kalil, luisguilhermeassis schmidl - dissertação

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1 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA LUIS GUILHERME ASSIS KALIL A conquista do Prata: análise da crônica de Ulrico Schmidl Dissertação de mestrado História cultural Orientador: Leandro Karnal Campinas Agosto/2008

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Dissertação Kalil, LuisGuilhermeAssis Schmidl

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    UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTRIA

    LUIS GUILHERME ASSIS KALIL

    A conquista do Prata:

    anlise da crnica de Ulrico Schmidl

    Dissertao de mestrado Histria cultural

    Orientador: Leandro Karnal

    Campinas Agosto/2008

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    FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP

    Ttulo em ingls: The conquest of the River Plate: analysis of Ulrico Schmidls chronicles

    Palavras chaves em ingls (keywords) :

    rea de Concentrao: Histria Cultural

    Titulao: Mestre em Histria

    Banca examinadora:

    Data da defesa: 27-08-2008

    Programa de Ps-Graduao: Histria

    Chronicles Prata, Rio da Regio (Argentina e Uruguai) History 16th century

    Leandro Karnal, Maria Cristina Bohn Martins, Jos Alves de Freitas Neto, Leila Mezan

    Kalil, Luis Guilherme Assis K124c A conquista do Prata: anlise da crnica de Ulrich Schmidel /

    Luis Guilherme Assis Kalil. - - Campinas, SP : [s. n.], 2008.

    Orientador: Leandro Karnal. Dissertao (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.

    1. Schmidel, Ulrich, 1510?-1579? 2. Crnicas. 3. Prata, Rio da Regio (Argentina e Uruguai) Histria Sc. XVI. I. Karnal, Leandro, 1963-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo.

    (cn/ifch)

  • o-\O~(r"""fOo~

    ~

    LuisGuilhermeAssisKalil

    A CONQUISTA DO PRATA

    anlisedacrnicadeUlricoSchmidl* ckr"c.cJ,

    Esteexemplarcorresponde redaofinalda dissertaode mestradodefendi~aeprovada pela Comisso julgadora em27/08/2008

    ComissoJUlfldOrb

    Prof.DI'.Lea~nal (orientador)

    ~-~

    Profa.p\a.lY1ariaCristinaBohnMartins

    Prof.Dr.~~~Profa.Ora.LeilaMezanAlgranti(suplente)

    ~issertaode Mestrado apresentadaaoProgramade Ps-graduaode Histria doInstitutode Filosofiae CinciasHumanasdaUniversidadeEstadual de Campinas, soborientaodoProfessorDI'.LeandroKarnal

    ..

    Prof.Ora.ElianeCristinaOeckmannFleck(suplente)

    CampinasAgosto-2008

    3

  • 4

    ndice

    Agradecimentos..............................................................................................................06

    Resumo/Abstract........................................................................................................... 07

    Introduo....................................................................................................................... 09

    Captulo 1 Do Mar Dulce Baviera

    procura de um Outro Peru.................................................................................. 17

    chegada ao Mar Dulce............................................................................................. 23

    Ulrico Schmidl......................................................................................................... 31

    a busca pelas Amazonas........................................................................................... 36

    o fim de uma era....................................................................................................... 40

    retorno Baviera...................................................................................................... 50

    Captulo 2 A escrita da Viaje al Ro de la Plata

    discursos sobre o indgena....................................................................................... 57

    a escrita da Viaje al Ro de la Plata......................................................................... 59 bom selvagem ou co imundo.................................................................................. 72

    antropofagias e canibalismos................................................................................... 80

    silncios religiosos................................................................................................. 100

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    Captulo 3 Os ndios tonsurados e os espanhis canibais

    imagens do Novo Mundo....................................................................................... 107

    Theodore de Bry: a semente crist dos indgenas............................................... 113

    Levinus Hulsius: a infncia da humanidade........................................................... 141

    Captulo 4 As Viajes al Ro de la Plata

    as edies da crnica.............................................................................................. 149

    a busca pela alma de la raza.................................................................................. 152

    os julgamentos das crnicas............................................................................... 157 Schmidl em terras brasileiras.............................................................................. 168

    Concluso....................................................................................................................... 179

    Bibliografia

    edies da crnica de Ulrico Schmidl.................................................................... 183

    fontes...................................................................................................................... 184

    bibliografia............................................................................................................. 185

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    Agradecimentos

    Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao Prof. Dr. Leandro Karnal. Orientador que, com sua inteligncia e erudio, sempre indicou novos caminhos a serem percorridos. Agradeo, especialmente, seus conselhos e indicaes, que nunca se limitaram ao mbito desta pesquisa.

    Ao Prof Dr. Jos Alves de Freitas Neto, por seus conselhos e indicaes. Seus cursos e textos, sempre instigantes, marcaram profundamente minha formao.

    Prof. Dra. Maria Cristina Bohn Martins que, atravs de seus textos, me acompanhou ao longo da pesquisa e, ao final, aceitou participar da comisso julgadora.

    Prof. Dra. Leila Mezan Algranti, por sua leitura criteriosa, que sempre nos leva a novos questionamentos. Seus cursos foram responsveis pelo despertar de inmeras vocaes.

    Ao Prof. Dr. Paulo Miceli, por seus conselhos e indicaes presentes desde o incio da graduao. Sua fala, sempre estimulante, ampliou minha viso sobre o ofcio do historiador.

    Ao Prof. Dr. Michael M. Hall por suas aulas e pelo estmulo constante leitura e

    pesquisa.

    Aos companheiros de ps-graduao: Luiz Estevam, Anderson e Gabriel. Por fim, agradeo minha famlia: Wagner, Beatriz, Rodrigo, Elias (in memorian)

    Luiza, Jos (in memorian), Margarida, Duda e Rafael; pela confiana e pelo apoio incondicional.

    Jaquelini, por tudo. Que estes seis anos se tornem sessenta.

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    Resumo

    Esta pesquisa busca analisar os discursos sobre os habitantes do Novo Mundo presentes na crnica de Ulrico Schmidl. Aps permanecer por cerca de dezessete anos no sul da Amrica (1536 1553), o soldado bvaro retornou Europa, onde se converteu f protestante e escreveu sua Viaje al Ro de la Plata. A partir de seu relato, pretendemos observar de que forma elementos como o canibalismo, tambm descritos por outros autores (como Jean de Lry e Hans Staden), influenciaram as narrativas de viajantes, em especial, em questes como a humanidade dos indgenas e as dvidas referentes s possibilidades de escravizao e converso. Pretendemos ainda examinar de que forma essas descries foram utilizadas como base para os mtuos ataques entre catlicos e protestantes no perodo.

    Abstract

    This research aims to analyze the New World inhabitants discourses at the Ulrico Schmidls chronicle. After approximately seventeen years at South America (1536 1553), the Bavarian soldier has returned to Europe, where he has converted himself to the protestant faith and has written his Viaje al Ro de la Plata. Based on his account we intend to observe how elements like cannibalism, also described by others authors (like Jean de Lry and Hans Staden), have influenced the travelers narratives, especially about humanity of Indigenous and doubts about the possibilities of his enslaver and conversion. We still intend to study how these descriptions were utilized in mutual attacks between Catholics and Protestants.

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    Introduo

    Eu sinceramente desejara que se promulgasse uma lei segundo a qual todo viajante, antes que se lhe permitisse publicar as suas viagens, fosse obrigado a

    jurar, diante do chanceler-mor do reino, que era absolutamente verdadeiro, em sua sincera opinio, tudo o que ele pretendia dar a lume; dessa maneira, j no seria enganado o mundo, como ordinariamente o , ao

    passo que alguns escritores, para melhor aceitao do

    seu livro, iludem com as mais grosseiras falsidades o leitor incauto. Li diversos livros de viagem com grande

    satisfao em minha mocidade; mas tendo, depois disso,

    visitado a maior parte das regies do globo e podido contrariar, pela minha prpria observao, muitos

    relatos fabulosos, concebi grande averso a esse gnero

    de leituras e alguma indignao ao ver to

    impudentemente abusada a credulidade dos homens Jonathan Swift, Viagens de Gulliver

    A presente pesquisa tem como objetivo analisar as descries do Novo Mundo feitas por Ulrico Schmidl1 em sua Viaje al Ro de la Plata2. Mais especificamente, pretendemos observar de que forma alguns costumes indgenas descritos pelo cronista como o canibalismo aliados aos conflitos religiosos entre catlicos e protestantes

    1 Existem muitas variaes do nome do cronista (Schmidel, Schmidt, Schnirdel, Fabro), contudo, utilizaremos

    Ulrico Schmidl por ser esta a grafia mais utilizada em lngua portuguesa: ... o prenome Ulrico (...) pelo qual a sua personalidade mais conhecida no Brasil, bem como a grafia Schmidl, porquanto tal foi o modo de escrever adotado pelo seu portador durante a sua estada na Amrica do Sul, e como tal tambm oficialmente conhecido nos documentos (KLOSTER & SOMMER: 1942, p. 13). Grafias diferentes sero mantidas apenas em citaes. 2 Apesar de escrita originalmente em alemo, utilizaremos o ttulo Viaje al Ro de la Plata, por ser a forma

    pela qual a crnica de Schmidl ficou conhecida nas ltimas dcadas.

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    existentes na Europa quinhentista influenciaram seu relato, principalmente em questes

    como a humanidade e a possibilidade ou no de escravizao e converso dos nativos americanos.

    Bvaro natural da cidade de Straubing, Schmidl se alistou como soldado para integrar um navio da frota comandada por Pedro de Mendoza que partia em direo ao sul da Amrica. Permaneceu cerca de dezessete anos na regio (1536 1553), perodo no qual ocorreram as primeiras expedies ao interior do continente, marcadas pela busca constante s reservas de metais preciosos que, segundo indcios encontrados tanto na natureza quanto nos precrios dilogos realizados com os indgenas, existiriam nas terras cortadas pelo rio denominado no por acaso como de la Plata. Aps seu retorno Europa, renunciou ao catolicismo e adotou os princpios da Reforma, sendo, por isso, forado a abandonar sua cidade natal e se estabelecer no centro protestante de Regensburg, mudana que, como veremos ao longo dos captulos, marcou profundamente o processo de escrita de sua crnica.

    Editado pela primeira vez em Frankfurt, no ano de 1567, seu relato se difundiu rapidamente pela regio alem, tendo sido reeditado diversas vezes at as primeiras dcadas do sculo XVII. Grande parte destas publicaes foi ilustrada pelas casas impressoras de Theodore de Bry e Levinus Hulsius editores protestantes que incluram a crnica de Schmidl em suas colees de narrativas de viajantes. Em seu relato, alm de narrar os percalos por que os europeus passaram at chegar regio do Prata e o contato com cerca de meia centena de grupos indgenas, o cronista descreveu a fundao dos primeiros povoamentos espanhis na regio sul do novo continente que, anos mais tarde, integrariam pases como Argentina, Paraguai e Brasil. Tais passagens, entre o final do sculo XIX e incio do XX, deslocaram o interesse pela obra da Europa para as colnias espanholas recm-independentes, cujas historiografias buscavam nos escritos de Schmidl os primeiros indcios de suas futuras naes.

