspareceresdeAristtelessobreotemasoexaminadose interpretados, o que resulta numa figura coerente de sua doutrina tica que parece capazderesponderbemavriasdemandasdasquaisnoapenasnosepoderia darcontasegundooutraspossveisleituras,masquetambmparecem fundamentais.Osegundodedicadoaesclarecernoesbsicasdafilosofia moral de Kant; nele, aspectos de sua moral deontolgica, bem como seu papel na filosofiadeKantcomoumtodo,sopostossobescrutnio.Acomparao explcitadasduasdoutrinasconsideradasnoscaptulosanteriorescomeaater lugarnoterceiro,ondeasmotivaeseaefetivarealizaodasaes morais/virtuosas so discutidas e analisadas dos pontos de vista das interpretaes jsugeridasdastesesdeambosospensadores.Noquartocaptulo,asprincipais conclusesdadissertaosoaduzidasapartirdosresultadosobtidosemseu decorrerresumidamente,elesnosindicamaplausibilidadedeseconsiderara nooaristotlicadefelicidadecomocompatvelemprincpiocomoarcabouo conceitual da moral de Kant. Palavras-Chave Moralidade; tica; Felicidade PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CAAbstract Alves,LuanaGoulartdeCastro;Filho,EdgardJosJorge(Advisor). Ethical questions in Aristotle and Kant: morality, duty, happiness. Rio deJaneiro,2015.106p.MSc.DissertationDepartamentodeFilosofia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Thisdissertationcouldbedescribedasacomparativestudyconcerning AristotlesethicsandKantsmoralphilosophy,whosemainaimistoindicatea relevantcompatibilitybetweenthesetwophilosophersviewsontherelation betweenthenotionsofhappinessandmoral/virtuousaction.Thistaskiscarried out in four stages, to each of which correspondsone of the chapters of the work. The first of them deals directly with the interpretation of the role of happiness and virtuousactioninEthicaNicomachea.Aristotlesviewsonthethemeare surveyedandinterpreted,whichyieldsacoherentpictureofhisethicaldoctrine whichseemscapableofansweringquitewelltoseveraldemandsthatnotonly could not be dealt with according to other possible readings, but which also seem fundamental.ThesecondoneisdedicatedtoclarifyingbasicnotionsofKants moralphilosophy.Someaspectsofhisdeontologicalmoralarescrutinized,as wellastheirproperrolewithinKantsphilosophyasawhole.Theexplicit comparison of the two doctrines considered in the previous chapters starts taking placeinthethirdone,wherethemotivationsandtheeffectiverealisationofthe moral/virtuousactionsarediscussedandanalysedfromtheviewpointsofthe interpretationsofboththinkersthesesalreadysuggested.Inthefourthchapter, themainconclusionsofthedissertationaredrawnfromtheresultsobtained throughoutitinshort,theyleadustoconsiderplausibletoregardthe Aristoteliannotionofhappinessascompatibleinprinciplewiththeconceptual framework of Kants moral. Keywords Morality; Ethics; Happiness PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CASumrio 1.Introduo 0 10 2.Aristteles 0 17 2.1. Responsabilidade: causa motriz, o voluntrio e a escolha na tica18 2.1.1.A responsabilidade como conceito instrumental para uma interpretao adequada da tica aristotlica19 2.1.2.O voluntrio 20 2.1.3.A escolha24 2.2. Virtudes 33 2.3. Causa final38 3.Kant 0 56 3.1. A tica e a filosofia moral59 3.1.1.A felicidade e a moralidade60 3.1.2.Os imperativos kantianos66 3.1.3.A inteno e a vontade 68 3.1.4.As sensaes e a moralidade 72 3.1.5.A razo e a filosofia moral75 4.Comparaes entre Kant e Aristteles a respeito da ao virtuosa/moral79 4.1. Motores da ao virtuosa/moral e critrios de moralidade: contextualismo x apriorismo 80 4.1.1.A questo da aplicabilidade dos critrios demoralidade s aes 87 4.2. A ao enquanto evento: tica eudaimonista x distino entre direito e moral89 PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA5.Concluso94 6.Referncias bibliogrficas102 PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CALista de figuras e tabelas Tabela 1 Aes voluntrias, no voluntrias e involuntrias22 PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA10 1 Introduo Aobrakantiana,semsombradedvida,umdosmarcosmais importantes em toda a histria da filosofia. A parte dela que concerne moral, em particular, no apenas representa um divisor de guas na tradio filosfica, como tambmserveaoimportantepropsitodefuncionarcomoumdosmais paradigmticos exemplos de um pensamento tico-moral de ndole deontolgica.Umadascaractersticasmarcantesdafilosofiamoralkantianasua descrio da moralidade como sendo algo estritamente conectado ao que pode ser conhecidoaprioristicamente.Emseuseio,aaomoralfiguracomoalgoque dependeexclusivamentedaobedinciarazopuraaprioriouseja,comoa aocujainteno/motivaoseresumeapenasaseguiroquearazoaponta comooquedeveserfeito.Destaforma,somenteasaesqueatendemaesse requisitopodemserconsideradasmorais.Aaomoral,sereportaria,portanto, unicamenteaosditamesracionaisaprioristicamentecognoscveis,abstraindo completamente de quaisquer inclinaes empricas. Trocando em midos, se junto aodeverseapresentarqualqueroutrafonteparaaaomesmoqueestapossa parecer nobre, como o altrusmo, a obedincia a Deus, ou qualquer outra ela no poderia, segundo Kant, ser considera moral.Afilosofiakantianapodeserentendidacomoumapropostaqueexpressa uma ruptura com certo tipo clssico de pensamento que encontra, por exemplo, nasdoutrinasepicuristaeestica,bemcomoemdiversasoutrasteleologias eudaimonistasdaGrciaAntigaalgunsdeseusmaiseminentesrepresentantes segundooqualosconceitosdeaovirtuosaedefelicidadepodemser compreendidoscomopartesestruturaisdoarcabouoconceitualticonamedida em que a relao entre eles parece dar-se por fora de necessidade. Segundo Kant, as aes morais no esto vinculadas necessariamente com a felicidade, j que de PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA11 umanosesegueobrigatoriamenteaoutra,nemdeoutraauma.Emalgumas passagens da obra kantiana na Fundamentao da Metafsica dos Costumes, ou mesmo na Crtica da Razo Prtica , o autor parece esclarecer o porqu de estes conceitos no poderem ser forosamente conectados: Infelizmente,porm,oconceitodafelicidadeumconceitoto indeterminado que, muito embora todo homem deseje alcan-la, ele jamais pode dizerdemaneiradeterminadaeemharmoniaconsigomesmooqueele propriamentedesejaequer.Acausadisso:quetodososelementosque pertencem ao conceito da felicidade so, sem exceo, empricos, (...) Em suma, ele no capaz de determinar com plena certeza, segundo um princpio qualquer, oqueverdadeiramentehdefaz-lofeliz,porqueparaissoseriapreciso omniscincia.Nosepode,pois,paraserfeliz,agirsegundoprincpios determinados.1

Issosignificanosomentedizerqueafelicidadeempricae indeterminada,comotambmqueeladependeriadasinclinaesparticularesde cadahomem.Afelicidadenoseria,portanto,consequncianecessriade nenhumaao;easaesquepoderiamresultaremfelicidade,porsuavez, dependeriamdosgostosedesejospessoaisdecadasujeito.Aconcepode felicidadedelineadapelopensadorparece,dessaforma,coloc-lacomoumtipo desentimento;umeventosubjetivo,decontornosemocionais,quenopodeser determinadonaordemcausaldoseventoscomosendoumaconsequncia necessriadequaisqueraesmoraisisto,quenopodeterumarelaode conexonecessriacomoeventoobjetivoquearealizaodeaesmorais. Enquantoestasteriamseucontedoaprioristicamentecognoscveleporisso seriamaptasaseremprescritasuniversalmentepelarazo,afelicidadeno apenas teria seu contedo indeterminado, como tambm indeterminados seriam os meios para alcan-la, o que a impossibilitaria de exercer a funo de causa final da ao moral.Assim,noqueconcernerelaoentreosconceitosdefelicidadeeao virtuosa/moral,opensamentokantianopoderiaserapontadocomoumbom candidatoarepresentaropapeldeantagonistadefilosofiasmoraisouticasde fundamentoteleolgicodecunhoeudaimonistadasquaisaaristotlicatalvez sejaomaisemblemticoexemplar.Aristtelesdescreveotelosisto,a finalidadedasaescomosendoafelicidade;portanto,seriapossvelentender

1 KANT, I., Fundamentao da Metafsica dos Costumes, BA 46-47. PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA12 que,aprincpio,Kanteeleparecemdiscordarquantoparticipaodoconceito de felicidade no alicerce conceitual do edifcio tico. Se por um lado, o pensador moderno parece apontar para a impossibilidade de se unir felicidade e ao moral pormeiodousodeumarelaodeforadenecessidadecomoargamassa,por outro,oEstagiritapareceproporoextremocontrrio:aimpossibilidadede desconectarfelicidadedeaovirtuosa,dadasuaunionecessriaeirrevogvel. Assim,Aristtelesfrequentementeapontadocomoumfilsofoeudaimonista queseoporiadiametralmenteaKantnotocanteaparticipaodafelicidadeno arcabouo conceitual tico. Como o prprio diz, afinal:A felicidade , portanto, algo absoluto e auto-suficiente, sendo tambm a finalidade da ao. 2

Ora,seafelicidadeafinalidadedaao,isto,oseutelos,parece adequado,comoanteriormentesugerido,afirmarquehaveriaentreosdoisuma ligao inseparvel. Dentre os diversos tipos de ao, as virtuosas seriam aquelas que,dealgumaforma,trariamafelicidade.,contudo,desumaimportncia observar que esta, por sua vez, tende a ser compreendida, mesmo no contexto da filosofiadeAristteles,comoalgodistintoeexternosaesvirtuosas, funcionandocomoumaconsequncianecessriadelas.Umaformadedescrever esse tipo de concepo da relao entre as noes de felicidade e ao virtuosa pensando-asemtermosdeeventosquesedonotempo,daseguinteforma:a felicidadeeaaovirtuosaseriamdoiseventosdistintosnotempo,quese conectariamnamedidaemqueosegundopoderiaserapontadocomocausa motriz/eficiente do primeiro. Como a finalidade da ao , segundo Aristteles, a felicidade, parece que o que buscado pelo sujeito agente na realizao das aes precisamenteela.Ouento,queomotivopeloqualsepodejustificarquese pratiquem aes virtuosas precisamente o fato de que parece ser apenas atravs delas que se alcana a felicidade. Assim sendo, parece ser possvel afirmar que as aesvirtuosasseriamvistascomomeionecessrioparaalcanarsuafinalidade, que a felicidade.luzdasobservaesfeitasacima,torna-sepossvelvislumbraropalco sobreoqualseapresentaajanteriormentecitadaoposioentreafilosofia aristotlicaeakantiananoquedizrespeitotica:seporumladopossvel

2ARISTTELES, tica a Nicmaco, 1097 b 20-25. PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA13 conceder que ambos entenderiamfelicidade eao virtuosa/moral como eventos distintos um do outro no tempo, por outro, eles discordariam profundamente sobre apossibilidadedeelesseconectaremapartirdeumarelaonecessriade causalidade.Todavia,importantenotarqueessainterpretaocomparativados filsofosemquestosustenta-seapenasnahiptesedequeambosestotratando felicidadee ao virtuosa sob um mesmo registro; isto , como se ambas fossem eventosdistintospossivelmenteligadosnumarelaodecausaeefeito.Nesse sentido,importantenotarquepassagensdaobraaristotlicasugerema possibilidade de pr tal premissa em xeque.O filsofo nos diz, por exemplo: ... devemos antes classificar a felicidade como uma atividade, (...)3 Esse trecho, embora breve, ajuda a nortear a lida com uma questo fundamental na compreenso do pensamento tico aristotlico: como deveserentendidootermofelicidade?muitocomumquens,sujeitosdo sculoXXI,mobilizemosesseconceitocomcontornospsicolgicos,ou descrevendo-ocomoumtipodesentimento,talcomoumaalegriaexageradae duradoura, ou mesmo como um prazer sereno e contnuo afinal, temos toda uma tradiofilosficaquenosprecedeeparecesustentaressetipodesignificado:o hedonismo,oriundodaantiguidadeclssica,fortementecombatidonomedievo, representadomesmonamodernidadeetoinfluentenasmobilizaes contemporneascotidianasdanoodefelicidade.Apesardeserforoso reconhecerqueoconceitodefelicidadenoexaustivamentedefinidopor AristtelesnaticaaNicmaco,elesemsombradedvidasnopareceser empregadoalipelofilsofocomestesentidoisto,comoumsentimento, emoo ou algo afim. O estagirita parece abordar este conceito, antes, como uma atividade que realizada na prpria realizao das aes virtuosas, como parece sugeriraseguintepassagem:Comefeito,afelicidadenoresideemtais ocupaes, mas, como j dissemos, nas aes virtuosas. 4