    Ao longo da anlise da Viaje al Ro de la Plata, pretendemos articular os trs plos da relao entre o escrito e seus leitores abordados por Roger Chartier: de um lado, a anlise dos textos, sejam cannicos ou profanos, decifrados nas suas estruturas, nos seus objetivos, em suas pretenses; de outro lado, a histria do livro, alm de todos os objetos e de todas as formas que toma o escrito; finalmente, o estudo das prticas que se apossam de

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    maneira diversa desses objetos ou de suas formas, produzindo usos e significaes diferenciados (CHARTIER: 1994, p. 12). Entretanto, lembrando a advertncia de Franois Hartog, para quem a narrativa o percurso de outras narrativas, no restringiremos nossas observaes apenas obra de Schmidl. Dessa forma, sua crnica ser tomada como ponto de partida para a pesquisa, que se estender para outros relatos quinhentistas, como as Duas Viagens ao Brasil do tambm soldado alemo Hans Staden, a Viagem Terra do Brasil do huguenote Jean de Lry e os Comentrios do adelantado espanhol Alvar Nez Cabeza de Vaca. Atravs de comparaes entre diferentes autores, pretendemos no apenas ampliar nossas observaes, mas tambm evitar o risco de nos fecharmos em apenas uma obra, o que limitaria ainda mais o horizonte de nossa anlise: se voc comea recusando toda confrontao do texto com o que no diretamente texto, corre o risco de desenvolver, mais ou menos habilmente, uma mquina de produo de perfrases e tautologias; no fim das contas, de instaurar um culto ao texto, que no ousa sequer confessar-se como tal (HARTOG: 1999, p. 48).

    A deciso de nos debruarmos sobre relatos do sculo XVI trouxe tona uma srie de questionamentos tericos, em especial, relacionados possibilidade ou no de conhecimento do outro, o que nos levou a questes como: de que forma os autores europeus descreveram os indgenas? At que ponto as crnicas sobre o Novo Mundo os retrataram como eles eram de fato ou apenas como uma srie de projees etnocntricas? Como apontado por Leandro Karnal, ao longo dos anos, questes como as acima citadas foram balizadas por duas posies antagnicas: a que considera ser possvel atravs das crnicas resgatar a integralidade das sociedades pr-colombianas e a que defende a impossibilidade epistemolgica do conhecimento do outro (KARNAL: 2004, pp. 10 11). Contudo, ao invs de tomarmos parte em algum dos extremos, acreditamos ser o espao entre eles o local mais frtil para nossa pesquisa.

    Dessa maneira, importante ressaltarmos que a presente anlise no pretende destacar um contedo real na obra de Schmidl, em contraposio ao que seria fruto de sua imaginao. Como veremos adiante, questes como a veracidade de um texto correspondiam, no sculo XVI, a critrios diversos dos adotados posteriormente. Segundo o historiador colombiano Jaime Humberto Borja Gmez, os autores desse perodo no trabalhavam com uma noo de verdade factual, a ela sobrepunha-se o ensinamento moral:

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    ... la narracin no describa exactamente procesos polticos o histricos en el actual sentido del trmino, sino que una reflexin moral que superditaba la concordancia de lo objetivo (BORJA GMEZ: 2002, p. 69). Entretanto, tal posicionamento no nos leva ao extremo oposto de considerar os relatos de viajantes como construes puramente retricas e ficcionais3. Tampouco buscamos estabelecer, atravs da comparao com outros cronistas, um grupo de informaes etnogrficas consideradas confiveis a respeito dos grupos nativos4. No acreditamos que a soma das informaes obtidas em diferentes obras resulte em um indgena real, mas sim, que, atravs de seu cotejamento, podemos observar de maneira mais evidente o processo de construo dos discursos de cada um dos autores acerca do Novo Mundo.

    Atravs dessas observaes, nos aproximamos da definio de Histria Cultural apresentada por Roger Chartier: tal como a entendemos, [ela] tem por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade

    3 Apesar de ser duramente criticada por historiadores como Carlo Ginzburg e Roger Chartier, a viso de que

    os documentos correspondem apenas a critrios literrios, continua a ser adotada em algumas anlises de crnicas coloniais. Entre elas, podemos citar a obra do historiador colombiano Jaime Humberto Borja Gmez, que defende a anlise dos relatos sobre a Amrica como textos de cultura e no como um repositrio de verdades etnolgicas. Segundo o autor, essas obras no se baseavam na experincia dos cronistas, mas correspondiam a uma realidade textual fortemente influenciada pelos relatos de viajantes medievais. Gmez parte da Recopilacin Historial do franciscano Pedro de Aguado para afirmar que os documentos do perodo e a historiografia posterior mostraram que o verdadeiro triunfo da conquista do Novo Mundo foi a vitria do ndio retrico em detrimento do ndio real. (BORJA GMEZ: 2002). No Brasil, Alcir Pcora tambm combate essa busca por um real atravs da radicalizao dos domnios do retrico, potico ou literrio: o conjunto de estudos deste volume supe gratuito crer que sejam mais reais ou historicamente mais fiis vale dizer, mais capazes de determinar um tempo preciso um documento de chancelaria ou um decreto institucional do que um sermo ou uma stira. Uns e outros so completamente diferentes, sim felizmente! , na variedade dos recursos, nas tpicas da inveno, nas figuras da elocuo, nas partes necessrias da disposio, enfim, na execuo de suas formas consagradas pela tradio, mas no no seu estatuto de criao. Isto , no no seu estatuto de constructo, de artifcio regulado por um conjunto convencional de leis e prticas (...) Assim, a realidade de que se pode falar to somente a que se compe junto daqueles que falam dela, como verossmil, mais durvel ou perecvel, a cada vez, segundo o conjunto de provas de que se dispe e que se divulga, com mais ou menos consistncia argumentativa, a distintos auditrios (PCORA: 2001, pp. 14 15). 4 Procedimento este adotado por autores como Florestan Fernandes, que em seu balano crtico da

    contribuio etnogrfica dos cronistas, comparou diferentes relatos coloniais em busca de informaes confiveis a respeito da funo social da guerra na sociedade Tupinamb. Segundo o autor, sua inteno no foi fazer uma crtica dos documentos tarefa esta destinada aos historiadores , mas um exame crtico de seu contedo etnogrfico: A apreciao do contedo etnogrfico das fontes foi feita atravs de comparaes quantitativas (tratamento estatstico dos dados e informaes fornecidas pelos autores quinhentistas e seiscentistas) e por meio de uma anlise qualitativa de textos, mediante utilizao de tcnicas de crtica histrica, do critrio de coerncia etnolgica e de casustica sociolgica. Atravs desse procedimento, Florestan, que ressaltou a utilizao de apenas informaes consideradas mais consistentes, dividiu os cronistas em independentes (Gndavo, Hans Staden e Andr Thvet) e os que possuam um grau varivel de influncia de outros informantes (jesutas, Jean de Lry, Gabriel Soares de Sousa, Abbeville, Evreux) (FERNANDES: 1975, pp. 191 289).

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    social construda, pensada, dada a ler (...) As representaes do mundo social assim construdas, embora aspirem universalidade de um diagnstico fundado na razo, so sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Da, para cada caso, o necessrio relacionamento dos discursos proferidos com a posio de quem os utiliza (...) Por isso esta investigao sobre as representaes supe-nas como estando sempre colocadas num campo de concorrncias e de competies cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominao (CHARTIER: 1990, pp. 16 17). Como visto na citao acima, um conceito central que permeia a obra de Chartier e, do qual tambm nos ocuparemos o de representao. Assim, nosso interesse no ser determinar como viviam os indgenas, mas analisarmos de que formas alguns viajantes europeus decidiram descrever para seus leitores as novas terras e seus habitantes: o real assume assim um novo sentido: o que real, de fato, no somente a realidade visada pelo texto, mas a prpria maneira como ele a visa, na historicidade de sua produo e na estratgia de sua escritura (CHARTIER: 2002, p. 56).

    Aps estas observaes, torna-se necessrio tecermos algumas linhas sobre cada um dos quatro captulos da pesquisa. No primeiro deles, intitulado Do Mar Dulce Baviera, buscamos apontar o impacto da descoberta de metais preciosos no Peru e na Nova Espanha que, aliada a um imaginrio europeu de grandes riquezas existentes em terras distantes, gerou o que poderamos denominar como uma vontade de acreditar dentro das expedies. Vontade esta, que estimulou um grande nmero de europeus a organizarem entradas na regio do Prata em busca dos metais preciosos que existiriam em locais mticos como a Sierra de la Plata, o reino das Amazonas, o Eldorado e a Cidade dos Csares. Como veremos adiante, a prpria narrativa de Schmidl indicativa destes anseios. Nela, alm de descrever uma frustrada expedio procura das Amazonas, o cronista apontou a busca por ouro como sendo o principal objetivo dos europeus.

    O captulo inicial ainda aborda as escassas e, muitas vezes, conflitantes informaes referentes vida do soldado bvaro. No entanto, no pretendemos em nenhum momento realizar uma biografia do cronista. Assim, passaremos ao largo de questes que inflamaram os nimos de historiadores no incio do sculo XX (como as datas de nascimento e morte de Schmidl, se ele deixou herdeiros ou no, entre outras) para centrarmos nossas atenes

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    apenas em algumas passagens consideradas relevantes para a compreenso de seu relato, em especial, as mudanas que ocorreram aps sua converso ao protestantismo.

    O segundo captulo da dissertao aborda, como o prprio ttulo enfatiza, o processo de escrita de Schmidl. A partir de autores como Tzvetan Todorov e Franois Hartog, tentamos esboar a retrica da alteridade presente na Viaje al Ro de la Plata. Para isso, dividimos o captulo em trs partes. A primeira busca demonstrar de que formas e com que recursos o cronista, seus copistas e editores tentaram legitimar as informaes presentes em seu texto5. A segunda parte pretende abordar como Schmidl tentou traduzir o outro para seu pblico leitor. Tendo como base as descries de canibalismo praticados por alguns grupos indgenas, buscamos observar como o autor, nas palavras de Michel de Certeau, tentou tornar tal prtica palatvel para os europeus e harmoniz-la com questes como a

    defesa da humanidade e da possibilidade de converso dos nativos. Processo este que se entrelaa com as crticas feitas pelo soldado bvaro ao comportamento dos espanhis, que tambm teriam adotado este brbaro costume durante a primeira fundao do povoamento de Buenos Aires. Por fim, levando-se em conta que um discurso tambm constitudo por aquilo que deixa de dizer, nos centramos nos silncios existentes em seu relato, como a ausncia de referncias atuao da Igreja Catlica no interior das expedies.

    No captulo denominado Os ndios tonsurados e os espanhis canibais, nos dedicamos anlise das ilustraes que integraram algumas edies da crnica de Schmidl publicadas no final do sculo XVI. Atravs das comparaes com gravuras presentes em outras crnicas (como a clebre Brevsima Relacin de la Destruccin de las Indias do dominicano Bartolom de Las Casas), intentamos demonstrar que, para alm de uma preocupao etnogrfica, os editores e artistas do perodo buscavam estabelecer uma histria moral. Dessa forma, atitudes como a repetio de imagens e a insero de temas bblicos em relatos que abordavam as novas terras e seus habitantes eram considerados como procedimentos vlidos dentro do que Chartier denominou como luta de representaes. A partir dessas informaes, nos dedicamos aos volumes publicados por

    5 A busca por legitimao ocorre mesmo quando o narrador tenta desqualificar as narrativas de viajantes,

    apontando seu contedo fantasioso. Como visto na epgrafe, ao defender uma lei obrigando os autores a dizerem apenas a verdade, o personagem de Swift buscava legitimar seu relato, que, por ser diferente dos outros, seria verdadeiro.

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    Theodore de Bry e Levinus Hulsius, ambos editores protestantes que, atravs de suas colees de narrativas de viajantes, teceram inmeras crticas atuao da Religio Catlica tanto na Europa quanto no Novo Mundo.

    No ltimo captulo, buscamos traar os caminhos percorridos pelo relato de Schmidl desde os primeiros manuscritos que circularam pela regio da Baviera. Para isto, abordamos as edies, tradues e estudos sobre o autor da Viaje al Ro de la Plata. Em especial, a pesquisa se dedicou s publicaes lanadas no Brasil e na Argentina entre o final do sculo XIX e incio do XX. Marcadas por um forte teor positivista, tais publicaes realizaram uma minuciosa anlise das crnicas, apresentando o que consideravam ser suas falhas e suas informaes vlidas. Atravs desta espcie de julgamento, buscaram determinar o verdadeiro valor das narrativas coloniais, procedimento considerado indispensvel para uma historiografia preocupada em estabelecer os primeiros passos da nao, que j estariam presentes desde os contatos iniciais dos europeus com as terras americanas.

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    Captulo 1

    Do Mar Dulce Baviera

    All quedamos durante cuatro das y el rey pregunt a nuestro capitn sobre nuestro deseo e intencin; entonces nuestro capitn contest al rey de los Jers que l quera buscar oro y plata

    Ulrico Schmidl

    procura de um Outro Peru

    Quando o soldado bvaro Ulrico Schmidl chegou foz do ro de la Plata, no incio de 1536, integrando a frota do adelantado Pedro de Mendoza, a regio sul do Novo Mundo j havia sido visitada por outras expedies, organizadas pelas Coroas espanhola e portuguesa. Alm de uma passagem que possibilitasse uma nova rota para as terras do Oriente, da obteno de novos territrios e da expanso da f crist, um objetivo insistentemente apontado pelos integrantes destas expedies era a busca por metais preciosos.

    Segundo Tzvetan Todorov, o desejo de enriquecer nas terras do novo continente no era algo novo, no entanto, o que um tanto moderno a subordinao de todos os outros valores a esse. Tal subordinao seria representativa da mentalidade moderna, igualitarista e economicista do perodo: o conquistador ainda aspira aos valores aristocrticos, ttulos de nobreza, honra e estima; mas, para ele, tornou-se perfeitamente claro que tudo pode ser

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    obtido atravs do dinheiro, que este no somente o equivalente universal de todos os valores materiais, como tambm a possibilidade de adquirir todos os valores espirituais (TODOROV: 1993, p. 138).

    Apesar de apresentar traos modernos, este desejo de enriquecer remetia a elementos muito anteriores chegada da primeira viagem de Cristvo Colombo. A historiadora Zinka Ziebell indicou que os impulsos s primeiras empresas de descobertas europias a partir do sculo XV radicavam-se em um mescla de fontes que retrocedem a dois mil anos ou mais na Antiguidade. Como exemplo, a autora alem descreveu a atuao da teoria aristotlica da distribuio de metais preciosos nas buscas por ouro no Novo Mundo6. (ZIEBELL: 2002, p. 18). A influncia de um imaginrio europeu sobre as terras e os povos distantes nos rumos das expedies foi abordada por diversos historiadores. Entre eles, podemos citar Edmundo OGorman que, em sua pioneira obra A Inveno da Amrica, criticou a prpria idia de descobrimento, defendendo que a Amrica, nas palavras de Ana Maria Correa, foi o resultado de uma inveno do pensamento ocidental e no um descobrimento s fsico e acidental. Segundo o autor: ao projetar o processo de inveno da Amrica sobre o fundo de seu prprio horizonte cultural, no s se explicar o aparecimento desse ente, mas tambm que o acontecimento surgir como uma nova etapa talvez a mais decisiva daquele antiqssimo processo (OGORMAN: 1992, p. 18 e p. 72).

    A esse imaginrio, rapidamente somaram-se as notcias que chegavam de outras regies da Amrica, atravs de escritos e relatos orais de sobreviventes, como a Mundus Novus um dos primeiros textos a difundir informaes sobre a existncia de riquezas no interior do continente. Atribuda a Amrico Vespcio, esta carta foi largamente publicada e divulgou o retrato de um Novo Mundo que, apesar de ser habitado por indgenas antropfagos e sem religio, possua uma natureza exuberante, alm de grandes reservas de ouro. Paralelamente a estas notcias, comeou a se espalhar pela Europa a imagem de que os habitantes destas terras ignoravam ou trocavam facilmente seus metais preciosos, o que

    6 De acordo com a autora, esta era uma das teorias cosmogrficas de maior prestgio na poca e serviu como

    base racional e cientfica para sustentar todo um processo mitificador: acreditava-se que esta regio apresentaria as mesmas qualidades aurferas das terras da Guin, de acordo com a teoria aristotlica, segundo a qual produtos similares seriam encontrados em latitudes similares. A importncia dessa teoria na poca expressa-se em uma carta que os Reis Catlicos dirigem-se a Colombo, em 1493, consultando-o sobre a convenincia de se reformular a bula papal de modo que esta passasse a incluir maior extenso de terras situadas na zona equinocial (ZIEBELL: 2002, pp. 42 45).

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    fica evidente atravs da Mundus Novus: Ali no h nenhum gnero de metais, exceto ouro, que abunda naquelas regies. Embora nada dele trouxemos conosco nessa nossa primeira navegao. Disso nos deram notcias os ncolas, que afirmavam haver grande cpia de ouro nos mediterrneos [terras interiores], por eles nada estimado ou tido em apreo (VESPCIO: 2003, pp. 46 47). Esta imagem foi reforada por outros relatos de viajantes, como a prpria Viaje al Ro de la Plata, onde Schmidl indicou que os nativos davam suas planchas de oro e suas argollas de prata em troca de hachas, cuchillos, rosarios, tijeras y otro rescate ms (SCHMIDL: 1938, pp. 117 118). Alm de ser uma prova da ignorncia indgena que desconheceria o verdadeiro valor dos metais , essas informaes incentivaram ainda mais a organizao e o envio de novas expedies.

    Como veremos adiante, os contatos iniciais estabelecidos pelos navios europeus com o ro de la Plata ocorreram cerca de vinte anos aps a chegada de Cristvo Colombo ao Novo Mundo, o que fez com que estas informaes, aliadas ao desembarque dos carregamentos de ouro e prata obtidos nas minas existentes no Peru e na Nova Espanha, influenciassem profundamente as expectativas dos viajantes, seus objetivos e, muitas vezes, os rumos que tomaram em suas entradas. Quando as primeiras expedies chegaram regio, muito do esperado pelos europeus foi confirmado pelas prprias caractersticas das novas terras7 e tambm atravs das informaes dadas pelos grupos indgenas que, segundo os relatos, faziam recorrentes indicaes sobre a existncia de metais preciosos nas terras do interior , o que fez com que o incio da presena europia na regio fosse marcado por inmeras expedies em direo s riquezas de locais como a Sierra de la Plata, o reino do Rey Blanco, a cidade dos Csares, o reino dourado das Amazonas, entre outros.

    Como exemplo da busca pelas minas de metal amarillo e pelos locais mticos que supostamente existiriam nas terras do interior, podemos citar a carta enviada Coroa espanhola pelo governador Domingo Martinez de Irala. Nela, so descritas as perguntas que o comandante da expedio fazia aos grupos indgenas que encontrava pelo caminho: ... perguntado se sabe que tribo so os verdadeiros donos do metal, disse que no sabe, mas

    7 Cabeza de Vaca afirmou que durante uma de suas expedies avistou uma regio cuja falta de rvores e

    ervas indicaria a presena de metais preciosos. Entretanto, tais metais no teriam sido extrados devido grande quantidade de doentes e falta de aparelhos de fundio. (NEZ CABEZA DE VACA: 2000, p. 252).

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    que ouviu dizer que so os Chans, Payunos e Carcars, e estes so os que tm o metal branco (...) perguntado se sabia ou se ouviu dizer de um Rei Branco, disse que no.... A carta chega a incluir um dilogo entre dois ndios de diferentes grupos: e porque no dizes a verdade aos cristos que no querem seno metal? E o dito ndio respondeu: eles no me entendem que eu digo apenas para irem aos Chans em nove dias (IRALA: 1998, pp. 10 30).

    importante observarmos que no final do sculo XV e no incio do XVI a existncia destas riquezas no era encarada como uma possibilidade, mas sim como uma certeza. Segundo o historiador Guillermo Giucci, as informaes sobre as grandes quantidades de metais preciosos existentes nas terras recm descobertas eram encaradas como fragmentos de uma realidade concreta e no como a imposio de uma representao imaginria (GIUCCI: 1992, p. 214). Antes de Giucci, Srgio Buarque de Holanda demonstrou como o imaginrio formulado pelos expedicionrios (influenciados entre outras fontes pelas lendas medievais sobre o Oriente e pela leitura de clssicos greco-romanos) era, na Amrica, encarado como algo real e prximo. A anlise que o autor faz em sua obra Viso do Paraso sobre a procura pelo Paraso Terreal nas terras do Novo Mundo tambm pode ser estendida para as expedies que buscavam pelos opulentos locais mticos no sul do continente. Para Srgio Buarque, estas crenas no eram apenas uma sugesto metafrica ou uma passageira fantasia, mas uma espcie de idia fixa, que ramificada em numerosos derivados ou variantes acompanha ou precede, quase indefectivelmente, a atividade dos conquistadores nas ndias de Castela (HOLANDA: 1969, p. 16).

    A busca pelas riquezas da Sierra de la Plata exemplar dessa influncia do imaginrio construdo previamente sobre a regio que, sintomaticamente, acabou sendo chamada de la Plata o que revela mais a expectativa dos que a renomearam do que alguma caracterstica do rio que a cruza. A crena na existncia de um monte composto de prata foi impulsionada pela New zeutung ausz presillandt (conhecida em portugus com o ttulo de Nova Gazeta da Terra do Brasil8). Inspirado nos escritos de Amrico Vespcio,

    8 Seu ttulo completo era: Nova Gazeta da Terra do Brasil: notcias trazidas por um navio que saiu de

    Portugal para descobrir a terra do Brasil mais longe do que antes se sabia e na volta chegou ilha da Madeira; escritas da Madeira para Anturpia por um bom amigo. (HILBERT: 2000, p. 42). A Nova Gazeta

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    esse folheto annimo foi editado, em 1515, na cidade de Augsburg, e obteve uma ampla repercusso, sendo republicado diversas vezes nos anos seguintes. Seu contedo descreve uma expedio realizada regio sul da Amrica, local este que, alm de cruzes e marcas dos passos de So Tom9, possui grandes reservas de metais preciosos nas terras do interior:

    Sabei ainda que elles trazem bastante notcia de que estiveram em um porto e rio,

    distante do referido cabo 200 milhas em direo a ns; ahi receberam informaes a

    respeito de muita prata e cobre, e tambm de ouro, que h no interior do pas. Dizem que

    o capito delles, do outro navio, traz para el-Rei de Portugal uma acha de prata (...) Trazem ainda um metal que dizem ter a apparencia de lato e no estar exposto a

    ferrugem nem deteriorao. No sabem se ouro inferior ou o que seja. Ainda no mesmo logar, beira-mar, obtiveram daquelle mesmo povo informao de que pela terra dentro existe um povo serrano, que possue muito ouro, e traz o ouro batido, a modo de arnez, na

    frente e ao peito (BRANDENBURGER: 1922, pp. 39 40).