Aopodecompreenderafelicidadecomoumeventoexternosaes virtuosasnopensamentodeAristtelesparecesetornartantomaisfrgilquanto

3ARISTTELES, tica a Nicmaco, 1176 b 1-5. 4Ibid., 1177a 5-10. PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA14 mais se leva a srio o termo reside na citao acima. Alm disso, Aristteles diz em outra passagem da tica a Nicmaco:Ora, so desejveis em si mesmas aquelas atividades em que nada mais se procura alm da prpria atividade. E pensa-se que as aes virtuosas so desta natureza, porquanto praticar atos nobres e bons algo desejvel em si mesmo. 5

Issonoslevaacompreenderqueasaesvirtuosassoumfimemsi mesmas, e no um meio pelo qual se pode alcanar um outro fim distinto delas. Se a felicidade parte integrante e necessria das aes virtuosas, e no algo externo edistintodelas,entoquandoumsujeitorealizaessetipodeao,elenoofaz tendo em vista algo diferente da prpria ao; ele as pratica porque elas so boas em si mesmas.Noobstante,oproblemapersiste:comocaracterizarfelicidadeeao virtuosadiantedaafirmaodequeumaresidenaoutra?Ora,talvezseja adequado entendermos que a felicidade , de certa forma, um trao que determina edistingueasaesvirtuosas.Asduasltimascitaesacimatomadasem conjunto parecem abrir margem para uma interpretao segundo a qual Aristteles tratariaosconceitosdefelicidadeedeaovirtuosaapartirdeduascategorias lgico-metafsicas distintas: enquanto a ao virtuosa seria um evento que ocorre notempo,afelicidadeseriaumtraoqueadefineeacaracteriza.Assimsendo, parece que um dos requisitos mandatrios para que se pudesse dizer se uma ao foi ou no virtuosa seria o fato de ela ter ou no sido feliz.Note-seque,postasascoisasnessestermos,acaracterizaodasaes virtuosasemAristtelessetornariabemmenosopostakantiana,umavezque, paraambos,asaesvirtuosas/moraisseriamtomadascomofinsqueso buscadosporsimesmos,enoporqueatravsdelesseconseguiralgodistinto. Portanto,umavezsugeridaessaleituraalternativadoconceitodefelicidadeem Aristteles,cabenosquestionarmososeguinte:atquepontonoseriapossvel entenderqueelaseriacompatvelcomafilosofiamoralkantiana?Comovimos, parecehaverrazesparaentendermosqueAristtelesnoestariafalandodeum sentimento causalmente resultante da realizao de aes virtuosas; e desta forma, Kanteelepoderiamtalvezconcordarsobreaparticipaodafelicidadeno

5ARISTTELES, tica a Nicmaco, 1176 b 5-10. PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA15 sentidoaristotlicoapresentadopelainterpretaoalternativasugeridanaao virtuosa/moral. O que pretendo investigar nesta dissertao exatamente aviabilidade da compatibilizao entre afilosofia destes dois autores no tocante a relaoentre a felicidadeeaaovirtuosa,bemcomoanalisaralgumasdasverdadeiras incompatibilidadesentreelesnoquedizrespeitoaessetema,casoashaja.De fato, talvez seja preciso repensar a formulao do problema de incompatibilidade entreessasfilosofias,sejacolocando-oemtermosmaisclaros,oumesmo compartimentandoaquestoemproblemasparciais,afimdequepossaser devidamenteabordada.Oobjetivoaquisernoapenasdarcabodestaproposta, buscandoporalternativasparaapossveloposioentreAristteleseKantno tocante a relao entre a felicidade e a ao virtuosa/moral.Tomandocomodiretrizesashiptesesacima,estadissertaoconsistir em um estudo composto de trs etapas: a primeira dedicada tica aristotlica; a segunda,filosofiamoraldeKant;eumaterceira,naqualserefetuadauma anlisecomparativabaseadasobretudonosresultadosobtidosnasetapas anterioreseumaconcluso.primeiraetapapertenceroprimeirocaptulo; segunda, o captulo seguinte; e terceira etapa, o terceiro captulo e a concluso.No primeiro captulo sero postas lado a lado duas possveis interpretaes da noo de felicidade no seio da filosofia aristotlica. Em seu cerne, com efeito, ele se compor de duas discusses, a primeira das quais tratar da relao entre a felicidadeeaaovirtuosanaticadeAristtelesapartirdeumaleituraque pressupeainterpretaodoconceitodefelicidadetambmcomoumtipode sentimentodemodosemelhanteacomoelapareceserconcebidaemKant. Apresentareiproblemasoriundosdetalleitura,bemcomobuscareiapontar solues para os mesmos, tomando cuidado para, com isso, no descaracterizar a ticadoestagirita.Asegunda,porsuavez,delinearumaleituraalternativada noodefelicidade,segundoaqualestanoumsentimentocausalmente relacionadosaesvirtuosas,masantesumtraocaractersticodelas.Tentarei sustentarcombasestextuaisnoapenasafortecoernciadestainterpretaono interiordafilosofiaaristotlica,bemcomoapossibilidadedeestanovaleitura PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA16 solucionarosproblemasadvindosdainterpretaoapresentadaediscutidana primeira seo do captulo. Osegundocaptulodestadissertaoserdedicadoaumaanlisedos conceitos de felicidade e ao moral na obra kantiana. mister reconhecer que o foco do captulo ser obter clareza a respeito da relao entre esses dois conceitos. Investigar-se-,tomandotextosclssicosdaliteraturakantianacomobaseA FundamentaodaMetafsicadosCostumes,ACrticadaRazoPrtica,bem como ttulos pertinentes da literatura secundria , alguns dos aspectos centrais da moral kantiana em que se revelam com particular eloquncia contornos distintivos noapenasdosconceitosemquestoedesuainterao,comotambmda participao dessa dade na construo da doutrina de Kant. Oterceirocaptuloserdivididoemduassubsees,ambasdeteor comparativo. Na primeira delas, analisarei alguns dos elementos que condicionam emotivamasaesvirtuosas/morais.Nasegundapartedocaptulo,tratareidos aspectosdaaovirtuosa/moralquedependemdasuaefetivarealizao.Essa tarefa ser realizada a partir de uma leitura da noo de felicidade na filosofia do estagirita nos moldes da apresentada na segunda seo do primeiro captulo.O ltimo captulo ser uma breve concluso, na qual procurarei elencar os principais resultados obtidos ao longo das investigaes levadas a cabo nas sees precedentes.Umavezcotejados,estespermitiroquesejamaduzidasconcluses valorativasarespeitodainterpretao,tantoindependentequantocomparativa, dostrechosdaobradosfilsofosemquestonestetrabalho.Almdisso, procurareiesclarecerimportantesdiferenasesemelhanasarespeitodo pensamentotico-moraldeKanteAristteles.Sobreestepanodefundo,sero tecidasobservaesecrticascomrespeitosconsequnciasdaadooda possibilidade hermenutica sugerida. PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA17 2 Aristteles NaticaaNicmaco,Aristtelesfazquestodechamaratenoparao fatodeaticanosermatriadeconhecimentocientfico,poisnopodeserdo mbitodacinciaoquetemseuprimeiroprincpiovarivel.Aticapor excelncia a disciplina que se ocupa de matrias da deliberao e da escolha, isto , daquilo que se realiza por meio de decises. Como o fruto da deciso , nesse sentido, a ao, natural que esta seja objeto central de sua investigao. Como a ao pode, por sua vez, ser entendida como nada seno expresso do agente, isto , do homem no mundo, a tica um campo da atividade filosfica em que se d a possibilidadedenoapenasanalisarefornecercritriosparasejulgarasaes, mastambmde,apartirdelas,sejulgaroprpriohomem.Sobreoterrenofrtil dessapossibilidade,oFilsofoconstrisuaticacomoumainvestigaono cientficacomvistasaoesclarecimentode,pode-sedizer,oqueparaohomem uma boa vida. Aorigemdaaosuacausaeficiente,nofinalaescolha,eada escolhaodesejoeoraciocniocomumfimemvista.6Comoohomemque escolhe,quedeseja,queraciocinacomumfimemvistaequepraticaaao, ento parece ser foroso reconhecer que seja ele a origem dela. Se, por um lado, a ticadeAristtelespermiteaanliseeojulgamentodasaes,poroutro,ela tambmpermitequeessejulgamentoseestendaquelesqueasexecutamna medida em que eles possam ser apontados como causadores dessas aes; ou seja, quando eles so a origem da ao. Essa passagem do julgamento das aes para o julgamento do homem agente no , todavia, imediata ela realizada mediante umaideiasubentendida,porassimdizer,deresponsabilidade,quefornece orientaocrucialparacompreendermosmaisprecisamenteascircunstnciase

6ARISTTELES, tica a Nicmaco, 1139 a 30-35. PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA18 condies em que um agente deve ser causador ou origem de uma ao para que possa ser ele prprio julgado a partir dela. Naticaaristotlica,oconceitoderesponsabilidadenoaparece explicitamentenotexto;noobstante,elepareceserapontequeligadois conceitos-chave:odecausaeficientequetambmpodeserchamadodecausa motriz,odeagente,odeaovirtuosa,etambmodeescolha.melhor compreensodarelaoentreestes,bemcomodopapeldanoosugeridade responsabilidade para uma melhor interpretao do arcabouo tico de Aristteles, dedico a primeira seodeste captulo. Em seguida, sero objeto de escrutnio as noes de virtude e de causa final. 2.1 Responsabilidade: causa motriz, o voluntrio e a escolha na tica

Causafinal,causaeficiente,causaformal,causamaterial:apesardea doutrina das quatro causas ser imediatamente associada teoria do conhecimento aristotlica,elanoserestringeapenasaestecampodafilosofiadoestagirita. Esta doutrina que perpassa e sustenta sua filosofia podeser uma chave de leitura valiosaparaseanalisaraspectosrelevantesdopensamentodeAristtelescomo um todo; e, tendo em vista a minha atual empreitada, creio que mesmo o prprio apoiaria minha deciso de tom-la como um eficaz instrumento investigativo.Ascausasmotrizefinalso,dentreasquatroarroladas,especialmente relevantesparaaticacomomeiosdeacessoa,respectivamente,odigamosdeondeveioeoparaondevaiaao;emtermosmaisprecisos,seu conhecimentoesclarece,porumlado,oprincpioquedesencadeiaaaocomo seuefeito,eporoutro,oprincpioinerenteaosegundooqualpossvel atribuir-lhe valor ou julgar seu grau de excelncia.Oconceitodecausamotrizpareceestardiretamenteligadopergunta: por qu?. Na tica, buscar pela causa motriz da ao buscar sua origem, isto , procurar identificar na ordem do tempo aquilo que a desencadeou enquanto efeito PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA19 seu princpio motor. 7 precisamente por guardar esta relao com a ao que a investigaodoconceitodecausamotriztemopoderdeesclareceraideiade responsabilidadeanteriormentemencionada,subjacenteticaaristotlica. Mesmointuitivamente,senopossvelidentificarumagentecomomotorda ao, ento tambm no possvel atribuir a ele responsabilidade por ela; como se v,qualquertentativadeaproximaoouesclarecimentodanoode responsabilidade proposta parece, portanto, depender inevitavelmente de uma sua formulaoemtermosdoconceitodecausamotriz.Simultneae complementarmente,paracompreenderaimportnciadanoodecausamotriz naticaaristotlica,precisoentendercommaisclarezasuaparticipaona construodajreferidaideiaderesponsabilidade,bemcomonadasnoes aristotlicas de voluntrio e de escolha no arcabouo conceitual de sua tica. 2.1.1 A responsabilidade como conceito instrumental para uma interpretao adequada da tica aristotlica Umdospontosaseremaquidefendidosodequeumanoobsicae primordialparaainterpretaodetodooedifcioticoaristotlicoaideiade responsabilidade.Apesardeesteconceitonoserdefinidoaolongodaticaa Nicmaco,elepareceseroeixodesentidonarelaoquesedesenvolveentre animalracional(zoonlogonechon),aes(emparticular,aesvirtuosas)e julgamentosmorais;pois,senopossvelresponsabilizarosujeitopela realizaodaao,nopossvelatribuir-lhemritonemdemritoporela.Por meio de uma ideia de responsabilidade nestes moldes, cria-se a coeso necessria paraqueosagentespossamserjulgadosporsuasaes,ouseja,paraqueas prprias aes sejam tomadas como o material usado para se julgar aqueles que as praticam.Naesteiradesseraciocnio,fixemos,portanto,parafinsinterpretativos e,sobretudo,didticos,umconceitoinstrumentalpreliminarderesponsabilidade