    Guillermo Giucci descreveu a provvel ligao da Sierra de la Plata com antigas lendas incaicas que apontavam para a existncia de regies cobertas de ouro e prata. Tais relatos teriam chegado at as terras do sul atravs dos ndios guaranis sobreviventes que, antes do contato com os europeus, buscaram, sem sucesso, alcanar estas riquezas. O autor apontou tambm que: no caso singular do monte de prata, a interseo de histria e da fico partia de uma srie heterognea de eventos que eram reunidos pelos aventureiros como indcio de uma realidade fantstica que devia ser descoberta e conquistada (GIUCCI: 1992, pp. 215 216).

    Contudo, com a sucesso de expedies enviadas regio do Prata, o esperado pelos europeus chocou-se com o experimentado o confronto com grupos indgenas e a escassez de metais preciosos, gua e alimentos , gerando o que Giucci definiu como os conflitos do maravilhoso. Esse choque, entretanto, no implicou no imediato abandono

    tambm foi publicada em lngua portuguesa nos Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro (SCHULLER: 1915, pp. 115 144). 9 Segundo o autor: eles tm tambm recordao de So Tom. Quiseram mostrar aos portugueses as pegadas

    de So Tom no interior do pas. Indicam tambm que tm cruzes pela terra adentro. E quando falam de So Tom, chamam-lhe o Deus pequeno, mas que havia outro Deus maior. bem crvel que tenham lembrana de So Tom, pois sabido que est corporalmente por trs de Malaca; j na costa de Siramath, no golfo do Ceilo. No pas chamam tambm freqentemente seus filhos Tom (BRANDENBURGER: 1922, pp. 51 52).

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    destas crenas. Durante dcadas, os fracassos das expedies no impediram a organizao de novas tentativas. interessante observarmos a preocupao de muitos autores do perodo em produzir explicaes Coroa para justificarem o fato de que apenas uma quantidade nfima de ouro principalmente quando comparada com as remessas advindas das minas situadas no Peru era enviada Europa. Uma indicao recorrente nos documentos de que as entradas que chegaram a encontrar as grandes reservas de metais preciosos foram atacadas por indgenas ao tentarem transportar seus carregamentos para o litoral. J outros viajantes buscaram demonstrar que o pequeno envio de metais fazia parte de uma estratgia de abordagem dos grupos nativos, que permitiria um sucesso ainda maior no futuro. Dessa forma, Luis Ramrez afirmou que: llevan mui buenas muestras de oro y plata desta tierra, y no llebari mas cantidad, porque ... no quiso resgatar por no dar entender los Yndios tenamos cudicia de su metal, que pues sabiamos de cierto lo habia (RAMREZ: 1888, p. 38).

    As recorrentes passagens que ressaltavam a insistncia com que os indgenas apontavam para a existncia de morros feitos de prata e outros locais mticos, presentes nos escritos europeus da primeira metade do sculo XVI, foram interpretadas de diferentes formas pela historiografia. Para alguns autores, tais notcias foram criadas pelos prprios nativos, como uma tentativa de atrair a cobia europia para locais distantes de suas aldeias10. Outros indicam que essa era uma informao j esperada pelos conquistadores, que simplesmente confirmavam-na atravs das tentativas de comunicao com os grupos indgenas. No entanto, a interpretao mais recorrente a de que essas notcias se tratavam de possveis aluses regio peruana. Defendida por historiadores como Enrique de Ganda e, atualmente, por Guillermo Giucci que, contudo, no excluem a importncia das indicaes indgenas e do imaginrio europeu , a influncia Inca foi tambm apontada como origem de outros elementos presentes nos relatos da regio do Prata, como as informaes relativas a existncia de um Rey Blanco e do reino das Amazonas (que seriam reminiscncias das virgens do sol).

    10 Certamente, quando os ndios descobriram o delrio dos espanhis pelo metal precioso, passaram a

    inventar cordilheiras, vales e lagos cheios de ouro (...) A lenda do El Dorado nasceu da mesma forma da boca dos ndios e no foi simples coincidncia que o situaram em lugares inspitos como as regies dos rios Orinoco e Meta (BRUIT: 1992, pp. 88 89).

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    Como vimos acima, os sucessivos fracassos no se mostraram suficientes para

    diminuir a confiana na existncia dessas incalculveis riquezas. Os empecilhos se mostravam grandes e numerosos, mas a certeza da recompensa continuava a impulsionar os europeus. Contudo, em meados do sculo XVI, a chegada da expedio comandada pelo capito Domingo Martinez de Irala s terras de Pizarro acabaram abalando fortemente estas crenas. Mesmo havendo ainda algumas tentativas posteriores, a busca por um outro Peru11 foi sendo progressivamente abandonada, sem nunca ter alcanado seu principal objetivo. Apesar de apontar uma continuidade entre a verso quinhentista das montanhas que reluzem e o Sabarabou de Ferno Dias e de que, ainda no sculo XVII, So Vicente era conhecida como a capitania de melhor passagem para as mticas serras, Srgio Buarque de Holanda afirmou que a busca por ouro e prata foi sendo paulatinamente substituda por outros objetivos: Em vez do metal precioso que dali parecera reluzir aos antigos navegantes, o que iam buscar na mesma costa eram os carij para a lavoura ou o servio domstico (HOLANDA: 1969, p. 100).

    Chegada ao Mar Dulce

    Questo que ocupou muitos historiadores no sculo XIX e incio do XX, preocupados com a busca pela verdadeira origem da nao, o primeiro contato europeu com o ro de la Plata foi fruto de intensas discusses. Julian Maria Rubio afirmou que autores como Magnaghi e Vignaud apontavam a expedio de Gonzalo Coelho (que trazia Amrico Vespcio entre seus tripulantes) como sendo a pioneira, tendo alcanado a regio em 1501. Apesar dessa tese ser sustentada por autores como Alexandre Gaspar da Naia, que enumerou vinte pontos que a confirmariam (NAIA: 1960, pp. 78 82), ela foi duramente contestada e acabou abandonada, sendo atualmente consensual que o primeiro contato foi realizado pela expedio de Juan Daz de Sols (RUBIO: 1942, p. 7). Os cronistas Gonzalo

    11 Apesar do captulo O Outro Peru da obra Viso do Paraso abordar mais detidamente a rea que hoje

    constitui o Brasil, em particular, a regio de So Vicente, essa expresso tambm pode ser utilizada na anlise do Prata, uma vez que a prpria obra de Srgio Buarque de Holanda mostra as ligaes que existiam entre as duas regies. Como exemplo, podemos citar o padre Manuel da Nbrega, que escreveu sobre as Amazonas baseado nas informaes obtidas atravs de Antonio Rodrigues, soldado que esteve em expedies no sul do Novo Mundo junto com Ulrico Schmidl e que, posteriormente, entrou para a Companhia de Jesus. (HOLANDA: 1969, p. 78 125).

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    Fernndez de Oviedo e Ruy Daz de Guzmn indicaram que sua armada chegou ao Prata em 1512, j o poema La Argentina, de Martn del Barco Centenera, afirmou que isso ocorreu um ano depois. Entretanto, a indicao mais recorrente a de que a descoberta foi realizada por Sols em sua expedio de 151512. Outra expedio que passou pela regio no perodo foi a clebre circunavegao comandada por Ferno de Magalhes, que, durante trs semanas, explorou o leito do ro de la Plata para certificar-se de que no se tratava da to procurada passagem ao sul que ligaria as embarcaes europias s riquezas do Oriente atravs de uma nova rota martima.

    Aps realizar duas viagens ao Novo Mundo (1506 e 1508), ser preso (devido a disputas com seu companheiro de expedio Vicente Yez Pinzn), libertado e inocentado, Sols recebeu do rei espanhol o posto de Piloto Mayor. Com isso, organizou uma expedio cujo objetivo era buscar um caminho para o Mar del Sur, que havia sido recentemente descoberto por Vasco Nez de Balboa. Partiu no final de 1515 e chegou no incio do ano seguinte foz do rio que foi denominado por ele como Mar Dulce. Porm, esse primeiro contato dos europeus foi bruscamente interrompido devido a uma emboscada realizada por um grupo de ndios guaranis13, que assassinaram quase todos os integrantes da expedio, entre os quais, os tripulantes do bote em que estava Sols. Apesar da emboscada indgena ter matado o lder da expedio, alguns integrantes da armada sobreviveram e decidiram retornar para a Europa. Entretanto, uma das embarcaes afundou no Porto dos Patos, situado no litoral das terras que hoje formam o estado de Santa Catarina. Segundo Srgio Buarque de Holanda, entre os cerca de onze sobreviventes, encontravam-se Melchior Ramirez, Henrique de Montes, Alejo Garca e um mulato de nome Pacheco que se tornariam os grandes divulgadores das notcias do povo serrano, do rei branco e de suas riquezas inumerveis (HOLANDA: 1969, p. 83).

    Instigados por essas histrias, alguns espanhis remanescentes, comandados por Alejo Garca, decidiram partir continente adentro levando consigo cerca de dois mil

    12 Guillermo Madero fez um resumo dos argumentos e das dvidas relativas ao primeiro contato europeu com

    o Prata atravs das cartas trocadas, no final do sculo XIX, entre seu av e Bartolom Mitre. Eduardo Madero apontou, a princpio, o ano de 1512 como sendo a data correta. Porm, o encontro de outros documentos o fizeram acreditar que tal expedio nunca chegou a ser realizada, concordando, por fim, com Mitre, de que esse encontro se deu em 1515. (MADERO: 1955, p. 176). 13

    Alguns grupos indgenas apresentam mais de uma denominao. Entre eles, podemos citar os guarani que, no sculo XVI, eram tambm conhecidos como Carijs ou Carios. Devido s diferenas, o presente trabalho ir manter a grafia de acordo com as citaes.

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    indgenas. Aps diversos combates com grupos nativos, a expedio, que chegou at prximo cordilheira dos Andes, acabou retornando para a regio paraguaia, de onde enviaram emissrios com amostras das supostas riquezas encontradas para os espanhis que permaneceram na ilha de Santa Catarina. Pouco tempo depois, o grupo tambm foi atacado e dizimado pelos guarani (o nico sobrevivente foi um filho homnimo de Garca que, dcadas depois, descreveu essa entrada para Ruy Daz de Guzmn).

    Segundo o historiador paraguaio Manuel Domnguez, Alejo Garca e seus homens foram mortos porque tinham escravizado ndios para transportarem at o litoral a prata encontrada nas terras do interior (DOMNGUEZ: s/d, p. 250). Como visto anteriormente, a destruio da expedio no foi encarada como um fracasso, mas sim como a confirmao da existncia dessas riquezas. Com isso, as mortes estariam associadas ao sucesso obtido pela entrada, uma vez que os europeus teriam sido atacados devido ao fato de terem encontrado grandes quantidades de metal precioso. Dessa forma, apesar das pequenas remessas de prata que efetivamente chegaram Europa, essa expedio acabou servindo de inspirao para diversas outras: ... desde entonces la fama del Rey Blanco y de la inagotable Sierra de la Plata, extendise entre los conquistadores (RUBIO: 1942, p. 44 45).

    Influenciado pelas escassas informaes a respeito da regio do Prata14, Sebastin Caboto (Cabot, Gaboto) decidiu mudar o rumo de sua esquadra que, a princpio, pretendia, atravs da rota traada pela expedio comandada por Ferno de Magalhes, alcanar os metais preciosos, especiarias e sedas existentes nas ilhas Molucas. Filho do tambm marinheiro Joo Caboto (que organizou viagens em busca das ilhas do Brasil, das Sete Cidades e de uma passagem para Cipango), Sebastin participou de algumas expedies inglesas ao Novo Mundo. Contudo, com a morte de Henrique VII, decidiu partir para a Espanha, onde se tornou Piloto Mayor de Carlos V (GRUZINSKI & BERNAND: 1997, p. 599). Luis Ramrez, em uma carta que reforou ainda mais a crena nas riquezas da

    14 necessrio ressaltarmos o pequeno nmero de informaes sobre a regio que chegavam Europa no

    perodo. A Brevsima Relacin de la Destruccin de las Indias, de Bartolom de Las Casas, exemplar. Nela, o padre dominicano afirmou, no breve captulo intitulado Del Ro de la Plata, que en general, sabemos que han hecho muertes y daos; en particular, como est muy a trasmano de lo que ms se trata de las Indias, no sabemos cosas que decir sealadas (LAS CASAS: 1995, p. 156). Outro autor do perodo que deu pouca ateno regio foi Lpez de Gomara, que dedicou apenas algumas linhas de sua Historia General de las Indias ao Prata.

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    regio, afirmou que Henrique Montes, remanescente da expedio de Sols, informou Caboto sobre:

    ... la gran riqueza que en aquel ro donde mataron su Capitn havia (...) entrando por este dicho ro arriba no tenia en mucho cargar las naos de oro y plata aunque fuesen mayores, porque dicho ro de Paran, y otros que el bienen dar, iban confinar con una sierra donde muchos Indios acostumbraban ir y venir, y que en esta sierra havia mucha manera de metal, y que en ella havia mucho oro y plata, y otro genero de metal que aquello no alcanzaba que metal era, mas de cuanto ello no era cobre, que de todos estos gneros de metal havia mucha cantidad, y questa sierra atravesaba por la tierra mas de doscientas leguas, y en la alda della haba as mesmo muchas minas de oro y plata y de los otros metales (RAMREZ: 1888, p. 20).

    Com a mudana de rota que para o historiador Jos Toribio Medina era um indcio de que a expedio j havia partido da Espanha decidida a se estabelecer na regio do Prata15 Caboto passou por terras que hoje pertencem ao estado de Pernambuco e, apesar da proibio contida em sua capitulacin de aportar em terras do rei de Portugal, desembarcou na ilha de Santa Catarina. Aps alguns dias, partiu para o sul do continente, fundando, em 1527, o primeiro estabelecimento espanhol no Prata: o forte de Sancti Spiritus. No ano seguinte, Caboto e seus homens se encontraram com a expedio comandada por Diego Garca de Moguer e, devido aos objetivos comuns, decidiram firmar uma parceria para realizarem juntos as buscas pelas riquezas que existiriam nas terras do interior.

    Remanescente da expedio de Sols que havia retornado Europa, Garca de Moguer conseguiu, em meados de 1525, apoio da Coroa espanhola para organizar uma frota em direo ao Prata, que partiu do porto de La Corua no incio do ano seguinte. Em uma carta enviada Espanha, Diego, alm de incluir diversas crticas ao comando de Caboto apontando-o como o responsvel pelo fim das relaes amigveis que os europeus mantinham com os ndios Carrioces ao levar para Sevilha quatro filhos dos principais lderes da tribo , descreveu as notcias sobre as riquezas que existiriam no interior do continente: ... todas estas generaciones que no comen carne umana no hacen mal los

    15 ... desde antes de salir de Espaa Caboto haba decidido no pasar en su viaje del Ro de la Plata, por

    haber tenido noticia de las extraordinarias riquezas que en l se podan lograr (RUBIO: 1942, p. 59).

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    cristianos que son antes amigos suyos, y estas generaciones dan nuevas deste Paraguay que en el ay muchos oro e plata grandes riquezas piedras preciosas (GARCA: 1888, p. 14).

    Neste mesmo perodo, Caboto havia autorizado Francisco Csar a realizar uma entrada com alguns espanhis e ndios que, aps algumas semanas no interior do continente, retornaram afirmando que tinham avistado mas no alcanado grandes quantidades de metais e pedras preciosas. Tais informaes inflamaram ainda mais os nimos das duas expedies para realizarem uma busca conjunta. Porm, enquanto se preparavam para a partida, no porto de San Salvador, um grupo de indgenas dizimou o forte de Sancti Spiritus, o que acabou inviabilizando seus planos. Os dois comandantes retornaram separadamente Espanha, contudo, a certeza da existncia de ouro e prata permaneceu inalterada, o que os levou a uma longa disputa judicial pelo direito de retornarem quelas terras (sem decises favorveis para nenhum dos lados). Apesar dos resultados terem novamente sido frustrantes, as informaes fornecidas pelos dois lderes acabaram atraindo um grande contingente de espanhis e portugueses que se alistavam voluntariamente nas novas expedies que estavam sendo organizadas para explorarem o interior da regio. Os montes compostos por metais preciosos continuavam sendo indicados nos precrios dilogos realizados com os nativos, o que fica evidente atravs de uma carta escrita por Sebastin Caboto, onde o comandante afirmou que os que vivem naquela terra dizem que, terra adentro, no longe dali, h grandes serras de onde se tira infinita quantidade de ouro e que mais adiante, nas mesmas serras, tiram infinita prata (MELLO: 2006, p. 140).

    Alm da busca por metais preciosos, de uma nova rota para o Oriente e da expanso da f crist atravs da converso dos nativos, as viagens em direo ao Novo Mundo autorizadas pelas Coroas europias nesse perodo visavam fortalecer suas posies em certos locais considerados estratgicos, como uma forma de tentar evitar a presena de navios de outras nacionalidades. A expedio comandada por Sols exemplar, sua partida foi apressada e ocorreu sob grande sigilo devido s informaes de que havia uma embarcao com bandeira de Portugal sendo preparada para seguir em direo ao Prata. Guillermo Giucci indicou que aps o retorno da expedio de Nuo de Guzmn iria se infiltrando na conscincia da Coroa lusitana uma srie de elementos anunciadores de

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    riquezas extraordinrias, que se encontrariam num interior impreciso situado entre Canania ao norte e o rio da Prata ao sul (GIUCCI: 1992, pp. 210 211). Uma das expedies portuguesas que alcanaram a regio foi a de Cristobal Jacques, que, em 1526, partiu tentando evitar a chegada de uma armada francesa. No entanto, mesmo com a existncia de embarcaes de outras bandeiras, a presena espanhola no Prata foi predominante.

    Durante estas expedies, o ro de la Plata recebeu diferentes denominaes. Apesar de Juan Daz de Sols o descrever como Mar Dulce, a forma predominante por que ficou conhecido no incio do sculo XVI foi o de ro de Sols. Contudo, para alguns autores, como Alexandre Gaspar da Naia, essa denominao seria o resultado de um erro, uma vez que o rio que na Espanha seria conhecido por esse nome era o Uruguai. Segundo o historiador, o fato da expedio de Magalhes considerar o Prata como uma espcie de prolongamento do rio Uruguai originou a equivocada crena de que o nome de Sols foi aplicado ao Prata desde o princpio (NAIA: 1960, p. 69). Independentemente dessas questes, a primeira referncia encontrada a utilizar o atual nome foi a declarao de um marinheiro da expedio comandada por Loaisa, datada de junho de 1527. J o primeiro mapa a incluir essa denominao foi o do veneziano Agnese, em 1536 (RUBIO: 1942, p. 87 - 88).

    Aps vrias embarcaes serem enviadas regio e, mesmo no encontrando os metais preciosos, retornarem aos portos europeus trazendo informaes sobre locais que possuam imensas riquezas, a Coroa espanhola decidiu organizar uma expedio maior, comandada por um adelantado16. Com as notcias que chegaram Europa atravs dos sobreviventes da expedio de Diego Garca, tornou-se urgente o envio de outras embarcaes para a regio. No final de 1530, o comendador Miguel de Herrera foi

    16 Existem opinies divergentes relativas ao que seria um adelantamiento. O historiador Medardo Chvez

    afirmou se tratar de uma expedio que visava fundar pueblos y comarcas, fuera de la bsqueda del oro y la plata (MEDARDO CHVEZ: 1929, pp. 24 26). J Lafuente Machain apontou o inverso: o principal interesse seria a obteno de metais preciosos, o que refletia na prpria composio da armada, formada por gente de armas: La R. O. de 1534 no deja lugar a dudas. Detalla numerosos casos, se preocupa de fijar derechos y obligaciones, pero no dice nada referente a colonizacin. (LAFUENTE MACHAIN: 1939, p. 18). Contudo, Serge Gruzinski e Carmen Bernand apontaram que esse ttulo (que na Espanha era concedido ao governador de um territrio prximo fronteira com os mouros), no Novo Mundo estava mais relacionado com a conquista de um territrio ainda pouco explorado e disputado por diversos reinos europeus, sendo concedido a comandantes como Cristvo Colombo e Pedro de Mendoza: [o ttulo] era dado ao descobridor ou futuro descobridor de um territrio particular cuja conquista deveria efetuar (GRUZINSKI & BERNAND: 1997, p. 593)

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    autorizado a organizar uma esquadra que partisse para o Prata, porm, por razes desconhecidas, ela jamais foi concretizada. Outros homens tambm buscaram permisso junto Coroa para partir rumo quela regio, entre eles, don Pedro Fernndez de Lugo (adelantado das ilhas Canrias), e os recm chegados Sebastin Caboto e o prprio Diego Garca. Entretanto, o nome escolhido pelo rei foi o de Pedro de Mendoza.