7Os termos causa motriz, princpio motor e causa eficiente sero tomados e empregados como sinnimos daqui para frente, exceto explicitamente dito o contrrio. PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA20 adequado,aserrefinadodeacordocomosdesenvolvimentosaseguir. Formulemo-lo da seguinte maneira: um agente responsvel por certa ao se e somente se ele o princpio motor dela e o voluntariamente. Intimamente ligado ideia de responsabilidade est o conceito de escolha; pois por aquilo que ocorre invariavelmente ou que se encontra por qualquer razo fora do alcance da possibilidade de mudana via decises humanas, o homem no podesertomadoporresponsvel.Porexemplo,ohomemnotemopoderde fazerounoosolnascer;e,portanto,elenopodeserresponsabilizadopelo nascimento ou no do sol. Embora as escolhas originem aes voluntrias e a responsabilidade esteja intrinsecamenteligadaaelas,aaplicabilidadedaresponsabilidadenoselimita, noseiodopensamentoticodoFilsofo,quelasaesresultantesdeescolha; massimsaesrealizadasvoluntariamenteemgeral.Ouseja:emboraseja suficiente que uma ao resulte de escolha para que seja compatvel com a noo deresponsabilidade,nonecessrioqueelatenhaumaescolhacomoorigem paraqueomesmosedpois,convmatentar,naterminologiadeAristteles, nemtodaaovoluntriafrutodeescolha.Defato,aconexoentrea responsabilidade e a escolha se d via ideia de voluntrio: as aes decorrentes de escolha, afinal, no so seno um entre outros tipos possveis de ao voluntria. Sobreoqueconsideradoinvoluntrio,voluntrio,esobrecomoaescolhase articulacomessesconceitosnaticaaNicmaco,oitemseguinteesclarece pontos importantes. 2.1.2O voluntrio Aristtelesparecedividirasaesemdoisgrandesconjuntos complementares:asvoluntriaseasno-voluntrias.Noprimeirogrupo,o princpio motor da ao deve encontrar-se no prprio agente, que deve estar ciente dascircunstnciasparticularesdaaorealizada.Neleseencontramasaes PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA21 realizadas aps deliberao, isto , as escolhidas, e tambm as que so praticadas por impulso ou apetite desde que no decorram de ignorncia , como indica o que o prprio afirma: de se presumir que os atos praticados sob o impulso da clera ou do apetite no meream a qualificao de involuntrios. 8 e:(...), mas as paixes irracionais no so consideradas menos humanas do quearazo;porconseguinte,tambmasaesqueprocedemdacleraoudo apetite so aes do homem. Seria estranho, pois, trat-las como involuntrias. 9. Nosegundogrupo,porsuavez,encontram-seasaesqueocorrempor compulso isto , aquelas cujo princpio motor se encontra fora do agente e as praticadasporignorncia,sendoqueestasltimas,quandoproduzemdore arrependimento, so chamadas de involuntrias. Como o filsofo diz: Tudo o que se faz por ignorncia no-voluntrio, e s o que produz dor e arrependimento involuntrio. 10, e:Masotermoinvoluntrionogeralmenteusadoquandoohomem ignora o que lhe traz vantagem pois no o propsito equivocado que causa a aoinvoluntria(esseconduziriaantesmaldade),nemaignornciado universal(pelaqualoshomenssopassveisdecensura),masaignornciados particulares,isto,dascircunstnciasdoatoedosobjetoscomqueelese relaciona. 11 .Aclassificaodasaesdeacordocomessesconjuntosdevetercomo referncia o momento em que as aes foram praticadas. Para classificar as aes sobestesgruposprecisoolharparaomomentoemqueestasaesforam praticadaseperguntarse:1)oagentetinhaconhecimentodascircunstnciase objetosqueserelacionamcomaao;2)oagentefoiprincpiomotordaao (cujanegaoseriaoagentetersidoforadoaagir,isto,seacausamotrizda ao ser externa a ele); 3) o agente arrependeu-se ou sentiu dor pelo ato. Se 1 e 2, ento tem-se uma ao voluntria. Se no 2 ou no 1, ento tem-se uma ao no-voluntria.Seno2,ouse3eno1,tem-seumaaono-voluntriaque involuntria. A tabela a seguir apresenta isso de maneira perspcua:

8ARISTTELES, tica a Nicmaco, 1111 a 20-25. 9Ibid.,1111 b 1-5. 10Ibid.,1110 b 15-20. 11Ibid.,1110 b 25 1111 a 1. PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA22 CRITRIOS/TIPOS DE AO 123 VoluntriaSimSimSim VoluntriaSimSimNo No-voluntria e involuntria SimNoSim No-voluntria e involuntria SimNo No No-voluntria e involuntria No Sim Sim No-voluntriaNoSimNo No-voluntria e involuntria NoNo Sim No-voluntria e involuntria No NoNo Tabela 1 Aes voluntrias, no-voluntrias e involuntrias Aristtelestambmapontaparaaquelasaesquesovoluntriascom refernciaaomomentoemquesopraticadas,masqueemabstratopodemser classificadascomoinvoluntrias:osatosmistos.Aristtelesapresentacomo exemplos desse tipo de ato, uma ao vil que praticada por ordem deum tirano que tivesse como refns os pais e os filhos do agente, e o caso de cargas valiosas lanadas ao mar durante uma tempestade. Sobre eles o filsofo afirma:Taisatos,pois,somistos,masassemelham-semaisaatosvoluntrios pela razo de serem escolhidos no momento em que se fazem e pelo fato de ser a finalidadedeumaaorelativascircunstncias.Ambosessestermos voluntrioeinvoluntrio,devemportantoserusadoscomrefernciaao momentodaao.Ora,ohomemagevoluntariamente,poisneleseencontrao princpioquemoveaspartesapropriadasdocorpoemtaisaes;eaquelas coisas cujo princpio motor est em ns, em ns est igualmente o faz-las ou no PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA23 as fazer. Aes de tais espcie so, por conseguinte, voluntrias, mas em abstrato talvez sejam involuntrias, pois que ningum as escolheria por si mesmas. 12

Claramentesugere-seaquiumcartermistoparaaquelasaescujas circunstnciassodetalformacoercitivasque,apesardeseuprincpiomotor estar,arigor,noagente,nosepodeignoraropapeldecisivoqueelastmna determinaodesseprincpiomotorpapelqueteriamesmoopoderde,como ilustradopelosexemplosdeAristteles,contrariardeterminaesqueseriam evidentementeimpostaspeloagenteasuasprpriasaes,fossemoutrasas circunstncias. Emresumo,portanto,temosqueAristtelesnosapresentaumatesenos seguintesmoldesarespeitodotematratado:hdoisgruposdeaescuja classificaoem,respectivamente,voluntriaseinvoluntriasnoobjetode maiores problemas, a saber: aquelas cujo princpio motor se encontra no agente e cujas circunstncias particulares o agente conhece; e aquelas cujo princpio motor seencontradefinitivamenteforadoagente.Todososoutrostiposdeaose encontramnumaespciedezonacinzentaentrevoluntrioeinvoluntrio, adequando-seoumesmoapenasassemelhando-semais,deacordocomseu casoeporrazesfrequentementenebulosasoucontroversas,acadaumdos gruposmaisbemdefinidos.Aquelaspraticadasporignornciadassuas circunstnciasparticulares,emprimeirolugar,pertencemaocomplementodo conjuntodasaesvoluntriasisto,aoconjuntodasaesno-voluntrias; mas, destas, as nicas a serem tomadas por efetivamente involuntrias devem ser aquelasqueproduzemdorearrependimento,sendoaclassificaodasrestantes deixada por Aristteles em aberto. Aquelas praticadas no por si mesmas, mas por foradecircunstnciasqueaenvolvemequeexercemclaropodercoercitivo sobreoagente,porsuavez,tmestatutoaindamaisdifuso:sochamadaspor Aristteles mistas, pois, embora sejam, a rigor, voluntrias no momento em que se as pratica e se assemelhem mais, em absoluto, s aes voluntrias podem sersensatamenteconsideradasemsimesmasouemabstratoisto,de acordocomsuanaturezaprpriaeindependentementedascircunstncias particulares que a tornam adequada a certo propsito involuntrias.

12ARISTTELES, tica a Nicmaco,1110 a 10-15 PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA24 2.1.3A escolha

Asaespraticadasporescolhaencontram-senogrupodasaes voluntrias. Como j dito na seo anterior, para uma ao ser classificada como voluntria,necessrioqueelasejarealizadacomconhecimentodassuas circunstncias particulares, e tambm que sua causa motriz jaza no prprio agente que a realiza. O Filsofo nos diz: A escolha, pois, parece ser voluntria, mas no seidentificacomovoluntrio.Osegundoconceitotemmuitomaisextenso.13 Ele segue ilustrando sua colocao com um exemplo:Comefeito, tanto as crianascomoosanimaisinferioresparticipamda aovoluntria,pormnodaescolha;eemborachamemosvoluntriososatos praticados sob o impulso do momento, no dizemos que foram escolhidos. 14

DeacordocomosdesenvolvimentosdeAristteles,asaesescolhidas, alm de atenderem demanda que as torna voluntrias, possuem ainda mais uma caractersticapeculiar:elassofrutodedeliberao.Umaescolhaparecesero resultado da apreciao de possibilidades distintas para a realizao de uma ao; ou seja, uma vez cotejadas as possibilidades de como agir, pina-se uma para ser executada:essaaescolhida.Aescolha,convmobservar,implicaaindauma espciedeavaliaodapossibilidadedeserealizarounoumacertaao(mais precisamente,queaaoeleitanoprocessodedeliberaoestejaaoalcancedo agente); e, por isso, fruto de um clculo realizado sobre as diferentes formas de agir em uma certa situao, e sempre deve selecionar, dentre estas, uma que seja possvel para o agente. 15 Umgrandealiadodoprocessodeliberativoaexperincia.Comoj dissemosacima,aticanomatriadeconhecimentocientfico;logo,elano estuda o que necessariamente sempre do mesmo jeito o que tem seu princpio invarivel , mas sim o que instvel e pode ser ou no, e de diferentes maneiras; nadasurpreendentemente,portanto,asaesdohomemestonocentrodesuas consideraes.Comonopodemossuporaconstnciadoseventosnema