    Pajem de Carlos V e, provavelmente, participante do saque de Roma, Mendoza obteve, em 1534, uma capitulao outorgada pelo rei que lhe concedia um amplo territrio, que ia do ro de la Plata at o mar del Sur onde teria duzentas lguas ao longo da costa que comea onde acaba o governo de D. Diego de Almagro (GOMES RIBEIRO: 1906, p. 32). Tal documento o autorizava a llevar de estos nuestros reinos a vuestra costa y misin a mil hombres, los quinientos en el primer viaje en que vos habis de ir con el mantenimiento necesario para un ao y cien caballos y yeguas, y dentro de dos aos siguientes los otros quinientos hombres. Mendoza tambm foi autorizado a levar duzentos escravos, alm de mdicos, boticrios e, principalmente, religiosos: necesarios para la instruccin de los indios naturales de aquella tierra a nuestra Santa Fe Catlica, con cuyo parecer y no sin ellos habis de hacer la conquista, descubrimientos y poblacin de la dicha tierra (GUTMAN & HARDOY: 1992, p. 18).

    No entanto, Guillermo Giucci indicou que os objetivos declarados na capitulao no coincidiam com os seus verdadeiros intentos: mais que uma armada de carter ofensivo, a verdadeira meta da empresa de D. Pedro de Mendoza era encontrar o reino de um segundo Atahualpa, de um otro Per (GIUCCI: 1992, p. 217). J Ruy Daz de Guzmn afirmou que o real propsito da expedio era custodiar la lnea de Tordesillas e impedir los avances de los portugueses hacia la Sierra de la Plata, que se supona hallarse hacia el Oeste (DAZ DE GUZMN: 2000, p. 71).

    Segundo o cronista mayor da Coroa espanhola Antonio de Herrera y Tordesillas, os preparativos da expedio de Mendoza foram apressados devido ao grande nmero de pessoas que se alistavam inspirados, entre outros fatores, pelo prprio nome do rio que explorariam: ... publicada la jornada (...) de don Pedro de Mendoza, el nombre del ro de la Plata y las nuevas que corran por todo el mundo de las riquezas de las Indias, por las muestras que veian, acudi tanta gente que por evitar gastos convino que se diera mucha prisa em la partida (apud GANDA: 1932, p. 19). Alm do excesso de voluntrios, a

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    partida de Mendoza foi adiantada pela informao de que havia uma expedio organizada por Portugal que visava explorar a regio do Prata e tambm pela chegada Europa de ouro proveniente das terras de Pizarro.

    O adelantado conseguiu partir da Espanha em setembro de 1535. Alguns historiadores, como Paul Groussac, apontaram que sua expedio foi formada por apenas onze embarcaes. Entretanto, a informao mais recorrente (indicada por autores como Ruy Daz de Guzmn, Edmundo Wernicke e Enrique de Ganda) de que dos dezesseis barcos que partiram, um se perdeu na costa do Brasil e outro (La Maraona) seguiu em direo a Santo Domingo, tendo o restante chegado, em fevereiro do ano seguinte, foz do rio da Prata.

    Entre os navios que compunham a expedio encontrava-se um de propriedade de Sebastin Neithart e Jacobo Welser (banqueiros de Nremberg), tripulado por cerca de cento e cinqenta alemes, austracos e holandeses comandados por Heirich Paime. Os laos entre as regies espanhola e alem eram muito fortes no perodo, o que fica evidente atravs da coroao de Carlos I da Espanha, que tambm possua o ttulo de Carlos V da Alemanha17 forma pela qual ficou conhecido. Entre as casas comerciais alems que prosperaram, as principais foram os Fgger (enriquecidos pela explorao de metais na Europa central) e os Welser (comerciantes de tecidos e especiarias) que, juntas, financiaram sua ascenso ao trono: a cambio del apoyo, ambas bancas conseguirn, en 1522, el levantamiento de la ordenanza que prohiba la participacin de extranjeros en las expediciones de ultramar (SCHNEIDER: 1995, p. 28)18.

    A quantidade de tripulantes que participaram da frota de Mendoza tambm fruto de divergncias. Os nmeros variam de oitocentos a dois mil e quinhentos. Segundo

    17 No havia um Estado alemo no sculo XVI, a regio era composta por diversos reinos. Contudo, pode-se

    falar de uma Alemanha no perodo no aspecto cultural. O prprio Schmidl usou esse conceito ao descrever a tripulao do navio em que embarcou, formada por alto-alemanes, neerlandeses y austracos o sajones. O cronista tambm estabeleceu, diversas vezes em sua obra, comparaes dos objetos e costumes indgenas com os da Alemanha: Tambin usan bola de piedra (...) como las plomadas que usamos en Alemania (SCHMIDL: 1997, p. 15 e p. 25). 18

    Antes de enviarem um navio acompanhando a expedio comandada por Pedro de Mendoza, os Welser antiga famlia de Augsburgo que, em 1473, fundou uma casa de comrcio j tinham se unido com os Fgger durante a expedio de Sebastin Caboto. Graas a seu apoio na ascenso de Carlos V ao poder, os Welser obtiveram, em 1528, uma grande concesso de terras na regio venezuelana (os Fgger tambm receberam pores de terras na Amrica, compreendidas entre Chincha e o estreito de Magalhes, mas nunca chegaram a explor-las). Contudo, os ataques indgenas, a escassez de homens, de gua e de alimentos e a converso ao protestantismo que levou a Coroa a retirar o seu apoio acabaram forando a casa alem a abandonar a regio em 1555 e, anos depois, a decretar sua falncia.

  • 31

    Samuel Lafone Quevedo, esta grande diferena seria resultado dos diversos critrios utilizados para a contagem. Alguns autores no incluam as mulheres e crianas no total de pessoas, outros excluam os estrangeiros, o que retiraria da contagem todos os tripulantes da embarcao dos comerciantes alemes, onde se encontrava o soldado bvaro Ulrico Schmidl.

    Ulrico Schmidl

    Grande parte das informaes que restaram a respeito da vida de Schmidl foi fornecida pelo prprio autor em sua Viaje al Ro de la Plata. Os perodos anterior e posterior sua passagem pela Amrica so muito pouco documentados. Alm disso, os escassos indcios obtidos so, muitas vezes, conflitantes (o que levou autores, como Edmundo Wernicke, a colocarem em dvida a autenticidade das informaes). No h indicaes concludentes sobre a data de seu nascimento, sendo possvel fazer apenas uma projeo. Devido existncia de uma lpide que indica o ano de morte de seu pai Wolfgang, em 1511, possvel afirmar que ele possua, no mnimo, vinte e quatro anos de idade ao partir para sua viagem ao Novo Mundo. Bartolom Mitre e Samuel Lafone Quevedo incluram ao final de sua edio do relato de Schmidl uma rvore genealgica de sua famlia. Nela, indica-se que Ulrico foi fruto do segundo casamento de seu pai. Informa tambm que ele possua dois irmos (Federico e Toms).

    Famlia tradicional na regio da Baviera tanto seu pai quanto seu av foram prefeitos de Straubing, cidade natal do cronista , existem relatos sobre os Schmidl desde o ano de 1364: El nombre de Schmidel Schmidl, segn Mondeschein, era tradicional en Straubing y sus inmediaciones; est consignado en los rboles genealgicos de su nobleza, as como en los registros municipales de la ciudad, estando adems registrado en algunos ttulos de enfeudacin que existen originales y grabados en las piedras tumularias de sus antigos cementerios. Mitre e Lafone Quevedo apontaram ainda que a famlia foi enobrecida por Frederico II, que lhes concedeu um escudo de armas (SCHMIDEL: 1903, pp. 16 21).

    No se sabe ao certo como foi sua vida antes da viagem. Alguns autores, como Ronald Raminelli, apontaram que o cronista foi comerciante em Andorf (Anturpia)

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    (VAINFAS: 2000, p. 570). A partir desta informao, Germn Arciniegas afirmou que Schmidl partiu para o Novo Mundo como agente dos banqueiros alemes e tambm que sua obra foi escrita com o intuito de inform-los sobre a situao da regio: sale de Espaa agente de los banqueros, de ellos se olvida luchando contra los indios en el interior del Paraguay, y a ellos vuelve los ojos en el momento oportuno, cuando regresa a Europa para referires las intimidades de la vida americana (ARCINIEGAS: 1941, p. 163). notria a grande quantidade de informantes que as casas comerciais alems enviavam ao Novo Mundo19, contudo, ao se analisar a Viaje al Ro de la Plata, no se encontram indcios de que seu autor a tenha escrito para tais comerciantes. Pelo contrrio. Arciniegas tenta sustentar sua afirmao indicando que isso ocorreu devido s experincias pelas quais o cronista passou na Amrica: aqui el arcabucero, que se ha olvidado definitivamente de los negcios de sus amos, los Welser, hace tanta poesia que su dirio no ser el libro de contabilidad que soaron los banqueros, sino sueo de Andaluz iluminado por leyendas rabes (ARCINIEGAS: 1941, p. 176). No entanto, seus argumentos so altamente questionveis. at provvel que Schmidl tenha descrito sua viagem a um representante dos Welser durante seu retorno Europa, porm, dificilmente os banqueiros incumbiriam um soldado para ser informante, sendo mais provvel que tal tarefa fosse delegada a um escrivo ou a algum dos lderes da expedio, como o comandante Heirich Paime20.

    Apesar das dvidas relativas ao perodo anterior sua viagem, sabe-se que Schmidl se alistou voluntariamente como soldado, partindo para Cdiz com o intuito de integrar uma das embarcaes que compunham a frota de Pedro de Mendoza. Durante os anos em que ficou na Amrica, chegou a exercer o cargo de sargento-arcabuzeiro e alguns postos de confiana (como o perodo em que foi indicado para ser responsvel pelo controle do estoque de gua da expedio durante uma longa seca), entretanto, na maior parte do tempo, foi soldado lansquenete21.

    19 A informao acumulada pelas casas bancrias, como a dos Fgger, Welser ou Ango, determinava

    latitudes geogrficas, enumerava com preciso os principais produtos existentes nas terras e indicava os costumes e crenas dos indgenas (GIUCCI: 1992, p. 207). 20

    A tentativa de mostrar Schmidl como agente dos banqueiros alemes est relacionada com a busca em elevar o cargo do cronista, o que, para alguns, tornaria sua obra mais confivel. Tais mudanas sero mais bem abordadas no quarto captulo. 21

    Segundo Deolinda de Jesus Freire, essa expresso (derivada do alemo Lands-Knetch) era utilizada para denominar os soldados mercenrios alemes que serviam infantaria dos exrcitos de diversas regies europias (FREIRE: 2004, p. 14).

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    A crnica de Schmidl praticamente se inicia com a partida da expedio de Mendoza, que passou por regies pertencentes Coroa portuguesa (como o Rio de Janeiro e, provavelmente, a ilha de Fernando de Noronha), e chegou foz do rio da Prata em fevereiro de 1536. Ao longo de sua obra, o autor descreveu os principais momentos do incio da presena europia na regio, muitos dos quais esteve presente. O cronista tambm incluiu passagens de acontecimentos que ficou sabendo apenas atravs dos relatos de informantes (como a morte de Juan Ayolas), contudo, fez questo de explicitar quais foram suas fontes.