13ARISTTELES, tica a Nicmaco, 1111 b 5-10. 14Ibid., loc.cit. 15Cf. Ibid., 1113 a 10-15 PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA25 imutabilidadedascausasrelevantesparaaorientaodasaes,contarcom aspectosquepodemserobservadosapartirdaexperinciataiscomoa frequncia,ohbito,exemplosbemsucedidos,etc.podeserumrecursode grande ajuda no processo deliberativo. Outro aspecto importante desse processo que,adespeitodoquesepossapensarapressadamentedevidosobservaes acima,possvelaparticipaodeconhecimentoscientficosduranteoseu desenvolvimento,porexemplo:quandoprecisoescolherquetipodealimentos serolevadosparaalimentarcrianassubnutridasquehabitamumaregio excessivamente mida, um dos aspectos que deve ser considerado na deliberao aresistnciadessesalimentosumidade,epossvelsebasearem conhecimentos cientficos a respeito do apodrecimento dos alimentos para decidir quais deles duraro mais tempo nessa regio, e por isso, quais seriam os melhores alimentos para se levar em uma tal empreitada. conveniente ainda assim reiterar que,emboraconhecimentoscientficospossamserlevadosemconsideraono clculoqueresultarnaescolhadeumaao,asconclusesresultantesdeum processo de deliberao que culmina na escolha jamais podem ser tomadas como conhecimento cientfico.Apesardeserfrutodeumclculoincertoeimpreciso,aaoescolhida podeatingiremcheioseuobjetivo;nadaimpede,entretanto,queelaapenasse aproxime ou mesmo passe ao largo dele. Para determinar se a escolha foi bem ou malsucedida,necessrio,antesdemaisnada,consideraraaoemquestona ntegra;isto,noapenassuanaturezaemsi,mastambmseu desenvolvimentocompletonaordemdotempo,bemcomo,emalgumamedida, suasconsequncias.Ditodeoutromodo,ojulgamentoquesentenciarocarter da escolha em moldes aristotlicos no pode ser efetuado aprioristicamente. Esse julgamento, por sua vez, na qualidade de cume de um outro processo deliberativo, tambm ele prprio desprovido de carter ou pretensocientficos; como j foi ditoantes,ojulgamentosobreasaes,isto,seelasforamboasoums, efetuadas com bravura, honra e etc. depende do desenrolar-se da prpria ao.Nasequncia,analisaremosanoodeescolhasoboprismadedois aspectosdistintossegundoosquaisoestagiritaacaracteriza:a)aescolhacomo desejo deliberado; e b) a escolha como a origem da ao. PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA26 a)A escolha como desejo deliberado: A afirmao e a negao no raciocnio correspondem, no desejo, ao buscar e aofugir;demodoque,sendoavirtudemoralumadisposiodecarter relacionada com a escolha, e sendo a escolha um desejo deliberado, tanto deve ser verdadeiroo raciocnio como reto o desejo paraque aescolhasejaacertada,e o segundo deve buscar exatamente o que afirma o primeiro. 16

Apartirdapassagemacima,pode-seaduziraseguinteinterpretao:a escolhapodeserdescritanopensamentoaristotlicocomooresultadodeuma operaoaplicadaaumdesejo;essaoperaoseriaadeliberao.Esta,porsua vez,seriacompostaporraciocnios.Paramelhorcompreenderofuncionamento desta operao e a significncia da concluso que acabamos de anunciar, devemos aproximar-nos em maior nvel de detalhe das noes bsicas envolvidas, a saber: raciocnio,desejoedeliberao.Afimdefaz-lo,sugerirei,noquesesegue, modelos interpretativos para essas noes que julgo, por assim dizer, analisarem-nasemtermosindependentesesuficientementeclaros,queespelhamseu funcionamento na economia conceitual da tica a Nicmaco de forma adequada. a.1)Raciocnio:napassagemtranscrita,aomobilizaranoode raciocnio,Aristtelesnosdizduascoisasquenospermitemsugerircomcerto fundamentoalgoarespeitodamaneiracomoofilsofocompreendeaprpria noomobilizada.Emprimeirolugarelesustentaqueafirmaoenegao pertencem ao domnio do raciocnio; e em segundo lugar, ele atribui ao raciocnio carterveritativoaodizerqueraciocniosenvolvidosemescolhasacertadas devem ser verdadeiros. sabido que o carter veritativo prprio das proposies ele , de fato, umadesuaspeculiaridadesdistintivasporexcelncia.Noraro,define-seuma proposio exatamente como aquilo que possui um valor de verdade. Alm disso, tambmsobreasproposiesmaisprecisamente,comosecostumadizerem terminologiacontempornea,sobrecontedosproposicionaisesomentesobre elasquesepodemrealizarasoperaesdeafirmaoenegao.Essas observaesnosdomargemesugestoafavordoseguintemodelo interpretativo:raciocniospodemserentendidoscomoatooucomoefeito.Na primeira acepo, o raciocnio deve ser entendido como o exerccio das operaes

16ARISTTELES, tica a Nicmaco, 1139 a 20-30. PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA27 assertricas de afirmao ou negao sobre contedos proposicionais. Na segunda acepo,eleseriaoresultadodessasoperaes,isto,aafirmaoouanegao propriamente dita de uma proposio, que verdadeira ou falsa.a.2)Desejo:deformaanlogaaomodelointerpretativoaplicadoanoo deraciocnio,podemos,apartirdomesmotrechotranscrito,identificar importantessugestesarespeitodanoodedesejo.Logoemseuincio,o pensadortraaumparaleloentreopapeldasoperaesdeafirmaoenegao comrespeitoaoraciocnioeopapeldabuscaedafugacomrespeitoaodesejo. Emconsonnciacomessacolocao,podemoscompreenderbuscaefugacomo operaesanlogasaafirmaoenegao,emboradenaturezadistinta.Elas atuariamtambmsobrecontedosproposicionais,masdiferentementede afirmao e negao, que possuem carter assertrico, possuiriam carter volitivo. Emoutraspalavras:demodoanlogoaoraciocnio,odesejotambmpodeser compreendidocomooresultadodeumaoperaosobreumcontedo proposicional; o que os diferencia quanto a esse aspecto a natureza assertrica em um caso e volitiva no outro da operao aplicada. Umavezmaisdemaneiraanlogaaocasodoraciocnio,aaplicaoda operaovolitivaaumcontedoproposicionaltambmresultaemalgoaque convm um valor embora, no caso dos desejos, esse valor no seja o verdadeiro ou o falso, mas sim, novamente segundo o que nos sugere o trecho sob escrutnio, reto ou no. Podemos concluir, portanto, que desejos podem ser entendidos como atos ou como efeitos, respectivamente, de acordo com as explicaes recm-dadas emoutraspalavras:desejoscomoatossoaaplicaodasoperaesvolitivas debuscaoufugasobrecontedosproposicionais;comoefeitos,elessoo resultado dessa aplicao, ou seja, a busca ou a fuga do estado de coisas descrito pelo contedo proposicional em questo, ao qual convm como valor a retido ou a no retido. a.3) Deliberao17: a deliberao pode ser entendida como sendo composta detrspartes:desejos,raciocnioseconcluses.Oprocessodeliberativoseda

17Convmressaltarqueadeliberao,apesardetratadaaquiemseparado,podesertomada tambm, quando interpretativamenteconveniente, como umaespcieparticular deraciocnio; em primeiro lugar por ser, como j observado anteriormente, composta porraciocnios; e em segundo PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA28 partirdocotejamentodosdesejoseraciocnios,quesonelepostosladoalado. Nesteprocesso,socalculadasasconsequnciasdaconjunodosdesejosisto ,foravolitivaaplicadaaumcontedoproposicionaleraciocniosisto, foraassertricaaplicadaaumcontedoproposicional.Grossomodo,pode-se dizer que o resultado da considerao das consequncias da referida conjuno a obtenodeumconjuntodedesejosdeliberados,queso,maispropriamente,o que podemos chamar de concluses de um processo deliberativo. Por exemplo:1) Quero comer uma grande fatia de bolo de chocolate; 2)Todavia,estouapardofatodequebolodechocolatepossuium altssimo valor calrico; 3) Estou um pouco acima do peso e; 4) No quero ganhar mais quilos extras; 5) Chego a concluso de que, deliberadamente, no quero comer uma fatia deste bolo.Asetapasde1a5compemumprocessodeliberativo.Em1e4 encontram-sedesejos;oprimeiroumabuscaeosegundoumafuga.Em2e3 temosraciocniosafirmativosqueestodiretamenteligadosaosdesejosem questo. No nmero 5 encontra-se a concluso, que resulta como consequncia da conjuno dos desejos e raciocnios envolvidos no processo deliberativo. Note-se que,quantoforma,estaconsisteemumaforavolitivadeliberadaaplicadaa umcontedoproposicional.Nocasodoexemplo,avolioobtidanoclculo negativa deliberadamente no quero comer o bolo. Neste modelo interpretativo, o resultado do clculo deliberativo dependente tambm, vale ressaltar, dos graus de intensidade dos diferentes desejos envolvidos. No exemplo em questo, pode-se depreender que o desejo de no engordar mais forte do que o desejo de comer obolo.Emoutroscasos,elapoderiaserpositiva.importantefrisarquenoh umnmerodeterminadodedesejos,raciocniosouconclusesemuma deliberaoaindaquesejanecessrioquehajapelomenosumdecada. lugar,porpoderserconsideradadeformahorizontalizadacomoumraciocniocomplexo:a afirmao deuma proposio deformacondicional, quetem como componentes os raciocnios e desejos nela envolvidos de acordo com sua estrutura. PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA29 indeterminado tambm se as foras volitivas e assertricasaplicadas acontedos proposicionaisnadeliberaosopositivasounegativas:respectivamente busca/fuga e afirmao/negao.Emsuma:sugere-seaquiqueadeliberaosejacompreendidacomoum processocomplexoqueenvolveraciocnioseatuasobredesejos,etemcomo resultado uma ou mais concluses cuja forma a aplicao de uma fora volitiva modalizada pela deliberao a um contedo proposicional. 18

a.4) Escolha:Sendo, pois, o objeto de escolha uma coisa que est ao nosso alcance e que desejada aps deliberao, a escolha um desejo deliberado de coisas que estoaonossoalcance;porque,apsdecidirumresultadodeumadeliberao, desejamos de acordo com o que deliberamos. 19

De posse das explicaes at aqui fornecidas a respeito da deliberao e de suasnoescomponentes,podemoslerapartirdotrechotranscritoacimauma claraorientaoparaaobtenodeumamelhorcompreensodaescolhanas consideraes de Aristteles aqui examinadas.Comojsugeridoanteriormenteporoutrostrechostranscritosepelo prpriosubttulodestaseo,estapassagemreforaacompreensodaescolha como um desejo deliberado. Entretanto, ela nos permite ir alm desta formulao algovaga,econferir-lhemaiorsolidez.Oestagiritaenunciaexplicitamenteuma tese importante para nossos presentes propsitos, a saber: que uma vez concluda uma deliberao, passamos a desejar conforme oresultado desta. De acordo com osdesenvolvimentosdea.1,a.2ea.3,issoquerdizerqueaconclusodeuma deliberao,obtidaapartirdedesejospormeioderaciocnios,umacondio suficienteparaqueemnssedumdesejoque,porassimdizer,seguesua

18 importante que o clculo aqui oferecido como modelo interpretativo para a noo aristotlica dedeliberaonosejatomadoporummovimentohermenuticoarbitrrio.guisade justificativa, espero que seja suficiente dizer que a principal ideia por trs dele a de que, quando osmembrosdeconjuntosadequadosdevoliesedeasseresquedealgumaformaversema respeitodeummesmotemasopostosemconjuno,possvelconcluirdelesumavolio distinta,quecarregarconsigoamarcaformaldeconsequnciadessaconjuno.Quantoao desenvolvimentoformaldoclculotarefacujarealizaopossivelmentepermitiriaresultados iluminadoressobreainterpretaoqueaquiofereo,deixo-ocomosugestoparaleitores interessados,j quenos desviariapor demais denossos objetivos caso o levssemos acabo aqui. Proponho que se orientem, na tarefa, pela ideia motivadora que expus. 19ARISTTELES, tica a Nicmaco, 1113 a 10-15.PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA30 prescrio. Recorrendo novamente ao exemplo de deliberao dado em a.3, pode-seidentificarasugesto,diantedessaconsiderao,dequeaconclusodo processodeliberativo,emsendoprecisamenteodesejodenocomeruma deliciosafatiadoboloobtidopordeliberao,elamesmaaprpriaescolha.A escolhaapareceentocomoessedesejoqueoresultadodoexercciode raciocniossobredesejos(processodeliberativo)eque,parafraseandoofilsofo, busca exatamente o que afirma o raciocnio isto , o contedo proposicional da concluso, obtido como fruto direto da deliberao. neste sentido que sugiro ser profcuocompreenderacolocaodeAristtelesdequeumaescolhapodeser descrita como um desejo deliberado. Aestaaltura,todavia,apesardejnostermosaproximadodaconcepo doestagiritadeescolhacomodesejodeliberado,aindanoestclaronemcomo nem o porqu de a escolha ser compreendida pelo filsofo tambm como origem da ao. Afinal de contas, por que um desejo deliberado do tipo descrito deve ser tomadocomocondiosuficienteparadesencadearumaao?Desejosno deliberados em geral evidentemente no parecem ter, segundo as consideraes de Aristteles,omesmopoderpense,porexemplo,emdesejosquecompemum processodeliberativo,comoosdoexemploema.3.Oquesealterariaemum desejo, meramente por ele ser fruto de uma deliberao, a ponto de conferir-lhe o podaer de desencadear aes? b) Aescolhacomo origem da ao o papel dacausa motriz: A origem da ao sua causa eficiente, no final a escolha, e a da escolha o desejo e o raciocnio com um fim em vista. 20 Nasseesanteriores,tratou-sedeexplicaralgorelacionadopartefinal dotrechorecm-citado.Procureioferecerumainterpretaocabvelsegundoa qual a escolha, sob o rtulo de desejo deliberado, pode ser entendida como um efeito do processo deliberativo; isto , sobre como o desejo e o raciocnio com um fim em vista constituem a origem da escolha. Quanto parte inicial do trecho, no entanto,poucofoiditoataqui.Afinal,namedidaemqueorigemdaao, como a escolha se relaciona com esta?

20ARISTTELES, tica a Nicmaco, 1139 a 30-35.PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA31 A escolha certamente mantm com a ao uma estreita conexo. Nem por isso, no obstante, deve-se perder de vista o fatode que uma jamais se confunde comaoutra.Aristtelesdescreveexplicitamenteaescolhacomocausaeficiente (motriz) da ao e, patentemente no possvel que algo tenha a si mesmo ou a qualquerdesuaspartesintegrantescomocausamotrizemsentidoaristotlico. Devemos,portanto,atentaraofatodequenoapenasaescolhanoseconfunde com a ao, como tambm no em nenhuma hiptese parte integrante desta. Como, ento, devemos entender esta estreita conexo? Em primeiro lugar, devemosevitarumamcompreensodaafirmaodeAristtelesdequea escolhaaorigemdaao.Isoladadecontexto,essapassagempoderia facilmenteserinterpretadacomoumadeclaraodequetodaaotemcomo origemaescolha.evidentequetalinterpretao,tomadasemressalvas, absurdamesmointuitivamente,poiscertasaesparecempatentemente involuntriasoprprioAristtelessustentaumparecersimilar,comoj observado na seo sobre o voluntrio. Entretanto,poder-se-iatorn-lamaisplausvelcomaadiodaseguinte restrio: todas as aesvoluntrias tm como origem a escolha. Mais uma vez, no entanto, a interpretao no apropriada. Tambm na seo 2.1.2, foi mostrado que, segundo o estagirita, o conjunto das aes voluntrias no se esgota naquele quecompreendeapenasaspraticadasporescolha.Comoumexemplodeaes voluntrias que no so praticadas por escolha, o filsofo cita, como j observado, aquelas praticadas pelo impulso do momento.Portanto, a frase a escolha a origem da ao deve ser compreendida de maneiradiversa.Emverdade,elapodeserproficuamenteentendidanadireo opostasugeridapelainterpretaoapresentadanosdoispargrafosanteriores. Emoutraspalavras:aoinvsdetomarmosaafirmaoemquestocomo significando que toda a ao em geral ou pertencente a certo grupo tem como origemaescolha,devemoscompreend-lacomodizendoquetodaescolha origina, isto , tem como consequncia uma ao. Desta forma, trilhamos uma via hermenutica que no apenas no entra em conflito com as colocaes do filsofo estudadas,comotambmexplicaalgoessencialsobreoobjetodeinvestigao PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA32 destaseo,asaber:aescolhaalgoquesfazsentidonamedidaemquea concebemos como causa motriz de uma ao. uma condiosine qua non para que algo seja chamado com acerto de escolha que tenha como efeito uma ao. Essacondio,noobstante,apesardenecessria,nosuficienteparaa caracterizaodealgocomoumaescolha.Tercomoefeitoumaaouma propriedade compartilhada por tudo aquilo que causa motriz de alguma ao; e evidente,pelodesenvolvidonaseo2.1.2,quehdiversascausasmotrizes possveis alm da escolha para os mais diversos tipos de ao. Portanto, preciso ainda responder seguinte questo: o que h de peculiar a respeito da escolha que a diferencia das demais causas motrizes de aes? Convm recordar que as aes consideradas por Aristteles parecem poder ser dividas em doisgneros:aquelas cujoprincpiomotorencontra-senoprprioagenteeaquelasemqueesse princpioexternoaele.Oprincpiomotordetodasasaespertencentesao primeirodessesgrupospareceestarintimamenteligadoaodesejo,embora,no sejapossveldizerquequalquerdelesresuma-sea,porassimdizer,umpuro desejo. importante no desconsiderar o fato de que, de acordo com o que temos ataquiobservadodaeconomiaconceitualdaticaaNicmaco,desejos,porsi s, no so capazes de, sem mais, originar aes; basta que tenhamos em mente o fatodequepodemosraciocinarsobredesejosquetemosisto,podemos deliberarsobredesejosqueefetivamentepossumossemqueessesdesejos cheguemaseconcretizaremaesemqualquermomentodesuavigncia.Para que adquiram fora motriz suficiente para desencadear aes, desejos precisam de algo mais. Como exemplo, podemos citar aquilo a que Aristteles se refere como impulsodomomento,etambmaconclusodeumprocessodeliberativo;em ambososcasos,apresenta-sealgoqueemprestaaodesejoforamotriz, propelindo-oretoaoestatutodecausamotrizdeumaao.Talvezseja didaticamente frutfero recorrermos seguinte alegoria para explicar esse ponto: o desejocomoabolabrancanumjogodebilhar:elaquemcolocaasbolas coloridasemmovimento,pormelamesmanocapazdemover-sesozinha. atravs de uma tacada por exemplo, o impulso, a escolha que ela ganha fora para empurrar as bolas coloridas, isto , gerar aes; e somente por meio da bola PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA33 branca,diretaouindiretamente,queasbolascoloridaspodemserpostasem movimento. 2.2 Virtudes

Muitodiferentedoquepodeparecerprimeiravista,virtudescomoa honra, por exemplo, no so simplesmente propriedades que convm ao homem e que so meramente externadas ou concretizadas por meio de aes; na verdade, as virtudesdemandamnecessariamenteoexercciodeaes,exatamenteporque nestas que elas serealizam. por essa razo que, para ser identificadocomo um homemvirtuoso,faz-senecessrioparaumagentepossuirohbitodepraticar aes virtuosas, pois por viver uma vida de aes virtuosas que um homem pode ser chamado de virtuoso, e no o inverso. Ou seja, por praticar aes honrosas, por exemplo, que se diz que algum honrado; isto , no por ser honrado que o homempraticaaeshonrosas.Aindaassim,osatosvirtuososnodevemser praticadosaomeroacasoparaque,deacordocomascondiesobservadas, constituamumavidavirtuosae,assim,permitamquesedigadoagenteum homemvirtuoso;elesdevemserpraticadosvoluntariamenteporescolha,assim comooprpriofilsofodescreve:(...)sentimoscleraemedosemnenhuma escolha de nossa parte,mas as virtudes so modalidades de escolha, ou envolvem escolha. 21.Para ilustrar a questo, vale lembrar que Aristteles cita a bravura e a temperanacomoexemplosdevirtudes,masque,paraserbravoetemperante, mandatrioqueseescolhapraticaraescombravuraetemperana, respectivamente ( Da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos, e assimcomatemperana,abravura,etc..22).Nessesentido,servirtuosoalgo que qualquer homem pode ou no ser, pois depende do prprio homem a escolha por praticar aes desse tipo ou no:

21ARISTTELES, tica a Nicmaco, 1106 a 1-5. 22Ibid., 1103 b 1-5. PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA34 Quantosvirtudesemgeral,esboamosumadefiniodoseugnero, mostrando que so meios e tambm que so disposies de carter; e, alm disso, que tendem por sua prpria natureza para a prtica dos atos que as produzem; que dependem de ns, so voluntrias e agem de acordo com as prescries da regra da justa. 23

Ainda nesta direo, preciso esclarecer a diferena presente nos casos em queinvoluntariamente,ouaindavoluntariamente,massemterefetivamente escolhido efetuar uma ao, o homem acidentalmente realize uma ao virtuosa (sequetalnomepodeseradequadamenteutilizado),eoscasosemqueele deliberadamenteescolhepraticaraesqueseencontramempuroacordocom umadisposiodecarterqueeleapresenta.Aristtelesfalasobreessescasos usando a virtude da justia como exemplo:Assim como dissemos que algumas pessoas que praticam atos justos no sonecessariamentejustasporissoreferimo-nossquepraticamosatos prescritospelalei,querinvoluntariamente,querdevidoaignornciaoupor alguma outra razo, mas no no interesse dos prprios atos, embora seja certo que tais pessoas fazem o que devem e todas as coisas que o homem bem deve fazer , pareceque,domesmomodo,paraalgumserbomprecisoencontrar-seem determinadadisposioquandopraticacadaumdessesatos:numapalavra, precisopratic-losemresultadodeumaescolhaenointeressedosprprios atos.24 Ou seja, nos casos em que no so efetuadas por escolha e nem com vistas s prprias aes, no possvel chamar o homem de justo, e, consequentemente, tampoucosepodecham-lodebom.Noporqueaaocalhoudeser realizadacomcaractersticasqueproporcionamacidentalmenteajustiaquese pode dizer de quem apraticou queeste justo. Portanto, fica determinado assim quenosepodeatribuiravirtudeaumhomemsemqueeletenha deliberadamente escolhido praticar a ao que realiza, que produz a virtude.Outroaspectoimportantesobreavirtudequenodeveseresquecido que,precisamenteporelaserealizarnavidaprtica,Aristtelesafirmanoser possvel ser um homemvirtuoso dormindo, ou que seencontre na inatividade de algumaforma,pois,comoprecisopraticaratosvirtuososparasetornarum homem virtuoso, o exerccio dessa disposio de carter implica que ele esteja, no mnimo, acordado: Porque pode existir o estado de nimo sem produzir nenhum

23Ibid., 1114 b 25 1115 a 5. 24Ibid., 1144 a 10-25. PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA35 bomresultado,comonohomemquedormeouquepermaneceinativo;masa atividade virtuosa, no: essa deve necessariamente agir, e agir bem. 25

Soma-se ainda caracterizao da virtude o fato de ela ser definida como uma disposio de carter, pois como o filsofo determina:Observemos, pois, que toda virtude ou excelncia no s coloca em boa condio a coisa de que a excelncia como tambm faz com que a funo dessa coisasejabemdesempenhada.Porexemplo,aexcelnciadoolhotornabons tantooolhocomoasuafuno,poisgraasexcelnciadoolhoquevemos bem. Analogamente,a excelncia de um cavalo tanto o tornabom em si mesmo comobomnacorrida,emcarregaroseucavaleiroeemaguardardepfirmeo ataque do inimigo. Portanto, se isto vale para todos os casos, a virtude do homem tambmseradisposiodecarterqueotornabomequeofazdesempenhar bem a sua funo. 26