    Logo no incio da expedio, Schmidl apontou que a embarcao em que estava quase foi afundada pelos tiros de canho disparados pelos moradores da ilha de La Palma. O ataque foi motivado pelo rapto da filha de um dos governantes da regio, feito por Jorge de Mendoza (primo do adelantado). A paz s foi retomada aps o casamento e o abandono de Jorge da expedio. Com a chegada ao Rio de Janeiro, Mendoza decidiu condenar morte por traio seu hermano formal Juan Osrio. Tal atitude foi muito criticada por diversos tripulantes e historiadores, incluindo o prprio Schmidl: Se le ha dado la muerte injustamente, ello bien lo sabe Dios; este le sea clemente y misericordioso; fue recto y buen militar y siempre ha tratado muy bien los peones (SCHMIDL: 1938, pp. 41 42). Ao chegar com sua expedio foz do Prata, Mendoza fundou o puerto de Nuestra Seora Santa Maria del Buen Aire. Fundao esta que, aps sofrer com os ataques de grupos indgenas e com a escassez de alimentos (que chegou a levar alguns espanhis prtica do canibalismo, se alimentando dos cadveres de seus companheiros), acabou abandonada alguns anos depois, s sendo retomada dcadas mais tarde.

    Enquanto sua sade piorava, Mendoza enviou expedies em vrias direes e com diferentes objetivos. Entre elas, esto as de Gonzalo de Mendoza, que partiu rumo s terras brasileiras em busca de alimentos, e a de Juan Ayolas, que foi para o interior do continente a procura da to propalada Sierra de la Plata. O governador tambm continuou com as fundaes de fortes como os de Corpus Christi e o de Nuestra Seora de la Buena Esperanza. No entanto, o estado do adelantado piorou e ele decidiu retornar Europa. Com esse objetivo, embarcou na nau La Magdalena, em abril de 1537, mas no resistiu e acabou morrendo de sfilis, cerca de dois meses depois, ainda em alto mar. Antes de partir, Mendoza deixou instrues sobre como a expedio deveria prosseguir: mandou um grupo

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    de espanhis para encontrar e ajudar Ayolas (escolhido por ele como o prximo governante do Prata), aconselhou seu sucessor a fazer amizade com Almagro e Pizarrro (sy entraredes tan adentro), e pediu que os metais preciosos fossem enviados para ele na Espanha assim que encontrados, para que pudessem, de alguma forma, diminuir os prejuzos que teve na Amrica.

    O paradeiro de Ayolas permaneceu desconhecido por um longo perodo. Com isso, Domingo Martinez de Irala, que tinha sido encarregado de esperar em um local combinado at o regresso do futuro governante, decidiu retornar para Asuncin. Segundo informaes obtidas atravs de alguns indgenas sobreviventes, a expedio de Ayolas conseguiu localizar e extrair grandes quantidades de ouro e prata, porm, durante sua viagem de volta para o litoral, no encontraram o reforo dos homens de Irala e acabaram sendo atacados e mortos pelos nativos22. Apesar de frustrada, essa expedio acabou alimentando mais uma vez a esperana dos europeus de que havia metais preciosos no interior da regio do rio da Prata23. Como visto nas ordens deixadas por Mendoza antes de retornar Europa, a certeza na existncia das riquezas permanecia inalterada e seu encontro continuava sendo considerado apenas como uma questo de tempo.

    Com a morte do sucessor indicado por Mendoza foi necessrio escolher outro comandante: ... nos pareci bien que hiciramos un capitn general que nos gobernara y fuere juez (...) y en seguida hicimos que mandara el Domingo Martinez de Irala, pues l haba mandado durante largo tiempo y l trataba bien a la gente de guerra y era bienquisto por nosotros (SCHMIDEL: 1938, p. 86). O abandono da expedio de Ayolas e a eleio para novo governador so dois acontecimentos muito discutidos pela historiografia que aborda a regio do Prata no incio da colonizao, sendo usados por alguns como argumentos tanto para atacar o governo de Irala quanto para defend-lo, mas sempre contrapondo-o ao perodo em que a regio foi comandada por Alvar Nez Cabeza de Vaca.

    22 ... cuando nuestro capitn general Juan Ayolas, por no haber sido prevenido ni haber recelado de ellos,

    estuvo a las tres jornadas entre los Naperus y los Payagus en un grande matorral y bosque, ellos han realizado all su plan y estuvieron ocultos a uno y otro lado del camino donde deba pasar el pobre Juan Ayolas (...) ah atropellaron ellos los Naperus y Payagus, como perros hambrientos a los cristianos y los mataron, que ninguno se salv. (SCHMIDEL: 1938, p. 84). 23

    Anos depois, o adelantado Cabeza de Vaca organizou expedies regio procura de ndios contemporneos emboscada que pudessem fornecer informaes sobre os metais encontrados por Ayolas. (NEZ CABEZA DE VACA: 2000, p. 218).

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    Durante seu primeiro perodo como governante, Irala tomou atitudes polmicas entre seus soldados, como a despovoao de Buenos Aires, em 1540 (efetuada mesmo contra a vontade dos moradores, para quem a escassez de alimentos tinha acabado e a agricultura comeava a se desenvolver24), e a concentrao do poder na cidade de Asuncin, fundada trs anos antes por Juan de Salazar: Domingo Martinez de Irala tuvo el mando de todos, dispuso que se aprestaran cuatro bergantines, pues queria navegar por el Paraguay hasta los timbs y a Buenos Aires y a traer a toda la gente que all estaba y reunirla en la antes nombrada ciudad de Nuestra Seora de la Asuncin (SCHMIDL: 1997, p. 56). Para alguns autores, o fato de Asuncin ficar mais prxima da Sierra de la Plata (obsesso de Irala, nas palavras de Julian Maria Rubio) foi elemento decisivo para a deciso sobre a transferncia da sede da expedio. Aps fazer a mudana, Irala comeou a preparar uma entrada em busca da Sierra, contudo, foi necessrio abort-la, devido chegada de informaes a respeito da expedio de Cabeza de Vaca o segundo adelantado da regio do Prata.

    Com a morte de Pedro de Mendoza e as incertezas quanto ao destino de Juan Ayolas, a Coroa espanhola, aps dois anos sem receber notcias, decidiu organizar uma nova expedio para a regio. Ainda que com menor intensidade, as histrias sobre as grandes riquezas no ro de Sols continuavam circulando pela Espanha. Com isso, alguns homens continuavam pedindo autorizao para partirem em direo ao Prata. Entre eles estava Alvar Nez Cabeza de Vaca, um dos quatro sobreviventes da trgica expedio comandada por Pnfilo de Narvez rumo atual regio da Flrida.

    Nascido por volta de 1500, o neto do conquistador da Grande Canria chegou pela primeira vez ao Novo Mundo em 1528, exercendo os cargos de tesoureiro e alguacil. Entretanto, os ataques de grupos indgenas e os diversos naufrgios que sofreram acabaram dizimando os cerca de quatrocentos europeus que compunham a frota. Para conseguir

    24 Enrique de Ganda esclareceu alguns aspectos referentes ao despovoamento de Buenos Aires: Cabrera fue

    quien imagino la despoblacin de Buenos Aires para que su amigo Irala quedara como nico mandatario de Paraguay y Ro de la Plata u Ruiz Galn no tuviera en donde mandar. Por ello trato de convencer a los pobladores de Buenos Aires a que se fuesen todos a la Asuncin. No quisieron abandonar sus casas y huertas. Entonces Irala envi ... a Juan Ortega ... no pudo hacerlo. Decidido a todo, Irala parti de la Asuncin con tres bergantines a fines de enero de 1541. Lleg el 10 de abril y escuch un requerimiento de Alonso Cabrera en que le instaba a despoblar la ciudad para que sus pobladores se trasladasen a asuncin y estuviesen ms cerca de los seores del metal (DAZ DE GUZMN: 2000, pp. 133 - 134). Apesar da tentativa ordenada por Cabeza de Vaca, o povoamento de Buenos Aires s foi retomado em 1580, por Juan de Garay.

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    sobreviver, foi obrigado a trabalhar como mascate e at como curandeiro entre os nativos. Depois de quase uma dcada vagando entre os ndios da Amrica do Norte, Cabeza de Vaca conseguiu retornar Espanha, onde descreveu sua viagem na obra que ficou conhecida com o ttulo de Naufrgios, que chegou a fazer certo sucesso na Espanha do perodo.

    Guillermo Giucci, em seu captulo dedicado aos Naufrgios, apontou que, ao descrever sua primeira viagem ao Novo Mundo, o cronista foi degolando as numerosas cabeas do monstro do maravilhoso. Contudo, o brusco aparecimento, nos ltimos captulos do percurso, de indcios, signos e mostras de riquezas inflige, por sua presena ineludvel, o rosto do maravilhoso (GIUCCI: 1992, pp. 190 191). Dessa forma, Cabeza de Vaca voltou Europa determinado a ser o adelantado da regio da Flrida, porm, no obteve autorizao da Coroa espanhola. Com isso, as informaes sobre o Prata obtidas durante sua primeira viagem acabaram convencendo-o a partir rumo ao sul da Amrica, comprometendo-se com o rei a investir oito mil ducados na expedio, que logo foi autorizada.

    A busca pelas Amazonas

    Marcado pelas informaes sobre as riquezas existentes no interior do continente, Cabeza de Vaca desembarcou no Novo Mundo na ilha de Santa Catarina e decidiu dividir seus homens em dois grupos, um que continuaria navegando, e outro, do qual fazia parte, que seguiria para o Prata por terra. Chegou em Asuncin no incio de maro de 1542, trazendo consigo uma carta de Carlos V, que o colocava no comando da expedio caso a morte de Ayolas fosse confirmada. Aps tomar posse, o segundo adelantado tentou, sem sucesso, repovoar Buenos Aires e organizou uma expedio ao interior do continente em busca das mticas riquezas da regio do Prata. Segundo Roberto Ferrando: El mito de Alejo Garca y su expedicin al fabuloso Rey Blanco ser obsesivo para Alvar Nez (NEZ CABEZA DE VACA: 2000, p. 29).

    Mesmo sendo obrigado a abortar a entrada, Cabeza de Vaca no abandonou suas esperanas e tentou continuar com as buscas atravs de expedies menores, que foram enviadas para diferentes regies. Entre elas, podemos citar a que foi comandada por

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    Hernando Ribera da qual Schmidl foi integrante , marcante para os rumos da regio tanto pelos seus objetivos quanto pelos confrontos ocorridos durante seu retorno a Asuncin. Schmidl apontou em sua Viaje al Ro de la Plata que a inteno inicial era apenas estabelecer um contato com os ndios Jers: entrar en la tierra por dos das y no ms tiempo y debamos reconocer el pas y traer relacin Del pas y de los indios a nuestro capitn (SCHMIDL: 1938, p. 108). Contudo, ao chegarem nessa tribo, os europeus encontraram algumas objetos feitos de ouro e, durante a tentativa de dilogo com os nativos, ficaram sabendo que eles tinham sido obtidos nas guerras contra um grupo de ndias guerreiras, que eles afirmavam ser as Amazonas25. Schmidl descreveu como elas seriam:

    ... esas son mujeres con un solo pecho y vienen a sus maridos tres o cuatro veces en el ao y si ella se embaraza por el hombre y es nace un varoncito, lo manda ella a casa del marido, pero si es una niita, la guardan con ellas y le queman el pecheo derecho para que ste no pueda crecer; l porqu le queman el pecho es para que puedan usar sus armas, los arcos contra sus enemigos; pues ellas hacen la guerra contra enemigos y son mujeres guerreras. Tambin viven estas mujeres amazonas en una isla y est rodeada la isla en todo su derredor por ro y es una isla grande. Tambin en esta isla las Amazonas no tienen ni oro ni plata, sino en Tierra Firme, que es en la tierra donde viven los maridos all tienen gran riqueza y es una nacin y un gran rey que se llamara Iis (SCHMIDL: 1938, pp. 114 - 115)26.

    25 Entonces el rey de los Jers dio una corona de plata que ha pesado un marco y medio, ms o menos,

    tambin una plancha de oro que ha sido larga como de un jeme y medio y ancha de medio jeme; tambin le ha dado un brazalete que es un medio arns y otras cosas ms de plata. Entonces le contest el rey de los Jers a nuestro capitn que l no tena ms oro y plata; tal oro y plata que yo he indicado antes, l lo habra ganado en las guerras, conquistado y quitado tiempos antes a las amazonas (SCHMIDL: 1938, pp. 113 114). 26

    Hernando Ribera, comandante da expedio, tambm descreveu esse grupo de indgenas guerreiras. Apesar de no denomin-las amazonas, a relacin de Ribera se aproxima em diversos pontos da escrita por Schmidl, como no carter blico dessas nativas, no pouco contato com os homens e na associao com metais preciosos: ... le dijeron que a diez jornadas de all, a la banda Oesnorueste, habitaban y tenan muy grandes pueblos unas mujeres que tenan mucho metal blanco y amarillo, y que los asientos y servicios de sus casas eran todos del dicho metal y tenan por su principal una mujer de la misma generacin, y que es gente de guerra y temida de la generacin de los indios; y que antes de llegar a la generacin de las dichas mujeres estaba una generacin de los indios (que es gente muy pequea), con los cuales y con la generacin de stos que le informaron, pelan las dichas mujeres y les hacen guerra, y que en cierto tiempo del ao se juntan con estos indios comarcanos y tienen con ellos su comunicacin carnal; y si las que quedan preadas paren hijas, tinenselas consigo, y los hijos los cran hasta que dejan de mamar, y que los envan a sus padres; y de aquella parte de los pueblos de las dichas mujeres haban muy grandes poblaciones y gente de indios que confinan con las dichas mujeres, que lo haban dicho sin preguntrselo a lo que sealaron, sta parte de un

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    A descrio feita por Schmidl da busca pelo reino das Amazonas exemplar da crena na existncia de riquezas no interior do continente. Segundo o cronista, quando o rei dos Jer nos di a comprender de las Amazonas y comunic de la gran riqueza, estuvimos muy alegres. Entonces pregunt nuestro capitn al rey si nosotros con nuestro buque podamos ir por agua y cuanta distancia habra hasta las sobredichas Amazonas. Entonces el rey contest a nuestro capitn que nosotros no podamos viajar por agua con nuestro buque; que nosotros debamos marchar por tierra y tendramos que viajar durante dos meses seguidos (SCHMIDL: 1938, p. 114). Aps esse dilogo, Ribera e seus homens decidiram explorar o interior do continente. Mesmo com as advertncias dos Jer, que indicavam que toda la tierra estaba llena de agua y que no era el tiempo de marchar, e dos Siber, que dieron a entender que nosotros ramos demasiado poca gente y deberamos regresar, a expedio decidiu persistir em sua busca: nosotros no quisimos creerlo y le pedimos los indios. (SCHMIDL: 1938, p. 116). Os europeus continuaram at os Ortuese, quando a fome, as doenas e a ameaa de um ataque indgena os convenceram a retornar a Asuncin.

    Srgio Buarque de Holanda analisou a persistncia da convico na existncia e o longo caminho percorrido pelas Amazonas at serem encontradas nas terras do Novo Mundo. Segundo o autor, foi Marco Plo que renovou, talvez sem o sentir (...) a tradio clssica das Amazonas. J na Amrica, a crena em uma terra de mulheres sem homens se alastrou como epidemia desde os primeiros contatos e foi endossada, sem reservas, por outros autores que escreveram depois de Colombo, como Gaspar de Carvajal (que afirmou ter se encontrado com um grupo delas), Lpez de Gomara, Andr Thvet27 e o prprio Schmidl, cuja descrio, para o historiador, se assemelharia existente na obra de Jean de Mandeville. Srgio Buarque indicou tambm que o tema das Amazonas era geralmente inseparvel do Prncipe Dourado/Eldorado, ambos relacionados existncia de grandes quantidades de ouro e prata no interior do continente americano (HOLANDA: 1959, pp. 28 38).

    lago de agua muy grande, que los indios nombraron la casa del Sol; dicen que all se encierra el Sol (NEZ CABEZA DE VACA: 2000, pp. 292 293). 27

    ... sempre acessvel a concepes extremadas ao ponto de ter visto nas Amazonas do Brasil as descendentes provveis e as herdeiras daquelas mesmas que se dispersaram em seguida guerra de Tria (HOLANDA: 1959, p. 36).

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    Luiz Mott tambm estudou a presena das Amazonas no Novo Mundo. Segundo o autor, elas povoavam a imaginao dos europeus, sobretudo depois que os amerndios foram incorporados mitologia ocidental (MOTT: 1992, p. 36). Em artigo intitulado As Amazonas: um mito e algumas hipteses, Mott descreveu o longo trajeto que essa crena percorreu no imaginrio europeu desde Herdoto (quem primeiro narrou esse mito) e analisou os elementos que seriam responsveis pela manuteno da lenda das mulheres guerreiras em terras americanas: a confuso com as virgens do sol dos Andes e a associao com as guerreiras lsbicas de vrias tribos. Segundo o autor, houve um amlgama entre as tradies orais de vrios povos indgenas: a realidade narrada por alguns desses ndios (que provavelmente viram as virgens do sol) transmitida e modificada ao longo de geraes, incorporou-se outra realidade, tambm histrica, a saber, a existncia de mulheres guerreiras em diversas tribos do Novo Mundo (MOTT: 1992, pp. 44 45)28.

    Apesar de no podermos negar as influncias das notcias provenientes das terras dos Incas, a anlise da crena na existncia desses locais mticos no deve se restringir a uma simples comparao com a regio peruana, o que fica evidente no caso do reino das Amazonas. Expedies em busca das riquezas de suas terras foram organizadas em diferentes partes da Amrica (e tambm em outros continentes, como a frica), o que dificulta a anlise que aponta para uma ligao direta entre essa crena e as virgens do sol.

    Este fato nos leva novamente a abordar as convices que os europeus traziam da Europa e que buscavam, atravs de indcios da natureza e dos dilogos com os nativos, confirm-las no novo continente. Ao analisar as descries das Amazonas, ficam evidentes as aproximaes que os autores faziam com as guerreiras que eram descritas em alguns clssicos greco-romanos. O prprio trecho de Schmidl, acima citado, se assemelha descrio feita sculos antes por Estrabo, o que no significa que o cronista tenha necessariamente lido sua obra, mas sim, que alguns elementos (como a existncia de um nico seio para um melhor manejo do arco, o relacionamento espordico e restrito com os

    28 Mott concluiu seu artigo com uma citao de Lvi-Strauss: no improvvel que o costume de certas

    mulheres de uma classe especial (..) no se casavam mas sim acompanhavam os homens na guerra, tenha dado origem lenda das Amazonas (MOTT: 1992, p. 53).

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    maridos, a educao voltada para a guerra para as filhas e o abandono dos filhos) circulavam a muito tempo no imaginrio europeu.

    Dessa forma, observamos que as informaes sobre a Sierra de la Plata, as Amazonas, o Eldorado ou outros locais mticos localizados pelos viajantes do sculo XVI na regio do Prata no devem ser encaradas apenas como resqucios deturpados dos Incas ou dos autores clssicos, mas sim como algo que, no Novo Mundo, adquiriu vida prpria. Nas palavras de Guillermo Giucci: importa menos se o rinoceronte e o unicrnio so o mesmo animal do que se a descrio do animal rinoceronte d vida a um objeto original, elusivo, que adquire autonomia de seu criador, que ser reconhecido e perseguido (GIUCCI: 1992, p. 14).

    O fim de uma era

    Apesar de no terem encontrado as Amazonas e suas riquezas, Schmidl apontou que a viagem foi muito lucrativa para os europeus. Segundo o cronista, durante a expedio nosotros habamos comprado a los indios con sigilo y a escondidas, contra cuchillos, rosarios, tijeras, espejos y otras chucheras (SCHMIDL: 1938, p. 119). Devido a esse comrcio clandestino, ao encontrarem com Cabeza de Vaca, foram informados de que deveriam permanecer dentro do barco. O adelantado ameaou enforcar Ribera e apreender todos os objetos comprados dos ndios. Ao saberem disso, os soldados da expedio se rebelaram e cuando l [Cabeza de Vaca] ha visto nuestra ira, estuvo ms que contento en dejarlo suelto y en entregar a ms todo lo que l nos haba quitado y nos rog que quedramos sosegados (SCHMIDL: 1938, p. 120).

    Esta passagem indica claramente a tenso que havia entre Cabeza de Vaca e a maioria dos europeus por ele governados. Roberto Ferrando afirmou que as crticas ao adelantado resumiam-se a trs pontos: sua tentativa de repovoar Buenos Aires, sua poltica de atrao dos indgenas (que impedia o comrcio com os europeus e, segundo o prprio Cabeza de Vaca, usava a guerra apenas como ltimo recurso) e os privilgios de sua capitulao, que se chocavam com os interesses de muitos oficiais e colonos (NEZ CABEZA DE VACA: 2000, p. 20).

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    Aps sua expedio frustrada ao interior do continente, o adelantado retornou enfermo para Asuncin. Aproveitando-se dessa situao, os soldados e oficiais reais que, desde o incio, se opunham a seu governo, invadiram sua residncia e o prenderam. Apesar de tentar no se mostrar como o lder dos revoltosos (denominados tumultuarios), Irala logo foi escolhido como o novo governante. Mesmo com algumas tentativas de libertao organizadas pelos leales, que foram duramente reprimidas, o antigo governador permaneceu encarcerado por mais de um ano. Aps esse perodo, foi enviado Espanha, onde foi julgado e condenado29.

    Como forma de se defender das acusaes e tentar apresentar a sua verso do ocorrido, Cabeza de Vaca orientou seu secretrio Pero Hernndez (que tambm foi preso e deportado) na escrita de seus Comentrios. No se sabe ao certo se o adelantado cumpriu integralmente sua pena. O perodo posterior ao seu julgamento possui muitas lacunas, e os historiadores o descrevem de acordo com as opinies que possuem a respeito de seu governo na Amrica. Para alguns, como Roberto Ferrando, Cabeza de Vaca cumpriu parte de sua pena e depois foi nomeado juiz do tribunal supremo de Sevilha (NEZ CABEZA DE VACA: 2000, p. 13). J para outros, como Gruzinski e Bernand, ele foi colocado em residncia forada no porto de Oran