De fato, h que se chamar ateno para dois aspectos importantes sobrea virtudequeestapassagemsalienta:emprimeirolugar,queelanoapenas descritacomoumadisposioqualquer,mascomoadisposioquetornao homembom.Almdisso,cabeaelaograndiosopapeldefazerohomem desempenhar bem a suafuno. Se na filosofia aristotlica a virtude de algo est diretamenterelacionadarealizaodesuafunoprpria,natica especificamenteohomem,enquantoentendidocomoalgonomundo,tambm possuiumfuncionamentoapropriado;eporissoquedizerqueumhomem virtuoso o mesmo que dizer que ele realizou com excelncia a funo que lhe prpria. Para fechar este ponto, ilustro-o com a afirmao do Filsofo: A virtude de uma coisa relativa ao seu funcionamento apropriado. 27

Semsombradedvida,nopormotivodeimportnciaqueapresento apenasagora,noquartopargrafodestasesso,afamosacaractersticademeio-termoentreosextremosqueatribudavirtudeporAristteles.Oprimeiro passo paraentender o que est em jogo ao descrever a virtude assim atentar s palavrasdopensador:(...)segue-sequeavirtudedeveteroatributodevisaro meio ao termo. Refiro-me virtude moral, pois ela que diz respeito s paixes e aes, nas quais existe excesso, carncia e um meio-termo.28 O segundo passo entenderarelaoentreavirtudeajustia.Seporumladoajustiapodeser

25ARISTTELES, tica a Nicmaco, 1098 b 30 1099 a 5. 26Ibid., 1106 a 15-25. 27Ibid., 1139 a 15-20. 28Ibid., 1106 b 10-20. PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA36 entendidacomoumavirtudedentreasoutrasdiversas,poroutroofilsofo explcitoquandoafirma:(...)demodoque,emcertosentido,chamamosjustos aquelesatosquetendemaproduzireapreservar,paraasociedadepoltica,a felicidadeeoselementosqueacompem. 29;sobreajustiaentendidadetal maneira, ele acrescenta: essa forma de justia , portanto, uma virtude completa, pormnoemabsolutoesimemrelaoaonossoprximo.Porissoajustia muitasvezesconsideradaamaiordetodasasvirtudes,(...).Eelaavirtude completa no pleno sentido do termo, por ser o exerccio atual da virtude completa. completaporqueaquelequeapossuipodeexercersuavirtudenossobresi mesmo, mas tambm sobre o seu prximo, j que muitos homens so capazes de exercer a virtude em seus assuntos privados, porm no em suas relaes com os outros.30.Agircomjustia,portanto,exercertodasasoutrasvirtudesno apenassobresimesmo,comotambmemsuarelaocomosoutros.Otermo justia, tal como utilizado na tica de Aristteles, parece refletir em si mesmo o significado de proporo/adequao; ou seja, agir com justia parece ser o mesmo queagircomproporo,comjustamedida(metron).Porexemplo,quandoo homemescolhepraticarumaaocombravura,eleestpraticandoumaao justa,poisbravura,noatualcontexto,significa,comrespeitoacertoaspectoda ao a que convm, a medida proporcional ao que ela prpria demanda. A bravura entendida,emoutraspalavras,comoamedidajusta,adequadaaessaao.Ao mesmotempo,comefeito,seaaofoirealizadacombravura,entoisso significaqueohomemnotendeuanenhumdosexcessosquedelapodem decorrer, nem covardia (carncia) nem temeridade (excesso). O meio-termo uma posio relativa aos extremos, e, para identific-lo com referncia a cada uma dasvirtudesdohomem,precisoconsiderarcadasituaoemparticular,poiso meio-termo algo que se apresenta de forma diferenteem cada ao dohomem. Emsuma:umavezmais,nohcomoidentificarantesdassituaesse apresentarememqueconsistiragircombravuraoucomtemperana,poiso meio-termosdefinidocomrelaoaosextremosescontingnciasdecada situao particular. Isso apenas refora que a natureza de uma ao justa/ virtuosa nopodeserconcebidaaprioristicamente;elaspodeserdeterminadaumavez

29ARISTTELES., tica a Nicmaco, 1129 b 15-20. 30Ibid., 1129 b 25 1130 a 1. PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA37 apresentadaaaoeascontingnciasecondiesreferentesaela.poressa razoqueajustiaemAristtelespodeserentendidacomoalgorelativoao menos no sentido e na medida em que ela s pode ser concretamente identificada comrelaoacadasituaoespecfica.Comoasvirtudesnosomatriade conhecimento cientfico, elas no se prestam a descries e definies de natureza ptreaouapriorstica;elasganhamseusignificadoapartirdaexperincia.Por exemplo, o significado de bravura totalmente decorrente das situaes em que se podeapontaraocorrnciadela.Saberusaroconceitodebravura,bemcomode todavirtude,emparticulareemgeral,tambmsignificasercapazdeidentificar quando ela ocorre.Essadependnciadoaposterioriparaaformaodosconceitosque caracterizamaaovirtuosarevelaumaspectodeverasimportanteparase compreenderaticaaristotlica,asaber:queela,comrespeitoaocontedode suasprescries,notoestveleimutvelquantosepoderia,aindaque incautamente, esperar. Como o significado do contedo de cada virtude formado na experincia, eles esto sempre abertos a mudanas em sua concepo. Ou seja, apontar as situaes em que uma ao foi realizada com bravura uma tarefa que se mantm em constante atualizao, pois esse julgamento realizado a partir da deliberao e consenso dos prprios homens. No h como decidir a partir de um critriocientficoquandoumaaofoirealizadacombravura;oshomens discutemedeliberamsobreaao,eentodeacordocomoscritriosdesua comunidadepoltica,elesdeterminamseestaserealizounaaoouno. Conforme o aparecimento de situaes que envolvam a necessidade de identificar a bravura na ao, o significado material e efetivo dessa virtude pode ser alterado esetransformarnoseiodacomunidade.Ouseja,noestapenasnopoderdo agenteescolheragirdeformaatornaraaovirtuosa,masdependetambm daquelesquejulgamaaodizerse,defato,avirtudealiseapresentou.Isso parece sugerir que uso do critrio para deliberar e identificar as virtudes nas aes tempapelcapitalnadeterminaodequaisaesinstanciamounoestaou aquelavirtude;eissotornatodooprocessodedeterminaoeaplicaodo conceitodevirtudeindeterminadoaprioristicamente.Issoapenasressaltaoutro PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA38 aspectoaestaalturanadasurpreendentedesumaimportncianatica aristotlica: o relevante papel da experincia no julgamento tico. 2.3 Causa final Uma vez esclarecidos aspectos relevantes do papel da causa motriz na tica do estagirita, preciso esclarecer alguns pontosa respeito dacausa que,de certa forma,seopediametralmenteaela:acausafinal.Se,porumlado,acausa motriz da ao , como observado ao longo de 2.1, a escolha, por outro, sua causa final,naspalavrasdofilsofo,afelicidade:Afelicidade,portanto,algo absolutoeauto-suficiente,sendotambmafinalidadedaao.31.Acausafinal dohomem,tambmconhecidacomoBemSupremo,aeudaimoniatermo gregotraduzidonaversodaticaaNicmacoconsultadacomoprincipal referncia para esta dissertao por felicidade. Dizer que a causa final do homem afelicidadesignificaapont-lacomoatendncianaturaldohomem;oque significa dizer que o animal racional (zoon logon echon), tomado como um objeto aserconhecido,apresentacomofinalidade32afelicidade.Seafelicidadea finalidadedohomemetambmafinalidadedaao,entoaconcretizaoda finalidadedohomempareceestarintimamenterelacionadaprticadeaes;e comoasaesresponsveisporrealizarafelicidadesoasaesvirtuosas, plausvelsuporquespossvelrealizarafinalidadedohomempelaprticade aes virtuosas.Aristtelesclaroeenfticoaosustentarquenohfelicidadesemuma vidaprtica;pois,segundoele:Comefeito,todoseles[osatributosdaao virtuosa]pertencemsexcelentesatividades;eestas,ouento,umadelasa melhor , ns a identificamos com a felicidade.33. A felicidade no um estado de nimo ou algo que se possua; ela se encontra na esfera dos atos, e por isso um

31ARISTTELES, tica a Nicmaco, 1097 b 20-25. 32Exceto explcito em ressalva contrria ou evidente em virtude do contexto, as expresses causa final e finalidade so tomadas e empregadas como sinnimas.33ARISTTELES, op. cit.,1099 b 25-30. PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA39 tipodeatividade 34.Sobreela,oestagiritaesclarece:Outracrenaquese harmoniza com a nossa concepo a de que o homem feliz vive bem e age bem; poisdefinimospraticamenteafelicidadecomoumaespciedeboavidaeboa ao.35 eArespostaperguntaqueestamosfazendotambmevidentepela definiodafelicidade,porquantodissemosqueelaumaatividadevirtuosada alma, de certa espcie.36. Portanto, a felicidade no apenas uma atividade, mas sim uma atividade de um tipo especfico: uma atividade virtuosa da alma. preciso ressaltar ainda que Aristteles no caracteriza a felicidade como umaatividadevirtuosadocorpo,ouexterior:elaumaatividadepraticadapelo homemequetemligaodiretacomaalma.Issonosignificadizerque,para realizar essa atividade, no sejam relevantes as virtudes do corpo e exteriores, tais comoabelezaeobomnascimento,porexemplo.Essasvirtudespodemser entendidascomoinstrumentosoumeiosquepodemserusadosparaqueseja possvelefetuarasatividadesdaalma,emespecialasatividadesvirtuosasdela. Como o filsofo diz sobre a felicidade:E no entanto, como dissemos, ela [a felicidade] necessita igualmente dos bens exteriores; pois impossvel, ou pelo menos no fcil, realizar atos nobres semosdevidosmeios.Emmuitasaesutilizamoscomoinstrumentosos amigos,ariquezaeopoderpoltico;ehcoisascujaausnciaempanaa felicidade, como a nobreza de nascimento, uma boa descendncia, a beleza. Com efeito,ohomemdemuitofeiaaparncia,oumal-nascido,ousolitrioesem filhos, no tem muitas probabilidades de ser feliz, e talvez tivesse menos ainda se seusfilhosouamigosfossemvisceralmentemauseseamortelhehouvesse roubado bons filhos ou bons amigos. 37

Apesar de a passagem comear com uma afirmativa sobre necessidade dos bens exteriores para a realizao da felicidade, logo depois, no mesmo pargrafo, Aristtelessuavizaaafirmaodizendoquepelomenosnofcilrealiz-la sem os meios guarnecidos por essas virtudes. Ou seja, parece que essas so muito importantes para que se tenha condies propcias para realizar a felicidade, e no que sem essas virtudes no seja em absoluto possvel ser feliz. Em prol da defesa domesmoponto,desumaimportnciaatentartambmaousodapalavra probabilidadesnotrechocitadoacima:Aristtelesnodizquenopossvel

34Cf. ARISTTELES, tica a Nicmaco, 1098 b 30 - 1099 a 5. 35ARISTTELES, tica a Nicmaco, 1098 b 20-25. 36Ibid., 1099 b 25-30. 37Ibid., 1099 a 30 1099 b 10. PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA40 serfelizsemasvirtudesdocorpoeexteriores;eleapenascolocaquemenos provvel que um homem encontre maneiras de ser feliz, pois podem faltar meios e surgir muitas dificuldades para que se consiga realizar a felicidade. Como j foi apontado, a felicidade realizada por meio de aes, mas no aesdequalquertipo:asaesdotipovirtuosassoaquelasresponsveispor realizarafelicidade.Paraopropsitodeesclarecereentendermelhorarelao entre esses dois conceitos, o uso de analogias um mtodo didtico corriqueiro. recorrente,porexemplo,afiguraquerepresentaasaesvirtuosascomouma espciedeseta/vetorquetemcomoalvo/finalidadeafelicidade.Outrotipode analogia,porsuavez,representaasaesvirtuosascomodegrausquecompem umaespciedeescadariacadadegraucorrespondendorespectivamenteauma ao virtuosa em particular que levaria ao patamar supremo da felicidade.Estasalegoriaspodemserinterpretadascomoapresentandoafelicidade como uma espcie de lugar a ser alcanado com a realizao de aes virtuosas, equeestasseriampraticadascomvistasaela;oumesmoqueafelicidadeum todoefetivamentecompostoporvriasaesvirtuosascomosuaspartes.Uma outrainterpretaopossvelparaarelaoentrefelicidadeeaovirtuosa,no entanto a qual talvez no se adque muito bem s analogias figurativas descritas, mas que pretendo defender aqui a de que a felicidade um trao/uma atividade presentenarealizaodecadaaovirtuosaemparticular,equeasaes virtuosas so entendidas como meio para a felicidade no por poderem alcanar a felicidade, mas sim por ser em cada uma delas que a felicidade se realiza. Sobre a interpretao sugerida pelas alegorias sobretudo a da escadaria , comumquejuntoaelaseapresenteumconceitodefelicidadequetomacomo base o uso cotidiano e corrente da palavra felicidade, isto , tal como um tipo de sentimento,oumesmoumestadodeespritoquepodeserumaespciedebem-estarconstante,oumesmocomoumaalegriaexacerbada,porexemplo.Detoda forma,essaacepodefelicidadepareceimplicarumaespciedeestadode nimo, o que parece contrariar o sentido descrito por Aristteles ao empregar esse mesmotermo(eudaimonia),poiseleodefineipsiliteriscomoumaatividade.Por outro lado, h um uso um pouco menos comum, mas tambm presente e qui PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA41 recorrente da palavra felicidade ao menos na lngua portuguesa com uma outra conotao, que nem sempre relacionado ao uso dela no texto aristotlico, que quandoautilizamosnassituaesemque,porexemplo,dizemossobreum comentrio qualquer que ele nofoi feliz. O usodo termo feliz nesses casos no pareceindicaralgumsentimentoouestadodeesprito,massimumaespciede ajustamento,comoseocomentrionoseencaixassebemnasituao,ouno fossepertinenteaela.Nessescasos,oquepareceestarsendodito:esse comentrio no foi adequado. Em outras palavras, o comentrio no foi preciso ao caso,elenocoubeprecisamentesituao.Ora,afelicidadearistotlicaa finalidadeprpriadohomem,ouseja,afinalidadequeprpriaaele,e determinasuaadequao.Asegundaacepodotermofelicidadenoseuuso cotidianopareceesclarecercommaioreficciaasdefinieseapontamentos aristotlicos considerados. A felicidade est intrnseca e necessariamente ligada ao queprprio,aoqueadequadoaohomem,talcomoquandoumaafirmao felizemumacertasituao.poressarazoqueatraduodeeudaimoniapor felicidade,quetantasvezescriticadaporinduzirumacompreensoerradade felicidadecomoumsentimento,noparecedetodoruim.Pelocontrrio,se corretamenteentendida,elapodeiluminarumaspectofundamentalna compreenso da tica aristotlica.Ainda nos casos em que uma interpretao feita imagem da analogia da escadaria no apresenta o significado de felicidade como um estado de nimo, um aspectofundamentalnacompreensodessesconceitosparecesubjazeraela:os doistermossotratadosnoseuinteriorcomodoiseventosdistintosnotempo, sendoumposterioraooutro;nocaso,afelicidadeseriaoeventoposterior,uma vez que ela s se realizaria como um efeito do evento j decorrido, qual seja, um conjuntodeaesvirtuosas.Afelicidadeentendidaaquicomoalgoexterno aovirtuosa,eque,apesardet-lacomocondionecessria,seencontraem uma categoria lgico-metafsica idntica da mesma a de um evento no tempo, umenteindependenteecomseumesmograudeconcretude,porassimdizer. Seguindoestalinhainterpretativa,anecessidadedaprticadeaesvirtuosasse justificaria pela ideia de que s por meio delas que se alcanaria esse efeito a felicidade que a finalidade do homem.PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA42 Apesar de essa via interpretativa apresentar um grau razovel de coerncia interna,nosepodedeixardelado,aoavaliarseusmritos,aafirmao aristotlicaquedescreveasaesvirtuosascomofinsemsimesmos:Ora,so desejveis em si mesmas aquelas atividades em que nada mais se procura alm da prpria atividade. E pensa-se que as aes virtuosas so desta natureza, porquanto praticar atos nobres e bons algo desejvel em si mesmo.38 Ou seja, segundo as palavrasdoestagirita,asaesvirtuosasdevemserbuscadasnoporquedelas decorreriamquaisqueroutroseventos,massimporqueelassodesejveisemsi mesmas. No obstante, o mesmo foi dito sobre a felicidade, isto , que ela tambm umfimemsimesma39.Apardacaracterizaodessesconceitostalcomo descritaacima,pergunta-se:comopossvelqueasaesvirtuosassejam praticadas visando realizar a felicidade se elas prprias j so fins em si mesmas? Estaramos diante da afirmao de que o homem teria duas finalidades distintas felicidadeeaovirtuosacadaumaaserrealizadaporsiprpria?Ouseriam felicidadeeaovirtuosacoisasabsolutamenteindistintas,isto,umanicae mesmacoisa?Casonosejaassim,entocomopodemambas,felicidadeeao virtuosa,naqualidadedeeventosdistintos,serempraticadascomofinsemsi mesmas? A nica resposta que eu consigo apresentar para tais questionamentos isto,anicaemsesustentandoatesemencionadadequefelicidadeeao virtuosasopertencentesaomesmonvellgico-metafsico:ouseentende queohomembuscaambas,pormcadaumaindependentementedaoutra,pois cada uma um fimem si mesma, ecom isso acomoda-sea tese dequeas aes virtuosasnosoefetuadascomvistasanadadistintodelasprpriasoque colocaemxequeavisointerpretativaqueestamosanalisando,ouentose mantmainterpretaoemquestoeseignoraumadasinformaes apresentadas,paraquesejapossvelnofazeropensamentoaristotlicoruirem contradio. Em suma, se a interpretao aqui analisada entende a felicidade como umpatamaraseralcanadopelasaesvirtuosas,tratando-ascomonecessrias apenas na medida em que so meios para levar felicidade, ento, como foi dito pelo filsofo que asaes virtuosas so desejveis em si mesmas, isto , sem ter

38ARISTTELES, tica a Nicmaco, 1176 b 5-10. 39Cf. Ibid., 1176 b 1-10. PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA43 emvistanadaalmdelasmesmas,amanutenodestaperspectivasoa,no mnimo, paradoxal.Almdoproblemaapresentadoacima,essainterpretaotambmdeve responderalgumasoutrasquestes,como:a)seocasoqueafelicidade compostaporaesvirtuosas,quantasaesdessetiposonecessriasparaser feliz?Isto,existeumnmeroouproporomnimanecessriadeaes virtuosas numa vida para que se realize a felicidade? b) se existem diversos tipos deaovirtuosa(honrosas,temperantes,etc)existe(m)algum(ns)que(so) necessrio (s) para realizar a felicidade? Ou seja, preciso que se tenha praticado aeshonrosasetemperantes,porexemplo,paraqueafelicidadeocorra,ou possvelnuncaterpraticadoaesdessetipo,eapenasrealizadoaescom bravura,porexemplo,parasealcanarafelicidade?Emoutraspalavras:h virtudesparticularescujoexerccioumaetapanecessriaconstruoda felicidade?Istoimplicaperguntar:c)halgumtipodehierarquiaentreasaes virtuosas?e,ainda,d)possvelserfelizaqualquermomentodavida,ouser que a felicidade algo que s possvel ao final dela, quando e somente quando setemacessoaoconjuntototaldasaesvirtuosasrealizadasporumhomem, bem como a todas as suas consequncias relevantes? Bom, mas se ela resultado desse conjunto, ento no seria necessrio que este homem encerrassea sua vida primeiro para que se pudesse tomar o conjunto total das aes por ele praticadas, e aentosaberseelefoifelizouno?Almdisso,seprecisoquesechegueao fimdavidaparatal,afelicidadeseriaalgoaseralcanadoaindaemvidaou apenas aps a morte? Oqueestoutentandoapontaraquiparaadificuldadequi impossibilidadedesnecessriaqueumatalvisoprecisacontornarparase mantercoerentecomafilosofiadescritaporAristtelesnaticaaNicmaco. Pretendo demonstrar aqui que a interpretao que defendo no apenas se sustenta plenamente nas palavrasdo filsofo, como tambm no tem que se deparar com, pelomenos,osproblemasdeadaquicitados.Paraapresentartal interpretao,elencoalgunsdosaspectosdasaesvirtuosasedafelicidade descritosporAristtelesquedevemosconciliareharmonizar,necessariamente, paraquepossamosidentificarumateoriaquesejanoapenascoerentecoma PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA44 filosofia aristotlica, como tambm que represente a melhor e mais forte possvel leitura de sua tica (lembrando que os aspectos abaixo no esto discriminados em ordemdeimportncia,poistmapenasaintenoderememorarcaractersticas sobre esses termos que j foram abordadas anteriormente em forma de citaes): 1)afelicidadedefinidacomoumtipoespecficodevidaedeao,as que so boas (Cf. ARISTTELES, tica a Nicmaco, 1098 b 20-25); 2)tantoafelicidadecomoasaesvirtuosassoatividades(Cf. ARISTTELES, tica a Nicmaco, 1169 b 25 1170 a 5e 1177 a 10 - 20); 3)afelicidadeumfimemsimesma(Cf.ARISTTELES,ticaa Nicmaco, 1097 b 1-5); 4)asaesvirtuosassodesejveisporsiprpriassendofinsemsi mesmas (Cf. ARISTTELES, tica a Nicmaco, 1176 b 5-10); 5)Com efeito, a felicidade no reside em tais ocupaes, mas,como j dissemos,nasaesvirtuosas.(ARISTTELES,ticaaNicmaco, 1177a. 5-10);6)afelicidadeafinalidadedaao(Cf.ARISTTELES,ticaa Nicmaco, 1097 b 20 - 25). Agoraanalisemosumpoucomaisdetalhadamenteoqueessesitensnos indicam, respectivamente: 1)Ora,em primeiro lugaro que significa dizer que umaao boa? Bom e maunaticaaNicmacosonormalmenteutilizadoscomoadjetivos relativosfinalidadedealgo;logo,falarqueumaaoboaoumo mesmoquequalific-lacomrespeitoexcelnciacomquerealizasua causa final. Alm de atribuir um valor ao, esses adjetivos no parecem atribuirquaisqueroutrasdeterminaesulterioresaela.Emsntese,as aespraticadaspelohomempodemserconsideradasboasoums; todavia, quando a ao virtuosa, ela necessariamente boa, pois as aes do tipo virtuoso so as aes que, por excelncia, alcanam sua finalidade prpria.Emoutraspalavras,dizerdeumaaovirtuosaqueelaboa apenasacentuaroaspectodeexcelnciadoexercciodesuafinalidadej PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA45 contidonelamesma.Todaaovirtuosanecessariamente,portanto, sempreboa.Seguindoesteraciocnio,umavidaboahtambmqueser umavidavirtuosapoisavidanopodealcanarcomexcelnciasua finalidade sem que as aes que a compem tambm o faam; isto , sem que nela, por meio de aes, se concretize a virtude.2) Jqueafelicidadeumaatividade,elanopodeserpossudapor ningum, nem ser entendida como um estado de nimo como j foi dito anteriormente nesta dissertao nem sequercomo uma sensao. Assim como as virtudes morais, ela no pode ser um atributo de um homem, isto , ela no pode ser entendida como uma propriedade deste. Ela algo que se d em atos, como as virtudes deste tipo. Almdisso,seasaesvirtuosaseafelicidadesoatividadesa serem praticadas pelo homem, preciso saber como realiz-las. Se por um ladooestagiritadescrevenaticaaNicmacoaimportnciadeefetuar aesvirtuosastalcomoeleexemplificacomasaestemperantes, bravas,honrosas,etc,citandoexemplosdequandoecomoelaspodeme devemserpraticadas,poroutro,emboraeleenfatizeanecessidadeda atividadedafelicidade,olivronotoricoemexemplificaesde momentos em que a felicidade realizada.Aristtelesnonosofereceexemplosdepessoasfelizes;pelo contrrio, ele nos oferece o exemplo de Pramo:Porque,comodissemos,hmisternosdeumavirtude completa,mastambmdeumavidacompleta,jquemuitasmudanas ocorrem na vida, e eventualidades de toda sorte: o mais prspero pode ser vtimadegrandesinfortniosnavelhice,comosecontadePramono CicloTroiano;eaquemexperimentoutaisvicissitudeseterminou miseravelmente, ningum chama feliz (eudaimonizei). 40; o que gera ainda maiores problemas na compreenso do termo.Ainda assim, o filsofo procura esclarecer o conceito de felicidade iluminandoalgumasdesuascaractersticas-chave,dentreelasasua estreita relao com aes virtuosas. Apesar de estabelecer a forte ligao entreessesconceitos,eresponsabilizarasaesvirtuosasporrealizara felicidade,afaltadeexaustividadenadescriodoconceitomantma

40ARISTTELES, tica a Nicmaco, 1100 a 1-10. PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA46 imprecisosobrecomoequandoelaserealiza.porissoquedevemos avanarnaanlisedosdemaisitensapresentadosafimdeesboarmos com mais clareza o momento e a forma de essa atividade se realizar. 3)Sendoafelicidadeumfimemsiprpriaissosignificadizerqueelano deveserbuscadapornadaalmdesimesma.Elanoprocuradapor proporcionarqualqueroutracoisaeelanopodesertomadacomomeio para sealcanar nada alm de si. A motivao para realiz-laencontra-se em si. 4)O mesmo que foi dito no nmero 3 vale para o 4, trocando apenas o termo felicidade por aes virtuosas; ou seja, elas no podem ser tomadas como meioparasealcanaralgodistintoqueviriaatravsdelas,nemserem realizadaspornenhumaoutramotivaoquenooprpriodesejode efetu-las.precisamenteestacaractersticadasaesvirtuosasque colocaemxequequalquervisoquequeiracoloc-lascomomero instrumento para a realizao da felicidade. 5)Afelicidadeafinalidadedasaes,masemumtipoespecficode aesqueelareside,nasvirtuosas.Issosignificadizerquepraticaraes virtuosas realizar de forma excelente aquilo que prprio do homem. A atividadevirtuosasetorna,ento,indispensvelparaarealizaoda felicidade. 6)Esta citao revela um pouco mais sobre a pergunta deixada em aberto na explicaodoitem2:comoequandoserealizaafelicidade?Ora,seela reside nas aes virtuosas, ento isso significa dizer que ela se realiza nas prpriasaesvirtuosas,poiscomoaprpriaregnciadoverbo demonstra,quemreside,resideemalgumlugar,eseesselugarsoas aesvirtuosas,nelas,isto,emseuinterior,queelaocorre.As perguntascomoequandoestosendorespondidasdeumanica maneira:elaserealizanasaesvirtuosas,poisnelaqueafelicidade reside. Ou seja, apesar de serem duas coisas diferentes, a felicidade e aes virtuosasestonecessariamenteligadas,pois,umaserealiza/residena outra.Umaveztendoditoqueafelicidaderesidenasaesvirtuosas, entend-la como um evento exterior a elas parece no fazer muito sentido.PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA47 Assimcomoasvirtudesmoraisnoresidemnohomem,massim nasaesvirtuosas,tambmafelicidadenoresidenele,masnessas aes.nestesentidoquesugiroqueentendamosafelicidadecomoum trao definitrio das aes virtuosas: a virtude a excelncia, e a efetuao deaesvirtuosassignificaarealizaodaquiloqueprprioaohomem deformaexcelente.Quandoefetuadaumaaoprpriadohomemde forma excelente, realiza-se ao mesmo tempo a atividade que a felicidade, sendoquedizerqueelafoirealizadaomesmoquedizerqueohomem realizousuafinalidade.Nametafsicaaristotlica,todoobjetotemuma funoquelheapropriada;eletemopotencialderealiz-la,e atualizandoessepotencialisto,realizandoestafuno,suaditacausa finalelerealizaasuaprpriafinalidade.Portanto,tomandoohomem comoumobjetodentrodestametafsica,quandoesterealizasua finalidade, este realiza sua funo adequada, cujo exerccio j se encontra sempreempotncianoprpriohomem.Seafelicidadeafinalidadedo homem,ento,quandorealizamosaquiloquehdeprprioneleem potencialcomexcelncia,realizamosasuafinalidade.Dizerquea felicidade se realiza na prtica de aes virtuosas dizer que, quando estas so praticadas, a finalidadedo homem tambm se realiza. neste sentido que apresento a felicidade como um trao que distingue as aes virtuosas, pois ela o trao que demarca a realizao da finalidade do homem como diretamente implicada na realizao deaes virtuosas. O que Aristteles parece estar dizendo com a citao nmero 5 : praticando aes virtuosas, o homem realiza necessariamente ao mesmo tempo aquilo que lhe mais adequado/apropriadoisto,atualizaseupotencialdeformaexcelente. Ouseja,quandodigoqueafelicidadedeveserentendidacomoumtrao que define as aes virtuosas, quero dizer apenas que ela acrescenta a elas a caracterstica de realizar a finalidade do homem. Emsuma:levando-seemconsideraoos6itensaquiapresentados,a interpretaoqueproponhopretendeconsiderarafelicidadecomoumpredicado queadereforosamenteatodoobjetodequesepossadizerumaatividade virtuosa. Isto implica dizer que, em primeiro lugar, a felicidade no formada por PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA48 um conjunto de aes; e, em segundo lugar, ela no um evento singular distinto daaovirtuosaisto,que,porexemplo,efetuandooeventox,queuma aovirtuosaem particular, tem-se como efeitoo evento y, que a felicidade. Antes,pode-sedescreverarelaoentrefelicidadeeaovirtuosacomo,por assimdizer,aquelaentreinterpretarumabelamelodiaaopianoepressionaras teclasdoinstrumentosegundocertasregraseutilizandocertastcnicascom maestria embora sejam atividades intencionalmente distintas, elas se realizam emumnicoemesmoeventoespao-temporal,eumatraodaoutraneste caso, a primeira trao da segunda na medida em que implicada por ela e em que encerra em si o sentido, a razo nuclear pela qual a primeira julgada quanto a sua excelncia.Aquiloquehdeprprionohomemequedeveserrealizadocom excelncia se instancia em diversas aes em particular; por exemplo, praticando aes com bravura, efetuando aes com temperana, etc. As aes virtuosas so prpriasdohomem,poisnadaalmdosprprioshomenspoderealizaressetipo de aes. Estas aes realizam (atualizam) o que h na prpria essncia do homem (oqueseencontraempotncia)deformatimaecompleta;suaconcretizao dependedamobilizaodadimensodohomemcomozoonlogonechonpois so os frutos excelentes da deliberao e da escolha e tambm da dimenso zoon politikonnosentidodequeseuestatutodeexcelnciadependentedesua insero num contexto scio-poltico para ser levada a cabo. Ou seja: para que o homem realize com excelncia aquilo que lhe mais prprio, manifestando o que o define genrica e especificamente, faz-se necessria a prtica de aes virtuosas. Nestesentido,quandoumaaodestetipoefetuada,pode-sedizerqueela tambm realizou a finalidade do homem, isto , a felicidade.Esta interpretao no est de acordo com a ideia de que a vida como se fosseumjogodevideogamenoqualexistemvriasfases(aesvirtuosas)que devemsercompletadasparaquesepossaganharojogoereceber,aofinal,as devidasmedalhasquelhesocabidas(afelicidade).Pelocontrrio,afelicidade aqui ocorre na realizao de cada fase, e quem joga o jogo no o faz esperando o final dele para receber as suas congratulaes, mas antes, joga por desejar brincar cada fase em particular. Assim, as aes virtuosas so entendidas como fins em si PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA49 mesmase,aomesmotempo,realizadorasdafelicidade,poisestaseinstanciana performance de cada ao em particular. Emboraestainterpretaodefendidanosedeparecomosproblemas levantadospelaprimeirainterpretaoreconstrudanestasesso,aindaassim, possveldemandaralgunsesclarecimentosaseurespeito.Porexemplo:a)como seencaixaaideiaaristotlicadeperfeita/completafelicidadenestaconcepo defelicidadeaquiapresentada?b)nestamesmaconcepo,comodeveser entendidaarelaoentreacontemplaoeaperfeitafelicidade?c)deque forma possvel compreender o caso de Pramo a partir desta interpretao? a)A perfeio e a completude da felicidade dizem respeito ao grau da virtude que ela realiza em relao ao que prprio do homem.Seafelicidadeatividadeconformeavirtude,serrazovel que ela esteja tambm em concordncia com a mais alta virtude; e essa ser a do que existe de melhor em ns. Quer seja a razo, quer alguma outracoisaesseelementoquejulgamosseronossodirigenteeguia natural, tornando a seu cargo as coisas nobres e divinas, e quer seja ele mesmodivino, quer apenas o elemento mais divino queexiste em ns, suaatividadeconformevirtudequelheprpriaseraperfeita felicidade.Queessaatividadecontemplativa,jodissemos anteriormente. 41

A passagem citada estabelece que aquilo que h de melhor em ns ologos(arazo),eousodestejuntorealizaodavirtudequelhe maisprpria,acontemplao,aperfeitafelicidade.Aperfeita felicidade a realizao do que h de melhor e mais prprio no homem, o logos, na sua mxima excelncia, isto , com a contemplao. Esta , neste sentido,estabelecidacomoaquiloquerealizanaltimapotnciaeste elemento que julgamos ser o nosso dirigente e guia natural. Como j foi ditoanteriormente,zoonlogonechonezoonpolitikonsodeterminados por Aristteles como as definies que exprimem a essncia do homem. A essnciadealgo,porsuavez,determinadatambmporsuadiferena especfica. A diferena especfica aquilo que torna o objeto diferente dos outrosdeseumesmognerooqueconfereidentidadeaoobjeto.A essncia aquilo que h em potncia nele; sua tendncia natural atualiz-la,equantomelhoreleatualizaoqueestemsicomopotncia,mais

41ARISTTELES, tica a Nicmaco, 1100 a 1-10. PUC-Rio - Certificao Digital N 1312391/CA50 excelente ele . Atualizar o que h em potncia , neste caso, cumprir a sua finalidade. No caso do homem, sendo zoon politikon e zoon logon echon de forma excelente, isto , atualizando sua essncia com excelncia, que elerealizaasuafinalidade.Portanto,arealizaonamximapotncia daquiloquelhemaisprprio,nestecaso,ologos,amaisperfeitadas felicidades. b) Ora, se a funo do homem uma atividade da alma que segue ouqueimplicaumprincpioracional,ese dizemosqueumtal-e-tale umbomtal-e-taltmumafunoqueamesmaemespcie(...);se realmente assim [afirmamos ser a funo do homem uma certa espcie devida,eestavidaumaatividadeou aesdaalmaque implicamum princpioracional;eacrescentamosqueafunodeumbomhomem umaboaenobrerealizaodasmesmas;esequalqueraobem realizadaquandoestdeacordocomaexcelnciaquelheprpria;se realmente assim ], o bem do homem nos aparece como uma atividade da alma em consonncia com a virtude, e, se h mais de uma virtude, com amelhor e mais completa. 42; e: (...) a atividade da razo, que contemplativa, tanto parece ser mais superior e mais valiosa pela sua seriedade como no visar anenhumfimalmdesimesmaepossuiroseuprazerprprio(o qual,porsuavez,intensificaaatividade),eaauto-suficincia,os lazeres,aisenodefadiga(namedidaemqueissopossvelao homem),etodasasdemaisqualidadesquesoatribudasao homemsumamentefelizso,evidentemente,asqueserelacionam comessaatividade,segue-sequeessaserafelicidadecompleta do homem (...). 43. Tomandoasduaspassagensacimaemconsiderao,possvel afirmar que, A